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Budismo Tibetano

Budismo tibetano é único na forma como apresenta o escopo completo dos


ensinamentos de Buda em um formato estruturado e acessível. Para obtermos o máximo
benefício, podemos ler, refletir e meditar sobre cada um dos pontos quantas vezes
quisermos, para que se tornem parte integrante de nossas vidas diárias.

1. Sobre o BudismoSaiba mais sobre o budismo, a filosofia da


felicidade fundada por Buda há 2.500 anos.
2. Caminho para a IluminaçãoConstruir uma base estável para a
prática budista, seguindo uma sequência graduada de
ensinamentos, insights e treinamentos.
3. Treinamento da MenteMude sua atitude através dos métodos de
treinamento da mente.
4. TantraSaiba mais sobre o tantra budista, um método avançado
para treinar nossas mentes e realizar o nosso potencial.
Sobre o Budismo
O budismo aborda a situação na qual todos nós nos encontramos - o próprio fato de que
nenhum de nós deseja sofrer e todos nós desesperadamente queremos ser felizes.
Através da meditação e compreensão da realidade, podemos aplicar a sabedoria budista
diretamente em nossos problemas diários.
V I S ÃO G E R A L DO C O N T E ÚD O

 A Mensagem Básica de Buda


 O Mundo do Budismo
 Como Estudar e Praticar os Ensinamentos Budistas
 Evitar Confusão em Relação aos Ensinamentos Budistas

A Mensagem Básica de Buda


A abordagem básica para os problemas da vida que Buda ensinou é
completamente prática e racional. Envolve identificar e reconhecer os nossos
problemas, descobrir suas causas mais profundas em nossas mentes,
livrando-as completamente dessas causas e assim fazer com que esses
problemas nunca voltem a surgir. Quando esta abordagem é seguida com
disciplina ética, concentração e insight, combinada com amor e compaixão
pelos outros, ela traz felicidade duradoura e paz de espírito.
Refúgio: Um Direcionamento Seguro
e Significativo para a Vida
Dr. Alexander Berzin

Tomar refúgio é a fundação para todos os ensinamentos e práticas budistas. É


chamado “a porta de entrada do caminho budista.” Quando compreendemos
que tomar refúgio significa trabalhar em nós mesmos, vemos que é um
processo ativo de imprimir uma direção segura e significativa em nossas vidas.
Trabalhamos em nós mesmos seguindo os métodos que Buda ensinou para
livrar-nos da confusão, de emoções perturbadoras e de comportamentos
compulsivos e para desenvolver todas as boas qualidades. Isto é o que todos
os budas fizeram e mestres altamente realizados estão fazendo, e o que nós
tentamos fazer seguindo seus passos.

Dissipando a Confusão sobre a Finalidade da Prática Budista em


Nossas Vidas

Pediram para eu falar sobre a relevância do refúgio na vida cotidiana. Isso


trouxe à minha mente o exemplo de Atisha, o grande mestre indiano que
foi para o Tibete no final do décimo século. Ele foi um dos grandes
mestres que ajudaram a reviver o budismo no Tibete depois de seu
declínio após sua introdução inicial da Índia. A situação no Tibete naquele
tempo é que havia uma grande quantidade de mal entendidos,
particularmente sobre o tantra e alguns ensinamentos mais avançados.
Não havia professores realmente qualificados. De fato, não havia
professores por perto que pudessem realmente explicar as coisas mais
claramente. Embora houvesse um número de textos que estivessem
traduzidos, obviamente não muitas pessoas podiam ler e não haviam
muitas cópias. Mesmo se soubessem ler, era muito difícil encontrar algum
esclarecimento sobre o que liam.

Para ajudar nesta situação, um dos reis do Tibete Ocidental enviou alguns
estudantes muito corajosos à Índia para convidar um grande mestre
budista para retornar com eles ao Tibete. Tiveram que viajar a pé,
aprender as línguas e lidar com o clima. Muitos deles morreram ou na
viagem ou quando estavam na Índia. Mas, em todo o caso, eles
conseguiram convidar Atisha, este grande mestre da Índia, para voltar ao
Tibete. O que ele ensinou durante os muitos anos que esteve por lá foi
sobre o refúgio e karma. De fato, ele era conhecido como “o Lama do
refúgio e do karma.” Este foi o nome que os tibetanos lhe deram.

O exemplo de Atisha é bastante relevante hoje em dia. Atualmente há


também muita confusão sobre o budismo e o que sua prática significa a
nível cotidiano. De novo, há muitos mal entendidos sobre o tantra e
outros ensinamentos avançados. As pessoas pulam para estas práticas
com pouca ou nenhuma base nos ensinamentos budistas básicos.
Imaginam que executar um ritual de certa forma mágico é o que significa
praticar o budismo. Trivializando a relevância e a importância do refúgio
e a diferença que faz em nossas vidas diárias, eles estão perdendo o foco.

Não importa como nossa situação de vida possa ser, a prática budista
serve para trabalhar em nós mesmos, tentando nos melhorar para sermos
pessoas melhores. Não é algo que fazemos apenas em paralelo, como um
passatempo ou um esporte, por talvez uma meia hora por dia, ou uma vez
por semana após o trabalho em uma sessão curta quando já estamos bem
cansados. Preferencialmente, é algo prático que tentamos fazer todo o
tempo - sempre trabalhando em nós. Isto significa reconhecer nossas
deficiências e boas qualidades e aprender então métodos para
enfraquecer a força das primeiras e reforçar as últimas. O objetivo é
eventualmente livrar-nos de todas as deficiências e compreender
completamente todas as boas qualidades. Isto não é somente para nosso
próprio benefício, embora certamente nos beneficiemos disto em termos
de sermos mais felizes na vida. Isto é também para sermos mais eficazes
em ajudar os outros, e desse modo para o benefício dos outros também.
Isto é o que a prática budista significa. O que a torna distintamente
budista são os métodos envolvidos para atingir estes objetivos; e o
refúgio significa que nos voltamos para aqueles métodos e os adotamos
em nossas vidas.

O Refúgio Não É Passivo

O refúgio nas Três Jóias - os Budas, o Dharma e a Sangha - é central a


todos os ensinamentos budistas. De fato, tomar refúgio é apontado como
a linha divisória entre ser um budista ou não. Posto de maneira breve, o
Dharma significa os métodos para trabalhar em nós mesmos e o objetivo
que podemos alcançar; os Budas são aqueles que ensinaram estes
métodos e alcançaram esse objetivo completamente; e a Sangha são
aqueles que o alcançaram em parte. A palavra “Dharma,” de fato, significa
“medidas preventivas” - etapas que seguimos para prevenir a criação de
problemas para nós mesmos e possivelmente também para os outros. São
etapas que seguimos para nos protegermos.

Embora o termo original do Sânscrito traduzido geralmente como


“refúgio,” sharana, signifique "proteção” e pode até mesmo ser usado
como “abrigo”, temos que compreendê-lo corretamente. A conotação
combina com o significado de Dharma. Não é que precisemos apenas
render-nos passivamente a alguma fonte externa que nos dará proteção.
No contexto budista, “tomar refúgio” é muito ativo; necessitamos fazer
algo para proteger-nos.

Considere o seguinte exemplo que meus professores usavam


frequentemente. Suponha que está chovendo e há uma caverna próxima.
Se dissermos apenas, “Eu tomo refúgio nesta caverna; Eu estou indo à
caverna para abrigo,” e então somente ficarmos do lado de fora na chuva
e continuarmos repetindo esta frase, não irá ajudar. Nós temos que
realmente ir para dentro da caverna. Do mesmo modo, se somente
dissermos: “Eu tomo refúgio no Buda, Dharma e Sangha e vou à eles para
abrigo," mas não vamos realmente em sua direção e os colocamos em
nossas vidas, também não ajudará. Precisamos implementar o que
representam para proteger-nos de problemas. É por isso que uso a
terminologia “direção segura” e “dando uma direção segura para nossas
vidas.”

Para continuar com a imagem da caverna, não é o suficiente ir para


dentro dela e ficar lá esperando que, agora que estamos no seu interior,
isso irá de algum modo salvar-nos de todos os nossos problemas na vida,
e não somente nos proteger de ficarmos molhados. O ponto é que
precisamos trabalhar continuamente em nós mesmos para tentar chegar
ao ideal que o Buda, o Dharma e a Sangha significam. Quando pensamos
que é suficiente estar sob o abrigo do Buda, do Dharma e da Sangha é
muito fácil misturar isto com uma ideia cristã de um salvador pessoal, e
de que Buda de algum modo irá nos salvar. Nesse caso, Buda seria como
Deus, e a Sangha como os santos. Apesar de tudo, a maioria das
sociedades ocidentais tem alguma corrente subjacente de influências
cristãs. Com tal pensamento, rezamos que de algum modo algum poder
transcendente irá miraculosamente salvar-nos. Para usar a terminologia
budista, seria como nos liberar miraculosamente de todos nossos
problemas e sofrimentos.

Se este fosse o caso, tudo que teríamos que fazer é ter um nome budista
em tibetano, usar um fio vermelho, recitar algumas palavras mágicas de
um mantra, rezar bastante e de algum modo seríamos salvos.
Especialmente se estivermos recitando as orações e práticas em tibetano,
língua da qual não compreendemos uma palavra, aí pensar que tem um
poder místico ainda maior. Dzongsar Khyentse Rinpoche, um lama muito
extraordinário, esteve recentemente em Berlim, onde eu vivo. O que ele
disse foi realmente muito profundo. Ele disse que se os tibetanos
tivessem que recitar todas suas orações em alemão, transliterado em
letras tibetanas, e não fizessem absolutamente nenhuma ideia sobre
qualquer coisa que estivessem dizendo, ele gostaria de saber quantos
tibetanos praticariam realmente o budismo. Naturalmente, todos riram.
Mas se pensarmos sobre isso, realmente é muito profundo, não é? É muito
importante superar qualquer tendência que possamos ter de ver o
refúgio em termos de nos oferecer algum tipo de solução mágica e mística
para todos os nossos problemas e que tudo que necessitamos fazer é, em
certo sentido, render-nos a um poder maior.

A verdadeira questão envolvida aqui é: “O que estou fazendo com a minha


vida?” “A minha vida está indo para algum lugar?” Muitos de nós podem
ter chegado à conclusão de que nossa vida não está indo para parte
alguma; parece apenas estar andando em círculos. Nós não temos que
falar sobre um círculo mais profundo em termos de renascimento, e tudo
isso, mas nossa vida cotidiana parece não estar indo a lugar nenhum, e
parece sem sentido. Por que é que estamos vivos? Sentirmo-nos assim é
um estado muito triste, não é? Não é um estado muito feliz. Precisamos,
portanto, ter alguma direção significativa em nossa vida, algum tipo de
objetivo ou meta. E isto é algo que precisamos pôr em nossas vidas
sozinhos. É um processo ativo. Com algum objetivo ou meta significativos
em nossa vida, de algum modo sabemos o que estamos fazendo. Faz-nos
sentir um pouco mais seguros, um pouco mais protegidos, não?

Tendo uma Meta Significativa na Vida

Que tipo de meta poderíamos por em nossas vidas? Geralmente definimos


essa meta em termos da situação insatisfatória em que nos encontramos
atualmente e da qual queremos de algum modo sair, adicionando esse
objetivo na nossa vida. No nível mais fundamental, poderíamos dizer que
todos querem ser felizes e ninguém quer ser infeliz. É como um dado
axioma no budismo, e há alguma verdade biológica nisso. Queremos
evitar a dor. Queremos evitar o sofrimento. Queremos evitar a
dificuldade. Até mesmo insetos e vermes querem isso, não? Este é nosso
objetivo.

A questão é: qual a quantidade de sofrimento ou descontentamento que


estamos observando? Será que nosso objetivo não somente abarca este
problema, mas abarcaria todos os outros problemas que temos também?
Por exemplo, nosso problema poderia ser que somos pobres, em
dificuldade econômica e assim nosso objetivo é encontrar um bom
trabalho e fazer muito dinheiro. Senão um bom trabalho, então talvez se
transformar em um criminoso hábil e se tornar logo rico. Não importa o
que, fazer de algum modo muito dinheiro. Mas, se investigarmos pessoas
que têm muito dinheiro e falarmos com elas sinceramente, e elas falarem
honestamente sobre suas vidas, descobriremos que não são
necessariamente felizes em tudo. Nunca têm dinheiro suficiente. Não
importa quantos milhões elas tenham, querem sempre mais. Nunca estão
satisfeitas.

Eu acho isso tão interessante. Há pessoas que, digamos, tinham um bilhão


de dólares, mas devido às dificuldades econômicas atuais no mundo, têm
agora somente a metade de um bilhão de dólares. Já não dão doações ou
participam em qualquer tipo de trabalho filantrópico, pois agora têm
somente a metade de um bilhão e sentem insegurança. Sentem que
devem economizar e voltar a ter um bilhão antes que possam
compartilhar sua riqueza com alguém. Então estão sempre olhando os
relatórios do mercado de ações e se preocupando, pois talvez irão perder
mais uma fração do dinheiro que tem. Podem também ter que empregar
guarda-costas e outros métodos de segurança, porque estão receosos que
as pessoas irão roubar as coisas de sua casa ou sequestrar seus filhos. Isto
é comum entre os ricos na América Latina. Além disso, nunca sentem
realmente que as pessoas são amigáveis com eles por outra razão à
exceção de tentar pegar seu dinheiro. Suspeitam sempre que qualquer um
que é agradável com eles está somente atrás do seu dinheiro.
Obviamente, embora possam não ter o problema de ser pobres, há
certamente outros problemas que vem com ter muito dinheiro.

Objetivos Mundanos Tem uma Base Instável

Há muitos outros assim ditos “objetivos mundanos” mencionados no


budismo além de ter muito dinheiro. A palavra “mundano”, “worldly”,
entretanto, tem uma conotação negativa em inglês e parece quase um
julgamento. Esse não é o ponto. Meu professor, Serkong Rinpoche,
explicou que as duas sílabas da palavra tibetana traduzida como -
“mundano” - jig-ten- revelam a verdadeira conotação. Implicam algo com
uma base (ten) que irá ruir (jig). Se estivermos perseguindo um objetivo
que irá desmoronar, obviamente não pode trazer-nos felicidade
duradoura. Somente trará mais problemas, porque não tem nenhuma
fundação firme.

Por exemplo, suponha que nosso objetivo na vida é ter uma família
maravilhosa, ter muitos filhos, supondo que tomarão conta de nós em
nossa velhice e seremos tão felizes e seguros. Bem, isso não funciona
sempre assim idealmente, funciona? Um outro exemplo é aspirar ser
famoso. Quanto mais famosos nos tornemos, mais as pessoas incomodam
a gente e tentam pegar nosso tempo. Podemos olhar para as estrelas de
cinema que não podem nem mesmo ir para a rua sem estar usando algum
tipo de disfarce porque as pessoas atacam-nas e querem rasgar partes de
sua roupa e coisas do gênero. É realmente um inferno ser um superstar.

Se olharmos seriamente para nossas vidas, apenas ter algum tipo de


situação material confortável ou um arranjo emocionalmente confortável
com aqueles à nossa volta não vai realmente fundo o bastante em termos
de ajudar-nos a superar todos nossos problemas na vida. Isto é porque
enquanto tivermos raiva, apego, ganância, ciúme, arrogância, ingenuidade
e todos estes tipos de coisas, ainda teremos problemas, não importa o
quão bem sucedidos estejamos num nível por assim dizer “mundano”.

Emoções Perturbadoras

O budismo fala em termos de vidas futuras e discute todo o sofrimento e


coisas horríveis que podem acontecer em vidas futuras quando nós temos
o que são chamadas “emoções perturbadoras” e agimos compulsivamente
com base nelas e construímos potencial negativo. A apresentação budista
torna claro que isto é terrível e deve ser evitado se soubermos o que é
bom para nós, porque o potencial negativo traz problemas e infelicidade.

Mas, como a maioria dos ocidentais não acredita em vidas futuras ou não
estão convencidos delas, podemos discutir este ponto mesmo somente
em termos desta vida. Olhando nossas próprias vidas agora, se
investigarmos profundamente, descobriremos que a fonte real de nossos
problemas emocionais é interna. Os fatores externos são somente as
circunstâncias que os provocam. De fato, são as emoções perturbadoras -
nossa raiva, apego, ganância e assim por diante, que roubam nossa paz
mental e felicidade. Elas é que estão impedindo que usemos as boas
qualidades que temos. Podemos tentar ajudar alguém e esta é uma boa
qualidade, mas então começamos a nos irritar com ele. Nós tentamos dar
bons conselhos, mas não aceitam ou discutem conosco e perdemos nossa
paciência. Estas emoções perturbadoras impedem que ajudemos
verdadeiramente alguém.

Isto é especialmente difícil quando está acontecendo com nossos filhos,


quando estamos perdendo nossa paciência e começando a nos irritar com
eles, quando pensamos saber o que é melhor para eles e não fazem o que
dizemos para fazer. Isto cria um relacionamento muito difícil com nossos
filhos, não? O ponto é notar que se não fizermos algo sobre isto, somente
irá piorar cada vez mais. Talvez possamos nos tornar um pouco mais
maduros ao envelhecermos pois não temos mais tanta energia, mas isso
não significa que nossa raiva e estes tipos de coisas partem por si sós.
Essas coisas não acabam.

O termo que é usado no budismo para o que precisamos desenvolver com


relação a estas expectativas é “medo.” Mas o “medo” é uma palavra difícil
na maioria de nossas línguas. Não tem uma boa reputação. Às vezes eu
prefiro a palavra “temor”, mas não é assim fácil traduzí-la em outras
línguas. O “temor” tem mais a conotação de "Eu realmente não quero que
isto aconteça.” Por exemplo, temos que ir a uma reunião realmente chata
de trabalho. Não é que estejamos com medo da reunião, mas tememos ir.
Nós realmente não queremos fazê-lo.

Mas, para ser mais precisos, devemos diferenciar dois tipos de medo, se
estamos falando sobre o medo de renascimentos horríveis no futuro ou
medo de uma velhice miserável ou medo de qualquer coisa. Há o medo
que faz com que não vejamos nenhuma saída e nos sintamos impotentes e
inúteis. Isso nos deixa bastante paralisados, não é? Eu penso que é um
tipo insalubre de medo, embora frequentemente o experimentemos. Mas
o tipo de medo que é discutido no contexto do refúgio tem um sabor
completamente diferente de medo, porque vemos que há uma maneira de
evitar os problemas. Consequentemente, não é impossível e nós não
somos de forma alguma impotentes. Mas, como eu disse anteriormente,
não é que haverá algum poder transcendental ou ser que irá nos salvar de
nossa situação temerária e tudo que temos que fazer é rezar bastante e
estaremos livres e salvos de nosso medo.

O ponto é que podemos, de certa forma, nos proteger. Que é que nos
permitirá evitar todos os problemas que enfrentamos na vida? O que
torna isso possível? No contexto maior, é o fato de que todas estas
emoções perturbadoras que causam problemas - nossa raiva, ganância,
apego, etc. - tudo brota da confusão sobre a realidade. Todas estas
emoções perturbadoras não são realmente uma característica inata da
mente. Podem ser removidas para sempre, de modo que nunca retornem.
A Jóia do Dharma indica que podem ser “verdadeiramente bloqueadas.”

A Mente ou Atividade Mental

Quando falamos sobre a mente no budismo, sem entrarmos em grande


detalhe, estamos falando sobre a atividade mental. É o aspecto individual,
a atividade mental de momento-a-momento que ocorre mesmo quando
estamos adormecidos. A mente refere-se ao aspecto experiencial
subjetivo dessa atividade mental, enquanto a ciência de cérebro descreve
sua base fisiológica. Em ambos os casos, a natureza básica dessa atividade
mental não é algo que necessariamente tem que ter confusão, ou raiva, ou
qualquer dessas coisas. Basicamente o que está acontecendo em cada
momento é que há algum surgimento do que podemos descrever como
um holograma mental. Por exemplo, de um ponto de vista físico, os fótons
entram nos olhos e são traduzidos em algum tipo de impulso elétrico que
vai ao cérebro através dos neurotransmissores e o cérebro de algum
modo gera um holograma interno a partir disto. Isso é chamado de “ver”
algo, não é? Naturalmente, isto será muito diferente se acontecer através
das células de um olho humano ao contrário das células do olho de uma
aranha ou do olho de uma mosca. Do mesmo modo, através de um
processo similar envolvendo as vibrações que chamamos “ondas de som”
experimentamos a audição. Os hologramas mentais podem ser de
qualquer um dos sentidos ou apenas do pensamento.

Em termos de visão, o processo não é o mesmo que os fótons entrando


em uma câmera e sendo traduzidos em alguns impulsos elétricos e então
tirando um retrato. Não é o mesmo que isso porque o surgimento do
holograma mental de algo é também algum tipo de “participação
cognitiva” com ele. Ou você está consciente ou inconsciente, ciente ou
ignora algo, mas ainda é uma forma de característica cognitiva.

A atividade mental não é também a mesma que de um computador.


Pressionamos estas pequena teclas e algum impulso elétrico entra na
máquina e a máquina traduz de algum modo esta entrada em uma
imagem que surge em uma tela ou um som no alto-falante. Nós
poderíamos dizer que o computador tem, num certo sentido, alguma
consciência cognitiva, porque com inteligência artificial processa a
informação. Mas um computador não é bem o mesmo que um ser vivo. O
que nos diferencia de um computador é que, além disso, experimentamos
algum nível de felicidade ou infelicidade associada com nossa atividade
mental. Um computador não. Um computador não se sente feliz ou infeliz
sobre qualquer coisa. Não está pensando: “Meu Deus, eu acabo de ter um
erro interno e quando eu reiniciei, deletei o arquivo em que estava
trabalhando" e sente-se infeliz por isso. Não é assim, é? Por outro lado,
nós poderíamos ficar muito infelizes quando algo assim acontece.

Esta atividade mental de momento em momento é o que está


acontecendo em cada instante de nossas vidas. Há algum tipo de
surgimento de um holograma mental, algum tipo de envolvimento com
ele e algum sentimento de felicidade ou infelicidade. Mesmo quando
estamos com sono, o holograma pode ser de escuridão e a participação é
que estamos inconscientes. Mas há ainda um pouco de consciência, caso
contrário nunca ouviríamos despertador. Não está completamente
fechado. Há algum tipo de sentimento, mesmo um sentimento neutro,
nem feliz nem infeliz, quando não estamos sonhando. Se estamos
sonhando, obviamente algum sentimento de felicidade ou de infelicidade
poderia estar lá, junto com raiva, ganância e todas estas coisas. Mas estas
emoções perturbadoras não são uma parte necessária deste processo
completo que acontece a cada momento.

Obviamente, há muitas linhas de pensar muito complicadas que podemos


utilizar para ficarmos cada vez mais convencidos da pureza básica de
nossa atividade mental. Esta não é realmente a ocasião para isso. Mas
quanto mais pensamos sobre isso, mais nos tornaremos convencidos de
que é possível livrar-se de todo o conteúdo perturbador de nossa
atividade mental.

A definição de uma emoção perturbadora é de fato: “algo que, quando


surge, faz com que percamos nossa paz da mente e percamos o
autocontrole”. Consequentemente, agimos compulsivamente de todas as
formas perturbadoras baseados na raiva, ganância e assim por diante, e
isto apenas cria muitos problemas. Por exemplo, perdemos o
autocontrole e gritamos com alguém dizendo coisas sem realmente
pensar e mais tarde lamentamos realmente o que dissemos. Não obstante,
isto cria os assim-ditos “potenciais negativos” que nos farão sentir
infelizes mais tarde.

Se realmente quisermos evitar problemas futuros em um nível mais


profundo, precisamos começar a nos livrar de todas estas emoções
perturbadoras e confusão. É realmente possível livrar-se delas porque
não são parte da natureza inata da mente, esta atividade mental. Além
disso, se pensarmos mais sobre este tipo de atividade mental que temos a
cada momento, uma das características fantásticas é que é possível para
essa atividade mental compreender coisas. Podemos compreender algo.
Podemos também ter outras qualidades positivas, como o amor e a
compaixão e assim por diante. Estas qualidades positivas são as coisas
que podem ser desenvolvidas mais e mais.

Agora, qual é a diferença? Os aspectos perturbadores estão baseados na


confusão. Os aspectos positivos, tais como a compreensão, estão baseados
no que é realidade. Para dar um exemplo muito simples: Confusão
poderia ser pensar, “Eu sou o centro do universo. Eu sou o mais
importante. Eu devo sempre ser do meu jeito. Eu devo sempre ser o
centro das atenções,” e assim por diante. Portanto, quando não somos o
centro das atenções e se não é do nosso jeito, ficamos irritados. Como um
cão, ou latimos ou rosnamos para alguém. “Você não fez isso da maneira
que eu quero que seja feito.” Isso tudo está baseado em confusão. A
realidade é que estamos todos aqui e somos todos iguais. Todos querem
que seja do jeito deles, mas isso não é possível. A realidade é que de
algum modo temos que aprender a viver com todos.

Verdadeiras Paradas

Quanto mais investigamos, mais vemos que nossa confusão não


corresponde à realidade. É falsa. Por outro lado, a compreensão correta
pode ser verificada. É verdadeira. Por causa disso, compreender é mais
forte e pode compensar a confusão. Se, com concentração e disciplina,
pudéssemos ter a compreensão correta da realidade todo o tempo, a
confusão nunca teria a oportunidade de surgir outra vez. Ela terminaria.

Este é o ponto central do refúgio. Que tipo de direção estamos dando à


nossa vida? Que tipo de significado? Que tipo de objetivo teremos? Este
objetivo é conseguir “uma verdadeira parada” de toda esta confusão,
livrar-se dela completamente de modo que nunca surja outra vez. Esta
confusão é a causa real de nossos problemas, quer falemos sobre ela
nesta vida ou em vidas futuras. É possível livrar-se dela completamente,
para sempre, porque não é uma característica inata de nossa atividade
mental. É possível livrar-se dela substituindo-a pela compreensão
correta. Desprovidos de confusão, nós já não temos emoções
perturbadoras e já não criamos problemas e sofrimento para nós
mesmos.

Há dois aspectos envolvidos. Primeiro, é que podemos nos livrar de todo


este lado perturbador para sempre e outro aspecto é que podemos
aumentar e desenvolver o lado positivo. O lado positivo é a compreensão
correta. Podemos colocar isto no contexto daquilo que geralmente é
traduzido como as “Quatro Nobres Verdades,” ou o tema ou estrutura
principal do que Buda ensinou. A primeira verdade é que temos
sofrimento verdadeiro, referente aos diversos problemas que nós temos.
Em seguida, há causas verdadeiras e esta é nossa confusão. A terceira é
que é possível conseguir uma verdadeira parada de tudo isto de modo
que nunca surja outra vez. Por último, conseguimos esta verdadeira
parada através do que é chamado de "verdadeiro caminho." Mas, com o
uso desta palavra “caminho,” precisamos compreendê-lo como “uma
maneira de compreensão que age como um caminho.” É a compreensão
que causará esta verdadeira parada, e a compreensão que resultará em se
livrar de todos os componentes perturbadores.

Claramente, este é o sentido que queremos dar à nossa vida - a direção


para obter verdadeiras paradas e verdadeiros caminhos mentais. Este é o
refúgio do Dharma. Quando dizemos que estamos trabalhando em nós
mesmos, quando usamos aquela terminologia, estamos nos referindo a
isto.

Estamos tentando cada vez mais nos livrar deste lado perturbador e cada
vez mais compreender nossos potenciais para este lado positivo. Fazemos
isto porque tememos, de uma maneira saudável, que se continuarmos da
maneira que estamos agora, e mesmo se ganharmos uma quantidade
enorme de dinheiro, tivermos muitos amigos e formos muito famosos,
ainda assim teremos problemas. Isto é porque ainda seremos gananciosos
e inseguros. Ainda ficaremos irritados e assim por diante. Nós temos
medo disso, mas vemos que há uma maneira de evitar isso. É o mesmo
que ter medo de sermos queimados pelo fogo, mas vemos se formos
cuidadosos, podemos evitar nos machucar. Há um medo, mas é um medo
saudável. Não estamos falando sobre paranoia.

Podemos ver, se continuarmos a ficar irritados e gritando, especialmente


com nossos parentes e amigos, o que acontecerá quando ficarmos velhos?
Seremos uma mulher velha solitária ou um homem velho solitário que
ninguém quer visitar, ninguém quer tomar conta, porque somos assim tão
chatos com os demais. Tudo que fazemos é queixar-nos e gritar com as
pessoas, então quem irá querer ficar com a gente? Ninguém. A solução
não é somente ter muitos filhos que se sentirão obrigados a tomar conta
de nós ou ter bastante dinheiro no banco de modo que possamos estar
em uma casa de repouso confortável, porque ainda estaremos nos
sentindo miseráveis. O que precisamos realmente fazer é trabalhar em
nossas personalidades - para colocar isso de um modo bem direto.

Todos São Capazes de Mudar

Com que frequência pensamos que nossas personalidades são fixas e de


que esta é a forma que somos. “Eu tenho mau humor e você deve
aprender a viver com ele.” Isso não funciona, não é? É possível livrar-se
de todo este lado perturbador e ver todas nossas qualidades positivas. A
partir de uma noção saudável de medo do que aconteceria se não
trabalharmos em nós mesmos e mais a confiança de que é possível
começar a se livrar destes aspectos perturbadores e aumentar e
fortalecer o lado positivo, podemos dar esta direção segura para nossa
vida.

Se quiséssemos fazer isto da forma do assim-chamado veículo vasto do


"Mahayana”, adicionaríamos compaixão. Basicamente, a visão Mahayana
é: como podemos ajudar os outros se estivermos nos irritando com eles?
Queremos realmente poder ajudar aos outros, assim tememos realmente
atrapalhar mais se ficarmos irritados com eles, ou apegados, ou com
ciúmes, e todas essas coisas. Precisamos livrar-nos de todas essas
emoções perturbadoras e dessa confusão para que possamos ser de mais
ajuda aos outros. É este sentimento de que gostaríamos realmente de
ajudar os outros, mas tememos não ser realmente capazes de fazer muito.
Não temos paciência suficiente ou não temos compreensão suficiente.
Estamos com medo de causar mais dano do que benefício. Talvez
estejamos até com medo de falharmos na criação de nossos próprios
filhos. Isso seria bem ruim, não? Este medo é o que nos leva a dar uma
direção segura para nossas vidas, trabalhando em nós mesmos.

Verdadeiramente, este trabalho no Dharma é muito relevante para nossa


vida diária. Em termos de refúgio, significa ser bem honesto sobre nossa
situação e problemas. Nós todos os temos. Nós todos temos estas
emoções perturbadoras. Não há nada especial nisso. Talvez alguns sejam
mais fortes do que outros com todos os tipos de variações, mas todos
temos estas dificuldades emocionais. Não estamos falando aqui sobre
alguém que é profundamente perturbado psicologicamente. Estamos
falando sobre o que a maioria das pessoas consideraria normal. Mas o
perigo é que consideramos normal às vezes ficarmos irritados, às vezes
gananciosos e egoístas e ciumentos e assim por diante. Pensamos que isto
é normal e está bem. Porém não está bem, porque produz problemas,
tanto para nós como para os outros que talvez estejam tentando ajudar.
Nosso objetivo não é somente aprender como viver com nossa raiva ou
mantê-la sob controle enquanto ainda agita-se por dentro. Nosso objetivo
não é apenas enfraquecê-la, mas livrar-se de todas estas coisas
perturbadoras completamente. Não queremos apenas desenvolver um
pouco de compreensão por algum tempo, mas desenvolver uma
compreensão completa da realidade, para saber como existimos, como
todos existem, como o mundo existe; e ter isso todo o tempo. É
inteiramente possível, porque a natureza da atividade mental é
basicamente pura e tem todos os potenciais de qualidades boas.

As Boas Qualidades do Nível Aparente de um Buda

Quando falamos sobre os objetos que indicam uma direção segura ou


refúgio, falamos sobre o Buda, o Dharma e a Sangha. Há diversos níveis de
compreensão destes três: cada um tem um nível aparente, um nível mais
profundo e algo que os representa. Vamos olhar primeiramente para as
boas qualidades do nível aparente de cada um.

O corpo de um Buda tem qualidades físicas extraordinárias e


características muito especiais. Por exemplo, os Budas podem ir a
qualquer lugar imediatamente, multiplicar seus corpos de infinitas
formas, estar em todas partes ao mesmo tempo e assim por diante. É tudo
um tanto fantástico e não assim tão fácil de acreditar. Além disso, quando
um Buda fala, todos compreendem-no em sua própria língua e não
importa a distância que estiverem, podem ouvir o Buda claramente. Mais
do que isso, um Buda é ser todo-amoroso, onisciente que ama todos
igualmente e compreende e sabe tudo simultaneamente.

Novamente, tudo isso soa um tanto fantástico e difícil de acreditar. Assim,


se tivéssemos que fixar nossa compreensão dos Budas somente neste
nível, haveria um grande perigo de desenvolver a ideia errada. Soa como
se estivesse indo na direção de algum ser fantástico e transcendente,
quase um Deus, não? Mas, o ponto de ser onisciente, por exemplo, não é
que o Buda sabe o número de telefone de todos no planeta, mas que o
Buda sabe o que são as causas passadas para a situação de cada ser, e
todos os fatores que as influenciam. Quando um Buda ensina a uma
pessoa isto ou aquilo, é conhecendo todas as consequências, não somente
o efeito nesta pessoa, mas o efeito em todos demais com os quais esta
pessoa interagirá. Em consequência, um Buda sabe exatamente o melhor
método para ensinar a todos. Isto é muito bom, não é? Seria muito bom
sermos capazes de fazer isto.

Temos certa confiança que um Buda compreenda e possa saber o que é


mais adequado para nos ajudar. Buda fala minha língua e pode vir a mim
imediatamente sempre que eu tenha a necessidade. Se estivermos indo
no sentido de pensar em Buda como um Deus, agora está tornando-se um
pouco pessoal. “Pode ajudar-me pessoalmente. Ele vai me entender.
Ninguém me entende, mas Buda entenderá.” Mas sabemos que um Buda
tem amor igual por todos. “Ótimo. Embora eu preferisse que tivesse mais
amor por mim do que pelo outros. Mas, ainda assim, ok.” Um Buda tem
amor igual por todos e o bom disso é que parece que não importa o que
façamos. Nós não temos que rezar ou fazer oferendas para o Buda. Buda
vai ajudar-lhe de qualquer maneira. Assim é barato. Nós não temos que
pagar nada. Que barganha! Além disso, porque Buda tem tanta paciência,
nunca ficará ciumento se formos a algum outro professor em alguma
outra tradição e nunca ficará irado e golpeará com um relâmpago ou
qualquer coisa semelhante. É consideravelmente seguro.

Isto é um erro comum, consciente ou inconsciente. Nós vemos o Buda


como uma figura substituindo Deus, que é um bom negócio e mais seguro.
Nos ensinamentos, é dito que um Buda não vai abandoná-lo e tudo o mais.
Parece ótimo. Mas então lemos que um Buda não pode realmente
remover nosso sofrimento como se estivesse retirando um espinho de
nosso pé. Budas não são onipotentes. Mas, não levamos isso realmente a
sério. Este é o nível aparente de um Buda, a maneira comum de pensar.
Mas apenas deixá-lo nesse nível, sem uma compreensão mais profunda,
leva consigo o perigo de considerar Buda como um Deus pessoal
substituto que irá nos salvar.

Budas são representados pelas estátuas e pelas pinturas. Certo, eles são
bonitos, mas vamos confundi-los com um ícone cristão ortodoxo? Que é
ele? Estamos praticando a adoração de um ídolo, como os muçulmanos
poderiam nos acusar? Que realmente está acontecendo aqui? Nós temos
que realmente curvar-nos perante uma estátua? Eu penso que há
problemas envolvidos se deixarmos nossa compreensão de um Buda
apenas neste nível. Há uma oportunidade para mal entendidos aqui.
Ainda que para algumas pessoas, obviamente, possa ser muito útil pensar
em um Buda dessa forma, não é a compreensão mais profunda. Neste
nível, é como se houvesse uma figura tipo-deus, representada por
estátuas e pinturas que nós adoramos.

As Boas Qualidades do Nível Aparente do Dharma

O nível aparente do Dharma são todos os ensinamentos. Isto é o que o


Buda notou em si mesmo e o que ensinou. A maneira comum de
compreender isto seria que temos nosso Deus pessoal, Buda; e que
também temos nossas escrituras. Em vez de uma Bíblia ou Corão, agora
eu tenho os textos de Buda. É como minha Bíblia Budista e nela, cada
palavra nos parece sagrada. Sim, precisamos ter o respeito por ele, mas
Buda mesmo disse: “Não acredite em nada do que eu disse, apenas
porque eu disse, por respeito; mas teste você mesmo como ao comprar
ouro.” Buda sempre incentivou seus seguidores a serem críticos com o
que ele ensinou. Mas quando somos preguiçosos, então não queremos
analisar e verificar tudo. Em termos de vida cotidiana, a relevância é,
neste nível, que o Buda nos ama, o Buda nos entende e aqui estão todas as
réguas no livro sagrado e apenas seguimos isso. Certamente, isso poderia
ter um lugar na vida cotidiana, mas realmente não é o budismo.
Naturalmente poderia funcionar para algumas pessoas, mas a intenção
não é tornar o budismo uma variação do cristianismo.

As Boas Qualidades do Nível Aparente da Sangha

Então, e a Sangha? Infelizmente, no Ocidente, pegamos o hábito de nos


referirmos a todos os membros do Centro de Dharma que frequentamos
como nossa “Sangha.” Este não era certamente a intenção desta palavra
em Sânscrito ou em Tibetano. Mas, para muitas pessoas, “Sangha”
somente significa os membros da nossa congregação, nossa igreja
budista. Quando alguns destes membros são pessoas verdadeiramente
perturbadas, realmente tomamos refúgio neles? Não estou querendo
minimizar a importância de ter uma comunidade espiritual de pessoas
como a gente, com o mesmo objetivo, que podem nos dar algum tipo de
apoio, algum retorno e assim por diante. Isto é muito, muito importante,
mas não é um objeto de refúgio.

Em um outro nível de Sangha, podemos compreendê-la como a


comunidade monástica, os monges e monjas budistas. Mas, nem sempre
encontramos exemplos perfeitos de monges e monjas, não é? Há algumas
pessoas muito perturbadas que usam vestes monásticas. Ainda, é muito
importante respeitar e apoiá-los se estiverem tentando sinceramente
trabalhar neles mesmos ao seguirem a vida monástica. Mas, alguns
monges e monjas aderem às vestes para escapar de dificuldades na vida e,
como um amigo meu diz, para ganhar um almoço grátis!

Há ainda um outro nível de Sangha. Talvez possamos ouvir destes


mestres tântricos que na verdade a Sangha são as assim-chamadas
“deidades tântricas” que temos, tais como Chenrezig, Tara, Manjushri e
assim por diante. Agora podemos começar a rezar à Santa Mãe ou à Santa
Tara e ela irá salvar-nos. Certamente estas figuras de Buda, como eu as
chamo, estas ditas deidades tântricas, de maneira alguma são santos que,
de alguma forma, serão intermediários e nos ajudarão a chegar mais
perto do Deus Buda.

O Significado Mais Profundo de Buda, Dharma e Sangha

Se observarmos o significado mais profundo de Buda, Dharma e Sangha,


descobriremos que o significado mais profundo de Dharma são as
verdadeiras paradas de toda esta confusão, e as verdadeiras
compreensões ou os verdadeiros assim-dito caminhos, ou caminhos da
mente em um contínuo mental. Este é o Dharma real. Isto é o que nos
protegerá de sofrer se o atingíssemos em nosso próprio continuum
mental. É possivel atingir este estado aonde toda a confusão, emoções
perturbadoras, atitudes e problemas foram eliminados, e aonde todas as
realizações foram obtidas. Os Budas são aqueles que compreenderam isto
completamente e ensinaram como nós mesmos podemos chegar lá. A
Sangha refere-se na verdade àqueles conhecidos por “Arya Sangha,” os
praticantes avançados altamente realizados que conseguiram algumas,
mas não todas estas verdadeiras paradas e a verdadeira compreensão.
Você vê, há realmente muitos níveis e graus de confusão dos quais
precisamos nos livrar e muitos níveis progressivamente mais fortes de
compreensão que irão contrariá-los. O processo de começar a livrar-se
deles ocorre gradativamente. A Arya Sangha não conseguiu livrar-se de
todos ainda - do pacote completo, mas alguns sim, e estão no caminho de
conseguir mais.
Em nossas vidas cotidianas, os Budas e a Arya Sangha, estes grandes
mestres indianos e tibetanos e assim por diante, do passado e alguns do
presente, são muito inspiradores. Isto nos dá muita esperança. Vemos
alguém ou encontramos com alguém inspirador como sua Santidade o
Dalai Lama. Como ele se tornou como é? Foi através do Dharma. Se é um
Buda ou ainda não é um Buda é irrelevante. Se pudéssemos nos tornar
como ele, isso seria muito bom. Eu não estou falando somente sobre sua
habilidade de ensinar quase qualquer coisa no campo do Dharma ou que
ele é o especialista, o mais instruído e mais profundo de todos os
professores. Não é somente o tipo de programação que ele mantém e as
constantes viagens em volta do mundo, tentando ensinar e ajudar os
outros e coisas assim. Mas adicione a isso que ele é o inimigo público
número um da China. Você poderia imaginar como deve ser ter mais de
um bilhão de pessoas considerando você o diabo e fazendo todos os tipos
de coisas terríveis ao seu povo e ainda assim ter amor e compaixão por
eles? Ele não está triste e é capaz de fazer tudo que faz com uma mente
calma e alegre. Isso é inacreditável, não é? Como poderíamos alcançar
isso a menos que estivéssemos livres destas emoções perturbadoras e
tivéssemos atingido a realização? Não seria possível. É irrelevante se ele
está a caminho de ser um Buda ou não.

Talvez não possamos relacionar-nos com todas as qualidades do Buda em


si, mas pelo menos podemos ver as qualidades de alguém como Sua
Santidade o Dalai Lama. É muito inspirador. Se foi possível para alguém
como ele alcançar este nível da realização, então, considerando que a
natureza da mente é pura e tem todos estes potenciais, não há nenhuma
razão porque nós não podemos fazê-lo também. Não há nenhuma razão
porque todos não possam fazê-lo. Obviamente, será necessário bastante
trabalho, mas é possível e vale muito a pena ir nessa direção. Se o Dalai
Lama fosse análogo ao Buda, então alguns dos atuais grandes lamas que
estão ensinando, que talvez não tenham todas as qualidades do Dalai
Lama mas, analogamente à Sangha, já tenham algumas destas qualidades.
Isso também é muito inspirador.

O que eles têm em comum, o Dalai Lama e esses outros grandes mestres?
Eles livraram-se em graus variados da raiva, ganância, ódio, inveja e todos
estes tipos de coisas. Ganharam tremendas boas qualidades, tais como a
compreensão, compaixão, paciência, etc. Nós vemos os variados graus
que podem ser atingidos em termos desses vários lamas. Isto é, como
estou dizendo, um exemplo muito mais vivo (se é que temos contato com
eles) do que apenas pensar no Buda ou Milarepa e outros exemplos
históricos, com os quais é mais difícil relacionar-se. Podemos sentir que
são boas histórias, mas será que realmente acreditamos que havia alguém
assim? Lemos que Guru Rinpoche nasceu de uma flor de lótus; será que
realmente somos capazes de acreditar nisso? Talvez seja difícil
relacionar-se com isso. Mas, ao invés disso, podemos focar na ausência
destas qualidades negativas e na presença destas qualidades positivas,
como exemplificadas pelo Dalai Lama e estes grandes mestres, que são
como o Buda e a Sangha - aqui e agora. Notamos que somos capazes de
fazer isso também. Este é o Dharma, e vemos que estas verdadeiras
paradas e verdadeiros caminhos da mente são objetivos tangíveis. É
possível que possamos fazer isso, e isto nos dá uma direção segura,
estável e significativa que podemos pôr em nossas vidas.

Refúgio ou Direção Segura em Nossas Vidas Diárias

O que significa na prática direcionar nossas vidas ao Buda, Dharma e


Sangha? Significa que estamos sempre trabalhando em nós mesmos. Ao
fazer isso, quando por exemplo, ficamos tristes, irritados, ou quando
agimos de maneira egoísta, nos tornamos mais e mais cientes destas
coisas. Nós as notamos. Não é que então ficamos chateados conosco e nos
punimos, pensando “Eu sou assim tão mau ou assim terrível porque ainda
fico irritado.” Certamente não é isso, e certamente não o outro extremo de
pensar que isso faz parte de ser normal. Nesse caso, apenas observamos e
pensamos: "E daí?" Eu continuarei sendo assim.” Não é tampouco isso.
Mas apenas estar cientes de nossas emoções perturbadoras e considerá-
las como coisas das quais queremos começar a nos livrar, enfraquece sua
força.

Mas o ponto é que durante nossas vidas cotidianas, quando estas coisas
negativas e perturbadoras surgem e as notamos, o ideal a fazer é
aprender alguns métodos e tentar superá-las. Precisamos notar que se
estivermos irritados, devemos desenvolver a paciência. Quando alguém
está agindo de uma maneira horrível comigo, isto indica que é muito
infeliz. Há algo que o perturba. Melhor que ficar irritado com pessoas
assim é sentir um pouco de compaixão por elas.

Para esclarecer, não estamos de um lado, irritados conosco por estarmos


ficando irritados. Por outro lado, também não nos tratamos como um
bebê, dizendo que está ok ou que está tudo bem. Mas vamos fazer o
melhor para superar nossa raiva, porque sabemos que é possível fazer
isso. Talvez não seja possível nos livrarmos disso tão depressa, e com
certeza, não seremos capazes de fazê-lo tão rapidamente, mas é nesta
direção que queremos trabalhar durante toda nossa vida. Vamos fazer
isso porque sabemos que na verdade é possível livrar-se dessas coisas.
Não é uma tentativa fútil de pensamento idealizado seguir nessa direção.
Quando nos confrontamos com uma situação difícil e temos um pouco de
paciência ou um pouco de compreensão, ou um pouco de sentimento
benevolente, precisamos ver que isso é algo que pode aumentar. Nós
podemos tornar isso mais e mais forte. É possível fazer isso. Outros
fizeram e podemos fazê-lo também. Não há nada especial nos outros e
nada especial em nós. Este é nosso refúgio, esta é nossa direção segura na
vida, porque quanto mais vamos neste sentido, mais nos protegemos dos
problemas.

Conclusão

Precisamos compreender o que significa refúgio, esta direção segura; e


quais são as razões para colocá-lo em nossas vidas. Esta é considerada a
coisa mais importante e fundamental na prática budista. Muitas pessoas
tendem a trivializá-la, o que é realmente uma pena. Se temos esta direção
em nossas vidas ou não, supõe-se ser a mudança mais significativa e fazer
a maior diferença em nossas vidas. O refúgio não deve apenas significar
que fomos a uma cerimônia e cortaram um pedacinho pequeno de nosso
cabelo e recebemos um nome tibetano e agora usamos um cordão
vermelho em torno do pescoço e entramos para o clube. Isto realmente
torna trivial toda a questão, tornando-a completamente sem sentido.

A pergunta que todos devemos nos fazer é: “Como alguém que tomou
refúgio e que é um budista, estou realmente dando este sentido a minha
vida? O refúgio tem algum significado em minha vida à exceção apenas de
ter entrado para o clube?” Se tomar refúgio não fez uma diferença
significativa em nossa vida, isto é algo no qual precisamos realmente
trabalhar. Seguir em quaisquer outras práticas avançadas sem esta
fundação bem provavelmente não trará nenhum sucesso.
Todos Podem se Tornar um Buda
Dr. Alexander Berzin

Se o objetivo da vida é a felicidade duradoura, tanto para nós quanto para os


outros, a coisa mais significativa e lógica a se fazer é trabalhar por esse
objetivo de forma realista. Embora objetos materiais possam nos trazer certa
felicidade, a verdadeira fonte de felicidade é a nossa própria mente. Quando
todas as nossas capacidades são plenamente desenvolvidas e nossas
deficiências são superadas, nos tornamos um buda, uma fonte de felicidade
não só para nós mesmos, mas para todos os outros. Todos nós podemos
alcançar isso. Todos podemos nos tornar budas, porque todos temos dentro
de nós os fatores completos que nos permitirão alcançar esse objetivo. Todos
nós temos natureza búdica.

O budismo afirma enfaticamente que todos nós podemos nos tornar budas, mas o
que significa se tornar um buda? Um buda é uma pessoa que eliminou todas as
suas falhas, corrigiu todos os seus defeitos e realizou todos os seus potenciais.
Todos eles começaram como nós: seres comuns que passam por dificuldades na
vida. Assim como nós, seus problemas repetiam-se descontroladamente por causa
de sua confusão em relação à realidade, de suas projeções irreais e de sua crença
obstinada nelas e, consequentemente, de suas emoções perturbadoras e
comportamentos compulsivos. Mas eles perceberam que suas projeções não
correspondiam à realidade e, motivados por uma forte determinação de se libertar
do sofrimento que sua inconsciência ingênua lhes causava, eventualmente pararam
de automaticamente acreditar nas fantasias que suas mentes projetavam. Por esse
motivo eles pararam de sentir emoções perturbadoras e de agir compulsivamente.

Durante todo esse processo, eles se esforçaram por fortalecer suas emoções
positivas, como amor e compaixão por todas as pessoas igualmente, e ajudaram os
outros o máximo possível. Eles desenvolveram um amor terno por todas as
pessoas, assim como o que uma mãe carinhosa sente por seu único filho.
Impulsionados pela energia desse amor e compaixão intensos e dirigidos a todos, e
pela decisão excepcional de ajudar a todos, sua compreensão da realidade tornou-
se cada vez mais forte. Eventualmente ficaram tão poderosos que suas mentes
pararam de projetar as aparências enganosas de que tudo e todos existem por si
mesmos, separados de todo o resto. Sem qualquer obstáculo, viram claramente
como tudo que existe está interligado e é interdependente.

Com essa realização, eles se iluminaram, se tornaram budas. Seus corpos, suas
habilidades de comunicação e suas mentes ficaram livres de todas as limitações.
Por saberem o efeito em cada pessoa de qualquer coisa que ensinassem, tornaram-
se capazes de ajudar todos os seres, tanto quanto fosse realisticamente possível.
Mas nem mesmo um buda é onipotente. Um buda pode exercer uma influência
positiva apenas naqueles que estão abertos e receptivos à sua orientação e que a
seguem corretamente.

E o Buda disse que todos podem alcançar o que ele alcançou. Todos podem se
tornar um buda. Isso é possível porque todos nós temos a matéria prima básica
que possibilita isso. Essa matéria prima é conhecida como “natureza búdica”.

A neurociência trata da neuroplasticidade – a habilidade do cérebro de se


modificar e desenvolver novos circuitos neurais durante a nossa vida. Quando a
parte do cérebro que controla uma função, como usar a mão direita, fica
paralisada, o treinamento com fisioterapia pode fazer com que o cérebro
desenvolva novos circuitos neurais, permitindo que utilizemos a mão esquerda.
Estudos recentes mostraram que a meditação em compaixão, por exemplo,
também pode criar novos circuitos neurais resultando em mais felicidade e paz de
espírito. Já que a mente pode causar mudanças fisiológicas como esta, da mesma
forma que podemos falar de neuroplasticidade do cérebro, também podemos falar
de plasticidade da mente. O fato de que nossas mentes, e portanto os traços de
nossas personalidades, não são estáticos e fixos, e que podem ser estimulados para
desenvolver novos circuitos positivos, é o fator mais fundamental que permite a
todos nós nos tornarmos budas iluminados.

No nível fisiológico, sempre que fazemos, dizemos ou pensamos algo construtivo,


construímos e fortalecemos um circuito neural positivo que torna mais fácil e,
portanto, mais provável que repitamos a ação. No nível mental, o budismo diz que
dessa forma nós desenvolvemos força e potencial positivos. Quanto mais
reforçamos a rede de força positiva, especialmente ao fazer algo benéfico pelos
outros, mais forte ela se torna. A força positiva, quando dirigida à habilidade de
ajudar todos os seres completamente, como um buda, é o que nos permite alcançar
o objetivo de sermos universalmente úteis.

De forma similar, quanto mais nos concentramos na ausência de qualquer coisa


real que corresponda às nossas falsas projeções da realidade, mais enfraquecemos
os circuitos neurais e mentais, primeiramente de acreditar nessas projeções
mentais e depois de projetá-las como um todo. Eventualmente, nossas mentes se
livram desses circuitos neurais e mentais ilusórios e também dos circuitos de
emoções perturbadoras e padrões de comportamento compulsivos que dependem
deles. Em vez disso, desenvolvemos fortes circuitos neurais e mentais de
percepção profunda da realidade. Quando esses circuitos são potencializados pela
força de almejar pela mente onisciente de um buda, que sabe como ajudar todo e
qualquer ser limitado da melhor forma possível, essa rede de consciência profunda
nos permite alcançar a mente de um buda.

Todos nós temos um corpo, capacidade de nos comunicar com os outros –


principalmente pela fala – e também uma mente, que são a matéria prima para
alcançarmos o corpo, a fala e a mente de um buda. Esses três também são fatores
de natureza búdica. De forma semelhante, todos nós temos algum nível de boas
qualidades – nossos instintos de autopreservação, preservação da espécie, nossos
instintos maternais e paternais e assim por diante – assim como a capacidade de
agir e influenciar os outros. Esses também são fatores de natureza búdica, eles são
nossa matéria prima para cultivar as boas qualidades, tais como amor e cuidado
ilimitados e as atividades iluminadas de um buda.

Quando examinamos como nossas mentes funcionam, podemos descobrir mais


fatores de natureza búdica. Todos somos capazes de receber informações, agrupar
coisas que têm alguma característica em comum, distinguir a individualidade das
coisas, reagir ao que percebemos e saber o que as coisas são. Essas formas de
funcionamento da nossa atividade mental são atualmente limitadas, mas elas
também são matéria prima para alcançarmos a mente de um buda, na qual elas
funcionarão em seu potencial máximo.

Conclusão

Já que todos nós temos a matéria prima para nos tornarmos um buda, é
simplesmente uma questão de motivação e de trabalho duro constante até que nos
tornemos iluminados. O progresso nunca é linear: alguns dias serão melhores e
outros piores. O caminho para alcançar o estado de um buda é longo e não é fácil.
Mas quanto mais nos lembrarmos de nossos fatores de natureza búdica, mais
evitaremos o desânimo. Nós simplesmente precisamos nos lembrar de que não há
nada inerentemente errado conosco. Nós podemos superar todos os obstáculos
com uma boa motivação, forte o suficiente, e seguindo métodos realistas que
combinam habilmente compaixão e sabedoria.
Uma Vida Budista Plena: As
Principais Características
Dr. Alexander Berzin

O budismo oferece métodos incrivelmente ricos para desenvolver nossa


concentração e consciência discriminativa e conduzir nossas vidas de uma
maneira ética. Entretanto, nem todos querem isto envolvido por um contexto
religioso. Deste modo, aqui apresentamos os três treinamentos juntamente
com o caminho óctuplo, dentro do contexto da Ciência e da Filosofia Budista
como orientações gerais úteis para uma vida mais feliz.

Os Três Treinamentos
A prática budista básica envolve treinar-se em três áreas. Podemos treinar-nos
nelas a fim de superar nossos próprios problemas e sofrimentos, por causa do
interesse por nosso próprio bem estar. Ou podemos treinar-nos nelas com amor e
compaixão a fim de sermos de mais benefício aos outros.

Que são os três treinamentos?

 Disciplina ética - a habilidade de evitar comportamento destrutivo. A maneira de


desenvolver isto é empenhando-nos em comportamento construtivo. Este primeiro
treinamento é sobre autodisciplina, não estamos tentando disciplinar outras pessoas.
 Concentração - a habilidade de focar nossa mente de modo que não experimentemos
perambulação mental com todos os tipos de pensamentos estranhos. Nós fazemos
nossa mente ficar afiada e focada, não opaca. Além da estabilidade mental, é também
necessário desenvolver a estabilidade emocional, assim nossas mentes não são
tomadas pela raiva, apego, ciúme e assim por diante.
 Consciência discriminativa - a habilidade de discriminar ou diferenciar entre o que
deve ser adotado e o que deve ser descartado. Como quando você vai comprar legumes,
você discrimina: “Bem, este não parece bom, mas esse parece muito bom.” Aqui, nós
discriminamos em termos de comportamento; o que é inapropriado e o que é
apropriado, dependendo das circunstâncias que estamos e com quem estamos. Em um
nível mais profundo, discriminamos entre o que é realmente realidade e o que é apenas
nossas projeções de fantasia.

Ciência Budista, Filosofia Budista e Religião Budista

Se praticarmos estes três treinamentos para nosso próprio benefício ou para o


benefício dos outros, nós podemos nos aproximar de qualquer um deles a partir de
dois pontos de vista. Ambos derivam de uma divisão que Sua Santidade o Dalai
Lama faz quando fala a uma audiência geral. Lá, ele descreve o budismo como
tendo três partes: ciência budista, filosofia budista e religião budista.
Ciência budista refere-se principalmente à ciência da mente: como ela trabalha,
nossas emoções e o que o Dalai Lama gosta de chamar de higiene mental e
emocional. O budismo tem uma análise muito detalhada de todos os vários estados
emocionais e como trabalham e andam juntos.

Incluídos na ciência budista estão também:

 Ciência cognitiva - como nossa percepção funciona, a natureza da consciência e vários


métodos de treinamento para ajudar-nos a desenvolver a concentração,
 Cosmogonia - uma análise detalhada de como o universo começa, perdura e termina,
 Matéria - uma análise detalhada de como a matéria, energia, partículas subatômicas
funcionam, e assim por diante,
 Medicina - como a energia dentro do corpo funciona.

Qualquer um pode estudar, aprender e se beneficiar dos tópicos acima e o Dalai


Lama frequentemente tem discussões com os cientistas sobre estes temas.

A segunda divisão, filosofia budista, inclui coisas como:

 Ética - a discussão dos valores humanos básicos, tais como a bondade e a generosidade
que não estão necessariamente relacionados a nenhuma religião e da qual qualquer um
pode se beneficiar,
 Lógica e metafísica - uma apresentação detalhada de teoria de conjuntos, universais,
detalhes, qualidades, características e assim por diante, como trabalham juntos e como
nós os conhecemos,
 Causa e efeito - uma análise detalhada da causalidade, o que é a realidade e como
nossas projeções distorcem a realidade.

Novamente, a filosofia budista não fica limitada necessariamente aos budistas, mas
é algo de que todos podem tirar beneficio.

A terceira divisão, religião budista, inclui a esfera real da prática budista e assim
abrange coisas como o karma, renascimento, práticas rituais, mantras e assim por
diante. É conseqüentemente específica para aqueles que estão seguindo o caminho
budista.

Os três treinamentos podem ser apresentados simplesmente em termos da ciência


e da filosofia budista, tornando-os aplicáveis e apropriados para qualquer um; ou
podem ser apresentados como os dois e religião budista. Isto corresponde a uma
divisão que eu chamo “Dharma-Light” e “O Dharma Autêntico.”

 Dharma-Light - praticar métodos da ciência e filosofia budista apenas para melhorar


esta vida.
 O Dharma Autêntico - adotar os três treinamentos para os três objetivos budistas: um
renascimento melhor, liberação do renascimento e iluminação.

Quando eu falo de Dharma-Light, geralmente é em termos dele ser uma etapa


preliminar para o Dharma Autêntico, porque nós precisamos reconhecer a
necessidade de melhorar nossas vidas comuns antes que possamos pensar em
objetivos espirituais adicionais. A ciência e filosofia budista, entretanto, não são
necessariamente uma preliminar à religião budista, assim nós podemos ver como
usar os três treinamentos para melhorar nossas vidas, não importa se pensarmos
sobre ela em termos de uma preliminar a um caminho budista, ou apenas em geral.

As Quatro Nobres Verdades

Da filosofia budista temos uma apresentação geral da maneira que o pensamento


budista funciona, que é chamada geralmente As Quatro Nobres Verdades. Nós
podemos também pensar nelas como quatro fatos da vida, como segue:

 Observando o sofrimento e problemas que todos enfrentamos, o primeiro fato é que a


vida é difícil.
 O segundo fato é que nossos problemas na vida vêm de causas.
 O terceiro fato é que nós podemos parar estes problemas; nós não precisamos nos
fechar e aceitar nossos problemas, nós podemos resolvê-los.
 O quarto fato é que nos livramos de nossos problemas eliminando a causa. Nós fazemos
isso seguindo o caminho da compreensão que fornece conselhos sobre como agir,
falar e assim por diante.

Assim, se a maneira como agimos ou falamos causa-nos problemas, precisamos


mudar isto. Os três treinamentos são parte do que precisamos a fim de começar a
nos livrar das causas de nossos problemas. Isto é uma forma muito útil de
compreender os três treinamentos, porque indica o motivo de nos treinarmos
neles. Assim, se estivermos tendo problemas na vida, nós olhamos:

 Há um problema em minha disciplina ética, em como eu ajo e falo?


 Há um problema em minha concentração: estou em todo lugar, sou uma confusão
emocional?
 Especialmente, há um problema em minha maneira de diferenciar entre a realidade e
minhas projeções malucas?

Nós podemos utilizar isto apenas em nossa vida comum nesta existência, ou isto
pode ser estendido aos problemas que possamos encontrar em vidas futuras. No
nível de um iniciante, devemos considerar estes treinamentos somente em termos
de nossa vida diária: Como podem nos ajudar? Que estamos fazendo que está
causando nossos problemas? Que podemos fazer para aliviá-los?

A Causa do Sofrimento

Do ponto de vista da filosofia budista, a causa de nosso sofrimento é a


inconsciência (N.T: falta de consciência). Nós estamos inconscientes ou confusos
sobre duas coisas em especial.

A primeira coisa da qual não temos consciência é causa e efeito, especialmente em


termos de nosso comportamento. Se tivermos emoções perturbadoras, tais como a
raiva, ganância, apego, orgulho, ciúmes e assim por diante, nós agimos
destrutivamente. Nós ficamos irritados e gritamos com as pessoas, ficamos com
ciúmes e tentamos prejudicar as pessoas, nos apegamos às pessoas, e tudo isso nos
causa problemas. Porque estas emoções fazem com que ajamos destrutivamente,
ou ainda, autodestrutivamente, o resultado final é infelicidade.
É útil examinar a definição de uma emoção perturbadora. É um estado mental que,
quando surge, faz com que percamos nossa paz mental e autocontrole. Quando
gritamos com alguém por raiva, pode ou não entristecê-los. Talvez eles até mesmo
nem ouçam o que dizemos; ou pode ser que apenas riam e pensem que somos
estúpidos. Mas nós perdemos a paz mental e ficamos emocionalmente tristes, que
dura frequentemente para além do grito. É uma experiência desagradável. E
porque perdemos o autocontrole, nós dissemos coisas que mais tarde talvez
lamentemos.

Nós agimos desta maneira porque:

 Realmente não compreendemos causa e efeito. Nós frequentemente não


compreendemos que se agirmos de determinadas maneiras, sob a influência de
determinadas emoções perturbadoras, isso nos trará infelicidade.
 Ou, nós estamos confusos sobre causa e efeito e compreendemos de maneira oposta.
Pensamos frequentemente: “Bem, se eu gritar com esta pessoa, isso irá me fazer sentir
melhor,” o que naturalmente, nunca acontece. Ou, quando nós estamos realmente
apegados a alguém, talvez digamos: “Por que não me liga mais frequentemente ou me
visita mais frequentemente?”, o que muitas vezes somente os afasta, não é? Nós não
atingimos o que queremos, porque estamos confusos sobre como causa e efeito
funcionam.

O segundo tipo de inconsciência que nós temos é com respeito à realidade. Porque
estamos confusos sobre a realidade, temos atitudes perturbadoras. Um exemplo
disso seria a auto-preocupação, onde nós estamos sempre pensando em mim, em
eu mesmo e eu. Pode ser muito crítico, pois pode espiralar em uma síndrome onde
sintamos que temos que ser perfeitos. Mesmo se nós agirmos construtivamente,
tentando ser perfeitos, pondo tudo em ordem - torna-se completamente
compulsivo. Embora possamos ter alguma felicidade temporária, muda
rapidamente ao descontentamento, porque ainda pensamos: “Eu não sou bom o
bastante,” e nos forçamos para sermos melhores.

Vamos pegar como exemplo alguém que é um maniaco por limpeza - um


perfeccionista quando o assunto é limpar sua casa. Estes estão sob o equivoco de
que podem controlar tudo e manter tudo limpo e em ordem. É impossível! Você
limpa tudo, você faz tudo perfeito, você sente-se bem, e então as crianças vem para
casa e bagunçam tudo; você fica descontente e tem que limpar tudo outra vez.
Desta forma torna-se compulsivo. E cada vez que você sente um pouco de
felicidade: “Ah, agora está tudo em ordem” - este sentimento parte muito
rapidamente. Há sempre um canto que você esqueceu!

Repetindo estes estados de mente, sendo uma emoção perturbadora ou uma


atitude perturbadora, e com a repetição deste tipo de comportamento compulsivo,
você chega no que é chamado “sofrimento que tudo permeia.” É sobre como nós
construímos hábitos que na verdade perpetuam nossos problemas.

Não nos afeta apenas mentalmente, mas fisicamente também. Por exemplo, se
estivermos sempre irritados, começamos também a ter pressão alta, e então uma
úlcera devido à preocupação, etc. Ou, se você for um maníaco por limpeza, é difícil
relaxar. Você está sempre tenso porque tudo tem que ser perfeito, mas nada
sempre é.

Como os Três Treinamentos Ajudam a Eliminar as Causas de


Nossos Problemas

O que nós necessitamos realmente são os três treinamentos:

 Nós necessitamos de consciência discriminativa para nos livrarmos de nossa confusão.


Por exemplo, quando se é um maníaco por limpeza, tendo a fantasia que “tudo deve
sempre estar perfeito e limpo e tenho que controlar tudo,” você substitui isso com
“naturalmente minha casa ficará suja, ninguém pode controlar isto.” Você torna-se mais
relaxado porque sim, você ainda limpa sua casa, mas você sabe que você não necessita
obcecar-se com isso. Os textos tradicionais usam o exemplo de cortar uma árvore com
um machado afiado.
 A fim de cortar a árvore com este machado, nós precisamos bater consistentemente no
mesmo ponto, que é a concentração. Se nossa mente estiver sempre distraída, você
perde aquela consciência discriminativa. Assim, devemos ter concentração de modo
que possamos sempre bater no mesmo lugar com o machado.
 Usar este machado requer realmente força. Se você não tiver força, você não pode nem
mesmo levantar o machado; e esta força vem da autodisciplina ética.

Desta forma, compreendemos como os três treinamentos podem nos ajudar a


superar a fonte de nossos problemas. Podemos utilizar tudo que foi citado acima
sem nenhuma referência à religião budista, assim sendo apropriado para qualquer
um. Antes de continuarmos, vamos rapidamente digerir o que aprendemos:

 Nós usamos a consciência discriminativa para ver a diferença entre fantasia e realidade;
assim podemos ver a causa e o efeito dentro de nosso próprio comportamento. Quando
não temos consciência discriminativa, nosso comportamento e atitudes criam
infelicidade, ou um tipo de felicidade que nunca realmente nos satisfaz.
 A fim de compreender corretamente o acima citado, nós necessitamos ter
boa concentração, de modo que possamos permanecer focados.
 Para desenvolver boa concentração, nós necessitamos disciplina para que quando
nossa mente vaguear, possamos trazê-la de volta.
 Queremos aplicar estes três treinamentos para ajudar-nos a tratar de nossos
problemas e melhorar a qualidade de nossas vidas.

O insight chave para tirarmos de tudo isso é que a felicidade e o descontentamento


que experimentamos em nossas vidas vem de nossa própria confusão. Em vez de
responsabilizar outros pelos nossos problemas, ou a sociedade, economia e assim
por diante, focamos em um nível mais profundo. Nós olhamos nosso estado de
mente ao tratar destas situações. Talvez encontremos muitas situações difíceis,
mas aqui estamos falando sobre nosso sentimento geral de infelicidade e o tipo de
felicidade passageira. Nós devemos aspirar por mais do que isso, um tipo de
felicidade que vem com paz mental e é muito mais durável e estável.

Quando nos deparamos com dificuldades, poderíamos ficar deprimidos e ficar


absolutamente miseráveis. Ou nós podemos enfrentá-las com mais paz mental,
porque vemos a situação mais claramente, vemos o que está envolvido e que há
maneiras de lidar com isso, ao invés de somente termos pena de nós mesmos.

Considere o exemplo de quando seu filho sai à noite e você está preocupado
realmente: “Eles vão regressar com segurança para casa?” Novamente, a fonte de
nossa ansiedade e infelicidade é esta atitude de que “de algum modo eu posso estar
no controle da segurança de meu filho,” que é naturalmente uma fantasia. Quando
eles voltam para casa com segurança você se sente feliz, você se sente aliviado;
mas a próxima vez que saem, outra vez você se preocupa. De modo que esse tipo
de sentimento de tranquilidade não dura, certo? E estamos sempre preocupados,
assim isso se perpetua. Transformamos isso em um hábito e nos preocupamos
sobre tudo e isso afeta nossa saúde. É um estado muito desagradável.

A verdadeira chave está em compreender que a causa de tudo isto é nossa própria
confusão. Nós pensamos que determinadas formas de agir trarão felicidade, ou que
uma atitude de que somos capazesde controlar tudo está correta, mas não é. Então
cortamos completamente este modo de pensar: “isto é absurdo!”, e ficamos focados
nisso.

Conclusão

Quando refletimos sobre os quatro fatos da vida, somos encorajados a ver que
nossos problemas e emoções negativas não são estáticos, mas podem ser
melhorados, e até mais que isso, eles podem ser removidos completamente. Uma
vez que tratamos das causas do sofrimento, o sofrimento párade existir, mas estas
causas não desaparecem por si sós.

Uma maneira incrível de vivermos nossas vidas está no contexto dos três
treinamentos em ética, concentração e consciência discriminativa. Eles trabalham
juntos simultaneamente para trazer-nos mais perto dessa coisa que estamos
procurando sempre: felicidade.

Palavra, Comportamento e Sustento


Corretos
Revisão

Os três treinamentos na disciplina ética, concentração e consciência discriminativa


estão sempre focados em ajudar-nos a superar nossos problemas e qualquer
sofrimento que experimentemos. O método é identificar as causas de nossas
dificuldades e aplicar os três a fim de eliminar estas causas.

Os três treinamentos também são extremamente úteis para serem cultivados em


nossa vida diária quando tratando com os outros.
 Disciplina ética – é importante prestar atenção a como nos comportamos e falamos
com os outros. Precisamos de disciplina ética para evitar fazer qualquer coisa que seria
prejudicial ou destrutiva.
 Concentração – precisamos ser capazes de nos concentrar quando interagimos com os
outros, assim sabemos o que está acontecendo com eles e quais são suas necessidades.
Se nossas mentes estiverem em todos os lugares, olhando constantemente nossos
telefones, isto gera uma comunicação com os outros completamente difícil.
 Discriminação – se tivermos escutado bem a outra pessoa, seremos capazes de usar
consciência discriminativa para decidir o que uma resposta apropriada é. Isto conduz
outra vez a pensar, agir e falar corretamente com o outro.

Os três treinamentos vão juntos e reforçam um ao outro, motivo pelo qual


precisamos aplicar todos simultaneamente . Quando não estamos com outros, os
três treinamentos são ótimos em termos de nós mesmos, também:

 Eles impedem de agirmos de formas autodestrutivas.


 Nossas mentes estão focadas, assim podemos realizar aquilo que queremos realizar.
 Nós usamos nossa inteligência básica para discriminar o que é apropriado e
inapropriado.

Assim, são princípios muito básicos que podemos aplicar em nossa vida diária,
tanto para situações pessoais como para interações sociais.

O Caminho Óctuplo

Quando treinamos nos três treinamentos, uma apresentação de como fazemos isto
é chamada “o caminho óctuplo.” Estes são simplesmente oito tipos de práticas que
treinamos e isto irá fazer com que os três aspectos desenvolvam-se.

Para nosso treinamento em disciplina ética, há três práticas:

 Fala correta – nossa maneira de comunicar


 Limites corretos de ação – como nos comportamos
 Vida correta – como ganhamos a vida.

Para nosso treinamento na concentração, são também três:

 Esforço correto – livrar nossa mente de linhas de pensamento destrutivas e desenvolver


os estados de mente conducentes à meditação
 Atenção plena correta – não perder nosso objeto de foco e nossa motivação
 Concentração correta – ficar focados em algo construtivo.

Para nosso treinamento na consciência discriminativa, há dois:

 Visão correta – o que acreditamos ser verdadeiro, baseado em discriminar


corretamente entre o que está correto e incorreto, ou é prejudicial e útil,
 Intenção correta (pensamento motivante correto) – o estado de mente construtivo a que
nossa visão correta conduz.
De uma forma mais elaborada, cada uma das oito práticas tem uma maneira
incorreta de aplicá-la, que queremos descartar e uma maneira correta de fazê-la,
que queremos adotar.

Fala

A forma como falamos com os outros reflete nosso próprio estado de mente. Afeta
como os outros sentem e como nos consideram e tratam, em resposta.
Conseqüentemente, precisamos saber quais formas da fala são úteis e quais são
prejudiciais.

Fala incorreta
A fala incorreta é o tipo que causa infelicidade e problemas:

 Mentir – dizer o que é mentira e enganar os outros. Se nos tornarmos conhecidos como
alguém que mente ou engana os outros com o que diz, ninguém mais irá acreditar em
nós, confiar ou até ouvir o que dizemos. Isto cria uma situação infeliz.
 Fala desagregadora – dizer coisas más sobre pessoas para seus amigos ou parceiros
para tentar arruinar relacionamentos. Isto faz com que as pessoas suponham que
andamos falando delas também, e arruína nossos relacionamentos. (dizer ou falar pelas
costas existe, mas acho que como você usou também está certo.)
 Fala rude – falar de uma maneira cruel ou gritando e xingando os outros. Quando
abusamos dos outros com nossas palavras, começarão então a falar conosco desta
forma também; e a menos que sejam masoquistas, eles não irão permanecer em torno
de alguém como nós que grita constantemente com eles.
 Fala inútil – falar "bla bla bla" toda a hora, interrompendo os outros e falando bobagens
ou fofocas. O resultado é que ninguém nos leve a sério e as pessoas pensarão que
somos um saco para estar junto. Desperdiçamos nosso tempo e o dos outros também.

Fala correta
A fala construtiva é o que nos ajuda a evitar os quatro erros da fala mencionados
acima. O primeiro nível de disciplina é que, quando sentimos que vamos dizer algo
falso, gritar com alguém ou tagarelar, reconhecemos que isso é destrutivo e causa
infelicidade, e assim realmente tentamos não o fazer.

Isto não é de forma alguma fácil, pois você precisa se pegar no momento em que
sente vontade de fazê-lo, antes de compulsivamente dizê-lo. É como querer um
pedaço de bolo. Às vezes teremos a oportunidade de comer um segundo pedaço,
mas antes de impulsivamente pegar um, podemos pensar: "Mesmo querendo, não
preciso agir. Eu não preciso deste bolo; irá apenas me deixar mais gordo e eu
preciso perder algum peso.” É disso que estamos falando em termos de disciplina.

Quando sentimos vontade de fazer estas coisas, o antigo mestre indiano


Shantideva recomenda-nos permanecer como um bloco da madeira. Eu sinto
vontade de gritar ou dizer algo desagradável, mas noto que nos fará ambos, eu e
você, ficarmos tristes; assim eu não o digo. Eu permaneço exatamente como um
bloco da madeira. Eu sinto vontade de contar alguma piada estúpida ou fazer um
comentário bobo, mas noto que é somente fala inútil e não digo nada. É este tipo de
coisa.
O segundo nível de disciplina é quando você realmente começa a fazer algo
construtivo - ou seja, falar de forma benéfica. Isto vem de notar que fazer assim
trará felicidade e fará cada situação mais harmoniosa. O que precisamos fazer é
pensar em termos de causa e efeito.

Cultivar a fala correta requer realmente um esforço muito consciente e uma forte
resolução de falar verdadeiramente, delicadamente, amavelmente, na hora certa,
na medida apropriada e somente o que é significativo:

 Deveríamos esforçar-nos para não interromper constantemente as pessoas ou


continuamente ligar ou escrever mensagens, especialmente sobre coisas triviais como
o que você tomou no café da manha ou fofocas. É conversa sem sentido que somente
interrompe os outros.
 Uma medida apropriada seria que, quando falamos com outra pessoa, não falamos
muito nem tentamos exageradamente convencer as pessoas sobre determinadas
coisas, especialmente se já concordaram conosco.

Naturalmente, precisamos usar a discriminação. Por exemplo, em relação a falar a


verdade, se alguém estiver usando uma camiseta ou um vestido feio e isso for ferir
essa pessoa, você não diz: “Bem, isso realmente é feio.” Às vezes você necessita ter
cuidado, mas depende da pessoa. Minha irmã está me visitando e estamos saindo,
ela pôs uma blusa. Ficou um pouco esticada e não caia bem, mas é minha irmã
assim eu posso obviamente dizer-lhe que ficou muito ruim. Mas é difícil fazer isso
com pessoas fora de sua família! Você não diria a sua nova namorada: “Essa é uma
blusa feia que você está usando. Ponha outra coisa!” - mesmo que seja a verdade.

Quanto a usar palavras fortes, às vezes você talvez precise dizer algo forte. Se seu
filho estiver brincando com fósforos ou um isqueiro ou algo assim, então você
precisa falar forte. Isso não seria visto realmente como fala rude, porque sua
motivação não é a raiva. Assim, a motivação é realmente fundamental.

Outros Exemplos de Fala Incorreta


Podemos também estender estas maneiras destrutivas de fala e incluir não
somente aquilo que dirigimos aos outros, mas também aquilo que dirigimos para
conosco. Podemos pensar em uma maneira muito mais ampla sobre estas
maneiras destrutivas de fala.

Mentir pode também incluir mentir aos outros sobre nossos sentimentos ou sobre
nossas intenções com eles. Nós podemos ser muito agradáveis com alguém,
dizendo que amamos, mesmo enganando a nós mesmos, quando tudo que
queremos é seu dinheiro ou algo mais. De certa forma, isto é decepção.
Naturalmente, nós simplesmente não vamos dizer a essa pessoa: “Eu não o amo
realmente, eu apenas quero seu dinheiro,” pois isso seria um tanto inapropriado.
Mas nós precisamos examinar a nós mesmos, se estamos sendo honestos sobre
nossos sentimentos e intenções.

A fala divisiva poderia ser quando dizemos coisas que são tão odiosas que fazem
com que nossos próprios amigos nos deixem. Algumas pessoas apenas se queixam
toda hora ou são constantemente negativas, e leva todos para longe delas. Se
formos assim, quem irá querer estar conosco? Ou falar sem parar, assim a outra
pessoa não tem nem mesmo uma possibilidade de dizer qualquer coisa: isto afasta
as pessoas. Nós todos conhecemos pessoas assim e é improvável que as
encontraremos com muita frequência. É bom dizer coisas agradáveis sobre os
outros e sermos positivos tanto quanto possível.

A fala rude aparece quando abusamos não somente dos outros, mas também de
nós mesmos. Quando dizemos aos outros que eles são estúpidos ou horríveis, isso
naturalmente é cruel. Assim também é quando dirigimos isto para nós. Certamente
não nos faz mais felizes, assim é importante ter uma boa atitude para conosco e
como nós nos tratamos e falamos conosco em nossas mentes.

Quanto à fala inútil, não deveríamos falar para os outros indiscriminadamente


sobre nossos próprios assuntos pessoais, nossas dúvidas, nossas preocupações e
assim por diante. Há determinadas coisas que simplesmente não devem ser
compartilhadas com os outros. Por exemplo, se alguém confiar a você que é gay ou
tem câncer, e pedir para manter segredo, você deveria apenas fazer isso. Trair a
confiança das pessoas normalmente ocorre através de fala inútil.

A fala correta é realmente sobre falar apropriadamente, no tempo certo, nas


situações corretas. Às vezes iremos necessitar falar formalmente e às vezes,
informalmente. Precisamos falar de forma a deixar as pessoas confortáveis.
Quando você explica algo a uma criança, você precisa explicá-lo de uma forma que
ela entenda, mas isto se estende também aos adultos e pessoas de outras culturas,
e assim por diante.

Limites de Ação (Comportamento)

O segundo do caminho óctuplo é sobre os limites corretos de ação, que é o termo


técnico. Quando falamos de limites, estamos falando sobre certos limites, como em
“Eu vou trabalhar neste limite, mas não além dele.”

Comportamento Errado
Ir além do limite significa os três tipos de comportamento destrutivo:

 Tirar uma vida – matar algum ser vivo


 Pegar o que não nos foi dado – pegar algo que não nos pertence, roubar
 Cometer conduta sexual imprópria.

Matar
Simplesmente, isto é tirar a vida de algum outro. Isto não refere-se apenas aos
seres humanos, mas inclui todos os tipos de animais, peixes, insetos e assim por
diante.

Eu penso que para a maioria de nós, parar de caçar e pescar não é tao difícil. Para
alguns, não matar insetos pode ser mais difícil. Há muitas maneiras de abordar isto
sem falar em vidas passadas e futuras, pensando: “Esta mosca era minha mãe em
uma vida precedente.” A ênfase principal é que se há algo que nos irrita, nós não
queremos que matá-lo seja nossa resposta inicial, instintiva. Isto constrói o hábito
de querer destruir qualquer coisa da qual não gostamos de maneira violenta, e vai
além da mosca que está zunindo em torno de seu rosto. Ao invés disso, precisamos
tentar encontrar métodos pacíficos para tratar de algo que é irritante. Assim, com
moscas ou mosquitos, quando eles aterrisam em uma parede, podemos pôr um
copo sobre eles, uma folha de papel embaixo e libertá-los lá fora. Em muitas,
muitas situações, nós podemos encontrar uma maneira muito mais pacífica, não-
violenta de lidar com o que não gostamos.

Se você viveu na Índia como eu, você aprende a viver com insetos. Simplesmente
não há nenhuma maneira de se livrar de todos os insetos na Índia. Eu costumava
imaginar uma campanha para agentes de viagem: “Se você gosta de insetos, você
amará a Índia!” Quando me mudei pela primeira vez para a Índia, meu quadro era
tal que eu de modo nenhum gostava de insetos, mas eu era um grande aficionado
de ficção científica. Eu imaginei que se eu viajasse a um planeta distante e a forma
de vida lá fosse no formato de insetos como este, seria bem terrível se quando eu
me encontrasse com eles, tudo que eu quisesse fazer fosse esmagá-los! Se você
começar a se colocar no lugar dos insetos, afinal de contas eles apenas estão
levando a sua vida, então você começa a respeitá-los como uma forma de vida.

Obviamente, há insetos prejudiciais, do mesmo modo que há pessoas prejudiciais;


e às vezes é aconselhável usar medidas drásticas para controlá-los. Mas o melhor é
primeiramente tentar um método pacífico, seja no caso de um conflito humano ou
uma casa infestada com formigas ou baratas.

Mas considere o caso dos gafanhotos que comem suas colheitas. Bastante tem a ver
com a motivação. Um exemplo é uma vida precedente de Buda, quando ele era o
navegador de um navio. Havia alguém a bordo que estava planejando matar todos
no navio, e o Buda viu que não havia nenhuma maneira de impedir este assassinato
em massa de forma pacífica; a única solução para impedi-lo seria matar este
potencial assassino. Assim, Buda matou esta pessoa, mas com a motivação da
compaixão, para poupar as vidas dos passageiros e para impedir a pessoa de gerar
uma quantidade enorme de karma negativo, ao invés de raiva ou medo. Mas Buda
reconheceu também que tinha matado alguém, e que não obstante a motivação
isso tinha sido um ato destrutivo, e assim ele decidiu: “Eu estou disposto a aceitar
as consequências cármicas disto para aliviar os outros."

Assim, se for necessário matar um predador como o gafanhoto para salvar


colheitas - não por raiva ou medo ou para fazer muito dinheiro ao vender as
colheitas - mas por compaixão, a consequência disto será muito menor do que fazê-
lo por raiva. Entretanto, como o Buda, é ainda importante reconhecer que é um ato
negativo e aceitar quaisquer conseqüências que virão dele.

Roubar
A maioria das pessoas são muito mais apegadas às suas vidas do que suas posses,
mas ainda assim, se você tirar as posses de alguém, isto causa grande infelicidade
de ambos os lados. Especialmente o ladrão que tem uma preocupação persistente:
“Será que vou ser pego?”
Bem, o que nós queremos fazer é evitar problemas para nós mesmos. Obviamente,
se você matar um peixe ou inseto, é um problema para eles. Mas nós também
temos um problema porque se nós estivermos muito perturbados com insetos, aí
estamos sempre preocupados com os mosquitos que invadem nosso espaço,
levantando no meio da noite para caçá-los. É um estado de mente inquieto. Se
geralmente usarmos métodos pacíficos para tratar destas coisas, nossas mentes
estarão mais calmas.

É a mesma coisa acontece com roubar, onde você tem que ser sorrateiro e se
preocupa se vai ser pego. Está baseado em um desejo muito forte, onde você
também não é paciente o bastante para fazer o trabalho necessário para começar a
ter algo, e assim você simplesmente rouba de algum outro.

Há também exemplos de morte e roubo com as motivações contrárias:

 Você poderia matar por apego ou ganância, talvez porque você realmente queira comer
um animal ou peixe. Se não houver absolutamente nada mais para comer, então isto é
uma coisa, mas se há alternativas, então é outra.
 Você poderia roubar por raiva, porque quer ferir alguém, e assim você pega algo que
lhes pertence.

Comportamento Sexual Inapropriado


Este é um tópico difícil porque para a maioria de nós, a forte ânsia por atrás de
nosso comportamento sexual é desejo intenso. O budismo explica algumas regras
básicas do que evitar, que são:

 Causar dano com nosso comportamento sexual, incluindo estupro e violar os outros
 Pressionar as pessoas, mesmo nosso próprio parceiro, para fazer sexo quando não
quiserem
 Fazer sexo com o parceiro de outro ou se tivermos um parceiro, fazer sexo com algum
outro. Não importa quão cuidadosos sejamos, sempre conduz a problemas, não?

Há muitos outros aspectos de comportamento sexual inapropriado, mas a ideia por


trás disso é que nós não agimos apenas como animais. Um animal saltará em cima
de qualquer outro animal sempre que quiser, não importa quem estiver perto.
Estão totalmente sob o controle do desejo e da luxúria - isto é o que queremos
evitar.

O que teríamos de fazer é estabelecer determinados limites e resolver limitar


nosso comportamento sexual dentro deles, e não além. Estes limites poderiam
tratar de freqüência, tipos de atos sexuais, posições sexuais ou o que for. O ponto é
estabelecer determinadas regras sobre como conduzimos nossas vidas sexuais e
não apenas fazer qualquer coisa tenhamos vontade, a qualquer hora em qualquer
lugar e com qualquer um, como um animal. Isto é realmente muito importante no
sentido de auto-disciplina ética. A auto-disciplina evita ir além dos limites
impostos por nós, pois compreendemos que ir além está apenas baseado no desejo
e o desejo é a causa de problemas incontáveis.
Tomando Entorpecentes
Tomar entorpecentes não está incluído nestas ações destrutivas, mas largá-los é
muito importante para o nosso desenvolvimento.

Queremos desenvolver a concentração, queremos desenvolver a disciplina. Bem,


quando ficamos bêbedos perdemos toda a disciplina, não é? Usamos drogas
psicodélicas ou maconha e perdemos toda a concentração. Nossas mentes tornam-
se errantes e fantasiosas. Se olharmos para os efeitos de várias drogas ou do álcool
e compararmos ao que queremos realizar em termos do nosso próprio
desenvolvimento pessoal, vemos que estar drogados ou bêbedos é contraditório.
Cria obstáculos que não duram somente o período em que estamos bêbados, mas
podem deixar marcas, como a ressaca! Assim é definitivamente bom ajustar
algumas formas de limitações para seu uso e, é claro, o melhor é deixá-los
completamente.

Limites Corretos de Ação (Comportamento Correto)


Um aspecto da autodisciplina é evitar tipos destrutivos de comportamento. O outro
aspecto é praticar maneiras construtivas de agir, e é isso que é chamado de
“comportamento correto.”

Assim, ao invés de tirar a vida dos outros, você ajuda ativamente a preservar a
vida. Uma aplicação mais ampla disto seria não destruir o meio ambiente, mas
cuidar dele, de modo que os animais e os peixes pudessem viver livremente.
Alimentar seus porcos, se você tiver, não para que engordem e você possa comê-
los, mas de modo que eles prosperem; isto que é preservar a vida. Alimentar seu
cão - isto é uma maneira de ajudar a preservar a vida! Isso inclui também coisas
como cuidar de pessoas doentes ou ajudar aqueles que se machucam.

Pense numa mosca ou abelha que entra zumbindo em seu quarto. Ela não quer
realmente estar lá. Ela quer sair, mas não sabe como, assim se você mata porque
ela cometeu o simples erro de voar para dentro de seu quarto, isto não é muito
legal, é? Você pode ajudá-la a sair abrindo uma janela e dizendo “sho” ou algo
assim; isto é ajudar a preservar a vida. E a abelha quer viver! Se um pássaro voasse
para dentro de seu quarto por acaso, você não pegaria uma arma para atirar nele,
pegaria? Mas entre a abelha e o pássaro a diferença é somente o tamanho,
aparência e o som que fazem. Se você não gosta de moscas entrando em seu quarto
não abra a janela, ou então ponha telas!

Quanto a não roubar, a ação correta está em proteger as posses de outra pessoa. Se
alguém emprestar-lhe algo, você tenta seu melhor para não danificar. Você tenta
ajudar outras pessoas a ter coisas legais.

Em vez de comportamento sexual impróprio, que inclui não somente sexo com
outras pessoas, mas também sexo com você mesmo, sexualmente precisamos ser
amáveis e gentis, não apenas como um cão na época do cio.
Outros Exemplos de Comportamento Correto e Incorreto
Se olharmos a extensão de nossa discussão, podemos ver que há muitos outros
aspectos envolvidos com estes três tipos de comportamento.

Por exemplo, uma extensão de não matar é parar de tratar fisicamente mal os
outros. Isto inclui não somente não bater nas pessoas, mas também não
sobrecarregá-las ou obrigá-las a fazer coisas que podem de alguma forma
prejudicá-las fisicamente. Podemos aplicar isto a nós mesmos também. Nós não
deveríamos maltratar a nós mesmos com trabalho em excesso nem comer mal ou
dormir muito pouco. Pensamos frequentemente no nosso comportamento com
relação aos outros, mas é importante aplicá-lo conosco também.

Quanto a roubar, não é somente pegar as posses de outros, mas também usar as
coisas de outras pessoas sem primeiramente pedir. Como apenas pegar o telefone
de alguém e fazer uma chamada cara ou pegarmos a comida de outra pessoa em
seu refrigerador sem ter permissão. Esgueirar-se em um cinema sem pagar ou, e -
as pessoas não gostam de ouvir esta - não pagar seus impostos! Isto é roubar.
Poderíamos discutir: “Bem, eu não quero pagar meus impostos porque vai para
financiar guerras e comprar armas.” Mas a realidade é que vai também para
construir estradas e construir hospitais, escolas e assim por diante. Se você quiser
tê-los, então, você necessita pagar algum imposto.

E fazer download sem licença ou software pirata ou videos, isto é roubar? Eu penso
que é, especialmente se falar explicitamente: “Não baixe isto sem pagar”, aí está
bem claro. Não há nenhuma maneira de dizer que não é roubar. O princípio
entretanto é criar limites. Existe um espectro, não existe, de ou fazer qualquer
coisa que você queira sem pensar sobre as consequências, e de não fazer nada. No
caso do roubo, podemos dizer: “Eu não vou roubar um banco ou roubar de uma
loja, mas fazer download sem pagar? Eu não posso realmente evitar isto neste
momento.” Pelo menos isto cria algum tipo de limite, mas ainda é importante
reconhecer que fazer download sem pagar é roubar. Há também uma grande
diferença entre fazer o download de material quando você tem o dinheiro para
pagar e quando você não tem. É mais sério quando você pode pagar e você não
paga apenas para ser barato ou por ser maldoso. Isto é algo que deveria ser
evitado.

Neste ponto sobre roubar, poderíamos olhar para nós mesmos, podemos parar de
desperdiçar dinheiro em coisas triviais. Fazer apostas, por exemplo, é empregar
mal nossas próprias posses. Nós também não deveríamos ser mesquinhos conosco,
quando podemos realmente pagar. Você tem o dinheiro para comer uma dieta
apropriada e para comprar boa comida, mas você é mesquinho e compra o
alimento mais barato, de pior qualidade. Isto é quase como roubar de você mesmo!

Quando se trata de comportamento sexual impróprio, não é somente pressionar os


outros ou seus parceiros, é também parar com atos sexuais que poderiam pôr em
perigo nossa própria saúde física ou emocional. Por exemplo, você encontra
alguém que atrai muito você e você gostaria de fazer sexo com essa pessoa. Mas o
problema é que ela tem algumas questões emocionais e outras dificuldades, e você
nota que se envolver com ela isso trará um problema no futuro. Assim para sua
própria saúde pessoal, você não se envolve. Nós não deveríamos ser dirigidos pelo
nosso desejo, apenas porque alguém é bonito!

O Que Fazer Quando Passamos dos Limites Que Delimitamos


Inevitavelmente, de tempos em tempos, vamos além dos limites que estabelecemos
para nosso comportamento; assim o budismo oferece um jogo de opostos para
lidar com tais situações:

 Reconheça o que você fez. Seja honesto com você mesmo.


 Arrependa-se da ação, desejando não ter feito o que quer que seja. Isto é diferente de
culpa, onde você pensa basicamente em si como uma pessoa terrível, e não deixa estar
mais.
 Decida tentar e não repetir a ação.
 Reafirme sua motivação de que você não quer ir além do limite porque isso conduz à
infelicidade e causa problemas.
 Aplique um oposto. Por exemplo, se você gritar com alguém, você pode honestamente
desculpar-se, explicando que estava de mau humor ou o que for.

Forma de Vida

Isto tem a ver com as formas de vida, algumas são éticas e outras não.

Forma de Vida Incorreta


Isto refere-se a evitar ganhar dinheiro através de uma indústria prejudicial, ou de
uma forma que seja prejudicial a nós e aos outros. Isto inclui, por exemplo:

 Manufaturar ou negociar com armas


 Abater animais, caçar, pescar e exterminar insetos
 Fazer, vender ou servir álcool ou drogas.
 Operar um casino de apostas
 Publicar e distribuir pornografia.

Estas formas de ganhar a vida causam dano aos outros ou, como com a
pornografia, causam desejo e o desejo somente aumenta. Até se estivermos
envolvidos com um tipo regular de trabalho é importante sermos honestos e evitar
desonestidade:

 Cobrar demais dos clientes, tentando conseguir tanto dinheiro deles quanto possível
 Fraude, pegando dinheiro do negócio para seu próprio uso
 Extorsão, ameaçando outros para conseguir dinheiro deles
 Suborno
 Exploração dos outros
 Propaganda enganosa
 Adulterar alimentos ou produtos a fim de fazer mais dinheiro.

Há tantas formas desonestas de ganhar a vida! Necessitamos aplicar auto-


disciplina ética para evitar estes tipos de meios de vida.
Forma de Vida Correta
Deveríamos ter por objetivo ganhar a vida de forma honesta, e que possa
beneficiar a sociedade, como:

 Medicina
 Trabalho social
 Comércio justo
 Fazer ou vender produtos e serviços que beneficiam os outros.

Qualquer coisa que contribua ao funcionamento saudável da sociedade e ao bem-


estar de outros é ótimo. Além disso, deveríamos:

 Não trapacear os outros, nem cobrar demais


 Dar um preço justo, de modo que possamos lucrar, mas de forma razoável
 Pagar bem nossos empregados, de modo que não os exploremos.

Um ponto que frequentemente aparece nas perguntas é sobre a necessidade. Certa


vez eu traduzi para um professor tibetano na Austrália, onde há uma quantidade
tremenda de ovelhas, e alguém perguntou: “Na cidade que vivo, o único trabalho
disponível é criar ovelhas, que são usadas então para lã e carne. Que devo fazer? Eu
não posso apenas mudar-me para outra cidade e tentar encontrar outro trabalho.”
O lama tibetano disse: “A principal coisa é ser honesto em seu trabalho e não
trapacear outros; e para você não destratar as ovelhas mas para tratá-las muito
amavelmente, alimente-as bem e tome cuidado delas.” Assim a ênfase principal
está em sermos amáveis e honestos.

Conclusão
Quando olhamos os conselhos que o caminho óctuplo nos dá, não devemos vê-los como
um tipo de regulamento que nos constringe, mas sim vê-los como limites que nos livram
das ações negativas, que acabam somente por causar dano para nós e os outros.

Esforço, Atenção Plena e


Concentração Corretos
Visão Geral

Nós estamos considerando os três treinamentos e como podem nos


ajudar na vida diária através da prática do caminho óctuplo. Os três
treinamentos são:

 Auto-disciplina ética
 Concentração
 Consciência discriminativa.
Implementamos fala, ação, comportamento e meios de vida corretos a fim
de desenvolver a auto-disciplina ética. Agora podemos observar o
treinamento da concentração, que envolve o esforço correto, a atenção
correta e a concentração correta.

Esforço correto é livrar-se de linhas de pensamento destrutivas, e


desenvolver os estados de mente que favorecem a meditação.

Atenção plena é como a cola mental para continuar e não deixar algo de
lado, impedindo-nos de esquecer algo:

 Não esquecer da natureza real de nosso corpo, sentimentos, mente e os


fatores mentais, para que não nos distraiam
 Não perder de vista nossas diversas normas éticas, preceitos, ou se os
fizemos, os votos
 Não abandonar ou esquecer de um objeto do foco.

Assim, se estamos meditando, necessitamos obviamente de atenção plena


para não perder o objeto em que estamos focando. Se estivermos
conversando com alguém, precisamos manter a atenção na pessoa e no
que está dizendo.

Concentração em si é colocar a mente em um objeto de foco. Assim,


quando escutamos alguém, significa que nossa concentração foi colocada
naquilo que estão dizendo, como estão olhando, como estão agindo e
assim por diante. A atenção plena ajuda a manter a concentração, sendo a
cola mental que nos mantem lá, para que não fiquemos entediados ou
distraídos.

Esforço

Este é o primeiro fator do caminho óctuplo que usamos para nos ajudar a
desenvolver a concentração. Nos esforçamos em deixar de lado
pensamentos distrativos e estados emocionais que não são conducentes à
concentração, e tentamos desenvolver boas qualidades. Em geral, se
quisermos obter qualquer coisa em nossas vidas, necessitamos de
esforço. As coisas não vêm de absolutamente nada e ninguém disse que
era fácil. Mas, se desenvolvermos um pouco de força ao trabalhar com a
autodisciplina ética em termos de como nós agimos, falamos e tratamos
com os outros, isto nos dá energia para o esforço em trabalhar nos nossos
estados mentais e emocionais.
Esforço Incorreto
O esforço incorreto está dirigindo nossa energia a linhas de pensamento
prejudiciais e destrutivos, que distraem-nos e tornam difícil - senão
impossível - concentrar-se. Há três principais tipos de maneiras
destrutivas de pensar:

 Pensar gananciosamente
 Pensar com malicia
 Pensar distorcidamente com antagonismo.

Pensar Gananciosamente
Pensar gananciosamente envolve pensar com inveja sobre o que os
outros conseguiram ou sobre os prazeres e as coisas materiais que eles
possuem. Você pensa: “Como posso ter isso para mim?” Isto surge do
apego. Nós somos incapazes de aguentar alguém que tem coisas que não
temos, seja sucesso, um parceiro bonito, um carro novo - na verdade
poderia ser qualquer coisa. Pensamos constantemente sobre isso, e é um
estado de mente muito perturbador. Isto impede totalmente nossa
concentração, não?

O perfeccionismo pode ser visto deste modo - estamos sempre vendo


como podemos superar a nós mesmos. É quase ciúmes de si!

Pensar com Malicia


Pensar com malicia é sobre como prejudicar alguém, como por exemplo:
“Se esta pessoa disser ou fizer algo que eu não goste, vou me vingar.”
Podemos pensar sobre o que faremos ou diremos a próxima vez que
vermos essa pessoa, e lamentamos que não lhe dissemos algo de volta,
quando nos disseram algo. Não podemos tirar isto de nossas cabeças,
pensamos tanto nisto.

Pensar Distorcidamente com Antagonismo


Pensamento distorcido, antagonista é quando, por exemplo, se alguém
estiver tentando se melhorar ou ajudar os outros, pensamos: “Eles são
estúpidos; o que estão fazendo é inútil. É ridículo tentar ajudar os outros.”

Algumas pessoas não gostam de esportes, e pensam que outras pessoas


que gostam e assistem futebol na televisão ou vão ver um time jogar são
completamente estúpidas. Mas não há nada prejudicial em gostar de
esportes. Pensar que é estúpido ou um desperdício de tempo é um estado
de mente muito antagonista.
Ou, alguém tenta ajudar um mendigo dando-lhe dinheiro e você pensa:
“Oh, você é realmente estúpido fazendo isso.” Se constantemente
pensamos sobre quão estúpidas as pessoas são, e como aquilo que estão
fazendo é irracional, nunca seremos capazes de nos concentrarmos. Estes
são pensamentos de que queremos nos livrar.

Esforço Correto
O esforço correto está guiando a nossa energia para longe de linhas
prejudiciais e destrutivas de pensamento, e para o desenvolvimento de
qualidades benéficas. Neste caso, falamos em termos do que são
chamadas as “quatro tentativas corretas” em Pali. Em Sânscrito e na
literatura tibetana são chamados “os quatro fatores para obter
desapego correto”, ou seja, para livrar-nos de nossas deficiências - os
chamados “quatro abandonos puros”:

1. Primeiramente, nos esforçamos em evitar o surgimento de qualidades


negativas que ainda não desenvolvemos. Por exemplo, se temos uma
personalidade muito viciante, talvez queiramos evitar entrar para um
serviço de streaming de filmes online, onde iremos acabar passando o
dia todo assistindo série após série. Seria completamente prejudicial e
conduziria à perda de concentração.
2. Então, nós temos que pôr esforço em nos livrarmos das qualidades
negativas que já temos. Assim, se formos viciados em algo, então é bom
tentarmos limitar isto. Por exemplo, todos conhecemos algumas
pessoas que são tão viciadas em seus iPods, que não podem ir em
nenhum lugar sem escutar música. É quase como se estivessem
receosas de ficar em silêncio, receosas de pensar sobre qualquer coisa,
assim elas têm que constantemente ouvir música. Naturalmente,
música alta pode ser útil para mantê-lo acordado quando dirige por
uma longa distância ou para manter o ritmo quando se exercita, e a
música suave pode lhe ajudar a se acalmar quando trabalha, mas a
música certamente não lhe ajuda a focar em alguém ou em uma
conversa. Inevitavelmente, isto distrai.
3. Depois disso, precisamos cultivar novas qualidades positivas.
4. Então, pomos o esforço em manter e melhorar as qualidades positivas
que já estão presentes.

É muito interessante vê-las e tentar encontrar aplicações práticas. Um


exemplo meu é que eu tive um hábito muito mau com relação à minha
homepage. Eu tenho aproximadamente 110 pessoas trabalhando nela, me
mandando e-mails toda hora com suas traduções e arquivos editados -
recebo tantos diariamente. Meu mau hábito era que eu baixava tudo em
uma pasta, ao invés de arquivá-los em pastas apropriadas onde meu
assistente e eu pudéssemos encontrá-los facilmente. Era realmente um
mau hábito, porque minha ineficiência impediu que nos concentrássemos
em nosso trabalho com estes arquivos, desperdiçando muito tempo e
tentando encontrá-los e classificá-los. Assim, o que seria a qualidade
positiva aqui? Criar um sistema para que assim que algo chegasse, fosse
imediatamente destinado ao arquivo correto. Isto cria um hábito de pôr
sempre as coisas em seu lugar apropriado desde o início, em vez de
sermos preguiçosos e apenas deixando tudo ir a toda parte.

Neste exemplo, encontramos uma qualidade negativa, um hábito muito


improdutivo e também uma qualidade positiva. Assim, pomos esforço em
evitar a qualidade negativa e criar um sistema de arquivos apropriado
para podermos impedir que continue. Isto é o que nós estamos falando
em um nível muito simples da prática.

Superando os Cinco Obstáculos à Concentração


O esforço correto envolve também trabalhar para superar os cinco
obstáculos à concentração, que são:

Intenções para Correr Atrás de qualquer dos Cinco Tipos de Objetos Sensoriais
Desejáveis
Os cinco objetos sensoriais desejáveis são paisagens bonitas, sons,
fragrâncias, gostos e sensações físicas. Este obstáculo que pomos esforço
em superar é quando estamos tentando concentrar em algo, por exemplo,
nosso trabalho, mas nossa concentração fica distraída por pensamentos,
como: “Eu quero assistir um filme” ou “Eu quero ir à geladeira.” Aqui
estamos observando os prazeres sensoriais ou desejos, como querer
comer, ouvir música e assim por diante. Precisamos nos esforçar em não
ir atrás dessas coisas quando tais sentimentos surgem, para podermos
permanecer focados.

Pensamentos de Animosidade
Isto é pensar em ferir alguém. Se sempre pensarmos de uma maneira
maldosa: “Esta pessoa me feriu, eu não gosto dela, como posso me
vingar?” Este é um grande obstáculo à concentração. Precisamos nos
esforçar para evitar pensamentos prejudiciais - não somente sobre os
outros, mas sobre nós mesmos também.

Visão Nebulosa e Sonolência


Aqui é quando nossa mente está em uma névoa, nós estamos bem
distraídos e não podemos pensar claramente. Sonolência é, obviamente,
quando nós estamos sonolentos. Nós temos que tentar lutar contra isto.
Não importa se você faz isto com café ou pegando ar fresco, mas
precisamos esforçar-nos em não ceder para isso. Mas, se realmente ficar
demasiado difícil concentrar-se, precisamos fixar um limite. Se você
estiver trabalhando em casa: “Eu vou tirar uma soneca ou fazer uma
pausa de vinte minutos.” Se você estiver em seu escritório: “Eu vou fazer
uma pausa para um café por dez minutos.” Ajuste um limite e então volte
para o seu trabalho.

Inconstância da Mente e Pesares


Inconstância da mente é quando nossa mente voa para o Facebook ou
YouTube ou outra coisa. Sentir arrependimento é quando a mente voa
para sentimentos de culpa: “Eu me sinto tão mal porque fiz isto ou
aquilo." Estas coisas são muito distrativas e realmente impedem nossa
concentração.

Indecisão e Dúvidas
A última coisa que precisamos tentar pôr esforço em superar é a
indecisão e dúvidas. Que devo fazer? “O que devo almoçar? Talvez eu
devesse comer isto. Ou devo comer aquilo?” Não ser capazes de tomar
decisões desperdiça uma quantidade de tempo enorme. Não podemos nos
concentrar, e continuamos com as coisas como se estivéssemos sempre
cheios de dúvidas e indecisão, assim que precisamos nos esforçar para
resolver isto.

Resumindo, esforço correto é por esforço em:

 Evitar formas de pensamento perturbadoras e destrutivas


 Livrar-nos de hábitos e defeitos ruins que possamos ter
 Desenvolver as boas qualidades que já temos, e aquelas em que somos
deficientes
 Livrar-nos dos obstáculos à concentração.

Atenção Plena

O aspecto seguinte do caminho óctuplo que está envolvido com a


concentração é a correta atenção plena:

 Atenção plena é basicamente cola mental. Quando você está


concentrando-se, sua mente prende-se a um objeto. Este prender-se,
atenção plena, evita que isto se perca.
 Isto vem acompanhado de vigilância, que detecta se sua atenção estiver
vagueando, ou se você se tornar sonolento ou obtuso.
 Então nós usamos nossa atenção, que é como consideramos ou
observamos um objeto de foco.
Aqui prestamos atenção em como consideramos nosso corpo,
sentimentos, mente e vários fatores mentais. Queremos evitar prender-
nos e não deixar de lado maneiras incorretas de considerar nosso corpo e
sentimentos, porque quando não deixamos de lado, nós nos tornamos
distraídos e incapazes de concentrar-nos. Assim aqui, vamos observar as
formas incorretas e corretas de atenção plena, alternadamente.

A Respeito de Nosso Corpo


Quando falamos do corpo, em geral, isto significa nosso corpo real e as
várias sensações ou aspectos físicos de nosso corpo. Uma consideração
incorreta do corpo seria aquela de ver que pela sua própria natureza,
nosso corpo é agradável ou limpo e bonito. Nós gastamos uma quantidade
de tempo enorme distraídos ou preocupados com a nossa aparência -
nossos cabelos e maquiagem, como nos vestimos e assim por diante.
Naturalmente é bom mantermo-nos limpos e apresentáveis, mas quando
vamos ao extremo de pensar que a aparência do corpo é uma fonte de
prazer e que sempre tem que ser perfeito, para podermos atrair os
outros, não sobra muito tempo para concentrar-se em algo mais
significativo.

Vamos observar o corpo realisticamente. Se você estiver sentado por


muito tempo, isto fica incômodo e você precisa se mover. Se você estiver
deitado, uma posição torna-se incômoda e assim também a seguinte.
Ficamos doentes; o corpo envelhece. É importante tomar cuidado do
corpo e certificar-nos que gozamos de boa saúde através de exercício e
comer bem, mas focar demais nisso, essa ideia de que o corpo será uma
fonte de prazer durador, é um problema.

Esta atenção plena incorreta é do que precisamos nos livrar. Nós temos
que deixar para lá a ideia de que nosso cabelo é a coisa a mais importante,
ou que sempre temos que combinar as cores, e que isso nos trará a
felicidade. Nós paramos de nos apegar a isto e cultivamos atenção plena
correta, que é: “Meus cabelos e roupas não são realmente uma fonte de
felicidade. Pensar demasiado sobre isso desperdiça meu tempo e impede
que eu me concentre em algo mais significativo.”

A Respeito de Nossos Sentimentos


Aqui nós estamos falando sobre os sentimentos de infelicidade ou
felicidade, que estão basicamente conectados à fonte do sofrimento.
Quando estamos infelizes, nós temos o que é chamado de “sede" -
estamos sedentos em terminar com a fonte de infelicidade. Do mesmo
modo, quando temos um pouco de felicidade, temos realmente sede por
mais. Basicamente, esta é a fonte dos problemas.
Quando consideramos a infelicidade como a pior coisa do mundo, isso
cria problemas de concentração. Como? “Eu estou um pouco
incomodado,” ou “eu não estou de bom humor,” ou “eu estou infeliz,”...
bem, e daí? Você apenas continua com o que quer que você esteja
fazendo. Se você pensa realmente que seu mau humor é a pior coisa do
mundo e se segura àquilo, isso se torna um obstáculo sério à
concentração naquilo que estiver fazendo.

Quando estamos felizes, não deveríamos nos distrair, desejando que a


felicidade aumente e continue para sempre. Isto pode acontecer quando
meditamos e você começa a sentir-se realmente bem e se torna distraído
pela maravilha que é. Ou se você estiver com alguém que você gosta, ou
comer algo delicioso, a atenção plena incorreta é apegar-se ao “Isto é
mesmo fantástico,” e distrair-se por isso. Aprecie isto pelo que é, mas não
aumente.

Considerando a Nossa Mente


Será difícil concentrar-se se considerarmos nossa mente como sendo em
sua própria natureza preenchida de raiva ou estupidez ou ignorância,
pensando que há algo inerentemente errado ou danificado na nossa
mente. Frequentemente pensamos em nós mesmos em termos de não
sermos bons o bastante: “Eu não sou isto. Eu não sou aquilo. Eu não
sou nada.” Ou “eu não consigo entender,” antes que tenhamos ao menos
tentado. Se nos apegarmos a estas ideias, então vai ser impossível. Visto
que com atenção plena correta, que é quando pensamos: “Bem,
temporariamente eu talvez não compreenda, temporariamente eu talvez
possa estar confuso, mas isto não significa que seja a natureza de minha
mente,” isto nos dá a confiança para usar a concentração para passar por
isso.

Observando Nossos Fatores Mentais


O quarto aspecto são os nossos fatores mentais, como a inteligência,
bondade, paciência e assim por diante. Atenção plena incorreta é pensar
que são fixos e “sou assim, e todos tem que aceitar. Não há nada que eu
possa fazer para mudá-los ou cultivá-los.” Atenção plena correta é saber
que todos estes fatores não estão apenas congelados em um determinado
nível, mas podem ser desenvolvidos e cultivados, neste contexto, para
concentração adicional.

Tomando o Controle de Nós Mesmos


É estranho, quando nos analisamos para ver como lidamos com estar
demuito mau humor, ou quando nos sentimos culpados, descobrimos que
nos afundamos nisso, e ficamos presos aí. Ou com a culpa, ficamos presos
no erro que cometemos. Bem, somos humanos e todos nós cometemos
erros. Atenção plena incorreta é quando nos prendemos a isto e não
deixamos para lá, nos culpando pelo mau que pensamos ser. Atenção
plena correta é saber que humores mudam, porque eles surgem através
de causas e condições que sempre estão mudando; nada permanece o
mesmo para sempre.

Um conselho muito útil que encontramos nos ensinamentos budistas é


basicamente “tomar o controle de si mesmos.” É como levantar-se pela
manhã, quando você está deitado na cama e realmente não quer sair
porque está tão confortável e você está se sentindo sonolento. Bem, você
simplesmente toma o controle e levanta-se, não? Nós temos a habilidade
de fazer isso; caso contrário metade de nós nunca levantaria de manhã! É
a mesma coisa quando estamos de mau humor ou nos sentindo um pouco
deprimidos. Podemos tomar o controle sobre nós mesmos: "Vamos lá,
faça isso agora!" - não cedendo, mas apenas seguindo com o que
precisamos fazer.

Outros Aspectos da Atenção Plena


Em geral, atenção plena é realmente muito importante. Impede que
esqueçamos das coisas. Se houver coisas que precisemos fazer, a atenção
plena correta ajuda-nos a concentrar nelas. Atenção plena tem a ver com
recordar, assim você talvez possa lembrar que seu programa favorito da
televisão é hoje à noite. Mas isto é apegar-se a algo que não é assim
importante, que então faz você se esquecer outras coisas que são mais
importantes.

Se estivermos seguindo algum tipo de treinamento, há o tipo correto de


atenção plena a ser seguido. Se estivermos fazendo exercícios, temos que
continuar a fazê-los a diariamente. Se nós estivermos fazendo dieta,
necessitamos manter a atenção plena disto, para não pegar aquele pedaço
de bolo quando nos oferecem.

Atenção plena é focar no que estamos fazendo e não distrair-se com todas
as coisas periféricas, sem importância.

Mantendo Atenção Plena Quando com Nossas Famílias


Muitas pessoas acham muito mais difícil ser atentos sobre a ética quando
estão com suas famílias do que quando estão com amigos ou
desconhecidos. Se este for o caso conosco, o conselho geral é fixar uma
intenção muito forte no começo. Se você estiver prestes a encontrar com
seus parentes, você pode fazer a intenção: “Eu tentarei manter a calma.
Eu tentarei recordar que foram muito amáveis comigo. Eles são próximos
de mim, e a maneira que eu os trato afetará seus sentimentos.” Isto é
muito importante no início.

Nós também temos que lembrar-nos que são seres humanos. Não
devemos apenas identificá-los no papel de mãe, pai, irmã, irmão ou qual
seja o tipo de relacionamento que você tenha com eles. Se apegarmo-nos
a eles em determinado papel, tendemos a reagir ao que fazem com todas
nossas projeções do que é uma mãe ou pai e toda a história e expectativas
e desapontamentos que tivemos com eles. É melhor relacionar-se com
eles como seres humanos. Se não prestarem atenção nisto e ainda
tratarem-nos como uma criança, não caímos no padrão de agir como uma.
Recordamos que são seres humanos e não jogamos o jogo; apesar de
tudo, precisamos de dois para dançar um tango.

Minha irmã mais velha visitou-me por uma semana recentemente. Ela ia
dormir razoavelmente cedo de noite e então, como se fosse minha mãe,
dizia: “Vá dormir agora.” Mas se reagíssemos como uma criança e
disséssemos: “Não, é muito cedo, eu não quero dormir, eu quero ficar
acordado, por que você está me dizendo para ir dormir?” então é
simplesmente jogar o mesmo jogo. E ambos ficamos tristes. Assim eu tive
que lembrar que ela estava me dando esse conselho porque se importa
comigo, não porque quer me irritar. Ela pensa que é melhor para mim ir
dormir cedo. Assim temos que tentar e ter uma visão muito mais realista
do que está acontecendo, melhor que apenas projetar nossas ideias.

Assim, antes de encontrarmos com membros da família, podemos prestar


atenção em nossa motivação, que significa:

 Nosso objetivo: o objetivo é ter uma interação agradável com nossa


família, com quem eu me importo e que se importa comigo.
 A emoção anexa: importar-se com nossa família, como seres humanos.

Uma outra maneira de ver isto, ao invés de pensar que é um tormento


horrível, é vê-lo como um desafio e uma oportunidade para crescer:
“Seria eu capaz de jantar com minha família sem perder a calma?”

E quando sua família começa a encher você, como os pais farão


frequentemente: “Por que você não se casa? Por que você não procura um
trabalho melhor? Porque você não tem filhos ainda?” (A primeira coisa
que minha irmã disse quando me viu foi: “Você precisa cortar o cabelo!")
então reconhecemos que estão pedindo essas coisas porque estão
preocupados conosco e podemos apenas dizer: “Obrigada por se
preocupar!”
Podemos também pensar porque estão fazendo isso, que é porque muitos
de seus amigos estarão perguntando: “Bem, o que seu filho anda fazendo?
O que a sua filha está fazendo?” e eles têm que interagir socialmente com
seus amigos. Não estão perguntando porque você não está casado ainda
por maldade, mas porque estão preocupados com sua felicidade. O
primeiro passo é reconhecer isto e apreciar seu interesse. E se você
quiser, você pode também explicar calmamente porque você não é
casado!

Com atenção plena, estamos prendendo frequentemente coisas que de


modo algum são produtivas. Poderia ser história antiga, como: “Por que
você fez isto dez anos atrás?” ou “Você disse isso há trinta anos.” Nós nos
agarramos nisso e não damos chance para ninguém, não conseguindo ver
como são agora. Nós nos apegamos ao preconceito que “isto vai ser
horrível. Meus pais estão vindo me visitar,”- já decidimos que vai ser
terrível. Isso nos deixa muito tensos antes do jantar! Assim,
transformamos isso através da atenção plena correta, pensando nisso
como uma oportunidade de ver como estão e uma possibilidade de
responder à situação enquanto ela ocorre, sem preconceitos.

Conselho Prático para Manter Atenção Plena


Como mantemos nossa atenção plena em situações difíceis? Precisamos
cultivar:

 Intenção – a forte intenção para tentar não se esquecer


 Familiaridade – passar repetidas vezes pelo mesmo processo de modo
que nos recordemos automaticamente
 Vigilância – o sistema de alarme que detecta quando nós perdemos a
atenção plena.

Tudo isto está baseado em uma atitude de cuidado, onde você se importa
com o efeito de seu comportamento em si e nos outros. Se você realmente
não se importa em como age, isso não irá manter a atenção plena porque
não haverá nenhuma disciplina lá. Por que devemos nos importar?
Porque você é um ser humano. Sua mãe e pai são seres humanos. E todos
queremos ser felizes. Ninguém quer ser infeliz. A maneira que nos
comportamos e falamos com os outros afeta seus sentimentos, assim que
deveríamos nos importar em como agimos.

Precisamos examinar a nossa motivação. Se quisermos apenas ser bons


para que os outros gostem da gente, isto é um tanto infantil. É um tanto
bobo. A melhor razão para sermos alertas e mantermos a atenção plena é
que nos importamos com os outros, baseados em uma atitude de cuidado.
Concentração

O terceiro aspecto do caminho óctuplo que aplicamos para a


concentração é chamado concentração correta (sim, concentração em si).
A concentração é a verdadeira colocação mental em um objeto. Uma vez
que sabemos no que queremos nos concentrar, a atenção plena nos
mantem lá para não perdermos o foco. Mas para primeiramente focar no
objeto temos a concentração.

Nós usamos a atenção para trazer a concentração a algo. O que está


acontecendo cada vez mais hoje em dia, comparado ao passado, é que
dividimos a atenção, e nunca estamos concentrados inteiramente em
algo. Quando você assiste as notícias na tevê, há uma pessoa no centro da
tela transmitindo as notícias do dia, embaixo há uma barra com outras
notícias e nos cantos pode haver outras coisas. Nós não podemos prestar
atenção ou nos concentrar inteiramente em nenhuma delas. Mesmo se
pensarmos que somos capazes de multitarefas, ninguém pode fazer isso, a
menos que sejamos um buda - e aplicarmos 100% de concentração sobre
todas as coisas que estamos fazendo.

Às vezes quando estamos com alguém e estão falando conosco, nossa


colocação mental está em nosso telefone celular. Isto é uma colocação
mental errada porque estão falando conosco e nós não estamos nem
prestando atenção. Mesmo se tivermos a colocação mental em algo, é
muito difícil sustentá-la. Hoje estamos tão acostumados com as coisas que
mudam assim rapidamente e a olhar uma coisa após outra, que ficamos
entediados muito facilmente. Ter esse tipo de concentração - apenas
alguns momentos nisto, alguns momentos naquilo - é um obstáculo. É
concentração incorreta. Ter concentração correta significa sermos
capazes de concentrar-nos pelo tempo que for necessário, sem ficarmos
entediados e fazer outra coisa porque já não estamos mais interessados.

Um dos obstáculos principais é que queremos ser entretidos. Isto


remonta à atenção plena incorreta, e pensar que prazer temporário nos
satisfará, ao invés de criar sede adicional. Os cientistas sociais
descobriram que quanto mais possibilidades há do que podemos fazer e
olhar - e a Internet oferece isto, possibilidades ilimitadas - mais
entediados, tensos e estressados ficamos. Quando você está olhando algo,
está pensando que deve haver algo ainda mais interessante e fica receioso
de perder. Desta forma, você segue e não foca em nada. Embora seja
difícil, é realmente uma boa ideia tentar simplificar sua vida, para não
haver assim muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo. Com o
desenvolvimento da sua concentração, você será capaz de lidar com mais
coisas. Se você tiver boa concentração, então pode concentrar-se nisto, e
então naquilo; mas somente um de cada vez, sem distração. É como um
médico, que necessita tratar de um paciente de cada vez e estar
concentrado inteiramente neles, não pensando sobre o paciente
precedente ou seguinte. Embora médicos possam ver muitos pacientes
durante o dia, sempre estão concentrados inteiramente em uma coisa de
cada vez. Isto é muito melhor para a concentração.

É, entretanto, muito desafiador. Para a mim, que trato de uma quantidade


enorme de tarefas diferentes com o site e as diferentes línguas e assim
por diante, é realmente duro estar focado em uma coisa. Tantas coisas
acontecendo ao mesmo tempo. Qualquer um que trabalha em um negócio
complexo sofre do mesmo modo. Mas a concentração pode ser
desenvolvida em estágios.

Conclusão

Livrar-nos de obstáculos à concentração é muito amplo. Um método


simples seria desligar nosso telefone celular quando estamos
trabalhando, ou escolher um horário especial uma vez ou duas vezes ao
dia para verificar e-mails de modo que pudéssemos concentrar-nos
inteiramente no que precisamos fazer. É como um doutor ou um
professor que têm horas marcadas no consultório; você não pode apenas
chegar a qualquer hora, há determinadas horas em que estão disponíveis.
Nós podemos e devemos também fazer isto com nós mesmos, porque nos
ajudará a desenvolver nossa concentração.

É interessante observar o desenvolvimento social. Em épocas


precedentes, os obstáculos principais à concentração eram nossos
próprios estados mentais - vaguear mentalmente, sonhar acordados e
assim por diante. Agora há tanto mais, e a maioria vem de fontes externas
como telefones celulares, Facebook e e-mail. De fato, requer esforço não
sermos oprimidos por todos eles e para sermos capazes de fazer isso
realmente precisamos reconhecer as características prejudiciais destes
meios de comunicação. O mais óbvio que muitas pessoas já puderam
experimentar é que os períodos de atenção estão começando a ser mais
curtas. O Twitter tem um número limitado de caráteres e o feed do
Facebook está sendo atualizado constantemente. É tudo assim rápido que
cria um hábito terrível que é prejudicial à concentração, porque você não
pode manter sua atenção em nada; tudo constantemente tem que mudar.
Temos que prestar atenção nisso.

Visão e Intenção Corretos


A consciência discriminativa é discriminar entre o que é correto e incorreto, o que
é útil e prejudicial. Para tanto, temos os últimos dois aspectos do caminho óctuplo:
visão correta e intenção correta (pensamento motivante correto).

Visão correta - o que acreditamos ser verdadeiro, baseado em discriminar


corretamente entre o que está correto e incorreto, ou o que é prejudicial e útil.
A motivação correta é um estado construtivo de mente a que isto conduz.

Visão

Podemos ter a consciência discriminativa correta ou incorreta:

 Poderíamos discriminar corretamente e acreditar ser verdade.


 Poderíamos discriminar incorretamente e acreditar ser verdade.

A visão incorreta é quando nós temos a discriminação incorreta, mas acreditamos


ser verdadeira; e a visão correta é ter discriminação correta acreditando ser
verdadeira.

Visão incorreta
Visões incorretas são, por exemplo, afirmar e acreditar que nossas ações não têm
nenhuma dimensão ética, onde algumas podem ser destrutivas e outras
construtivas; e acreditar que não trazem resultados em termos do que
experimentamos. Isto é caracterizado pelo mentalidade de “não importa” que
muitas pessoas tem hoje. Não importa; nada importa. Não importa; se eu fizer ou
não fizer isto, não importa. Isto está incorreto. Importa se você fuma ou não. Se
você fuma, isso terá consequências negativas para a sua saúde.

Outro tipo de visão errada é acreditar que não existe maneira para melhorar a nós
mesmos e superar nossos defeitos, assim não faz sentido se importar com isso. Isto
é errado, porque as coisas não são estáticas ou fixas em cimento. Alguns acreditam
que não há nenhum sentido em tentar ser amáveis ou ajudar os outros, e que
deveríamos apenas tirar vantagem de todos e lucrar tanto quanto possível - e que
isso trará a felicidade. Isso está errado, porque não conduz à felicidade. Isso traz
conflito, ciúmes e preocupações com os outros roubando nossas coisas.

Há tantos tipos diferentes de discriminação incorreta. Pode-se tratar de sofrimento


e de suas causas, por exemplo. Considere o exemplo de seu filho que foi mal na
escola. A discriminação incorreta seria pensar: “É por minha causa. É minha falha
como pai.” Esta é a discriminação incorreta sobre causalidade. As coisas não
surgem nem acontecem por causa de apenas uma causa. As coisas acontecem por
causa de uma combinação de muitas, muitas causas e circunstâncias, não apenas
uma. Nós podemos ter contribuído, mas não somos a única causa do problema. E às
vezes nós nem somos a causa - isto é totalmente equivocado. Eu estou pensando no
exemplo de um indivíduo completamente perturbado: ele foi a um jogo de futebol
e sua equipe perdeu. Ele acreditou então que a única razão de que sua equipe
tenha perdido era porque foi ao jogo, assim ele disse que: “É minha culpa que a
equipe perdeu.” Isto é ridículo. É uma discriminação incorreta sobre a causalidade.
Visão Correta
A consciência discriminativa correta é crucial, e para tanto necessitamos aprender
sobre a realidade, a realidade da causalidade, e assim por diante. Como o tempo,
que é afetado por tantas causas e condições, não devemos também entender mal a
nós como sendo Deus, onde podemos apenas fazer uma única coisa e então tudo
ficará bem com nosso filho que está mal na escola. Assim não é como as coisas
funcionam.

A consciência discriminativa requer senso comum e inteligência e concentração


para ficarmos focados na nossa discriminação correta. Para tanto, precisamos de
disciplina. Isto é como tudo anda junto.

Intenção (Pensamento Motivante)

Uma vez que tenhamos discriminado entre o que é útil e o que é prejudicial, o que é
realidade e o que não é, nossa intenção ou pensamento motivante diz respeito a
como nossa discriminação afeta ou forma a maneira que falamos ou agimos, ou
nossa atitude sobre as coisas. Se discriminarmos incorretamente, um pensamento
motivante incorreto seguirá e, quando discriminarmos corretamente, um
pensamento motivante correto também seguirá.

Intenção Incorreta
Existem três áreas principais que a intenção ou pensamento motivante afetam:

Desejo Sensual
O pensamento motivante incorreto estaria baseado no desejo sensual - desejo e
apego a objetos dos sentidos, sejam estes coisas bonitas, música, boa comida,
roupas bonitas etc. Nosso pensamento motivante de pretender perseguir nossos
desejos estaria baseado incorretamente em discriminar que eles são a coisa mais
importante. Se tivermos discriminação correta, nós teremos equanimidade, que é
uma mente equilibrada livre de apego aos objetos dos sentidos.

Um exemplo é onde você discrimina incorretamente que é super importante onde


vamos jantar e o que comemos. Nós pensamos realmente que trará felicidade se
escolhermos o lugar certo e o prato certo do menu. Se você discriminar
corretamente, você verá que não é assim tão importante e que há muitas outras
coisas mais importantes na vida do que o que tem para o jantar, ou o que está
passando na tevê. A mente torna-se mais relaxada e balanceada.

Malicia
A segunda motivação ou intenção incorreta é a malicia; o desejo de ferir alguém ou
causar-lhe dano. Como quando alguém erra e você fica irritado e pensa que essa
pessoa é realmente má, e deve ser punida; isto é discriminação incorreta.

Nós fazemos a discriminação incorreta que as pessoas nunca cometem erros, o que
é absurdo. Podemos ficar tão irritados que queremos bater em alguém, sendo que
se tivéssemos a discriminação correta, desenvolveríamos a benevolência. Este é o
desejo de ajudar os outros e trazer-lhes a felicidade, e inclui força e perdão. Se
alguém comete um erro, você percebe que isto é natural e não sente rancor.

Crueldade
O terceiro tipo de intenção incorreta é uma mente que seja repleta de crueldade,
que tem vários aspectos:

 Vandalismo – uma cruel falta de compaixão, onde desejamos que os outros sofram e
sejam infelizes. Por exemplo, discriminamos seguidores de uma outra equipe de futebol
pensando que são horríveis e que podemos lutar com eles simplesmente porque
gostam de uma outra equipe.
 Ódio de si mesmo – uma falta cruel de amor próprio, onde sabotamos nossa própria
felicidade porque pensamos sermos má pessoa e não merecemos ser felizes. Nós
frequentemente fazemos isto, entrando em relacionamentos insalubres, prosseguindo
maus hábitos, comendo demais e assim por diante.
 Prazer perverso – onde nós cruelmente nos alegramos quando vemos ou ouvimos o
sofrimento de outras pessoas. Você pensa que alguém é mau e que merece o sofrimento
que está experimentando, como quando um político que não gostamos perde uma
eleição. Aqui, incorretamente discriminamos que algumas pessoas são más e merecem
ser punidas e que as coisas andem mal para eles, enquanto que outras, particularmente
nós mesmos, deveriam ter tudo indo bem.

Intenção Correta

A intenção correta baseada na discriminação correta seria uma atitude não-


violenta, não-cruel. Você tem um estado de mente onde você não deseja causar
dano aos outros que estão sofrendo, não irritar nem aborrecê-los. Nós não nos
alegramos quando as coisas vão mal para eles. Há também um senso de compaixão
aqui, onde desejamos que os outros estejam livres do sofrimento e suas causas,
porque vemos que todos sofrem, ninguém quer sofrer e ninguém merece sofrer. Se
as pessoas cometerem erros, vemos que é por causa de sua confusão, não porque
são intrinsecamente más. Com a discriminação correta e intenção correta somos
conduzidos naturalmente à fala correta e à ação correta.

Juntando os Oito Fatores

Os oito fatores do caminho cabem todos juntos:

 Visão e intenção corretas fornecem a fundação apropriada para a prática e conduzem-


nos naturalmente à fala correta, ação correta, e meios de vida corretos. Nós
discriminamos o que está correto com relação aos efeitos de nosso comportamento
com os outros e temos o desejo de ajudar aos outros, não de prejudicá-los.
 Nesta base, fazemos um esforço para melhorar-nos, para desenvolver qualidades boas
e para não distrair-nos com ideias estranhas sobre nosso corpo e sentimentos e assim
por diante. Usamos a concentração para ficarmos focados no que é benéfico; e então
nossa intenção cresce mais forte. Desta forma, tudo está interconectado.
Embora pudéssemos apresentar os três treinamentos e o caminho óctuplo como
uma sequência, o objetivo final é sermos capazes de colocá-los todos em prática
como um todo integrado.

Conclusão

De quando acordamos de manhã até o momento em que vamos dormir a noite,


nossos sentidos estão sedentos por entretenimento. Nossos olhos procuram belas
formas, nossos ouvidos querem sons reconfortantes e nossas bocas querem gostos
deliciosos. Embora não haja nada particularmente errado em querer experiências
prazerosas, se isto for a extensão de nossas vidas, nunca estaremos satisfeitos e
nunca seremos capazes de desenvolvermos nem mesmo um grama de
concentração.

Os três treinamentos na ética, concentração e consciência permitem-nos viver cada


momento da melhor maneira possível. Ao invés de apenas procurar o prazer para
si mesmo, o caminho óctuplo fornece um molde que permite-nos beneficiar não
somente a nós mesmos mas aos outros também. Quando examinamos e
entendemos porque as visões corretas estão corretas, e as visões incorretas não
estão, e porque as ações corretas são úteis e as ações incorretas são prejudiciais (e
assim por diante), e nos comportamos de acordo com isto, nossas vidas
melhorarão automaticamente. Nós estaremos levando o que podemos chamar de
“uma vida budista completa.”
O Mundo do Budismo
Nos últimos 2.500 anos o budismo floresceu em várias culturas da Ásia e no
século passado ele chegou ao Ocidente. Saiba mais sobre os tipos de budismo
que se desenvolveram e sobre o relacionamento do budismo com outras fés.

Tipos de Budismo
Dr. Alexander Berzin

À medida que os ensinamentos do Buda se espalharam por diversas regiões e culturas, os


povos desses lugares foram adaptando aquele aspectos que se harmonizavam com suas
próprias crenças. Consequentemente, várias formas diferentes de budismo se desenvolveram,
cada qual com abordagem e estilo únicos, mas todas mantiveram as características essenciais
dos ensinamentos. Isso está plenamente de acordo com o o método didático do Buda, de
adaptar sua mensagem conforme a mentalidade dos discípulos.

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Vamos examinar algumas das características distintivas das formas do


budismo Theravada, Mahayana chinês e tibetano, como representantes
dos principais sistemas atualmente existentes.

Theravada

Theravada enfatiza a prática de meditação da plena atenção, feita através


da concentração na respiração e nas sensações do corpo, enquanto
estamos sentados, assim como nos movimentos e intenções de
movimento enquanto caminhamos extremamente devagar. Com plena
atenção no surgir e cessar de cada momento obtemos uma compreensão
experiencial da impermanência. Quando essa compreensão é aplicada na
análise de todas as experiências, percebemos que não há um eu
permanente e imutável que exista independentemente de tudo e de todos.
Tudo são mudanças momentâneas. Deste modo, obtemos uma
compreensão da realidade que nos irá libertar da auto-centrada
preocupação e da infelicidade que isso traz.

Theravada também ensina meditações sobre o amor e a compaixão, mas


foi somente nas últimas décadas que nessa escola surgiu um movimento
chamado “Budismo Engajado”, iniciado na Tailândia, para envolver
budistas em programas de ajuda ambiental e social.

Além disso, os monges Theravada estudam e recitam as escrituras


budistas e fazem cerimónias e rituais para o público leigo. Os monges
saem diariamente em rondas silenciosas pedindo donativos e os chefes de
família praticam a generosidade oferecendo-lhes comida.

Mahayana do Leste Asiático

As tradições Mahayana do leste asiático, derivadas da China, possuem


dois aspectos principais: Terra Pura e o que no Japão é conhecido como
Zen.

 A tradição da Terra Pura enfatiza a recitação do nome de Amitabha, o


Buda da Luz Infinita, como um método de irmos para a sua Terra Pura
da Felicidade, uma espécie de paraíso no qual tudo é conducente a nos
tornarmos um Buda.
 Zen enfatiza a meditação estrita, na qual aquietamos a mente de
qualquer pensamento conceitual de modo a que a natureza pura da
mente, em forma de compaixão e dotada de sabedoria, possa
resplandecer.

Em ambas as tradições, monges e monjas recitam textos espirituais e,


mantendo a cultura confucionista, fazem cerimónias especialmente para
os falecidos ancestrais da comunidade leiga.

Mahayana Tibetano

A forma tibetana do budismo Mahayana, encontrada em toda a Ásia


Central, enfatiza o estudo – particularmente sobre a natureza da mente e
das emoções, por meio da lógica e do debate – juntamente com meditação
intensa. A isso, adiciona-se a prática do tantra, na qual usamos o poder da
imaginação e trabalhamos com as energias sutis do corpo para nos
transformarmos num Buda. Isso é feito através da concentração na
vacuidade e na compaixão e, dentro desse contexto, da imaginação de nós
próprios nos termos tornado numa específica forma búdica. Apesar de
tais formas serem às vezes chamadas de “deidades meditacionais”, elas
não são o equivalente de Deus em significado ou função, e o budismo não
é de maneira alguma uma religião politeísta. Cada forma búdica é uma
representação simbólica de um aspecto da iluminação de um Buda, tal
como a sabedoria ou a compaixão. A visualização de nós próprios em tais
formas e a recitação das sílabas sagradas (mantras) associadas a elas
ajudam-nos a superar a nossa errada e negativa auto-imagem e a
desenvolver as qualidades representadas por essas figuras. Este tipo de
prática é muito avançado e requer a supervisão próxima de um professor
inteiramente qualificado.

O budismo tibetano também possui uma grande quantidade de cânticos e


rituais, geralmente com o propósito de eliminar forças negativas e
interferências, visualizadas em forma de demônios. Ao fazermos estes
rituais, imaginamo-nos numa forma extremamente irada e poderosa,
como apoio meditacional na obtenção de energia e confiança para a
superação das dificuldades. Também há grande ênfase em técnicas de
meditação para cultivar o amor e a compaixão, que também envolvem o
uso de visualizações.

Conclusão

Quer olhemos as práticas de atenção plena do Theravada, a recitação do


nome do Buda Amitabha na China ou os debates e práticas de
visualização do Tibete, todas as formas de Budismo tem a mesma função.
Todas nos fornecem métodos eficientes de superarmos o sofrimento e
realizarmos nosso potencial, não apenas para nosso próprio bem, mas
também para o benefício do maior número possível de seres.
A Expansão do Budismo na Ásia
Apesar do budismo nunca ter desenvolvido um movimento missionário,
os ensinamentos do Buda acabaram se espalhando ao longo dos
séculos: primeiro para o Sudeste Asiático, a seguir para a Asia Central,
China e leste asiático, e finalmente para o Tibete e as regiões mais
longínquas da Ásia Central. Em geral, o desenvolvimento do budismo
nessas regiões deu-se de forma orgânica, por conta do interesse da
população nas crenças dos mercadores estrangeiros, que eram budistas.
Em alguns casos, os governantes adotaram o budismo com o objetivo
de ajudar a desenvolver valores éticos em seu povo. Entretanto,
ninguém era forçado a converter-se. A mensagem do Buda era
disponibilizada e as pessoas tinham liberdade para escolher aquilo que
lhes fosse útil.

Breve História

Os ensinamentos do Buda espalharam-se pacificamente pelo


subcontinente Indiano, e de lá para toda a Ásia. A cada nova cultura que
alcançava, os métodos e estilos budistas iam sendo modificados para se
enquadrarem na mentalidade local, sem comprometer os pontos
essenciais da sabedoria e compaixão. O budismo, entretanto, nunca
desenvolveu uma hierarquia de autoridades religiosas com um líder
supremo. Cada país por onde se expandiu desenvolveu sua própria forma,
sua própria estrutura religiosa e seu próprio líder espiritual. O mais bem
conhecido e internacionalmente respeitado desses líderes é Sua
Santidade o Dalai Lama, do Tibete.

Existem duas divisões principais do budismo: Hinayana (O Veículo


Modesto), que enfatiza a liberação pessoal, e Mahayana (O Veículo Vasto),
que enfatiza o trabalho para se tornar um Buda completamente
iluminado, de forma a estar-se mais apto a ajudar os outros. Cada uma
tem muitas sub-divisões. Atualmente, no entanto, sobrevivem três formas
principais: uma Hinayana conhecida no sudeste asiático como Theravada;
e duas Mahayana que são as tradições chinesa e tibetana.
 A tradição Theravada expandiu-se da Índia para o Sri Lanka e Birmânia
no século III a.C. e dali para o resto do sudeste asiático (Tailândia, Laos,
Camboja e sul do Vietnam).
 Outras escolas Hinayana se expandiram para o que hoje são o
Paquistão, Afeganistão, a costa e o leste do Irã e a Ásia Central.
Partindo da Ásia Central, elas expandiram-se para a China no século II
d.C.. Essas formas Hinayana foram mais tarde combinadas com
aspectos Mahayana que também vieram da Índia, até que por fim o
Mahayana se tornou a forma dominante de budismo na maior parte da
Ásia Central.
 A tradição Mahayana tibetana iniciou-se no século VII, herdando todo o
desenvolvimento histórico do budismo indiano. Partindo do Tibete,
expandiu-se pela regiões dos Himalaias, para a Mongólia, Asia Central e
diversas regiões da Russia (Buriácia, Calmúquia e Tuva).

Além disso, a partir do século II d.C. as variantes indianas do budismo


Mahayana se difundiram para o sul do Vietnã, Camboja, Malásia, Sumatra
e Java por meio da rota de comércio marítima da Índia para o sul da
China. Nenhuma delas permanece hoje.

Como o Budismo se Expandiu

A expansão do budismo através da maior parte da Ásia foi pacífica e


ocorreu de diversas maneiras. Buda Shakyamuni, o professor viajante que
compartilhava seus insights com aqueles que estivessem receptivos e
interessados, estabeleceu o precedente. E ele instruiu seus monges a
viajarem pelo mundo expondo os seus ensinamentos. Ele não pedia que
os outros difamassem ou desistissem de suas próprias religiões e se
convertessem a uma nova, pois não visava estabelecer sua própria
religião. O objetivo do Buda era simplesmente ajudar as outras pessoas a
superarem a infelicidade e o sofrimento que elas criavam para si devido à
falta de compreensão da realidade. Gerações posteriores de seguidores
foram inspiradas pelo exemplo de Buda e compartilharam os métodos
que acharam úteis para suas vidas. Foi assim que o atualmente
denominado “budismo” se expandiu por todo o lugar.

Algumas vezes, o processo evoluiu organicamente. Por exemplo, quando


mercadores budistas visitavam e se estabeleciam em outras terras, alguns
membros da população local desenvolviam naturalmente um interesse
pelas crenças desses estrangeiros, tal como aconteceu mais tarde com a
introdução do Islã na Indonésia e Malásia. Esse processo também ocorreu
com o budismo nos territórios de oásis ao longo da Rota da Seda na Ásia
Central, durante os dois séculos anteriores e posteriores a Cristo. À
medida em que os governantes e seus povos iam aprendendo mais sobre
essa religião indiana, iam convidando monges das regiões nativas dos
mercantes como conselheiros e professores e dessa maneira adotaram
por fim a fé budista. Outra maneira orgânica de expansão verificou-se na
lenta assimilação cultural por um povo conquistador, tal como os gregos
que assimilaram a cultura da sociedade budista de Gandhara, no atual
Paquistão Central, durante os séculos após o II a.C.

Frequentemente a expansão ocorreu pela influência de um monarca


poderoso que havia adotado e apoiado o budismo. Em meados do século
III a.C., por exemplo, o budismo expandiu-se através do norte da Índia
como resultado do aval pessoal do rei Ashoka. Esse grande construtor de
impérios não forçou seus súditos a adotarem a fé budista. Mas, ao postar
editais entalhados em pilares de ferro através do seu reino, estimulando
seu povo a levar uma vida ética e seguindo ele próprio esses princípios,
inspirou outros a adotarem os ensinamentos do Buda.

O rei Ashoka também “converteu” ativamente fora do seu reino, enviando


missões para terras distantes. Em algumas ocasiões, ele agiu sob o convite
de soberanos estrangeiros, tal como o rei Tishya do Sri Lanka. Em outras
ocasiões, por iniciativa própria, ele mandou monges como seus enviados.
Esses monges visitantes, contudo, não usavam de força para pressionar
os outros a se converterem, mas apenas tornavam disponíveis os
ensinamentos do Buda, permitindo que as pessoas escolhessem por si
próprias. Isso é evidenciado pelo fato de que nesses lugares, como no sul
da Índia e no sul da Birmânia, em pouco tempo o budismo criou raízes,
enquanto que noutros lugares, tal como nos estados gregos na Ásia
Ocidental, não há registro de qualquer impacto imediato.

Outros governantes religiosos, como o potentado mongol do século XVI,


Altan Khan, convidaram professores budistas para seus reinos e
declararam o budismo a crença oficial do país, para ajudar a unificar seus
povos e consolidar seus domínios. No processo, eles podem ter proibido
certas práticas de religiões indígenas não-budistas e até perseguido
aqueles que as seguiam, mas essas ações cruéis foram motivadas
principalmente por política. Esses governantes ambiciosos nunca
forçavam seus súditos a adotar formas budistas de crença ou veneração.
Isso não faz parte da crença religiosa.

Conclusão

Buda Shakyamuni pediu às pessoas que não seguissem seus


ensinamentos com base em fé cega, mas que primeiro os examinassem
cuidadosamente. Portanto, não deveria nem ser preciso dizer que não
devemos aceitar os ensinamento do Buda por coação de zelosos
missionários ou por decreto real. No início do século XVII, Neiji Toin
tentou subornar nômades mongóis orientais a seguirem o budismo,
oferecendo uma cabeça de gado a cada verso que memorizassem. Os
nômades reclamaram às autoridades e o autoritário professor foi punido
e exilado. De várias formas, o budismo conseguiu se espalhar
pacificamente através da Asia, levando uma mensagem de amor,
compaixão e sabedoria, ao mesmo tempo que se adaptava às
necessidades e disposições de diferentes pessoas.
Budismo no Mundo Contemporâneo
Dr. Alexander Berzin

O Budismo Theravada do Sul e Sudeste Asiático


Índia
O budismo começou a perder sua influência na Índia no século VII e
praticamente desapareceu no século XII, depois da queda do Império
Pala. A única exceção foi a região do extremo norte dos Himalaias.

O final do século XIX viu um renascimento do budismo no país quando o


líder budista cingalês Anagarika Dharmapala fundou a Sociedade Maha
Bodhi com a ajuda de acadêmicos ingleses. Seu principal propósito era
restabelecer os locais de peregrinação budista na Índia sendo muito bem
sucedido na construção de templos em todos os lugares sagrados, e todos
dotados de monges.

Nos anos 1950, Ambedkar começou um movimento neo-budista entre os


membros da casta dos intocáveis, e centenas de milhares de pessoas
converteram-se para evitar o estigma da casta.

Na última década houve um interesse crescente da classe média urbana.


Atualmente, os budistas correspondem a aproximadamente 2% da
população indiana.

Sri Lanka
O Sri Lanka tem sido um centro de aprendizado budista desde que o
budismo foi introduzido no país no século II A.C por Mahendra, filho do
imperador indiano Ashoka.

O Sri Lanka tem a mais longa história de continuidade do budismo, mas


também enfrentou longos períodos de declínio durante guerras e após o
século XVI quando a ilha foi colonizada e os missionários europeus
promoveram a fé cristã.

O budismo teve um forte renascimento no país no século XIX com a ajuda


de acadêmicos e teósofos britânicos, e por isso é frequentemente
caracterizado como um “budismo protestante”, que enfatiza o estudo
acadêmico, atividades pastorais dos monges para a comunidade leiga e
praticas de meditação para leigos. O Sri Lanka tornou-se independente
em 1948 e desde então o interesse pela religião e cultura budista foi
fortemente restaurado.
Hoje em dia, 70% dos Cingaleses são budistas, sendo que a maioria segue
a tradição

Theravada. Após 30 anos de guerra civil, o Sri Lanka está passando por
uma ascensão do nacionalismo budista, com algumas organizações, como
a Bodu Bala Sena (Força do Poder budista), promovendo revoltas
antimuçulmanas e ataques a líderes budistas moderados.

Myanmar (Birmânia)
Pesquisas históricas mostram que o budismo tem uma história de mais de
2000 anos na Birmânia, onde aproximadamente 85% da população se
identifica como budista.

Encontramos nesse país uma longa tradição que enfatiza o equilíbrio


entre a meditação e o estudo na comunidade monástica, enquanto a
população leiga mantém grande fé. Um dos budistas mais famosos da
Birmânia é S. N. Goenka, um professor leigo de técnicas de meditação
vipassana.

Desde que a Birmânia conseguiu sua independência da Grã Bretanha em


1948, tanto os governos civis quanto os militares promoveram o budismo
Theravada. Durante o regime militar, o budismo foi rigorosamente
controlado e monastérios que abrigavam dissidentes foram
rotineiramente destruídos. Monges estiveram com frequência na linha de
frente de manifestações políticas contra o regime militar como, por
exemplo, o Levante 8888 e a Revolução Açafrão em 2007.

Durante a última década, surgiram muitos grupos nacionalistas tentando


restabelecer o budismo em oposição ao Islã. Ashin Wirathu, o líder-
monge do Grupo 969, referiu-se a si mesmo como “O Bin Laden
Birmanês”, e propôs o boicote às lojas de propriedade muçulmana. Sob o
pretexto de “proteger o budismo”, a violência contra mesquitas e
muçulmanos tornou-se comum, com os contra-ataques muçulmanos
atiçando ainda mais fogo.

Bangladesh
Obudismo era a religião predominante na região até o século XI. Hoje em
dia, menos de 1% da população é budista e está concentrada na área das
montanhas de Chittagong, perto da Birmânia.

Existem quatro templos budistas em Daca, a capital, e numerosos templos


pelos vilarejos do leste. Entretanto, nas regiões afastadas da Birmânia a
prática e compreensão do budismo é muito pequena.
Tailândia
O budismo começou a ser introduzido nos impérios do Sudeste Asiático
no século V. O budismo Theravada predomina, com forte influência de
religiões locais e do hinduísmo, e também do budismo Mahayana. Ao
contrário do Sri Lanka e da Birmânia, nunca tiveram uma linhagem de
ordenação para mulheres. Quase 95% do país é budista.

A comunidade monástica tailandesa segue o modelo da monarquia do


país, possuindo, portanto, um Patriarca Supremo, bem como um Conselho
de Anciões, que são responsáveis por manter a pureza da tradição.
Existem comunidades monásticas que vivem nas florestas e também
aquelas que vivem nos vilarejos. Ambas são objeto de grande veneração e
apoio da comunidade leiga.

Os monges mendicantes das tradições da floresta vivem em florestas


isoladas e engajados em intensa meditação, seguindo rigorosas regras
monásticas. Os monges das vilas tem como atividades principais
memorizar textos e celebrar cerimônias para o público local. Mantendo a
crença cultural tailandesa em espíritos, esses monges também fornecem
amuletos de proteção ao leigos. Existe no país uma universidade budista
para monges, que principalmente treina monges para traduzir escrituras
budistas do Pali para o idioma Thai moderno.

Laos
O budismo chegou ao Laos durante o século VII e atualmente 90% da
população professa a crença budista misturada com o animismo.

Durante o regime comunista, as autoridades não reprimiram


inteiramente a religião, mas usaram a Sangha budista para promover
seus objetivos políticos. Com o passar do tempo, o budismo foi vítima de
forte repressão.

Desde os anos 1990, observou-se um ressurgimento do budismo, com a


maior parte dos laosianos demonstrando grande devoção e a maioria dos
homens entrando para um monastério ou templo por pelo menos um
tempo. Grande parte das famílias oferecem alimentos aos monges e
visitam os templos nos dias de lua cheia.

Camboja
O budismo Theravada é a religião oficial do país desde o século XIII e 95%
da população ainda é budista.
Durante os anos 1970, o Khmer Rouge tentou, e quase conseguiu, destruir
o budismo; em 1979 quase todos os monges haviam sido assassinados ou
exilados, e todos os templos e bibliotecas destruídos.

Após a reintegração do Príncipe Sihanouk como rei, as restrições foram


sendo lentamente suspensas e o interesse pelo budismo foi recuperado.
Os Cambojanos também creem fortemente em adivinhações, astrologia e
no mundo espiritual. Os monges budistas são frequentemente
curandeiros e participam em uma variada gama de cerimônias, desde
batismos até casamentos e funerais.

Vietnam
O budismo chegou ao Vietnam há 2000 anos, primeiro através da Índia e
depois, principalmente, pela China. Entretanto, começou a perder seu
prestígio entre as classes dominantes no século XV.

Ocorreu um renascimento no início do século XX mas, durante o período


republicano a polícia pró-católica antagonizou os budistas. Atualmente,
apenas 16% da população professa o budismo, que continua sendo a
maior religião do país.

O governo já está mais flexível com o budismo, mas os templos continuam


sem permissão para funcionarem independentes do Estado.

Indonésia and Malásia


O budismo chegou na região por volta do século II, viajando através das
rotas comerciais com a Índia. Durante grande parte de sua história, até o
século XV, quando o último império hindu-budista, Majapahit, caiu, o
budismo foi praticado juntamente com o hinduísmo. Mas no início do
século XVII o Islã já tinha suplantado completamente ambas religiões.

De acordo com a política panchashila do governo Indonésio, as religiões


oficiais devem crer em um Deus. Apesar do budismo não acreditar em um
Deus como indivíduo, é reconhecido graças a sua crença no Adibuda, o
“Primeiro Buda”, conforme mencionado no Kalachakra Tantra, que
floresceu na Índia milhares de anos antes. O Adibuda é o criador
onisciente de todas as aparências, além do tempo e de outras limitações
mas, apesar de ser uma figura simbólica, não é, efetivamente, um ser.
Adibuda é encontrado em todos os seres, como a natureza de clara luz da
mente. Sobre essa base, o budismo foi aceito, juntamente com o
islamismo, o hinduísmo, o confucionismo, o catolicismo e o
protestantismo.
Os monges do Sri Lanka vem tentando restabelecer o budismo Theravada
em Bali e outras partes da Indonésia, mas em escala muito limitada. Os
que demonstram interesse pelo budismo em Bali são os seguidores da
tradicional mistura balinesa de hinduísmo, budismo e a religião de
espíritos local. Em outras partes da Indonésia os budistas, que
correspondem a 5% da população, vêm da comunidade chinesa. Também
existem algumas seitas muito pequenas de budistas indonésios que são
um híbrido de aspectos Theravada, chineses e tibetanos.

Cerca de 20% da população Malaia é budista, mas formada


principalmente pela comunidade chinesa. Há cerca de meio século houve
um declínio no interesse pelo budismo e em 1961 a Sociedade Budista
Missionária foi fundada com o objetivo de espalhar o budismo. A última
década viu a explosão da prática do budismo, mesmo entre os jovens.
Atualmente existem numerosos centros Theravada, Mahayana e
Vajrayana com muito apoio e financiamento.

Budismo Mahayana do Leste da Asia


República Popular da China
O budismo teve papel proeminente nos últimos 2000 anos da história
chinesa e a China foi muito dinâmica na expansão de sua tradição budista
para o leste da Asia. No início da dinastia Tang (618-907) o budismo
chinês testemunhou uma era de ouro, com o florescimento da arte e da
literatura.

Já durante a revolução cultural dos anos 1960 e 1970, a maioria dos


monastérios budistas chineses foram destruídos e os monges, monjas e
professores mais bem treinados foram, em sua maior parte, executados
ou presos. A supressão do budismo foi ainda mais intensa no Tibete e na
Mongólia Interior. Entretanto, na medida em que a China foi passando por
reformas e abrindo-se para o resto do mundo, o interesse pelas religiões
tradicionais voltou a crescer no país. Novos templos foram construídos e
os antigos restaurados, mas a maioria das pessoas que entraram para os
monastérios eram pobres e de famílias com pouco estudo e os níveis de
educação formal permaneceram baixos, mesmo no ambiente monástico.
Muitos templos existem como meros pontos turísticos, com os monges
desempenhando apenas funções de cobradores de entrada e atendentes
dos templos.

Atualmente, um grande número de chineses se interessa pelo budismo,


sendo que a devoção ao budismo Tibetano vem aumentando
significativamente. Segundo estimativas recentes a população budista
chega a 20% e os templos por toda a China estão sempre cheios. Na
medida em quem as pessoas tornam-se mais ricas e ocupadas, muitas
tentam escapar do estresse voltando-se para o budismo chinês ou
tibetano. Os chineses da etnia Han são os que mais se interessam pelo
budismo do Tibete, principalmente porque um número cada vez maior de
lamas tibetanos ensinam no idioma chinês.

Taiwan, Hong Kong e Áreas Chinesas Ultramarinas


As tradições do budismo Mahayana que chegaram ao Leste Asiático por
influência da China são especialmente fortes em Taiwan e Hong Kong.

Taiwan tem uma comunidade de monges e monjas muito bem


estabelecida e generosamente sustentada pela comunidade leiga, além de
universidades budistas e programas budistas de assistência social. Hong
Kong também tem uma crescente comunidade monástica.

As comunidades budistas chinesas ultramarinas da Malásia, Singapura,


Indonésia, Tailândia e Filipinas enfatizam as cerimônias para o bem estar
dos ancestrais e para a prosperidade e riqueza pessoal. Existem muitos
médiuns que recebem oráculos budistas e que são consultados para
questões de saúde física e psicológica. Os empresários chineses, a
principal força propulsora da economia desses “Tigres Asiáticos”, fazem
generosas doações ao monges para que estes realizem rituais que lhes
traga sucesso financeiro. Taiwan, Hong Kong, Singapura e Malásia
também apresentam um número crescente de budistas tibetanos.

Coreia do Sul
O budismo chegou à península coreana no século III, vindo da China. Na
Coreia do Sul ainda é relativamente forte, apesar do número crescente de
ataques de organizações Cristãs Fundamentalistas. Na última década,
presenciou-se a destruição e danificação de um grande número de
templos por incêndios iniciados por tais grupos. 23% da população é
budista.

Japão
O budismo chegou ao Japão no século V, vindo da Coreia, e desde então
teve um papel proeminente na sociedade e cultura japonesas. Desde o
século XIII existe a tradição de sacerdotes casados e nenhuma proibição
de álcool, e esses sacerdotes foram gradualmente substituindo os monges
celibatários. Historicamente, algumas tradições são extremamente
nacionalistas, acreditando que o Japão seja um paraíso budista. Na era
moderna, alguns cultos apocalípticos intitulam-se budistas, apesar de não
terem quase nada a ver com os ensinamentos do Buda Shakyamuni.
Cerca de 40% da população japonesa identifica-se como budista, sendo
que a maioria mistura crenças budistas com as da religião original do
país, o shintoísmo. Nascimentos e casamentos são celebrados conforme
os costumes do shintoísmo, enquanto as práticas funerárias são
realizadas por sacerdotes budistas.

Os templos japoneses são lindamente mantidos tanto para os visitantes


quanto para os turistas, embora muitos sejam extremamente comerciais e
o estudo e a prática estejam severamente enfraquecidos.

Uma das maiores organizações budistas, o Soka Gakkai, tem origem no


Japão.

Budismo Mahayana da Ásia Central


Tibete
O budismo chegou ao Tibete já no século VII. Ao longo dos séculos, o
patrocínio real e o apoio da aristocracia permitiu que se enraizasse em
vários aspectos da vida tibetana.

Após a ocupação do Tibete pela República Popular da China, o budismo


foi severamente reprimido. Quase todos os 6.500 monastérios foram
destruídos, sobrando apenas 150, e a maioria da população monástica
instruída foi executada ou morreu em campos de concentração. Após a
Revolução Cultural, os monastérios estão sendo reconstruídos
principalmente pelo esforço de ex-monges, da população local e dos
tibetanos em exílio. O governo ajudou a reconstruir apenas dois ou três
monastérios.

O partido comunista chinês é ateu, mas permite cinco “religiões


reconhecidas”, uma das quais é o budismo. O governo afirma não intervir
em assuntos religiosos, mas após o reconhecimento de um menino
tibetano, pelo Dalai Lama, como a reencarnação do Panchen Lama, ele e
sua família imediatamente sumiram e logo depois o governo chinês
lançou sua própria busca, encontrando um menino mestiço de chinês com
tibetano. O Panchen Lama original, reconhecido pelo Dalai Lama, nunca
mais foi encontrado.

Atualmente, cada monastério e templo tem seu próprio grupo-de-


trabalho do governo — policiais a paisana que estão lá “para ajudar” em
várias tarefas. Isso basicamente significa que têm a função de espionar e
relatar as atividades da comunidade monástica. Algumas vezes esses
grupos-de-trabalho são tão numerosos quanto a própria população
monástica. Além da interferência do governo, um dos maiores desafios do
budismo no Tibete é a falta de professores qualificados. Monges, monjas e
a população leiga estão ávidos por aprender, mas a maioria dos
professores tem um treinamento muito limitado. Na década passada, o
governo lançou uma “universidade” budista perto de Lhasa que funciona
como uma escola de treinamento de jovens tulkus, onde aprendem a
língua tibetana, caligrafia, medicina e acupunctura, bem como alguma
filosofia budista.

A era digital tem aproximado muitos jovens tibetanos do budismo. Muitos


deles tornam-se membros de grupos Wechat e Weibro, que compartilham
ensinamentos e histórias budistas, e aprender mais sobre budismo é visto
como uma forma de fortalecer sua identidade como “verdadeiros
tibetanos”.

Turquestão do Leste
A maioria dos monastérios dos Mongóis Calmucos que vivem no
Turquestão do Leste (Xinjiang) foram destruídos durante a Revolução
Cultural. Muitos já foram reconstruídos, mas existe uma falta de
professores ainda maior do que no Tibete. Os jovens monges sentem-se
muito desencorajados pela falta de estrutura para estudarem e acabam
deixando a região.

Mongólia Interior
A pior situação para os seguidores do budismo tibetano sob controle da
República Popular da China é na Mongólia Interior. A maior parte dos
monastérios da metade oeste foram destruídos durante a Revolução
Cultural. Na parte leste, que anteriormente fazia parte da Manchúria, eles
já haviam sido destruídos pelas tropas de Stalin no final da Segunda
Guerra Mundial, quando os russos ajudaram a libertar o norte da China
do controle dos japoneses. Dos 700 monastérios, só restaram 27.

Desde os anos 1980, foram empreendidos muitos esforços no sentido de


restabelecer e reconstruir monastérios, que são frequentados não apenas
por Mongóis, mas também por chineses da etnia Han.

Mongólia
Na Mongólia havia milhares de monastérios, mas foram parcial ou
totalmente destruídos em 1937 sob o comando de Stalin. Em 1946
reabriram um monastério em Ulaan Baatar e na década de 1970 abriram
uma faculdade para o treinamento de monges. Entretanto, o currículo de
cinco anos foi altamente resumido e foi dada uma forte ênfase ao estudo
do marxismo. Os monges foram autorizados a realizar apenas um
pequeno número de rituais para a população.
Desde a queda do comunismo em 1990, houve um forte renascimento do
budismo com a ajuda dos tibetanos em exílio. Muitos novos monges
foram mandados para a Índia para treinamento, e mais de 200
monastérios foram reconstruídos em escala moderada.

Um dos mais sérios problemas que o budismo vem enfrentando é a


abordagem intensa de missionários mórmons e batistas cristãos que
chegam com o pretexto de ensinar inglês. Eles oferecem dinheiro e ajuda
às famílias, prometendo mandar seus filhos para estudarem nos Estados
Unidos caso se convertam. Esses missionários também se utilizam de
belos livretes sobre Jesus na linguagem coloquial Mongol. A maioria dos
templos budistas simplesmente não consegue competir, por limitações
financeiras. Com o número cada vez maior de jovens convertendo-se ao
cristianismo, as organizações budistas começaram a distribuir
informação sobre o budismo no idioma coloquial, através de materiais
impressos e programas de televisão e rádio. Atualmente cerca de 55% da
população é budista.

Tibetanos no Exílio
Entre as tradições tibetanas da Ásia Central, a mais forte está com a
comunidade de refugiados tibetanos que cerca Sua Santidade o Dalai
Lama — exilado na Índia desde a 1959, quando se deu a revolta popular
tibetana contra a ocupação militar chinesa.

Os tibetanos ergueram no exílio a maioria dos principais monastérios do


Tibete e mantém o tradicional programa completo de treinamento para
monges acadêmicos, mestres de meditação e professores. Eles contam
com estruturas de ensino, pesquisa e publicações para ajudar na
preservação de todos os aspectos de cada escola da tradição budista
tibetana.

Os exilados tibetanos têm ajudado na revitalização do budismo na região


dos Himalaias indianos, nepaleses e butaneses, incluindo o Ladakh e o
Sikkim, mandando para lá professores e retransmitindo as linhagens.
Muitos monges e monjas dessas regiões estão sendo educados e treinados
nos monastérios dos refugiados tibetanos.

Nepal
Apesar da maioria da população nepalesa ser hindu, a influência cultural
budista ainda é evidente no país onde nasceu o Buda. Grupos étnicos
como os Newars, Gurungs e Tamangs praticam o tradicional budismo
nepalês. Os budistas representam 9% da população.
Seguindo uma mistura de budismo com hinduísmo, o Nepal é a única
sociedade budista que mantém distinção de casta dentro dos
monastérios. Nos últimos 500 anos observou-se o surgimento de monges
casados, e uma casta hereditária que tornou-se guardiã de templos e líder
de rituais.

Rússia
Buriácia, Tuva e Calmúquia são tradicionalmente as três regiões que
seguem o budismo tibetano na Rússia. Todos os monastérios dessas áreas
foram totalmente destruídos por Stalin no final dos anos 1930, exceto
três deles na Buriácia, que só foram danificados. Na década de 1940 Stalin
reabriu dois monastérios simbólicos na Buriácia, sob rigorosa vigilância
da KGB; os monges não podiam usar suas vestes tradicionais e
colocavam-nas apenas como uniformes durante o dia para realizar
rituais.

Depois da queda do comunismo, houve um forte renascimento do


budismo nas três regiões. Os tibetanos em exílio mandaram professores e
os novos monges são treinados nos monastérios tibetanos na Índia. Mais
de 20 monastérios foram restabelecidos na Buriácia, Tuva e Calmúquia

Países Que Não São Budistas


Um conhecimento mais detalhado do budismo chegou à Europa do século
XIX, devido à colonização europeia de alguns países budistas e ao
trabalho de missionários e acadêmicos cristãos. Por volta da mesma
época, imigrantes chineses e japoneses começaram a construir templos
na América do Norte.

Todas as formas de budismo são encontradas pelo mundo, em países que


não são tradicionalmente budistas. Dois grandes grupos estão envolvidos:
imigrantes asiáticos e praticantes não asiáticos. Os imigrantes asiáticos,
particularmente nos Estados Unidos, Austrália e, em até certo ponto,
Europa, têm muitos templos de suas próprias tradições. A ênfase desses
templos está em promover práticas devocionais e proporcionar um
centro comunitário para ajudá-los a preservar sua identidade cultural.
Existem, atualmente, mais de quatro milhões de budistas nos Estados
Unidos e mais de dois milhões na Europa.

Milhares de “Centros de Dharma” budistas, de todas as tradição, são


atualmente encontrados em mais de 100 países pelo mundo, em todos os
continentes. A maior parte desses centros tibetanos, Zen e Theravada são
frequentados por pessoas que não tem origem asiática e enfatizam a
meditação, o estudo e as práticas ritualísticas. Os professores são tanto
ocidentais quanto orientais de países budistas. Os países com o maior
número de centros são os Estados Unidos, França e Alemanha. Muitos
estudantes sérios vão à Ásia para aprofundar seus estudos. Além disso,
existem programas de estudos budistas em muitas universidades pelo
mundo e um diálogo crescente com outras religiões, com a ciência, com a
psicologia e com a medicina. Sua Santidade o Dalai Lama tem um papel
significativo nesse movimento.
Visão Budista das Outras Religiões
Dr. Alexander Berzin

Assim como existem bilhões de pessoas nesse planeta, também existem bilhões de
predisposições e inclinações diferentes. Do ponto de vista budista, é necessário uma vasta
gama de religiões para satisfazer as várias necessidades das diferentes pessoas. O Budismo
reconhece que todas as religiões compartilham o mesmo objetivo de trabalhar para o bem-
estar da humanidade. Com isso, budistas e cristãos estabeleceram programas de intercâmbio
para aprender uns com os outros, em um clima de cooperação e respeito mútuos.

Já que nem todos têm as mesmas inclinações e interesses, o Buda ensinou vários
métodos para diferentes pessoas. Tendo isso em mente, Sua Santidade o Dalai
Lama disse que é maravilhoso que existam tantas religiões diferentes no mundo.
Assim como uma comida não é atraente para todos, também uma religião ou um
grupo de crenças não irá satisfazer as necessidades de todos. Deste modo, é
extremamente benéfico que uma variedade de diferentes religiões estejam
disponíveis para serem escolhidas. Ele as acolhe e se alegra com isso.

Nos dias de hoje, há um crescente diálogo, baseado em respeito mútuo, entre os


mestres budistas e os líderes de outras religiões. O Dalai Lama, por exemplo,
encontra-se frequentemente com o Papa. Em Assis, na Itália, em Outubro de 1986,
o Papa convidou os líderes de todas as religiões do mundo para uma grande
assembleia. Nela estiveram presentes cerca de cento e cinquenta representantes. O
Dalai Lama estava sentado próximo do Papa e teve a honra de fazer o primeiro
discurso. Na conferência, os líderes espirituais discutiram tópicos comuns a todas
as religiões, tais como a moralidade, o amor e a compaixão. As pessoas ficaram
muito encorajadas pela cooperação, harmonia e respeito que os vários líderes
religiosos sentiam uns pelos outros.

Claro que existirão diferenças se discutirmos metafísica e teologia. Não há maneira


de se escapar às diferenças. Contudo, isso não significa que tenhamos necessidade
de fazer o debate com a atitude de “o meu pai é mais forte que o seu pai”. Isso seria
muito infantil. É mais benéfico olharmos para os aspectos que existem em comum.
Todas as religiões do mundo estão procurando melhorar a situação da
humanidade e tornar a vida melhor, ensinando as pessoas a seguirem um
comportamento ético. Todas elas nos ensinam a não ficarmos totalmente presos
pelo lado material da vida, mas pelo menos mantermos um equilíbrio entre a
procura do progresso material e do progresso espiritual.

Seria muito benéfico se todas as religiões trabalhassem em conjunto para


melhorarem a situação do mundo. Precisamos não apenas de progresso material,
como também de progresso espiritual. Se enfatizarmos apenas o aspecto material
da vida, a construção de uma bomba mais poderosa para matar a todos seria um
objetivo desejável. Se, por outro lado, pensarmos de uma maneira humanista ou
espiritual, ficaremos conscientes do medo e de outros problemas que surgem da
acumulação de armas de destruição em massa. Se nos desenvolvermos apenas
espiritualmente e não tivermos em conta o lado material, passaremos fome e isso
também não será nada bom. Nós precisamos de um equilíbrio.

Um dos aspectos da interação entre as religiões mundiais é que elas estão


compartilhando umas com as outras algumas das suas especialidades.
Consideremos, por exemplo, a interação entre os budistas e os cristãos. Muitos
cristãos contemplativos estão interessados em aprender os métodos de
concentração e meditação budistas. Vários sacerdotes, abades, monges e freiras
católicos têm ido a Dharamsala, na Índia, para aprenderem esses métodos, a fim de
os levarem para as suas próprias tradições. Vários budistas ensinaram em
seminários católicos. Eu também já fui ocasionalmente convidado para ali ensinar
a como meditar, como desenvolver a concentração e o amor. O cristianismo ensina-
nos a amar a todos, mas não explica em pormenor como fazê-lo. O budismo é rico
em métodos para desenvolver o amor. A religião cristã, nos seus níveis mais altos,
está aberta a aprender estes métodos budistas. Isso não significa que os cristãos
vão todos se tornar budistas – ninguém está convertendo ninguém. Esses métodos
podem ser adaptados dentro da sua própria religião, para ajudá-los a serem
melhores cristãos.

Da mesma forma, muitos budistas estão interessados em aprender serviços sociais


com o cristianismo. Muitas tradições cristãs salientam que os seus monges e freiras
se envolvem com o ensino, o trabalho hospitalar, o cuidado com idosos, orfãos e
assim por diante. Apesar de alguns países budistas terem desenvolvido esses
serviços sociais, nem todos contudo o fizeram por várias razões sociais e
geográficas. Os budistas podem aprender o serviço social com os cristãos. Sua
Santidade o Dalai Lama é muito aberto a isso. Isso não significa que os budistas
estejam se tornando cristãos. É ótimo que cada lado possa aprender com o outro e
suas experiências particulares. Dessa maneira, é possível haver um fórum aberto
entre as religiões do mundo, baseado no respeito mútuo.

Resumo

Até o presente momento, a interação entre as religiões ocorre apenas no alto


escalão dos líderes religiosos — onde as pessoas parecem estar mais abertas e ter
menos preconceito. Nos níveis mais baixos, as pessoas são mais inseguras e
desenvolvem uma mentalidade de time de futebol — onde a competição e a briga
são a norma. Esse tipo de atitude é muito triste, quer ela apareça entre diferentes
religiões ou entre diferentes tradições budistas. O Buda ensinou métodos muito
variados, e todos funcionam harmoniosamente para ajudar uma grande variedade
de pessoas. Portanto, é importante respeitarmos todas as tradições, tanto budistas
quanto das outras religiões do mundo.
Como Estudar e Praticar os Ensinamentos Budistas
Os ensinamentos de Buda são profundos, exigem esforço e uma mente aberta
para entender. Reflexão e meditação sobre cada ponto dos ensinamentos nos
permitirá aplicá-los em nossos cotidianos.

Conselho antes de Começar no


Caminho Budista
Dr. Alexander Berzin

O budismo ensina medidas preventivas e práticas para evitar dificuldades em


tratar os desafios da vida cotidiana. Ele observa a fonte de nossos problemas
em nossos pensamentos confusos e nossas atitudes irrealistas que dirigem
nossos aborrecimentos emocionais e comportamento compulsivo. Através da
meditação para opor nossas formas disfuncionais habituais de pensar e agir e
com inspiração de outros que se tornaram mais amáveis e positivos, podemos
transformar nossas mentes para melhorar a qualidade de nossas vidas no
cotidiano.

Se quisermos compreender do que se trata o budismo e como se aplica a


nossas vidas diárias, um bom lugar para olhar é a conotação do termo
tradicional usado para os ensinamentos e a prática: o Dharma. “Dharma”
é uma palavra em sânscrito que significa literalmente “uma medida
preventiva.” É algo que podemos fazer para evitar problemas. Se
compreendermos isto, compreenderemos a intenção atrás de tudo que
Buda ensinou.

Para ter qualquer interesse em tomar medidas preventivas, precisamos


ver que há problemas na vida. Para tanto é de fato necessário muita
coragem. Muitas pessoas não levam a si mesmos ou a suas vidas a sério.
Trabalham duro o dia inteiro e então se distraem com entretenimento e
coisas do gênero nas noites porque estão cansados. Não olham realmente
internamente para os problemas em suas vidas. Mesmo se olharem para
seus problemas, não querem realmente reconhecer que suas vidas não
são satisfatórias porque isso seria muito deprimente. Realmente é preciso
ter coragem para verificar a qualidade de nossas vidas e admitir
honestamente quando a achamos insatisfatória.
Situações Insatisfatórias e Suas Causas

Naturalmente, há níveis de insatisfação. Nós poderíamos dizer: “Às vezes


eu estou de mau humor e às vezes as coisas vão bem, mas tudo bem.
Assim é a vida.” Se estivermos satisfeitos com isso, tudo bem. Se tivermos
alguma esperança de podermos tornar as coisas um pouco melhores, isso
nos leva a buscar uma maneira de fazê-lo. A fim de encontrar métodos
para melhorar a qualidade de nossas vidas, temos que identificar a fonte
de nossos problemas. A maioria das pessoas olha externamente para a
fonte de seus problemas. “Eu estou tendo dificuldades no meu
relacionamento com você por causa de você! Você não está agindo da
maneira que eu gostaria que você agisse.” Também podemos
responsabilizar a situação política ou econômica pelas nossas
dificuldades. De acordo com algumas escolas da psicologia, podemos
olhar para eventos traumáticos em nossa infância como sendo o que nos
conduziu a ter os problemas que temos. É muito fácil por a culpa da nossa
infelicidade nos outros. Colocar a culpa nas pessoas ou em fatores sociais
ou econômicos não conduz realmente a uma solução. Se possuímos essa
estrutura conceitual, talvez possamos perdoar e isso talvez traga algum
benefício, mas a maioria das pessoas conclui que apenas fazer isso não
lhes aliviou de seus problemas psicológicos e infelicidade.

O budismo diz que embora as outras pessoas, a sociedade e assim por


diante contribuam para nossos problemas, elas não são realmente a fonte
mais profunda deles. Para descobrir a fonte mais profunda de nossas
dificuldades temos que olhar para dentro. Afinal de contas, se nos
sentimos infelizes na vida é uma resposta a nossa situação. Diferentes
pessoas respondem a uma mesma situação de forma diferente. Mesmo se
apenas nos observarmos, vemos que reagimos diferente às dificuldades
de um dia para o outro. Se a fonte do problema fosse apenas a situação
externa, deveríamos reagir da mesma maneira o tempo inteiro, porém
não o fazemos. Há os fatores que afetam como reagimos, como ter um
bom dia de trabalho, mas estes são somente fatores contribuintes
superficiais. Não chegam profundamente o bastante.

Se olharmos, começamos a ver que nossas atitudes para a vida, nós


mesmos e nossas situações contribuem muito para como nos sentimos.
Por exemplo, não sentimos pena de nós mesmos o tempo inteiro, como
quando estamos tendo um bom dia, mas basta não termos um bom dia,
que o sentimento de autopiedade reaparece. As atitudes básicas que
temos para com a vida moldam a forma como experimentamos a vida. Se
examinarmos mais profundamente, veremos que nossas atitudes estão
baseadas na confusão.
Confusão Como a Fonte dos Problemas

Se explorarmos a confusão, vemos que um aspecto dela é a confusão


sobre a causa e o efeito comportamental. Estamos confusos sobre o que
fazer ou dizer e sobre o que acontecerá em conseqüência. Podemos estar
muito confusos sobre que tipo de trabalho buscar, se devemos casar, se
devemos ter filhos, etc. Se começarmos um relacionamento com alguém,
qual será o resultado? Nós não sabemos. Nossas idéias sobre o que
acontecerá após nossas escolhas são realmente somente fantasias
baseadas em pensamentos desejosos ou medo e paranóia. Talvez
achemos que se tivermos um relacionamento profundo com determinada
pessoa, seremos felizes para sempre, como em um conto de fadas. Ou
podemos estar receosos de que nos abandonarão e assim mantemos a
distância emocional. Se estivermos tristes em uma situação, pensamos
que gritar irá melhorá-la. Temos uma ideia muito confusa sobre como a
outra pessoa irá responder ao que fazemos. Pensamos que se gritarmos e
falarmos o que pensamos, nos sentiremos melhor e tudo ficará bem, mas
tudo não ficará bem. Nós queremos saber o que acontecerá.

Desesperadamente consultamos a astrologia ou jogamos moedas para


O livro das mudanças, o I Ching. Por que fazemos esse tipo de coisa?
Queremos estar no controle do que acontece.

O budismo diz que um nível mais profundo de confusão é a confusão


sobre como nós e os outros existimos e sobre como o mundo existe.
Estamos confusos sobre todo o assunto do controle. Pensamos que é
possível estar totalmente no controle do que nos acontece. Por exemplo,
podemos pensar que se não deixássemos ninguém mais usar nosso
computador, ele nunca deixará de funcionar. Por causa disso, nos
frustramos quando as coisas não acontecem como esperamos. Não é
possível sempre estar no controle. Isto não é a realidade. A realidade é
muito complexa. Muitas coisas influenciam o que acontece, não apenas o
que fazemos. Não é que estejamos totalmente fora do controle ou sejamos
manipulados por forças externas. Contribuímos ao que acontece, mas não
somos o único fator que determina o que acontece.

Por causa de nossa confusão e insegurança, agimos frequentemente


destrutivamente sem mesmo saber que é um comportamento destrutivo.
Isto porque estamos sob a influência de emoções perturbadoras, de
atitudes perturbadoras, e da compulsividade de nosso comportamento
habitual. Não somente agimos de forma destrutiva com os outros; agimos
primariamente de formas autodestrutivas. Ou seja, criamos mais
problemas para nós mesmos. Se quisermos menos problemas ou
liberação de nossos problemas, ou mais além, a habilidade de ajudar os
outros a sair também de seus problemas, necessitamos reconhecer a
fonte de nossas limitações.

Livrar-nos da Confusão

Digamos que podemos reconhecer que a fonte de nossos problemas é


confusão. Isto não é demasiado difícil. Alguns chegam ao ponto de dizer:
“Sou realmente confuso. Eu estraguei tudo.” E? Antes de gastar dinheiro
neste curso ou naquele retiro precisamos considerar muito seriamente se
estamos convencidos realmente que é possível livrar-nos de nossa
confusão. Se não pensarmos que é possível livrar-se da confusão, o que
estamos tentando fazer? Se formos somente com a esperança de que pode
ser possível acabar com nossa confusão, não é muito estável. É somente
um pensamento desejoso.

Podemos pensar que a liberdade poderia vir de diversas maneiras.


Podemos pensar que alguém nos salvará. Poderia ser uma figura mais
elevada, divina, tal como Deus, e assim nos transformamos em fiéis
renascidos. Alternativamente, podemos buscar um professor espiritual,
um parceiro, ou alguém para nos salvar de nossa confusão. Em tais
situações é fácil tornar-se dependente da outra pessoa e comportar-se
imaturamente. Estamos frequentemente tão desesperados em encontrar
alguém para nos salvar, que ficamos cegos na escolha. Talvez escolhamos
alguém que não está livre da própria confusão e que, por causa das suas
próprias atitudes e emoções perturbadoras, tira vantagem da nossa
ingênua dependência. Esta não é uma forma estável de proceder. Não
devemos buscar por um professor espiritual ou por um relacionamento
para limpar toda a nossa confusão. Devemos limpar a nossa própria
confusão.

Uma relação com um professor espiritual ou com um parceiro pode


prover circunstâncias que ajudem, mas apenas quando o relacionamento
é saudável. Quando for insalubre somente piora tudo. Conduz a mais
confusão. No início, podemos estar em um profundo estado de negação,
achando que o professor é perfeito, que o parceiro é perfeito, mas
eventualmente nossa ingenuidade se desgasta. Quando começamos a ver
as fraquezas na outra pessoa e que a outra pessoa não vai nos salvar de
toda a nossa confusão, temos uma pane. Sentimo-nos traídos. Nossa fé e
nossa confiança foram traídas. É um sentimento terrível! É muito
importante tentar evitar isso desde o começo. Necessitamos tomar
medidas preventivas. Necessitamos compreender o que é possível e o que
não é. O que um professor espiritual pode fazer e o que não pode?
Tomamos medidas preventivas para evitar uma pane.
Precisamos desenvolver um estado de mente livre de confusão. O oposto
da confusão, compreensão, impedirá que a confusão brote. Nosso
trabalho no budismo é sermos introspectivos e atentos às nossas atitudes,
às nossas emoções perturbadoras e aos nossos comportamentos
impulsivos, compulsivos e neuróticos. Isso significa estarmos dispostos a
ver em nós mesmos coisas que não são tão legais, coisas que
preferiríamos negar. Quando notamos coisas que estão causando nossos
problemas ou são sintomas de nossos problemas, precisamos aplicar
oponentes para superá-las. Tudo isso está baseado no estudo e na
meditação. Temos que aprender a identificar emoções e atitudes
perturbadoras e de onde vem.

Meditação

Meditação significa que praticamos aplicando os vários oponentes numa


situação controlada de maneira a nos familiarizarmos em como aplicá-los,
para que possamos fazê-lo na vida real. Por exemplo, se ficamos irritados
com os outros quando não agem da maneira que gostaríamos, na
meditação pensamos sobre essas situações e tentamos olhá-las de uma
perspectiva diferente. A outra pessoa está agindo em maneiras
discordantes por muitas razões diferentes. Ele ou ela não está agindo
necessariamente de forma implicante porque não nos ama. Na meditação
tentamos dissolver tais atitudes: “Meu amigo não me ama mais porque
não me ligou.”

Se pudermos praticar através desse tipo de situação com um estado


mental mais relaxado, compreensivo e paciente, então se a pessoa não
nos liga por uma semana, não ficamos tão chateados. Quando começamos
a ficar chateados lembramo-nos de que essa pessoa é provavelmente
muito ocupada e é egocêntrico pensar que somos a pessoa mais
importante na sua vida. Isto nos ajuda a acalmar nossa mágoa emocional.

A Prática Budista É uma Ocupação em Tempo Integral

A prática budista não é um hobby. Não é algo que fazemos como um


esporte ou para relaxar. A prática budista é um trabalho em tempo
integral. Nossa tarefa é trabalhar em nossas atitudes para com tudo em
nossas vidas. Se estamos trabalhando para desenvolver amor por todos
os seres senscientes, por exemplo, precisamos aplicar isso em nossa
família. Muitas pessoas sentam em seus quartos meditando no amor, mas
não conseguem dar-se bem com seus pais ou seus parceiros. Isto é triste.
Evitando Extremos

Ao tentar aplicar os ensinamentos budistas em situações de nossa vida


real em casa ou no trabalho, devemos evitar extremos. Um pólo do
extremo é colocar a culpa inteira sobre outros. O outro extremo está em
por a culpa inteira sobre nós mesmos. O que acontece na vida é muito
complexo. Ambos os lados contribuem: outros contribuem; nós
contribuímos. Podemos tentar fazer os outros mudarem seus
comportamentos e posturas, mas todos sabemos por experiência própria
que isso não é algo fácil, especialmente se nos aproximamos de uma
maneira superior e sagrada, acusando o outro de ser um pecador. É muito
mais fácil tentar mudar a nós mesmos. Apesar de podermos fazer
sugestões aos outros, se eles são receptivos e se não vão se tornar mais
agressivos por causa da nossa sugestão, o principal trabalho é sobre nós
mesmos.

Ao trabalhar em nós mesmos, temos de ter cuidado com outro par de


extremos: sermos totalmente preocupados com nossos sentimentos e não
estarmos atentos a eles de maneira alguma. O primeiro é uma
preocupação narcisista. Estamos somente preocupados em como nos
sentimos. Tendemos a ignorar o que outros estão sentindo. Tendemos a
pensar que o que sentimos é mais importante do que o que outras
pessoas estão sentindo. Por outro lado, podemos estar totalmente fora de
contato com nossos sentimentos ou não sentir nada, como se nossas
emoções tivessem sido abatidas com Novocaína. Evitar estes extremos
requer um contrapeso delicado. Não é assim fácil.

Se estamos sempre observando a nós mesmos enquanto com os outros,


cria-se uma dualidade imaginada, nós mesmos e aquilo que estamos
sentindo e fazendo, e então não nos interessamos em nos relacionar com
alguém ou estar com alguém. A verdadeira arte é relacionar-se e agir de
uma maneira natural e sincera, enquanto parte da nossa atenção está na
nossa motivação e atitude. Precisamos tentar fazer isso, entretanto, sem
que seja uma maneira de agir descontínua, de maneira que não estejamos
presentes com a outra pessoa. Se estivermos verificando nossa motivação
e sentimentos durante o processo de se relacionar com alguém, às vezes é
útil dizer a pessoa. Entretanto é muito narcisista sentir que temos que
dizer a pessoa. Frequentemente, os outros não estão interessados no que
estamos sentindo. É muito arrogante sentir que querem saber. Quando
notamos que estamos começando a agir de forma egoísta, podemos
apenas parar. Não temos que anunciar isso.

Outro conjunto de extremos é que somos totalmente maus ou totalmente


bons. Se colocarmos muita ênfase nas nossas dificuldades, nossos
problemas e nossas emoções perturbadoras, poderemos começar a sentir
que somos pessoas más. Isso vira culpa rapidamente. “Eu deveria
praticar. Se eu não o fizer, eu sou uma pessoa má.” Esta é uma base muito
neurótica para a prática.

Também precisamos evitar o outro extremo, que é por muita ênfase nos
nossos lados positivos. “Nós somos completamente perfeitos. Nós somos
todos budas. Tudo é maravilhoso.” Isso é muito perigoso, pois pode
implicar que não precisamos desistir de nada, não precisamos parar
nenhuma negatividade, pois tudo que precisamos fazer é ver nossas
qualidades básicas boas. “Eu sou maravilhoso. Eu sou perfeito. Eu não
preciso parar meu comportamento negativo. Já sou um buda!”
Precisamos de equilíbrio. Se nos sentirmos muito para baixo, precisamos
nos lembrar de nossas habilidades de sobrepujar nossos defeitos e nos
tornar budas; se estivermos blasé demais, devemos dar ênfase aos nossos
lados negativos.

Assumindo a Responsabilidade

Basicamente, precisamos assumir a responsabilidade por nosso


desenvolvimento e por nos livrar de nossos problemas. Naturalmente,
necessitamos de ajuda. Não é fácil fazer isso sozinhos. Podemos receber
ajuda de professores espirituais ou de nossa comunidade espiritual,
pessoas que pensam como nós e que estão trabalhando consigo mesmas e
não culpando uns aos outros por seus problemas. É por isso que num
relacionamento é importante compartilhar o mesmo tipo de atitude,
particularmente a de não culpar o parceiro pelos problemas que surgem.
Se ambos estiverem responsabilizando um ao outro, não funciona de
forma alguma. Se somente um parceiro estiver trabalhando nele ou nela e
o outro somente culpar, também não funciona. Se já estivermos em uma
relação em que a outra pessoa está acusando, porém estamos procurando
onde contribuímos, não significa que tenhamos que terminar a relação,
mas é mais difícil. Temos que tentar evitar sermos os mártires neste
relacionamento: “Eu estou passando por tudo isso! É tão difícil!” A coisa
toda pode ser muito neurótica.

Recebendo Inspiração

O caminho budista não é fácil. Diz respeito a lidar com a feiúra da vida.
Precisamos de algum tipo de força para continuar; precisamos de fontes
estáveis da inspiração. Se nossa fonte de inspiração são professores
contando estórias de milagres fantásticos e coisas do gênero, sobre eles
mesmos ou sobre outros na história do budismo, não será uma fonte de
inspiração muito estável. Certamente pode ser muito emocionante, mas
temos que examinar como isto nos está afetando. Em muitas pessoas, isso
reforça um mundo de fantasia no qual estamos desejando ser salvos por
milagres. Imaginamos que algum grande mágico vai nos salvar com seus
poderes milagrosos ou que vamos de repente desenvolver a capacidade
de operar milagres. Temos que ser muito cautelosos a respeito destas
estórias fantásticas. Podem inspirar nossa fé e assim por diante, e isso
pode ser útil, mas não é uma base estável da inspiração. Precisamos de
uma base estável.

O exemplo perfeito é o do próprio Buda. Buda não tentou “inspirar” as


pessoas ou impressioná-las contando histórias fantásticas. Não saia por aí
se vangloriando e abençoando pessoas ou coisas do gênero. A analogia
que Buda usava, repetida por todos os ensinamentos budistas, é que um
buda é como o sol. O sol não tenta aquecer as pessoas. Naturalmente, da
maneira que o sol é, ele traz espontaneamente o calor a todos. Apesar de
nos empolgarmos ao ouvir uma estória fantástica ou por sermos tocados
na cabeça por uma estátua ou receber uma fita vermelha para amarrar
em volta do pescoço, essas não são coisas estáveis. Uma fonte estável de
inspiração é a maneira espontânea e natural do professor ser como
pessoa; seu caráter, a maneira como ele ou ela é em conseqüência da
prática dos ensinamentos budistas. Isto que é inspirador, não algum ato
que a pessoa usa para nos entreter. Embora isto possa não ser tão
emocionante quanto uma história fantástica, dar-nos-á um sentido
estável de inspiração.

À medida que progredimos, podemos obter inspiração de nosso próprio


progresso, não por ganhar poderes miraculosos, mas pela lenta mudança
do nosso caráter. Os ensinamentos enfatizam sempre o regozijo em
nossos próprios atos positivos. É muito importante recordar que o
progresso nunca é linear. Não fica somente melhor a cada dia. Uma das
características da vida é que os humores sobem e descem até que
estejamos completamente livres de problemas incontrolavelmente
recorrentes, o que é um estado incrivelmente avançado. Devemos ter
certeza que nos sentiremos, às vezes, felizes e, às vezes, infelizes. Às vezes
somos capazes de agir de formas positivas e outras vezes nossos hábitos
neuróticos serão sobrepujantes. Haverão altos e baixos. Geralmente,
milagres não acontecem.

Os ensinamentos sobre evitar as oito preocupações mundanas enfatizam


não ficar orgulhosos se as coisas vão bem e não entrar em depressão se as
coisas vão mal. Assim é a vida. Precisamos ver os efeitos em longo prazo,
não os efeitos em curto prazo. Se estivermos praticando por cinco anos,
por exemplo, comparando aos cinco anos atrás, há muito progresso.
Mesmo que às vezes fiquemos chateados, se achamos que somos capazes
de lidar com as situações com uma mente e coração mais calmos e claros,
isso indica que fizemos algum progresso. Isto é inspirador. Não é
dramático, embora quiséssemos que fosse dramático e nos empolgarmos
com shows dramáticos. É inspiração estável.

Sendo Práticos

Precisamos ser bastante práticos e ter os pés no chão. Quando fazemos


práticas de purificação, por exemplo, é importante não pensar nisto como
uma figura externa, um grande santo, perdoando os nossos pecados. No
budismo não há santos que nos salvarão e nos abençoarão através de
purificação. Este não é absolutamente o processo. O que nos purifica é o
fato de que nossas mentes são naturalmente puras. Não são manchadas
inerentemente pela confusão; a confusão pode ser removida. É
reconhecendo a natureza pura da mente através de nossos esforços, que
podemos deixar de lado a culpa, potenciais negativos e assim por diante.
Isso permite que o processo de purificação funcione.

Além disso, ao realizar todas essas práticas e tentar colocar os


ensinamentos budistas em nossas vidas diárias, precisamos reconhecer e
discernir o nível em que estamos. É crucial não sermos pretensiosos ou
sentir que devemos estar em um nível mais elevado do que estamos
agora.

Abordando o Budismo Vindo de um Contexto Católico

Algumas pessoas que se interessam pelo budismo podem, por exemplo,


vir de um contexto católico. Se for o nosso caso, na medida em que
abordamos o budismo e começamos a estudar, não precisamos sentir que
devemos abandonar o catolicismo e nos converter ao budismo.
Entretanto, é importante não misturar as duas práticas. Não fazemos três
prostrações ao altar antes de sentar em uma igreja. Do mesmo modo,
quando fazemos uma prática budista, não visualizamos a Virgem Maria,
visualizamos Buda. Praticamos cada uma individualmente. Quando vamos
à igreja, vamos apenas à igreja; quando fazemos uma meditação budista,
fazemos uma meditação budista.

Há muitas características comuns, tais como a ênfase no amor, ajudar o


próximo e assim por diante. Não há nenhum conflito no nível básico. Se
praticarmos amor, caridade e ajuda ao próximo somos tanto bons
católicos quanto bons budistas. Eventualmente, porém teremos de fazer
uma escolha, mas apenas quando estivermos prontos para colocar nosso
total esforço em fazer um tremendo progresso espiritual. Se vamos subir
até o último andar de um edifício, não podemos subir por duas escadarias
ao mesmo tempo, esta é uma imagem muito útil. Se estamos agindo
somente no nível básico, no lobby, tudo bem. Não precisamos nos
preocupar com isso. Podemos nos beneficiar de ambos.

Evitando Lealdade Deslocada

Ao aplicar o budismo em nossas vidas, necessitamos ter cuidados para


não rejeitar nossas religiões de origem como sendo ruins ou inferiores.
Isto é um grande erro, pois poderíamos tornar-nos budistas fanáticos e
anticatólicos fanáticos, por exemplo. As pessoas fazem isso com o
comunismo e a democracia também. Um mecanismo psicológico chamado
de lealdade deslocada entra em cena. Há uma tendência de querermos ser
leais às nossas famílias, às nossas raízes e querermos ser leais ao
catolicismo apesar de o havermos rejeitado. Se formos desleais às nossas
raízes rejeitando-as totalmente como sendo ruins sentimos que somos
completamente maus. Porque isso é extremamente inquietante,
inconscientemente sentimos que precisamos achar algo em nosso
passado para sermos fiéis.

A tendência é inconscientemente sermos leais a determinados aspectos


menos benéficos. Por exemplo, podemos rejeitar o catolicismo, mas
trazemos um forte medo dos infernos no budismo. Uma amiga minha era
muito católica e se converteu ao budismo fervorosamente e teve então
uma crise existencial. “Eu desisti do catolicismo e agora vou para o
inferno católico; mas se eu desistir do budismo e voltar ao catolicismo,
irei para o inferno budista!” Embora possa soar engraçado, era realmente
um problema sério para ela.

Trazemos muitas vezes inconscientemente determinadas atitudes do


catolicismo para nossa prática budista. As mais comuns são culpa e
procurar por milagres e salvar os outros. Se não praticarmos sentimos
que deveríamos praticar, e se não, somos culpados. Estas idéias não são
de modo algum úteis. Precisamos reconhecer quando estamos fazendo
isso. Devemos olhar para nossos contextos e perceber os aspectos
positivos de maneira a sermos fieis às características positivas ao invés
das negativas. Ao invés de pensarmos: “Eu herdei culpa e busca por
milagres.” podemos pensar: “Eu herdei a tradição católica do amor,
caridade e ajuda aos desafortunados.”

Podemos fazer a mesma coisa a respeito de nossas famílias. Podemos


rejeitá-las e então sermos inconscientemente leais às suas tradições
negativas, ao invés de sermos conscientemente leais às positivas. Se
reconhecermos, por exemplo, que somos muito gratos pelo passado
católico que nos deram, então podemos seguir nossos próprios caminhos
sem conflito sobre nosso passado e sem sentimentos negativos
constantemente prejudicando nosso progresso.

É importante tentar compreender a validade psicológica disto. Se


pensarmos em nosso passado, nossas famílias, nossa religião de origem
ou o que quer que seja como sendo negativos, tendemos a ter atitudes
negativas com relação a nós mesmos. Por outro lado, se formos capazes
de reconhecer as coisas positivas em nosso contexto de origem e em
nosso passado, tendemos a ter atitudes positivas com nós mesmos. Isto
nos ajuda a sermos muito mais estáveis em nosso caminho espiritual.

Conclusão

Precisamos progredir gradativamente, passo a passo. Quando ouvimos ou


lemos ensinamentos muito avançados, embora os grandes mestres do
passado tenham dito: “Assim que você ouvir um ensinamento,
imediatamente pratique-o”, precisamos determinar se algo está avançado
demais para nós ou se é algo que podemos praticar agora. Se for muito
avançado, temos que discernir as etapas que necessitaremos executar
para sermos capazes de por em prática e então seguir estas etapas.
Resumindo, como um de meus professores, Geshe Ngawang Dhargyey,
disse: “Se praticarmos métodos de fantasia, colheremos resultados
imaginários; se praticarmos métodos práticos, colheremos resultados
práticos.”
Ser Realista em Relação ao Budismo
Dr. Alexander Berzin

Quando ocidentais aproximam-se pela primeira vez dos ensinamentos


budistas, muitas das idéias e das práticas que encontramos parecem estranhas
ou um completo absurdo. Aqui examinamos como abordar o budismo
realisticamente, através de uma compreensão da cultura de onde vem,
aplicando a vida diária e com o know-how de superar o desânimo.

Entendendo a Cultura Tradicional Tibetana

Para os ocidentais envolverem-se com o budismo, em particular, o budismo


tibetano – é muito importante compreender um pouco a cultura tradicional da qual
ele vem. Sem entender o contexto do qual surgiu o budismo e chegou até nós, nos
abrimos a uma quantidade tremenda de equívocos.

Não há necessidade de adotar a cultura tibetana ou qualquer cultura asiática; não


precisamos ser como macacos imitando outra cultura. Certamente não temos que
mudar a nossa dieta e as nossas roupas ou qualquer coisa do gênero. Mas mesmo
um entendimento pequeno do contexto irá levar a menos projeções e menos
confusão da nossa parte.

Na cultura tradicional tibetana, como em qualquer cultura, as pessoas nascem em


determinados conjuntos de crenças culturais. As pessoas consideram normais
coisas como karma, renascimento e a existência de seres iluminados. Há grande
apreciação e respeito por aqueles que decidem tornar-se monges ou monjas, que
dedicam sua vida inteira para estudar e praticar os ensinamentos de Buda.

Os leigos não tinham realmente muita oportunidade para estudar o budismo, mas
recitavam mantras e circum-ambulavam objetos sagrados. Sustentavam os
monastérios em termos materiais e talvez recebessem algumas iniciações de longa
vida, pediam aos monges para ir às suas casas para realizar alguns rituais e coisas
assim. Todos aceitavam o fato de que se a pessoa realmente quisesse estudar, ela
tinha que se dedicar em tempo integral e se tornar monge ou monja.

Perspectiva Cultural Ocidental

Aqui no ocidente não temos na verdade dessas coisas. A maioria de nós não
acredita em renascimento ou karma, ou se dizemos que acreditamos em karma,
freqüentemente confundimos o karma com destino, o que não está certo de
maneira algum. E quando pensamos em Buda o equacionamos com Deus e outras
figuras búdicas transformam-se em santos, a quem são oferecidas orações e velas
como se fossem ícones da igreja.
Certamente, a maioria de nós não quer tornar-se monge ou monja. De fato, as
pessoas no ocidente não parecem ter um grande respeito por ocidentais que se
tornam monges e monjas, o que realmente é uma pena.

Como leigos, esperamos ser capazes de ter um foco maior no estudo, na prática e
nos ensinamentos, mas a realidade é que não temos tempo. Temos trabalho ou
escola, famílias e vida social. Chegamos em casa depois do trabalho, talvez depois
de passar por um enorme trânsito e estamos cansados. Mesmo se quisermos
aprender, e talvez fossemos a uma palestra à noite, estamos tão cansados que
adormecemos. E talvez consigamos ter uma noite, quiçá no máximo duas noites
por semana, mas não mais que isso. Então, realmente, isso é um problema.

Abordando a Prática Budista com Expectativas Realistas

Muito depende do que realmente esperamos. Não é uma pílula agradável de


engolir; a prática budista é dura. Envolve trabalhar em nossa personalidade para
tentar livrar-nos de hábitos negativos, como o egoísmo, a raiva, a ganância, todo
este tipo de coisas desagradáveis que o Dalai Lama costuma chamar de “criadores
de problemas”. Essas são as coisas que criam a maior parte dos problemas para
nós e para os outros. Praticar o budismo também envolve treinar a nós mesmos
para desenvolver hábitos mais construtivos, o que é na verdade difícil de fazer.
Egoísmo e raiva não vão embora simplesmente assim, assistindo alguma palestra
uma vez por semana ou sentando por meia hora para meditar todos os dias. Para a
maioria de nós até isso parece muito tempo para gastar. Agora que o budismo está
aqui no ocidente, acho que é muito bom ter uma postura realista em relação a isso.

Inicialmente muitas pessoas são atraídas pelo budismo por razões não muito
conducentes ao progresso. Algumas pessoas pensam que está na moda, a última
onda. Claro que modas mudam todo o tempo, portanto esta não é uma razão
sustentável para buscar o budismo. Outras pessoas chegam ao budismo porque são
atraídas por coisas exóticas, talvez tenham lido que tibetanos fazem furos nas
testas das pessoas para abrir o terceiro olho e assim por diante.

Uma vez eu estava traduzindo para Nechung Rinpoche em Nova Iorque. No


público, uma pessoa que parecia ter tomado alguma droga levantou e fez uma
pergunta: “Eu entendo que Atlântida está debaixo da Terra e os discos voadores
estão lá e eles saem do centro da Terra através dos vulcões e a minha pergunta é se
a Terra é oca?” O lama olhou para ele de forma muito, muito séria e disse: “Não, na
verdade, a Terra é plana e quadrada. Próxima questão!” Pensei que aquela foi uma
resposta habilidosa, pois ela conseguiu ser até mais estranha do que a própria
pergunta. Se estivermos buscando por exotismo, depois de um tempo ficaremos
bem decepcionados. Embora a cultura tibetana seja muito diferente da européia,
não há nada de misterioso em relação a ela.

Outras pessoas buscam o budismo basicamente porque elas estão desesperadas e


buscando por uma cura miraculosa, seja para algum problema físico ou emocional.
E isso é muito perigoso, pois chegar com esta expectativa e esperança, abre à
possibilidade de todo tipo de abuso. Há pessoas que dizem: “Lama, Lama, diga-me
as palavras mágicas a recitar. Farei qualquer coisa!” Isto pode levar a
consequências indesejáveis.

Mas mesmo quando temos esses tipos de motivação no início, a motivação pode
mudar. Muitos de nós chegam apenas por curiosidade ou talvez uma conexão
kármica que nos impulsiona inconscientemente.

Atitude e Abordagem Correta do Budismo

Se olharmos para os textos tradicionais, acharemos descrições daquilo que é a


atitude adequada para alguém que quiser abordar e estudar o budismo. Um antigo
mestre indiano, Aryadeva, disse que antes de tudo, um discípulo em potencial tem
que ser imparcial. Isso significa sem preconceitos; com uma mente aberta. Não é
útil pensar: “Bem, eu li alguns livros e já sei tudo, então o que me falta é somente a
cobertura do bolo para eu poder concluir.” Não é bom ter ideias estranhas sobre o
budismo e pensar que era isso ou ser sectário e pensar: “Esta é a minha religião,
minha seita, minha tradição; todos os outros estão errados”. Precisamos ter a
mente aberta: “Eu quero aprender”.

Aí, Aryadeva disse que precisamos ter bom senso. Precisamos ser capazes de ver o
que nos ensinamentos é razoável e o que não é. O exemplo tradicional que é dado
diz que se você ler em um texto que precisa vestir roupa quente, e em outro texto
que você precisa vestir roupa bem leve, use o bom senso. Compreenda que no
inverno você usa roupa quente e no verão você usa roupa leve.

O budismo tem como intenção nos ajudar a pensar por nós mesmos. Não temos a
mentalidade do exército no budismo na qual o professor nos diz o que fazer e nós
dizemos “Sim, senhor!” e não questionamos nada. Esta não é a maneira budista de
ser. Podemos ler sobre as qualificações de um professor espiritual e como eles
devem ensinar e agir, e se virmos eles irem contra isto, usamos o bom senso que
nos diz que há algo de errado aqui. E você pergunta e investiga o que está
acontecendo.

Depois, a terceira qualificação é ter interesse, interesse sincero nos ensinamentos


do Buda. Um grande mestre Sakya chamado Sonam-tsemo escreveu um texto
chamado “O Portal para o Dharma” que menciona basicamente três coisas que
precisamos para entrar nos ensinamentos budistas, basicamente elaborando o que
Aryadeva disse. Uma das coisas principais é que reconhecemos o sofrimento em
nossas vidas, em outras palavras, por que estamos interessamos no budismo? Será
que é apenas por curiosidade, para termos assunto enquanto tomamos um café
com nossos amigos? Ou será que é porque temos pensado sobre as nossas vidas e
visto que há dificuldades e problemas e que você tem emoções negativas às vezes,
e tem um desejo sincero de sair disso. Há muitas abordagens em psicologia que
dizem: “Bem, a vida é dura, a sua situação é difícil, mas você precisa aprender a
viver com isso e sem reclamar muito.”, mas isso não é o objetivo do budismo. Nós
queremos sair disso, completamente!

Reconhecemos o sofrimento em nossas vidas, temos um desejo sincero de sair


disso, então o que precisamos é conhecimento dos ensinamentos de Buda e alguma
convicção de que eles realmente mostram o caminho de saída. Isso que é renúncia.
Basicamente renunciamos, queremos nos livrar do sofrimento e suas causas.
Queremos de todas as formas desistir deles, e olhamos para o budismo como uma
forma de deixar isso para trás. Isto é basicamente o que significa refúgio. É dar este
direcionamento a nossas vidas.

Mesmo se nós ocidentais não consigamos dar todo o tempo para a prática do
budismo ao nos tornar monges ou monjas, e mesmo se tivermos que lidar com as
realidades do trabalho, da escola, da família, do trânsito, e assim por diante, ainda
assim, se tivermos estes três pontos que os grandes mestres indianos e tibetanos
mencionaram, poderemos nos beneficiar muito com os ensinamentos de Buda.

A quantidade de tempo que conseguimos devotar à pratica budista tem


basicamente a ver com o quanto entendemos. Praticar o budismo não quer
realmente dizer tomar meia hora para sentar silenciosamente, e recitar algo, indo
para algum tipo de mundo dos sonhos. Muitas pessoas podem fazer isso, mas isto é
somente uma fuga. E embora isso talvez as relaxe, elas não sabem como aplicar o
budismo em seus cotidianos. Isto se torna bem esquizofrênico, a prática delas é
uma coisa e o dia a dia é outra. Um exemplo clássico é alguém que faz uma
pergunta para alguém que está meditando e o meditador fica com raiva e diz: “Não
me atrapalha! Vai embora! Estou meditando sobre o amor!”

Aplicando os Ensinamentos Budistas em Nossos Cotidianos

Quanto mais estudamos e entendemos os ensinamentos budistas, mais


entendemos como se aplicam ao nosso cotidiano. Claro, que primeiro significa
ouvir aos ensinamentos, que são um pouco como um quebra-cabeças. Pegamos
uma peça aqui e ali e é nossa responsabilidade ver como juntar tudo, pois há
diversas formas de juntar, não apenas uma. Porque a vida é complicada e variada,
os ensinamentos e práticas budistas são também muito profundos, extensos e
complexos. Então, temos que ler muito e usar o nosso bom senso para juntar tudo.
E se no início não entendermos alguma coisa, não devemos somente rejeitá-la, mas
continuar pensando nela, com uma mente aberta. Um tópico destes é o karma. Ao
invés de terminantemente rejeitá-lo, podemos pensar: “Ok, eu não entendo isso
agora. Vou abandoná-lo por um tempo e voltar mais tarde para ver qual
entendimento eu tenho.”

Depois de termos juntado algumas peças do quebra-cabeças, teremos que na


verdade pensar sobre isso como um todo, tudo para conseguir um entendimento
maior. Para isso, usamos o bom senso novamente. E se algo parecer realmente
louco, realmente estranho, devemos fazer perguntas. Se não tivermos professores
disponíveis, há muitos livros e claro a internet. Certamente, há muito lixo aí
também, portanto precisamos sempre ser cuidadosos. Se o que você ler fizer com
que as coisas se tornem místicas e ocultas, esqueça. Muitos dos grandes mestres
podem ser altamente desenvolvidos, mas eles certamente não levitam nem
realizam milagres!
Fazendo Perguntas

Se temos um professor budista disponível e acessível, fazer perguntas pode ser de


grande ajuda, mas somente se eles forem questionados no momento certo. É bom
primeiramente obter toda a informação, como se você estivesse participando de
uma palestra, você espera até o final para perguntar. Não é bom, assim que você
ouvir uma frase, saltar imediatamente e fazer uma pergunta sem saber o que está
por vir.

Tradicionalmente no budismo tibetano, os monges não fazem muitas perguntas


diretamente ao professor. Ao invés disso eles debatem um com o outro e às vezes
com o professor também. O processo de aprendizagem, então, é muito ativo: todos
tem que debater. Você não pode apenas sentar e escutar passivamente.

As sessões de debate são cheias de perguntas desafiadoras que o fazem pensar


sobre sua compreensão. Forçam você a olhar para suas implicações e a descobrir
quaisquer contradições que possam existir. Isto é realmente importante porque
nunca questionaríamos nossa própria compreensão tanto quanto outra pessoa
faria - desistiríamos logo. No final do processo de debate ficamos com uma boa
compreensão do tópico e não temos dúvidas ou perguntas. É somente então que
podemos realmente digerir e meditar no tópico.

De certa forma, a maneira que fazemos perguntas no ocidente não é tão útil para o
desenvolvimento pessoal. Esperamos fazer apenas uma pergunta e receber a
resposta e era isso. Este não é o método budista, que é deixar os estudantes
descobrirem por si sós, para que desenvolvam realmente suas próprias mentes.
Naturalmente isto é difícil em um mundo onde queremos uma resposta imediata
após ter digitado uma pergunta em um motor de busca, mas o estilo budista
tibetano tradicional é muito diferente.

Se debatemos formalmente ou não, podemos ter discussões sobre os ensinamentos


budistas um com o outro. Por exemplo, no fim de um ensinamento, os estudantes
podem formar duplas e discutir um com o outro o que compreenderam da
palestra. Se houver algo que realmente não compreendemos e não conseguimos
descobrir, podemos perguntar a um professor. Ao mesmo tempo, necessitamos
estar preparados para que esse professor nos questione e questione nossa
compreensão, em primeiro lugar, o que muitas pessoas no ocidente não gostam,
pois parece uma prova na escola!

Entretanto, os debates são muito enérgicos e divertidos. E quando alguém diz algo
errado então todos riem, é um grande exercício para começar a ultrapassar um
grande ego. Tanto debate acontece que todos terminam por dizer algo estúpido e
recebendo risos e ninguém se importa. No ocidente, se todos na aula começassem a
rir quando dissemos algo incorreto ou estúpido, reforçaria muito provavelmente a
baixo-estima. Parece, frequentemente, que muitos ocidentais sofrem de baixa auto-
estima, enquanto que parece muito raro para os tibetanos. Realmente, às vezes
parece que eles tem uma auto-estima um pouco elevada! Assim, para os tibetanos,
que são um povo de montanha orgulhoso que sempre pensa: “Eu estou correto,” os
debates com todos rindo realmente ajudam a trazê-los para baixo.
Deixando Nossa Bagagem Cultural para Trás

Quando nos aproximamos do budismo, necessitamos estar conscientes da


bagagem cultural que carregamos conosco que pode nos confundir em nossa
prática. Recorde que Aryadeva disse que a primeira coisa que um discípulo
apropriado necessita é ser imparcial; chegamos ao budismo sem preconceitos.
Frequentemente, temos atitudes impróprias em relação aos ensinamentos budistas
por conta de nosso contexto, religioso ou não, e isto está até refletido na tradução
de termos com os quais aprendemos os conceitos budistas. Virtude e não-virtude,
mérito e pecado, bom e ruim - estes trazem frequentemente o conceito inteiro de
culpa prevalente em muitas religiões ocidentais, fazendo-nos pensar que somos
maus se não estivermos praticando. Isso cria por si enormes problemas em nossa
prática. Estes tipos de idéias vêm de religiões que estão baseadas nas leis dadas
por uma autoridade mais elevada, com éticas baseadas na obediência. Se você
obedecer, você será recompensado e se não será punido. É o mesmo para ateístas
também, nos dias da União Soviética, ou você era um membro do partido
comunista ou era mau. É a mesma coisa, a mesma mentalidade.

Enquanto no budismo, quando agimos destrutivamente não é porque somos


pessoas más e devemos nos sentir culpados; pelo contrário, é porque temos esta
confusão básica. Não compreendemos que agir de determinadas formas trará
problemas incalculáveis. Assim, a resposta a alguém que faz algo terrível não é:
“Você é culpado e irá para o inferno”, mas compaixão. Então naturalmente,
algumas religiões tem esta ideia de “uma verdade,” que significa que há somente
um caminho certo e tudo mais está errado. Isto causará problemas porque o Buda
ensinou em uma variedade enorme de maneiras diferentes a fim de ajudar pessoas
diferentes, o que foi útil e absolutamente necessário.

Não é útil pensar que é realmente difícil vir deste ou daquele contexto ou religião
ou cultura. O ponto principal é estar cientes de determinadas maneiras de pensar
que somente são limitadas culturalmente,vindo de uma cultura ou religião, e não
as projetar no budismo.

Uma Aproximação de Mente Aberta

É sempre sábio manter nossos pés no chão quando tratarmos do budismo. Mesmo
quando algumas das figuras que você possa ver quando estuda o budismo tibetano
pareçam muito estranhas a nós, aquilo não significa que são ocultas e estranhas;
são simplesmente diferentes. Eu estava traduzindo uma vez para Serkong
Rinpoche, que explicava a aritmética tibetana, que é um bocado diferente da
maneira que fazemos no ocidente. Eu observei: “Uau, isto é realmente estranho,” e
ele me repreendeu, dizendo: "Não seja assim arrogante. Não é estranho; é
diferente. Chamá-la de estranha é somente um sinal de arrogância.”

Agora, quando compreendermos algo dos ensinamentos, com a meditação


desenvolvemos um hábito benéfico. Meditação não é somente algo que fazemos
sentados em uma almofada em nosso quarto, mas é algo que podemos fazer em
toda parte, o dia inteiro. Podemos pensar sobre os ensinamentos budistas o dia
inteiro também. Mas se não ouvirmos muitos ensinamentos nem gastarmos tempo
pensando e tentando entendê-los, ficaremos repletos de dúvidas e indecisão. Como
podemos fazer algum progresso?

Superando o Desânimo

É tão importante lembrar de fazer a prática budista de que a natureza da vida é de


altos e baixos. Isto é especialmente verdadeiro com relação as nossas vidas
cotidianas e a prática budista diária. Certos dias nossa prática irá realmente bem e
certos dias não. Certos dias não sentiremos de forma alguma vontade de praticar,
outros dias nos sentiremos entusiasmados. Isto é totalmente normal.

Quando as coisas não vão bem, que esperamos? Nunca será um paraíso. Não há
nenhum jeito que nossa prática budista seja linear e somente fique cada vez
melhor até que vivamos felizes para sempre, como em um conto de fadas. Mesmo
após muitos, muitos anos, ficamos tristes sobre algumas coisas. O ponto principal
aqui é não ficar desanimados.

Não importa se você for um praticante leigo ou um monge ou monja, fato é que não
podemos esperar resultados imediatos, nem mesmo se praticássemos 24 horas por
dia. Nosso egoísmo e outros hábitos negativos são realmente fortes, mas podemos
ainda trabalhar neles pouco a pouco. Como o grande mestre indiano Shantideva
disse: “O tempo em que minhas emoções perturbadoras podiam me derrotar
acabou. Agora vou me livrar delas e não irei desistir.”

O Dalai Lama diz que não devemos ver em termos de prática em curto prazo, para
ver se fizemos progresso. Devemos olhar os últimos cinco anos, se estivermos
praticando por este período, para ver que, sim, dia após dia houve altos e baixos,
mas após todo esse tempo houve algum progresso na forma como tratamos nossos
problemas e tristezas e raiva e assim por diante? Se você for capaz de lidar com as
dificuldades da vida mais calmamente, teve algum progresso.

Mas este pequeno progresso não deve ser o bastante. Não devemos ficar
satisfeitos. Se pensarmos sobre a vasta natureza da mente, confiamos que é
possível começar a se livrar da sucata que causa todos nossos problemas. Temos
exemplos vivos deste, tais como o Dalai Lama, e muitos outros que podem nos
inspirar através de seus exemplos do que é possível alcançar. Iluminados ou não,
por que como podemos saber? Podemos apenas ver a maneira que tratam as
dificuldades da vida. Imagine o Dalai Lama, com os milhões de pessoas na China e
em outras partes que o consideram o pior bandido do mundo, no entanto isto não
o incomoda de forma alguma. Mas para a maioria de nós, se uma pessoa pensar
que somos terríveis, ficamos tão tristes que quase não conseguimos aguentar!

Mesmo se nunca nos encontrarmos com ele ou vimos o Dalai Lama pessoalmente,
podemos ler e assistir vídeos sobre ele. São inspiradores demais e é esta inspiração
que nos mantem indo quando os tempos são difíceis e experimentamos fases ruins
dentro dos altos e baixos da vida.
Transformação Interna sem Fantasia

Outro ponto importante sobre a prática do budismo no ocidente, ou em geral, é


algo que encontramos nos ensinamentos do lojong ou treinamento da mente. O
que nos é dito é que necessitamos transformar a nós mesmos dentro, mas
permanecer completamente normal fora. Isso quer dizer que o trabalho que
fazemos é na nossa mente, atitudes e personalidade. Não andamos por aí vestindo
vinte cordas vermelhas em torno de nossas gargantas, malas ou vestindo coisas
estranhas. Quando as pessoas nos virem, elas acharão que há algo esquisito
conosco! Não há nada de errado com as cordas vermelhas e malas se é útil para
você, mas podem ser mantidos na sua bolsa ou bolsos, não precisam ficar a mostra
para todo mundo. Os ensinamentos tântricos enfatizam bastante em manter estas
coisas confidencialmente, porque quando você mostra este material, as pessoas
podem rir ou fazer piadas com você. E se você precisar defender isto, então
qualquer tipo de sensação de santidade ou sagrado acaba. Quando é confidencial e
pessoal, torna-se especial para nós e é isso que precisa ser. Se na parte externa
somos pessoas normais, a maioria das outras pessoas pode relacionar-se conosco
facilmente e isto é muito importante.

Sendo Humildes

Quando compreendemos a cultura de onde o budismo vem, não fazemos demandas


e criamos expectativas em nós mesmos ou nos professores. Isso nos permite
sermos mais humildes, pois vemos que não temos automaticamente a vantagem de
acreditar no karma e assim por diante, assim necessitamos trabalhar para
compreender. Vemos que temos uma instrução ocidental, que nos dá as
ferramentas para pensar claramente sobre estas coisas. E reconhecemos que
enquanto talvez não possamos nos dedicar em tempo integral ao estudo, porque
precisamos conduzir uma vida prática, ainda podemos fazer algum progresso.
Finalmente, não nos tornamos muito exigentes, assim em vez de: “Eu quero apenas
uma pílula mágica para me fazer imediatamente compreender tudo!”, pensamos:
“Eu tenho esta quantidade de tempo, então farei o que posso com ele.”

É uma linha tênue entre ser arrogante de um lado e, do outro, ser totalmente
desencorajado. É tão fácil pensar que não temos tempo ou habilidade e
simplesmente desistir. Estes dois extremos são importantes serem evitados e
apenas fazer o nosso melhor.

Conclusão

Se nos aproximarmos do Budismo sem uma compreensão da cultura tradicional de


onde vem, podemos facilmente ficar perplexos a respeito do que se trata. Não há
nenhuma necessidade de mudarmos nossa roupa ou cabelo ou jóias; de fato, não
há nada externo que necessitamos mudar. Com a mente aberta e a determinação
de compreender os ensinamentos, necessitamos criar uma transformação interna
de nossas próprias mentes. Esta é a coisa mais importante a fazer quando nos
aproximamos do budismo no ocidente.
Praticando Budismo no Ocidente
Dr. Alexander Berzin

Normalmente gostamos de pensar que somos mais ocupados e estressados do


que nossos antepassados jamais foram; no Ocidente também parecemos
pensar que a chegada do Budismo apresenta problemas específicos devido às
nossas diferenças culturais. Aqui, daremos uma olhada no que mudou, no que
continua igual, em como podemos lidar com esses assuntos e em práticas
atemporais que se aplicam a qualquer época e cultura.

Normalmente gostamos de pensar que somos mais ocupados e


estressados do que nossos antepassados jamais foram; no Ocidente
também parecemos pensar que a chegada do Budismo apresenta
problemas específicos devido às nossas diferenças culturais. Aqui,
daremos uma olhada no que mudou, no que continua igual, em como
podemos lidar com esses assuntos e em práticas atemporais que se
aplicam a qualquer época e cultura.

Existem Dificuldades Específicas para Praticarmos o Budismo no


Ocidente nos Dias de Hoje?

Existe algo especial sobre a prática do Budismo no Ocidente que seja


diferente da prática do Budismo em qualquer outro lugar ou momento?
Existe algo especial sobre nós? Por que estaríamos sequer interessados
em saber se somos especiais?

Podem existir várias razões. Algumas pessoas enfrentam dificuldades que


acreditam serem específicas do nosso tempo e querem saber como
superá-las. Outras procuram por uma desculpa para não terem que
praticar tanto quanto as pessoas de outras épocas; estão barganhando a
iluminação. Excluindo-se essas situações, podemos investigar mais
seriamente se realmente enfrentamos alguma dificuldade específica.

Se estamos envolvidos no caminho budista, uma das coisas mais básicas


que temos que tentar desenvolver é a consciência de que não há nada
particularmente especial em nossa situação. Não dá pra dizer que no
momento os ocidentais sentem mais raiva, ganância ou egoísmo do que as
pessoas do outro lado do mundo ou do passado. Em todo o universo e ao
longo dos tempos, as pessoas trabalham com as mesmas emoções
perturbadoras, portanto, não há nada de especial sobre “hoje em dia”.

Mudou Muito?

Algumas pessoas argumentam que as circunstâncias agora são diferentes.


Que temos, por exemplo, vidas muito estressantes. E estamos sempre
realmente ocupados. Bem, será que um agricultor esforçando-se na Idade
Média ou na Índia antiga, trabalhando nos campos por dezesseis horas ou
mais por dia, era menos ocupado do que somos trabalhando em um
escritório? A atividade podia ser diferente, mas eram certamente tão
ocupados quanto nós. E o que dizer dos homens das cavernas? Devem ter
tido muito estresse e preocupações com os animais selvagens, com a
busca pelo alimento e assim por diante. Também tinham muito medo de
coisas como relâmpagos e trovões, e outras coisas que não entendiam. As
pessoas sempre viveram com medo e estresse, não é mesmo?

E a peste bubônica? Pensamos que sofremos estresse e medo hoje em dia,


mas você pode imaginar viver naquela época? Portanto, eu não acho que
podemos dizer que o que é especial sobre nós são nossas vidas ocupadas
e estressantes. Pode ser tenhamos um tipo diferente de estresse, uma
forma diferente de estarmos ocupados com as atividades que estamos
envolvidos. Mas estresse, preocupação, falta de tempo? Isso sempre
aconteceu, em todos as épocas, em toda parte.

Então você poderia dizer que nossa sociedade e cultura não compartilha
nenhuma, ou, pelo menos, não compartilha a maioria das pressuposições
fundamentais presentes no Budismo. E, portanto, o Budismo é realmente
estranho à nossa cultura. Mas podemos observar a transmissão do
Budismo na China como um exemplo, pois os chineses não acreditavam
em renascimento. Pensavam que as pessoas morriam e transformavam-se
em um tipo de espírito ou alma, e então adoravam esses antepassados.
Isso é muito diferente de renascimento, que seria dizer que os
antepassados já não estão mais por perto. Por isso, demorou bastante
para os chineses entenderem muitos destes conceitos fundamentais e
básicos do Budismo. Se enfrentamos agora um desafio similar, temos que
entender que não é nada novo.

Essa compreensão, de que não somos “especiais,” pode ser muito útil.
Pense nos adolescentes ou pessoas que têm um determinado problema,
sejam seus pais alcoólatras ou o que for. Essas pessoas frequentemente
pensam que são as únicos com esse problema, o que o torna realmente
enorme para eles. Se tomassem conhecimento de que existem muitas
outras pessoas com o mesmo problema, não se sentiriam sozinhas, e o
problema se enquadraria em um contexto maior. Isso lhes daria uma
perspectiva diferente, que idealmente as conduziria a desenvolver
compaixão por aqueles que têm um problema similar, ao invés de
pensarem somente em "eu, eu, eu".

Portanto, para elaborar uma prática diária budista, o problema de todo


mundo é o mesmo: Como aplicar os ensinamentos budistas de forma que
nos ajudem a lidar com os desafios da vida? Esse não é um problema
especial “seu”, é o desafio de todos os interessados em praticar os
métodos budistas no Ocidente.

O Excesso de Opções

Não podemos negar, entretanto, que existem alguns desafios exclusivos à


vida no Ocidente na era moderna. No passado, a maioria das pessoas
enfrentaram problemas por ter pouco alimento e pouca informação.
Antes da invenção da imprensa, copiar à mão um texto budista era um ato
incrivelmente generoso e positivo. Você estava disponibilizando mais
uma cópia rara e preciosa para outros lerem e estudarem. Até mesmo
obter o papel e a tinta era uma realização monumental. Hoje em dia,
podemos simplesmente postar um texto ou um link em nossa página do
facebook!

Nosso desafio exclusivo está em ter demasiado alimento e demasiada


informação disponíveis. Como escolher o que é certo para nós? Como
escolher quando há trezentos “tipos" diferentes de Budismo? Esse é um
grande problema, mas não há nenhuma resposta mágica. Apenas porque
algo aparece em primeiro lugar na busca do Google, não significa que é o
melhor ou que supre as necessidades de todas as pessoas. Precisamos
usar nossa inteligência, discernimento e paciência para ver o que é o
melhor para nós. Para decidirmos sobre o que nos serve, precisamos
experimentar as coisas por nós mesmos.

O Budismo Moderno

Digamos, porém, que após um período de teste, escolhemos uma tradição,


um centro e um professor budista para estudarmos com ele. Então
enfrentamos mais uma situação: Existem muitos níveis diferentes de
prática budista e um número enorme de maneiras de aplicá-los a nossa
vida diária. Por onde começar? Temos o nível bastante superficial, que
não vai nos mudar muito internamente, e temos o nível mais profundo,
em que trabalhamos realmente em nós mesmos, com a meta mínima de
melhorar a qualidade de nossa vida e de evitar torná-la pior. Se iremos
seguir em frente para obter a liberação e a iluminação, depende de como
nos desenvolvemos. É impossível aspirarmos desde o início por objetivos
sublimes. A maioria de nós sequer faz ideia do que significa liberação e
iluminação.

No começo, muitas pessoas são atraídas pelo nível superficial, e por isso
cuidam da parte externa. O que eu quero dizer é que elas arranjaram um
cordão vermelho para enrolar em volta do pescoço ou pulso, ou ambos!
Utilizam um mala, um rosário de contas, e às vezes, usam-no enquanto
balbuciam algo. Têm um bom estoque de incensos e velas, e todas as
almofadas apropriadas para meditação, pinturas tibetanas e retratos, e
eventualmente começam até a usar algum tipo de roupa tibetana.
Sentam-se solenemente neste set quase hollywoodiano, mas não fazem
ideia do que fazer.

Eu me lembro quando fui pela primeira vez à Índia, em 1969. Era o auge
da era hippie e havia pouquíssimos ocidentais lá naquele tempo. Mas
muitos usavam túnicas e trajes típicos tibetanos, e me lembro de ter sido
bastante crítico nesse caso. Eu pensei que era um pouco ofensivo com os
tibetanos: esses ocidentais estavam apenas simulando e copiando. Então
perguntei ao monge tibetano com quem eu estava morando o que ele
achava dos ocidentais que caminhavam por lá vestindo roupas tibetanas.
Ele respondeu com um comentário muito útil: "Achamos que eles gostam
de roupas tibetanas." Não havia nenhum tipo de crítica ou julgamento
nesta resposta.

Se criticamos isso ou não, somente trocar as nossas roupas ou usar um


rosário e muitos cordões abençoados não nos muda muito, certo?
Internamente, não faz realmente diferença alguma. Não traz mais
"bençãos". Nossa prática budista precisa ser interna.

Transformação Pessoal

Seja no ocidente ou em uma sociedade budista tradicional, o que a prática


budista requer é trabalhar em nós mesmos. Temos que nos transformar,
o que não é algo feito através de rituais. É fácil aprender a fazer um ritual
e recitar disparates em uma língua estrangeira que não compreendamos.
Mas isto não nos transforma. Ainda ficaremos irritados, ainda sentiremos
apego, e ainda assim não nos entenderemos com nossos pais. Sua
Santidade o Dalai Lama sempre diz que praticar esses rituais quando você
não faz ideia do que está fazendo não vai levá-lo adiante.

Nagarjuna, Aryadeva e todos os grandes mestres indianos disseram que a


prática do Budismo se resume a domesticar sua mente. Isso significa
primeiramente aprender os ensinamentos, os métodos de como lidar com
emoções perturbadoras e situações problemáticas, e como analisar as
várias experiências que temos. Mantemo-nos atentos, para nos recordar e
aplicar os ensinamentos conforme necessitemos. Dessa forma, nos
ajudarão a superar pelo menos os problemas comuns da vida, como a
raiva, a preocupação e o nervosismo, a doença, o envelhecimento e os
problemas de relacionamento - tudo isso e mais.

Portanto, temos que trabalhar e melhorar nossa personalidade e atitudes


básicas perante a vida para nos transformarmos. Isso requer uma
quantidade tremenda de trabalho e não é fácil de fazer. Necessitamos de
paciência, coragem e perseverança. Nossa tendência no ocidente é querer
que as coisas sejam baratas, fáceis e, sobretudo, rápidas. Queremos todos
os ensinamentos imediatamente. Queremos conseguir todas as coisas
maravilhosas sobre as quais lemos, aquilo que um Buda alcançou e assim
por diante, com o menor trabalho possível.

Valorizando os Ensinamentos

Para promovermos transformação interna, necessitamos dos


ensinamentos, mas receber ensinamentos no Ocidente requer dinheiro.
Esse é um dos pontos difíceis que é de fato bastante singular na história
do Budismo. Normalmente, você nunca pagaria para receber
ensinamentos. Você voluntariamente faria uma doação de quanto
quisesse, mas nunca seria requisitado a pagar na porta para entrar.

Porém, no Ocidente, se quisermos professores e facilidades, precisamos


apoiá-los voluntariamente ou pagarmos uma admissão. Esse é o nível
prático. O nível mais profundo é que se você quiser receber algo precioso,
nomeadamente os ensinamentos, você tem que pôr muito esforço e
trabalho nisso; do contrário você não os aprecia e valoriza.

Historicamente, a fim de convidar professores ao Tibete, os tibetanos não


somente tinham que caminhar até a Índia, mas também tinham que
recolher todas os tipos de recursos para a viagem e as oferendas.
Colocavam uma quantidade incrível, tremenda de esforço para receber os
ensinamentos. As pessoas tinham que fazer sacrifícios enormes para
recebê-los. Olhe o que Marpa fez Milarepa passar a fim de receber os
ensinamentos. Assim, de uma certa forma, se realmente quisermos
receber os ensinamentos, necessitamos fazer algum esforço para juntar o
dinheiro, por exemplo, ou viajar para a Índia ou para um lugar onde
estejam disponíveis.
Agora é mais fácil. Aqui na Letônia, vocês viveram sob a União Soviética e
não podiam viajar para longe ou ir para qualquer lugar realmente. Agora
os ensinamentos estão disponíveis e como membros da UE, vocês estão
completamente livres para viajar. Portanto, deveriam tirar vantagem
disso e não somente lamentar: “Não há nada disponível onde eu vivo.”
Isso não é para soar áspero, mas se estivermos seriamente interessados
na transformação de nós mesmos, devemos nos comprometer. É
necessário que isso seja uma prioridade em nossas vidas. Necessitamos
de coragem, bravura e energia para agir da forma que for necessária, ou
fazer o que for necessário para obter as melhores circunstâncias para o
estudo e a prática.

Ser Honestos e Realistas conosco em Nosso Compromisso com a


Prática do Darma

Se não estamos tão comprometidos assim, tudo bem. Mas podemos


reconhecer: “Eu gostaria de aprender um bocado sobre o Budismo. Talvez
isso possa me ajudar em minha vida, mas não estou disposto a me mudar
se as circunstâncias não forem boas onde estou. Isso não tem prioridade
máxima em minha vida, há outras coisas mais importantes para mim.” Se
esse for nosso caso, então não tem problema algum. Mas não podemos
esperar receber os resultados que receberíamos se investíssemos nosso
tempo e esforço integrais nisso. Seja realista. Um pouco de esforço gera
um pouco de resultado. Muito esforço e tempo, gera um resultado maior.

No ocidente, a maioria das pessoas parece preferir praticar como


praticante leigo, não como monge ou freira, o que é um pouco diferente
do Budismo tradicional. Por isso, é melhor termos centros de dharma do
que monastérios e conventos. Não havia centros de dharma antes do
Budismo começar a se desenvolver no Ocidente.

O que esperamos alcançar indo ao centro de dharma ou centro budista?


Se formos uma vez por semana, após o trabalho, e estivermos realmente
cansados durante a maior parte do tempo, cantamos uma canção em
tibetano mas não sabemos realmente o que está acontecendo, que
resultado podemos esperar? Não podemos esperar muito. O que é
realmente triste é que a maioria dos centros de dharma não são nem
mesmo um clube social como quando você vai à igreja. Seja Cristianismo,
Judaismo ou Islamismo, parece haver um sentimento de congregação, de
comunidade. Se alguém estiver doente ou não aparecer, as pessoas
perguntarão e ligarão e levarão alimento. Isso parece faltar nos centros
de dharma. As pessoas vêm, meditam um pouco, às vezes fazem um
e puja e é isso. Ouvi queixas de pessoas que dizem: “Do que se trata o
Budismo? Eu estive doente e no hospital, e ninguém ligou ou me visitou;
ninguém se importou.”

Se nossa prática diária de Budismo significa irmos sozinhos ao centro


para fazer um puja ou meditar, e então para casa, mas nem mesmo nos
importamos com os outros que são parte do centro, o que é isso?
Sentamos lá e dizemos: “Eu estou fazendo isto para todos os seres
sencientes; que todos os seres sencientes sejam felizes…” mas se alguém
estiver doente não nos importamos e nem vamos visitá-los. Isto não é
apropriado. Se nossa prática budista for assim, algo está errado. Podemos
nos tornar demasiado restritivos ou focados em nossa própria prática de
fazer o puja e meditação, sem pensar socialmente sobre ajudar aqueles
em nosso grupo. O Budismo engajado, que começou na Tailândia, é algo
que realmente necessitamos mais no Ocidente. Alguns centros budistas já
têm programas nos presídios, por exemplo. Algumas pessoas oferecem-se
para ir à prisão dar aulas de dharma aos prisioneiros, o que é ótimo. Mas
realmente não é o suficiente fazer apenas isso e não visitar alguém que
está doente.

Mostrando Bondade Humana Básica

Ser budista, entretanto, não significa somente ser uma pessoa amável,
mas naturalmente temos que ser uma pessoa amável, isso é a base, e não
é de modo algum exclusividade dos ensinamentos do Buda. Você não
necessita nem mesmo ser religioso para saber que é importante ser uma
pessoa amável. Portanto, é claro que em nossa vida diária devemos tentar
ajudar aos outros. Se não pudermos ajudar, o mínimo que podemos fazer
é não ferir; este é o mínimo básico. Se quisermos dizer que essa é nossa
prática budista, muito bem. Mas temos que compreender que é uma
versão muito leve do Budismo.

Embora seja uma versão leve, é absolutamente necessária. Tentamos não


nos irritar com outros, e se nos irritarmos nos desculpamos o mais rápido
possível. Tentamos ser menos egoístas e mais sensíveis às necessidades
das outras pessoas e ao efeito de nosso comportamento nos outros. Se
fizermos negócios, tentamos ser honestos. Se lidarmos com clientes,
tentamos recordar que são apenas seres humanos, como nós, e gostam de
ser tratados agradavelmente, não apressadamente ou de maneira rude. O
último cliente do dia merece tanta atenção, cuidado e simpatia quanto o
primeiro.

Tudo isso é o que sua Santidade o Dalai Lama refere-se como sendo
“valores humanos básicos,” valores que não são baseados em nenhuma
filosofia ou religião em particular. Necessitamos aplicá-los não apenas
com desconhecidos, apesar de ser bem mais fácil porque os vemos apenas
por alguns minutos e não precisamos lidar com eles mais tarde. O
verdadeiro desafio é aplicar esses valores quando estamos com membros
de nossa família ou pessoas com as quais vivemos e trabalhamos. Não
devemos ignorar aqueles que estão mais próximos de nós.

Deixe-me compartilhar um exemplo de minha própria experiência.


Quando minha mãe ainda estava viva e eu a visitava, ela gostava que eu
assistisse televisão com ela à noite. Ela gostava principalmente de
programas de perguntas e respostas e me incentivava a tentar responder
perguntas, do tipo: “Quanto custa este refrigerador?” Nessas situações,
necessitamos ser pacientes e generosos, e não apenas sentar entediados,
recitando mantras sob nossa respiração e pensando: "Que pergunta
estúpida!" Quem se importa quanto custa?” Tente responder à pergunta,
não importa quão estúpida ela possa parecer. Tentar responder
perguntas como essas era uma maneira dela manter sua mente ativa na
velhice. Apoiá-la no que estava fazendo, de fato, era um ato de bondade
humana básica e generosidade.

Como Transformar o Budismo em um Estilo de Vida

Se desejarmos praticar o Budismo no Ocidente, devemos ir mais fundo do


que apenas trabalhar em nós mesmos para sermos uma pessoa mais
amável. O Budismo oferece uma enorme variedade de práticas,
adequadas a uma grande gama de mentalidades e habilidades. Essas
práticas incluem tanto o estudo como a meditação. Não há nada
excepcionalmente asiático ou ocidental nisso. O ponto principal é que
precisamos integrar em nossas vida cotidianas tudo o que estudamos e
meditamos. Necessitamos fazer da nossa prática budista nosso estilo de
vida.

Iniciamos ajustando a intenção para o dia quando acordamos. Qual é a


nossa Motivação? Recordamos o nosso objetivo e o que queremos fazer
com nossa vida, e criamos a intenção de realmente perseguir isso. Quando
acordamos, idealmente deveríamos pensar: “Ainda bem que eu não morri
durante meu sono, e como é maravilhoso ter agora um dia inteiro diante
de mim no qual posso trabalhar mais no longo caminho budista." Ter
esses tipo de pensamentos ao acordar é muito melhor do que: “Ah, não,
um outro dia não!”

Fazemos a mesma coisa quando vamos para a cama à noite. Em vez de


pensar: “Finalmente o dia acabou. Não vejo a hora de entrar no
inconsciente," pensamos: "Não vejo a hora de poder acordar amanhã para
continuar.” Isso nada mais é do que “refúgio.” Eu uso pouco essa palavra,
pois penso que o que ela realmente quer dizer é que temos uma direção
em nossas vidas. Temos uma direção mostrada pelos Budas, seus
ensinamentos e realizações pessoais e a comunidade espiritual que o
seguiu. Essa é uma segura, e que nos proteje do sofrimento.

Se tivermos uma direção em nossa vida, que tenha significado e


finalidade, isso nos ajudará enormemente. Estamos trabalhando para nos
livrarmos de todas as nossas confusões e estados mentais perturbadores,
e para perceber todos os nossos potenciais positivos. Imprimir essa
direção em nossas vidas significa que estamos tentando seguir os passos
dos budas e de suas comunidades espirituais. Compreenderemos que até
mesmo um pequeno passo nesse sentido é muito valioso. Mas precisamos
confirmar através de nossa cuidadosa análise e experimentação. O Buda
disse para não aceitarmos o que ele disse simplesmente porque temos fé.
Como ocidentais, talvez possamos apreciar mais facilmente esta
aproximação científica que o Buda ensinou. Devemos sempre manter uma
atitude crítica.

Essa direção em nossa vida é algo que necessita ser internalizado muito
profundamente. Isso é o que realmente nos torna budistas. Somente ser
uma pessoa legal não o torna budista. É necessário que tenhamos total
convicção de que é possível conseguir o que estamos tentando atingir. Se
não pensarmos que é possível superar nossas deficiências e compreender
nossos potenciais positivos, por que tentar atingir uma fantasia?

Inicialmente, não acreditaremos que seja possível atingir algum dos


objetivos espirituais budistas. Podemos ter fé por termos um professor
carismático ou mesmo por desejarmos que seja verdade. Dá trabalho
convencer-se de que é realmente possível conseguir, passo a passo, mas
uma vez que você tenha conseguido, você realmente porá todo seu
coração e energia nisso.

Como budistas, isso faz parte de nosso trabalho. Esses pontos são muito
importantes e ajudam na direção que estamos indo, tornando-a estável.
Assim, começamos o dia reafirmando essa intenção. Terminamos o dia
com uma dedicação e uma revisão do que fizemos durante o dia, de como
nós agimos. Se nos irritamos ou algo do gênero, admitimos, nos
arrependemos e purificamos. E dedicamos todas as nossas ações
positivas para a realização dos objetivos positivos que temos. O grande
mestre tibetano, Tsongkhapa, disse que precisamos carregar nossa
intenção durante o dia inteiro, não apenas no início e no fim. Isto significa
que necessitamos nos lembrar dela durante o dia.
O mestre vietnamita contemporâneo Thich Nhat Hanh tem um método
encantador para isso. Ele tem um “sino da presença mental” que soa
durante horas aleatórias durante o dia. Todos param por alguns
momentos para trazer novamente sua intenção à mente. Um de meus
estudantes programou seu telefone para tocar várias vezes durante o dia.
Assim, há vários métodos que podemos usar para nos ajudar a recordar
nossa motivação, se não for algo que nos vier automaticamente.

Sua Santidade o Dalai Lama enfatiza sempre que o mais necessário é o


que chamamos de “meditação analítica,” que, em nosso estágio, é pensar
sobre os ensinamentos, relacionando-os a nossas vidas e experiências
pessoais. Um exemplo seria analisar porque estamos tendo problemas
com tal pessoa no trabalho. Como podemos tratar esta situação?
Necessitamos desenvolver paciência. Quais são os ensinamentos sobre
paciência? Qual é o método? Assim, sentamo-nos calmamente e
praticamos sermos pacientes enquanto pensamos nessa pessoa. Isso é a
prática budista -- a palavra é exatamente esta: “prática.” Nós
estamos praticando para sermos capazes de ter paciência em situações
reais da vida.

No fim do dia, revemos o que fizemos. Não há motivo para sentir culpa se
não fomos capazes de viver de acordo com nossa boa intenção, porque
recordamos que a característica básica da vida é que ela tem altos e
baixos. O progresso nunca é linear. Não importa quão intensamente
tentamos, certos dias serão bons e alguns serão maus. Assim, quando
tivermos errado ou feito algo prejudicial, reconhecemos e decidimos
tentar nosso melhor para evitar repetir.

Todos estes altos e baixos irão acontecer até que nos tornemos seres
livres. Esse é um longo caminho. Até então, vamos ter ganância, raiva e
tudo mais. Isto é bastante sério! A atitude que é a mais útil em toda essa
situação é a "equanimidade". Quando estamos cansados, fazemos uma
pausa. E tudo bem, sem problemas. Quando queremos continuar,
continuamos. E tudo bem também, sem problemas. Temos que evitar os
dois extremos de sermos realmente duros conosco ou de tratar-nos como
um bebê. Simplesmente vamos adiante, não importa o que for. Chamamos
isso de "perseverança como uma armadura". Ela protege você em
qualquer situação.

Um Exemplo Prático: Dando a Vitória aos Outros

Deixe-me dar um exemplo de como evitar desanimar-se ao aplicar uma


instrução budista. Eu moro em um local bastante movimentado em
Berlim. Alguns anos atrás construíram, debaixo do meu apartamento, no
térreo, um café muito, muito popular. Fica aberto das 7 horas da manhã
até as 3 horas da madrugada, sete dias por semana. No verão, as pessoas
ficam lá fora bebendo cerveja, falando alto e rindo todas as noites. Depois
de um curto período deitado em minha cama de noite, tentando dormir
com todo o ruído e imaginando visões de cubas medievais de piche
fervendo derramando-se sobre eles, eu lembrei do ensinamento: “Dê a
vitória aos outros, aceite a sua derrota.”

Minha cozinha é o único cômodo na casa que não fica de frente para a rua,
assim, coloquei o meu colchão lá. Durmo no chão da cozinha o verão
inteiro. É tranquilo e confortável. E estou muito feliz e dou a vitória aos
outros. Essa é uma aplicação prática desse ensinamento. Não há
realmente nenhum problema em dormir na cozinha.

Assim sendo, precisamos ser inovadores e criativos com os ensinamentos,


pois precisamos realmente aplicá-los. Naturalmente, para isso
precisamos também conhecê-los. Portanto, é útil refrescar nossas
memórias diariamente, lendo, por exemplo, um dos textos clássicos sobre
como lidar com situações difíceis. A Guirlanda de Jóias de um
Bodhisattva, As 37 Práticas do Bodhisattva e Os Oito Versosque
Transformam a Mente, por exemplo, estão cheios de conselhos
extremamente práticos. Se você os ler frequentemente, os terá sempre
em mente e, enquanto estiver lendo, eles o mostrarão as respostas
apropriadas às situações que você está vivendo.

Essas são algumas das práticas diárias dos budistas no Ocidente. Como eu
disse, para obtermos resultados precisamos trabalhar duro, e não é
barato.

Tornar os Ensinamentos Budistas Amplamente Disponíveis seria


Contrariar seu Propósito?

Hoje em dia, os ensinamentos estão amplamente disponíveis. Vimos


também que muitos centros ou eventos de dharma cobram taxas de
participação, mas ainda há uma quantidade enorme de material
disponível gratuitamente (como este site!). Se você tiver um computador
e acesso à internet, não precisará viajar muito ou pagar pelos
ensinamento. E a quantidade de material disponível sem dúvida irá
aumentar no futuro.

Poderíamos argumentar que seria melhor esconder os ensinamentos nas


bibliotecas para que fossem difíceis de conseguir, ou certificarmo-nos de
que as pessoas tivessem que pagar, pois assim precisariam esforçar-se
mais para consegui-los. Por outro lado, mesmo se os ensinamentos
fossem disponibilizados livremente e em toda parte, ainda assim
precisaríamos nos esforçar para ler, estudar e para praticar.

Não obstante quantos benefícios temos atualmente, no que diz respeito


ao acesso aos ensinamentos, ainda assim necessitamos trabalhar duro.
Leva tempo para compreender e internalizar os ensinamentos; isso nunca
mudará. Não há uma maneira rápida ou barata e, nesse caso, não há nada
especial sobre nós, que praticamos no Ocidente. Portanto, devemos
realmente tirar proveito de todas as oportunidades que temos. Antes de
mais nada, precisamos ser amáveis, mas também temos que trabalhar
muito para alcançar os objetivos budistas: atingir a liberação de todas as
nossas deficiências e dificuldades e atingir a iluminação com a completa
realização de todos os nossos potenciais positivos.

Como Relacionar-se com os Objetivos mais Elevados do Budismo

Só podemos trabalhar realisticamente para alcançar a liberação e a


iluminação se estivermos realmente convencidos que é possível atingir.
Mas como se convencer? A convicção vem da compreensão do que
queremos dizer com a palavra “mente,” o continuum mental. Quais são as
características básicas da atividade mental? Ela continua momento a
momento, com um objeto diferente a cada momento. Mas a característica
que a define é sempre a mesma, e a confusão, a raiva e outras emoções
são passageiras, como nuvens. Essas nuvens podem ser removidas
porque não são uma parte integral da mente.

Para entendermos o que é a mente, precisamos estudar profundamente


sua natureza, o que são as aparências e como surgem. Mas também
precisamos de experiência na observação do que está realmente
acontecendo em nossa própria mente, momento a momento. Portanto, é
claro que precisamos estudar e saber o que significa estarmos liberados
ou iluminados. Se esses termos forem apenas palavras para nós, serão
vagos demais.

Mesmo saber o que é a iluminação, não é fácil, pois os pontos são


extremamente sutis. No início, temos “o benefício da dúvida.” Não temos
certeza, mas supomos que é possível. Estudamos e meditamos mais, de
modo que possamos nos convencer. Essa é uma boa base para
começarmos a trabalhar.

Um de meus amigos costuma dizer: “Eu não sei ao certo se liberação ou


iluminação são possíveis. Eu não sei se sua Santidade o Dalai Lama é
realmente iluminado. Mas se eu pudesse ser como ele, como o Dalai Lama,
da forma como ele age e trata de problemas enormes, já seria o bastante.”
Resumo

Da caverna, ao campo, ao escritório, nossos problemas básicos não


mudaram muito; o ambiente pode ter mudado, mas as pessoas sempre
foram estressadas e ocupadas. Ao reconhecermos esse fato, percebemos
que os métodos budistas de mais de um milênio atrás ainda são muito
relevantes.

No passado, as pessoas esforçavam-se muito para obter os ensinamentos


budistas, portanto somos realmente afortunados, pois hoje temos acesso
a uma enorme quantidade de ensinamentos, não apenas na internet, mas
em muitas cidades pelo mundo inteiro. Devemos tirar vantagem disso, e
ter em mente que a quantidade de esforço que precisamos fazer não
mudou e nunca mudará.
Abordar o Budismo de uma Forma
Equilibrada
Dr. Alexander Berzin

Algumas pessoas são mais intelectuais, algumas são mais emocionais e outras são devocionais.
Qualquer que seja a nossa propensão, se quisermos tirar o maior proveito possível das práticas
budistas, precisamos equilibrar todas as três abordagens.

Três Abordagens

No ocidente, algumas pessoas aproximam-se ao Dharma:

 para satisfazer o seu desejo por exotismo


 por curas milagrosas
 para seguir novas tendências
 para se intoxicarem, como um drogado, com o carisma de um professor
divertido, como se fossem “viciados no Dharma”
 por um interesse sincero no que o Dharma tem a oferecer, mesmo que
se tivessem aproximado numa das maneiras acima descritas.

Mesmo que de início desejemos simplesmente obter informações,


existem três abordagens diferentes ao Dharma:

1. intelectual
2. emocional
3. devocional.

Qual ou quais delas nós seguimos, depende:

 do nosso professor espiritual


 do que e como ele ou ela ensina
 da cultura
 da inclinação individual.

Cada uma das três abordagens pode ser madura ou imatura, sob o ponto
de vista do Dharma.

Intelectual

Aqueles que têm uma abordagem intelectual imatura são geralmente


fascinados com a beleza dos sistemas budistas. Eles querem aprender os
fatos e as minúcias da filosofia e psicologia para, em certo sentido, neles
se intoxicarem, porém não integram os ensinamentos em si próprios nem
sentem coisa alguma. Essas pessoas são geralmente do tipo insensível ou
possuem bloqueios emocionais.

Aqueles que têm uma abordagem intelectual madura aprendem as


minúcias e os detalhes do Dharma para que possam ter uma maior
compreensão dos ensinamentos, por forma a integrá-los e a aplicá-los
corretamente.

Emocional

Com uma abordagem emocional imatura, as pessoas pretendem apenas


meditar para se acalmarem ou se sentirem bem, tal como através da
meditação sobre o amor para com todos. Tipicamente, essas pessoas
apenas pretendem olhar para as partes “agradáveis” do Dharma, não para
o sofrimento, piores renascimentos, imundice das entranhas do corpo, e
assim por diante. Elas não querem reconhecer as atitudes e emoções
perturbadoras, nem querem trabalhar para delas se livrarem, e têm
pouco entendimento dos ensinamentos. Tais pessoas tendem a ser
demasiadamente emocionais e sensíveis.

Aqueles com uma abordagem emocional madura trabalham com as suas


emoções por forma a se livrarem das emoções perturbadoras e a
melhorarem as emoções positivas.

Devocional

Com uma abordagem devocional imatura, nós pensaríamos sobre o quão


maravilhosos são os Budas, as figuras búdicas e os professores, e o quão
inferior nós somos. Assim, as pessoas com esta abordagem rezam a eles
pedindo ajuda, como se eles fossem “santos” budistas, e não querem
assumir responsabilidades pela sua própria evolução.

Aqueles com uma abordagem devocional madura participam na prática


de rituais para obterem inspiração no trabalho em si próprios.

Equilibrando as Três Abordagens

Nós devemos equilibrar todas as três abordagens, por forma a


entendermos o Dharma, sentirmos algo a nível emocional e obtermos
inspiração.

Por exemplo, as pessoas emocionais devem aprender a abordagem


intelectual. Para fazerem isso, precisam entender que, por exemplo,
quando não estão com vontade de amar os outros, seguindo uma linha de
raciocínio e trabalhando na compreensão elas podem sentir amor.

As pessoas intelectuais precisam aprender a abordagem emocional. Para


fazerem isso, precisam entender que a sua rigidez mental as deixa frias e
isso não só faz com que os outros se sintam desconfortáveis, como até
mesmo elas próprias. Assim, elas precisam de se aquietar para terem
acesso à sua ternura natural.

As pessoas não devocionais devem aprender a abordagem devocional.


Para fazerem isso, elas precisam de entender que é necessário gerar
energia mesmo quando estão sem vontade.

Por outro lado, as pessoas devocionais precisam de crescer


intelectualmente. Para fazerem isso, têm de entender que quando não
conseguem compreender o que está ocorrendo na vida, elas precisam
mais do que o conforto e o alto astral dos rituais.

As Três Abordagens e os Rituais

Para tipos emocionais, os rituais dão expressão e forma ao sentimento.

Para tipos intelectuais, os rituais oferecem regularidade e um senso de


continuidade. Também, a prática de rituais antes de se obter
entendimento diminui a arrogância, tal como a recitação de uma prática
de saddhana tântrica em tibetano quando não se entende a língua. Essa
arrogância geralmente toma a forma de “Eu não vou praticar nada, a não
ser que você me explique e que eu entenda”.

O Relacionamento com um Professor Espiritual

Numa maneira madura ou imatura, talvez tenhamos cada uma das três
abordagens para com os nossos professores espirituais.

Numa maneira imatura, tipos intelectuais debatem com seus professores,


tipos emocionais apaixonam-se por eles e tipos devocionais tornam-se
escravos sem vontade, querendo que os seus professores lhes digam o
que pensar e o que fazer.

Numa maneira madura, tipos intelectuais acham os seus professores


intelectualmente estimulantes e desafiadores, tipos emocionais acham-
nos comoventes e tipos devocionais acham-nos inspiradores.
As pessoas maduras podem ter um equilíbrio de todas as três
abordagens, tanto na prática do “Dharma-Light” (Dharma leve e
provisório) apenas para esta vida, como na prática do “Dharma
Autêntico” (Dharma tradicional) para a liberação dos renascimentos e
iluminação.
O Propósito e os Benefícios do
Debate
Debater, no Budismo, não é derrotar alguém através do
uso inteligente da lógica. O debate, aqui, é uma
ferramenta que serve para ajudar os alunos a desenvolver
clareza no entendimento, para que não tenham dúvidas
durante a meditação. Cada um dos aluno de uma turma
desafia um colega a defender sua posição, questionando-
o e apontando as inconsistências em suas respostas. No
final, ambas as partes se beneficiam.
No treinamento budista, uma das principais finalidades do debate é a de
nos ajudar a desenvolver uma consciência decidida (nges-shes). Tomamos
uma posição e depois o nosso parceiro de debate desafia-nos sob muitos
pontos de vista. Se conseguirmos defender a nossa posição contra todas
as objeções e virmos que não contém inconsistências lógicas e que não
existem contradições, podemo-nos [então] focalizar nessa posição ou
visão com uma consciência totalmente decidida que não pode ser
abalada. Também chamamos de firme convicção (mos-pa) a este estado
mental . Precisamos de ter esta consciência convicta e esta convicção
firme quando meditamos unifocadamente sobre qualquer tópico, tal
como a impermanência, a igualdade entre self e outros, o considerar os
outros como mais preciosos do que nós, bodhichitta, vacuidade, e assim
por diante.

E mais, para os principiantes, o debate oferece uma situação mais


conducente ao desenvolvimento da concentração do que a meditação. No
debate, o desafio do nosso parceiro e a influência de termos os nossos
colegas escutando forçam-nos a concentrar. Quando meditamos sozinhos,
somente a força de vontade nos faz parar o vagueio mental ou o
adormecer. Além disso, nos lugares do debate monástico, muitos debates
ocorrem uns ao lado dos outros e [num tom] muito alto. Isto também nos
força a concentrar. Se os debates à nossa volta nos distraírem ou nos
irritarem, estamos perdidos. Quando desenvolvemos a capacidade de
concentração no lugar do debate, podemos aplicá-la à meditação e até à
meditação em lugares ruidosos.
Além disso, o debate ajuda-nos a desenvolver a nossa personalidade. Não
podemos permanecer tímidos e continuar a debater. Temos de nos
exprimir quando o nosso oponente nos desafia. Por outro lado, se formos
arrogantes ou se ficarmos irritados, a nossa mente não estará clara e,
inevitavelmente, o nosso parceiro nos vencerá. Temos sempre de manter
o equilibrio emocional. Quer ganhemos ou percamos, o debate oferece-
nos uma excelente oportunidade para reconhecer o "eu" a ser refutado.
Quando pensamos ou sentimos que "euganhei, eu sou tão inteligente",
ou "eu perdi, eu sou tão estúpido", podemos reconhecer claramente a
projeção de um "eu" sólido e auto-importante com o qual nos estamos
identificando. Este é o "eu" que é pura ficção a ser refutado.

Mesmo quando provamos ao nosso parceiro de debate que a sua posição


é ilógica, temos de nos lembrar que isso não prova que somos o mais
esperto e que ele é estúpido. A nossa motivação deve ser sempre a de
ajudar o nosso parceiro a desenvolver a clara compreensão e a firme
convicção do que pode ser provado logicamente.
Meditação: Principais Pontos
Dr. Alexander Berzin

Existem vários tipos de meditação. Para nos dedicarmos e obtermos resultados


em qualquer um deles, precisamos saber com precisão e firmeza o exato
estado mental que queremos desenvolver. Mais especificamente, precisamos
saber no que focar, os pormenores desse objeto focal, como nossa mente deve
relacionar-se com ele, o que nos ajudará a desenvolver o estado mental que
buscamos, o que nos atrapalhará, para quê o utilizaremos e o que ele
eliminará. Também precisamos organizar as condições apropriadas à
meditação, a postura e o assento apropriado e como começar e terminar cada
sessão.

Principais Características da
Meditação
A prática da meditação é encontrada em várias tradições espirituais, não apenas no
budismo. Mas enquanto muitos aspectos da meditação estão presentes em todas as
tradições indianas, aqui vamos limitar nossa discussão ao modo como a meditação
é apresentada no budismo.

O Que É Meditação

A palavra meditação (sgom, skt. bhavana) significa “habituar-nos”. A palavra


tibetana tem a conotação de construção de um hábito benéfico. A palavra sanscrita
tem mais uma conotação de fazer alguma coisa efetivamente acontecer. Existe um
certo tipo de atitude ou estado mental benéfico e queremos fazer isso acontecer,
em outras palavras, fazer esse estado mental ser operante no modo de pensarmos
e vivermos. Dependendo da tradição na qual a meditação é usada, as instruções
especificarão quais são os hábitos benéficos e qual a razão e objetivo de
desenvolvê-los. Em todas as tradições indianas, no entanto, esse processo é
tripartido: primeiro ouvir os ensinamentos, depois pensar e finalmente meditar.

Ouvindo os Ensinamentos

Vamos supor que queremos construir o hábito benéfico de sermos compassivos.


De forma a desenvolver compaixão ou aumentar um sentimento já existente de
compaixão, precisamos primeiro ouvir ensinamentos sobre o tópico. Na Índia
antiga, nenhum ensinamento era escrito. Eram todos transmitidos oralmente. Por
esse motivo, alguém que estivesse aprendendo a meditar tinha que
primeiramente ouvir os ensinamentos. É por isso que o primeiro passo é conhecido
como “ouvir”.

Hoje em dia, claro, podemos ler sobre vários ensinamentos – não precisamos
efetivamente ouvir alguém nos ensinar em pessoa – mas o princípio por traz disso
é bastante relevante. Antigamente, tudo precisava ser memorizado e o ouvinte
tinha que ter a certeza de que o que alguém estava recitando era preciso. A pessoa
recitando o ensinamento de memória poderia não se recordar corretamente.
Alguns erros poderiam ser introduzidos e isso poderia ser um problema.

Consciência Discriminativa
Ao ouvirmos os ensinamentos precisamos desenvolver o que chamamos
“consciência discriminativa que surge do ouvir” (thos-byung shes-rab). O termo
tibetano “sherab” (shes-rab, Skt. prajna) é frequentemente traduzido como
“sabedoria”, mas usar a palavra “sabedoria” é muito vago; não tem um significado
preciso. Se um grupo de pessoas ouve a palavra “sabedoria”, cada uma terá uma
ideia diferente sobre o que efetivamente significa, portanto a palavra “sabedoria”
não nos ajuda a entender o termo “sherab” com precisão. Por isso é que eu prefiro
traduzir “sherab” como “consciência discriminativa”.

Consciência discriminativa se baseia em um fator mental anterior, que eu traduzo


como “distinguir” (’du-shes; Skt. samjna). A maioria das pessoas traduz esse termo
como “reconhecimento”, mas “reconhecimento” também não é preciso.
“Reconhecer” significa que você conhecia o objeto antes, e então o reconheceu; isso
não é muito correto. “Distinguir” significa especificar algo como “isso” ao
diferencia-lo de tudo o que não é “isso”. Somos capazes de diferenciar “isso” de
“não isso”, ou “isso” de “aquilo”, porque todas as coisas têm propriedades
características específicas, individuais, marcas as que definem, que percebemos
quando estamos conscientes de alguma coisa. Um exemplo simples é que crianças
conseguem distinguir “faminto” de “não faminto”. Crianças não precisam de
palavras para essas duas sensações físicas diferentes e elas não precisam entender
os conceitos de “faminto” e “não faminto” profundamente. Ainda assim
elas podem distinguir entre as duas, porque cada uma tem uma propriedade
característica única que a define, a saber, um tipo de sensação física.

Consciência discriminativa adiciona um fator de certeza ao distinguir:


“Definitivamente é isso e não aquilo”. É dessa certeza que precisamos quando
ouvimos ensinamentos ou lemos sobre eles. Precisamos de confiança para saber:
“Esse é o verdadeiro ensinamento; esse não é um ensinamento falso”. Na realidade
é muito difícil saber que “esse é o verdadeiro ensinamento”, porque as escrituras
em si não são fáceis de entender. Mas como saber que um professor em particular
é digno de confiança, autêntico? Alguém pode estar ensinando sobre budismo ou
ensinando sobre amor e compaixão e talvez dando informações que entram em
conflito com o que o budismo realmente diz. Precisamos estar muito certos,
usando consciência discriminativa, que o ensinamento que ouvimos ou lemos é
exatamente como deveria ser; precisamos estar certos que é o ensinamento
autêntico.
Existem certos fatores que precisam estar presentes para que o ensinamento seja
valido como budista. O autor ou aquele que o transmite precisa ser alguém que
possamos verificar, por investigação, se é um professor devidamente qualificado.
Para verificarmos isso, precisamos perguntar a outras pessoas, por exemplo: “Essa
pessoa tem um professor válido, como é a relação entre eles? O professor dessa
pessoa vem de uma linhagem de professores que vem do passado?” Essas são
questões importantes de serem investigadas. Não devemos simplesmente pegar
qualquer livro e, só porque foi escrito por alguém com um nome famoso, achar que
é uma fonte digna de confiança. O mesmo princípio se aplica ao ouvirmos uma
palestra.

Usando de Discriminação para Determinar o Contexto de um Ensinamento


Ademais, há um contexto para cada um dos ensinamentos budistas, uma escola
filosófica da qual o ensinamento deriva. É importante sabermos qual o contexto de
um determinado ensinamento. A razão é que os vários sistemas budistas tem
explicações diferentes para um mesmo termo técnico, por exemplo “karma”. E
ainda, os ensinamento sobre karma em um sistema específico se encaixam com as
explicações que esse sistema dá sobre muitos outros tópicos do Dharma, como por
exemplo, a teoria da cognição. Por isso precisamos ter certeza de qual sistema os
ensinamentos vêm, para que possamos combiná-los com outros ensinamentos que
já tenhamos ouvido.

Saber o contexto no qual as palavras estão sendo usadas é importante mesmo em


conversas casuais. Por exemplo, você ouve a palavra “bon.” Esse é o nome da
tradição pré budista do Tibete. Mas em Frances, bon significa bom. Portanto se
você não estiver ciente do contexto da língua, pode se confundir ao ouvir a palavra
“bon”. A pessoa se refere a bon em frances ou em tibetano? Depender apenas do
som da palavra, sem saber de que idioma é, pode causar confusão.

Da mesma forma, se tomarmos como exemplo os ensinamentos sobre a vacuidade,


veremos que ela é explicada de uma determinada forma em uma escola indiana de
budismo e de outra em outra escola, também indiana, de budismo. E a mesma
escola indiana de budismo vai ser interpretada de forma muito diferente em cada
uma das várias escolas de budismo tibetano.

O fato de haver tantas explicações diferentes para o mesmo tópico é um dos


aspectos mais confusos para ocidentais estudando budismo. Já é suficientemente
confuso, especialmente com a internet, termos acesso a tantas tradições asiáticas
de budismo. Mas mesmo dentro da tradição budista de um determinado país – do
Tibete, por exemplo – existem muitas variações e interpretações diferentes.

Deixe-me ilustrar esse ponto. Vamos supor que estejamos estudando sobre karma
com um determinado professor. Para não nos confundirmos sobre o que estamos
aprendendo, precisamos isolar a explicação do professor das encontradas em os
outros sistemas que não o que o professor está ensinando. Por exemplo,
precisamos saber que estamos aprendendo a interpretação budista, e não a Hindu.
Dentro das explicações budistas, estamos estudando a que vem da tradição indiana
sanscrita, não da tradição Theravada pali. Dentro das tradições indianas sanscritas,
estamos estudando o ponto de vista Vaibhashika, não o ponto de vista Chittamatra.
E ainda, estamos aprendendo a explicação Gelug da apresentação Vaibhashika e
não a explicação Kagyu. Precisamos saber precisamente o contexto, porque
explicações diferentes de karma variam bastante dependendo do contexto
filosófico. Se tentarmos encaixar a explicação Gelug de um tópico do Dharma no
sistema Kagyu, ficaremos muito confusos. E se tentarmos misturar todas as
explicações em uma grande sopa, ficaremos ainda mais confusos.

Um de meus professores fez uma observação muito perspicaz sobre os ocidentais.


Ele disse: “Vocês ocidentais estão sempre querendo comparar duas coisas das
quais vocês não entendem bem nenhuma. No final, ficam apenas mais confusos”. A
lição que devemos aprender com isso é que não tem problema compararmos
sistemas diferentes, mas só se conhecermos um sistema muito bem. Uma vez que
você conhece um sistema muito bem, então pode olhar um outro sistema e
apreciar as diferenças, mas não antes.

Portanto, se quisermos meditar sobre karma ou vacuidade, ou sobre qualquer


outro tópico budista, precisamos desenvolver a consciência discriminativa de
ouvir. Isso significa sabermos com certeza e de forma precisa que:

 Essas são as palavras que foram ditas e não quaisquer palavras


 A fonte dessas palavras era uma fonte precisa de informação sobre o tópico, e não
alguém em quem não se pudesse confiar
 Esse, e não outro sistema qualquer, é o sistema filosófico de onde veio a informação.

Uma vez que tenhamos a consciência discriminativa que surge com o ouvir,
estamos prontos para o passo seguinte.

Pensando sobre o Que Ouvimos

O próximo passo é desenvolver a consciência discriminativa que vem do pensar


(bsam-byung shes-rab). O que significa “pensar” (bsam-byung shes-rab)? Pensar,
aqui, significa tentar entender o significado de algo. Mas então o que significa
“entender” algo? A definição do termo tibetano (rtogs-pa, apreender) normalmente
traduzido como “entender” é: “saber algo de forma precisa e conclusiva”

A propósito, muitas das palavras sanscritas e tibetanas usadas para descrever


atividade mental e mente tem significados bastante diferentes no idioma original,
quando comparados às palavras que usamos nos idiomas ocidentais. Por isso é tão
útil estudar os idiomas asiáticos originais e o significado das palavras dentro do
contexto do idioma asiático. Isso não quer dizer apenas ler a tradução no
dicionário, mas realmente trabalhar com a linguagem, aprender as definições, e
assim por diante. Se fizermos isso, ganharemos uma ferramenta analítica muito
poderosa para entender os ensinamentos budistas.

Compreendendo as Palavras Que Foram Ditas


A palavra “entender” pode ser usada também em conexão com ouvir os
ensinamentos. Nesse contexto, apareceria em frases como: “Eu entendo que foi
você quem disse essas palavras”. Se a ênfase na frase é na palavra “você”, isso
implica que não temos dúvida que foi realmente você quem disse as palavras. Não
achamos que não foi você quem as disse ou que foi outra pessoa. Ouvimos você
dizê-las e estamos totalmente confiantes que não há nada errado com nossa
audição.

Se a ênfase for em “essas palavras”, então “Eu entendo que você disse essas
palavras” pode ter um significado diferente: “Eu entendi cada uma das palavras
que você falou. Posso não compreender totalmente o significado mais profundo
dessas palavras e frases – esse é um outro processo; mas eu entendi corretamente
que você disse essas palavras e essa frase e essa sentença”. Precisamos ter certeza
que ouvimos com precisão o que foi dito. Podemos verificar com outras pessoas
para nos certificar que elas ouviram as mesmas palavras que nós. Se houver uma
gravação, podemos ouvi-la. Se a voz do palestrante e a gravação forem claras,
teremos confiança de que ouvimos as palavras corretamente. Se não estiverem
muito claras, podemos verificar com outras pessoas para que elas nos ajudem, para
descobrir o que elas ouviram e comparar com o que nós ouvimos. Isso é muito
importante quando contamos com gravações dos ensinamentos. Portanto, usando
a consciência discriminativa que vem com o ouvir, estabelecemos que
compreendemos corretamente e decisivamente as palavras.

Entendendo o Significado das Palavras


Pensar – o segundo passo no processo tripartido de ganhar compreensão –
significa entender o significado das palavras, que é, logicamente, absolutamente
necessário. Se vamos construir algo como um hábito benéfico, precisamos não
apenas saber as palavras, mas o significado das palavras. Por exemplo, algumas
pessoas recitam versos em tibetano e não fazem a mínima ideia do que eles
significam. Como é possível construir algo como um hábito benéfico se você nem
conhece o significado das palavras?

Você perceberá que muitos professores de budismo tibetano recomendam a


recitação de orações e várias práticas em tibetano. É claro que existem benefícios
em participar de rituais centenários: você sente que pertence a uma tradição, e é
reconfortante saber que pessoas de países diferentes e diferentes idiomas estão
cantando e recitando a mesma coisa. Mas recitar em tibetano não nos ajuda a
contrair um hábito benéfico em cima do que aquelas palavras dizem, a menos que
saibamos o significado em tibetano. Portanto precisamos saber o significado, e o
significado tem que ser preciso e conclusivo. Isso significa usar consciência
discriminativa para isolar o que algo significa daquilo que não significa. Fazemos
isso através de um processo de análise e raciocínio lógico, para chegarmos a uma
compreensão conclusiva do que as palavras realmente significam.

A questão de ganhar uma compreensão conclusiva leva a um tópico muito difícil:


Com ficarmos realmente convencidos de algo? Para nos convencermos de algo que
não é obvio e não pode ser conhecido pelos sentidos, precisamos contar com a
lógica. Mas existem pessoas que, ao apresentar-lhes uma argumentação lógica,
ainda assim não acreditam no que prova a linha de raciocínio. Em alguns casos elas
não querem acreditar na conclusão, mesmo que seja lógica. Se formos assim, isso
pode nos trazer muitos obstáculos no estudo do Dharma.
Mas vamos assumir que aceitamos as conclusões da lógica. E vamos usar a
impermanencia para um exemplo do processo de análise e raciocínio. O que
queremos provar nesse caso, e desse modo entender, é que tudo o que é criado ou
produzido na dependência de causas e condições vai eventualmente deixar de
existir. Quer estejamos falando de um computador, um carro, um corpo ou um
relacionamento pessoal, todos surgiram na dependência de causas e condições. E
devido ao fato dessas causas e condições não serem renovadas a cada momento,
aquilo que surgiu delas e depende delas eventualmente irá se desfazer.

Você pode pensar em exemplos com algo que você comprou e que eventualmente
quebrou ou falhou; como, por exemplo, o carro novo que você comprou e um dia
quebrou, a flor que murchou ou a fruta que cresceu e depois apodreceu. Não há
exceções à regra. Não existem exemplos de algo que foi produzido ou
manufaturado que nunca quebrou e durou para sempre. Se foi criado – o que
significa que não existia antes – um dia vai acabar. Por quê? Porque algo novo só
pode surgir na dependência de prévias causas e condições. Mas imediatamente
após alguma coisa surgir, as causas e condições que suportaram o surgimento
inicial já mudaram. Elas mudaram porque também surgiram na dependência de
outros fatores causais. Por isso, não estão mais presentes para suportar o
surgimento contínuo desse item nos momentos subsequentes. Em outras palavras,
quando as causas e condições para o surgimento de algo não estão mais presentes,
qualquer coisa que tenha surgido na dependência desses fatores irá se desfazer.
Isso porque faltam os fatores que suportam sua existência contínua no mesmo
estado em que primeiro surgiu. Seu estado mudará porque será afetado por outras
causas e condições.

Outro exemplo é os relacionamentos pessoais. Um relacionamento com alguém


surge na dependência de muitas causas e condições. Por exemplo, eu tinha uma
certa idade e a outra pessoa tinha uma certa idade, isso estava acontecendo na
minha vida, aquilo estava acontecendo na vida dela, isso era o que estava
acontecendo na sociedade. Todos esses fatores suportaram o nosso encontro e o
desenvolvimento de um relacionamento. Mas essas condições não duraram; elas
mudaram constantemente. Nós envelhecemos, coisas diferentes aconteceram em
nossas vidas. Mesmo que tivéssemos ficado juntos por um longo tempo, um de nós
iria morrer antes do outro. Por depender de causas e condições, nosso
relacionamento estará sempre mudando e não poderá durar para sempre. Apesar
de essa ser a conclusão que chegamos através da lógica, não queremos aceitar esse
fato.

Em outro exemplo compramos um computador e esperamos que ele dure pra


sempre e nunca pare de funcionar, mas ele para. Por que parou? Parou porque foi
construído. O que quer que tenha acontecido quando ele parou ou quebrou – foi só
a condição para seu fim. A causa real para que ele tenha quebrado foi o fato de ter
sido construído. É como dizer: “Qual a razão dessa pessoa ter morrido? A razão de
sua morte foi seu nascimento”. Tem uma piada que diz: “Você sabe a definição de
vida? Vida é uma doença sexualmente transmitida com 100% de taxa de
mortalidade” Infelizmente é verdade!
Mas mesmo usando lógica quando pensamos a respeito de um determinado tópico,
como quando tentando entender a impermanencia, muitas vezes existe uma
grande resistência. Muitas vezes não queremos acreditar na informação que está
sendo apresentada. Não queremos aceitar que a impermanencia é um fato da vida.
É por isso que precisamos repassar a lógica muitas vezes para realmente
trabalharmos profundamente com esse tópico.

Através do processo de pensamento, chegamos a uma “compreensão” – que é


chamada “consciência discriminativa que vem do pensar”. Entendemos
corretamente o significado das palavras e chegamos a uma conclusão. Em outras
palavras, através da lógica excluímos aquilo não era o significado das palavras.
Impermanência não quer dizer que talvez meu computador vá quebrar. Significa
que ele certamente irá quebrar algum dia.” Portanto, quer estejamos ou não
firmemente convencidos da verdade de que “tudo o que for criado vai acabar”, pelo
menos entendemos corretamente o que impermanência significa.

Nos Convencendo de Que os Ensinamentos Que Ouvimos são Verdadeiros e


Úteis
A seguir precisamos nos convencer não só do significado das palavras que
ouvimos, mas também de que aquilo que elas significam é verdadeiro. No nosso
exemplo da impermanência, podemos entender o significado do termo, mas será
que acreditamos que é realmente verdadeiro? Será que estamos realmente
convencidos? Se persistirmos em pensar sobre a impermanência e realmente não
conseguirmos encontrar nenhuma exceção à regra, passamos a verdadeiramente
acreditar que a impermanência é uma lei fundamental. O processo de pensamento
seria mais ou menos assim: “Definitivamente eu vou morrer. Todo mundo que
nasceu morreu. Não existe exemplo de alguém que nasceu e não morreu. Portanto,
existe alguma razão para eu acreditar que não vou morrer? Não, não existe”. Se
estivermos convencidos de quem em algum momento iremos morrer, tentaremos
fazer essa vida a mais significativa possível. Geralmente o que acontece é que
alguém que teve uma experiência de quase morte se dá conta: “Ei, ainda estou vivo
e quero tornar o tempo que me resta o mais significativo possível”. Mas não
precisamos esperar por uma experiência de quase morte para nos convencermos
de nossa mortalidade e ter a convicção de usar o tempo que nos resta.

Portanto, através do pensamento, primeiro entendemos o significado de forma


correta e precisa. A seguir, nos convencemos de que é verdadeiro. E finalmente,
precisamos nos convencer de que será bom se nós realmente absorvermos isso e
fazer disso parte de como eu funciono na vida.

Tudo isso – entender o significado, se convencer de que é verdade e ter certeza de


que é útil – é parte do desenvolvimento da consciência discriminativa que vem do
pensar. É um processo muito importante e toma bastante tempo. Precisamos
sentar silenciosamente e pensar muito profundamente sobre qualquer
ensinamento que tenhamos ouvido ou lido. Se não fizermos isso e tentarmos
meditar sobre a impermanência, por exemplo, é provável que vamos apenas sentar
e não ter a mínima idéia do que fazer. Caímos então em um torpor – que chamamos
de “ficar olhando pro nada” - e consideramos isso meditação. De maneira alguma
isso é meditação. Então o que é meditação?

Três Tipos de Meditação

Assim como ao ouvir os ensinamento e pensar sobre eles desenvolvemos as


consciências discriminativas associadas a essas ações, a meditação nos leva à
“consciência discriminativa que surge da meditação” (sgom-byung shes-rab). Com
essa consciência somos capazes de gerar, com total concentração, o estado mental
benéfico que objetivamos desenvolver e podemos discriminá-lo com precisão de
outros estados mentais. Para ganharmos essa consciência discriminativa, nos
acostumamos a esse estado mental desejado ao gerá-lo repetidamente. Existem
muitos tipos de meditação para fazermos isso, mas eu vou mencionar apenas os
três mais comuns.

Focando em um Objeto
O primeiro tipo de meditação está relacionado ao foco em um objeto. Podemos
focar em qualquer tipo de objeto. O que estamos tentando desenvolver é
concentração em um objeto. Quer estejamos focando nas sensações do ar entrando
e saindo durante a respiração, na visualização de um Buda ou na natureza da
mente, tudo isso é focar em um objeto. Inclusive esses são os três objetos mais
comumente utilizados para desenvolvermos concentração.

Uma variação importante desse tipo de meditação é focar em um objeto com


concentração e, enquanto se concentra nele, tentar discerni-lo de uma certa
maneira. Como sendo impermanente, por exemplo. Isso é muito importante para
superarmos o apego às coisas como se elas fossem durar pra sempre.

Outro exemplo útil: Você tem uma amizade ou relacionamento com uma pessoa e
ela não te liga ou visita e você fica muito chateado. Nesse exemplo você precisa
entender e se convencer totalmente do fato de que “Não sou a única pessoa na vida
do meu amigo. Existem outras pessoas em sua vida além de mim. Portanto, não faz
o mínimo sentido esperar que ele dedique seu tempo exclusivamente a mim e a
mais ninguém”. Aqui você está desafiando uma projecção fantasiosa de algo
impossível: “Eu sou a única pessoa na vida do meu amigo”. E então, quando estiver
chateado porque seu amigo não está lhe dando atenção, você tenta focar nele com
esse discernimento: “Ele tem outras pessoas e outras coisas em sua vida além de
mim”.

Portanto, quando falamos de meditação, não estamos falando de algum tipo de


processo místico ou mágico; não estamos partindo para o mundo da fantasia. Pelo
contrário, meditação implica em vários métodos práticos para lidar com
sofrimento, dificuldades e problemas em nossas vidas.

O primeiro tipo de meditação, portanto, é focar em um objeto de uma certa


maneira, quer seja só com concentração ou com algum entendimento e
discernimento, como no nosso exemplo do foco no amigo.
Gerando um Estado Mental
O segundo tipo é meditação para gerar um certo estado mental, como por exemplo
gerar amor ou compaixão e focar em sentir isso. A ênfase não está no objeto ao qual
direcionamos o amor ou compaixão; mas sim em desenvolver
a emoção ou sentimento.

Gerando uma Aspiração


O terceiro tipo de meditação é focar em um objeto com a aspiração de alcançar
uma meta relacionada a ele; por exemplo, focar na nossa própria iluminação
individual que ainda não ocorreu, com a aspiração de “eu vou conseguir”. Essa é a
meditação de bodhichitta. Quando estamos meditando em bodhichitta, não
estamos focando na iluminação de maneira generalizada, nem na iluminação do
Buda; mas sim em nossa própria iluminação individual. Nossa iluminação ainda
não aconteceu, mas pode acontecer - estamos convencidos de que pode acontecer
– com base em nossa natureza búdica e muito trabalho duro. Então com esse
terceiro tipo de meditação estamos focando em uma meta futura, com o forte
objetivo de alcança-la.

Os Três Tipos de Meditação na Vida Cotidiana


Esses três tipos de meditação desenvolvem hábitos benéficos que queremos trazer
para nossas vidas. É muito importante que a meditação não seja algum tipo de
atividade periférica que não tenha nenhuma relação com nossa vida. Meditação
não é um tipo de fuga; não é um jogo; não é um hobby. É um método para nos
ajudar a desenvolver qualidades que queremos trazer para nossas vidas e usar
todos os dias.

Vamos ilustrar como aplicar esses três métodos usando os exemplos já


mencionados. Quando praticamos o primeiro tipo de meditação, no qual focamos
em um objeto, aprendemos a aquietar a mente e aumentar nossa habilidade de
concentrar. Aprendemos não só a nos concentrar no trabalho, mas também em
uma conversa. Se estivermos conversando com alguém, queremos concentrar na
pessoa e no que ela está dizendo, e não ficar pensando em todo tipo de coisas.
Queremos ouvir sem nenhum tipo de comentário mental, sem julgar o que a pessoa
diz: “Nossa, isso é muito idiota” ou “Queria que ele se calasse”. Queremos silenciar
esse diálogo mental. Podemos complementar nossa concentração na pessoa e em
suas palavras com discernimento: “Você é um ser humano e tem sentimentos,
assim como eu; você quer que lhe deem atenção quando fala, assim como eu”. Isso
é o que treinamos fazer na meditação de concentração.

Podemos usar o segundo tipo de meditação, gerar um estado mental, para


aumentar o amor e compaixão que temos normalmente. Trabalhamos para gerar
amor – o desejo de que todos sejam felizes - sem importar onde estamos ou com
quem. Amor, aqui, realmente significa amar a todos: todos no ônibus, todos no
metro, todos no trânsito, todos na loja, todos os insetos - todos.

E finalmente, usamos a meditação para desenvolver uma aspiração que


carregamos por toda a vida: “Estou trabalhando em direção a um objetivo. Estou
tentando diminuir minhas falhas. Estou trabalhando para desenvolver boas
qualidades, e estou trabalhando para me libertar e iluminar.” Essa aspiração
permeia toda a nossa vida, não apenas o curto período em que sentamos em uma
almofada.

Conselho de Tsongkhapa para Desenvolver um Estado Mental


Benéfico

Tsongkhapa, o grande mestre tibetano, explicou muito bem o que realmente


precisamos saber de todos esses métodos de meditação; em outras palavras, como
desenvolver um estado mental benéfico como base para a meditação.

Saber no Que Estamos Focando


Primeiro precisamos saber no que estamos focando. Tomemos o exemplo da
compaixão. Focando na compaixão estamos focando no sofrimento alheio. O que é
bastante diferente de bodhichitta, que é focar em nossa própria iluminação que
ainda não está acontecendo. Algumas pessoas acham que estão meditando em
bodhichitta quando estão apenas meditando em compaixão; mas bodhichitta e
compaixão não são a mesma coisa.

Conhecer Todos os Aspectos


Após determinarmos com precisão o objeto do foco, nesse caso a compaixão pelo
sofrimento alheio, precisamos conhecer todos os aspectos desse objeto. Assim,
exploramos todos os vários aspectos e tipos de sofrimento que todos
experimentam: infelicidade, nossa infelicidade comum, estar sob controle da
impulsividade do karma, o sofrimento dos nascimentos incontrolavelmente
recorrentes. Não focamos simplesmente em um tipo de sofrimento de apenas
alguns seres, como a infelicidade e as dificuldades de se perder o emprego. No caso
da grande compaixão, focamos em todos os aspectos do sofrimento experimentado
de forma universal por todos, incluindo os animais.

Saber Como Nossa Mente Está Se Relacionando com o Objeto


Em seguida precisamos saber como nossa mente está se relacionando com o
objeto. No caso da compaixão, a forma como a mente está focando no sofrimento é
com o desejo que os outros estejam livres dele, que o sofrimento se acabe.
Novamente, esse pensamento é muito diferente de bodhichitta. Com bodhichitta
estamos focando na nossa iluminação que ainda não aconteceu e a maneira como
estamos nos relacionando com isso, nossa atividade mental, é com a intenção: “Vou
atingir a iluminação”. Isso é muito diferente da forma como nos relacionamos com
a compaixão. Compaixão não é uma atitude tipo “ai que horror”. É a aspiração:
“Que os sofrimentos desta(s) pessoa(s) se acabem”.

Saber o Que Ajudará no Desenvolvimento


Então precisamos saber o que precisamos para desenvolver esse estado mental. No
nosso exemplo, o que sustenta a compaixão é ter a mesma intenção ou sentimento
com o nosso próprio sofrimento. Isso é o que geralmente se chama “renúncia” –
renúncia é focar em nosso próprio sofrimento, e ter a determinação de se livrar do
sofrimento e das causas do sofrimento. Querermos nos livrar das causas do
sofrimento significa estarmos dispostos a abrir mão dos comportamentos que nos
fazem sentir mal, como ficar com raiva por exemplo. Se conseguirmos realmente
desenvolver a determinação de nos livrar do sofrimento, isso sustentará nossa
capacidade de direcionar essa atitude, esse desejo, aos outros com a mesma
intensidade com a qual focamos em nós mesmos.

Saber o Que Prejudica o Desenvolvimento


Também precisamos saber o que atrapalha o desenvolvimento desse estado
mental. O que atrapalha o desenvolvimento da compaixão é não levar as outras
pessoas a sério e não levar o sofrimento delas a sério. Para isso precisamos pensar,
“Todos querem ser felizes. Ninguém quer ser infeliz. Ninguém é diferente em seu
desejo de se ver livre do sofrimento. Somos todos iguais. E todos tem sentimentos
assim como eu. Todo mundo que está sofrendo sente tanta dor quanto eu sinto
quando sofro.” Desenvolvemos assim sensibilidade com os outros, respeito com os
outros. Se não temos essa sensibilidade e respeito, vamos nos atrapalhar em nosso
desenvolvimento de compaixão sincera.

Saber para Que Serve


Tsongkhapa continua: quando desenvolvemos esse estado mental, o que fazemos
com ele? Em outras palavras, para que ele serve? Desenvolvo compaixão, mas e
daí? Bom, me ajudará a lidar com os outros; me ajudará a trabalhar para o
benefício deles; e vai realmente me motivar e me empurrar para que eu alcance o
objetivo final que é a iluminação, para que eu possa ajudar os outros de forma
substancial. Entendo que o que me previne de ser capaz de ajudá-los agora são
minhas limitações, então eu quero muito superá-las.

Saber o Que Será Eliminado


A próxima coisa que precisamos saber é: O que esse estado mental eliminará? A
compaixão eliminará a frieza com que trato os outros. Me ajudará a me livrar da
preguiça de ajudar os outros e me ajudará a eliminar a preguiça de cuidar de mim
mesmo. Eliminando essa frieza eu consigo ajudar mais os outros.

Se conhecermos todos esses elementos para desenvolver e meditar na compaixão,


poderemos ter bastante confiança de que estamos meditando de maneira correta;
sabemos exatamente o que estamos fazendo e porque estamos fazendo. Nos
preparamos corretamente. Caso contrário é como mergulharmos em uma piscina
funda sem termos a mínima ideia de como nadar. Se simplesmente dissermos
“Bom, sente e medite”, e não soubermos o que estamos fazendo, é bem provável
que não tenhamos bons resultados.
Preliminares para Meditar

Ambiente Conducente à Meditação

Para nos engajarmos na prática da meditação, precisamos de


circunstâncias conducentes. Existem muitas listas de fatores conducentes
à meditação, geralmente são discutidas ou apresentadas no contexto de
um retiro de meditação, ao passo que a maioria de nós medita em casa.

Mesmo em casa, o melhor é não ter distrações. O ambiente precisa ser o


mais silencioso possível. Muitos de nós moramos em ruas barulhentas,
com trânsito, portanto o melhor é meditar de manhã bem cedo ou tarde
da noite. Além disso, não deve haver música ou TV ligada no cômodo ao
lado. Essas coisas são bastante importantes. Se não for possível ter um
ambiente silencioso, pode-se tentar usar tampões de ouvido. Eles não
bloqueiam totalmente o barulho, mas certamente deixam-no menos
intenso.

Muitos de nós não temos o privilégio de um quarto separado para


meditação, mas você pode usar qualquer espaço disponível. Medite em
sua cama se precisar, isso não é um problema. A maioria dos tibetanos
que moram na Índia meditam em suas camas.

Outrofator bastante importante é ter um quarto limpo e arrumado. Um


ambiente limpo e arrumado influencia a mente a ficar limpa e arrumada.
Se o quarto for desleixado, bagunçado ou sujo, a mente tende a ficar da
mesma forma. Por isso uma das preliminares que é sempre colocada
como requisito antes da meditação é limpar o quarto e fazer algum tipo
de oferenda, mesmo que seja um simples copo de água. Precisamos
demostrar respeito pelo que estamos fazendo, e se estamos pensando em
convidar os Budas e bodisatvas, queremos convidá-los para um quarto
limpo e não um quarto desarrumado e sujo. Mesmo em um nível
psicológico normal, é importante termos respeito pelo que estamos
fazendo, e tratar como algo especial. “Especial” não quer dizer um
ambiente elaborado, como um filme de Hollywood, com velas e incensos,
mas simples, básico, organizado, limpo e respeitável.

Postura

Entre as diferentes culturas asiáticas, a postura utilizada para a


meditação varia. As posturas de meditação da India/Tibet, China/Japão, e
Tailândia são todas diferentes. Todos sentam em uma postura diferente,
portanto não podemos dizer que uma determinada postura é a única
postura correta. Os indianos e tibetanos sentam de pernas cruzadas.
Frequentemente os japoneses e em alguns casos os chineses, sentam
ajoelhados. Os tailandeses sentam com as pernas para o lado. Para
práticas tantricas, nas quais trabalhamos com as energias do corpo, o
lótus completo (rdo-rje skyil-krung) é exigido, mas a maioria de nós não
está nesse estágio de prática. Se você aspira fazer esse tipo de prática,
recomenda-se fortemente que comece a sentar na postura de lótus
completo desde muito jovem, porque é muito difícil começar a sentar em
lótus completo mais tarde na vida. Para ocidentais, se conseguir sentar
em qualquer uma dessas posturas tradicionais asiáticas, funcionará muito
bem; se não, sentar em uma cadeira está ótimo. O mais importante é
manter a coluna ereta.

Direcionando o Olhar

No que diz respeito aos olhos, algumas meditações são feitas com os olhos
fechados, algumas com os olhos abertos, algumas olhando para baixo,
algumas olhando para cima; depende da meditação. Em geral os tibetanos
desencorajam meditar com os olhos fechados. Além do fato de ser muito
mais fácil adormecer quando temos os olhos fechados, também tende a
criar um obstáculo mental em que você sente que para meditar precisa
fechar os olhos. Se você sente que é preciso ter os olhos fechados para
meditar, torna-se mais difícil integrar o que você desenvolve na
meditação com a vida real. Por exemplo, se estou falando com alguém e
para gerar um sentimento amoroso preciso fechar os olhos, isso é
estranho. Portanto, na tradição tibetana, mantemos os olhos
semiabertos,ligeiramente desfocados, olhando para o chão.

A Almofada

Sentando-sede pernas cruzadas é importante escolher uma almofada


adequada. Algumas pessoas se sentem confortáveis sentando
diretamente no chão e suas pernas não adormecem. Sua Santidade o Dalai
Lama, por exemplo, senta assim quando vai ensinar. Mas para a maioria
de nós, se sentarmos sem uma almofada, nossas pernas adormecem mais
rapidamente. Portanto você pode tentar sentar-se em uma almofada,
deixando os quadris mais elevados que os joelhos. Você precisa escolher o
tipo de almofada que melhor se adapte: grossa ou fina, firme ou macia, e
assim por diante. Para cada pessoa é diferente. O ponto mais importante é
que seja confortável e que previna suas pernas de adormecerem, porque
isso pode ser muito desagradável.
Muitos centros budistas tem zafus grossos, redondos ou quadrados, mas
esses zafus Zen são para a postura japonesa, ajoelhada. Zafus grossos não
são o tipo de almofada correta para sentarmos de pernas cruzadas – são
muito altos. Talvez algumas pessoas consigam sentar nelesde pernas
cruzadas confortavelmente. Mas para a maioria das pessoas eles são
muito altos e muito firmes. Se o seu centro tem apenas zafus altos, e você
senta de pernas cruzadas, vai querer levar sua própria almofada.

Escolhendo uma Hora para Meditar

Para a maioria das pessoas a melhor hora para meditar é logo ao acordar
ou antes de dormir, pois estamos menos distraídos com as atividades
diárias. Algumas pessoas se sentem mais acordadas de manhã e outras à
noite. Você seconhece e a seu estilo de vida melhor do que ninguém,
então você é quem deve determinar qual o melhor horário para meditar.
O que nunca é recomendado é meditar quando estiver sonolento. Se
estiver com sono à noite, mas tentar meditar antes de ir para cama, pode
adormecer no meio da meditação, o que não ajuda em nada. E da mesma
forma de manhã cedo: se ainda estiver meio dormindo sua meditação não
será muito eficaz. Portanto, julgue por você mesmo o que funciona
melhor. Não tem problema tomar um café ou chá antes de meditar pela
manhã, mas os tibetanos não tem esse hábito.

Meu professor, Serkong Rinpoche, era um dos professores de Sua


Santidade o Dalai Lama. Ele descrevia como eles mediavam nas
universidades monásticas tântricas do Tibet, onde ele recebeu seu
treinamento. Todos os monges sentavam-se na sala de meditação e
dormiam lá, sentados em seus lugares, meio que encostando a cabeça no
colo do companheiro ao lado (tibetanos não tem problemas com contato
físico). O sino tocava para eles acordarem muito, mas muito cedo de
manhã, e era esperado que eles imediatamente se sentassem eretos e
começassem suas meditações, recitações e assim por diante. Mas a não
ser que seja um médico acostumado a acordar no meio da noite e
imediatamente levantar e fazer uma cirurgia, ou algo do gênero, é
bastante difícil começar a meditar imediatamente após acordar.

Por Quanto Tempo Meditar

Quando você está começando a praticar meditação, é importante que suas


sessões sejam curtas, porém frequentes. Quando se é principiante, tentar
sentar-se e meditar por horas é uma provação. Em alguns lugares faz-se
isso, mas em geral os tibetanos desencorajam esse tipo de prática, porque
se meditação for uma provação, você não vai querer meditar! Ficará
esperando a sessão terminar. Portanto, no começo medite apenas em
torno de cinco minutos – é o suficiente. Nos monastérios da tradição
Theravada, eles alternam meditação sentada com meditação caminhando,
de modo que não ficam fazendo a mesma atividade por um longo período.

A analogia que os tibetanos usam é a de um amigo que vem lhe visitar e


fica por muito tempo. Você acaba ficando impaciente, esperando que ele
vá embora logo. E quando ele se vai você não fica muito ansioso em vê-lo
novamente. Mas se o amigo se vai quando você gostaria de ficar mais um
tempo com ele, você ficará muito feliz em vê-lo novamente. Da mesma
forma, nossa postura, o lugar onde sentamos e a duração da sessão de
meditação devem ser confortáveis, para que tenhamos entusiasmo com
nossa prática.

Estabelecendo a Intenção

Antes de começar a meditar é importante estabelecer sua intenção. Na


verdade, estabelecer sua intenção é algo que se recomenda fazer logo que
abrimos os olhos de manhã. Assim que acordar, enquanto ainda estiver
na cama, estabeleça sua intenção para o dia. Você pode pensar: “Hoje
tentarei não me aborrecer. Tentarei ser mais tolerante. Tentarei
desenvolver mais sentimentos positivos pelos outros. Tentarei fazer com
que esse dia seja significativo, e não desperdiçá-lo”.

Tem um koan que é maravilhoso, meu favorito: “A morte pode chegar a


qualquer hora: Relaxe”. Se pensar bem, é um pensamento muito
profundo. Se você for muito ansioso, nervoso e se transtornar porque a
morte pode chegar a qualquer hora, não conseguirá realizar nada. Poderá
ter pensamentos como: “Não estou fazendo o suficiente. Não sou bom o
suficiente”. Mas se sabe que a morte pode vir a qualquer momento, e
relaxar, então fará o que for possível, de forma significativa, realista, sem
ansiedade ou nervosismo. Portanto, tente lembrar-se que a morte pode
chegar a qualquer hora, e relaxe!

Antes de meditar, estabeleça a intenção de que “tentarei meditar por ‘x’


minutos. Tentarei me concentrar. Se sentir que vou adormecer, me
despertarei. Se a minha atenção se dispersar, a trarei de volta”. Leve isso
a sério, não deixe que sejam apenas palavras – realmente tente manter
sua intenção em mente e siga. Manter-se fiel à sua intenção pode ser
bastante difícil. Se você desenvolver o mau hábito de usar sua sessão de
meditação para pensar sobre outras coisas, mesmo que sejam outros
conceitos do Dharma, é um hábito muito difícil de quebrar. Falo por
experiência própria: é um hábito difícil de quebrar, portanto, estabeleça, e
siga, uma intenção correta antes da sessão de meditação
Motivação

A seguir vem a motivação. No contexto do budismo tibetano a motivação


tem duas partes. A primeira parte é o objetivo: O que estamos tentando
conseguir? Os objetivos padrões são descritos no “caminho de etapas”
(lam-rim). Conforme descrito no lam-rim, os objetivos são: (a) melhorar
as vidas futuras, (b) libertar-se completamente do renascimento, e (c)
alcançar a iluminação para ajudar todos os outros a se libertarem do
renascimento.

Ao pensar sobre sua motivação, é necessário ser honesto consigo mesmo.


Você realmente acredita em renascimento? A maioria de nós não e,
portanto, dizer que “estou fazendo isso para garantir que terei outro
renascimento humano precioso na próxima vida” ou “estou fazendo isso
para me libertar completamente do renascimento” ou “estou fazendo isso
para me iluminar, de forma que possa ajudar todos os outros a se
libertarem do renascimento” – é como jogar palavras ao vento se não
acreditamos em renascimento. Se estamos praticando meditação como
parte do que chama “Dharma-light”, não tem problema, mas seja honesto
consigo mesmo. Você não precisa contar para todo mundo, mas seja
honesto consigo no que diz respeito a sua motivação: “Estou fazendo isso
para melhorar minha situação nesta vida”. Está tudo certo, é uma
motivação legítima, contanto que seja sincera. Por outro lado, é
importante ter respeito pelos legítimos objetivos de longo prazo do
budismo e não achar que a prática budista é só para melhorar as coisas
nesta vida.

A primeira parte da motivação é: O que estamos visando? A segunda


parte é a emoção que está por trás, nos empurrando nessa direção. Por
exemplo: “Viso um renascimento humano precioso em vidas futuras (o
objetivo) porque tenho medo de como deve ser horrível nascer como uma
mosca ou uma barata ou qualquer outro renascimento inferior (a
emoção). Eu realmente quero evitar renascimentos inferiores, e estou
confiante de que existe uma maneira de evitarmos renascimentos
inferiores.” Esse não é um medo paralisante, como “não há esperança
para essa situação, estou perdido”, mas sim um sentimento sadio de “eu
realmente não quero isso e vejo que há uma forma de evitar”. Parecido
com meu medo de sofrer um acidente ao dirigir – tomarei cuidado, mas
não estou tão paralisado pelo medo que nunca mais dirigirei.

Um outro exemplo de motivação é “Estou totalmente desgostoso,


entediado e cheio de todo o sofrimento envolvido no renascimento (a
emoção) e quero sair (o objetivo)”. A essência da emoção por trás da
renúncia é: “É inacreditavelmente tedioso ser um bebê novamente,
aprender tudo novamente, estudar e descobrir como ganhar a vida. É um
tédio ter que ficar doente e envelhecer de novo e de novo. Quero dizer, é
muito tedioso. Estou cheio disso!” A motivação para bodhichitta, para
alcançar a iluminação é que sou movido por compaixão: “Não consigo
aguentar tanta gente sofrendo tanto. Tenho que conseguir alcançar um
estado em que consiga ajudar todo mundo a se livrar do sofrimento”.

Portanto, motivação inclui um objetivo, e uma razão emocional para


querermos alcançar o objetivo. Motivação também envolve o que faremos
uma vez que tenhamos atingido nosso objetivo: “Com o meu nascimento
humano precioso eu vou trabalhar para alcançar a iluminação”. Quando
praticamos dentro da tradição Mahayana, cada um dos três níveis de
motivação está no contexto final de trabalharmos para alcançarmos a
iluminação. O primeiro nível de motivação é “Quero conseguir mais um
renascimento humano precioso para continuar no caminho da
iluminação, porque levarei muitas vidas para alcançar meu objetivo”. O
segundo nível de motivação é “Quero me libertar do karma e de emoções
perturbadoras, porque não consigo ajudar os outros se estiver zangado
com eles, se me apegar a eles, ou se agir compassivamente. Não
conseguirei ajudar os outros se sentir orgulho e arrogância com isso.
Portanto, preciso me libertar”. E finalmente, a motivação mais elevada é
“Eu quero alcançar a iluminação para ter total conhecimento da melhor
maneira de ajudar cada uma das pessoas individualmente”.

Motivação é muito importante. Tsongkhapa enfatiza que motivação é algo


que precisamos ter durante todo o dia, não apenas no começo de uma
sessão de meditação. E a motivação não deve ser apenas belas palavras;
tem que ser sincera. E o que significa ser sincera? Significa que
internalizamos tanto a motivação, pela prática da meditação, que a
motivação é autêntica, uma emoção natural, e torna-se parte efetiva de
nosso dia a dia.

Aquietando-se antes de Meditar

Uma vez que tenhamos criado o ambiente físico correto, e estabelecido


nossa motivação, precisamos nos acalmar. Normalmente fazemos isso
com algum tipo de meditação focada na respiração, como contar as
respirações. Além de contar as respirações, existem vários exercícios que
podemos fazer com a respiração que são mais complicados.

A Prática dos Sete Ramos

Frequentemente recomenda-se acumularmos energia positiva no começo


de uma sessão, e para isso utilizamos o que chamamos de “prece dos sete
ramos” ou “prática dos sete ramos”. Nesse contexto, “ramo” significa
“passo”.

(1) Prostração, com Refúgio e Bodhichitta


O primeiro ramo é prostração, que significa demonstrar respeito para
com aqueles que atingiram a iluminação; demonstrar respeito à nossa
própria futura iluminação, que pretendemos atingir com bodhichitta; e
demonstrar respeito à nossa natureza búdica, que nos possibilitará
atingir nosso objetivo.

(2) Oferendas
O segundo passo é fazer oferendas, que também é uma forma de
demonstrar respeito.

(3) Admitir Erros e Imperfeições


A seguir vem admitirmos abertamente nossos erros e imperfeições. Isso
não significa sentirmo-nos culpados por nossas imperfeições; culpa não é
apropriada. Sentir culpa é nos apegarmos a algo que fizermos e
rotularmos como mau; nos apegarmos a nós mesmos rotulando-nos como
maus por termos cometido tais ações, e nunca deixarmos que isso passe.
É como não jogarmos fora o lixo, mas mantê-lo em nossa casa pensando:
“Esse lixo é realmente horrível. Cheira tão mal”. Ao invés de ser culpa, o
terceiro ramo é arrependimento pelos nossos erros: “Eu me arrependo de
minhas ações e farei o meu melhor para não repetí-las. Tentarei ao
máximo sobrepujar minhas imperfeições.”

(4) Regozijar-se
O quarto passo é regozijar-se nas coisas positivas que nós e os outros
fizemos, para que tenhamos uma atitude mais positiva em relação a nós
mesmos e aos outros.

(5) Requisitando Ensinamentos


Então requisitamos aos professores e aos Budas que ensinem: “Por favor
ensinem sempre. Estou aberto e receptivo”

(6) Rogando aos Professores Que Não Nos Deixem


O próximo ramo é: “Não se vá. Não morra. Tenho muita seriedade em
aprender e rogo para que fique comigo”.
(7) Dedicação
Finalmente vem a dedicação. A dedicação é, de certo modo, direcionar a
energia para uma determinada direção. Pensamos: “Qualquer força
positiva, qualquer compreensão que possa ter se acumulado, que
contribua para minha intenção realizar-se”.A analogia que gosto de usar é
salvar nosso trabalho em um computador. Se não o salvarmos em uma
pasta especial, a pasta para “libertação” ou “iluminação”, a configuração
normal fará com que nosso trabalho seja automaticamente salvo na pasta
“melhorar samsara”. Salvar nosso trabalho na pasta “melhorar samsara” é
muito bom, mas se esse não for nosso objetivo, se quisermos que nosso
trabalho seja direcionado para conseguirmos nos libertar ou atingirmos a
iluminação, devemos propositalmente salvá-lo na pasta “iluminação”.
Essa é a dedicação. E é para valer, não estamos apenas jogando palavras
ao vento. Dedicamos a energia positiva com alguma emoção por tras, com
compaixão, etc.

Depois da prece dos sete ramos vem a meditação efetivamente, e quando


concluímos a meditação fazemos outra dedicação.

Conclusão

Você pode observar que a meditação é um processo muito sofisticado e as


instruções são bastante precisas. Aqui eu só dei as instruções gerais; cada
tipo de meditação tem instruções específicas. É muito, mas muito
importante saber o que estamos fazendo, como fazer e por que fazer.

Existem algumas tradições dentro do budismo, como o Zen, que


simplesmente diz “sente-se, medite e você decobrirá ao longo do
caminho”. Isso pode funcionar para algumas pessoas, mas pode ser
bastante difícil para outras. Muitas pessoas acham essa abordagem muito
difícil, portanto apresentei a tradição indo-tibetana.
Evitar Confusão em Relação aos Ensinamentos Budistas
Comer alimentos saudáveis é bom para a nossa saúde, mas pratos sujos nos
deixam doentes. Da mesma forma, os ensinamentos budistas só podem nos
ajudar a obter o equilíbrio emocional depois de afastarmos as expectativas
irrealistas e os equívocos em relação a eles, aos nossos professores, e a nós
mesmos como praticantes.

A Prática do Dharma e o Ego


Dr. Alexander Berzin

Um ego que não é saudável, que identifica-se com um “eu” concreto e falso,
pode se inchar ou desenvolver baixa autoestima. Aproximar-se do budismo
com o ego inchado ou baixa autoestima, pode trazer muitos obstáculos à
prática. Entretanto, se aplicarmos os métodos apropriados do Dharma,
podemos superar esse problema e, com um ego saudável, praticar de forma
mais realista.

A Diferença entre um Ego Saudável e um Ego Não Saudável

O budismo fala sobre a diferença entre o “eu” convencional e o “eu” falso.


O “eu” convencional é aquele que pode ser atribuído ao continuum de
momentos de experiência sempre mudando, de cada indivíduo. Por
outras palavras, os momentos da nossa experiência individual seguem
um após outro, de acordo com as leis de causa e efeito comportamental
(karma). Com base no continuum desses momentos podemos rotular um
“eu”. Esse “eu” convencional existe de fato e é em termos desse “eu” que
podemos dizer: “Eu estou sentado; eu estou comendo; eu estou
meditando”. O “eu” convencional, porém, é apenas algo que pode ser
atribuído ao nosso continuum mental – no “eu” convencional não há nada
encontrável que, pelo seu próprio poder, faça o “eu” existir como tal. Um
“eu” que verdadeiramente existe, com algo encontrável no seu próprio
lado estabelecendo a sua existência, é impossível. Esse “eu” encontrável e
verdadeiramente existente não existe de maneira alguma; esse é o “eu”
falso, o “eu” a ser refutado.

O ocidente, por outro lado, fala de um ego saudável e de um ego não


saudável. Um ego saudável é o sentimento do “eu” baseado no “eu”
convencional, enquanto que o ego não saudável é o sentimento do “eu”
baseado no falso ego. Um ego não saudável tanto pode ser inchado como
contraído. Um ego inchado é baseado na crença de um “eu” encontrável e
verdadeiramente existente, enquanto que um ego contraído é baseado na
crença de que até o “eu” convencional é inexistente, ou num sentimento
de um “eu” convencional muito parcamente estabelecido.

Para uma prática saudável do Dharma precisamos de ter um ego


saudável, por forma a tomarmos responsabilidade pelo que
experienciamos na vida. Com base na tomada dessa responsabilidade,
colocaríamos as nossas vidas numa direção segura (tomaríamos refúgio),
almejaríamos a liberação e/ou iluminação e seguiríamos uma prática
visando esses objetivos baseada na confiança nas nossas naturezas
búdicas e nas leis cármicas de causa e efeito. Porém, enquanto não formos
arhats liberados, continuaremos agarrados à existência verdadeira e
encontrável de um “eu”. Por causa disso a nossa prática do Dharma estará
inevitavelmente misturada com um ego não saudável. Se estivermos
cientes das maneiras em que isso acontece, poderemos tentar minimizar
o seu dano, meditando sobre métodos provisórios e aplicando-os.
Contudo, o remédio último é o entendimento da vacuidade do “eu” falso.

Problemas Que Surgem de um Ego Inchado Devido à Identificação


com um “Eu” Verdadeiramente Existente

Algumas pessoas envolvem-se com o Dharma devido a qualquer razão


cármica que as tornam curiosas e interessadas, assim que esse interesse
seja movido por alguma circunstância. Mas algumas interessam-se pelo
Dharma por razões instáveis, baseadas num ego inchado. Existem três
formas comuns dessa síndrome. Pensando em nós como um “eu”
encontrável e verdadeiramente existente, podemo-nos virar para o
Dharma:

 para sermos aceites por um certo grupo de amigos porque o budismo


está na moda e várias estrelas do cinema e do rock seguem o Dharma;
 para encontrarmos uma cura milagrosa para algum profundo
problema emocional ou físico que nenhuma outra solução ajudou; ou
 para satisfazermos o nosso interesse pelo exótico.

Em geral, para evitar os perigos que porventura advenham do nosso


envolvimento com o Dharma por qualquer dessas razões, precisamos de
examinar e corrigir a nossa motivação. Entretanto, existem passos
provisórios mais específicos que podemos dar para ultrapassar as ações
egóicas comuns associadas a cada uma dessas formas de ego inchado.
Querendo Fazer Parte do “Grupo de Elite”
Com um sentimento inchado do “eu”, podemos sentir um orgulho que
enche o peito por fazermos parte do “grupo de elite”. Para superar isto,
precisamos de nos alegrar por termos encontrado o Dharma, em vez de
nos sentirmos arrogantes a esse respeito. Podemos meditar na compaixão
pelos outros que ainda estão perdidos. Ademais, comparado a outros que
estão muito mais avançados no caminho, precisamos de entender que no
Dharma somos apenas crianças. Por isso não temos motivos para sentir
arrogância.

Querendo Encontrar uma Cura Milagrosa


O desespero em encontrar uma cura milagrosa para o nosso sofrimento
leva geralmente a um sentimento inchado de auto-importância. Podemo-
nos tornar tão preocupados conosco e com os nossos problemas que
tentamos dominar o tempo do professor ou da aula com perguntas
constantes. Queremos atenção constante. Para superarmos isso,
precisamos de pensar na igualdade entre nós e os outros. Ninguém quer
sofrer e todos querem ser curados.

Com um sentimento inchado do “eu”, também podemos pensar que


somos como Milarepa – praticantes tão avançados que iremos certamente
atingir a iluminação em apenas alguns anos. Consequentemente, exigimos
atenção especial dos nossos professores. Para remediar esse inchaço do
ego podemos ler as biografias dos grandes mestres budistas e aprender
como são de fato os verdadeiros meditadores.

De igual modo, estando nós preocupados conosco, podemos estar tão


desesperados que faremos qualquer coisa que o professor nos diga.
Temos a atitude de: “diga-me somente as palavras mágicas a serem ditas
ou a prática mágica que eu as farei”. Com essa mentalidade, podemos
fazer 100,000 prostrações ou repetições do mantra de Vajrasattva, mas
quando não acontece nenhum milagre como resultado, caímos numa
profunda depressão. Para superarmos isso, precisamos de pensar que é
necessário um grande número de causas para haver um resultado.

Estando nós demasiadamente preocupados com um “eu” que aparenta ter


uma existência verdadeira, podemos também correr para qualquer
iniciação tântrica que seja dada pois não queremos perder nada. Também
podemos correr freneticamente dessa forma porque queremos ser aceites
pelo grupo, ou por um fascínio pelo exótico. Mas qualquer que seja o
motivo erróneo, precisamos de nos lembrar de que uma iniciação tântrica
a um sistema de uma deidade, só é dirigida àqueles que realmente
pretendem praticar essa figura búdica específica e têm tempo para o
fazer. Precisamos de ser realistas àcerca do tempo que temos para a
prática diária. O mesmo conselho aplica-se às pessoas que correm de
professor para professor e depois ficam confusas, ou que tomam votos
sem considerarem se conseguem ou não manter esses votos.

Fascínio pelo Exótico


Com um fascínio pelo exótico podemos acumular tantas thangkas e
paramentos do Dharma quanto conseguirmos e depois arrumá-los em
nossas casas numa sala de meditação, como se fosse um cenário de
Hollywood ou da Disneylândia. Encenamos então um show diário de
pujas com vajra, sino, tambor, velas de manteiga e incenso. Para
superarmos essa forma de inchaço do ego, precisamos de nos lembrar
que a essência e o propósito da prática do Dharma é transformar a mente
e não encenar um show exótico.

Problemas Que Surgem de um Ego Contraído

Também podemos entrar no Dharma por motivos de um ego contraído,


advindo por não termos um sentimento bem estabelecido do “eu”
convencional. Com um fraco sentimento do “eu” podemos ser atraídos a
cultos budistas por líderes carismáticos que nos prometem:

 que as linhagens que eles ensinam e seus fundadores são as melhores e


qualquer outra forma de espiritualidade não é boa;
 que eles, enquanto professores, são os melhores e todos os outros não
são bons;
 que nos tornaremos fortes se desistirmos dos nossos próprios fracos e
erróneos pensamentos e obedecermos completamente a eles,
enquanto nossos mestres, e às suas interpretações do Dharma, que são
infalíveis; e
 que se seguirmos um protetor espiritual forte, esse ser supra-normal
esmagará todos os inimigos da sua seita, uma vez que todas as outras
tradições e professores são inimigos.

Tais professores exigem lealdade absoluta e usam o elemento do medo


dos infernos, onde cairemos se desobedecermos. Estudantes atraídos a
isto têm geralmente egos fracos e falta de auto-confiança, e são seduzidos
pela promessa de obterem força interior a partir do professor, dos
ensinamentos, do fundador da linhagem e do protetor. Estes alunos
tomam para si a identidade do grupo inteiro.

Esta síndrome leva ao fanatismo religioso baseado no medo, no desejo de


ser bom e não mau; no desejo de agradar, ser aceite e amado pelo
professor e pelo grupo; e ao sentimento de culpa se não se praticar com
perfeição. Tudo isso é baseado na ausência do sentimento, ou num
sentimento muito fraco, de um “eu” individual convencional e num forte
apego a um falso “eu-grupo”. Em certo sentido, podemos chamar a essa
síndrome de “fascismo espiritual”. Pode ocorrer seja o professor um
charlatão ou não, ou estejamos envolvidos com um culto do Dharma ou
não.

Existem vários sintomas que são típicos dessa síndrome. Por exemplo,
sermos rígidos e inflexíveis na nossa prática. Ou tornarmos muito longa a
nossa prática diária, de modo que ela se torna um peso sem alegria.
Precisamos de nos lembrar que um dos suportes para a perseverança
alegre é sabermos quando relaxar e fazer um intervalo – e não nos
sentirmos culpados por isso. Se fizermos demasiado esforço, acabaremos
por desenvolver aquilo a que os tibetanos chamam de “lung” (constrição
da energia nos nossos corpos), e isso é contraproducente. Outro sintoma
é sermos intolerantes a maneiras e estilos diferentes de prática. Para
evitarmos isto, precisamos de reconhecer que, com meios hábeis, Buda
ensinou muitos estilos diferentes para se ajustarem a diferentes pessoas.
Se os rejeitarmos e os difamarmos, estaremos abandonando o Dharma.

Formas Mais Suaves de Misturar o Ego com o Dharma

Podemos não ter nenhuma perturbação tão séria como as síndromes


acima mencionadas, mas muitos de nós podemos no entanto ter formas
mais suaves de misturar o ego com a prática do Dharma. Por exemplo,
podemos abordar a “acumulação de mérito” como se estivessemos
tentando ganhar uma competição onde estamos competindo com outros
praticantes do Dharma. Ou podemos trabalhar para “ coletar mérito” de
maneira a “comprar” o nosso passe para a liberação e iluminação, ou para
guardar para o inverno, como um esquilo coletando amêndoas, para nos
proteger.

Por outro lado, podemos evitar envolvermo-nos demasiadamente com o


Dharma, pois temos medo de desistir de alguns dos nossos hábitos usuais
– tanto dos hábitos do ego saudável quanto dos do ego não saudável.
Assim, até podemos ter medo de tomar votos ou iniciações. Por isso
devemos desenvolver a sabedoria discernente para diferenciar qual dos
nossos interesses são sadios e benéficos, e quais são doentios e nocivos.

Além disso, podemos ter bloqueios no que tange às abordagens


intelectual, emocional e devocional do Dharma. Isso surge quando nos
identificamos exclusivamente com uma ou mais dessas abordagens, ou
nos identificamos como alguém que não poderia, de modo algum, ter uma
ou mais delas. Para superarmos este problema precisamos de reconhecer
os benefícios de cada uma das três abordagens e fazer um esforço no
cultivo de uma prática do Dharma o mais equilibrada possível.

Outros problemas podem surgir por não darmos uma prioridade


suficientemente alta ao Dharma. Devido a isso não fazemos uma prática
diária, ou não levamos a sério os nossos compromissos e práticas diárias.
Pomos de lado a prática quando não estamos com vontade de praticar, e
faltamos às aulas quando não estamos dispostos a lá ir ou se houver um
aniversário, um bom filme ou uma palestra acontecendo ao mesmo
tempo. Agimos desta forma devido a talvez julgarmos que praticar ou ir
às aulas é desistir de uma parte essencial de “nós mesmos”. Por isso,
precisamos de diferenciar entre aquilo que é importante na vida e aquilo
que não é tão importante, e entre quando realmente não podemos
meditar ou ir às aulas e quando estamos apenas arranjando uma desculpa
devido à nossa preguiça e apego. Precisamos de reafirmar a nossa
preciosa vida humana e pensar sobre a morte e a impermanência.

Se aplicarmos estes vários métodos nós poderemos evitar alguns dos


problemas que advêm da mistura do ego com a nossa prática do Dharma.

Conclusão

A fim de evitarmos problemas em nossa prática budista, precisamos


examinar se estamos abordando o Dharma com um ego saudável ou com
um ego que não está saudável. Caso ele não esteja saudável, precisamos
identificar a maneira como isso se manifesta e aplicar as formas
contrárias de pensamento. Dessa forma, evitamos os obstáculos mais
comuns ao nosso progresso no caminho budista.
Estudando com um Professor Espiritual
Dr. Alexander Berzin

Existem muitos níveis de alunos e professores espirituais. Quando potenciais alunos imaginam
que eles, ou seus professores, estão em um nível de qualificação muito maior do que o real,
isso pode gerar muita confusão. O mesmo acontece quando os alunos vêem o professor como
um terapeuta. Quando, através da introspecção sincera e análise realista, esclarecemos o nível
em que cada um se encontra, podemos finalmente desenvolver uma relação saudável de
aluno-professor.

Fatos Empíricos sobre a Relação Espiritual Professor-Aluno

Para evitar confusão na relação espiritual professor-aluno, nós


precisamos reconhecer certos fatos empíricos:

1. Quase todos os seguidores espirituais progridem através de estágios


no caminho espiritual.
2. A maioria dos praticantes estuda com vários professores durante suas
vidas e constroi diferentes relacionamentos com cada um.
3. Nem todo professor espiritual atingiu o mesmo nível de realização.
4. O tipo de relacionamento apropriado entre um seguidor específico e
um professor específico depende do nível espiritual de cada um.
5. As pessoas se relacionam com seus professores de maneiras
progressivamente mais profundas, à medida que elas avançam pelo
caminho espiritual.
6. Já que o mesmo professor pode exercer diferentes papeis na vida
espiritual de cada seguidor, o relacionamento mais apropriado que
cada seguidor tem com aquele professor pode ser diferente.

Níveis de Professores Espirituais e Seguidores Espirituais

Assim, existem muitos níveis de professores espirituais e seguidores


espirituais. Eles são:

 professores academicos do budismo, para darem informações –


como numa universidade,
 instrutores do Dharma, para mostrar como aplicar o Dharma na vida
diária,
 treinadores de meditação, para ensinarem métodos similares à
ensinar tai-ch'i ou yoga,
 mentores espirituais, diferenciados no que tange o nível de votos que
eles dão ao aluno: votos laicos ou monásticos, votos de bodhisattva ou
votos tântricos.
Correspondentemente, existem:

 estudantes de budismo desejando ganhar informação,


 pupilos do Dharma desejando aprender como aplicar o Dharma nas
suas vidas,
 treinandos em meditação, desejando aprender métodos para relaxar
ou treinar a mente,
 discípulos desejando melhorar vidas futuras, ganhar liberação ou
atingir a iluminação e que estão preparados para tomar algum nível de
votos para ajudar a atingir estes objetivos. Mesmo se os discípulos
desejam melhorar esta vida, eles vêem isso como um degrau no
caminho da liberação e iluminação.

Cada nível tem uma qualificação e como seguidores espirituais, nós


precisamos levar em consideração os nossos antecedentes e os do
professor – asiático ou ocidental, monge/monja ou leigo, nível de
educação, nível de maturidade emocional ou ética, nível de compromisso
e assim por diante. Dessa forma, é importante proceder devagar e com
cautela.

Qualificações de um Potencial Discípulo e de um Potencial


Professor Espiritual

Como um discípulo em potencial, nós precisamos checar nosso próprio


nível de desenvolvimento, de maneira que nós não nos comprometamos
com um relacionamento para o qual não estamos preparados. As
principais qualidades que um discípulo precisa são:

1. mente aberta, sem ficar apegado às próprias opiniões e conceitos


prévios,
2. bom senso para diferenciar entre o que é apropriado e o que não é,
3. forte interesse no Dharma e em achar um professor com qualificação
adequada,
4. apreciação e respeito pelo Dharma e por professores bem qualificados,
5. uma mente atenta,
6. um nível básico de maturidade e estabilidade emocionais,
7. um senso básico de responsabilidade ética.

Dependendo do nível do professor, ele precisa de cada vez mais


qualificações. Em geral, as principais são:

1. um relacionamento sadio com seu próprio professor espiritual,


2. mais conhecimento do que o aluno,
3. experiência e algum nível de sucesso em aplicar os métodos na
meditação e na vida diária,
4. a habilidade de estabelecer um exemplo inspirador do que
representam os resultados benéficos de aplicar o Dharma na vida. Isso
implica ter:
5. auto disciplina ética,
6. maturidade e estabilidade emocional, baseadas na liberdade de
problemas emocionais grosseiros,
7. uma preocupação sincera em beneficiar os alunos, sendo esta a
motivação principal para ensinar,
8. paciência ao ensinar,
9. não ter pretensão (não fingir ter qualidades que ele ou ela não tem) ou
hipocrisia (não esconder falhas que ele ou ela pode ter, tais como falta
de conhecimento e experiência).

Nós precisamos adequar as coisas com a realidade da situação – que nível


de qualificação os professores que se encontram em nossa cidade têm,
quanto tempo e compromisso nós temos, quais são nossos objetivos
espirituais (realisticamente, não apenas idealizat que queremos
“beneficiar todos os seres senscientes”) e assim por diante. Se nós
checarmos as qualificações de um professor em potencial antes de nos
comprometermos com uma relação espiritual, podemos evitar os
extremos de fazer do professor um deus ou um demônio. Quando nós
fazemos do professor espiritual num deus, nossa ingenuidade faz com
que estejamos abertos à abusos. Se nós o tornamos num demônio, nossa
paranóia previne que tenhamos benefícios.

As Diferenças entre se Tornar um Discípulo de um Mentor


Espiritual e se Tornar um Cliente de um Terapeuta

Uma das maiores fontes de confusão na relação espiritual de professor-


aluno é o desejo de que o mentor espiritual seja um terapeuta. Considere,
por exemplo, alguém querendo obter felicidade emocional e bons
relacionamentos pelo resto da vida. Se tornar um discípulo de um mentor
espiritual para atingir este objetivo, de muitas maneiras se assemelha a se
tornar o cliente de um terapeuta com este mesmo propósito.

Ambos o budismo e a terapia:

1. Surgem do reconhecimento e confirmação do sofrimento em nossas


vidas e desejar aliviá-lo.
2. Requerem trabalhar com alguém para que possamos reconhecer e
entender nossos problemas e suas causas. De fato, muitas formas de
terapia concordam com o budismo de que a compreensão serve como a
chave para a transformação pessoal.
3. Abraçam escolas de pensamento que enfatizam compreender
profundamente as causas de nossos problemas, e tradições que
enfatizam trabalhar com métodos pragmáticos para superar estes
fatores, como tambem sistemas que recomendam uma combinação
balanceada das duas abordagens.
4. Advogam o estabelecimento de uma relação emocional sadia com o
mentor ou terapeuta, como uma parte importante do processo de auto-
desenvolvimento.
5. Apesar da maioria das formas clássicas de terapia evitam usar normas
éticas para modificar o comportamento e maneira de pensar dos
clientes, algumas escolas pós-clássicas advogam princípios éticos
similares àqueles do budismo. Tais princípios incluem: ser igualmente
justo com todos os membros de uma família problemática e se abster
de agir basedo em impulsos destrutivos como a raiva.

Apesar das similaridades, pelo menos cinco diferenças existem entre se


tornar um discípulo de um mentor budista e se tornar um cliente de um
terapeuta:

(1) O estágio emocional no qual o indivíduo estabelece o relacionamento.


Clientes em potencial geralmente se aproximam de um terapeuta
enquanto estão emocionalmente perturbados. Eles podem até ser
psicóticos necessitando medicamentos como parte do tratamento.
Discípulos em potencial, em contraste, não estabelecem uma relação com
um mentor como o primeiro passo em seus caminhos espirituais. Antes
disso, eles ja teriam estudado os ensinamentos do Buda e começado a
trabalhar consigo mesmos. Conseqüentemente, eles ja terão atingido um
certo nível de maturidade e estabilidade emocional, para que a relação
mentor-discípulo que irão estabelecer seja construtiva no sentido budista
do termo. Em outras palavras, discípulos budistas já necessitam ser
relativamente livres de atitudes e comportamentos neuróticos.

(2) A interação que o indivíduo espera da relação. Clientes em potencial


estão em sua maioria interessados em ter alguém que os ouça. Desse
modo, eles esperam que o terapeuta devote atenção concentrada neles e
nos seus problemas, mesmo dentro do contexto de terapia de grupo.
Discípulos, por outro lado, normalmente não compartilham problemas
pessoais com seus mentores e não esperam ou exigem atenção individual.
Mesmo que eles consultem o mentor para conselhos pessoais, não o
fazem regularmente. O foco na relação é em ouvir aos ensinamentos. Em
primeiro lugar, discípulos budistas aprendem de seus mentores métodos
para superar os problemas gerais que todos enfrentamos. Eles então
tomam uma responsabilidade pessoal para aplicar os métodos em suas
situações mais especificas.

(3) Os resultados esperados da relação de trabalho. A terapia tem como


objetivo aprender a aceitar e conviver com os problemas em nossas vidas,
ou minimizá-los para que se tornem suportáveis. Se abordassemos um
mentor espiritual budista com o objetivo de desenvolver o bem-estar
emocional nesta mesmavida, poderíamos esperar também minimizar
nossos problemas. Apesar da vida ser difícil – o primeiro fato da vida
(nobre verdade) que o Buda ensinou – nós poderíamos torná-la menos
difícil.

Tornar nossas vidas emocionalmente menos difíceis, entretanto, é apenas


um passo preliminar para abordarmos o caminho budista clássico.
Discípulos de mentores espirituais seriam pelo menos orientados em
direção aos objetivos maiores, como um renascimento favorável, a
liberação e a iluminação. Ademais, discípulos budistas teriam uma
compreensão intelectual de que significa o renascimento, tal como é
explicado no budismo, e pelo menos fariam uma tentativa de aceitar sua
existência. Clientes de terapia não precisam pensar sobre renascimentos
ou sobre objetivos além de melhorarem suas situações imediatas.

(4) O nível de compromisso com a auto-transformação. Clientes de


terapeutas pagam uma valor por hora, mas não se comprometem por
toda a vida com uma mudança de atitude e comportamento. Discípulos
budistas, por outro lado, podem ou não pagar pelos ensinamentos. Não
obstante, eles formalmente mudam suas direções na vida. Ao adotar uma
direção segura (tomando refugio), os discípulos se comprometem com o
percurso do auto-desenvolvimento que os Budas percorreram
completamente, e que então ensinaram, e que a comunidade espiritual de
alta realização se esforça por percorrer.

Além disso, discípulos budistas se comprometem a seguir em suas vidas


uma forma de agir, falar e pensar éticos e construtivos. Tentam, na
medida do possível, evitar padrões destrutivos; em vez disto, procuram
engajarse em padrões positivos. Quando estes discípulos tem um desejo
sincero de alcancar a liberação de problemas recorrentes dos
nascimentos sem controle, farão um compromisso ainda mais forte ao
tomar votos laicos ou monásticos. Discípulos neste estágio de auto-
desenvolvimento tomarão, pelo resto de suas vidas, votos de se absterem
– em todos os momentos - de certos tipos de conduta que: ou são
naturalmente destrutivos, ou entao que o Buda recomendou eviar com
propósitos específicos. Um exemplo do segundo é que pessoas ordenadas
devem abandonar suas vestes laicas e usar somente suas vestes de monje
or monja. Mesmo antes de desenvolverem o desejo pela liberação
completa, discípulos geralmente tomam votos leigos ou monásticos.

Clientes de terapeutas, por outro lado, consentem em seguir certas regras


de procedimento como parte do contrato terapêutico, tais como aderir a
uma programação de consultas de cinqüenta minutos. Essas regras,
entretanto, são pertinentes apenas durante o tratamento. Elas não se
aplicam fora do cenário terapêutico, nem envolvem se abster de um
comportamento naturalmente destrutivo e tambem não são para toda a
vida.

(5) A postura com relação ao professor e ao terapeuta. Discípulos olham


para seus mentores espirituais como exemplos vivos daquilo que se
esforçam para atingir. Consideram-nos dessa maneira baseados no
reconhecimento correto de suas boas qualidades, mantendo e
fortificando esta visão através do caminhos gradual para a iluminação
que percorrem. Clientes, em contraste, podem conceber seus terapeutas
como modelos de saúde emocional, mas isto nao exige uma percepção de
suas boas qualidades. O objetivo desta relação não é tornar-se como o
terapeuta. Durante o curso do tratamento, terapeutas levam seus clientes
para além de suas projeções idealisticas.

Uso Inapropriado do Termo Discípulo

Às vezes, as pessoas chamam a si mesmas de discípulos de mentores


espirituais, apesar de que elas, o professor, ou ambos, nao sigam, na
verdade, o significado correto destes termos. Sua ingenuidade pode leva-
las a terem expectativas irreais, ou desenvolver mal-entendidos,
sentimentos feridos e até mesmo a serem abusadas. Se tornar um objeto
de abuso, nesse contexto, significa ser explorado sexualmente,
emocionalmente, financeiramente ou ser manipulado por alguém numa
demonstração de poder. Vamos examinar três tipos comuns de pseudo-
discípulos – encontrados no ocidente – que são especialmente suscetíveis
à problemas com professores espirituais.

(1) Algumas pessoas vêm aos centros de Dharma procurando realizar


suas fantasias. Elas leram ou ouviram algo sobre o “oriente misterioso” ou
sobre gurus famosos, e desejam transcender suas vidas aparentemente
monótonas ao terem uma experiência exótica ou mística. Elas conhecem
professores espirituais e instantaneamente se declaram ser discípulas,
especialmente se os professores são asiáticos, usam habitos de monjes, ou
ambos. Elas tendem a um comportamento similar com professores
ocidentais que têm títulos ou nomes asiáticos, caso essas pessoas usem
habitos.
A busca pelo oculto geralmente desestabiliza as relações que tais
seguidores estabelecem com professores espirituais. Mesmo que se
declarem discípulos de um mentor apropriadamente qualificado, eles
geralmente deixam esses professores quando se dão conta de que nada
sobrenatural está acontecendo, exceto talvez em sua imaginação. Além
disso, as atitudes irreais e altas expectativas dos “discípulos instantâneos”
geralmente enevoam suas faculdades críticas. Tais pessoas são
particularmente susceptiveis de serem trapaceadas por charlatães
espirituais experientes em encenar um bom ato.

(2) Outros podem ir a um centro de Dharma desesperados por ajuda para


superar uma dor física ou emocional. Pode ser que ja tenham tentado
várias formas de terapia, mas sem nenhum resultado. Agora eles buscam
uma cura milagrosa de um mago/curandeiro. Eles se declaram discípulos
de qualquer um que possa dar a eles uma pílula abençoada, ou que lhes
dê uma prece ou mantra especiais para repetir, ou que lhes dê uma
prática potente – como fazer cem mil prostrações – que irão
imediatamente consertar seus problemas. Eles se voltam especialmente
para os mesmos tipos de professores que fascinam pessoas que estão em
busca do oculto. A mentalidade de “conserta aí” de buscadores de
milagres geralmente leva à decepções e desespero, quando seguir os
conselhos até mesmo de um mentor qualificado não resulta em curas
milagrosas. Uma mentalidade “conserta aí” também atrai abuso de
charlatães espirituais.

(3) Ainda outros, especialmente os que estão desencantados como alguns


jovens desempregados, vão à centros de seitas cultistas na esperança de
ganhar empoderamento existencial. Megalomaníacos carismáticos os
atraem usando “fascismo espiritual”. Eles prometem força numérica aos
seus assim-chamados discípulos, se forem totalmente leais para com suas
seitas. Eles continuam a seduzir os discípulos com descrições dramáticas
de poderosos protetores que irão esmagar seus inimigos, especialmente
os seguidores de tradições budistas impuras e inferiores. Com estórias
grandiosas dos poderes sobrehumanos dos fundadores de seu
movimento, eles tentam realizar os sonhos dos discípulos de um líder
poderoso que los elevara à posições de direitos espirituais. Respondendo
a essas promessas, tais pessoas rapidamente se declaram discípulos e
seguem cegamente quaisquer instruções ou ordens destes professores
autoritários. Os resultados são geralmente desastrosos.

Conclusão
Em suma, assim como nem todos que ensinam em um centro budista são
autênticos mentores espirituais, nem todo que estudam no centro são
autênticos discípulos espirituais. Precisamos usar os temos mentor e
discípulo com precisão. Isso requer honestidade espiritual e não ter
pretensões.
Equívocos Comuns sobre o Budismo
Dr. Alexander Berzin

Existem muitos equívocos a respeito dos ensinamentos budistas, e por vários


motivos diferentes. Alguns são culturais, específicos à cultura ocidental, ou à
Asiática e outras culturas influenciadas pelo pensamento ocidental moderno, e
outros são mais genéricos, devido às aflições mentais das pessoas. Algumas
confusões surgem por conta da complexidade do assunto e outras porque os
professores não explicam claramente o tópico ou deixam coisas por explicar, e
acabamos projetando o significado que achamos que essas coisas tem. Pode
ser, também, que o próprio professor não compreenda bem o assunto, pois
existem muitos que não são totalmente qualificados: muitos são enviados ou
requisitados à ensinar antes mesmo de estarem qualificados. E ainda, mesmo
que os professores expliquem claramente, podemos não escutar direito ou não
lembrar no futuro. Ou podemos tomar notas não muito precisas e talvez
sequer lê-las. As confusões são muitas, mas vamos tentar esclarecer as mais
comuns a respeito de alguns poucos tópicos.

Equívocos Gerais sobre o Budismo


Achar Que o Budismo É Pessimista
O primeiro ensinamento que o Buda deu foi sobre as quatro nobres
verdades e, dessas, a primeira é a “verdade do sofrimento”. Quer
estejamos falando da infelicidade, das formas comuns de felicidade ou do
ciclo de renascimentos incontroláveis que permeia toda nossa
experiência, tudo é sofrimento. “Sofrimento”, entretanto, é uma palavra
um tanto pesada no português. O que queremos dizer, aqui, é que todos
esses estados são insatisfatórios e problemáticos, e como todo mundo
quer ser feliz e ninguém quer ser infeliz, precisamos superar os
problemas de nossa vida.

É um equívoco achar que o budismo diz que há algo errado em ser feliz.
Mas a forma comum de felicidade tem seus defeitos — ela nunca dura,
nunca é satisfatória e, quando acaba, queremos sempre mais. Se
ganharmos uma quantidade demasiada de algo que gostamos, como
nossa comida favorita, ficamos cansados e infelizes se tivermos que
comer mais. Portanto, o budismo nos ensina a lutar por uma felicidade
que não possui essas situações insatisfatórias. Isso não significa que o
objetivo principal é não sentirmos nada. Significa que existem diversos
tipos de felicidade, e a que normalmente experimentamos, apenas de não
ser infelicidade, não é a maior ou melhor felicidade que podemos
experimentar.

Achar Que a Impermanência Tem uma Conotação Apenas Negativa


É um equívoco pensar na impermanência apenas em relação à felicidade
comum: ela se acabará e se transformará em insatisfação e infelicidade. A
impermanência também quer dizer que qualquer período de infelicidade
em nossa vida passará. Isso faz com que a possibilidade de cura esteja
sempre presente e que possamos tirar vantagem de novas oportunidades
para melhorarmos nossa vida. Portanto, o budismo oferece uma enorme
quantidade de métodos para mudarmos nossa atitude e a forma como
vemos a vida, e finalmente, para nos liberarmos e alcançarmos a
iluminação. Todas essas mudanças são possíveis por causa do princípio
da impermanência.

Achar Que o Budismo É uma Forma de Niilismo


O Buda ensinou que a verdadeira causa de nossos problemas é nossa falta
de consciência (ignorância) da realidade — ou seja, como nós, os outros e
tudo o mais existe. Ele ensinou que a vacuidade (vazio) é o antídoto para
essa confusão. É um equívoco achar que a vacuidade é uma forma de
niilismo e que o Buda disse que nada existe — você não existe, os outros
não existem, seus problemas não existem, e portanto a solução dos seus
problemas é perceber que nada existe.

A vacuidade não tem nada a ver como isso. Nós projetamos na realidade
todo tipo de forma impossível de existência — como, por exemplo, uma
existência isolada e independente de qualquer coisa. Não temos
consciência de que todas as coisas estão inter-relacionadas e dependem
umas das outras para existir, de forma holística, orgânica. Nossa confusão
habitual sobre isso é a causa para que nossa mente faça as coisas
parecerem existir de uma forma que é impossível, como esse website que
parece existir assim, por si só, independente das dezenas de milhares de
horas de trabalho de mais de uma centena de pessoas. Essa forma
impossível de existência não corresponde a nada que seja real. A
vacuidade é a absoluta ausência de uma referência para nossas projeção
de formas impossíveis de existência. Nada existe por si só; mas isso não
significa que nada existe.
Equívocos sobre a Ética e os Votos
Achar Que a Ética Budista Está Baseada em Julgamentos Morais de Bom e Mau
Em termos de ética, acho que neste caso e em muitos casos, o equívoco
pode muitas vezes surgir por causa de termos de traduções. Muitas vezes,
projetamos conceitos não-budistas nos ensinamentos. Por exemplo,
usamos certos termos que têm uma conotação bíblica, como as palavras
virtuoso, não-virtuoso, mérito, e pecado. Palavras como essas projetam
nos ensinamentos sobre ética budista a ideia do julgamento moral e da
culpa: que algumas coisas são virtuosas, o que quer dizer boas e
apropriadas, e seremos boas pessoas se fizermos isso. E desenvolvemos
méritos, como um tipo de recompensa. Mas se agirmos de uma forma
não-virtuosa, de um modo “não sagrado”, somos maus e acumularemos
pecados, pelos quais sofreremos. Essa é claramente uma projeção da ética
bíblica sobre a ética budista.

A ética budista está baseada apenas no desenvolvimento da consciência


discriminativa. Aprendemos a discriminar entre aquilo que é construtivo
e aquilo que é destrutivo, entre aquilo que será benéfico e aquilo que será
prejudicial, e então, através da compreensão, evitamos comportamentos
destrutivos.

Achar Que a Ética Budista Está Baseada na Obediência à Leis


O próximo equívoco é a crença de que a ética budista está baseada na
obediência à leis ao invés de baseada na consciência discriminativa. Em
algumas culturas as pessoas levam as leis muito a sério e por isso ficam
muito inflexíveis: elas não querem quebrar a lei. Já os tibetanos são bem
tranquilos em relação às diretrizes éticas. O que não quer dizer que sejam
relaxados, mas que em certas situações a pessoa tem que usar a
consciência discriminativa para aplicar a diretriz. O que estamos
tentando discriminar aqui é se estamos agindo sob a influência de uma
emoção perturbadora ou se há uma razão construtiva para a nossa forma
de comportamento.

Achar Que Votos São Como Leis, com Possíveis Brechas


No outro extremo, poderíamos olhar para os votos como um advogado
olha para as leis, e procurar por brechas na apresentação do karma, a fim
de encontrar desculpas para agir de forma destrutiva ou para
comprometer e diluir um voto. Por exemplo, podemos fazer o voto de
evitar o comportamento sexual impróprio e depois afirmar que o sexo
oral não é impróprio porque trata-se de uma expressão de amor.
Inventamos essa desculpa por que gostamos desse tipo de
comportamento sexual. Ou, depois de fazer o voto de parar de beber,
dizemos que não tem problema beber vinho durante uma refeição com
nossos pais para não ofendê-los, ou é bom beber ocasionalmente
contanto que não fiquemos bêbados. Inventamos essas desculpas para
tentar contornar o voto.

O ponto é que, se você fizer um voto, você faz o voto completo. Você não
faz um voto parcial. Se não pudermos manter todos os detalhes do voto
ou de nenhum voto específico, como está especificado no texto, então não
façamos o voto. Não há obrigação de fazer o voto.

Há uma alternativa. Na discussão do abhidharma sobre votos, eles


possuem três categorias: há um voto no qual você se compromete
basicamente a evitar algo que seja destrutivo. Depois, há algo que
realmente é difícil de traduzir – é literalmente um anti-voto. É um voto
para não evitar algo destrutivo como, por exemplo, matar – se você for
para o exército, você atirará no inimigo – ou algo assim. E depois também
há um meio-termo: podemos evitar apenas uma parte daquilo que está
especificado em um voto.

É essa categoria intermediária que podemos aplicar aqui. Por exemplo, no


voto leigo de evitar o comportamento sexual inadequado, se houver
partes do voto que achamos que realmente não somos capazes de manter,
podemos prometer apenas uma parte, como não ter relações sexuais com
o parceiro de outra pessoa e não usar de violência no sexo, como estuprar
ou forçar alguém a ter relações sexuais. Fazer uma promessa como essa
realmente não é um voto como está especificado no texto. Mas é bem
mais positivo, desenvolve força moral positiva – eu prefiro chamar força
positiva ao invés de mérito, e força negativa ao invés de pecado – então,
isso desenvolve mais força positiva em nosso contínuo mental do que
apenas evitar esse tipo de comportamento. Isso não compromete o voto e
ainda é uma forma muito forte de prática ética.

Achar Que a Ética Budista é Humanista – Apenas Evita Prejudicar os Outros


Outro equívoco é achar que a ética budista é humanista. “Humanista”
quer dizer que simplesmente evitamos fazer coisas que possam
prejudicar os outros. Portanto, se não prejudicar ninguém, tudo bem. Isso
é a ética humanista, ou pelo menos a minha compreensão de ética
humanista. E embora seja muito bacana, muito bom, não é a base da ética
budista. A base da ética budista está na ênfase em evitar o que é
autodestrutivo, pois não sabemos o que pode machucar os outros: você
poderia dar um milhão de euros para uma pessoa pensando que está
beneficiando-a. E no dia seguinte, por ter esse dinheiro, a pessoa é
roubada e assassinada. Portanto, não sabemos o que é realmente benéfico
para outra pessoa. Não podemos ver o futuro. O que está especificado nos
ensinamentos budistas é que agir de forma destrutiva, com base nas
emoções destrutivas – raiva, cobiça, desejo, ciúme, ingenuidade, e assim
por diante – é autodestrutivo, porque desenvolvemos o hábito negativo
de repetir esse tipo de comportamento, o que nos causará sofrimento.
Essa é a base da ética budista.

Equívocos sobre o Renascimento


Ignorar o Renascimento e, Portanto, Não Trabalhar em Nossos
Comportamentos Negativos e Emoções Perturbadoras
O equívoco de se achar que a ética budista é humanista – apenas não
prejudicar os outros – muitas vezes parece vir de uma ênfase prematura
na prática Mahayana, de pensarmos que podemos pular os estágios
iniciais e intermediários do lam-rim. “Lam-rim” refere-se aos estágios
graduais no caminho para a iluminação. O nível inicial de motivação é
evitar renascimentos piores. O nível intermediário de motivação é evitar
o ciclo de renascimentos incontroláveis. Bom, mas ainda não acreditamos
em renascimento, então nada disso nos parece importante; e pensamos
“vamos pular essa parte”. Mas nos sentimos atraídos pelos ensinamentos
Mahayana porque, de várias maneiras, eles soam muito como algumas
das tradições ocidentais de amor, paciência, compaixão, generosidade,
caridade, e assim por diante. Tudo isso nos soa muito bem e assim nos
sentimos atraídos, mas acabamos pulando ou minimizando a importância
desses escopos iniciais.

Ao fazermos isso, pulamos também uma parte importante do conteúdo


desses escopos, que é trabalhar para superarmos o comportamento
destrutivo e as emoções e atitudes perturbadoras por que são
autodestrutivos. Mergulhamos de cabeça em tentar ajudar os outros. Isso
é um erro. É importante enfatizarmos o Mahayana, mas ele precisa estar
embasado nos escopo inicial e intermediário. Primeiro precisamos
trabalhar em nosso comportamento destrutivo e emoções perturbadoras,
uma vez que interferem drasticamente em nossa capacidade de ajudar os
outros.

Não Levar o Renascimento a Sério


Uma forte razão pela qual muitos de nós preferiríamos pular os
ensinamentos dos estágios iniciais é porque achamos que o renascimento
não existe. A ênfase do escopo inicial está em evitar renascimentos
piores; por isso tomamos refúgio (damos um direcionamento positivo a
nossas vidas) e seguimos as leis do karma para evitar comportamentos
destrutivos, pois isso nos trará renascimentos piores. Portanto, pulamos
esse estágio ou não damos a ênfase necessária, pois não acreditamos em
renascimento. E certamente não acreditamos em reinos infernais e nos
reinos dos fantasmas aprisionados (espíritos famintos), nem nos deuses e
anti-deuses. Pensamos que eles não existem de verdade e que as
descrições nos textos do Dharma referem-se apenas a estados
psicológicos humanos. Isso realmente é uma injustiça em relação aos
ensinamentos e é um grande equívoco.

Não Levar a Sério o Renascimento em Formas de Vida Não-Humanas e Não-


Animais
Não quero entrar em muitos detalhes, mas se pensarmos em termos que
uma mente, um contínuo mental, que seja o nosso ou de outra pessoa, não
existe razão para que ele não possa experimentar o espectro total de
felicidade e infelicidade e prazer e dor, ao invés de apenas uma pequena
faixa desse espectro, que está definida pelos parâmetros de nosso corpo e
mente humanos. Afinal, esse é o caso dos vários tipos de percepção extra-
sensorial. Alguns animais enxergam a uma distância muito maior que nós,
alguns escutam melhor, e assim por diante. Então por que os limites de
felicidade, infelicidade, prazer e dor, também não podem ser estendidos, e
termos uma forma física apropriada como base, tal como o corpo de um
ser infernal ou divino.

Reduzindo Outras Formas de Vida a Meros Estados Psicológicos Humanos


Embora a apresentação sobre o karma afirme que na vida humana
experimentamos efeitos ou rescaldos de vidas passadas em outros reinos
— vivenciamos coisas que são similares ao que vivemos nesses reinos;
isso não significa que possamos reduzir a discussão sobre essas e outras
formas de existência, que nós e os outros podemos vir a ter,
simplesmente a estados psicológicos humanos. Isso seria fazer pouco dos
ensinamentos.

Achar Que o Karma Não Faz Sentido, Por Limitar a Existência a Apenas uma
Vida
Por não aceitarmos o renascimento e esses outros estados de existência,
achamos que o karma descreve meramente as consequências de nossas
ações que acontecerão nesta vida; isso causa muitos problemas. Essas
limitações geram muitas dúvidas a respeito dos ensinamentos sobre
karma. Afinal, existem grandes criminosos que parecem conseguir
escapar da punição de seus crimes. E coisas horríveis podem acontecer
em nossas vidas, como morrer de cancer, sem que nunca tenhamos feito
nada de extraordinariamente destrutivo. O karma não parece fazer
sentido algum se limitarmos nossa discussão e nossa visão a apenas esta
vida.
Equívocos sobre o Dharma
Extraindo as Partes Que Não Gostamos do Budismo
Tudo isso salienta um problema bem maior, um equívoco bem maior
sobre o Dharma, que é achar que podemos escolher entre os
ensinamentos apenas aqueles que gostamos, e podemos descartar ou
ignorar aquilo que temos dificuldade em aceitar: o assim chamado
budismo “higienizado”. Extraímos ou limpamos tudo o que é difícil.

Quando ouvimos histórias sobre o karma, como a de elefantes que vão


para debaixo da terra e excretam ouro, e todas essas outras coisas... “Ah!
Me poupe! São contos de fadas para crianças!” Não enxergamos que há
uma lição ali. A questão não é se tomamos isso de forma literal, como
alguns tibetanos fazem. A questão é não rejeitar; faz parte dos
ensinamentos. Outro exemplo é o dos sutras Mahayana, onde os Budas
ensinam a centenas de milhões de seres; e há centenas de milhões de
budas presentes; e em cada poro de um Buda, outra centena de milhão; e
assim por diante. Ficamos com vergonha desses ensinamentos e dizemos
“isso é esquisito demais”, e não os aceitamos como parte do Dharma.

O problema é escolhermos as partes que gostamos. Existem certos votos


tântricos, e de bodhisattva, contra descartar certos ensinamentos
budistas ou dizer que não são autênticos. Em outras palavras, pegamos
determinadas partes dos ensinamentos e ignoramos outras, pegamos
apenas aquilo que gostamos. Se vamos aceitar o budismo como nosso
caminho espiritual, pelo menos precisamos estar abertos o suficiente
para dizer, “não entendo este ensinamento”, mesmo que ele soe estranho
para nós, e “pelo menos eu adiarei meu julgamento até ter um
entendimento melhor, uma explicação melhor e mais profunda.” É
importante não fechar a mente e rejeitar os ensinamentos.

Achar Que Vai Ser Fácil Obter Outro Renascimento Humano


Outro equívoco é, mesmo no caso de aceitarmos o renascimento, achar
que será fácil ter uma vida humana preciosa novamente. Muitas vezes
pensamos que “sim, sim, creio no renascimento. E claro, serei um ser
humano. Claro que terei todas as oportunidades para continuar
praticando.” e assim por diante. Isso é ser muito, mas muito ingênuo.
Especialmente se pensarmos na quantidade de comportamentos
destrutivos que tivemos e na quantidade de tempo que passamos sob a
influência de emoções perturbadoras – raiva, cobiça, egoísmo, etc. –
comparada com a quantidade de tempo que agimos por puro amor e
compaixão, então ficará bem claro que será bem difícil conseguir um
renascimento humano precioso novamente.
Lutar por um Renascimento Humano Precioso para Continuar com Nossos
Entes Queridos
Outra falácia que ocorre aqui, outro equívoco, é que por apego à amigos e
família, nos empenhamos para ter um renascimento humano precioso, de
forma a continuar com eles. Ou então pensamos que se alcançarmos
novamente um renascimento humano precioso, bem, é claro que
encontraremos todos os amigos, parentes e entes queridos novamente.
Isso também é um equívoco. Há incontáveis formas de vida e seres
sencientes. Renasceremos em diversas situações diferentes, conforme
nosso histórico kármico. Não há absolutamente nenhuma garantia da
forma que teremos ou de quem encontraremos. Inclusive, existe uma
possibilidade bem maior de levarmos um longo tempo até encontrarmos
alguém que conhecemos nesta vida. Pode ser que encontremos. Não é que
isso seja impossível. Mas é um equívoco pensar que será muito fácil ou
que está garantido.

Equívocos sobre o Karma


Achar Que Somos Maus e Merecemos as Consequências do Amadurecimento
de Nossos Potenciais Kármicos Negativos
Outra ponto a respeito de karma e renascimento é que mesmo se
aceitarmos que o sofrimento desta vida é o amadurecimento de
potenciais kármicos negativos desenvolvidos em vidas passadas,
podemos pensar “bem, se eu sofrer, se algo ruim acontecer comigo é por
que eu mereço.” Ou você merece, se algo aconteceu com você. O problema
aqui é que isso implica em um “eu” sólido que existe e quebrou a lei, é
culpado e mau, e agora está recebendo a punição que merece. Colocamos,
portanto, a culpa de não entendermos as leis do karma, das causas e
efeitos dos comportamentos, no “eu” — esse “eu” sólido que é mau e que
está sendo punido.

Achar Que Somos Responsáveis pelo Amadurecimento do Karma Alheio


Depois estendemos esse conceito de culpa para o nosso papel no
amadurecimento do karma alheio. Não vemos que há muitos fatores e
circunstâncias envolvidos na experiência do amadurecimento do karma, e
cada um tem suas próprias causas. Trata-se de um erro, um equívoco,
pensar que somos a causa do amadurecimento do karma de outras
pessoas. A experiência delas depende de vários fatores, não apenas de
nós.

Vou dar um exemplo. Suponhamos que eu tenha sido atropelado por um


carro. O que eu fiz na minha vida passada não é a causa da outra pessoa
me atropelar. Se eu pensar “bom, sou karmicamente responsável por me
atropelarem”, isso não está certo. Minha responsabilidade é sobre a
experiência de ser atropelado. E o karma da outra pessoa é o responsável
por ela ter me atropelado. Assim, o que ocorre conosco é o resultado da
interação de muitos, muitos fatores kármicos diferentes, e também
emoções perturbadoras e fatores em geral – como o clima: estava
chovendo, a estrada estava escorregadia, etc. Tudo isso combinado cria
uma situação na qual experimentamos sofrimento ou problemas.

Esses são alguns dos equívocos que podem surgir em termos de ética,
karma, e assim por diante. Tenho certeza de que há muitos, muitos mais.
Esses são apenas aqueles que me vieram à mente e nos quais eu estava
pensando hoje.

Equívocos sobre Gurus


Ignorando o Fato de Que Gurus Precisam Ser Qualificados e Nos Inspirar
Agora, em relação aos gurus, acho que essa é uma área com muitos
equívocos, e não apenas entre os ocidentais. Antes de mais nada, por
causa da ênfase na importância do guru, tendemos a negligenciar o fato
de que ele precisa ser qualificado – e há uma lista de qualificações. E
mesmo que o guru seja qualificado, temos que nos sentir inspirados pela
pessoa.

Uma das principais razões da importância de um professor espiritual é


que o ele nos dá inspiração, energia para praticarmos, é o modelo que
queremos seguir. Podemos receber informação de livros, da Internet e
assim por diante. É claro que gurus precisam saber responder perguntas
e nos corrigir quando estivermos cometendo erros em nossa prática de
meditação. Mas se eles não nos inspiram, não iremos muito longe.

Aceitar Alguém como Guru Sem uma Investigação Prévia Adequada


Por causa desse equívoco em relação à necessidade do guru ser
qualificado e realmente precisar nos inspirar, temos pressa em aceitar
alguém como nosso guru, sem examiná-lo plenamente, de forma
adequada. Nos sentimos pressionados por esta ênfase: “Você tem que ter
um guru; você tem que ter um guru.” E arriscamos a possibilidade de nos
desiludirmos quando, mais tarde, virmos de forma objetiva que ele tem
defeitos. Não o examinamos apropriadamente. Esse é um grande
problema, pois muitos escândalos aconteceram com professores
espirituais que foram, com ou sem razão, acusados de comportamento
inadequado. Às vezes as acusações são corretas; eles realmente não eram
qualificados, e talvez tenhamos nos sentido pressionados a aceitar essa
pessoa como guru, devido a essa ênfase que existe na relação com o guru.
Depois ficamos sabendo dos escândalos envolvendo nosso guru e ficamos
arrasados.

Achar que Todos os Tibetanos, Especialmente os com Votos Monásticos e os


Que Carregam Títulos, São Budistas Perfeitos
Para piorar, podemos pensar que todos os tibetanos ou, pior, que todos os
monges e monjas; ou, ainda pior, todos os Rinpoches, Geshes e Kenpos –
são perfeitos exemplos de prática budista. Esse é um equívoco muito
comum. Pensamos, “ah, eles devem ser budistas perfeitos: são tibetanos.”
ou “budistas perfeitos: estão vestindo mantos.” “ Perfeitos budistas: têm
um título de Rinpoche, devem ser iluminados.” Isso é muito ingênuo.
Trata-se de pessoas comuns.

Deve haver uma proporção maior de budistas praticantes entre os


tibetanos do que na maioria das sociedades e deve haver certos valores
budistas que são parte da cultura deles; mas isso não quer dizer que
todos eles são perfeitos, de forma alguma. E se alguém vira monja ou
monge, pode haver muitas razões para isso. Entre os tibetanos, pode ser
que a família o tenha colocado no monastério quando ainda era criança,
pois não era capaz de alimentá-lo, e ali ele receberia comida e educação.
Pode ser por uma razão ainda mais egoísta – que a pessoa tinha
problemas e precisava da disciplina da vida monástica para superá-los.

Conforme explicou um de meus amigos Rinpoches, “vestir o manto é um


sinal de que preciso dessa disciplina, pois sou uma pessoa muito
indisciplinada, tenho muitas emoções perturbadoras e realmente estou
empregando todo o meu esforço para superá-las” Isso não quer dizer que
ele as tenha superado. Então não deveríamos pensar ingenuamente que
são iluminados, especialmente os Rinpoches. Como Sua Santidade o Dalai
Lama sempre diz: basear-se apenas no nome importante do antecessor é
realmente um grande erro. Ele enfatiza que esses Rinpoches têm que
demonstrar e provar suas qualificações nesta vida, e não basear-se
apenas na reputação de seus nomes.

Não Respeitar Monges e Monjas, Fazê-los Servir os Leigos


Por outro lado, é um equívoco não respeitar nem dar suporte a monges e
monjas, e fazer deles servos de leigos nos centros de Dharma. Isso ocorre
muitas vezes quando há um centro de Dharma e eles tem um monge ou
uma monja residente. Eles têm que limpar a casa, organizar e arrumar
tudo para os ensinamentos, cobrar as contribuições e assim por diante. Se
for um centro residencial e tiver um curso no final de semana, eles têm
que cuidar das acomodações e coisas do gênero, e não conseguem nem
assistir aos ensinamentos de tão ocupados que ficam. É como se os leigos
pensassem que eles são seus servos.

Deveria acontecer justamente o oposto. Como monges e monjas, eles


merecem todo o respeito, independente do nível de ética que tiverem. E
essa é uma parte dos ensinamentos no que diz respeito à direção segura e
ao refúgio na Sangha: respeitar até mesmo o manto. Isso não quer dizer
que somos ingênuos e achamos que eles são perfeitos. Mas é preciso
demonstrar um certo respeito.

Achar Que o Guru é Literalmente um Buda Infalível e Colocar Toda a


Responsabilidade Sobre Nossas Vidas em Suas Mãos
Também existe um grande mal-entendido no que diz respeito ao que
chamamos “devoção ao guru”. Eu acho que não é uma tradução muito útil,
porque parece implicar em uma adoração quase cega ao guru, como em
uma seita. Isso é um grande mal-entendido. O termo usado aqui para o
relacionamento com o professor espiritual significa confiar em um
professor espiritual qualificado como confiaríamos em um médico
qualificado. O termo tibetano usado para a relação com o guru é o mesmo
termo usado para a relação com o médico. Entretanto, por causa da
instrução de vermos o guru como um Buda, nós cometemos o equívoco de
pensar que o professor é infalível e que temos que ter uma obediência
cega ao guru, como em uma seita. Isso é um erro. Por causa disso,
renunciamos a todo senso crítico e responsabilidade por nós mesmos, e
nos tornamos dependentes, pedindo “mos” (mo, adivinhação com dados)
– joguem os dados e tomem todas as nossas decisões por nós.

Temos o objetivo de nos tornar Budas, desenvolver a consciência


discriminativa para sermos capazes de tomar decisões inteligentes e
compassivas. Portanto, se um/a professor/a tem como objetivo somente
nos tornar dependentes dele/a, como em uma luta de poder, há algo de
errado. É um equívoco achar que isso está correto e participar desse tipo
de síndrome de poder e controle com um professor que não está
realmente seguindo as orientações de forma apropriada.

Projetar no Guru o Papel de Terapeuta ou Pastor


Também é um equívoco projetar em um professor de budismo o papel de
um pastor ou terapeuta com quem falamos de nossos problemas pessoais
e buscamos conselhos. Esse não é o papel de um professor espiritual
budista. Tradicionalmente, um professor espiritual budista dá
ensinamentos e cabe a nós descobrir como aplicá-los. É verdade, só é
apropriado tirarmos dúvidas sobre os ensinamentos e sobre nossa
prática de meditação.
Se você tiver problemas psicológicos, vá a um terapeuta; não a um
professor espiritual. E o que é especialmente inadequado é discutir
problemas de relacionamento ou sexuais com um monge ou uma monja.
Eles são celibatários. Não estão envolvidos com isso. Não são pessoas
para as quais devemos perguntar sobre esses problemas. Mas vindos de
uma tradição de pastores, padres e rabinos, esperamos que eles assumam
essa função normal de pastor, de nos guiar nos tempos difíceis de nossa
vida pessoal.

Vou dar um exemplo. Eu estive com o meu professor espiritual Serkong


Rinpoche por nove anos, sempre muito próximo, na maior parte do
tempo, todos os dias. Nunca, nesses nove anos, ele me perguntou algo
pessoal. Nunca. Sobre a minha vida pessoal, sobre a minha família, sobre
as minhas origens, nada. Tudo no dia-a-dia girava em torno de ele me
ensinar ou de trabalharmos juntos para beneficiar pessoas – eu traduzia
para ele, organizava suas viagens, coisas do gênero. Era bem diferente dos
relacionamento a que estamos acostumados no ocidente, e não é muito
fácil entendermos.

Trivializar a Tomada de Refugio - A Tomada de uma Direção Segura em


Nossas Vidas
Por falar em trabalhar com o professor, isso nos traz para o tópico do
refúgio, que eu gosto de chamar “direcionamento seguro”. Trata-se de dar
um direcionamento em nossas vidas, indicado pelo Buda, Dharma e
Sangha. É um equívoco trivializar o refugio como se estivéssemos nos
tornando sócios de um clube. Você corta um pequeno pedaço de cabelo,
recebe um pequeno fio vermelho, um novo nome, e agora fazem parte de
um clube. Isso é um problema principalmente quando, pelo fato do
professor ser de uma linhagem específica, consideramos que o clube ao
qual estamos nos associando é uma linhagem específica do budismo
tibetano, ao invés de ser o budismo em geral. “Agora eu meu tornei um
Gelugpa.” “Agora eu me tornei um Karma Kagyu” “Agora eu me tornei um
Nyingma.” “Agora eu me tornei um Sakya.” Ao invés de “Agora estou
seguindo o caminho do Buda.” Por causa desse equívoco, nos tornamos
sectários, exclusivistas, e nunca vamos a outros centros de Dharma.
Realmente, é impressionante como no Ocidente os praticantes budistas
frequentam apenas um centro de Dharma e nunca vão a outros.

Todo Professor Que Vem para o Ocidente Precisa Estabelecer Seu Próprio
Centro de Dharma ou Organização
O que ainda é mais confuso é que cada professor que vem parece querer
estabelecer seu próprio centro de Dharma e sua própria organização, o
que é um grande erro, eu acho, pois isso se torna insustentável. Não se
pode sustentar quatrocentos diferentes tipos de budismo
indefinidamente no futuro, e fica muito confuso para os novos alunos. E
trata-se de um grande dreno financeiro e um peso dar suporte a todos
esses locais com seus altares e suas livrarias, pagando aluguel, e assim
por diante. No Tibete, embora muitos professores tenham vindo da Índia
e do Nepal e diferentes monastérios tenham sido estabelecidos,
eventualmente eles todos se reuniram e formaram grupos distintos. Não
os mesmos grupos que se tinha na Índia – não se tinha Kagyu ou Sakya na
Índia – mas grupos que então se tornaram sustentáveis, que reuniram
várias linhagens.

Portanto, embora tenhamos grandes organizações no Dharma ocidental,


com as de Trungpa Rinpoche, Sogyal Rinpoche, Lama Yeshe, Lama Zopa,
etc. – precisamos pensar na junção de grupos para formar linhagens
maiores, conforme aconteceu no Tibete. Mas ao fazer isso existem dois
extremos que devemos evitar. Um deles é que se o budismo ocidental for
fragmentado demais, não funcionará. Por outro lado, se for
regulamentado demais, também não funcionará. Portanto, é preciso
sermos muito cuidadosos aqui. Mas eu acho que a sustentabilidade é uma
questão importante.

Achar Que Se Temos um Professor Não Podemos Estudar com Outros


Professores
No que diz respeito a não irmos a outros centros de Dharma, também é
um equívoco achar que não podemos estudar com outros professores,
mesmo dentro da linhagem de nosso próprio professor. A maioria dos
tibetanos têm muitos professores, não apenas um. Existe o registro de
que Atisha teve 155 professores. Diferentes professores têm diferentes
especialidades. Um é bom ao explicar isso; outro é bom ao explicar aquilo.
Um vem dessa linhagem; outro vem daquela linhagem. Ter vários
professores não é ser desleal. Como diz Sua Santidade o Dalai Lama:
podemos olhar para nossos professores como se fossem o
Avalokiteshvara de onze cabeças, cada professor é uma face diferente, e
todas juntas constituem um corpo de orientação espiritual.

Ter Vários Professores Cria Desarmonia Entre Eles


É muito importante não ter vários professores que estejam em conflito
uns com os outros. Isso não funciona. Vocês precisa achar professores
que tenham um bom – o que é chamado de dam-tshig em tibetano –
elo entre si; que tenham harmonia. Pois, infelizmente, acontecem coisas
que às vezes chamamos de “guerra nas estrelas” espiritual entre vários
professores que discordam de forma muito enfática sobre algumas
questões – seja sobre os protetores, ou sobre quem é o verdadeiro
Karmapa, ou o que seja. Se você pretende ter mais de um professor,
escolha aqueles que estão em harmonia.

Achar Que Ouvir uma Palestra Faz do Palestrante Seu Professor


É essencial aqui perceber que apenas escutar uma aula de um professor
budista não torna essa pessoa automaticamente nosso professor
espiritual com todas as implicações da devoção ao guru, embora
tenhamos que lhe demonstrar respeito. Como diz Sua Santidade, “você
pode ir à aula de qualquer pessoa e assistir como se fosse uma palestra,
como você assistiria a uma palestra na universidade.” Isso não implica em
nada além disso.

Equívocos sobre a Prática


Não Combinar Estudo com Prática
Em relação à prática é um equívoco pensar que a tradição Gelug é
puramente uma linhagem de estudo e a Kagyu e a Nyingma são
puramente linhagens de prática. Essa ingenuidade nos faz pensar que se
seguimos uma delas, podemos negligenciar o outro aspecto —
negligenciar o estudo ou a meditação. Quando os professores enfatizam
um ou outro desses dois – estudo ou meditação – isso não quer dizer que
devemos fazer apenas um deles e ignorar o outro. Está muito claro que
precisamos de ambos.

Recentemente, em uma audiência com o grupo de ocidentais que tinha


estudado na Biblioteca de Dharamsala nos anos 70 e 80, Sua Santidade
usou um exemplo muito bom. Ele disse que tantra, mahamudra e
dzogchen são como os dedos de uma mão. A palma da mão, a base, são os
ensinamentos da tradição indiana do monastério Nalanda, os
ensinamentos dos mestres indianos de Nalanda sobre sutra. O equívoco é
colocar demasiada ênfase nos dedos. Às vezes os professores fazem isso,
eles colocam muita ênfase nos dedos. Eles fazem seus alunos estudarem
apenas os dedos e se esquecem da mão. Os dedos são uma extensão da
mão e não são funcionais se estiverem sozinhos. Essa foi a imagem, a
analogia que Sua Santidade usou, e eu acho que se trata de um conselho
muito útil. É um equívoco pensar que “ bem, tudo o que tenho que fazer é
praticar dzogchen; apenas sentar e ser natural e assim por diante.” Isso é
simplificar demais os ensinamentos sem que tenhamos uma base.

Achar Que Somos Milarepas e Que Precisamos Passar o Resto da Vida em


Retiro de Meditação
Da mesma forma, é um equívoco pensar que somos Milarepas; que todos
– especialmente nós – têm que fazer um retiro de uma vida inteira, ou
pelo menos um retiro de três anos. Apenas umas poucas pessoas estão
aptas a uma vida de meditação em tempo integral; a maioria precisa se
envolver no bem-estar social. Esse conselho vem diretamente de Sua
Santidade o Dalai Lama. É muito, muito raro que realmente tenhamos
essa aptidão para passar a vida em um retiro de meditação ou que
possamos realmente nos beneficiar de um retiro de três anos, sem
simplesmente sentar e repetir mantras por três anos, ao invés de
realmente trabalhar em um nível profundo de nós mesmos.

Achar Que Podemos Nos Iluminar Meditando Apenas Durante Nosso Tempo
Livre
É claro que a prática intensiva e em tempo integral do Dharma é
necessária para a liberação ou iluminação, e é um erro nos
superestimarmos pensando que podemos alcançar a liberação ou a
iluminação sem praticar em tempo integral, pensando “bem, eu posso
praticar apenas em meu tempo livre e vou me libertar e me iluminar”.
Isso é um equívoco. Mas também é um erro não sermos objetivos conosco
e com nossa capacidade de conseguir fazer uma prática intensiva agora.
Pois, o que pode acontecer é que se nos esforçarmos mas realmente não
formos capazes de fazer esse tipo de prática, podemos ficar muito
frustrados, ficamos com aquilo que os tibetanos chamam de lung, energia
frustrada e nervosa, e isso realmente nos desequilibra psicológica,
emocional e fisicamente.

Não Pensar de Forma Realista Que Levaremos Eons de Vidas para Alcançar a
Iluminação
Isso também envolve um pouco o fato de não acreditarmos no
renascimento, pois se não acreditarmos no renascimento, não estaremos
olhando com seriedade nossos objetivos de longo prazo, de muitos,
muitos eons de prática. Há o ensinamento que diz que é possível
atingirmos a iluminação nesta vida, mas isso não deve ser uma desculpa
para pensarmos, “bom, temos apenas esta vida, pois não há o
renascimento” e, assim, nos esforçarmos além do que somos capazes no
momento.

Subestimar a Importância da Prática Diária Sustentada


Por outro lado, é um erro subestimar a importância da prática de
meditação diária. É muito importante, se queremos sustentar a nossa
prática do Dharma, ter uma rotina diária de meditação. Há muitos, muitos
benefícios disso em termos de disciplina; em termos de compromisso; em
termos de trazer estabilidade para as nossas vidas; confiança: que sempre
façamos isso todos os dias, não importa o que acontecer. Se realmente
queremos desenvolver mais hábitos benéficos – e é disso que a meditação
trata – precisamos praticar.

O que significa “praticar”? Significa criar hábitos salutares através da


análise e da repetição. Por exemplo, em um ambiente controlado,
podemos imaginar várias situações que normalmente nos deixam
chateados e analisar as causas de nossa irritação. Podemos investigar:
“Por que estou chateado com esta ou aquela situação? Por que fico
irritado quando estou doente? É porque...” Aí vamos mais e mais fundo, e
vemos que “Bom, estou focando em mim. Estou sofrendo. Pobre de mim.”

Mesmo se não pensarmos conscientemente “pobre de mim”, quando


estivermos doentes, temos que admitir que nosso foco está no “eu”, que é
o que há de mais proeminente em nossas considerações. Por não
gostarmos daquilo que estamos vivenciando, ficamos irritados e
projetamos isso em outras pessoas. Portanto, durante a meditação,
analisamos situações como essas, que vem de nossa experiência pessoal,
e geramos uma atitude mais salutar — nesse caso, paciência — em
relação à situação desafiadora. Uma prática diária na qual examinamos
essas coisas e trabalhamos em algum hábito salutar é muito benéfica. É
um grande equívoco pensar que podemos passar sem isso.

Achar Que Praticar Budismo É Simplesmente Fazer Rituais


Também é um equívoco pensar que a prática budista significa apenas
fazer rituais, ao invés trabalharmos principalmente em nós mesmos.
Muitas pessoas recitam periodicamente a sadhana, um texto de
visualizações tântricas, sozinhas ou em grupo. E frequentemente recitam
em tibetano — um idioma que sequer entendem — e acham que isso é
“praticar”. Dzongsar Khyentse Rinpoche, fez uma maravilhosa analogia
sobre isso. Ele disse que se os tibetanos tivessem que recitar orações e
várias práticas todos os dias em alemão, escrito foneticamente com letras
tibetanas, sem ter a mínima ideia do que estavam dizendo, ele duvida que
os tibetanos realmente fizessem isso. No entanto, nós ocidentais fazemos,
consideramos isso prática e cremos que isso basta para atingirmos a
iluminação. Mas a verdadeira prática significa trabalhar em nós mesmos:
trabalhar em mudar nossas atitudes, em superar as emoções
perturbadoras através da análise e do entendimento e, assim, criar mais
hábitos benéficos, como o amor, a compaixão, a compreensão correta e
assim por diante.
Achar Que para Praticar o Dharma Adequadamente Precisamos Seguir os
Costumes Tibetanos
Outro equívoco é pensar que para praticar o Dharma de forma
apropriada temos que seguir os costumes tibetanos ou outros costumes
asiáticos, como ter um altar elaborado no estilo tibetano, ou um
santuário, ou até mesmo um centro de Dharma. Muitos professores
tibetanos que vêm para o Ocidente gostam, é claro, de criar um centro de
Dharma e decorá-lo como um templo tibetano, com as paredes pintadas
da mesma forma, as gravuras de deidades e assim por diante.

Como diriam meus amigos tibetanos, “se os ocidentais gostam disso, por
que não? Mal não faz…” Mas pensar que isso é absolutamente necessário
é um grande erro. Especialmente quando há um gasto tremendo, e o
dinheiro poderia ser usado de uma forma muito mais benéfica. Portanto,
quer seja em um centro do Dharma ou em nossa casa, não precisamos de
nada elaborado, ou com estilo tibetano, para praticar o Budismo
Tibetano. Contanto que o quarto onde meditamos esteja arrumado, limpo
e, assim, respeitando o que estamos fazendo, isso é o suficiente.

Achar Que Rapidamente Nos Livraremos das Emoções Perturbadoras


Embora a ênfase principal do Dharma seja eliminar para sempre as
causas do sofrimento – isto é, nossa ignorância ou inconsciência em
relação à realidade e nossas emoções perturbadoras, é um equívoco achar
que a superação das emoções perturbadoras acontecerá rapidamente.
Esquecemos facilmente que só quando nos tornarmos um arhat, um ser
liberado, estaremos completamente livres da raiva, apego e assim por
diante, apesar deles irem diminuindo ao longo do caminho. Se nos
esquecermos disso, ficaremos desencorajados quando acontecer de
sentirmos raiva mesmo após anos de prática. Isso é muito, muito comum.

É um erro, portanto, não termos paciência com nós mesmos. Temos que
entender que a prática do Dharma tem altos e baixos, assim como os
samsara tem altos e baixos. No longo prazo, podemos esperar melhorias,
mas não vai ser tão fácil. É um erro perder a paciência quando tivermos
nossos baixos. Por outro lado, temos que evitar o extremo de ser
permissivos demais com nossos hábitos negativos e negligentes ou
preguiçosos em relação a trabalhar em nós mesmos. O caminho do meio,
aqui, é não nos mortificar quando sentirmos que ainda ficamos com raiva
mas, por outro lado, não dizer apenas “bem, estou sentindo raiva” ou
“estou de mau humor” sem tentar aplicar algum método do Dharma para
superar isso.
É muito interessante ver ao que recorremos quando estamos de mau
humor. Será que recorremos à meditação? Será que recorremos ao
refúgio? Ou será que comemos chocolate, recorremos ao sexo, à televisão,
ou à conversa com amigos? Ao que recorremos? Eu acho que isso revela
bem a nossa prática do Dharma – a forma como lidamos com nossos
episódios de mau humor.

Conclusão

Esses foram alguns dos equívocos que me ocorreram quando sentei e


pensei no assunto. Tenho certeza que existem muitos, muitos outros que
poderiam ser listados. Conforme mencionei, existem muitos equívocos
que surgem simplesmente pela complexidade dos assuntos,
especialmente no que diz respeito à vacuidade, aos diferentes sistemas
filosóficos, e assim por diante. Um dos pontos do Dharma é: tudo o que o
Buda ensinou foi para beneficiar os outros. Se levarmos isso à serio,
tentaremos compreender todos esses aspectos confusos dos
ensinamentos. Se não compreendermos, tentaremos entender usando os
métodos do Dharma e a lógica e, se ainda assim não entendermos,
perguntaremos a alguém que acreditamos ter autoridade no assunto. Se
estivermos abertos e dispostos a aceitar que grande parte de nossa
confusão é decorrente de mal-entendidos, estaremos abertos para aceitar
correções, para que possamos tirar maior proveito dos ensinamentos.
Caminho para a Iluminação
O caminho budista tibetano de auto-transformação segue fases claras e estruturadas
conhecidas como lam-rim. O lam-rim nos proporciona o conhecimento de como
progredir de nossa situação atual até alcançar o estado de Buda.
V I S ÃO G E R A L DO C O N T E ÚD O

 O Caminho em Etapas
 Karma e Renascimento
 Amor e Compaixão
 Concentração
 Vazio (Vacuidade)
O Caminho em Etapas

Introdução ao Caminho em Etapas


Dr. Alexander Berzin
Dizem frequentemente que o Buda deu 84000 ensinamentos, pois o que ele ensinava era
imensamente variado e vasto, tanto em relação aos temas quanto à abrangência. Embora
possamos nos beneficiar muito da leitura dos vários sutras, muitas vezes é difícil extrair
a essência dos ensinamentos de uma maneira que realmente nos beneficie. Aqui,
observamos como os mestres indianos e tibetanos fizeram o trabalho por nós,
organizando a mensagem completa do Buda em um programa, passo a passo, conhecido
como “lam-rim” em tibetano, que podemos seguir até alcançar a iluminação.

Como e Porque Seguir o Caminho


Budista em Etapas
O Que É Lam-rim e Como Ele Deriva dos Ensinamentos do Buda?

O caminho em etapas, lam-rim, é uma forma de acessar e integrar os


ensinamentos básicos budistas em nossas vidas. Buda viveu há 2500
anos, com uma comunidade de monges, e mais tarde, uma comunidade de
monjas. Ele não somente ensinava às comunidades que haviam sido
ordenadas, mas era frequentemente convidado para a casa de várias
pessoas onde lhe ofereciam uma refeição e, depois disso, ele dava uma
palestra.

Buda sempre ensinou com aquilo que chamamos de “meios habilidosos”,


o que se refere ao seu método de ensinar aos outros de uma forma que
estes pudessem entender. Isso foi necessário porque havia, e é claro que
ainda há, tantos diferentes níveis de inteligência e desenvolvimento
espiritual. Isso fez como que o Buda ensinasse uma grande variedade de
temas em níveis bem diferentes.

Muitos dos seguidores de Buda tinham uma memória fenomenal. Naquele


tempo, não havia nada por escrito e os ensinamentos eram memorizados
pelos monges, para serem transmitidos oralmente para as próximas
gerações. Eventualmente, os ensinamentos foram transcritos e se
tornaram conhecidos como sutras. Séculos depois, muitos grandes
mestres indianos tentaram organizar o material e escrever comentários
sobre tudo o que havia. Atisha, um dos mestres indianos que foram para o
Tibete, criou o protótipo desta apresentação, o lam-rim, no século onze.

O protótipo que Atisha apresentou era um método através do qual todos


podiam se desenvolver rumo ao estado búdico. Apenas ler os sutras ao
acaso não necessariamente nos oferece um caminho espiritual claro em
relação a onde começar ou como alcançar a iluminação. Todo o material
está ali, mas não é fácil reunir tudo.

Isto é exatamente o que o lam-rim faz ao apresentar o material


organizado em etapas. Depois do Atisha houve muitas versões diferentes
e mais elaboradas que foram escritas no Tibete. Nós vamos dar uma
olhada na versão escrita no século quinze por Tsongkhapa, que constitui
possivelmente a maior elaboração do material. Uma característica notável
do trabalho de Tsongkhapa é que ela inclui citações dos sutras e dos
comentários indianos, então podemos ter certeza de que ele não está
apenas inventando coisas. Outra característica notável é que Tsongkhapa
fornece demonstrações muito elaboradas e lógicas de todos os variados
pontos, para que possamos ganhar uma confiança ainda mais forte na
validade dos ensinamentos baseados na lógica e na razão. A característica
especial de Tsongkhapa era que, diferente dos autores que vieram antes
dele e tinham a tendência de pular os pontos difíceis, ele costumava focar
neles.

Das quatro tradições budistas tibetanas, aquela que se originou com


Tsongkhapa é conhecida como a tradição “Gelugpa”.

Qual É o Significado de um Caminho Espiritual e Como Estruturá-


lo?

A pergunta realmente é, como estruturar um caminho espiritual? Muitos


diferentes métodos foram ensinados na Índia em geral. Métodos para
desenvolver concentração, por exemplo, eram comuns em todas as outras
tradições indianas nos tempos do Buda. Não é algo que ele descobriu ou
inventou. Todos concordam que precisamos examinar como traremos
concentração e todas as outras facetas para o nosso caminho espiritual no
que diz respeito a como nós nos desenvolvemos.

Naturalmente, Buda tinha diferentes explicações para que possamos


entender muitos dos pontos que explicam como podemos nos
desenvolver, mas o que é realmente específico é o seu entendimento dos
objetivos espirituais. O princípio principal desses objetivos espirituais, e
aquilo que é investido em diferentes etapas, é a nossa motivação.
O termo dado para esta literatura é lam-rim , com “lam” traduzido como
“caminho,” e “rim” referindo-se às etapas graduais deste caminho. Este
caminho é relativo aos vários estados mentais que precisamos
desenvolver, em uma ordem gradual, para alcançar o nosso objetivo. É
exatamente como quando viajamos; se quisermos ir por terra da Romênia
para a Índia, então a Índia é o nosso objetivo final. Mas antes de tudo,
precisaremos provavelmente passar pela Turquia, pelo Irã e assim por
diante, antes de eventualmente alcançarmos a Índia.

Motivação Espiritual: Trazer Sentido para Nossas Vidas

Geralmente, a nossa motivação é gradual no lam-rim, que segundo a


apresentação budista, ocorre em duas partes. A motivação é conectada a
um específico objetivo que temos, mais uma emoção que nos leva a
alcançar este objetivo. Mais precisamente: temos uma razão pela qual
queremos atingir um objetivo, mais uma emoção que nos leva até lá.

Isso faz todo o sentido em termos de nosso cotidiano; também temos


vários objetivos em diferentes estágios de nossas vidas. Por exemplo,
queremos uma educação, ou encontrar um companheiro, ou um bom
trabalho, e assim por diante. Pode haver tanto emoções positivas quanto
negativas envolvidas com isso, e isso difere de pessoa para pessoa. Em
todo caso, esta apresentação de motivações graduais é algo que se aplica
ao nosso cotidiano.

O mesmo é verdadeiro em termos de nossas motivações espirituais. Esses


são os estados mentais que são completamente relevantes para o nosso
cotidiano. O que é que estamos fazendo com nossas vidas? Bem, há o
“nível mundano” no qual temos nossas famílias, nossos trabalhos e assim
por diante. Mas o que é que estamos fazendo no nível espiritual? Isso
também afeta como vivemos. É muito importante que esses dois aspectos
de nossas vidas não sejam contraditórios nem se excluam mutuamente,
mas que, ao invés disso, de alguma maneira eles se combinem de forma
harmoniosa.

Não somente eles precisam ser harmoniosos, mas cada um deles precisa
apoiar o outro. A nossa vida espiritual deveria nos dar forças para levar a
nossa vida mundana enquanto a nossa vida mundana deveria nos
fornecer os recursos para sermos capazes de praticar a nossa vida
espiritual. Tudo aquilo que aprendemos através desses estágios graduais
do lam-rim precisa ser aplicado ao nosso cotidiano.
Tornar-se uma Pessoa Melhor

O que é que estamos fazendo com a prática budista que está sendo
apresentada aqui? A prática budista em geral pode ser resumida em
poucas palavras. Em uma linguagem simples, estamos trabalhando em
nós mesmos para nos tornar pessoas melhores. Este termo “pessoas
melhores” pode soar como um julgamento, mas absolutamente nenhum
julgamento está implícito aqui. Esta não é a questão. Estamos apenas
tentando superar o comportamento destrutivo e as emoções negativas
que todos nós temos de vez em quando, como a raiva, a cobiça, o egoísmo,
e assim por diante.

De maneira alguma o budismo é a única religião ou filosofia ou prática


que tem este tipo de objetivo. Encontramos a mesma coisa no
cristianismo, no islã, judaísmo, hinduísmo, e também no humanitarismo.
Está em todas as partes. Os métodos budistas, como aquilo que achamos
nessas outras filosofias, podem nos ajudar a alcançar este tipo de objetivo
oferecendo uma abordagem para nos tornarmos pessoas melhores de
uma forma gradual.

Para nos tornarmos “pessoas melhores” temos primeiro que querer parar
de agir de formas destrutivas e causar dano aos outros. Para isso, temos
que exercitar certo autocontrole. Em um nível mais profundo, uma vez
que formos capazes de fazer isso, focaremos então na superação das
causas de nossas ações destrutivas: raiva, cobiça, apego, ciúme, ódio e
assim por diante. Para fazermos isso, precisamos entender como surgem
essas emoções negativas e como funcionam. Desta forma, desenvolvemos
certos tipos de entendimento que ajudam a diminuir ou eliminar essas
emoções perturbadoras.

Depois, podemos até mesmo nos aprofundar e trabalhar naquilo que


realmente é subjacente a todas essas emoções perturbadoras,
reconhecendo o nosso egoísmo e a forma egocêntrica de pensar apenas
em nós mesmos. Normalmente pensamos: “as coisas sempre têm que ser
à minha maneira”. Se não forem, muitas vezes ficamos com raiva. Embora
sempre queiramos que tudo seja como nós queremos, por que deveria ser
assim? Não há absolutamente nenhuma razão para que seja assim,
tirando o fato de que nós queremos que seja assim. Todos pensam da
mesma forma, e todos não podem estar certos.

Com o tempo, trabalhamos de forma gradual até podermos superar este


problema fundamental. O nosso egoísmo, quando o analisamos, depende
de nosso conceito de “eu” e “meu”. Em outras palavras, o nosso conceito
de como existimos é baseado nesta ideia que “sou especial”, como se cada
um de nós fosse o centro do universo, a pessoa mais importante,
independente de todas as outras. Temos que investigar esta percepção
porque obviamente há algo de muito errado e distorcido em relação a
isso. Esta é exatamente a abordagem do caminho gradual.

Níveis Progressivos da Motivação: Dharma-Light

Os métodos ensinados pelos Buda são muito úteis para esses tipos de
objetivos. Basicamente, temos uma razão por que queremos evitar o
comportamento destrutivo e as emoções negativas como raiva e egoísmo.
Provavelmente entendemos que, quando agimos sobre a influência delas,
isso não é agradável e causa problemas, para nós e os outros. Não
queremos esses problemas!

Também podemos abordar esta tendência a criar problemas de uma


forma gradual. Se eu agir de certas maneiras, isso cria problemas e
dificuldades neste exato momento. Por exemplo, se nós tivermos uma
grande briga com alguém e machucarmos esta pessoa, também pode ser
que nos machuquemos ou até que acabemos presos. Em um nível mais
profundo, podemos olhar para as implicações a longo prazo de nosso
comportamento destrutivo, porque também queremos evitar problemas
no futuro e não apenas agora.

Indo além, pode ser que queiramos também evitar criar problemas e
confusão para nossa família, nossos entes amados, amigos e sociedade.
Tudo isso está contido dentro dos limites desta vida. Para ir ainda além,
poderíamos pensar em termos que englobam ainda mais que isso, como
querer evitar causar dificuldades para as próximas gerações, como o
aquecimento global.

Com todas essas motivações, não é que desistimos das primeiras ao


desenvolver as últimas. Pelo contrário, elas se acumulam e somam umas
às outras: este é o princípio geral do caminho gradual. Tudo que foi
descrito acima é o que eu chamo de “Dharma-Light”. Ele apresenta os
ensinamentos budistas, o “Dharma”, em termos desta vida apenas, sem
fazer menção ao renascimento. Eu inventei estes termos “Dharma-Light”
e “Dharma Verdadeiro”, paralelos à Coca-Cola Light e à verdadeira Coca-
Cola, cheia de açúcar.
Abrir-se à Possibilidade do Renascimento ao Pensar Apenas em
Melhorar Esta Vida

“Dharma” é uma palavra em sânscrito que se refere aos ensinamentos do


Buda. “Light” não quer dizer que há algo de errado com isso, mas que não
se trata da versão mais forte e real. A apresentação do lam-rim que
achamos nas tradições tibetanas é realmente autêntica, mas isso pode ser
um pouco demais para alguém que está apenas começando. A razão
principal disso é que ela parte totalmente do princípio que acreditamos
plenamente no renascimento, e todos os tópicos são apresentados com a
premissa de que há um renascimento. Deste ponto de vista, começamos a
trabalhar para evitar problemas e melhorar nossas vidas futuras.

Se não acreditássemos em vidas futuras, então como é que poderíamos


ser sinceros em nossa motivação para melhorá-las? Simplesmente não é
possível. Quando temos questões sobre a ideia das vidas passadas e
futuras, não estamos convencidos ou nem mesmo a entendemos, então
precisamos começar com o Dharma-Light. Precisamos ser honestos com
nós mesmos em termos de qual é o real objetivo para a nossa prática
espiritual.

Para a maioria de nós, provavelmente temos o objetivo de tornar esta


vida um pouco melhor. E é um objetivo totalmente válido. É um passo
inicial e muito necessário. No entanto, quando estamos neste nível do
Dharma-Light, é importante reconhecer que se trata do Dharma-Light e
não do Dharma autêntico. Quando confundimos ambos, reduzimos o
budismo a apenas outra forma de terapia ou autoajuda. Isso é bastante
limitante e não é justo para com o budismo.

Também precisamos reconhecer que, se nem mesmo entendemos do que


trata o Dharma Autêntico, como poderemos acreditar que é verdade?
Deveríamos ter uma mente aberta e pensar: “Não tenho certeza se aquilo
que eles dizem sobre as vidas futuras e a liberação é correto, mas por
enquanto eu trabalharei no nível do Dharma-Light. Quanto mais eu me
desenvolver, estudar e meditar, mais eu poderei entender sobre o
Dharma Autêntico. Esta é uma abordagem perfeitamente válida e
saudável, baseada no respeito pelo Buda e na convicção de que ele não
apenas falava asneiras quando ensinava essas coisas.

Também podemos reconhecer que certas ideias que talvez tenhamos, que
definem e explicam as vidas futuras e a liberação, por exemplo, podem
estar totalmente incorretas, e que o budismo tampouco aceitaria essas
definições e explicações preconcebidas. Então, o que pensamos que
significa algo, ou se pensamos que outra coisa é ridícula, pode ser que o
Buda também achava isso ridículo, por se tratar de um entendimento
completamente errado. Por exemplo, a ideia que somos uma alma com
asas que voa para fora do corpo e depois entra em outro corpo é algo que
Buda também não aceitaria. Buda também rejeitaria a ideia que podemos
nos tornar Deus Todo-Poderoso.

As Vantagens de Pensar em Termos de um Renascimento sem


Início

A maioria dos métodos apresentados neste caminho gradual pode ser


aplicada no Dharma-Light ou no Dharma Autêntico. No entanto, há alguns
métodos que realmente dependem de entender as vidas futuras. Por
exemplo, para sermos capazes de desenvolver o amor igual para com
todos, um dos métodos é reconhecer que todos têm renascimentos sem
início e que há um número finito de seres. A partir deste ponto inicial, a
conclusão lógica é que, em algum momento ou outro, todo ser vivo foi a
nossa mãe e também a mãe de todos os outros. Também fomos a mãe de
todos os outros. Seria possível apresentar a prova matemática desta
lógica, de não haver um início, mas um número finito de seres. Se
houvesse tanto um tempo infinito quanto infinitos seres, então não seria
possível provar que funciona assim.

Obviamente, trata-se de um tema muito difícil de acessar, especialmente


se nunca pensamos em termos de renascimentos prévios e infinitos.
Baseados no renascimento infinito, podemos pensar em termos do amor
maternal que todos os seres demonstraram por nós, apreciar isso e
querer ser gentis e amorosos de volta. Há todo um desenvolvimento
baseado nisso. Uma parte deste processo é ver que se trata apenas de
uma questão de tempo no que diz respeito a alguém ter sido nossa mãe.
Se não tivermos visto a nossa mãe há dez minutos, dez dias ou dez anos,
ela ainda assim é nossa mãe. Da mesma forma, se não a tivermos visto por
dez vidas, elas ainda será nossa mãe. Esta é uma maneira de pensar que
pode ser muito útil se acreditarmos no renascimento. Sem esta crença, ele
não passa de um disparate.

Isso se aplica especialmente quando pensamos em mosquitos e não


apenas pessoas. Este mosquito foi a nossa mãe em uma vida prévia, pois o
renascimento pode ocorrer em qualquer forma que tenha atividade
mental. Há também uma versão Dharma-Light disso, na qual vemos como
qualquer pessoa pode nos levar para casa, cuidar de nós e nos alimentar.
Todo mundo é capaz de fazer isso. Quando viajamos, muitas vezes
descobrimos que completos desconhecidos podem realmente ser muito
simpáticos conosco e nos oferecer hospitalidade. Não importa se se trata
de um homem ou de uma mulher, todos podem agir como uma mãe
conosco. A criança que envelhece pode ajudar a cuidar de nós. Isso pode
ser muito útil, mesmo se for um pouco limitado porque é difícil pensar
que este mosquito que estamos vendo poderia nos levar para casa e
cuidar de nós como uma mãe.

Isso ilustra um pouco sobre como os métodos podem ser aplicados nos
níveis do Dharma-Light e Dharma Autêntico. Ambos são muito úteis à sua
maneira, mas a versão Dharma-Light é limitada. O Dharma Autêntico se
abre a um universo muito maior de possibilidades. Independente de qual
nível nós aplicarmos, o ponto principal é aplicá-lo ao cotidiano. Quando
estamos presos no tráfico ou esperando em uma longa fila, e ficamos com
raiva ou impacientes com as outras pessoas, podemos vê-los como se
fossem a nossa mãe. Podemos pensar ou em termos de uma vida passada
ou desta vida e isso ajudará a acalmar a nossa raiva, nos ajudando a
desenvolver paciência. Se a nossa mãe estivesse realmente à nossa frente
nesta fila, tenho certeza que não nos importaríamos absolutamente que
ela fosse servida antes de nós. Desta forma, podemos tentar aplicar esses
entendimentos. Não devemos apenas desenvolver esses estados mentais
quando estamos sentados em nossa almofada de meditação, mas
devemos fazê-lo em nosso cotidiano.

Meditação como um Método de Trabalhar em Nós Mesmos

Quando o processo do Dharma é descrito como um trabalho em nós


mesmos, trata-se disso. Quando estamos meditando em uma atmosfera
silenciosa e controlada, em nosso quarto, estamos praticando gerar esses
tipos de entendimento e esses estados mentais mais positivos. Usamos a
nossa imaginação para pensar sobre as outras pessoas e desenvolvemos
uma postura mais construtiva em relação a elas. Embora não seja
absolutamente um método tradicional, ainda assim, penso que é
perfeitamente válido olhar para fotos dessas pessoas durante a nossa
meditação. Eles não tinham fotos de pessoas há 2500 anos, mas eu não
acho que seja um problema adotar a nossa tecnologia moderna neste
processo.

Uma vez que tivermos desenvolvido familiaridade suficiente com um


estado mental positivo e específico, tentamos aplicá-lo em nosso
cotidiano. Este é todo o propósito. Apenas pensar pensamentos amorosos
quando sentados na almofada, mas depois ter acessos de raiva com
família e colegas, não é o objetivo desejado. Assim sendo, nunca devemos
tratar a meditação como uma fuga da vida, onde apenas queremos passar
alguns minutos nos acalmando apenas para nós mesmos. Também será
uma fuga se formos a uma espécie de ilha da fantasia, pensando em vários
tipos de coisas incríveis. A prática da meditação deveria ser bem
diferente; estamos treinando para ser capazes de lidar com os problemas
da vida.

É um trabalho duro, e não devemos nos enganar ou nos deixar enganar


por outros que nos fazem pensar que isso será rápido e fácil. Não é fácil
superar o egoísmo e as nossas outras emoções destrutivas, pois elas são
baseadas em hábitos muito, muito profundos. A única maneira de superá-
los é mudar a nossa postura em relação às coisas e tentar nos livrar da
confusão subjacente a esses estados mentais destrutivos.

Conclusão

Praticar o budismo pode ser dividido em Dharma-Light e Dharma


Autêntico. Como Dharma-Light, queremos melhorar a qualidade desta
vida nos equipando com ferramentas mentais para sermos capazes de
lidar melhor com os problemas aos quais a vida nos submete. Não há
absolutamente nada de errado com o Dharma-Light, mas como a Coca-
Cola, nunca será tão gostoso quanto a coisa autêntica.

Tradicionalmente, os ensinamentos lam-rim não fazem referência a


nenhuma das ideias que discutimos em termos de Dharma-Light, pois
eles presumem que há crença em vidas passadas e futuras. Ainda assim,
querer melhorar nossas vidas e nos tornar pessoas melhores é um
primeiro passo necessário no caminho para praticar o Dharma Autêntico.

Motivação de Nível Inicial


Olhamos para as etapas do caminho e vimos que há versões Dharma-
Light e Dharma Autêntico. Depois de ter apresentado a diferença entre
ambos, vamos começar com a breve apresentação de como eles começam.

Os Três Níveis de Motivação para o Dharma Autêntico

O lam-rim apresenta três níveis de motivação:

 O nível inicial – Pensamos em termos de assegurar que tenhamos um


dos melhores tipos de renascimento, não apenas na próxima vida, mas
em todas as vidas futuras.
 O nível intermediário – A nossa motivação é de ganhar a libertação
total do renascimento incontrolavelmente recorrente; queremos nos
libertar.
 O nível avançado – Nosso objetivo é alcançar o estado de um Buda
completamente iluminado para ajudar todos os outros a também se
libertarem dos renascimentos incontrolavelmente recorrentes

É bastante óbvio que cada um dos níveis está baseado na suposição do


renascimento. Ainda assim, como discutimos antes, cada um dos métodos
apresentados no material para esses três níveis pode também ser
aplicado no nível do Dharma-Light. Essas motivações não são algo que
deveríamos trivializar, pois são bastante notáveis caso consigamos
desenvolvê-las de uma forma sincera.

Superar a Autopiedade ao Apreciar a Nossa Preciosa Vida Humana

No nível inicial de motivação, a primeira coisa que precisamos enfatizar é


a apreciação daquilo que chamamos da nossa “preciosa vida humana”.
Mesmo no nível Dharma-Light, isso é muito útil para superar os
sentimentos de “coitadinho de mim” e os sentimentos depressivos que
vêm disso. Refletimos sobre todas as situações terríveis nas quais
poderíamos estar envolvidos e tentamos apreciar o quão maravilhoso é o
fato de não estarmos vivenciando este tipo de situações.

Há uma lista grande das terríveis situações que podem ser achadas na
apresentação padrão, mas não é necessário nomeá-la por inteiro, pois
podemos pensar em termos gerais. Por exemplo, pensamos no quão
afortunados somos por não vivermos em uma zona de guerras nem na
escassez, morrendo de fome e incapazes de alimentar nossos filhos.
Pensamos na boa sorte de não estarmos vivendo sob uma ditadura severa
em uma sociedade restritiva. É possível que seja mais fácil para pessoas
mais velhas se identificar com este aspecto aqui na Romênia. Quão
afortunado é que não sejamos deficiente mentais, físicos ou emocionais.
Obviamente, de um ponto de vista budista, também consideramos o quão
afortunado é que não sejamos uma barata a qual todos querem pisar e
matar.

Há muitas extensões deste tipo de pensamento. Quando realmente


olhamos para nós mesmos de forma objetiva, somos incrivelmente
afortunados por termos essas liberdades. Não apenas temos a liberdade
dessas coisas, temos que entender que podemos perdê-la a qualquer
momento, por exemplo, com a doença de Alzheimer. Atualmente, há uma
terrível crise econômica e as coisas podem ficar ainda piores do que já
estão. A palavra que é usada para descrever o estado no qual nos
encontramos é “intervalo”, o que significa que se trata apenas de uma
pausa entre as situações realmente más. Este intervalo pode acabar a
qualquer momento.
Além dessas liberdades, precisamos olhar para os vários fatores que
enriquecem nossas vidas. Por exemplo, a maioria de nós é relativamente
saudável. É claro que muitos de nós ficam doentes, mas neste momento
somos capazes de funcionar. O Buda deu ensinamentos, e esses vieram
até nós. Há muitos professores e livros dos quais podemos aprender.
Claramente, temos muitas oportunidades disponíveis. Nesta situação,
precisamos reconhecer as liberdades e os enriquecimentos que temos,
realmente apreciar profundamente o quão afortunados somos.

Pensar na Morte e na Impermanência para Não Perder Nossas


Preciosas Oportunidades

O próximo ponto no escopo inicial é realmente entender que a nossa vida


preciosa não durará para sempre. Isto não está limitado ao fato de que as
situações mudam durante nossas vidas, mas que realmente todos nós
morreremos. Portanto, achamos muitas meditações sobre a morte. Muitas
pessoas, em muitas sociedades, tentam ignorar a morte, que
frequentemente é um tópico tabu. Realmente, não aceitamos a realidade
de que em algum momento todos nós morreremos. Isso inclui nossos
entes amados, todos aqueles que conhecemos e nós mesmos. Esta é a
realidade.

Há muitas razões para apoiar o fato que definitivamente vamos morrer.


Todo mundo que viveu morreu, então porque deveríamos ser especiais
ou diferentes deles? A causa absoluta da morte é ter nascido, então, se
nós nascemos, nós vamos morrer. O corpo é bastante fraco e começa a
desmoronar quando envelhecemos. Não é tão forte quanto muitas vezes
pensamos que ele é, mas pode se machucar e ser ferido com muita
facilidade. Precisamos nos convencer disso de forma lógica para que seja
lentamente assimilado a nível emocional.

Além do fato de com certeza morreremos, o segundo ponto é que não


temos como saber quando isso ocorrerá. Não precisamos ser idosos ou
doentes para morrer; muitos jovens saudáveis morrem bem antes de
pessoas velhas e doentes. Recentemente houve um grande acidente de
avião e ao subir naquele avião ninguém esperava que ele cairia. Podemos
ser atropelados por um ônibus a qualquer momento. Meu amigo mais
próximo, que tinha 54 anos e saúde perfeita, morreu de repente de ataque
cardíaco há duas semanas.

Há várias razões que apoiam o fato de que a morte pode chegar a


qualquer momento. Ela não esperará que acabemos com nosso trabalho,
nossa refeição, ou o que quer que estejamos fazendo. Não podemos dizer
para a morte: “Espera um pouquinho, deixa eu só terminar isso que estou
fazendo.” Quando a morte vier, ela virá, e a nossa vida terá chegado ao
fim. Quando o nosso tempo acabar, não há muito a fazer para estendê-lo.
Não se pode subornar a morte. Podemos ter nosso corpo sustentado por
uma máquina, mas qual seria a vantagem de ficar em um estado
vegetativo? Até mesmo neste caso, a nossa vida terá que acabar em dado
momento.

O terceiro ponto relacionado à morte é examinar o que nos ajudará


quando estivermos prestes a morrer. Não podemos levar dinheiro,
amigos ou família conosco. Mesmo se construirmos uma pirâmide e
colocarmos todos lá dentro quando morrermos, ainda assim eles não
virão conosco. Do ponto de vista budista, dizemos que o que realmente
nos ajudará no momento da morte são os hábitos positivos que
desenvolvemos em nosso contínuo mental.

Talvez tenhamos feito muito trabalho positivo, ajudado os outros, ou


talvez tenhamos feito um grande progresso no caminho espiritual, no que
diz respeito a diminuir a nossa raiva, o nosso egoísmo e assim por diante.
Isso deixará uma grande impressão em nosso contínuo mental. Do ponto
de vista do Dharma-Light, podemos morrer sem arrependimentos e sentir
que vivemos uma vida positiva, que valeu a pena, especialmente se
tomamos conta de nossos entes amados ou, em uma escala maior,
contribuímos de alguma forma com a sociedade. Teremos esta paz de
espírito, sentindo e pensando: “Eu tive uma vida boa, valeu a pena viver.”

Em termos do Dharma Autêntico, então poderemos morrer com certa


confiança que esses hábitos, tendências e instintos positivos em nosso
contínuo mental continuarão nas vidas futuras. Nós morreremos sentindo
que: “Nas vidas futuras, continuarei a ter um precioso renascimento
humano. Renascerei como uma criança com instintos muito positivos.”
Podemos ver isso nas crianças. Algumas crianças, quando muito jovens,
estão sempre chorando e com raiva, enquanto outras são calmas e gentis.
Trata-se do resultado dos hábitos positivos que elas desenvolveram nas
vidas passadas. Se tivermos um estado mental pacífico ao morrer, isso
será uma grande ajuda. A quantidade de dinheiro que tivermos no banco
não nos dará nenhum conforto, pois durante a morte isso serão apenas
números na tela de um computador.

Meditação sobre a Morte

Por causa daquilo que foi descrito mais acima, temos a meditação sobre a
morte, na qual podemos imaginar que hoje é o nosso último dia. Nós nos
perguntamos: estamos preparados para morrer a qualquer momento?
Será que eu teria arrependimentos sobre como levei a minha vida se eu
morresse hoje? A intenção com certeza não é ficar deprimido, mas
encorajar-nos a aproveitar esta preciosa vida humana e todas as
oportunidades que temos agora. Este é todo o propósito desta meditação.
Não se trata apenas do fato de eu estar envelhecendo a cada dia, mas do
fato de que estou me aproximando de minha morte. À medida que cada
dia acaba, é sempre um dia a menos de vida para nós. O tempo está se
esgotando e não temos ideia de quanto tempo nos sobra. Portanto,
realmente queremos aproveitar nossas vidas da melhor forma possível e
não apenas desperdiçar o nosso tempo. Morrer com um estado mental no
qual realizamos que realmente desperdiçamos nossas vidas e poderíamos
ter alcançado muito mais é realmente um estado mental terrível para se
morrer.

Temos que estabelecer este estado mental de uma forma equilibrada:


“Não desperdiçarei as minhas oportunidades.” Temos que evitar nos
tornar fanáticos, viver em um estado de medo, sempre com medo de
parar de trabalhar ou meditar. É bom relaxar e fazer uma pausa, se
realmente precisarmos disso, para ter a força de continuar mais tarde.
Meu koan zen favorito é: “A morte pode vir a qualquer momento. Relaxe.”
Se você pensar sobre isso, realmente faz muito sentido. Sim, podemos
morrer a qualquer momento, mas ser rígidos e fanáticos em relação a isso
é ser derrotista.

A mensagem principal é aproveitar esta nossa vida humana incrivelmente


preciosa, mas fazê-lo de uma forma equilibrada. Podemos relaxar quando
precisamos fazê-lo, e ser honestos com nós mesmos quando não estamos
realmente cansados e apenas estamos sendo preguiçosos. Deveríamos
tentar nos lembrar de nossa motivação.

Obviamente, as meditações da consciência da morte podem ser aplicadas


tanto para o Dharma-Light quanto para o Dharma Autêntico. Por
exemplo, quando há coisas que deixamos inacabadas, como dizer a
alguém que o amamos e apreciar o que fizeram por nós, ou pedir perdão e
fazer as pazes com alguém, então não esperemos. Esta pessoa pode não
estar aqui amanhã, e nós podemos não estar aqui amanhã. Esta é a lição
Dharma-Light que ganhamos da consciência da morte. É muito benéfico e
útil em todos os níveis; não negar a morte, mas estar preparados para ela.
Podemos até visualizar a nossa própria morte e nosso funeral, o que pode
ajudar a tornar a coisa um pouco mais real para nós. Apenas é bom que
nos asseguremos que não ficaremos obcecados com isso nem nos
tornaremos mórbidos ou deprimidos!
Desenvolver Repulsa em Relação à Experiência de Estados Piores
de Renascimento que Podem Suceder a Nossa Morte

Então, prosseguimos com um exame do que ocorre depois que morremos.


Aqui, há uma apresentação dos piores estados de renascimento que
podemos conhecer e como isso tem que ser levado a sério. Novamente,
não é nada fácil, pois a apresentação no budismo não inclui apenas
renascimentos animais piores do que a nossa vida atual, mas também
formas que não podemos realmente ver.

Quando pensamos no renascimento animal, precisamos nos lembrar que


ele inclui todos os tipo de insetos e peixes, todas os tipos de espécies que
há. Há muitos exemplo de quão terrível seria renascer no reino animal,
com todo o medo e sofrimento que eles têm que suportar. Quando
pensamos em renascimento animais, não imaginamos a vida de um
poodle com esmalte nas unhas em uma mansão. Pensamos em baratas e
ratos, pelos quais a maioria das pessoas sente nojo, e pequenos insetos e
peixes que são comidos vivos por animais maiores, e é claro, os animais
criados e abatidos industrialmente por seres humanos.

A emoção gerada aqui em relação a tais prospectos no futuro é muitas


vezes traduzida como “medo”, mas não tenho certeza de que seja a
melhor palavra, pois ela sugere a desesperança, como se não houvesse
nada que possamos fazer a respeito. No entanto, podemos fazer algo para
evitar isso. Assim sendo, prefiro usar a palavra “repulsa”, o que significa
que, de forma real e contundente, não queremos que isso aconteça.

Por exemplo, suponhamos que temos que ir a um encontro de negócios


muito chato. A ideia de ir é repulsiva. Será chato e terrível, mas não temos
medo de ir. Esta é a emoção que deveríamos gerar. Esta nossa vida
preciosa pode ser perdida a qualquer momento, então realmente
queremos aproveitá-la para assegurar que não seremos uma barata na
próxima vida. Realmente, não queremos que isso aconteça, então temos
que fazer algo para evitar que ocorra.

No Dharma Autêntico não falamos apenas se renascimentos como


animais e insetos, mas também de renascer no reino dos fantasmas ou
dos infernos. Não deveríamos ter vergonha de incluí-los; não é justo para
com o budismo apenas ocultar essas descrições no armário. Ao invés
disso, podemos ter uma mente aberta e dizer: “não realmente consigo
entender isso.”
Como Entender Estados de Renascimentos Não-Humanos

Podemos nos identificar com isso em termos de atividade mental, ou em


outras palavras, cada momento no qual fazemos a experiência de algo.
Com cada momento, temos o surgimento de um holograma mental, o que
significa ver, saber ou pensar algo, e assim por diante. Acompanhando
cada momento da experiência, há sentimentos de felicidade ou
infelicidade. Isso parece ser aquilo que nos diferencia dos computadores.
Há informação dentro do computador, com a qual ele lida e de certa
forma, que ele sabe. Porém, o computador não se sente feliz ou infeliz e
não realmente faz a experiência da informação. O fato de que temos
experiências felizes e infelizes é o que define a experiência, e o âmbito de
felicidade e infelicidade é extremamente vasto. A quantidade do espectro
que temos a capacidade de experimentar depende de nosso hardware;
em outras palavras, o tipo de corpo que temos.

Isso pode ser compreendido em termos não apenas da felicidade e


infelicidade, mas com cada um de nossos vários sentidos. Algumas
pessoas enxergam mais longe, outras escutam melhor, outras toleram
melhor calor e frio do que as outras. No que diz respeito a animais, um
cachorro pode escutar frequências bem mais elevadas do que um ser
humano, pois ele tem um tipo de corpo diferente, ou seja, um hardware
diferente. Uma águia pode enxergar bem mais longe com olhos de águia
do que nós com nossos olhos humanos. Se isso ocorre com os sentidos,
então por que não poderia ocorrer com o espectro de sentimentos de
felicidade e infelicidade?

Poderíamos incluir prazer e dor nesta discussão, embora eles não sejam
exatamente a mesma coisa. Felicidade e infelicidade são experimentados
mentalmente, enquanto prazer e dor, pelo menos com as palavras que
temos para isso em inglês, são mais físicos. No que diz respeito à nossa
hardware humana, quando o sofrimento físico se torna forte demais,
ficamos inconscientes. Com a dor emocional, fazemos a experiência de um
choque e pode ser que o nosso corpo simplesmente pare de funcionar.

Por outro lado, o prazer é interessante. Se analisarmos uma coceira, trata-


se na verdade de um prazer intenso. Não é doloroso, pelo contrário, é
prazeroso demais, e por isso nós instintivamente a destruímos ao coçar.
Esta é uma forma de lidar com doenças de pele crônicas que provocam
coceira intensa: tentar ver a coceira como um prazer. Isso é muito
avançado e difícil, tentar relaxar e desfrutar, especialmente se coçar
chegar ao ponto de nos machucar. No entanto, é possível. Em todo caso,
se pensarmos em termos de prazer sexual, quanto mais intenso ele é,
mais rápido queremos atingir o orgasmo e o clímax, para poder destruí-
lo.

Então, podemos ver que este nosso hardware humano apenas consegue
fazer a experiência de certa parte do espectro da felicidade e infelicidade,
do prazer e da dor. Também estabelecemos que os animais podem
experimentar mais estímulos em diferentes espectros sensoriais, como a
visão e a audição. Portanto, é logicamente possível que possa haver
outros tipos de hardware capazes de experimentar mais nos espectros de
dor, prazer, felicidade e infelicidade. Por que não?

Trata-se desta atividade mental da qual falamos em termos de


continuidade de uma vida para a outra. Não há razão por que ela não
deveria ser capaz de fazer a experiência do espectro inteiro desde severos
sofrimentos e dores até prazer e felicidade super intensos. Depende
apenas do hardware que temos em cada vida. Esta é uma maneira lógica
de tentar ter uma mente suficientemente aberta para considerar esses
outros tipos de vida descritos no budismo, os quais não podemos ver. Não
podemos ver as amebas, porém com o desenvolvimento científico dos
microscópios, podemos vê-las e aceita-las como uma forma de vida. Da
mesma forma, pode ser que não consigamos ver fantasmas, mas com o
desenvolvimento da mente isto talvez seja possível.

A versão Dharma-Light reduz todos os outros reinos a tipos de


experiências humanas. Por exemplo, alguém poderia ser mentalmente tão
perturbado que é como se esta pessoa estivesse vivendo no inferno. Isso
também pode nos ajudar a gerar comiseração por eles e o desejo de não
ficar assim no futuro. Isso está bem, como função do nível Dharma-Light.
No entanto, o Dharma Autêntico não está falando apenas da experiência
humana, mas de experiências que todos podem ter, nós inclusive,
baseadas no fato de ter um contínuo mental. Esta atividade mental pode
ser acompanhada por qualquer faceta do espectro, da felicidade à
infelicidade, do prazer à dor. Certamente não queremos ter uma base
limitada que apenas leve a experiências horríveis e dolorosas no futuro.
Isso está claro.

Será que há uma maneira de evitar isso? Esta é a questão


verdadeiramente importante! Primeiro, temos que adotar um
direcionamento positivo para nossas vidas, o que nos permitirá evitar
esses renascimentos piores. Na verdade, ele não fará apenas isso, mas nos
levará à libertação e à iluminação.
Adotar um Direcionamento Seguro para Nossas Vidas: Tomar
Refúgio

Não gosto muito do termo “refúgio”, que me parece levar a equívocos, por
soar muito passivo, como se o Buda fosse um salvador ao qual acudimos:
“Ó Buda, salve-me!” Tampouco somos animais sendo levados a um
refúgio na selva. Estamos falando sobre algo muito ativo e nada passivo.
Descrevo isso como “adotar um direcionamento seguro” para nossas
vidas; se formos nesta direção, então nos protegeremos de renascimentos
piores, de todos os renascimentos incontrolavelmente recorrentes, como
também da falta de capacidade de ajudar os outros da forma mais efetiva
que nos for possível.

“Dharma”, a palavra que geralmente é traduzida como os ensinamentos


do Buda, na verdade se refere à medida preventiva. Trata-se de algo que
incorporamos para prevenir ou evitar futuros problemas e sofrimentos.
Trazemos essa medida para nossas vidas para prevenir esses três
problemas dos renascimentos piores, do renascimento em si, e da falta de
capacidade de ajudar os outros plenamente.

O que é este direcionamento indicado pelo Buda? Este direcionamento é o


que o próprio Buda alcançou, ou seja, uma completa cessação de todos os
obstáculos, insuficiências, confusão e emoções perturbadoras. Ao mesmo
tempo, o Buda realizou todos os potenciais positivos que a mente tem.
Este é o direcionamento do qual estamos falando. É disso que falamos
quando mencionamos o direcionamento seguro das Joias Preciosas e
Raras de Buda, Dharma e Sangha. O Dharma é aquilo que o Buda realizou
e seus ensinamentos de como podemos alcançar o mesmo. O Buda indica
alguém que alcançou isso plenamente. A Sangha não são apenas as
pessoas no monastério ou em nosso centro budista, mas a comunidade
monástica. Na verdade, este não é realmente o nosso direcionamento
seguro. A Sangha, como parte das Três Joias, refere-se aos seres
altamente realizados que alcançaram parte daquilo que o Buda alcançou
plenamente.

Da mesma forma, isso é o que precisamos fazer primeiro. Temos que de


forma sincera adotar um direcionamento seguro para nossas vidas; é
para isso que estamos trabalhando. Trabalhamos para alcançar o que o
Buda alcançou, o caminho que o Buda trilhou plenamente e a Sangha
trilhou parcialmente. Adotar este direcionamento seguro para nossas
vidas faz uma diferença incrivelmente grande em todos os níveis, pois
agora a nossa vida realmente tem um significado e um direcionamento.
Estamos trabalhando em nós mesmos para nos livrar de nossas
insuficiências e realizar nossos potenciais. Se fizermos isso, seremos
pessoas mais felizes emocionalmente, pois não pensaremos: “Não sei qual
o sentido da vida. Não sei o que estou fazendo aqui; minha vida não tem
sentido algum.” Este é um estado mental terrível. Quando as pessoas
estão assim, isso muitas vezes significa que a vida delas gira em torno de
dinheiro. Mesmo sendo um clichê, a verdade é que “o dinheiro não pode
comprar a nossa felicidade”.

Evitar Comportamentos Destrutivos

Agora, baseados em quando temos este direcionamento seguro em nossas


vidas, qual a maneira de evitar renascimentos piores? O método é evitar
agir de formas destrutivas, sejam elas físicas, verbais, ou mentais. Isso
quer dizer que tentamos evitar qualquer uma dessas três formas sob a
influência de uma emoção perturbadora como raiva, cobiça, apego,
ingenuidade, inveja, arrogância, e uma grande lista de outras emoções. A
melhor maneira de aproveitar esta preciosa vida humana neste exato
momento, no nível inicial, é evitar agir, falar e pensar de formas
destrutivas.

No entanto, precisamos fazer isso dentro de um contexto budista. Em


geral, todas as religiões ensinam a não agir de forma destrutiva, como
matar e roubar, mas a diferença da base budista é que não se trata de uma
lei. Não há uma lei criada por algum ser divino ou por uma legislação ou
governo. A ética budista não está baseada na obediência à lei no sentido
de: “Obedeça à lei, senão você será punido.” No que diz respeito à lei civil,
podemos subornar ou talvez contratar um bom advogado para escapar
das punições. Também não é assim que obedecer a lei faça de nós boas
pessoas, e se não as obedecemos somos maus ou criminosos. A
obediência não é a base da ética budista.

Engajar-se em Comportamentos Construtivos

É importante saber o que significa o comportamento construtivo no


budismo. Podemos faze-lo olhando para isso em termos de
comportamentos destrutivos. Por exemplo, uma forma de matar ou tirar
uma vida seria caçar. No entanto, se formos à caça e não tivermos
interesse em caçar, então o fato de não chegar a caçar não conta como
comportamento construtivo, mesmo tratando-se de uma boa coisa.
Comportamento construtivo refere-se a quando sentimos vontade de dar
um tapa em um mosquito para matá-lo e não fazemos o que estamos
sentindo. Entendemos que, se o fizermos, será por raiva e por pensar
apenas em mim, mim, mim. Além disso, sabemos que, ao matar um
mosquito, isso cria um hábito forte, de lidar desta forma com qualquer
coisa da qual não gostamos, matando a coisa. Então, ao invés de dar um
tapa no mosquito, achamos uma forma pacífica de lidar com ele, como
capturá-lo com um copo e levá-lo para fora. A ação construtiva é evitar
matar outro ser quando realmente queremos matá-lo. Nós evitamos
porque entendemos causa e efeito. Este tipo de ação construtiva
desenvolve potenciais positivos fortes em nossa mente.

A Base da Ética Budista É Entender Causa e Efeito


Comportamentais

No budismo, então, toda a base da ética é entender que agir de certas


formas criará certos resultados, e discriminar entre aquilo que é
prejudicial e aquilo que é benéfico. Por exemplo, se agirmos de formas
destrutivas, isso criará um estado mental infeliz para nós. Agimos assim
por causa de nossa confusão básica. Primeiro, talvez não saibamos que
agir de forma destrutiva é realmente autodestrutivo, como quando nos
tornamos viciados em uma droga ou em álcool. Além disso, pode ser que
pensemos de forma invertida que, se ficarmos bêbados ou chapados o
tempo todo, seremos capazes de evitar nossos problemas.

Assim sendo, com um entendimento da base do comportamento ético,


compreendemos que quando agimos de forma destrutiva, não é porque
somos maus, é porque estamos confusos. Quando os outros agem de
forma destrutiva, não é porque são maus e merecem ser punidos, é
porque estão muito confusos e perturbados. Tornam-se então objeto de
compaixão e queremos ajudá-los a livrar-se da confusão. Sim, pode ser
que tenhamos que prendê-los caso eles possam continuar a prejudicar
outras pessoas, mas deveria ser com uma mentalidade diferente. Não
precisamos puni-los ou machucá-los, mas de certa forma tentar ajudar.
Eles têm um contínuo mental que continuará sempre. Se não tentarmos
de alguma maneira reabilitá-los agora, eles apenas continuarão agindo de
formas muito destrutivas no futuro.

No entanto, neste nível inicial, estamos focados principalmente em nós


mesmos e em querer evitar situações terríveis no futuro, ou nesta vida, na
abordagem Dharma-Light, ou em vidas futuras, na abordagem do Dharma
Autêntico. Neste nível, é assim que usamos esta preciosa vida humana,
achando um direcionamento seguro. Damos valor a esta vida, pois
sabemos que vamos perdê-la, e queremos nos assegurar que
continuaremos tendo preciosas vidas humanas no futuro. Precisamos
dessas vidas humanas, pois levará muito tempo para alcançar os
objetivos de libertação e iluminação. Assim como o Dharma-Light é um
trampolim para o Dharma Autêntico, o nível inicial que nós examinamos é
um trampolim para os níveis intermediário e avançado.

Conclusão

A motivação inicial começa com a apreciação desta nossa vida humana


incrivelmente preciosa . Temos este corpo, temos oportunidades e, acima
de tudo, temos a nossa inteligência humana; não há quase nada que não
possamos alcançar quando decidimos nos empenhar em algo.

Esta situação incrível na qual estamos hoje não durará para sempre, pois
nada dura. Não importa o quão ricos ou famosos somos, quantos amigos
temos, ou quão forte é o nosso corpo. Vamos morrer. Não somente não há
nada que possamos fazer para reverter isso, também não há maneira de
saber quando o nosso tempo acabará. Foi dito que se realmente
compreendermos a morte, será impossível termos uma vida comum.

Quando vemos que esta vida é frágil e pode terminar a qualquer


momento, começamos a pensar no que está além da morte. Pelo fato de
haver tantos possíveis estados, sendo que muitos deles são pavorosos,
nos quais podemos renascer, adotamos um direcionamento seguro para
nossas vidas.

Este direcionamento seguro nos impele a abster-nos das ações


destrutivas, que causam futuro sofrimento, e engajar-nos em ações
construtivas, que causam felicidade futura. Desta forma, asseguramos
nossos próprios renascimentos em estados melhores.

Níveis Intermediário e Avançado de


Motivação
Temos falado sobre os estágios graduais do caminho espiritual nos quais
basicamente estamos tentando ampliar e expandir a nossa motivação começando
com um escopo menor até ele se tornar pleno. Desta forma, cada etapa baseia-se na
anterior.

Também vimos que há duas maneiras de passar por este desenvolvimento.


Podemos seguir uma versão Dharma-Light, na qual estamos preocupados em
melhorar esta vida e tornar nossa vida um pouco melhor. Para a maioria de nós, é
assim que precisamos começar. No entanto, a apresentação tradicional nem
mesmo considera este nível, pois parte do princípio do renascimento sem início
nem fim. O Dharma Autêntico, como a Coca-Cola Autêntica, fala deste tipo de
desenvolvimento dentro do contexto do renascimento.
Vimos que o nível inicial de motivação, como todos os níveis de motivação, tem um
objetivo, uma razão para alcançar este objetivo e uma emoção por detrás disso que
nos leva a atingir esta objetivo. No estágio inicial, procuramos melhorar nossas
vidas futuras, assegurando-nos de que continuaremos a ter um precioso
renascimento humano para podermos continuar a nos desenvolver e atingir
objetivos maiores. Compreendemos que é difícil alcançar os objetivos maiores
apenas nesta vida. Leva muito tempo e muito trabalho duro. A razão para tentar e
continuar tendo renascimentos melhores é continuar neste caminho.

É isso que planejamos fazer quando alcançamos este objetivo de um precioso


renascimento humano. Não estamos falando sobre ir para o paraíso em nossa
próxima vida e apenas continuar nos divertindo. Dentro deste escopo, a emoção
que nos leva a querer um renascimento melhor é a repulsa em relação a ter um
renascimento pior. Dentro desses estados piores, não teríamos oportunidades para
trabalhar em nós mesmos e melhorar. Entretanto, temos confiança de que há uma
maneira de evitar isso. Discutimos isso em termos de um direcionamento seguro
ou refúgio. Este direcionamento é basicamente tentar parar completamente e para
sempre todas as limitações e os aspectos negativos que acompanham a nossa
atividade mental, especialmente em termos de nosso comportamento. Além disso,
queremos agir de formas construtivas. Fazemos isso dentro do contexto de
apreciar as oportunidades desta nossa preciosa vida humana e com o
entendimento de que todos definitivamente a perderemos no momento da morte.
A morte virá com certeza e não fazemos a mínima ideia de quando isso ocorrerá.

Até Mesmo os Melhores Estados de Renascimento São


Insatisfatórios

Com o escopo intermediário, analisamos ainda mais. Mesmo se tivermos os assim


chamados melhores renascimentos, ou mesmo preciosos renascimentos humanos,
é simplesmente insatisfatório seguir assim. A vida continua e sua natureza é de ter
altos e baixos, sem certezas de como nos sentiremos no próximo momento. Pode
ser que estejamos felizes agora, mas no próximo minuto de repente nos sentimos
menos contentes, ou até mesmo deprimidos. As menores coisas nos perturbam e é
claro que temos os problemas recorrentes que em cada vida temos que passar pelo
nascimento e voltar a ser um bebê sem nenhum controle sobre as funções de nosso
corpo. Temos que aprender a caminhar e falar, e passar por isso sempre de novo é
realmente muito tedioso. Temos que ir à escola. Quem quer passar por isso de
novo? Temos que achar um companheiro e um trabalho, e de novo encarar
doenças, velhice, e a morte, não apenas para nós, mas também para aqueles que
amamos.

Até mesmo com esta preciosa vida humana, há tantas coisas insatisfatórias, e todos
os nossos problemas emocionais ainda estarão ali. Ficamos com raiva e chateados.
S,omos avarentos. Temos grandes apegos, às pessoas e aos objetos. Somos
ingênuos sobre causa e efeito, e a realidade. Portanto, agimos de formas estúpidas,
como por exemplo, pensar que a forma como agimos e falamos não tem efeito
sobre os outros. Muitas vezes agimos como se as outras pessoas não realmente
existissem e tivessem sentimentos. Isso é completamente ingênuo, não é mesmo?
Todos esses problemas continuarão e teremos esses altos e baixos em qualquer
renascimento afortunado. Também chegará um momento no qual os
renascimentos e as situações deixarão de ser fortunados e melhores e se tornarão
lamentáveis e piores. Isso apenas continuará incessantemente. É disso que falamos
quando nos referimos a “existência ou renascimento incontrolavelmente
recorrentes”, sendo que a palavra em sânscrito para descrever isso é “samsara”.

Renúncia: Ter o Objetivo da Libertação com a Determinação de Ser


Livre

No escopo intermediário, queremos atingir o objetivo da libertação de tudo isso. O


nosso continuum mental não tem início nem fim e não queremos continuar neste
ciclo aparentemente interminável de renascimentos incontrolavelmente
recorrentes. Quando dizemos “aparentemente interminável” quer dizer que
continuará para sempre se não fizermos nada a respeito. Temos que terminar com
isso e fazer a experiência de uma verdadeira cessação do samsara. Por que? Porque
queremos parar o sofrimento. Mesmo se os problemas que temos não são terríveis,
ainda assim queremos parar com os problemas mais sutis. Esta é a razão de querer
alcançar a libertação.

Em sânscrito, a libertação se chama “nirvana” e a emoção que nos leva a ela


geralmente é chamada de “renúncia”. Não se trata da melhor tradução, mas
basicamente refere-se a uma determinação muito forte de ser livre. Com a
renúncia, nós decidimos que tivemos sofrimento o suficiente. Estamos cansados
disso e, em um nível mais profundo, estamos realmente profundamente entediados
por tudo isso. Já chega: queremos ser livres.

Estar Dispostos a Abandonar as Nossas Emoções Perturbadoras

Vemos que, para ser livres, precisamos nos livrar das causas de todos os nossos
problemas e sofrimento. Estamos totalmente dispostos não apenas a abandonar o
sofrimento, mas também as suas causas. Não estamos falando de deixar de comer
sorvete ou chocolate ou algo assim. Este seria um entendimento muito trivial da
renúncia. O que estamos determinados a fazer é livrar-nos de nossa raiva, de nossa
cobiça e do apego a tudo isso. No caso do chocolate, temos que deixar o nosso
apego a ele, que é baseado em um exagero de suas boas qualidades. Por exemplo,
nós pensamos: “Esta é a coisa mais maravilhosa e deliciosa do mundo, e ela me fará
feliz, permanentemente feliz!” Se o chocolate fosse realmente capaz de fazer isso,
então quanto mais comêssemos, mais felizes seríamos. No entanto, não importa
quão chocólatras nós formos, se fizermos isso, logo nos cansaremos e não vamos
querer ver chocolate nunca mais.

É realmente profundo e muito difícil ser sincero em nosso desejo de abandonar


nossos apegos, raivas e assim por diante. Não deveríamos trivializar isso. É como a
piada de alguém batendo com a cabeça contra a parede que não quer parar, pois
não sabe se será pior depois de parar de bater a cabeça. Estamos totalmente
acostumados a isso. Assim, continuamos batendo nossas cabeças contra a parede.
É claro que isso é um exemplo extremo. Um exemplo mais comum pode ser quando
estamos em um relacionamento pouco saudável com alguém, mas hesitamos em
nos separar, pois temos medo de ficar sós. Por conseguinte, continuamos no
relacionamento e seguimos infelizes.

Isso é bem comum, não é? Não queremos dizer certas coisas para certas pessoas
com medo delas nos abandonarem. Não estamos falando de experiências
estranhas, mas de coisas que ocorrem o tempo inteiro.

Será Que a Libertação do Renascimento Incontrolavelmente


Recorrente É Possível, e Será Que Sou Capaz de Conseguir Isso?

Para alcançar este objetivo de libertação e eventualmente a iluminação, primeiro


precisamos saber que isso é possível e que somos capazes de alcançar esta meta.
Trata-se de tópicos complicados. Por ser difícil de demonstrar que estes são
objetivos que todos nós podemos alcançar, muitas pessoas nem mesmo tentam.
Este é um grande erro. Se não estamos realmente convencidos de que podemos
atingir esses objetivos, por que deveríamos tentar trabalhar para atingi-los? Neste
caso, é como se apenas estivéssemos brincando. Chegaremos a um ponto no qual
diremos que tudo isso é ridículo, e acabaremos desistindo.

Temos que examinar profundamente os tópicos da natureza búdica (os fatores que
permitem a libertação e a iluminação), a pureza natural da mente e assim por
diante. Será que as nossas emoções perturbadoras e a nossa confusão são partes
de nossa mente? Se são, isso quer dizer que estão nela a todos os momentos. Se não
são, então são temporárias e podem ser removidas de forma que nunca mais
tenham que retornar?

Questionar e debater sobre isso é absolutamente necessário. Definitivamente, não


é algo que deveríamos aceitar com fé cega. De fato, quanto mais questionamos isso,
melhor, pois precisamos esclarecer todas as nossas dúvidas e ter forte confiança
no que estamos fazendo. Será que temos que esperar até termos 100% de
confiança? Bem, esta não é uma pergunta fácil. Como podemos saber que estamos
totalmente convencidos? Isso pode levar muito tempo.

Se pensarmos que se trata apenas de besteiras, então obviamente não poderemos


trabalhar com isso. No entanto, quando começamos a considerar que talvez seja
possível, então podemos prosseguir. Ainda assim, pensar que é verdade deveria
ser baseado em algum tipo de raciocínio e não apenas na fé cega, ou porque “o meu
professor disse que é assim”. O próprio Buda disse: “Não acredite em nada do que
eu disse só por fé em mim, mas teste tudo como se estivesse comprando ouro.”
Temos que examinar para ver se realmente é verdade.
Convencer-se do Renascimento: O Caso das Duas Vidas de
Serkong Rinpoche

Chegar a acreditar no renascimento como um fato real pode ser um processo muito
longo. Posso compartilhar a minha própria experiência, pois trabalho com isso há
muitos anos. Tenho estudado o budismo por mais de 45 anos. Em certo momento,
com certeza atingi um entendimento intelectual, baseado na razão, em relação ao
fato de que o renascimento faz sentido. Mas o que realmente me convenceu a nível
emocional foi o meu relacionamento com o meu professor durante suas duas vidas.
Seu nome era Serkong Rinpoche e ele era um dos professores de Sua Santidade O
Dalai Lama. Eu fui muito afortunado de ser um discípulo muito próximo dele.
Fiquei com ele por nove anos, nos quais traduzi para ele e era como um secretário
pessoal. Eu organizei e o acompanhei em todas as suas viagens ao exterior,
trabalhando muito de perto com ele. Ele morreu em 1983 e renasceu, voltando a
ser achado pelo sistema tibetano dos tulkus.

Ele agora tem 25 anos e eu ainda mantenho um relacionamento extremamente


próximo com ele, semelhante ao que eu tinha previamente. É claro que agora há
uma dissemelhança revertida na diferença de idade!

Eu conheci o novo Serkong Rinpoche quando ele tinha apenas quatro anos de
idade. Quando entrei em seu quarto, seus serventes lhe perguntaram: “Você sabe
quem é ele?”. “Não seja estúpido, é claro que sei quem ele é.” - foi a sua resposta.
Desde o início, sendo uma criança de quatro anos, ele era extremamente próximo e
afetuoso comigo, bem mais do que com outras pessoas. Continuou assim à medida
que cresceu.

Várias vezes assistimos vídeos de sua vida prévia, e ele me dizia – e não costumava
falar besteiras comigo: ”Ah, eu me lembro de ter dito isso.” Além de toda a lógica e
do raciocínio, foi realmente esta experiência que me ajudou a ir além daquele
sentimento de: “bem, talvez, provavelmente...” Ela me deu certeza.

Essas coisas não são fáceis. Será que é mesmo possível atingir a libertação? Será
que a natureza da mente é realmente pura? Mesmo se entendermos racionalmente,
para entender emocionalmente temos que nos aprofundar muito. Entretanto,
lentamente podemos trabalhar com isso.

Confusão em Relação À Realidade Como Sendo a Causa do


Renascimento Incontrolavelmente Recorrente

Com o nível intermediário de motivação no lam-rim, temos uma explicação muito


detalhada do mecanismo do renascimento com os 12 elos de originação
interdependente. Trata-se apenas do nome de um mecanismo muito complicado
que lida com toda a questão do karma, dos resultados kármicos e assim por diante.
Precisamos entender profundamente os vários tipos de emoções perturbadoras
como a raiva e a cobiça, como elas surgem, e o que constitui a base delas. De uma
forma muito simples, refiro-me a este fator subjacente como “confusão”, ou seja,
quando estamos confusos sobre o efeito de nosso comportamento nos outros e em
nós mesmos. Mais profundamente, estamos confusos sobre como realmente
existimos, como os outros existem, e como tudo existe.

Basicamente, temos a tendência de pensar que as coisas existem de forma


independente, totalmente por conta própria e separadas de todo o resto, como se
fossem embrulhadas em plástico. Mesmo se pensarmos que tudo está inter-
relacionado, ainda pensamos que as coisas estão embrulhadas em plástico, mas
conectadas com varas. Há muitos níveis de sutileza que precisamos entender em
relação a maneiras impossíveis de existir. Precisamos entender precisamente o
que é impossível, e exatamente o que a nossa confusão projeta em todos e em tudo.

Vacuidade: A Total Ausência de Maneiras Impossíveis de Existir

O que precisamos entender é chamado de vacuidade ou vazio. Vacuidade significa


uma ausência total; nada existe em absoluto. O que não existe faz referência real a
essas projeções impossíveis. Elas não correspondem a nada real.

Podemos usar o exemplo do Papai Noel. Digamos que vemos alguém com uma
longa barba branca vestindo uma roupa vermelha, e esta pessoa se parece com
aquele que chamamos de “Papai Noel”. Pensamos que ele é Papai Noel, mas por
que? Bem, porque ele se parece com o Papai Noel. No entanto, a aparência do Papai
Noel não corresponde a nada real, porque não existe um Papai Noel. É disso que
fala a vacuidade, uma ausência de um real Papai Noel que corresponde à aparência
da pessoa. Isso não nega de forma alguma que há um homem ali e que ele se parece
com o Papai Noel. Apenas estamos esclarecendo que a forma como o homem
aparece para nós é enganosa. Ele se parece com Papai Noel, mas não é realmente o
Papai Noel, pois não existe tal coisa.

Nossas mentes funcionam desta forma o tempo todo. Projetamos todo o tipo de
bobagem, como, por exemplo, que fulana é a pessoa mais bonita, ou ciclano a
pessoa mais horrível, ou que somos um presente de Deus para o mundo, ou, ao
invés disso, que somos totalmente inúteis. Projetamos tais coisas como se elas
existissem desta forma, totalmente independentes de todo o resto, como se isso
fosse verdadeiro e imutável.

Na realidade, ninguém existe assim. De fato, é impossível, pois tudo existe em


relação às outras coisas. A Sua Santidade o Dalai Lama sempre usa o exemplo dos
nossos dedos. Será que o nosso quarto dedo é pequeno ou grande? Bem,
comparado ao quinto dedo ele é grande, mas é pequeno se comparado ao dedo do
meio. Então, por si mesmo, por seu próprio poder, será que ele é grande ou
pequeno? Não há resposta, pois ele apenas é grande ou pequeno em relação às
outras coisas. Ele é totalmente dependente de outras coisas e também depende de
nosso conceito daquilo que é grande ou pequeno. Acho que vocês entendem o que
quero dizer.

Neste nível intermediário, trabalhamos para nos livrarmos deste equívoco


fundamental ao conseguirmos um entendimento sobre a vacuidade. Trata-se
exatamente da tal confusão que causa o renascimento incontrolavelmente
recorrente, pois ela ativa o karma e o resultado kármico, como está explicado no
mecanismo complicado dos 12 elos da originação interdependente.

A Necessidade da Concentração e da Autodisciplina Ética

Para obter um entendimento da vacuidade, precisamos de concentração. Para


desenvolver concentração, precisamos de autodisciplina ética. O exemplo dado é
quando se corta uma árvore. O entendimento é como um machado afiado, mas
para realmente cortar uma árvore precisamos sempre bater no mesmo ponto.
Bater continuamente no exato e mesmo lugar é como a concentração. Para pegar o
machado, tomar impulso com ele, e bater no mesmo lugar, precisamos de força.
Esta força vem de autodisciplina ética, quando evitamos agir de forma destrutiva.

O escopo intermediário também apresenta os vários conjuntos de votos que


podem ser feitos. Isso inclui os votos plenos ou votos de novatos de um monge ou
uma monja, ou os votos de chefes de famílias, sejam eles mulheres ou homens. Um
chefe de família refere-se a alguém que não leva uma vida celibatária em um
monastério, mas não significa necessariamente que a pessoa tenha uma família;
refere-se também a pessoas solteiras. Na Índia antiga, isso era bastante raro, já que
chefes de família quase sempre tinham uma família. Esses votos monásticos e de
chefes de família são coletivamente chamados de “votos para libertação
individual”, pois eles têm como objetivo a nossa própria libertação. Esses votos nos
ajudam a evitar diferentes tipos de comportamento que provavelmente são
motivados por emoções perturbadoras e que interferem com a nossa prática de
meditação, e coisas do gênero.

Fazer um voto é realmente muito importante. Por que? Pois quando fazemos um
voto de nunca voltar a fazer algo, isso nos liberta da indecisão. Por exemplo,
imaginem que estamos tentando deixar de consumir álcool ou cigarros. Cada vez
que estamos com pessoas que fumam ou bebem, ficamos indecisos se devemos
acompanhá-las ou dizer não. Mesmo se estivermos realmente tentando largar, a
cada vez que acontecer esta situação teremos que tomar uma decisão, e isso pode
ser desafiador, ou até mesmo estressante.

Se fizermos um voto, então será definitivo. Tomamos a decisão: “Eu não vou beber.
Eu não vou fumar.” Ou o que quer que seja. Então, realmente não importa se todos
à nossa volta estão bebendo, pois tomamos uma decisão. Ao invés de uma restrição
ou punição, fazer esses votos pode realmente nos dar muita força e nos libertar da
indecisão, especialmente no que diz respeito a coisas que são prejudiciais em
relação ao nosso objetivo de alcançar a libertação final.

No budismo, não há absolutamente nenhuma obrigação de fazer quaisquer votos.


Temos que entender isso. Ninguém pode dizer que você tem que fazer ou este ou
aquele voto, e ninguém está dizendo que você tem que se tornar monge ou monja e
viver em um monastério. No entanto, se você realmente levar a sério o desejo de
alcançar a libertação do samsara e de se libertar de uma vez por todas da raiva, do
apego, da cobiça, e assim por diante, fazer certos votos com certeza tornará as
coisas mais simples. Talvez não estejamos preparados para isso agora, e não há
problema algum se for assim. Temos que avaliar a nós mesmos e as nossas
situações de forma honesta.

Este é o escopo intermediário. Embora a concentração e a vacuidade sejam partes


dele, elas ainda não são plenamente discutidas aqui. Esses tópicos são observados
plenamente nos ensinamentos de escopo avançado.

O Nível Avançado de Motivação: Pensar em Todos os Outros

No escopo avançado, pensamos em termos de não sermos os únicos no universo.


Há todos os outros, e todos os outros estão exatamente na mesma situação que
nós. Todos os outros também estão sofrendo e passam por renascimentos
incontrolavelmente recorrentes. Queremos felicidade estável e evitar o sofrimento,
e os outros querem o mesmo. Somos todos absolutamente iguais neste sentido.
Não se trata apenas de mim e alguns poucos e seletos, mas de todos os seres.
Somos todos interconectados e interdependentes uns dos outros. Não existimos de
forma independente e sozinha. Realmente, não poderíamos sobreviver desta
forma.

Há alguns métodos realmente bastante sofisticados para expandir nossos corações


e incluir a todos de forma igual. Nós discutimos isso um pouco antes quando
falamos em reconhecer todos os outros seres como tendo sido nossas mães e
incrivelmente gentis conosco em vidas prévias. Há uma versão Dharma-Light na
qual podemos ver como os outros têm a capacidade de ser como uma mãe e cuidar
de nós. No entanto, isso tem limitações, pois é difícil aplicar isso ao nosso amigo, o
mosquito.

Amor

Para começar a expandir nossos corações, começamos a desenvolver aquilo que


chamamos de “amor”. Na verdade, o processo começa com a equanimidade, na
qual não estamos atraídos por algumas pessoas, repelidas por outras e indiferentes
em relação ao resto. Trabalhamos para nos tornar abertos em relação a todos e,
nesta base, nós reconhecemos a nossa interconexão com todos. Isso pode ser
desenvolvido através do raciocínio que todos foram nossa mãe e muito gentis
conosco em vidas prévias, ou simplesmente ao reconhecer como tudo aquilo de
que desfrutamos e que usamos vem do trabalho alheio. Basta olhar para o chão
abaixo de nossos pés, ou o prédio no qual nos encontramos, a água que bebemos.
Será que nos perguntamos de onde veio tudo isso? Como é que a água e comida
chegaram até nós? Tudo vem do trabalho alheio, dos esforços de todos à nossa
volta. Somos iguais. É ilógico trabalhar somente para o nosso próprio benefício,
pois para realmente nos beneficiarmos, temos que beneficiar a todos.

Baseados nisto, somos capazes de desenvolver amor de forma igual por todos. Este
amor é definido como o desejo de que todos os seres sejam felizes e possuam as
causas da felicidade. Não tem nada a ver com amor romântico, que geralmente é
misturado com muito apego. Quando dizemos “eu te amo” geralmente isso quer
dizer “Eu preciso de você. Nunca me deixe. Não posso viver sem você.” Quando não
recebemos a atenção desejada de outra pessoa, ou elas dizem algo ruim, então isso
logo pode mudar e se tornar “eu não te amo mais.”

No budismo, o tipo de amor do qual estamos falando não tem absolutamente nada
a ver com as ações dos outros ou o que eles fazem conosco. Trata-se apenas do
desejo: que você seja feliz. É como se todos os outros fossem parte do meu corpo:
gostaríamos que todos os dedos dos nossos pés fossem felizes, não apenas alguns
deles. Não importa o que os nossos dedos fazem conosco.

Compaixão

Com amor, vamos então desenvolver a “compaixão”. Este é o desejo que os outros
sejam livres de sofrimento e das causas do sofrimento. Não se refere apenas ao
nível superficial do sofrimento, aos altos e baixos da vida, mas também aos tipos
mais profundos de sofrimento, como o renascimento incontrolavelmente
recorrente. Ter compaixão não significa que olhamos para os outros com
arrogância e sentimos pena deles, como se disséssemos: “Ai, coitadinho...”. A
compaixão budista é baseada no respeito e no entendimento que é possível para
todos serem livres do sofrimento e de suas causas. Não se trata apenas de um
desejo bacana ou palavras bonitas. Com compaixão, começamos a tomar
responsabilidade em relação a realmente gerar um estado livre de sofrimento. Há
muita coragem nisso.

A Resolução Excepcional

O próximo passo é desenvolver um estado mental chamado de “Resolução


Excepcional”. Trata-se de uma forte decisão de assumirmos uma responsabilidade
não apenas de ajudar os outros de forma mais superficial nem mesmo de forma
mais profunda. Resolvemos assumir a responsabilidade de ajudar os outros a
alcançar o estado plenamente iluminado de um Buda. Não meramente
intencionamos fazer isso, definitivamente vamos fazer isso.

Bodhichitta: O Objetivo de Alcançar a Iluminação para o Benefício


de Todos

O estágio final nesta sequência é desenvolver aquilo que chamamos de


“bodhichitta”, a base para o amor, a compaixão e a resolução excepcional.
Entendemos que a única forma de ajudar da melhor maneira possível a todos é se
nós alcançarmos o estado de um Buda. No entanto, para que esta aspiração seja
realista, precisamos compreender o que é um Buda, as maneiras como um Buda
pode e não pode ajudar os outros. Lembrem-se que o Buda não é um Deus todo-
poderoso que pode estalar seus dedos e fazer com o que o sofrimento de todos vá
embora. Um Buda pode certamente mostrar o caminho e inspirar as pessoas, mas
todos nós temos que fazer todo o trabalho. Ninguém pode entender a realidade por
nós; temos que entende-la nós mesmos.
Portanto, movida por amor e compaixão, a bodhichitta foca em nossa própria
futura iluminação. Trata-se de nossa própria iluminação, não daquela do Buda
Shakyamuni ou da iluminação em geral. A nossa iluminação ainda não aconteceu,
mas pode acontecer e acontecerá baseada nos fatores da natureza búdica de nosso
continuum mental. Esses fatores incluem a nossa natureza básica imaculada e
todos os seus potenciais e possibilidades. Nós focamos nesta iluminação que ainda
não está acontecendo, com a intenção de alcança-la para poder beneficiar os outros
o máximo possível. No caminho para a iluminação, também intencionamos
beneficiar os outros o máximo possível.

Isto é bodhichitta. Trata-se de um estado e uma mente incrivelmente vastos, e não


deveríamos confundi-lo apenas com a meditação sobre amor e compaixão. Não se
trata apenas disso. Amor e compaixão são a base, mas bodhichitta é muito, muito
mais.

As Seis Atitudes de Longo Alcance (As Seis Perfeições)

Como nós vimos, o objetivo dentro do escopo avançado é de alcançar o estado de


um Buda, para sermos capazes de ajudar os outros o quanto nos for possível.
Somos movidos por amor, compaixão a uma resolução excepcional. Mas como será
que alcançamos a tal iluminação? Isso nos leva à apresentação daquilo que é
conhecido como as “seis perfeições”, em sânscrito “as seis paramitas” ou, como
geralmente costumo traduzi-las, as “seis atitudes de longo alcance”. Eu prefiro este
termo, pois ele vai muito longe, levando-nos por todo caminho até o estado
iluminado de um Buda. Para algumas pessoas, usar o termo “perfeições” faz com
que isso soe como se elas tivessem que ser perfeitas, e elas não são, então sentem-
se inadequadas. Este não é o sentimento que este termo deveria gerar.

Generosidade
A primeira atitude que precisamos desenvolver é a generosidade, quando damos
aos outros não apenas bens materiais, mas também conselhos, ensinamentos, e
libertação do medo. Mesmo se não tivermos nada de material para oferecer,
cultivamos a atitude da disponibilidade de oferecer o que for necessário. Outro
presente que podemos oferecer é como tratamos os outros. Por termos
desenvolvido equanimidade, isso significa que os outros não terão nada a temer de
nós. Não ficaremos com raiva deles, não teremos apego a eles, nem vamos querer
obter nada deles. Não os ignoraremos nem os rejeitaremos quando fizerem algo de
que não gostamos. Além disso, vamos tentar ajuda-los de forma verdadeira e
sincera. Este é realmente um presente inacreditável que podemos dar a alguém. Se
desenvolvermos generosidade este é um presente tremendo.

Disciplina Ética
A próxima atitude de longo alcance que nós desenvolvemos é a autodisciplina
ética, na qual trabalhamos para não agir de forma destrutiva, mas da forma mais
construtiva que nos for possível. Temos a disciplina de estudar e meditar e
realmente ajudar aos outros. Não ficamos cansados demais na hora de ajudar
alguém, e não negligenciamos os outros somente porque não temos vontade de
ajudar.

Paciência
Paciência é a habilidade de suportar sofrimento e dificuldades, sem ficar com raiva
ou chateados. Trabalhar em nós mesmos e tentar ajudar os outros não é fácil, e
muitas pessoas não são nada fáceis de ajudar. Elas dificultam as coisas para nós e
precisamos de paciência para não ficarmos com raiva. Há muitos métodos para
desenvolver paciência, como com todas as outras atitudes de longo alcance.

Perseverança
A próxima atitude é perseverança, que significa que nós não desistimos, não
importa quão difíceis as coisas são. Neste sentido, esta atitude de longo alcance é
mais como um vigor corajoso. Não somente nós não desistimos, mas nos alegramos
em ajudar os outros, e ficamos realmente felizes de ter a oportunidade de ajudar.
Há muitas instruções sobre como desenvolver isso, e elas incluem saber quando
devemos relaxar e fazer uma pausa. Se nós nos forçarmos demais, não seremos
capazes de ajudar ninguém. Em relação a isso, há muitos métodos para superar
todos os diferentes tipos de preguiça que nos impedem de continuar trabalhando
em nós mesmos e ajudar os outros.

Estabilidade Mental
A seguir, temos práticas para desenvolver a estabilidade mental. Isso inclui mais do
que apenas concentração, mas também engloba estabilidade emocional. Nós
queremos ter um estado mental estável que não ficará sob a influência de
devaneios mentais, voando para objetos que são atraentes para nós, ou tornando-
se entediado e sonolento. Uma mente assim permanece focada no que quer que
queiramos ficar focados. Por exemplo, quando alguém está falando conosco, as
nossas mentes não divagam e ficam pensando em outras coisas. Também somos
estáveis no sentido de que não temos emoções desconcertantes que perturbam a
nossa estabilidade; não ficamos de mau humor. Isso significa que não somos
sensíveis ou insensíveis demais, mas equilibrados e estáveis.

A Consciência Discriminativa
Isso muitas vezes é traduzido como “sabedoria” e em sânscrito chama-
se prajnaparamita. Esta última atitude refere-se à habilidade de discriminar entre
como as coisas existem e o que é impossível. Trata-se de uma consciência muito
específica, então a palavra “sabedoria” é um pouco vaga demais. Estamos falando
especificamente da consciência que sabe o que é impossível, o que envolve um
entendimento da vacuidade (vazio). Nós discriminamos que certas coisas são
ridículas, impossíveis, e não nos referimos a nada.

Trabalhamos com esses práticas e métodos para desenvolver as seis atitudes de


longo alcance, o nosso objetivo, as nossas motivação, resolução e bodhichitta. Tudo
isso está incluído no escopo avançado da motivação.
Conclusão

Baseados no nível inicial, com o escopo intermediário nós entendemos que até
mesmo se tivermos renascimentos em estados melhores, ainda assim sofreremos.
Ainda encontraremos problemas, teremos que ficar doentes e morreremos, e
depois faremos tudo de novo. E de novo. Ao nos cansarmos disso, nós
compreendemos que não há nada de particularmente especial em todos esses
renascimentos incontrolavelmente recorrentes, e então temos como objetivo a
libertação de tudo isso.

Quando seguimos em frente rumo ao nível avançado, paramos de pensar em nós


mesmos como a única pessoa que realmente importa – o centro do universo.
Entendemos que todos são exatamente iguais a nós em seu desejo de ter felicidade
e evitar o sofrimento. Não somente isso, vemos que todos os seres, tanto em vidas
prévias como nesta vida, foram incrivelmente gentis conosco. Sem eles, não
seríamos capazes de comer nem beber, ler ou escrever, ir fazer compras, desfrutar
de filmes, ou fazer o que quer que seja. Percebendo que é uma vergonha
ignorarmos esta gentileza, sentimos compaixão e amor por eles, desenvolvemos
bodhichitta, enquanto desejamos alcançar a nossa própria iluminação para
realmente poder beneficiar os outros ao máximo.
A Versão Dharma-Light Comparada
ao Dharma Autêntico
Muitos ocidentais aproximam-se do budismo sem
acreditar em reencarnação ou renascimento;
entretanto o budismo tradicional assume a
existência de renascimentos desde tempos sem
início. O “Dharma-Light” é uma forma de se
praticarmos o budismo focando apenas nesta vida,
sem o conceito de renascimentos futuros. Quando
praticado como um passo para o “Dharma Autêntico”
(o budismo tradicional, completo, com a asserção do
renascimento), o Dharma-Light é uma etapa
bastante adequada para uma grande parte dos
ocidentais que estão começando no budismo.

A Importância do Renascimento

O budismo tibetano segue a tradição indiana e todas as tradições indianas


tomam como garantida a crença no renascimento. Mesmo que os
seguidores tradicionais do budismo não tenham uma profunda
compreensão daquilo que renasce ou como o renascimento funciona,
ainda assim eles cresceram com a ideia do renascimento como uma
herança cultural. Eles apenas precisam de refinar as suas compreensões,
mas não precisam de ser convencidos da existência do renascimento.
Assim, os textos sobre os estágios graduais do caminho (lam-rim) nem
sequer mencionam o tópico sobre como obter a convicção da existência
do renascimento.

Sem o renascimento, não faz sentido a discussão sobre a mente não ter
início nem fim. Sem a existência de uma mente sem início nem fim, a
apresentação do karma cai por terra. Isso acontece porque muito
frequentemente as consequências cármicas das nossas ações não se
manifestam na mesma vida em que cometemos essas ações. Da mesma
forma, sem a apresentação cármica de causa e efeito ao longo de muitas
vidas, a discussão sobre a originação dependente e a vacuidade de causa e
efeito caem por terra.

Além disso, com relação aos três objetivos de motivação do lam-rim,


como podemos nós sinceramente procurar melhorar as nossas vidas
futuras se não acreditarmos na existência delas? Como podemos
sinceramente pretender obter a liberação dos incontroláveis
renascimentos recorrentes (samsara) se não acreditarmos no
renascimento? Como podemos sinceramente ter como objetivo a
iluminação e a capacidade de ajudar os outros a obterem a liberação do
renascimento sem acreditarmos que o renascimento é um fato?

Com relação à meditação sobre bodhichitta, como podemos sinceramente


reconhecer todos os seres como tendo sido nossas mães em vidas
anteriores, sem acreditarmos nas vidas anteriores? Com relação ao
anuttarayoga tantra, como podemos sinceramente meditar na analogia
com a morte, bardo e renascimento para nos purificarmos [e, assim,
deixarmos] de os experienciar incontrolavelmente, se não acreditarmos
que o bardo e o renascimento ocorrem?

Por isso, temos evidências claras de que o renascimento é fundamental


para uma vasta e crucial parte dos ensinamentos do Dharma.

Dharma-Light e Dharma Autêntico

A maioria dos ocidentais vêm ao Dharma sem previamente acreditarem


no renascimento. Muitos abordam o estudo e a prática do Dharma como
um método de melhorar a qualidade desta vida, especialmente em termos
de superação de problemas psicológicos e emocionais. Essa atitude reduz
o Dharma a uma forma asiática de psicoterapia.

Eu uso o termo Dharma-Light para essa abordagem ao Dharma budista,


por analogia à “Coca Cola Light”. É uma versão mais fraca, não tão forte
quanto o “Dharma Autêntico”. À abordagem tradicional ao Dharma – que
inclui não só a discussão do renascimento, como também a apresentação
dos infernos e dos seis reinos da existência – eu dei-lhe o nome
de Dharma Autêntico.

Duas Maneiras de Praticar o Dharma-Light

Existem duas maneiras de praticar o Dharma-Light.

1. Podemos praticá-lo reconhecendo a importância do renascimento no


budismo e com a intenção sincera de estudarmos os corretos
ensinamentos sobre ele. Assim, procuramos melhorar esta vida atual
com os métodos do Dharma simplesmente como um degrau para
podermos melhorar os nossos renascimentos futuros e obter a
liberação e a iluminação. Desta forma, o Dharma-Light torna-se num
passo preliminar aos estágios graduais para a iluminação; um passo
anterior ao escopo inicial. Tal abordagem é completamente justa para
com a tradição budista. Ela não chama o Dharma-Light de “Dharma
Autêntico”.
2. Podemos praticá-lo reconhecendo que o Dharma-Light não só é o
Dharma Autêntico, como também a forma mais correta e habilidosa
que o budismo ocidental pode tomar. Tal abordagem desvaloriza e é
grosseiramente injusta para com a tradição budista verdadeira. Leva
facilmente a uma atitude de arrogância cultural.

Deste modo, devemos proceder com grande cuidado se percebermos que,


no nosso nível atual de desenvolvimento e compreensão espiritual, o
Dharma-Light é a “bebida” para nós.

Sumário Esquemático do Dharma-Light

O budismo torna-se Dharma-Light quando:

 o objetivo é melhorar apenas esta vida;


 o estudante tem pouco ou nenhum entendimento dos ensinamentos
budistas sobre o renascimento;
 consequentemente, o estudante não acredita nem tem interesse em
vidas futuras;
 mesmo se o estudante acreditar no renascimento, ele ou ela não aceita
a existência dos seis reinos do renascimento;
 o professor(a) do Dharma evita falar sobre o renascimento ou, mesmo
falando sobre o renascimento, evita falar sobre os infernos. O
professor(a) reduz os seis reinos às experiências psicológicas
humanas.

Sumário Esquemático sobre o Dharma Autêntico

O Dharma Autêntico é a autêntica prática tradicional do budismo, na qual:

 o estudante pelo menos reconhece a importância do renascimento no


caminho espiritual e tem o desejo sincero de obter uma compreensão
correta sobre ele;
 o estudante tem como objetivo a liberação dos incontroláveis
renascimentos recorrentes ou a iluminação e a capacidade de ajudar
todos os outros a obterem a liberação;
 mesmo se o estudante procurar melhorar as suas vidas futuras, isso
será simplesmente como um passo provisório no caminho para obter a
liberação ou a iluminação;
 mesmo que o estudante procure melhorar esta vida, isso será
simplesmente como um passo provisório no caminho para melhorar as
vidas futuras e obter a liberação ou a iluminação.

Conclusão
Contanto que o budismo não seja reduzido a mero Dhama-Light e,
portanto, mais uma forma de terapia, o Dharma-Light é um passo
extremamente útil em direção ao Dharma Autêntico, completo e com
renascimento.
Os Quatro Pensamentos Que
Encaminham a Mente para o
Dharma
Preliminares

Gosto de iniciar as aulas com uma sequência de preliminares. São vários métodos
para nos ajudar a acalmar e entrar num estado mental adequado à meditação ou
para ouvir os ensinamentos. De modo a sermos capazes de penetrar
completamente em qualquer coisa, precisamos de nela entrar sem pressas e
adequadamente. Este é o propósito das preliminares.

Existem muitas formas diferentes de se entrar num estado mental conducente à


meditação ou para ouvir os ensinamentos. Normalmente, sigo apenas uma das
muitas possibilidades. Este método começa com a contagem da respiração. Quando
estamos muito distraídos, emocionalmente ou mentalmente, devido ao nosso
trabalho, ao viajar até aqui ou ao que quer que seja, é muito importante primeiro
aquietarmo-nos até atingirmos um estado neutro. Isto ajuda-nos a relaxar. O modo
como o fazemos é respirando normalmente pelo nariz, o que quer dizer não muito
rapidamente, não muito devagar, não muito profundamente e não muito
superficialmente. O ciclo é primeiro expirar, depois permitir uma pequena pausa e,
porque fizemos uma ligeira pausa, naturalmente inspiramos mais profundamente.
Esta é uma maneira muito mais relaxada de se respirar profundamente do que se
respirássemos fundo conscientemente. Quando voltarmos a inspirar, contamo-lo
como um, mentalmente. Então, sem qualquer pausa, expiramos. Repetimos este
ciclo onze vezes e depois repetimos este processo de contar até onze umas duas ou
três vezes, dependendo da nossa velocidade. Os números não são muito
importantes. Podemos contar até qualquer número. Não precisamos de ser
supersticiosos acerca disso. O objetivo é ocupar a energia verbal da nossa mente
com qualquer coisa de modo a não pensarmos noutras coisas ao focarmos na
respiração. Gostaria que o fizéssemos, por favor.

Quando estivermos tranquilos, tentamos conduzir as nossas energias, a nossa


mente e emoções, num caminho positivo. Fazemos isto ao confirmar a nossa
motivação. Porque é que estamos aqui? O que é que queremos obter ou alçancar ao
estarmos aqui, ou quando meditamos? Estamos aqui para aprender mais métodos
para os colocarmos pessoalmente em prática, em nós próprios, para ajudarmo-nos
nas nossas vidas. Não viemos até aqui só para nos divertirmos e nos distraírmos ou
para conhecimento intelectual. Estamos aqui para aprender algo prático. É a
mesma coisa ao meditarmos. Não o fazemos apenas para relaxamento, como
passatempo ou por desporto. Meditamos para tentar ajudarmo-nos a desenvolver
hábitos benéficos para os pôr em prática nas nossas vidas. Não o fazemos para
agradar ao nosso professor. Fazêmo-lo porque estamos convencidos de que isso é
benéfico. Queremos ouvir algo prático porque gostaríamos de ser capazes de lidar
com as dificuldades das nossas vidas de uma forma mais hábil, não só para
melhorar um pouco as nossas vidas, mas para um dia irmos até ao fim e
libertarmo-nos de todas as dificuldades que temos. Gostaríamos de aprender
métodos que nos vão ajudar a tornarmo-nos em budas de modo a podermos
realmente ajudar todos os outros da melhor forma.

Ao reconfirmarmos a nossa motivação, não só consideramos o que estamos aqui a


fazer neste ensinamento, mas também é importante refletirmos sobre o objetivo
final. Embora a nossa intenção possa ser a liberação e iluminação, isso não vai
acontecer de um dia para o outro, pois normalmente milagres não acontecem. O
Dharma não é magia. Não vamos aprender meios mágicos que, de repente, nos vão
libertar de todo o nosso sofrimento. Não é o caso que aprendemos alguns métodos
e que, dia a dia, tudo vai melhorar e melhorar. Precisamos ser realistas. Falando
realisticamente, como sabemos a partir da nossa própria expêriencia de vida, as
nossas disposições e os eventos nas nossas vidas têm, e vão continuar a ter, altos e
baixos. Podemos ter a esperança de que, a longo prazo, as coisas vão melhorar;
mas, no dia a dia, vamos ter momentos difíceis. Não é que, de repente, nunca mais
iremos ficar angustiados. Se abordarmos a aprendizagem dos métodos do Dharma
de uma maneira realista, sensata e prática, e os praticarmos na meditação e na vida
quotidiana, não vamos ficar desanimados. Mesmo quando coisas realmente difíceis
surgirem na vida, e mesmo se ainda ficarmos perturbados, não seremos atirados
fora do rumo. Esta é a nossa motivação. Este é o nosso objetivo. Esta é a nossa
compreensão do que podemos ganhar ao virmos aos ensinamentos, ao meditarmos
e ao praticarmos.

É importante lembrarmo-nos disto, revendo e pensando sobre isto. Suponhamos


que estamos muito aflitos antes de uma sessão de meditação. Em vez de tomarmos
refúgio na comida, amigos, sexo, televisão ou cerveja, nós tomamos refúgio no
Dharma e meditamos para ajudarmo-nos a superar essa aflição. Até nessa situação
precisamos de ter muito cuidado em não pensar que vai ser como tomar uma dose
de heroína, como se pudéssemos sentar e meditar e sentirmo-nos dopados e
jubilosos e todos os nossos problemas desaparecessem. Se isso acontecer,
desconfie. Se fizermos a meditação corretamente, é certo que nos podemos sentir
melhor. Mas a meditação pode não nos fazer sentir cem porcento melhor. A não ser
que sejamos super-avançados, o mau humor irá provavelmente regressar. Como
muitas vezes repito, “o que é que você espera do samsara?”

Quando reconfirmamos a nossa motivação, dizemos, “Então eu vou fazer isto


porque isto me vai ajudar. Vou tentar pôr estas coisas em prática como deve ser,
para me ajudar a libertar desta dificuldade que estou atravessando e para, um dia,
poder ajudar os outros.” Sentirmo-nos melhor ou não, daqui a meia hora, não é o
objetivo. Esse não é o nosso foco principal. Estamos tomando uma certa direção na
vida e isto é o que estamos a fazer para progredir nessa direção. A direção é o
refúgio. Cada vez que ouvimos os ensinamentos ou meditamos, damos outro passo
nessa direção. Continuamos a seguir em frente, apesar dos altos e baixos. Isso é
realista. Reconfirmemos então isto por um momento.

Então tomamos a decisão consciente de meditar com concentração. Isto significa


que se a nossa atenção vaguear, iremos trazê-la de volta; se ficamos sonolentos,
tentamo-nos a acordar. Para ajudar as nossas mentes a tornarem-se claras,
sentamo-nos com as costas retas e para ajudar as nossas mentes a tornarem-se
ainda mais claras podemos usar a visualização de uma máquina fotográfica
entrando em foco.

Então há um ajuste delicado que podemos fazer. Primeiro, se estamos a sentirmo-


nos um pouco pesados e as nossas energias estiverem muito baixas, tentamos
elevar as energias no nosso corpo. Para isso, olhando para cima mas mantendo as
nossas cabeças niveladas, focamos no ponto entre as nossas sobrancelhas.

Introdução

Esta noite pediram-me para falar sobre outro aspecto das preliminares, isto é, os
quatro pensamentos que encaminham a mente para o Dharma. Especificamente, os
quatro pensamentos são:

1. pensamentos sobre a apreciação da preciosa vida humana


2. pensamentos sobre a morte e a impermanência; que as oportunidades que agora temos
não vão durar
3. pensamentos sobre as leis do karma e da causa e efeito, ou seja, como o nosso
comportamento afeta o que experienciamos
4. pensamentos sobre as desvantagens do samsara, incluindo os incontroláveis
renascimentos recorrentes.

Se apreciarmos as oportunidades que agora temos com esta preciosa vida humana
e se tivermos consciência e admitirmos o fato de que esta vida não vai durar para
sempre e que vamos um dia morrer; se tivermos consciência de que o nosso
comportamento vai moldar a forma da nossa expêriencia nesta vida e também
depois de morremos, em vidas futuras; e se compreendermos que não importa o
que vamos experienciar no futuro, que terá de ser um grande número de
dificuldades e problemas, uma vez que essas experiências são produzidas por
ações sob confusão, então nós iremos encaminhar as nossas mentes para o
Dharma.

A Direção Segura do Refúgio

O que significa encaminhar as nossas mentes para o Dharma? Isso significa


basicamente tomar refúgio. É óbvio que tomar refúgio não é algo que se faça ao se
entrar pela primeira vez num centro de Dharma. Não é o mesmo que juntarmo-nos
a um clube social ou a um centro de Dharma. Tomar refúgio é algo bastante
avançado e que requer um estado mental adequado. Acho que o termo “tomar
refúgio” é inadequado e dá uma impressão errada. Nas nossas línguas, ele significa
algo passivo – que vamos a uma pessoa ou a um ser mais poderoso e dizemos
“salva-me, guarda-me” e nós somos protegidos. Depois, da nossa parte, não temos
que fazer quase nenhum esforço. Não é disto que o budismo está a falar. Pelo
contrário, o que estamos a querer dizer é: dar uma direção ativa, segura e positiva
à nossa vida. É por isso que em vez de “tomar refúgio”, eu chamo-lhe tomar uma
direção segura. Precisamos de ter estas quatro atitudes ou entendimentos antes de
podermos tomar essa direção na nossa vida com sincera convicção. Isto quer dizer
que precisamos de ter uma idéia do que essa direção é.

Qual é essa direção? É o Buda, o Dharma e a Sangha, as Três Jóias. Mas o que é que
isto quer dizer? Frequentemente olhamos para isto de uma forma muito básica.
Pensamos que o Dharma são os ensinamentos, que o Buda é aquele que na
realidade deu esses ensinamentos tanto verbalmente quanto em termos das suas
próprias realizações, e que a Sangha se refere a qualquer coisa, como a
congregação de um templo budista ou de um centro de Dharma. Isso não é o que a
Sangha significa. Estamos a falar de praticantes muito avançados que já
alcançaram a percepção simples da realidade e que já estão bem avançados no
caminho para se tornarem liberados ou iluminados. Mesmo se dissermos, “Estou
seguindo na direção dos ensinamentos de Dharma tal como o Buda os ensinou e
como os grandes praticantes os estão a realizar,” este tipo de compreensão básica
das Três Jóias não é uma base muito estável para se dar essa direção à nossa vida.

Qual é a base para estarmos convencidos de que essa é uma direção positiva?
Precisamos de uma compreensão do Buda, Dharma e Sangha ligeiramente mais
sofisticada. Quanto mais sofisticada for a nossa compreensão, mais firme será a
nossa direção. Isto significa que todo este tema do refúgio não é algo que se deva
trivializar. “Eu fiz isso no princípio quando vim ao centro pela primeira vez e agora
tenho uma corda vermelha para usar à volta do meu pescoço.” O refúgio é um tema
que precisamos de trabalhar e aprofundar enquanto formos avançando no
caminho. Quanto mais profunda esta direção for nas nossas vidas, mais estáveis
seremos no caminho espiritual.

A verdadeira direção é indicada pela Jóia do Dharma, que deve ser compreendida
dentro do contexto das quatro nobres verdades. Estas são os quatro fatos que
qualquer pessoa que enxerga a realidade – um ser altamente realizado – veria
como verdadeiro. Elas são chamadas "nobres" porque esse é o modo como algumas
pessoas traduzem a palavra sânscrita arya. Quando vemos a realidade
diretamente, percebemos esses quatro fatos. O primeiro fato são as dificuldades da
vida – o que é que elas são? Depois vemos as verdadeiras causas dessas
dificuldades. Depois disso, vemos a paragem das dificuldades da vida e das suas
causas. E depois, vemos que existe um caminho interno, ou seja, um modo de
entender, que vai resultar nessa compreensão da realidade com o remover das
causas principais dos problemas: a confusão. Quando nos livramos da causa dos
nossos problemas, a confusão, livramo-nos dos problemas.

A verdadeira direção é indicada pela terceira e quarta nobres verdades. Isso é o


verdadeiro refúgio do Dharma. Sem deixá-lo como jargão, a nossa verdadeira meta
é este estado no qual todos os problemas e as suas causas foram removidos de tal
maneira que eles nunca mais irão tornar a aparecer, assim como o estado mental
que não só é a causa daquilo mas que resulta disto. Quando todas as dificuldades e
imperfeições são removidas, obtemos um estado mental com o qual somos capazes
de usar todas as nossas capacidades.

Qual é a nossa direção no Dharma? É o estado de liberação e o estado de


iluminação. A liberação é um estado no qual todos os nossos sofrimentos, e as suas
causas, acabaram. A iluminação é um estado no qual somos capazes de ajudar os
outros o mais possível e do qual foram removidas para sempre as coisas que nos
impediam de sermos capazes de o fazer. Os budas são aqueles que alcançaram
completamente estes dois [resultados] e que nos mostraram como o fazer.
Mostraram-nos como fazê-lo não só em termos das suas realizações mas também
ao darem instruções passo a passo. A Sangha são aqueles que alcançaram pelo
menos alguma liberação de alguns dos problemas e suas causas e estão a continuar
a trabalhar, de tal modo que eles já são incrivelmente avançados.

O Portão para o Dharma

Temos de saber duas coisas por forma a sermos capazes de encaminhar as nossas
mentes e energias para a liberação e a iluminação. Temos de saber o que a
liberação e a iluminação realmente significam. Elas não são apenas palavras
bonitas. E, segundo, precisamos da convicção de que é realmente possivel alcançá-
las. Se não estivermos convencidos de que é realmente possível obter a liberação e
a iluminação, porque é que haveríamos de querer trabalhar para as alcançar?
Como é que obtemos essa convicção? Quais são os passos que nos levarão a isso?

Um grande mestre Sakya, Sonam-tsemo, escreveu um texto muito útil, intitulado O


portão para o Dharma. Ele falou sobre esta mesma questão. Ele disse que
precisamos de três coisas. Primeiro, precisamos de reconhecer e admitir o
sofrimento e as dificuldades das nossas vidas. Por outras palavras, temos de olhar
bem para nós próprios, honestamente, e avaliar o que se está a passar nas nossas
vidas. A segunda é ter-se uma vontade muito sincera de sair desse sofrimento; não
apenas de se “tirar o melhor proveito disso,” mas realmente querer sair dele. A
terceira coisa é ter-se algum conhecimento do Dharma de modo a obtermos
alguma convicção de que o Dharma nos vai mostrar a saída. Essa convicção não é
só baseada nas belas palavras de alguma pessoa carismática. Temos de ter algum
conhecimento verdadeiro e compreensão do Dharma e de como ele nos tira do
sofrimento.

Qual é a saída? É ganhar a liberação e a iluminação. O Dharma mostra-nos como


fazê-lo com base na primeira nobre verdade, a do sofrimento. Isso é o que Sonam-
tsemo disse, que é com isto que devemos começar, reconhecendo os problemas. E
há uma causa para esses problemas. Eles estão a vir de algum lado. Para
chegarmos à eliminação das causas dos nossos problemas, a terceira nobre
verdade, temos de ter um caminho de compreensão; e isso é a quarta nobre
verdade, que nos livra da confusão.

Não é nada fácil ganhar a convicção de que é possível remover as causas das nossas
dificuldades. Precisamos de persistir e trabalhar nisso. Temos de tentar perceber
do que se está falando. Podemos começar a trabalhar com isto de uma maneira
lógica. Agora, experienciamos a vida com confusão. Por exemplo, imaginamos que
somos a pessoa mais importante do mundo e o centro do universo. Com base nisso,
achamos que temos de ter sempre as nossas vontades satisfeitas e tornamo-nos
muito cobiçosos e agressivos. Nós somos os mais importantes, então todos têm que
nos dar atenção e gostar de nós. Se as pessoas não nos derem atenção e não
gostarem de nós, ficamos então muito zangados.
Podemos ser amáveis mas isso não significa que todos precisem de perceber isso!
Com a confusão, pensamos que toda a gente deveria reconhecer isso. Ou, por outro
lado, pensamos que se as pessoas não nos amam, ou não nos dão atenção, alguma
coisa deve estar errada connosco e não somos bons e então ficamos com a auto-
estima baixa. Em qualquer caso, sofremos. Temos angústia mental e isto tudo
advém da confusão de que somos o centro do universo e que tudo devia acontecer
da maneira como queremos que aconteça.

O Buda disse que é possível acabarmos com toda a miséria que experienciamos,
livrando-nos desta atitude de confusão que a causa. O que é que vai acabar com a
confusão? A compreensão. Se compreendessemos como nós e todos no mundo
existimos, não ficariamos confusos acerca disso. Não podemos ter a confusão e a
compreensão num mesmo momento mental. A compreensão é o exato oposto da
confusão. Uma vez que não podemos ter os dois ao mesmo tempo, qual é o que vai
ganhar? Se examinarmos a confusão, quanto mais atentamente o fizermos, tanto
mais veremos que ela, na verdade, não resiste à análise. Sou realmente o centro do
universo? Bem, não, porque todos os outros pensam que eles são o centro do
universo. Por outro lado, se examinarmos a compreensão, ela resiste. Ninguém é o
centro do universo. O que isso significa é que ninguém é mais importante do que
todos os outros. Ninguém é o centro de atenção de todos nem amado por todos.
Quanto mais examinarmos isto, mais veremos que isto faz sentido. Não só é
verdadeiro com base na lógica, mas também com base na experiência e de vermos
como a vida funciona.

Porque a compreensão pode ser conferida e a confusão desmorona-se quando a


examinamos, não só a compreensão pode temporariamente substituir a confusão,
como também pode eliminá-la para sempre. Quando compreendemos que não há o
centro do universo, sabemos que nem todos vão prestar atenção e gostar de nós.
Nem todos amaram e prestaram atenção ao Buda, então porque [o haveriam de
fazer] a nós? O resultado desta análise é que nós não ficamos perturbados. Não
importa se as pessoas não nos dão atenção. O que é que esperamos do samsara?
Porque não estamos perturbados, somos capazes de lidar com as pessoas de uma
maneira afetuosa, terna, simpática e assim por diante, sem estarmos preocupados
se eles nos vão ouvir ou gostar de nós. Tentamos o nosso melhor. Desta forma, a
um nível inicial, trabalhamos para ficarmos mais convencidos de que a liberação e
a iluminação são de fato possíveis. Então não somos tolos em estarmos a trabalhar
no sentido de alcançar a liberação e a iluminação.

Os Quatro Pensamentos na Sequência Inversa

Os quatro pensamentos que encaminham as nossas mentes para o Dharma


mostram-nos, num nível ligeiramente mais profundo, que isso é possível. Falamos
de como é possível ganhar convicção na possibilidade da liberação e iluminação
em termos dos três pensamentos básicos necessários para entrar no Dharma:
sofrimento, querer sair do sofrimento e convicção de que é possivel sair do
sofrimento. Os quatro pensamentos que encaminham a nossa mente para o
Dharma, na verdade, encaminham as nossas mentes para estes três pensamentos,
especificamente para o primeiro destes três passos, isto é, reconhecer e admitir as
dificuldades e sofrimentos da vida. O último dos quatro pensamentos é o da
insatisfatoriedade do samsara, que é o reconhecimento efetivo das dificuldades e
problemas da vida. Precisamos de trabalhar em sentido contrário de modo a
apreciarmos a ordem e a necessidade de cada passo.

Quais são as dificuldades e os problemas que nós enfrentamos? O Buda deu muitas
listas, mas a mais concisa das listas é uma de três. Nós podemos chamá-los os três
tipos de problemas. O primeiro é o sofrimento mais evidente: a dor e a infelicidade.
Inclui a dor física assim como a dor mental. Quase todas as pessoas conseguem
reconhecê-lo sem muita dificuldade. Ninguém gosta de ser infeliz, por isso quase
todas as pessoas gostariam de sair dele.

O segundo problema é o problema da mudança. Isto refere-se às nossas


expêriencias comuns de felicidade, que estão manchadas com a confusão. Elas
mudam; elas não duram. Por exemplo, nós comemos e sentimos a felicidade pelo
nosso estômago estar cheio, mas essa sensação não permanece e voltamos a ficar
com fome. Qual é o problema? O problema não é que a felicidade não permaneça.
Essa é apenas a natureza deste tipo de felicidade. Ter-se a mais profunda e direta
compreensão da vacuidade não irá mudar o fato de que este tipo de felicidade seja
impermanente. Nada irá alterar este fato. Podemos ficar menos perturbados pelo
fato de que isso mude, mas isso não é o ponto em questão. O verdadeiro problema
com este tipo de felicidade reside no fator da incerteza: quando ela acaba, nós não
sabemos o que virá a seguir. Estamos com os nossos amigos passando bons
momentos. Esse tempo acaba e não sabemos se nos vamos sentir felizes, cansados,
infelizes ou o que seja. Esse é o verdadeiro problema em causa. Irmos apenas atrás
desta felicidade temporária não nos irá ajudar, mesmo que nos sintamos bem
durante uns tempos. Isso não só não elimina todos os nossos problemas, como
acabamos por ficar num estado de verdadeira insegurança, sem sabermos o que
virá a seguir.

O terceiro tipo de verdadeiro problema é o problema todo-abrangente. Isto é, que o


tipo de corpo, mente e emoções que temos perpetuam todos os outros problemas.
São auto-perpetuantes. Nós temos este tipo de corpo. Temos de estar sempre a
alimentá-lo e a tomar conta dele. E quando comemos, a felicidade não é duradoura
e temos de comer outra e outra vez. Que entediante! Começamos uma relação
difícil com alguém e não aprendemos: ficamos magoados e começamos outra e
outra relação. A confusão simplesmente continua e há-de continuar. Esta pessoa
afinal não era o príncipe ou a princesa encantada e então procuramos por outro ou
outra. Os sentimentos de insegurança continuam a surgir. Este é o verdadeiro
problema: surgem e voltam a surgir continuamente. Compreender estes três
sofrimentos é o quarto pensamento, isto é, as desvantagens do sofrimento. É
também a primeira nobre verdade, a dos problemas.

Qual é a base para esta compreensão das desvantagens do samsara? É o terceiro


pensamento, a compreensão do karma e da causa e efeito. Esta é a causa do
sofrimento do samsara. Esta é a nobre verdade número dois. Porque é que
experienciamos o primeiro tipo de verdadeiro problema, o sofrimento mais
evidente? Porque agimos destrutivamente. Agimos destrutivamente devido à
confusão. Não compreendemos os resultados das nossas ações ou então pensamos
que as nossas ações são infrutíferas.
O segundo tipo de problema é o da mudança e incerteza. Para compreender a razão
pela qual o experienciamos, precisamos de compreender o karma. Se
compreendermos o karma, compreenderemos que aquilo que experienciamos é
muito complexo. Temos feito tantas coisas, tanto construtivas como destrutivas,
misturadas com a confusão, sem qualquer princípio. Poderíamos pensar que somos
o centro do universo e que somos simpáticos para todos ou antipáticos para toda a
gente. Acumulamos milhões e milhões de potenciais kármicos, tanto positivos
como negativos. Então, nós experienciamos a felicidade por um momento. Ela vem
de um potencial positivo. Depois ela acaba. E agora? Há incontáveis possibilidades
kármicas à espera de amadurecer. O que irá amadurecer a seguir? Não é simples.
Depende de muitos fatores diferentes: a nossa atitude, a circunstância, o que as
outras pessoas fazem, a nossa saúde e assim por diante. Não é de admirar que não
haja certezas, e que a nossa experiência no samsara ande aos altos e baixos. Os
doze elos do surgirmento dependente descrevem como o karma e a confusão
perpetuam o samsara. Quando compreendermos o karma profundamente, então
compreenderemos como todo o mecanismo do karma anda aos altos e baixos,
perpetuando-se a si próprio, o que é o problema todo-abrangente.

O terceiro pensamento que encaminha a nossa mente para o Dharma leva-nos ao


estado mental de compreender porque é que existe esta incerteza. O que
encaminhará as nossas mentes a pensar deste modo? Termos consciência da morte
e da impermanência. A duração da nossa vida é incerta. Este é o segundo
pensamento que encaminha a nossa mente para o Dharma. Se levarmos a morte e a
impermanência a sério, entendendo que as situações evidentemente não são
permanentes, então poderemos começar a apreciar os ensinamentos sobre o
karma, que nos mostram a incerteza do que acontece momento a momento.

O que nos leva a pensar sobre a morte? O apreciar a vida e as oportunidades que
temos agora: esta preciosa vida humana. Assim, pensar na preciosa vida humana
que temos agora é o primeiro pensamento que encaminha a nossa mente para o
Dharma.

Sumário

Ao trabalharmos neste sentido inverso, podemos ver como cada atitude surge da
anterior. Podemos explicá-los indo de um a quatro, numa sequência lógica. Mas,
uma vez que a maioria de vocês já estudou isto, eu queria apresentá-los na ordem
inversa para mostrar como cada pensamento depende do anterior. Seguindo a
ordem progressiva, pensamos na nossa preciosa vida humana, que ela não vai
durar para sempre, e que o que acontece depois da morte, em vidas futuras,
depende do karma. Mesmo se nascermos numa situação favorável, há-de haver
muitos problemas. Ao compreendermos isto, quereremos sair deste sofrimento.
Para isso, precisaremos de ter a convicção que o Dharma ensina realmente o
caminho para sair dele. E que é realmente possível alcançar a liberação dos
problemas e a iluminação. Isso leva-nos a tomar uma direção segura e a
desenvolver a bodhichitta, com a qual nos dedicamos completamente para
alcançar a iluminação e sermos capazes de beneficiar a todos.
No sentido inverso, como já vimos, e de modo a darmos a direção segura e a
bodhichitta às nossas vidas, precisamos de ter a convicção de que é possível
livrarmo-nos do sofrimento e das suas causas. Para isso, precisamos de
compreender a natureza da confusão e como a compreensão elimina a confusão.
Para isso, precisamos de reconhecer as dificuldades da nossa vida, as dificuldades
do samsara: a recorrência de problemas e incertezas. Estas incertezas devem-se ao
karma. Para começarmos a pensar em termos de incerteza, precisamos primeiro
pensar nela ao nível mais óbvio da morte. Não nos preocuparíamos com a morte se
não pensássemos sobre a vida que agora temos com todas as suas oportunidades e
não a quiséssemos perder.

Estes quatro pensamentos, quer sejam vistos numa sequência progressiva ou


inversa, são muito essenciais uma vez que nos ajudam a sermos estáveis no
caminho, para que possamos ser mais prestáveis a nós próprios e aos outros.

Perguntas e Respostas
Como é que a incerteza se encaixa nas preocupações mundanas e no pensar: “se eu
pudesse só ter isto ou aquilo, eu seria feliz”?

Isso depende daquilo que achamos que nos vai trazer felicidade. Pensarmos, “ se
conseguisse alcançar a iluminação, seria feliz” é diferente de pensar, “se
conseguisse ter o parceiro ideal seria feliz para sempre e nunca mais teria
sofrimento algum.” Se estamos à procura da eliminação total do sofrimento, de tal
modo que ele nunca mais volte, seja num chocolate, num parceiro, no sexo ou no
que quer que seja, então iremos ficar sempre frustrados. Contudo, se admitirmos
que o tipo de felicidade comum é aquilo que é, então podemos tê-la como aspiração
enquanto um objetivo provisório. Se tivermos um certo nível de felicidade,
podemos usá-lo como uma circunstância para chegarmos mais além no caminho. É
por isso que o escopo inicial do caminho gradual do lam-rim tem como meta um
renascimento afortunado. Precisamos de uma felicidade mundana geral como
circunstância para trabalharmos para a liberação e a iluminação. Isso tudo
depende de reconhecermos o tipo de felicidade comum como aquilo que
efetivamente é, sem o ampliar. Precisamos de ter os nossos pés no chão.

Conclusão

É muito útil trabalharmos com estes quatro pensamentos. Eles são chamados
preliminares no sentido em que eles nos conduzem a um estado mental adequado,
a fim de estarmos firmemente no caminho, assim como as preliminares antes das
aulas nos conduzem a um estado mental adequado a ouvir os ensinamentos. O que
significa ingressar no caminho do Dharma? Podemos falar sobre isso em termos
técnicos, mas não vamos falar acerca disso a esse nível. Estarmos no caminho
significa estarmos realmente convencidos daquilo que estamos a fazer e termos os
nossos corações completamente nisso. De outro modo, não estaremos muito
estáveis. Poderemos fazê-lo por uns tempos como um passatempo ou porque
outras pessoas estão a fazê-lo, mas não estamos realmente dentro dele.
Estarmos realmente no caminho requer uma mudança de postura. Requer uma
certa maneira de se ver a vida. Requer, na verdade, vermos a situação da nossa
vida e admitirmos que há problemas e dificuldades. É importante apreciar a nossa
preciosa vida humana e saber que ela não vai durar para sempre. A nossa vida tem
problemas e estes problemas surgem basicamente por causa da confusão e do
karma. Embora experienciemos felicidade nas nossas vidas, ela não é
verdadeiramente satisfatória porque ela é temporária e não podemos garantir que
vamos continuar de bom humor. Sermos felizes só às vezes não é suficientemente
bom.

Podemos saber que entramos em relacionamentos disfuncionais, mas porque estes


são excitantes e divertidos ao princípio, metemo-nos num noutro conscientes de
que nós, ou a outra pessoa, irá arruiná-lo. E depois, metemo-nos noutro e noutro.
Eventualmente ficamos cansados disso e dizemos, “ eu quero mesmo acabar com
isto!” Ficamos convencidos de que é possível parar com isso. Com base nessa
convicção, podemos realisticamente trabalhar para parar com isso.

Durante o caminho, precisamos de tentar adquirir a felicidade temporária, porque


ela irá fazer com que seja mais fácil continuarmos no caminho. Mas a nossa
experiência continuará a ter altos e baixos. Em vez de andarmos constantemente à
procura do príncipe encantado e da princesa encantada, podemos iniciar qualquer
tipo de relação, que não vai ser perfeito – a este nível nunca irá ser perfeito – e
podemos usá-la como base para melhorarmos a nossa prática. É a mesma coisa
com o dinheiro. Se as nossas vidas inteiras forem passadas à procura de mais e
mais dinheiro, isso nunca mais vai acabar.

Nós precisamos de um certo nível de conforto material para podermos viver e, do


mesmo modo, precisamos de um certo nível de afeição, amor e companheirismo
por forma a obtermos circunstâncias conducentes a trabalharmos em nós próprios.
A relação com um companheiro nunca irá ser perfeita. A quantidade de dinheiro no
banco nunca será suficiente. A quantidade de conforto que temos em nossas casas
nunca irá ser perfeita. Este é o problema da mudança. Trabalhar para tentar torná-
los perfeitos é apenas batermos com as nossas cabeças contra a parede. Quando
tivermos o suficiente destas coisas para nos podermos dedicar à nossa vida
espiritual, precisamos de nos dedicar à nossa vida espiritual! A questão é usarmos
o nível imperfeito que temos para trabalharmos em direção a algo que nós
podemos realisticamente alcançar: o estado último. Podemos remover a confusão
das nossas mentes, e isso quer dizer que podemos eliminar o sofrimento. Esse é o
propósito de tudo isto. Assim, vamos ser felizes e ser capazes de fazer os outros
felizes. Nós vamos ser mais capazes de ajudar os outros a tentar constantemente
encontrar o parceiro ideal, ou a trabalhar para nos livrarmos da nossa raiva?

Dedicação

Vamos acabar com uma dedicação. Possa qualquer compreensão, que possamos ter
adquirido, tornar-se mais e mais profunda de modo a que ela comece, lentamente,
a deixar uma impressão em nós e a adicionar aos nossos potenciais positivos, de
modo a que comecemos gradualmente a ver as coisas em termos destes quatro
pensamentos. Possamos gradualmente tornarmo-nos mais estáveis na nossa
direção segura na vida de modo a que possamos eventualmente obter a liberação e
a iluminação para o benefício de todos.

]
Karma e Renascimento
O karma se refere à compulsão que impulsiona nossos modos de agir, falar e
pensar, quando sob a influência de desequilíbrios emocionais, atitudes
egocêntricas e confusão básica em relação à vida. Nosso comportamento
compulsivo, seja cheio de raiva ou perfeccionismo obsessivo, acumula o hábito
de repetir esses padrões e nos leva à infelicidade ou insatisfação. Ele também
causa repetidos renascimentos em qualquer uma das variadas formas de vida
que apoiará a continuidade da repetição destes padrões. Eles vão continuar a
se repetir até conseguirmos quebrar o ciclo para sempre e obter a liberação.

O Que É Reencarnação?
Dr. Alexander Berzin

Assim como outras religiões indianas, o budismo também afirma a existência


do renascimento ou reincarnação. O continuum mental de um indivíduo, com
seus instintos, talentos e assim por diante, vem de vidas passadas e segue
para vidas futuras. Dependendo de suas ações e das propensões por elas
geradas, um indivíduo pode renascer em uma variedade de formas, algumas
melhores e outras piores: humana, animal, de insetos e até mesmo de
fantasmas e outros estados invisíveis. Todos os seres experimentam
renascimentos incontroláveis devido à força de suas atitudes perturbadoras,
como apego, raiva e ingenuidade e o comportamento compulsivo
desencadeado por elas. Se uma pessoa segue os impulsos negativos que
surgem em sua mente devido a padrões passados de comportamento e age de
forma destrutiva, ela experimentará como resultado o sofrimento e a
infelicidade. Se, por outro lado, uma pessoa envolve-se em atos construtivos o
resultado será a felicidade. A felicidade ou infelicidade de um indivíduo em
seus sucessivos renascimentos não é, portanto, uma recompensa ou punição,
mas é criada por suas ações pregressas, de acordo com as leis de causas e
efeitos comportamentais.
Como Podemos Vir a Entender o Renascimento?

Como podemos saber de forma legítima se algo é verdadeiro? De acordo


com os ensinamentos budistas, existem duas maneiras: através da
percepção direta ou por inferência. Se fizermos uma experiência em um
laboratório, podemos validar a existência de algo através da percepção
direta. Por exemplo, se olharmos através de um microscópio podemos
ver, através apenas de nossos sentidos, que existem minúsculos
micróbios em uma gota de água do lago.

Entretanto, existem algumas coisas que não podem ser validadas pela
percepção direta. Precisamos nos basear em lógica, razão e inferência,
como no caso do magnetismo, cuja existência é inferida através do
comportamento de um imã e uma agulha de ferro. É muito difícil
provarmos o renascimento através da percepção direta. Entretanto,
existem muitos exemplos de pessoas que lembram de suas vidas passadas
e conseguem identificar objetos pessoais ou pessoas que conheciam na
vida anterior. Podemos inferir daí a existência do renascimento, mas
algumas pessoas podem ainda assim duvidar e achar que é um truque.

Mas podemos deixar de lado os casos de memórias de vidas passadas e


usar a lógica para compreender o renascimento. Sua Santidade o Dalai
Lama declarou que, se determinados aspectos do budismo não
corresponderem à realidade, ele estaria disposto a eliminá-los, e isso se
aplica também ao renascimento. Inclusive, foi esse o contexto original da
declaração. Se os cientistas conseguirem provar a inexistência do
renascimento, teremos que deixar de tomar isso como verdadeiro.
Entretanto, se eles não conseguem provar que renascimento não existe,
eles tem que investigar se existe: afinal os cientistas seguem a lógica e a
metodologia científica, que é a aberta a coisas novas. Para provar que a
inexistência do renascimento eles teriam que encontrar sua não
existência. Declarar que “renascimento não existe porque não consigo
testemunhá-lo com meus olhos” não é provar a inexistência do fato; afinal
existem muitas coisas que não conseguimos ver e no entanto existem,
como o magnetismo e a gravidade.

Linhas de Raciocínio para Investigarmos Se Renascimento Existe


ou Não

Se os cientistas não conseguem provar a inexistência do renascimento,


convêm investigarmos sua existência. O método científico é postular uma
teoria baseada em alguns dados e depois verificar se ela pode ser
validada. Portanto, olhamos os dados. Por exemplo, percebemos que
crianças não nascem como caixas vazias. Elas têm certos hábitos e
características pessoais (personalidade) observáveis até mesmo quando
são muito novas. De onde vêm essas características?

Não faz sentido dizermos que vêm apenas da continuidade física do


material doado por seus pais, o óvulo e o espermatozoide. Se nem todos
os óvulos fecundados conseguem alojar-se no útero e virar um feto, o que
faz com que alguns virem bebês e outros não? O que será que está
realmente causando os vários hábitos e instintos da criança? Não
podemos dizer que é o DNA e os genes, o lado físico. Ninguém está
negando que esse é o aspecto físico que define como o bebê será, mas e
quanto ao aspecto vivencial? Como explicar a mente?

A palavra inglesa para mente (e também a portuguesa) não tem o mesmo


significado que o termo supostamente traduzido do Sânscrito e Tibetano.
Nesses idiomas, “mente” refere-se à atividade mental ou eventos mentais
e não àquilo que está fazendo essa atividade. A atividade ou evento em
questão é o surgimento cognitivo de determinados fenômenos —
pensamentos, visões, sons, emoções, sentimentos e assim por diante — e
um envolvimento cognitivo com eles — vendo-os, ouvindo-os,
compreendendo-os e até mesmo não os compreendendo.

De onde vem essa atividade e esse envolvimento de um indivíduo com


objetos cognitivos? Não estamos questionando de onde vem o corpo, pois
é óbvio que vem dos pais. Não estamos questionando a inteligência e
coisas do gênero, porque nesse caso também podemos argumentar que
existe uma base genética. No entanto, dizer que a preferência de uma
pessoa por sorvete de chocolate vem de seus gens é “forçar um pouco a
barra”.

Podemos dizer que alguns de nossos interesses podem ser influenciados


por nossas famílias e por nossa situação social e econômica. Esses fatores,
sem dúvida, têm influência, mas é difícil utilizarmos para explicar tudo o
que fazemos. Por exemplo, porque eu me interessei por yoga quando era
criança? Ninguém na minha família ou círculo social se interessava. Havia
alguns livros disponíveis na área onde eu morava, portanto você pode
dizer que houve alguma influência da sociedade, mas por que eu me
interessei especificamente por aquele livro de hatha yoga? Por que o
escolhi? Essa é uma outra questão. Será que as coisas acontecem apenas
por acaso e a sorte tem um papel nisso, ou será que tudo pode ser
explicado?
De Onde Vem a Atividade Mental de Cada Indivíduo?

Deixando tudo isso de lado, voltemos à questão principal: de onde vem a


atividade que faz surgir objetos cognitivos e que causa nosso
envolvimento cognitivo com eles? De onde vem essa capacidade de
percebê-los? De onde vem a chama da vida? O que faz com que surja vida
da combinação de espermatozoide e óvulo? O que faz com que essa vida
seja humana? O que faz com que pensamentos e visões surjam e o que
causa nosso envolvimento cognitivo — que é o aspecto vivencial da
química e da eletricidade do cérebro — com elas?

É complicado dizermos que a atividade mental de um bebê veio de seus


pais, porque se veio, como foi que veio? Tem que haver algum mecanismo
envolvido. Será que a chama da vida — caracterizada pela consciência das
coisas — veio de nossos pais, da mesma forma que o espermatozoide e o
óvulo? Será que veio do orgasmo? Será que veio da ovulação? Será que
está no espermatozoide? No óvulo? Se não conseguimos chegar a um
indicador lógico e científico de quando ela é transferida dos pais para os
filhos, temos que buscar outra solução.

De um ponto de vista puramente lógico, percebemos que fenômenos


funcionais vêm de uma continuidade de momentos prévios de algum
fenômeno da mesma categoria. Por exemplo, um fenômeno físico, seja
matéria ou energia, vem de um momento prévio daquela matéria ou
energia. É um continuum.

Tomemos a raiva como exemplo. Podemos falar da energia física que


sentimos quando estamos com raiva, isso é uma coisa. Entretanto,
considere a atividade mental de vivenciar a raiva — vivenciar o
surgimento da emoção e a consciência ou inconsciência dela. A raiva de
um indivíduo tem seus próprios momentos anteriores de continuidade
nesta vida, mas de onde ela veio antes disso? Ou veio de nossos pais, e
parece não haver mecanismo para descrever como isso acontece, ou tem
que vir de um Deus criador. Para algumas pessoas, no entanto, a
inconsistência lógica da explicação de como um ser onipotente cria, é um
problema. Para evitarmos esses problemas, a alternativa é que o primeiro
momento de raiva na vida de alguém vem da continuidade de seus
próprios momentos anteriores de raiva. A teoria do renascimento explica
exatamente isso.

A Analogia com um Filme

Podemos tentar entender o renascimento através da analogia com um


filme. Assim como um filme é uma continuidade de quadros, nosso
continuum mental é uma continuidade de momentos de consciência de
fenômenos em uma vida, e também de uma vida para a outra. Não existe
uma entidade sólida, encontrável, como um “eu” ou “minha mente”, que
renasce. No caso do renascimento, não podemos usar uma analogia com
uma estátua em uma esteira rolante, indo de uma vida para a outra, mas
sim de um filme, algo em constante mudança. Cada quadro é diferente,
mas existe uma continuidade. Um quadro está relacionado com o
próximo. Da mesma forma, existe uma continuidade, em constante
mudança de momento de consciência de fenômenos, mesmo que alguns
desses momentos sejam inconscientes. E ainda, assim como os filmes não
são todos o mesmo filme, apesar de todos serem filmes, da mesma forma,
todos os continuums mentais ou “mentes” não são uma mente apenas.
Existem inúmeros continuums individuais de consciência de fenômenos e
cada um pode ser rotulado como “eu” a partir de sua própria perspectiva.

Essas são as linhas de raciocínio que começamos a investigar quando


consideramos a questão do renascimento. Se uma teoria faz sentido
lógico, podemos olhar com seriedade o fato de que existem pessoas que
se lembram de vidas anteriores. Dessa maneira, investigamos a existência
do renascimento através de uma abordagem coerente.

O Que Renasce?

Segundo o budismo, a analogia do renascimento não é a de uma alma,


uma pequena estátua concreta ou pessoa, viajando em uma esteira
rolante de uma vida para a outra. A esteira representa o tempo e a
imagem representa algo sólido, uma personalidade fixa ou alma, que
chamamos de “eu”, passando pelo tempo: “Agora eu sou jovem, agora
eu sou velho; agora eu estou nesta vida, agora eu estou naquela vida.”
Esse não é o conceito budista de renascimento. A analogia é a de um filme.
Existe uma continuidade em um filme; os quadros formam um
continuum.

O budismo também não diz que eu me transformo em você ou que somos


todos um. Se fossemos um, e eu fosse você, se estivéssemos com fome,
você poderia esperar no carro enquanto eu ia comer. Não é assim. Cada
um de nós tem seu continuum individual. A sequência do meu filme não
se tornará o seu filme, mas nossas vidas prosseguem como filmes no
sentido de que não são concretas e fixas. A vida segue de um quadro para
outro. Ela segue uma sequência, de acordo com nosso karma, e assim
forma uma continuidade.

Cada continuum é alguém e pode ser chamado de “eu”; não é que cada
continuum não seja é ninguém. Assim como o título de um filme - que se
refere a todo o filme e também a cada quadro dele, mas não pode ser
encontrado como algo concreto em cada quadro - da mesma forma “eu”
refere-se a um continuum mental individual e a cada momento dele, mas
também não pode ser encontrado como algo concreto em nenhum desses
momentos. Todavia, existe um “eu”, convencionalmente falando, um
“self”. O budismo não é um sistema niilista.

Humanos Sempre Renascem como Humanos?

Estamos falando de atividade mental e dos fatores gerais que


caracterizam nossa atividade mental. O que caracteriza a atividade
mental humana é a inteligência, e essa inteligência, da forma como a
conhecemos, pode estar em qualquer ponto de uma escala de “não muito
inteligente” até “muito inteligente”. Mas existem outro fatores que
também fazem parte da atividade mental, como a raiva, a ganância, o
apego, a distração e os comportamentos compulsivos que derivam desses
fatores mentais. Em algumas pessoas, esse fatores dominam a atividade
mental e portanto elas não estão utilizando sua inteligência humana; ao
invés disso estão operando principalmente com base em ganância, raiva,
etc…

Por exemplo, existem pessoas que tem um tremendo desejo sexual e


ficam de bar em bar conhecendo pessoas e tendo relações sexuais com
quase todos que encontram — essas pessoas estão agindo como
cachorros, não acha? Um cachorro tem relações sexuais com qualquer
cachorra que encontrar, seja quando for; ele não exerce qualquer tipo de
auto controle. Se um humano se comporta dessa forma, ele está criando
um habito que pertence a uma mentalidade animal. Assim, não é de se
surpreender, pensando em termos de renascimento, que a mentalidade
de desejo dessa pessoa será o modo de atividade mental dominante em
uma vida futura; e ela reencarnará em uma base própria para essa
atividade mental, ou seja, o corpo de um animal.

Portanto é muito útil examinarmos nosso comportamento: “Será que


estou agindo como esse ou aquele animal?” Pense em uma mosca. A
mentalidade de uma mosca é de total distração. Uma mosca não consegue
ficar em um lugar por mais de alguns instantes, ela está constantemente
se movendo e constantemente distraída. Assim é a nossa mente, como a
de uma mosca? Se sim, o que esperar na próxima vida? Podemos esperar
ter inteligência e boa concentração?

Esses são alguns pensamentos que nos ajudam a compreender que


humanos não renascem necessariamente como humanos. Podemos
renascer em muitas formas diferentes de vida, para cima ou para baixo.
Se criarmos muitos hábitos humanos positivos, mesmo que renasçamos
como um animal, quando a força kármica do nosso comportamento
animalesco se exaurir, nossa força positiva anterior pode se tornar
dominante e podemos renascer como humano novamente. Não estamos
condenados a renascimentos inferiores para sempre.

O ponto aqui é entender que não há nada intrínseco à atividade mental


que faça dela uma atividade mental humana ou que a faça masculina ou
feminina ou qualquer outra coisa. É simplesmente atividade mental, e o
tipo de nascimento que teremos depende do nosso karma, dos vários
hábitos que criamos com nosso comportamento compulsivo. Em vidas
futuras teremos um corpo que funcionará como uma base apropriada
para manifestarmos esses hábitos.

Conclusão

Quando utilizamos a razão para examinar a apresentação budista do


renascimento, precisamos examinar os processos causais que perpetuam
continuums mentais individuais: continuidades mentais individuais que
nunca se degeneram. A conclusão que chegamos é de renascimentos sem
início, com cada vida moldada por hábitos comportamentais previamente
criados.
Persuadir-se do Renascimento
Dr. Alexander Berzin

O renascimento é levado muito a sério no budismo, mas também é encontrado


em sistemas de pensamento no mundo inteiro, com diferentes entendimentos
do que se trata e como funciona. Será que o renascimento poderia ser
verdade? E se assim fosse, o que isso significaria em termos de minha vida e
como eu a vivo? Aqui olhamos para as razões lógicas do renascimento, como
também para anedotas pessoais que nos ajudam a ter convicção em relação a
este ensinamento que muitas vezes gera equívocos.

Introdução

O renascimento não é algo que você compreenderá após ler um pequeno


artigo, mas temos que começar de alguma maneira. Quando falamos de
renascimento, como com qualquer outra coisa, há muitas maneira de
compreender isso. É claro que há o entendimento incorreto. Também há a
presunção de que se trata de uma verdade, mesmo se não a entendemos.
Também podemos ser convencidos pela lógica de que o renascimento
tem que existir.

Eu nasci nos Estados Unidos em uma família que não tinha absolutamente
nenhum interesse em nada que fosse asiático, mas eu me interessei muito
pela filosofia asiática em minha juventude. Comecei a fazer yoga aos 13
anos e estudei idiomas e filosofias asiáticos na universidade. Aos 24 anos
eu me mudei para a Índia para estudar com tibetanos e sempre tive a
sensação de que lá eu estava totalmente em casa. De fato, senti como se
toda a minha vida até aquele momento tivesse sido como uma esteira
rolante, levando-me até os tibetanos na Índia. Enquanto muitos
ocidentais que eu conhecia e vinham para a Índia tinham vários tipos de
problemas com vistos e burocracia, durante os meus 29 anos lá nunca
tive nenhuma dificuldade. Desde o início, sabia o que queria fazer:
traduzir, não somente dos idiomas, mas realmente trazer o budismo de
uma civilização para a outra.

Este tipo de vida não realmente faz sentido, quando você considera de
qual background e de qual cultura eu venho. Eu achava a ideia da
renascimento muito atraente, não porque realmente a entendia, mas
porque ela me ajudava a dar algum sentido à minha vida; sem dúvidas,
em uma vida prévia fui um tibetano ou alguém muito envolvido com o
budismo. Isso foi uma ajuda para me dar autoconfiança para continuar
nesta direção, ao invés de apenas pensar que eu estava completamente
louco!

À medida que continuei a estudar o budismo, vi como o renascimento tem


um papel central na teoria, na prática e na abordagem budistas da vida,
então realmente tentei entender a lógica por detrás do que ele é, de por
que e como ele acontece. Quando alcancei um entendimento intelectual a
respeito disso, vi que era limitado. Percebi que a real pergunta era como
seria o momento de minha morte. É bom pensar sobre isso durante a
minha vida normal, mas será que morrerei com medo ou estarei relaxado
ao morrer?

Duas Vidas com Meu Professor

Tive incrível sorte porque tive a oportunidade incrível de conhecer


alguém muito bem durante duas vidas. Trata-se de meu principal
professor, Tsenzhab Serkong Rinpoche, que em sua última vida foi um
dos tutores de Sua Santidade O Dalai Lama. Eu passei mais ou menos
nove anos com ele como seu aprendiz, sob os seus cuidados, enquanto
treinei para ser tradutor e professor. Fui seu intérprete e secretário;
escrevi cartas para ele e organizei suas viagens ao redor do mundo. Eu me
considero extremamente privilegiado por ter tido esta relação tão
próxima a ele.

Quando me mudei para Dharamsala, fui vê-lo, e a iniciativa de me tornar


um aprendiz veio basicamente dele. De alguma forma, ele reconheceu a
conexão kármica que eu tinha com ele e me disse: “Fique. Não vá embora.
Sente-se aqui e observe como eu lido com as pessoas.” Ele começou a me
ensinar sobre o que ele realmente estava falando e me explicou as
palavras que eu não entendia. Vejam bem, ele foi um dos grandes mestres
mais altamente realizados da última geração, então era extraordinário
que ele me desse tanto de seu tempo e atenção.”

Ele morreu em 1983 em circunstâncias muito especiais nas quais ele


tomou uma espécie de obstáculo kármico em relação à vida de Sua
Santidade o Dalai Lama e então, depois de exatamente nove meses, ele
renasceu. Ele certamente não estava interessado em passar qualquer
tempo no bardo! Antes de morrer, ele já tinha permitido que algumas
pessoas soubessem exatamente o que ele faria para que tudo ficasse
claro. E então – bum! – ele renasceu no memos local no qual morreu.
Quando eles buscam por reencarnações, às vezes um grande lama tem
uma visão em um sonho ou algo assim, e então eles saem em busca de
crianças e as testam. O real teste é se a coisa vier por parte da criança.
Achando o Novo Serkong Rinpoche

A área na qual Serkong Rinpoche morreu e renasceu é o vale himalaiano


do Spiti, do lado indiano da fronteira com o Tibete. O budismo estava em
um estado muito difícil e degenerado por lá, e o velho Serkong Rinpoche
tinha ido para lá e basicamente reformado o budismo, começando pelos
monastérios, construindo uma escola, e assim por diante. As pessoas o
viam quase como um Santo do Vale Spiti, e todos tinham uma foto dele
em suas casas, incluindo seus pais de renascimento. Quando o pequeno
Serkong Rinpoche tinha idade suficiente para falar, ele foi até a foto e
disse: “Este sou eu”. Ele fez isso quando tinha dois anos – e estava
absolutamente claro em relação a quem ele era. Quando tinha quatro
anos de idade, as pessoas que antes viviam com ele foram falar com A Sua
Santidade o Dalai Lama e perguntaram onde deveriam procurar pelo
renascimento dele. A Sua Santidade disse que seria no mesmo vale no
qual o velho Serkong havia morrido. Quando chegaram à casa da
renascimento em Spiti, o pequeno Serkong Rinpoche, aos quatro anos de
idade, correu para os braços de seu velho serviçal e o chamou pelo nome.

O jovem Serkong Rinpoche, que agora tem 18 anos, me disse que naquele
momento ele apenas tinha vontade de ir embora com eles. Ele não tinha
mais interesse de ficar com seus pais e dizia que tinha que ir e encontrar
alguém que era muito importante para ele – A Sua Santidade O Dalai
Lama. Quando uma criança é reconhecida como uma renascimento de um
lama importante pelos tibetanos em áreas de cultura tibetana, isso é
considerado uma grande honra e os pais ficaram felizes pelo filho que se
foi. Serkong Rinpoche disse que nunca sentiu falta de seus pais. Quando
ele os deixou, ele nunca chorou e nunca quis voltar para casa. Isso
realmente é incomum para uma criança de quatro anos. E não foi assim
porque os pais dele o maltrataram ou algo assim. Eram pessoas
maravilhosas.

O Reencontro

Eu estava viajando e dando ensinamentos quando o jovem renascido


chegou em Dharamsala, mas alguns meses depois eu fui encontrá-lo. Ele
devia ter quase cinco anos nesta época. O assistente lhe disse: “Você sabe
quem ele é?”, quando entrei na sala e o jovem Serkong Rinpoche
respondeu: “Não seja estúpido, é claro que eu sei quem ele é.” Eu fiquei
um pouco desconfiado porque havia uma foto minha e do velho Serkong
Rinpoche juntos em uma das paredes da sala de estar. Então, pensei que
ele me reconheceu pela foto. Mas o que começou a me convencer foi que
esta criança de quatro anos me aceitou totalmente como membro da
família desde o início. Ele não era assim com outras pessoas e isso não é
algo que dá para fingir com facilidade aos quatro anos de idade.

Com o passar dos anos, à medida que ele foi crescendo, dei muitos
conselhos e orientação em relação a como ele deveria ser educado, mas
mantive um pouco de distância de propósito. Eu não queria que ele fosse
muito influenciado pelas minhas maneiras ou cultura ocidental e eu
queria que ele crescesse em uma atmosfera totalmente tibetana na qual
ele se sentisse totalmente em casa em um contexto tibetano monástico. E
assim ele fez.

Então, quando ele teve que ser educado em matérias modernas, eu fiz
com que um tibetano lhe ensinasse inglês, ciências e assim por diante,
como todos os outros tibetanos o fazem na Índia. Acho que essa
abordagem foi muito bem-sucedida, pois ele cresceu de forma confortável
em sua sociedade e posição.

Vida Passada, Vida Presente

À medida que Serkong Rinpoche estava crescendo, eu o via a cada poucos


anos. Agora que ele está mais velho, eu o vejo mais vezes e falo
frequentemente com ele ao telefone, e também o acompanhei em sua
primeira viagem ao ocidente. O relacionamento conseguiu ficar muito,
muito próximo. Um ano e meio atrás, eu visitei Serkong Rinpoche na Índia
e ele estava basicamente passando de um estágio em sua educação e
pronto para ir para o próximo. Eu fui com um amigo inglês, Alan Turner,
que também era um discípulo próximo do velho Serkong Ripoche, e o
jovem Serkong Rinpoche também o via como muito especial. Eu
costumava traduzir uma quantidade tremenda de ensinamentos privados
entre esses dois, e eu pude fazê-lo novamente. Quando estávamos ali
sentados com o novo Serkong Rinpoche, eu disse: “Você sabe, é realmente
um sentimento maravilhoso traduzir novamente para você.” Ele
respondeu: “É claro que você está fazendo isso. É o seu karma. Na vida
passada, nesta vida, isso é absolutamente natural.”

O nosso relacionamento continuou a crescer e são coisas assim de minha


experiência pessoal que me convencem, muito mais do que a lógica, da
validade do renascimento. Além de certos hábitos e coisas que ele estuda,
os seus interesses são muito semelhantes ao que eram em sua vida
prévia. Mas foi a conexão pessoal – isso para mim foi o mais convincente.
Ele apoia muito o meu website e eu o mantenho informado em relação a
tudo que faço. É claro, eu preservo os ensinamentos de sua vida prévia,
não apenas para que sejam uma fonte para ele, mas para que em minha
próxima vida eu continue a ter contato com eles.
Eu também conheci Yongdzin Ling Rinpoche em duas vidas. Eu traduzi
ocasionalmente para o velho Rinpoche, que era o tutor mais velho da Sua
Santidade o Dalai Lama, e certamente estudou com ele. O renascimento
dele é um ano mais novo que o Serkong Rinpoche. Quando eu estava na
Índia com o Alan, nós também fomos ver o novo Ling Rinpoche. Eu não o
tinha visto por anos, pois ele era muito mais jovem. Ele me reconheceu, se
interessou muito pelo que eu estava fazendo, e assim por diante. Agora,
quando você vai ver os tibetanos, eles sempre lhe servem chá e biscoitos.
Os meus preferidos são os biscoitos digestivos McVitie’s. De alguma
forma, mesmo estando em um monastério no meio da floresta no sul da
Índia, o assistente dele me serviu esses biscoitos com o meu chá. O jovem
Ling Rinpoche apenas olhou para mim como se dissesse: “haha! Você não
acredita em karma e renascimento, hem?”

What Is Rebirth? O Que É O Renascimento?

É claro, quando olhamos para o renascimento, temos que entender o que


de fato está ocorrendo, porque poderíamos também ficar convencidos de
um entendimento incorreto. Então, para convencer-nos que ela de fato
existe, é muito mais útil fazê-lo com uma base correta. A abordagem geral
ao entendimento budista é primeiro colocar a visão incorreta de lado
para que possamos alcançar a visão correta.

O Que O Renascimento Não É

Primeiro, a explicação budista não inclui nenhuma ideia de uma alma com
uma identidade definida, ou algo de sólido que vai de um corpo a outro.
Poderíamos pensar isso, porque há um Serkong Rinpoche em uma vida e
aqui está o Serking Rinpoche uma vida depois. Isso pode nos fazer chegar
à conclusão de que há uma entidade chamada “Serkong Rinpoche” que vai
de um corpo ao outro. Não é assim. Claro que no caso desses lamas
elevados, eles podem ser identificados em várias vidas, mas este não é o
caso com as pessoas comuns.

No budismo falamos basicamente da continuação do contínuo mental ou


do fluxo mental. Dependendo de nossas ações, conectadas a este contínuo
mental, nós manifestaremos um certo tipo de corpo em cada vida
subsequente. Este contínuo não será sempre o “Alex” – ou qualquer que
seja o seu nome. Não é que nesta vida sou Alex, o ser humano e, na
próxima vida, Alex, o ser humano, reencarnará como Fifi, o poodle. Por
causa das várias ações cometidas previamente, o contínuo mental se
manifesta como um humano ou cachorro ou o que quer que seja, e terá o
nome Alex ou Fifi.
Na formulação budista, não há a ideia de que as reencarnações sejam
cada vez melhores, nem que, uma vez que você tenha adquirido a forma
humana, você sempre a manterá. A visão budista diz que dependendo das
ações e dos hábitos associados com o contínuo mental, as reencarnações
se elevam ou rebaixam – humano, animal, fantasma, deus, e assim por
diante. A manifestação depende precisamente do comportamento da
pessoa, já que não há nada de externo elaborando punições ou lições a
aprender.

Continuidade Ininterrupta

Então, estamos lidando com uma continuidade através do tempo de uma


sucessão ininterrupta de momentos, mais ou menos como um filme, no
qual há um quadro de cada vez e isso continua e continua. O que é
diferente dos filmes é que não podemos impor um começo ou fim a esta
continuidade de momentos, o que é muito difícil de compreender. Não
podemos ver que não há nem início nem fim, então precisamos usar a
lógica para entender este ponto.

Quando falamos de algo que continua a renascer, trata-se da mente.


Então, temos que entender exatamente o que queremos dizer quando
falamos de mente no budismo. Não se trata de algo sólido, como o
cérebro, nem de algo imaterial, da forma como a mente é entendida no
ocidente, mas trata-se meramente da atividade de experienciar coisas
individual e subjetivamente, o que está sempre acontecendo. E não
estamos falando sobre a coisa que faz a atividade; estamos falando da
própria atividade mental.

Esta maneira de experienciar coisas a nível individual e subjetivo vem em


muitos sabores diferentes. O que está realmente acontecendo a cada
momento é que há um surgimento de uma espécie de manifestação
mental, como um holograma mental, e um engajamento mental com esta
manifestação. Então, temos a manifestação de visões, sons, pensamentos,
sentimentos, emoções e assim por diante. O surgimento dessas
manifestações e o experienciar delas é a mesma coisa.

Não há um “eu” separado de todo este processo que esteja fazendo com
que ele aconteça, ou controlando, ou fora de controle, ou observando
tudo. Apenas está acontecendo e continuando. Cada momento tem um
sabor único, em um momento há uma visão, no próximos um som, no
próximo um sentimento de raiva ou felicidade. Isso continua
incessantemente, até mesmo quando dormimos estamos experienciando
o sono, e até mesmo quando morremos, estamos fazendo a experiência da
morte.
A Continuação da Matéria/Energia e das Experiências

Quando o budismo fala de continuidade, pode ser ou da matéria e da


energia ou da experiência individual e subjetiva das coisas. Ambas
transformam-se de um momento ao outro. Então, uma árvore se
transforma em madeira, que vira uma mesa, que vira lenha para a
fogueira, e então se transforma em fogo e cinzas, e calor e energia, e assim
por diante. Nada se perde – isso é a continuidade na mesma categoria da
matéria e energia. Da mesma forma, temos a experiência de interesse se
tornar atenção, irritação, chateação, cansaço. A experiência apenas se
transforma em outro tipo da mesma categoria de fenômeno.

No entanto, a raiva não pode se transformar em uma mesa, e a madeira


não pode se transformar em raiva. Então, podemos seguir as linhas de
raciocínio para a continuação do corpo. Primeiro, o esperma e óvulo dos
pais se transformam no corpo de um bebê, que se torna o corpo de um
adolescente, de um adulto, que por sua vez cria mais esperma e óvulos
para as gerações futuras. Há a continuidade a nível do corpo. Será que o
mesmo ocorre com a nossa experiência das coisas? Será que a experiência
que os pais fazem das coisas se transforma na experiência dos filhos das
coisas? Precisamos pensar nisso. É claro, a experiência que os pais fazem
das coisas pode influenciar a nossa experiência, mas será que a
experiência deles ao assistir um filme se transforma na nossa experiência
ao também assitir aquele filme? Quando pensamos nisso, não faz sentido.

Suporte Físico para a Mente

Então, deve haver algum tipo diferente de mecanismo ocorrendo aqui. A


experiência das coisas não parece ser uma transformação transmitida dos
pais aos filhos, como o esperma e o óvulo criando um corpo. Poderíamos
perguntar se a experiência das coisas tem uma fonte física, e se o corpo
dos pais cria a experiência das coisas. Temos que examinar isso. Sim, a
experiência das coisas sempre depende de uma base física, mas será que
este suporte cria a experiência? É como um copo de vidro. O copo contem
água mas não cria a água. O copo é necessário para conter água, mas
certamente não a cria. Da mesma forma, um corpo é necessário para
conter a experiência, mas não podemos dizer que o corpo cria a
experiência.

Depois, podemos nos aprofundar, olhando para a continuidade de nosso


corpo e não apenas dos pais para os filhos. Cada átomo em nosso corpo
tem a sua própria continuidade. É extraordinário pensar que todos os
átomos e moléculas do corpo estão constantemente mudando durante a
nossa vida, então, até mesmo se houver uma continuidade de um corpo
individual, o corpo de um bebê de uma semana quase não tem nenhuma
célula em comum com o velho de oitenta anos que ele um dia será.

É incrível pensar na comida que entra no corpo e se transforma nos


átomos de nosso corpos por um tempo, e então se torna resíduo de
energia cinética. Há todo um processo ocorrendo no qual cada parte de
nosso corpo físico é a continuidade de algo que antes não era parte de
nosso corpo. Isso então se torna parte de nosso corpo por um tempo e
depois continua como outra coisa diferente. Enquanto cada átomo tem a
sua própria continuidade, o próprio corpo também tem uma continuidade
que retém a sua individualidade. Isso é notável, quando se pensa nisso.
Então, o que realmente faz com que ele seja “eu”?

Quando entendemos esta continuação física, podemos perguntar: “é a


mesma coisa com a experiência das coisas?” Da mesma forma que o nosso
corpo é feito de muitas partes e sistemas e átomos diferentes, assim
também é a nossa experiência de coisas feitas de diferentes componentes
que estão todos interligados. Temos o sentido da audição, da visão e
assim por diante, temos sentimentos de felicidade e infelicidade,
emoções, interesses, atenção e concentração. Há todas essas coisas que
têm uma continuidade, então será que elas são semelhantes ao corpo?
Quando comemos carne, os átomos eram parte de um outro corpo, e
quando morrermos, os vermes nos comerão e os átomos se tornarão
parte do corpo deles. Será que a nossa felicidade é assim, foi parte da
mente de outra pessoa, se tornou parte de nós, e depois irá para outra
pessoa? Isso não faz nenhum sentido. Podemos apenas dizer que a nossa
experiência de felicidade agora é a experiência da minha experiência de
felicidade no passado.

A Mente vem da Mente, a Experiência vem da Experiência

Examinando isso desta forma, chegamos à conclusão que a experiência


das coisas pode apenas ser uma continuidade de si mesma – momentos
prévios e posteriores de si mesma. Então nos perguntamos: se o corpo
apenas apóia mas não cria esta experiência, será que um contínuo
individual de experiência tem um início ou um fim absoluto? Será que faz
sentido que antes não houvesse nada e que esse nada tenha se
transformado em algo, em experiência? Se foi assim, como isso funciona,
de onde vem, e o que ocorre no final? Há todos os tipos de componentes
criando cada momento da experiência, de momento a momento,
formando um contínuo e, então, de repente, simplesmente acaba? Isso
também não faz muito sentido.
A matéria e energia do corpo continuam, desde antes de nascermos e até
depois que morremos, o que ocorre então com a experiência? Temos que
realmente pensar sobre isso, olhar para a causa e o efeito, que operam de
um momento ao outro e fazem com que a continuidade ocorra. Temos
realmente apego à existência, o que faz com que queiramos continuar
indefinidamente. Teremos isso ao morrer também, pois se há apego à
existência contínua do momento número um ao momento número dois,
por que ele não deveria continuar a criar mais momentos quando vocês
morrem? Não faz sentido que a causa não tenha nenhum efeito. Por isso
tiramos nossa cabeça da água automaticamente quando tentamos nos
afogar. É quase impossível nos matarmos colocando a nossa cabeça em
uma pia cheia de água, pois há um apego muito forte para continuarmos a
existir.

À medida que nos aprofundamos, chegamos a uma compreensão mais


sofisticada de como a renascimento funciona e do que realmente passa de
uma vida à outra. Não há nada de sólido que continua, como uma mala
que se move na esteira rolante do aeroporto, mas existe continuidade.
Também há alguns padrões, inclinações e interesses que continuam, o
que faz com que certas coisas sejam mais fáceis para certas pessoas do
que para outras.

Aplicação no Cotidiano

Tudo isso se traduz bastante em termos de nossa própria experiência


desta vida, porque significa que o tipo de personalidade que temos e
desenvolvemos – podemos desenvolver as nossas personalidades para
nos tornarmos o que quisermos – terá continuidade. Isso nos confere uma
grande responsabilidade, pois podemos decidir que tipo de continuidade
de experiência queremos ter no futuro e agir de acordo com isso. Não se
trata de recompensa e punição, mas se quisermos fazer a experiência do
sofrimento, podemos criar causas para isso, e se quisermos fazer a
experiência da felicidade, também podemos criar causas para isso. É tudo
muito lógico quando olhamos para causa e efeito. Desenvolvemos certos
hábitos quando crianças, e eles continuam como adultos, e podem
continuar nas vidas futuras também.

Resumo

Não é realmente tão difícil ganhar uma boa compreensão intelectual da


renascimento no budismo. A real questão é, como será quando eu
morrer? O que sentirei neste momento? Quão forte será a minha
convicção? Por isso, realmente precisamos examinar os ensinamentos e
não apenas aceitar o que os outros nos dizem. Quando alcançarmos um
entendimento da causa e do efeito, e portanto da continuação da matéria
física e dos momentos mentais, nos tornaremos mais conscientes de
nossas ações, o que afetará não apenas esta vida, mas também as vidas
futuras.
Conselhos Budistas sobre a Morte e
o Morrer
O 14º Dalai Lama

Todos teremos que encarar a morte, portanto não deveríamos ignorá-la.


Encarar a mortalidade de forma realista nos habilita a viver uma vida mais
plena e significativa. Ao invés de morrermos com medo, poderemos morrer
felizes por termos aproveitado ao máximo nossa vida.

Como Levar uma Vida Significativa

Ao longo dos anos, os nossos corpos mudaram. Geralmente, nem a


espiritualidade nem a meditação podem parar este processo. Somos
impermanentes, mudamos constantemente, mudando de um momento
para o outro, e isto é parte da natureza. O tempo está sempre em
movimento; nenhuma força pode parar isso. Então a real questão é se
estamos utilizando devidamente o nosso tempo. Será que estamos
utilizando o nosso tempo para criar mais problemas para os outros, o que
no final das contas acaba por nos tornar profundamente infelizes? Eu
acho que esta é uma forma incorreta de usar o tempo.

Uma melhor maneira é tentar moldar as nossas mentes todos os dias com
uma motivação apropriada e continuar no restante do dia com este tipo
de motivação. Se possível, isso significa servir os outros; e se não for o
caso, pelo menos não prejudicar os outros. Neste sentido, não há
diferença entre as profissões. Qualquer que seja o seu trabalho, você pode
ter uma motivação positiva. Se o nosso tempo for usado desta forma
durante dias, semanas, meses, anos – décadas, não apenas por cinco anos
– então as nossas vidas passam a ser significativas. No mínimo, estamos
fazendo alguma espécie de contribuição dirigida para o nosso estado
mental individual de felicidade. Mais cedo ou mais tarde, o nosso fim
chegará e neste dia não teremos arrependimentos; saberemos que
usamos o nosso tempo de forma construtiva. Eu penso que muitos de
vocês usam o tempo de uma forma apropriada, que faz sentido. Isso é
importante.

Ter uma Atitude Realista em Relação à Morte

Contudo, as nossas vidas atuais não são eternas. Mas pensar que “a morte
é um inimigo” é completamente errôneo. A morte é parte de nossas vidas.
Claro, do ponto de vista budista, este corpo de certa maneira é um
inimigo. Para desenvolver um desejo genuíno de moksha – libertação –
precisamos este tipo de postura: que este nascimento, este corpo, que a
natureza destes é sofrimento e, portanto, queremos terminá-lo. Mas esta
postura pode criar muitos problemas. Se você considerar a morte como
um inimigo, então este corpo também será um inimigo, e a vida como um
todo será um inimigo. Isso é ir longe demais.

É claro que a morte significa não mais existir, pelo menos não neste
corpo. Teremos que nos separar de todas as coisas com as quais
desenvolvemos alguma conexão íntima nesta vida. Os animais não gostam
da morte. Naturalmente, o mesmo ocorre com os seres humanos. Mas nós
somos parte da natureza e, assim sendo, a morte é parte de nossas vidas.
É lógico que a vida tem um início e um fim – há o nascimento e há a
morte. Ou seja, não é algo incomum. Mas eu penso que nossas ideias
irrealistas em relação à morte nos causam ainda mais preocupação e
ansiedade.

Como praticantes budistas, é muito útil nos lembrarmos diariamente da


morte e da impermanência. Existem dois níveis de impermanência: um
nível mais denso no qual todos os fenômenos produzidos têm um fim e
um nível mais sutil no qual todos os fenômenos afetados por causas e
condições mudam a cada momento. Na verdade, o nível sutil da
impermanência é o real ensinamento do budismo; mas geralmente o nível
mais denso da impermanência também é uma parte importante da
prática porque ele reduz algumas de nossas emoções destrutivas
baseadas no sentimento de que somos eternos.

Olhem para os grandes reis e soberanos – também no ocidente – com


seus grandes castelos e fortalezas. Os imperadores se consideravam
imortais. Mas hoje quando olhamos para essas estruturas, elas nos
parecem um tanto estúpidas. Olhem para a Grande Muralha na China. Ela
criou um imenso sofrimento para os súditos que a construíram. Mas esses
trabalhos foram realizados com sentimentos como: “O meu poder e o meu
império permanecerão para sempre” ou “O meu imperador permanecerá
para sempre”. Como o muro de Berlim – algum líder comunista da
Alemanha oriental disse que este duraria por mil anos. Todos esses
sentimentos vêm do apego a eles mesmos ou aos seus partidos ou suas
crenças e do pensamento que estes permanecerão para sempre.

É verdade que precisamos de desejo positivo como parte de nossa


motivação – sem o desejo não há movimento. Mas o desejo combinado
com a ignorância é perigoso. Por exemplo, há o sentimento de
permanência que muitas vezes cria aquele tipo de visão “Eu vou durar
para sempre”. Isso é irrealista. Isso é ignorância. E quando você combina
isso com desejo – querendo mais e mais, e mais – isso cria ainda mais
dificuldades e problemas. Mas o desejo com sabedoria é muito positivo.
Portanto, precisamos disso.

Na prática tântrica também somos confrontados com caveiras e este tipo


de coisas lembretes da impermanência, e em algumas mandalas nós
visualizamos cemitérios. Todos estes são símbolos que nos lembram a
impermanência. Um dia, o meu carro atravessou um cemitério. Ele ainda
estava fresco em minha mente quando eu o mencionei durante uma
palestra pública: “Eu acabei de passar por um cemitério. Este é o nosso
destino final. Temos que ir para lá”. Jesus Cristo mostrou aos seus
seguidores que finalmente a morte acaba por vir. E o Buda fez a mesma
coisa. Allah, eu não sei – Allah não tem forma – Mas é claro que
Mohammed o demonstrou.

Por conseguinte, precisamos ser realistas: a morte virá mais cedo ou mais
tarde. Se você desenvolver um tipo de postura ciente de que a morte virá
desde o início, então, quando a morte de fato chegar, você se sentirá
muito menos ansioso. Assim sendo, como praticantes budistas, é muito
importante nos lembrarmos disso diariamente.

O Que Fazer no Momento da Morte

Quando chegar o nosso último dia, teremos que aceitá-lo e não vê-lo como
algo estranho. Não há outro caminho. Neste momento, alguém que tem fé
em uma religião teísta deveria pensar: “esta vida foi criada por Deus,
assim sendo, o fim dela também faz parte do plano de Deus. Embora eu
não goste da morte, Deus a criou, e por isso ela deve ter algum sentido.”
Essas pessoas que realmente acreditam em um deus criador deveriam
seguir esta linha de raciocínio.

Aqueles que seguem as tradições indianas e acreditam no renascimento


deveriam pensar em suas vidas futuras e fazer esforços no sentido de
criar as causas apropriadas para uma boa vida futura, ao invés de se
preocupar, e se preocupar, e se preocupar. Por exemplo, no momento da
morte, você poderia dedicar todas as suas virtudes para que a sua
próxima vida seja uma boa vida. E então, quando a morte chegar, o estado
mental deve ser calmo. Raiva, medo demais – esses estados não são bons.

Se possível, os praticantes budistas deveriam usar este tempo agora para


pensar em suas próximas vidas. As práticas de bodhichitta e algumas
práticas tântricas são boas para isso. De acordo com as práticas tântricas,
no momento da morte há a dissolução dos elementos em oito etapas – os
níveis mais densos dos elementos do corpo se dissolvem, e depois os
níveis mais sutis também se dissolvem. Os praticantes tântricos precisam
incluir isso em sua meditação diária. Todos os dias eu medito sobre a
morte – em diferentes práticas de mandala – pelo menos cinco vezes, e
ainda estou vivo! Hoje de manhã eu já passei por três mortes.

Ou seja, esses são os métodos para criar uma garantia para uma boa
próxima vida. E para os que não acreditam, como falei antes, é bom ser
realistas em relação ao fato da impermanência.

Como Ajudar aos Que Estão Morrendo

Quanto àqueles que de fato estão morrendo, é bom que em seu entorno
haja pessoas com algum conhecimento de como ajudar. Como mencionei
antes, com os moribundos que acreditam em um deus criador, você pode
fazer com que se lembrem de Deus. Uma fé focada em Deus tem pelo
menos alguns benefícios, também do ponto de vista budista. Com as
pessoas que não têm crença nem religião alguma, como eu mencionei
antes, é importante que sejam realistas e mantenham a calma.

Ter parentes chorando ao redor da pessoa que está morrendo pode ser
prejudicial para que estas pessoas possam manter as suas mentes calmas
– é apego demais. E também por demasiado apego aos parentes há a
possibilidade de desenvolver raiva e ver a morte como uma inimiga.
Assim sendo, é importante tentar manter o estado mental deles calmo.
Isso é importante.

Em muitas ocasiões me pediram para ir a hospitais budistas. Na Austrália,


há um monastério de monjas totalmente dedicado a tomar conta de
pessoas que estão morrendo ou com doenças graves. Esta é uma maneira
muito boa de colocar a nossa prática diária de compaixão em ação. Isso é
muito importante.

Conclusão

A morte não é algo estranho. É algo que ocorre todos os dias, em todo o
mundo. A compreensão de que vamos indiscutivelmente morrer nos
encoraja a viver uma vida mais significativa. Quando vemos que morte
pode chegar a qualquer hora, é muito mais difícil nos envolvermos em
brigas e discussões sobre coisas pequenas. Ao invés disso, nos motivamos
a aproveitar ao máximo a vida, beneficiando os outros o quanto for
possível.
Evitando as Dez Formas de
Comportamento Destrutivo
Dr. Alexander Berzin

Se desejamos desenvolver relações mais saudáveis e satisfatórias com os outros, bem como,
incrementar nosso bem-estar, precisamos desenvolver nosso senso ético. Isso significa evitar
comportamento destrutivo e prejudicial e, ao invés disso, agir construtivamente de formas
úteis. Nos comportamos de maneira destrutiva quando estamos sob a influência de emoções
perturbadoras tais como a raiva e a ganância. Perdemos a paz de espírito e o auto-controle e
agimos compulsivamente por conta de hábitos negativos. Ferimos frequentemente os outros,
mas sem dúvida, acabamos por nos machucar. Agir destrutivamente é a causa de nossa
infelicidade em longo prazo. Por um lado, se exercitarmos o auto-controle baseado em
discriminar corretamente entre o que é prejudicial e o que é útil, e agirmos preferivelmente
com amor e compaixão, levaremos vidas mais felizes. Seremos amigos confiáveis para os
outros e para nós mesmos.

Definição de Comportamento Destrutivo

Cada sistema ético tem sua lista de tipos destrutivos de comportamento,


mas cada um define do seu jeito tal comportamento, e assim inclui na sua
lista, diferentes atos. Sistemas religiosos e civis baseiam-se em leis que
vem de autoridades divinas, chefes de estado ou algum tipo de legislação.
Quando desobedecemos, somos culpados e seremos punidos; mas se
formos obedientes seremos recompensados ou, com o céu ou, nesta vida
com uma sociedade segura. Sistemas humanitários focam em não causar
o mal aos outros, mas é difícil julgar o que é prejudicial ou favorável para
outra pessoa. Gritar com alguém pode ferir seus sentimentos ou pode
fazer com que a pessoa evite algum perigo.

A ênfase principal da ética budista é evitar comportamentos auto-


destrutivos, especialmente agir de forma a nos prejudicarmos em longo
prazo. Gritar com alguém como, por exemplo, com o motorista que está
loucamente tentando ultrapassarnos na autoestrada pode nos fazer bem
no momento, mas isso tira a nossa mente do lugar e balança as nossas
energias; perdemos paz de espírito. Quando gritar se torna um hábito,
somos incapazes de tolerar qualquer incoveniente sem ficarmos tristes; e
isto prejudica nossa saúde e nossas relações com os outros.

Por outro lado, quando nosso comportamento é motivado pela


preocupação com os outros, com amor, compaixão e compreensão,
naturalmente evitamos gritar, até mesmo se automaticamente sintamos
vontade de fazê-lo, graciosamente deixamos aquele motorista passar.
Essa pessoa sente-se feliz e nos beneficiamos também: ficamos calmos em
um estado de espírito pacífico e feliz. Não é que estamos frustrados
porque estamos repreendendo nossa necessidade de gritar com a pessoa.
Mas porque vemos a equidade de cada um no caminho, querendo chegar
ao destino o mais cedo possível, entendemos que não faz sentido
transformar a nossa jornada em uma corrida.

O budismo define comportamento destrutivo como ação compulsiva sob a


influência de emoções aflitivas e hábitos negativos. Não diferenciamos
corretamente entre o que é prejudicial e o que é útil, talvez porque
simplesmente não sabemos o que é melhor ou talvez saibamos , mas nos
falta qualquer tipo de auto-controle. As principais emoções aflitivas são
inveja e raiva, e ainda ingenuidade sobre as consequências de nossas
formas habituais de ação, fala e pensamento quando são direcionados por
estas emoções problemáticas. Além disso, por não termos senso de valor
próprio, não nos preocupamos de forma alguma em como nos
comportamos. Temos uma atitude de “tanto faz”, exceto talvez coisas
superficiais como as roupas que usamos ou como nosso cabelo está. E
certamente não nos importamos em como o nosso comportamento
reflete em toda a nossa geração, ou nosso gênero, raça, nacionalidade,
religião, ou qualquer grupo dominante com o qual nos identificamos. Nos
falta dignidade moral própria e respeito próprio.

Lista Tradicional das Dez Ações Destrutivas

Muitas ações físicas, verbais e mentais são destrutivas. O budismo


delineia as 10 principais, que são as mais prejudiciais. Isto porque elas
quase sempre surgem das emoções perturbadoras, falta de pudor e
embarasso e simplesmente falta de cuidado. Surgem de hábitos
profundamente arraigados e fortes e, a partir disto reforçam nossas
tendências negativas. Em longo prazo, nosso comportamento destrutivo
leva a uma vida infeliz, na qual continuamos a criar problemas para nós
mesmos.

Há três tipos de comportamento físico destrutivo:

1. Tirar a vida de outros – partindo de outra pessoa até chegar ao menor


inseto. A consequência disso é não tolerar nada que seja desagradável
para nós; nossa resposta imediata a qualquer coisa que não gostemos é
atacar e destruí-la; frequentemente nos metemos em brigas.
2. Pegar o que não nos foi dado – roubar, não devolver algo que nos foi
emprestado, usar algo que pertence a outra pessoa sem permissão e
coisas do gênero. Consequentemente, sempre nos sentimos pobres e
vítimas; ninguém irá nos emprestar nada; nossas relações com os
outros terão a exploração mútua como base.
3. Manter conduta sexual inapropriada – estupro, adultério, incesto, etc.
Consequentemente nossas relações sexuais são curtas e tanto nós
como nossos parceiros frequentes meramente nos tratamos como
objetos; estamos atraídos por coisas basicamente sujas.

Há quatro tipos de comportamento verbal destrutivo:

1. Mentir – dizer deliberadamente o que é mentira, despistar os outros e


assim por diante. Consequentemente nunca acreditam ou confiam
naquilo que falamos e não confiamos no que dizem também; somos
incapazes de reconhecer a diferença entre realidade e nossas
invenções.
2. Fala divisiva – dizer coisas ruins sobre os outros para fazer com que se
separem ou fazer com que sua inimizade ou estranhamento aumente.
Como consequência nossas amizades não duram porque nossos amigos
suspeitam que também falamos coisas ruins sobre eles pelas costas;
não temos nenhum amigo próximo e assim nos sentimos isolados e
solitários.
3. Fala agressiva – dizer coisas que machucam os sentimentos dos outros.
Consequentemente, as pessoas não gostam de nós e nos evitam; até
quando estão conosco não conseguem relaxar e frequentemente dizem
coisas desagradáveis; ficamos ainda mais isolados e solitários.
4. Conversa inútil – perder o nosso tempo e o de outras pessoas com
conversa inútil; interromper outras pessoas com fala inútil quando
estão fazendo algo positivo. Consequentemente ninguém nos leva a
sério; não somos capazes de manter nossa atenção em qualquer tarefa
sem consultar nossos aparelhos a cada poucos minutos; não
conseguimos fazer nada útil.

Há três formas destrutivas de pensar:

1. Pensar gananciosamente – devido ao ciúme, pensamentos obsessivos e


planos para conseguir algo ou alguma qualidade que outro tem ou,
ainda melhor, destituí-los. Como resultado disso nunca temos paz de
espírito ou alegria, pois estamos sempre atormentados por
pensamentos negativos sobre o sucesso de outros.
2. Pensar maliciosamente – pensar e tramar como machucar alguém ou
como voltar a algo que tenham dito ou feito. Consequentemente nunca
nos sentimos seguros ou somos capazes de relaxar; vivemos em
constante paranóia e medo, temendo que outros também estejam
tramando contra nós.
3. Pensar distorcidamente com antagonismo – não somente pensar com
teimosia sobre algo contrário ao que é verdadeiro e correto, mas
também discutir em nossas mentes com outros que não estão de
acordo conosco e rebaixá-los de forma agressiva. Consequentemente
nos tornamos ainda mais intolerantes, completamente fechados a
qualquer sugestão ou conselho útil; nossos corações, do mesmo modo,
tornam-se fechados aos outros, sempre pensando em si e que estamos
sempre certos; continuamos ignorantes e estúpidos.

Indiferente de nossa origem religiosa ou crença, evitar estes 10 atos serve


para qualquer um que queira levar uma vida mais feliz.

Dez Categorias Mais Abrangentes de Comportamentos Destrutivos

As dez ações destrutivas sugerem dez categorias abrangentes de


comportamentos que precisamos evitar. Precisamos pensar da forma
mais abrangente possível sobre o nosso comportamento e suas
consequências. Aqui seguem alguns exemplos para refletir, mas estou
certo de que cada um de nós é capaz de complementar esta lista.

1. Tirar a vida de outros – bater ou tratar asperamente as pessoas, negar


ajuda a alguém quando necessário, andar muito rápido com alguém
doente ou de idade e causar qualquer tipo de mal físico, incluindo
poluir o meio-ambiente e fumar perto de não-fumantes, especialmente
crianças
2. Pegar o que não foi dado – baixar material da internet ilegalmente,
plágio, falsificação, evasão fiscal, invasão de privacidade e, até mesmo,
experimentar algo do prato de um amigo ou companheiro sem pedir
3. Manter conduta sexual inapropriada – assediar alguém sexualmente,
ignorar as necessidades de nosso parceiro ao fazer amor e demonstrar
pouca ou muita afeição
4. Mentir – despistar alguém sobre os nossos verdadeiros sentimentos ou
nossas intenções com relação a eles
5. Falar divisivamente – criticar algo positivo ou eticamente neutro em
que alguém esta envolvido ou planejando envolver-se e desencorajá-lo
6. Falar agressivamente – gritar com as pessoas, falar em tom agressivo,
falar sem empatia e criticar alguém quando estão emocionalmente
vulneráveis e usar fala irônica ou sarcástica em companhia ou
momento inapropriados
7. Conversa inútil – trair a confiança dos outros e revelar seus segredos
íntimos aos outros, escrever mensagens sobre coisas triviais,
especialmente, no meio da noite, postar nas redes sociais fotos e
comentários sobre aspectos triviais de nossa vida, interromper os
outros sem deixá-los terminar o que estão dizendo e fazer comentários
estúpidos ou dizer coisas estúpidas durante conversas sérias
8. Pensar ganaciosamente – ao ver fotos ou ler postagens nas redes
sociais sobre momentos interessantes e maravilhosos que outros
tiveram, sentirmos pena de nós mesmos e pensar com inveja, em como
gostaríamos de ser populares e felizes e desejar que a pessoa com
quem estamos comendo em um restaurante nos de um pedaço ou um
gole do que pediu
9. Pensar maliciosamente – quando alguém diz algo maldoso ou cruel
para nós e nos faltam palavras, ficar pensando depois sobre o que
deveríamos ter dito para machucar a pessoa
10.Pensar distorcidamente com antagonismo – ter pensamentos negativos
e hostis sobre alguém oferecendo ou tentando ajudar-nos a fazer algo
que pensamos poder fazer sozinhos, e pensar quão estúpido alguém é
por estar tentando melhorar em algum setor que não é prejudicial, mas
no qual não temos interesse ou pensamos não ser importante

Agir Destrutivamente Conosco

O modo como agimos conosco pode ser tão destrutivo quanto o


comportamento direcionado aos outros. Para levar uma vida feliz
precisamos reconhecer estes padrões negativos e trabalhar para corrigí-
los. Mais uma vez, as 10 formas destrutivas de ação sugerem os tipos de
comportamento que devemos parar.

1. Tirar a vida de outros – tratar-nos mal fisicamente trabalhando demais,


comendo mal, sem fazer exercícios ou não dormindo suficiente
2. Pegar o que não foi dado – gastar dinheiro em coisas triviais, ser
sovinas quando gastamos com nós mesmos e podemos fazê-lo
3. Manter conduta sexual inapropriada – manter atos sexuais que possam
por em risco a nossa saúde ou poluir nossas mentes com pornografia
4. Mentir – despistar-nos sobre nossos sentimentos ou motivação
5. Falar divisivamente – falar de forma odiosa, como por exemplo
reclamar o tempo todo, de forma que os outros achem desagradável
estar conosco e evitem a nossa companhia
6. Falar asperamente – abusar verbalmente de nós mesmos
7. Conversa inútil – falar indiscriminadamente sobre nossos assuntos
pessoais, dúvidas e preocupações ou perder incontáveis horas nas
redes sociais, jogando vídeo games ou surfando na internet
8. Pensar gananciosamente – pensar em como nos sobressair, pois somos
perfeccionistas
9. Pensar maliciosamente – pensar com culpa sobre como somos horríveis
e que não merecemos ser felizes
10.Pensar distorcidamente com antagonismo – pensar que somos
estúpidos por tentar nos melhorar e ajudar os outros

Como Lidar com Nossos Padrões Destrutivos

Quando pensamos sobre as formas destrutivas em que agimos no


passado é importante evitar nos sentirmos mal sobre nós mesmos, senão
corremos o risco de ficarmos paralisados pela culpa. Melhor é reconhecer
que o que fizemos foi por conta da ignorância e ingenuidade sobre seus
efeitos; fomos impulsionados por nossas emoções perturbadoras. Não
por sermos inerentemente maus. Então nos arrependemos pela forma
que agimos, o que significa que desejamos que não tivesse acontecido,
mas entendemos que não há nada que possamos fazer para mudar este
fato. O que passou, passou. Porém podemos resolver dar nosso melhor
para não repetir este tipo de comportamento. Assim reafirmamos a
direção positiva que estamos tentando dar para nossas vidas e nos
esforçamos em praticar o mais que possível atos construtivos, baseados
no amor e compaixão. Isto irá criar hábitos mais positivos para
contrabalancear e, eventualmente, ultrapassar a força motriz dos hábitos
negativos.

Então precisamos diminuir a nossa reação com as pessoas e eventos que


nos deparamos, para podermos apreender o espaço livre quando, por
costume, sentimos vontade de agir de forma destrutiva e quando
realmente o fazemos. Usamos este momento para discriminar entre o que
será útil e o que será prejudicial e evitamos fazer, dizer ou pensar algo
destrutivo.

Como o grande mestre budista indiano, Shantideva, recomendou:


“Permaneça como um bloco de madeira.” Fazemos isso, porém, por amor,
compaixão e respeito por nós mesmos e pelos outros. Não estamos
reprimindo algo que nos tornaria ansiosos e tensos. Com uma mente
sábia e compassiva, dispersamos a energia negativa que nos levaria a
fazer ou dizer algo que nos arrependeríamos depois. Estamos então livres
para agir de forma construtiva, baseada em emoções positivas e
compreensão.

Conclusão

Evitar comportamento destrutivo é de nosso próprio interesse. Se


desejamos evitar aumentar ou reforçar hábitos negativos que somente
nos levarão a infelicidade, se queremos ter relações melhores com os
outros e sermos de mais utilidade para qualquer um que encontremos, se
meramente desejamos paz de espírito, precisamos fazer o esforço de nos
livrarmos de formas destrutivas de agir, falar ou pensar. Fazer isso
aumentará muitíssimo nossa qualidade de vida.
Disciplina Ética: Superar o Karma
Dr. Alexander Berzin

Quando entendemos o karma como a compulsão que nos leva a agir, falar e
pensar de forma incontrolável, percebemos seu papel como verdadeira fonte
de sofrimento e problemas. Agir compulsivamente nos traz infelicidade e
dificuldades recorrentes, além de fazer com que fique muito difícil ajudar os
outros. Para nos livrarmos da compulsividade do karma, e dos problemas que
ele gera, precisamos de autodisciplina ética. Só assim conseguiremos nos
abster de comportamentos destrutivos, do apego às fantasias que temos sobre
nós mesmos e da preocupação autocentrada.

O Primeiro Nível de Autodisciplina


Ética
Introdução

O conceito de karma é central aos ensinamentos budistas e está fortemente


relacionado à autodisciplina ética. Usamos de autodisciplina para superarmos e
nos livrarmos do karma, e isso encaixa-se muito bem no contexto do que é
conhecido como “as quatro nobres verdades”, o ensinamento mais básico do Buda:

 Todos sofremos e enfrentamos problemas em nossas vidas.


 Nosso sofrimento tem causas.
 Existe uma situação em que todo o sofrimento e suas causas podem desaparecer.
 Essa situação surge como resultado de um caminho de compreensão correta da
realidade, da ética e assim por diante.

Esse esquema é comummente encontrado nas filosofias e religiões indianas, mas o


Buda afirmou que aqueles que vieram antes dele não identificaram esses pontos
com suficiente profundidade. Portanto, ele chamou aquilo que compreendeu
de verdadeiro sofrimento, suas verdadeiras causas, seu verdadeiro cessar e
o verdadeiro caminho que leva a esse cessar. Apesar de nem todos concordarem,
esses pontos foram vistos como sendo verdadeiros por aryas, seres altamente
realizados que viram a realidade de forma não conceitual.

Interessante o Buda ter usado o termo “arya”, pois esse é o nome do povo que
invadiu e conquistou a Índia cerca de 500 anos antes do Buda, trazendo consigo os
Vedas. Entretanto, os aryas a quem o Buda se refere não são esses conquistadores,
mas aqueles que viram o que é o verdadeiro sofrimento e suas causas, e os
venceram. Eles são os vitoriosos. Esse termo é muito comum na terminologia
budista.

Entendendo o significado de “Karma”

O karma é uma das causas do verdadeiro sofrimento, mas o que, exatamente, é o


karma? A palavra sânscrita deriva da raíz kr, que significa “fazer”. Quando
adicionamos a terminação -ma, ficamos com “aquilo que faz” ou “aquilo que
impulsiona uma ação”. Da mesma forma, a palavra “Dharma” vem de dhr, que
significa “proteger”. Quando adicionamos a terminação -ma, ficamos com “aquilo
que nos protege”, ou seja, “aquilo que nos protege do sofrimento”. Portanto, karma
é aquilo que nos faz agir e nos traz sofrimento e Dharma é aquilo que nos
protegerá do sofrimento.

O karma, portanto, não se refere às nossas ações propriamente ditas, mas, por ter
sido traduzido para o tibetano utilizando-se a palavra las, que significa “ações” na
linguagem coloquial, a maioria dos professores tibetanos, quando falam em inglês,
referem-se ao karma como ação. Isso pode criar muita confusão porque, se as
verdadeiras causas do sofrimento fossem as ações, tudo o que precisaríamos fazer
seria parar de fazer qualquer coisa e então estaríamos livres! Isso não faz o mínimo
sentido.

Karma, na verdade, refere-se à compulsão, à compulsão que nos leva a agir, falar e
pensar de uma forma misturada com confusão: confusão sobre como existimos,
como os outros existem e sobre a realidade. Por estarmos confusos a respeito de
quem somos e do que está acontecendo no mundo, agimos de forma muito
compulsiva. Essa compulsão pode ser negativa, como quando estamos sempre
gritando ou sendo cruéis com os outros, ou positiva, que é o caso do
perfeccionismo.

Considere o último caso. Você pode ser neurótico ou ter compulsão de fazer tudo
perfeitamente e pensar “Tenho que ser bom” ou “Tudo tem que estar limpo e
arrumado”. Esse comportamento compulsivo causa muito sofrimento, mesmo que
ser bom e manter tudo limpo e arrumado seja algo positivo. Portanto, com essa
discussão sobre karma, não estamos falando em parar de agir de forma positiva.
Estamos falando em nos livrar da compulsão neurótica por trás das nossas ações,
porque essa é a causa do sofrimento. Por trás do nosso perfeccionismo existe
confusão a respeito de como existimos. Pensamos que somos um “eu” sólido e que
esse “eu” tem que ser bom e perfeito. Por que? Para que mamãe e papai deem um
tapinha em “minhas” costas e digam que “eu” sou uma boa menina ou um bom
menino? Um de meus professores disse, “E aí o que vamos fazer? Abanar o rabo
como um cachorro?”
Karma no Contexto do Treinamento no Caminho Gradual do Lam-
Rim

Quando trabalhamos para nos livrarmos do karma — a compulsividade, que é uma


das verdadeiras causas do sofrimento — trabalhamos em etapas, conforme a
apresentação do lam-rim, o caminho de etapas graduais para a iluminação.
Entretanto, o “caminho gradual” não é um caminho sobre o qual podemos andar,
refere-se a estados mentais, níveis de compreensão e desenvolvimento interno
que, como um caminho, nos levam a metas progressivas, passo a passo. A cada
passo estamos ampliando o âmbito da nossa motivação, nosso objetivo e nossa
meta, e cada passo significa um superação maior do karma através da
autodisciplina ética.

Resumidamente, existem três níveis de motivação. A apresentação clássica do lam-


rim assume a existência de uma crença no renascimento, portanto todos os níveis
de motivação giram em torno disso. Mas mesmo se não acreditarmos em
reencarnação, e pensarmos apenas em melhorar esta vida, ainda assim podemos
trabalhar com esse esquema gradual para superarmos o karma. Vamos ver como o
karma está envolvido no que chamo de “Dharma Autêntico”.

 Em um primeiro nível, trabalhamos para superar renascimentos em reinos piores, a


fim de termos vidas cada vez melhores. De forma mais específica, queremos não só ter
melhores renascimentos, mas renascimentos onde tenhamos uma vida humana
preciosa, para continuarmos a desfrutar de condições favoráveis ao nosso
desenvolvimento rumo a metas mais elevadas. Uma vez que o comportamento
compulsivo destrutivo nos leva a renascimentos em reinos piores, focamos em nos
livrar dessa compulsividade do karma, nesse estágio inicial.
 Em um segundo nível, queremos superar de uma vez por todas o renascimento. Você
já deve ter ouvido falar do termo “samsara”, que refere-se ao ciclo de renascimentos
incontroláveis, cheios de sofrimento e problemas, independentemente do tipo de
renascimento que tenhamos. A compulsividade do karma, tanto destrutiva quanto
construtiva, é uma das maiores forças sustentando nossos renascimentos samsáricos.
Portanto, nesse nível intermediário, esse é o nosso objetivo.
 Finalmente, em um terceiro nível queremos alcançar um estado em que somos mais
capazes de ajudar todos os outros seres a se libertarem do samsara. Isso significa que
trabalharemos para nos tornarmos Budas, seres oniscientes, a fim de que possamos
entender o karma de cada ser e, portanto, saber a melhor forma de ajudá-los. O karma
está envolvido em todos os três níveis do lam-rim.

O Escopo Inicial da Motivação: Trabalhando para Superar os


Renascimentos em Reinos Piores

O Buda nos falou sobre o verdadeiro sofrimento, ou os verdadeiros problemas da


vida. Em um nível inicial, trabalhamos para superarmos os problemas e
dificuldades mais básicas que sofremos, que são os sofrimentos físicos e mentais —
ou seja, infelicidade, dor, coisas horríveis acontecendo connosco e assim por
diante.
Renascimentos em reinos piores serão cheios de sofrimentos realmente terríveis.
Não é um panorama muito agradável pensarmos em nascer como um peixe
nadando em um oceano e de repente um peixe maior nos dividir em dois com uma
mordida, ou nascer como um inseto e ser comido por um inseto maior ou um
pássaro. Não é algo que gostaríamos de experimentar. Pense na paranoia e medo
dos animais que precisam estar sempre atentos para assegurarem-se de que
nenhum animal maior vai tomar a comida deles. Pense nas galinhas, no que Sua
Santidade o Dalai Lama chama de “prisões de galinhas”. Elas são engaioladas para
que não se mexam, e criadas para um dia serem comidas em um McDonald’s e ter
metade do seu corpo jogado no lixo!

O budismo descreve situações muito piores, mas não precisamos entrar nisso no
momento. A questão é que queremos evitar tudo isso e buscamos felicidade. Todo
mundo quer ser feliz; ninguém quer ser infeliz. Esse é um axioma básico do
budismo. E aqui estamos falando apenas da felicidade comum, que exploraremos
melhor quando chegarmos ao segundo escopo ou nível.

O Conceito Budista de Ética

Qual é a verdadeira causa da infelicidade e desse sofrimento grosseiro do


renascimentos em reinos piores? A causa primária é o karma negativo, a
compulsão em agir de forma destrutiva, causada e acompanhada de emoções
negativas. É muito importante que se entenda isso. Quando falamos em
comportamento negativo ou destrutivo, não estamos falando de um sistema ético
baseado em leis divinas ou leis cíveis feitas por um governo. Nesses sistemas, ser
uma pessoa ética significa termos que obedecer às leis, seja como bons cidadãos,
bons religiosos ou ambos. E ainda, juntamente com as leis vêm os julgamentos de
culpa ou inocência. Esse é um conceito de ética totalmente não budista.

O budismo ensina um sistema de ética baseado na compreensão correta e


discriminação entre o que pode nos ajudar e o que pode nos machucar. Quando
agimos de forma destrutiva, não é porque somos desobedientes ou maus; estamos
apenas confusos quanto à realidade. Por exemplo, se alguma vez colocamos a mão
em um fogão aceso, não foi porque desobedecemos a uma lei que decreta “Não
ponha sua mão no fogão aceso”. Colocamos a mão porque não sabíamos que estava
aceso. nos confundimos; não sabíamos que se puséssemos a mão no fogão a
queimaríamos. Não estávamos cientes da relação causal.

Outro exemplo: Digamos que eu tenha dito algo inocente mas que lhe magoou. Não
é que eu seja mau por ter dito isso. Eu realmente não sabia que lhe magoaria. Eu
não estava ciente do efeito que minhas palavras teriam; eu me confundi.

Emoções Destrutivas e Comportamentos Destrutivos

Quando agimos de forma destrutiva, isso é causado e acompanhado de alguma


emoção perturbadora.
O que é uma emoção perturbadora? É uma emoção que acaba com nossa paz mental e
autocontrole.

Essa é uma definição muito útil. Geralmente conseguimos perceber quando


estamos nervosos, pois nossa mente não fica em paz e agimos de forma
compulsiva. Isso mostra que existe uma emoção perturbadora por trás do que
sentimos.

Quais são as principais emoções perturbadoras? Primeiro, existe um grupo de


sentimentos formado pelo desejo ansioso, o apego e a ganância. Qualquer um dos
três nos leva a exagerar as qualidades positivas de alguma coisa e ignorar
completamente ou negar qualquer aspecto negativo. Por serem estados mentais
perturbadores, nos impedem de aproveitar qualquer coisa.

 Desejo ansioso é o anseio por termos algo que não temos.


 Apego é não querermos largar o que já temos.
 Ganância é não estarmos satisfeitos com o que temos e querermos mais.

E então temos a raiva, que tem muitas nuances: ressentimento, antagonismo, má


vontade, ódio, hesitação, despeito, desejo de vingança e assim por diante. Todas
elas exageram as qualidades negativas de algo ou alguém e não enxergam os
aspectos positivos. Com base nisso, desenvolvemos repulsão, uma vontade de nos
livrar ou mesmo destruir aquilo de que não gostamos.

Outra grande emoção destrutiva é a ingenuidade a respeito, por exemplo, do efeito


de nosso comportamento em nós mesmos e nos outros, como quando temos o
hábitode trabalhar além de nossa capacidade. Somos ingênuos no que diz respeito
ao quanto isso é prejudicial para nossa saúde e família, portanto, isso é destrutivo.
Ou então, quando estamos sempre atrasados e não conseguimos chegar no horário
que marcamos com alguém, é ingênuo pensar que isso não magoará a outra pessoa
e que não a fará sentir-se mal, portanto, novamente, é destrutivo.

Essas são as emoções destrutivas mais comuns, que nos fazem perder a paz mental
e o auto controle, e vêm acompanhadas da compulsão para agirmos de formas
destrutivas. Algumas outras atitudes perturbadoras que nos levam a agir
compulsivamente de maneira negativa são:

 Falta de respeito pelas boas qualidades e por aqueles que as possuem.


 Falta de autocontrole para nos restringirmos de agir de forma negativa
 Falta de dignidade moral e respeito para consigo. É muito importante nos
respeitarmos. É por respeito a nós mesmos, por exemplo, que não vamos rastejar atrás
de alguém implorando que volte, “Por favor não me deixe!”: afinal, temos dignidade.
Quando agimos de forma destrutiva é porque não temos dignidade ou não nos
respeitamos.
 Não nos preocuparmos em relação a como nossas açõescomo nossas ações refletirão
nos outros. Por exemplo, se você fosse alemão e, quando estivesse em férias, fizesse
arruaças, ficasse sempre bêbado, falasse alto ou destruísse seu quarto de hotel, isso
daria péssima fama a todos os turistas alemães. Quando você age dessa maneira
destrutiva, é porque não se importa com o reflexo de suas ações em seus compatriotas.
Esse é o conjunto de emoções e atitudes que acompanham o comportamento
compulsivo destrutivo e nos levam ao sofrimento da infelicidade, e de coisas
terríveis acontecendo connosco. E elas afetam não apenas esta vida mas, no nível
inicial do lam-rim, percebemos que nos causarão ainda mais problema e
infelicidade em piores nascimentosfuturos. Claro que isso é algo que queremos
evitar.

O Primeiro Nível de Autodisciplina Ética de Acordo com a


Motivação Inicial do Lam-Rim

Para evitarmos renascimentos em reinos piores, assim como situações piores nesta
vida, precisamos nos abster das ações negativas através da autodisciplina ética,
que desenvolvemos aos desfazermos nossa confusão sobre causas e efeitos
comportamentais. Compreendemos que se nos deixarmos controlar pelas emoções
negativas, nos tornamos compulsivos e agimos de forma destrutiva, o que
acarretará infelicidade e problemas para nós e para os outros.

É muito importante entendermos que estamos falando do primeiro nível de


autodisciplina ética, que é simplesmente o exercício do autocontrole. Entretanto, o
autocontrole não está baseado em querer ser um bom e obediente cidadão, um
bom seguidor de uma religião ou simplesmente um bom menino ou menina.
Exercitamos o autocontrole porque compreendemos que se agirmos
compulsivamente, sem nenhum controle, teremos muitos problemas e infelicidade.
É importante enfatizarmos isso em nossa compreensão do budismo. Se a ética
estiver baseada em obediência, já sabemos que muitas pessoas se rebelarão por
terem que obedecer leis e normas, especialmente os adolescentes. Criminosos
também acham que de alguma forma conseguem burlar as leis, ou como se diz no
inglês, “Se livrar”, significando que não serão pegos. No budismo, a ética baseia-se
simplesmente na compreensão, portanto rebelião não é uma questão.

Claro que não é fácil entendermos a relação entre comportamento destrutivo e


infelicidade e sofrimento. Você poderia não acreditar, e dizer: “Essa história de
ética não tem nada a ver!” Entretanto, quando você já tem alguma experiência de
vida, consegue perceber que se estiver sempre agindo de forma negativa é porque
não é uma pessoa muito feliz e outras pessoas não gostam de você e receiam sua
presença. Elas temem encontrá-lo porque você pode se zangar com elas. Portanto,
pela nossa própria experiência, podemos entender que, em um nível bem básico e
superficial, pensando apenas nestavida, agir de maneira negativa e destrutiva
causa infelicidade.

Esse é um ponto interessante porque poderíamos agir de forma destrutiva e nos


sentir muito felizes. Por exemplo, vamos supor que haja um mosquito voando
perto do seu rosto enquanto você tenta dormir. Você mata e pensa “Agora sim! Te
peguei!” E sente-se realmente feliz por isso. Mas se examinar com mais
profundidade, verá que continua paranoico e desconfortável. Uma vez que sua
forma usual de lidar com algo que lhe perturba é matando, continuará atento para
ver se outro mosquito aparece. Você não está considerando uma solução pacífica.
Se estiver em um lugar com um mosquito, uma solução pacífica seria um
mosquiteiro ou uma tela na janela.

Essa definição das emoções e atitudes perturbadoras que acompanham um


comportamento destrutivo é muito útil nesse contexto, pois esse é exatamente o
significado da palavra “perturbadora” - perdemos nossa paz mental e o
autocontrole. Esse não é um estado mental feliz, não é mesmo? “Estou neurótico
com medo de que outro mosquito apareça para incomodar meu sono!” Você perde
a paz mental e o autocontrole para relaxar e dormir porque está com medo. A
forma com que está agindo é neuroticamente compulsiva, como se fosse pular da
cama e colocar um daqueles chapéus que os ingleses usam para fazer safari na
África. Agora você está em um safari, caçando outro mosquito no quarto!

Esse é o primeiro nível de autodisciplina ética, trabalhar para transcender os


renascimentos em reinos piores, através do exercício do autocontrole ético, para
que quando sintamos vontade de agir de forma negativa não o façamos.

Meditação de Fechamento

Passemos alguns minutos digerindo o que aprendemos, pensando sobre como tudo
isso se aplica à nossa própria experiência, fazendo o que chamamos de uma
“meditação analítica”. Eu prefiro chamar de “meditação do discernimento”.
“Discernir”, aqui, significa tentar perceber em nossas vidas um determinado ponto
que foi ensinado. Nesse caso, seria examinarmos nossa vida e tentarmos
reconhecer que, naquele momento que agimos de tal e tal maneira, agimos de
forma compulsiva. Havia muito apego e raiva por trás do nosso comportamento. E
qual foi o resultado? Sentimo-nos péssimos. Confirmamos esse ponto discernindo
em nossa própria experiência e, dessa forma, ficamos cada vez mais convencidos
de que é assim mesmo que funciona. Só começaremos a mudar nosso
comportamento se realmente acreditarmos ou estivermos convictos de que “é
assim que a vida funciona”.

Os Outros Dois Níveis de


Autodisciplina Ética
Sumário

Em uma fase inicial do desenvolvimento espiritual, exercitamos a


autodisciplina a fim de nos abstermos de comportamentos destrutivos.
Nosso objetivo é evitar que as coisas piorem, não só nesta vida mas
também nas próximas. Buscamos renascimentos melhores e os estados
comuns de felicidade que podemos experimentar nessas vidas. O que nos
move em direção ao nosso objetivo é o medo de mais sofrimento e
infelicidade. Compreendemos que existe uma maneira de evitarmos isso,
que é o autocontrole e nos abstermos de agir de forma destrutiva. Quando
sentimos o impulso de agir, falar ou pensar em algo destrutivo, com base
em emoções perturbadoras, como a ganância ou a raiva, percebemos o
impulso mas não o seguimos. Apesar de precisarmos desacelerar muito
para perceber esse espaço entre o impulso e a ação compulsiva, e
certamente isso é muito difícil no começo, podemos treinar essa
percepção.

Pense em uma situação em que você está sentado tentando trabalhar, fica
entediado e surge o impulso de olhar o Facebook, ou as notícias no seu
celular, ou mandar uma mensagem para um amigo. Nessa fase do
desenvolvimento espiritual, percebemos quando o impulso surge e
decidimos “Se eu agir com base nesse impulso não terminarei meu
trabalho, e isso me trará problemas. Portanto, não importa que tenha
vontade, simplesmente não farei isso”.

Segundo Nível: Trabalhando para Superar o Ciclo de


Renascimentos

O nível intermediário de motivação do lam-rim é trabalharmos para


superar o ciclo de renascimentos incontroláveis. Lembre-se, isso é
o samsara, renascimentos que ocorrem de forma incontrolável, são cheios
de problemas, que também ocorrem de forma incontrolável, e você não
consegue fazê-los parar. Os problemas não são só a infelicidade, mas
também os outros dois aspectos do sofrimento verdadeiro indicados pelo
Buda: o sofrimento da mudança e o sofrimento que tudo permeia.

Felicidade Comum
O sofrimento da mudança refere-se à felicidade comum, que infelizmente
é cheia de problemas. Para começar, não dura — por isso chamamos
“sofrimento da mudança” — e nunca nos satisfaz, porque queremos
sempre mais. Se tivermos muita felicidade comum, e por muito tempo,
acabaremos entediados ou virará sofrimento. Por exemplo, tomar sol: é
muito bom por um tempo, mas você não vai querer ficar no sol quente
para sempre. Depois de um tempo, você tem que ir para a sombra. Pense
no caso de quando uma pessoa que você ama fica acariciando e apertando
sua mão. Se ela fizesse isso por três horas, sem parar, sua mão ficaria toda
dolorida! Portanto, é assim, a felicidade comum tem problemas.

A felicidade comum resulta de agirmos construtivamente, de forma


positiva, mas ainda um tanto confusa, como no exemplo do perfeccionista
neurótico, que limpa compulsivamente a sua casa, certificando-se de que
tudo esteja sempre arrumado. Quando ele termina a limpeza, sente-se
feliz por um tempo, mas logo fica insatisfeito, pensando “Não está limpa o
suficiente. Acho que aquele pedaço não ficou bem limpo. Tenho que
limpar novamente”. A felicidade que esse tipo de pessoa sente não dura
muito, pois ela acha que a casa pode ficar sempre mais limpa.

O Problema Que Tudo Permeia


O terceiro tipo de sofrimento é chamado de “problema que tudo
permeia”. Ele refere-se ao ciclo incontrolável de renascimentos e está
ligado ao fato de renascermos com um tipo de corpo e mente que
automaticamente produz problemas e dificuldades. Pense bem, com o
tipo de corpo que temos, não conseguimos andar sem pisar em algum ser
e matá-lo. Não há como comer sem que algum inseto, ou algum outro ser,
morra no processo de produção da comida, mesmo no caso dos
vegetarianos. Nossos corpos adoecem e, tanto o corpo como a mente, se
cansam. Temos que descansar; temos que comer; temos que ganhar a
vida. Não é fácil, não é mesmo?

Então, em nossa próxima vida, se tivermos sorte, nasceremos humanos


novamente, e começaremos a vida como um bebê. Que horror! Você não
pode se expressar, a não ser pelo choro; não consegue fazer nada por si
mesmo e ainda tem que aprender tudo novamente. Isso é muito
entediante! E o pior é que temos que fazer isso vez após vez,
infinitamente. Imagine ter que ir para a escola de novo! Você gostaria de
ir para a escola mais um milhão de vezes e fazer intermináveis deveres de
casa e intermináveis provas?

Portanto, esse é o problema que tudo permeia, que é uma consequência


do ciclo de renascimentos incontroláveis. Mesmo que nasçamos em uma
situação muito melhor, mesmo que tenhamos um renascimento humano
precioso, ainda assim teremos esses problemas que tudo permeiam. É
disso que queremos nos libertar e, para isso, precisamos superar todas as
formas de karma compulsivo, não apenas o negativo, mas também o
positivo.

A Felicidade Que Vem da Liberação

Considere novamente a felicidade comum. Tecnicamente, ela é chamada


de “felicidade maculada” porque está manchada, ou misturada com
confusão, no sentido de que surge da confusão, é acompanhada de
confusão e, a menos que mudemos nossa atitude para com ela, gera ainda
mais confusão. O que queremos, na verdade, é um tipo de felicidade que
não seja misturada com confusão, o tipo de felicidade que perdura e
satisfaz. É muito diferente da nossa felicidade comum. É uma felicidade
que vem de estarmos livres de todas as emoções perturbadoras. Não há
nada de confuso nesse tipo de felicidade.

Considere um pequeno exemplo, que é pouco parecido com essa


felicidade de que estamos falando, mas, logicamente, não é a mesma
coisa: digamos que você tenha que usar sapatos muito apertados durante
todo o dia. No final do dia você tira o sapato e sente aquela sensação de
alívio. “Ah! Estou livre dessa restrição e da dor nos pés!” Esse é um tipo
de felicidade diferente daquela que sentimos ao comer uma coisaque
gostamos, não é? Estamos falando de uma sensação que é quase um
alívio, por estarmos livres dos pensamentos neuróticos, livres de
preocupações, livres de insegurança, de todos esses tipos de coisas. Não
seria maravilhoso, se nunca ficássemos emocionalmente desequilibrados,
inseguros ou preocupados novamente? Que alívio seria!

Isso é uma pequena amostra do que estamos nos referindo quando


falamos de liberação do ciclo de renascimentos incontroláveis —
liberação de todo o verdadeiro sofrimento, que inclui esse próprio
renascimento. Para isso, precisamos superar a compulsividade de todas
as formas de karma, não apenas as formas destrutivas. Precisamos
superar a compulsão de agir, até mesmo de forma positiva. Não há nada
de errado em sermos limpos e tentarmos fazer as coisas direito. O
problema é quando isso se torna uma síndrome compulsiva, neurótica,
que perturba a paz mental e está fora de controle; é disso que temos que
nos livrar.

Distinguindo Emoções Positivas de Atitudes Perturbadoras

Quando agimos de forma positiva, emoções positivas acompanham


nossas ações, como:

 Desapego — não nos fixarmos a nada; é o oposto de apego.


 Não querer causar mal.
 Não ser ingênuo — estar consciente do efeito de nosso comportamento
em nós mesmos e nos outros.

Outros fatores mentais construtivos que também acompanham o


comportamento positivo ou construtivo são:

 Respeito às boas qualidade e àqueles que as possuem.


 Autocontrole para abster-se de ações negativas.
 Um sentido de auto-dignidade moral, para que tenhamos respeito por
nós mesmos e pelos nossos sentimentos.
 Preocupação a respeito de como nossas ações refletem nos outros.
Nenhuma dessas qualidades nos cria problemas. Elas acompanham nosso
comportamento positivo, construtivo; não queremos nos livrar delas. O
que cria problemas, e que acompanha nosso comportamento positivo
compulsivo, é a atitude perturbadora. Colocando de uma forma bem
simples, seria nos apegarmos a um “eu” sólido. Por exemplo, por
estarmos confusos a respeito de como existimos, imaginamos que
existimos como uma entidade sólida, concreta, “eu”, com uma identidade
verdadeira permanente como, por exemplo, alguém que tem que ser bom
o tempo todo, que tem que ser perfeito. “Eu tenho que ser bom. Eu tenho
que ser prestativo. Eu tenho que ser útil.”

Um exemplo comum é o de pais com filhos adultos. Os pais ainda querem


ser necessários e úteis, e então oferecem seus conselhos e ajuda, mesmo
quando os filhos não querem. Isso é compulsivo, porque eles têm essa
sensação de um “eu” sólido. “Eu só tenho valor e existo se meus filhos
ainda precisarem de mim”. Eles se agarram a isso como a verdadeira
identidade desse “eu” sólido, como uma forma de deixar o “eu” seguro. É
como se sentissem, “Se ajudo meus filhos, existo”.

A emoção que está por trás do oferecimento de conselho e ajuda é


positiva. Eles oferecem porque amam seus filhos. Eles querem ser gentis e
prestativos. Não há nada de errado nisso. O problema é a atitude que têm
sobre eles próprios,sobre esse “eu”: “Eu só tenho valor como pessoa se
meus filhos ainda precisarem de mim.” Isso é o que causa o aspecto
neurótico compulsivo, de oferecer ajuda mesmo quando ela é totalmente
desnecessária e inapropriada.

Você pode sentir que está experimentando esse aspecto neurótico,


porque, novamente, “emoção destrutiva” e “atitude destrutiva” são
expressões definidas pela mesma palavra - “destrutiva”. Tanto a atitude
quanto a emoção fazem com que percamos a paz mental e o autocontrole.
Se você é um pai ou mãe cuja atitude é “Eu só tenho valor como pessoa se
conseguir fazer algo pelos meus filhos”, qual é o sentimento que indica a
falta de paz mental? É um sentimento de insegurança; você está inseguro
e, portanto, sente que precisa ficar se intrometendo na vida dos filhos,
como, por exemplo, na maneira como eles criam seus próprios filhos.
Você não tem paz mental e, obviamente, também não tem autocontrole,
mesmo que emoções positivas de amor e preocupação estejam presentes.
É para isso que precisamos de autodisciplina.

Precisamos de autodisciplina ética, portanto, para superar a


compulsividade de nosso karma positivo construtivo, que só traz
felicidade comum — a felicidade breve que logo se transforma em algo
desagradável. Quando, por insegurança e necessidade de nos sentirmos
valorizados, temos vontade de oferecer, por amor e preocupação, um
conselho que não foi pedido, temos que perceber que apesar de isso nos
trazer uma felicidade momentânea, logo se transformará em infelicidade,
quando nossa filha mostrar ressentimento por não ter gostado do que
falamos. Portanto, exercitamos autodisciplina e não falamos nada. Mas é
muito difícil ficarmos de boca fechada!

O Segundo Nível de Autodisciplina Ética de Acordo Com a


Motivação Intermediária do Lam-Rim

Apesar de o exercício do autocontrole — o primeiro nível de


autodisciplina ética — poder nos ajudar a evitar o problema do
sofrimento da mudança, conforme explicado acima, continuamos com o
problema que tudo permeia, que é o ciclo incontrolável de renascimentos.
Uma versão simplificada desse problema é a síndrome de oferecermos
repetidamente conselhos não solicitados, e não conseguirmos nos
controlar. Não conseguimos evitar uma interferência bem intencionada
— amor — mas que vem de um lugar de insegurança.

Para realmente superarmos o sofrimento da mudança, e o problema que


tudo permeia, precisamos do segundo nível de autodisciplina ética, isto é,
aplicar autodisciplina para nos livrarmos da atitude confusa e
perturbadora de nos fixarmos a um “eu” sólido. Não é que queiramos
parar de ajudar ou parar de amar nossos filhos, o que queremos é parar
com essa insegurança neurótica e essa fixação no “eu” sólido, que é o que
está por trás do nosso comportamento compulsivo repetitivo.

Tomemos como exemplo algo em que precisamos trabalhar, como o


amor. A definição budista de amor é o desejo de que os outros sejam
felizes e encontrem as causas da felicidade, independente do que eles
façam. Entretanto, esse amor pode vir acompanhado de confusão, apego e
insegurança. “Não me deixe nunca!” “Porque não me ligou?” “Você não me
ama mais.” “Eu preciso de você.” “Eu, eu, eu.” Realmente queremos que a
outra pessoa seja feliz, mas “Nunca me deixe” e “Você tem que me ligar
todos os dias!” O problema não é o amor. O problema é o apego, e esse
grande “eu” que está por trás de tudo. No nível intermediário, usamos de
autodisciplina ética para superar essa atitude contraproducente e
perturbadora de “eu, eu, eu”.

Reflexão Sobre o Segundo Nível de Autodisciplina Ética

Antes de passarmos para o terceiro nível, porque não gastamos alguns


minutos para digerir tudo isso? Procure identificar o que discutimos em
sua própria vida. Existe um dizer budista que é assim: “Não deixe o
espelho do Dharma virado para fora, para refletir os problemas dos
outros (como os dos nossos pais), vire-o para dentro, para que reflita
você”. Portanto, procure identificar em sua vida, em sua própria
experiência, situações em que, mesmo que tenha uma atitude construtiva,
age de forma neurótica e preocupada com si mesmo, e acaba criando
problemas. Procure reconhecer o grande e sólido “eu”por trás dessa
síndrome, que gera o sentimento de “Eu tenho que ser perfeito. Tenho
que ser bom, tenho que ser prestativo. Tenho que ser necessário e útil.”
Reconheça o problema que isso traz.

Procure compreender que não precisamos provar nada a ninguém. Não


precisamos provar que somos uma boa pessoa, oferecendo sempre a
nossa ajuda, mesmo quando não requisitada. Não precisamos provar que
somos uma pessoa limpa ou perfeita. Será que estamos pensando “Sou
limpo, logo, existo” ou “Sou perfeito, logo, existo”, como “Penso, logo,
existo?” Só sentimos que temos que provar que somos bons, ou temos
valor, porque nos sentimos inseguros em relação a esse “eu, eu, eu”.

Não precisamos provar nada. Pense nisso. O que será que estamos
tentando provar ao sermos tão perfeitos, tão bons, tão limpos, tão
produtivos? Esse é o segredo: não existe motivo para nos sentirmos
inseguros, e não há nada que tenhamos que provar. Apenas faça o que
tiver que ser feito! Seja útil aos outros.

Obviamente, não é tão fácil usar apenas de autodisciplina ética para dizer,
“Pare de se sentir inseguro”. É necessária uma compreensão de que a
insegurança está baseada na confusão a respeito de como existimos, e
essa confusão não está baseada em nada que corresponda à realidade.
Sobre o quê estamos inseguros? Um mito! Um mito de que se eu sou
produtivo e útil, logo, existo. Se não sou produtivo, deixo de existir? Isso
seria um tanto estranho, não seria? O que eu preciso provar sendo um
workaholic fanático? Se quiser ajudar os outros, ótimo, ajude-os, mas não
de forma compulsiva. Esse é o problema. Isso é o que temos que parar de
fazer. Esse é o segundo nível, ou o escopo intermediário da autodisciplina
ética. Usamos de autodisciplina para compreender que não há nada a ser
provado e, com essa compreensão, dissipamos a insegurança que está por
trás do nosso comportamento kármico compulsivo.
O Terceiro Nível: Superando a Falta de Conhecimento do Karma
Alheio

Com o nível avançado de motivação do lam-rim, trabalhamos para


superar a falta de conhecimento a respeito do karma alheio. Queremos
ajudar os outros. Se tivéssemos atingido o estado liberto, estaríamos
livres do ciclo de renascimentos incontroláveis e, portanto, não seriamos
mais compulsivos, não agiríamos de forma destrutiva, e não teríamos o
impulso neurótico de agir compulsivamente de maneira construtiva,
mesmo quando isso não é apropriado. O problema é que, apesar de
termos a forte aspiração de ajudar os outros, não sabemos qual é a
melhor maneira de fazê-lo. Não sabemos as razões kármicas e os
antecedentes que levaram as pessoas a serem como são. E também não
sabemos qual será o efeito daquilo que ensinamos — tanto na própria
pessoa, quanto em todas as outras pessoas com quem ela interagir. Por
não termos a mínima ideia do impacto daquilo que aconselhamos ou
ensinamos, somos muito limitados nas nossos formas de ajudar.

Trabalhando para o Benefício Alheio


Como a autodisciplina pode ajudar nessa situação? Primeiro, precisamos
trabalhar com disciplina para não sermos apáticos ou complacentes.
“Agora que estou livre do sofrimento, só vou sentar aqui, meditar, e ficar
sempre em um estado de bem-aventurança e felicidade.” Precisamos de
autodisciplina ética para trabalhar pelos outros. Você experimenta o que
estamos falando quando alcança um sucesso significativo na sua prática
de meditação. Você senta, sua mente fica livre de distrações e torpor, e
você entra em êxtase — não de uma forma perturbadora, mas realmente
sente-se muito bem. Ficaria muito contente em permanecer assim. Se
fosse um praticante muito avançado, poderia ficar nesse estado por muito
tempo e, se já fosse liberado, poderia ficar assim para sempre.

O que nos tira dessa complacência e contentamento? Se você realmente


tiver se liberado do ciclo de renascimentos incontroláveis, você nem
mesmo tem um corpo comum, nunca tem fome ou qualquer outra
necessidade. O que o estimula a mover-se é o pensamento a respeito das
outras pessoas. “Como posso sentar-me aqui em êxtase, sentindo-me
maravilhosamente bem, quando todos os outros seres sentem-se mal?”
Precisamos de autodisciplina ética para superar a preocupação com
nosso próprio bem-estar, pensar nos demais e trabalhar para eles.

O fato disso aparecer como o passo seguinte, depois de trabalharmos para


nosso próprio benefício, é muito significativo. Se tentarmos ajudar os
outros enquanto ainda nos sentimos mal e somos neuróticos, teremos
problemas. Ficaremos impacientes e irritados com as outras pessoas,
quando não seguirem nossos conselhos e não progredirem
suficientemente rápido. Ou nos apegaremose teremos ciúmes quando
procurarem outro professor. Ou pior, podemos sentir atração sexual por
elas, e isso cria um enorme problema quando queremos ajudar alguém.
Realmente precisamos nos trabalhar primeiro. Entretanto, não é que
primeiro precisemos nos liberar completamente, para depois tentar
ajudar os outros — isso levaria muito tempo. A questão é não
negligenciarmos o nosso trabalho pessoal no processo de trabalharmos
como os outros.

Ao nos trabalharmos, ainda precisamos focar em superar nossas emoções


e atitudes perturbadoras e a compulsividade do karma. Ainda precisamos
de autodisciplina para superarmos nosso auto-centramento; mas nesse
estagio também precisamos de disciplina para trabalharmos em superar
as limitações de nossa mente, que nos impedem de sermos oniscientes.
Por não sabermos tudo, não conseguimos ver o quadro completo; não
conseguimos ver a interconexão de todas as coisas. O que quer que
aconteça, é uma combinação de muitas, mas muitas causas e condições, e
cada uma dessas causas e condições também tem suas causas e
condições.

Em nosso estagio atual, nossas mentes são muito limitadas; não


conseguimos perceber tudo o que está envolvido no que acontececom os
outros. E pior, achamos uma determinada causa pode ser a única
responsável por um efeito, especialmente quando achamos que nós
somos a causa. Por exemplo, se alguém com quem interagimos cai em
depressão, imaginamos que a culpa é nossa, simplesmente porque
fizemos ou dissemos alguma coisa. Isso não corresponde à realidade. O
que quer que aconteça às pessoas, é o resultado de muitas e muitas
causas, e não apenas do que fizemos, “A causa do seu problema é que
você não frequentou uma boa escola”. Reduzimos o que aconteceu ao
resultado de uma única causa. Ou dizemos, “Todos os seus problemas
devem-se ao fato de seus pais terem feito isso ou aquilo quando você era
criança.” Simplesmente não conseguimos enxergar o quadro completo.
Ele é bem maior que isso.

Nosso Pensamento Não Corresponde à Realidade


Precisamos de uma compreensão muito maior do que a que temos no
momento. O problema é que nossas mentes projetam categorias, como
caixas, e compartimentalizamos tudo nessas caixas. Isolamos as coisas
como se existissem em caixas, independentes de todo o resto, e
acreditamos que isso corresponde à realidade. Não enxergamos a
interconexão e interdependência de tudo. “Essa é a única causa. Isso é
mau, isso é bom.” Nós categorizamos.

Bom, não é assim que as coisas existem. As coisas não existem isoladas de
todo o resto. Precisamos de disciplina para entender que apesar de
parecer assim, isso não corresponde à realidade. Aqui vai um exemplo
simples: Você fica em casa o dia todo com as crianças. Seu parceiro chega
em casa e não fala com você. Ele simplesmente entra no quarto, fecha a
porta e deita-se. Em nossa mente, colocamos o parceiro na caixa chamada
“pessoas que não me amam”. Aliás, também o jogamos na caixa de
“pessoas terríveis” e “pessoas que não são gentis”. Por trás disso está a
preocupação com o grande “eu”. Ele está na caixa das “pessoas terríveis”
porque “eu” — eu, eu, eu — quero falar com ele. Eu quero, eu quero, eu
quero! Quero alguma coisa dele. Por colocá-lo em uma caixa, não
conseguimos ver a interconexão entre tudo o que ele viveu antes de
chegar em casa e como ele agiu quando chegou. Ele pode ter tido um dia
difícil no trabalho, e tal e tal coisa pode ter acontecido no caminho para
casa, e assim por diante.

Quantas vezes as coisas parecem ser assim? Alguém chega em casa e é


como se tivessesurgido do nada — nada aconteceu com essa pessoa antes
dela chegar e tudo começou no momento que ela atravessou a porta. Olhe
por outro ângulo. Se a outra pessoa fosse quem estivesse em casa com as
crianças e você tivesse chegado do trabalho, como isso pareceria a você?
Lá está seu parceiro, como se nada tivesse acontecido com ele durante o
dia, antes de você chegar em casa.

Se pensar, é claro que verá que não é assim! Estamos falando aqui de
como nossa mente faz as coisas parecerem. Ela faz com que a interação
com nosso parceiro pareça começar naquele lugar, naquele momento em
que entramos pela porta, como se nada tivesse acontecido antes. Tudo
aparece nas caixas com as quais categorizamos as coisas. É para
superarmos esse hábito profundamente arraigado, de colocar pessoas,
coisas e situações em caixas, que precisamos de disciplina. Precisamos
compreender que essa visão compartimentalizada do mundo não
corresponde à realidade.

Só para certificar-me de que entenderam esses pontos, vamos ver um


outro exemplo comum. Colocamos pessoas na caixa de “minha parceira” e
não consideramos o fato de que elas tem relacionamentos e amizades
com outras pessoas. Por as colocarmos nessa caixa mental, pensamos,
“Ela é só minha. Ela tem que estar disponível sempre que eu quiser,
porque isso é a única coisas que ela é: minha parceira. Não há nada mais
acontecendo em sua vida” Não pensamos no contexto de ela ter
obrigações com os pais, ter outros amigos ou outras atividades. Não, elas
estão apenas nessa única caixa. O pior é que isso parece ser a verdade, e
acreditamos que corresponde à realidade. Obviamente, com base nisso,
nos apegamos e ficamos com raiva se ela tem que sair para encontrar
outra pessoa.

O Terceiro Nível de Autodisciplina Ética de Acordo Com a Motivação Avançada


do Lam-Rim
No nível avançado de motivação do lam-rim, trabalhamos para alcançar o
estado onisciente de um Buda totalmente iluminado, para podermos
ajudar os outros da melhor forma possível. Para ajudarmos da melhor
maneira possível, precisamos de um entendimento completo do karma de
cada pessoa. Precisamos compreender todo seu comportamento
compulsivo passado, além de todas as outras variáveis de causas e
condições que a levaram ao presente estado, e precisamos saber quais
serão as consequências de tudo o que lhes ensinarmos. Para
conseguirmos perceber a interconexão de causa e efeito, especialmente
as conexões causais que envolvem o karma, precisamos parar de isolar as
coisas umas das outras e categorizá-las em caixas mentais, imaginando
que realmente existem dessa forma.

Portanto, não precisamos desenvolver a autodisciplina ética apenas para


superar a preocupação exclusiva connosco e desenvolver uma
preocupação sincera com os outros. Também precisamos de
autodisciplina para compreender que, a forma como nossa mente faz as
coisas aparecerem em caixas não corresponde à realidade. Precisamos
tentar enxergar o quadro completo.

Reflexão no Terceiro Nível de Autodisciplina Ética

De acordo com a estrutura do caminho gradual do lam-rim, existem três


níveis de autodisciplina ética conectada com o karma:

 A disciplina para nos abstermos de comportamentos destrutivos


compulsivos.
 A disciplina para vencermos as emoções e atitudes perturbadoras que
estão por trás do comportamento compulsivo, seja ele negativo ou
positivo.
 A disciplina para vencermos as limitações da forma ilusória com que
nossa mente faz as coisas parecerem — parar de pensar de forma
pequena, que coloca coisas em caixas mentais — e a disciplina para não
ser apático e complacente com nossa própria situação, para que
consigamos entender o karma das outras pessoas e ajudá-las a superá-
lo.

Através da meditação discriminativa, tentemos reconhecer como nossa


mente faz com que as coisas surjam em caixas, isoladas de todo o resto.
Pense nas pessoas nesta sala, ou, se estiver lendo isso em casa, pense nas
pessoas que você vê no ônibus ou metrô. Você as vê como se tivessem
surgido do nada. Elas simplesmente apareceram ali, e o que estava
acontecendo em suas casas de manhã não aparece, assim com o fato de
elas terem filhos ou não, ou se tiveram alguma dificuldade em chegar até
ali — nada disso aparece para nós. Por isso, realmente não sabemos em
que tipo de humor se encontram, e não sabemos que efeito terá algo que
dissermos ou fizermos. Elas podem estar muito cansadas, ou perturbadas,
ou chateadas pelo o que aconteceu de manhã, ou talvez não tenham
dormido o suficiente. Como saber? Se as pessoas surgem como se
tivessem vindo de lugar nenhum, sem qualquer antecedente, como
poderíamos saber a melhor forma de ajudá-las?

De alguma maneiratemos que não acreditar nessa aparência e


eventualmente conseguir que nossa mente pare de fazer as coisas
parecerem dessa forma. E então, mesmo nesse estagio, mesmo que não
saibamos o que aconteceu com alguém de manhã, pelo menos podemos
considerar o fato de que algo aconteceu com essa pessoa antes de a
vermos. Se estivermos realmente interessados, perguntaremos, mas não
como se estivéssemos fazendo uma pesquisa científica. Estamos falando
aqui de preocupação sincera, com amor e compaixão: “Desejo que seja
feliz e não seja infeliz”.

Tente reconhecer, portanto, como nossa mente cria essas aparências


enganadoras. Tente enxergar o quanto elas são limitantes quando
acreditamos que correspondem à realidade, e como elas causam
problemas.

O Mecanismo do Karma
Explicações sobre o Karma

Se vamos trabalhar para superar o karma, ou seja, para nos livrar da


compulsividade em nosso comportamento, precisamos saber como o
karma funciona. Existem várias explicações detalhadas sobre esse tema
na literatura budista. De uma forma geral, temos a explicação encontrada
na tradição pali e as encontradas nas tradições sânscritas. O pali e o
sânscrito são dois idiomas da Índia antiga. A tradição Theravada segue a
versão pali e o que eu vou explicar vem da tradição sânscrita, que tem
duas versões. Tentarei apresentar as variações entre as duas, porém sem
dar muita ênfase às diferenças, porque elas têm muitas coisas em comum.

Mas antes disso, um conselho bastante útil. Quando encontramos, no


budismo, várias explicações diferentes para o mesmo fenômeno, como o
karma, é importante não abordarmos a questão com a atitude que talvez
tenhamos herdado do pensamento bíblico: Um Deus, uma Verdade: “Só
existe um jeito certo, o resto está errado”. Pelo contrário, cada uma
dessas explicações olha o karma por um ângulo diferente e nos ajuda a
entendê-lo através das várias explicações que são dadas. Todas são úteis
para nos habilitar a superar o sofrimento - e esse é o propósito.

“Ter Vontade de Fazer ou Dizer Algo”, o Primeiro Passo de Como o


Karma Funciona

O tipo de literatura que discute o karma, no sânscrito, é o abhidharma.


Nessa tradição abhidharma, devemos começar com a palavra “sentir”,
para explica nossa experiência. Essa é uma palavra muito complicada
porque nos idiomas Ocidentais ela tem muitos significados. Aqui, não
estou usando “sentir” no sentido de sentir felicidade ou infelicidade, ou
sentir uma emoção ou intuição. Estou usando no sentido de sentir
vontade de fazer, dizer ou pensar sobre alguma coisa. A palavra tibetana
para isso significa um desejo, uma vontade, de fazer alguma coisa.

No dia-a-dia, quando sentimos vontade de fazer, dizer ou pensar alguma


coisa, por que sentimos isso? Pode ser por causa das circunstâncias do
momento, como o clima, as pessoas que nos cercam ou o período do dia.
Também podemos nos influenciar por sentimentos de felicidade ou
infelicidade. “Estou me sentindo triste, quero fazer outra coisa”, ou
tendências anteriores de agir, falar ou pensar de determinada maneira.
Alguma emoção que nos motive também estará presente “Sinto vontade
de gritar com você, porque estou zangado”. Talvez você tenha sido
grosseiro comigo e eu tenha ficado triste e com raiva. Minha tendência é
gritar sempre que alguém faz uma grosseria comigo, portanto, é isso que
sustenta essa vontade que tenho. E temos que considerar também o
apego a um “eu” sólido. Eu, eu, eu. “Você foi grosseiro comigo” ou “Como
ousa dizer isso para mim? Todos esses fatores formam uma rede que nos
faz sentir vontade de fazer, dizer ou pensar alguma coisa. Pensar alguma
coisa pode ser considerar, por exemplo, “O que será que posso dizer para
machucá-lo?” Esse tipo de pensamento.
Karma Mental

Com base nesse sentimento, surge o karma mental, uma compulsão. A


compulsão aqui é um impulso mental que nos leva a pensar — pensar em
fazer o que previamente havíamos sentido vontade de fazer. Leva-nos ao
ato de pensar sobre o assunto, o que pode ou não nos levar a tomar uma
atitude no sentido de dizer ou fazer o que estávamos pensando. Uma
emoção motivadora, uma intenção e um apego ao “eu”, sempre
acompanham esse impulso mental de pensar em fazer ou dizer alguma
coisa.

Se conseguirmos desacelerar um pouco as coisas através da meditação,


de forma a termos sensibilidade suficiente para discriminar o que
acontece em nossas mentes, seremos capazes de distinguir cada passo,
apesar de eles ocorrerem muito rapidamente. Por exemplo: Sinto vontade
de gritar com você porque estou com raiva. Um desejo compulsivo me faz
pensar em gritar e ao final do pensamento decidirei se vou ou não dizer
alguma coisa. Caso decida gritar, passarei ao passo seguinte.

A Mais Simples Explicação do Karma Físico e Verbal

A seguir vem o karma físico e verbal, para os quais temos duas


explicações, devido às duas versões ou tradições sânscritas. Vamos
começar pela mais simples. De acordo com essa explicação, o karma físico
e verbal, assim como o karma mental, é um impulso mental, um impulso
compulsivo que nos leva a iniciar uma ação, dar continuidade à ação e,
eventualmente, interromper a ação. O impulso mental de pensar em fazer
ou dizer algo é chamado de “impulso motivador” e o impulso mental que
nos leva a, de fato, fazer ou dizer algo é chamado de “impulso causal”.
Veja que, mesmo que pensemos em fazer ou dizer algo, pode ser que
façamos e digamos e pode ser que não, e se fizermos ou dissermos algo,
pode ser que tenhamos conscientemente pensado sobre isso antes e pode
ser que não. Todos os quatro casos são possíveis.

As emoções que acompanham cada passo de uma ação podem mudar e


serem bastante diferentes. Por exemplo, meu bebê está dormindo.
Existem muitos mosquitos no quarto. Se eu estivesse em uma zona de
malária, estaria preocupado com o meu bebê, pois ele poderia ser picado
e pegar malária. A “emoção motivadora”, que acompanha o impulso
motivador que me leva a pensar em matar os mosquitos, pode ser
compaixão pelo meu bebê. Se, depois de pensar em matar o mosquito, eu
realmente decidir matá-lo, é bem provável que a emoção mude. A
“emoção causal”, que acompanha o impulso causal que me leva ao fato de
matar o mosquito, é hostilidade e raiva. Preciso de hostilidade para com o
mosquito, caso contrário não conseguiria matá-lo. Eu não quero apenas
amedrontá-lo e espantá-lo, eu quero bater nele com força suficiente para
matá-lo. Minha emoção mudou.

Se realmente desacelerar as coisas, é muito importante que veja como seu


estado emocional pode mudar. Por exemplo, se você vir uma barata,
primeiramente pensará com compaixão pelo bebê, “Eu não quero que
uma barata ande no rosto do meu bebê”. Depois com raiva, “Eu realmente
quero matar essa barata, esmagá-la até ela morrer!” Mas quando pisa nela
e sente seu corpo sendo esmagado, sua emoção muda para repulsa.
Quando surge o impulso de terminar a ação e você levanta o pé e vê que
seu sapato está todo sujo, sua emoção passa a ser de completo nojo.
Portanto, a emoção muda muito durante todo o processo e tudo isso afeta
a força da compulsividade com que você age, e também os resultados.

Essa é a mais simples explicação de karma: seja mental, verbal ou físico,


todo karma é um fator mental. Karmas são sempre impulsos mentais,
tipos diferentes de compulsão mental, que mudam conforme o tipo de
ação a que nos levam- uma ação física, verbal ou mental.

É muito importante não confundirmos karma (a compulsão) com a


emoção positiva ou negativa que o acompanha. Não é a mesma coisa. Não
há nada que seja um impulso kármico e uma emoção ao mesmo tempo. O
karma é como um imã que nos leva a pensar em agir, a agir, a continuar a
agir e a parar com a ação. E a menos que façamos algo para sair de seu
poder coercivo, estaremos fora de controle.

A Explicação Mais Completa do Karma Físico e Verbal

De acordo com a segunda explicação, o karma mental — impulsos


mentais compulsivos — nos leva a todos os três tipos de ação: pensar,
falar ou fazer algo. Karmas físicos e verbais, por outro lado, não são
fatores mentais, mas sim tipos de fenômenos físicos. Na verdade, cada um
desses tipos de karma apresenta-se em duas formas, a forma reveladora e
a forma não reveladora, dependendo da motivação ser ou não revelada.
Em ambos os casos, o karma não é o mesmo que a ação em si. Para nos
livrarmos do karma físico ou verbal, não precisamos parar de fazer ou
falar dizer qualquer coisa.

A Forma Reveladora

 No caso do karma físico, a forma reveladora é a forma compulsiva que


nossas ações tomam. Em certo sentido, é a compulsividade que molda
nossas ações físicas e que consequentemente molda a forma como
nosso corpo executa as ações. A forma com que agimos revela a
motivação por trás das nossas ações, ou seja, tanto a intenção quanto a
emoção que as acompanham. Por exemplo, quando sentimos vontade
de dar um tapinha no ombro de alguém para chamar sua atenção,
podemos compulsivamente bater forte ou bater fraco. O karma físico é
a compulsividade dessa forma que nossa ação toma. Ela revela a
intenção — chamar atenção — e a emoção — irritação ou afeição —
por trás da ação.

 No caso do karma verbal, a forma reveladora é o som compulsivo que


nossa voz emite quando falamos alguma coisa, tanto no que diz
respeito às palavras quanto à intenção e à emoção. Por exemplo,
novamente, quando sentimos vontade de gritar o nome de alguém para
chamar sua atenção, podemos compulsivamente gritar seu nome em
um tom de voz agressivo ou em um tom gentil e afetuoso. O karma
verbal é a compulsividade do som da nossa voz. Ele revela a intenção
— chamar atenção — e a emoção — irritação ou afeição — que está
por trás.

A Forma Não Reveladora


A forma não reveladora é mais sutil. Não é algo que seja visível ou audível
e não revela a motivação subjacente. O que temos de mais próximo na
nossa forma Ocidental de pensar é vibração sutil. Enquanto a forma
reveladora de nossas ações físicas e verbais cessa quando a ação termina,
a forma não reveladora se mostra enquanto estamos fazendo ou dizendo
alguma coisa e continua, como parte de nosso continuum mental, após a
ação ter terminado.

Quando dizemos que uma pessoa age ou fala de forma compulsivamente


agressiva — em outras palavras, que tem essa qualidade compulsiva
como hábito e como característica de sua fala e ação— estamos nos
referindo à forma não reveladora de seu karma físico e verbal. Mesmo
quando ela não está fazendo ou falando nada, ainda assim podemos dizer
que é uma pessoa compulsiva.

Note que ser compulsivo não é a mesma coisa que ser impulsivo. Ser
impulsivo significa fazer o que vem à cabeça, sem pensar. Ser compulsivo
significa que você não tem controle sobre o que está fazendo ou dizendo,
ou como você está fazendo ou dizendo. Você segue certos padrões de
comportamento repetidamente, porque não consegue resistir, como
quando ficamos batendo com os dedos na mesa ou quando falamos com
agressividade, com uma voz fria.
Marcas no Continuum Mental: Potenciais e Tendências

De acordo com ambas as explicações do karma, uma ação após terminada


— quer seja física, verbal ou mental — deixa um certo rescaldo no nosso
continuum mental, que não é nem uma forma de fenômeno físico (não
como no caso das formas não reveladoras) nem uma maneira de
estarmos conscientes de alguma coisa. É algo mais abstrato e é imputado
em nosso continuum mental como, por exemplo, nossa idade. Esse
rescaldo kármico inclui potenciais kármicos e tendências kármicas.

Potenciais Kármicos
Potenciais kármicos que, conforme o ponto de vista, também são
chamados de “forças kármicas”, podem ser construtivos ou destrutivos.
Muitos tradutores chamam os potenciais construtivos de “mérito” e os
destrutivos de “pecado”, mas acho que esses termos emprestados de
religiões bíblicas são inapropriados e podem gerar confusão. Prefiro
chamá-los de “potenciais kármicos negativos” ou “forças kármicas
negativas” e “potenciais kármicos positivos” ou “forças kármicas
positivas”. Aqui vamos chamá-los apenas de “potenciais positivos” e
“potenciais negativos”.

É um tanto complicado, porque ações construtivas e destrutivas — que


resultam ou compreendem um karma construtivo ou destrutivo —
também são potenciais positivos ou negativos. Portanto, existem
potenciais kármicos que são nossas ações propriamente ditas, e
potenciais kármicos que continuam imputados em nosso continuum
mental.

Esses potenciais kármicos servem como “causas de amadurecimento”.


Assim como a fruta em uma árvore cresce gradualmente e quando
amadurece cai e está pronta para o consumo, os potenciais kármicos
reforçam-se uns aos outros — eles formam uma rede — e quando estão
suficientemente fortalecidos, amadurecem na forma de resultados
kármicos. Esses resultados são sempre eticamente neutros — o Buda não
os especificou como construtivos ou destrutivos, uma vez que podem
acompanhar qualquer tipo de ação: construtiva, destrutiva ou neutra. Por
exemplo, potenciais negativos amadurecem como infelicidade, enquanto
potenciais positivos amadurecem como felicidade. Entretanto, podemos
estar felizes enquanto ajudamos alguém, matamos um mosquito ou
lavamos louça. Também podemos estar infelizes ao fazermos tais coisas.
Tendências Kármicas
Tendências kármicas acontecem apenas como resultado de nosso
comportamento kármico. Se a ação for neutra, a tendência kármica
resultante também será neutra. Se a ação for construtiva ou destrutiva,
seu potencial positivo ou negativo passará a ser a natureza da tendência
kármica. Em outras palavras, elas passam a funcionar como tendências
kármicas, mas continuam construtivas ou destrutivas. Como as
tendências kármicas, em um espectro mais amplo do termo, podem ser
positivas, negativas ou neutras, de forma geral nos referimos a elas como
sendo neutras.

Tendências kármicas, literalmente “sementes kármicas” , funcionam


como as causas de onde vêm os resultados. Em outras palavras, assim
como a semente faz surgir o broto, elas são aquilo que faz surgir o
resultado. O resultado pode ser, por exemplo, a repetição de um tipo de
ação prévia.

Uma Reflexão Sobre Potenciais e Tendências Kármicas

A diferença entre os vários tipos de consequências kármicas, incluindo as


formas não reveladoras, é muito sutil e extremamente complexa. Quando
começamos a estudar o karma, não é preciso distingui-las em detalhes. O
mais importante é termos uma ideia geral do resultado kármico e
reconhecer a quêisso se refere.

Por exemplo, vamos supor que você grite com alguém. A ação de gritar,
em si, já sinaliza um potencial para gritar novamente no futuro. Uma vez
que a gritaria tenha terminado, podemos dizer que o potencial para gritar
ainda mais continua no seu continuum mental, e poderíamos descrevê-lo
como uma tendência que você teria de gritar com as pessoas.

Tomemos um momento para refletir sobre isso, escolhendo algum


comportamento típico que temos. Procure discernir: Existe um certo
padrão no meu comportamento, porque tenho a tendência a repetir as
mesmas ações. Por causa desse padrão, eu definitivamente tenho o
potencial para repetir esse comportamento novamente, porque tenho a
tendência de agir dessa forma. Meu comportamento é, de fato,
compulsivo porque sempre ajo dessa maneira, sem controle. Quanto mais
eu ajo assim, mais forte o meu potencial para agir assim novamente. E
ainda, quanto maior for o potencial, menos tempo levará para que eu aja
assim novamente como, por exemplo, gritar com alguém.

Descrevendo esse mecanismo do ponto de vista fisiológico, podemos


dizer que nosso comportamento repetitivo constrói um forte caminho
neural e, por causa desse caminho, temos um grande potencial para
repetir tal comportamento.

Vamos descrever nosso comportamento com mais detalhes. Por exemplo,


eu me irrito com muita facilidade e grito com as pessoas. Existe uma
compulsividade nisso, que é quase como uma vibração que as pessoas
percebem se são muito sensíveis. Elas pensam, “Tenho que tomar cuidado
quando estiver com essa pessoa, porque ela se irrita com muita
facilidade”. Elas me descreveriam como uma pessoa que tem uma forte
tendência a perder o controle e gritar. Existe sempre essa probabilidade
de eu vir a gritar, e quando o faço existe um aspecto compulsivo em
minha voz, que é agressivo e realmente desagradável. Se você disser algo
que me melindre, não há dúvida que terei vontade de lhe dizer algo
desagradável, e a compulsividade do meu karma realmente me fará
gritar. Ficarei fora de controle.

Por favor experimente esse tipo de reflexão introspectiva. Se


conseguirmos identificar nossas tendências e potenciais kármicos,
podemos começar a trabalhar em nos livrarmos deles. Então pergunte-se,
quais são minhas tendências? Quais são os padrões que eu sigo
compulsivamente? Lembre-se, esses padrões podem ser positivos ou
negativos, como gritar ou ser perfeccionista.

Resultados Kármicos

Quando as circunstâncias estão completas, várias tendências e potenciais


kármicos nos fazem vivenciar uma ou mais dessas coisas: felicidade,
infelicidade, a repetição do nosso comportamento, experimentarmos
coisas acontecendo conosco de forma similar ao que fizemos aos outros, e
assim por diante. Novamente, é muito complicado. Mas é muito
importante compreendermos que não estamos dizendo que as tendências
e potenciais kármicos criam essas coisas. Eles criam a forma como
vivenciamos essas coisas. Por exemplo, se eu for atropelado, meus
potenciais e tendências kármicas não criaram o carro, e não fizeram com
que o motorista me atropelasse. O motorista me atropelar é o resultado
do karma dele. O resultado do meu karma só foi responsável pela minha
experiência de ser atropelado.

Você consegue ver a diferença? Estamos falando do que eu vivencio. Eu


vivencio o clima, por exemplo, mas meus potenciais kármicos não criam o
clima. Meus potenciais kármicos fazem com que eu me molhe quando saio
na chuva sem um guarda-chuva, mas eles não criam a chuva. É a água da
chuva, claro que me molha, mas isso não é karma. O fato de que eu
compulsivamente me esqueço de levar um guarda-chuva quando saio —
isso sim se deve às tendências e potenciais kármicos. Por causa dessa
tendência é que tenho a experiência de me molhar.

Tipos Diferentes de Resultados Kármicos

Nossa experiência pode ser muito diferente dependendo das


circunstâncias. Aqui mostramos apenas a circunstância de uma chuva.
Qual foi a nossa experiência?

 Nossa experiência pode ser de felicidade ou infelicidade. Isso é


muito interessante, porque todo tipo de coisas boas pode acontecer à
nossa volta e mesmo assim podemos nos sentir infelizes. Podemos
fazer a mesma coisa em dois momentos diferentes, sendo que no
primeiro nos sentimos felizes e no segundo nos sentimos infelizes. Isso
acontece como resultado de potenciais kármicos.
 Vivenciamos situações que nos são específicas, como ver ou ouvir
alguma coisa. Por exemplo, porque será que frequentemente
testemunhamos cenas violentas de pessoas brigando? Obviamente não
foi o nosso karma que criou essas brigas, mas sempre parece que as
testemunhamos, e não temos controle sobre isso. Nossa experiência de
ver essas coisas também é o resultado de nossas tendências e
potenciais kármicos.
 Em várias situação sentimo-nos repetindo ação anteriores. Por
exemplo, eu sinto vontade de gritar com você ou sinto vontade de
abraçar. O que temos vontade de fazer ou o que gostaríamos de fazer
vem do resultado kármico de ter agido dessa forma anteriormente.
Veja que o karma não amadurece a partir de outro karma. O rescaldo
kármico não amadurece como uma compulsividade que nos leva a
repetir uma ação; mas como um desejo ou vontade de agir. Ter vontade
de fazer alguma coisa pode ou não nos levar à compulsividade que fará
com que tomemos uma atitude.
 Vivenciamos, em algumas situações, coisas acontecendo conosco que
são similares às que já fizemos aos outros. Portanto, da tendência
de gritarmos com as pessoas, vivenciamos outras pessoas gritando
conosco. Se trapacearmos, teremos a experiência de sermos
trapaceados.

Isso nem sempre é fácil de entender, porque geralmente envolve vidas


passadas. Mas é muito interessante analisarmos certos padrões que
temos, como um discurso desagregador, que é falar mal de alguém para
outras pessoas, como seus amigos, para que eles cortem relações com
essas pessoas. Como resultado kármico de tal comportamento, temos a
experiência de nossos amigos nos deixarem. Nossas amizades ou
parcerias não duram; pessoas saem de nossas vidas. Causamos
rompimentos, e agora vivenciamos o mesmo em nossos relacionamentos
que não duram.

Você pode entender isso no nível kármico, mas também no psicológico. Se


estou sempre falando mal de outras pessoas para você, que é meu amigo,
quando falo mal de um outro amigo, o que você pensa? Você pensa: “O
que será que ele fala de mim para os outros?” Naturalmente teremos a
experiência de ver essa amizade terminar.

Se pensarmos com mais profundidade sobre relações kármicas causais,


elas começam a fazer sentido. Vivenciamos coisas acontecendo conosco
de forma similar ao que fizemos aos outros. Lembre-se, estamos falando
aqui sobre a experiência que tivemos, não o que a outra pessoa nos fez.
Ela teve suas próprias causas kármicas que a fez fazer o que fez.

Um quinto tipo de resultado do rescaldo kármico é termos experiências


conjuntas, como estar em um certo tipo de ambiente ou sociedade em
que todos estão ameaçados. Por exemplo, nascer ou viver em um lugar
muito poluído ou onde quase não há poluição. Ou podemos ter a
experiência de viver em uma sociedade onde exista muita corrupção, ou
onde as pessoas são honestas. Essas coisas nós vivenciamos
conjuntamente em um mesmo local ou sociedade.

Reflexões Sobre Como o Karma Funciona

Esses são os tipos de coisas que vivenciamos como resultado de rescaldo


kármico. Experimentamos nos sentir felizes ou infelizes, ver e escutar
diversas coisas e ter coisas acontecendo conosco, e tudo isso funcionará
como circunstâncias que nos farão sentir vontade de repetir nossos
padrões anteriores de comportamento. Se agimos sobre esse desejo, é
porque existe uma compulsividade que nos faz agir. Frequentemente
parece que não temos poder de decisão. Uma vez que eu sinta vontade de
gritar com você, por exemplo, serei compelido a gritar e repetir o padrão.
Apesar de podermos tomar a decisão de não agir sobre essa vontade de
gritar, isso acontece tão rapidamente que acabamos compelidos a gritar.
Repetimos o padrão e fortalecemos o potencial para gritar, uma vez, outra
e outra, porque a tendência está lá, e existe um padrão compulsivo na
forma de falarmos e uma certa compulsividade na forma como agimos. É
assim que o karma funciona.

Tire um tempo para pensar sobre essas ideias e deixá-las assentar.

Superar a Compulsividade do Karma


O Nível Inicial: Abstendo-se de Comportamentos Negativos

Vimos que karma e disciplina estão envolvidos em cada um dos três


níveis gradativos de motivação e objetivo, conforme apresentado nos
estágios graduais do lam-rim. Também vimos como o karma funciona e
como ele perpetua vários sofrimentos.

 Comportamentos destrutivos geram a experiência de infelicidade.


Vivenciamos coisas ruins acontecendo conosco, que são similares ao
que fizemos com os outros, e temos a experiência de nos sentir
repetindo nosso comportamento destrutivo.

 Comportamentos construtivos geram a experiência de felicidade


comum, aquela que não dura e nunca satisfaz, e vivenciamos coisas
boas acontecendo conosco, que são similares às coisas boas que
fizemos aos outros mas, novamente, não duram. Sentimo-nos
repetindo nosso comportamento construtivo.

 Os dois tipos de comportamento, construtivo e destrutivo, geram a


experiência do ciclo de renascimentos incontroláveis. Renascemos de
novo e de novo, porque quando morremos ansiamos compulsivamente
por outro corpo. Queremos um “eu” sólido para continuarmos
existindo.

Para alcançarmos o objetivo inicial conforme os estágios do lam-rim, ou


seja, para não sofrermos mais com infelicidade, praticamos a
autodisciplina ética de nos abster de comportamentos destrutivos.
Quando sentimos vontade de agir de forma destrutiva, lembramo-nos de
todo o sofrimento que isso nos trará, e simplesmente não agimos de
acordo com o que estamos sentindo. Isso exige muita disciplina, baseada
na consciência discriminativa correta do que é danoso e do que é
benéfico, especialmente do que é danoso e benéfico a nós mesmos. Para
conseguirmos ter autodisciplina ética, precisamos sempre nos lembrar da
infelicidade e do sofrimento que criaremos ao agir com base em nossos
sentimentos destrutivos e fazer o que sentimos vontade de fazer.

A atenção plenaé a cola mental que não nos deixa esquecer que a ação
baseada em sentimentos negativos traz uma quantidade enorme de
infelicidade e sofrimento. Para conseguirmos manter a atenção plena,
precisamos de concentração, para de que a atenção permaneça nessa
compreensão. Para tal, precisamos de uma atitude cuidadora. Por nos
importarmos com o efeito de nosso comportamento, em nós mesmos e
nos outros, levamos a vida a sério. Importamo-nos com a forma como
agimos e, por isso, tomamos cuidado.
Também precisamos prestar atenção ao que sentimos vontade de fazer.
Temos que estar vigilantes para perceber quando sentimos vontade de
agir, falar ou pensar de forma destrutiva. E finalmente, precisamos de
atenção para, quando sentimos vontade de fazer alguma coisa, observar e
conseguir detectar, discernir e discriminar se é destrutivo. Não somos
ingênuos: sabemos que se agirmos de forma destrutiva teremos
problemas. Esses são os estágios envolvidos na aplicação da auto-
disciplina para nos abstermos de agir destrutivamente.

O que mais precisamos nesse caso, assim como no treinamento


meditativo da concentração, é atenção plena, a cola mental, porque
precisamos sustentar a consciência discriminativa e o entendimento de
que ações destrutivas geram infelicidade. Tudo o mais é consequência de
nossa cola mental estar bem colocada, evitando que nos esqueçamos. Se
ela estiver adequadamente colocada, automaticamente estaremos alerta
para perceber quando ela enfraquecer. Se nos importarmos com o que
vamos experimentar como resultado de nosso comportamento,
imediatamente restabeleceremos nossa atenção plena quando notarmos
que a perdemos. Quanto mais praticarmos dessa maneira, mais fácil será
nos lembrar de exercitar a disciplina ética do autocontrole. A
autodisciplina ética é, portanto, um fator mental — o estado mental que
nos permite evitar ações destrutivas.

O Nível Intermediário: Parando de Ativar Potenciais e Tendências


Kármicas

Para atingirmos o objetivo do nível intermediário de motivação do lam-


rim, que é a liberação do sofrimento da mudança (felicidade comum) e do
sofrimento que tudo permeia (ciclo de renascimentos incontroláveis),
precisamos deixar de ativar os potenciais e tendências kármicas que
compulsivamente dão origem a esses sofrimentos. De que maneira
ativamos esses potenciais e tendências? Pela forma como reagimos aos
sentimentos de felicidade e infelicidade.

A primeira coisa que acontece quando sentimos felicidade ou infelicidade


é que surge o fator mental que normalmente chamamos de “anseio”.
Entretanto, o significado literal da palavra em sânscrito é “sede” . Se nos
sentimos infelizes, temos sede de separação do sentimento de
infelicidade. Se sentimos felicidade comum, que obviamente nunca dura,
então, como uma pessoa sedenta, não queremos nos separar dessa
felicidade. É como quando você está com muita sede e bebe apenas um
pequeno gole de água, você não quer que alguém leve o copo embora:
você tem sede de mais. Qualquer dessas formas de sede iniciam o
processo de ativação dos potenciais e tendências kármicas. Se nos
sentimos infelizes pensamos, “Preciso me livrar disso!” Se nos sentimos
felizes pensamos, “Eu não quero que isso acabe”.

A segunda coisa a acontecer é que nos agarramos a um “eu” sólido que


precisa se livrar da infelicidade e não quer se separar da felicidade —
“Eu, eu tenho que me livrar da infelicidade! Eu, eu tenho que estar sempre
feliz!” “Eu, eu , eu!” Como se houvesse um “eu” que existisse de forma
independente, independentemente do que eu faço, digo ou penso e que
tem que estar sempre feliz e nunca infeliz. A combinação da sede com
esse apego ao “eu” é o que ativa os potenciais e tendências kármicas que
compulsivamente nos levarão a renascimentos futuros.

Estou simplificando o processo, aqui; é muito mais complexo do que isso.


Na verdade, esse processo de ativação do rescaldo kármico ocorre o
tempo todo, e não apenas no momento da morte, nos levando a
renascimentos compulsivos, incontrolavelmente recorrentes. Não querer
ser infeliz e querer ser feliz é algo que está acontecendo a todo momento,
até mesmo inconscientemente.

Para acabarmos com essa síndrome de ativar potenciais e tendências


kármicas, precisamos realizar a vacuidade. A projeção, sobre nós
mesmos, de um “eu” que existe como uma entidade isolada, que não é
afetada por nada do que faz, e que tem que estar sempre feliz e nunca
infeliz — não corresponde à realidade. Vacuidade significa que não há tal
coisa; ninguém existe dessa maneira. Se conseguirmos entender essa
ausência de qualquer coisa que corresponda à nossa fantasia, e ficarmos
focados nessa compreensão, não iremos “surtar” com sede e apego
quando sentimos infelicidade e felicidade comum. Ao invés disso,
pensaremos “Agora estou feliz, agora estou infeliz. E daí? Sentimentos
têm altos e baixos; essa é a natureza da vida. Sem problemas, nada
especial”

Portanto, o que temos que parar de fazer é dar uma importância


excessiva aos nossos sentimentos e à nós mesmos, nós que estamos
experimentando esses sentimentos, porque é isso que ativa as tendências
e potenciais kármicos. Por exemplo, suponhamos que me sinta realmente
mal quando não gosto do que alguém faz ou diz. Se me agarrar ao “eu, eu,
eu, estou infeliz por causa do que você está fazendo”, e tiver sede de me
livrar dessa infelicidade, isso ativará minha tendência e potencial kármico
de gritar com você. Quando ativados, minha vontade de gritar e minha
tendência de ficar com raiva também são ativadas. À propósito, essa
tendência a sentir raiva não é uma tendência do karma, mas uma
tendência da emoção destrutiva. Emoções destrutivas e atitudes também
têm tendências, ou seja, mesmo quando não sentimos essas emoções ou
manifestamos essas atitudes, ainda assim existe uma continuidade nelas.
Mas quando todas essas tendências e potenciais são ativados, eu
compulsivamente manifesto minha vontade e grito com você, sem auto-
controle e, certamente, sem paz mental.

Mas, se percebo que “Estou infeliz, não gosto do que você está fazendo,
mas isso não é motivo de estardalhaço”, não foco em mim e no que eu
quero. Como resultado, não ativo meus potenciais e tendências kármicas
de gritar. Obviamente, para chegamos nesse nível, essa percepção tem
que ser bastante profunda e estar bastante entranhada.

Como Nos Livrar de Potenciais e Tendências Kármicas

Uma causa só pode existir e funcionar como causa, quando existe um


resultado que pode surgir dela. Se não existe um resultado, não há como a
causa existir como causa. De forma mais específica, algo só tem potencial
para um determinado resultado, se dele realmente pudermos derivar um
resultado. Para que tal resultado surja, é necessária a ativação do
potencial. Mas se não houver nada que possa ativar o potencial, o
surgimento do resultado torna-se impossível, portanto o potencial não
existe mais.

É assim que nos livramos dos potenciais e tendências kármicas. Com uma
compreensão profunda e não-conceitual da vacuidade — não existe um
“eu’ sólido, e assim por diante — você começa a se livrar das emoções
destrutivas que acompanham os comportamentos destrutivos, e também
das atitudes perturbadoras que acompanham os comportamentos
construtivos. Isso porque as emoções e atitudes perturbadoras surgem do
apego a um “eu” sólido. Entretanto, no longo processo de obtermos essa
compreensão não-conceitual da inexistência de um “eu” sólido, nossas
atitudes e emoções destrutivas começam a perder força. Por isso,
começamos a desacelerar o processo de ativar o velho rescaldo kármico,
uma vez que ele é ativado pelas atitudes e emoções perturbadoras. Assim,
enfraquecemos a força da compulsão.

Em outras palavras, mesmo que nossas enfraquecidas atitudes e emoções


perturbadoras ativem o rescaldo kármico, nos dando vontade de gritar
com alguém, por exemplo, teremos mais chances de não repetir a ação —
nosso comportamento será menos compulsivo — porque nossa
destrutiva emoção de raiva será mais fraca. Quanto mais nos abstivermos
de agir com base em nossas vontades, quer sejam destrutivas ou
neuroticamente construtivas, menos rescaldo kármico criaremos. Dessa
forma, aceleramos o processo de nos livrarmos das tendências e
potenciais kármicos.

Para que o processo de purificação seja bem sucedido, precisamos de


autodisciplina ética para manter a vacuidade sempre em mente. De forma
bem simples, precisamos de disciplina para mantermos “Feliz, infeliz, e
daí!” em mente. Não existe um “eu” que tem que estar sempre feliz e
nunca pode sentir-se infeliz. “É claro que eu existo, mas não dessa forma
impossível”.

É muito interessante pensamos em termos do que acontece quando


temos uma compreensão profunda disso e essa compreensão começa a
afetar nossa experiência. Por exemplo, não temos mais o desejo ou
necessidade incontrolável de distração —música o tempo todo, televisão
sempre ligada — sem a qual não conseguimos ser felizes. Também não
teremos mais a compulsão de olhar constantemente o telefone para ver
se recebemos uma nova mensagem, uma curtida no Facebook ou ver as
notícias. Por não nos apegamos mais a um “eu” sólido que tem medo de
perder alguma coisa ou de ser infeliz, nos liberamos de nosso
comportamentos compulsivos perturbadores.

O Nível Avançado: Superando a Preocupação Autocentrada

Rapidamente, para atingirmos o nível avançado do lam-rim, de


compreendermos totalmente o karma dos outros a fim de podermos
ajudá-los melhor, precisamos da força da bodhichitta e da compreensão
da vacuidade. O que é bodhichitta? Com base em um profundo e
equânime amor e compaixão por todos os seres, nos responsabilizamos e
sinceramente resolvemos ajudá-los a obter a liberação do sofrimento e de
suas causas. Entretanto, percebemos que só conseguiremos saber a
melhor maneira de guiar cada pessoa se formos um Buda onisciente.
Bodhichitta, portanto, é a mente que almeja sua própria iluminação, que
ainda não aconteceu, mas pode acontecer, com base nos assim chamados
fatores da natureza búdica. Esses fatores referem-se à pureza natural e às
boas qualidade da mente, que todos possuímos e que nos permitem
atingir a iluminação. Nossa intenção é nos iluminarmos e, com base nisso,
ajudar todos os outros seres de forma mais eficiente do que o modo como
tentamos e conseguimos atualmente.

Quando aplicamos nossa mente à compreensão da vacuidade, com


bodhichitta, ela passa a ter muito mais força e energia. Nossa capacidade
de perceber a interconexão entre todas as coisas aumenta e isso quebra o
hábito mental que faz as coisas aparecerem como se estivessem cada uma
em uma caixa, isolada da outra. Dessa forma, conseguimos entender todas
as causas kármicas da situação presente de cada ser e o efeito de tudo o
que lhes ensinamos, para superar seus problemas e sofrimentos.
Conseguimos ver o quadro completo da interconectividade do que já
aconteceu, o que está acontecendo e o que ainda não aconteceu. Isso nos
permite aconselhar melhor as pessoas.

Para desenvolvermos bodhichitta, precisamos da autodisciplina ética


para superarmos nossas preocupações autocentradas, focando
totalmente no benefício alheio. Eis um exemplo simples de como o
cuidado com os outros nos dá mais energia: suponhamos que chegamos
em casa após um duro e longo dia de trabalho e estamos completamente
exaustos. Se moramos sozinhos, podemos simplesmente esquecer o
jantar e ir direto para a cama dormir. Mas se tivermos filhos, não importa
quão cansados estejamos, encontraremos a energia para fazer um jantar e
cuidar deles. Nossa preocupação com eles nos dá muito mais energia do
que se estivéssemos preocupados apenas conosco.

Isso é o que está envolvido no nível avançado de autodisciplina ética.


Precisamos da autodisciplina para pararmos de ser egoístas, pararmos de
pensar somente em nós mesmos, e almejar o mais elevado estado
possível, que é o estado onisciente de um Buda.

Conclusão

Autodisciplina ética é a chave para superarmos primeiramente o karma


negativo, em seguida todo o karma (tanto negativo como positivo), e
finalmente o autocentramento que nos impede de compreendermos o
karma de todos os outros seres, para que possamos ajudá-los a superar
seus próprios karmas. Entretanto, a autodisciplina sozinha não é
suficiente; nossa disciplina deve estar acompanhada de atenção plena,
prontidão, atenção, cuidado e assim por diante.

A compreensão da vacuidade é muito importante em todo esse


desenrolar, caso contrário teremos uma forma muito dualista de
abordarmos a autodisciplina ética. Imaginamos que existe um “eu” que é
o policial e outro “eu” que é o malvado que precisa ser disciplinado. Se
abordarmos todo o tópico do desenvolvimento da disciplina ética de
forma dualista, teremos muitos problemas adicionais. O ponto é
simplesmente aplicarmos autodisciplina, sem pensar “Eu tenho que fazer
isso” e “eu, eu, eu” e “Oh, eu sou terrível. Eu sou mau.” Pare com tudo isso
e simplesmente faça o que tem que ser feito!
A Visão Budista e Ocidental sobre
Sexo
Dr. Alexander Berzin

Existem muitos fatores e questões que podem nos levar a ter relações sexuais
com parceiros alheios. Os mais óbvios são a atração e o desejo sexual, além da
obsessão por sexo. Entretanto, se analisarmos mais profundamente,
descobriremos fatores adicionais, como a insatisfação e o tédio com a vida
sexual, problemas relacionados à expressão de afeto, à beleza e muitos
outros. Se tratarmos as causas subjacentes, podemos abster-nos de nossas
fantasias sexuais com parceiros alheios e evitar os problemas decorrentes
desse tipo de comportamento.

Pediram-me para hoje falar sobre a ética sexual budista. A sexualidade é


obviamente um tópico de grande interesse para muitas pessoas.
Especialmente quando vivemos numa comunidade íntima, no campo,
como vocês estão aqui, pode haver muita confusão sobre sexualidade e
relações sexuais. Muita dor pode surgir do nosso próprio comportamento
sexual imprudente ou do comportamento da nossa parceira. Explorar os
conselhos que o budismo oferece nesta área pode ser útil.

Eu gostaria que hoje a discussão fosse informal. Assim, falarei mas, se


tiverem perguntas por favor façam-nas. Depois, a tarde, acho que seria
bom termos uma discussão, com perguntas e uma troca de idéias.

A Herança Ētica Ocidental

Em geral, a abordagem à ética no budismo é muito diferente da


abordagem ocidental. Na cultura ocidental, temos basicamente uma
mistura de dois sistemas éticos. Um tem uma base bíblica e o outro é
baseado na Grécia antiga.

Nas bases bíblicas, há um conjunto de leis quanto à ética dado por uma
autoridade superior. Ser ético significa basicamente obedecer às leis. Se
obedecermos às leis, somos “bons” – somos “boas pessoas.” Seremos
recompensados no céu. Se não obedecermos a essas leis, somos “maus” e
seremos punidos depois da morte. E assim a ética é realmente uma
questão de obediência a esta autoridade superior. Andamos sempre a
procura de “o que devo fazer?” Há sempre esta idéia de “dever” – “eu
devia fazer isto, mas, como não estou a fazê-lo, sou “mau”, sou culpado.”
Tornamo-nos inseguros e incertos de nós próprios porque queremos
sempre saber “o que é que devo fazer?”

Na Grécia antiga, temos também um conjunto de leis, mas estas não são
mandamentos dados por uma autoridade divina. Os cidadãos fazem-nas.
Representantes dos cidadãos reunem-se numa legislatura e fazem leis
para o bem e o benefício da sociedade. Depois isto se torna novamente
uma questão de obediência. Precisamos seguir as leis. Assim, ao
obedecermos às leis, não só somos pessoas morais e boas; agora somos
também “bons cidadãos.” Se não seguirmos as leis, somos pessoas “ más”
e temos de pagar uma multa ou ir para a prisão.

Assim, a nossa ética ocidental é uma combinação destes dois sistemas.


Ambos estão baseados na obediência às leis. A ética budista não é nada
como a nossa. Como ocidentais aproximando-nos ao budismo, ficamos
confusos porque queremos que o budismo nos diga o que “devemos” e o
que “não devemos” fazer. Por causa disso, quando examinamos os
ensinamentos budistas sobre a ética, a nossa tendência é de compreendê-
los em termos de algo como mandamentos bíblicos ou leis judiciais.

A Ētica e a Renúncia Budista

A base da ética budista é completamente diferente. A ética budista é


baseada nos ensinamentos principais de Buda – as quatro verdades
nobres ou os quatro fatos da vida. Basicamente, a vida é dura, a vida é
difícil. Mas há uma causa para isso e, se nos quisermos livrar das
dificuldades da vida, precisamos eliminar esta causa. Assim, o que Buda
ensinou neste contexto foi que há determinados tipos de comportamento
que nos vão causar problemas e infelicidade. Se quisermos evitar o
sofrimento precisaremos refrear-nos desses tipos de comportamento.
Porém, se não nos importarmos com a quantidade de problemas que
criamos para nós próprios, tudo bem. Vamos avante e continuamos
agindo dessa maneira. A escolha é nossa.

Buda não deu mandamentos morais como na bíblia. Buda nunca disse,
“você deve fazer isto e, se não fizer, você é mau”. Mas ao invés, Buda disse,
“se você fizer isto, estará criando problemas para si mesmo. Se não quiser
esses problemas, pare de fazer isto”. Se continuarmos a fazer o que nos
vai trazer problemas, isso não nos torna “uma má pessoa”. Se pararmos
de fazê-lo, se nos refrearmos, isso não nos torna “uma boa pessoa”. Se
continuarmos a agir de uma maneira que cria problemas para nós, somos
tolos e isto é triste. Se pararmos de agir dessa maneira, somos sábios. É
assim.
A ética budista, então, é uma questão de escolha a respeito do que
fazemos. No treinamento budista, o nosso objetivo é desenvolver atitudes
construtivas, tal como a renúncia. Olhamos para os nossos problemas e
decidimos, “isto não é legal. Não quero mais saber disto”. Então, com a
renúncia, decidimos, com determinação, que temos de nos livrar destes
problemas. Mais especificamente, decidimos livrar-nos deles. Ninguém, a
não ser nós mesmos, pode fazer isto,. Por isso, temos de renunciar as
causas dos problemas dentro de nós. Resolvemos deixar de criar as
causas, de modo a que os problemas que vêm delas deixem de surgir.

Por exemplo, se os nossos problemas vêm da raiva ou do apego obsessivo,


então, como queremos deixar de experienciar estes problemas,
renunciamos a eles e as suas causas. Desenvolvemos a determinação que
pensa, “eu vou tentar mudar; estou disposto a eliminar o meu mau humor
e a minha raiva. Estou disposto a abandonar o meu apego. Vou tentar
fazê-lo”. Sem estarmos dispostos a abandonar os traços negativos da
nossa personalidade, não conseguiremos fazer progresso na prática
budista.

Apenas recitar e fazer o ritual de um puja, sem estarmos dispostos a


abandonar nosso apego ou nossa raiva, não fará efeito praticamente
nenhum nos traços destrutivos da nossa personalidade, tais como a raiva,
porque não vamos aplicar nenhuma das atitudes positivas que
desenvolvemos no puja na nossa vida diária. O ritual irá ser apenas mais
uma coisa que fazemos para entretenimento, da mesma forma como
vemos um programa de televisão todas as noites. Assim, se estivermos
verdadeiramente interessados em alcançar a liberação dos nossos
problemas, a questão da ética budista torna-se central.

Honestidade Sobre os Nossos Objetivos

É importante evitar sermos hipócritas na prática budista. Se a maioria das


pessoas que entra em contato com o budismo se examinasse
honestamente, o que é que têm como objetivo? A maioria das pessoas não
estão almejando a iluminação, nem sequer a liberação. A maioria das
pessoas quer apenas tornar a sua situação samsárica – as suas vidas
diárias normais – um pouco melhor.

Não há nenhum problema com isso. Buda ensinou métodos para


melhorar o samsara: ou seja, como obter um renascimento melhor. Isso
faz parte dos ensinamentos budistas. Contudo, a maioria de nós nem
sequer acredita em vidas futuras, muito menos ter interesse em melhorá-
las. Queremos melhorar o nosso samsara agora mesmo e apenas nesta
vida. Também não há problema algum com isso. Mas não devemos fingir e
ser desonestos, dizendo, “estou a trabalhar para me transformar num
Buda para o bem de todos os seres sencientes” quando esse não é, de
modo algum, o nosso objetivo. É claro, a ética que precisamos seguir a fim
de alcançar a iluminação e de melhorar o nosso samsara á a mesma. Mas,
se formos realísticos e honestos sobre o que queremos, não teremos
tantas dificuldades em seguir a ética budista.

Uma das coisas que temos de encarar é que a maioria de nós chega ao
budismo com uma base judeo-cristã. Assim, tendemos a pensar, “eu
deveria trabalhar para a iluminação, porque assim serei uma boa pessoa,
um bom discípulo, um bom budista. Se não trabalhar para me
transformar num Buda para ajudar a todos e se pensar apenas em
melhorar o meu samsara, então sou mau; um mau discípulo e um mau
budista.” Uma vez mais, a ênfase está no “dever.” Estamos a examinar o
que “devemos” fazer.

No budismo não é assim. Progredimos de acordo com o que é adequado


no estágio onde estamos. Não há nenhum sentido de “dever.” Não há
nenhum “se você fizer isto você é bom e se você estiver num nível mais
básico você é mau.” Não podemos dizer, “se você é um adulto, é bom e se
você for uma criança, é mau. Assim, mesmo se você ainda for uma criança
espiritual, você devia ser um adulto espiritual e agir como tal.”

Portanto, a questão principal, ao tentarmos seguir a ética budista, é


tentarmos compreender a relação entre a causa e o efeito
comportamental: a relação entre o nosso comportamento e o nível de
felicidade ou sofrimento que experienciamos como consequência. Isso é
crucial. Sem convicção nisto, não existe razão alguma para seguirmos o
sistema de ética budista.

O Comportamento Destrutivo e os Seus Efeitos

Se examinarmos o que o budismo chama de “comportamento destrutivo”,


vemos que é o comportamento motivado pela raiva, pelo apego ou avidez
e pela ingenuidade. Estas são as emoções perturbadoras principais – as
emoções ou os estados mentais que perturbam a paz da nossa mente e
nos fazem perder o autocontrole. Algumas explicações adicionam que a
falta de de autodignidade ética e de interesse sobre como as
conseqüências do nosso comportamento se refletem nos outros, tal como
nos nossos pais e professores espirituais, também acompanham sempre o
comportamento destrutivo. O que é definitivo do ponto de vista cármico é
que o comportamento motivado por estas emoções perturbadoras e por
tais estados mentais produzem sofrimento. Irão “amadurecer” em
sofrimento.

Temos de compreender esta afirmação. Não é assim tão simples. Não


estamos a falar sobre quais são os efeitos das nossas ações em outras
pessoas, porque isso é incerto. Com muito amor, podemos dar flores a
alguém e dar-lhes um ataque terrível de alergia que as faz ficar muito
doentes. Poderíamos roubar o carro de alguém e fazer a outra pessoa
muito feliz porque a pessoa queria livrar-se dele e agora pode coletar o
dinheiro do seguro e comprar um novo. Assim, não é absolutamente certo
que efeitos as nossas ações irão ter, ou seja, se irão causar felicidade ou
infelicidade a alguém. Embora tentemos obviamente não ferir os outros,
nunca podemos dizer o que irão experienciar. Cozinhamos uma refeição
maravilhosa para alguém e o nosso convidado engasga-se e morte. Como
é que sabemos o que irá acontecer?

Mas, de acordo com os ensinamentos budistas, o que é certo é o resultado


que as nossas ações terão em nós. Não estamos falando sobre o efeito
imediato. Se violarmos alguém, podemos experienciar o prazer imediato
de um orgasmo sexual. Não estamos falando sobre esse nível resultante
de felicidade do ato. Estamos falando sobre algo que experienciamos a
longo prazo – o efeito a longo prazo nas nossas mentes e no que iremos
experienciar no futuro como resultado das tendências e dos hábitos que
estamos acumulando.

Por exemplo, podemos ter um caso extramarital e, nesse momento,


podemos apreciar o prazer de estarmos com essa outra pessoa. Mais
tarde, contudo, sem falar nos problemas de relacionamentos íntimos em
vidas futuras, iremos indubitavelmente ter muitos problemas com as
nossas próprias famílias nesta vida. Assim, não estamos falando sobre o
prazer imediato que podemos obter num caso sexual; estamos a falar
sobre o efeito a longo prazo.

A Motivação para o Comportamento Sexual

A questão principal a examinar na ética budista a respeito da sexualidade,


então, é a motivação para o nosso comportamento sexual. Como ação, a
atividade sexual não é muito diferente de comer, no sentido em que é
uma função biológica que vem de termos este tipo de corpo. Com este tipo
de corpo, ele irá ficar com fome. Teremos de alimentá-lo. Do mesmo
modo, com este tipo de corpo, temos hormonios sexuais e temos de saber
como lidar com esta função sexual biológica. No entanto, há uma grande
diferença entre satisfazer a fome sexual e satisfazer a fome de alimento.
Podemos viver sem sexo, mas não podemos viver sem alimentos.
A atividade sexual, como o comer, pode ser motivada por uma emoção ou
uma atitude perturbadora, uma atitude construtiva ou uma neutra. Do
mesmo modo. com base na motivação, o ato sexual ou o ato de comer
torna-se destrutivo, construtivo ou neutro. Por exemplo, se comermos
com uma avidez e apego tremendos – simplesmente enchendo a barriga –
isso seria autodestrutivo. Se comermos porque precisamos continuar
sendo fortes para tomar conta das nossas famílias – a fim de termos força
e energia para irmos trabalhar e assim por diante – isso seria uma
motivação positiva; o comer seria construtivo. Se comermos apenas
porque está na hora comer e todos os outros estão a comer, isso seria
éticamente neutro.

O mesmo é verdade em relação ao sexo. Se fizermos sexo com um apego e


desejo tremendos, ou porque temos raiva, como quando os soldados
violam as esposas e as filhas dos seus inimigos, isso seria destrutivo. Se
estivermos fazendo sexo a fim de demonstrar afeição e ajudar alguém –
uma pessoa adequada – com a esperança de que isto fará a pessoa sentir-
se um pouco melhor, isso seria construtivo. Fazer sexo simplesmente
porque não conseguimos adormecer e isso nos ajudaria a adormecer mais
depressa, então seria neutro.

O resultado do que iremos experienciar de um mesmo ato é diferente de


acordo com a motivação. “Destrutivo” significa que irá produzir
problemas para nós no futuro. Para a maioria das pessoas, a motivação
negativa que faria o sexo destrutivo e a causa de problemas no futuro é
geralmente o apego e o desejo intenso. Aquilo com que precisamos
trabalhar, no contexto da renúncia, não é o próprio ato sexual sem si, mas
sim, é esse apego e esse desejo intenso.

Vou dar um exemplo. Suponhamos que procuramoso orgasmo perfeito.


Tal procura faz com que estejamos sempre descontentes com a
experiência sexual que temos. Andamos sempre à procura de melhor.
Ansiamos sempre por algo mais e nunca conseguimos apreciar realmente
o que temos. Tal atitude faz-nos frustrados e infelizes. Leva-nos a nunca
termos uma experiência sexual agradável.

O caso é o mesmo se andarmos sempre à procura do parceiro sexual


perfeito. Nunca iremos encontrar um parceiro perfeito. Iremos ficar
sempre dissatisfeitos; a nossa atitude irá fazer-nos sempre infelizes. A
atividade sexual conduzida por estes tipos de atitudes é destrutiva – é
autodestrutiva. Quando dizemos destrutivo, significa sempre
autodestrutivo.

Assim, é isso que temos de renunciar – o mito de um parceiro perfeito, de


um orgasmo perfeito e o desejo intenso que esse mito gera. O nosso
desejo é baseado na confusão ingênua de pensar “há, lá fora, em algum
lugar, um parceiro perfeito com quem terei o orgasmo perfeito”. Isso é um
mito, tal como um conto de fadas para uma criança. Desculpem, mas
nunca irá acontecer.

Sexo com o Parceiro de Outra Pessoa

Precisamos abordar a sexualidade com uma atitude mais realística.


Quando examinamos os ensinamentos sobre que tipos de comportamento
sexual são destrutivos, encontramos uma grande variedade de listas. No
entanto, o que aparece em todas elas é ter sexo com o parceiro de outra
pessoa. Quando examinamos isto, precisamos tentar compreender
porque é que isto é destrutivo; por que é que isto nos causa problemas?
Há duas situações em que esta ação destrutiva pode ocorrer – quando já
temos um parceiro sexual ou quando não temos. Vamos examinar a
primeira destas duas situações.

Se dissermos que é destrutivo porque iremos ter problemas com o nosso


próprio parceiro – porque ele irá ficar magoado – ou se dissermos que o
parceiro da outra pessoa poderá ficar ferido por causa disso, esse é um
nível de infelicidade que poderia surgir. Mas isso não é certo. Talvez
estejamos num tipo de relacionamento em que o nosso parceiro diz que
não se importa com isso. Talvez a outra pessoa esteja num
relacionamento em que o seu parceiro diz que está de acordo. Isso pode
ser possível.

Mas temos de ser muito sensíveis sobre este ponto, porque o nosso
parceiro pode dizer, “Oh, tudo bem, você pode ter sexo com outra pessoa.
Eu não me importo”, mas, na verdade, a mulher ou o homem que está
dizendo isso talvez o faça simplesmente porque não nos quer perder. Se
não concordassem poderiam perder-nos e, assim, acham que é melhor
ficarem calados e dizerem que não se importam. Mas interiormente
podem estar muito magoados. É necessário ser-se extremamente sensível
a respeito dos nossos parceiros e ver se foram realmente sinceros ao
dizer que concordam.

E se está tudo bem apenas de um lado: o nosso parceiro pode não se


importar se tivermos sexo com alguém, mas se, por outro lado, nos
importamos se ele/a tiver sexo com outra pessoa, então aqui há algo
obviamente não muito estável. E se pensarmos sobre a pessoa com quem
estamos tendo sexo, “Bem, desde que o parceiro dela não descubra – e ele
não vai descobrir – não faz mal,” isso é de uma visão curta.
Inevitavelmente o parceiro da outra pessoa irá descobrir.
De acordo com os textos budistas, o resultado principal de ter sexo com o
parceiro de outra pessoa é que as nossas próprias relações íntimas se
tornarão instáveis. Os nossos próprios parceiros serão infiéis. Mesmo se
presentemente não tivermos um parceiro, isso poderá acontecer nos
nossos relacionamentos futuros. E, embora o fato do nosso parceiro ser
infiel possa não necessariamente acontecer nesta vida, as consequências
do nosso adultério podem tomar a forma, nesta vida, de um divórcio e de
todos os problemas que o acompanham.

De acordo com os textos, uma coisa adicional que acontece quando


fazemos sexo com o parceiro de outra pessoa é que fazê-lo torna-se uma
causa para se cometer muitas outras ações destrutivas. Por exemplo,
temos de mentir sobre o nosso caso. Podemos até ter de matar ou de
roubar se alguém começar a fazer chantagem conosco sobre isso, de
modo que eles não digam ao nosso parceiro nem nos façam perder o
nosso emprego. Temos de nos livrar do chantagista para que ele não nos
exponha. Uma gravidez não desejada com o parceiro extra marital pode
fazer-nos abortar o feto. Tais coisas podem acontecer, embora
naturalmente não haja nenhuma certeza que acontecerão.

Na discussão sobre parceiros sexuais impróprios, os textos budistas


clássicos não parecem diferenciar entre já termos um parceiro sexual ou
não. Contudo, penso que temos de dizer, especialmente no contexto
ocidental moderno, que consequências negativas, como as que acabei de
mencionar, seguirão em ambas as situações. Similarmente, os textos
clássicos não mencionam as consequências negativas que ocorreriam
quando já temos um parceiro e temos sexo com outra pessoa que não tem
um parceiro ou que não é refreada pelos pais ou por votos de não fazer
sexo. Mas, penso que os mesmos tipos de consequências de sofrimento
ocorreriam também aqui.

Insatisfação

Se examinarmos mais a fundo, descobrimos que o que faz com que o sexo
com o parceiro de outra pessoa seja destrutivo é a insatisfação. Se já
tivermos um parceiro, é a nossa insatisfação subjacente em relação ao
nosso próprio parceiro que faz com que procuremos outro. Mesmo se não
tivermos um parceiro, somos levados a fazer sexo com o parceiro de
outra pessoa porque estamos insatisfeitos com a procura de um parceiro
entre aqueles com quem seria adequado termos tal relacionamento.
Talvez nem sequer tenhamos tentado.

A insatisfação é o culpado principal atrás de quase todas as formas de


comportamento sexual impróprio mencionado nos textos clássicos –
fazer sexo em orifícios impróprios do corpo, em horas impróprias, em
lugares impróprios e assim por diante. O que está por trás de todos esses
comportamentos é a insatisfação. Por exemplo, digamos que podemos ter
sexo na privacidade do nosso próprio quarto à noite quando ninguém
virá bater à porta. Mas não estamos satisfeitos com isso - não é
suficientemente emocionante. Assim, decidimos ter sexo lá fora no nosso
quintal, ao meio do dia, quando qualquer pessoa pode aparecer e nos ver,
causando toda a espécie de embaraço ou de escândalo. Ou podemos ter
sexo no meio do chão da sala ao meio do dia, quando as crianças podem
entrar a qualquer altura e nos ver. Isso poderia causar um grande trauma
à criança.

A insatisfação pode tomar muitas formas. Basicamente, não estamos


satisfeitos com o que temos e queremos mais. Por exemplo, temos uma
certa etiqueta sexual estabelecida com o nosso parceiro em termos de ter
sexo em certas posições e em maneiras de mutuo agrado. Estas podem
não ser necessariamente puritânicas e estritas: há só uma posição e
acabou a conversa! Mas digamos que temos um repertório estabelecido
de formas.

Antes de mais, para que tal repertório seja apropriado, não pode incluir
formas de sexo que são convencionalmente destrutivas ao nosso parceiro
ou a nós. Se o nosso repertório inclui prender a outra pessoa em
correntes e tortura-la antes ou durante o sexo, tal comportamento sexual
sado-masoquista é inaceitável. Ou, se tivermos sexo desprotegido com
alguém de quem podemos apanhar uma doença sexualmente transmitida,
ou a quem possamos transmitir tal doença se estivermos infetados, isso
também seria destrutivo e inaceitável. Os nossos atos sexuais precisam
ser, ao nível convencional, formas razoáveis e saudáveis.

Naturalmente, pode haver muitas opiniões, tanto individuais como


culturais, a respeito de que formas de sexo são razoáveis e saudáveis e
que formas são destrutivas, mas vamos deixar essa discussão de lado.
Aqui, o que faz o ato sexual destrutivo é que não estamos satisfeitos com
nossa rotina não-destrutiva que havia sido mutuamente concordada e,
por exemplo, queremos ler manuais de sexo exótico e esotérico e tentar
cem posições diferentes para tornar o sexo mais excitante. Podemos até
pensar, “vamos fazer sexo de cabeça para baixo [fazendo o pino],” porque
estamos à procura de um prazer ideal que nunca iremos encontrar –
nunca. Estamos à procura de uma experiência sexual ideal, que é apenas
um mito, como o mito do parceiro perfeito e do orgasmo perfeito. Nunca
irá acontecer.
Esse é o verdadeiro problema, a insatisfação, esse anseio por algo mais e
mais; algo melhor e melhor. Esse anseio é baseado em agarrarmo-nos ao
“EU, EU, eu quero mais.” Especialmente em lugares como este, onde uma
comunidade de pessoas com uma afeição terna umas pelas outras vivem
juntas em proximidade, longe da cidade, e onde às vezes as pessoas que já
estão num relacionamento íntimo têm relações sexuais com os parceiros
de outras pessoas, é importante examinarmos a motivação para tal
comportamento. É importante examinarmos se é baseada na insatisfação
com o nosso próprio parceiro e na procura de algo melhor e melhor.

Se estiver baseado em tal atitude irá ser autodestrutivo. Irá


inevitavelmente causar-nos problemas e infelicidade. Quer produza
felicidade ou infelicidade para o nosso novo ou antigo parceiro é outra
questão. Produzirá inevitavelmente problemas para nós. Mas a escolha é
nossa. Se quisermos continuar sendo infelizes e frustrados – porque este
tipo de busca está destinado à frustração – então continuaremos. Tudo
bem, a escolha é sempre nossa. Mas se quisermos parar com esta
infelicidade, esta ansiedade e frustração constante de se andar sempre à
procura de algo melhor, teremos de nos refrear deste tipo de atividade.

“O Belo Corpo” e o Amor Livre

Outra questão é que podemos estar-nos a iludir sobre o que constitui um


comportamento sexual inocente. No ocidente, temos a idéia “do belo
corpo”. A adoração do corpo talvez seja a nossa herança da Grécia antiga
e, depois, do renascimento. Você sabe a atitude, “o corpo jovem é tão
bonito e perfeito” que quase que o adoramos. Com este tipo de atitude em
relação ao corpo, se tivermos sexo, vêmo-lo como uma coisa maravilhosa
e bonita. Acreditamos que irá realmente trazer, a nós e à outra pessoa,
uma grande felicidade. Estamos falando sobre uma idéia tipicamente
ocidental de “amor livre” que algumas pessoas têm.

Por exemplo, podemos já estar num relacionamento sexual com um


parceiro e conhecemos alguém numa festa que achamos atrativo e sexy.
Podemos pensar, “na verdade, não estou insatisfeito com o meu parceiro.
Mas o corpo desta pessoa é tão bonito; tenho de acariciá-lo. Temos de
fazer amor e comemorar a beleza dos nossos corpos. Fazer amor será tão
bonito.” Podemos até pensar, “fazer amor será tão espiritual.” Tais
pensamentos ingênuos são, na verdade, um exemplo de autodecepção.
Subjacente à nossa opinião que o sexo é “livre” e completamente inocente,
bonito e até espiritual, pode estar uma quantidade enorme de desejo,
avidez e apego, suportada pela nossa adoração ingênua à beleza do
corpo.
A maioria de nós, os ocidentais, não gosta dos ensinamentos budistas
acerca do que se encontra debaixo da pele, no que está dentro do
estômago e dos intestinos e assim por diante. Porém, , quando ignoramos
a realidade do que está dentro do corpo, caímos na armadilha do mito do
corpo bonito e o corpo transforma-se então num objeto de desejo
obsessivo.

O budismo explica o desejo-anseio como sendo uma emoção


perturbadora baseada numa concepção errada do seu objeto. Mais
especificamente, está baseada num exagero das boas qualidades ou da
atração do seu objeto. No caso em que o objeto é o corpo, o desejo-anseio
esta vendo algo que é basicamente não-limpo como sendo limpo e
maravilhoso. Passem uma semana no verão sem se lavarem ou sem
escovarem os dentes e vejam como o corpo é limpo. Ou o desejo-anseio
considera algo que basicamente irá produzir problemas como sendo
fonte da felicidade última. Ou algo que é impermanente como
permanente. Ou algo que não tem uma essência sólida como tendo uma
essência sólida. Quando agimos sob a influência de tal concepção errada e
ingênua produzimos problemas para nós próprios.

Assim, torno a dizer, se quisermos evitar a infelicidade como


consequência do nosso comportamento sexual, o que precisamos fazer é
evitar a idealização do sexo. Isso não significa que temos de deixar de ter
sexo; simplesmente não o idealizamos. Ou seja, somos realísticos sobre o
corpo da outra pessoa e sobre o nosso próprio corpo. Os pés geralmente
suam e cheiram mal. Essa é a realidade, por isso temos de deixar de fingir
que não é e que o corpo é sempre tão bonito e maravilhoso como nos
filmes de Hollywood – porque não é!

E o sexo não irá trazer a felicidade última, nem a nós nem a essa outra
pessoa. Assim, se pensarmos, “Oh, vou fazer sexo com esta outra pessoa e
isso irá resolver todos os problemas dela e fazê-la feliz” ou “irá resolver
todos os meus problemas e irá fazer-me feliz”, isso é um mito. É óbvio que
não é assim. Poderá talvez trazer, a nós e ao outro, um alívio temporário
de tensão, mas sejamos realísticos acerca disso. O alívio é apenas
temporário. Não é nada profundo. Não é nada de especial. Obviamente
não irá durar para sempre. Assim, não nos devemos iludir sobre isso.

E se nos deitarmos com os nossos braços em volta da outra pessoa, bem,


o braço que está em baixo irá mais cedo ou mais tarde adormecer. Há
uma diversidade de coisas incômodas que irão inevitavelmente
acontecer. Temos de aceitar tudo isso como parte dos problemas gerais
do samsara. Temos este tipo de corpo, que está misturado com a confusão
e que causa problemas. O mesmo é verdade com o sexo que também irá
inevitavelmente ficar cheio de problemas. Assim, se romantizarmos e
idealizarmos o sexo teremos muita infelicidade com ele. Precisamos ser
realísticos.

Demonstrar Afeição

Um último ponto antes de abrirmos a sessão para discussão é a pergunta


de como demonstrar afeição aos outros. Quer estejamos ou não num
relacionamento com um parceiro, se sentirmos uma afeição muito forte
por outra pessoa, qual é o modo apropriado de demonstrar essa afeição?
Algumas pessoas talvez pensem que a única verdadeira maneira de se
demonstrar afeição é, de algum modo, sexual. Talvez não signifique ter
sexo até o orgasmo, mas pode talvez ser interagindo de um modo
sexualmente estimulante – estimulante para nós, para a outra pessoa, ou
para ambos. Mas, obviamente, não pensaríamos em aplicar tais métodos a
todos por quem sentimos afeição. Por exemplo, eu tenho uma grande
afeição pelo meu cão e frequentemente demonstro essa afeição brincando
com ele. Mas não pensaria em ter sexo com o meu cão nem pensaria em
estimulá-lo sexualmente.

Isto se torna numa questão interessante quando começamos a analisar


como a demonstração de afeição pode depender de alguma cultura. Por
exemplo, quando os ocidentais vão à Índia ou ao Oriente Médio, tornam-
se às vezes confusos sobre os sinais de afeição das pessoas locais. Isto
porque na Índia e na maioria do Oriente Médio , dois amigos do mesmo
sexo andam de mãos dadas ou mantêm as mãos dadas por muito tempo.
Tal conduta, no ocidente, seria vista de uma maneira diferente. Na Índia e
no Oriente Médio, ela não tem uma conotação sexual. Naquelas culturas,
dar as mãos é um modo adequado de demonstrar afeição e amizade por
alguém do mesmo sexo; enquanto que na cultura britânica ou americana
isso seria considerado como tendo uma conotação sexual e,
consequentemente, como um comportamento impróprio para
heterossexuais.

Podemos encontrar outro exemplo nas culturas de Europa ocidental,


aonde um homem cumprimenta uma mulher, beijando-a na cara uma,
duas, três ou até quatro vezes, dependendo da cultura, e isto não tem
absolutamente nenhuma conotação sexual. Na verdade ele apenas junta a
sua bochecha à dela e os seus lábios nem sequer tocam na sua cara. Mas
na Índia, por exemplo, os homens nunca fariam isso. De fato, no Oriente
Médio islâmico, os homens cumprimentam homens desse modo, também
sem nenhuma conotação sexual.

Outra questão interessante é que as pessoas ocidentais parecem ter a


compulsão de dizer “eu te amo”. É como se expressar o nosso amor por
palavras pode torná-lo real. É como se as palavras pudessem dar ao nosso
amor uma existência verdadeira. E se você disser que me ama, então isso
também vai tornar esse amor real. Por outro lado, se você não disser “eu
te amo” ou não o disser muitas vezes, isso implica que você não me ama
de verdade. É interessante, do ponto da vista da vacuidade, ver como
imaginamos falsamente que as palavras podem criar ou provar a
verdadeira existência das nossas emoções.

Mas se examinarmos a sociedade indiana tradicional, as pessoas não


dizem “eu te amo” umas às outras, nem ao seu esposo nem às suas
crianças. Em tibetano, a expressão “eu te amo” nem sequer existe. As
pessoas demonstram o seu amor e afeições através das suas ações e não
através das suas palavras.

A questão é, de modo a expressarmos a nossa forte afeição por alguém,


precisamos mesmo ter um contato sexual com essa pessoa? Se pensarmos
que sim, podemos estarmo-nos iludindo. A nossa motivação pode de fato
ser não só ingenuidade mas também o desejo ansioso. Aqui, a
ingenuidade seria “preciso tersexo com você a fim de demonstrar e
provar a minha afeição. Essa é a única maneira de expressar o meu amor.”
Mesmo se não pensássemos de uma maneira tão extrema, poderíamos
talvez sentir a compulsão de expressar o nosso amor beijando a pessoa
apaixonadamente na boca. Ē importante pensar nisto. Será que beijar
alguém apaixonadamente na boca realmente expressa e demonstra o
nosso amor, e será que essa é a única maneira de comunicá-lo? Este é um
assunto muito interessante, especialmente quando começamos a
examinar as motivações para nossa atividade sexual mais
aprofundadamente.

Talvez seja suficiente para a apresentação inicial. Vamos discutir algumas


das questões.

Sexo, Divertimento e Variedade


Mas e o divertimento? O sexo também é um divertimento e algo
bonito para ambas as pessoas. E mantendo a analogia do alimento e
da fome, eu não quero viver apenas de pão e água diariamente. Por
isso, tento às vezes cozinhar uma refeição agradável ou comer fora
de vez em quando, apenas para tornar as coisas mais interessantes
adicionando umas pequenas mudanças. Essa não é uma atitude
razoável de nos mantermos saudáveis e satisfeitos?
A sua pergunta tem dois pontos. O primeiro é que o sexo é divertimento.
Sim, o sexo pode ser divertido. O problema vem quando idealizamos o
sexo e imaginamos que é a coisa perfeita para nos fazer felizes. Aqui, o
que produzirá a menor quantidade de problemas é apreciarmos o sexo
pelo que é e não fazermos dele algo maior do que é. Certo, é divertimento.
Mas não é a felicidade ideal e duradoura. Comer é agradável e até
divertido; mas quando acabamos de comer, depois de umas duas horas
estamos com fome outra vez. O mesmo é verdade com o sexo.

O seu segundo ponto diz respeito à analogia que ficaríamos fartos de


comer constantemente apenas pão e água e, então, às vezes é natural
querermos algo mais interessante. Pensar desse modo sobre o sexo diz
bastante sobre o relacionamento sexual que temos com o nosso parceiro.
Se esse relacionamento sexual nos parecer apenas como pão e água,
então há algo de errado com ele. Ter formas exóticas de sexo – como
cozinhar uma refeição agradável – ou sexo com outra pessoa para mudar
– como ir comer fora – não resolverá o problema. Provavelmente irá
piorá-lo.

Eu mencionei esse exemplo apenas por causa da sua analogia da


fome de alimento com a fome sexual. É bom e bonito comer pão e
beber água, mas, se quisermos manter o lado divertido, não todos os
dias.

Isto desperta um ponto muito interessante. O que é o divertimento? O


divertimento é uma coisa muito difícil de definir. Algum de vocês gostaria
de oferecer uma definição de “ divertimento?” Lembro-me, apenas como
exemplo, de uma vez que estava com o meu professor Serkong Rinpoche
na Holanda. Estávamos com umas pessoas muito ricas que tinham um
grande iate. Eles mantinham-no num lago holandês muito pequeno e um
dia levaram-nos a um passeio nele. Dava a sensação que estávamos a
navegar numa banheira. Tudo o que podíamos fazer era andar em
círculos à volta deste lago pequeno, numa fila de talvez uns cinquenta
barcos grandes, todos fazendo o mesmo. O comentário que Serkong
Rinpoche fez para mim em tibetano sobre isto foi, “é isto que eles
chamam divertimento?”

Então o que é “divertimento”? É divertimento irmos andar numa


montanha russa que nos faz sentir mal dispostos e ficar assustadíssimos?
É isso que é a verdadeira felicidade?
Insatisfação e Tédio

Em qualquer caso, deixem-me voltar atrás ao ponto sobre a sexualidade e


torná-lo mais interessante. Isto leva-nos à discussão sobre que é o tédio e
porque é que ele surge? Eu penso de que o tédio surge porque temos uma
quantidade enorme de escolha disponível e, conseqüentemente, a
expectativa da variedade. No ocidente moderno, desde crianças já
esperamos variedade. A criança ocidental está sempre a ouvir “o que você
quer? O que você quer vestir hoje? O que você quer comer hoje?” Desde
uma tenra idade, a criança ocidental é ensinada a fazer escolhas dentro de
uma grande variedade de possibilidades. Naturalmente, a criança acaba
por ter a expectativa que a variedade e as escolhas irão estar sempre
disponíveis.

Considerem, por exemplo, os supermercados ocidentais e o número de


canais na televisão. Há centenas de escolhas. Baseado na expectativa de
encontrarmos algo interessante entre a variedade de escolhas
disponíveis, o aborrecimento depressa surge, dado que nunca estamos
satisfeitos com o que temos. Estamos sempre à espera de algo novo ou
diferente que irá ser mais interessante ou mais delicioso.

Esta expectativa de variedade e o tédio que geralmente a acompanha


parecem estender-se também sobre as nossas atitudes ocidentais
modernas com relação à sexualidade. Como ocidentais modernos,
parecemos gostar de variedade na nossa sexualidade, porque tendemos a
começar a ficar entediados com a mesma coisa todas as vezes. Essa
variedade pode existir quanto a posições diferentes com o nosso parceiro,
ou poderia ser em relação a termos parceiros diferentes. Assim,
precisamos pensar sobre o papel do tédio na nossa busca de mais
divertimento com sexo. Precisamos pensar sobre o que é interessante e o
que já não é interessante e quais são os limites para cada um e porquê?

Quanto a como, no ocidente moderno, poderiamos lidar melhor com a


nossa expectativa e necessidade de experimentar coisas diferentes, eu
penso que, como estava previamente a dizer, um repertório com nosso
atual parceiro sexual pode ser a solução, em vez de termos casos sexuais
com outros fora do nosso relacionamento. Um certo regime sexual
mutuamente concordado, que não inclua apenas uma posição, dá-nos um
pouco de variedade. A coisa que causa problemas mesmo quando temos
variedade com o nosso parceiro é se estivermos constantemente à
procura da nova maneira perfeita de fazer amor. Tal busca é baseada na
insatisfação e frustração constantes, de modo que não apreciamos o que
temos. Essa atitude é que produz problemas.
Penso que não podemos dizer que ter sexo com o nosso parceiro em
diversas posições diferentes é destrutivo e que irá amadurecer em
infelicidade e sofrimento. O problema é a atitude do tédio, do
descontentamento e da busca sem fim por algo mais interessante
edivertido. Isto também acontecese pensamos em fazer algo diferente,
acreditando que será mais divertido com outro parceiro, mesmo sendo só
de vez em quando, e depois voltarmos à nossa dieta sexual usual.

Você poderia falar um pouco mais sobre a insatisfação?

A insatisfação e a expectativa estão intimamente ligadas. Vêm de


projetarmos e nos aferrarmos a algo que não existe. Aqui, o que
projetamos é o parceiro ideal, perfeito. Que há um príncipe ou uma
princesa encantada num cavalo branco, que vai ser perfeito. Iremos fazer
sexo e haverá música e fogos de artifício no ar e será uma maravilha. Essa
é uma fantasia total. Nunca irá acontecer. Assim, a insatisfação vem de se
acreditar no mito, na história de fadas que o príncipe ou a princesa
encantada estão lá fora à nossa espera, e que um orgasmo extraordinário
existe.

Tornar Uma Situação Doméstica Mais Leve


Ē muito mais fácil ter sexo com outra pessoa que não compartilha a
nossa vida diária com todos os seus problemas e que não está
cansada ao fim de um dia de trabalho duro ou com as crianças. É
muito mais leve se procuramos isto fora do relacionamento com o
nosso parceiro usual. Há uma grande diferença na qualidade dessa
experiência sexual com outra pessoa.

Bem, qual é a motivação?

Alívio e tornar a nossa situação mais leve.

Bem, penso que há várias maneiras de se tornar a situação mais fácil.


Precisamos ter em consideração a causa e o efeito. Poderíamos correr,
fazer algum esporte, ir ao cinema ver um filme, masturbar no banheiro,
ou ter sexo com uma prostituta, uma pessoa não comprometida ou com o
parceiro de outra pessoa. Na nossa busca de tornar a nossa situação mais
leve, qual destas escolhas seria a menos destrutiva e qual delas seriam
mais? São todas iguais?

Uma forma de não-apercebimento ou de ignorância diz respeito à causa e


efeito cármicos. Podemos pensar que as nossas ações não terão
consequências ou então não queremos pensar sobre elas. Mas precisamos
pensar sobre quais efeitos surgirão do nosso comportamento nesta
situação, não só em nós, mas também no nosso parceiro, no parceiro da
outra pessoa, se tiverem um, e em todas as crianças envolvidas. Temos
até de pensar sobre as consequências na comunidade como um todo, uma
vez que vocês vivem numa comunidade pequena e íntima. Em alguns
casos, se provamos uma fruta exótica, quando voltamos ao pão e água
ficamos ainda mais infelizes.

É claro, muito depende da situação individual. Mas realmente temos que


examinar a nossa motivação, todas as pessoas envolvidas e os seus
sentimentos e, a um nível mais básico, o nosso relacionamento com o
nosso parceiro. Precisamos examinar as consequências de cada uma das
escolhas disponíveis. Não é assim tão fácil. Será possível obter esse alívio,
tornar mais leve a situação, de uma maneira que não seja a de procurar
ter um caso sexual com outra pessoa? Ou essa é a única maneira? E se
pensarmos que é a única maneira, então, “por que é essa a única
maneira?” torna-se uma pergunta importante. Será que ter-se um caso
sexual é uma maneira de demonstrar afeição a essa outra pessoa porque
temos sentimentos de amor profundo por ela; ou será que fazemos sexo
com qualquer pessoa que está disposta e disponível? Essa também é uma
pergunta interessante.

E mais, também precisamos examinar o nível que queremos atingir na


nossa prática espiritual. Estamos seguindo para a liberação ou para a
iluminação total? Se esse for o caso, queremos evitar qualquer coisa que
irá causar sofrimento ou limitar a nossa habilidade de ajudar os outros.
Desse modo, refreamo-nos de quaisquer casos extra maritais, uma vez
que certamente trarão mais problemas que, por fim, farão com que os
outros percam a confiança em nós. Ou estamos querendo melhorar o
samsara? Nesse caso, tentaríamos escolher a menos pesada das ações
destrutivas e, ainda melhor, tentaríamos encontrar uma solução
eticamente neutra. Este seria o caso mesmo se não estivéssemos seguindo
um caminho espiritual.

Relacionamentos Insatisfatórios
Se estivermos almejando a liberação, por exemplo, isso significa que
temos de permanecer numa situação em que nos sentimos
insatisfeitos ou muito infelizes? Como podemos saber quando é hora
de sairmos do relacionamento?

Quando um relacionamento é mutuamente destrutivo e somos incapazes


de remediá-lo, é certamente hora de terminar o relacionamento. Os
ensinamentos budistas nunca dizem que temos de permanecer numa
situação má ou negativa. Mas é importante ser honesto com a outra
pessoa. Se vamos sair do relacionamento, temos de sair do
relacionamento. Não ficamos no relacionamento e começamos a ver outra
pessoa ao mesmo tempo porque é provável que isso apenas piore a
situação.

Eu penso que uma das razões para relacionamentos insatisfatórios e


para os seus enormes problemas é entrar-se num relacionamento
com a expectativa que durará para sempre – a idéia de “até que a
morte nos separe”

Do ponto de vista budista, pensamos em termos de inúmeras vidas,


passadas e futuras. Um relacionamento íntimo com alguém não é algo
limitado apenas a esta vida. Se tivermos um relacionamento forte com
alguém isto é devido a uma conexão cármica em vidas precedentes. Do
mesmo modo, quando terminamos um relacionamento, a conexão
cármica não fica a zero e também não é o caso que nunca mais iremos
encontrar ou ter qualquer relação com essa pessoa em vidas futuras. Não
podemos jogar alguém para o lixo como jogamos um repolho velho que
apodreceu.

Assim, se nós e os nossos parceiros decidirmos que o melhor é terminar o


relacionamento, quer seja por um divórcio, uma separação ou deixar de
ter relações sexuais, o melhor é tentarmos terminá-lo numa nota positiva
em vez de negativa. Se possível, tentamos manter um relacionamento
amigável depois da separação, mesmo se apenas com a nossa atitude para
a outra pessoa. Isto é especialmente importante se houver crianças. E se
ambos vivem na mesma pequena comunidade, quando nos encontramos
um com o outro, precisamos tentar ser amigáveis. Se formos hostis um
com o outro, isso terá inevitavelmente um efeito negativo nos outros à
nossa volta.

Compreendi corretamente, então, que a ligação cármica com alguém


não acaba ao terminarmos um relacionamento íntimo com a pessoa?
O relacionamento apenas muda a sua expressão? A ligação apenas
muda de forma e, assim, mesmo quando eu sou mau e hostil com o
meu parceiro anterior, ainda me estou relacionando com a pessoa?
Assim, você está dizendo que é melhor relacionarmo-nos com a
pessoa de um modo positivo, mas de um modo menos intenso e
íntimo. Isso é permitir que a forma (do relacionamento) mude
mantendo em mente a idéia que há uma corrente de vida e uma
continuação do karma. Compreendi corretamente?

Sim, embora possa não ser fácil, especialmente se quem iniciou a


separação foi o nosso parceiro e ainda nos sentimos magoados ou tristes.
Mas, de qualquer maneira, precisamos superar essas mágoas e tentar
desenvolver uma atitude mental positiva. A coisa principal é continuar
com a nossa vida, sem nos agarrarmos a pensamentos sobre o passado.
De qualquer modo, não temos outra alternativa. A vida continua.

Se ainda nos estivermos a identificar como parte de um relacionamento


insatisfatório ou mau, continuaremos a sentir-nos magoados e a ter
sentimentos negativos em relação ao nosso ex-parceiro. Mas, se tivermos
começado um novo capítulo nas nossas vidas e nos identificarmos com
ele – quer seja um capítulo novo como sendo agora uma pessoa
descomprometida ou como sendo uma pessoa em outro relacionamento –
teremos uma estabilidade emocional muito mais forte. Com essa
estabilidade emocional e auto-confiança na nossa habilidade de
continuarmos com as nossas vidas seremos capazes de ter uma atitude
positiva em relação ao nosso ex-parceiro. Seremos capazes de focalizar
nas boas qualidades dele ou dela em vez de nos seus defeitos e nas
dificuldades que tivemos juntos.

Expressando um sentido de relacionamento com todos


Não estamos relacionados e conectados de alguma maneira com
tudo e todos? Apenas fazemos mais dessa conexão quando estamos
num relacionamento íntimo com essa pessoa.

Isso volta à mesma pergunta de antes, de como expressar este


relacionamento e se é necessário expressá-lo ou não através do sexo com
alguém, dando as mãos, comendo juntos, saindo juntos e assim por
diante?

Esta pergunta de como mostrar afeição é bem difícil porque, se


examinarmos a resposta apropriada do Dharma, seria que precisamos
demonstrar afeição da forma que a outra pessoa melhor a possa receber e
compreender sem a interpretar mal. A nossa demonstração de afeto
necessita comunicar-se de um modo exato à outra pessoa, não?

Agora, com alguns seres, isso é fácil. Eu posso demonstrar afeição ao meu
cão fazendo festinhas na cabeça dele ou dando-lhe um osso. Essas são
maneiras apropriadas de demonstrar afeição a um cão, que o cão pode
compreender e apreciar. Eu não pensaria em demonstrar afeição ao meu
cão da mesma maneira que faria a um ser humano, embora às vezes possa
querer abraçar o meu cão. Mas o meu cão não gosta de ser abraçado. Isso
seria uma maneira imprópria de demonstrar afeição a um cão. Os cães,
por outro lado, demonstram afeição uns aos outros, especialmente se
estiverem a ponto de fazer sexo, com o macho a morder a fêmea no
pescoço. Contudo, para um ser humano, isso seria uma forma imprópria
de demonstrar afeição ao seu cão ou a outro ser humano.

Do mesmo modo, entre seres humanos, as maneiras corretas e


impróprias de demonstrar afeição a homens, mulheres, crianças, adultos,
indianos, italianos, alemães, ingleses, americanos, japoneses e assim por
diante serão todas diferentes. As diferenças encontram-se não só na
pessoa a quemdemonstramos afeição. Dependem também do fato de
sermos um homem, mulher, uma criança ou um adulto e das posições na
vida de cada um de nós, das circunstâncias nas quais nos encontramos,
das pessoas à nossa volta e assim por diante. No entanto, frequentemente
temos a crença inconsciente de que “os meus sentimentos são verdadeira
e solidamente existentes, e tenho de expressá-los à MINHA maneira.” Aí
há um grande EU, EU, EU, que nos leva a agir compulsivamente.

Este agarramento a um “EU” sólido é extremamente difícil de superar. É


muito difícil porque estamos enganados quando pensamos que somos
uma pessoa amorosa ao expressar a nossa afeição. Nunca consideramos
se isso faza outra pessoa sentir-se incômoda ou que isso poderia ser
destrutivo. Pensamos que somos afetuosos, e que se a outra pessoa não
aceita a nossa demonstração de amor e de afeição, está rejeitando-nos.

Por outro lado, se demonstramos afeição da maneira que a outra pessoa


seria capaz de aceitar e compreender, mas que não é a MINHA maneira,
sentimo-nos insatisfeitos. A demonstração de afeição não nos parece ser
real. Por exemplo, digamos que a MINHA maneira de demonstrar afeição
é ter contato físico com alguém, como dar um abraço à pessoa, e essa é a
única maneira que sinto ser real. Fazer isso seria um grande problema
para um homem que sente afeição por uma mulher muçulmana
tradicional que não seja sua esposa.

A Necessidade de Meditação para Lidar com um Desejo Súbito


E a situação de lidar com o desejo imediatamente quando ele surge,
com esta ânsia de prazer que vem de repente? Por exemplo,
encontramo-nos com alguém; sentimo-nos próximos da pessoa e
temos uma maneira agradável de nos compreendermos um ao
outro. Então subitamente sentimo-nos atraídos e queremos fazer
sexo. Essa é uma situação muito comum que penso que todos
conhecemos. É fácil compreender, compartilhar e seguir todas as
idéias que você explicou. Mas nesse momento, não queremos saber
delas. Confiamos nessa emoção que surge e pensamos que é não faz
mal seguir em frente. Como podemos lidar com isso, então, no
momento? Como você já disse, a sexualidade em si não é o problema;
é com a emoção que está por trás dela que precisamos trabalhar.

Bem, você sabe, esse problema não é limitado ao sexo. Por exemplo, as
crianças portam-se mal e, nesse momento, ficamos irritados e gritamos
com elas. Sabemos intelectualmente que isso não irá ajudar; que não é a
melhor maneira de resolver a situação. Mas a situação é tão forte que
ficamos instintivamente irritados e gritamos. O caso com fazer sexo com
alguém é a mesma coisa. Não há grande diferença em termos de lidar com
a emoção no momento.

Em ambos os casos, a única coisa que vai ajudar é se tivermos feito muita
prática de meditação previamente. Com a meditação, construímos um
hábito benéfico de estar atentos e cientes do que se está a passar, de
aplicar os oponentes e assim por diante. Com a familiaridade, os nossos
novos hábitos irão também surgir nesse momento em que surge o desejo
e seremos capazes de os aplicar.

O “Síndrome do Cão Esfomeado” e alimentar o demônio

Há um outro fator que pode afetar a nossa dificuldade de controlar o


desejo sexual que surge subitamente quando estamos com alguém. Isto
pode não ser relevante a todos, mas algumas pessoas acham que “aqui
está uma oportunidade de ter sexo com alguém” e inconscientemente
sentem-se como um cão esfomeado. Quer já tenham um parceiro sexual
ou não, pensam, “se não tirar proveito desta oportunidade, não irei ter
outra”. Assim, mesmo se a pessoa não for a melhor escolha de parceiro,
aproveitam o que podem. Uma variação desta síndrome ocorre
frequentemente com as pessoas que experienciam uma crise de meia-
idade, com a sensação de que esta é a última possibilidade antes de se
tornarem demasiado velhos e pouco atraentes

Se já tivemos este tipo de síndrome, examinar porque nos sentimos como


um cão esfomeado pode ser muito interessante. Precisamos explorar o
agarramento a um “eu” sólido que está subjacente ao nosso sentimento
de ânsia por afeição – atitudes como: “eu mereço receber afeição”,
“porque é que todos recebem afeição e eu não”, “ninguém me ama” e
assim por diante.
Uma maneira útil de superar este síndrome é o método desenvolvido por
Tsultrim Allione, chamado “ alimentar o demônio.” É uma adaptação que
ela desenvolveu a partir da prática budista chod para eliminar o apego ao
“eu” alimentando os demônios com nosso próprio corpo.

O método é colocar uma almofada à nossa frente e sentar em frente dela,


para identificar algum problema emocional difícil que temos, digamos, o
de estarmos esfomeados por afeição. Esta sensação de estarmos
esfomeados tem-nos feito vaguear por aí compulsivamente tentando
encontrar outros parceiros. Imaginamos e tentamos sentir o problema
escondido dentro de nós, como uma espécie de demônio que nos
assombra. Tentamos então imaginar a aparência desse demônio. Que tipo
de forma e de cor tem? É escorregadio como o limo? Tem mil braços e
mãos, todas estendidas tentando agarrar alguém? Tem escamas afiadas
nas suas costas e caninos pontiagudos? É grande e gordo, ou pequeno e
emaciado?

A seguir imaginamos que o demônio sai de dentro de nós e senta-se na


almofada. Perguntamos-lhe então “o que você quer?” Depois, imaginamos
que eleresponde ou que nos sentamos na almofada olhando para trás
onde estávamos e respondemos, “eu quero afeição. Eu quero ter afeição
sem que ninguém a interrompa ou a tire de mim” ou o que quer que seja
que o demônio quer.

Depois voltamos para onde estávamos sentados antes e, na nossa


imaginação, alimentamos o demônio. Damos o que quer – neste caso,
afeição física. Damos-lhe uma quantidade ilimitada, até que o demônio
esteja satisfeito. Isto pode ser muito eficaz. Tsultrim Allione viu grandes
benefícios com este método, especialmente com os pacientes de SIDA e de
câncer. Parece ajudar a fortificar o sistema imune. Por favor,
experimentem este método agora com algum problema que possam ter.

[Meditação]

Os Efeitos de Alimentar o Demônio

Vocês têm alguns comentários ou perguntas sobre a prática que


gostariam de fazer?

Encontrei uma grande satisfação ao fazer a prática. Senti-me


realmente capaz de dar tudo e normalmente não sinto isso. Mas
quando fiz a meditação, senti realmente que há tanto que posso dar.
Penso que é um efeito secundário significativo. Além de se alimentar
esse demônio e de se tratar deste problema, a prática também traz a
sensação de que há tanta coisa, ou riqueza que pode ser dada.

Este sentimento de riqueza é semelhante ao que surge na prática tântrica


quando consagramos as oferendas. Primeiro purificamos os objetos que
estamos a oferecer, como as flores, incenso, velas ou comida, com nossa
compreensão da vacuidade. Depois transformamo-los em néctares e em
outras formas puras. Finalmente, multiplicamo-los para que se tornem
infinitos em quantidade, para então fazer oferendas de maneira ilimitada.
Assim, nunca irão acabar. Se realmente interiorizarmos este método de
fazer oferendas, então, nesta prática de alimentar o demônio, sentimos
que temos uma quantidade infinita de afeição ou atenção a dar ou o que
quer que seja que o nosso próprio demônio particular queira.

Eu também achei muito natural dar ao demônio o que ele quer. Mal
tenha o que quer ele vai-se embora. Mas como chegamos a isso?
Antes, estávamos tão identificados com o demônio dentro de nós
que não queríamos dar nada a ninguém. É realmente estranho.

Sim, é estranho. Funciona porque estamos a dar ao demônio o que nós


próprios queremos e precisamos e isso é muito terapêutico. Dar a outro o
que nós próprios precisamos é a solução. Se tivermos um mau
relacionamento com um ou ambos os nossos pais, por exemplo, a única
maneira de verdadeiramente superá-lo é sendo um bom pai para os
nossos próprios filhos e para as outras crianças. Precisamos dar o que nós
queríamos que nos tivessem dado; não de uma maneira neurótica mas de
uma forma positiva. Isso pode ser muito terapêutico. Muitas pessoas
seguem este método em termos de dar às suas crianças as vantagens e as
oportunidades materiais que lhes faltaram na juventude. Mas dar-lhes a
atenção e a afeição que nos possa ter faltado é psicologicamente mais
importante.

Dar ao demônio deu-me uma sensação de grande satisfação.

Acho que é assim porque com a prática dessenvolvemos a autoconfiança


de que somos capazes de dar. Que temos algo para oferecer e somos
capazes de oferecê-lo a alguém que aceita, ou seja, ao demônio, aumenta o
nosso sentido de autodignidade.

Uma razão mais profunda que a prática funciona é porque, como na


prática do chod, estamos a eliminar o “eu” sólido já que identificamos
nosso problema com o demônio, que representa a identidade do “eu”
sólido. Por exemplo, se o demônio quer ser amado e nós lhe damos
compreensão e amor ilimitado paraque fique satisfeito e se vá embora,
aquele “eu” sólido que se identificou com o demônio já não está mais lá.
Isto nos dáa oportunidade de reforçar um sentido saudável do “eu”.
Tendo demonstrado a nós próprios que somos capazes de dar,
nossaautodignidade baseada nesse sentimento saudável do “eu” cresce
mais forte. Isto nos permite dar livremente aos outros o que nós próprios
queríamos. Esse é o propósito da prática chod: eliminar o “eu” sólido.

Ao fazer o exercício, o meu demônio era o sentimento de ansiedade


que sinto dentro de mim e que me faz tentar entender o que é que as
pessoas esperam de mim. O que eu dei ao demônio foi o espaço para
ser ele próprio, sem ter de estar sempre agradando os outros. Tive
uma sensação de grande liberação.

Esse é um bom exemplo de lidar com o problema subjacente que nos


pode levar a ter casos sexuais fora do nosso relacionamento. Podemos
sentir que dentro do nosso relacionamento íntímo temos sempre de fazer
o que o nosso parceiro espera de nós. Assim, sentindo-nos
claustrofóbicos, tentamos compulsivamente encontrar outra pessoa com
quem possamos relaxar. Como já ouvimos, podemos divertir-nos com ela
sem as pressões e os problemas que sentimos em casa. Mas, se tivermos
dado ao demônio e, assim, a nós próprios, o espaço para sermos nós
próprios, nossa sensação de claustrofobia começa a desaparecer.
Podemos então ficar mais relaxados mesmo numa situação doméstica
difícil, e permite-nos também dar espaço ao nosso parceiro.

Práticas meditativas como esta são muito úteis para lidarmos com o
descontentamento nas relações sexuais que nos podem levar a
compulsivamente procurar sempre mais, mais e mais. Esta compulsão é
um demônio, por isso alimentem o demônio!

Como Lidar com a Atração Física pela Beleza


Você pensa que o descontentamento com os nossos relacionamentos
está quase sempre ligado à nossa atração por outras pessoas?

Não, não necessariamente. É possível obtermos tremendo prazer da


beleza dos outros sem que isso nos torne ansiosos, desde que não nos
agarremos à pessoa. Podemos simplesmente apreciar a sua beleza. Não
temos de tocar em tudo que achamos bonito, por exemplo, um belo pôr
do sol ou uma fogueira.

Ver e apreciar a beleza não precisa causar disturbios. Quando nossas


mentes estão cheias de agarramento, com base no sentimento de um “eu”
sólido que se sente talvez privado de amor, ficamos na verdade
perturbados quando encontramos beleza numa outra pessoa. Isto
significa que não podemos apreciar essa beleza puramente, livre da
confusão.

Na prática do tantra, fazemosoutra transformação a respeito das


oferendas. Imaginamos que somos capazes de apreciá-las de uma
maneira pura, sem nenhuma confusão. Fazer disto um hábito benéfico é
uma das razões para fazermos tantas oferendas nos rituais tântricos.
Imaginamo-nos apreciando estas oferendas sem nenhum distúrbio, livres
de confusão, à maneira de um Buda. E então tentamos realmente apreciá-
las dessa forma. Com bastante prática e familiaridade, apreciamos a
beleza das pessoas sem ficar inquietos ao vê-las. Já não sentimos a
compulsão de tocar na pessoa ou de ter um encontro sexual com elas.
Com essa atitude mais relaxada e mais aberta acabamos por obter mais
prazer.

Para compreender o que quero dizer com isto, pensem no exemplo de


como nos sentimos relaxados quando podemos apreciar a beleza de um
pássaro selvagem que vemos no campo, sem tentarmos agarrá-lo e tê-lo
como “meu”. Se nos agarrarmos à sua beleza, tornamo-nos tensos.
Tentamos apanhá-lo e, se sucedermos, botá-lonuma gaiola na nossa casa.
O pobre pássaro está agora numa prisão. Você acha que ele se sente feliz?

O Impulso de Tocar em Alguém


Estamos a lidar aqui com diferentes significados. Poderíamos
compreender esta questão como significando que não faz mal ver
desde que a gente não toque. Como é que tocar faz tanta diferença,
especialmente se podemos fechar a nossa mão à volta de algo e
sentir a sua forma?

Essa é uma pergunta muito interessante e importante. Em termos da


análise da vacuidade, se tocarmos em algo, isso o torna real? Será que
tocar faz-nos reais? Precisamos investigar isso profundamente. Afinal, há
pessoas psicologicamente perturbadas que sentem compulsivamente que
têm de tocar em tudo, como em todas as roupas em uma loja.

Quanto ao segurarmos algo na nossa mão, podemos pensar sobre o


agarramento à existência verdadeira, veremos que ele é um modo forte
de nos aferrarmos mentalmente a um objeto. Quando, além desse
aferramento mental,agarramos fisicamente seguramos algo nas nossas
mãos, o nosso agarrar físico reforça o nosso agarrar mental. Fazemos isso
porque sentimo-nos mais seguros desse modo, por exemplo, como
quando seguramos algo, quando abraçamos alguém ou quando alguém
nos abraça. Sentimo-nos mais seguros até quando sentimos um cobertor
nos cobrindo. Embora a teoria budista da cognição diga que a consciência
visual apreende o que vemos, a consciência auditiva apreende sons e
assim por diante, não experimentamos estas cognições conscientemente
como um agarramento físico de seu objeto.

Há também uma grande diferença entre tocar ou segurar uma peça de


roupa e tocar ou dar a mão a alguém ou acariciar uma parte do seu corpo.
A diferença está relacionada com a necessidade biológica e psicológica
que os seres humanos e a maioria dos animais têm de afeição e de contato
físico com outros seres. Os médicos demonstraram que a falta de contato
físico e de afeição dificulta seriamente o desenvolvimento de uma criança.
Com adultos e especialmente com idosos, o contato físico humano e a
afeição também desempenham um papel importante no fortalecimento
do sistema imune para a boa saúde e a longevidade. Assim, no exemplo de
querer tocar ou segurar alguém, fatores biológicos contribuem para o
nosso impulso.

Não obstante, há uma diferença entre o contato físico saudável e a


obsessão ou compulsão por ele. Também precisamos discriminar entre as
maneiras apropriadas e impróprias de contato físico em relação à grande
variedade de pessoas que conhecemos e com quem nos encontramos.

O Ímpeto de Experimentar o Prazer do Orgasmo


Às vezes abraçar alguém não é suficiente. De repente, leva-nos ao
sexo. O que podemos fazer quando sentimos que abraçar não chega?

Precisamos examinar com muito cuidado o nosso ímpeto de querer


experienciar o orgasmo. Quando os homens têm um orgasmo, ele marca o
fim do seu prazer sexual. A experiência do orgasmo é uma liberação
extasiante da tensão que se acumula antes e durante o ato sexual, mas ele
traz não só um fim à tensão comotambém um fim ao êxtase. Assim, se o
homem estiver à procura do prazer sexual prolongado, ter um orgasmo é
autoderrotante. Para as mulheres, embora possam experienciar orgasmos
múltiplos e embora o seu êxtase não termine com o primeiro deles, não
obstante, a energia do êxtase também chegará, mais cedo ou mais tarde,
ao fim, após a sua liberação.

A pergunta interessante então é “o que é que na verdade queremos?


Queremos esse orgasmo, que irá terminar o evento, ou queremos a
afeição e o contato físico que acontece de antemão?” Para muitas pessoas,
o último é mais importante do que o orgasmo final, especialmente quando
começamos a ficar mais velhos. Mesmo que não seja tão dramático, é, de
muitas maneiras, mais agradável. E se você disser que depois do orgasmo,
podemo-nos deitar juntos e continuar a partilhar afeição, bem, esse pode
ser o caso. Mas os fumadores geralmente sentem que agora têm de fumar
um cigarro e a maioria das pessoas, em geral, adormece rapidamente.

É interessante compararmos o orgasmo com a coceira. Se praticamos a


meditação com atenção mental e focalizamos a nossa atenção numa
coceira, descobriremos que é, na verdade, uma sensação extasiante. Mas é
extasiante demais e, assim, sentimos compulsivamente que temos de
coçar e eliminá-la. É demais e, por isso, eliminamos a sensação extasiante.
O que acontece com o orgasmo é semelhante. Quando o prazer sexual
aumenta ao nos aproximarmos do orgasmo, somos compulsivamente
levados a trazer o êxtase ao ponto aonde irá terminar. Na verdade,
estamos destruindo a consciência extasiante, assim como destruímos
uma coceira. É muito interessante.

Se analisarmos assim esse nosso ímpeto compulsivo de experienciar um


orgasmo, isso pode-nos ajudar a ficar satisfeitos com as maneiras mais
adequadas de demonstrar e de receber afeição dos parceiros das outras
pessoas, ou das pessoas que estão fora do nosso relacionamento íntímo.
Ser afetuoso com alguém não tem de nos levar ao ato sexual e ao
orgasmo.

Como Lidar com a Tensão Sexual


Eu li num jornal que quando estamos apaixonados e fazemos sexo
nesse estado mental eufórico, certos hormônios são libertados, e
estes formam um vicio. Por causa disso, ficamos viciados a esses
estados eufóricos. Num relacionamento em que já não estamos
apaixonados com o nosso parceiro e em que o sexo já não é excitante
mas apenas rotina, a liberação dos hormonios não é tão forte. Assim,
a procura desse estado eufórico leva-nos a procurar outros, a
procurar um parceiro mais excitante fora do relacionamento.

Pensem do exemplo de dois ímãs. Se mantivermos dois ímãs ligeiramente


separados, a tensão e, num certo sentido, o excitamento serão maiores do
que se os ímãs tocarem um no outro. Se estivermos procurando o tipo de
euforia hormonal que os jornais descrevem, pode ser muito mais
emocionante estarmos simplesmente na companhia de uma pessoa que
achamos atrativa, mas que seria um parceiro sexual impróprio, em vez de
estarmos intimamente com eles na cama.
Pensem sobre isso. Quando temos uma atração forte por alguém e
estamos olhando para ela, o nosso campo de atenção fica ocupado com
isto. Mas se abraçarmos a pessoa durante muito tempo, ficamos a olhar
para a parede ou para a cama e não para a pessoa; ou temos os nossos
olhos fechados. Na maioria das vezes o abraço, ao continuar, torna-se
chato e começamos a ficar ligeiramente frustrados. A nossa mente
começa a vaguear. É muito difícil manter nossa atenção focalizada nessa
pessoa. Podemos começar até a fantasiar sobre outra pessoa qualquer.
Por outro lado, se estivéssemos um pouco afastados dessa pessoa,
ficaíamos muito focalizados nela, sentindo algo como uma tensão
magnética entre os dois.

O truque é apreciarmos essa tensão magnética, sem a obsessão de


destruí-la, como destruímos a coceira ou a tensão crescente de um
orgasmo. É como superar ser sensível demais a cosquinhas. Muitas
pessoas ficam malucas por isto, mas, por causa disto, não apreciamos a
sensação agradável de nos fazerem cosquinhas. O que temos de fazer é
decidir que não temos problemas com isto. Compreendendo que é apenas
uma questão da nossa atitude, já não nos identificamos como uma pessoa
que sente muitas cosquinhas. Com a mudança de atitude somos capazes
de relaxar e de apreciar a sensação das cosquinhas.

Podemos fazer algo semelhante com o tipo de tensão que ocorre quando
vemos um desconhecido/a bonito/a, que nos excita, ou com a tensão de
estar com esta pessoa, se fizermos amizade com ela, ou até com a tensão
de termos um contato afetuoso com ela. Podemos simplesmente apreciar
o prazer emocionante – quer o descrevamos ou não em termos de um
rush hormonal – sem termos de destruí-lo através do comportamento
sexual impróprio.

Acho que tive uma experiência similar no yoga quando fizemos


exercícios a dois. Às vezes tocamos na outra pessoa e é bom tocar,
mas chamamo-lo “o toque vazio.” É um tipo de toque no qual a
consciência fica focalizada na mão e dos sentimentos, mas sem
empurrar ou puxar, e sem a poluição da atração ou do apego a ele.
Estar apenas com o contato e a sentindo o relacionamento, o calor e
a boa vontade que está no toque. Eu posso apreciar isso muito, sem
que tenha de se tornar sexual.

Esse é um bom exemplo do que temos estado a falar. Assim, como você
vê, tais maneiras de se lidar com os impulsos para o comportamento
sexual impróprio são possíveis.
Conclusão

Acredito que esses sejam alguns dos pontos cruciais da ética sexual
Budista no que diz respeito a minimizar os problemas e a infelicidade que
nos causamos com nosso comportamento sexual. Precisamos examinar
com muita honestidade nossa motivação ao nos relacionarmos
sexualmente, tanto com nosso parceiro quanto com parceiros alheios,
caso tenhamos essa propensão. Também precisamos analisar mais de
perto o significado que o sexo tem para nós. Será que o estamos
idealizando, ou temos uma visão realista? Se estamos interessados em
nos liberar dos problemas - ou mesmo que nosso objetivo não sejam tão
elevados - precisamos evitar comportamentos sexuais motivados por
emoções perturbadoras e algumas fantasias sexuais. E é claro que
precisamos nos esforçar em não causar problemas para o outro através
de nosso comportamento sexual, apesar de ser muito difícil termos uma
garantida do efeito de nosso comportamento sobre a outra pessoa.
Lembrem-se, não há nada na ética Budista que diga, “você deve fazer
desta maneira e não daquela”. É tudo uma questão de querer parar de se
causar problemas e ter uma compreensão realista das causas e efeitos
comportamentais.
A Ética Sexual Budista: As Principais
Questões
Dr. Alexander Berzin

Os textos clássicos sobre ética sexual budista incluem uma ampla variedade de
condutas sexuais inadequadas. Motivados por emoções perturbadoras, como o
desejo obsessivo, desenvolvemos potenciais kármicos que no futuro
amadurecem como infelicidade. Aqui, analisamos se a inadequação de
determinadas condutas sexuais é simplesmente uma questão cultural ou esses
comportamentos inevitavelmente geram problemas. Qual será nossa margem
de manobra ao tentarmos enquadrar a ética sexual budista nos costumes da
sociedade ocidental moderna?

Os Sistemas Éticos Ocidentais: Legalista e Humanista

O tópico para esta noite é sobre a perspectiva budista acerca da ética


sexual. Em geral, no budismo, tentamos sempre seguir o caminho do meio
e, assim, com relação à sexualidade, queremos evitar dois extremos. Um
extremo é o de sermos muito austeros e severos e de considerarmos a
sexualidade como algo fundamentalmente sujo e mau. Mas também
queremos evitar o outro extremo, que é a atitude em relação ao sexo em
que tudo é OK: “Estamos apenas nos expressando”.

No budismo, o caminho do meio ensina uma abordagem ética com relação


à sexualidade que evita estes dois extremos. Para seguí-lo, no entanto,
precisamos de compreender a perspectiva budista em relação à ética.
Como existem muitos sistemas éticos diferentes, precisamos de ter o
cuidado de não projetar no budismo os nossos próprios sistemas éticos.
Por exemplo, a ética bíblica ensina um conjunto de leis dadas por uma
autoridade superior, por Deus. O comportamento ético, então, é uma
questão de obediência às leis. Se obedecermos às leis de Deus somos
“boas pessoas” e seremos recompensados. Se desobedecermos, somos
“maus” e seremos punidos.

No Ocidente, o outro principal sistema ético que herdámos é o da Grécia


antiga. Este é muito semelhante ao bíblico, mas em vez das leis serem
emanadas de Deus, eram emanadas de uma legislatura eleita para o
governo. Uma vez mais, a ética é uma questão de obediência. Se
obedecermos às leis civis somos “bons cidadãos”; se desobedecermos,
somos “maus cidadãos”, criminosos e somos postos na cadeia.

Podemos ver que estes dois sistemas éticos legalistas envolvem a culpa e
fazem com que a sintamos. Ou seja, ambos são baseados no julgamento.
Há certos atos que são julgados como moralmente “maus” e outros que
são julgados como moralmente “bons”. Se cometermos algo “mau”, somos
culpados. Quando transpomos para a sexualidade este tipo de abordagem
ética de julgamento, então verificamos que frequentemente sentimentos
de culpa acompanham o nosso comportamento sexual, mesmo que
ninguém nos agarre fazendo algo de “mal”. Isto acontece porque nos
transformamos em juízes e nos julgamos a nós próprios, mesmo que
ninguém nos esteja julgando.

Uma terceira forma da ética ocidental é a moderna ética humanista. Esta é


baseada segundo o princípio de não se fazer mal a ninguém. Podemos
fazer seja o que for desde que não causemos mal. Se prejudicarmos
alguém, isso não é ético. Geralmente, misturamos a ética humanista com a
legalista de modo que se ferirmos alguém nos sentimos mal e muito
culpados com isso.

A Ética Budista do Não-Julgamento

A ética budista é completamente diferente de todas as três. Não é baseada


na obediência à lei. Nem é apenas baseada na tentativa de evitar ferir os
outros, embora naturalmente tentemos, tanto quanto possível, não
prejudicar ninguém. A ética budista é mais profunda do que isso. De
acordo com o budismo, a base para sermos uma pessoa ética reside no
evitar de ações motivadas pelo desejo, raiva ou ingenuidade e em se ter
uma consciência discernente correta, ou seja, a habilidade para se
discernir entre as motivações e as ações construtivas e destrutivas. Aqui,
as motivações e os comportamentos construtivos e destrutivos se
referem aos que constroem tendências e hábitos nos
nossos continuums mentais que algum dia, no futuro, farão com que
experienciemos como sua consequência a felicidade ou o sofrimento.

Ninguém criou regras com relação ao que é construtivo ou destrutivo.


Indicam apenas a maneira natural do universo: algumas ações nos
causam sofrimento e outras não. Por exemplo, se pusermos a nossa mão
no fogo, nos queimamos e isso faz doer. Essa é uma ação destrutiva, não
é? Ninguém criou essa regra; simplesmente, é o modo natural como as
coisas funcionam. Assim, se alguém quiser colocar sua mão no fogo, isso
não faz dela uma má pessoa. Talvez faça dela uma pessoa tola ou alguém
que não compreende a causa e o efeito, mas certamente não faz dela uma
pessoa “má”.

Assim, o princípio fundamental da ética budista é o de tentarmos


compreender os tipos de motivação e de comportamento que são
destrutivos e os que são construtivos. Ou seja, precisamos de aprender a
distinguir entre o que nos vai causar infelicidade e o que nos vai trazer a
felicidade. E depois a decisão é nossa; a responsabilidade do que iremos
experienciar no futuro é nossa. É como, por exemplo, aprendermos tudo
sobre os perigos do tabaco e depois a decisão, de fumar ou não, é nossa.
Se alguém agir destrutivamente e causar mal a si próprio, será objeto de
adequada compaixão. Seria impróprio olharmos para esse alguém com
desprezo, com uma atitude moralista ou com pena. Essa não é a atitude
budista. É tristeque não compreendam a realidade.

O budismo tem esta mesma abordagem com a ética sexual. É uma


abordagem de não-julgamento. Determinados tipos de comportamento e
motivação sexuais são destrutivos e nos causam infelicidade, enquanto
que outros são construtivos e nos trazem felicidade. E, torno a repetir, é
conosco. Se quisermos ter montes de problemas devido ao nosso
comportamento sexual, vamos em frente e cedemos aos nossos desejos.
Mas, se não quisermos ter problemas, então há certas coisas que
precisamos de evitar.

Podemos facilmente compreender a diferença com este exemplo. Se


quisermos praticar sexo desprotegido com uma prostituta, bem, isso é
ingénuo e muito tolo porque corremos provavelmente o risco de ficarmos
infectados com SIDA. Mas isso não faz de nós uma má pessoa. A escolha é
nossa. Repare, é uma atitude completamente diferente com relação ao
sexo. Essa é a chave para compreendermos a abordagem budista.

Distinguindo o Comportamento Construtivo do Destrutivo

A fim de examinarmos detalhadamente a ética sexual budista, precisamos


de compreender a diferença entre o que é construtivo e o que é destrutivo
de acordo com a perspectiva budista. Em geral, o budismo faz distinção
entre as ações com confusão e as sem confusão. Essas expressões são
geralmente traduzidas como “ações contaminadas” e “não contaminadas”
– contaminadas com a confusão sobre a nossa própria natureza, a
natureza dos outros e a natureza da realidade em geral. A confusão
contaminante conduz ao desejo, à raiva ou simplesmente à ingenuidade
que motiva então as nossas ações.
As ações sem confusão requerem a cognição não-conceptual da vacuidade
– a compreensão de que as nossas fantasias projetadas sobre a realidade
não se referem a algo real. É muito difícil de se ter este tipo de
compreensão, mesmo conceptualmente. Assim, para a maioria de nós,
todas as nossas ações envolvem a confusão. Surgem da confusão e são
acompanhadas pela confusão. Estes são os tipos de ações envolvidas com
o que chamamos “karma.” Fazem com que continuemos a experienciar
renascimentos incontrolavelmente recorrentes – samsara – cheios de
problemas.

As ações confusas podem ser destrutivas, construtivas ou ainda outras


não-especificadas por Buda. As ações destrutivas estão sempre
misturadas com confusão e são aquelas que amadurecem na infelicidade
e sofrimento. As ações construtivas misturadas com confusão
amadurecem na felicidade, mas na felicidade que não dura e que nunca
satisfaz. As ações não-especificadas também podem estar misturadas com
a confusão. Amadurecem nos sentimentos neutros, sem felicidade nem
infelicidade.

Já vimos exemplo de uma ação destrutiva, o de se fazer sexo desprotegido


com uma prostituta. Tal comportamento está claramente ligado à
confusão sobre a realidade, ingenuidade e geralmente ânsia de desejo.

Como exemplo de uma ação construtiva misturadas com confusão,


considerem o caso de uma mãe que constantemente tenta amimar seu
filho de 24 anos, preparando refeições agradáveis. Criar seu filho é um ato
de amor e uma ação construtiva. Amadurece em sua experiência de
felicidade e bem estar. No entanto, ela também cozinha para ele porque
isso lhe faz sentir útil e prestável. É aqui onde surge a confusão. O filho de
24 anos talvez não queira ser tratado como uma criança que quando não
vem comer a casa é abordado com “por que você não veio comer em casa?
Eu fiz para você uma refeição tão gostosa. Você não tem consideração
nenhuma.” A preparação da refeição está misturadas com a confusão do
agarramento ao “eu, eu, eu. Eu me quero sentir útil, eu quero ter a
sensação carinhosa. Qualquer felicidade que ela possa sentir como
consequência das suas ações carinhosas será precária e instável. Nunca
irá durar muito e nunca será satisfatória. Além disso, sua motivação auto-
centrada irá inevitavelmente lhe trazer frustração, infelicidade e
sofrimento.

Uma ação não-especificada ou neutra, tal como escovar os dentes, pode


estar misturada com a confusão de que podemos tornar nosso hálito
fresco e nos tornarmos atrativos. Mas nós nunca poderemos tornar fresco
esse nosso hálito para sempre, dado que os nossos dentes depressa se
sujam e ficamos com um mau hálito desagradável outra vez. Há aqui uma
confusão sobre a realidade, um certo nível de ingenuidade e um forte
interesse auto-centrado sobre a nossa aparência. Embora escovar os
dentes resulte num sentimento nem feliz nem infeliz – estamos apenas
fazendo o que precisamos fazer – estamos no entanto perpetuando nossa
situação samsárica. Precisamos de repetidamente escovar nossos dentes
para o resto da nossa vida. Não entendam mal este ponto. Isto não quer
dizer que o melhor que temos a fazer é deixar de escovar os dentes.
Simplesmente significa que as ações neutras e repetitivas de cuidarmos
dos nossos corpos samsáricos, quando ligadas ao agarramento a um “eu”
sólido, perpetua a nossa repetitiva existência samsárica, com todos os
seus problemas.

O Amadurecimento do Karma e a Lei da Infalibilidade

Precisamos de compreender com mais clareza aquilo que o budismo quer


dizer com a afirmação de que as ações misturadas com confusão
“amadurecem” na infelicidade, na felicidade samsárica ou num
sentimento neutro que não é felicidade nem infelicidade. Este princípio
diz respeito a todo nosso comportamento quotidiano, incluindo também
o nosso comportamento sexual.

O budismo fala da lei da infalibilidade cármica, da certeza de que as ações


destrutivas amadurecem no sofrimento, a menos que purifiquemos as
tendências cármicas que elas acumularam. Ou, no sentido contrário, se
estivermos experienciando o sofrimento agora, esta experiência
amadureceu das tendências cármicas acumuladas pelo nosso próprio
comportamento destrutivo no passado. A mesma lei é verdadeira em
relação à nossa felicidade normal e às ações construtivas misturadas com
confusão.

Na lei da infalibilidade, é importante compreendermos a palavra


“amadurecer”. “ Amadurecer” em sofrimento não é simplesmente
“resultar” em sofrimento, dado que as nossas ações têm muitos
resultados e a maioria deles são incertos. Por exemplo, quando agimos é
incerto se iremos experienciar felicidade ou infelicidade. Por exemplo,
pisar uma barata; podemos pisá-la e sentirmos um grande prazer em
matar o que consideramos uma coisa horrível. Ou, ao pisá-la, podemos
sentir horror e aversão. Quando ajudamos alguém a fazer uma tarefa
difícil, podemos nos sentirmos felizes ou podemos sentir ressentimento
pela trabalheira.

O que iremos sentir imediatamente após à nossa ação é também incerto.


Após praticarmos sexo desprotegido com uma prostituta, podemos nos
sentir felizes por termos praticado sexo, ou aterrorizados porque
poderemos ser infectados com SIDA. Depois de termos dado uma oferta
em dinheiro a alguém, podemos ficar felizes ou nos arrependermos de o
ter feito e ficarmos infelizes por causa disso. Também são incertos a curto
prazo os resultados das nossas ações. Se assaltarmos um banco, podemos
ser apanhados pela polícia ou podemos nunca vir a ser apanhados. Se
formos honestos no nosso trabalho, podemos ser promovidos e ser felizes
ou, apesar do nosso bom trabalho, podemos ser postos na rua e ficarmos
infelizes. Todos estes tipos de resultados são incertos. A lei da
infalibilidade cármica não se refere a eles.

Nem sequer é certo se o nosso ato irá causar felicidade ou infelicidade à


pessoa a quem cometemos o ato – quer durante o ato, logo após o ato, a
curto ou a longo prazo. Podemos mentir a alguém sobre suas capacidades,
dizendo que são mais competentes do que realmente são. Isto pode fazê-
lo feliz, tanto quando estamos falando com ele como logo a seguir à
conversa. A curto ou mesmo a longo prazo pode lhe dar a auto-confiança
para o sucesso. Mas, em vez disso, pode lhe fazer sentir mal porque sabe
que estamos apenas tentando lisonjeá-lo e que o que dissemos não é
verdade. Mesmo se acreditar em nós, pode, como consequência, vir a se
esforçar demasiado e lamentavelmente a falhar no seu trabalho futuro.
Por outro lado, se lhe dissermos a verdade, pode se sentir deprimido e,
devido à sua perda de auto-confiança, vir a falhar em tudo o que tente
realizar. Ou pode se sentir feliz porque fomos honestos com ele e, se
aplicando a tarefas menos ambiciosas, vir a ter muito sucesso na vida e a
ser feliz.

Deste modo, é totalmente imprevisível o que irá acontecer em relação a


estes tipos de resultados das nossas ações. É por isso que dizemos que a
ética budista não está meramente baseada em não se fazer mal aos
outros, visto que nunca podemos garantir os efeitos das nossas ações nos
outros. Naturalmente, tentamos não prejudicar ninguém. Mas, a não ser
que sejamos budas, nunca podemos saber quais serão esses efeitos.

Assim, quando falamos no “amadurecimento” das ações destrutivas em


sofrimento, estamos falando sobre um processo complexo através do qual
os nossos modos de agir, falar e pensar acumulam certas tendências e
hábitos nos nossos continuums mentais que irão afetar as nossas
experiências futuras. Por exemplo, se tivermos aventuras extraconjugais,
acumulamos ou reforçamos o hábito do descontentamento para com os
nossos parceiros sexuais e o de andarmos sempre de parceiro em
parceiro.
Estarmos insatisfeitos e agitados em relação à nossa vida sexual é uma
experiência de infelicidade, não é? E se nunca estamos satisfeitos com os
nossos maridos e mulheres, se estamos infelizes com esses
relacionamentos, também não vamos ficar satisfeitos com os nossos
amantes. Esses relacionamentos também não irão durar muito e
continuaremos a procurar outros. Além disso, os nossos parceiros
também irão ser infiéis. Se nós não somos fiéis porque haveriam eles de
ser fiéis? Assim, há muitas repercussões e muitos problemas que surgem
a longo prazo. Isso é que é certo quando agimos destrutivamente.

Motivações para o Comportamento Destrutivo

Vamos agora examinar um pouco mais profundamente o que é destrutivo


– o que irá desenvolver os hábitos negativos que causam os nossos
problemas futuros a longo prazo. O fator principal que determina se uma
ação é destrutiva ou não é o estado mental que a motiva. As ações
destrutivas podem ser motivadas pela ânsia do desejo – por exemplo,
pela obsessão com o sexo, que faz com que alguém vá de aventura sexual
a aventura sexual. Também podem ser motivadas pela raiva ou pela
hostilidade, como no exemplo de alguém que viola uma série de mulheres
porque está irritado com elas e as quer ferir. O comportamento destrutivo
pode ser também motivado pela ingenuidade – seja ingenuidade sobre a
causa e efeito ou sobre a realidade, tal como no exemplo que já
mencionámos, de praticar sexo desprotegido com uma prostituta. A
ingenuidade está frequentemente misturada com o desejo obsessivo ou a
hostilidade.

As ações destrutivas também são sempre acompanhadas por outras


atitudes fundamentais. Estas são: a ausência de um sentido de auto-
dignidade ética – não nos importarmos como o nosso comportamento se
reflete em nós – e o desinteresse em como o nosso comportamento se
reflete nos outros, tal como nas nossas famílias, nos nossos professores
espirituais, nos nossos compatriotas e assim por diante. Podemos
compreender isto se pensarmos no exemplo do presidente Clinton e na
sua aventura extraconjugal que tanto escândalo causou.

Outras emoções perturbadoras, tais como o ciúme, que acompanham


estas motivações destrutivas são similarmente destrutivas, assim como
são as próprias ações motivadas por elas. Assim, em geral, podemos dizer
que o samsara – renascimentos incontrolavelmente recorrentes –
também é destrutivo.
Motivação Causal e Motivação Contemporânea

A apresentação budista da ética também diferencia a motivação causal da


contemporânea. A motivação causal é aquela que inicialmente nos leva a
agir. A motivação contemporânea ocorre no momento em que agimos. No
exemplo das ações éticamente neutras por natureza – as que o Buda não
especificou como construtivas ou destrutivas – é a motivação
contemporânea que determina se a ação é construtiva ou destrutiva e não
a original motivação causal. No caso das ações que Buda especificou como
construtivas ou destrutivas, a motivação contemporânea é a que tem o
efeito mais forte no peso ou na leveza do resultado cármico.

Consideremos a prática do sexo com o nosso parceiro; isto é, em si, um


ato eticamente neutro. Podemos estar causalmente motivados por uma
razão construtiva. Podemos querer fazer o nosso parceiro feliz ou
podemos querer ter um filho. Mas quando iniciamos o ato sexual em si, se
a obsessão pelo prazer e o desejo se tornar mais forte e se transformar na
nossa motivação contemporânea, a ação torna-se destrutiva apesar da
positiva motivação causal original. Fazer amor com obsessão pelo sexo
acumula um hábito negativo que, a longo prazo, irá causar infelicidade.

A própria motivação causal pode também ser destrutiva. A obsessão pelo


sexo pode nos conduzir à prática sexual e também pode ser a motivação
contemporânea. No entanto, a motivação causal também pode ser neutra.
Podemos querer praticar sexo a fim de adormecermos mais facilmente.
Mas quando o iniciamos, ficamos oprimidos pelo desejo e obsessão pelo
sexo. Uma vez mais, o ato sexual se torna destrutivo.

Ânsia Obsessiva do Desejo e Consideração Incorreta

Visto que para a maioria das pessoas a emoção perturbadora que torna o
ato sexual destrutivo é a ânsia obsessiva do desejo, vamos agora
examinar mais profundamente o que significa esse estado mental.

A ânsia obsessiva do desejo é uma emoção perturbadora fixada em algo que


não possuímos; é o forte desejo de se possuir esse algo, baseado na
superestima das boas qualidades do objeto.

Isto tanto pode ocorrer quando não possuimos qualquer quantidade


desse objeto ou quando já possuimos alguma quantidade mas estamos
ávidos por mais. O apego é semelhante. É uma emoção perturbadora
fixada em algo que já possuimos e, com base na superestima das boas
qualidades do objeto, não o queremos largar.
Além de engrandecer as boas qualidades de algo com atitudes do gênero
“você é a pessoa mais bonita e mais perfeita do mundo”, a ânsia do desejo
projeta sobre o objeto qualidades que este não possui. Na terminologia
budista, a ânsia do desejo é acompanhada pela “consideração incorreta.”

Um exemplo de consideração incorreta a respeito de um parceiro sexual é


nós considerarmos como limpo algo sujo. A um nível muito básico, é
exemplificado pela atitude “se for o copo do meu amante, ele está limpo.
Beberei dele alegremente. Se for o copo do empregado, está sujo; seria
repugnante colocar meus lábios no seu copo”. Se pensarmos sobre isto,
não há nenhuma diferença entre os dois copos. Ambos são copos de
outras pessoas, dos quais beberam um pouco.

Ou, desculpem-me o exemplo mais drástico, podemos achar que é tão


gostoso quando o nosso amante, ao nos beijar, põe sua língua na nossa
boca mas se ele cuspisse nela, que é praticamente o mesmo, acharíamos
isso repugnante. Pôr a sua língua na nossa boca ao nos beijar é tanto um
exemplo de exagerar as qualidades de algo, tornando-o no ato sexy mais
gostoso, como de o considerar incorretamente como limpo, ou pelo
menos como algo não sujo.

Outro tipo de consideração incorreta é considerarmos o sofrimento como


felicidade. Por exemplo, se o nosso amado massajar a nossa mão,
achamos isso maravilhoso. Mas, se ele continuar massajando exatamente
no mesmo sítio durante cinco minutos, isso se torna doloroso. Não
obstante, podemos continuar a considerá-lo felicidade e não pedir ao
nosso amado para parar. Ou, de certeza que já todos tivemos essa
experiência, nos deitamos abraçando alguém e nosso braço se tornar
dormente sob a pessoa. Isso se torna muito incómodo, mas continuamos
lá deitados na mesma. Ou abraçamos alguém ao tentarmos adormecer ao
seu lado, e depois ficamos completamente incomodados e não
conseguimos adormecer, mas não queremos deixar de a abraçar. Isto é
“considerar o sofrimento como felicidade” - um exemplo de consideração
incorreta que acompanha a obsessão pelo contato físico e o abraço sexual.

Desejo Biológico e Desejo Obsessivo

É importante diferenciarmos a ânsia obsessiva do desejo do desejo


biológico. São duas coisas completamente diferentes. É como no caso da
comida. Quando temos fome biológica, satisfazer o nosso desejo de comer
não é destrutivo. Podemos fazê-lo sem exagerar as boas qualidades dos
alimentos ou sem termos deles uma consideração incorreta. Mas, se
tivermos um desejo obsessivo por determinado alimento – tal como, por
exemplo, chocolate -, se o engrandecermos na coisa mais deliciosa do
mundo e nos empanturrarmos com ele, isso seria destrutivo e provocaria
muitos problemas: ficaríamos obesos e poderíamos até ficar doentes por
comer de mais.

É a mesma coisa com o sexo. O normal desejo biológico pelo sexo,


baseado nos hormônios, é diferente do desejo obsessivo. O budismo não
está dizendo que é destrutivo satisfazer o ímpeto biológico, desde que
não se exagere as suas boas qualidades. Mas, como no caso da comida, faz
parte do samsara: é aquilo que vem com os nossos corpos samsáricos e
causará inevitavelmente problemas a determinado nível. Mesmo se
permanecermos celibatários, o ímpeto de praticar sexo continua. E se não
formos celibatários, então, nunca iremos ter sexo que chegue. Tê-lo
apenas uma vez nunca bastará, assim como se comêssemos só uma vez.
Queremos tê-lo repetidamente. Assim, esta é a situação samsárica – uma
situação incontrolavelmente recorrente que nunca satisfaz. É obviamente
uma forma de sofrimento.

De fato, se examinarmos os votos tântricos a respeito do comportamento


sexual, o mais importante é não considerarmos o sexo como um caminho
à liberação ou à iluminação. É simplesmente um ato samsárico! Praticar
sexo com a moderna ideia de que se conseguíssemos o orgasmo perfeito
iríamos resolver todos os nossos problemas é um bom exemplo de como
violamos os nossos votos tântricos. Agir dessa maneira revela uma
confusão total sobre a realidade e sobre a causa e efeito
comportamentais. Mesmo se não tivermos votos tântricos, o foco
principal para a maioria de nós, praticantes budistas, deverá ser o de se
evitar este engrandecimento do sexo. Não vamos agora sair por aí
violando todas as pessoas de uma cidade que conquistámos pelas armas.

Desenvolvimento Histórico Do Que Se Considera Impróprio


Comportamento Sexual

Quando examinamos os pormenores da enumeração budista dos


diferentes tipos de comportamentos sexuais impróprios, descobrimos
que praticar sexo mais de cinco vezes consecutivas é considerado
destrutivo porque ser obsessivo. Isto implica que praticar sexo quatro
vezes consecutivas não é obsessivo. Agora, não está claramente
explicitado se esta afirmação se refere a quatro ou cinco vezes sucessivas
durante um encontro sexual ou a quatro ou cinco dias seguidos. Se for o
primeiro caso, como interpretam algumas pessoas, implica uma ideia
muito estranha do que é obsessivo. Do mesmo modo, a masturbação ou o
sexo oral, mesmo que uma só vez, seria destrutivo porque também é
considerado obsessivo. Assim, vemos que a obsessão pelo sexo é uma
questão complexa e que na sua definição podem estar envolvidos
critérios culturais.

Para compreendermos esta questão, pode ser útil analisarmos, na


literatura budista, o desenvolvimento histórico a respeito do que é um ato
sexual destrutivo ou impróprio. Tal estudo nos pode orientar quanto à
interpretação da ética sexual budista dentro da nossa sociedade moderna.
Muitos budistas ocidentais gostariam de rever diversos aspectos da ética
budista por forma a enquadrá-los na nossa mentalidade atual. Mas
precisamos de ter muito cuidado com isto. Se o fizermos, precisamos de o
fazer com base no conhecimento do alcance completo dos ensinamentos
budistas sobre a ética, de como historicamente se desenvolveram e de
como foram aplicados nas várias sociedades asiáticas em que o budismo
se difundiu.

Na literatura budista mais antiga, em pali e sânscrito, no Sri Lanka e na


India, a única coisa a respeito do comportamento sexual especificada
como imprópria é a prática sexual com um parceiro impróprio. O enfoque
principal está em mulheres impróprias. Esta categoria inclui mulheres
casadas ou noivas, ou as que estão sob o controlo de outra pessoa, tal
como uma filha solteira controlada pelos pais, ou ainda monjas
comprometidas pelos seus votos. Se um homem praticasse sexo com
qualquer uma destas mulheres, a motivação seria geralmente o desejo
obsessivo. Embora pelos padrões sociais da época e da cultura, a mulher
seja tida como uma pessoa imprópria para a prática sexual, ele no entanto
insiste em praticar sexo com ela porque o seu desejo é muito obsessivo.
Os textos não mencionam se o homem já tem uma parceira, nem quanto
aos desejos da mulher imprópria.

O quarto concílio budista ocorreu em Caxemira, no final do primeiro


século da era moderna. Naquela época, uma dinastia da Ásia Central
governava a região que vai desde o noroeste da India até ao Irão Oriental.
Os representantes das regiões budistas correspondentes ao atual
Afeganistão foram ao concílio e relataram que se praticavam, nas suas
terras natais, certos costumes da cultura persa que eles achavam
contrárias ao espírito da ética budista. Eles achavam que, acerca disso,
havia necessidade de ser incluída uma menção explícita nos textos sobre
ética budista que estavam sendo compilados naquela altura. A partir
desta altura, vários costumes que eram socialmente aceites em
determinadas culturas não-indianas vieram a ser lentamente adicionados
à lista dos tipos destrutivos de comportamento, como por exemplo, a
eutanásia e o incesto. Embora muitas destas ações já devessem ter
ocorrido na India, elas nunca eram discutidas abertamente. No entanto,
ao ouvir falar delas em culturas estrangeiras, isso lhes deu a
oportunidade de as mencionar explicitamente nos textos budistas, sem
perderem a “face social”.

Por conseguinte, em termos de comportamento sexual impróprio, a já


ampla lista de parceiros impróprios foi expandida para incluir as nossas
mães e filhas. Gradualmente, outras formas de comportamento sexual
foram adicionadas como sendo impróprias. Por exemplo, determinados
orifícios do corpo foram listados como impróprios para o intercurso
sexual, tal como a boca e o ânus, mesmo com a nossa própria esposa. Por
trás disto estava indubitavelmente o princípio de que a prática sexual em
orifícios impróprios é motivada pelo desejo obsessivo. Insatisfeito com o
sexo vaginal com sua esposa, a pessoa se tornaria num explorador e
aventureiro sexual, convencido que tinha de experimentar todas as
posições e todos os orifícios a fim de ter mais prazer.

Momentos impróprios para a prática sexual também foram adicionados,


tal como durante a gravidez e a amamentação. As mães dormiam sempre
com seus bebês e por isso seria impróprio separá-las deles para fazer
sexo. Além disso, havia também lugares impróprios para a prática sexual,
tal como dentro dos templos, e momentos impróprios, como durante o
dia, altura em que alguém poderia entrar e envergonhar toda a gente.
Mesmo hoje em dia, entre os tibetanos, quase ninguém tranca a porta
quando está no seu quarto, e os tibetanos nunca batem à porta antes de
entrar. A homosexualidade e a masturbação também rapidamente foram
adicionadas à lista de comportamentos sexuais impróprios.

Quando os textos budistas foram traduzidos para o chinês, as concubinas


alheias foram adicionadas à lista de parceiras impróprias. Este é um claro
exemplo de como os tradutores e os mestres modificaram os textos sobre
a ética de modo a irem de encontro à nova sociedade em que o budismo
se estava difundindo. A tradicional sociedade chinesa permitia que os
homens tivessem várias esposas e concubinas. Isso não era considerado
impróprio. Só era impróprio a prática sexual com as concubinas dos
outros. No Tibete, a poligamia e a poliandria também eram comuns. Ter-
se várias esposas ou maridos nunca foi considerado sexo com parceiros
impróprios.

Durante todo este processo, o que está sempre acontecendo é que mais e
mais coisas vão sendo adicionadas à lista daquilo que é impróprio. Hoje
em dia, muitos de nós gostariamos que certas coisas fossem eliminadas
da lista, mas, em termos históricos, foram sempre adicionadas coisas. No
entanto, com isto, a questão que se coloca é se estas adições foram
culturalmente influenciadas e antigamente os atos mencionados não
eram considerados impróprios, ou se sempre foram considerados
impróprios, mas não explicitamente mencionados. Ou também pode ser o
caso em que as adições às listas foram feitas ad hoc, apenas quando
surgiam dificuldades sobre certas questões dentro da comunidade
budista. Afinal, foi assim que Buda gradualmente expandiu os votos
monásticos.

Comportamentos Sexuais Impróprios para Mulheres

Se nos interrogarmos sobre a possível necessidade de adicionais


rectificações à lista dos tipos de comportamento sexual impróprio, para
irmos de encontro ao Ocidente moderno, podemos aprender outra lição a
partir da história textual budista. De acordo com os textos vinaya sobre a
disciplina monástica, não é permitido aos monásticos agirem como
intermediários para o arranjo de casamentos com certo tipo de mulheres.
As listas dessas mulheres correspondem às listas de parceiras sexuais
impróprias para as pessoas leigas. Entre os textos vinaya que examinei,
em cinco das dezoito escolas Hinayana, duas das suas listas são
exclusivamente elaboradas sob o ponto de vista masculino, indicando
apenas mulheres impróprias. Estes vinayas pertencem a duas das três
tradições Hinayana que ainda hoje existem – Theravada (seguida no Sri
Lanka e no Sudeste Asiático) e Sarvastivada (a filial de Mulasarvastivada,
seguida pelos tibetanos e pelos mongóis).

Ora, esta omissão não significa que, de acordo com estas duas tradições,
apenas haja mulheres impróprias para homens, e que não haja homens
impróprios para as mulheres. Significa apenas que os códigos éticos
foram escritos nestas duas tradições apenas sob o ponto de vista dos
homens. Contudo, as outras três tradições do vinaya especificam listas de
homens impróprios que correspondem às suas listas de mulheres
impróprias. Isto implica que a ética sexual é relativa consoante as pessoas
envolvidas – homens, mulheres e assim por diante – e que precisa de ser
especificada em termos de cada tipo de pessoa. Assim, com base nesta
evidência textual, acredito que seria muito razoável adicionar a qualquer
lista de parceiros sexuais impróprios aqueles que seriam impróprios sob
o ponto de vista das mulheres.

A Homossexualidade

Seguindo a mesma linha de raciocínio, os textos em todas estas tradições


foram escritos sob o ponto de vista do homem heterossexual. Assim, se
um homem heterossexual já tiver uma parceira mas, devido à insatisfação
e ao desejo obsessivo, for explorar e fazer sexo não só com todo o tipo de
mulheres alheias, como também com homens, vacas e quem sabe o que
mais, então, é obvio que isso é destrutivo. Mas, além disso, penso que
também podemos rever todo o sistema e incluir o que seria
comportamento sexual destrutivo ou construtivo para os homens e
mulheres homossexuais e também bissexuais, porque fazer sexo com o
parceiro de outra pessoa, e assim por diante, também seria destrutivo
para este tipo de pessoas. Afirmar que qualquer recomendação ética
precisa de ser formulada relativamente a cada grupo a que diz respeito,
me parece estar totalmente de acordo com o espírito dos ensinamentos
budistas sobre o surgimento dependente.

É interessante que, durante suas viagens, Sua Santidade o Dalai Lama se


tivesse encontrado às vezes com grupos homossexuais, particularmente
em São Francisco e Nova Iorque. Estes grupos estavam extremamente
perturbados pela usual apresentação budista da homossexualidade como
comportamento sexual impróprio. Sua Santidade respondeu que ele, por
si próprio, não podia reescrever os textos mas pensava que este era o tipo
de questão que precisava de ser discutida por um concílio de budistas. Só
um tal concílio poderia alterar questões a respeito do vinaya e da ética.
Sua Santidade recomendou o mesmo procedimento a respeito da questão
da igualdade das mulheres, particularmente em rituais e cerimónias
monásticas. Isto também precisa de ser reconsiderado e revisado. Com
efeito, parece que Sua Santidade também pensa que pode haver algo
problemático e aberto à discussão no âmbito da tradicional apresentação
budista sobre a ética sexual.

Orifícios Impróprios para Sexo

A inclusão da boca e do ânus como orifícios impróprios para o intercurso


sexual também foi feita indubitavelmente com os homens heterossexuais
que já tinham uma parceira feminina em mente. Sob o ponto de vista
budista, tais pessoas seriam impelidas a dar rédea solta ao sexo oral ou
anal por causa do enfadamento e da insatisfação com o sexo vaginal.
Podiam sentir que o sexo vaginal era uma forma deficiente de obter ou
dar prazer, ou um modo inepto de demonstrar amor e afeição. Em ambos
os casos, a conduta é motivada pela insatisfação que, por sua vez, é uma
atitude que inevitavelmente traz problemas.

Contudo, isto torna-se uma questão muito mais complicada se


considerarmos estas formas de comportamento sexual no contexto de
casais homossexuais. A questão é a seguinte: estes orifícios são
impróprios por natureza ou são apenas especificados como impróprios
para determinadas pessoas, em determinadas situações? Se disséssemos
que o problema com a boca e o ânus, como orifícios sexuais, existe porque
estes não são limpos, então essa objeção também pertenceria igualmente
à vagina. Não é um tópico assim tão simples.

E o sexo para alguém paralizado do pescoço para baixo? A única forma de


comportamento sexual que essa pessoa pode fazer é a oral. Assim, uma
vez mais, penso que precisamos de fazer a distinção entre o que é próprio
e impróprio em relação a grupos específicos de pessoas. Não penso que
poderíamos dizer que fazer sexo oral seria obsessivo para alguém
paralizado do pescoço para baixo.

Masturbação

Penso que um argumento semelhante pode ser feito a respeito da


masturbação. Temos de examinar a tradicional posição budista a respeito
disto, no seu contexto social original. Na India antiga, na época em que
estas questões sobre a ética foram formuladas, as pessoas casavam
durante a puberdade ou até antes. Assim, se formos casados mas
estivermos tão obsecados pelo sexo de tal forma que o sexo com o nosso
parceiro não é suficiente e também precisamos de nos masturbar, isso
seria considerado obsessivo.

No entanto, hoje em dia, as pessoas no Ocidente não casam no início da


puberdade e algumas pessoas permanecem solteiras até bem tarde ou até
durante toda sua vida. Precisamos de pensar acerca da questão da
masturbação sob a perspectiva das pessoas que não têm parceiros ou que
não têm um sério relacionamento sexual com ninguém. Se as alternativas
forem a promiscuidade, o uso de prostitutas ou o celibato total, então a
masturbação para as pessoas sem parceiros é completamente diferente
do que para as pessoas casadas. O mesmo é verdade a respeito da pessoa
casada, cujo parceiro esteja muito doente ou num hospital há meses. O
que devem elas fazer, ir a uma prostituta? Não.

Então, acredito que é consistente com os ensinamentos budistas que tudo


deve ser considerado dentro do seu contexto, porque o que torna um ato
samsárico éticamente neutro (como a prática sexual) num ato destrutivo
é ele ser motivado por uma emoção perturbadora – insatisfação, obsessão
sexual e assim por diante. Isso é que irá causar problemas. O
comportamento sexual não influenciado pelas perturbadoras emoções
obsessivas não irá causar o mesmo tipo de problemas. Causará apenas o
problema generalizado de nunca estarmos completamente satisfeitos e
de querermos sem dúvida fazê-lo repetidamente. E nunca poderemos
garantir como nos iremos sentir após o ato sexual.
Prostituição

Um dos pontos mais interessantes sobre a tradicional apresentação


budista acerca da conduta sexual imprópria, se a analisarmos tendo em
vista a sua alteração para o Ocidente moderno, diz respeito ao que não
está incluído e como isso pode ser culturalmente influenciado.
Considerem, por exemplo, a discussão sobre a prática sexual com
prostitutas. Nos textos indianos e tibetanos, o sexo com prostitutas é
perfeitamente aprovado, mesmo para homens casados, desde que
paguem à prostituta. Uma prostituta é uma parceira imprópria apenas se
ela pertencer a outra pessoa e se você não pagar por ela. Mais perplexo
ainda é que se os pais não derem permissão à sua filha para fazer sexo
com alguém, então a filha é uma pessoa imprópria para a prática sexual.
Mas se os pais derem permissão – como acontece às vezes na Ásia quando
pais pobres vendem suas filhas para a prostituição – nem uma palavra é
mencionada.

Ademais, como já disse, as traduções chinesas adicionaram as concubinas


alheias como parceiras impróprias. Isto implica que é perfeitamente
aceitável que um homem casado tenha sexo com as suas próprias
concubinas. E entre os tibetanos, é perfeitamente aceitável ter-se mais
que uma esposa ou que um marido. De fato, parece ser perfeitamente
aceitável que qualquer homem casado tenha sexo com quaisquer
mulheres – tal como mulheres independentes e solteiras desde que não
sejam noivas nem monjas – e que não sejam abrangidas na categoria de
parceiras impróprias.

Para nós, é difícil compreender a mentalidade que está por trás disto. Das
duas, uma: ou tudo isto é perfeitamente aceitável nestas sociedades e
todas as mulheres se sentem bem com seus maridos fazendo sexo com
outras mulheres, ou as mulheres casadas não se sentem bem com isso
mas ficam caladas acerca de tal. No mundo moderno, hoje em dia, não é
certamente esse o caso. E assim me parece que, uma vez mais, a lista de
comportamentos sexuais impróprios precisa de ser aumentada em vez de
ser diminuida, de maneira a incluir todas estas formas diferentes de
relacionamentos sexuais problemáticos, destrutivos e baseados na
obsessão.

Insatisfação Sexual e Desejo de Variar

Então, as questões acerca do comportamento sexual impróprio não são


apenas a consideração incorreta e a confusão, tal como considerámos em
relação a determinados orifícios do corpo, mas são mais sobre a
insatisfação e a avidez. Queremos explorar e experienciar mais e mais.
Assim, a questão é a obsessão: o descontentamento e a obsessão. Por
causa disto, penso que precisamos de aumentar a lista de
comportamentos impróprios para incluirmos coisas como as práticas
sexuais de alto risco, em que podemos transmitir ou contrair doenças
sexualmente transmissíveis e assim por diante.

Quando falamos sobre a questão do descontentamento sexual,


precisamos de ter em mente o contexto cultural. Por exemplo, se
analisarmos os indianos ou os tibetanos tradicionais, regra geral a
maioria deles se sente perfeitamente satisfeita comendo exatamente a
mesma coisa, todos os dias das suas vidas – tal como arroz e sopa de
lentilhas ou de massa. Os ocidentais modernos não estão inclinados para
tal. As pessoas ocidentais gostam da individualidade e da variedade.
Fazem parte da nossa cultura. Assim, é o mesmo tanto em relação à
sexualidade como em relação à comida. Se fosse normal, na nossa
sociedade, comer a mesma coisa todos os dias, então se quiséssemos
comer outra coisa isso seria considerado um exemplo de avidez e
obsessão pela comida. Então, é compreensível que tal sociedade tenha a
mesma atitude em relação à sexualidade.

Suponhamos que temos uma certa forma de comportamento sexual com


um parceiro, de mútuo acordo. É óbvio que a podiamos expandir, tendo
em vista a relatividade que já discutimos antes. Temos uma certa maneira
de fazer sexo com o nosso parceiro, quer o parceiro seja do sexo oposto
ou do mesmo sexo, quer estejamos paralizados, nós ou o nosso parceiro,
ou até se estivermos sem parceiro e a nossa forma de comportamento
sexual for a da masturbação. Se tivermos uma certa preferência quanto à
prática sexual, então, sob o ponto de vista da cultura asiática tradicional,
querermos algo diferente seria apenas devido ao desejo exagerado e à
obsessão sexual.

É claro, se a nossa preferência sexual for uma que nos traga muita dor e
que venha a magoar a outra pessoa, ou se for qualquer tipo de prática
sado-masoquista – os textos relatam práticas sexuais em terra fria e
molhada, sobre rochas; mas o Ocidente é mais imaginativo com o sado-
masoquismo – então, não é obviamente uma forma sexual saudável; é
uma forma destrutiva. Mas, embora possamos ter uma maneira preferida
de praticar o ato sexual que não seja tão prejudicial como tal, nós
ocidentais, contudo, gostaríamos de alguma variedade na nossa vida
sexual. Isso não significa necessariamente uma variedade de parceiros,
mas uma variedade de maneiras de expressar nosso amor e afeição e ter
prazer com outra pessoa. Assim, me parece que precisamos de tomar isso
em consideração quando falamos sobre o que é destrutivo sob o ponto de
vista ocidental. Penso que precisamos de diferenciar entre o nosso
normal desejo cultural pela variedade e o desejo obsessivo de
experimentarmos tudo e qualquer coisa devido ao descontentamento e ao
fastio.

Embora o conjunto de práticas sexuais deva ser decidido mutuamente


dentro do relacionamento de cada casal, a pergunta é: “Quais são os
limites?” O conjunto de práticas sexuais pode incluir sexo nos chamados
“orifícios impróprios”? Mas, em qualquer caso, quaisquer que sejam esses
limites, quando nos sentimos completamente descontentes e obsessivos e
vamos para além deles, então começamos a entrar em áreas
problemáticas e em comportamentos sexuais destrutivos. Essa é a minha
ideia pessoal.

As Recomendações de Thich Nhat Hanh sobre o Comportamento


Sexual Impróprio

Thich Nhat Hanh, um atual mestre budista vietnamita, nos deu uma
recomendação muito interessante, e penso que útil, a respeito da ética
sexual budista nos dias de hoje. Ele disse que um parceiro impróprio seria
alguém com quem não estariamos dispostos a passar o resto das nossas
vidas, considerando que os nossos casamentos não são arranjados pelos
nossos pais, como ainda acontece com a maioria das pessoas na Ásia
tradicional, e considerando também que escolhemos os nossos próprios
maridos e mulheres, e que a maioria de nós tem relações sexuais antes do
casamento. Ou seja, se vamos ter relações sexuais com alguém, esse
alguém deveria ser uma pessoa com a qual estaríamos dispostos a passar
o resto da nossa vida se fosse necessário, digamos, se ela ficasse grávida e
assim por diante. E que seríamos felizes de o fazer e não apenas devido a
um sentimento de dever. Isso não significa que tenhamos de passar o
resto da nossa vida com esta pessoa. O exemplo da gravidez é meramente
um exemplo, porque há obviamente pessoas mais velhas e livres que já
não podem ter filhos mas que têm atividade sexual com parceiros. A
mesma recomendação seria aplicável neste caso.

Embora eu não conheça nenhuma referência escrita na qual esta


recomendação tenha sua base, penso que ela é muito útil para os nossos
tempos modernos. Significa que precisamos de evitar o sexo ocasional
motivado pela nossa obsessão de praticar sexo com qualquer pessoa
encontrada por acaso, sem nos importarmos nem estarmos interessados
em ter um relacionamento mais profundo com ela. Na maioria dos casos,
esta recomendação lida com a questão de se fazer sexo com uma
prostituta. Embora, é claro, possa haver casos em que se desenvolva um
relacionamento sério e de amor com uma prostituta.

Não Sobrestimar o Sexo

É importante não sobrestimarmos o sexo. Por exemplo, suponhamos que


a nossa motivação é dar prazer e felicidade temporária a alguém, como
uma expressão de amor, e não apenas à outra pessoa como também a nós
próprios. Assim, desde que não neguemos ingenuamente os desconfortos
que o acompanham e a realidade do que está dentro do corpo de alguém –
ou seja, se tivermos uma visão realista das limitações do sexo – e, repito,
desde que nos mantenhamos dentro de certos limites mutuamente
acordados com essa pessoa – então, penso que este não é um ato
brutalmente destrutivo, à exceção dele perpetuar o nosso samsara. De
fato, este tipo saudável de relacionamento sexual pode ser um estágio
positivo no desenvolvimento de alguém, relativamente ao cultivo de uma
atitude de generosidade, afeição e interesse.

Mesmo a respeito da masturbação, muitos psicólogos ocidentais dizem


que isso faz parte do desenvolvimento saudável da criança. Se um
adolescente entrar em contato com a sua própria sexualidade e puder
demonstrar afeição a si mesmo de um modo descontraído e apreciativo,
isso ajudará o adolescente a apreciar e a ser capaz de se relacionar
sexualmente com os outros de uma maneira mais saudável. Esta é,
naturalmente, uma perspectiva ocidental, mas penso que tem uma certa
validade, especialmente se tivermos em consideração a nossa maneira de
criar as crianças. Os bebês ocidentais não têm o contato corporal quase
constante que tradicionalmente os bebês asiáticos têm. Por tradição, a
maioria das mães asiáticas mantém os seus bebês nas costas durante o
dia, e dormindo com eles durante a noite. Por outro lado, como os bebês
ocidentais são normalmente deixados sozinhos no berço ou numa
cadeirinha, muitos de nós nos sentimos alienados dos nossos corpos. A
masturbação, então, é possivelmente um passo para superar essa
alienação. Mas, repito, o importante é não sobrestimarmos toda esta área
da sexualidade.

Medo do Sexo

Agora, uma pergunta pode ser feita: e se formos obsessivamente contra o


sexo? Ou seja: e se a pessoa tiver medo do sexo ou se for frígida? Esta
atitude também é doentia, penso eu. Também causa problemas.

Mas aqui precisamos de fazer uma distinção: ter medo de matar e ter
medo do sexo não é a mesma coisa. Se, por exemplo, alguém estiver com
medo de matar, isso não implicaria que matar fosse mais saudável para
essa pessoa. Assim, penso que precisamos de fazer uma distinção entre o
medo obsessivo do desejo sexual biológico e o medo da compulsão sexual.
O medo do impulso biológico é que é doentio, penso eu.

Este é um tópico importante para as pessoas que decidem fazer votos de


celibato total, como os monges e monjas. Se abandonarmos o sexo por
acharmos que qualquer forma de sexo é destrutiva e por termos medo
dele, então isto sem dúvida produzirá muitos problemas. Penso que
podemos observar isto. Esta atitude, não só quanto aos monges e monjas
da tradição budista como também das nossas tradições cristãs,
frequentemente os torna muito, muito tensos, cheios de sentimentos de
culpa e de todo esse tipo de coisas. Ficam com sentimentos de culpa
devido aos seus desejos sexuais biológicos.

Mas, sob o ponto de vista budista, o mais adequado seria o medo da


própria obsessão sexual. Aqui, “medo” não é a palavra correta. O medo
também não é a motivação mais saudável, dado que implicaria fazermos
da obsessão um grande drama e algo sólido. “Receio” é uma palavra
melhor porque implica simplesmente um forte desejo de não se ter essa
obsessão. Se quisermos superar essa obsessão pelo sexo e se decidirmos
subsequentemente nos tornarmos monges ou monjas, isso é algo
completamente diferente. Essa é uma atitude mais saudável. Tais pessoas
se tornam monges e monjas porque não querem ser desviadas por
obrigações familiares, e assim por diante, e querem estar numa situação
em que seu desejo sexual seja minimizado. Não querem à sua volta
circunstâncias externas que sexualmente os estimulem.

Aborto

Agora ainda queria falar um pouco sobre outros tópicos relacionados com
o sexo: a contracepção e o aborto. Quando falamos sobre o aborto a partir
de um ponto de vista budista, o aborto estaria na categoria da ação
destrutiva de matar. Não há que negar isso; é terminar a vida de um outro
ser. No entanto, poderá haver várias motivações para terminar essa vida.
Se a motivação for a preocupação egoísta, como a de não querermos ter a
obrigação de tomar conta de um bebê ou a de não querermos perder a
nossa aparência física ou qualquer coisa assim, ela torna este ato num
pesado ato destrutivo de matar, porque tanto a motivação como o próprio
ato são destrutivos.

Assim, precisamos de examinar a motivação causal. Que motivo nos


levaria a abortar? A nossa motivação pode ser de ingenuidade, pensando
que não podemos dar ao bebê uma boa vida ou que não temos recursos
para ter mais um bebê. Mas talvez os nossos pais ou outros familiares
possam dar ao bebê um bom lar, ou poderíamos dar o bebê para adoção.

Por outro lado, a nossa motivação pode ser positiva e compassiva. Se o


bebê for grandemente deformado ou mentalmente deficiente, então,
desejando que a criança evite todos os problemas e sofrimentos futuros,
podemos pensar no aborto. Afinal, há o voto secundário de bodhisattva de
se não evitar cometer uma ação destrutiva quando a motivação é o amor
e a compaixão. No entanto, nestes casos, precisamos de estar totalmente
dispostos a aceitar quaisquer consequências a nível de sofrimento que
possamos vir a experienciar nas nossas futuras vidas, a fim de salvar do
seu sofrimento a criança ainda não nascida. Com tal atitude, as
consequências negativas dessa ação destrutiva, de terminar uma vida,
serão menos intensas.

Contudo, isto é complicado, dado que não sabemos se a criança será feliz
ou não, nem fazemos ideia do quanto a criança poderia vir a ser capaz de
superar as suas dificuldades. Ademais, é muito difícil termos unicamente
a compaixão e o amor como motivação; eles podem estar facilmente
misturados com o desejo egoísta de evitarmos todos os problemas e
sofrimentos que teríamos como pais de uma criança tão deficiente.

Outra situação muito difícil se verifica quando temos de escolher,


enquanto mulher grávida, entre salvar nossa própria vida ou a do feto. Se
a opinião médica for a de que a continuação da gravidez, ou o próprio
processo de dar à luz, irá resultar na nossa própria morte, a motivação
causal para fazer um aborto pode ser a de salvar a nossa própria vida.
Embora, por definição, tal motivação seja de auto-preocupação e não de
interesse pela criança não nascida, cada caso é ligeiramente diferente.
Muitos fatores e circunstâncias afetariam a decisão e o peso das
consequências cármicas subsequentes.

Embora várias motivações causais possam estar envolvidas, os


ensinamentos budistas dizem que o que realmente afeta o peso das
consequências cármicas é a nossa motivação contemporânea.
Consequentemente, se por qualquer razão decidirmos fazer um aborto,
precisamos de ter cuidado com o que se está passando na nossa mente e
coração durante o início da operação. Isto é mais crucial do que aquilo
que nos motivou a ida à clínica.

Considerem, por exemplo, o caso de uma menina de 13 anos que ficou


grávida por ter sido abusada sexualmente pelo seu pai. A menina e a
família podem decidir, por vários motivos, interromper a gravidez. O que
estou tentando salientar é a atitude da família, e especialmente a da
menina, na altura do aborto. É muito importante que não seja uma atitude
de ódio ou hostilidade, especialmente para o bebê que está sendo
abortado. A culpa não é dele.

Deste modo, é muito importante que no momento do aborto tenhamos


pensamentos afetuosos para com o bebê que está sendo abortado.
Precisamos de desejar o bem para as suas vidas futuras e, num certo
sentido, pedirmos desculpa por esta situação. Isto não torna o aborto
num ato construtivo. Afinal, matar é matar. Mas certamente minimiza as
consequências negativas subsequentes. No mínimo, penso que é quase
impossível para as mulheres que fazem abortos não virem a sofrer mais
tarde por quererem saber “como teria sido esse bebê? Se estivesse vivo
teria agora quantos anos?” Penso que quase todas as mulheres que
fizeram abortos têm esse tipo de sofrimento. Assim, mesmo nesta vida,
podemos ver que o aborto é um ato destrutivo porque causa sofrimento.
Afinal, a definição de uma ação destrutiva é uma ação que amadurece em
sofrimento para a pessoa que a cometeu.

Algumas tradições budistas realizam cerimónias para o feto abortado,


numa espécie de serviço funerário. Isto é extremamente útil para a mãe,
para a restante família e certamente para a criança abortada. É baseado
no respeito para com este ser, enquanto ser senciente. Dá-se-lhe um
nome e são rezadas preces para seu bem em suas vidas futuras. Mulheres
que assistiram a este tipo de serviço funerário acharam-no muito
terapêutico e muito útil.

Contracepção

A questão do aborto está relacionada com a questão da contracepção.


Aqui, a pergunta importante é: “quando é que a vida começa?” Sob o
ponto de vista científico ocidental, só quando o embrião tem cerca de
vinte e um dias é que a sua matéria física está suficientemente
desenvolvida para a transmissão de informação neural. Poderíamos
argumentar que este é o começo da vida porque, em certo sentido, é o
começo da atividade mental. Por outro lado, sob o ponto de vista budista,
depois do continuum mental mais sutil, de alguém que morreu, ter
passado pelo período intermédio (bardo), sua vida seguinte se inicia
quando se conecta com a substância física do seu corpo seguinte.

A pergunta seguinte é: “de acordo com o conceito budista, quando é que


acontece essa conexão?” Segundo a tradição budista, a consciência do ser
bárdico, antes de renascer, entra pela boca do futuro pai, segue para baixo
pelo corpo do pai, entra no esperma e com ele passa para o corpo da
futura mãe. Agora, isto é algo que obviamente precisa de ser analisado.
Esta explanação deriva do Tantra Guhyasamaja e é dada para que o
processo de gerar a mandala das deidades no útero da consorte
visualizada seja análogo ao processo do renascimento. Mas será que esta
descrição deva ser literalmente interpretada como a explanação de como
começa a vida?

Como Sua Santidade o Dalai Lama tem dito muitas vezes, se os cientistas
conseguirem provar que certas explanações budistas estão erradas, ele
não terá quaisquer problemas em as abandonar e em adotar a explanação
científica. Deste modo, precisamos de examinar com lógica a
apresentação budista tradicional de como e quando começa a vida. A
forma como decidirmos estas questões terá implicações éticas de vasto
alcance. Obviamente, se a consciência da futura criança já estiver no
esperma antes mesmo da concepção, então seria aborto qualquer forma
de contracepção. Mas, então, e no caso do óvulo não vir a fertilizar? E
mesmo se fertilizasse, poderia não se implantar na parede uterina. Será
que de algum modo a consciência já sabe o que irá acontecer antes de
entrar na boca do pai? Ou será que há uma espécie de mecanismo cármico
através do qual a consciência não entraria na boca do pai, a menos que
houvesse uma certeza cármica de que iria ocorrer uma concepção bem
sucedida? E a inseminação artificial, os bebês do tubo de ensaio e a
clonagem? Estes, com a teoria budista, são difíceis de explicar a menos
que os classifiquemos sob as categorias do nascimento através do calor e
da água.

Quanto mais investigamos quando começa a vida, mais complicado se


torna. De acordo com a explanação budista dos doze elos do surgimento
dependente, quando a consciência do futuro-ser entra na base física do
seu futuro corpo, ela apenas detém o potencial para a atividade mental.
Essa atividade ainda não está funcionando. Só com o elo seguinte, o das
faculdades nomeáveis com ou sem forma, é que as potencialidades da
consciência começam, passo a passo, se ativando e funcionando. Isto quer
dizer que todos os óvulos fertilizados têm o potencial de se tornarem
crianças, ou só alguns? Se apenas alguns, então, sob um ponto de vista
científico, o que será preciso estar presente para diferenciarmos entre
aqueles que têm o potencial de se transformarem em crianças e aqueles
que não o têm – por exemplo, aqueles que não se implantam na parede
uterina?

Podemos assim ver que é muito difícil responder à pergunta: “quando é


que a consciência entra realmente na substância física do renascimento
seguinte, de modo a que, se você terminasse o renascimento depois desse
momento, isso seria matar?” E sob o ponto de vista budista, se a
contracepção ocorresse de forma a não permitir que a consciência entre
na substância física do seu renascimento seguinte, então não seria uma
questão de matar. A questão ética de matar, então, não teria nada a ver
com a contracepção. Só precisaríamos de ter cuidado com o
comportamento sexual impróprio.

Em termos de comportamento sexual impróprio também precisamos de


evitar a possibilidade de transmitir ou contrair doenças sexualmente
transmissíveis. Isto significa que todas as pessoas portadoras dessas
doenças devam permanecer celibatárias para o resto das suas vidas,
mesmo pessoas com herpes? Se o uso de preservativos fosse não-ético,
mesmo para tais pessoas, então a única alternativa seria a de
permanecerem celibatárias.

Como Sua Santidade o Dalai Lama disse, estas questões sobre o aborto e a
contracepção requerem, antes da tomada de qualquer decisão, uma vasta
investigação adicional. Assim, quer usemos contraceptivos ou não,
voltamos à mesma questão de antes. Qual é a motivação? Estamos usando
a contracepção para darmos rédea solta à nossa obsessão pelo sexo?
Então, certamente, o nosso comportamento sexual é destrutivo. Mas,
nesse caso, é destrutivo por causa da obsessão e não por causa da
contracepção.

A Ilegalidade do Aborto
Aqui no México, o aborto é proibido por lei. Contudo, milhares e
milhares de abortos são feitos diariamente e várias dezenas de
milhar de mulheres morrem todos os anos por causa da má prática
durante o aborto. Assim, aqui, o aborto não é apenas uma questão
ética, é também uma questão legal. Como podemos lidar com isso?

Como tentei explicar, sob um ponto de vista budista, se alguém decidir


por qualquer razão fazer um aborto, a principal coisa a fazer é tentar
minimizar o nível de destrutibilidade da ação como um todo, trabalhando
com a motivação. Por exemplo, tentando fazer com que a motivação na
altura do aborto não seja de hostilidade para com o feto e, depois do
aborto, lhe dar um nome e um funeral adequado. Isto ajudará a minimizar
o sofrimento causado pelo término dessa vida.

Se decidirmos fazer um aborto, o mesmo princípio é verdadeiro em


relação ao modo como fazemos o aborto. Obviamente, precisamos de
tentar fazê-lo de uma maneira que minimize perigos de saúde e
consequências legais à mãe. Precisamos de investigar muito bem qual a
maneira mais segura, em termos de saúde, de se fazer o aborto, e dentro
do nosso orçamento. Naturalmente, em casos de extrema pobreza,
métodos científicos e higiênicos podem não estar disponíveis, mas
certamente alguns métodos são mais seguros do que outros.

A questão legal é um assunto diferente e bastante complexo. Precisamos


de diferenciar entre o nível de destrutibilidade do ato do aborto em si e o
nível de destrutibilidade ao se quebrar a lei de um país. Aqui há dois
casos a considerar: um, quando a ação ilegal é destrutiva sob o ponto de
vista budista; outro, quando a ação ilegal é construtiva ou éticamente
neutra. O aborto não só é ilegal como também é eticamente destrutivo,
enquanto que ensinar o budismo numa ditadura comunista ou estacionar
nosso carro numa zona de estacionamento proíbido podem ser atos
ilegais mas não são eticamente destrutivos. Em ambos os casos a
pergunta é: ao quebrarmos uma lei civil, acumulamos tendências e
hábitos negativos nos nossos continuums mentais que amadurecem em
sofrimento nas vidas futuras?

Quebrar uma lei civil pode nos trazer sofrimento nesta vida se formos
apanhados, presos e punidos. Isto é chamado o “resultado artificial”. Mas
podemos não ser apanhados e, assim, não é certo que iremos experienciar
quaisquer problemas legais ou penais. E como qualquer ação, pode criar
um hábito que nos fará quebrar repetidamente uma lei em particular,
embora também não haja certeza quanto a isso. Podemos quebrar certa
lei apenas uma vez. Não obstante, quebrar uma lei civil não cria o tipo de
tendência e de hábito que amadurece em vidas futuras como experiência
de infelicidade.

No exemplo do ato ilegal eticamente construtivo, não é assim tão difícil a


escolha entre o possível castigo nesta vida e a experiência de felicidade
nas vidas futuras. Nos casos de atos eticamente neutros, podemos pensar
no voto secundário de bodhisattva de não se evitar as preferências dos
outros, desde que suas preferências não sejam destrutivas. Se uma
sociedade fizer as coisas de uma determinada maneira, não há
necessidade de se causar perturbação insistindo em se fazer as coisas à
nossa própria maneira, especialmente quando motivada pelo auto-
interesse e pela falta de consideração pelos outros.

Agora, no caso de se fazer um aborto, que não só é uma ação destrutiva


como também ilegal neste país, repito, penso que a recomendação tem de
ser a de evitarmos a ingenuidade e tentarmos minimizar as
consequências negativas. A decisão de se fazer ou não um aborto cabe
basicamente à mulher grávida, embora o pai e a família do feto possam
desempenhar um papel na decisão. Se a decisão for a de se fazer um
aborto, então, sem se ser ingénuo sobre as possíveis consequências legais,
tentem fazê-lo de tal maneira que os riscos de infelicidade e sofrimento
sejam minimizados em todas as áreas – médicas, legais e éticas.

Depois, se desejarmos, podemos trabalhar para mudar as leis se elas nos


parecerem excessivas. Contudo, quando uma lei é influenciada por um
outro sistema religioso, então é muito delicado.

Castidade
Qual é a sua opinião pessoal sobre os votos monásticos de
castidade? Manter a castidade não vai contra a natureza? Não
devíamos ter já ultrapassado isso como uma sociedade?

Mantermos a castidade é certamente irmos contra o samsara. Mas,


quanto ao irmos contra a natureza, precisamos de examinar mais
detalhadamente o que é “natural sob o ponto de vista budista”. Embora
fazendo parte do que no Ocidente chamaríamos de “natural”, os impulsos
biológicos, na perspectiva budista, fazem parte do mecanismo do
samsara. No budismo, o que pretendemos fazer é superar o controlo
destes impulsos instintivos que perpetuam o sofrimento e os problemas
da nossa existência samsárica incontrolavelmente recorrente. Ao longo
do caminho em direção à liberação destes impulsos biológicos, queremos
nos tornar cada vez menos deles dependentes e não ser governados por
eles. Apesar dos nossos impulsos biológicos, podemos ser prestáveis aos
outros desde que não sejamos governados por eles.

No Ocidente, muitas pessoas não pensam em Deus como sagrado mas, em


vez disso, consideram a natureza como sagrada. Isso significa que
consideram a biologia como sagrada. Pensam que o que é natural é
automaticamente bom. Por outro lado, o budismo questiona o que surge
naturalmente, visto que muitas emoções e atitudes perturbadoras surgem
automaticamente, tal como os impulsos que nos levam a agirmos
destrutivamente. Precisamos de distinguir com cuidado.

Geralmente, os que se tornam monges e monjas ou são pessoas com baixo


desejo sexual que o celibato não é para elas nada de especial, ou são
pessoas obsecadas pelo sexo que desejam superar o sofrimento que a sua
obsessão lhes tem causado. Mas, mesmo no último caso, não querem
apenas suprimir os impulsos biológicos, tal como o sexo. Ao tentarem
fazê-lo, existe sempre o perigo de que em qualquer momento possam
explodir descontroladamente. Esses monásticos trabalham com o apego e
a ânsia do desejo que tornam seus impulsos sexuais compulsivos e
obsessivos. Com os métodos tântricos de transformação das energias
sutis, pode-se transformar essa energia sexual e canalizá-la para algo
mais construtivo; para a promoção do caminho espiritual. No entanto,
isso não é assim tão fácil de se fazer.

Penso também que precisamos de ter em mente que os tibetanos e os


indianos, por exemplo, demonstram afeição física por pessoas do mesmo
sexo sem que isso tenha qualquer conotação sexual. Como os monges e as
monjas normalmente se abraçam e andam de mãos dadas, este tipo de
contato físico ajuda-lhes a satisfazer as suas necessidades de afeição e de
contato físico. O celibato total não lhes coibe de todo o contato físico nem
de demonstrações afetivas.

Quando decidimos ter contato sexual com alguém, isso gera karma.
Assim, na perspectiva budista, depois de termos tomado essa
decisão, que consequências surgem na corrente de eventos
cármicos? Quais são as vantagens do celibato?

Se decidirmos ter sexo com alguém e manter depois relações sexuais com
essa pessoa, estabelecemos uma ligação forte com ela que continuará em
vidas futuras. Mas o tipo de ligação e de relacionamento que seguirá
depende do tipo de relacionamento sexual que temos com essa pessoa,
das nossas próprias motivações e atitudes, da motivação e das atitudes
dos nossos parceiros e assim por diante. Muitos fatores irão afetá-lo.

E lá por sermos celibatários isso não significa que evitamos todo o tipo de
consequências cármicas no que diz respeito à sexualidade. Um celibatário
pode perder uma enorme quantidade de tempo e energia pensando em
sexo com grande desejo e apego. Tal celibatário pode pensar em fazer
sexo com alguém mas não realizar o ato. Isto não cria as mesmas
consequências cármicas que o ato físico, mas cria as consequências
cármicas do ato mental. Tudo depende do estado mental; do nível de
emoções e atitudes perturbantes que a pessoa tem, ou do nível de
liberdades que delas a pessoa tem.

Dedicação

Vamos acabar com uma dedicação. Pensemos que qualquer compreensão


ou entendimento, que possamos ter obtido e que qualquer força positiva
resultante de termos escutado esta palestra e pensado sobre ela, possa
crescer cada vez mais de modo a que possamos superar a nossa confusão
sobre o sexo. Que possamos usar a nossa sexualidade de uma maneira
saudável, sem fazermos do sexo a coisa mais importante da vida, mas
apenas parte dela. Que possamos superar quaisquer eventuais obsessões
pelo sexo, por forma a usarmos os nossos potenciais e talentos mais
inteiramente e evitarmos problemas desnecessários e de modo a melhor
ajudarmos a nós próprios e aos outros. Obrigado.

Conclusão

Toda discussão sobre sexualidade no budismo gira em torno de atitudes e


motivações, e de quais são destrutivas, quais trazem infelicidade e
problemas. Se queremos evitar os problemas, precisamos evitar essas
atitudes destrutivas. Algo que pode ajudar bastante é ter uma atitude
realista sobre sexo e não dar uma importância demasiada ao assunto.
Fazer sexo não é a mesma coisa que se alimentar. Existe algo mais do que
simplesmente uma necessidade biológica. É uma forma de mostrarmos
afeto, amor, preocupação, conforto e assim por diante. Mas, novamente, é
ingenuidade acharmos que uma boa vida sexual é a solução de todos os
problemas. Por outro lado, também é ingenuidade acharmos que existe
algo inerentemente “mal” sobre o sexo. Apenas seja realista.
Amor e Compaixão
A compaixão é o desejo que todos sejam livres de problemas e sofrimento e
das causas de ambos. Baseada no mesmo desejo para nós mesmos, a
compaixão surge da constatação de que todos são iguais no desejo de ser
felizes e jamais ser infelizes. No entanto, simplesmente desejar que todos os
problemas dos outros desapareçam não é suficiente. É necessário também
desejar a capacidade de libertar todas as pessoas e, além disso, aceitar a
responsabilidade de fazê-lo através do desenvolvimento do objetivo de nós
mesmos nos tornarmos um buda. Então, seremos capazes de ajudar a todos
da forma mais plena que nos for possível. Entretanto, enquanto treinamos para
a iluminação, ajudamos os outros da melhor forma possível ao longo do
caminho.
Compaixão Baseada na Biologia e
na Razão
O 14º Dalai Lama

Até os animais experimentam ligação maternal com seus recém-nascidos


baseada no hormonônio oxitocina. Além disso, todos os bebês, humanos ou
animais, são iguais em termos de quererem cuidados amorosos e afetuosos.
As sementes da compaixão, portanto, o desejo que os outros estejam livres do
sofrimento, estão em nossos instintos biológicos e são reforçados pela lógica
de que nossa própria sobrevivência depende da compaixão e todos somos
iguais neste sentido.

O resultado de qualquer ação depende da motivação. Dependendo se, por


trás dela, houver uma emoção perturbadora ou uma emoção positiva, a
mesma ação terá resultados diferentes. Mesmo quando a mesma emoção
geral motiva uma ação como, por exemplo a compaixão, os suportes
emocional e mental daquela emoção também afetam o resultado.

Três Tipos de Compaixão

Vejam por exemplo a compaixão. Existem três tipos:

 O primeiro é dirigido a familiares e entes queridos. Sendo baseado no


apego, é limitado no seu alcance. À menor circunstância pode
rapidamente transformar-se em raiva e até em ódio.
 O segundo tipo de compaixão é direcionado aos seres que estão
sofrendo, baseado na pena que sentimos por eles. Com este tipo de
compaixão, nós olhamos para eles de cima para baixo e julgamo-nos
melhores do que eles. Estes dois tipos de compaixão surgem devido às
emoções perturbadoras e por isso conduzem a problemas.
 O terceiro tipo de compaixão, baseado no respeito e na compreensão, é
imparcial. Com ele, percebemos que os outros são iguais a nós: têm o
mesmo direito que nós de ser felizes e não sofrer. Por causa dessa
compreensão nós sentimos amor, compaixão e afeto por eles. Este
terceiro tipo de compaixão é o mais estável. É desenvolvido através da
prática, da educação e da razão. Quanto mais estável for a compaixão,
mais benéfica será.
Estes três tipos de compaixão se encaixam em duas categorias gerais. Os
dois primeiros tipos são emoções que surgem espontaneamente com base
em algo neurótico. O terceiro tipo é uma emoção que surge com base na
razão.

A Proximidade Instintiva e Afeto da Mãe para com seu Recém-


Nascido

A compaixão baseada na razão e sem quaisquer preconceitos é reforçada


pela natureza. Ao nascermos, sejamos humanos, mamíferos ou aves – em
relação às tartarugas e borboletas já não sei - todos nós automaticamente
sentimos um amor imparcial pela nossa mãe, apesar de a não
conhecermos. Todos nós sentimos uma atração, proximidade e afeto
naturais em relação a ela. A mãe também sente automaticamente uma
proximidade e afeto naturais pelo seu recém-nascido. Por isso ela
alimenta e cuida do bebê. Este cuidado afetuoso é a base para o
desenvolvimento saudável da criança.

A partir disto podemos verificar que a proximidade e o afeto baseados na


biologia são as sementes da compaixão. São os maiores presentes que
jamais recebemos e vêm das nossas mães. Quando alimentamos estas
sementes com razão e educação, elas crescem e transformam-se em
verdadeira compaixão - imparcial e dirigida igualmente a todos, baseada
na compreensão da igualdade de todos nós.

Ética Secular Baseada na Compaixão

Para o bebê, o afeto não está baseado em religião, leis ou pressão policial.
Ele surge naturalmente. Assim, embora a compaixão ensinada pelas
religiões seja boa, a verdadeira semente, a verdadeira base para a
compaixão é, porém, biológica. É a base do que eu chamo "ética secular."
A religião deveria simplesmente reforçar essa semente.

Alguns acham que a ética moral deve ser baseada exclusivamente na fé


religiosa. Outros acham que um senso de ética pode ser desenvolvido
através de treinamento. Uns pensam que "secular" significa uma rejeição
da religião. Outros pensam que "secular" implica respeitar
imparcialmente todas as religiões, incluindo o respeito pelos não-fiéis,
como na Constituição da Índia. Este último tipo de ética e, especialmente,
a compaixão em que se baseia, está enraizado no instinto. Como no caso
da mãe e do bebê recém-nascido, eles surgem automaticamente por força
da necessidade de sobrevivência. Devido a essa base biológica, eles são
mais estáveis.
Quando somos mais compassivos, nossas mentes e corações são mais
abertos e nos comunicamos muito mais facilmente.

Quando as crianças brincam, elas não pensam em religião, raça, política


ou procedência familiar. Elas apreciam o sorriso dos amigos, não lhes
importando quem eles são e, em resposta, são legais com eles. Suas
mentes e corações estão abertos. Os adultos, por outro lado, geralmente
enfatizam estes outros fatores: as diferenças raciais e políticas e assim
por diante. Por causa disso as suas mentes e corações são mais fechados.

Vejam as diferenças entre os dois. Quando somos mais compassivos,


nossas mentes e corações são mais abertos e nos comunicamos muito
mais facilmente. Quando somos autocentrados, as nossas mentes e
corações estão fechados e fica difícil comunicar-nos com os outros. A
raiva enfraquece o sistema imunológico, enquanto a compaixão e um bom
coração favorece-no. Com raiva e medo não conseguimos dormir e,
mesmo se adormecermos, teremos pesadelos. Se as nossas mentes
estiverem calmas, dormimos bem. Não precisamos tomar tranqüilizantes;
a nossa energia está equilibrada. Com tensão, a nossa energia acelera e
sentimo-nos nervosos.

Compaixao Traz uma Mente Calma e Aberta

Para ver e compreender claramente precisamos ter uma mente calma. Se


estivermos agitados, não conseguiremos ver a realidade. Portanto, a
maioria dos problemas, mesmo a nível mundial, são problemas criados
pelo homem. Eles surgem porque lidamos mal com as situações porque
não vemos a realidade. As nossas ações estão baseadas no medo, raiva e
tensão. Há estresse demais. Não somos objetivos porque as nossas
mentes estão deludidas. Estas emoções negativas levam a uma mente
fechada e isso acaba por criar problemas, que nunca conduzem a
resultados satisfatórios.

A compaixão, por outro lado, torna a mente aberta, calma. Com ela, vemos
a realidade e quais os métodos para acabar com o que ninguém quer e
criar o que todos querem. Este é um ponto importante e um grande
benefício da compaixão baseada na razão. Portanto, para promover
valores humanos baseados na biologia e apoiados pela razão, as mães e o
amor e afeto instintivos entre mães e filhos possuem um papel vital.
Passando de Renúncia à Compaixão
Dr. Alexander Berzin

Renúncia e compaixão são a mesma atitude, a determinação de nos livrar do


sofrimento e de suas causas mas, no primeiro caso, focamos apenas em nós
mesmos, e no segundo, focamos nos outros. Quando conhecermos todos os
detalhes necessários para gerarmos renúncia - suas causas, os fatores mentais
associados, o entendimento e assim por diante - seremos capazes de
desenvolver a compaixão de forma mais plena.

À medida que avançamos no caminho espiritual budista, precisamos


cultivar esses dois importantes estados mentais como parte da nossa
motivação. Especificamente, eu gostaria de explorar algumas das
questões que estão envolvidas nesses dois estados mental, especialmente
porque os dois são intimamente relacionados entre si. Na verdade, eles
são o mesmo estado mental, só que aquilo a que eles se destinam é
diferente.

O objetivo dos ensinamentos budistas é nos ajudar a nos livrar de


problemas e do sofrimento. O método utilizado para fazer isso é
descobrirmos, dentro de nós mesmos, as suas verdadeiras causas e nos
livrarmos delas de modo que não produzam mais sofrimento. Esse
método baseia-se na convicção de que é possível remover as causas de tal
maneira que elas nunca voltem a se repetir. Para isso, precisamos
desenvolver um caminho com a nossa mente: uma forma de
entendimento que vai eliminar totalmente a causa raíz dos nossos
problemas, que é basicamente a nossa falta de compreensão, o nosso
desconhecimento.

Isso está de acordo com a estrutura das Quatro Nobres Verdades, o


primeiro e mais básico ensinamento do Buda. Quando olhamos para a
renúncia e a compaixão, vemos que ambas apontam para o sofrimento,
para o desejo de eliminar o sofrimento. A principal diferença entre as
duas é que na renúncia a nossa mente está focada em nosso próprio
sofrimento e na compaixão focamos no sofrimento dos outros. Portanto, o
estado mental é muito semelhante, não é? Com isso surgem as perguntas:
Será que essas emoções são iguais? Como podemos fazer a transição da
renúncia para a compaixão?
O Significado de Renúncia e Compaixão

O termo "renúncia" é usado não apenas em inglês, mas em praticamente


todas as outras línguas em que o budismo é apresentado no ocidente. No
entanto, podemos questionar se essa é a tradução apropriada do
sânscrito original ou do termo em tibetano. Podemos questionar ainda, se
o termo foi inventado pelos missionários que estavam entre os primeiros
tradutores do budismo para o ocidente e que compreenderam os
ensinamentos a partir de uma estrutura conceitual diferente da original.
Afinal, a palavra "renúncia" traz a conotação de que é necessário
desistirmos de tudo, por não ser bom nos envolvermos com assuntos
mundanos, e irmos viver em uma caverna ou em um mosteiro. Mas na
verdade essa não é a conotação do termo em sânscrito (nihsarana) ou em
tibetano (nges-'byung). O termo, especialmente se olharmos para o
tibetano, significa uma determinação, significa termos certeza. Ele refere-
se especificamente à determinação de nos livrarmos do sofrimento no
qual estamos focados.

Para desenvolvermos essa determinação de nos livrar do sofrimento


precisamos ter a vontade de desistir dele e de suas causas. Por isso essa
determinação tem a conotação de desistir de algo ou afastar-se de algo.
Esse "algo" é o sofrimento e suas causas mas, para isso, ele deve ser
reconhecido. Só depois de reconhecermos que isto que estou vivenciando
é sofrimento e que esta é a sua causa, que eu não quero mais vivenciá-lo,
que eu quero sair dele, podemos desenvolver a vontade de desistir. "Eu
quero que ele vá embora" poderia ser a forma mais neutra de
expressarmos isso. Esse seria o caso se nosso estado mental estivesse
focado em nosso próprio sofrimento, ou, no caso de compaixão, focado no
sofrimento dos outros. Embora a pessoa que vivencia o sofrimento - nós
mesmos ou os outros - seja diferente, o desejo é o mesmo. Temos o desejo
de que ele vá embora.

Os Fatores Envolvidos na Geração de Renúncia e Compaixão

Não basta apenas reconhecermos no que estamos focando - ou seja, em


algum sofrimento específico que está sendo vivenciado por nós ou pelos
outros e na sua real causa - mas também reconhecer outros aspectos que
estão envolvidos. Tsongkhapa, em a Carta de Conselhos Práticos no Sutra e
Tantra explica muito claramente quais são os elementos necessários para
sermos capazes de meditar de forma eficaz. Primeiro, precisamos
entender o que é meditação. A meditação é um método pelo qual nos
familiarizamos e habituamos nossa mente com um determinado estado
mental ou com um objeto. Fazemos isso gerando repetidamente esse
estado mental ou focando no objeto.

Para nos familiarizarmos com esse estado mental precisamos conhecer


todas as suas especificidades. Nós precisamos saber:

 Onde esse estado mental está focado - neste caso, no sofrimento e nas
suas causas,
 Como a mente se relaciona com o objeto. O termo técnico é "como ela
capta o objeto." Aqui a maneira como nossa mente capta o objeto é com
o desejo de que ele vá embora. Nossa mente não está apenas focando e
prestando atenção ao sofrimento e às suas causas. A forma que nossa
mente está se relacionando com eles é "Vá embora!"

Qualquer estado mental é um composto de muitos fatores mentais


diferentes, tais como concentração, intenção e assim por diante. Se temos
ciência de todos esses fatores eles nos ajudam a gerar o estado mental
desejado. Para isso, Tsongkhapa especifica outros pontos que também
precisamos saber. Eles incluem:

 Do que esse estado mental depende - em outras palavras, quais são os


estados mentais que precisamos ter desenvolvido antes dele, que nos
ajudarão a construir e apoiar este estado mental de, por exemplo,
identificar e reconhecer o sofrimento em nós e nos outros;
 Quais fatores mentais vão ajudar o estado mental que queremos gerar
e quais irão danificá-lo - por exemplo, o amor, por nós mesmos ou
pelos outros, vai ajudá-lo e o ódio, por nós mesmos ou pelos outros, irá
prejudicá-lo.
 Qual será o benefício e uso ou função desse estado mental, uma vez que
ele seja gerado - por exemplo, a renúncia vai nos ajudar a nos livrar do
nosso sofrimento e a compaixão vai nos capacitar a ajudar os outros a
se livrarem do sofrimento.

Na verdade, embora isto possa parecer ter muitos detalhes técnicos, eles
são extremamente úteis para nos aproximarmos do treinamento budista
ou qualquer tipo de formação espiritual com o objetivo de desenvolver o
amor ou a compaixão. Como você faz isso? Muitas vezes nós não sabemos
exatamente o que se entende por amor ou compaixão e por isso sentamos
apenas com uma mente em branco, sem saber o que fazer. Ou talvez nós
tenhamos nossas próprias idéias do que amor ou compaixão possa ser,
mas as nossas próprias idéias geralmente são vagas. Se nós estamos
tentando gerar algo vago, o melhor que podemos esperar é ter apenas um
sentimento vago. Uma vaga sensação de algo provavelmente não é o que
o budismo está nos instruindo a desenvolver.
No treinamento budista, embora estejamos trabalhando com o que
poderia ser chamado de "valores espirituais", estados mentais e assim
por diante, a abordagem é científica e precisa. É precisa porque sabemos
exatamente o que estamos tentando fazer com nossa mente e como fazê-
lo. Se tivermos precisão na forma como trabalhamos com as nossas
mentes, nossos corações e nossas emoções, nós podemos realmente
cultivá-las de uma forma positiva. Caso contrário, tudo fica muito vago.

Alguns de nós podem não ser muito cientifica ou racionalmente


orientados. Alguns de nós podem ser mais intuitivos e trabalharem mais
com as emoções. Mas ao olharmos a intuição mais de perto, vemos que o
melhor tipo de intuição é a intuição precisa. Intuição de algo que é vago
não nos leva muito longe. Assim, independentemente do tipo de
personalidade que temos, a precisão é muito útil.

Fatores Mentais que Acompanham Renúncia e Compaixão: Um


Sentimento Decisivo de "Já Ser o Suficiente"

Quais são os fatores mentais que acompanham renúncia e compaixão? Eu


gostaria de mostrar um quadro preciso de como esses estados mentais
são discutidos nos ensinamentos budistas. Mas mesmo que possamos
descrever essas emoções e estados mentais com precisão, a questão que
naturalmente surge é: como chegamos realmente a senti-los? E então,
como podemos saber se o que sentimos é real?

Bem, se temos uma idéia precisa do que esses estados mentais precisam
conter para serem vistos como algo real, então podemos comparar o que
estamos experimentando agora com o que realmente está acontecendo.
Ao analisar o que estamos sentindo, podemos tentar desconstruir, ver
todas as peças que estão presentes e descobrir quais partes desse estado
mental são frágeis ou são deficientes. Assim saberemos o que precisamos
trabalhar a fim de atingir um estado mais preciso da mente. Analisar e
compreender os nossos sentimentos não é um processo que destrói os
sentimentos. É um processo que é também utilizado em psicoterapia para
nos ajudar a curar a nós mesmos e a sermos mais positivos em relação
aos outros, assim como a nós mesmos.

Qual é a emoção dominante que está presente na renúncia e na


compaixão? É a palavra "yid-'byung" em tibetano, que não é fácil de
traduzir. Mas é um estado de estar cansado de algo: "Eu estou farto
disso”, Às vezes é traduzido um pouco mais fortemente como "desgosto",
no passado eu traduzia dessa forma. Estamos revoltados com o nosso
sofrimento e revoltados com o sofrimento dos outros. Mas pensando
melhor, acho que essa é uma palavra muito forte, porque a revolta pode
facilmente virar a emoção perturbadora da aversão. Eu acho que o tom
dessa emoção é um pouco mais neutro. "Chega de sofrimento, isso tem
que acabar" - não importa se é o nosso próprio sofrimento ou de outra
pessoa. Assim, existe um componente de determinação nesse sentimento.
"É isso! Chega!"

Eu penso que podemos nos identificar com isso em nossa experiência


comum. Poderíamos estar sofrendo e querer sair desse sofrimento. Mas
realmente não fazemos coisa alguma para sair dele até que tomarmos
uma firme decisão, e chegarmos ao ponto de dizer: "É isso, basta!” Então,
esse sentimento de que "basta" é um dos componentes da renúncia e seu
principal tom emocional.

A Crença de Que um Fato É Verdadeiro

Outro fator mental que acompanha a renúncia e a compaixão é a crença


de que um fato é verdadeiro. Às vezes isto é traduzido como "fé", mas eu
acho que essa tradução é inadequada. É inadequada porque a fé também
pode ser em algo falso ou incerto, como a fé no crescimento constante de
uma economia. Aqui, a crença em um fato é orientada para algo que é
verdadeiro, em algo que se acredita ser verdadeiro. Então, nós não
estamos falando sobre acreditarmos no coelho da Páscoa ou em algo
parecido.

Acreditando em um Fato com Base na Razão


Existem três tipos de crença em um fato. O primeiro é acreditarmos em
um fato com base na razão. Com isso, focamos no sofrimento e temos a
firme crença no fato de que algo é realmente sofrimento e que surgiu de
uma causa. Além disso, temos a forte convicção de que esse sofrimento
pode ser eliminado, e para sempre.

Esse último ponto é um componente muito importante. Se não houvesse a


forte convicção, baseada na razão, de que o sofrimento pode ser
eliminado e que um oponente (antídoto) específico pode eliminá-lo para
sempre, todo o tom emocional seria diferente. Por exemplo, podemos
reconhecer que temos um determinado problema na vida e podemos até
ter algum conhecimento do que o está causando. Podemos realmente
querer escapar do nosso problema e podemos até ter chegado ao ponto
de sentirmos profundamente que já “basta”. Nós realmente queremos
fazer algo a esse respeito. Mas suponha que pensemos que é impossível,
que realmente não há nenhuma maneira de sair do nosso problema e que
nós apenas temos que nos calar e aprender a viver com ele. Ou podemos
sentir que estamos condenados a ter esse problema para sempre. Esse
estado de espírito é muito diferente do que é descrito no budismo, não é
mesmo? Nesse estado de espírito em que nos sentimos desesperados , é
muito fácil ficarmos deprimidos com a situação. Estamos completamente
frustrados porque, embora quiséssemos realmente de nos livrar do nosso
problema, percebemos que, na verdade, isso é apenas um desejo ilusório
e que não há muito que possamos fazer.

É por isso que a nossa convicção de que podemos nos livrar de nosso
problema para sempre deve estar baseada na razão. Entendemos como
podemos nos livrar do problema e estamos convencidos de que vai
funcionar. Isso nos dá esperança, e ter esperança nos dá força, e ter força
é muito importante para realmente fazermos alguma coisa para nos livrar
do problema. Isso é acreditar em um fato com base na razão.

Acreditando em um Fato com Base na Clareza Mental


O segundo tipo de crença é chamado de "acreditar em um fato com
clareza mental." Ele clareia a nossa mente no sentido de que a elimina as
emoções perturbadoras, sem , no entanto, eliminar o objeto. O que isso
significa? Isso significa que esse tipo de crença confiante de que o
sofrimento pode ser removido sempre livra nossa mente da depressão, da
dúvida sobre a situação, do sentimento de impotência e do medo. Quando
temos muitos problemas e dificuldades, vivemos com uma grande dose
de medo, pensando: "Isso vai ser assim para sempre" ou "Estou com
medo de fazer algo porque talvez eu possa tornar a situação ainda pior."

Tenho certeza de que todos nós conhecemos exemplos disso, seja em nós
mesmos ou nos outros. Por exemplo, podemos estar em um terrível
relacionamento com alguém, em uma relação muito destrutiva, abusiva,
mas temos medo de sair dessa relação e terminá-la, porque a vida pode
ser pior sem essa pessoa. Mas com a crença confiante de que ao terminar
o relacionamento podemos nos livrar desse problema e tornar a nossa
vida melhor, livramos nossa mente do medo e da indecisão.

Com este segundo tipo de crença confiante nós também paramos de


exagerar a negatividade do sofrimento. Podemos, de fato, ter um
problema mas se exagerarmos na negatividade desse problema, o
transformaremos em um monstro horrível em nossa mente. Podemos até
exteriorizar o problema e tomá-lo como obra do diabo ficando com mais
medo ainda. Mas com a renúncia baseada na crença confiante de que é
possível nos livrar do sofrimento para sempre, não teremos medo. Nós
não estamos fugindo de nossos problemas, tentando escapar do medo,
mas sim enfrentando-os com a crença confiante de que teremos sucesso.
Então, precisamos ser cuidadosos em relação ao nosso entendimento do
estado emocional envolvido em expressões como "escapar da prisão do
samsara". Não é que a nossa mente esteja chateada e confusa por causa
do medo e do ódio da nossa situação samsárica, de sofrimento
incontrolavelmente recorrente. Com a crença lúcida de que podemos de
fato nos libertar de todos esses sofrimentos, temos um calmo,
determinado e claro estado mental.

Acreditando em um Fato Com uma Aspiração a Seu Respeito


O terceiro tipo de crença é "acreditar em um fato com uma aspiração a
seu respeito". A aspiração é de que "eu vou sair dessa, e eu vou fazer
alguma coisa para sair disso." Um exemplo cotidiano desse estado mental
seria alguém que cresceu na pobreza e está determinado a se livrar de
suas limitações e a fazer algo para ser mais bem sucedido em sua vida.
Não é que essas pessoas estejam cheias de ódio de sua situação. Elas tem
clareza, calma e sabem o que precisam fazer para sair de sua pobreza e
estão fazendo isso porque estão fartas dessa situação. Elas sabem o que
deve ser feito e apenas fazem, sem rodeios.

Estou pensando no exemplo de um amigo que cresceu em uma família


muito pobre, em um bairro muito difícil. Ele foi para uma escola onde a
maioria das pessoas de sua turma pertenciam a gangues, lutavam uns
com os outros. Ele estava determinado a se livrar disso. Ele sabia o que
tinha que fazer e trabalhou muito duro para obter dinheiro e ter a
oportunidade de ir para a universidade. Lá ele estudou medicina e agora é
um neurocirurgião muito bem sucedido.

A Compaixão Tem os Mesmos Componentes da Renúncia

Isso é renúncia focada em no próprio sofrimento. Quando o foco é o


sofrimento dos outros, é a mesma coisa. Focamos no sofrimento dos
outros, e a forma como nossa mente se relaciona com esse sofrimento é
com a intenção de que "isso tem que ir embora." O estado mental e a
emoção que acompanham é o mesmo sentimento de "basta." Percebemos
que, assim como nós, todas as pessoas experimentam problemas em suas
vidas, mas não precisamos ficar indignados ou desesperado com isso.s
Esses sentimentos são tipos de emoções perturbadoras. Estamos
confiantes no nosso entendimento e na crença de que essa é a causa de
seus problemas e de que também é possível para eles saírem disso. Não é
que estejamos apenas desejando-lhes o bem, no fundo nós sabemos que
não há esperança. Nossa crença é um tipo de crença que tem como base
uma mente clara. Então, com essa compaixão, nossa mente fica livres de
emoções perturbadoras. Isso é muito importante.
Compassion – the “real thing” compassion – is not an upset state of mind;
it’s a very clear state of mind. It is accompanied by a belief with an
aspiration, which is that “I’m going to try to do something about it, to help
remove this suffering.” So it’s not just wishing that “they” do something
about it, but I’m going to try to help. This aspiration and intention,
however, has to be based on a realistic understanding of what it is that we
can do. It’s not mixed with this idea of “I’m God Almighty and I’m going to
go out and save the world,” and “if I succeed in helping this person, how
wonderful I am; and if I fail, I’m guilty.” This is why we need to
understand so well and have confidence in the process by which suffering
can be removed. The process is one that arises dependently on many,
many causes and factors, not just on my will power and my wish for the
suffering to be gone.

Eu penso em exemplos: lembro-me que minha mãe costumava ficar muito


irritada e indignada quando assistia diariamente ao noticiário local da
televisão americana. Ao ouvir sobre todos os assassinatos, roubos,
estupros e assim por diante ela dizia: “isso é horrível, isso não deveria
acontecer". Isso parece compaixão, mas na verdade é um estado muito
perturbado da mente. Esse não é o "sentimento real" de compaixão. Há
uma mistura, neste caso, de compaixão com preocupação, mas também
com raiva e aborrecimento.

Compaixão, o “sentimento real” de compaixão, não é um estado mental


perturbado, é um estado mental muito claro. É acompanhado por uma
crença, com uma aspiração de que "eu vou tentar fazer algo sobre isso,
para ajudar a eliminar esse sofrimento." Portanto, não é apenas desejar
que "alguém" faça algo sobre isso, mas “eu vou fazer algo, vou tentar
ajudar”. No entanto, a aspiração e a intenção devem estar baseadas em
uma compreensão realista do que podemos fazer. Elas não podem estar
misturadas à idéia de que "eu sou o Deus Todo-Poderoso e eu vou sair
por aí e salvar o mundo", e "se eu conseguir ajudar essa pessoa, é porque
sou maravilhoso, e se falhar, sou culpado". É por isso que precisamos ter
confiança e entender muito bem o processo através do qual o sofrimento
pode ser removido. O processo é aquele que surge na dependência de
muitas, muitas causas e fatores, não apenas da minha força de vontade e
do meu desejo de que o sofrimento seja eliminado.

Renúncia e Compaixão com Foco no Sofrimento da Dor e da


Infelicidade

Como já explicamos, o primeiro componente necessário para gerarmos


renúncia ou compaixão é o foco no sofrimento, tanto o nosso próprio
sofrimento como o dos outros. Então a primeira pergunta é : qual é o tipo
de sofrimento em que estamos focando? O Buda especificou três tipos de
sofrimento verdadeiros. Sem entrar em muitos detalhes, o primeiro dos
três tipos que nós podemos enfatizar é a dor e a infelicidade.

Não é tão difícil querer que a dor e a infelicidade nos deixem. Eu tenho
certeza que todos nós já experimentamos isso na cadeira do dentista. Na
verdade essa é uma questão muito interessante para ser investigada.
Quando estamos sentados na cadeira do dentista e estamos
experimentando a dor de ter um dente perfurado sem anestesia,
podemos renunciar a isso? Esse é o nosso estado mental? Qual é
realmente o nosso estado mental? O que estamos sentindo naquela
cadeira? Para a maioria de nós, eu acho que é medo e ansiedade. Tal como
acontece com a renúncia, vamos nos concentrar sobre a dor que sentimos
mas, em seguida, ao contrário da renúncia, nós geralmente vamos
exagerá-la e transformá-la em um monstro. Certamente não ficaremos
nem um pouco calmos.

Mas suponhamos que nós nos coloquemos nessa situação com renúncia.
Nós ainda poderíamos estar focados na dor da perfuração. Nós
gostaríamos que o sofrimento que vem dessa dor terminasse. Já estamos
fartos e estamos confiantes de que podemos nos livrar dele. Mas agora
temos uma complicação interessante aqui: podemos entender que é
possível livrar-nos dele simplesmente sendo pacientes e esperando que
ele vá embora. Nós não vamos ficar sentados na cadeira do dentista, com
ele perfurando nosso dente, pelo resto da nossa vida. A impermanência é
um fato e a perfuração vai acabar, nós apenas temos que suportar isso.
Com este pensamento, podemos ter calma e podemos estar confiantes de
que, se permanecermos calmos e não surtarmos na cadeira, o sofrimento
da dor da perfuração será concluído e terá um fim.

Outra possibilidade é de que podemos estar confiantes de que vamos nos


livrar do sofrimento dessa dor, alterando a nossa atitude em relação a ele.
Isso se refere ao treinamento da mente ou ao método de treinar a atitude
de transformar as circunstâncias adversas em positivas. Por exemplo, se
pensarmos no sofrimento de todas as pessoas que estão sendo torturados
no Tibete ou em outros lugares do mundo e comparar isso com o que
estamos enfrentando na cadeira do dentista, entendemos que a nossa dor
em comparação à delas é banal. Compreender a relatividade do nosso
sofrimento nos ajuda a manter a calma em face da nossa pequena dor e
assim não vamos sofrer tanto com isso. A dor ainda estará lá, mas já não é
uma grande questão.
Nesses dois exemplos nós temos renúncia. A que estamos renunciando?
No nível superficial estamos renunciando à dor. Mas, independentemente
da nossa atitude em relação a ela não podemos nos livrar da dor
imediatamente. Nós ainda vamos experimentar uma sensação física de
dor até que a perfuração pare. Na verdade, a dor vai continuar até que o
dentista tenha terminado, não importando se vamos ou não renunciar a
ela. No entanto, estar confiante de que a dor da perfuração é
impermanente e que por causa de sua impermanência em breve
estaremos livres dela, nos ajuda a suportar a dor. Assim, se examinarmos
mais profundamente estamos, na verdade, renunciando à infelicidade que
podemos sentir enquanto experimentamos a dor física. Com uma
mudança de atitude podemos nos livrar imediatamente dessa
infelicidade.

Quando o medo e ansiedade acompanham a nossa experiência de estar na


cadeira do dentista, esses estados mentais podem nos trazer ainda mais
infelicidade e tornar a situação ainda pior. Mas se mudarmos nossa
atitude para com a dor, compreendendo, por exemplo, tanto a sua
impermanência quanto a sua relatividade, podemos ter a certeza de que
não vamos sofrer mental e emocionalmente com a perfuração.

Esta é a prática da renúncia, baseada na compreensão do que estamos


renunciando. Isso está relacionado ao que podemos realmente nos livrar
com uma mudança de atitude. Estamos renunciando a:

 Infelicidade experimentada em relação a uma sensação física dolorosa,


 Estados mentais e emocionais dolorosos,
 A infelicidade experimentada em relação a esses estados mentais e
emocionais dolorosos.

Uma mudança de atitude altera completamente toda a situação de sentir


dor. Nós já vimos exemplos disso, com grandes Lamas que morreram em
hospitais ocidentais, seja de câncer ou de alguma outra doença terminal.
Certamente eles devem ter experimentando dor física, mas certamente
também renunciaram a sentirem-se infelizes e com medo da dor. Em vez
disso, eles mudam toda a situação pensando no sofrimento e na tristeza
dos outros e, especialmente, no desconforto do médico que se sente
impotente. Esses Lamas mostram grande preocupação com a forma como
o médico se sente e, também, com a forma como se sentem todas as
pessoas que vêm visitá-los e prestar-lhes homenagens se sentem.

O que está por trás dessa forma de lidar com a doença? É a renúncia e a
compaixão. Eles renunciaram à tensão e a dor mental no que diz respeito
a si mesmos e a todos os que estão envolvidos na situação.Eles não estão
apenas fingindo ter renúncia. Esses Lamas não estão apenas dizendo
exteriormente: "está tudo bem, eu estou bem, não se preocupe " e
internamente não sentindo que está tudo bem. Se fosse esse o caso, eles
estariam sem essa crença confiante: o tipo de crença confiante que afasta
o medo e o desconforto por saber que, ao utilizar esta ou aquela força
opositora (antídoto), toda a tensão da situação pode se dissipar.
Naturalmente, quanto mais familiarizados estivermos com essas práticas
de renúncia e compaixão, como esses Lamas estão, a renúncia completa
com todos os fatores que a acompanham surgirá automaticamente. Não
será algo gerado artificialmente.

Outro exemplo de uma situação difícil seria perder o emprego ou perder


as nossas economias. Embora possamos nos sentir péssimos ao pensar
sobre isso, toda as pessoas que perdem seu trabalho ou sua poupança
também se sentem mal. Queremos que a infelicidade e a depressão nos
deixem, tanto a nós quanto aos outros. Passar da renúncia à compaixão
não significa parar de renunciar ao nosso próprio sofrimento. Em vez
disso, nós expandimos o nosso estado mental para incluir todas as
pessoas: isso significa não apenas nós mas todas as pessoas.

Renúncia e Compaixão com Foco no Sofrimento da Felicidade


Comum

Essa foi a renúncia e a compaixão dirigida apenas ao sofrimento da dor e


infelicidade. No entanto, a nossa felicidade comum também é
problemática. Também é, de certa forma, uma forma de sofrimento. Esse
sofrimento refere-se ao fato de que nossa felicidade comum não dura
para sempre, nunca é satisfatória e nunca é suficiente. Além disso, ela
logo se transforma em infelicidade e desconforto. É por isso que esse
sofrimento é chamado de "sofrimento da mudança”. Por exemplo, se
comer sorvete fosse uma verdadeira causa de felicidade, então quanto
mais comêssemos mais felizes deveríamos ficar. Mas, obviamente,
chegamos a um certo ponto onde quanto mais comemos, mais doentes
nos sentimos. A nossa felicidade comum com relação ao sorvete muda e
deixamos de nos sentir felizes.

Em suma, a felicidade comum é frustrante. Não importa o quanto


desejamos continuar nos sentindo felizes nunca saberemos quando nosso
estado mental vai mudar. Além disso, nós nunca estamos satisfeitos com a
felicidade que temos agora ou com a felicidade que tivemos antes.
Queremos sempre mais. Nós também podemos renunciar a este
sofrimento da mudança com a determinação de nos livra dele.
Mas, o que significa renunciar à felicidade comum? Será que isso significa
que não quero nunca mais voltar a ser feliz? Será que é isso que
queremos: desistir da nossa felicidade porque ela é insatisfatória? Pensar
assim seria um grande equívoco do ponto de vista budista. A felicidade
comum é impermanente e inevitavelmente vai acabar, como foi o caso
com a dor e a infelicidade. Mas com a renúncia nós aceitamos esse fato e
não exacerbamos as qualidades que sentimos com alguns tipos comuns
de felicidade enquanto elas duram.

É assim que superamos o sofrimento que surge da felicidade comum. Nós


a aproveitamos no que ela é, uma sensação temporária que é boa, mas
sabendo muito bem que ela não vai durar. Por sabermos que ela vai
acabar, não ficamos frustrados. Não esperamos que ela dure para
sempre,mas enquanto ela durar nós a aproveitamos. No entanto, não
ficamos ansiosos temendo o momento em que ela vai acabar Lembre-se,
com a crença confiante no fato de que isso vai acabar, nós livramos nossa
mente de qualquer desconforto com esse tipo de pensamento.

Vou dar um exemplo: estamos com um amigo que não vemos o tempo
todo. O amigo vai embora depois de nos visitar por um tempo curto e não
ficamos contentes. Queríamos que ele ficasse mais tempo. Bem, o que
esperávamos dessa visita que fez com que ficássemos descontentes? Será
que, de alguma forma, esperávamos que ao estar com essa pessoa
ficaríamos finalmente felizes e nos livraríamos de nossa solidão e
insegurança para sempre? Se ele ou ela ficassem cinco minutos a mais
ficaríamos satisfeitos?

Ficamos insatisfeitos porque a nossa expectativa não foi cumprida, mas


ela era uma expectativa totalmente irrealista. O que esperávamos era
impossível. Por outro lado, se não esperamos que algo milagroso ocorra,
ficamos satisfeitos com o que quer que aconteça. Isto é aceitar a
realidade. Nós aproveitamos a visita, a refeição, a intimidade ou o que
estivermos usufruindo naquele momento com a pessoa. Sabemos que isso
não vai eliminar a nossa infelicidade, solidão ou fome para sempre; mas
tambéme não esperamos que isso aconteça. Não estamos super
valorizando a visita do nosso amigo. Temos clareza em relação à visita e
não ficamos chateados ou decepcionados quando ele ou ela vai embora.
Aproveitamos quando estamos juntos e quando terminar, terminou.

Uma vez que tenhamos renunciado aos problemas que enfrentamos com
a nossa felicidade comum, como estender isso para a felicidade comum
dos outros? Obviamente, quando estamos focados nos problemas ligados
à felicidade comum de outras pessoas, estar com a mente clara é muito
importante. Certamente, não vamos ficar com inveja porque a outra
pessoa está feliz e nós não estamos, mesmo sabendo que essa felicidade
não vai satisfazê-la. Em vez disso, reconhecemos que essa pessoa está,
por exemplo, esperando muito do seu relacionamento com o amigo, ou
que vai sempre se frustrar e ficar insatisfeita, independente das coisas
agradáveis eles vivenciem juntos. Nós reconhecemos isso como sendo um
problema. Não é que não queiramos que ela seja feliz. O que nós estamos
focando é a infelicidade ou o problema que vem de sua forma de viver a
felicidade comum.

Podemos nos alegrar com a felicidade que outra pessoa está sentindo ao
diferenciarmos o que é a felicidade dos problemas que surgem dela. Nos
ensinamentos budistas o regozijo é muito enfatizado. Podemos nos
alegrar com a felicidade dela; no entanto, entendemos, de forma realista,
as deficiências da felicidade comum e temos compaixão para com os
problemas que podem surgir dessa felicidade. Todavia, mesmo que ela
seja uma felicidade comum, mundana, nós somos capazes de nos alegrar.

Renúncia e Compaixão com Foco no Sofrimento que Tudo Permeia

A forma mais profunda de sofrimento apontada pelo Buda é "o


sofrimento que tudo permeia”, que refere-se aos renascimentos
recorrentes e incontroláveis, conhecidos como "samsara", que são a base
para experimentarmos os dois primeiros tipos de problemas. É o tipo de
sofrimento que o Buddha especificou como sendo o verdadeiro
sofrimento, quando apresentou as quatro nobres verdades. Nós vamos
continuar a ter um corpo dito "contaminado" que de uma forma ou de
outra, vai ter que passar por todo o processo de nascer, aprender a andar
e fazer todas as coisas de novo e que facilmente ficará ferido e,
inevitavelmente, ficará doente, envelhecerá, perderá as suas habilidades e
morrerá. E vamos continuar a ter uma mente "contaminada" que de uma
forma ou de outra vai ser confusa, vai fazer um monte de projeções, ter
todos os tipos de pensamentos estranhos e continuamente terá altos e
baixos com humores inconstantes.

Nós sempre teremos relacionamentos complicados, que nunca serão


satisfatórios. Coisas vão acontecer, ainda que não desejemos que
aconteçam. Na verdade, nem sempre obteremos o que gostamos e muitas
vezes nos separaremos do que gostamos e nos aproximando do que não
gostamos. Quando os outros agem desta ou daquela maneira, não
gostamos porque não podemos fazer da nossa forma. Ao não
conseguirmos o que queremos, mesmo quando tentamos arduamente
obter algo, como um bom emprego, um bom parceiro ou o que quer que
seja, ficamos frustrados. Na verdade, não há certeza, não só sobre as
nossas vidas futuras, mas também sobre o que vamos sentir no próximo
instante.

Sempre teremos que abandonar este tipo de corpo e a vida que estamos
vivendo para nos encaminhar a um novo renascimento e aprender tudo
de novo, fazer amigos e assim por diante. E é óbvio que há pouca garantia
de que vamos renascer como humanos em uma próxima vida. As chances
são de que não seremos humanos. Nós podemos renascer como uma
barata, ou como algo pior. Se temos renúncia, é porque já estamos fartos
disso.

É bastante interessante examinarmos o estado mental envolvido nesse


nível de renúncia. Eu acho que há também um elemento de estarmos
entediados com os renascimentos incontroláveis e recorrentes do
samsara. Isto porque, quando não supervalorizamos a vida no samsara, é
como se, em um certo sentido, não fôssemos atraídos por ela.
Simplesmente não estamos interessados: isso vai ser sempre a mesma
coisa.

Se não somos atraídos pelos problemas, que sempre se repetem, que


temos de enfrentar na vida, ficando entediados com eles, não é que, como
resultado, não nos importamos com o que acontece. Não é que nós
adotamos a atitude desinteressada de "tanto faz." Pelo contrário, nós
entendemos que a causa desse problema que a tudo permeia, ou seja, dos
renascimentos incontroláveis e recorrentes , são as nossas emoções
perturbadoras, nossas atitudes perturbadoras e nosso comportamento
compulsivo impulsionado por elas. Assim, entendemos que a verdadeira
causa desse sofrimento é o desconhecimento e a confusão que estão por
trás dos estados perturbados da mente e do nosso comportamento
compulsivo. Então nos determinamos a nos livrar do samsara.

Essa determinação de se livrar do samsara é a "verdadeira renúncia", o


nível mais profundo de renúncia. Além disso, estamos confiantes de que
podemos acabar com esta síndrome horrível de renascimentos
samsáricos. Como resultado, nossa mente não fica perturbada quando
estamos nesse estado, porque nossas mentes está clara. Estamos
determinados a fazer algo por nós mesmos. Além disso sabemos o que
fazer para que isso tenha um fim e estamos confiantes de que podemos
fazer isso. Quando mudamos o foco da nossa determinação de nos livrar
do samsara, de focar nós mesmos, para focar igualmente em todos os
outros seres, a renúncia vira "grande compaixão".
Perigos a Evitar no Desenvolvimento da Renúncia

Renúncia e compaixão são apresentadas no contexto dos três níveis de


motivação do lam-rim, as etapas graduais para a iluminação. Assim,
quando estivermos desenvolvendo renúncia e compaixão, podemos
analisar os perigos que podem ocorrer ao olhar para elas nesse contexto.
A motivação inicial é trabalhar para melhorar nossas vidas futuras, de
modo a continuarmos a ter renascimentos humanos preciosos com todas
as oportunidades para sermos capazes de continuar no caminho
espiritual para a iluminação. O perigo, quando desenvolvemos esse nível
inicial de motivação, é que podemos facilmente desenvolver apego ao
renascimento humano precioso. Nós pensamos, "eu quero renascer e
continuar a estar com os meus amigos e meus entes queridos, a ter
riqueza e conforto" e coisas assim. Portanto, a nossa luta por melhores
renascimentos pode se misturar a uma grande quantidade de apego.
Quando isso acontece, estamos exagerando as boas qualidades de uma
vida humana preciosa. Desejo e apego, afinal de contas, são baseados em
exagerarmos as boas qualidades de alguma coisa. Quando não temos
alguma coisa que desejamos, pensamos: "eu tenho que ter isso". Quando
temos apego a algo que já temos, pensamos: "eu não quero perder isso".

O perigo da renúncia é semelhante ao perigo do apego, mas com a


dimensão da repulsa. Com a renúncia, em vez da atração que vem de
exagerar as boas qualidades de um renascimento humano precioso,
temos o perigo de exagerar as qualidades negativas da existência
samsárica. Devido a esse exagero, sentimos repulsa ao samsara: o que nos
leva na direção de sentir aversão, que é o que estávamos falando antes.
Aversão e repulsa são intimamente relacionados.

Quando trabalhamos no desenvolvimento da renúncia, fazemos isso


dentro do contexto de alguém que se esforça para alcançar o estado
intermediário de motivação, ou seja, alguém que se esforça para obter a
liberação do samsara e de seus recorrentes e incontroláveis
renascimentos. Isso não é tão simples. De agora em diante estamos nos
concentrando nas desvantagens ou falhas do samsara, que é um dos
chamados "quatro pensamentos que transformam a mente para o
Dharma." Tentamos pensar o tempo todo sobre as desvantagens do
samsara.

Quando realmente estivermos fazendo isso estaremos olhando o tempo


todo as desvantagens do samsara em tudo o que experimentarmos na
vida. Isso pode colorir muito fortemente as nossas emoções e
experiências de vida. Em qualquer situação em que estejamos, o primeiro
pensamento que virá à nossa mente será "sofrimento". Por exemplo, ao
olharmos alguém poderíamos nos sentir um pouco atraídos, mas então
pensamos: "sofrimento". Conseguimos um novo trabalho e pensamos:
"sofrimento"- isso vai ser terrível. Não importa o que
aconteça,"sofrimento". O telefone toca:" sofrimento". Qualquer coisa.
Entramos no chuveiro: "sofrimento - isso vai acabar e eu vou precisar de
outro mais tarde. Que chato”. Dessa forma, é muito fácil desenvolver uma
atitude muito negativa em relação à vida em geral: em relação a tudo o
que experimentamos e, especialmente, em relação às pessoas. Nós
compramos um novo computador : "sofrimento - um dia ele vai quebrar
ou vai entrar um vírus". Nos encontramos com um amigo e nosso
primeiro pensamento é sobre o quão insatisfatório será esse tempo com
ele. Não conseguimos desfrutar de nada. Essa atitude negativa de que
tudo é horrível e insano pode nos levar à depressão.

Combinando Alegria com Renúncia e Compaixão

Como lidar com o perigo de nos tornarmos negativos e deprimidos? Será


que a solução seria simplesmente dizer: "Aprecie a beleza da vida?" Bem,
aqui nós temos que ter muito cuidado. Será que ao trazer alegria para
nossa vida estaríamos sendo ingênuos sobre a natureza do sofrimento de
viver? Isso seria contraditório à renúncia? Pensando com compaixão nós
poderíamos pensar: "como é triste ver que todo mundo está sofrendo,
como isso é horrível". Será que combinar essa tristeza com a alegria de
ver alguém significa “eu estou feliz com o seu sofrimento?” Certamente
não. Então, como podemos combinar essa sensação de alegria e felicidade
com o sentimento de renúncia ou compaixão?

Quando tentamos encontrar alegria em nossa vida e sentir alegria ao


encontrar outras pessoas, estamos focando em algo diferente do que
sentimos quando experimentamos renúncia e compaixão. Estamos
focando, com alegria, no potencial da nossa própria natureza búdica, na
dos outros e em todas as maravilhosas oportunidades que nossa vida
pode oferecer para o avanço espiritual. Todos nós temos o potencial que
nos permite atingir o estado de buda e isso é algo para se alegrar. Essa é a
fonte de alegria. Nós não estamos focando, com alegria, na natureza de
sofrimento de nossa própria vida e da vida dos outros.

Com a renúncia, por exemplo, olhamos para nós mesmos e para nossas
vidas reconhecendo e admitindo o sofrimento que está presente. Embora
isso seja triste, não nos deprimidos. Também não adotamos a atitude de
"tanto faz", que é realmente um sentimento de impotência e
desesperança. Em vez disso, com a renúncia estamos confiantes de que
podemos nos livrar do nosso sofrimento. Estamos determinados e
decididos que vamos fazer algo sobre essa situação intolerável. Sabemos
o que precisamos fazer e estamos confiantes do que podemos fazer para
nos livrarmos dele. Ao pensar assim, isso nos faria feliz, não é mesmo?

Ainda assim, tentar combinar esses dois estados mentais pode ser algo
muito delicado: alegria com renúncia ou compaixão. Será que eles
acontecem simultaneamente? Será que um fundamenta o outro? Será que
eles se alternam, como acontece com a prática de tonglen, quando
assumimos o sofrimento e oferecemos felicidade? Como poderíamos
realmente colocar os dois juntos em nossa vida diária,tendo uma
renúncia sincera, mas sem o estado mental negativo de sentir que tudo é
estúpido e inútil e acabar nos sentindo deprimidos? Parece-me que, com a
renúncia ou compaixão, juntamente com a alegria, estamos apenas
olhando para nós mesmos e para os outros sob dois aspectos distintos.
Mas acho que cada um de nós precisa analisar isso por si mesmo.

Ter Renúncia Não Significa Evitar a Interação Com os Outros

Suponha que realmente tenhamos sucesso no desenvolvimento da


renúncia, de modo que não sejamos atraídos por coisas em nossa
existência mundana normal. A seguir, suponha que concluímos que
qualquer tipo de relacionamento mundano só vai nos trazer sofrimento e
por isso, decidimos nos tornar um monge ou uma monja e vamos viver
em um monastério. Mesmo que tomemos tal decisão, é preciso ter muito
cuidado para não nos tornarmos aversivos às pessoas em geral, porque
isso pode se tornar um grande obstáculo para sentirmos compaixão por
elas. Poderíamos acabar pensando: “você só me traz problemas!” Isto
gera o hábito de não querer nos envolver com ninguém. Se estamos
querendo nos tornar uma pessoa compassiva, precisamos estar
envolvidos com os outros e tentar ajudá-los caso eles estejam precisando.

Aversão ou indiferença para com os outros é um dos maiores problemas


no desenvolvimento de renúncia. Quando nos encontramos com alguém,
podemos sentir que essa pessoa será um problema na nossa vida, que
lidar com ela só vai nos trazer sofrimento e problemas. Ela não vai seguir
o meu conselho, vou ter problemas com ela, etc. Isso é algo que temos que
evitar.

Quando estamos desenvolvendo a renúncia, precisamos olhar para o


nosso próprio sofrimento a partir de dois pontos de vista. Primeiro de
tudo, vemos o nosso sofrimento como sendo intolerável e estamos
determinados a nos livrar dele. Além disso reconhecemos que temos a
natureza búdica, o potencial básico que nos permite nos livrar de todo o
sofrimento e até mesmo nos tornarmos um buda. Reconhecer que temos
o potencial para nos livrar de todo o sofrimento não significa negar o
sentimento de alegria na vida, pelo contrário, isso nos enche de alegria.
Essa alegria não é contraditória com a nossa renúncia, com a nossa
determinação de sermos livres. Na verdade, essa alegria reforça a nossa
renúncia. Então, ao invés de negligenciar a nós mesmos e negligenciar o
trabalho de livrar a nós mesmos, com uma atitude indiferente de "tanto
faz", temos muito cuidado conosco e, em certo sentido, compaixão por
nós mesmos.

A mesma análise se aplica ao desenvolvimento de compaixão por todas as


pessoas. Desejamos que elas também se livrem de seus sofrimentos e se
alegrem pelo fato de que, com base em suas naturezas búdicas, também
podem ser livres. Em seguida, tomamos medidas realistas para ajudá-las.
Em outras palavras: nos preocupamos com essas pessoas e queremos que
se livrem de seus sofrimentos mas não queremos que se afastem.

Primeiro aplicamos essa abordagem a nós mesmos. "Eu quero me libertar


do meu sofrimento mas isso não quer dizer que eu quero me destruir.
Minha atitude negativa de rejeitar tem o foco no sofrimento e não na
minha pessoa. Pode ser muito fácil confundir os dois e pensar: eu vou me
matar para me livrar do meu sofrimento. No que diz respeito a nós
mesmos, essa diferenciação é clara. Podemos então de forma semelhante
pensar com compaixão: "eu quero que você se livre do sofrimento mas
não quero que você vá embora."

Não é muito fácil fazer essa diferenciação. Da mesma forma, não é muito
fácil nos livrar desse sentimento no que diz respeito à renúncia, que nos
faz sentir repulsa pelas pessoas e nos faz evitar de nos envolvermos com
alguém, pensando: "me deixe em paz. Eu só quero ir para a minha caverna
ou mosteiro e meditar". Mesmo que as nossas emoções perturbadoras
sejam tão fortes que prejudiquem gravemente a nossa capacidade de
ajudar os outros e precisemos meditar em isolamento, precisamos evitar
ter uma atitude negativa e sem compaixão conosco ou com os outros.

A Relação Entre as Pessoas e o Sofrimento que Elas Experimentam

Como podemos evitar o problema de desenvolvermos uma atitude


negativa? Para isso é preciso irmos além da esfera do que chamo de
"Dharma Light" e analisar em termos de "Dharma Real". O Dharma Light
apresenta métodos baseados puramente em preocupações com esta vida
enquanto que o Dharma Real é baseado em aceitar vidas passadas e
futuras.

O que chamamos de “vida” é um conceito imputado sobre o somatório


(continuum) de todos os momentos de nossa vida. Ela não é um único
momento e nem é independente desses momentos. Além disso, não
podemos dizer que nossa vida é idêntica à soma de todos os momentos,
porque todos os momentos de nossa vida não estão acontecendo
simultaneamente. Quando somos adultos nossa infância já não está mais
acontecendo. Nossa vida é meramente imputada nesse continuum de
momentos.

De acordo com o Dharma Real as pessoas também são imputadas, dessa


mesma forma, em continuums mentais individuais. Mas os continuum
mentais em que são imputadas não duram somente uma vida. Eles duram
para sempre, não têm começo e nem fim. As pessoas também não são
idênticas a um único momento do continuum mental em que estão
imputadas. Além disso, elas não existem independentemente do
continuum e também não são idênticas a ele, como se todo o continuum
estivesse acontecendo todo ao mesmo tempo.

Uma análise semelhante é válida para qualquer aspecto do continuum


mental no qual uma pessoa é imputada. No caso da renúncia e compaixão,
a característica do contínuo mental é o sofrimento que tudo permeia.
Pessoas existem e experimentam sofrimento, mas elas não são idênticas a
qualquer situação específica de sofrimento que tenha ocorrido no
continuum mental em que estão imputadas. Elas também não são
idênticas ao sofrimento que tudo permeia e que vem ocorrendo em seus
continuums mentais desde tempos sem princípio. Quando nos damos
conta desses fatos, não identificamos o "eu" ou qualquer outra pessoa
com o sofrimento que qualquer um de nós vivencia. Devido a não
confundir "eu" ou "você" com o sofrimento, e pensar que são idênticos,
quando queremos que o sofrimento vá embora, nós não queremos que
"eu" ou "você" vá embora.

Desta forma, temos uma visão muito mais clara do “eu” dos outros e do
nosso próprio “eu”. O sofrimento e suas causas podem ser removidos de
nossos continuums mentais de forma a nunca mais voltarem, mas as
pessoas que estavam enfrentando esses sofrimentos nunca podem ser
removidas. Assim como continuums mentais não têm fim, as pessoas
imputadas neles, cada uma um "eu", também não têm fim.

Se entendermos a pureza inata do continuum mental e que o sofrimento e


suas causas podem ser removidos para sempre, precisaremos também ter
cuidado para não identificar o "eu" com o continuum mental em si. Caso
contrário, podemos desenvolver uma certa ingenuidade a respeito do
sofrimento e não levarmos a sério o desejo de removê-lo, por acreditar
que ele realmente não existe.
Fazendo a Transição entre Receber o Sofrimento e Enviar
Felicidade na prática de Tonglen

É triste pensarmos no sofrimento dos outros ou no nosso próprio


sofrimento. Certamente não nos sentimos felizes quando estamos
sofrendo ou quando alguém está sofrendo. Ficamos tristes quando isso
acontece. Nos ensinamentos sobre tonglen, de enviar e receber, nos
concentramos no sofrimento dos outros ou mesmo no nosso próprio
sofrimento, e naturalmente nos sentimos tristes. Não é que não estejamos
sentindo nada, não é como se o sofrimento fosse irreal e não machucasse.
Nós imaginamos que recebemos o sofrimento aceitando de bom grado
vivenciá-lo. Em seguida, enviamos à pessoa, ou a nós mesmos, o amor,
que é o desejo de felicidade. Então mudamos, de sentir a tristeza do
sofrimento que recebemos, para sentir a felicidade que estamos
enviando.

Fazer essa transição do sentimento de tristeza para o de felicidade é um


obstáculo para muitas pessoas ao fazerem a prática de tonglen. Como
fazer esta repentina mudança: de sentir tristeza para sentir felicidade?
Afinal, estes dois sentimentos são conflitantes. Vimos um problema
semelhante quando discutimos como equilibrar o foco no sofrimento com
a renúncia e, sem ficar deprimidos, também sermos capazes de
experimentar a alegria da vida e suas possibilidades de libertação. Aqui a
questão é a mesma.

Podemos entender a importância de sermos capazes de equilibrar a


tristeza com a felicidade quando, por exemplo, pensamos em visitar um
parente ou amigo doente. Nos sentimos tristes porque eles estão doentes
e sofrendo. Mas se, ao visitar o nosso ente querido, continuamos a nos
sentir tristes e infelizes, isso não vai ajudar a pessoa. Nós precisamos
animar o nosso parente ou amigo que está doente. Mas como podemos
gerar um sentimento de felicidade nessa situação? Sendo apenas
artificiais? Será que simplesmente devemos colocar um grande sorriso no
rosto quando internamente estamos nos sentindo mau?

Aqui, para fazermos uma transição sincera da tristeza para a felicidade,


podemos aplicar os ensinamentos bastante avançados do Mahamudra, o
"grande selo da natureza da mente". Primeiro de tudo, quando
assumimos o sofrimento dos outros ou o nosso, estamos voluntariamente
aceitando o sofrimento. Ao aceitarmos sinceramente, isso nos dá um
sentimento de força e auto-confiança. Não temos a chamada "mentalidade
de vítima", de pobre de mim, de que eu estou sofrendo.
Com o método Mahamudra, consideramos a tristeza que sentimos com
esse sofrimento como sendo uma onda na parte superior do oceano da
mente. Com a força interior que adquirimos em aceitar voluntariamente o
sofrimento, não somos emocionalmente arremessados pela onda.
Calmamente deixamos a onda de tristeza que sentimos assentar. Uma vez
que ela naturalmente tenha se assentado somos capazes de acessar a
alegria inata e calma da mente. Ela naturalmente brilha de nossos
corações e é isso que enviamos para os outros ou o que experimentamos
com a prática de tonglen.

Não há nada perturbado ou perturbador sobre essa alegria natural da


mente. Nós não anunciamos ou fazemos uma demonstração de nossa
felicidade do tipo: "Que pena que você está doente. Eu me sinto mal por
você, mas estou feliz com a minha vida. Tudo está indo bem comigo".
Nossa alegria inata e relaxada tranquilamente conforta e acalma os outros
e a nós mesmos.

As Bases Sobre as Quais a Renúncia e Compaixão são Construídas

Quando começamos nossa palestra eu ressaltei que Tsongkhapa explicou


que a geração de um estado mental, por exemplo de compaixão, requer
primeiro sabermos o que deve ser construído. A compaixão, em primeiro
lugar, é construída baseada em termos desenvolvido a renúncia
adequada. Com a renúncia, estamos determinados a nos livrar de nossas
emoções perturbadoras que nos conduzem aos incontroláveis e
recorrentes renascimentos, e estamos trabalhando para nos libertar
deles.

O próximo passo na construção da fundação para a compaixão é


desenvolvermos a equanimidade com base na nossa renúncia. Em outras
palavras, a equanimidade com base em nossos esforços para eliminar as
emoções perturbadoras. Com ela nos concentramos de forma ampla em
todos os seres, sem as emoções perturbadoras da atração, repulsão ou
indiferença em relação a qualquer um deles. Estamos igualmente abertos
a todos, uma vez que somos todos iguais e que cada ser está meramente
imputado em um continuum mental sem princípio e sem fim. Por conta
desse tempo sem princípionós tivemos todo o tipo de relacionamento
com todos os tipos de seres, por isso não nos identificamos com o tipo de
relação que possamos ter tido com qualquer um deles em algum
momento: amigo, inimigo ou estranho. Conseqüentemente, não há base
para a atração, repulsa ou indiferença.

Não há benefício algum em nos concentrarmos sobre os momentos em


que cada ser possa ter sido, em algum momento, nosso inimigo ou até
mesmo o nosso assassino. É muito mais benéfico nos concentrarmos em
quando todas essas pessoas foram nossas mães e, em seguida, pensar na
bondade que elas demonstraram como nossas mães ou como alguém que
cuidava de nós. Mesmo que a nossa mãe nesta vida tenha sido terrível e
tenha abusado de nós, no mínimo ela demonstrou a bondade de não ter
nos abortado. Mesmo ela, ou talvez nos dias de hoje uma mãe de aluguel,
foi especialmente boa para nós porque nos levou em seu ventre.

O próximo passo é geralmente traduzido como "pagar aquela bondade",


mas eu tenho a tendência a pensar que o termo "pagar" dá uma
impressão errada. Isto porque "pagar" implica em uma dívida, em um
negócio, e se não pagamos a nossa dívida somos culpados. Ao invés de um
sentimento de obrigação ou culpa, o tom emocional que buscamos como
base para esta etapa é o reconhecimento e a gratidão pela bondade
recebida. Em seguida, com base nessa emoção, quando imaginamos
nossas mães cegas, confusas e deludidas, a ponto de cairem de um
penhasco, em um abismo de comportamentos nocivos e nós em pé, perto
delas, sabendo como ajudar, naturalmente vamos assumir a
responsabilidade de fazer tudo o que pudermos para evitar sua queda. Se
o próprio filho ou filha não vai ajudá-la, quem vai?

Com base no fato de nos sentirmos profundamente gratos pela bondade


que em algum momento nos foi demonstrada por todas as pessoas e
estando mais do que dispostos a expressar a nossa gratidão por
realmente podermos ajudá-las, nós desenvolvemos automaticamente o
que é chamado de "amor que aquece o coração". Nós sentimos uma
"conexão que aquece o coração”, por todas as pessoas. Uma conexão que,
sempre que nos encontramos com alguém, automaticamente nos
sentimos próximos, como uma mãe sente por seu único e precioso filho.
Nós estaremos sinceramente preocupados com seu bem-estar e nos
sentiríamos tristes se algo de ruim acontecesse com ele.

É com base nesse amor que aquece o coração que nós temos o tipo de
amor cultivado no budismo: o desejo de que todos os seres sejam
igualmente felizes e que tenham as causas da felicidade. Com base nesse
amor por todos, desenvolvemos a compaixão: o desejo de que todos
estejam livres do sofrimento e das causas do sofrimento. Assim, podemos
ver que essa compaixão que suporta e está implícita é um conjunto de
muitas emoções positivas, como uma sensação de abertura e proximidade
com todas as pessoas, gratidão por sua bondade, pelo amor que aquece o
coração, afeição, e assim por diante. Todos estes sentimentos estão
contidos na compaixão.
Conseqüentemente, se a compaixão é um estado mental de renúncia
dirigida ao sofrimento dos outros, a base da compaixão deve igualmente
estar presente de alguma forma junto com renúncia. Isso significa que
primeiro precisamos ter equanimidade direcionada a nós mesmos - não
atração, repulsa ou indiferença. Em seguida, temos de perceber que não
ajuda nos concentrarmos nas coisas negativas que fizemos em vidas
passadas e nesta vida. Concomitantemente a vermos que os outros foram
nossas mães e que foram bons para nós, temos de nos concentrar nas
coisas positivas que fizemos para nós mesmos. O fato de que, neste
momento estamos aproveitando todas as circunstâncias benéficas de uma
vida humana preciosa é o resultado cármico de ações construtivas que
fizemos no passado. Ao fazer isso nós apreciamos a bondade que
demonstramos por nós mesmos e somos gratos por isso. Isto leva ao
amor que aquece o coração por nós mesmos e não ao ódio por nós
mesmos. Nós cuidamos sinceramente do nosso bem-estar e nos
sentiríamos péssimos se algo ruim nos acontecesse.

Quando trabalhamos com compaixão um dos principais princípios para


equalizarmos todas as pessoas é entendermos que todas querem ser
felizes, ninguém quer ser infeliz. Todas têm igualmente o direito à
felicidade. "Todas" aqui também inclui nós mesmos. Portanto, nós
também temos o direito de sermos felizes, nós também temos o direito de
não sermos infelizes. Assim, desenvolver renúncia - essa determinação de
sermos livres - é basicamente desenvolver compaixão por nós mesmos.

Por favor, não interpretem mal. Eu não estou encorajando uma atitude
dualista conosco, onde o "eu" que está sendo compassivo comigo é
diferente do "eu" por quem eu estou sentindo compaixão. "Ser gentil
conosco" é apenas uma figura de linguagem. Mas se queremos ser gentis
com nós mesmos e nos livrar do sofrimento e da infelicidade, precisamos
por exemplo, desenvolver a atitude de "eu não quero entrar em um
relacionamento doentio com essa pessoa, eu não quero ficar com raiva, eu
não quero ficar chateado, eu não quero me apegar". Desta forma,
trabalhamos com a determinação de nos livrarmos dos nossos problemas.
Essa é uma outra forma de equilibrar a sensação de que "tudo é
sofrimento” com um sentimento básico de felicidade calma e amorosa.

Resumo

Nós cobrimos um material extenso mas eu gostaria de apresentar um


quadro mais completo deste tema que é muito importante no budismo.
Não é apenas um tema que estudamos, mas em termos de nosso próprio
desenvolvimento pessoal, é importante para nos indicar a forma como
desenvolvemos a renúncia e a compaixão. Nós examinamos como
fazemos a transição da renúncia para a compaixão de uma forma
saudável e estável e também a relação entre esses dois estados mentais.
Meditação de Causa e Efeito em
Sete Partes para Desenvolver
Bodhichitta
Dr. Alexander Berzin

Bodhichitta é aspirarmos nos tornar budas para podermos beneficiar os


demais seres o máximo possível. O método de causa e efeito em sete partes,
para gerarmos essa aspiração e depois fortalecê-la, nos leva por uma
sequência de emoções e compreensões, começando com a equanimidade.
Reconhecemos que todos os seres já foram nossas mães, nos recordamos do
amor materno e, com um sentimento de gratidão, desejamos retribuir essa
gentileza. Isso nos leva a desenvolver um sentimento de amor e compaixão
igualmente distribuído por todos os seres, uma determinação excepcional e,
como resultado dessa sequência causal, um ideal de bodhichitta.

Introdução

Temos vidas humanas preciosas com tempo livre e oportunidades que nos
permitem seguir o caminho budista. Contudo, essas liberdades e oportunidades
não vão durar para sempre. Por isso precisamos tirar todo o proveito das
oportunidades que temos.

A melhor maneira de tirar proveito da nossa preciosa vida humana é usá-la para
desenvolver o ideal de bodhichitta. O ideal de bodhichitta é uma mente e um
coração focados em nossa iluminação futura, que ainda não aconteceu, mas que no
futuro pode ser imputada em nosso continuum mental com base nos aspectos da
natureza búdica que nos permitirão alcançá-la. Esses fatores incluem nossas redes
de força positiva e consciência profunda (mérito e sabedoria), nossas diversas boas
qualidade e a pureza natural de nossa mente. Esse ideal de bodhichitta vem
acompanhado de duas intenções: atingir a iluminação o mais cedo possível e, com
isso, beneficiar todos os seres.

Ao desenvolvermos bodhichitta, desenvolvemos as duas intenções na ordem


oposta. Primeiro, temos a intenção de beneficiar completamente todos os seres
limitados, e não apenas os seres humanos. Isso aflora por conta do amor,
compaixão e resolução excepcional que iremos mais tarde discutir nesta palestra.
Então, para os beneficiar com mais eficácia, temos a mais absoluta intenção de
atingir a iluminação e nos transformarmos em budas. Precisamos atingir a
iluminação para livrarmo-nos de todas as nossas limitações e falhas, porque vemos
que elas nos impossibilitam de ajudar melhor os outros. Por exemplo, se ficarmos
irritados com uma pessoa, como conseguiremos ajudá-la? Além disso, precisamos
nos iluminar para realizarmos todas as nossas potencialidades. Precisamos realizá-
las totalmente para sermos capazes de usá-las em benefício alheio. Assim, ao
desenvolvermos o ideal de bodhichitta, não é que queiramos primeiro
transformarmo-nos em budas, porque esse é o estado supremo, e depois ajudar os
outros como se isso fosse um imposto desagradável que tivéssemos de pagar.

Há dois métodos principais para se desenvolver o ideal de bodhichitta. Um é


através dos ensinamentos de causa e efeito em sete partes; o outro é equalizar e
intercambiar as nossas atitudes a respeito do eu e do outro. Aqui, vamos analisar o
primeiro dos dois métodos.

O Desenvolvimento da Equanimidade

Os ensinamentos de causa e efeito em sete partes têm seis passos que agem como
causas para o sétimo, o verdadeiro desenvolvimento do ideal de bodhichitta. Eles
começam com um estágio preliminar, que não esta incluído na contagem das sete
partes. É o desenvolvimento da equanimidade, com a qual superamos atração e
apego a determinados seres, aversão a outros e indiferença aos demais. O
propósito desse estágio preliminar é sermos igualmente abertos a todos.

A compreensão de que todos são iguais, que é necessária para sermos igualmente
abertos a todos, vem do entendimento de que o contínuo mental ou o fluxo mental
não tem começo nem fim. Consequentemente, em algum momento todos foram
nossos amigos, todos foram nossos inimigos, todos foram desconhecidos e seu
status está sempre mudando. Neste sentido, todos são iguais.

Nessa maneira de pensar, a mente sem começo é o ponto principal que precisamos
compreender. Essa é uma suposição básica no budismo. O renascimento diz
respeito à continuidade da experiência. Os contínuos mentais são continuidades de
experiência. Eles são individuais e não têm uma identidade inerente como um ser
humano, um animal, ao macho ou ao uma fêmea. A forma de vida e o gênero que
um continuum mental manifesta em um determinado renascimento são
dependentes de ações kármicas anteriores e de suas repercussões.

Essa compreensão da mente sem começo é fundamental para conseguirmos


desenvolver bodhichitta, porque é com base nessa compreensão que podemos
desenvolver a compaixão amorosa por absolutamente todos os seres. Não vemos
um outro ser como um mero mosquito, por exemplo. Pelo contrário, o vemos como
um contínuum mental individual infinitamente longo e que nesta vida aconteceu
ter a forma de um mosquito, devido ao seu karma; ele não é inerentemente um
mosquito. Isso permite que nosso coração seja tão aberto a um mosquito quanto a
um ser humano. O poder da bodhichitta vem do fato de, com ela, queremos
beneficiar absolutamente todos os seres. Mas é claro que isso não é fácil.
Reconhecendo Todos os Seres como Tendo Sido Nossa Mãe

Uma vez que com equanimidade somos capazes de ver todos os seres como
contínuos mentais individuais e sem começo – o que não nega as suas formas nesta
vida – estamos prontos para dar o primeiro passo na meditação de causa e efeito
em 7 partes, ou seja, reconhecer que cada ser, a uma dada altura, foi a nossa mãe. A
linha de raciocínio é que assim como temos uma mãe nesta vida, também tivemos
uma mãe em cada vida em que nascemos de um útero ou de um ovo. Pela lógica
dos renascimentos sem princípio, e considerando-se o fato de que existe uma
quantidade limitada, porém incontável, de seres, todos foram nossas mães desde
tempos também sem princípio– e nós fomos mães deles. E eles também foram
nossos pais, nossos melhores amigos e assim por diante.

Ao vermos todos os seres como tendo sido nossa mãe, precisamos ter cuidado para
não vermos o “nossa mãe” como sendo a identidade inerente de todos os seres,
pois isso também pode ser um pouco problemático. Devemos tentar nunca perder
de vista a vacuidade, a ausência de identidades fixas e inerentes.

Reconhecer a todos como tendo sido nossa mãe muda radicalmente a maneira
como nos relacionamos com os outros. Aqui, estamos indo além da equanimidade
para com todos. Estamos vendo que tivemos – e ainda podemos ter – um
relacionamento muito próximo, afetuoso e amoroso com todos os seres.

Lembrando-nos da Bondade do Amor Maternal

O segundo dos sete passos é lembrarmo-nos da bondade do amor maternal. Para


muitos ocidentais, essa é uma parte problemática da meditação, porque os
indianos e os tibetanos dão sempre o exemplo da nossa mãe nesta vida. Nessas
sociedades, parece que a maioria das pessoas têm relacionamentos menos
neuróticos e menos difíceis com as suas mães do que em sociedades ocidentais. Se
isso é verdade ou não, depende naturalmente dos casos individuais. Mas eu diria, a
partir das minhas observações, e tendo vivido em sociedades tibetanas e indianas
durante 29 anos, que o relacionamento entre filhos e filhas crescidas e as suas
mães parece ser muito menos neurótico do que no ocidente.

Esta parte da meditação consiste em lembramo-nos de como a nossa mãe é


bondosa – ou era, no caso dela já ter morrido – lembrando-nos até dos tempos
mais longínquos em que ela nos trazia no seu ventre. Então, ampliamos isso e
pensamos em como todos os outros seres nos demonstraram a mesma bondade
em vidas anteriores.

Muitas pessoas que ensinam isso a ocidentais, dizem “tudo bem, se você tiver
problemas com a sua mãe, você pode pensar em seu pai, num amigo próximo ou
em qualquer pessoa que tenha lhe demonstrado uma grande bondade. Assim, não
ficará bloqueado ao tentar fazer esta meditação.” Acho essa abordagem útil. No
entanto, é muito importante, se tivermos problemas no nosso relacionamento com
a nossa mãe, lidar com eles em vez de ignorá-los. Se não conseguirmos ter um
relacionamento saudável com a nossa mãe, será muito difícil termos
relacionamentos afetuosos e saudáveis com qualquer outra pessoa. Iremos sempre
ter problemas. Por conseguinte, é muito importante olharmos para o nosso
relacionamento atual com a nossa mãe e tentarmos reconhecer a bondade dela,
não importa quão difícil esse relacionamento possa ter sido ou possa ser.

Primeiro, precisamos considerar o amor materno ideal. Os textos clássicos estão


cheios de descrições dele: vemos em muitos animais, por exemplo. Uma mãe
pássaro senta-se nos seus ovos sem se importar de ficar molhada e cheia de frio, e
quando os ovos chocam ela vai apanhar e mastigar insetos, sem os engolir, e dar o
alimento aos seus filhinhos. Isso é realmente extraordinário.

É claro, há exemplos do reino animal e dos insetos em que as mães comem os seus
bebês, mas ainda se submetem às dificuldades de dar à luz. E quer tenha sido a
nossa mãe biológica ou uma mãe hospedeira [mãe de gestação ou barriga de
aluguel], alguém nos carregou no seu ventre. Mesmo se tivéssemos sido
concebidos num tubo de ensaio, alguém cuidou dele e o manteve na temperatura
adequada. Se nossa mãe gostou de nos trazer no seu ventre ou não, isso é
irrelevante. Foi uma bondade incrível ter-nos carregado para todo o lado no seu
ventre e não nos ter abortado; não foi nada confortável para ela. Ela submeteu-se a
muita dor durante o nosso nascimento. Além disso, quando éramos bebês, alguém
teve de se levantar no meio da noite, dar-nos de comer e cuidar de nós; se assim
não fosse, não teríamos sobrevivido. Essas coisas são enfatizadas nos textos
clássicos.

Se tivermos tido dificuldades com a nossa mãe, podemos encontrar pistas sobre
como prosseguir nas meditações sobre o guru do lamrim do V Dalai Lama. Muitos
dos textos mais antigos dizem que é quase impossível encontrar-se um professor
espiritual que só tenha boas qualidades. Nenhum professor espiritual é ideal; todos
têm uma mistura de pontos fortes e fracos. O que queremos fazer na meditação
sobre o professor espiritual é focalizar nas boas qualidades e na bondade do
professor a fim de desenvolvermos um grande respeito, inspiração e apreciação.
Isto nos motivará a desenvolver essas boas qualidades e bondades.

O V Dalai Lama explicou que, nesse processo, não precisamos negar as limitações e
as falhas do professor. Isso seria ingenuidade. Reconhecemos as limitações, mas
por enquanto as colocamos de lado, porque se pensarmos sobre as falhas do
professor isso apenas nos levará a reclamações e a uma atitude negativa. Isso não
iria ser nada inspirador. É apenas através do foco nas qualidades positivas e na
bondade que ganhamos inspiração.

Assim, primeiro reconhecemos suas limitações. Mas, precisamos examinar


honestamente se elas são verdadeiras ou se são apenas projeções da nossa parte.
Também precisamos examinar se essas limitações são de agora ou se são velhas
histórias das quais não queremos nos desapegar. Quando tivermos esclarecido
quais são as verdadeiras as limitações, dizemos “tudo bem, essas são as suas as
limitações.” Então, pomo-las de lado e focalizamos nas boas qualidades.

O mesmo procedimento é adequado e pode funcionar muito bem quando


analisamos a bondade da nossa mãe. Nenhuma mãe é ideal. Se nós próprios formos
pais, saberemos que é incrivelmente difícil ser perfeito, por isso não devemos
esperar que os nossos pais sejam. Então, examinamos as falhas e as limitações que
a nossa mãe tem ou teve e tentamos compreender as causas e as circunstâncias
que as causaram. Ela não é intrinsecamente uma má pessoa, assim como nenhum
continuum mental é intrinsecamente um mosquito (que também não é
intrinsecamente irritante). Certificamo-nos de que não estamos projetando
limitações na nossa mãe e nem agarrados a histórias antigas, e então pomos isso de
lado por agora. Dizemos “está bem, ela tem ou teve falhas, mas é uma pessoa como
todas as outras: todos nós temos falhas. Então olhamos para a bondade e para as
boas qualidades que ela nos mostra.

Um professor ocidental de Dharma – esqueci-me exatamente quem era – sugeriu


um método de meditação que eu acredito ser muito útil. Neste momento, tendo-se
posto de lado as qualidades negativas das nossas mães, percorremos as nossas
vidas em unidades de cinco ou dez anos. Durante cinco minutos, meia hora, uma
hora, ou o tempo que quisermos, percorremos as nossas vidas e tentamos lembrar
de todas as coisas amorosas que a nossa mãe nos fez em cada um desses períodos
de cinco ou dez anos. Primeiro, desde o tempo em que estivemos no seu ventre até
termos cinco anos, lembramo-nos que ela trocou as nossas fraldas sujas, deu-nos
de comer, deu-nos banho e fez todas essas coisas. Então, recordamos dos cinco aos
dez anos e assim por diante. Ela levou-nos à escola – talvez não nos tenha ajudado
nos trabalhos escolares de casa, ou talvez tenha, mas provavelmente cozinhou para
nós e lavou a nossa roupa. Quando éramos adolescentes, ela provavelmente deu-
nos dinheiro. Não importa quão terrível nossa mãe possa ter sido, sem dúvida ela
também demonstrou muita bondade em cada período das nossas vidas.

Então podemos fazer a mesma coisa com os nossos pais, outros familiares, amigos
e assim por diante. É muito útil para a meditação. É um antídoto especialmente
forte para a depressão que às vezes sentimos quando pensamos, “ninguém me
ama.” Deste modo, se pudermos ver a bondade das nossas mães nesta vida, isso
nos ajudará a reconhecer que todos os seres foram similarmente bondosos
conosco. Ninguém foi uma mãe ideal – claro, ela pode ter nos comido em alguma
vida passada, mas também nos demonstrou bondade.

Retribuindo a Bondade do Amor Maternal

A terceira parte dos ensinamentos quintessenciais em sete partes é desenvolver o


desejo de retribuir a bondade do amor maternal que recebemos. Para isso,
imaginamos nossa mãe cega, totalmente confusa e muito chateada, de pé na beira
de um abismo de sofrimento e prestes a cair. Também imaginamos nós, seu filho
ou filha, de pé ao seu lado, sabendo como evitar que caia. Se nós, seus filhos, não a
ajudarmos, quem ajudará? A quem podem recorrer? Esses pensamentos nos
ajudam a desenvolver o desejo sincero de retribuir sua bondade ajudando-a a se
libertar de todas as formas de sofrimento.

Para fortalecer o desejo, podemos fazer uma adaptação adicional à meditação que
acabamos de esboçar, lembrando-nos da bondade maternal que recebemos. De
novo, percorremos períodos de cinco ou dez anos das nossas vidas e examinamos a
forma como retribuímos essa bondade às nossas mães. Fazemos o mesmo com
nosso pai, nossos amigos, familiares e assim por diante.

Se compararmos o amor e a ajuda que recebemos com a que demos, a maioria de


nós verá que recebemos muito mais do que demos. O objetivo disso não é nos
sentirmos culpados, o que seria uma reação neuróticatipicamente ocidental. O
objetivo é nos ajudar no passo seguinte da meditação de bodhichitta, que é, tendo
reconhecido a bondade que tiveram conosco, desenvolver um profunda gratidão e
o desejo de retribuir essa bondade.

Eu acho que esta adaptação à meditação, que acabei de esboçar, é muito útil para
que ela realmente toque os nossos corações e realmente sintamos algo. Acho que é
muito importante. Vi muitos budistas ocidentais que fazem meditações de amor e
compaixão, e que até ajudavam os outros, mas que têm um relacionamento
péssimo com os pais e isso os paralisa. Acho que é realmente muito útil
trabalharmos nesse relacionamento e não o evitá-lo apenas porque é difícil.

Método Sugerido para Aplicar a Prática

Uma coisa importante em cada um desses passos é tentar expandir o âmbito da


nossa prática para todos os seres. Em cada passo, podemos obviamente começar
de uma forma restrita e gradualmente expandir o âmbito da meditação. Fazemos
isto com base na equanimidade, vendo a todos os seres como contínuos mentais
individuais. Pela minha experiência, uma maneira eficaz de fazermos isto, é, ao
invés de simplesmente nos sentarmos para meditar com os olhos fechados,
pensando em “todos os seres sencientes” de um modo abstrato, praticar o modo
que sugiro no treinamento de sensibilidade para desenvolver emoções
equilibradas.

Em outras palavras, tentamos desenvolver essas atitudes positivas primeiro em


relação a determinadas pessoas – amigos, pessoas que não gostamos e
desconhecidos —, focando nas suas fotos. Depois, tentamos desenvolvê-las
olhando para as pessoas que estão sentadas em círculo à nossa volta, no grupo de
meditação. Então tentamos desenvolvê-las no metro ou no ônibus com as pessoas
que lá estão. Desta maneira, aplicamos realmente aos outros as atitudes positivas
que estamos tentando cultivar.

Do mesmo modo, tentamos aplicá-las aos animais, insetos e assim por diante – e
não apenas teoricamente na nossa imaginação, mas quando os vemos realmente.
Ao fazermos isto, precisamos, por exemplo, tentar evitar o extremo que às vezes
vemos entre os tibetanos – isto é, que é mais fácil ser amável a um inseto do que a
um ser humano. Se houver uma formiga no meio do templo, todos procuram
certificar-se de que ela não irá se machucar. No entanto, muitas vezes não mostram
o mesmo tipo de preocupação e bondade com os seres humanos, por exemplo com
os indianos ou estrangeiros que visitam os seus templos e que gostariam de saber
algo sobre o que lá vêem. Temos que manter aqui uma perspectiva apropriada.

Alguns pessoas talvez digam que é mais fácil ajudar a uma formiga do que ajudar a
um ser humano, porque a formiga não nos responde com grosserias e nem nos
desafia, enquanto que as pessoas muitas vezes o fazem. Uma formiga nós podemos
apanhar e levar para fora, mas não podemos fazer o mesmo com as pessoas
quando elas nos irritam. Em todo o caso, o ponto é que muitas pessoas fazem estas
meditações de forma muito abstrata – “todos os seres sencientes” - e nunca as
aplicam a pessoas reais, “no mundo real.” Isto cria um grande problema na
obtenção de qualquer progresso ao longo do caminho.

Grande Amor

Quando reconhecemos a todos como tendo sido nossas mães, nos lembramos da
bondade do amor maternal e pensamos em retribuir essa bondade, naturalmente
sentimos o amor que aquece o coração, o amor que nos faz estimar o outro, nos
preocuparmos com seu bem estar e nos sentirmos tristes se algo de ruim lhe
acontecer.

Com base no amor que aquece o coração, passamos ao quarto passo, à meditação
sobre o grande amor. Amor é o desejo de que o outro seja feliz, geralmente alguém
de quem gostamos. Contudo, o grande amor é o desejo de que todos sejam felizes e
tenham as causas da felicidade. É realmente muito importante que se deseje as
duas coisas: a felicidade e as suas causas. Isso significa que precisamos ter a
compreensão de que a felicidade vem de causas, que não é um favor dos deuses ou
boa sorte – e a causa não é o eu.

As causas para a felicidade são dadas nos ensinamentos sobre o karma: se as


pessoas agirem construtivamente, sem apego, raiva e assim por diante, elas
experimentarão felicidade. Consequentemente, precisamos aqui pensar, “que você
possa ter a felicidade e as causas da felicidade. Que você possa realmente agir de
uma maneira construtiva e saudável, de modo que possa experienciar a felicidade.”

Nesse passo já fica claro que nas meditações de bodhichitta estamos nos
esforçando para nos transformarmos em budas para ajudar a todos os seres, mas
sem exagerar o papel que podemos desempenhar nessa ajuda. Podemos mostrar o
caminho aos outros, mas eles próprios precisam acumular as causas para a
felicidade.

A Grande Compaixão

Vem então o quinto passo, a grande compaixão: o desejo de que todos sejam livres
do sofrimento e das causas do sofrimento. Isso também inclui a total compreensão
de que o sofrimento dos seres vem de causas, e que eles precisam eliminar essas
causas a fim de eliminar o seu sofrimento. Uma vez mais, é uma visão muito
realista. O grande amor e a grande compaixão não são apenas sentimentos
emocionais como, “tenho tanta pena que todos estejam sofrendo.” Pelo contrário,
são acompanhados da compreensão da causa e efeito comportamental.

A grande compaixão excede a compaixão comum em muitas outras maneiras:

 É dirigida igualmente a todos os seres limitados e não a apenas alguns.


 Assim como no grande amor, ela inclui estimarmos e nos preocuparmos com cada ser,
como o faz uma mãe amorosa com seu filho ou filha, e desejarmos protegê-los.
 É o desejo de que cada ser esteja livre do sofrimento que tudo permeia, de renascer
repetida e descontroladamente com agregados que vêm da confusão, que estão
misturados com confusão, que produzem mais confusão e, assim, perpetuam o
sofrimento. Por isso, não é simplesmente o desejo de que os outros se livrem do
sofrimento da dor ou do sofrimento da mudança. O sofrimento da mudança é a
felicidade mundana, que nunca dura e nunca satisfaz. A grande compaixão não é o
desejo de que os seres encontrem um paraíso para escaparem desse problema.
 É baseada na firme convicção de que é possível a todos os seres limitados se liberarem
do sofrimento que a tudo permeia. Não é meramente um desejo agradável.

A compaixão é sempre descrita como uma atitude semelhante à renúncia, a


determinação de ser livre. A renúncia é uma atitude dirigida ao nosso próprio
sofrimento, às suas causas e ao desejo de ficarmos livres deles. Com base em nossa
determinação de ficar livre de nosso próprio sofrimento e de suas causas, podemos
desenvolver empatia pelos outros. O que fazemos é pegar a mesma atitude e dirigi-
la aos outros, ao seu sofrimento e às causas do seu sofrimento e, assim, desejamos
que eles se livrem de seu sofrimento e suas causas com a mesma intensidade que
desejamos isso a nós mesmos.

Dizem que, se não tivermos pensado sobre o nosso próprio sofrimento e desejado
nos livrar dele, será difícil nos empatizarmos e sentirmos verdadeira compaixão
pelos outros. Temos de compreender que os outros realmente experienciam a dor
do sofrimento e que o seu sofrimento os machuca tanto quanto o nosso próprio
sofrimento nos machuca. Compreender isso depende de reconhecer que o nosso
próprio sofrimento dói. Caso contrário, não iremos levar o sofrimento dos outros a
sério. Lembrem-se que estamos desejando que as nossas mães, que foram tão
afetuosas conosco, sejam felizes e estejam livres do sofrimento. Começamos a
meditação com as nossas mães e assim por diante, de modo a que a meditação
realmente envolva sentimentos.

Estendendo o Método ao Alívio da Baixa Autoestima

Uma vez que os textos dizem que a compaixão só se torna sincera se primeiro
desejarmos estar livres do nosso sofrimento e das suas causas, acho que podemos
dizer o mesmo a respeito do amor. Isto é particularmente relevante para os que
sofrem de baixa autoestima. A baixa autoestima é um fenômeno particularmente
ocidental, não é muito frequente entre os tibetanos ou mesmos entre os indianos.
Antes de podermos desejar sinceramente que os outros sejam felizes e tenham as
causas da felicidade, precisamos de desejar sinceramente sermos felizes e termos
as causas da felicidade. Se sentirmos que não merecemos ser felizes, por que algum
outro ser mereceria?

Então, se sofrermos de falta de autoestima, acredito que podemos seguramente


adicionar um passo à nossa meditação: o desejo de que sejamos felizes. Acho que
isso é muito importante. Para começarmos a pensar desse modo, que todos
merecem ser felizes, é bom nos lembrarmos da natureza búdica. Não somos
completamente maus; ninguém é completamente mau. Todos temos os potenciais
para nos transformarmos em budas, para beneficiarmos os outros, para sermos
felizes e assim por diante.

Um outro ponto: o amor e a compaixão são também desenvolvidos na escola


Theravada e em outras escolas Hinayana. Nelas, contudo, os métodos de meditação
não seguem estágios graduais, como esses sete aqui, que nos ajudam a desenvolver
sentimentos de amor e de compaixão com base na razão, tal como a lembrança da
bondade maternal. No entanto, não devemos pensar que a meditação sobre o amor
e a compaixão não está presente na tradição Theravada. O que não está presente
são os passos seguintes, da meditação bodhichitta.

A Decisão Excepcional

Diferentes tradutores traduzem o sexto passo de diferentes maneiras. Alguns


chamam-no de “o puro desejo altruísta.” Sua Santidade o Dalai Lama usa o termo
“responsabilidade universal.” Embora eu mesmo o tenha traduzido de várias
maneiras diferentes, agora prefiro “a decisão excepcional”. Com a grande
compaixão, realmente desejamos e temos a intenção de ajudar todos os seres.
Tomamos a firme decisão de que definitivamente iremos assim fazer. Assumimos a
responsabilidade de realmente fazermos alguma coisa a respeito do sofrimento
alheio. Se alguém estiver se afogando num lago, nós não podemos ficar apenas
olhando e dizendo: “tst, tst, queria que isto não estivesse acontecendo.” Precisamos
mergulhar e tentar ajudar a pessoa. Do mesmo modo, na meditação de bodhichitta,
decidimos assumir a responsabilidade de ajudar a todos os seres o máximo
possível.

O Ideal de Bodhichitta

Considerando que esses seis passos são uma causa, o sétimo é desenvolver o ideal
de bodhichitta como o seu efeito. Quando examinamos o modo como podemos
beneficiar os outros o máximo possível, percebemos que, com as nossas limitações
atuais e nossas emoções e atitudes perturbadoras, não somos capazes de ajudar
muito. Se eu for egoísta, impaciente, sentir-me atraído por determinadas pessoas e
irritar-me com outras, se for preguiçoso e estiver sempre cansado, se não
conseguir compreender bem os outros e não conseguir comunicar-me
corretamente, se tiver medo dos outros, medo de que “não gostem de mim” ou de
ser rejeitado, todas estas coisas irão me impedir de ajudar os outros seres tanto
quanto for possível. Portanto, por querer ser realmente útil, preciso realmente me
livrar dessas coisas. Preciso realmente me trabalhar e livrar-me dessas coisas, de
modo a que eu possa usar os talentos, habilidades e qualidades da minha natureza
búdica para beneficiar os outros. Devemos sempre manter isto em mente:“tanto
quanto for possível” – uma vez que não vamos nos transformar em deuses
omnipotentes. Seguindo essa linha de raciocínio, colocamos nossa mente e coraçõe
na nossa transformação em um buda, para ajudar a todos tanto quanto for
possível. Esse é o desenvolvimento do ideal de bodhichitta. Com ele, focamos em
nossa iluminação individual, que ainda não está acontecendo, com a total intenção
de atingi-la o mais rápido possível e ajudar os demais a fazerem o mesmo.
A Conduta do Bodhisattva

Depois de desenvolvida a bodhichitta, tentamos ajudar os outros tanto quanto for


possível, apesar das nossas limitações. Isto porque tomamos a decisão excepcional
de assumir a responsabilidade de ajudar, e essa decisão foi desenvolvida nos
passos anteriores da meditação de causa e efeito em sete partes para desenvolver a
bodhichitta.

Isto significa que sempre que encontrarmos outros seres e vermos que eles têm
um problema, com não ter uma casa, por exemplo, não os devemos ver apenas
como “sem teto”. Quando os virmos, não devemos pensar em termos de eles serem
inerentemente pobres, preguiçosos ou quaisquer julgamentos de valor que
possamos projetar. Pelo contrário, compreendemos que apenas nesta vida, e neste
ponto particular desta vida, eles são assim. Contudo, os seus contínuos mentais não
têm início e, em algum ponto, eles foram nossas mães e tomaram conta de nós com
bondade. Eles carregaram-nos nos seus ventres, trocaram as nossas fraldas sujas e
assim por diante, então nos sintimos realmente gratos e realmente sentimos
vontade de retribuir essa bondade. Desejamos que eles sejam felizes e tenham as
causas da felicidade e que possam estar livres dos seus problemas e das causas dos
seus problemas. Tomamos a responsabilidade de tentar fazer algo a respeito disso.

O que precisamos fazer? Não é que precisemos ir para casa meditar a fim de
superar os nossos defeitos e não fazer nada para ajudar essas pessoas.
Naturalmente precisamos meditar mais, contudo, nossa motivação no momento,
deve ser de superar a nossa timidez, hesitação e avareza, e dar-lhes realmente algo,
pelo menos um sorriso – fazer pelo menos alguma coisa.

Ou seja, usamos a nossa decisão excepcional para mesmo agora nos movermos no
sentido de superar as nossas limitações tanto quanto conseguirmos, e de usarmos
as nossas potencialidades para ajudar tanto quanto for possível. Certamente,
quando formos para casa, precisaremos nos trabalhar mais, mas não nos
esqueçamos das pessoas sem teto e não fiquemos em casa só a meditar. Se a nossa
decisão for sincera ela vai nos manter atentos.

A motivação mais forte para nos trabalharmos surge quando encontramos outros
seres que precisam de ajuda. Vemos uma mulher idosa, sentada no chão frio no
inverno, pedindo esmola na estação do metrô e pensamos: e se ela fosse a minha
mãe? Se fosse a nossa mãe desta vida que estivesse sentada no chão frio a pedir
esmola, será que iriamos ignorá-la e simplesmente continuar andando? E o jovem
sem teto vendendo jornais no metrô, como nos sentiríamos se ele fosse nosso
filho? Esse rapaz tem pais. É muito importante. Na India, vemos leprosos e outras
pessoas deformadas e normalmente nunca pensamos que os leprosos têm famílias.
Eles têm famílias. Temos que os reconhecer como humanos.

É claro, precisamos de consciência discriminativa para distinguir a situação


convencional desses moradores de rua. Alguns estão nas ruas abordando pessoas
apenas para conseguir dinheiro para comprar drogas ou álcool. Nesses casos, é
preciso empregar o que o budismo chama de "meios hábeis". Temos o desejo de
ajudar, temos uma idéia de qual possa ser a causa do seu sofrimento, e de qual
seria a causa para a sua felicidade. Então, tentamos fazer o que seria de fato útil
para as pessoas. Talvez realmente não seja útil dar-lhes dinheiro, que apenas
usariam para comprar mais drogas ou álcool, e assim não lhes damos dinheiro. Se
tivermos alguma comida, podemos dar-lhes isso. Mas, em todo o caso, podemos
dar-lhes as nossas atitudes ternas e respeito, e não pensar neles apenas como
drogados horríveis ou alcoólicos repugnantes. Eles são seres humanos, seres
humanos que sofrem.

Não é fácil decidir-se sobre qual a melhor maneira de se ajudar alguém. Vemos que
agora somos limitados. Não sabemos mesmo o que é melhor. Temos que nos
transformar em budas para sabermos, mas agora tentamos o nosso melhor,
conscientes de que às vezes iremos errar. Mas pelo menos tentamos.

Resumo

Quando já tivermos desenvolvido a aspiração de bodhichitta, através do


treinamento no método de causa e efeito em sete partes, nosso objetivo de nos
tornarmos budas para ser de melhor benefício aos outros será sustentado por um
estado emocional forte, que combina muitos sentimentos. Entre eles, a mesma
proximidade e conexão com todos os seres, uma apreciação da gentileza dos
outros, um profundo sentimento de gratidão, consideração, amor e compaixão, e
ainda, uma forte resolução de ajudar a todos o máximo possível. Com esse tipo de
emoção como base, nossa bodhichitta se tornará forte, sincera e estável.
Igualar e Trocar o Eu pelos Outros
Tsenzhab Serkong Rinpoche

Dois meses antes de falecer, Tsenzhab Serkong Rinpoche ditou este


ensinamento ao Dr. Berzin, determinou que ele o escrevesse, palavra por
palavra, e lhe ordenou que o preservasse como seu ensinamento mais
importante. Este ensinamento explica detalhadamente as meditações para
vencermos a maior fonte de infelicidade e problemas - a atitude de autoapreço
- e desenvolvermos, em contrapartida, uma atitude sincera de apreço aos
outros, a fonte de toda a felicidade.

Existem duas tradições de ensinamentos sobre como


desenvolver bodhichitta (um coração completamente dedicado aos outros
e a alcançar a iluminação a fim de os beneficiar tanto quanto possível): a
tradição dos ensinamentos sobre causa e efeito em sete partes e a
tradição de equalizar e intercambiar as nossas atitudes em relação ao eu e
aos outros. Cada uma delas tem uma forma separada, ou distinta, de
desenvolver a equanimidade previamente, como uma preliminar. Embora
elas utilizem o mesmo nome, equanimidade, o tipo de equanimidade
desenvolvida é diferente.

1. A equanimidade, que vem antes do reconhecimento de todos os seres


como tendo sido nossas mães, na meditação sobre causa e efeito em
sete partes, envolve a visualização de um amigo, um inimigo e um
desconhecido, e é a equanimidade com a qual deixamos de ter
sentimentos de apego e aversão. Um dos seus nomes, de fato, é “a mera
equanimidade com que deixamos de ter apego e aversão em relação a
amigos, inimigos e desconhecidos.” Aqui, a palavra mera implica na
existência de um segundo método, que engloba algo a mais.

Outro nome para este primeiro tipo de equanimidade é “a mera


equanimidade que é a maneira de desenvolvermos a mesma
equanimidade dos shravakas e dos pratyekabuddhas.”
Os shravakas (ouvintes) e os pratyekabuddhas (autodesenvolvedores)
são dois tipos de praticantes dos ensinamentos Hinayana (veículo
modesto [pequeno veículo]) do Buda. Aqui, mera implica que, com esse
tipo de equanimidade, nós não temos e nem estamos envolvidos com o
coração dedicado de bodhichitta.
2. A equanimidade que desenvolvemos como preliminar, antes de
equalizar e intercambiar as nossas atitudes em relação ao eu e aos
outros, não é a mera equanimidade descrita acima. É a equanimidade
com a qual deixamos de ter sentimentos de proximidade e de distância
nos nossos pensamentos ou ações envolvidos no beneficiar e ajudar a
todos os seres limitados e no eliminar dos seus problemas. Essa é a
forma especialmente distinta e incomum do Mahayana (veículo vasto
[grande veículo]) para desenvolvermos a equanimidade.

Mera Equanimidade

No método de causa e efeito em sete parte, usamos os seguintes passos


para desenvolver a equanimidade que surge antes do reconhecimento de
todos os seres como tendo sido nossas mães.

Visualização de Três Pessoas


Primeiro visualizamos três pessoas: uma pessoa totalmente má e
desagradável, de quem não gostamos ou que consideramos nossa
inimiga; um amigo querido ou uma pessoa muito estimada a quem
amamos; e um desconhecido ou alguém em relação ao qual não temos
nenhum desses sentimentos. Visualizamos os três juntos.

Que tipo de atitude surge normalmente quando focalizamos


subsequentemente cada um deles? Em relação à pessoa de quem não
gostamos surge um sentimento desagradável, desconfortável e de
repugnância. Em relação ao amigo estimado e querido surge um
sentimento de atração e de apego. E em relação àquele que não é nem um
e nem outro, uma vez que não o achamos nem atraente e nem repulsivo,
surge um sentimento de indiferença que não deseja ajudar nem
prejudicar.

Acabando com a Repulsa em Relação a Alguém que Não Gostamos


Para facilitar a discussão, suponhamos que as três pessoas visualizadas
são mulheres. Primeiro, trabalhamos com a pessoa de quem não
gostamos, aquela que talvez até consideremos nossa inimiga.

1. Deixamos o sentimento de a acharmos desagradável e antipática


surgir. Quando o sentimento tiver surgido de forma clara.
2. Notamos que surge um sentimento adicional, de que seria bom se algo
de mal lhe acontecesse, ou se ela experimentasse algo que não
desejasse acontecer.
3. Depois examinamos as razões que levam esses maus sentimentos e
desejos a surgir. Descobrimos geralmente que foi porque ela nos
magoou, nos fez mal, ou porque fez ou disse algo desagradável a nós ou
aos nossos amigos. É por isso que queremos que lhe aconteça algo de
mal ou que ela não consiga obter o que quer.
4. A seguir, pensamos sobre a razão que nos leva a desejar que algo de
mal aconteça a essa mulher que tanto detestamos, e analisamos para
ver se é realmente uma boa razão. Consideremos o seguinte:
o Em vidas passadas, essa suposta inimiga foi minha mãe e meu pai
muitas vezes, assim como minha parente e amiga. Ela me ajudou
muito, e inúmeras vezes.
o Nesta vida, não sabemos o que vai acontecer. Mais tarde nesta vida
ela pode vir a ser de grande ajuda e uma boa amiga. Tais coisas são
bastante possíveis.
o Em todo o caso, eu e ela teremos infinitas vidas futuras e, com toda a
certeza, um dia ela será minha mãe ou meu pai. Portanto, ela me
ajudará muito, e eu terei de pôr todas as minhas esperanças nela.
Assim, uma vez que ela já me ajudou no passado, está me ajudando
no presente e irá me ajudar no futuro, de inúmeras maneiras, ela é
afinal uma boa amiga. Isso é decididamente certo. Por isso seria
inadmissível se, por algum motivo menor, tal como ter me magoado
um pouco nesta vida, eu a considerasse minha inimiga e lhe
desejasse mal.
5. Podemos pensar em alguns exemplos. Digamos que um banqueiro ou
uma pessoa rica, que tivesse o poder de me dar muito dinheiro, e o
desejo e a intenção de assim o fazer, e que já tivesse feito isso no
passado, um dia perdesse o controle, se irritasse e me desse uma
bofetada. Se eu também me irritasse e ficasse apegado à minha raiva,
isso talvez fizesse com que ele perdesse a vontade de voltar a me dar
dinheiro. Haveria até o risco de ele mudar de ideia e decidir dar o
dinheiro a outra pessoa. Por outro lado, se eu tolerasse a bofetada,
mantivesse a cabeça baixa e a boca calada, ele poderia mais tarde ficar
ainda mais satisfeito comigo por eu não ter metranstornado. Talvez até
decidisse me dar mais do que tinha originalmente pretendido.
Contudo, se eu tivesse ficado transtornado e feito uma cena, então seria
como no provérbio tibetano, “você tem comida na boca mas a sua
língua a empurra para fora”.
6. Portanto, tenho de considerar o longo prazo no que diz respeito a essa
pessoa de quem não gosto, e o mesmo é verdade em relação a todos os
seres limitados. A ajuda que eles vão me dar no longo prazo é 100%
garantida. Por isso, seria totalmente errado apegar-me à minha raiva
só por causa de um ligeiro dano sem importância, que qualquer pessoa
poderia cometer.
7. A seguir, consideramos o fato de que um escorpião, um animal
selvagem ou um espírito atacam imediatamente quando percebem
alguma provocação, mesmo que seja mínima. Pensando em nós
próprios, vemos o quanto é inadequado agir como essas criaturas.
Assim, dispersamos a nossa raiva. Precisamos pensar que,
independente do dano que a pessoa tenha nos causado, não podemos
perder a compostura e ficar irritados, pois assim não seríamos
melhores do que um animal selvagem ou um escorpião.
8. Concluindo, colocamos tudo isto em um silogismo. Vou deixar de ficar
irritado com os outros por conta do mal que eles me fizeram, pois:

o Em vidas passadas, eles foram meus pais;


o Mais tarde nesta vida, não há certeza de que eles não se tornarão
meus amigos mais queridos;
o Em algum ponto no futuro, eles renascerão como meus pais e me
ajudarão muito, portanto, em qualquer dos três tempos ele me
ajudam;
o Se eu ficar novamente furioso, não serei melhor do que um animal
selvagem. Por isso, deixarei de ficar irritado com os pequenos
malefícios que ele possam me fazer nesta vida.

Acabando com o Apego em Relação a Alguém de Quem Gostamos

1. Dentro do grupo de pessoas que visualizamos inicialmente (um


inimigo, um amigo e um desconhecido), focamos na pessoa amiga ou
amada.
2. Deixamos surgir o nosso sentimento de atração e de apego em relação
a ela.
3. Nos deixamos sentir mais intensamente o quanto queremos estar com
esta pessoa
4. Examinamos as nossas razões para ter essa paixão ou apego. Foi
porque ela me deu uma pequena ajuda nesta vida, fez algo de bom por
mim, me fez sentir bem ou algo do gênero,epor isso sinto-me atraído e
apegado.
5. A seguir, examinamos se essa é uma razão adequada para termos tal
sentimento. Não é uma boa razão, porque:
o Não há dúvida alguma de que em vidas passadas ela foi minha
inimiga, feriu-me e até comeu a minha carne e bebeu o meu sangue.
o Mais tarde nesta vida, não há certeza de que ela não se tornará a
minha pior inimiga.
o Em vidas futuras, é certo que ela, a dada altura, irá me machucar ou
fazer-me algo realmente maldoso.
6. Se eu me apaixonar e me apegar pelo simples motivo de ela ter me feito
algo de bom, porém trivial, nesta vida, não serei melhor do que os
homens seduzidos pelas canções das sereias canibais. Essas sereias
tomam uma bonita aparência, seduzem os homens com as suas
maneiras e depois, mais tarde, engolem-nos.
7. Deste modo, decidimos nunca mais ficar apegados a alguém só por nos
terem feito uma pequena bondade nesta vida.
Acabando com a Indiferença em Relação a Alguém que Nos é Neutro
Em terceiro lugar, seguimos o mesmo procedimento com a pessoa que
nos é neutra – o desconhecido que nem é amigo nem inimigo.

1. Focamos na pessoa em nossa visualização.


2. Nos permitimos sentir nada, nem o desejo de prejudicar e nem de
ajudar, nem de nos livrar e nem de estar com ela,
3. e sentimos a intenção de ignorá-la.
4. Examinamos a razão pela qual nos sentimos assim. É porque ela não
fez coisa alguma, nem para nos ajudar e nem para nos ferir e, portanto,
não temos nenhum tipo de relacionamento com ela.
5. Quando continuamos a examinar se essa é uma razão válida para nos
sentirmos assim, percebemos que a pessoa não é fundamentalmente
uma desconhecida, pois em inúmeras vidas passadas, daqui a algum
tempo nesta vida e em vidas futuras, ela nos será próxima, será uma
amiga ou alguém próximo.

Deste modo, seremos capazes de acabar com todos os sentimentos de


raiva, de apego e de indiferença em relação aos inimigos, amigos e
desconhecidos. Este é o modo de desenvolvermos a mera equanimidade
que é a mesma dos shravakas e dos pratyekabuddhas e que é
desenvolvida como uma preliminar ao reconhecimento de todos os seres
como tendo sido nossas mães no método de causa e efeito em sete partes
para desenvolver um coração dedicado de bodhichitta.

A Equanimidade como uma Preliminar para Equalizarmos e


Trocarmos nossas Atitudes

A maneira de desenvolvermos a equanimidade como uma preliminar


para equalizar e trocar as nossas atitudes,em relação ao eu e aos outros, é
dividida da seguinte forma:

 A maneira de efetivarmos a equanimidade que depende do ponto de


vista relativo.
 A maneira de efetivarmos a equanimidade que depende do ponto de
vista mais profundo.

A maneira que depende do ponto de vista relativo é dividida em duas


partes:

 A maneira de efetivarmos a equanimidade que depende dos nossos


próprios pontos de vista.
 A maneira de efetivarmos a equanimidade que depende dos pontos de
vista dos outros.

A Maneira de Efetivarmos a Equanimidade que Depende dos Nossos Próprios


Pontos de Vista
Esta maneira envolve três fases.

1. Uma vez que todos os seres limitados foram nossos pais, familiares e
amigos em inúmeras vidas, é incorreto sentir que alguns são próximos
e que outros são distantes, que este é um amigo mas aquele é um
inimigo, acolher uns e rejeitar outros. Precisamos pensar que, afinal de
contas, se eu tiver visto a minha mãe há dez minutos, dez anos ou dez
vidas, ela ainda é a minha mãe.
2. No entanto, é possível que do mesmo modo que estes seres me
ajudaram, também me fizeram mal algumas vezes. Contudo,
comparado ao número de vezes que me ajudaram e a quantidade de
ajuda que me deram, o mal que me fizeram é insignificante. Por
conseguinte, seria incorreto acolher uns como próximos e rejeitar
outros como distantes.
3. Vamos definitivamente morrer, mas a hora da nossa morte é
totalmente incerta. Suponhamos, por exemplo, que fomos sentenciados
a ser executados amanhã. Seria um absurdo desperdiçar o nosso
último dia ficando irritados e ferindo alguém. Se fizéssemos isso,
estaríamos desperdiçando a nossa oportunidade de fazer algo positivo
e significativo com o nosso último dia. Por exemplo, um oficial de alta
patente ficou furioso com uma determinada pessoa e resolveu puni-la
severamente no dia seguinte. Ele passou o dia inteiro planejando mas,
na manhã seguinte, morreu de repente, antes de tomar qualquer
medida. A sua raiva foi completamente absurda. O mesmo seria
verdade se a outra pessoa fosse condenada a morrer no dia seguinte.
Não faria sentido feri-la hoje.

A Maneira de Efetivarmos a Equanimidade que Depende dos Pontos de Vista


dos Outros
Esta é também dividida em três fases.

1. Precisamos considerar que, no que me diz respeito, não quero sofrer


nem mesmo durante os meus sonhos, e não obstante quanta felicidade
eu tenha, nunca sinto que ela é suficiente. O mesmo é verdade em
relação a todos os outros seres, sem exceção. Todos os seres limitados,
desde o minúsculo micróbio, desejam ser felizes e nunca sofrer ou ter
problemas. Por conseguinte, é inapropriado rejeitar alguns e acolher
outros.
2. Suponhamos que dez pedintes batam à minha porta. Seria totalmente
incorreto e injusto dar de comer a apenas alguns e não aos demais.
Todos eles são iguais na sua fome e na sua necessidade de alimento. Da
mesma forma, em relação à felicidade não tocada pela confusão – bem,
quem a tem? Até mesmo a felicidade tocada pela confusão – todos os
seres limitados sentem falta de uma quantidade suficiente dela. É algo
que todos têm um grande interesse em encontrar. Por isso, é
inapropriado rejeitar alguns como distantes e acolher outros como
próximos.
3. Outro exemplo: suponhamos que haja dez pessoas doentes. São todas
igualmente infelizes e patéticas. Por isso, é injusto favorecer algumas,
tratarmos apenas destas e esquecermo-nos das outras. Do mesmo
modo, todos os seres limitados são igualmente infelizes com os seus
problemas específicos e individuais e com os problemas gerais do
samsara, ou da existência incontrolavelmente recorrente. Por isso, é
injusto e inapropriado rejeitar alguns como distantes e acolher outros
como próximos.

A Maneira de Efetivar a Equanimidade que Depende do Ponto de Vista Mais


Profundo
Esta também envolve três pensamentos:

1. Pensamos como nós, por conta da nossa confusão, rotulamos como um


verdadeiro amigo alguém que nos ajuda ou é bom conosco e como um
verdadeiro inimigo alguém que nos magoa. Porém, se as pessoas
fossem estabelecidas como realmente existindo da maneira que as
rotulamos, então O Buda que Assim se Foi, também as teria visto dessa
maneira. Mas ele não viu. Conforme disse Dharmakirti, em Um
Comentário sobre (“Compêndio de) Mentes com Cognição Válida" (de
Dignaga) (Pramanavarittika), “o Buda é o mesmo com a pessoa que
passa água perfumada num dos lados do seu corpo e com a pessoa que
corta com uma espada o outro lado.”

Podemos também ver esta imparcialidade no exemplo de como o Buda


tratou o seu primo Devadattaque, por inveja, estava sempre tentando
prejudicá-lo. Portanto, também precisamos evitar sermos parciais e
tomarmos o partido de uma pessoa por pensarmos, de forma confusa,
que ela existe verdadeiramente nas categorias em que a rotulamos.
Ninguém existe dessa maneira. Precisamos trabalhar no sentido de
acabar com o nosso apego à existência verdadeira. Este apego vem da
nossa mente confusa, que faz com que as coisas surjam de uma forma
que não é verdadeira.
2. Além disso, se os seres limitados fossem estabelecidos como realmente
existindo nas categorias de amigo e de inimigo, da forma como os
concebemos, eles teriam de permanecer sempre desse modo. Assim
como um relógio que achamos que mostra sempre a hora correta pode
mudar sua condição e ficar atrasado, o estado dos outros seres não
permanece fixo e pode também mudar.

Se pensarmos sobre os ensinamentos considerando que não há certeza


alguma nas situações incontrolavelmente recorrentes do samsara, isso
pode nos ajudar; assim como o exemplo do filho que come o pai, bate
na mãe e a acalenta o inimigo. Este exemplo aparece nas instruções
para o desenvolvimento do nível de motivação intermediário nos
estágios graduais do caminho para a iluminação (lam-rim). Certa vez, o
altamente realizado arya Katyayana foi a uma casa onde o pai tinha
renascido na lagoa como um peixe e seu filho estava a comê-lo. O filho
então bateu no cão, que tinha sido a sua mãe, com as espinhas do peixe
que tinha sido seu pai e acalentava uma criança nos seus braços que
tinha sido seu inimigo. Katyayana riu do absurdo de tais mudanças de
estado dos seres que vagueiam no samsara. Assim, precisamos deixar
de nos agarrar ou de nos apegar às pessoas como se elas existissem nas
categorias fixas e permanentes de amigo ou inimigo e, então, com base
nisso, deixar de acolher uns e rejeitar outros.
3. Em Um Compêndio de Treinamentos (Shikshasamuccaya), Shantideva
explicou como o eu e o outro são mutuamente dependentes. Como no
exemplo das montanhas próximas e distantes, que dependem ou são
designações relativas uma à outra. Quando estamos na montanha
próxima, a outra parece ser a distante e esta a próxima. Quando vamos
para o outro lado, aquela onde estávamos transforma-se na montanha
distante e esta onde agora estamos, na próxima. Do mesmo modo, não
existimos inerentemente como “eu”, porque quando olhamos para nós
mesmos do ponto de vista de qualquer outra pessoa, tornamo-nos o
“outro”. Assim como amigo e inimigo são apenas maneiras diferentes
de se olhar ou de se considerar uma pessoa. Alguém pode ser,
simultaneamente, amigo para uma pessoa e inimigo para outra. Assim
como as montanhas próximas e distantes, tudo é relativo ao nosso
ponto de vista.

As Cinco Decisões

Depois de termos pensado desse modo sobre os pontos descritos acima,


precisamos tomar cinco decisões.
Eu Vou Deixar de Ser Parcial
Tanto do ponto de vista relativo quanto do mais profundo, não há
nenhuma razão para considerarmos algumas pessoas ou seres como
próximos e outros como distantes. Portanto, precisamos tomar uma firme
decisão: eu vou deixar de ser parcial. Eu vou me livrar dos sentimentos de
parcialidade com os quais rejeito uns e acolho outros, porque a
hostilidade e o apego me prejudicam, tanto nesta vida como em vidas
futuras, tanto temporária quanto definitivamente, tanto a curto como a
longo prazo. Eles não trazem benefício algum. São raizes para centenas de
tipos de sofrimento. São como guardas que me obrigam a andar em
círculos na prisão dos meus problemas incontrolavelmente recorrentes
do samsara.

Pensem no exemplo daqueles que permaneceram no Tibete depois da


insurreição de 1959. Naqueles que estavam apegados aos mosteiros, à
riqueza, às posses, às casas, aos familiares e aos amigos e não toleraram
deixá-los. Por conta de seu apego, foram enterrados em prisões ou em
campos de concentração durante 20 ou mais anos. Esses sentimentos de
parcialidade são os assassinos que nos conduzem ao fogo dos reinos
infernais sem alegria. São os demônios em chamas dentro de nós que nos
impedem de dormir à noite. Temos de os desenraizar de qualquer
maneira.

Por outro lado, uma atitude de igualdade para com todos os seres, com a
qual desejamos que todos os seres limitados sejam felizes e estejam livres
dos seus problemas e sofrimentos é muito importante, tanto temporária
quanto definitivamente , e a partir de qualquer ponto de vista. É o
caminho principal trilhado por todos os budas e bodhisattvas para
obterem a sua realização.É a intenção e o desejo mais profundo de todos
os budas dos três tempos. Portanto, precisamos pensar que, não importa
o malefício ou o benefício que outro ser limitado me tenha feito, a partir
do ponto de vista dele, eu, do meu ponto de vista, não tenho alternativa.
Recuso-me a ficar irritado ou apegado. Recuso-me a considerar uns como
próximos e outros como distantes. Não pode haver nenhum outro modo
ou método de se lidar com as situações, exceto este. Estou completamente
decidido. No que diz respeito à minha forma de pensar e agir, terei a
mesma atitude com todos, já que todos querem ser felizes e não querem
nunca sofrer. É nisso que vou me esforçar ao máximo. Oh, meu mentor
espiritual, por favor inspira-me a fazer isto o melhor possível. Esses são
os pensamentos que precisamos ter quando recitamos o primeiro dos
cinco versos em O Guru Puja — Lama Chopaque estão associados a esta
prática:
Inspira-nos a aumentar a alegria e o conforto dos outros,
pensando que eles e nós não somos diferentes: ninguém deseja
nem o mais ligeiro sofrimento, nem nunca está satisfeito com a
felicidade que tem.

Assim, com este primeiro verso, rezamos para desenvolver uma atitude
equânime, de não ter sentimentos de proximidade ou de distância nos
nossos pensamentos e ações relacionadas com levar felicidade e eliminar
o sofrimento de todos igualmente. Tal atitude de igualdade preenche a
definição do tipo de equanimidade ou atitude equânime que estamos
considerando aqui. Tomamos a firme decisão de cultivar e atingir essa
atitude, da mesma maneira como quando vemos um produto maravilhoso
numa loja e decidimos comprá-lo.

Me livrarei do Autoapreço
Em seguida, pensamos sobre as desvantagens de ter uma atitude de
autoapreço. Por causa da preocupação egoísta da atitude de autoapreço,
agimos destrutivamente, cometemos as dez ações destrutivas e
consequentemente temos renascimentos infernais. Desde o estágio onde
estamos agora até o estágio de um arhat (ser liberado) que não atinge a
iluminação, o interesse egoísta nos faz perder toda a paz e felicidade.
Embora os bodhisattvas estejam perto da iluminação, alguns estão mais
perto do que outros. A diferença que existe entre eles vêm da quantidade
de autoapreço que ainda têm. Desde as disputas entre países até a
discórdia entre mestres espirituais e discípulos, dentro das famílias ou
entre amigos – tudo vêm do autoapreço. Por isso, precisamos pensar que
se não nos livrarmos da podridão do egoísmo e do autoapreço, nunca
chegaremos a vivenciar alguma felicidade. Assim, nunca devemos nos
deixar vencer pela onda do autoapreço. Oh, meu mentor espiritual,
inspira-me por favor a livrar-me de todo o interesse egoísta. Estes são os
pensamentos do segundo verso:

Inspira-nos a ver que esta doença crônica do autoapreço é a


causa que faz surgir o nosso não-procurado sofrimento. Assim,
vendo-o como o responsável, inspira-nos a destruir o demônio
monstruoso do egoísmo.

Com o segundo verso, tomamos a firme decisão de nos livrarmos das


nossas atitudes de autoapreço e da preocupação egoísta.
Farei com que a Minha Prática Principal Seja Estimar os Outros
A seguir, pensamos sobre os benefícios e as boas qualidades que advêm
de estimarmos os outros: nesta vida, toda a felicidade e tudo indo bem;
em vidas futuras, nascimentos como seres humanos ou deuses; e em
geral, toda a felicidade até a realização da iluminação. Precisamos pensar
bastante sobre isso, usando muitos exemplos. Vejam, a popularidade de
um funcionário muito amado é devida à sua estima e interesse pelos
outros. A nossa autodisciplina ética de abstermo-nos de tirar vidas ou de
roubar deriva da nossa estima pelos outros, e isto é o que nos pode
conduzir ao renascimento como seres humanos.

Sua Santidade o Dalai Lama, por exemplo, pensa sempre sobre o bem-
estar de todos em toda a parte, e todas as suas boas qualidades vêm da
sua estima pelos outros. O bodhisattva Togme Zangpo não pôde ser
prejudicado por Kama, o deus do desejo, que estava decidido a causar-lhe
interferência. Esse grande praticante tibetano era o tipo de pessoa que
chorava se um inseto voasse para dentro de uma chama. Ele interessava-
se sinceramente por todos os seres e por isso até os próprios espíritos e
os tais interferentes não conseguiam prejudicá-lo, embora querendo,
porque, como os próprios espíritos disseram: “ele só tem pensamentos de
nos beneficiar e estimar”.

Numa das vidas passadas do Buda, quando ele nasceu como um Indra, um
rei dos deuses, houve uma guerra entre os deuses e os semi-deuses. Os
semi-deuses estavam ganhando e então Indra fugiu na sua carroça. Ele
chegou a um ponto da estrada onde muitos pombos tinham se agrupado
e, temendo atropelar algum deles, parou a carroça. Vendo isto, os semi-
deuses pensaram que ele tinha parado para voltar para trás e atacá-los, e
então fugiram. Se analisarmos isso, veremos que eles fugiram devido à
atitude de Indra de estimar os outros. Portanto, precisamos pensar a
partir de muitos pontos de vista nas vantagens de estimarmos os demais
seres.

Quando um juiz, ou qualquer funcionário público, senta-se muito


formalmente num escritório, deve a sua posição, e tudo o que lhe diz
respeito, à existência das demais pessoas. Neste exemplo, a bondade dos
outros consiste simplesmente no fato deles existirem. Se não existisse
nenhuma outra pessoa, ele não poderia ser juiz. Ele não teria nada para
fazer. Além disso, se as pessoas existissem mas nunca ofossem ver, ele
ficaria apenas sentado sem fazer nada. Por outro lado, se muitas pessoas
o fossem ver, na esperança de que ele resolvesse seus casos, então, na
dependência delas, se sentaria confortavelmente e asserviria. O mesmo é
verdade em relação a um lama. Na dependência dos outros, senta-se
confortavelmente e ensina. Toda a sua posição é devida à existência de
outras pessoas para ele ajudar. Ele ensina o Dharma para as beneficiar e,
portanto, a ajuda surge na dependência delas, e de lembrar-se da sua
gentileza delas.

Do mesmo modo, é através do amor, da compaixão e da estima aos outros


que podemos rapidamente nos iluminar. Por exemplo, se um inimigo nos
ferir e desenvolvermos paciência, ficando mais próximos da iluminação,
isso terá acontecido devido à nossa estima pelos outros. Assim, uma vez
que todos os seres limitados, sem exceção, são a base e a raiz de toda a
felicidade e bem-estar, precisamos decidir sempre estimar a todos,
independente do que eles nos possam fazer ou como nos possam
prejudicar. Os outros seres são como nossos mentores espirituais, Budas
ou jóiaspreciosas, no sentido de que os vou estimar e ter um sentimento
de perda se qualquer coisa de mau lhes acontecer, e nunca os irei rejeitar,
não importa o que aconteça. Terei sempre um coração amável e afetuoso
para com eles. Por favor, inspira-me, oh meu mentor espiritual, para que
nunca me separe, nem por um momento, deste coração e sentimento
pelos outros. Esse é o significado do terceiro verso:

Inspira-nos a ver que a mente que estima as nossas mães e que


lhes asseguraria o tranquilo-permanecer é o portal que nos
conduz a infinitas virtudes. Assim, inspira-nos a estimar os
seres errantes mais do que as nossas vidas, mesmo que eles
apareçam como nossos inimigos.

Deste modo, decidimos fazer com que nosso principal foco seja a prática
de estimar os outros.

Eu Sou Definitivamente Capaz de Intercambiar as Minhas Atitudes em Relação


ao Eu e ao Outro
Tendo como base o método de se pensar sobre os muitos problemas do
autoapreço e as muitas qualidades de estimarmos os outros, quando
sentirmos que devemos mudar os nossos valores sobre quem estimamos,
e nos questionarmos se somos realmente capazes de o fazer, veremos que
definitivamente somos capazes. Podemos mudar as nossas atitudes
porque, antes de se tornar iluminado, o Buda era exatamente como nós.
Ele também estava vagando de renascimento em renascimento, nas
situações e problemas incontrolavelmente recorrentes do samsara. Não
obstante, o Hábil Buda mudou as suas atitudes acerca de quem ele
estimava. Agarrando-se à ideia de estimar os outros, ele alcançou a
máxima capacidade de satisfazer os seus próprios objetivos e os dos
outros.

Nós, no entanto, só estimamos a nós mesmos, e ignoramos os demais. Ao


deixarmos de lado a realização de qualquer coisa que seja de benefício
aos outros, não geramos nem um mínimo benefício para nós. Ao nos
estimarmos e ignorarmos os outros, tornamo-nos completamente
incapazes de ajudar e de realizar qualquer coisa verdadeiramente
significativa. Não conseguimos desenvolver uma renúncia verdadeira ou
uma determinação de nos livrarmosdos nossos problemas. Nós sequer
conseguimos impedir que venhamos a cair num dos piores estados de
renascimento. Assim, pensamos sobre as desvantagens do autoapreço e
sobre os benefícios de se estimar os outros. Se o Buda conseguiu mudar a
sua atitude e começou tal como nós, também podemos mudar a nossa.

E não é só isso; com familiaridade suficiente é possível até estimar os


corpos dos outros tal como estimamos o nosso. Afinal, pegamos o
espermatozóide e o ovo do corpo de outras pessoas, dos nossos pais, e
agora os estimamos como nosso próprio corpo. Originalmente, eles não
eram nossos. Portanto, precisamos pensar que não é impossível mudar
nossa atitude. Eu posso intercambiar as atitudes que tenho em relação ao
eu e aos outros. Mas não importa o que eu penso, se não intercambiar as
atitudes que tenho em relação ao eu e aos outros, o que penso não servirá
de nada. Isto é algo que posso fazer; não é algo que não possa fazer.
Assim, ó meu mentor espiritual, inspira-me a fazê-lo. Essa é a ideia do
quarto verso.

Em suma, inspira-nos a desenvolver a mente que compreende


as distinções entre as falhas dos seres infantis que trabalham
como escravos apenas para os seus fins egoístas e as virtudes
dos Reis dos Sábios que trabalham unicamente para os outros, e
assim, inspira-nos a sermos capazes de equalizar e
intercambiar as nossas atitudes conosco e com os outros.

Portanto, a decisão que aqui tomamos é a de sermos definitivamente


capazes de intercambiar as nossas atitudes no que diz respeito à estima
que temos por nós mesmos e pelos outros.
Irei Definitivamente Intercambiar as Minhas Atitudes em Relação ao Eu e aos
Outros
Pensamos uma vez mais sobre os problemas do autoapreço e os
benefícios de estimarmos os outros, mas desta vez o fazemos
alternadamente, misturando os dois. Ou seja, percorremos uma a uma as
dez ações destrutivas e as dez ações construtivas, alternadamente, uma
de cada lista, de cada vez, e veremos os resultados em termos de
estimarmos a nós mesmos e aos outros. Por exemplo, se me estimar, não
hesitarei em tirar a vida dos outros. Como resultado, irei renascer num
reino infernal sem alegria e, mesmo quando nascer mais tarde como um
ser humano, terei uma vida curta e cheia de doenças. Por outro lado, se
estimar os outros, deixarei de tirar as suas vidas e, como resultado,
nascerei num estado melhor, terei uma vida longa e assim por diante.
Depois, repetimos o mesmo processo com o roubar e o deixar de roubar,
ser indulgente para comportamentos sexuais impróprios e abandonar
tais ações e assim por diante. Em suma, como o quinto verso diz:

Uma vez que estimar a nós mesmos é o portal para todo o


tormento, enquanto estimar as nossas mães é a base para tudo
o que é bom, inspira-nos a fazer com que a nossa prática
central seja o yoga de trocar de lugar com os outros.

Assim, a quinta decisão é: eu irei, definitivamente, intercambiar as


minhas atitudes em relação ao eu e aos outros. Isso não significa,
obviamente, decidir que agora eu serei você e que você será eu. Significa
trocar de ponto de vista no que diz respeito a quem estimamos. Em vez de
nos estimarmos e ignorarmos os outros, passamos a ignorar os nossos
interesses egoístas e a estimar todos os outros seres. Se não
conseguirmos fazer isso, será impossível alcançar qualquer coisa. Mas se
fizermos esse intercâmbio de atitudes, ele será a base para podermos
depois treinar com as visualizações de dar a nossa felicidade aos outros e
receber o seu sofrimento como uma forma de desenvolver o amor sincero
e desinteressado e a empatia compassiva. Com essa base, seremos
capazes de cultivar a decisão excepcional de aliviar os problemas e os
sofrimentos de todos e de trazer-lhes a felicidade, como também de
cultivar o coração dedicado da bodhichitta com o qual nos esforçamos
para atingir a iluminação, de modo a sermos capazes de o fazer tanto
quanto possível.
Resumo

A fonte destes ensinamentos são o Engajando-se no Comportamento do


Bodhisattva (Bodhisattvacharyavatara), de Shantideva, os ensinamentos
dos mestres Kadampa e, naturalmente, O Guru Puja — Lama Chopa, do
Quarto Panchen Lama. Eles aparecem desta forma, com seções
numeradas, em A Coletânea de Trabalhos, de Kyabje Trijang Dorjechang, o
falecido Tutor Júnior de Sua Santidade o Dalai Lama. Contudo, ter-se
demasiado interesse no esquema e nos números dentro dele é como ter
um prato com sete momos (bolinhos) à nossa frente e, em vez de comê-
los, querermos que alguém ateste quantos são, qual foi a causa da sua
forma e assim por diante. Em vez disso, sentem-se e comam!
Visão Geral das Seis Atitudes de
Longo Alcance (Seis Perfeições)
Dr. Alexander Berzin

As seis atitudes de longo alcance são estados mentais que levam à liberação e
à iluminação. Como antídotos para alguns de nossos maiores obstáculos
mentais – raiva, ganância, inveja, preguiça e assim por diante – as seis atitudes
funcionam em conjunto, permitindo-nos enfrentar tudo que acontece em
nossas vidas. Ao desenvolver essas atitudes, nós podemos lenta, mas
certamente, realizar o nosso potencial completo, trazendo o maior benefício
para nós mesmos e para os outros.

O Buda indicou seis estados mentais importantes que nós precisamos desenvolver
se quisermos alcançar qualquer objetivo positivo na vida. Normalmente eles são
traduzidos como “perfeições”, já que ao aperfeiçoá-los completamente como os
Budas, nós também podemos alcançar a liberação e a iluminação. Eu prefiro
chamá-los de “atitudes de longo alcance” de acordo com o seu nome em
sânscrito, paramita, porque com eles nós podemos alcançar a distante margem
oposta do oceano dos nossos problemas.

Esses seis estados mentais não são apenas uma bonita lista. Eles são estados
mentais que precisamos combinar e utilizar durante o nosso dia a dia. De acordo
com os três níveis de motivação encontrados no lam-rim (caminho gradual),
desenvolvê-los agora em nossa vida diária nos traz enormes benefícios:

 Eles nos permitem evitar e resolver problemas.

 Eles nos ajudam a nos livrarmos de emoções e estados mentais perturbadores.

 Eles nos fortalecem para sermos de melhor auxílio aos outros.

Quando treinamos para desenvolver essas atitudes positivas, precisamos nos


lembrar de um ou mais desses objetivos. Isso nos dá um forte incentivo para
continuarmos nos esforçando para fortalecê-los cada vez mais.

1. Generosidade

Generosidade é a disposição de dar para os outros o que quer que seja necessário.
Seus benefícios são:

 Ela nos dá um senso de auto-estima, já que nós temos algo a contribuir para os outros,
ajudando-nos a evitar ou sair de problemas de baixa auto-estima e depressão.
 Ela nos ajuda a superar o apego, a avareza e a mesquinhez, os quais são estados
mentais de infelicidade que causam problemas recorrentes.

 Ela ajuda outros que estão em necessidade.

2. Autodisciplina Ética

Autodisciplina ética é quando nos abstemos de comportamentos destrutivos ao


percebermos suas desvantagens. Seus benefícios são:

 Ela nos permite evitar todos os problemas que surgem por agirmos, falarmos ou
pensarmos de forma prejudicial. Ela cria uma base de confiança com os outros, que é a
base da verdadeira amizade.

 Ela nos ajuda a superar nosso comportamento negativo compulsivo e desenvolver


autocontrole, levando a uma mente mais calma e estável.

 Ela nos impede de prejudicar os outros.

3. Paciência

Paciência é a habilidade de suportar dificuldades sem raiva ou irritação. Seus


benefícios são:

 Ela nos permite evitar fazer escândalo quando as coisas vão mal ou quando nós ou
outros cometem erros.

 Ela nos ajuda a superar a raiva, a impaciência e a intolerância, que são estados mentais
perturbadores. Nós podemos manter a calma face a dificuldades.

 Ela nos permite ajudar os outros melhor, porque não ficamos com raiva quando eles
não seguem nosso conselho, cometem erros, agem ou falam irracionalmente ou nos
causam dificuldades.

4. Perseverança

Perseverança é a coragem heróica de não desistir quando as coisas ficam difíceis,


mas de continuar se esforçando consistentemente até o fim. Seus benefícios são:

 Ela nos dá a força para terminar o que nós começamos, sem perder o ânimo.

 Ela nos ajuda a superar sentimentos de inadequação e preguiça, quando nós nos
distraímos com coisas banais.

 Ela nos permite ter sucesso em realizar as tarefas mais difíceis e nos impede de desistir
daqueles que são os mais difíceis de se ajudar.
5. Estabilidade Mental

Estabilidade mental (concentração) é um estado mental completamente livre de


divagação mental, apatia e perturbação emocional. Seus benefícios são:

 Ela nos permite permanecer concentrados no que quer que estejamos fazendo,
evitando erros e acidentes

 Ela nos ajuda a superar o estresse e a ansiedade e estados de superexcitação, distração


e agitação emocional.

 Ela nos permite nos concentrar no que os outros estão dizendo ou como estão agindo
para que possamos ver como melhor ajudá-los.

6. Consciência Discriminativa (Sabedoria)

Consciência discriminativa (sabedoria) é o estado mental que discerne


corretamente e com segurança entre o que é apropriado e inapropriado e o que é
correto e incorreto. Seus benefícios são:

 Ela nos permite ver com clareza e corretamente o que fazer e como agir em qualquer
situação, impedindo-nos de fazer algo de que nos arrependeremos mais tarde.

 Ela nos ajuda a superar a indecisão e a confusão.

 Ela nos permite avaliar as situações dos outros com precisão para que saibamos o que
dizer ou fazer para causar o maior benefício possível.
A Perfeição da Generosidade:
Danaparamita
Dr. Alexander Berzin

Quando somos crianças, muitas vezes nos dizem que devemos compartilhar
nossos brinquedos e balas, mas até mesmo como adultos, a generosidade não
é sempre algo que vem de forma natural ou fácil. Muitas vezes sentimos que,
se dermos nossos bens, não sobrará nada para desfrutarmos. No entanto,
Buda ensinou que a generosidade é uma prática incrível que não somente
beneficia os outros diretamente, mas nos traz grande alegria e satisfação. Este
artigo trata da generosidade como a primeira das seis atitudes ou perfeições
de amplo alcance.

Introdução

As seis atitudes de amplo alcance, também conhecidas como “seis


perfeições” ou ”seis paramitas” são estados mentais que possibilitam que
trabalhemos em nós mesmos e ajudemos os outros das melhores formas
possíveis. Essas atitudes se contrapõem diretamente aos maiores
obstáculos que impedem o sucesso, como a preguiça ou a raiva; então elas
são úteis para todo mundo. Nós as chamamos de “atitudes de amplo
alcance”, pois no contexto budista, quando as desenvolvemos
plenamente, elas possibilitam que alcancemos a outra distante margem
do oceano de nossas limitações e problemas. Se estivermos motivados
pela renúncia – a determinação de ser livre de todo sofrimento – elas nos
levarão à libertação. Motivados pela bodhicitta – o desejo de nos
tornarmos um buda para beneficiarmos os outros da melhor maneira
possível – elas nos levarão à plena iluminação.

As seis atitudes de amplo alcance são:

 Generosidade
 Autodisciplina ética
 Paciência
 Perseverança
 Estabilidade mental (concentração)
 Consciência discriminadora (sabedoria)
Treinamos em todas as seis, tanto na meditação quanto em nossas
atividades diárias. Da mesma forma que trabalhamos para criar
músculos, quanto mais nos engajarmos nesses estados mentais em
qualquer coisa que fizermos, mais fortes eles serão. Eventualmente, eles
se tornarão tão integrados em nossas vidas que serão naturalmente parte
de como nos relacionamos conosco e os outros a todos os momentos.

Generosidade

Generosidade é uma atitude na qual estamos dispostos a dar o que os


outros precisam. Não realmente significa que temos que dar tudo e nos
tornar muito pobres, como se a pobreza fosse uma virtude, como é
considerada em algumas religiões. Aqui, a generosidade significa que
estamos dispostos a dar sem hesitar e sem obstáculos, quando for
apropriado dar, o que requer que usemos a capacidade de discriminar.
Não damos uma arma para alguém que quer sair e matar, pensando: “ Ah,
estou sendo tão generoso! Tome aqui o dinheiro para a sua arma!” Outro
exemplo de generosidade inadequada pode ser dar dinheiro a alguém
para que esta pessoa possa comprar drogas.

Praticar a generosidade não significa que temos que ser ricos; mesmo se
formos extremamente pobres e não tivermos nada a oferecer, ainda assim
podemos ter a disposição de dar. Caso contrário, como as pessoas pobres
seriam capazes de desenvolver a generosidade? Então, quando vemos um
belo por do sol, podemos ser generosos em nosso desejo de que todos os
outros possam desfrutar desta visão. Podemos fazer o mesmo com belas
paisagens, bom tempo, comida deliciosa e assim por diante. Tudo isso
conta como generosidade! Podemos ser generosos não apenas com as
coisas que temos, mas com coisas que não pertencem a ninguém. Na
meditação, podemos imaginar dar vários tipos de coisas maravilhosas aos
outros, mas se realmente tivermos algo que possa ajudar alguém e a
pessoa estiver precisando disso, então não apenas imaginamos que
estamos dando a coisa. Nós simplesmente damos!

A generosidade é o oposto da avareza, que é uma falta de disposição de


compartilhar qualquer coisa ou dar o que quer que seja para outra
pessoa. A avareza geralmente é acompanhada de um sentimento de que,
se dermos aos outros, nada sobrará para nós. Por outro lado, em
contraste:

Se eu ficar com tudo para mim mesmo, o que sobrará para eu dar para os
outros? – Provérbio Tibetano
Deveríamos ter cuidado para não nos tornarmos fanáticos. Quando
trabalhamos para ajudar os outros, precisamos comer e
dormir. Precisamos cuidar de nós mesmos também. Então, a generosidade
tem a ver com compartilhar o que temos. Bodhisattvas muito avançados
podem sacrificar suas vidas para ajudar os outros, mas em nosso estágio,
se formos realistas, não podemos fazer isso. Não podemos e não devemos
ainda, dar tudo ao ponto de passarmos fome. Mas deveríamos ainda
assim ter a disposição de oferecer nossos corpos para ajudar os outros, o
que pode ser na forma de ajudar a fazer trabalhos difíceis e tediosos, ou
até mesmos trabalhos físicos. Não devemos ficar com medo de sujar
nossas mãos!

A generosidade também inclui compartilhar aquilo que chamamos de


“raízes da virtude”, que são os potenciais positivos de qualquer força
positiva que nós desenvolvemos. Posso usar um exemplo de minha
própria vida: como resultado do potencial positivo desenvolvido a partir
de ações construtivas em vidas prévias, pude encontrar e estudar com
alguns dos maiores mestres budistas da Índia e ser convidado no mundo
inteiro e fazer conexões positivas com muitas pessoas maravilhosas. Isso
criou ainda mais potencial positivo e, como parte de minha prática, tento
compartilhar essas “raízes da virtude” com outras pessoas e não apenas
guardar aquilo que amadureceu delas para mim. Quando me parece
adequado, torno as minhas conexões disponíveis para os outros e os
apresento aos meus mestres e a outras pessoas eruditas e úteis que
conheço em várias partes do mundo. Tento compartilhar o que aprendi
através de minha educação acadêmica e das muitas décadas que passei
estudando e meditando na Índia. Compartilhar as raízes da virtude é
exatamente isso: abrir as portas para os outros.

Em geral, falamos de quatro tipos de generosidade:

1. Oferecer ajuda material


2. Oferecer ensinamentos e conselhos
3. Oferecer proteção do medo
4. Dar amor

A Generosidade de Dar Ajuda Material

A generosidade de dar ajuda material refere-se a nossas posses, comida,


roupa, dinheiro, e qualquer outra coisa que tenhamos. Inclui um senso de
dar quando for apropriado, e de maneira respeitosa. Não é como lançar
um osso para um cachorro. Não temos que ser ricos e ter muitas coisas
para praticar dar ajuda material, pois podemos também dar coisas que
não temos. Isso não significa sair roubando, como um Robin Hood
moderno! Estamos falando de coisas públicas, como limpar o meio-
ambiente para que outras pessoas possam desfrutá-lo. Este é um presente
maravilhoso para os outros. Também podemos compartilhar qualquer
experiência feliz, como “Que todos possam desfrutar do lindo tempo” e
assim por diante.

Não deveríamos apenas pensar em termos de objetos físicos. Podemos


pensar em nosso corpo também, em termos de nosso tempo, trabalho,
interesse, encorajamento, e assim por diante. São várias formas hábeis de
ser generosos com coisas materiais.

Obviamente, é inadequado dar às pessoas veneno, armas, ou quaisquer


coisas que possam usar para machucar a si mesmas ou aos outros.

A Generosidade de Dar Ensinamentos e Conselhos

No contexto budista, isso tem a ver com dar o Dharma – os ensinamentos


budistas – mas podemos estender isso igualmente às áreas não-budistas.
Não se trata apenas de ensinar, traduzir, transcrever, publicar, ou criar e
trabalhar em centros de educação, mas também responder às perguntas
alheias, oferecer conselhos e informações aos outros, se e quando
pudermos faze-lo, e assim por diante.

A tradição Sakya também tem as oferendas de samadhi (concentração),


quando damos aos outros diferentes aspectos de nossa prática do
Dharma. Tudo aquilo que aprendemos em nossos estudos e leituras,
oferecemos aos outros e usamos para ajuda-los. Fazemos o mesmo com o
nosso conhecimento, com a convicção, a disciplina, o insight e a
concentração que ganhamos, como também com as nossas explicações
dos ensinamentos. Tudo isso faz parte da categoria de generosidade de
dar o Dharma, mas é claro que podemos estender isso a compartilhar
qualquer coisa que sabemos, e que seja benéfica para os outros.

A Generosidade de Dar Proteção do Medo

Este tipo de generosidade se refere à ajuda aos outros seres quando estes
estão em um mau estado. Isso inclui salvar animais que estão prestes a
ser abatidos, e libertar aqueles que estão presos em currais e gaiolas.
Salvar moscas que estão se afogando em uma piscina e proteger pessoas e
animais do calor e do frio severos – tudo isso é oferecer proteção. Se há
um besouro em nosso apartamento, nós não apenas o jogamos pela
janela, justificando que ele não se machucará ao cair do quinto andar. Dar
proteção do medo seria leva-lo gentilmente para fora. Nunca o jogaríamos
na privada e puxaríamos a descarga, desejando-lhe boa sorte no caminho!
Podemos incluir aqui dar conforto aos outros quando estão com medo,
quer seja as nossas crianças ou talvez um animal que esteja sendo caçado.
Por exemplo, se um gato está torturando um rato, tentaremos proteger o
rato, tirando-o dali.

No tantra, a generosidade de dar proteção do medo tem uma


interpretação que vai além, que é dar a nossa equanimidade aos outros.
Isso significa que os outros não tem absolutamente nada a temer de nós,
pois não nos aferraremos a eles com apego, nem os rejeitaremos com
raiva e hostilidade, nem os ignoraremos com ingenuidade. Aqui, estamos
igualmente abertos a todos, o que é realmente um presente maravilhoso
que podemos oferecer a qualquer pessoa.

A Generosidade de Dar Amor

O tantra também fala de um quarto tipo de generosidade, chamado de dar


amor. Não se trata de sair por aí abraçando todo mundo, mas quando
damos a todos o nosso desejo de que sejam felizes. Esta é a definição de
amor – o desejo de que a outra pessoa seja feliz e tenha as causas da
felicidade.

Como Dar de Forma Apropriada

Quando praticamos cada uma das atitudes de amplo alcance, tentamos


incorporar cada uma das outras cinco também. Ao praticar generosidade:

 Em conjunção com a disciplina ética, nós nos livramos de todos as


segundas intenções errôneas ou impróprias.
 Em conjunção com paciência, não nos importamos de aguentar
quaisquer das dificuldades envolvidas.
 Em conjunção com a perseverança, sentimos alegria ao dar, sem faze-lo
nem por dever nem por obrigação.
 Em conjunção com a estabilidade mental, nós nos concentramos na
dedicação da força positiva gerada ao dar.
 Em conjunção com a consciência discriminadora, percebemos que
aquele que dá (nós), o recipiente, e o objeto oferecido, todos não têm
uma existência auto estabelecida. Todos dependem um do outro. Não
há alguém que dá se não houver alguém que recebe.

Generosidade e Motivação Impróprias

Há uma vasta gama de situações que indicam que estamos dando algo de
forma incorreta e precisamos evitá-las. Talvez estejamos dando com a
esperança que outros ficarão impressionados, ou talvez pensemos que
somos realmente religiosos e maravilhosos. É comum que ao dar aos
outros esperemos algo em retorno, mesmo se for simplesmente um
obrigado. No entanto, quando damos, é impróprio esperar qualquer coisa
em troca, nem mesmo um obrigado, muito menos um grande sucesso em
realmente melhorar aquela situação. Isso fica a critério do karma alheio.
Podemos oferecer ajuda, mas não devemos esperar sucesso nem gratidão
em troca.

Lembro-me de uma vez durante a estação de chuvas em Dharamsala, na


Índia, havia um rato que estava se afogando em um dreno. Eu o tirei dali e
o coloquei no chão para secar e, enquanto estava deitado ali, um grande
falcão veio e o levou consigo. Tudo depende do karma individual, mesmo
se tentarmos ajudar. Podemos dar todas as oportunidades e assistência
para que alguém seja bem-sucedido, mas a pessoa ainda pode vir a ser um
terrível fracasso.

Mais além, se houver um bom resultado, nunca deveríamos nos gabar


para a outra pessoa, nem lembrar a ela tudo aquilo que demos e fizemos
por ela. Não devemos diminuir os outros quando os ajudamos, pensando
que estamos lhes fazendo um grande favor. Na verdade, eles estão nos
fazendo um favor ao aceitar e permitir que desenvolvamos força positiva
que nos levará à iluminação, e nos possibilitará ajudar os outros tanto
quanto possível.

Também é uma motivação imprópria dar por culpa ou obrigação,


sentindo talvez que, se outra pessoa fez uma doação, temos que fazer da
mesma forma ou até mesmo ofuscá-los dando mais.

Generosidade e Motivação Apropriadas

Quando praticamos a generosidade, nosso único pensamento precisa ser


beneficiar o recipiente, tanto temporariamente quando a nível absoluto.
Tentamos fazer o nosso melhor e, independente de conseguirmos ou não,
pelo menos tentamos. Não se trata apenas de uma ideia abstrata tipo
“Claro, quero ajudar todos os seres sencientes” mas que não nos
incomodem nem mesmo para ajudar a lavar a louça!

É claro que a generosidade pode ser mútua. Se os outros quiserem nos


ajudar e ser generosos, então não deveríamos ser orgulhosos e recusar
convites e presentes. Muitas pessoas fazem isso quando alguém tenta lhes
comprar algo, mesmo algo pequeno como um jantar. Ao fazer isso, estão
privando a outra pessoa da oportunidade de desenvolver forças positivas.
De fato, está nos votos dos bodhisattvas que precisamos aceitar convites e
ofertas de ajuda de outras pessoas, pois se não o fizermos isso pode ser
prejudicial para elas.

Certa vez, eu estava viajando com Serkong Rinpoche na Itália quando


alguém veio fazer algumas perguntas a ele. Quando foi embora, a pessoa
simplesmente colocou um envelope com uma oferenda sobre a mesa
próxima à porta. Serkong Rinpoche disse algo importante para mim: “Esta
é a maneira apropriada de dar. Não como essas pessoas que vêm e fazem
um grande show ao dar pessoalmente para o lama, para que ele saiba
quem deu e realmente as aprecie e pense boas coisas delas.” É sempre
melhor dar de forma silenciosa, anônima, sem fazer grande alarde. Fazer
isso desta forma gentil e respeitosa é a melhor maneira de fazê-lo.

Não façamos com que outras pessoas esperem por aquilo que temos para
dar, nem ofereçamos ajuda para somente dá-la amanhã. Novamente, é um
pouco como com as oferendas. Serkong Rinpoche era um dos professores
de Sua Santidade o Dalai Lama e tantas pessoas costumavam ir vê-lo. Ele
achava sem consideração e um pouco ridículo o fato que as pessoas
esperavam até estar diante dele para fazer prostrações elaboradas, e
disse: “Isso me faz perder meu tempo. Não tenho que vê-las fazendo as
prostrações. Elas não oferecem essas prostrações para o meu benefício.
Deveriam fazê-las antes de chegar a mim para poderem vir e me dizer de
forma direta aquilo que querem dizer.” É muito comum para os tibetanos
dar katas – echarpes cerimoniais – para os lamas, mas isso não deveria
ser feito para impressioná-los. Lembrem-se, as prostrações são para o
nosso benefício, não do professor.

Dar Pessoalmente

O que quer que decidamos dar, é importante que o façamos nós mesmos e
pessoalmente. Atisha tinha um assistente que queria fazer todas as
oferendas pelo professor, encher as tigelas de água e assim por diante.
Atisha disse: “É muito importante para mim fazer isso eu mesmo. Você
também comerá por mim?” Sempre que possível, deveríamos fazer tais
coisas nós mesmos e pessoalmente.

Se tomarmos a decisão de dar algo, não deveríamos mudar de ideia ou


depois nos arrepender e voltar atrás. Mais além, uma vez que tivermos
dado algo, não deveríamos insistir que seja usado da forma como
queremos que seja usado; isso se aplica especialmente a quando dermos
dinheiro, insistindo em como deve ser gasto. É como quando damos um
quadro a alguém e, quando vamos visita-lo, o quadro não está pendurado
na parede – nós nos sentimos um tanto magoados. Na verdade, quando
damos algo, esta coisa já não nos pertence.
Lembro-me de uma vez, em Dharamsala, havia um monastério no qual a
qualidade da comida era realmente ruim e os monges não estavam
passando muito bem. Nós, os ocidentais, coletamos dinheiros e demos a
eles para que comprassem uma comida melhor. No final das contas, eles
usaram o dinheiro para comprar mais tijolos e continuar construindo um
templo maior e melhor! Isso realmente irritou muitos ocidentais, que
fizeram um grande alvoroço pelo fato deles não terem usado o dinheiro
para comprar comida. A solução foi que, se queríamos que eles comessem
melhor, tínhamos que realmente comprar comida para eles. Pois neste
caso eles iriam ter que comê-la! Portanto, tínhamos que ser um pouco
espertos. Ainda assim, tivemos que comprar aquilo que eles gostavam de
comer, e para os tibetanos isso queria dizer carne, mesmo se alguns
ocidentais não aprovavam isso. Comprar tofu ou algo que eles nunca
comeriam não era realmente apropriado.

Ainda que visse Serkong Rinpoche quase todos os dias, sempre


costumava lhe trazer alguma pequena coisa. Depois de um tempo, ele me
repreendeu e disse, “Por que você está me trazendo todos esses katas e
incenso? Não preciso deste lixo!” Ele chamou aquilo de lixo! “O que é que
vou fazer com 1,000 katas?” Ele disse: “Se quer me trazer coisas, traga
algo de que eu goste e que possa usar.” Sabia que ele gostava de bananas,
então eu lhe trazia uma banana. Se quisermos dar para os outros, então
devemos ser habilidosos e dar aquilo de que eles gostam. Acreditem em
mim, os lamas já têm bastante incenso!

Da mesma forma, é importante trazer coisas de boa qualidade, não


apenas coisas das quais não gostamos e que não são úteis para nós. Há
pessoas que nunca querem aceitar nada, então pode ser que digamos:
“Alguém me deu isso e nunca vou usar. Por favor, aceite. Não quero jogar
isso fora.” Há também coisas que são inadequadas para dar, como um
hambúrguer para um vegetariano. Se alguém segue certo tipo de dieta,
nós nos adequamos a isso. Não levamos bolo para alguém que está
fazendo uma dieta rígida!

Dar o Dharma

Em termos de dar o Dharma, se alguém quiser debater conosco movido


por uma motivação de raiva, apego, orgulho ou apenas curiosidade
superficial, não deveríamos debater nem dar a eles os textos budistas.
Apenas ensinamos e discutimos o Dharma com pessoas receptivas. Se
alguém não for receptivo, então será impróprio ensinar a esta pessoa ou
discutir com ela. Na verdade, será uma perda de tempo, e apenas
contribuirá com seu estado mental negativo e sua hostilidade. Ensinamos
para aqueles que têm a mente aberta e querem aprender.
Se ensinarmos, temos que faze-lo no nível da outra pessoa. Não jogamos o
oceano inteiro de nosso aprendizado e conhecimento em cima do outro
apenas para provar nossa inteligência. Não damos um ensinamento
demasiado avançado a menos que ajude a dar uma pequena ideia do que
se trata. Às vezes, um ensinamento mais avançado pode inspirar pessoas
a trabalhar mais duro para tentar entende-lo, e isso também pode ser útil
se alguém for um pouco arrogante. Às vezes a Sua Santidade o Dalai Lama
ensina de uma forma muito complicada para professores de universidade
e outros, apenas para demonstrar quão sofisticados são os ensinamentos
budistas. Isso ajuda a dissipar qualquer noção de que o budismo é
primitivo ou retrógrado.

Lembro-me que certa vez Serkong Rinpoche visitou um centro ocidental


do Dharma e queriam que ele ensinasse o capítulo sobre vacuidade
(vazio) do texto do Shantideva em apenas dois dias. Isso realmente é um
absurdo! Apenas esta seção do texto leva mais ou menos um ano para
ensinar meticulosamente. Rinpoche começou a ensinar as primeiras
poucas palavras do capítulo em um nível extremamente avançado e
complicado, para demonstrar, com cada palavra, exatamente quão
complicado era o assunto. Ninguém conseguia entender o que ele estava
dizendo, o que também deixou claro o quão arrogante havia sido pensar
que se tratava de algo que podia ser ensinado e assimilado em um mero
ensinamento de dois dias. Depois, ele reduziu o ritmo até se equiparar ao
nível deles e explicou o significado geral de uma pequena parte do texto.

Quando a Sua Santidade o Dalai Lama ensina a um grande público, ele faz
um pouco para cada nível das pessoas presentes. Na maior parte do
tempo, ele ensina em um nível muito avançado, dirigido para quaisquer
grandes lamas, geshes e khenpos que estiverem presentes. Como é mais
avançado que todos os outros, ele pode ensiná-los neste nível e depois
eles podem explicar tudo de uma forma menos complexa para seus
próprios alunos. Neste tipo de situação, a pessoa não ensina para o nível
mais baixo, pois há outros que podem cuidar deste nível. Ensina-se para o
nível mais elevado, para que os ensinamentos possam cascatear rumo aos
outros níveis, como se fosse igual a eles.

Finalmente, é importante dar apenas às pessoas que pedem. Se alguém


não precisar, mas quiser algo por cobiça ou apego – como crianças que
querem chocolate o dia inteiro – então é impróprio dar. Precisamos usar
nossa consciência discriminadora para determinar o que, quando e para
quem é apropriado ou impróprio dar. Trungpa Rinpoche criou o termo
maravilhoso “compaixão idiota”; não ajudamos todos a fazer tudo aquilo
que querem, pois pode ser bastante estúpido! A nossa generosidade tem
que estar de acordo com a nossa sabedoria.
Conclusão

Praticar generosidade não requer que sejamos ricos nem que tenhamos
muitas posses. Independente de onde estivermos ou do que estivermos
fazendo, podemos começar a desenvolver uma mente generosa se
compartilharmos mentalmente tudo aquilo de que gostamos – o ar fresco
que respiramos, os lindos crepúsculos dos quais desfrutamos, as refeições
deliciosas que comemos. Desejar que outros também possam desfrutar de
tudo aquilo que fazemos é a base para o próximo passo, no qual
realmente damos aos próximos aquilo de que precisam.

Se pudermos, então será ótimo dar ajuda material, mas podemos também
ser generosos com a nossa energia e o nosso tempo. Quando damos com
alegria e com uma motivação pura, a generosidade se torna uma força
poderosa que assegura a nossa própria prosperidade e felicidade, e
também as dos outros.
A Perfeição Da Autodisciplina Ética:
Shilaparamita
Dr. Alexander Berzin

Disciplina. A palavra pode conjurar imagens de detenções escolares para


alguns, ou dietas restritivas para outros. No budismo, a autodisciplina ética
nos permite nos tornar conscientes dos efeitos de nosso comportamento em
relação a nós mesmos e outros. Ao invés de nos restringir, seguir uma
autodisciplina ética nos dá a liberdade de beneficiar a nós mesmos e as
pessoas ao nosso redor da melhor maneira possível.

Introdução

A segunda das seis atitudes de amplo alcance (perfeições) é a


autodisciplina ética. Não se trata do tipo de disciplina necessária para
aprender um instrumento de música ou se destacar no esporte, mas tem a
ver com o nosso comportamento ético. Tampouco tem a ver com policiar
outras pessoas, treinar o seu cachorro, ou controlar pessoas no exército.
Apenas estamos falando sobre a nossa própria disciplina, da qual temos
três tipos.

Evitar Ações Destrutivas

O primeiro tipo de autodisciplina ética é evitar ações destrutivas, e isso se


refere a como agimos, falamos e pensamos. Isso significa que em geral
evitamos os dez tipos de ações destrutivas como matar, roubar, mentir e
assim por diante, e se fizemos votos para evitar comportamentos que
impedem o nosso desenvolvimento espiritual, então mantemos esses
votos.

Quando falamos sobre evitar certos comportamentos destrutivos, há dois


tipos. Um é o comportamento naturalmente destrutivo, como matar e
roubar, o que é fácil de entender. Depois, há comportamentos que talvez
não sejam inerentemente destrutivos, mas que o Buda disse que seria
melhor que certas pessoas os evitassem, ou que fossem evitados em
certos momentos. Por exemplo, monges e monjas devem evitar comer à
noite, mas isso não se aplica a todo mundo. Esta regra vem do fato que, se
quisermos ter uma mente clara para meditar à noite e de manhã, então
simplesmente é melhor não comer à noite. Outro exemplo é o conselho de
não manter o cabelo longo como monge ou monja, pois fazer isso pode
aumentar o apego à própria beleza e também é uma perda de tempo
arrumar o cabelo todos os dias. Obviamente, este conselho não é para
todos, apenas monges e monjas.

Engajar-se em Ações Construtivas

O segundo tipo de autodisciplina ética é engajar-se em ações positivas e


construtivas, que desenvolvem a força positiva que precisamos para
alcançar a iluminação. Isso significa ter a disciplina para ir a
ensinamentos e para estudar, contemplar e meditar sobre o Dharma, e
completar o ngondro (as preliminares para a prática avançada do tantra)
como prostrações, oferendas e assim por diante.

Novamente, a autodisciplina ética é mais o estado mental do que o


comportamento em si. É a disciplina que vem de nossas mentes e forma a
maneira como nos comportamos – certificando-nos de que nós estamos
engajando em coisas positivas e evitando comportamentos destrutivos e
impróprios. Sem esta disciplina, ficamos totalmente fora de controle e
caímos facilmente sob a influência de emoções perturbadoras.

A autodisciplina ética é baseada na discriminação e na consciência


discriminadora. Para evitar agir de forma destrutiva, discriminamos e
temos que ser resolutos sobre as desvantagens de agir de forma
destrutiva. Ao engajar-nos em comportamentos positivos, discriminamos
os benefícios de meditar, fazer práticas preliminares, e assim por diante.
Com a discriminação, automaticamente sabemos como agir e nos
sentimos confiantes.

Trabalhar para o Benefício dos Outros

O terceiro tipo de autodisciplina ética é trabalhar para realmente


beneficiar e ajudar os outros. Aqui, temos a discriminação do benefício de
ajudar os outros e evitar não ajudá-los porque não temos vontade, ou não
gostamos especialmente de alguém.

Há muitos aspectos envolvidos em ajudar os outros, mas em geral, temos


a disciplina de nos engajar naquilo que chamamos de “os quatro meios de
reunir os outros sob a nossa influência positiva”. Em outras palavras,
agimos de formas que fazem com que os outros sejam mais receptivos a
nós, para que possamos lhes ensinar mais coisas mais profundas.

Esses quatro meios são:


1. Ser generoso
2. Falar de uma forma agradável
3. Motivar os outros a conquistar seus objetivos
4. Ser consistente com esses objetivos.

Os ensinamentos nas seis atitudes de amplo alcance especificam uma lista


de 11 tipos de pessoas com as quais precisamos trabalhar especialmente
duro para tentar ajudá-las e beneficiá-las. Não deveríamos pensar nisso
como apenas sendo uma lista, mas como uma instrução muito específica
para realmente ajudar tais pessoas quando as encontramos, ao invés de
ignorá-las.

1. Aqueles que estão sofrendo


2. Aqueles que estão confusos sobre como ajudar a si mesmos
3. Aqueles que nos ajudaram
4. Aqueles que estão cheios de medo
5. Aqueles submersos em sofrimento mental
6. Aqueles que são pobres e carentes
7. Aqueles que são apegados a nós
8. Aqueles que podemos ajudar de acordo com seus desejos
9. Aqueles que levam uma vida construtiva
10.Aqueles que levam uma vida destrutiva
11.Aqueles que nos pedem para que usemos quaisquer habilidades
extraordinárias que talvez tenhamos.

Shantideva sobre a Autodisciplina Ética

Shantideva discute a autodisciplina ética em dois capítulos de seu


texto, Engajar-se No Comportamento de um Bodhisattva. O primeiro
capítulo, chamado de “A Atitude Solidária”, é a base para a autodisciplina
ética, quando nos importamos com o efeito de nosso comportamento e
nos importamos em não ficar sob a influência de emoções perturbadoras.
Levamos a sério o fato de que outras pessoas também têm sentimentos e
que, se agirmos de forma destrutiva, nós as magoaremos. Nós nos
importamos com as consequências de nosso comportamento em nós
mesmos no futuro. Tudo isso cria a base para a autodisciplina ética. Se
realmente não nos importarmos em relação a machucar outras pessoas
ou o nosso próprio futuro, então não sentiremos nenhuma necessidade
de agir de forma ética.

Em muitos idiomas, a atitude solidária (caring attitude) é um termo difícil


de traduzir. Isso inclui ser cuidadoso e, portanto, ter cuidado em relação a
como agimos, mas também se refere ao que vem depois disso, levar a
sério o efeito de nosso comportamento em nós mesmos e nos outros.
O segundo capítulo que Shantideva devota a este tópico lida com a
presença mental e a vigilância. A presença mental é um estado mental que
mantem uma conexão mental com a disciplina, não sucumbindo a
emoções perturbadoras. É a cola mental que afixa a disciplina, como
quando passamos por uma padaria quando estamos fazendo uma dieta,
vemos o nosso bolo favorito, mas de alguma forma conseguimos nos
abster. Não renunciamos à nossa dieta: “Não vou comprar o bolo sob a
influência da cobiça e do apego. ” Isso acontece por causa da presença
mental, e é muito importante para a disciplina ética. Com a vigilância,
observamos quando começamos a vacilar em nossa dieta, dizendo: “Bem,
talvez só um pedacinho de bolo! ” A nossa vigilância toca um alarme
interno para que evitemos isso e voltemos ao autocontrole. Precisamos
ter cuidado com essas coisas. A presença mental e a vigilância são os
suportes para a disciplina ética. São ferramentas com as quais somos
capazes de manter a nossa disciplina e que podemos mais tarde usar para
desenvolver concentração.

Finalmente, Shantideva aponta para três fatores que nos ajudam a


desenvolver e manter a presença mental:

 Ficar na companhia de nossos professores espirituais. Se não


pudermos, podemos pensar que estamos em sua presença. Se
estivéssemos em sua presença, simplesmente não agiríamos de forma
destrutiva ou estúpida, por respeito a eles. É bom pensar, “Será que eu
agiria assim ou diria essas coisas na presença de meu professor? ” Se a
resposta for não, então Shantideva nos aconselha a “ser como um bloco
de madeira”. Simplesmente não fazer isso. Isso nos ajuda a ter
presença mental – obviamente se estivéssemos jantando com nosso
professor, não nos empanturraríamos de bolo nem gritaríamos com
alguém.
 Seguir o conselho e as instruções de nosso professor. Tentar nos
lembrar daquilo que ele disse nos ajuda a manter a presença mental.
 Temer as consequências de não ter presença mental. Não é que
temos medo, mas não queremos experienciar os efeitos de não ter
presença mental, baseados em um senso de autodignidade e
autoestima. Pensamos bastante em nós mesmos, de uma forma
positiva, de maneira a não querer ir ladeira abaixo agindo sob a
influência de raiva, cobiça e assim por diante.

Junto ao que foi mencionado acima, precisamos desenvolver um senso de


reverência em relação a nossos professores espirituais. “Reverência” é
uma palavra difícil. Não significa absolutamente que temos medo de
nossos professores espirituais – como se eles fossem nos repreender. A
reverência implica que respeitamos os nossos professores espirituais e o
budismo, tanto que nos sentiríamos péssimos se os nossos
comportamentos negativos tivessem um reflexo ruim sobre eles.
Tememos o quão terrível seria se, por nossa causa, as pessoas pensassem:
“Ah, os alunos deste professor agem assim?” Ou então: “Você
supostamente é um budista? Mas você continua se embebedando,
entrando em brigas e ficando com raiva” Por um sentido de reverência e
respeito, mantemos a nossa presença mental e agimos de acordo com a
disciplina ética.

Conclusão

Todos nós fizemos a experiência do fato que a disciplina é um elemento


incrivelmente importante para progredir em nossas vidas. Quer seja ao
aprender o alfabeto, estudar para provas ou tentar perder peso – sem
disciplina, é difícil realizar qualquer coisa.

O mesmo ocorre com a prática budista, na qual precisamos de disciplina


em termos de nosso comportamento para fazer progressos no caminho.
Se nos importarmos com nós mesmos e com os outros, então a
autodisciplina ética não será uma ideia tão inalcançável, mas algo de
natural e que faz sentido. Ao cultivar um comportamento construtivo de
forma cuidadosa e tentar da melhor maneira possível não prejudicar os
outros, criamos a base para as causas para um agora mais feliz, e um
amanhã mais feliz.
A Perfeição da Paciência:
Kshantiparamita
Dr. Alexander Berzin

“A paciência é uma virtude”, como diz o ditado. Isso quer dizer que apenas
temos que sorrir e aceitar tudo? A paciência no budismo é uma prática
poderosa que não quer dizer que temos que simplesmente tolerar as coisas,
mas que trabalhamos de forma ativa em nossa mente para termos certeza de
que ela não será vítima de emoções perturbadoras. A paciência nos dá a força
para trabalhar para o benefício, nosso e alheio, e é um dos fatores que nos
propulsa rumo à libertação e à iluminação.

Introdução

A terceira das seis atitudes de amplo alcance (perfeições) é a paciência,


um estado mental no qual não ficamos com raiva, mas ao invés disso
somos capazes de aguentar várias dificuldades e sofrimentos. Podemos
nos deparar com diversos tipos de danos cometidos por outras pessoas,
mas isso não nos perturba. Isso não significa que não temos mais inimigos
nem pessoas que tentarão nos machucar, mas significa que não ficaremos
com raiva, frustrados, desencorajados, ou relutantes em ajudar os outros.
Se sempre perdermos a nossa calma, como seremos capazes de ajudar os
outros? Esses são os três tipos de paciência nesta atitude:

Não Ficar Perturbados com Aqueles que Causam Danos

O primeiro tipo de paciência é não ficar com raiva ou perturbado com


aqueles que causam danos. Não se trata apenas de pessoas que agem de
forma negativa, mas também aqueles que realmente são sórdidos
conosco, nos tratam mal, e realmente nos prejudicam, tanto física quanto
mentalmente. Isso até mesmo inclui pessoas que não agradecem ou não
gostam de nós. Especialmente se estamos ajudando, é importante não
ficar com raiva se a outra pessoa não aceitar o nosso conselho ou se a
ajuda não funcionar. Há muitas pessoas que são muito, muito difíceis de
ajudar, então ao invés de perdermos a paciência, temos que aguentar
todas as dificuldades envolvidas.

Se formos professores, não devemos nunca perder a nossa paciência com


nossos alunos, independente do quão lenta ou pouco inteligente é a
pessoa. Cabe a nós como professores, caso estejamos ensinando o
Dharma ou qualquer outra coisa, ser pacientes e não nos rendermos à
frustração. É como ensinar um bebê: precisamos ser habilidosos; não
podemos esperar que um bebê aprenda tão rápido quanto um adulto.

Suportar o Sofrimento

O segundo tipo de paciência é aceitar e suportar nosso próprio


sofrimento, algo sobre o que fala muito o Shantideva. Ele diz que se
tivermos um problema que pode ser resolvido, não há sentido em ficar
com raiva, chateado ou preocupado. Basta fazer o necessário para
resolvê-lo. Mas se não houver nada que possa ser feito para resolver a
situação, por que ficar com raiva? Não ajuda. É como quando faz frio e
temos roupas quentes. Por que reclamar e ficar com raiva do frio quando
bastaria colocarmos mais algumas camadas de roupa? Se não tivermos
roupas quentes, então ficar com raiva ou chateados não nos esquentará.

Também podemos olhar para o sofrimento que experienciamos quando


superamos obstáculos negativos e ficar felizes que o karma negativo está
amadurecendo agora, ao invés de amadurecer no futuro quando ele
poderia ser bem pior. De certa maneira, estamos com sorte. Digamos que
batemos o nosso pé contra a mesa e ele realmente está doendo – bem,
isso é ótimo, pois não quebramos a nossa perna! Pensar assim pode nos
ajudar a não ficar com raiva. Afinal de contas, dar pulinhos e fazer uma
grande cena quando nosso pé está doendo não nos ajudará em absoluto.
Mesmo se a nossa mamãe vier e beijar nosso pé, ele não melhorará
completamente!

Outro ponto se aplica a quando estamos tentando fazer um trabalho


muito positivo e construtivo, como começar um longo retiro, fazer uma
viagem para ajudar pessoas, ou trabalhar com algum projeto do Dharma.
Se houver muitos obstáculos e dificuldades no início, então isso
realmente será ótimo. É como se todos os obstáculos estivessem sendo
superados para que o resto do projeto possa ir bem. Deveríamos estar
felizes que estão sendo superados agora ao invés de criarem grandes
problemas mais tarde.

Shantideva disse que os sofrimentos e problemas também possuem boas


qualidades. Não se trata de sair e procurar de forma ativa por problemas
para nos torturarmos com eles, mas quando estamos sofrendo, há muitas
boas qualidades que podemos apreciar. O sofrimento diminui a
arrogância e nos torna mais humildes. Ele também permite que
desenvolvamos compaixão por outros sofredores. Quando envelhecemos,
podemos finalmente entender de verdade a dor da idade. Geralmente,
não temos compaixão por pessoas idosas quando temos 16 anos, pois é
difícil imaginar como é ter 70 anos. Mas quando alcançamos uma idade
avançada e fazemos a experiência de tudo isso, então temos muita
compaixão e compreensão para com as pessoas idosas.

Se também tivermos o entendimento da causa e do efeito


comportamentais – do karma – então quando sofremos, isso nos lembra
de evitar agir de forma destrutiva. Por quê? Simplesmente porque agir de
forma negativa é a causa do sofrimento. Isso nos encorajará a ter um
maior engajamento em ações construtivas, que são a causa da felicidade.

Suportar Dificuldades Para o Dharma

O terceiro tipo de paciência é suportar as dificuldades envolvidas no


estudo e na prática do Dharma. Será necessária uma quantidade
tremenda de trabalho e esforço para alcançarmos a iluminação e
precisamos ser realistas em relação a isso para não ficarmos
desmotivados: temos que ser pacientes com nós mesmos.

É importante compreender e aceitar que a natureza do samsara é de ter


altos e baixos, não apenas em termos de renascimentos mais altos e mais
baixos, mas em geral, o tempo todo. Às vezes teremos vontade de praticar
e outras vezes não teremos. Às vezes a nossa prática irá bem e outras não.
O que mais podemos esperar? Trata-se do samsara, afinal. Não ficará cada
vez melhor, então temos que ser pacientes e não apenas desistir quando
um dia não é como nós planejamos. Talvez pensamos que já tínhamos
lidado com a raiva e nunca mais voltaríamos a ter raiva, mas de repente
acontece e perdemos a calma. Bem, acontece. Não nos livraremos
completamente da raiva até sermos tão libertos quanto um arhat. Então, a
paciência é essencial.

Shantideva Sobre Desenvolver Paciência

Shantideva explica muitas maneiras de desenvolver paciência


em “Engajando-se no Comportamento de Um Bodhisattva”. Vamos olhar
para alguns exemplos:

Se queimarmos a nossa mão em uma fogueira, ou no fogão, não podemos


ter raiva do fogo por ele ser quente. Trata-se da natureza do fogo. Da
mesma forma, o que podemos esperar do samsara? É claro que as pessoas
nos trairão, nos machucarão, e as coisas serão difíceis. Se pedirmos a
alguém para fazer algo por nós, deveríamos esperar que ele o faça de
forma incorreta. Se não fizer da forma que gostamos, de quem será a
culpa? É nossa própria culpa sermos preguiçosos demais a ponto de não
fazermos nós mesmo e pedirmos a eles. Se temos que ter raiva de alguém,
então deveria ser de nossa própria preguiça!

“O que podemos esperar do samsara” é uma frase útil para lembrar em


relação a todos os diferentes tipos de paciência que precisamos
desenvolver. Será que pensamos que a vida será fácil e tudo irá bem
sempre e para sempre? A natureza de cada momento de nossas vidas é
samsara – e isso equivale a sofrimentos e problemas incontrolavelmente
recorrentes. Então, quando as coisas não funcionam da forma que
queremos, ou as pessoas nos machucam ou desapontam, não deveríamos
nos surpreender. O que mais podemos esperar? É exatamente por isso
que queremos sair disso.

É como reclamar que o inverno é tão frio e escuro. Bem, o que é que
esperamos do inverno – que ele será adorável e quente e que poderemos
tomar banho de sol?! Da mesma forma que a natureza do fogo é quente, e
que queimaremos a nossa mão se colocarmos a nossa mão nas chamas, o
inverno será escuro e frio. Não faz sentido ter raiva.

Outro método que Shantideva sugere é ver certas pessoas como se fossem
loucas ou bebês. Se uma pessoa louca ou bêbada gritar conosco, seremos
ainda mais loucos que ela se gritarmos de volta, não é mesmo? Se o nosso
filho de dois anos gritar “eu te odeio!” quando desligamos a televisão e o
mandamos dormir, será que nós levamos isso a sério e ficamos com raiva
e chateados porque o nosso filho nos odeia? Não, porque se trata de um
bebê. Se pudermos ver outras pessoas que estão agindo de forma horrível
como bebês irritados ou pessoas loucas, realmente isso nos ajudará a não
ter raiva delas.

Além disso, se alguém de fato estiver dificultando a nossa vida, é muito


útil ver esta pessoa como um professor. Todos conhecemos aquela pessoa
extremamente irritante que nunca conseguimos evitar, certo? Bem,
quando estivermos com ela, seria bom pensar: “Esta pessoa é minha
professora de paciência.” Realmente, se as pessoas não nos irritassem
nem dificultassem a nossa vida, nunca aprenderíamos a ter paciência.
Nunca nos sentiríamos desafiados. Assim sendo, podemos ver que essas
pessoas são muito gentis ao nos oferecer este tipo de oportunidades. A
Sua Santidade o Dalai Lama sempre diz que os líderes chineses são seus
professores e que Mao Tse-tung foi seu melhor professor de paciência.

Conclusão

Todo dia no qual estamos presos no samsara encontraremos problemas e


frustração. Às vezes, as coisas irão exatamente da maneira que queremos,
e às vezes a vida parecerá fora do controle. Tudo aquilo que fazemos tem
o potencial de dar errado, cada amigo tem o potencial de se tornar nosso
inimigo. Não importa o quanto ajudamos nosso melhor amigo, pode ser
que ele acabe dizendo coisas horríveis a nosso respeito assim que
virarmos as costas.

Nessas situações, parece natural ficar com raiva, o que nos faz crer que ao
destruir nosso inimigo finalmente teremos a paz mental pela qual
ansiamos. Infelizmente, mesmo se hoje destruirmos o nosso arqui-
inimigo, amanhã e depois de amanhã novos surgirão. Shantideva nos
aconselha a simplesmente cobrir nossos próprios pés com couro, ao invés
de tentar cobrir o planeta inteiro com couro. Em outras palavras, não há
sentido em tentar vencer todos os inimigos externos, o que todos nós
precisamos fazer é destruir nosso próprio inimigo interno – a raiva. O
couro aqui é uma referência para a paciência, o portal que nos leva a
suportar as dificuldades que outros criam em nossas vidas e que
enfrentaremos no caminho para a libertação.
A Perfeição da Perseverança:
Viryaparamita
Dr. Alexander Berzin

Tibetanos dizem que ser virtuoso é tão difícil quanto fazer um burro teimoso
subir uma ladeira, enquanto fazer coisas destrutivas é tão fácil quando deixar
pedras rolarem ladeira abaixo. Não importa o quão pacientes, generosos e
sábios nós somos, se não superarmos a preguiça, nunca seremos capazes de
beneficiar ninguém. Com coragem heroica e perseverança, nós somos como
guerreiros, prontos para enfrentar qualquer batalha interna ou externa em
nossa busca de alcançar a iluminação e beneficiar a todos os seres.

Introdução

A quarta das seis atitudes de amplo alcance (perfeições) é a perseverança. Ela é definida
como um estado mental que energeticamente está engajado em um comportamento
construtivo e se esforça para mantê-lo. Mas isso implica bem mais do que apenas
persistir com uma tarefa positiva; isso inclui a coragem heroica de não desistir e a
alegria de fazer algo construtivo.

Não se trata de ter uma postura de realmente trabalhar muito, embora detestemos nosso
trabalho, mas ainda assim o fazemos porque sentimos que é nosso dever, obrigação, ou
nos sentimos culpados, ou algo assim. Tampouco se trata de fazê-lo todos os dias de
forma mecânica como um viciado em trabalho. Não é aquilo que chamamos de
“entusiasmo a curto prazo”, quando estamos realmente animados para fazer algo,
investindo uma energia tremenda nisso, mas aí nos exaurimos e desistimos depois de
uma semana. Estamos falando aqui sobre esforço e entusiasmo sustentáveis, e por isso
também são chamados de perseverança. A razão pela qual é sustentável é porque
desfrutamos daquilo que estamos fazendo – de todo o trabalho positivo que estamos
fazendo. A perseverança, juntamente com a coragem heroica, é a melhor oponente para
a preguiça e a procrastinação.

A Perseverança Como uma Armadura

Há três tipos de perseverança, sendo a primeira delas como uma armadura. Trata-se da
disponibilidade para continuar, continuar e continuar, independente do tempo que levará
ou quão difícil será. O que quer que aconteça, não ficaremos com preguiça nem
desmotivados. Se soubermos que o caminho do Dharma levará um tempo
realmente, realmente longo, e se estivermos dispostos a até mesmo ir aos infernos para
ajudar os outros, então é impossível ficar com preguiça ou desmotivados por qualquer
probleminha que aparecer. Temos uma postura como uma armadura que “nada,
absolutamente nada me abalará. ” Este tipo de coragem heroica nos protege de qualquer
dificuldade que enfrentarmos, pois já decidimos que, não importa quão difíceis forem as
condições ou quanto tempo levar, nós faremos o que tem que ser feito.

De certa forma, quanto mais acharmos que demorará para nos iluminarmos, mais rápido
ocorrerá; ao passo que, se quisermos que aconteça de forma fácil e imediata, bem, então
levará uma eternidade. Muitos grandes textos e professores disseram que se estivermos
buscando uma iluminação instantânea e fácil, então isso é basicamente um sinal de
nosso próprio egoísmo e preguiça. Queremos resultados, mas não temos vontade de
passar muito tempo ajudando aos outros. Queremos apenas a sobremesa deliciosa da
iluminação. Essencialmente, somos preguiçosos! Não queremos investir o trabalho duro
necessário. Queremos a iluminação em promoção, e quanto mais barato melhor. Mas
este tipo de barganha nunca pode funcionar.

Quando temos compaixão e a postura de que “trabalharei por três zilhões de eras para
desenvolver força positiva ajudando os outros”, o enorme escopo desta coragem heroica
nos ajuda a trazer a iluminação muito mais rápido.

A Perseverança Aplicada às Ações Construtivas

O segundo tipo de perseverança é o grande esforço de se engajar em ações positivas e


construtivas para desenvolver a força positiva necessária para nos trazer à iluminação.
Isso significa que não somos preguiçosos para estudar, aprender e meditar. Precisamos
fazer todas essas coisas e deveríamos nos deleitar ao fazê-las.

A Perseverança de Trabalhar Para o Benefício dos Seres Limitados

O terceiro tipo de perseverança é o grande esforço envolvido no trabalho de ajudar e


beneficiar os outros, o que se refere às quatro maneiras de reunir os outros sob a nossa
influência positiva e trabalhar com os 11 tipos de pessoas que precisam de ajuda, das
quais também falamos na disciplina ética de amplo alcance. No entanto, eles não são
idênticos. Basicamente, aqui trata-se de ajudar de forma ativa esse tipo de pessoas das
várias formas adequadas com esta perseverança. Temos prazer ao fazer tudo isso, nos
sentimos realmente felizes que somos capazes de beneficiar aos outros. Além disso,
com paciência, aguentaremos quaisquer dificuldades envolvidas, e com a autodisciplina
ética, evitaremos todas as emoções perturbadoras que nos impedem de realmente ajuda-
los. É claro como as várias atitudes de amplo alcance se apoiam mutuamente.

Os Três Tipos de Preguiça

Há três tipos de preguiça que podem interromper a nossa perseverança. Para praticar e
desenvolver perseverança, precisamos superar a preguiça.

1. A Preguiça da Letargia e da Procrastinação


Muitos de nós têm a experiência direta deste tipo de preguiça, na qual sempre queremos
adiar as coisas para amanhã. Para superar isso, deveríamos pensar e meditar sobre a
morte e a impermanência. Precisamos entender que com certeza vamos morrer, que não
temos absolutamente a mínima ideia de quando a morte virá, e que esta preciosa vida
humana, que nos dá a oportunidade de fazer tantas coisas incríveis, é difícil de
encontrar.

Meu koan zen favorito é “A morte pode vir a qualquer momento. Relaxe.” É bom
refletir sobre esta afirmação. É verdade que a morte pode atacar a qualquer momento,
mas se formos ansiosos, nervosos e tensos demais em relação a isso, então nunca
realizaremos nada. Nós sentimos: “Tenho que fazer tudo hoje!” e nos tornamos
fanáticos, o que não nos ajuda. Sim, vamos morrer e isso pode ocorrer a qualquer
instante, mas se quisermos aproveitar esta vida, então temos que relaxar em relação a
esses fatos. Se sempre tivermos um intenso medo da morte, então sempre sentiremos
que nunca teremos tempo suficiente.

2. A Preguiça de se Apegar ao Que É Mesquinho


O segundo tipo de preguiça é ficar apegado aos assuntos triviais, o que novamente
muitos de nós entenderão com facilidade. Perdemos tanto tempo assistindo televisão,
fazendo fofoca e conversando bobagens com amigos, falando sobre esportes, e assim
por diante. Isso é visto como uma perda de tempo e é basicamente um tipo de preguiça.
Simplesmente: é tão mais fácil sentar na frente da televisão do que meditar. Não é
mesmo? Nós nos apegamos a essas coisas comuns e mundanas através de nossa própria
preguiça, não querendo tentar fazer algo que talvez pareça mais difícil, mas é tão mais
significativo.

Isso não significa que não devemos parar para nos divertir e relaxar, pois às vezes
precisamos disso, para nos revitalizar. A questão é não nos apegarmos a isso e faze-lo
de forma exagerada por causa da preguiça. Podemos sempre fazer uma pausa, ir dar
uma caminhada, assistir a um programa de televisão – mas não precisamos nos apegar a
isso. Quando for suficiente, voltamos às coisas mais positivas que estávamos fazendo
antes.

A melhor forma de superar o apego às coisas mesquinhas é pensar sobre como os


prazeres e a satisfação que temos de realizações e atividades mundanas nunca nos traz
uma felicidade duradoura. Não importa quantos filmes assistirmos, ou quanto
fofocarmos sobre celebridades, ou quanto viajarmos para lugares diferentes: isso nunca
nos trará nem um pouquinho de felicidade duradoura. A única forma de conseguir esta
felicidade duradoura é treinar nos métodos do Dharma que levam a ela. Podemos gastar
todo o nosso tempo treinando para sermos capazes de chutar uma bola na rede, mas isso
nunca nos dará um renascimento melhor.

Então, o ponto principal relativo a isso é não ficar apegados. Podemos fazer algo para
relaxar, e isso está bem. Mas apegar-nos a essa atividade e gastar todo o nosso esforço
nisso porque somos preguiçosos demais para fazer algo mais construtivo – isso é
simplesmente uma perda de tempo. Este tipo de preguiça realmente é um obstáculo para
nos alegrarmos fazendo coisas construtivas.

3. A Preguiça de Ficar Desmotivado


O terceiro tipo de preguiça é quando temos ilusões de incapacidade – que as coisas são
simplesmente difíceis demais para nós e nunca seremos capazes de faze-las – então,
ficamos desmotivados. Quantas vezes pensamos: “Ah, eu não vou tentar isso – como
poderia alguém como eu fazer isso?” Um grande objetivo como a iluminação pode
parecer assustador; mas nem mesmo tentar é uma forma de preguiça.

Para superar isso, temos que nos lembrar da natureza búdica – o fato que cada um de
nós tem várias qualidades e potenciais incríveis que podemos realizar. Se tantas pessoas
são capazes de trabalhar desde de manhã até a noite para fazer apenas um pouquinho de
dinheiro vendendo chiclete ou outra coisa qualquer, então com certeza somos capazes
de investir o tempo para alcançar algo de mais significativo. Se somos capazes de ficar
em pé em uma fila por horas e horas para comprar uma entrada para um show que dura
apenas 90 minutos, então nunca deveríamos pensar que somos incapazes de fazer algo
construtivo que leva ao objetivo eterno da iluminação.

Os Quatro Suportes para Desenvolver a Perseverança

Shantideva descreve quarto suportes que nos ajudam a desenvolver a perseverança.

1. Uma Forte Intenção


Ganhamos uma forte intenção para colocar os ensinamentos em prática ao termos uma
firme convicção nas qualidades positivas do Dharma, e no benefício que ele nos traz.

2. Firmeza e Auto-orgulho
Precisamos de firmeza e estabilidade baseadas na autoconfiança e em um entendimento
da natureza búdica. Quando estivermos realmente convencidos sobre a existência da
natureza búdica – o potencial básico dentro de todos nós – então automaticamente
teremos uma incrível autoconfiança, seremos estáveis e constantes em nosso esforço.
Não importa quantos altos e baixos houver, perseveraremos com uma coragem heroica.

3. Deleite
O terceiro suporte é alegrar-nos naquilo que estamos fazendo. Trata-se de um
sentimento de satisfação e contentamento com aquilo que estamos fazendo com nossas
vidas. Trabalhar em nosso desenvolvimento pessoal e ajudar os outros é a coisa mais
satisfatória e que mais nos traz plenitude. Quando fazemos isso, naturalmente uma
grande alegria surge dentro de nós.

4. Soltar
O ultimo suporte é saber quando descansar. Não deveríamos nos exaurir ao ponto de
simplesmente cair, desistir, não conseguir enfrentar e voltar ao que estávamos fazendo.
Precisamos achar o caminho do meio entre nos esforçar demais ou tratar a nós mesmos
como bebês. Isto não quer dizer que a cada vez que nos sentimos um pouco cansados,
deveríamos deitar e tirar um cochilo!

Ainda assim, Trijang Rinpoche, o falecido tutor de sua Santidade o Dalai Lama, disse
que quando estivermos com um humor realmente ruim e negativo, e nenhum dor
métodos do Dharma estiver nos ajudando, então a melhor coisa é tirar um cochilo.
Quando acordarmos, o nosso humor terá mudado, pela simples natureza de tirar um
cochilo. Trata-se de um conselho muito prático.
Dois Fatores Adicionais para Desenvolver a Coragem Heroica

Shantideva aponta para dois fatores adicionais que são úteis:

1. Aceitar Prontamente
O primeiro é aceitar prontamente o que precisamos praticar e aceitar o que precisamos
renunciar. Além disso, precisamos aceitar as dificuldades envolvidas. Tudo isso é
baseado no exame realista de cada ponto e nossa habilidade ao lidar com eles. Isso
inclui aceitar que realmente precisamos deste e daquele ato construtivo para ajudar os
outros e alcançar a iluminação. Aceitamos que há coisas que precisaremos parar de
fazer e que haverá dificuldades envolvidas nisso.

Aceitamos e assumimos a responsabilidade, conhecendo a nossa habilidade e aquilo que


está envolvido de forma realista. Não deveríamos ter uma atitude irrealista. Se
planejarmos 100.000 prostrações, temos que saber que não será fácil. As nossas pernas
vão doer, nossas palmas ficarão feridas, com certeza ficaremos cansados. Então, nos
lembramos dos benefícios de fazer isso.

E aquelas coisas que temos que parar de fazer? Para começar, precisamos de tempo, e
pode vir a ser bastante difícil – cortar coisas apenas para criar tempo. Nós nos
examinamos honestamente e perguntamos: “Será que consigo fazer isso? ”. Aceitamos a
realidade daquilo que está envolvido e colocamos o nosso coração a serviço disso com
um entusiasmo alegre.

2. Tomar Controle
O segundo ponto de Shantideva para desenvolver a coragem heroica é que, uma vez que
tenhamos a atitude realista de aceitar aquilo do que falamos mais acima, tomamos
controle e realmente nos aplicamos. Com a força de vontade, não apenas nos deixamos
agir de nenhuma forma antiga – especialmente com preguiça. Assumimos o controle e
nos aplicamos no trabalho positivo que queremos realizar. Como diríamos em inglês:
“Nós colocamos o nosso coração nisso.”

Conclusão

Quando estivermos realmente convencidos dos benefícios de praticar o


Dharma e virmos como a felicidade que ele pode nos proporcionar é
incomparável, a perseverança naturalmente se desenvolverá. Não
importa o que estiver acontecendo em nossas vidas, se tivermos uma
forte motivação combinada com perseverança, então como um herói,
alcançaremos nossos objetivos.

A perseverança nos ajuda a superar um dos maiores obstáculos que


muitos de nós enfrentam ao tentar alcançar os objetivos: a preguiça. Os
métodos descritos aqui são úteis não apenas enquanto progredimos em
nossos caminhos rumo à iluminação, mas também para nossos objetivos
mais mundanos durante toda a nossa vida.
A Perfeição da Concentração:
Dhyanaparamita
Dr. Alexander Berzin

Nossas mentes divagam o tempo todo. Mesmo quando tentamos focar em


algo, somos constantemente distraídos por notificações incessantes de nossos
smartphones ou ficamos sonhando com situações futuras. Nossas emoções
pulam para cima e para baixo, impedindo que foquemos de forma estável,
especialmente quando nossas mentes estão cheias de ansiedade,
preocupações e medos. Com a perfeição da concentração completa, ou seja,
com estabilidade mental e emocional, somos capazes de usar todas as nossas
habilidades de forma bem-sucedida para completar qualquer tarefa positiva.

Introdução

A quinta das seis atitudes de amplo alcance (perfeições) é a concentração,


ou a estabilidade mental. Com ela, somos capazes de permanecermos
perfeitamente focados em qualquer objeto, pelo tempo que quisermos,
com uma emoção positiva e um entendimento profundo. Nossa mente fica
completamente livre dos extremos da divagação mental, ou seja, da
agitação advinda das emoções perturbadoras e do embotamento mental.
Com uma mente afiada, as nossas energias ficam concentradas e mansas,
e não mais se agitam descontroladamente dentro de nós. Chegamos a ter
uma sensação de alegria e êxtase, mas ao mesmo tempo de paz, tanto a
nível físico quanto mental. Experimentamos a clareza mental
extraordinária que surge quando a mente se livra de quaisquer
pensamentos que possam nos distrair e de emoções inoportunas. Sem
nos apegarmos a este estado puro, claro e extasiante, podemos usá-lo
para qualquer propósito positivo que desejarmos realizar.

Há várias maneiras de classificarmos a estabilidade mental de amplo


alcance – pela natureza, pelo tipo e pela função.

Classificação de Acordo com a Natureza da Concentração

Uma forma de classificarmos os diferentes estados da estabilidade mental


de amplo alcance é de acordo com o nível de realização da pessoa que o
tem. Podemos diferenciar a perfeição da concentração de:
 Uma pessoa comum – alguém que ainda não alcançou a cognição não-
conceitual da vacuidade (do vazio)
 Alguém que transcende aquilo que é comum – um ser altamente
realizado (um “arya”), que tem a cognição não-conceitual da vacuidade.

Aqueles que já tiveram ao menos uma breve experiência de cognição não-


conceitual da vacuidade, libertaram suas mentes de um certo nível de
atitudes perturbadoras. Portanto, correm menos perigo de não
conseguirem aplicar a concentração de amplo alcance no cotidiano por
causa de algum distúrbio emocional.

Classificação de Acordo com o Tipo de Concentração

Esta divisão se refere ao que estamos tentando alcançar quando


trabalhamos para alcançar a estabilidade mental de amplo alcance. A
nossa concentração pode ser orientada para alcançar:

 Shamatha – um estado mental calmo e estável, totalmente livre de


agitação (especialmente a causada por objetos de desejo) e torpor,
vivenciado como uma sensação extasiante de aptidão física e mental,
uma sensação de sermos capazes de permanecer focados em um
estado positivo por quanto tempo quisermos. Esse estado mental é
capaz de permanecer unifocado em seu objeto com um estado mental
construtivo – por exemplo, focar em um ou mais seres sencientes com
compaixão, ou simplesmente com consciência discriminativa – e com
uma percepção ampla das características gerais do objeto, como a
impermanência ou a sua natureza de sofrimento.
 Vipashyana – um estado mental excepcionalmente perceptivo, também
livre de agitação e torpor e vivenciado como uma sensação extasiante
de aptidão física e mental. Além disso, nesse estado mental somos
capazes de perceber, com claro entendimento, todos os detalhes de um
objeto. Assim como na prática de shamatha, a mente permanece
unifocada em seu objeto com um estado mental construtivo, como o da
compaixão, mas, neste caso, discernindo sutilmente todos os detalhes
específicos do objeto, todos os diferentes tipos de sofrimento aos quais
os seres estão submetidos, por exemplo.
 Shamatha e vipashyana como um par unido – uma vez que alcançamos
o estado completo de shamatha, trabalhamos para uni-lo ao estado de
vipashyana. O verdadeiro estado de vipashyana só pode ser obtido se
já houvermos alcançado shamatha. A união de shamata e vipashyana é
acompanhada dos dois sentimentos extasiantes – a sensação de
aptidão física e mental de sermos capaz de permanecer focados em
qualquer coisa que desejarmos e a percepção de todos os detalhes do
objeto em que focamos – assim como da deteção grosseira e do
discernimento sutil de todos os detalhes.

Classificação de Acordo com a Função Realizada pela


Concentração

A estabilidade mental de amplo alcance gera muitos resultados quando a


alcançamos. Referimo-nos a esses resultados como sendo as funções
realizadas por este tipo de concentração. A concentração tem a função de:

 Levar nosso corpo e mente a um estado de êxtase nesta vida – um estado


no qual vivenciamos um sentimento extasiante de aptidão mental e
física e o apaziguamento temporário de nossas emoções perturbadoras
 Gerar boas qualidades – são as realizações compartilhadas com aqueles
que buscam apenas sua própria liberação, e incluem: visão extra-
sensorial, consciência avançada, poderes de emanação, estados mais
elevados de estabilidade mental (os “dhyanas”) com uma liberdade
temporária de sentimentos mesclados à confusão e a diminuição de
emoções perturbadoras.
 Nos capacitar a beneficiar seres que sofrem – os 11 tipos de pessoas que
necessitam de ajuda, que também foram mencionadas quando
discutimos disciplina e perseverança de amplo alcance

Conclusão

Pode não ser sempre evidente, mas precisamos de concentração para


realizar até mesmo pequenas tarefas, como amarrar o cadarço de nossos
sapatos. A maioria de nós é capaz de se concentrar em coisas bem mais
complexas e podemos aperfeiçoar essas habilidades para alcançar nossos
objetivos espirituais. Juntamente com as outras atitudes de amplo alcance
e o poder do ideal de bodhichitta, nossa estabilidade e concentração
mentais adquirem um alcance tão amplo que podem nos conduzir
durante todo caminho até a iluminação.
A Perfeição da Sabedoria:
Prajnaparamita
Dr. Alexander Berzin

Se nos falta a sabedoria que sabe discriminar com precisão entre a realidade e
a fantasia, falta-nos a mais importante ferramenta para realizar os objetivos
mundanos e espirituais, nossos e dos outros. Em um estado de inconsciência e
confusão, apenas tentaremos adivinhar o que ajudará a nós mesmos e aos
outros, e muitas vezes erraremos. Com a consciência discriminativa de amplo
alcance – a perfeição da sabedoria – juntamente com compaixão e um ideal de
bodhichitta, podemos nos tornar um buda e conhecer plenamente os mais
efetivos e adequados métodos para beneficiar todos os seres existentes.

A consciência discriminativa de amplo alcance – mais conhecida como


“prajnaparamita,” a perfeição da sabedoria – é a última das seis
perfeições. Com ela, analisamos de forma minuciosa e discriminamos com
precisão e certeza a natureza e os detalhes sutis de tudo aquilo que
precisamos saber para alcançar a iluminação e plenamente beneficiar a
todos. Há três classificações – a consciência discriminativa de amplo
alcance que entende de forma correta:

1. O fenômeno mais profundo – a natureza da realidade, isto é, a falta


de uma natureza autoestabelecida de todos os fenômenos, percebida
conceitualmente, através de uma categoria de sentidos, ou não-
conceitualmente, de forma manifesta.
2. Fenômenos convencionais, superficiais – os cinco principais campos
de conhecimento: as artes manuais e o artesanato, a medicina, as
línguas e a gramática, a lógica e o conhecimento interno dos
ensinamentos budistas completos, especialmente os estágios de
realização, e os métodos e sinais de tê-los alcançado.
3. Como beneficiar todos os seres limitados e sofredores – os onze tipos
de pessoas que podemos ajudar, das quais também falamos em relação
à autodisciplina ética, à perseverança e à estabilidade mental.

Com a perfeição da sabedoria, nós discriminamos de forma correta e


decisiva:

 Os objetivos positivos que estamos tentando alcançar


 Os benefícios de alcançá-los
 As desvantagens que vêm de não alcançá-los
 Os métodos mais efetivos para alcançar esses objetivos
 Como praticar esses métodos de forma apropriada
 Os obstáculos que podem surgir enquanto tentamos praticá-los
 As maneiras de evitar ou superar esses obstáculos

Sem o entendimento correto que vem da consciência discriminativa de


amplo alcance, nós praticamos os métodos budistas de forma cega,
incertos em relação àquilo que queremos alcançar, por que queremos
alcançar, como alcançar e o que faremos com nossa realização uma vez
que a tivermos alcançado. Nós contaminamos as nossas práticas com
motivações egoístas e ignorantes, as poluímos com emoções e atitudes
perturbadoras, e assim, colocamos em risco quaisquer chances de
sucesso.

A consciência discriminativa de amplo alcance é essencial para colocar as


outras cinco atitudes de amplo alcance em prática de forma apropriada –
a generosidade, a autodisciplina ética, a paciência, a perseverança e a
estabilidade mental ou concentração. Com esta perfeição da sabedoria,
nós discriminamos de forma correta e decisiva:

 O que é ou não apropriado dar e a quem, e no mais, a nossa natureza


vazia, a da pessoa para quem nós damos e do que nós lhe damos, para
que sejamos capazes de dar o que é útil sem nenhum orgulho ou apego
e sem arrependimentos.
 O que é útil e prejudicial para nós e para os outros, e além disso, os
sofrimentos do samsara e os inconvenientes de permanecer em um
estado sereno e apático de nirvana, para que exercitemos a
autodisciplina ética de forma genuína e apenas para beneficiar os
outros e não para realizar nossos objetivos egoístas.
 As falhas da impaciência e os benefícios da paciência, para que
possamos suportar com amor e compaixão as respostas negativas e
hostis em relação aos nossos esforços em ajudar, e suportar também
todas as dificuldades envolvidas na prática do Dharma, sem ficar com
raiva.
 As razões por que estamos buscando por nossos objetivos espirituais e
como os métodos que praticamos nos levarão a eles, de forma que
queiramos perseverar em nossa prática sem ficar com preguiça ou
desmotivados, nem desistir no meio do caminho.
 O que é a realidade e o que é a projeção de maneiras impossíveis de
existir, de forma que a concentração com a estabilidade mental, focada
na verdadeira natureza da realidade, nos leve à liberação e à
iluminação. Mais além, com a consciência discriminativa do nosso
objetivo, não deixamos nenhum estado sereno e extasiante alcançado
na meditação nos desviar de nosso objetivo de ajudar os outros.
As Dez Perfeições

Quando as dez perfeições de amplo alcance são listadas, as últimas quatro


atitudes são classificações da discriminação de amplo alcance:

 Habilidade de amplo alcance em meios – uma consciência


discriminativa especial no que diz respeito aos métodos mais efetivos e
apropriados, dirigidos para dentro, para atualizar os ensinamentos do
Dharma, e para fora, para ajudar os outros a atingir a libertação e a
iluminação.
 Oração aspiracional de amplo alcance – uma consciência especial e
discriminativa em relação às coisas às quais aspiramos, isto é, para que
nunca nos separemos do ideal de bodhichitta e que nossas atividades
que beneficiam os outros continuem para sempre sem nenhuma pausa.
 Reforço de amplo alcance – uma consciência especial e
discriminativa, conquistada através de análise e de meditação
estabilizadora, empregada para expandir a nossa consciência
discriminativa de amplo alcance e não deixar que seja destruída por
forças contrárias, como o apego.
 Consciência profunda de amplo alcance – consciência especial e
discriminativa empregada para que o correto entendimento da
vacuidade de todos os fenômenos seja plenamente integrado por nossa
mente, de forma que seja capaz de perceber simultaneamente as
verdades superficiais e profundas sobre tudo.

Conclusão

Com a consciência discriminativa de amplo alcance, distinguimos clara e


decisivamente os benefícios de todas as nossas práticas e os
inconvenientes de continuar a viver com aquilo que as práticas querem
superar. Apoiados por um firme entendimento e por esta convicção, e
nutridos por uma motivação inabalável de amor, compaixão e do objetivo
de bodhichitta, qualquer prática do Dharma que fizermos se tornará
efetiva para alcançar a iluminação e a habilidade de beneficiar a todos o
máximo possível.
Como Ser uma Influência Positiva
para os Outros
Dr. Alexander Berzin

Só podemos ajudar os outros a levar uma vida mais positiva se eles estiverem
e receptivos a nós. Algumas pessoas que conhecemos são naturalmente
abertas e alguns de nós podemos ser naturalmente carismáticos. Mas além
desses casos, se somos generosos, damos conselhos de forma agradável,
mostramos claramente como colocá-los em prática e damos o exemplo de
como praticar o que dizemos, as pessoas se reunirão ao nosso redor e serão
receptivas à nossa influência positiva.

Quando nos empenhamos pela iluminação, cultivamos as seis atitudes de


longo alcance a fim de amadurecer todas as boas qualidades das quais
precisaremos, como um Buda, para ajudar os outros. Mas, para também
ajudar todos os outros a amadurecer suas boas qualidades primeiro
precisamos reuni-los sob nossa influência positiva. O Buda ensinou como
realizar isso eficazmente em quatro passos:

1. Ser Generoso

Sempre que possível, devemos ser generosos com os outros. Quando


alguém nos visita, nós lhe oferecemos algo; se vamos comer fora, também
podemos pagar a conta. Ser generoso não significa necessariamente dar
algo material para alguém. É muito importante sermos generosos com
nosso tempo. Estar disposto a conhecer alguém, ouvir seus problemas
com interesse e preocupação genuínos, e levar sua vida a sério, é um
grande presente que nunca devemos subestimar. Isso faz com que as
pessoas sintam-se aceitas e relaxadas e, como resultado, ficarão felizes e
se sentirão confortáveis conosco. Esse é o primeiro passo para que
estejam abertas à nossa influência positiva.

2. Falar de Maneira Agradável

Para que as pessoas fiquem ainda mais abertas a nós, precisamos falar de
maneira gentil e agradável com elas. Ou seja, de forma que elas entendam,
usando o tipo de linguagem com a qual possam se identificar, e falar em
termos de seus interesses. Basicamente, precisamos fazer com que os
outros sintam-se confortáveis conosco. Perguntamos sobre sua saúde e
mostramos interesse no que está acontecendo em suas vidas. Se alguém
gosta de futebol, não dizemos “Isso é besteira, que perda de tempo!” Esse
um ponto importante, porque se dissermos isso, eles não ficarão
receptivos a nós. Eles sentirão que nos achamos superiores a eles. Não há
necessidade de entrar em detalhes sobre quem ganhou o jogo de hoje,
mas podemos conversar um pouco para que eles se sintam aceitos. Se
aspiramos a ajudar os outros, é importante ter interesse em todas as
pessoas e nas coisas pelas quais elas se interessam. Se não fizermos isso,
como é que podemos nos identificar com elas?

Uma vez que alguém esteja aberto e sinta-se aceito por nós, nossa
maneira agradável de falar pode se voltar para assuntos mais
significativos. Em momentos e circunstâncias apropriadas, podemos falar
sobre aspectos dos ensinamentos budistas que são relevantes e que
poderiam ser úteis para a pessoa. Precisamos nos assegurar de indicar
alguns dos benefícios que eles terão ao fazer isso.

Nosso tom de voz é crucial ao dar conselhos. Precisamos evitar soar


insistentes, condescendentes ou arrogantes. Isso é o que falar de forma
agradável pressupõe. Precisamos falar de modo que a outra pessoa ache
fácil aceitar, sem sentir-se ameaçada ou bombardeada por um conselho
indesejado. Isso requer grande sensibilidade e habilidade, para sabermos
o momento e a maneira certa de oferecer conselho. Se formos intensos
demais e sempre insistirmos em ter conversas profundas e significativas,
as pessoas nos acharão entediantes e não serão receptivas ao que
dissermos. É por isso que às vezes precisamos usar humor para fazer a
conversa ficar mais leve, especialmente se a pessoa começar a ficar
defensiva quando oferecemos conselho.

Como resultado de falarmos gentilmente, de maneira agradável, porém


significativa ao explicar um ensinamento as pessoas ficarão interessadas
em alcançar os objetivos do que aconselhamos. Isso se deve a verem com
clareza e confiança o que o conselho é, e assim, ao perceber seus
benefícios, o valorizarão.

3. Incentivar os Outros a Alcançar Seus Objetivos

Não deixamos nossos conselhos ficarem apenas no nível da teoria


budista; precisamos explicar explicitamente como aplicar o ensinamento
à situação individual da pessoa. Dessa forma, a incentivamos a colocar
nosso conselho em prática para que possa alcançar o objetivo do
ensinamento. Somente quando ela souber como colocar em prática um
ensinamento – o que fazer exatamente, passo a passo – ficará
entusiasmada em experimentá-lo.
Ao incentivar os demais a colocar em prática os ensinamentos em suas
vidas, tentamos oferecer circunstâncias facilitadoras. Isso significa, em
princípio, simplificar as coisas, especialmente para pessoas sem
experiência em budismo. Apenas gradualmente as conduzimos para as
técnicas mais complexas e avançadas. Como resultado, ganharão
autoconfiança para persistir e prosseguir com os métodos. Assim, não
ficarão desanimadas ao tentarem colocar em prática um ensinamento que
está muito além de seu nível atual.

4. Ser Consistente com Esses Objetivos

Uma das coisas mais desanimadoras para alguém que aconselhamos é


ver-nos como hipócrita. Para evitar que dêm as costas aos ensinamentos,
precisamos dar um bom exemplo agindo de acordo com o que dizemos.
Se ensinamos a alguém os métodos budistas para superar a raiva, por
exemplo, mas depois damos um escândalo quando estamos com eles num
restaurante e nossa comida demora meia hora para chegar, o que
pensarão dos ensinamentos budistas para controle da raiva? Eles
pensarão que os métodos não funcionam e desistirão. E com certeza não
vão mais aceitar qualquer outro conselho que dermos. É por isso que a
forma como agimos precisa ser consistente com o que ensinamos.
Somente assim confiarão no que dissermos.

É claro que ainda não somos budas e por isso é impossível sermos um
modelo perfeito para qualquer pessoa. Mesmo assim, fazemos o melhor
possível. Não ser hipócrita não significa fingir seguir os ensinamentos
quando estamos com alguém que tentamos ajudar, mas depois agir de
forma vergonhosa quando estamos sozinhos, ou com nossa família. Agir
de forma consistente com os objetivos do Dharma precisa ser algo que
fazemos em tempo integral e com sinceridade.

Conclusão

Os quatro passos para reunir e ajudar os outros a ganhar maturidade por


meio dos ensinamentos budistas são relevantes não só nos nossos
relacionamentos pessoais, mas também, em maior escala, para tornar o
Dharma disponível no mundo.

 Ser generoso – oferecer os ensinamentos gratuitamente

 Falar de maneira agradável – disponibilizar os ensinamentos numa


linguagem de fácil entendimento e por meio de uma grande variedade
de meios: livros, sites, podcasts, vídeos, mídias sociais, etc
 Incentivar os outros a alcançar seus objetivos – indicar claramente como
estudar e internalizar o material passo a passo, e como aplicar os
ensinamentos à vida diária

 Ser consistente com esses objetivos – exemplificar os princípios budistas


na forma que você leva sua vida e, no caso de uma organização do
Dharma, na maneira como a organização é administrada.

Esses quatro passos, apoiados em uma motivação sincera e altruísta, se


não em pleno objetivo bodhichitta para alcançar a iluminação, são as
melhores maneiras de tornar os outros receptivos à nossa influência
positiva.
Concentração
Com a concentração, a nossa mente fica concentrada em estados construtivos,
tais como abertura, amor e compreensão. Por exemplo, ao ouvir alguém e
tentar ajudar esta pessoa. Manter a concentração requer acalmar nossas mente
no que diz respeito a divagações mentais e apatia. Fazer isto requer atenção
plena, vigilância e auto-disciplina. Com atenção plena, podemos manter o
estado que geramos sem perder o acesso mental a ele. A vigilância detecta
quando perdemos as rédeas da mente e, com a auto-disciplina, nós voltamos
a nossa atenção e foco a seus estados anteriores. Com cuidado sincero em
relação ao nosso estado mental e seu efeito sobre nós mesmos e sobre os
outros, nós nos treinamos para desenvolver essas habilidades através da
prática repetida da meditação.
Acalmar os Pensamentos
Dr. Alexander Berzin

No dia-a-dia, o pensamento conceitual é indispensável. Sem ele não


conseguiríamos reconhecer certos objetos como sendo maçãs e não pêras. Ele
é a base para a linguagem, como em “Dois ingressos para o show, por favor”.
Às vezes, porém, o pensamento conceitual pode ser um obstáculo. Para
conseguirmos nos concentrar na meditação, por exemplo, precisamos acalmar
o falatório mental e a preocupação a respeito das experiências que podemos
ter.

Aquietando a Mente

Precisamos acalmar a mente para deixá-la em um estado mais natural e, assim,


conseguirmos aprimorar a concentração, conforme descrito em algumas
instruções de meditação. É preciso que fique claro que não estamos tentando
deixar a mente vazia, como a de um zumbi, como um rádio desligado. Se este fosse
o caso, era mais fácil simplesmente dormir! O objetivo é aquietar todos os estados
mentais perturbadores. Algumas emoções podem ser bem perturbadoras, como o
nervosismo, a preocupação e o medo; nosso objetivo é acalmá-las.

Quando acalmamos a mente, atingimos um estado mental claro e alerta, em que


conseguimos gerar amor e compreensão, e expressar o calor humano natural que
todos nós temos. Isso requer um relaxamento profundo, não apenas dos músculos
no corpo, mas também da tensão e rigidez mental e emocional que nos impede de
sentir a amorosidade e a clareza natural da mente, ou mesmo qualquer outra coisa.

Algumas pessoas acham que meditar é parar de pensar. Ao invés de parar todos os
pensamentos, a meditação deve parar os pensamentos irrelevantes e
desnecessários, tais como como conjecturas envolvendo o futuro (O que será que
eu vou comer no jantar?), e pensamentos negativos ou inúteis (Você foi ruim
comigo ontem. Você é uma pessoa horrível.). Tudo isso pertence à categoria de
distrações mentais e pensamentos perturbadores.

Entretanto, ter uma mente quieta é apenas uma ferramenta; não é o objetivo final.
Quando temos uma mente mais quieta, clara e aberta podemos usá-la de forma
construtiva, tanto no nosso dia-a-dia quanto durante a meditação, e buscar uma
compreensão melhor de nossas vidas. Com uma mente livre de emoções
perturbadoras e pensamentos irrelevantes podemos pensar com muito mais
clareza sobre temas importantes como: O que tenho feito com minha vida? O que
está acontecendo com esse relacionamento importante? É saudável ou não?
Podemos ser analíticos — isso se chama introspeção. Para compreendermos essas
questões e sermos introspectivos de forma produtiva, precisamos de clareza.
Precisamos de uma mente calma e quieta, e a meditação é uma ferramenta que
pode nos proporcionar isso.

Estados Mentais Conceituais e Não Conceituais

Muitos textos de meditação dizem que precisamos nos livrar de pensamentos


conceituais e ficar em um estado não conceitual. Bom, pra começar, essa instrução
não se aplica a todas as meditações. Ela refere-se especificamente a uma meditação
avançada usada para focarmos na realidade. Todavia, há um tipo de
conceitualização da qual precisamos nos livrar em qualquer meditação, mas
primeiro temos que entender o significado da palavra “conceitualizar” dentro do
contexto budista, a fim de compreendermos as diferentes formas de
conceitualização discutidas nos textos de meditação.

O Pensamento Conceitual Não é Simplesmente a Voz na Nossa


Cabeça

Algumas pessoas acreditam que “conceituar” refere-se aos pensamentos normais,


os pensamentos verbais que passam por nossa mente todos os dias – a assim
chamada “voz na cabeça”- e que um estado não conceitual significa simplesmente
aquietar essa voz. Mas, calar a voz na cabeça é apenas o começo — um começo
muito importante — mas é apenas o primeiro passo, parte do processo de aquietar
pensamentos estranhos e perturbadores para ter uma mente mais clara e calma.
Existem também os que acham que para realmente entendermos algo, temos que
compreender de forma não conceitual, e que o pensamento conceitual e o
entendimento correto são mutuamente excludentes. Esse também não é o caso.

Para desvendar as complexidades relativas à conceitualização, temos que primeiro


estabelecer a diferença entre verbalizar mentalmente e entender. Podemos
verbalizar alguma coisa em nossa mente mesmo quando não entendemos o que
significa. Por exemplo, podemos recitar uma oração mentalmente em língua
estrangeira entendendo ou não o que significa. Da mesma forma, podemos
entender algo e não sermos capazes de colocar mentalmente em palavras, como,
por exemplo, a sensação de estar apaixonado.

Portanto, a questão dos estados de cognição conceitual e não conceitual na


meditação não tem a ver com entendermos ou não entendermos algo. Tanto na
meditação como no cotidiano, temos sempre que manter um entendimento, seja
ele conceitual ou não, e quer o verbalizemos mentalmente ou não. Às vezes a
verbalização é uma ajuda; às vezes não tem nenhuma utilidade e nem mesmo é
necessária. Por exemplo, amarrar os sapatos: nós entendemos como amarrar
nossos sapatos. Será que você precisa verbalizar o que faz com os cadarços quando
os amarra? Não precisa. Na verdade, acho que a maioria de nós teria uma grande
dificuldade para descrever em palavras como amarramos os nossos sapatos.
Todavia, temos o entendimento. Sem entendimento não conseguimos fazer nada
na vida, não é mesmo? Não conseguimos nem mesmo abrir uma porta.
Sob muitas perspectivas diferentes, a verbalização de fato é útil; precisamos dela
para nos comunicar com os outros. No entanto, a verbalização no pensamento não
é necessária, a verbalização em si é neutra, o que significa que pode ser usada de
forma construtiva ou destrutiva. Temos algumas meditações úteis que envolvem
verbalização. Por exemplo, repetir mentalmente mantras é uma forma de
verbalização que gera e mantém um certo ritmo ou vibração na mente. O ritmo
regular do mantra é muito útil, nos ajuda a permanecer focados em um
determinado estado mental. Por exemplo, quando estivermos gerando compaixão
e amor, se recitarmos um mantra como OM MANI PADME HUNG, será um pouco
mais fácil permanecermos focados no estado amoroso, embora seja claro que é
possível focar em um estado amoroso sem dizer nada mentalmente. Portanto, a
verbalização em si não é o problema. Por outro lado, é claro que precisamos
aquietar nossa mente quando ela está apenas tagarelando inutilmente.

O Pensamento Conceitual Significa Categorizar as Coisas em


Caixas Mentais

Se a questão da conceitualização não é a verbalização ou o entendimento, então


qual é? O que é a mente conceitual e o que significa a instrução que diz que
precisamos nos livrar dela na meditação? Será que essa instrução se refere a todos
os estágios e níveis de meditação e também ao cotidiano? É importante
esclarecermos esses pontos.

Mente conceitual significa pensar em termos de categorias, colocando as coisas em


“caixinhas”, como “bom” ou “ruim”, “preto” ou “branco”, “cachorro” ou “gato”.

Agora, quando vamos fazer compras é claro que precisamos ser capaz de distinguir
entre uma maçã e uma laranja, ou entre uma fruta verde e uma madura. Nesses
casos do cotidiano, pensar em categorias não é um problema. Mas existem tipos de
categorias que são um problema. Um deles é aquilo que chamamos de
“preconceito”.

Um exemplo de preconceito é: “Eu sei que você sempre será ruim comigo. Você é
uma pessoa terrível porque no passado fez isso e aquilo. E agora eu predigo que,
não importa o que acontecer, você continuará a ser uma pessoa terrível.” Nós pré-
julgamos, estabelecendo que aquela pessoa é horrível e continuará a ser horrível
conosco – isso é um preconceito. Em nossos pensamentos, colocamos a pessoa na
categoria ou na caixinha chamada “pessoa horrível”. E é claro que, se pensarmos
desta forma e projetarmos em alguém o pensamento “Ele é mau; ele sempre é
terrível comigo.”, haverá um bloqueio entre nós e a pessoa. Nosso preconceito
afeta como nos relacionamos com ela. Ou seja, o preconceito é um estado mental
no qual categorizamos; colocamos as coisas em caixinhas mentais.

Sendo Não Conceitual

Existem muitos níveis de não conceitualidade, um deles é simplesmente estar


aberto a uma situação quando ela surge. Mas isso não quer dizer que temos que
nos livrar de todo entendimento conceitual. Por exemplo, se há um cachorro que
mordeu muitas pessoas, o colocamos na categoria “um cachorro que morde” e isso
nos faz ser cuidadosos perto dele. Ficamos razoavelmente preocupados quando
estamos perto deste animal, mas não temos o preconceito: “Este cachorro com
certeza vai me morder, então não tentarei nem mesmo chegar perto dele.” Há um
gentil equilíbrio entre aceitar a situação que está surgindo e, ao mesmo tempo, não
ter preconceitos que nos impeçam de vivenciar a situação plenamente.

O nível de não conceitualidade necessário em todas as meditações é uma mente livre de


preconceitos.

Uma das instruções mais comuns é meditar sem expectativas e sem qualquer
preocupação. Preconceitos relativos a uma sessão de meditação poderiam ser a
expectativa de que a sessão será maravilhosa, ou a preocupação de que nossas
pernas doerão, ou o pensamento: “eu não serei bem-sucedido”. Esses pensamentos
de expectativa e preocupação são preconceitos, não importa se os verbalizamos ou
não. Tais pensamentos colocam a meditação que está por vir dentro da caixinha
mental, ou da categoria, de “uma experiência fantástica” ou “uma experiência
dolorosa”. Uma abordagem não conceitual seria simplesmente aceitar o que quer
que aconteça e lidar com isso de acordo com as instruções da meditação, sem
julgar a situação.

Conclusão

Se não compreendermos os diferentes tipos de pensamentos conceituais, podemos


nos enganar imaginando que todos prejudicam a meditação e até mesmo nossa
vida do dia-a-dia. Na maior parte das meditações, precisamos acalmar a voz em
nossa cabeça e nos livrar dos conceitos preestabelecidos. Mas, com excessão dos
praticantes mais avançados, para entendermos alguma coisa, tanto durante quanto
depois da meditação, precisamos colocá-la em categorias mentais, usando ou não
palavras.
Shamatha e Vipashyana:
Apresentação Geral
Dr. Alexander Berzin

A prática budista é muita rica em métodos para alcançarmos concentração


perfeita. Mas os textos tradicionais apresentam diversos níveis e tipos de
concentração. Quando aprendemos e entendemos a diferença entre eles,
obtemos um mapa claro do desenvolvimento mental para nos guiar no
caminho espiritual.

Para conseguirmos qualquer realização espiritual, quer seja o


desenvolvimento de amor e compaixão ou a consciência discriminativa da
natureza da realidade, precisamos de uma excelente concentração. Sem
ela, não conseguimos nem desenvolver as boas qualidades, quanto mais
mantê-las em mente. Mas é um tópico complexo, muitos tipos e estados
diferentes de concentração aparecem em contextos distintos nos
ensinamentos budistas. Portanto, para identificarmos do que cada texto
está tratando e o que devemos desenvolver em cada estágio do caminho,
precisamos compreender e diferenciar corretamente esses estados de
concentração.

Estados Diferentes de Concentração

Estabilidade mental é uma das seis atitudes de longo alcance ou seis


perfeições. Com ela, nossa mente não é mais jogada de um lado para
outro pelo turbilhão mental e emocional. Para obtermos estabilidade
mental, precisamos melhorar nossa concentração. Concentração é a
permanência da atenção em um objeto ou estado mental, tal como o amor
ou a raiva.

De acordo com o Tesouro do Abhidharma (sânscr. Abhidharmakosha) do


mestre indiano Vasubandhu, algum nível de concentração sempre
acompanha os momento de nossa experiência. Portanto, a concentração é
uma variável no espectro que vai de concentração total até nenhuma
concentração. Quanto a concentração é perfeita, nossa atenção
permanece focada em seu objeto sem se mover, e é completamente clara
e alerta. Ou seja, é totalmente livre de agitação e torpor mental, e nada
consegue distraí-la. Esse nível de concentração é chamado concentração
absorvida. Quando a concentração absorvida foca nas quatro nobres
verdades ou, mais especificamente, na ausência de uma “alma” impossível
(ausência de um eu) em uma pessoa ou fenômeno — conceitualmente ou
não conceitualmente — ela é chamada absorção total (equilíbrio
meditativo)

Durante uma sessão de meditação, imediatamente após um período de


absorção total na ausência de uma “alma” impossível, quando a
concentração absorvida foca em pessoas ou fenômenos como ilusões,
chamamos isso de realização subsequente ou atingimento
subsequente (pós-meditação).

A realização cognitiva subsequente de que tudo é como uma ilusão pode


continuar enquanto meditamos em outros tópicos e até mesmo entre
sessões, mas precisa sempre ser induzida primeiro pela absorção total na
ausência de uma “alma” impossível, ou vacuidade.

Os Cinco Obstáculos à Concentração

A fim de melhorarmos nossa concentração, precisamos trabalhar para


eliminar os cinco obstáculos à concentração:

1. Agitação mental e arrependimento


2. Animosidade
3. Sono e torpor
4. Intenção de experimentar objetos do desejo (a mente vai para essa
direção)
5. Dúvida.

Esses cinco podem ser resumidos em agitação mental (uma subdivisão da


distração e da divagação) e torpor mental.

 Agitação mental — Ocorre quando a cola da atenção perde sua


aderência ao objeto focado, por causa da distração causada por algum
pensamento ou objeto desejável ou por pensamentos de
arrependimento. Podemos perder completamente a aderência mental,
apenas relaxar a aderência, de forma a conseguir segurar o objeto
enquanto existe uma corrente subjacente de pensamentos, ou
podemos experimentar uma espécie de “coceira mental” para largar o
objeto.
 Torpor mental — Acontece quando a atenção perde sua aderência ao
objeto, devido a um relaxamento por conta de um estado mental
nebuloso, sonolento ou indeciso. Podemos perder totalmente a
aderência ao objeto, apenas experimentar nossa mente perdendo o
foco, ou simplesmente não ter frescor e clareza mental momentânea.
Shamatha: Um Estado Mental Quieto e Assentado

Shamatha, um estado mental quieto e assentado (permanência calma),


só pode ser atingido através da consciência mental, e não da consciência
sensorial. Não é simplesmente um estado mental livre dos obstáculos à
concentração e totalmente assentado em um objeto ou em um estado
particular. Portanto, é mais do que simplesmente concentração
absorvida. Ele possui um fator mental adicional que o acompanha: uma
sensação de aptidão física e mental (flexibilidade, maleabilidade).

Uma sensação de aptidão física e mental é o fator mental de sentir-se


totalmente apto a fazer algo — nesse caso, permanecer totalmente
concentrado em alguma coisa. É um estado de entusiasmo e êxtase
simultâneos, mas de uma forma que não é perturbadora. Dentre os dois
tipos de meditação, a de discernimento (analítica) e a estabilizadora,
shamatha é um exemplo da estabilizadora. Como tal, ela contém o fator
da detecção grosseira. Tendo previamente investigado um objeto, esse
fator mental adiciona a detecção das principais qualidades características
do objeto ao modo de cognição de shamatha. Em outras palavras,
shamatha foca um objeto, tal como a respiração, com concentração
absorvida e detecta de forma grosseira sua principal qualidade
característica, no caso, a impermanência.

Os mestres indianos Asanga e Kamalashila forneceram um longa lista de


objetos que podemos usar para desenvolver shamatha, e especificaram as
qualidades características de cada um, nas quais a detecção grosseira
deve focar. Esses objetos incluem não apenas a respiração ou a imagem
do Buda, mas também objetos que nos ajudam a melhorar
comportamentos ou atitudes problemáticas. Por exemplo, podemos
desenvolver shamatha focada em nosso corpo com a detecção grosseira
de sua impureza, para superarmos o apego ao corpo.

Como subproduto, shamatha desenvolve a percepção


extrassensorial (consciência avançada), como, por exemplo, a habilidade
de ver e ouvir coisas a grande distância e estar ciente dos pensamentos
alheios. Em seu livro Luz para o Caminho da
Iluminação (sânscr. Bodhipathapradipa), o mestre indiano Atisha enfatiza
a importância de obtermos essas habilidades para conseguirmos ajudar
melhor os outros.

Vipashyana: Um Estado Mental Excepcionalmente Perceptivo

Uma vez que tenhamos atingido shamatha e consigamos detectar de


forma grosseira a principal qualidade característica do nosso objeto focal,
o próximo passo é vipashyana (Pali: vipassana). Mantendo o mesmo
nível de concentração de shamatha, vipashyana (um estado mental
excepcionalmente perceptivos, insight especial) adiciona o fator mental
do discernimento sutil (escrutínio).

Discernimento sutil é uma compreensão ativa dos detalhes mais sutis


da natureza do objeto focado, depois de o termos examinado
minuciosamente. Não envolve pensamento verbal, apesar de poder ser
induzido por pensamento verbal. Portanto, dentre os dois tipos principais
de meditação, discernidora e estabilizadora, vipashyana enfatiza o
discernimento.

E mais, além da sensação de aptidão física e mental de shamatha para


mantermos a concentração absorvida em um objeto pelo tempo que
desejarmos, em vipashyana existe uma segunda sensação de aptidão
física e mental. A sensação adicional é a sensação de sentir-se totalmente
apto a discernir e entender completamente os detalhes sutis de qualquer
coisa. Vipashyana não foca necessariamente na vacuidade (vazio) ou nas
quatro nobres verdades, apesar desse ser o caso no sutra. Vipashyana
pode focar em qualquer dos objetos que tenhamos usado para atingir
shamatha.

Portanto, se o estado mental for vipashyana, fica subentendido que é um


estado duplo de shamatha e vipashyana. Nessa dupla, um dos itens —
nesse caso, shamatha — é atingido primeiro, e depois o segundo item —
nesse caso, vipashyana — é adicionado. Portanto, apesar de podermos
trabalhar em vipashyana antes de atingirmos shamatha, não podemos
realmente atingir vipashyana sem que tenhamos primeiro atingido
shamatha.

Conclusão

Estabilidade mental, concentração, concentração absorvida, absorção


total, realização subsequente, shamatha e vipashyana são, cada um, um
tipo diferente de concentração mental. Quando compreendemos suas
diferenças, conseguiremos atingir cada um deles na prática de meditação,
sem misturarmos tudo por ignorância e confusão.
Vazio (Vacuidade)
Por causa da confusão em relação à realidade, projetamos maneiras
impossíveis de existir em nós mesmos e em tudo e todos que encontramos.
Por exemplo, fantasiamos que nossos problemas ocorrem independentemente
de nossas atitudes e comportamentos. Quando compreendemos o vazio
(vacuidade), ou seja, a ausência total de qualquer coisa real que corresponda
às nossas projeções fantasiosas e percebemos que nossos problemas surgem
a partir de uma interação de várias causas e são, portanto, sujeitos a
mudanças, podemos desenvolver estratégias significativas para nos libertar
deles.
O Que É o Vazio?
Dr. Alexander Berzin

O vazio (a vacuidade) não é um “nada”. Não significa que nada existe e,


portanto, podemos esquecer todos os nossos problemas, pois eles não
existem. Vacuidade quer dizer uma total ausência de maneiras impossíveis de
existir. Nossas fantasias projetadas sobre como tudo existe não correspondem
à realidade. Coisa alguma, incluindo nossos problemas, tem um poder próprio
de se transformar em problema. Convencionalmente, pode haver um problema
que precise de atenção, mas podemos apenas chamá-lo de “problema” em
termos de como o conceito e a palavra “problema” foram definidos pelas
convenções.

Vacuidade (sânscrito shunyata), mais comumente conhecida como “vazio” em


inglês, é um dos principais insights do Buda. O Buda realizou que a fonte mais
profunda dos problemas de todo mundo é a confusão em relação a como eles, os
outros, e tudo existem. As mentes projetam maneiras impossíveis de existir em
tudo. Sem a consciência de que aquilo que elas projetam não corresponde à
realidade, as pessoas criam problemas e sofrimentos para elas com base na
ignorância. Por exemplo, se projetamos que somos perdedores e que, não importa
o que fizermos, nunca teremos sucesso na vida, então não somente ficaremos
deprimidos e com baixa autoestima, como também nos faltará autoconfiança e
talvez até desistamos de tentar melhorar a nossa situação. Nós nos resignaremos a
uma posição inferior na vida.

A vacuidade significa uma total ausência de uma forma real de existência que
corresponda a algo que instintivamente projetamos. Projetamos compulsivamente
por causa de nosso hábito arraigado de acreditar que as fantasias de nossa
imaginação são realidade. “Perdedor”, por exemplo, é apenas uma palavra e um
conceito. Quando nós nos rotulamos com o conceito de “perdedor” e nos
designamos com a palavra “perdedor”, temos que entender que se trata apenas de
convenções. Pode ser verdade que tenhamos falhado muitas vezes em nossas
vidas, ou talvez não tenhamos de fato falhado, mas o nosso perfeccionismo faz com
que que nos sintamos fracassados, pois não somos suficientemente bons. Em todos
os casos, muito mais ocorreu em nossas vidas além de nossos sucessos e fracassos.
No entanto, ao nos rotularmos como perdedores, mentalmente nos colocamos na
caixinha chamada “perdedor” e acreditamos que realmente existimos como uma
pessoa dentro desta caixinha. Na verdade, imaginamos que há algo de
inerentemente errado ou ruim conosco que estabelece definitivamente o fato de
estarmos na tal caixinha. Estabelece que estamos na caixinha, pois ela tem poder
sobre nós, independentemente de qualquer coisa que tenhamos feito em nossas
vidas ou do que qualquer pessoa pense.
Esta forma de existência, de alguém que está preso na caixinha de perdedores e
merece estar ali, é uma total fantasia. Não corresponde a nada real. Ninguém existe
preso em uma caixinha. A nossa existência como perdedor surgiu meramente
como um conceito que aplicamos a nós mesmos. O conceito “perdedor” e a palavra
“ perdedor” são meras convenções. Pode ser que eles se apliquem de forma
adequada a alguém, por exemplo, quando a pessoa perde em um jogo de cartas.
Nesta situação, convencionalmente, a pessoa é uma perdedora. No entanto,
ninguém existe inerentemente como perdedor, para quem é impossível ganhar
porque trata-se de um verdadeiro perdedor.

Quando realizarmos a vacuidade de realmente existirmos como perdedores,


entenderemos que não há esta forma de existência. Ela não corresponde à
realidade. A nossa sensação de sermos realmente perdedores apenas pode ser
explicada pelo conceito e pela palavra “perdedor” que aplicamos a nós mesmos,
pois talvez às vezes tenhamos falhado em alguma coisa. No entanto, não há nada de
inerentemente errado conosco que, por seu próprio poder, nos torna
permanentemente perdedores e nada mais. A vacuidade, então, é a total ausência
desta maneira impossível de existir. No passado, presente e futuro, não é possível
que ninguém exista desta forma. É preciso grande familiaridade com a vacuidade
antes de sermos capazes de desconstruir as nossas fantasias e pararmos de
acreditar nelas. No entanto, se perseverarmos com a meditação na vacuidade,
então, gradualmente, quando nos rotularmos como perdedores, perceberemos que
isso é um absurdo e dissiparemos a nossa fantasia. No final das contas, poderemos
até mesmo parar com este hábito e nunca mais pensar em nós mesmos como
perdedores.

Conclusão

Só porque nada existe de formas impossíveis isso não quer dizer que nada existe. A
vacuidade refuta meramente maneiras impossíveis de existir, tais como uma
existência inerente e autoestabelecida. Ela não refuta a existência de coisas como
“isso” ou “aquilo”, de acordo com as convenções das palavras e dos conceitos.
Aplicar o Vazio Quando Estiver
Preso no Tráfego
Dr. Alexander Berzin

Vacuidade significa uma ausência total de formas impossíveis de existência. É


impossível alguma coisa surgir do nada, através de seu próprio poder, sem
amparar-se em nada mais. Isso é impossível. Quando, através de nossa
compreensão da vacuidade, desconstruímos a aparência ilusória da existência
de uma pessoa inerentemente idiota, por exemplo, percebemos que a
existência de um idiota é algo absolutamente dependente do rótulo mental e
do conceito “idiota”. Essa compreensão nos ajuda a não ficar com raiva quando
alguém fica buzinando loucamente ao tentar nos ultrapassar na rua.

Falta de Consciência

O Buda ensinou em termos de quatro nobres verdades, que são quatro


fatos vistos como verdadeiros por qualquer ser altamente realizado,
ou arya. Basicamente, são eles:

1. Todos enfrentamos problemas na vida.


2. Esses problemas surgem de causas.
3. É possível que os problemas cessem completamente, de modo que eles
nunca mais retornem.
4. Tal cessar vem de uma compreensão que elimina a causa dos
problemas.

Quando falamos sobre as causas mais profundas dos nossos problemas,


estamos a falar do que é geralmente traduzido como "ignorância." Em
inglês, “unawareness”, e no português “falta de consciência”, é muito
melhor. Ignorância implica que você é um idiota, e por isso não é uma boa
palavra para ser usada aqui. Não significa que somos idiotas.

Há duas formas diferentes de falta de consciência. Em uma, não temos


consciência da causa e efeito em termos do nosso comportamento; (não
vemos) que se agirmos de uma forma destrutiva isso nos causará
problemas. A um nível mais profundo, estamos falando sobre falta de
consciência da realidade. O que acontece é que temos o hábito de tomar
cognitivamente as coisas como se elas existissem de forma inerente, o
que também podemos traduzir como uma "existência autoestabelecida”.
Em outras palavras, é o habito que temos de nos fixar a uma existência
inerente. Devido a esse hábito, nossa mente faz com que,
automaticamente, a cada momento, as coisas pareçam existir de forma
inerente. O que isso significa é que parece que existe algo dentro das
coisas que, por si só, as designa como sendo aquilo que parecem ser para
nós, independente de qualquer outra coisa. Sem consciência de que essa
forma de existência não corresponde à realidade, tomamos as coisas
como se elas existissem dessa maneira.

Não é fácil compreendermos isso. Podemos usar o seguinte exemplo para


ilustrar: estamos dirigindo o nosso carro e há alguém na outra pista
buzinando e tentando nos ultrapassar. Para nós, o que essa pessoa
parece? Essa pessoa parece um idiota que está tentando nos ultrapassar.
Essa pessoa parece existir intrinsecamente como um idiota; ela parece ser
um idiota independentemente da circunstância. Há, obviamente, algo de
errado com essa pessoa, que faz dela um verdadeiro idiota, que está
buzinando e tentando nos ultrapassar. Ouvimos a buzina, vemos a pessoa
e automaticamente pensamos, "Seu idiota!" A pessoa aparece-nos desse
modo e pensamos que esse parecer corresponde à realidade: realmente é
um idiota.

O Que a Vacuidade (Vazio) está Invalidando

Qual é o objeto conceitualizado (Tib. zhen-yul, objeto implicado) nessa


cognição conceitual da existência dessa pessoa como um idiota? O objeto
conceitualizado na cognição é uma pessoa existindo realmente como um
idiota; há realmente um idiota intrínseco no carro. É nisso que implica
essa aparência e o fato de a tomarmos cognitivamente desta maneira. Por
exemplo, se eu pensar que há alguém na outra sala, o objeto
conceitualizado seria alguém na outra sala; seria aquilo a que o
pensamento corresponde. “Objeto conceitualizado” é um termo técnico
muito importante nos estudos de Madhyamaka (Caminho do Meio).

Em qualquer cognição, muitos objetos estão envolvidos. A


palavra zhen em “zhen-yul”, termo tibetano para objeto conceitualizado,
pode ser usada como um verbo, “fixar” (ing. to cling), e como
substantivo, zhen-pa, significando “fixação”, como no ensinamento
Sakya Livrando-nos das Quatro Fixações. Figurativamente, portanto, o
objeto conceitualizado é o objeto que a cognição conceitual “fixa”. Fixa no
sentido de se aferrar a alguma coisa na realidade (no mundo) como
correspondendo àquilo que aparece na cognição conceitual. Quando nos
fixamos na existência autoestabelecida, inerente, inferimos que a maneira
como algo aparece para nós corresponde ao que ela realmente é. Em
nosso exemplo, conceitualizamos que a pessoa buzinando no outro carro
é inerentemente um idiota. Devido a essa conceitualização, parece que
existe um idiota ali, e, portanto, assumimos que realmente existe um
idiota ali; acreditamos em nossa projeção. O objeto conceitualizado nessa
cognição é um verdadeiro idiota no carro ao lado.

Vacuidade (vazio) é uma ausência; alguma coisa está ausente. O que está
totalmente ausente nesse caso é o objeto conceitualizado. O surgimento
de um idiota inerentemente existente não corresponde à realidade.
Apesar de existir uma pessoa dirigindo um carro, ela não existe
inerentemente como um idiota. Ninguém pode existir inerentemente
como um idiota, porque não existe tal coisa, não existem idiotas
inerentemente existentes. Portanto não existe um idiota inerentemente
existente no carro. Essa é a idéia geral. Entretanto, temos que refiná-la,
porque ainda não está muito precisa.

Usemos um exemplo mais simples, apesar de menos preciso.


Suponhamos que uma criança pense que existe um monstro debaixo da
cama. O objeto conceitualizado seria um monstro de verdade, debaixo da
cama. O medo que essa criança tem não se refere a algo real. Quando
falamos de vacuidade, estamos falando da total ausência de algo muito
específico. É a ausência de algo que não existe. É totalmente impossível.

Mas não estamos falando da ausência de um objeto impossível, como um


monstro. Estamos falando de uma forma impossível de existência. Por
exemplo, pode ser que haja um gato embaixo da cama e a criança ache
que é um monstro, mas o gato não existe como um monstro, porque não
há algo que seja “existir como um monstro”. A vacuidade, aqui, não refuta
a existência de um gato, ela refuta a existência de um gato que existe
como sendo um monstro.

Estabelecendo um Rótulo como Válido

Examinemos novamente o exemplo do idiota. Convencionalmente, essa


pessoa pode de fato dirigir como um idiota, mas como podemos rotulá-la
com nosso conceito de “idiota” e chamá-la assim? O mestre indiano
Chandrakirti deu três critérios para um rótulo ter validade.

Primeiro, é necessário que exista uma convenção estabelecida e aceita


que concorda com o rótulo. Na Alemanha, há certas regras de etiqueta
para dirigirmos, e não é considerado correto dirigir com a mão na buzina
à medida que se tenta constantemente ultrapassar toda a gente. Alguém
que faz isso pode ser considerado um idiota. Mas isso é relativo. Na Índia,
isso seria dirigir normalmente. Uma vez vim à Europa com um amigo
indiano na primeira viagem que ele fez ao ocidente e o que mais lhe
chocou foi que as pessoas dirigiam sem buzinar! Como no ocidente temos
a convenção que uma pessoa que dirige desse modo é um idiota, está
correto chamar essa pessoa um idiota, a partir desse ponto de vista.

O segundo critério é que isso não seja contraditório ao que vê outra


mente que conhece de forma válida a verdade convencional ou
superficial. Falando objetivamente, a pessoa está dirigindo como um
idiota ou não? Estou com os meus óculos postos corretamente? O meu
aparelho auditivo está colocado corretamente? Estou mesmo a ver e a
ouvir corretamente? Todas pessoas aqui também vêm que esse indivíduo
está buzinando e tentando ultrapassar a todos, portanto esse aspecto
convencional não é contraditório à visão válida dessas pessoas.

O terceiro critério é que esse rótulo não seja contraditório ao que percebe
uma mente que vê de forma válida a verdade mais profunda. Isso está se
referindo a uma mente que vê de forma válida como é que essa pessoa
existe como um idiota. Como é que ele é um idiota? Ele é um idiota apenas
convencionalmente, dependendo de onde e como dirige, ou será que nós
estamos simplesmente projetando que essa pessoa existe
intrinsecamente como um idiota? Se pensarmos que esta pessoa é
mesmo, intrinsecamente, um idiota, isso seria contraditório à percepção
de uma mente que vê como é que as coisas realmente existem.
Convencionalmente, essa pessoa está conduzindo como um idiota. Isso é
correto, isso é uma convenção válida, um rótulo válido, e uma verdade
superficial válida. O que acontece é que nós exageramos a forma como ele
existe como um idiota. Ele existe como um idiota apenas na dependência
de muitas coisas – especificamente de rótulos mentais, que iremos
discutir abaixo.

Exageramos a aparência superficial e projetamos sobre ela algo que não


está lá: uma maneira de existir que não está lá. Não o fazemos
conscientemente, é um processo inconsciente. Acontece automaticamente
devido ao nosso hábito de ver as coisas dessa maneira. O exagero é que
ele existe inerentemente como um idiota. Esse modo de existência como
um idiota inerente não se refere a qualquer coisa do mundo real. Mais
uma vez, estamos a falar sobre a ausência de uma maneira impossível de
existir, e não da ausência de um objeto impossível.

A Diferença entre Inato e Inerente

Vamos examinar um pouco mais profundamente o que queremos dizer


com existência inerente e rotulamento mental. Precisamos compreender
a diferença entre inato e inerente.
Temos muitas qualidades inatas. Por exemplo, os
nossos continuums mentais têm corpo, fala e mente, compreensão,
emoções, e assim por diante, de forma inata, como parte do pacote de
sermos seres sencientes. Temos natureza búdica e todos os aspectos da
natureza búdica. O termo técnico lhan-skyes (Sânsc. sahaja) é por vezes
traduzido como "surgindo simultaneamente". Significa que essas coisas
fazem parte do pacote e que surgem simultaneamente com cada
momento da mente. A cada momento da experiência, temos corpo, fala e
mente – quer estejamos acordados ou a dormir. Podemos não estar a falar
quando estamos dormindo, mas a capacidade de comunicar existe. Por
exemplo, outras pessoas podem olhar para nós e ver que estamos
dormindo. Mesmo se não estivermos roncando enquanto dormimos, a
respiração tem uma certa regularidade e lentidão que comunica que
estamos adormecidos. Esse é um exemplo de como nos comunicamos o
tempo todo. Embora essa qualidade seja frequentemente traduzida como
"fala", não deve estar limitada apenas à comunicação verbal. Esses são
fatores inatos.

Inerente (rang-bzhin) é algo muito diferente. Algo inerente, se existisse,


seria, em um certo sentido, inato mas também, por si só, faria algo existir
e o faria existir como aquilo que parece ser. Por vezes se fala disso como
sendo um aspecto característico ou definidor dentro do objeto e que o faz
aquilo que é. No caso do idiota, seria algo realmente errado com ele, que é
encontrável dentro dele, permanentemente ali, e que, pelo seu próprio
poder, faz dele um idiota. Muitas vezes pensamos deste modo: "Esse meu
vizinho horrível que ouve música o tempo todo ..." ou "Essa pessoa
maravilhosa que acabei de ver ..." como se houvesse algo inerentemente /
intrinsecamente dentro da pessoa o tempo todo, que faz com que ele ou
ela existam dessa maneira. Estou usando exemplos que são
emocionalmente carregados, mas esse é o caso com tudo. Parece haver
alguma coisa inerente em você que o torna inerentemente humano.

Essa coisa dentro do motorista, fazendo com que ele exista inerentemente
como um idiota faz-lhe existir dessa maneira independentemente de
qualquer outra coisa, apenas pelo seu próprio poder. Parece que se
examinássemos, seriamos capazes de encontrá-la e apontar para ela.
Porém, quando examinamos cuidadosamente, não conseguimos
encontrar nada no objecto que esteja fazendo dele aquilo que ele é. Se
começar a analisar esta pessoa que está no carro, você verá uma série de
átomos e campos energéticos e não vai encontrar nada sólido que possa
apontar como sendo aquilo que está fazendo dele um idiota. Se
analisarmos as ações dessa pessoa, em termos de microsegundos de
movimento, há o movimento de mover o dedo um milímetro nesta
direção e depois o próximo milímetro nesta direção e o próximo naquela
direção e, assim, o que está fazendo a pessoa ser um idiota? Você não
pode apontar para qualquer microsegundo de comportamento como
sendo aquele que está fazendo o idiota, pode? Dessa forma, você não
consegue encontrar nada no objeto que esteja ali por si só fazendo essa
pessoa existir como um idiota – embora ela esteja aparecendo como um
idiota.

Convencionalmente, ela está agindo como um idiota. Aqui, precisamos ter


cuidado para não negar a existência da aparência superficial e da forma
que ela está agindo convencionalmente. Ela está agindo como um idiota;
isso está correto. O problema é ela parecer existir como um idiota. Ela
está agindo como um idiota com base em outros fatores; porque depende
de depende de outras coisas além de si próprio. Não é que essa pessoa
esteja agindo como um idiota pelo poder de algo dentro dela. Essa pessoa
está agindo como um idiota com base em partes (sua mão se movendo de
certa maneira, e assim por diante) e dependentemente de causas (ela está
no tráfego e está com pressa). Se ela fosse intrinsecamente um idiota,
teria de ser idiota quando não estivesse dirigindo e até quando estivesse
dormindo. Ela está agindo como um idiota, na dependência das
circunstâncias nas quais se encontra. Também pode haver vários fatores
culturais, psicológicos e pessoais que a fazem dirigir como um idiota. É na
dependência de tudo isso que essa pessoa dirige como um idiota.

Rotulamento Mental

Além disso, de uma forma mais básica, podemos dizer que a cognição de
haver uma pessoa dirigindo como um idiota depende do conceito "idiota".
Se não houvesse tal conceito, não poderíamos dizer que essa pessoa está
dirigindo como um idiota, não é? Isto leva-nos para o reino
do rotulamento mental .

Rotulamento mental pode ser algo bastante confuso. Quando chamamos


essa pessoa de idiota, isso não faz dela um idiota, faz? Não estamos a falar
de crianças gritando uns aos outros, "Você é um idiota!" Rótulos e nomes
não têm o poder de transformar uma coisa naquilo que nós a chamamos.
Muitas pessoas pensam que rotulamento mental significa que nós
criamos coisas mediante palavras. Isso não é o que rotulamento mental
significa em budismo.

Quer rotulemos a pessoa idiota ou não, e quer pensemos "idiota" ou não,


e quer mais alguém esteja na estrada para ver esta pessoa dirigindo ou
não, ela ainda está dirigindo como um idiota?
Bom, podemos dizer que é diferente para um grupo de pessoas que têm o
conceito de idiota e outro grupo que não tem esse conceito.

Portanto, depende do grupo e do modelo conceitual subjacente. Tudo o


que poderíamos dizer é que a pessoa está dirigindo como um idiota de
acordo com uma certa convenção, mas ela não está absolutamente,
intrinsecamente, dirigindo como um idiota. Isso depende de leis e
costumes, independente de alguém a ver ou não. Se dissermos que é
absolutamente independente de qualquer outra coisa, e que vem apenas
de como a pessoa está dirigindo, isso é impossível. Em relação ao
rotulamento mental, estes são os detalhes que mais trazem confusão às
pessoas.

Você pode pensar, “Sera que é possível dizer, de maneira objetiva, como
essa pessoa está dirigindo?” Essa é uma pergunta perfeita para
analisarmos. Esse é o problema: a fixação ao que está realmente se
passando. Ele está realmente dirigindo como um idiota ou não? Quando
entramos no campo do que ele realmente é, estamos no reino da
existência inerente. A pessoa está dirigindo como um idiota na
dependência do conceito "idiota", costumes ocidentais, e assim por
diante. O exagero é que ele realmente é um idiota. Isso é existência
inerente; isso é o que é impossível.

Penso que isso começa a indicar quão profundamente enraizada essa


confusão está porque, na verdade, a maioria de nós quer saber como é
que as coisas realmente são, e achamos que há um modo em que
elas realmente existem, não é? Nós dizemos, "Esta é realmente uma casa
maravilhosa”, ou "Nós realmente divertimo-nos muito esta noite", como
se ali houvesse algo inerente e toda a gente devia ver da mesma forma.
Por estarmos tão acostumados a isso, tudo aparece automaticamente
dessa forma e pensamos dessa maneira. Isso se chama "criar aparências
enganosas", e às vezes também é chamado "aparências de dualidade".
Aqui "dualidade" significa que é discordante, diferente do que de fato é. A
maneira como algo aparece está fora de harmonia com a maneira como
na verdade existe. Este é o significado de aparências duplas no uso Gelug-
Prasangika do termo.

O fato é que a pessoa está dirigindo como um idiota. Convencionalmente,


isso está certo. É possível tanto ter uma opinião louca com a qual
ninguém vai concordar, como uma opinião com a qual as outras pessoas
irão concordar. Nesse caso, os outros concordariam que essa pessoa está
dirigindo como um idiota, mas isso não faz com que ela realmente seja um
idiota. Podemos ter a opinião que quem está dirigindo é um cão, mas
ninguém vai concordar. Há opiniões absurdas e há opiniões válidas.
A questão é que existem cognições válidas para saber o que as coisas são,
convencionalmente. Isso é muito importante. As várias escolas do
budismo tibetano têm as suas próprias explicações dessa diferença. O
sistema Gelug fala em termos de verdades superficiais precisas e
imprecisas. Uma verdade superficial imprecisa sobre algo não
corresponde àquilo que esse algo é convencionalmente. Há uma grande
diferença entre o quê algo convencionalmente é, e como algo existe como
aquilo que é.

Rotulamento Válido na Discussão Gelug sobre Svatantrika e


Prasangika

Como sabermos se uma opinião é válida? Usamos os três critérios de


Chandrakirti para o rotulamento válido. Aqui, a diferença está em como a
tradição Gelug explica a Svantantrika-Madhyamaka e a Prasangika-
Madhyamaka. A tradição Kagyu explica as duas escolas de maneira um
pouco diferente. O ponto principal da Madhyamaka é que tudo existe na
dependência de um rótulo mental. Isso não significa que o rotulamento
mental cria tudo o que existe. A apresentação Madhyamaka do
rotulamento mental é um refinamento do que as escolas filosóficas menos
sofisticadas do budismo indiano, como Chittamatra, explicam sobre a
relação entre a mente e os objetos. Um dos propósitos principais de
estudar as escolas filosóficas na ordem adequada é entender de forma
progressivamente mais sofisticada a relação entre a mente e os objetos.

O exemplo usado nos textos é o de rotular alguém como "rei". Alguém


existe como rei na dependência do rótulo e do conceito de "rei". Se não
existisse o costume social de ter reis, obviamente ninguém poderia ser
um rei. A questão é: o que torna um rótulo válido? A escola Svatantrika
diz que as coisas têm uma característica definidora encontrável e
inerente, que vem delas mesmas, e que nos permite rotular as coisas
corretamente como aquilo que elas são. Deve haver algo dentro do rei
fazendo-o real para que ele possa ser rotulado corretamente "rei." Se não
houvesse, poderíamos rotular um cão ou um varredor de rua "rei" e isso
faria deles reis. Podemos ver que há um pensamento político por detrás
disto. Na verdade, estou falando sério. Isso se desenvolveu na Índia, onde
pensar em termos de castas é muito importante; por isso deveria haver
algo inerente em alguém fazendo dele ou dela membro da casta real. Isso
é Svantantrika.

A Prasangika diz “não, não há nada encontrável na pessoa que faça dela
um rei”. É evidente que, convencionalmente, existem características
definidoras. Alguém que rege um país no sistema de monarquia é um rei.
Há uma característica definidora do que é um rei. Se nada tivesse uma
definição, seria impossível as coisas funcionarem – mas elas são apenas
convencionais. Não é que as características definidoras existam
realmente como algo encontrável dentro do objeto, pelo seu próprio
poder, fazendo com que uma pessoa seja uma nobre, por exemplo.

Como sabermos se o rótulo é válido? Voltamos aos três critérios de


Chandrakirti. Uma vez que são tão importantes, vamos ilustrá-los com um
outro exemplo. Primeiro, existe uma convenção estabelecida e acordada.
Chegamos em casa e olhamos para o nosso parceiro. Para facilitar a
discussão, digamos que o nosso parceiro é uma mulher. Ela tem certa
expressão no seu rosto: suas sobrancelhas estão franzidas, sua boca para
baixo, e parece-nos que ela está agitada e zangada. Tem de haver uma
convenção estabelecida. Esse é o primeiro critério. Há a convenção de que
os seres humanos, particularmente de culturas ocidentais, franzem as
sobrancelhas e viram os cantos da boca para baixo quando estão
perturbados. Os cães rosnam, mas os seres humanos expressam a sua
irritação desse modo. A nossa parceira está seguindo a convenção do que
os seres humanos fazem quando estão zangados. Essa é uma forma de
validar a aparência. Também podemos comparar com as ocasiões
anteriores em que ela estava irritada para verificar se a sua expressão
está de acordo com o padrão convencional dela.

O segundo critério é que o rótulo não seja contraditório ao que percebe


uma mente que vê as verdades superficiais de forma válida. Colocamos
nossos óculos, acendemos a luz e certificamo-nos que estamos vendo a
expressão corretamente. Não é que estivesse escuro, que não tenhamos
visto corretamente, ou que estivéssemos sem os nossos óculos. Esse
critério é muito prático e pragmático.

Embora não seja mencionado explicitamente nos textos, podemos


verificar outros critérios em relação a este segundo ponto, tal como a
capacidade de algo de produzir um efeito. Por exemplo, quando dissemos
"olá", ela não respondeu. Isto é mais uma evidência de que a aparência de
que ela está irritada é correta. O seu outro comportamento corroborou
que ela estava agitada, porque quando ela está agitada e irritada,
normalmente não diz olá. Ou seja, a raiva produziu o seu efeito usual.
Aqui também poderíamos perguntar-lhe se está irritada, se quisermos ter
certeza.

Se ficarmos por aqui e apenas dissermos "bem, ela está agitada e irritada
porque provavelmente algo desagradável aconteceu hoje, isso depende
de muitos fatores", então a nossa cognição é perfeitamente válida. Não
seria contraditória a uma mente que validamente vê o nível mais
profundo, como as coisas existem, como é que a nossa parceira existe ao
estar irritada.

Se nos parecer que nossa parceira não está irritada apenas por esta ou
aquela razão, e em vez disso pensamos, "Oh meu Deus, ela está irritada
outra vez. Ela é uma pessoa cheia de raiva, sempre irritada por isto ou
aquilo. Não aguento mais!" isso contradiz a percepção de uma mente que
validamente vê a verdade mais profunda. Ninguém existe
intrinsecamente desse modo.

É por esse meio que validamos o rotulamento da pessoa como agitada e


irritada sem que necessariamente haja algo intrínseco na pessoa que a
faça existir como “irritada”. Quando falamos sobre a vacuidade, estamos
falando de quando pensamos que ela é uma pessoa horrível. A vacuidade
é uma ausência absoluta desse modo de existência: uma ausência
absoluta de haver algo realmente errado com essa pessoa, que faz com
que seja muito difícil conviver com ela. Quando acreditamos que ela
existe realmente dessa maneira, reagimos de forma perturbada. Ficamos
irritados com ela e impacientes.

Você pode perguntar “Para conseguirmos lidarmos com a situação com


calma e sabedoria, também dependemos de saber o por que da irritação
de nossa parceira? Bom, mesmo se não compreendermos por que ela está
irritada, tentamos compreender que deve depender de razões e de
causas; não é que ela sempre esteja inerentemente irritada. Isto permite-
nos ver que talvez, de algum modo, a situação pode ser mudada.
Entretanto, é correto dizer, "a minha parceira está agitada e irritada". Isto
é muito importante. Se nós não reconhecermos que convencionalmente a
nossa parceira está agitada, que base teremos para sentir compaixão e
ajudá-la? O nosso relacionamento benéfico com ela se esvai e caímos no
extremo do niilismo.

Essa ênfase em reconhecermos o que é uma verdade superficial acurada


nos permite conectar a compreensão da vacuidade com a compaixão. Sem
isso, não levamos os outros a sério e isso faz com que não nos envolvamos
com seus os problemas e não lhes ajudemos. É muito sutil, mas acho que é
muito importante.

Originação Interdependente e Karma

Se você compreende a originação interdependente, você não deve


negligenciar o fato de que as ações positivas e negativas são positivas e
negativas. Isso é muito verdadeiro. Quando falamos sobre relatividade,
não reduzimos as coisas ao ponto em que qualquer coisa poderia ser
qualquer coisa. Matar é destrutivo, seja qual for a motivação. Mesmo se
matarmos devido a uma compaixão muito forte, como o Buda matou o
remador que ia matar os quatrocentos e noventa e nove comerciantes
num barco, ainda é a ação destrutiva de matar. Amadureceu numa
experiência de sofrimento: um espinho entrou no pé do Buda. O
sofrimento, as consequências negativas, foram muito pequenas por causa
da forte motivação compassiva, no entanto foi uma ação destrutiva e as
leis do karma mantêm-se: uma ação destrutiva conduz ao sofrimento. A
força da ação negativa é relativa, mas não é totalmente relativa – uma
ação destrutiva não pode se transformar numa ação construtiva. O
budismo concorda que há ordem no universo.

A questão é que, convencionalmente, matar é uma ação destrutiva. O que


faz dela uma ação destrutiva? Poderíamos dizer que não há nada
encontrável no ato de matar que, por si só, faça com que seja uma ação
destrutiva. Depende de haver alguém que mate, alguém que é morto, e
um continuum mental que é influenciado por isso e que experimenta o
sofrimento como consequência. A força kármica negativa do ato continua
como parte do continuum mental de quem o cometeu, de modo que a
pessoa que matou experimenta sofrimento em consequência. Não
podemos falar apenas em termos de alguma coisa ser “destrutiva",
independentemente da causa e do efeito. Não é destrutiva apenas na
imaginação. Destrutivo significa uma determinada ação que amadurece
como experiência de sofrimento para quem a cometeu.

Então o que torna um ato destrutivo? O ato é destrutivo na dependência


de fatores que não ele próprio – nesse caso, o efeito kármico da ação. Não
é que o ato seja intrinsecamente destrutivo, por si só, destrutivo por algo
encontrável dentro dele.

Deixem-me usar outro exemplo, que traga a questão à situações mais


quotidianas. O nosso cão faz xixi no chão da cozinha e nós ficamos
irritados e gritamos, "Cão feio! Você sujou o chão! Você fez esta coisa
FEIA!" como se esse ato, por si, independentemente de qualquer outra
coisa, existisse como feio. Nesse exemplo, é mais fácil pensarmos no
resultado "criado pelo homem", do que no efeito kármico que o cão irá
experienciar. Por favor, notem que há uma diferença entre um efeito
kármico e um efeito "criado pelo homem". O "criado pelo homem" ou,
neste caso, o efeito criado-pelo-cão é uma sujeira que temos de limpar.
Com base nesse critério, o que o cão fez no chão não foi bonito.
Surgimento Dependente e Decisões

À luz dessa discussão sobre rótulos e opiniões válidas, o que é


recomendado para se tomar decisões corretas? Há tantos fatores
diferentes envolvidos em tomar-se qualquer decisão. Não é simplesmente
uma questão de rotular corretamente uma ou outra alternativa como a
resposta ou a solução para um dilema. A fim de determinarmos qual é
convencionalmente a decisão mais correta, necessitamos, por exemplo,
tentar levar em consideração, tanto quanto possível, os fatores que irão
influenciar o resultado. O que vai acontecer não é causado apenas por
uma coisa. É importante não exagerarmos as nossas ações e a
importância das nossas decisões sobre o que fazer. Por exemplo, se
dissermos algo e alguém ficar perturbado, isto se deve ao fato de que
haviam muitos outros fatores perturbando a pessoa, e não apenas o que
nós dissemos.

É muito fácil dizer, "desde que tenhamos boas intenções, o que quer que
decidamos fazer está bem", mas há uma expressão em inglês: "a estrada
para o inferno é pavimentada com boas intenções". Além disso, nós temos
muitas intenções e motivações por trás de cada um dos cursos de ação
alternativos que possamos escolher, não apenas uma, por isso é muito
complexo.

Algumas pessoas dizem, "Ajam espontaneamente", mas frequentemente


espontaneamente significa neuroticamente. Se o nosso bebê estiver a
chorar e a primeira coisa que nos vem à mente for dar-lhe uma palmada,
não diríamos que seria a melhor decisão apenas porque seria espontânea.
Ao tomar uma decisão precisamos considerar o maior número de
aspectos possível, especialmente em decisões como deixar um emprego
ou acabar um relacionamento. Precisamos que fique bem clara a
diferença entre o que eu estou com vontade de fazer, o que eu quero
fazer, o que eu preciso fazer e o que minha intuição diz. Essas quatro
opções podem ser muito diferentes.

Por exemplo, eu preciso fazer dieta, eu quero manter a minha dieta,


mas tenho vontade de comer uma fatia de bolo. A minha intuição me diz
que me sentirei culpado mais tarde. Precisamos analisar estes quatro
aspectos da decisão, assim como as razões para cada um. Talvez
tenhamos vontade de comer devido à avidez pelo bolo. Porque é que
queremos perder peso? Por razões de saúde, devido à vaidade, ou para
ficarmos mais atraentes para arranjarmos um parceiro? Também
precisamos pesar as consequências do que fazemos e depois pesar, em
um certo sentido, todos os fatores diferentes e ver quais são válidos e
quais são inválidos. Por exemplo, "eu não quero comer agora, não me
apetece comer, mas se não comer agora não terei possibilidade de comer
durante o resto do dia. Assim, o melhor é comer alguma coisa agora”.

Tentamos tomar decisões desse modo, sendo sensíveis a todos os fatores


diferentes. Isto é particularmente importante ao tomar decisões difíceis.
Com decisões como, devo usar uma camisa preta ou azul, ou o que
escolher do menu no restaurante – apenas escolham alguma coisa, isso
não importa. Não queremos analisar muito. Tomar decisões não é fácil.

É muito interessante que uma das seis emoções e atitudes perturbadoras


principais seja a indecisão, o não sermos capazes de nos decidir. Para
superar esse estado mental debilitante podemo-nos voltar para a análise
detalhada, com base no Dharma, dos fatores que fazem com que
tenhamos vontade de fazer algo ou que queiramos fazer algo. Os
ensinamentos sobre o karma e o funcionamento da mente podem explicar
o surgimento desses fatores de uma maneira muito complicada e
sofisticada. Dentro disso, podemos analisar quais fatores as várias escolas
de budismo tibetano dizem ser válidos e inválidos.

Portanto, como saber se realmente tomamos a decisão certa?

A não ser que sejamos Budas, nunca poderemos saber se tomamos a


decisão certa. Nós não sabemos quais serão as consequências das nossas
ações. Além disso, devemos estar abertos às possíveis mudanças que
podem ocorrer, especialmente em decisões sobre acabar um
relacionamento. Essas são difíceis. Depois de termos pesado tantos
fatores quanto possível, precisamos entrar em comunicação com a outra
pessoa e ver o que acontece.

Aqui, na nossa discussão, nesse contexto, a vacuidade seria a ausência de


algo inerente/intrínseco na situação que faria de uma decisão a correta,
por si só. Não é assim; é dependente de muitas coisas diferentes. Não é
que uma coisa que decidimos ou dizemos, por si só, causará o efeito
daquilo que vai acontecer. O que acontece surge de um milhão de causas
diferentes, não só do que nós fazemos.

Pode parecer que algo fizemos tenha prejudicado uma coisa, e por isso
somos culpados, como se o nosso ato existisse
inerentemente/intrinsecamente e por si só tenha criado um problema. É
assim que isso nos parece agora e acreditamos nisso e por isso sentimo-
nos culpados. Convencionalmente, podemos ter contribuído para o
problema mas, certamente, o que nós fizemos, por si só, independente de
tudo mais, não criou o problema. Havia muitas causas. Como o Buda disse,
um balde não é cheio pela primeira nem pela última gota de água; é
enchido pela coleção de todas as gotas. Há milhares e milhares de fatores
que causam um efeito e que são responsáveis pelo que acontece.

Responsabilidade e Culpa

Por exemplo, derrubei um copo de água e sujei o chão. Essa sujeira


aconteceu não só porque deixei cair o copo, mas por causa do idiota que
pôs o copo na beira da mesa, da pessoa que construiu a mesa, do fato que
tem esta altura e que a sala não estava bem iluminada e por isso não o vi -
estavam envolvidos um milhão de fatores.

Mas certamente não poderíamos dizer que a pessoa que construiu a mesa
ou que pôs o copo na beira foi responsável pela sujeira.

Sou eu o responsável, mas não sou o culpado. Eu derramei o copo, mas


isso não me torna um idiota desajeitado – inerentemente – de modo que
você não me possa levar a lugar algum porque eu irei derramar tudo. As
pessoas se identificam com isto: "eu sou desajeitado" ou "não consigo
mudar uma lâmpada sem quebrá-la, por isso me ajude". Esses são
pensamentos muito comuns. Todos nós os temos. Não estamos falando
sobre um material filosófico sofisticado; estamos falando sobre a vida do
dia-a-dia.

"Culpa" significa que há algo inerente em nós que faz com que sejamos
uma pessoa ruim e o que nós fizemos foi inerentemente mau. Fizemos
algo, identificamos o que fizemos como inerentemente mau e a nós
próprios como pessoas inerentemente más, e depois nos fixamos às
identificações e não as largamos. Com a compreensão da vacuidade,
entendemos que nada e ninguém existe como sendo inerentemente
“mau”, estabelecendo-se assim de forma independente, por si só. Quando
temos uma compreensão profunda disso, não sentimos mais culpa, mas
se compreendermos corretamente a vacuidade, também entenderemos
que somos responsáveis por nossas ações.

Conclusão

A compreensão da vacuidade nos faz perceber que mesmo que o sujeito


do carro ao lado, que está buzinando e tentando ultrapassar, pareça um
idiota, isso não corresponde à realidade. Vemos como as coisas surgem
como “isso” ou “aquilo” na dependência do conceito e da palavra “idiota”,
por exemplo, e também de muitos outros fatores. Tendo essa
compreensão, não perdemos a paciência e ficamos com raiva da pessoa.
Ela pode até estar dirigindo como um idiota, do ponto de vista das
convenções alemãs, mas isso não a torna uma pessoa inerentemente má.
Treinamento da Mente
O lojong ou as práticas tibetanas de treinamento da mente, nos permitirão permanecer
fortes e positivos na forma como enfrentamos os desafios da vida. Ao treinar nossas
mentes, podemos transformar qualquer circunstância negativa em uma oportunidade
para desenvolver o amor, compaixão e compreensão.
V I S ÃO G E R A L DO C O N T E ÚD O

 O Que É o Treinamento da Mente?


 Lidando com Emoções Perturbadoras
 Lidando com os Desafios da Vida
 Comentários sobre Manuscritos Lojong
O Que É o Treinamento da Mente?
O maior obstáculo para a felicidade é ser egocêntrico. O budismo oferece
métodos de treinamento simples para mudar nossas atitudes.

A Autotransformação Através do
Treinamento da Mente
Dr. Alexander Berzin

Quando enfrentamos situações difíceis e as coisas vão mal em nossa vida, se


conseguirmos mudar nossa atitude poderemos transformar essas experiências
em algo que impulsione nosso progresso espiritual. A tradição tibetana do
“lojong”, treinamento da mente, oferece uma ampla variedade de atitudes
benéficas que podemos treinar, e que nos capacitam a lidar melhor com os
desafios da vida.

“Treinamento mental” refere-se a um conjunto de métodos utilizados


para mudar a forma como vemos uma pessoa ou situação. Entretanto,
precisamos ter cuidado com o termo “treinamento mental”, uma vez que
pode parecer incluir treinamento em concentração e memória, o que não
é o caso. No termo tibetano para treinamento mental, blo-sbyong, a
palavra blo não significa apenas “mente”, ela tem muito mais uma
conotação de “atitude”. Já a palavra “treinamento”, sbyong, tem dois
significados: “limpar”, no sentido de livrar-se das atitudes negativas, e
“treinar”, que seria treinar atitudes mais positivas. Portanto, pode ficar
mais claro se pensarmos em treinamento mental como um “treinamento
de atitude”.

A principal atitude negativa da qual precisamos nos livrar é a atitude de


auto-apreço, que inclui o egocentrismo e o egoísmo, ou seja, pensarmos
apenas em nós mesmos. E a atitude positiva a ser treinada é a atitude de
apreço pelos outros, que inclui pensarmos primeiro no bem estar alheio,
e com amor e compaixão. O método utilizado em todas as técnicas de
treinamento ajusta-se bem à abordagem geral do Buda, conhecida como
as “quatro nobres verdades”.
As Quatro Nobres Verdades

O Buda nos ensinou, de forma muito prática, a superar os problemas da


vida. Na verdade, tudo o que ele ensinou tinha esse propósito. Todos
temos muitos níveis e tipos de problemas. Alguns são bem grosseiros e
machucam muito, trazendo-nos muita dor física ou mental, ou as duas
juntas. Outros são um pouco mais sutis mas, mesmo assim, muito
dolorosos. Por exemplo, gostamos de muitas coisas na vida, mas elas nos
frustram, porque não nos satisfazem. Elas não duram, elas mudam. As
coisas nunca são estáveis em nossa vida; temos altos e baixos. Algumas
vezes tudo vai bem, outras vezes não; e o que é realmente instável é a
forma como nos sentimos. Às vezes estamos felizes, às vezes infelizes e às
vezes parece que não sentimos nada, e não temos a mínima ideia de como
nos sentiremos no momento seguinte. Parece que não depende nem
mesmo das pessoas com quem estamos, ou o que estamos fazendo — de
repente nosso estado de humor muda.

Todos nós temos, também, problemas emocionais que trazem problemas


diferentes para a vida. E o que é realmente frustrante é que eles parecem
se repetir. Parece que nós causamos cada vez mais problemas, mesmo
que às vezes eles pareçam vir dos outros. Se examinarmos bem de perto e
com honestidade, veremos que a fonte de muitos de nossos problemas
somos nós mesmos e, mais especificamente, nossa atitude egocêntrica em
relação ao que acontece na vida.

O Buda viu tudo isso. Ele percebeu em sua própria vida e na vida dos
outros. Viu que todos estão na mesma situação. Em um nível mais
grosseiro, todos temos dificuldade com o que são apenas ocorrências
normais da vida — nascer, crescer, ficar doente, envelhecer e morrer — e
também com os altos e baixos incontroláveis de nossos sentimentos. Mas
o Buda disse que os problemas que temos com essas ocorrências surgem
a partir de causas; eles não surgem do nada. Eles não vêm de uma super
força externa — quer a chamemos de “Deus” ou, de forma mais
impessoal, destino. Essa não é a verdadeira fonte de nossos problemas.

A verdadeira fonte de nossos problemas é interna, e quando digo interna,


não quero dizer que somos inerentemente maus ou culpados. O Buda não
disse que você nasceu mau ou com pecados; o que ele disse é que a fonte
de nossos problemas é nossa confusão a respeito da realidade. Não é que
sejamos imbecis, é só que, em nossa experiência do dia-a-dia, as coisas
parecem existir de uma forma que é impossível, que de maneira alguma
corresponde à realidade. Esse é particularmente o caso de como nos
enxergamos e enxergamos os outros, o que, obviamente, molda nossa
atitude em relação às outras pessoas. Por causa de nosso egocentrismo e
auto-apreço, parece que somos a pessoa mais importante do mundo, que
as coisas deveriam ser sempre da forma que nós queremos, e a
experiência alheia não importa. É como se o que os outros sentem não
importasse, nem mesmo existisse. Acho que podemos entender isso em
termos do quanto de nossa experiência é baseada em projeções e
expectativas que não são realistas, ao invés de o ser na situação real que
nos é apresentada.

Mas o Buda disse que é possível acabar com essa situação, deixar de ter
esses problemas, de forma que eles nunca mais ocorram. Não estamos
condenados a sofrer para sempre. Não é como se a única solução fosse
nos drogar ou nos embriagar para fazer o sofrimento passar e sentirmos,
nem que por um momento, que escapamos de nossos problemas. E
também não é como se fosse apenas uma questão de mergulharmos em
um estado de meditação profunda onde não há pensamentos e isso fosse
resolver nossos problemas. Temos que nos livrar da confusão.
Precisamos substituir confusão por compreensão correta. Todos somos
iguais, todos queremos ser felizes e não queremos ser infelizes, e
ninguém tem mais direito à felicidade que o outro. E ainda, somos apenas
uma pessoa e “os outros” são infinitos. Se conseguirmos enxergar essa
realidade e agirmos de acordo com ela, à medida que nossa compreensão
for se aprofundando, nossos estados emocionais também vão lentamente
mudando.

Treinamento Mental

Por passarmos grande parte da vida no mundo da fantasia, de nossas


projeções, a confusão molda as atitudes que temos em relação às nossas
experiências. Com uma atitude de auto-apreço, olhamos para o que
acontece conosco de forma egocêntrica, o que cria ainda mais infelicidade
e problemas, para nós e para os outros. Mas mudando nossa atitude, a
forma como experimentamos os acontecimentos da vida muda
drasticamente.

Por exemplo, ao invés de considerarmos o atraso em nosso voo como


sendo um desastre pessoal, podemos ver que a realidade é simplesmente
que, nós e todos os demais passageiros do voo, ficaremos mais tempo na
sala de espera. Podemos mudar a maneira como encaramos a situação e,
com uma atitude de consideração com a forma como os outros estão
lidando com o atraso, podemos ver isso como uma oportunidade para
começar uma conversa com um colega passageiro. Se, ao invés de
ficarmos chateados, conseguirmos ser agradáveis, podemos ajudá-lo a se
acalmar e não ficar desesperado.
Assim como podemos treinar o corpo através exercícios físicos que o
deixem mais forte e resistente, podemos treinar nossa mente e atitude
através da meditação, para que fiquem mais fortes e positivas, e nossas
emoções mais equilibradas, a fim de termos mais resistência a potenciais
situações perturbadoras.

Ganhando Força Emocional

Às vezes, conseguimos entender qual é o nosso problema. Percebemos


que estamos passando por uma questão emocional, porque a mente fica
rígida e estreita, pensando apenas em nós mesmos, mas isso não parece
mudar nossa emoção. Vemos que nossa compreensão do fato não muda a
forma como nos sentimos. O que acontece, nesse caso, é que a
compreensão não é suficientemente profunda. E não é só isso, precisamos
de um longo tempo para que a compreensão permeie completamente
nossa mente e mude nossas atitudes.

Usemos, novamente, o exemplo da saúde física para ilustrar o fato.


Suponhamos que estivéssemos fisicamente debilitados, cansados,
sentindo-nos pesados o tempo todo e, então, começamos a frequentar
uma academia e a nos exercitar regularmente. É necessário um bom
tempo, geralmente meses, para começarmos a sentir os efeitos na saúde.
Entretanto, quanto mais tempo nos exercitarmos, e quanto mais fizermos
disso uma rotina, perceberemos, com o passar do tempo, uma verdadeira
mudança em como nos sentimos: nos sentimos ótimos. E isso ajuda a
melhorar a forma como lidamos com as outras pessoas.

Algo semelhante ocorre quando temos uma compreensão do que


acontece em nossa mente, com nossas emoções e nossas atitudes. Quanto
mais tempo cultivarmos essa compreensão e quanto mais nos
lembrarmos dela, mais profunda ficará. Apesar da mudança emocional
não ser imediata, à medida que formos mudando nossas atitudes,
ficaremos cada vez mais fortes e equilibrados.

Níveis de Motivação para Trabalharmos em Nós Mesmos

Ir à academia não requer apenas autodisciplina, mas também atenção,


para nos lembrarmos de ir, para não esquecermos. Por trás disso, está o
que chamamos de “atitude cuidadora” — nos importarmos conosco, com
nossa aparência, com nossos sentimentos, etc. Vamos à academia porque
nos levamos a sério, e respeitamos nosso “direito”, por assim dizer, à
felicidade e ao bem-estar. Da mesma forma, nos entendermos,
entendermos como funcionam nossas emoções, também depende de nos
importarmos conosco, e sentirmos que, sim, temos o direito a uma saúde
emocional melhor.

Essa atitude de cuidado conosco é muito diferente da atitude de auto-


apreço. O auto-apreço nos leva a pensar somente em nós mesmos e
ignorar os outros, não nos importando como nossas atitudes e
comportamentos afetarão as pessoas com quem interagimos ou apenas
encontramos. Por outro lado, se tivermos uma atitude cuidadora,
perceberemos que nossos problemas e infelicidade vêm do egocentrismo
e do egoísmo e, como queremos felicidade, cuidaremos de nós mesmos a
ponto de fazer algo a respeito. Vamos trabalhar para mudar nossas
atitudes e comportamento e, no futuro, ficaremos atentos para pôr em
prática o que fomos treinados a realizar.

Agora, é claro que existem vários níveis de motivação para nos


trabalharmos dessa maneira. Analisando o que queremos dizer com
motivação, estamos falando do nosso objetivo ao nos trabalharmos e da
força emocional que nos impulsiona para esse objetivo. Os ensinamentos
budistas descrevem vários níveis progressivos de motivação conforme
avançamos no caminho.

Podemos trabalhar simplesmente para melhorar nossa qualidade de vida


quando achamos que não é satisfatória e queremos, não só que ela deixe
de ser insatisfatória, mas também que não piore. Inclusive, achamos que
seria ótimo que melhorasse! Estamos realmente insatisfeitos e chegamos
ao um ponto em que não aguentamos mais e precisamos fazer algo a
respeito.

Em um nível mais avançado, podemos pensar não só nesta vida, mas


também em vidas futuras. Igualmente não queremos que as coisas piorem
em nossas próximas vidas. O que nos impulsiona é a mesma força
emocional de querermos melhorar esta vida, a diferença é apenas que
estamos olhando para um período mais longo de tempo. Existe também
um nível intermediário, no qual pensamos em termos de não querer que
os nossos vários problemas familiares e nossa forma de lidar com as
coisas seja transmitida às próximas gerações.

Para realmente termos esses níveis mais avançados de motivação, é


necessário um enorme treinamento. Entretanto, qualquer que seja o nível
em que estejamos, encontramos muitos métodos úteis nos ensinamentos
do Buda. Por exemplo, mesmo se pensarmos apenas nesta vida, nossa
motivação pode não ser somente o interesse próprio e a superação de
nossos problemas, mas também a compaixão e a preocupação com os
demais. Em outras palavras, não estamos almejando superar nossas
dificuldades simplesmente porque nos causam problemas e nos são
dolorosas, mas também porque nos impedem de ajudar os outros da
melhor forma possível. Isso é nos trabalharmos em conformidade com o
treinamento mental.

Por exemplo, vamos supor que somos alcoólatras. De um lado, podemos


nos motivar a superar a dependência porque ela nos faz mal, faz mal à
nossa saúde e a tudo que nos diz respeito. Sentimo-nos mal se acordamos
de ressaca. Entretanto, podemos ficar muito mais motivados se
pensarmos em nossa família. Podemos pensar em como a bebida nos
impede de ser um bom pai, por exemplo; se frequentemente ajo como
louco quando estou bêbado, isso é realmente nocivo à minha família,
amigos, etc. Quando entendemos que nossa família precisa de nós e o
nosso problema com o álcool realmente impede de satisfazermos a
necessidade que eles têm, isso nos dá mais força para superarmos a
dependência.

Portanto, mesmo que estejamos praticando esses métodos budistas para


tentar melhorar apenas esta vida, a motivação de amor e compaixão com
outros é muito importante. Isso está enfatizado nos treinamento mental
para estimarmos os demais: apesar de podermos aplicar muitos desses
métodos em interesse próprio, para nos sentirmos melhor, certamente é
muito melhor aplicá-los para ajudar os outros seres.

Os Oito Fatos Transitórios da Vida (Os Oito Preocupações


Mundanas)

Enfrentamos muitas situações difíceis na vida, no sentido de serem


dolorosas. A dor não precisa ser só física, pode ser mental também. Essas
situações podem ser, por exemplo, os casos onde nossas emoções
destrutivas surgem com força, emoções como raiva ou um forte apego.
Todos sabemos como nos sentimos mal quando nossa mente está cheia
de raiva e hostilidade, ou quando está repleta de apego e desejo.

Algumas situações são particularmente difíceis e estão enumeradas em


uma lista budista de oito itens, chamados de “fatos transitórios da vida”.
Algumas vezes são chamados de "oito preocupações mundanas" ou "oito
dharmas mundanos”, e referem-se a coisas que acontecem conosco e são
transitórias; não são estáveis, passam. Elas ocorrem em quatro pares:

 Receber elogio ou crítica – se somos elogiados ficamos eufóricos e nos


apegamos ao elogio; e quando somos criticados ficamos chateados e
com raiva.
 Receber notícias boas ou ruins – quando recebemos notícias boas
ficamos entusiasmados e, logicamente, nos apegamos ao fato,
queremos que dure, o que nunca acontece. Quando recebemos más
notícias, ficamos muito chateados, deprimidos e com raiva.

 Ter ganhos ou perdas – quando ganhamos algo, ficamos felizes e


entusiasmados, e pensamos “Ah, que maravilha”. Mas quando
perdemos coisas, ou nos tomam ou quebram nossos pertences, ficamos
chateados. Perdas e ganhos também podem se referir a pessoas que
surgem em nossa vida — ganhamos um amigo, ou perdemos um amor
— e, obviamente, podem ser financeiros.

 Vivenciar as coisas indo bem ou indo mal – e ficar entusiasmado e


apegado, ou deprimido e com raiva.

Esses oito fatos transitórios nos chateiam por causa de nosso


egocentrismo, por pensarmos somente em nós mesmos e no que acontece
conosco. E ora nos sentirmos maravilhosos, ora “pobres coitados”.

Aplicando Forças Opositoras Provisórias

O Buda ensinou muitos métodos diferentes para superarmos as emoções


destrutivas que geralmente surgem como resposta a esses oito fatos
transitórios da vida. Em todos eles, treinamos ver o que estamos vivendo
com a atitude benéfica de ter as outras pessoas em alta estima. Um dos
métodos é vermos a situação através das lentes de uma força opositora
provisória. Esse método não nos livra para sempre das emoções
destrutivas, não é tão profundo assim, mas é muito útil.

O Amor Como Força Opositora à Raiva


Digamos que as coisas andem mal, que exista alguém nos tratando muito
mal, de uma forma desagradável, e sentimos raiva dessa pessoa. Se
pensarmos apenas em nós mesmos, ficaremos obcecados com o
pensamento “Eu não gosto da forma como ele me trata”. O que aplicamos
nesse caso, como força opositora provisória à raiva, é o amor. Agora, não
estamos apenas dizendo, de uma forma muito simplória, “Não fique com
raiva, ame essa pessoa”. Obviamente, a maioria de nós não consegue
mudar assim de uma hora para a outra. Mas esse é um bom exemplo de
como, através da compreensão, podemos mudar nosso estado emocional
e atitude, com base no apreço pelo outro.

Essa pessoa tem uma péssima atitude conosco, mas por que age dessa
forma? Alguma coisa a incomoda. Tenho certeza que vocês têm uma
pessoa assim em suas vidas, que, por exemplo, está sempre reclamando.
Sempre que está com você, ela fica reclamando de alguma coisa. Só fala de
si, e estar com ela é um “saco”. Se analisarmos a situação, é óbvio que a
pessoa age dessa forma porque está extremamente infeliz. Uma maneira
produtiva de mudar nossa atitude seria pensar: “Se a pessoa ao menos
conseguisse ser feliz, ela pararia de reclamar o tempo todo e dificultar as
coisas pra mim.” A definição de amor, no budismo, é o desejo de que a
outra pessoa seja feliz e encontre as causas da felicidade. Portanto, ao
invés de simplesmente desejar que a pessoa vá embora e pare de nos
incomodar, cultivamos o desejo de que ela seja feliz, que o que quer que a
esteja incomodando vá embora, com isso ficaremos menos chateados.
Praticar essa mudança de atitude através da meditação é “treinamento
mental”.

Diminuindo a Atração Sexual Obsessiva


Similarmente, se nos sentimos muito atraídos por alguém, aplicamos
forças opositoras provisórias usando nossa imaginação. Ao invés de nos
centrarmos no ego e pensarmos apenas em termos da aparência externa
da pessoa, como se ela fosse um mero objeto para eu consumir por
prazer, podemos imaginar seu interior — seu estômago, intestino,
cérebro e coisas do gênero. É especialmente útil imaginarmos a estrutura
do crânio quando olhamos para o seu rosto. E é claro que o que
imaginamos é real; isso é o que existe por baixo da pele da pessoa.

Outro método eficiente é imaginarmos a pessoa como um bebê, e depois


idosa. Dessa forma podemos diminuir nosso apego, especialmente se vier
de uma atração sexual, percebendo que o que vemos é apenas uma
aparência superficial, que certamente não vai durar. Se a pessoa tivesse
uma terrível doença dermatológica ou fosse coberta de acne, será que
ainda a acharíamos tão atraente? Quanto mais entendermos que
realmente existem intestinos e esqueleto dentro da pessoa, mais a nossa
atitude mudará e nossa perturbação emocional se acalmará. Ficaremos
mais estáveis.

A partir de então, podemos aplicar métodos para desenvolver uma


atitude cuidadora. Considerando essa pessoa pela qual sentimos uma
forte atração sexual, podemos perceber que, quando experimentamos
atração e apego muito fortes, geralmente estamos focados em seu corpo.
Perdemos a visão do fato de que ela é um ser humano que deseja ser feliz,
e não infeliz. E nem ser tratada como um objeto sexual. Dessa forma,
conseguimos vê-la como um ser humano de verdade, e começamos a
desenvolver uma preocupação sincera com sua felicidade e bem estar.
Evitando Aversão ou Indiferença em Relação a Mendigos e Deficientes
Aplicar uma força opositora provisória também é extremamente eficiente
quando encontramos alguém que consideramos feio ou repulsivo. E é
particularmente útil quando encontramos mendigos ou pessoas
extremamente pobres e humildes em países como México ou Índia, onde
as encontramos com uma frequência maior do que em outros países.
Também podemos usar esse método com pessoas que tenham alguma
deficiência como cegueira, surdez, paralisia, ou qualquer situação que nos
deixe desconfortáveis.

Lembro-me de uma exposição em Berlin sobre pessoas com deficiência.


Havia uma sessão com uma série de vídeos de entrevistas com pessoas
paralíticas. Seus membros contraíam-se incontrolavelmente, suas bocas
tortas para o lado e a fala arrastada. Elas falavam de sua vida sexual,
relatando que tinham exatamente o mesmo tipo de emoção e
necessidades sexuais, e desejavam relacionamentos amorosos, como todo
mundo. E então descreviam os relacionamentos que tiveram. Foi exigido
que todas as crianças em idade escolar na cidade fossem à exposição, o
que achei maravilhoso, para mostrar que essas pessoas são pessoas de
verdade, como todas as outras. É uma forma bastante eficiente de
superarmos a repugnância egocêntrica, a indiferença ou simplesmente o
desconforto que sentimos com essas pessoas.

Outro método é, quando vemos uma pessoa esmolando na rua, imaginar


“nossa mãe” naquela situação, sem teto e esmolando, ou “nosso pai”. Ou,
quando virmos um jovem que fugiu de casa esmolando na rua, pensar em
“nosso filho” ou “nossa filha” na mesma situação. Essa mudança de
atitude, na forma como consideramos a pessoa, altera completamente
nossa resposta emocional.

Tenho que admitir que nunca fiz isso, mas sei de um mestre Zen ocidental
em Nova Iorque que faz seu alunos, se eles quiserem, ir para as ruas sem
nenhum dinheiro ou cartão de crédito ou débito e ser um sem-teto,
mendigar por uma semana, só para experimentar como é.

Esses “remédios” são muito poderosos para superarmos a indiferença a


pessoas que se encontram em situações difíceis. Estou só pensando em
quantas vezes encontramos pessoas assim e não queremos nem olhar
para elas. Elas nos deixam desconfortáveis. Imagine estar do outro lado.
Lá está você, batalhando, e ninguém quer nem mesmo olhar e reconhecer
sua existência, ou querem se livrar de você como de um mosquito. Esse é
um método de aplicarmos forças opositoras, mas elas são provisórias, não
chegam à raiz do problema.
Aplicando o Mais Profundo Opositor à Ação

O segundo método de treinamento mental é aplicarmos um oponente que


não é um remédio meramente provisório, mas um que realmente vai na
raiz do problema e o remove. Refiro-me aqui à aplicação de um estado
mental mutuamente excludente, exatamente o oposto de um estado
confuso, a compreensão da vacuidade. A forma confusa com que
considerarmos a existência de uma pessoa ou situação, não corresponde,
de forma alguma, à realidade. Em outras palavras, por trás de nosso
apego ou raiva está, basicamente, nossa confusão a respeito de como as
coisas existem.

Essa não é a ocasião para uma discussão profunda sobre a vacuidade,


portanto ficaremos em um nível bem básico. Suponhamos, por exemplo,
que você vá visitar um avô doente ou um pai idoso em uma casa de
repouso. Quando segue pelo corredor em direção a seu quarto, você passa
por uma senhora toda enrugada em uma cadeira de rodas, balbuciando
palavras, babando e catando uma toalha em seu colo. Ao ver uma pessoa
assim, você se sente extremamente desconfortável. Sua tendência é
pensar que ela sempre foi assim. E se ela esticar o braço e tentar pegar na
sua mão ou tocá-lo, você surta. Você está pensando apenas em si mesmo.

Podemos aplicar aqui, é claro, a força opositora provisória de nos


lembrarmos que ela é um ser humano, que tem uma vida, uma família,
uma profissão e já foi jovem. Ela não foi sempre velha. Ela só tentou pegar
sua mão porque quer contato humano. Isso pode ser eficiente, mas
precisamos de um método mais profundo, que seria reconhecermos que a
forma como imaginamos que ela existe, da forma como aparenta, velha e
decrépita, sem nunca term sido de outro jeito — é impossível. Ninguém
poderia existir dessa forma, congelada no tempo, como uma fotografia.
Focamos então em “Não existe nada assim, é impossível”. Essa é uma
forma muito mais forte de nos livrarmos de nossa concepção errônea,
para que consigamos ter uma atitude mais realista e compassiva com a
pessoa.

Relaxando as Emoções Perturbadoras para Revelar a Consciência


Profunda Subjacente

Outro método é o usado em um tipo avançado de meditação chamada


“mahamudra”, que significa “vendo a consciência profunda subjacente, na
qual a emoção perturbadora é automaticamente liberada por si mesma”.
Esse método faz uso dos mecanismos básicos com os quais a mente
percebe a realidade — “a forma como nossa mente funciona”, para
colocar em uma linguagem mais simples.

Vejamos um exemplo. Vamos supor que sentimos uma forte atração e


desejo por alguém. Se conseguirmos relaxar a tensão desse estado
emocional, o que encontraremos por detrás é o que chamamos de
“consciência profunda individualizadora”. Em outras palavras, o que
realmente acontece quando nos conscientizamos dessa pessoa é que
estamos especificando-a como um indivíduo, em oposição ao resto das
pessoas. Isso é tudo o que se passa, na verdade, em termos da estrutura
básica da mente. Em seguida, projetamos “Essa pessoa é realmente
especial”. Exageramos certas qualidade e então experimentamos atração
e desejo, ou apego.

Desejo é quando não temos o objeto, mas gostaríamos de tê-lo; e apego é


quando o temos e não queremos perdê-lo. Ambos são, é obvio,
sentimentos totalmente egocêntricos. Se relaxarmos a energia estanque
do exagero e apego desse estado mental, tudo o que sobra é a estrutura
básica do que a mente está fazendo com o objeto, que é apenas especificá-
lo. Isso é tudo.

Esse é um método bastante avançado mas muito eficiente, se realmente


conseguirmos utilizá-lo. Entretanto, ele requer uma certa maturidade
para não nos deixarmos levar pelas emoções. Precisamos ser capazes de
ver o que acontece por trás da forma emocional com que lidamos com
alguma coisa, e depois relaxar. A emoção se autolibera automaticamente,
à medida que vemos a estrutura cognitiva básica por trás dela.

Transformando Circunstâncias Negativas em Positivas: Como


Vemos os Outros

O próximo método, que é mudar as situações que você acha que não são
conducentes à sua prática e transformá-las em situações
que são conducentes, é a ideia principal presente nos textos tradicionais
de treinamento da mente, mais especificamente nos Os Oito Versos de
Treinamento da Mente por Langri Tangpa. Um verso do grande mestre
indiano, Shantideva, no texto Engajando no Comportamento do
Bodhisattva, indica esse tipo de abordagem. Ele escreve,

(VI.10) Se pode ser remediado, por que ficar de mau humor por
causa disso. Se não pode ser remediado, de que serve ficar de
mau humor?
Se você pode fazer alguma coisa para mudar a situação, para que serve
ficar chateado? Simplesmente mude-a. E se não há nada que possa fazer,
para que serve ficar chateado? Não vai ajudar em nada. Portanto, se
estiver em uma situação que parece muito prejudicial, muito difícil, como
uma crítica ou as coisas indo mal, e não conseguir mudar a situação, por
que se chatear? Simplesmente mude sua atitude em relação a ela.

Existem muitas maneiras diferentes de transformarmos uma situação


adversa em positiva. Algumas têm a ver com como a forma que vemos as
pessoas que nos causam problemas, e outras têm a ver com a forma que
vemos a nós mesmos nessas situações difíceis. Vamos olhar primeiro as
situações que têm a ver com nossa atitude em relação aos outros.

Vendo as Pessoas Difíceis Como Se Fossem Joias Realizadoras de Desejos


Uma das formas de mudarmos nossa atitude em relação a pessoas difíceis
é enxergá-las como “joias realizadoras de desejos”. Por exemplo,
podemos pensar “Eis aqui alguém que está me oferecendo um desafio; ela
me oferece uma oportunidade de crescimento, de testar o quando me
desenvolvi. Isso é maravilhoso”. Ou, “Eis aqui uma pessoa que me
convidou para um almoço, e está sempre reclamando, é deprimente estar
perto dela, e isso é maravilhoso! Que bom que essa pessoa me convidou,
porque agora tenho a chance de realmente praticar paciência e
compreensão”. Portanto, essas pessoas são como joias realizadoras de
desejos. “Que maravilha que meu vizinho me pediu para cuidar do bebê
que vai chorar e gritar a noite inteira. Isso é ótimo.”

Shantideva colocou isso muito bem,

(VI.107) Portanto, devo ficar muito feliz com esse inimigo que
surgiu como um tesouro em minha casa, sem que eu precisasse
me esforçar para isso, porque ele me ajuda a desenvolver o
comportamento de um bodhisattva.

A maior alegria de um bodhisattva, alguém dedicado a atingir a


iluminação para o benefício de todos os seres, é uma pessoa lhe pedir
ajuda. Se ninguém pedir nada, o bodhisattva fica triste e sente-se inútil.
Eu tenho um website e recebo muitos emails com perguntas ou pedidos, e
é muito fácil irritar-me com tamanha quantidade de solicitações. Mas se
eu realmente pudesse praticar dessa forma, ficaria muito feliz. Quanto
mais emails receber, mais chances tenho de ajudar pessoas. Se rezarmos
da maneira budista, “Que eu possa ser de benefício para todos os seres”, e
mais e mais seres pedirem nossa ajuda, nosso pedido foi realizado, certo?
Conforme escreveu Shantideva,

(VII.64) Apesar de as pessoas agirem buscando felicidade, não


está claro se serão felizes ou não; mas para (um bodhisattva),
cujas ações realmente trazem felicidade, como é que ele poderia
ser feliz sem fazer essas ações?

Considerar Pessoas Difíceis Como Se Fossem Filhos Doentes


Outra mudança de atitude é considerar essa pessoa, que nos traz tantos
problemas e é tão desagradável, como um filho doente. Quando nosso
filho está doente, irritado e chorando, ele pode nos causar muito
incômodo. Mas, basicamente, ainda o amamos muito porque entendemos
que está doente. Talvez seja necessário ficar de cama, ou o que for. E se
nosso filho cansado diz, “Eu odeio você e não quero ir para a cama”, não o
levamos a sério, porque está doente. Portanto, da mesma forma, é uma
questão de simplesmente mudarmos nossa atitude em relação à pessoa
desagradável, considerando-a como um filho doente, ao invés de
considerá-la uma peste irritante. Dessa maneira, nos conectamos com
eles, e não apenas com nós mesmos.

Considerando Pessoas Difíceis Como Professores


Uma terceira forma de mudarmos nossa relação com pessoas difíceis é
considerá-las professores. Existe uma história famosa de quando Atisha
foi ao Tibete e levou consigo um cozinheiro indiano. Esse cozinheiro
nunca seguia suas instruções e sempre retrucava. Os tibetanos disseram a
Atisha, “Por que não o manda de volta para a Índia? Podemos cozinhar
para você” e Atisha disse, “Não, não! Ele não é apenas o meu cozinheiro;
ele é meu professor de paciência”. Portanto, se temos um parente
irritante, por exemplo, com o qual precisamos lidar, é muito útil
considerá-lo como um professor de paciência.

De fato, as pessoas podem ensinar-nos muitas, muitas coisas. Ao agirem


mal elas podem, por exemplo, nos ensinar a não agir assim. Até mesmo
nosso cachorro pode ser um professor. Já percebeu, quando você fica com
seu cachorro durante o dia, que ele é capaz de se deitar em qualquer lugar
e relaxar, até mesmo dormir, enquanto nós “Ah, tem que ser uma cama
especial, tem que ter lençóis especiais, tem que ser macia”, ou “Tem que
ser dura”, ou isso ou aquilo. O cachorro não reclama, deita-se em
qualquer lugar. Isso é um grande ensinamento. É uma maneira de mudar
a forma como vemos aqueles que nos trazem problemas — enxergue-os
como joias, como um filho doente, ou como um professor.
Transformando Circunstâncias Negativas em Positivas: Como Nos
Consideramos a Nós Mesmos
Dando a Vitória aos Outros
Existem também métodos que servem para mudarmos a forma como nos
vemos e a atitude que temos conosco em determinadas situações. O
primeiro método é “dar a vitória ao outro e aceitar a derrota”. Ou seja,
com a atitude de auto-apreço, tendemos a pensar “Eu tenho que vencer;
eu tenho que provar meu ponto de vista e a outra pessoa tem tem de
ceder”. Enquanto, se aceitarmos a derrota, a discussão termina. Um
exemplo, bem simples, é quando você está com um amigo ou
companheiro e tem que decidir em qual restaurante irão; se seu amigo
quer ir a um determinado lugar e você insiste em ir a outro, iniciarão uma
discussão interminável. Mas no final, que diferença faz? Se você
simplesmente concordar e disser “OK. Vamos ao restaurante que você
quer,” a discussão terminará. Em outras palavras, a discussão termina se
estimarmos a outra pessoa mais do que a nós mesmos e lhe dermos a
vitória.

Agora, não estamos falando aqui de situações drásticas, em que a outra


pessoa está sugerindo algo bastante negativo ou destrutivo mas, quando
realmente não faz muita diferença, dê a vitória ao outro. Claro que
existem abjeções a essa prática, como nos casos em que você está sempre
cedendo e a outra pessoa fica tirando vantagem. Portanto, é óbvio, você
tem que ter uma certa sensibilidade para usar esse método. Mas existem
muitas situações nas quais essa é a melhor maneira de lidarmos como o
problema.

Darei um exemplo de minha própria experiência. Eu vivo em um dos


bairros com mais restaurantes em Berlim, em uma esquina bastante
movimentada. Moro em um prédio de apartamentos e no piso térreo
havia uma silenciosa taverna, mas um novo restaurante se mudou para lá,
um restaurante espanhol muito popular. Esse estabelecimento abre das
sete da manhã até às três horas da madrugada. Quando o tempo está bom,
eles colocam mesas lá fora, em ambos os lados do prédio. As pessoas
sentam-se bebendo cerveja e vinho, e conversam animadamente falando
alto e rindo, até de madrugada. Quando abriram esse restaurante, com as
mesas embaixo da janela do meu quarto, eu costumava deitar à noite sem
conseguir dormir por causa do barulho. Frustrado, irritado e pensando
apenas em mim mesmo, e não em como havia gente se divertindo, eu
tinha todos os tipos de fantasias. Imaginava-me em um castelo medieval
jogando um tacho de alcatrão fervendo nas pessoas. Mas eu não queria
ser o velho ranzinza que está sempre ligando e dizendo: “Diga às pessoas
para que fiquem quietas ou chamarei a polícia!”. Isso não iria funcionar.
Então decidi que a única forma de lidar com esse problema seria oferecer
a vitória ao outro, e aceitar a derrota. A alegria deles em aproveitar a
noite de verão era mais importante do que eu poder dormir no meu
quarto. O único cômodo da casa que não é virado para a rua é a cozinha.
Eu tenho uma cozinha muito grande, com um nível mais elevado para a
área do café da manhã. Tenho muito espaço vazio lá, portanto nos meses
de verão é lá que eu durmo. Deixo meu colchão encostado na parede
durante o dia, à noite o coloco no chão e durmo na cozinha. É
perfeitamente silencioso e também o lugar mais fresco da casa.

Estou muito feliz por dormir na cozinha. Dei-lhes a vitória e não me


importo com quanto barulho façam, porque não os ouço. Isso também é
muito bom perto do Ano Novo, porque os alemães adoram fogos de
artifício. É muito, muito barulhento nas ruas mas, novamente, se eu
mudar minha atitude em relação à situação e lhes der a vitória, dormindo
na cozinha, não tem mais problema.

Coisas Negativas Que Acontecem Comigo Estão Queimando Meu Karma


Negativo
O segundo método é ver as coisas negativas como “karma negativo sendo
queimado.” Isso não quer dizer que aceitamos o que acontece como se
fosse uma punição, mas pensamos que essa dificuldade está queimando
algum karma negativo de uma forma mais branda, evitando, assim, que
ele amadureça como algo muito pior no futuro. Um exemplo simples: você
fica preso no trânsito sem sair do lugar por um longo tempo. Então você
pensa, “Ótimo! Isso está queimando um karma de ficar paralítico, caso em
que eu realmente não conseguiria me mover, como a sequela de um
possível AVC”. Dessa forma, nos alegramos com o fato de essas coisas
negativas acontecerem, porque isso está abrindo caminho para que no
futuro seja tudo muito melhor.

Budistas tradicionais acreditam em espíritos malignos. Se esse também


for o nosso caso, podemos levar essa mudança de atitude um passo à
frente e pedir aos espíritos, “Mandem-me mais dificuldades. Façam mais.”
Tive uma experiência muito boa com isso, recentemente. A partir da
metade do mês de Julho, durante dois meses tudo dava errado. Tudo
quebrava. Tive uma infecção em um estranho sinal que cresceu em
minhas costas e não pude ir à academia por dois meses, porque quando a
infecção melhorou precisei tirar o sinal. Depois meu computador pegou
um vírus terrível. Destruiu até o meu disco rígido, então passei um mês
sem computador. Depois a impressora quebrou; eu tinha dois aparelhos
de vídeo e os dois quebraram. Sou um grande fã de astrologia — por
alguma razão, o banco de dados de todos os mapas que eu havia juntado,
de outras pessoas, desapareceu. Não tenho como recuperá-los. Depois
quebrei minha caneca favorita, a que uso sempre, e então — no meio de
tudo isso — fui para a França para uns ensinamentos com Sua Santidade
o Dalai Lama, e a companhia aérea perdeu minha mala.

Essa foi a última coisa a acontecer. Quando minha mala se perdeu, eu


simplesmente comecei a rir; foi absolutamente ridículo. E então pensei,
“Levem mais coisas, espíritos malignos! O que mais farão dar errado?”
Isso me fez sentir muito melhor. Ao invés de subir os muros emocionais
para afastar as interferências, eu as aceitei de coração aberto e até lhes
dei as boas vindas.

Há alguns anos, tive uma infecção no maxilar, embaixo de um dente que


tinha tratamento de canal, e precisei de cirurgia para cortar fora um
pedaço do maxilar. Logo após a viagem à França, fui ao dentista e ele me
deu a boa notícia de que a infecção havia retornado no tecido cicatrizado,
e eu tive que fazer uma segunda cirurgia para cortar mais um pedaço do
osso. Consegui transformar essa notícia em algo positivo com a atitude de
“Ótimo! Isso está queimando os obstáculos de começar a traduzir meu
website para mais uma língua.

De acordo com os ensinamentos budistas, quanto mais positivo for aquilo


que você está tentando realizar, mais obstáculos surgirão para evitar que
isso aconteça. Portanto, vi todos esses acontecimentos como uma
situação maravilhosa que estava queimando obstáculos, e pedi aos
espíritos malignos: “Mandem mais obstáculos; joguem-nos a mim!
Fazendo isso, não me senti nem um pouco infeliz durante todo esse
período em que tudo quebrava e dava errado. Portanto, se você
realmente conseguir aplicar esse método de treinamento mental, ele de
fato funciona. Ao invés de olhar para a situação como sendo muito difícil,
horrível e deprimente, você muda sua atitude e olha como se fosse algo
maravilhoso.

Mandando Felicidade para Outros e Tirando Seu Sofrimento (Tonglen)


O próximo método que quero mencionar talvez seja o mais avançado e
difícil de todos. É a prática de tonglen, dar e receber. Quando estiver
vivendo uma situação difícil, como uma dor de dente, por exemplo, o
método é pensar “Que a dor de todas as pessoas as deixe e caia sobre
mim. Tomando para mim a dor de todas as pessoas, que ninguém nunca
mais tenha dor de dente.” Abrindo nossa mente e coração para todos os
seres e estando disposto a aceitar o sofrimento, superamos a tensão, o
medo e a infelicidade de ficar pensando “pobre de mim”. Com tonglen,
vamos além e pensamos, “eu vou dissolver toda sua dor e sofrimento e,
acessando a felicidade básica da minha mente, lhes enviarei essa
felicidade”.

Agora, você tem que ter muito cuidado para não adotar a pose de mártir,
“Eu sofrerei por você”, o que, em certo sentido, é um engrandecimento do
ego. Tenho de confessar que não sou muito bom nesse método. Para
executá-lo com sinceridade é necessário uma tremenda coragem, mas
recentemente eu tentei.

Mencionei que tive que fazer uma segunda cirurgia no maxilar, e tive que
ficar acordado durante a cirurgia. É realmente “maravilhoso”! Eles cortam
a gengiva de todo um lado da boca, descolam-na, pegam um aparelho que
parece uma serra elétrica e cortam um pedaço do osso, uma pontinha da
raiz do dente e o tecido envolta. A forma como isso é feito é quase
medieval. Na primeira cirurgia, eu realmente achei tudo o que eles
estavam fazendo muito, mas muito interessante. De fato não foi muito
doloroso, porque a anestesia foi muito boa, apesar de precisar de uma
nova dose na metade da cirurgia. Mas na segunda vez, a infecção era
muito maior e, quando você tem uma infecção, a novocaína não funciona
naquela área, portanto foi extremamente dolorosa.

Eu tentei o método que também é usado no mahamudra — é só uma


sensação, nada de mais. Quer você faça cócegas em sua mão, ou belisque,
ou arranhe, ou corte, é apenas uma sensação física, nada mais, portanto
não trate como se fosse uma grande coisa. Isso funcionou até certo ponto,
mas então me lembrei do tonglen. Nessa época, no Tibete, havia uma
quantidade especialmente grande de perseguições e torturas e,
comparado a isso, o que eu estava experimentando não era nada — era
mínimo. Duraria dois minutos e então estaria terminado.

Portanto, ao invés de pensar, “Pobre de mim, estou sofrendo”, expandi


minha atitude e pensei em todas as pessoas no Tibete “O sofrimento delas
é muito maior que esse pequeno sofrimento que estou tendo”, e isso
colocou a situação em uma perspectiva totalmente diferente. Então
pensei, “Que todo o sofrimento e dor dessas pessoas sejam absorvidos
pela dor no meu maxilar, e que, ficando calmo e feliz , eu consiga lhes dar
paz mental”.

Apesar de certamente não ter feito isso 100% correto, me ajudou muito a
lidar com a situação. Se você fizer da maneira correta, realmente vai
querer sentir a dor alheia e que ela aumente a sua dor. Honestamente
falando, é uma prática muito avançada, se fizermos com sinceridade. Você
pode dizer que faz, mas isso não significa nada. Realmente querer que
isso aconteça é algo muito diferente. Mas pelo menos a sensação de sugar
o sofrimento alheio e ser o suficiente para aliviá-lo— pelo menos nesse
nível, é possível.

Mas não devemos confundir isso com a prática verdadeira. A prática


verdadeira é muito mais radical, porque o estado mental que você
desenvolve, que usa, é de, ao invés de lutar contra a dor, aceitá-la
voluntariamente, confiante de que pode lidar com ela. Se você for capaz
de fazer isso na escala do sofrimento de todos os seres, é claro que terá a
autoconfiança para aceitar e lidar com a própria dor, e não lutar contra
ela ou surtar. Portanto, não é um método mágico; mas se você analisar
bem o que acontece, faz muito sentido.

Conclusão

Esses, portanto, são alguns dos métodos usados no treinamento mental,


lojong, para superarmos o auto-apreço e nos preocuparmos
principalmente com os outros. Independente do nosso nível de
motivação, tal mudança de atitude é muito útil. A transformação que vem
disso é a habilidade de pensar e realmente sentir que “Não importa a
adversidade ou dificuldade que surja, não ficarei pensando ‘pobre de
mim’ e deixando que isso me machuque. Não deixarei que isso me
deprima”. Ao invés, desenvolvemos uma atitude geral na vida de que “Não
importa o que aconteça, eu posso transformar. Posso usar para
desenvolver minha consideração com os outros. Não será um obstáculo”.
Tal atitude lhe dará uma tremenda coragem.
As Fontes da Felicidade
Dr. Alexander Berzin

A fonte da felicidade está dentro de nós. Quando nossa mente está tranquila,
nossa visão é positiva, mas realista, e nossos pensamentos em relação aos
outros são amorosos, sentimos uma felicidade que nos sustenta com força e
coragem independente das dificuldades que enfrentamos. Conforme disse o
Buda, se queremos ser felizes, precisamos domar nossa mente.

Felicidade Comum: o Sofrimento da Mudança

Algumas pessoas têm caracterizado o budismo como uma religião


negativa que identifica todas as nossas experiências como sofrimento e
não reconhece absolutamente a felicidade. No entanto, esta é uma visão
desinformada. É verdade que o budismo fala de nossa felicidade comum e
costumeira como sendo o sofrimento da mudança. Isso significa que este
tipo de felicidade é insatisfatório: ela nunca dura e nunca temos o
suficiente. Não se trata da verdadeira felicidade. Por exemplo, se comer
sorvete fosse a verdadeira felicidade, então quanto mais comêssemos de
uma vez só, mais felizes seríamos. Porém, logo alcançamos um ponto no
qual a felicidade de comer sorvete se transforma em infelicidade e
sofrimento. O mesmo se aplica a ficar sentado ao sol ou decidir sentar na
sombra. É disso que falamos quando mencionamos o sofrimento da
mudança.

No entanto, o budismo oferece muitos métodos para superar os limites de


nossa felicidade comum, este sofrimento da mudança, para que possamos
alcançar o estado de alegria eterna de um buda. Ainda assim, apesar das
desvantagens de nossa felicidade comum, o budismo também explica as
fontes para alcançar este tipo de felicidade. O budismo oferece este
ensinamento porque um de seus axiomas básicos é que todo mundo quer
ser feliz e ninguém quer ser infeliz. Já que todos estamos buscando por
felicidade e, como seres comuns, não conhecemos nenhum tipo de
felicidade além daquele tipo comum e costumeiro, o budismo nos diz
como alcançá-la. Apenas quando este desejo e esta necessidade de
felicidade forem preenchidos no nível mais básico de felicidade comum,
poderemos então buscar níveis mais profundos e satisfatórios de
felicidade com práticas espirituais mais avançadas.
Infelizmente, no entanto, como o grande mestre indiano Shantideva
escreveu em “Engajar-se no Comportamento de um Boddhisattva” I.28
(sPyod-‘jug, sct. Bodhicharyavatara):

Apesar de ter uma mente que deseja evitar sofrimento, eles se


precipitam para o sofrimento. Embora desejem a felicidade, ainda
assim, por ingenuidade, eles destroem a própria felicidade como se
fosse um inimigo.

Em outras palavras, embora desejemos a felicidade, somos ingênuos no


que diz respeito às suas fontes e assim, ao invés de criarmos mais
felicidade para nós mesmos, criamos apenas mais infelicidade e
sofrimento.

A Felicidade é um Sentimento

Embora haja muitos tipos de felicidade, aqui vamos focar nossa atenção
na felicidade comum. Para entender as suas fontes, primeiro precisamos
ficar claros em relação ao que significa “felicidade”. O que é esta felicidade
(bde-ba, sct. sukha) que todos nós queremos? De acordo com a análise
budista, a felicidade é um fator mental – em outras palavras, trata-se de
um tipo de atividade mental do qual temos consciência de um objeto de
uma certa forma. É uma seção de um fator mental mais vasto chamado
“sentimento” (tshor-ba, sct. vedana), que cobre um espectro que abrange
um amplo leque que vai de totalmente feliz a totalmente infeliz.

Qual é a definição de “sentimento”? Sentimento é o fator mental que está


tendo a natureza da experiência (myong-ba). Trata-se da atividade mental
da experiência de um objeto ou de uma situação de uma forma que
realmente faz com que ela seja uma experiência daquele objeto ou
daquela situação. Sem um sentimento que esteja em algum ponto do
espectro entre felicidade e infelicidade, nós não realmente fazemos a
experiência de um objeto ou de uma situação. Um computador recebe e
processa dados, mas como um computador não realmente se sente feliz
ou infeliz ao fazer isso, um computador não faz a experiência dos dados.
Esta é a diferença entre um computador e a mente.

Sentir um nível de felicidade ou infelicidade acompanha ou a cognição de


um objeto sensorial – a visão, o som, o cheiro, o sabor ou a sensação física
como prazer ou dor – ou a cognição de um objeto mental quando se pensa
algo. Não tem que ser nem dramático nem extremo. Pode ser um nível
bem reduzido. Na verdade, algum nível de sentimento de felicidade ou
infelicidade acompanha cada momento de nossas vidas – até mesmo
quando estamos profundamente adormecidos sem sonhos, fazemos a
experiência disso com um sentimento neutro.

A Definição da Felicidade

O budismo oferece duas definições de felicidade. Uma é definida em


termos de nossa relação com um objeto, enquanto a outra é definida em
termos de nossa relação com o estado mental do próprio sentimento.

 A primeira define a felicidade como fazer a experiência de algo de uma


forma satisfatória, baseado na crença que isso nos beneficia,
independente de realmente ser assim ou não. A infelicidade é a
experiência de algo de uma forma insatisfatória e atormentada.
Fazemos a experiência de algo de forma neutra quando não é nem de
uma forma satisfatória nem de uma forma atormentada.
 A segunda define a felicidade como o sentimento que, quando ele
acaba, queremos encontrá-lo de novo. A infelicidade é aquele
sentimento que, quando ele surge, queremos que ele se vá. Enquanto
um sentimento neutro é aquele sentimento que, quando surge ou
acaba, não temos nenhum dos dois desejos.

Ambas as definições estão relacionadas. Quando fazemos a experiência de


algo de uma forma satisfatória, a forma como fazemos a experiência do
objeto é que o objeto, literalmente, “surge na nossa mente” (yid-du ‘ong-
ba, sct. manapa) de uma forma prazerosa. Aceitamos o objeto e ele
permanece confortavelmente como objeto da nossa atenção. Isso implica
em sentirmos que a nossa experiência do objeto é benéfica para nós: ela
nos faz feliz; nos dá uma sensação boa. Por isso, queremos que o benefício
desta experiência continue e, se ele acabar, vamos querer que volte. De
forma coloquial, diríamos que desfrutamos do objeto e da experiência
que ele nos proporciona.

Quando fazemos a experiência de um objeto de forma atormentada, esta


experiência infeliz do objeto, literalmente, “não surge na nossa mente”
(yid-du ma-‘ong-ba, sct. amanapa) de uma forma agradável. Não
aceitamos o objeto e ele não permanece como objeto de nossa atenção de
uma forma confortável. Sentimos que a nossa experiência do objeto não
nos beneficia e, na verdade, nos machuca. Queremos que pare. De forma
coloquial, diríamos que não desfrutamos do objeto nem da experiência
que ele nos proporciona.
Exagerar as Qualidades de um Objeto

O que significa sentir-se confortável com um objeto? Quando nos


sentimos confortáveis com um objeto, nós o aceitamos tal qual ele é, sem
ingenuidade, e sem exagerar ou negar suas boas qualidades nem suas
falhas. Este ponto nos traz para a discussão sobre as emoções
perturbadoras (nyon-rmongs, sct. klesha; emoções aflitivas) e a relação
delas com o fato de fazermos a experiência de um objeto com felicidade
ou infelicidade.

Um conjunto de emoções perturbadoras é desejo, apego e cobiça. Com


esses três, exageramos as boas qualidades de um objeto. Com o desejo,
queremos obter o objeto, se ainda não o temos. Com o apego, não
queremos perde-lo, quando o temos; e com a cobiça, queremos mais,
mesmo se já o temos. Com essas emoções perturbadoras, tendemos a
ignorar as falhas do objeto. Não se trata de estados felizes da mente, já
que não achamos que o objeto seja satisfatório. Isso quer dizer que não
estamos satisfeitos com o objeto. Não o aceitamos pelo que ele é.

Por exemplo, quando vemos a nossa namorada ou o nosso namorado, a


quem somos muito apegados, fazemos talvez a experiência deste
momento com felicidade. Estamos satisfeitos ao ver a pessoa; isso nos
satisfaz. No entanto, assim que o nosso apego surge, exageramos as boas
qualidades da pessoa, de estar com ele ou ela, e exageramos as qualidades
negativas de não estarmos com essa pessoa, e então nós nos sentimos
insatisfeitos ou infelizes. Não aceitamos a situação de ver a pessoa
somente agora e apenas desfrutar do momento, mas queremos mais e
tememos que ele ou ela vá embora. Por conseguinte, de repente, fazemos
agora a experiência de ver nossos entes amados com insatisfação,
inquietação e infelicidade.

Outro conjunto de emoções perturbadoras é repulsa, raiva e ódio. Com


estas, exageramos as falhas ou qualidades negativas do objeto e
queremos evita-lo, se não o temos; queremos nos livrar dele se o temos; e
quando acaba, não queremos que se repita. Essas três emoções
perturbadoras geralmente são mescladas a medo. Elas tampouco são
estados felizes da mente, já que não estamos satisfeitos com o objeto. Não
o aceitamos pelo que ele é.

Por exemplo, podemos estar tratando um canal no dentista. O objeto de


nossa experiência é uma sensação física de dor. Mas se o aceitarmos pelo
que ele é, sem exagerar suas qualidades negativas, não ficaremos infelizes
durante o procedimento. Poderíamos ter um sentimento neutro em
relação a como fazemos a experiência da dor: nós a aceitamos pelo tempo
de duração do procedimento, e assim não rezamos para que acabe
rapidamente; e quando o dentista parar de perfurar, não desejamos que
ele ou ela perfure mais. Temos equanimidade em relação à dor da
perfuração – nem repulsa, nem atração nem ingenuidade. De fato,
durante o procedimento, podemos até fazer a experiência da felicidade, se
focarmos no pensamento que estamos evitando futuras dores nos dentes.

Observem que estar felizes ou satisfeitos com algo não impede que
queiramos mais ou menos de algo, baseados na necessidade. Isso não nos
torna inativos de forma que nunca tentamos melhorar as coisas ou a nós
mesmos ou as situações em nossas vidas. Por exemplo, podemos aceitar,
ficar satisfeitos e, por conseguinte, felizes com o progresso que fizemos
na realização de um projeto ou na recuperação de uma cirurgia. Até
mesmo, baseados na necessidade, podemos ainda assim querer continuar
a progredir sem estarmos infelizes com aquilo que realizamos até então.
O mesmo se aplica com a quantidade de comida em nosso prato ou a
quantidade de dinheiro que temos no banco, se de fato for a realidade que
não temos suficiente e precisamos de mais. Sem exagerarmos os aspectos
negativos de não termos comida suficiente para comer ou dinheiro no
banco, nem negarmos os benefícios de ter mais, podemos nos esforçar
para conseguir obter mais comida ou dinheiro, sem ficar infelizes em
relação a isso. Se formos bem-sucedidos, tudo bem; se falharmos, tudo
bem também, vamos conseguir de alguma maneira. Continuaremos a
tentar. O mais importante é que continuamos a tentar obter mais sem as
divagações mentais ocasionadas pelas expectativas por sucesso ou pelas
preocupações em relação ao fracasso.

Shantideva descreveu isso bem em seu capítulo sobre paciência (VI.10):

Se pode ser remediado, por que ficar de mau humor em relação


a isso? E se não pode ser remediado, de que adianta ficar de
mau humor?

Comportamento Construtivo como a Fonte Principal de Felicidade

A longo prazo, a causa principal da felicidade é o comportamento


construtivo. Isso significa evitar agir, falar, ou pensar sob a influência de
emoções perturbadoras como desejo, apego, cobiça, repulsa, raiva,
ingenuidade, e assim por diante, sem se preocupar com o efeito a longo
prazo de nosso comportamento em nós e nos outros. Ao invés disso,
simplesmente fazendo. Por exemplo, com o desejo, exageramos as boas
qualidades de um objeto em uma loja, ignoramos as consequências legais,
e o roubamos. Com raiva, exageramos as qualidades negativas de algo que
o nosso/a parceiro/a nos disse e, ignorando o efeito que isso terá em
nosso relacionamento, gritamos com ele ou ela e dizemos palavras cruéis.

Agir, falar e pensar evitando estar sob a influência de emoções


perturbadoras desenvolve o hábito de evitar estar sob tal influência no
futuro. Como resultado, se uma emoção perturbadora surgir no futuro,
não agiremos baseados nela e, eventualmente, a força da emoção
perturbadora diminuirá. Com o tempo, a emoção perturbadora surgirá
cada vez menos. Por outro lado, quanto mais agirmos baseados nas
emoções perturbadoras, mais elas surgirão no futuro e mais fortes serão.

Como nós vimos, quando fazemos a experiência de um objeto com


felicidade, fazemos isso sem as emoções perturbadoras da ingenuidade,
do desejo, do apego, da cobiça, da repulsa e da raiva. A nossa experiência
do objeto é baseada na aceitação de sua natureza atual, tal qual ela é, sem
exagerar ou negar seus pontos bons ou ruins. Esta forma de fazer a
experiência das coisas, então, vem do hábito de um comportamento
construtivo com o qual agimos, falamos e pensamos, baseados na
aceitação da natureza do que são as pessoas, coisas ou situações, sem
exagerar ou negar seus pontos bons ou ruins.

As Circunstâncias que Fazem Amadurecer os Potenciais de


Felicidade.

A nossa forma de fazer a experiência de objetos ou pensamentos – com


felicidade ou infelicidade – não é, então, determinada pelo objeto ou
pensamento em si. Como vimos, se com o nosso comportamento prévio, a
longo prazo, desenvolvemos o hábito de evitar exagerar ou negar os
aspectos positivos ou negativos dessas coisas, podemos fazer a
experiência até mesmo da dor de fazer um tratamento de canal em um
estado mental feliz. Voltando à definição da felicidade, fazemos a
experiência do procedimento de uma forma satisfatória, baseados na
crença de que ele nos beneficia.

Embora possa ser que tenhamos desenvolvido o hábito de evitar agir,


falar, ou pensar sob a influência de emoções perturbadoras e, assim,
desenvolvemos o potencial de fazer a experiência de objetos e
pensamentos com felicidade, ainda assim certas circunstâncias são
necessárias para que este potencial amadureça como uma experiência de
felicidade. Como vimos, o objeto de nossa experiência não
necessariamente determina se fazemos a experiência dele com felicidade
ou infelicidade. Ao invés disso, fazer a experiência de um objeto com
felicidade depende mais de nossa postura ao aceitar a realidade do que é
o objeto, independentemente do que ele for – a sensação física dolorosa
de um tratamento de canal ou a visão de um ente amado. Portanto, a
nossa postura, nosso estado mental, é de suma importância para
determinar se em dado momento nos sentiremos felizes ou infelizes, não
importa qual for o objeto que estejamos vendo, ouvindo, cheirando,
provando, sentindo fisicamente, ou pensando.

Também vimos que quando aceitamos a realidade daquilo que é, e não


somos ingênuos em relação a isso, então não exageramos nem negamos
suas qualidades positivas ou negativas e, então, não fazemos a
experiência do objeto com desejo, cobiça, apego, repulsa ou raiva.
Portanto, o que ajuda e dá impulso ao amadurecimento da felicidade em
qualquer momento é estar livre da ingenuidade.

Ingenuidade

Em qualquer momento de infelicidade, a nossa ingenuidade (gti-mug,


sct. moha) não é necessariamente restrita a ser ingênuos sobre o objeto
de nossa experiência. A ingenuidade tem um âmbito muito mais vasto.
Pode também ser focada em nós mesmos. Quando fazemos a experiência
de um problema com grande infelicidade, então, com a ingenuidade,
temos a tendência a ficar fixados apenas em nós mesmos e pode até ser
que pensemos que somos os únicos que já fizeram a experiência deste
problema.

Vejam o exemplo de perder o emprego. A realidade é que há milhões de


pessoas no mundo que perderam seus empregos e agora estão
desempregadas. Podemos pensar sobre a nossa situação sem sermos
ingênuos sobre a impermanência, por exemplo. Nós nos lembramos que
todos os fenômenos que surgem de causas e circunstâncias serão
afetados por mais causas e circunstâncias e eventualmente acabarão. Isso
pode ser muito útil. Mas ainda mais efetivo é expandir mais o âmbito de
nosso pensamento para incluir não apenas o nosso problema, mas
também o problema se todos os outros ao perder seus trabalhos, se isso
ocorreu com eles. Precisamos pensar, “Este não é apenas meu problema;
trata-se do problema de um número enorme de pessoas. ” Não sou o
único que necessita de uma solução; todos os outros também precisam de
uma solução. ” De fato, esta é a realidade.

Com esta forma de pensar, sem ingenuidade, desenvolvemos compaixão


(snying-rje, sct. karuna) pelos outros, ao invés de chafurdar na
autopiedade. Nossas mentes não ficam mais, de uma forma estreita,
focadas apenas em nós mesmos, mas são bem mais abertas pensando em
outros que estão em uma situação semelhante. Com o desejo de ajuda-los
a superar seus problemas também, diminui a importância de nossos
próprios problemas individuais e desenvolvemos a coragem e força de
lidar com eles de uma forma objetiva. Certamente, não queremos perder
nosso emprego, mas com equanimidade aceitamos a realidade da
situação e, pensando nos outros, pode ser que fiquemos até mesmo felizes
com o pensamento de que agora temos a oportunidade de tentar ajuda-
los.

A Relação entre Compaixão e Felicidade

Então, a compaixão é um dos fatores-chave para desencadear os nossos


potenciais e fazer a experiência de um objeto ou uma situação com
felicidade. Mas como funciona isso? A compaixão é o desejo de que os
outros sejam livres de seu sofrimento e das causas de seu sofrimento, da
mesma forma que desejamos o mesmo para nós. No entanto, quando
focamos no sofrimento e na infelicidade alheia, naturalmente nos
sentimos tristes e não felizes. Ou talvez tenhamos sentimentos
bloqueados e não sintamos nada. Qualquer que seja o caso, não nos
sentimos felizes em relação ao seu sofrimento. Então, como é que a
compaixão gera um estado mental feliz?

Para entender isso, precisamos diferenciar sentimentos perturbadores


(zang-zing) de sentimentos não perturbadores (zang-zing med-pa). Aqui,
estou usando estes termos não com suas definições rígidas, mas de uma
forma mais coloquial e não técnica. A diferença é se o sentimento de
felicidade, infelicidade ou neutralidade está mesclado com ingenuidade e
confusão em relação ao sentimento em si.

Lembrem-se que quando diferenciamos a felicidade da infelicidade em


geral, a diferença é se somos ingênuos ou não em relação ao objeto de
nossa experiência. Aqui, mesmo se não exagerarmos nem negarmos as
qualidades de um objeto do qual fazemos a experiência com infelicidade,
por exemplo, pode ser que ainda transformemos aquele sentimento
infeliz em uma espécie de “coisa” sólida e realmente existente, uma
nuvem escura e pesada pairando sobre nossas cabeças. Depois,
exageramos as qualidades negativas do sentimento e imaginamos que ele
seja, por exemplo, “uma depressão terrível” e nos sentimos prisioneiros
dentro de nós mesmos. Neste caso, a ingenuidade é não aceitar o
sentimento infeliz pelo que ele é. Afinal, o sentimento de infelicidade é
algo que muda de um momento para o outro de acordo com as variações
de sua intensidade: não se trata de um tipo de objeto sólido e monolítico
que realmente existe por si só, não afetado pelo resto do mundo.
Podemos aplicar uma análise semelhante a quando fazemos a experiência
de não sentir nada ao pensar no sofrimento alheio. Neste caso, quando
exageramos a qualidade negativa de sentimentos de tristeza ou
infelicidade, temos medo de sentir e bloqueamos isso. Fazemos então a
experiência de um sentimento neutro, nem feliz nem infeliz. Mas também
exageramos este sentimento neutro, imaginando que seja algo de sólido,
como um grande “nada” sentado dentro de nós, impedindo que sintamos
qualquer coisa de forma sincera.

Para desenvolver compaixão, é importante não negar que as situações


difíceis dos outros são tristes, como talvez as nossas sejam, como por
exemplo perder o emprego. Seria pouco saudável ter medo de sentir esta
tristeza, bloqueá-la ou reprimi-la. Precisamos sentir esta tristeza, mas de
uma forma não perturbadora, para sermos capazes de ter empatia com o
sofrimento alheio, para desenvolver o desejo profundo e sincero que os
outros sejam livres disso, e tomar responsabilidade no que diz respeito à
ajuda-los a superar isso. Em suma, os conselhos budistas dizem: “Não
transforme o sentir-se infeliz em algo sólido, não faça um drama por
causa disso. ”

Aquietar a Mente

Para fazer a experiência do sentimento de tristeza de uma forma não


perturbadora, precisamos aquietar as nossas mentes de toda divagação e
embotamento mentais. Com a divagação mental, a nossa atenção voa para
pensamentos estranhos e perturbadores como, por exemplo,
pensamentos cheios de preocupação, dúvida, medo, ou pensamentos
cheios de expectativas em relação às coisas que desejamos que sejam
mais agradáveis. Com o embotamento mental, caímos em uma neblina
mental e, assim, ficamos desatentos em relação a tudo.

O budismo é rico em métodos para livrar nossos estados mentais de


divagação e embotamento mentais. Um dos métodos mais básicos é
aquietar-se focando em nossa respiração. Com o mínimo de divagação e
embotamento, as nossas mentes ficam tranquilas e serenas. Em tal
estado, podemos mais facilmente acalmar a nós mesmos como também a
qualquer exagero, repulsa ou indiferença em relação aos problemas e
sofrimentos alheios, e nossos sentimentos em relação a eles. Então, até se
inicialmente nos sentimos tristes, isso não é perturbador.

No entanto, eventualmente, à medida que a nossa mente relaxa e se


acalma mais, naturalmente sentimos um nível baixo de felicidade. Em um
estado tranquilo mental e emocional, a calidez mental e a felicidade da
mente se manifestam. Se chegamos a construir potenciais fortes por fazer
a experiência da felicidade e por termos nos engajados em um
comportamento construtivo, o nosso estado mental tranquilo ajuda e dá o
impulso para que estes também amadureçam.

Desenvolver Amor

Então, nós reforçamos esta felicidade com pensamentos de amor (byams-


pa, sct. maitri). Amor é o desejo de ser feliz e ter as causas da felicidade.
Tal desejo naturalmente resulta de uma empatia compassiva. Embora nos
sintamos tristes pela dor e pelo sofrimento alheio, ter este tipo de
sentimento é difícil enquanto desejamos de forma ativa que a pessoa seja
feliz. Quando paramos de pensar sobre nós mesmos e, ao invés disso,
focamos na felicidade de alguém, o nosso coração naturalmente se
aquece. Isso automaticamente nos traz um sentimento gentil de alegria e
pode desencadear ainda mais potenciais de felicidade que foram
desenvolvidos durante muito tempo por nosso comportamento
construtivo. Portanto, quando o amor é altruísta e sincero, uma felicidade
gentil e não perturbadora o acompanha e a nossa tristeza desaparece.
Exatamente como um pai ou uma mãe que, tendo uma dor de cabeça,
esquece a própria dor ao reconfortar seu filho doente, da mesma forma, a
tristeza que sentimos em relação ao infortúnio alheio desaparece ao
irradiarmos pensamentos de amor.

Conclusão

Em suma, a longo prazo, a fonte mais básica da felicidade, de acordo com


o budismo, é desenvolver o hábito de evitar agir, falar, ou pensar de
forma destrutiva sob a influência de emoções perturbadoras e atitudes
como desejo, a cobiça, o apego, a repulsa e a raiva, estando todas elas
enraizadas na ingenuidade. Tal comportamento construtivo desenvolve
potenciais em nossos continuums mentais para fazermos a experiência da
felicidade no futuro. Podemos desencadear o amadurecimento desses
potenciais não exagerando nem negando as boas ou más qualidades da
nossa experiência de quaisquer objetos ou situações nem de qualquer
nível de felicidade ou infelicidade com o qual estivermos fazendo essa
experiência – independente de qual for o objeto ou a situação. Sem
ingenuidade, e assim sendo, sem apego, repulsa ou indiferença,
precisamos então aquietar as nossas mentes de suas preocupações ou
expectativas. Neste estado mental sereno e tranquilo, já sentiremos um
nível baixo de felicidade e desencadearemos potenciais que talvez
tenhamos de sentir uma felicidade ainda maior. Nós então expandimos
nossas mentes, voltando-a para os problemas alheios e para o fato de que
talvez estejam em situações até mesmo piores que a nossa. Paramos de
pensar em apenas nós mesmos. Pensamos como seria maravilhoso se
todos os outros pudessem ser livres de seu sofrimento, e como seria
maravilhoso se pudéssemos ajuda-los a realizar isso. Esta forte
compaixão naturalmente leva a um sentimento de amor – ao desejo de
que eles sejam felizes. Pensar na felicidade alheia desencadeia ainda mais
o amadurecimento de nossos próprios potenciais de felicidade. Com esses
pensamentos de compaixão e amor, podemos então voltar nossos
pensamentos para os budas ou quaisquer grandes figuras humanitárias.
Pensando no exemplo deles, ganhamos inspiração (byin-gyis rlabs,
sct. adhisthana) para assumir uma certa responsabilidade e realmente
tentar ajudar os outros. Isso nos ajuda a ganhar a força e a coragem de
enfrentar não apenas os problemas alheios, mas também os nossos
próprios problemas – novamente, sem exagerá-los e sem preocupações
em relação a possíveis fracassos ou expectativas de sucesso.
Lidando com Emoções Perturbadoras
Emoções como raiva, ganância e apego perturbam a nossa paz de espírito e
nos levam a perder o controle. Com base em nossa própria confusão -
pensando que somos o centro do universo e tudo sempre deve ser como nós
queremos - reagimos ao nosso entorno com frustração, apego e ansiedade. O
budismo oferece uma variedade de métodos para treinar as nossas mentes e
diminuir a força dessas atitudes perturbadoras.

O Que É uma Emoção Perturbadora?


Dr. Alexander Berzin

Quando as nossa mentes estão perturbadas pela raiva, por apego, egoísmo ou
cobiça, as nossas energias também ficam perturbadas. Nós nos sentimos
inquietos, nossas mentes não estão calmas, nossos pensamentos disparam.
Dizemos e fazemos coisas das quais nos arrependeremos mais tarde. Se
notarmos uma perturbação repentina em nossas mentes e energias, podemos
ter certeza que se trata do resultado de alguma emoção perturbadora. O
truque é percebê-la assim que ela aparece e aplicar algum estado mental
oposto, como amor e compaixão, para evitar os problemas que criaremos se
nos entregarmos à emoção problemática e agirmos de acordo com ela.

O que é uma emoção perturbadora?

Uma emoção perturbadora é definida como um estado mental que, quando nós o
desenvolvemos, ele nos leva a perder a nossa paz mental e o nosso autocontrole.

Por perdermos a nossa paz mental, ela é perturbadora; pois perturba a


nossa paz mental. Por ficarmos perturbados quando perdemos a nossa
paz mental, não estamos realmente claros em nossos pensamentos e
sentimentos. Por esta falta de clareza, perdemos um senso de
discriminação que é necessário para ter autocontrole. Precisamos ser
capazes de discriminar entre aquilo que é útil e o que não é útil; o que é
apropriado e o que não o é em situações específicas.
Emoções Perturbadoras Também Podem Acompanhar Estados
Mentais Construtivos

Exemplos de emoções perturbadoras seriam, por exemplo, apego ou


desejo intenso, raiva, ciúme, orgulho, arrogância, e assim por diante.
Algumas dessas emoções perturbadoras podem nos levar a agir de forma
destrutiva, mas isso não é necessariamente sempre o caso. Apego e desejo
intenso, por exemplo, podem nos levar a agir de forma destrutiva – sair e
roubar algo, por exemplo. Mas também podemos ter o anseio de ser
amados. Quando estamos apegados a isso, ajudamos os outros, para ser
amados por eles. Ajudar os outros não é destrutivo; é algo construtivo,
mas há uma emoção perturbadora por trás: “Quero ser amado, então
imploro que você também me ame.”

Ou considerem o caso da raiva. A raiva pode nos levar a agir de forma


destrutiva, sair e machucar alguém ou até mesmo matá-lo, por estarmos
com muita raiva. Então, este seria um comportamento destrutivo. Mas
digamos que estamos com raiva em relação a uma injustiça de certo
sistema ou certa situação – e temos tanta raiva que realmente fazemos
algo para mudar as coisas. Não tem que ser necessariamente algo
violento. A questão aqui é que, mesmo fazendo algo de construtivo ou
positivo, estamos motivados por uma emoção perturbadora. Não temos
paz mental. Por não termos paz mental, quando estamos realizando a
ação positiva nossos sentimentos e mentes não estão muito claros e
nosso estado emocional não é muito estável. Nesses casos, então, com
desejo intenso ou raiva, queremos que a outra pessoa nos ame ou
queremos que uma injustiça cesse. Esses não são estados mentais ou
emocionais estáveis. Por não serem estados mentais ou emocionais
claros, não estamos pensando de forma muito clara sobre o que fazer e
como realmente realizar a nossa intenção. Como resultado, não temos
autocontrole. Por exemplo, pode ser que tentemos ajudar alguém a fazer
algo, mas uma forma melhor de ajudar pode ser deixar que façam
sozinhos. Digamos que temos uma filha adulta e queremos ajudá-la a
cozinhar ou tomar conta da casa ou dos filhos dela. Bem, muitas vezes
isso pode ser uma interferência. Pode ser que a nossa filha não realmente
goste que lhe digamos como cozinhar ou educar seus filhos. Mas
queremos ser amados e úteis, então nós forçamos a barra para ela aceitar
nossa ajuda. Estamos fazendo algo de construtivo, mas ao fazer isso,
perdemos o autocontrole que nos levaria a pensar: “É melhor manter a
minha boca fechada e não dar minha opinião nem oferecer ajuda.”

Até mesmo se nós ajudarmos em uma situação na qual é adequado ajudar


o outro, não estamos relaxados em relação a isso, porque pode ser que
estejamos esperando algo em troca. Queremos ser amados, queremos que
os outros precisem de nós, queremos ser apreciados. Com este tipo de
desejo intenso como condição em nossas mentes, se a nossa filha não
reagir da forma que nós queremos que ela reaja, ficaremos bem
chateados.

O mecanismo das emoções perturbadoras que nos leva a perder a paz


mental e o autocontrole fica ainda bem mais óbvio quando estamos
lutando contra a injustiça. Se ficarmos realmente irritados por isso, então
nos sentiremos bem perturbados. Se formos agir com esse tipo de
sentimentos, então geralmente não conseguiremos pensar com clareza no
que temos que fazer. Muitas vezes não fazemos o que há de melhor a ser
feito para trazer as mudanças que desejamos.

Em resumo, se agirmos de forma destrutiva ou fizermos algo construtivo,


e se aquilo que estivermos fazendo for motivado e acompanhado por uma
emoção perturbadora, o nosso comportamento causará problemas.
Embora não possamos prever exatamente se vai ou não causar problemas
para os outros, primeiramente isso causará problemas para nós. Os
problemas não são necessariamente coisas que ocorrem imediatamente;
trata-se de problemas a longo prazo. É assim porque, ao agir sob a
influência de emoções perturbadoras, desenvolvemos hábitos de agir de
formas perturbadas que se repetem de novo e de novo. Desta maneira, o
nosso comportamento compulsivo baseado em emoções perturbadoras
desenvolve um conjunto amplo de formas problemáticas de agir. Nunca
temos paz mental.

Um exemplo claro disso é estar motivados a ser úteis e fazer coisas boas
para os outros, porque desejamos nos sentir amados e apreciados. Por
detrás disso, somos basicamente inseguros. Quanto mais continuamos
agindo com este tipo de motivação, ela nunca nos satisfaz, nunca
sentimos: “Okay, agora eu sou amado. Agora já é bastante, não preciso de
mais do que isso.” Nunca sentimos isso. Então, o nosso comportamento
apenas reforça e fortalece o hábito de sentir de forma compulsiva: “Tenho
que me sentir amado, tenho que me sentir importante e apreciado”.
Apenas damos mais e mais com a esperança de ser amados, mas sempre
nos sentimos frustrados. Estamos frustrados porque, até mesmo se
alguém nos agradece, nós pensamos: “Ele não está sendo sincero.” Este
tipo de coisa. E isso apenas piora cada vez mais, pois a síndrome se repete
e se repete e se repete. O nome disso é “samsara”. Trata-se, a propósito,
de uma situação problemática incontrolavelmente recorrente.

Não é tão difícil reconhecer este tipo de síndrome quando a emoção


perturbadora faz com que ajamos de forma negativa ou destrutiva. Por
exemplo, pode ser que sempre estejamos irritados. Por estarmos
irritados e ficarmos com raiva com as menores coisas, em nossos
relacionamentos sempre falamos de forma dura ou dizemos coisas cruéis.
É óbvio que ninguém gosta da gente e as pessoas não querem estar muito
conosco, e isso causa muitos problemas em nossos relacionamentos. É
bastante fácil reconhecer quando isso acontece. Mas não é tão fácil
reconhecer quando a emoção perturbadora está por detrás de nossas
ações positivas. No entanto, temos que conseguir reconhece-la em ambas
as situações.

Como Reconhecer Quando Estamos sob a Influência de Emoções,


Atitudes ou Estados Mentais Perturbadores

A questão, então, é como reconhecer que estamos agindo sob a influência


de emoções ou atitudes perturbadoras? Não tem que ser apenas uma
emoção; pode ser também uma atitude em relação à vida ou a nós
mesmos. Para isso, temos que ser um pouco sensíveis e introspectivos e
perceber como nós nos sentimos internamente. Para fazer isso, a
definição do que é uma emoção ou uma atitude perturbadoras é bastante
útil: elas fazem com que percamos a nossa paz mental e nosso
autocontrole.

Então, quando estamos a ponto de dizer ou fazer algo, se nós nos sentimos
um pouco nervosos e não completamente relaxados, isso é um sinal de que
alguma emoção perturbadora está presente.

Pode ser inconsciente e muitas vezes o é, mas há alguma emoção


perturbadora por detrás disso.

Digamos que estamos tentando explicar algo a alguém. Se percebermos


que há um pouco de inquietação em nosso ventre enquanto estamos
falando com a pessoa, trata-se de uma boa indicação de que pode haver
um pouco de orgulho por detrás disso, por exemplo. Pode ser que
sintamos: “Eu sou tão esperto, pois estou entendendo a coisa. Vou ajudar
você a entender.” Pode ser que queiramos sinceramente ajudar o outro ao
explicar a ele, mas se nos sentimos um pouco inquietos em nosso ventre,
há um pouco de orgulho ali. Isso acontece especialmente quando falamos
sobre nossas próprias realizações ou as nossas boas qualidades. Muitas
vezes, fazemos a experiência disso com um pouco de mal-estar.

Ou considerem o caso de uma atitude perturbadora. Digamos a atitude


que “todos deveriam prestar atenção em mim” que muitas vezes temos.
Não gostamos de ser ignorados – ninguém gosta de ser ignorado – então,
sentimos: “as pessoas deveriam prestar atenção em mim e escutar o que
estou dizendo.” Bem, isso pode ser acompanhado de algum nervosismo
interno, especialmente se as pessoas não estiverem prestando atenção
em nós. Por que elas deveriam prestar atenção em nós? Se pensarmos
sobre isso, não há realmente uma boa razão. A palavra em sânscrito
“klesha” – “nyon-mong” em tibetano – é um termo muito difícil que estou
traduzindo aqui como “emoção perturbadora” ou “atitude perturbadora”.
É difícil porque há alguns estados que não realmente cabem na categoria
de emoção ou atitude. Por exemplo, a ingenuidade. Podemos ser muito
ingênuos sobre o efeito de nosso comportamento nos outros ou em nós
mesmos. Digamos, por exemplo, que somos ingênuos quando alguém não
está se sentindo bem ou está chateado. Nessas situações, com certeza
podemos ser ingênuos em relação a qual será o resultado de dizer
qualquer coisa a essa pessoa; pode ser que ela fique muito irritada
conosco, apesar das nossas boas intenções. Quando temos este tipo de
estado mental perturbado, vamos chamá-lo assim, não necessariamente
nos sentimos inquietos internamente. Mas como vimos, quando
perdemos nossa paz mental, a nossa mente fica pouco clara. Assim sendo,
quando somos ingênuos, as nossas mentes não estão realmente claras;
estamos em nosso pequeno mundo. Perdemos o autocontrole. Por
estarmos em nosso pequeno mundo, não discriminamos entre aquilo que
é útil e apropriado em uma situação e o que não é. Por causa da falta de
discriminação, não agimos de forma apropriada e sensível. Em outras
palavras, não temos o autocontrole para ser capazes de agir de forma
apropriada e nos impedir de fazer algo que não seja apropriado. Desta
forma, a ingenuidade cabe na definição de um estado mental perturbado,
embora seja difícil pensar nela como em uma emoção ou atitude. Como eu
disse, “klesha” é um termo muito difícil de traduzir de forma realmente
adequada.

Emoções Não-Perturbadoras

Em sânscrito e tibetano não há palavra para “emoções”. Esses idiomas


falam de fatores mentais que são os vários componentes que compõem
cada momento de nosso estado mental. Elas dividem esses fatores
mentais em perturbadores e não-perturbadores, e construtivos e
destrutivos. Esses dois pares não se sobrepõem completamente. Além
disso, há fatores mentais que não caem em nenhuma dessas categorias.
Então, em termos daquilo que no ocidente nós chamamos de “emoções”,
há algumas que são perturbadoras e algumas que não são. Não é
absolutamente o caso que no budismo estamos tentando nos livrar de
todas as emoções. Apenas queremos nos livrar daquelas que são
perturbadoras. Isto é feito em dois passos: o primeiro é não ser
controlado por elas e o segundo é livrar-se delas para que elas não
possam nem mesmo surgir.

O que seria uma emoção não-perturbadora? Bem, pode ser que pensemos
que “amor” é uma emoção não-perturbadora, ou “compaixão” ou
“paciência”. Mas quando analisamos essas palavras que temos em nossos
idiomas europeus, descobrimos que cada uma dessas emoções poderia
ter uma variante perturbadora e outra não-perturbadora. Então, temos
que ser um pouco cuidadosos. Se o amor é um tipo de sentimento no qual
sentimos “Eu te amo tanto, eu preciso de você, nunca me deixe!” então
este tipo de amor é realmente um estado mental perturbado. É
perturbado porque se a pessoa não nos ama ou não precisa de nós,
ficamos muito chateados. Ficamos com raiva e de repente a nossa emoção
muda: “eu não te amo mais”.

Assim sendo, quando analisamos um estado mental, embora possa ser


que acreditemos que ele é um estado emocional, e que podemos chama-lo
de “amor”, na verdade este estado mental é uma mistura de muitos
fatores mentais. Não apenas fazemos a experiência de uma emoção
sozinha. Nossos estados emocionais são sempre uma mistura; eles têm
muitos componentes diferentes. O tipo de amor que nos faz sentir “eu te
amo e não posso viver sem você” é obviamente um tipo de dependência, e
isso é bastante perturbador. Mas há um amor não-perturbador, que é
apenas o desejo que o outro seja feliz e tenha as causas da felicidade,
independente do que ele fizer. Não esperamos nada em retorno.

Por exemplo, pode ser que tenhamos este tipo de amor não-perturbador
por nossos filhos. Não realmente esperamos nada em troca. Bem,
obviamente alguns pais esperam. Mas geralmente, não importa o que a
criança faz, nós ainda a amamos. Queremos que ela seja feliz. No entanto,
muitas vezes, isto está mesclado com outro estado perturbador, que faz
com que queiramos fazer essas crianças felizes. Se fazemos algo com a
intenção de fazer nosso filho feliz, como levá-lo a um show de marionetes,
e isso não funciona, não faz com que ele fique feliz, pois prefere jogar com
um joguinho de computador, nós nos sentimos muito mal. Nós nos
sentimos mal porque queríamos ser a causa da felicidade de nosso filho, e
não queríamos que fosse o computador. Mas ainda assim chamamos o
sentimento que temos por ele de “amor”. “Eu quero que você seja feliz,
tentarei fazer você feliz, mas quero ser a pessoa mais importante de sua
vida que esteja fazendo isso.”

Então, a questão nesta discussão elaborada é que realmente precisamos


olhar com muito cuidado para nossos estados emocionais e não ficar tão
presos às palavras que usamos para rotular as diferentes emoções.
Precisamos realmente investigar para descobrir quais aspectos de nosso
estado mental são perturbadores e nos levam a perder a paz mental, a
nossa clareza, e o autocontrole. É com essas coisas que precisamos
trabalhar.

Falta de Consciência como Causa Subjacente das Emoções


Perturbadoras.

Se quisermos nos libertar desses estados mentais, das emoções e atitudes


perturbadores, precisamos ter acesso à sua causa. Se pudermos remover
a causa subjacente a elas, então seremos capazes de nos libertar delas.
Não se trata apenas de uma questão de nos livrar de emoções
perturbadoras que estão causando nossos problemas; precisamos
realmente ir à raiz da emoção perturbadora e nos livrar disso.

O que então, é a causa mais profunda desses estados perturbadores da


mente? Aquilo que achamos é frequentemente traduzido como
“ignorância” ou, eu prefiro, falta de consciência. Não temos consciência de
algo e simplesmente não sabemos. A ignorância pode soar como se
fôssemos burros. Não se trata de sermos burros. Simplesmente não
sabemos, ou pode ser que estejamos confusos: entendemos algo de forma
incorreta.

O que é que nos confunde ou do que é que não temos consciência?


Basicamente, trata-se do efeito de nosso comportamento e das situações
conectadas a ele. Temos raiva ou estamos apegados ou chateados e isso
faz com que ajamos de maneira compulsiva, baseados em hábitos e
tendências prévias. Disso basicamente trata o karma: a compulsão de agir
de uma forma que é baseada em uma emoção ou atitude perturbadora, e
fazer isso sem autocontrole. Subjacente a este comportamento
compulsivo está a falta de consciência: não sabíamos qual seria o efeito
do que fizemos ou falamos. Ou estávamos confusos: pensávamos que
roubar algo nos faria feliz, mas não foi esse o caso. Ou pensei que ajudar
você me faria sentir amado e importante; mas não fez. Então, não
sabíamos qual seria o efeito. “Eu não sabia que, se dissesse aquilo, eu te
machucaria.” Ou estamos confusos em relação a isso. “Pensei que ajudaria
e não ajudou.” “Pensei que isso te faria feliz e não fez.” Ou em relação às
situações: “Eu não sabia que você estava ocupado.” Ou “Eu não sabia que
você era casado.”. Ou pode ser que estejamos confusos: “Pensei que você
tivesse muito tempo.” Mas não tinha. “Pensei que você fosse solteiro,
desimpedido, então tentei ter uma relação romântica com você.” O que
não foi apropriado. Então, novamente, não estamos conscientes em
relação às situações: ou não sabemos a respeito delas ou estamos
confusos em relação a elas. Nós as conhecemos de forma errada.

Entretanto, realmente a falta de consciência é a raiz de nossas ações


compulsivas. Mas não é tão óbvio que ela também é a raiz das emoções
perturbadoras e que as emoções perturbadoras são muito conectadas
com o comportamento compulsivo. Então, temos que olhar com um
pouco mais de cuidado para esses pontos.
Raiva: Lidando com Emoções
Perturbadoras
Dr. Alexander Berzin

Raiva é uma forte aversão à algo ou alguém que não gostamos ou acreditamos
ser uma ameaça para nós. Sendo uma emoção perturbadora, ela destrói nossa
paz de espírito e auto-controle. Através das várias práticas para
desenvolvermos paciência, podemos evitar a raiva e ter uma vida mais feliz.

Problemas na Vida

Quase todos nós sentimos que temos algum problema em nossas vidas.
Queremos ser felizes. Não queremos ter nenhum problema, mas
constantemente temos que enfrentar muitos problemas diferentes. Às
vezes nos deprimimos; encontramos dificuldades ou nos sentimos
frustrado no trabalho, com nossa posição social, nossas condições de vida,
situação de nossa família. Temos o problema de não conseguirmos o que
queremos. Queremos ser bem sucedidos. Queremos que só coisas boas
aconteçam com nossa família e negócios, mas não é sempre assim. Então,
quando temos problemas, ficamos infelizes. Algumas vezes coisas que não
queremos acontecem, como ficar doente ou fraco quando envelhecemos,
perder a audição ou visão. É indiscutível que ninguém quer que isso
aconteça.

Temos problemas no trabalho. Algumas vezes as coisas vão mal e nosso


negócio declina ou fracassa. Isso é claramente algo que não queremos que
aconteça, mas acontece de qualquer maneira. Às vezes coisas ruins
acontecem conosco, nos machucamos, acidentamos, ficamos doentes.
Essas coisas ficam acontecendo como problemas que enfrentamos.

Além disso, também nos defrontamos com muitos problemas emocionais


e psicológicos. Podem ser coisas que não nos sentimos a vontade de
discutir ou revelar aos outros. Mas no fundo sabemos que existem certas
coisas nos incomodam. Pode ser no que diz respeito às expectativas
quanto aos nossos filhos, preocupações ou ansiedades, coisas que nos
trazem muitas dificuldades. É o que chamamos “ problemas ou situações
incontrolavelmente recorrentes” em sânscrito samsara.
Problemas Incontrolavelmente Recorrentes são Samsara

Meu background e treinamento é de tradutor, e como tradutor eu viajei


pelo mundo a muitos países diferentes, traduzindo e também dando
palestras sobre budismo. Descobri que existem muitos mal entendidos no
que diz respeito ao budismo. Parecem ser, na maior parte dos casos,
devido às palavras inglesas que foram escolhidas para traduzir os termos
e idéias originais do budismo. Muitas dessas palavras foram escolhidas no
século passado por missionários vitorianos e tem conotações bastante
fortes que não são as conotações ou significados que as palavras originais
nas línguas asiáticas tinham. Por exemplo, temos falado sobre problemas,
palavra que geralmente é traduzida como “sofrimento”. Se falamos de
sofrimento, muitas pessoas desenvolvem a idéia de que o budismo é uma
religião muito pessimista, porque fala que a vida de todo mundo é cheia
de sofrimento. Parece dizer que não temos o direito de sermos felizes. Se
falarmos com alguém que está numa situação confortável, bem e rica, e
dissermos, “Sua vida é cheia de sofrimento”, a pessoa vai ficar na
defensiva. Ela pode argumentar dizendo: “Como assim? Eu tenho uma
filmadora, tenho um bom carro, uma boa família. Eu não estou sofrendo”.

Sua resposta é justificável por causa da palavra sofrimento, que é uma


palavra muito pesada. Se, ao invés disso, traduzirmos o mesmo conceito
budista como “problema”, e dizemos a alguém: “Não importa quem você
seja, quão rico seja, quantos filhos tenha, todos temos algum problema na
vida”, isso é algo que todos estão dispostos a aceitar. Portanto, eu vou
discutir essas explicações budistas da tradição tibetana com termos
ligeiramente diferentes daqueles que usados normalmente.

Problemas incontrolavelmente recorrentes são samsara. São situações


sobre as quais não temos nenhum controle e acontecem recorrentemente
– como, por exemplo, sempre nos frustrarmos ou sempre temos
preocupações e ansiedades. Agora, quais são as “verdadeiras causas”? O
Buda falou que não só que existem “problemas verdadeiros” que
enfrentamos, mas também que eles têm causas verdadeiras e que
podemos acabar com essas causas. Acabar com as causas, alcançar seu
“verdadeiro aniquilamento”, é seguir o “verdadeiro caminho”, o que
significa desenvolver “mentes do caminho verdadeiro”, tipos de
compreensão que eliminam as causas do sofrimento. Uma vez que nos
livramos das causas, nos livramos dos problemas.
A Raiz dos Problemas: Nos Agarrarmos a uma Identidade Sólida

A verdadeira causa desses problemas incontrolavelmente recorrentes


que enfrentamos na vida é que nós não conhecemos a realidade. Nós não
temos consciência de quem realmente somos, quem as outras pessoas
realmente são, o significado da vida, o que realmente está acontecendo no
mundo. Eu uso “falta de consciência” ao invés de ignorância. Ignorância
soa como se alguém dissesse que você é estúpido e não entende. Ao invés
disso, simplesmente não estamos conscientes, e por isso experimentamos
isso como insegurança no nível psicológico. Por causa dessa insegurança,
tendemos a nos agarrar a algum tipo de identidade sólida, algum tipo de
“eu”: “Eu não sei quem sou ou como existo então me agarro a algo sólido
ou mesmo fantasioso sobre mim mesmo e digo que isso sou eu, isso é
quem eu realmente sou”.

Podemos nos agarrar a uma identidade de ser pai, por exemplo: “Isso é
quem eu sou, eu sou o pai, devo ser respeitado em minha família. Meus
filhos devem demonstrar respeito e obediência a mim.” Se toda nossa
orientação de vida diz respeito a ser pai, é claro que isso nos trará
algumas dificuldades. Isso porque, se nossos filhos não respeitarem essa
posição, teremos um problema. No escritório, as pessoas não nos vêem
com um “pai” ou alguém que mereça esse tipo de respeito. De novo, isso
pode ser muito perturbador. O que acontece se em casa sou eu quem
mando, mas quando vou pro trabalho as pessoas me olham com ar de
superioridade, me tratam como se eu fosse inferior e eu é que preciso
mostrar respeito? Se nos agarrarmos muito à identidade de pai
merecedor de respeito podemos ser muito infelizes no trabalho, onde as
pessoas não nos tratam assim.

Podemos ter a identidade de um bem sucedido homem de negócios: “Eu


sou um bem sucedido homem de negócios. É assim que sou; é assim que
devo ser”. Entretanto, se nosso negócio vai à falência ou vai mal, nós
estamos completamente aniquilados. Algumas pessoas cometem até
suicídio ou outras coisas horríveis se seu negócio vai à falência, porque
elas não conseguem conceber a vida sem essa forte identidade a qual se
agarraram.

Ou podemos conceber nossa identidade como sendo viril: “Isso é o que


sou; eu sou um homem viril, bonito e atraente”. Mas quando começamos a
envelhecer e perder nossa virilidade, isso pode nos deixar loucos.
Algumas pessoas podem se sentir devastadas se essa for a identidade de
seu “eu”. Elas não estão dispostas a ver que tudo na vida muda e que essa
identidade não é permanente.
Podemos também achar que somos uma pessoa tradicional e todas as
coisas devem ser feitas de maneira tradicional. Quando a sociedade muda
e os jovens não seguem mais as tradições nas quais fundamentamos
nossa identidade, podemos ficar com raiva, chateados ou muito
magoados. Nós realmente não podemos nos imaginar vivendo em um
mundo que não segue os costumes tradicionais chineses, a maneira
tradicional na qual crescemos.

Por outro lado, sendo jovens, podemos construir nossas identidades


como pessoas modernas: “Eu sou uma pessoa moderna, do mundo; eu
não preciso desses valores tradicionais”. Se nos agarramos fortemente a
isso e nossos pais começarem a insistir que sigamos os valores
tradicionais e que os tratemos da maneira tradicional, também assim,
como um jovem moderno, podemos nos sentir hostilizados, com raiva.
Podemos até não expressar, mas lá dentro sentimos que por causa da
nossa identidade de pessoa moderna, não precisamos visitar nossos pais
no Ano Novo Chinês; nós não precisamos fazer todas essas coisas
tradicionais, mas novamente, isso nos trará muitos problemas.

Podemos também nos identificar com nossa profissão. Nesse caso, se


nosso negócio vai à falência e só conseguimos nos conceber em termos
dessa profissão que tínhamos, não estaremos sendo flexíveis. Quando não
podemos trabalhar no que trabalhávamos antes, sentimos que nosso
mundo acabou. Não conseguimos enxergar que é possível entrarmos em
uma profissão diferente e não precisamos ter só uma profissão.

Agarramo-nos a essas diferentes identidades como uma maneira de nos


sentirmos seguros. Temos algumas idéias sobre quem somos, que tipo de
regras seguimos, que tipo de coisas queremos da vida. Temos a tendência
de pensar que isso é permanente, concreto, que é o que eu realmente sou.
O que acontece é que, baseados nesse conceito de nós mesmos, nessa
auto-imagem, temos todo tipo de emoções perturbadoras que surgem
como suporte para essa identidade. Isso porque nos sentimos inseguros
dessa identidade, e assim, sentimos que precisamos prová-la e reafirmá-
la.

Por exemplo, se sentimos, “Eu sou um pai de família”, não é suficiente pra
gente sentir apenas que somos o pai na família, precisamos também
afirmar a autoridade. Temos que afirmar nosso poder sobre a família e
nos certificarmos que todos nos reverenciam, porque temos que provar
para todo mundo que ainda somos o pai. Não é o suficiente apenas
sabermos que somos. Se sentirmos que essa identidade está ameaçada,
podemos ficar muito na defensiva, ou nos tornarmos agressivos ou
ofensivos para provar alguma coisa. “Eu tenho que provar quem eu sou.
Eu tenho que provar que ainda sou viril e atraente”, e aí temos que sair e
nos casar novamente, ou ter um caso com uma mulher mais nova para
provar que é isso que somos, é assim que existimos.

Emoções e Atitudes Perturbadoras


Atração e Desejo Profundo
Emoções e atitudes perturbadoras são estados mentais que surgem e com
os quais tentamos provar ou manter uma identidade sólida. Essas
emoções perturbadoras podem ser de vários tipos, como atração ou
desejo profundo, por exemplo. Este último surge quando precisamos
obter alguma coisa, ou nos cercar de algo de forma a assegurar uma
identidade. Por exemplo, se minha identidade for de pai ou patriarca da
minha família, posso pensar: “Eu tenho que obter respeito; as crianças
precisam vir no Ano Novo e devem obedecer a tudo que eu disser”. De
alguma forma eu acho que se conseguir respeito suficiente, isso vai me
deixar muito seguro. E obviamente quando eu não sou respeitado me
sinto magoado e posso ficar muito bravo.

Também posso achar que minha identidade é de uma pessoa sortuda: “Eu
devo sempre ter boa sorte e ganhar no mahjong”. Se essa for a minha
identidade, acho que se eu sempre ganhar no mahjong, ou em qualquer
outro tipo de jogo me sentirei seguro. Ou talvez deva sempre ir a um
adivinho ou jogar varetas no templo budista chinês para obter uma
resposta adequada, reafirmando que sou bem sucedido, que estou bem.
Sou inseguro demais em relação a minhas próprias habilidades nos
negócios para sentir que vou ter sucesso. Sempre preciso de mais sinais,
mais sinais dos deuses, mais sinais de quem quer que seja para me sentir
seguro, então compulsivamente sempre busco isso.

Também posso achar que “Eu sou a pessoa em posição de autoridade em


meu negócio. O poder me atrai e vai me fazer sentir seguro”. Essa atitude
pode surgir a partir de muitas estruturas psicológicas diferentes. Pode
estar baseada no sentimento de que sou uma pessoa poderosa ou de que
não sou realmente poderosa, mas preciso do poder para me dar suporte.
Então achamos que “Se conseguir que todos no escritório me obedeçam,
façam as coisas da maneira que eu quero, me sentirei seguro”. Ou, se eu
tenho empregados em casa, para provar que sou eu quem está no
comando, me atrai a idéia de que eles devam fazer tudo do meu jeito e
posso até começar a exigir que façam coisas desnecessárias, só pra
mostrar quem está no comando.

Uma pessoa também pode gostar muito de atenção. Sendo jovens,


podemos achar que: “Minha identidade é de um jovem moderno e
descolado, e se eu estiver sempre antenado com as últimas tendências de
vestuário, vídeos, CDs, ou as últimas novidades das revistas de moda,
minha identidade estará segura”.

Existem muitas maneiras, muitas coisas diferentes nas quais podemos


focar e achar que se tivermos o suficiente daquilo, que pode ser dinheiro,
posses, poder, atenção ou amor, nos sentiremos seguros. É claro que isso
não funciona. Na realidade, se isso alguma vez tivesse funcionado, em
alguma hora sentiríamos que temos o suficiente, que estamos satisfeitos.
Mas nunca sentimos que temos o suficiente, sempre queremos mais e
quando não conseguimos ficamos com raiva. A raiva surge de formas
muito diferentes.

Repulsa e Hostilidade
Outro mecanismo que usamos pra tentar deixar uma identidade sólida
aparentemente segura é a repulsa, hostilidade e raiva: “Se eu conseguir
apenas afastar certas coisas que não gosto, que ameaçam minha
identidade, então me sentirei seguro”. Se eu basear minha identidade na
minha visão política ou na minha raça ou cultura: “Eu só preciso afastar
aqueles que têm uma visão diferente, cor de pele diferente, religião
diferente, para me sentir seguro”. Ou, se minha empregada está fazendo
as coisas um de um modo um pouco diferente de como eu quero que ela
faça, ou meus funcionários do escritório estão fazendo as coisas de um
modo um pouco diferente de como eu quero que eles façam, acho: “Eu só
preciso conseguir corrigi-los, mudar isso, e então me sentirei seguro. Eu
gosto dos meus papéis arrumados de uma certa maneira, mas aquela
outra pessoa no escritório os arranja de maneira diferente.” De alguma
forma sentimos que isso nos ameaça: “Eu só preciso conseguir que eles
arrumem da minha forma, para eu me sentir seguro”. Que diferença faz?
Dessa forma, dirigimos nossa hostilidade aos outros, num esforço de nos
livrarmos de tudo que nos ameaça.

Ou, quando a base de nossa identidade é estarmos sempre corretos, se


alguém nos desaprova ou critica, ficamos na defensiva, hostis e com raiva.
Ao invés de aceitarmos com gratidão a crítica para crescermos e
melhorarmos – ou mesmos, se a crítica for injusta, aproveitar a
oportunidade para checarmos e nos assegurarmos que não estamos
sendo desleixados ou omissos – insultamos a pessoa com palavras
ásperas, ou agimos de maneira passivo-hostil, ignorando ou não falando
com o sujeito. Agimos desse modo porque nos sentimos relativamente
inseguros e ameaçados. Pensamos que a pessoa está rejeitando a “mim”,
que estou sempre certo e, para proteger esse “eu” sólido, rejeitamos essa
pessoa.
Ingenuidade da Mente Fechada
Outro mecanismo é a ingenuidade da mente fechada, que basicamente
constrói muros a nossa volta: “ Se alguma coisa me ameaça, ameaça
minha identidade, bom, vou fingir que ela não existe”. Temos dificuldades
com nossa família ou no trabalho e no entanto voltamos pra casa com
uma cara impassível, como se não houvesse nada nos incomodando. Não
queremos falar no assunto; ligamos a televisão e fingimos que o problema
não existe. Essa é a atitude da mente fechada. Nossos filhos querem
discutir seus problemas, mas nós os afastamos. “Minha identidade é de
que nossa família não tem problemas; nossa família é perfeita; segue
todos os valores tradicionais. Como é que você pode sugerir que existe
um problema e perturbar o equilíbrio, a harmonia?” Achamos que a única
maneira de lidarmos com o problema é fingindo que não existe. Esse tipo
de atitude é chamada de ingenuidade da mente fechada.

Impulsos que Surgem em Nossa Mente são Expressões do Karma

Quando temos esses diferentes tipos de emoções perturbadoras, o que


vem a seguir é que vários impulsos surgem em nossa mente. É a isso que
o karma se refere. “Karma” não significa destino. Infelizmente, muitas
pessoas acham que é esse o significado de karma. Se alguém vê seu
negócio indo à falência ou bate o carro, podemos dizer, “Bom, azar, é o
seu karma”. É quase a mesma coisa que dizer “É a vontade de Deus”.

Não estamos falando da vontade de Deus ou destino, quando discutimos


karma. Estamos falando de impulsos, os vários impulsos que vem a nossa
mente e nos fazem agir de determinada forma. Por exemplo, o impulso
que veio a nossa mente quando tomamos certa decisão nos negócios, que
acabou sendo ruim. Ou o impulso de exigir algo dos meus filhos, que eles
me respeitem. Ou o impulso de gritar com meus funcionários no
escritório, que eles não devem fazer as coisas do jeito deles, mas do meu
jeito. Outro impulso que pode vir a minha mente é ficar com um rosto
impassível , ligar a televisão e não ouvir ninguém. Esses impulsos, o
karma, vêm a nossa mente, e nós agimos em conformidade com eles. Isso
produz nossos problemas incontrolavelmente recorrentes.

Podemos ter o problema de estarmos sempre ansiosos e preocupados


com nossa posição no trabalho ou com problemas de família. A partir
desse apego à identidade sólida, “tenho que ser bem sucedido e agradar
aos meus pais ou à sociedade”, é que tentamos defendê-la negando que o
problema de ansiedade existe. Passamos a ter a mente e o coração
fechados. E então, apesar de estarmos tendo todo tipo de dificuldades no
trabalho ou em casa, elas ficam abaixo da superfície e todo mundo faz
cara de que está tudo bem. Lá dentro, no entanto, estão todas essas
preocupações e tensões, que podem mais tarde explodir em um impulso
que leva a uma cena de violência, frequentemente dirigida a alguém da
nossa família ou do trabalho que não tem nada a ver com a história. Isso
acaba nos causando problemas enormes.

Esses são diferentes mecanismos que produzem nossos problemas


incontrolavelmente recorrentes. Podemos ver que lidam com várias
emoções e é claro que surge a questão: Todas as emoções são
problemáticas? Todas as emoções nos trazem problemas?

Emoções Construtivas

Temos que ver que existe uma diferença entre certas emoções que são
muito positivas e construtivas – como amor, calor humano, afeto,
tolerância, paciência e bondade – e emoções negativas ou destrutivas
como o desejo, hostilidade, mente fechada, orgulho, arrogância, inveja e
assim por diante. Não existe uma palavra para emoção nas línguas Pali,
Sânscrito ou Tibetano. Podemos falar sobre as positivas ou negativas, mas
não existe uma palavra que agrupe todas como temos em inglês.

Quando falamos sobre certas emoções ou atitudes que, quando geradas,


nos fazem sentir desconfortáveis, apreensivos, essas são as emoções ou
atitudes destrutivas. Por exemplo, temos uma paixão ou obsessão por
alguma coisa ou alguém e isso nos deixa muito apreensivos. Podemos
ficar muito ansiosos pra receber respeito, ou ansiamos por amor, atenção
ou aprovação de alguém porque estamos apegados a essa pessoa e por
isso buscamos sua aprovação e assim por diante, para sentirmos que
temos valor, pra nos sentirmos seguros – essas são todas dificuldades que
surgem no que diz respeito à emoção/atitude destrutiva do desejo
profundo. Sempre que somos hostis, nos sentimos muito inquietos; ou se
temos a menta fechada, isso também é um sentimento intranqüilo. Todas
essas atitudes são problemáticas. Assim, devemos diferenciar as emoções
negativas das positivas como, por exemplo, o amor.

Amor, na tradição budista, é definido com a emoção positiva através da


qual desejamos aos outros que sejam felizes e encontrem as causas da
felicidade. Isso está baseado na lógica de que todos somos iguais,
igualmente desejamos ser felizes e ninguém quer problemas. Todos têm o
mesmo direito de ser feliz. Amor é cuidar e estimar os outros como a nós
mesmos. É nos preocuparmos com a felicidade dos outros
independentemente do que eles façam. É como amor de mãe, que ama seu
filho mesmo quando ele suja sua roupa ou vomita nela. Não importa. A
mãe não deixa de amar o bebê só porque ele ficou doente ou vomitou em
suas roupas. A mãe se preocupa com ele do mesmo jeito, tem o mesmo
desejo de que ele seja feliz. Enquanto isso, o que usualmente chamamos
amor é uma expressão de dependência ou carência. “Eu te amo”significa”
eu preciso de você, não me deixe, não consigo viver sem você e é melhor
você fazer isso ou aquilo, ser uma boa esposa ou um bom marido, sempre
me dar flores no dia dos namorados e fazer só o que eu gosto. Se não,
bom, agora eu o odeio porque você não fez o que eu queria, não estava lá
quando eu precisei de você”.

Tal atitude é uma emoção perturbadora, e não a idéia budista de amor.


Amor é nos preocuparmos com alguém independentemente dele ter nos
mandado flores ou não, se nos escuta ou não, se é gentil e agradável
conosco ou age de forma horrível ou mesmo nos rejeita. É nos
preocuparmos com a felicidade alheia. Temos que perceber que quando
falamos de amor ou emoções semelhantes, pode haver um tipo (de
emoção) tanto positivo como negativo.

Raiva é Sempre uma Emoção Perturbadora

Agora finalmente vamos discutir a raiva. O que acontece com a raiva?


Raiva é algo que sempre perturba. Ninguém fica mais feliz por estar com
raiva. Não nos sentimos melhor quando temos raiva. Não faz a comida
ficar mais gostosa. Quando estamos com raiva e chateados, não ficamos
confortáveis e não c/onseguimos dormir. Não precisamos fazer uma cena
gritando e berrando, mas se por dentro estamos com raiva de alguma
coisa que está acontecendo no trabalho ou com a família, podemos
começar a ter má digestão ou uma úlcera, ou não conseguimos dormir à
noite. Enfrentamos muitas dificuldades por segurarmos a raiva, e se
conseguimos expressá-la com olhares ou vibrações hostis, nem mesmos
os gatos ou cachorros vão querer ficar perto da gente. Eles vão
lentamente saindo de perto, porque se sentem desconfortáveis com nossa
presença, com nossa raiva.

A raiva não traz nenhum tipo de benefício. Se a nossa raiva fica tão forte
ou frustrada que temos que extravasá-la de alguma forma e explodimos,
xingando ou maldizendo alguém, será que isso realmente nos faz sentir
melhor? Ver alguém magoado e chateado nos faz sentir melhor? Ou
ficamos com tanta raiva que sentimos que temos que esmurrar a parede.
Será que socar a parede realmente nos faz sentir melhor? Não, é óbvio
que não, machuca. Na verdade, a raiva não nos ajuda de maneira alguma.
Se ficamos presos num engarrafamento, e ficamos com tanta raiva que
começamos a buzinar, gritar e xingar todo mundo, isso traz algo de bom?
Nos faz sentir melhor? Os carros começam a andar mais rápido? Não, só
faz com que façamos papel de palhaço na frente de todo mundo, e ainda
vão dizer: “Que idiota é esse buzinando?” Isso certamente não vai ajudar a
situação.

Temos que Sentir Raiva?

Se emoções perturbadoras como a raiva e comportamentos impulsivos


baseados nela, como gritar, berrar, isolar com hostilidade ou rejeitar
alguém, são a causa de nossos problemas, será que sempre teremos
problemas com essas emoções? Será que isso é algo que sempre teremos
que experimentar? Não, esse não é o caso, porque emoções
perturbadoras não são parte da natureza da mente. Se fossem, nossa
mente teria que estar sempre perturbada. Até nos casos mais severos,
existem momentos em que a mente não se encontra perturbada pela
raiva. Um exemplo é que quando finalmente adormecemos já não
sentimos mais a raiva.

Portanto, é possível que existam momentos em que as emoções


destrutivas, como raiva, hostilidade e ressentimento não estão presentes.
Isso prova que essas emoções destrutivas não são permanentes; elas não
são parte da natureza da mente e conseqüentemente podemos nos livrar
delas. Se acabarmos com as causas da raiva – não só superficialmente,
mas nos níveis mais profundos – certamente é possível superarmos o
ressentimento e obtermos paz de espírito.

Isso não significa que devamos nos livrar de todas as emoções e


sentimentos e nos tornarmos como o Dr. Spock de Jornada nas Estrelas,
como um robô ou um computador, sem emoções. Mas o que queremos é
nos livrar das emoções perturbadoras, das atitudes perturbadoras que
estão baseadas na confusão e falta de compreensão sobre quem somos na
realidade. Os ensinamentos budistas são muito ricos em métodos com
esse objetivo.

Superando a Raiva: Mudando Nossa Qualidade de Vida

Primeiro precisamos de alguma motivação ou algo que nos motive a


trabalhar para nos livrarmos de nossa raiva e todas nossas emoções e
atitudes perturbadoras. Senão, porque nos dedicaríamos a isso? Portanto,
é importante que tenhamos a motivação.

Podemos começar a desenvolver tal motivação pensando: “Quero ser feliz


e não ter problemas. Quero melhorar minha qualidade de vida. Minha
vida não é muito prazerosa porque eu sempre guardo ressentimento e
hostilidade. Frequentemente me aborreço. Talvez não expresse, mas está
lá e me faz sentir mal e chateado o tempo todo. Isso não é uma boa
qualidade de vida. Além disso, me dá má digestão e várias doenças. Não
posso nem apreciar as comidas que gosto.”

Afinal, nossa qualidade de vida está em nossas mãos. Uma das principais
mensagens que o Buda nos passou é que podemos interferir na qualidade
de nossas vidas. Não estamos condenados a viver uma vida infeliz o
tempo todo. Podemos fazer algo a respeito.

E então pensamos, “Eu não só quero melhorar minha qualidade de vida


agora, ou por algum tempo a curto prazo, mas também a longo prazo. Eu
não quero que as coisas fiquem tão ruins que acabem cada vez piores.
Porque, por exemplo, se eu não me livrar da minha hostilidade e
ressentimento agora, se os continuar guardando, vão ficar cada vez piores
e eu posso até acabar desenvolvendo uma úlcera. Eu posso explodir e
fazer coisas terríveis como amaldiçoar ou jogar uma praga em alguém ou
mesmo tentar destruí-lo. Isso pode gerar uma retaliação por parte da
pessoa, que pode amaldiçoar a mim e à minha família e, de repente,
teremos um roteiro perfeito para um novo vídeo ou filme.”

Se pensarmos mais adiante, que não queremos que isso aconteça,


trabalharemos e tentaremos nos livrar de nossa raiva para que o
problema não adquira maiores proporções. Além disso, podemos aspirar
não só a minimizar nossos problemas, mas, ainda melhor, nos livrarmos
de todos os problemas de uma vez, porque mesmo um pequeno
ressentimento ou hostilidade não tem nenhuma graça: “Tenho que
desenvolver uma determinação firme para me livrar de todos os
problemas”.

Determinação de Ficar Livre

Geralmente, o que eu chamo “determinação de ficar livre” é traduzido


como “renúncia”, que é uma tradução um pouco enganosa. Tende a dar a
impressão que devemos desistir de tudo e ir morar numa caverna. Isso
não é de maneira alguma o que está sendo dito aqui. O que está sendo
discutido é olharmos honesta e corajosamente para nossos problemas,
ver o quão ridículo é continuarmos vivendo com eles e decidir: “Não
quero continuar assim. Pra mim basta. Já estou de cansado deles; não
agüento mais. Eu tenho que sair disso”.

A atitude a ser desenvolvida aqui é a determinação de se libertar e, com


isso, a disposição de desistir de nossos velhos e perturbadores padrões de
pensamento, fala e comportamento. Isso é muito importante. A menos
que tenhamos uma convicção muito forte, não poremos toda nossa
energia nisso. Enquanto não pusermos toda nossa energia nisso, nosso
esforço para nos libertarmos será muito fraco e inconstante e nunca
chegaremos a lugar algum. Queremos felicidade, mas não queremos
abandonar nada do que já possuímos, como nossos hábitos e emoções
negativas. Dessa forma, nunca temos sucesso. Portanto, é muito
importante termos essa forte determinação para decidirmos e estarmos
dispostos a abandonar nossos problemas e suas causas. Já a um nível
mais elevado, temos que pensar: “Preciso me livrar da minha raiva, não
apenas para ser feliz, mas também para que todos à minha volta também
possam ser felizes. Para o bem da minha família, amigos, colegas de
trabalho e sociedade, preciso me livrar da minha raiva. Preciso superar
isso, por consideração aos outros. Não quero causar-lhes problemas e
torná-los infelizes. Não só seria embaraçoso expressar minha raiva, mas
também traria vergonha a toda a minha família. Traria vergonha a todos
os meus companheiro e assim por diante. Logo, por consideração, devo
aprender a controlar e a lidar com meu gênio e me livrar dele.”

Uma motivação ainda mais forte é produzida pela reflexão: “Devo me


livrar dessa raiva porque ela me impede de ajudar os outros. Se outros
precisarem da minha ajuda, como meus filhos, colegas de trabalho ou
pais, e eu estiver completamente perturbado ou chateado por raiva ou
hostilidade, como poderei ajudá-los?” Esse é um grande obstáculo,
portanto é muito importante trabalharmos nisso para desenvolver com
sinceridade diversos níveis de motivação.

Não importa quão sofisticado seja o método para lidar com a raiva, se não
tivermos uma forte motivação para aplicá-lo, não o faremos. E, se não
aplicarmos os métodos que aprendemos, qual o sentido? Portanto, o
primeiro passo é pensar sobre a nossa motivação.

Métodos para Superarmos a Raiva

Quais são os verdadeiros métodos que podemos usar para superar a


raiva? A raiva é definida como um estado mental agitado que quer gerar
violência contra alguma coisa, animada ou inanimada. Se focarmos em
uma pessoa, animal, situação ou em algum objeto e não gostarmos dele e
quisermos expressar alguma violência e agitação para modificá-lo de
maneira violenta, isso é raiva. Portanto, raiva é um estado de intolerância
e falta de paciência, combinado com o desejo de machucar o que quer que
seja que não suportamos. Seus opostos são, por um lado, a paciência, que
é o oposto da intolerância e, por outro, o amor. Porque o amor é o desejo
de que o outro seja feliz, o amor é o oposto de desejar mal.

Frequentemente ficamos zangados quando acontece alguma coisa que


não gostaríamos que acontecesse. Pessoas não agem como gostaríamos
que agissem. Não mostram respeito, não seguem nossas ordens no
trabalho ou prometem fazer alguma coisa nos negócios e não fazem. Uma
vez que elas não fazem o que esperamos que façam, ficamos com raiva
delas. Num outro exemplo, uma pessoa pisa no dedo do nosso pé e
ficamos com raiva dela, uma vez que isso é algo que não queríamos que
acontecesse. Mas existem várias maneiras de lidarmos com essas
situações, sem ficarmos com raiva.

O Conselho de Shantideva para Cultivarmos Paciência

Um grande mestre budista indiano do século oito, Shantideva, deixou


muitas dicas de maneiras de pensar para nos ajudar. Parafraseando o que
ele escreveu: “Se, em uma situação difícil, pudermos fazer alguma coisa
para alterá-la, porque nos preocuparmos ou ficarmos com raiva? É só
alterá-la. Se não há nada que possamos fazer, porque ficarmos
preocupados ou com raiva? Se não podemos fazer nada, a raiva não irá
ajudar.”

Por exemplo, queremos pegar um vôo daqui de Penang para Singapura,


mas quando chegamos ao aeroporto o vôo já está lotado e não
conseguimos embarcar. Não faz sentido ficarmos com raiva. A raiva não
nos ajudará a entrar no avião. No entanto, há algo que podemos fazer
para mudar a situação – podemos pegar o próximo vôo. Porque ficar com
raiva? Faça sua reserva no próximo vôo, ligue para os amigos em
Singapura avisando que se atrasará e pronto. Isso é algo que podemos
fazer para lidar com o problema. Se nossa televisão não funciona, porque
ficar com raiva, bater e xingar? O que devemos fazer é consertá-la e
pronto. Isso é bem obvio. Se pudermos mudar a situação, não tem porque
ficar com raiva, é só mudar e pronto.

Se não há o que fazer para mudar a situação, como, por exemplo, se


ficamos presos no trânsito, a única coisa que podemos fazer é aceitar. Nós
não temos um canhão de laser capaz de desintegrar todos os carros na
nossa frente, nem podemos sair voando de lá como personagens de um
desenho japonês. Portanto, devemos aceitar da melhor maneira,
pensando: “Ok, estou preso no trânsito, vou ouvir rádio ou vou por um CD
e ouvir alguns ensinamentos budistas ou uma boa música”. Na maioria
das vezes, sabemos quando vamos pegar o trânsito pesado e podemos
nos preparar levando um CD para ouvir. Podemos usar esse tempo da
melhor maneira possível. Podemos pensar nos problemas que estamos
enfrentando no trabalho ou com a família e tentar encontrar uma solução
para eles.
Se não há nada que possa fazer para mudar uma situação difícil, tente
tirar o máximo dela. Se batemos o dedo do pé no escuro; bom, pular e
berrar vai fazer a dor passar? Na gíria americana chamamos isso de
“dançar a dança da dor”. Você sente tanta dor que fica pulando, como se
estivesse dançando; mas isso não vai aliviar a dor. Há pouco que se possa
fazer nesse caso. A única coisa que podemos fazer é continuar o que quer
que seja que estejamos fazendo. A dor é impermanente. É algo que passa.
Não vai durar pra sempre e pular e berrar não vai fazê-la passar. O que
queremos? Queremos que todo mundo diga: “Coitadinho, machucou o
dedinho do pé”. Quando um bebê ou criança se machuca, a mãe da um
beijinho e ela melhora. Será que esperamos que as pessoas nos tratem da
mesma maneira, como um bebê?

Quando esperamos nossa vez na fila do ônibus, se pensarmos na


impermanência – que não vamos ser sempre o trigésimo segundo ou
nono da fila, mas eventualmente nossa vez vai chegar, isso nos ajudará a
tolerar a situação e poderemos usar esse tempo de maneira diferente. Há
um ditado na Índia, que diz: “Existe um certo prazer em esperar”. Isso é
verdade, porque se temos que esperar nossa vez numa fila de ônibus,
podemos usar esse tempo para observar as pessoas na fila ou no ponto de
ônibus, nas coisas que vamos fazer no escritório, ou qualquer outra coisa.
Nos ajuda a desenvolver um senso de preocupação com os outros e
compaixão. Se estamos ali, é melhor usar o tempo de uma maneira
construtiva do que passar meia hora xingando.

Outro conselho de Shantideva diz: Se alguém nos bate com uma vara, de
quem ficamos com raiva? Ficamos com raiva da pessoa ou ficamos com
raiva da vara?” Se pensarmos logicamente, deveríamos ficar com raiva da
vara, porque foi ela que nos machucou! Mas isso é ridículo. Ninguém fica
com raiva de uma vara; ficamos com raiva da pessoa. Porque ficamos com
raiva da pessoa? Porque a vara foi manipulada pela pessoa. Da mesma
forma, se pensarmos além, a pessoa foi manipulada por suas emoções
perturbadoras. Portanto, se vamos ficar com raiva, deveríamos ficar com
raiva das emoções perturbadoras da pessoa. Foram elas que a fizeram
nos bater com uma vara.

E então pensamos: “De onde veio essa emoção perturbadora? Não veio do
nada. Eu devo ter feito alguma coisa que a acionou. Devo ter feito alguma
coisa que fez com que a outra pessoa ficasse com raiva de mim e então me
batesse com a vara. Da mesma forma, eu posso ter pedido a uma pessoa
que me fizesse um favor e quando ela se recusou eu fiquei com raiva. Me
machuquei por causa disso. Bom, se pensar bem, na verdade foi minha
culpa. Eu fui preguiçoso por não fazer eu mesmo. Pedi a outra pessoa que
fizesse pra mim e quando ela se recusou fiquei com raiva. Se eu não
tivesse sido tão preguiçoso, nunca teria pedido o favor a essa pessoa e
todo o problema nunca teria acontecido. Se vou ficar com raiva, deveria
ficar com raiva de mim mesmo por ser tão preguiçoso e idiota de pedir a
outra pessoa que me fizesse esse favor.”

Mesmo quando a culpa foi só parcialmente nossa, precisamos ver se nós


estamos livres dessa emoção perturbadora que está manipulando a outra
pessoa, como por exemplo, egoísmo: “Ele se recusou a me fazer esse
favor. Bom, será que eu mesmo faço logo os favores para os outros? Será
que sempre concordo em ajudar os outros e os ajudo prontamente? Se
não, porque é que espero que outras pessoas parem o que estão fazendo
só pra me ajudar?” Essa é uma outra maneira de lidarmos com a raiva.

Eu mencionei anteriormente que a raiva não tem necessariamente que


ser expressa através de gritos, berros ou batendo em outra pessoa. A
raiva é uma emoção perturbadora que, por definição, nos faz sentir
desconfortáveis quando surge. Portanto, mesmo se a estamos reprimindo
e nunca a expressamos, ela vai atuar de maneira muito destrutiva dentro
da gente, fazendo com que nos sintamos mal. Mais tarde ela virá à tona de
maneira muito destrutiva. Precisamos aplicar os métodos que eu já
expliquei, para que consigamos lidar com a raiva que não expressamos,
que então reprimimos. Precisamos mudar nossa atitude. Precisamos
desenvolver paciência.

Diferentes Tipos de Paciência


Paciência do Tipo Alvo
Existem muitos tipos diferentes de paciência. Primeiro temos a paciência
do tipo alvo. A idéia é que se você não tivesse criado um alvo, ninguém
teria atirado nele. Nos Estados Unidos, as crianças têm uma brincadeira.
Elas prendem ou colam um papel na parte de trás da calça de um
coleguinha. No papel está escrito “chute-me” e esse é chamado o sinal de
“chute-me”. Então qualquer um que veja o “ chute-me” no bumbum dessa
criancinha vai chutá-la. Assim, fazendo essa prática, vamos pensar como
fomos nós mesmos que colocamos um sinal de “chute-me” nas próprias
calças através de nossas ações negativas e destrutivas do passado, e é isso
que agora nos causa todo tipo de problema.

Por exemplo, suponha que fomos assaltados na rua. Vamos pensar, “Se eu
não tivesse colocado o alvo, agindo negativamente e destrutivamente no
passado ou em vidas anteriores, o impulso de seguir por aquela rua
escura naquela hora quando havia uma assaltante esperando para me
assaltar e me bater não teria surgido em minha mente. Geralmente eu não
passo por ali, mas naquela noite eu pensei: eu vou seguir por aquela rua
escura. Geralmente eu vou pra casa bem mais cedo, mas naquela noite
surgiu o impulso de ficar um pouco mais com meus amigos. Além disso,
eu segui por aquela rua justo na hora que tinha um ladrão esperando
alguém passar. Porque esse impulso me veio a cabeça? Deve ser porque
no passado eu fiz alguma coisa que machucou essa pessoa e isso está
amadurecendo em termos de causa e efeito.”

Impulsos vêm a nossa mente como expressões do karma. Portanto


pensamos: “Eu estou exaurindo meu karma negativo do passado. Na
realidade, deveria estar muito feliz por estar me livrando disso de forma
tão leve, porque poderia ser muito pior. Essa pessoa só me roubou, mas
ela poderia ter atirado em mim. Logo, eu deveria ficar muito aliviado por
essa negatividade ter amadurecido de forma tão leve. Agora estou livre
dela. No final nem foi tão ruim assim e é bom me livrar disso, tirar esse
peso das minhas costas. Eu não tenho mais essa dívida cármica.”

Esse tipo de pensamento é muito útil. Eu me lembro de uma vez que


estava indo para a praia com um amigo num feriado. Estávamos dirigindo
havia muitas horas. O lugar era longe da cidade. Após dirigirmos por
aproximadamente uma hora e meia, ouvimos um barulho estranho no
carro. Paramos em um mecânico num posto na beira da estrada. O
mecânico olhou o carro e disse que havia uma rachadura no eixo e que
não poderíamos continuar; precisamos chamar um reboque para nos
rebocar até a cidade. Meu amigo e eu poderíamos ter ficado com muita
raiva e chateados porque queríamos ir pra esse lindo resort pra
descansar no final de semana. Mas com outra atitude, olhamos a situação
de forma completamente diferente: “Uau, isso é maravilhoso! Que bom
que aconteceu porque, se tivéssemos continuado, o eixo teria quebrado
enquanto dirigíamos. Poderíamos ter tido um acidente horrível e termos
os dois morrido. Portanto, é maravilhoso que tenha amadurecido dessa
forma. Nos saímos bem.” Assim, com nossas mentes tranquilas, pegamos
o reboque até a cidade e, uma vez lá, emprestamos um outro carro e
fomos para outro lugar.

Como vocês podem ver, podíamos ter vivenciado essa situação de muitas
maneiras diferentes. Ficarmos zangados ou chateados não teria ajudado
nada. Se pudermos olhar a situação em termos de: “ Isso está exaurindo
meu karma negativo. Essa dívida cármica amadureceu agora.
Maravilhoso, está terminado. Poderia ter sido muito pior”, é uma maneira
muito mais saudável de lidarmos com a ela.

Paciência do Tipo Amor e Compaixão


Também há o tipo de paciência chamada “paciência do amor e
compaixão”. Com essa paciência, consideramos todos que se zangam,
gritam ou berram conosco como loucos, mentalmente perturbados. Esse
tipo de paciência também pode ser aplicado com alguém que nos
envergonha ou critica na frente dos outros, o que normalmente nos
humilharia e nos deixaria com raiva dessa pessoa. Se, por exemplo, um
papagaio nos xingasse na frente dos outros; não nos sentiríamos
humilhados, certo? Não há porque ficarmos com raiva do pássaro. Seria
uma reação idiota. Da mesma forma, se um louco começa a gritar e berrar
conosco, não nos sentimos humilhados. Todo mundo sabe que criança às
vezes faz birra. Um psiquiatra também não fica zangado com um paciente
quando este fica com raiva, ao invés disso, ele sente compaixão.

Da mesma forma, tentaremos sentir compaixão por quem quer que nos
deixe chateados, com raiva ou nos envergonhe. Precisamos compreender
que, na verdade, são eles que estão se envergonhando, não são? Não
somos nós que estamos fazendo um papelão. Todo mundo vê que essa
pessoa está fazendo papel de idiota. Devemos sentir compaixão, ao invés
de raiva.

Isso não significa que se alguém tentar nos atacar, não vamos reagir.
Quando nosso filho está gritando, nós tentamos calá-lo. Queremos
impedi-lo de causar danos aos outros, a nós e a si próprio. A questão é
não fazê-lo com raiva. Se nosso filho está se comportando mal, nós não o
disciplinamos por raiva, mas para seu próprio bem. Queremos ajudá-lo a
não fazer papel de idiota, para que as pessoas não pensem mal dele.
Queremos disciplinar nosso filho, não por raiva, mas por nos
preocuparmos com seu bem estar.

Tipo de Paciência Guru-Discipulo


E então temos o “tipo de paciência Guru-Discípulo”. Ela se baseia no fato
de que um discípulo não pode aprender sem um guru, e assim, se
ninguém nos testar, não podemos desenvolver paciência. No século dez, o
grande mestre indiano Atisha foi convidado para o Tibete para ajudar a
revitalizar o budismo. Esse mestre indiano trouxe com ele um cozinheiro
indiano. O povo tibetano respeitava muita Atisha e lhe perguntou:
“Professor, porque você trouxe esse cozinheiro desagradável da Índia?
Porque não o manda de volta? Podemos cozinhar para o senhor;
cozinhamos muito bem.” Atisha respondeu: "Ah, ele não é só um
cozinheiro. Eu o trouxe porque ele é meu professor de paciência!"

Da mesma forma, se há alguém desagradável em nosso trabalho, que vive


dizendo coisas irritantes, podemos olhar para essa pessoa como nosso/a
professor/a de paciência. Existem pessoas com hábitos muito irritantes,
como ficar tamborilando os dedos, por exemplo. Se ninguém nos testar,
como poderemos nos desenvolver? Se encontrarmos situações difíceis,
como uma longa espera no aeroporto ou rodoviária por conta de um
atraso, podemos usá-las como uma oportunidade de ouro para praticar a
paciência: “Ah! Eu tenho treinado isso. Tenho treinado cultivar paciência
e agora é minha chance para ver se eu realmente consigo colocar isso em
prática.” Ou, se estivermos tendo dificuldade em conseguir algum
formulário burocrático de alguma instituição, tomamos isso como um
desafio. “É como quando eu treinei artes marciais por algum tempo e
finalmente tive a chance de por em prática minhas habilidades. Estou
encantado.” Da mesma forma, se estivermos treinando ser pacientes e
tolerantes, e encaramos uma situação irritante, olhamos para ela com
alegria: “Ah! Aqui está meu desafio. Vamos ver se consigo lidar com ela
sem perder meu humor, sem ficar com raiva e até mesmo sem me sentir
mal.”

Não perder a paciência é um desafio muito maior que uma luta de artes
marciais. Isso porque o desafio está em nossas mentes, nossos
sentimentos, não está só no corpo e no controle físico. Se alguém nos
critica, devemos tentar olhar essa crítica como uma chance ver onde nos
encontramos em nosso desenvolvimento, ao invés de ficarmos com raiva.
“Essa pessoa que está me criticando pode estar indicando coisas a meu
respeito com as quais eu posso aprender. ”Dessa forma, devemos tentar
tolerar a crítica e aprender a lidar com ela, mudando nossa atitude. Ficar
muito chateados pode acabar causando mais embaraço do que alguém
simplesmente nos criticando e gritando conosco.”

Paciência com a Natureza das Coisas


Outra forma de lidarmos com a raiva e desenvolver paciência é através da
“paciência com a natureza das coisas”. É da natureza das pessoas infantis
agir mal e rudemente. Se há fogo, sua natureza é ser quente e queimar. Se
pusermos nossa mão no fogo e queimar, bom, o que esperávamos? O fogo
é quente, por isso o fogo queima. Se atravessarmos a cidade na hora do
almoço, bom, o que podemos esperar? É hora do almoço e o trânsito vai
estar ruim – essa é a natureza das coisas. Se pedirmos a uma criança para
segurar uma bandeja ou uma caneca de chá quente e ela derramar, bom, o
que deveríamos esperar? É uma criança e não devemos esperar que
crianças não derrubem as coisas. Da mesma fora, se pedíramos a alguém
para nos fazer um favor ou fazer alguma coisa para o nosso negócio,
fazemos um acordo, e ela não cumpre sua parte, bom, o que
esperávamos? Pessoas são infantis, não podemos contar com os outros.
Shantideva, o grande mestre indiano disse: “Se você quer fazer algo
positivo e construtivo, faça você mesmo. Não confie em ninguém mais.
Isso porque, se você confiar em outra pessoa, não há garantia de que ela
não vá desapontá-lo.” É assim que podemos olhar as situações: “Bom, o
que eu esperava? É da natureza das pessoas desapontar os outros, não há
razão para eu ficar com raiva”.

Paciência da Esfera da Realidade


O ultimo método a se usar contra a raiva é chamado “paciência da esfera
da realidade”, ver o que realmente está acontecendo. Temos a tendência
de rotularmos os outros, nós mesmos e os objetos, como se tivessem uma
identidade sólida. É como desenhar um grande círculo imaginário em
torno de algumas características nossas e projetar que são nossa
identidade sólida: “Isso é quem eu sou; é quem eu sempre deverei ser”.
Por exemplo, “Sou um presente de Deus para o mundo”, ou “sou um
perdedor, um fracasso”. Ou então colocamos um grande círculo em volta
de alguém e dizemos: “Ele é irritante. Ele não é bom, só causa problemas”.
No entanto, se essa fosse a identidade verdadeira, sólida dessa pessoa, ela
sempre teria que existir dessa forma. Ele teria que ter existido dessa
maneira desde criança. E ela também teria que ser irritante para todo
mundo; sua mulher, seu cachorro, seu gato e seus pais, porque ela seria
verdadeiramente uma pessoa irritante.

Se consegurimos ver que as pessoas não existem com um grande círculo


em sua volta delineando concretamente sua identidade ou natureza, isso
também nos fará relaxar e não ficar com tanta raiva delas. Vemos que o
comportamento irritante de uma pessoa é só uma ocorrência passageira –
mesmo que freqüente – e não constitui o modo como ela deve ser sempre.

Desenvolvendo Hábitos Benéficos


Em situações difíceis, pode não ser muito fácil aplicar tudo isso. Todas
essas formas de raciocinar são conhecidas como “medidas preventivas”. É
assim que eu traduzo a palavra Dharma. Dharma é uma medida que
tomamos para prevenir problemas. Queremos evitar ficar com raiva
tentando fazer com que esses diferentes tipos de paciências se tornem
hábitos benéficos. É isso que é a “meditação”. A palavra tibetana para
meditação vem de “tornar algo um hábito”, nos habituarmos a algo
benéfico.

Primeiro, precisamos ouvir essas várias explicações sobre os diferentes


tipos de paciência. Depois, precisamos pensar a respeito delas para
compreendê-las e ver se fazem sentido. Se fizerem sentido e as
compreendermos, e também tivermos a motivação para querer aplicá-las,
tentaremos fazer com que elas se tornem hábitos benéficos, repassando e
praticando.
Para fazermos isso, primeiro repassamos os tipos de paciência. Depois,
temos que tentar ver e sentir as coisas daquelas maneiras. Temos que
visualizar situações em nossa mente usando a imaginação. Podemos
imaginar uma situação na qual normalmente ficamos chateados e com
raiva. Por exemplo, alguém no escritório faz alguma coisa de uma forma
que não gostamos. Primeiro, tente ver essa pessoa como ela é, como um
ser humano que quer ser feliz e não ser infeliz. Apesar de estar fazendo o
melhor que pode, ainda assim ela é como uma criança e realmente não
sabe o que está fazendo. Se tentarmos percebê-la dessa maneira
repassando isso em nossa mente quando estamos sentados
tranquilamente em casa, quanto mais tivermos feito isso, mais fácil será
responder de uma maneira mais positiva quanto estivermos no escritório
e ela começar a agir de forma irritante. Ao invés do impulso de ficarmos
com raiva, um novo impulso virá a nossa mente – o impulso de ser mais
paciente, mais tolerante.

Tendo praticado vê-loa como uma criança de forma a desenvolver


paciência com seu mau comportamento, podemos avançar mais um
passo. Podemos ver que quando ela age dessa forma desagradável, é ela
quem está se constrangendo. Portanto, desenvolvemos compaixão por
ela. Podemos desenvolver o hábito de ver e nos sentirmos assim através
da meditação. Quando olhar e sentir com paciência se tornam um hábito
benéfico, vão se tornando mais e mais parte da gente. Passa a ser nossa
maneira normal de responder às situações difíceis que temos que
enfrentar. Quando surge em nossa mente um impulso de ficarmos com
raiva, haverá um espaço. Não reagiremos imediatamente e impulsos mais
positivos surgirão para agirmos de forma mais positiva.

Antes do começo de uma palestra sobre budismo, normalmente focamos


nossa mente nas sensações da respiração e em contar vinte e uma
respirações. Essa prática também é muito útil quando sentimos a raiva
chegando. Cria um espaço no qual não agimos imediatamente através um
impulso negativo de dizer alguma coisa cruel, por exemplo, e nos dá um
espaço para refletirmos se queremos ficar com raiva ou chateados.
Pensamos, “Será que eu realmente quero fazer uma cena aqui ou existe
uma maneira melhor de lidar com essa situação?” Como resultado da
meditação e de cultivarmos mais hábitos benéficos, veremos as situações
com mais paciência e seremos mais tolerantes com elas. Mais opções
positivas nos virão à cabeça e naturalmente nós as escolheremos, já que
queremos ser felizes e sabemos que essas alternativas vão nos trazer
melhores resultados.

Para fazermos isso, precisamos de concentração. Por isso existem tantos


métodos diferentes no budismo para desenvolvermos concentração. Não
são simplesmente métodos que aprendemos como um exercício abstrato;
são para serem usados e aplicados. Quando os aplicamos? Aplicamos em
situações difíceis, quando lidamos com pessoas irritantes ou situações
irritantes. Eles nos ajudam a nos concentrarmos em manter nossa mente
paciente.

Entretanto, não nos abstemos de comportamentos negativos, destrutivos


só com autocontrole e disciplina. Se usarmos apenas autocontrole e
disciplina, a raiva permanece dentro da gente. Só estamos conseguindo
manter uma aparência de que está tudo bem, mas por dentro a raiva
queima e podemos desenvolver uma úlcera como conseqüência. Mas, por
outro lado, quando usamos os métodos corretamente, a raiva não surge.
Não é uma questão de controlá-la e não deixá-la transparecer; é uma
questão de substituir os impulsos que surgem em nossa cabeça. Ao invés
de surgirem impulsos negativos, com os quais vamos ter que lidar se os
reprimirmos, surgem impulsos positivos.

Uma vez que conseguimos fazer isso, dependendo da nossa motivação,


podemos então conseguir nos livrar dos nossos problemas agora e evitar
que as coisas fiquem piores no futuro. Ou, não teremos mais qualquer
tipo de problema, ou, com a motivação mais forte e avançada, não
causaremos mais problemas a nossa família, amigos ou às pessoas que
nos cercam e poderemos ajudar os outros ao máximo. Isso porque não
estaremos limitados aos nossos problemas e emoções perturbadoras.
Assim poderemos realizar todo nosso potencial.

Conclusão

Não conseguimos evitar comportamentos negativos, destrutivos,


simplesmente com disciplina e autocontrole. Se usarmos apenas
disciplina e autocontrole, a raiva fica dentro de nós. Só estamos mantendo
a pose por fora, mas por dentro a raiva queima e gera uma úlcera.
Entretanto, se usarmos esse métodos corretamente, a raiva nem mesmo
surge. Não é uma questão de controlar a raiva e mantê-la do lado de
dentro; é uma questão de substituir os impulsos que nos vem à cabeça. Ao
invés de surgirem impulsos negativos, que teremos que trabalhar e
manter do lado de dentro, surgem impulso positivos. Se conseguirmos
fazer isso, dependendo de nossa motivação, podemos nos livrar de nossos
problemas atuais e não deixar que as coisas piorem no futuro. Ou, não
teremos mais nenhum problema, ou, com uma motivação mais forte e
avançada, não causaremos problemas aos nossos amigo, família e pessoas
que nos cercam. Conseguiremos ajudar os outros ao máximo.
Conseguiremos porque não estaremos limitados por nossos problemas e
emoções perturbadoras. E assim, poderemos realizar todo nosso
potencial.
Medo: Lidando com Emoções
Peturbadoras
Dr. Alexander Berzin

O medo é um dos principais obstáculos para alcançarmos qualquer coisa


positiva na vida. Sendo um estado mental confuso, é baseado na falta de
consciência, especialmente no que diz respeito ao significado da sensação de
segurança. Entretanto, podemos nos livrar das garras paralisantes do medo
através de uma ampla gama de métodos preventivos e emergenciais.

Métodos de Emergência para Tratar do Medo

No budismo tibetano, a figura búdica feminina Tara representa o aspecto


de um buda que nos protege do medo. Na verdade, Tara representa os
ventos-energia do corpo e da respiração. Quando purificada, ela
representa também a capacidade de agir e alcançar os nossos objetivos.
Este simbolismo sugere diversos métodos de emergência de se trabalhar
com a respiração e com as energias sutis para se controlar o medo.

Os métodos de emergência derivam de práticas preparatórias


(preliminares) que fazemos antes de meditar, de estudar ou de escutar os
ensinamentos. Por si próprias, estas práticas ajudam-nos a acalmar em
emergências, quando estamos com um medo extremo ou começamos a
entrar em pânico. Servem também como os primeiros passos que
tomamos antes de aplicarmos métodos mais profundos.

1. Contar os ciclos de respiração com os olhos fechados, tomando como


ciclo a inspiração e a expiração, e focalizando na sensação da
respiração ao entrar, ao ir para baixo, ao expandir o abdomen e depois
contrair e da expiração.
2. Contar os ciclos de respiração com os olhos meio-abertos, focalizados
frouxamente, olhando para baixo para o assoalho, tomando como o
ciclo a expiração, uma pausa e a inspiração, com o mesmo foco descrito
acima e, um pouco depois, adicionar a consciência da sensação das
nossas nádegas a tocar na cadeira ou no chão.
3. Reafirmar a motivação ou o objetivo que nós queremos alcançar
(tornarmo-nos mais calmos) e o porquê.
4. Imaginar que a mente e a energia tornam-se em foco como a lente de
uma câmara fotográfica.
5. Sem contar a respiração, focalizar no expandir e contrair da parte de
baixo do abdomen consoante a respiração e sentir que todas as
energias do corpo estão a fluir harmoniosamente.

O Que É o Medo?

O medo é um desconforto físico e emocional que sentimos sobre qualquer


coisa conhecida ou desconhecida, sobre a qual sentimos que não temos
nenhuma capacidade de controlar, lidar ou levar ao resultado que
desejamos. Queremos livrar-nos daquilo que temos medo e, por isso, há
uma forte repulsão. Mesmo se o medo for uma ansiedade geral, sem um
objecto específico do qual temos medo, mesmo assim há um desejo forte
de nos livrarmos dessa “coisa” indefinida.

O medo não é apenas raiva. No entanto, como a raiva, o medo envolve o


exagero das qualidades negativas do objeto do qual temos medo e um
exagerar do “eu.” O medo adiciona à irritação o fator mental de distinguir
('du-shes, reconhecimento) que nós não podemos controlar ou lidar com a
situação. Prestamos então atenção (yid-labyed- pa) àquilo que temos
medo e a nós próprios, a partir desse modo de distinguir. Essa maneira de
distinguir e de prestar atenção pode estar correta ou incorreta.

O Medo É Acompanhado pelo Não-Apercebimento

O medo é sempre acompanhado pelo não-apercebimento (ignorância,


confusão) de algum fato da realidade – que entendemos, ou não, de uma
maneira que contradiz a realidade. Vamos considerar seis variações
possíveis.

(1) Quando temos medo de não poder controlar ou lidar com uma
situação, o nosso medo pode ser acompanhado pelo não-apercebimento
da causa e efeito e do modo de existir das coisas. Os objetos
conceptualizados (zhen-yul, objeto implícito) a partir do nosso modo
amedrontado de prestar atenção a nós próprios e àquilo a que temos
medo são:

 um “eu” que existe de uma forma sólida que, apenas por seu próprio
poder deveria ser capaz de controlar tudo, assim como controlar que a
nossa criança não se venha a magoar
 uma coisa que existe solidamente, por si própria, sem ser influenciada
por qualquer outra coisa, que deviamos ser capazes de controlar
apenas através dos nossos próprios esforços, mas que somos incapazes
de o fazer devido a uma falha pessoal.
Estas são maneiras impossíveis de existir e maneiras impossíveis em que
a causa e efeito trabalham.

(2) Quando temos medo de não conseguir lidar com uma situação, o não-
apercebimento que acompanha esse medo pode ser sobre a natureza da
mente e sobre a impermanência. Temos medo de não conseguir controlar
as nossas emoções ou a perda de uma pessoa amada e não percebemos
que as nossas experiências de dor e de tristeza são meramente o surgir e
a cognição de aparências. São impermanentes e vão passar, assim como a
dor de um dentista a brocar os dentes.

(3) O nosso medo de sermos incapazes de lidar com uma situação pode
ser um medo de não podermos lidar com ela sózinhos. Pode também
envolver o medo de se estar sózinho e da solidão. Pensamos que podemos
encontrar alguém que possa aliviar a situação. Aqui, os objetos
conceptualizados são:

 um “eu” que existe solidamente e que é incompetente, inadequado,


insuficientemente bom e sem nunca poder aprender
 uma “outra pessoa” que existe solidamente, que é melhor do que eu e
que me pode salvar.

Esta é uma outra forma do não-apercebimento de como os outros e nós


existimos e do não-apercebimento da causa e efeito. Pode ser correto que
não tenhamos, neste momento, conhecimento suficiente para lidar com
algo, tal como com o nosso carro que avariou e outra pessoa pode ter esse
conhecimento e pode ser capaz de nos ajudar. No entanto, isso não
significa que, devido ao processo de causa e efeito, nós não possamos
aprender.

(4) Quando estamos com medo de alguém, por exemplo dos nossos
empregadores, é porque não estamos entendendo as suas naturezas
convencionais. Os nossos empregadores são seres humanos, com
sentimentos, assim como nós. Eles querem ser felizes e não querem ser
infelizes, querem ser apreciados e não querem ser rejeitados. Eles têm
vidas fora do escritório que afetam o modo como eles se sentem. Se nós
pudermos nos relacionar com os nossos empregadores em termos
humanos, mantendo-nos cientes das nossas respectivas posições, nós
teremos menos medo.

(5) Similarmente, quando temos medo das serpentes ou dos insetos,


também não estamos entendendo que eles são, assim como nós, seres
sencientes que querem ser felizes e não querem ser infelizes. De um
ponto de vista budista, podemos não estar conscientes de que eles sejam
a manifestação atual de um fluxo mental individual sem ter uma
identidade inerente como uma espécie ou outra. Não estamos conscientes
de que eles poderiam ter sido nossas mães em vidas passadas.

(6) Quando estamos com medo de falhar ou da doença não estamos


conscientes das nossas naturezas convencionais como seres samsáricos
limitados. Nós não somos perfeitos e, naturalmente, vamos fazer erros e
às vezes vamos falhar ou ficar doentes. “O que é que você espera do
samsara?”

Sentirmo-nos Seguros

Numa perspectiva budista, sentirmo-nos seguros não envolve:

 virarmo-nos para um ser omnipotente que nos proteja, uma vez que a
omnipotência é impossível
 a necessidade de satisfazer esse ser ou fazer ofertas ou sacrifícios a fim
de receber proteção ou ajuda, mesmo se esse ser poderoso nos
pudesse ajudar de algum modo
 tornarmo-nos, nós próprios, omnipotentes.

Para nos sentirmos seguros, nós necessitamos:

1. de saber do que temos medo e de reconhecer a confusão e o não-


apercebimento subjacentes ao medo
2. de ter uma idéia realista do que significa lidar com aquilo que
tememos, especialmente em termos de nos livrar da confusão
subjacente
3. de avaliar as nossas capacidades de lidar com aquilo que tememos,
tanto no momento presente como a longo prazo, sem as exagerar ou as
diminuir, e aceitando o estágio atual do nosso desenvolvimento
4. de implementar, no momento, aquilo que podemos fazer – se o
estivermos a fazer, alegramo-nos; se não o estivermos a fazer,
precisamos de tomar a decisão de o fazer com o melhor das nossas
capacidades e, depois [de tomarmos essa decisão, precisamos de]
tentar realmente fazê-lo
5. se neste momento não conseguirmos fazê-lo completamente,
precisamos de saber como chegar ao ponto em que conseguiremos
fazê-lo completamente
6. de ter como objetivo trabalhar para alcançar esse estágio de
desenvolvimento
7. de sentir que estamos a seguir uma direção segura.
Estas sete etapas descrevem o que o budismo chama “seguir uma direção
segura” (tomar refúgio). Não é um estado passivo, mas um estado ativo de
dar uma direção segura às nossas vidas – a direção de trabalhar, de uma
maneira realista, para nos livrarmos dos nossos medos.
Consequentemente, sentimo-nos seguros e protegidos porque sabemos
que estamos a seguir numa direção positiva e correta na vida que nos vai
eventualmente tornar capazes de nos livrarmos de todos os problemas e
dificuldades.

Uma Visão Realista de Como Lidar com Situações Que Metem


Medo

Precisamos de nos lembrar que:

 O que quer que seja que aconteça àqueles a quem amamos ou a nós
próprios é o amadurecer de uma enorme rede de forças kármicas
individuais, assim como forças históricas, sociais e economicas. Irão
acontecer acidentes e outras coisas que não queremos e nós não
podemos proteger aqueles que amamos, não obstante o quanto
cuidadosos nós possamos ser e quanto nós os aconselhamos a terem
cuidado. Tudo o que nós podemos fazer é tentar dar bons conselhos e
querer-lhes bem.

 Para superar os acidentes e o medo, precisamos atingir a cognição não-


conceptual da vacuidade. No entanto, permanecer totalmente
absorvido na vacuidade não é enterrar a cabeça na areia. Não é fugir do
medo, mas sim um método de eliminar o não-apercebimento e a
confusão que fazem com que o nosso karma amadureça em coisas
indesejáveis e que fazem com que nós tenhamos medo.

 Ao trabalharmos com a cognição não-conceptual da vacuidade para


purificar o nosso karma, ainda continuaremos a experienciar acidentes
e medo durante todo o caminho até ao estágio da liberação do samsara
(arhatship). Isto porque a natureza do samsara é aos altos e baixos. O
progresso não é linear; às vezes as coisas correm bem e às vezes não.

 Mesmo quando alcançamos a liberação, como um arhat, vamos


continuar a experienciar acidentes e coisas que não queremos que
aconteçam. Contudo, nós vamos experienciá-las sem dor ou sofrimento
e sem medo, porque estamos livres de todas as emoções e atitudes
perturbantes. É apenas nesse estágio de arhatship que nós vamos
conseguir lidar completamente e mais profundamente com todos os
nossos medos.
 Só quando alcançamos a iluminação é que já não experienciamos
acidentes ou acontecimentos de qualquer coisa indesejada. Só um Buda
não receia proclamar

o os seus ou as suas próprias realizações, de todas as boas qualidades


e habilidades
o os seus ou as suas próprias verdadeiras paragens [cessações] de
todas as obscurações que impedem a liberação e a iluminação
o as obscurações das quais os outros precisam se livrar para
alcançarem a liberação e a iluminação
o as forças oponentes em que os outros precisam confiar para que eles
próprios se livrem delas.

Métodos Provisionais para Tratar do Medo

1. Reafirmar a tomada de uma direção segura na vida, através das sete


etapas acima indicadas.
2. Ao enfrentar uma situação assustadora, tal como um teste para o
cancer; imaginar a pior cena que pudesse vir a acontecer e imaginar o
que aconteceria depois e como nós iriamos lidar com isso. Isto ajuda a
afugentar o medo do desconhecido.
3. Antes de empreender algo, tal como chegar ao aeroporto a tempo de
apanhar o avião, ter várias alternativas preparadas de modo a que se
uma falhar, não ficarmos numa situação assustadora de não termos
nenhuma outra forma de alcançar o nosso objetivo.
4. Como Shantideva ensinou, se houver uma situação assustadora e nós
pudermos fazer algo por ela, porquê a preocupação; faça apenas o que
pode fazer. Se não houver nada que possamos fazer, então porquê a
preocupação; ela não ajudará em nada.
5. Uma vez que vamos experienciar o medo e a infelicidade durante todo
o caminho até à liberação, precisamos de focalizar nas nossas mentes
como se elas fossem tão profundas e tão vastas quanto o oceano e,
quando o medo ou a infelicidade surgirem, as deixar passar como uma
onda no oceano. A onda não perturba as profundidades calmas e
quietas do oceano.
6. Se nós tivermos acumulado suficiente força kármica positiva (mérito) a
partir das nossas ações construtivas, podemos confiar que vamos
continuar a ter um precioso corpo humano em vidas futuras. A melhor
proteção ao medo é o nosso próprio kárma positivo, embora
precisemos de ter consciência de que a natureza do samsara é andar
aos altos e baixos.
7. Face a uma situação assustadora, podemos encomendar ou executar
um ritual pedindo ajuda a um protetor do Dharma ou a uma figura
búdica tal como a Tara ou o Buda da medicina. Tais figuras não são
seres omnipotentes que nos possam salvar. Nós pedimos e abrimo-nos
à sua influência iluminadora ('phrin-las), por forma que ela possa agir
como um fator de amadurecimento das forças kármicas das nossas
ações construtivas, previamente cometidas e que, de outro modo, não
poderiam ter amadurecido. Um efeito mais seguro é que a sua
influência iluminadora aja como uma circunstância para amadurecer
as forças kármicas das nossas ações destrutivas previamente
cometidas em inconveniências triviais que poderiam, de outro modo,
ter amadurecido em sérios obstáculos que iriam impedir o sucesso.
Assim, em vez de termos medo das dificuldades, nós damos-lhes as
boas-vindas como “consumidoras” das forças kármicas negativas.
8. Reafirmar as nossas naturezas-búdicas. Nós temos os níveis básicos de
consciência profunda para compreender situações difíceis e
assustadoras (percepção profunda qual espelho), para reconhecer
padrões (percepção profunda que iguala), para apreciar a
individualidade da situação (percepção profunda que individualiza), e
para saber como agir (que pode incluir o entendimento de que não há
nada que possamos fazer) (percepção profunda que realiza). Temos
também o nível básico de energia para realmente agir.
9. Reafirmar que ter a natureza búdica significa que temos a base para
todas as boas qualidades completamente dentro de nós. Em termos
psicológicos ocidentais, estas qualidades podem ser conscientes ou
inconscientes (podemos ter consciência delas ou não, e elas podem ser
desenvolvidas até níveis diferentes). Frequentemente, projetamos as
qualidades inconscientes como uma “sombra.” Porque o inconsciente é
o desconhecido, a tensão de não estarmos consciente dele manifesta-se
como o medo do desconhecido e, assim, o medo das nossas qualidades
inconscientes desconhecidas. Assim, podemo-nos identificar com o
nosso lado intelectual consciente e ignorar ou negar o nosso lado
emocional e sensível desconhecido e inconsciente. Podemos projetar o
lado emocional e sentimental como uma sombra e termos medo de
outros que são muito emocionais. Podemos estar receosos do nosso
próprio lado emocional e sentirmos ansiedade de estarmos alienados
dos nossos sentimentos. Se, conscientes, nos identificarmos com o
nosso lado emocional de sentimentos e negarmos o nosso lado
intelectual inconsciente, podemos projetar o lado intelectual como uma
sombra e ficarmos intimidados por aqueles que são intelectuais.
Podemos ter medo de tentar compreender o que quer que seja e sentir
ansiedade de ser um intelectual chato. Assim, precisamos de reafirmar
ambos os lados como completos dentro de nós, como aspectos das
nossas naturezas búdicas. Podemos visualizar os dois lados abraçando-
se um ao outro, na forma de um casal, como numa visualização
tântrica, e sentirmos que nós próprios somos o casal completo, e não
apenas um membro do casal.
10.Reafirmar um outro aspecto das nossas naturezas búdicas, isto é, que a
natureza da mente está naturalmente livre de todos os medos e, assim,
experienciar que o medo é meramente um evento efemero e
superficial.
11.Reafirmar ainda um outro aspecto da natureza búdica, que podemos
ser inspirados por outros a ter coragem para enfrentar situações
assustadoras.

Conclusão
Quanto estamos tomados pelo medo, se nos lembrarmos desses métodos
de lidarmos com ele, conseguiremos nos acalmar e lidar de forma realista
com qualquer situação que pareça amedrontadora.
Apego: Lidando com Emoções
Perturbadoras
Dr. Alexander Berzin

A emoção perturbadora do apego a alguém nos faz perder paz de espírito e


autocontrole. Com apego nós exageramos as características boas de alguém,
como sua aparência, e, ao transformar a pessoa em um objeto, nos apegamos
a ela e não queremos soltar. Entretanto, através de diversos métodos
meditativos, podemos superar nosso apego e desenvolver um relacionamento
saudável com a pessoa.

A falta de consciência é a raiz de todas as nossas emoções e atitudes


perturbadoras, é sua causa mais profunda. E ela pode ser a respeito de
causas e efeitos – os resultados do nosso comportamento – ou falta de
consciência sobre a realidade. A falta de consciência a respeito das causas
e efeitos de nosso comportamento é normalmente descrita como a
responsável por agirmos destrutivamente e fazermos a coisa errada.
Entretanto, a falta de consciência sobre a realidade, sobre situações, pode
sustentar qualquer tipo de comportamento samsárico, seja construtivo ou
destrutivo. Portanto, se quisermos ver como a falta de consciência
sustenta nossas emoções e atitudes perturbadoras, precisamos observar
mais a nossa falta de consciência em relação às situações, a falta de
consciência sobre a realidade.

A palavra “realidade” é curiosa. Ela pode ter muitos significados


diferentes. A palavra que geralmente é utilizada é “verdade”, a verdade
sobre algo. Há duas verdades sobre qualquer coisa. Há a verdade relativa,
convencional ou superficial, do que algo parece ser, e a verdade mais
profunda sobre como algo existe. Isso não quer dizer que uma verdade é
mais verdadeira que a outra, como a expressão “níveis de verdade”
parece sugerir. Ambas são verdadeiras. Eu não gosto de usar o termo
“absoluta” em relação à segunda dessas verdades, já que absoluta soa
como se essa fosse mais verdadeira que a outra; “mais profunda” é o
termo que eu prefiro. As duas verdades são, portanto, apenas a verdade
superficial de como algo parece ser e, a mais profunda, de como algo
existe.
O Que É Apego?

Vamos ver as duas verdades em relação às emoções perturbadoras, talvez


assim fique um pouco mais claro. O que é apego ou desejo? É o estado
mental perturbador que exagera as qualidades positivas de algo, e se
manifesta em dois tipos principais. O desejo é direcionado a algo que não
temos, e a emoção correspondente é “eu tenho que conseguir, eu preciso
ter isso!”. O apego é direcionado a algo que nós já temos, e sentimos que
“eu não quero abrir mão disso!”. Ambos são baseados em um exagero das
qualidades positivas de algo, ou do que nós achamos que são as
qualidades positivas. Um terceiro tipo é a ganância, que também é
direcionada a algo que já temos mas, nunca satisfeitos, sempre queremos
mais.

Com todas essas variantes, nós não temos consciência do que é


efetivamente a realidade, do que é efetivamente verdadeiro no que diz
respeito à natureza de alguma coisa. Em outras palavras, não vemos
apenas as qualidades positivas ou bons aspectos de algo, mas também os
exageramos ou acrescentamos boas qualidades que nem estão lá. O que
geralmente acompanha isso é que minimizamos ou ignoramos
completamente as falhas ou aspectos negativos. Dessa forma, não temos
consciência de quais são realmente os pontos positivos e quais são de fato
os pontos fracos de algo. Esse “algo” pode ser, por exemplo, uma pessoa,
alguém que conhecemos e achamos atraente e maravilhoso(a) ou pode
ser um objeto, como um sorvete.

Pense no caso de alguém por quem sentimos desejo ou apego. Nós


exageramos, por exemplo, como a pessoa é bonita ou qualquer qualidade
positiva que achamos atraente. Exageramos que essa pessoa é a mais
bonita que nós já conhecemos e assim por diante. E realmente tendemos
a ignorar as falhas da pessoa. Não queremos pensar muito nelas, pensar,
por exemplo, que ela possa ser irritante, comer de forma engraçada ou
roncar. A pessoa pode ser relativamente bonita, e podemos realmente
considerá-la muito bonita. Não estamos negando isso, mas exagerar essa
característica é o que causa o desejo e o apego, e implica ignorar ou
minimizar as falhas da pessoa. Esse estado mental vai eventualmente nos
causar problemas, porque esse fascínio um dia vai passar. Então o nosso
amor, nosso apego, pode facilmente se transformar em irritação e raiva
da pessoa, quando suas falhas começarem a se destacar.

A raiva e a irritação são o oposto disso. Nós exageramos as qualidades


negativas, as falhas de algo ou alguém, e ignoramos os pontos positivos.
Por exemplo, exageramos o fato de que alguém não arruma seu quarto,
que é descuidado, não ajuda a lavar a louça ou o que quer que seja. Damos
importância demais para isso. Exageramos de forma completamente
desproporcional e ficamos com raiva e irritados. Ao mesmo tempo,
tendemos a ignorar ou perder de vista os pontos positivos da pessoa, que
é bondosa, responsável, estável e assim por diante. A única coisa que
notamos é “eu não suporto quando deixam as meias sujas no chão”. E
então ficamos com raiva.

Verdade Mais Profunda

Assim como nesses exemplos, nossa falta de consciência sobre a verdade


relativa, superficial, sobre alguém – quais são seus pontos positivos e
negativos ou pontos fortes e fracos – está por trás do nosso apego e de
nossa raiva. Nós não sabemos quais são eles, os ignoramos, os
exageramos ou os entendemos de forma incorreta. Mas em um nível mais
profundo a base de nosso apego e nossa raiva é nossa falta de consciência
sobre a verdade mais profunda das coisas, como elas existem.

Embora possamos discutir isso de forma bastante complicada e sutil, para


o nosso propósito, aqui, vamos discutir de forma mais simples. Para nós,
parece que essa pessoa existe como um tipo de entidade, com uma grande
e sólida linha ao seu redor. Parece que ela está plastificada ou algo assim,
e que ela está na nossa frente, existindo da forma como parece, paralisada
como numa fotografia. É com base nessa concepção errônea que
pensamos nela como uma entidade concreta, existindo por si só,
independente de causas, condições, influências etc. e que nunca muda,
permanente. Isso é muito confuso. Isso é incorreto, porque na verdade
seu humor muda sempre, seu corpo muda sempre, seu estado emocional
muda sempre. Não há nada sólido ali, como se estivesse envolvido em
plástico, permanentemente, para sempre.

Por concebermos erroneamente “você” como uma entidade concreta e


permanente, nós pensamos, por exemplo, que “você é sempre assim,
sempre deixa as meias no chão!” Esse engano, e nossa falta de consciência
de que isso não corresponde à realidade, é a base que sustenta o exagero
das qualidades negativas dessa “coisa” que está do outro lado da cama
nos irritando. Nossa falta de consciência de como ela existe também causa
o o exagero das boas qualidades da pessoa como uma “coisa”
aparentemente sólida e maravilhosa. Nossa confusão nos faz então tocá-la
compulsivamente. Não conseguimos tirar nossas mãos da pessoa, por que
a achamos muito atraente. Nos apegamos tanto que não queremos parar
e deixá-la dormir.

Se pudéssemos nos livrar desses dois aspectos da falta de consciência,


que nos fazem pensar que alguém é concreto e permanente, as emoções
perturbadoras não surgiriam mais. Nós perceberíamos que a pessoa está
mudando constantemente, aberta à mudanças, de forma alguma uma
coisa concreta plastificada. Quando entendemos isso, não achamos que
essa coisa plastificada tem um conjunto permanente de boas qualidades,
que podemos ter exagerado ou mesmo inventado. Ficamos abertos para
ver as verdadeiras qualidade boas e ruins e entendemos que todos têm
pontos positivos e negativos. Não os exageramos nem negamos. Baseado
nisso, nos relacionamos de forma madura, bondosa e amorosa, com
tolerância, paciência, compreensão etc. Não nos apegamos nem ficamos
irritados.

Apego e Raiva Direcionados a Máquinas

É a mesma coisa com um gravador, exatamente a mesma coisa. Qual é a


base para ficarmos apegados ou com raiva dele? Primeiro, nós damos
muita importância a ele pensando que “eu gastei muito dinheiro com ele”
e lá está, essa coisa com uma grande e sólida linha ao seu redor. E depois
nós poderíamos exagerar suas boas qualidades, “ele é completamente
confiável para gravar as aulas” e então ficamos dependentes dele. Nós
nem prestamos mais atenção na aula ou tomamos notas, porque
pensamos que o gravador é infalível e permanente e que sempre vai
funcionar. E se não funcionar, nós ficamos com muita raiva dele.

Mas, afinal de contas, o gravador é só uma máquina. Ele é feito de partes


que se desgastam. Nada dura para sempre. É verdade que ele pode
funcionar bem, mas às vezes falha. É só uma máquina – as baterias podem
acabar e assim por diante. Se entendermos isso, não daremos importância
demais se as baterias acabarem. Agimos de forma responsável antes de
usá-lo e verificamos se está funcionando bem, se as baterias estão
carregadas etc. Mas, se por acaso acontecer dele não funcionar, nós não
ficaremos irritados. E tomamos notas: não ficamos completamente
dependentes do gravador.

É impressionante como podemos ter essas emoções perturbadoras por


máquinas tais como um gravador e, especialmente na nossa época, por
computadores. Nós ficamos com muita raiva quando eles não fazem o que
queremos que façam. “Ele tem vontade própria”, nós pensamos. Por favor,
isso é ridículo. Nós pensamos, “Ele tem que funcionar”, afinal de contas,
ele deveria ser perfeito. Mas ele é só uma máquina e é feito de partes. É
feito por pessoas que cometem erros e que não sabem como fazer tudo
perfeitamente. Isso não significa, entretanto, que não usamos o
computador ou gravador. Nós usamos, porque eles podem ser muito
úteis, mas não nos apegamos se funcionam bem. E não ficamos com raiva
se não fazem o que queremos que façam. Dessa forma, temos uma atitude
equilibrada e saudável com eles. Isso não é fácil, especialmente se a
máquina for cara.

Método Provisório para Lidar com Anseio e Apego por Alguém

Há dois níveis de métodos usados no budismo para lidar como nossas


emoções perturbadoras. Há métodos temporários, provisórios, que
basicamente nos ajudam a ver corretamente a verdade relativa sobre as
coisas, e há métodos definitivos ou profundos, que implicam entender a
verdade profunda sobre o objeto ao qual a emoção perturbadora está
direcionada. Os métodos profundos exigem muito estudo e reflexão, mas
já que os métodos temporários, provisórios, são mais fáceis de entender e
aplicar, são eles que treinamos e aplicamos primeiro. Vejamos alguns
exemplos desses métodos próvisórios.

Pensando no Que Está dentro do Corpo


Se temos apego ou desejo por alguém, e especialmente se estamos
encantados e exageramos as qualidades de beleza do corpo da pessoa, ou
mesmo se estamos apegados ao nosso próprio corpo, então meditamos
sobre o que é frequentemente chamado de “feiúra do corpo”. Só o uso da
palavra “feio” já nos desanima um pouco. Não é uma palavra confortável.
Então eu acho que podemos evitar a palavra “feiúra” aqui, e mesmo a
palavra “sujeira” que também é usada às vezes. Ambas tem uma
conotação negativa demais em nossas sociedades atuais, nas quais a baixa
auto-estima é tão comum. Em vez disso, vejamos o corpo humano, de
outra pessoa ou nosso, simplesmente sob o ponto de vista do que estamos
discutindo, a verdade relativa do que algo é.

Podemos usar a analogia de um pacote. Um pacote tem um embrulho,


digamos que é um presente que está embrulhado. E há o que está dentro.
Da mesma forma, nosso corpo ou o corpo de outra pessoa está
embrulhado em pele, que normalmente é a única coisa que vemos. A pele
é, então, como um bonito embrulho. E assim como um presente pode ser
embrulhado com papéis e fitas bonitas e caras, o corpo também pode ser
embrulhado em roupas bonitas e caras que fazem ele ficar mais atraente.
Mas roupas também são só embrulho. Para atrair ainda mais atenção
para um produto, os fabricantes dão muita ênfase ao design da
embalagem e criam anúncios atraentes. Da mesma forma, muitas pessoas
frequentemente tentam fazer o embrulho de suas peles ainda mais
atraentes, com maquiagem, bonitos penteados e perfume, ou mais
chamativos, com tatuagens elaboradas, piercings etc.
Mas um pacote não é apenas o embrulho, também há o conteúdo. O que
está dentro do pacote do corpo são esqueleto, músculos, órgãos etc. Se o
conteúdo do estômago voltasse para fora, ele seria vômito. Dentro dos
intestinos há excremento, dentro da bexiga urina e há sangue nas artérias
e veias. Essa é a realidade, a verdade sobre o que está dentro do
embrulho da pele. Não podemos negar isso. E se tirássemos todo o vômito
do estômago, todo o cuspe da boca, todo o muco do nariz, todo o
excremento dos intestinos, toda a urina da bexiga, todo o sangue das
veias e artérias e só deixássemos a pele, isso não seria de verdade a
pessoa que amamos, não é? A realidade da pessoa amada é que ele ou ela
é o pacote completo. Nós não queremos apenas a pele da pessoa amada
recheada de algodão como em um museu de história natural. Queremos
que a pessoa esteja viva, e essa é a realidade do que está dentro do
pacote, não importa se gostamos ou não.

Agora a coisa fica interessante. O que nós achamos bonito e o que


achamos feio? O que consideramos limpo e o que consideramos sujo?
Algumas pessoas podem achar a pele muito bonita e o esqueleto feio, mas
o que há de feio num esqueleto? É só um esqueleto. E se assistíssemos
uma operação num hospital e víssemos tudo que está dentro do corpo, o
que há de feio ou repulsivo nele? É nossa atitude, não é? Os médicos
fazendo a cirurgia certamente não o acham feio ou repulsivo. É só o que
está dentro do corpo.

Evitando o Exagero de Boas Qualidades, como a Beleza


A questão é não exagerar as boas qualidades, e mesmo elas são relativas e
subjetivas. Por exemplo, alguém que eu acho muito bonito, você pode não
achar bonito. Ou alguém que eu acho feio, você pode achar muito bonito.
É completamente subjetivo. Então se nós achamos a pela da pessoa e a
forma do corpo atraente, tudo bem, é bonito para nós, não há nada de
errado nisso. A questão é não exagerar. Não há nada de errado no fato de
que nos dá prazer ver a pessoa. Nós gostamos da sua aparência, nos faz
feliz vê-la. O problema é quando exageramos isso e pensamos, “Eu tenho
que tocar seu corpo o tempo todo, tenho que abraçá-la toda vez que a
vejo, tenho que estar ao seu lado o tempo todo”. Esse é o problema. Se
outra pessoa olha para essa pessoa com desejo, nós ficamos irritados:
“Essa pessoa e o corpo dela são meus”. Há muitas pessoas bonitas que
vemos na rua. Só é perturbador se pensamos compulsivamente, “eu
queria tocar essa pessoa ou fazer isso ou aquilo com essa pessoa”. Isso
nos deixa muito perturbados emocionalmente.

Se começarmos a exagerar o embrulho – a aparência da pessoa – é muito


útil desenvolver um tipo de visão de raio-x e imaginar o esqueleto da
pessoa. Não é difícil de fazer isso, especialmente se sabemos como é um
esqueleto. Não é uma aula de anatomia, não tem que ser perfeito. Mas nós
podemos imaginar o crânio que está por baixo da pele do rosto e da
cabeça. Isso ajuda a nos acalmar. Ou se estamos acariciando o abdômen
de alguém e pensamos, “Isso é maravilhoso”, tentamos ficar um pouco
mais conscientes do que estaríamos acariciando se fôssemos três ou
quatro centímetros sob a pele. Não significa que tenhamos que sentir
aversão. Significa que não precisamos dar uma importância exagerada
para o prazer que sentimos ao acariciar o corpo de alguém. Aplicar esses
métodos nos dá mais equilíbrio emocional.

Esses métodos são apenas provisórios. Eles não nos livram do desejo ou
do apego. Mas, temporariamente, eles suavizam essas emoções
perturbadoras quando elas surgem em certas situações. Para realmente
nos libertar delas, nós precisamos entender de verdade como uma pessoa
existe de fato e não transformar a pessoa numa “coisa”. Mas isso é muito
difícil e avançado. Por isso, primeiro aplicamos esses métodos
temporários e provisórios. Para isso, precisamos do processo de três
passos, de escutar, pensar e meditar.

Escutando o Método e Pensando Nele

Primeiro precisamos escutar o que é o método. Se estamos muito


apegados a alguém, por causa de seu corpo e sua aparência, o método
seria nos conscientizarmos do que está sob a pele também, tal como o
esqueleto e o que está dentro do estômago. Após escutar esse método,
precisamos pensar nele para entendê-lo e nos convencermos de que se
estivéssemos conscientes não só do embrulho, mas também do que está
dentro do pacote, nós não ficaríamos tão perturbados pelo desejo e apego
a essa pessoa. Nós teríamos menos problemas com essa pessoa e menos
problemas em nossa constituição emocional.

Aplicando os Quatro Axiomas

Para pensar nesses pontos que escutamos, precisamos examiná-los sob a


perspectiva dos assim chamados “quatro axiomas”. Que são quatro
maneiras de nos convencermos de algo.

O Axioma de Fundamentação por Raciocínio


Com o primeiro axioma, nós examinamos os ensinamentos para ver se
eles são plausíveis e lógicos. Nesse caso, é bastante óbvio que as pessoas
não são apenas sua pele. Não precisamos provar isso. Mas se quisermos
examinar esse ponto com lógica, então obviamente um saco de pele vazio
não poderia ficar em pé se não tivesse um esqueleto dentro. Se comemos,
tem que ter algo dentro do nosso estômago e intestinos. Assim, é
perfeitamente lógico que o corpo de uma pessoa não é só sua pele, porque
tem que ter algo dentro da pele.

O Axioma de Funcionalidade
Em seguida, examinamos como um determinado ensinamento
funcionaria para produzir o resultado esperado. Por exemplo, se
estivéssemos igualmente conscientes tanto do que está fora quanto
dentro do corpo da pessoa, esse entendimento faria com que não
exagerássemos um e ignorássemos o outro.

Também poderíamos analisar, no caso de uma pessoas muito bonita e


atraente, por que achamos apenas a sua pele bonita? Por que não
achamos o vômito em seu estômago bonito também? Obviamente, não
achamos. Assim, estar consciente dos dois aspectos de seu corpo, externo
e interno, não deve nos impedir de achar a parte de fora bonita ou
destruir nossa apreciação de sua beleza. Essa consciência apenas mantém
nossa apreciação em perspectiva. Tudo bem, o corpo da pessoa pode ser
bonito por fora, mas também tem o que está dentro, e é assim que todo
mundo é.

É muito interessante quando trabalhamos com esses pontos, pensando


neles e tentando nos convencer, porque frequentemente o que acontece é
que não queremos acreditar neles de verdade. Há uma resistência
emocional em pensar sobre o que está dentro do estômago e dos
intestinos dessa pessoa. É muito interessante notar isso. A questão,
entretanto, é que isso é a realidade. Essa é a verdade. Os tibetanos gostam
de imagens fortes. Eles diriam que se você tivesse um monte de
excremento e esculpisse uma estátua magnífica de um corpo nu e
pintasse com cor de pele, não importa o quão bonito fosse, ainda seria um
monte de merda!

A funcionalidade desse entendimento é que se estou consciente tanto do


que está fora quanto do que está dentro do corpo de alguém, isso faz com
que eu não tenha desejo ou apego por esse corpo. Isso acontece porque
não estou apenas negando um e exagerando o outro. Assim, esse
entendimento é incompatível com o encantamento. Esse entendimento,
entretanto, é compatível com ter um compromisso estável e de longo
prazo com a pessoa, com uma atitude de amor sincero e paciência com o
que acontece com qualquer corpo ao envelhecer. Se exagerarmos sua
beleza atual, quando eles começarem a envelhecer, ficar doente e perder
sua beleza, pode ser que comecemos a procurar por outra pessoa que
achamos mais atraente. Mas se entendemos e aceitamos a realidade, que
tanto o exterior quanto o interior vão mudar, então essa percepção seria
compatível com uma relação estável e amorosa com a pessoa.

O Axioma da Natureza das Coisas


Por que é que algumas pessoas são bonitas por fora, mas ainda assim tem
esqueletos, excremento e vômito por dentro? Bem, essa é simplesmente a
natureza das coisas. Nós somos seres vivos e é isso que constitui o corpo.
Não temos escolha além de aceitar que essa é a realidade. É assim que o
corpo funciona.

O Axioma de Dependência
Finalmente, nós examinamos do que depende o desenvolvimento desse
estado mental, desse entendimento, para que possamos tê-lo. Acima de
tudo, precisamos de autocontrole. Quando vemos a pessoa, precisamos
controlar o desejo compulsivo de tocar seu corpo. Precisamos do
autocontrole para dar um passo atrás por um momento e aplicar a análise
e introspecção. Esse autocontrole nos permitirá ver mais claramente e
com mais profundidade.

Além disso, precisamos ter a força de vontade e disponibilidade para


fazer isso e não ter medo de ficarmos com tanta aversão à pessoa que não
consigamos ter contato com ela. Aplicar o método adequadamente,
depende de todos esses fatores. Se entendemos isso de antemão,
saberemos o que precisamos preparar.

Meditação

Depois de passar por esse processo de pensar, que significa entender o


ensinamento e estar convencido que é útil desenvolvê-lo e que queremos
desenvolvê-lo, fazemos o que é chamado de “meditação” sobre ele.
Meditação é um método para integrar em nossas vidas o ensinamento
que já entendemos e do qual já nos convencemos. Nós o integramos ao
desenvolvê-lo como um hábito benéfico, pensando e agindo
repetidamente de acordo com o que ele nos instrui a fazer.

Esse é um processo com duas partes. Primeiro fazemos a meditação de


identificação, às vezes chamada de “meditação analítica”. Em uma
situação controlada, ou seja, sentados sozinhos, sem a pessoa na nossa
frente, fazemos o exercício com alguém por quem temos esse apego, por
exemplo, apego à sua aparência. Fazemos esse exercício com uma foto da
pessoa ou só pensando nela, e então investigamos, “Sim, ela tem um
esqueleto. Sim, ela tem algo em seu estômago”. Imaginamos seu corpo
transparente e, ao imaginar seu esqueleto, o conteúdo do seu estômago
etc. dentro da pele, tentamos identificar que seu corpo contém essas
coisas. Dessa forma, criamos a impressão em nós mesmos de que essa
visão é verdadeira. É como ter visão raio-x, mas sem perder de vista a
aparência externa da pessoa que pode de fato ser bonita. Ver o interior do
seu corpo não invalida a beleza convencional do seu exterior.

Após um período dessa meditação de identificação, na qual nossa energia,


de certa forma, estava indo na direção do objeto de foco, o corpo da
pessoa, nós mudamos para a meditação estabilizadora. Nessa segunda
fase, nossa energia está direcionada mais para dentro, enquanto tentamos
deixar aquilo que identificamos ativamente penetrar em nossa mente.
Tentamos sentir, de verdade, que “sim, isso é a realidade. Essa é a
verdade do que é o corpo dessa pessoa, do exterior para o interior. Sim,
isso é verdade”. E se estivermos identificando a pessoa exclusivamente
com seu corpo, nos lembramos que a ela também tem uma mente,
emoções e assim por diante. Mas esse é um assunto para outra meditação.

Aplicando o Método na Vida Cotidiana

Após termos criado um pouco de familiaridade com essa maneira de lidar


com o desejo e o apego, uma vez que tenha começado a ficar enraizado
como um hábito, começamos a aplicar esses métodos em situações da
vida real. Aplicamos quando precisamos, ou seja, quando temos esse forte
sentimento de apego, esse forte desejo de acariciar alguém. Examinando
nossas intenções, percebemos, por exemplo, que não queremos tocar a
pessoa porque ela precisa de consolo ou para massageá-la ou algo assim,
mas reconhecemos que achamos que precisamos tocá-la porque estamos
apegados. Nesse momento, aplicamos a mesma forma de identificar seu
corpo que praticamos na meditação. Identificamos que ter um esqueleto e
ter vômito em seu estômago é a maneira como ela é de verdade, e
tentamos sentir que isso é um fato.

Como resultado, percebemos que temos mais clareza mental para


conseguir distinguir entre o que é apropriado e que é inapropriado para a
situação. Entretanto, afinal de contas ainda estamos trabalhando com um
método temporário e provisório, se se ainda sentirmos que queremos
tocar a pessoa, segurar sua mão ou oque seja, percebemos que fazemos
isso porque na verdade queremos nos sentir bem. Não é que a pessoa
realmente precise disso. Ao aplicar essa meditação nesse momento, nós
não exageramos o que fazemos. Isso também nos permite verificar, será
que fazer isso vai deixá-la confortável, será que ela quer que eu faça isso?
E se ela não quiser, nós podemos exercer um maior autocontrole para
evitar tocá-la.
Eventualmente vai se tornar natural e espontâneo agir dessa forma
equilibrada e atenciosa: não exageramos, não nos apegamos etc.
Consequentemente a pessoa sentirá isso se tiver alguma sensibilidade em
relação a nós. Isso acontece por que se sempre estamos segurando sua
mão, por nos sentirmos inseguros e solitários, e pensamos que segurar
sua mão vai nos fazer sentir melhor, que vai resolver nossos problemas,
então há uma vibração perturbadora em relação a nós e a esse apego. Não
é confortável para a outra pessoa. Se ela tem algum nível de sensibilidade,
ela perceberá isso. Mas se não exageramos o prazer do contato físico,
então sentimos, “tudo bem, estou segurando a mão de alguém. É gostoso
sentir o contato. Eu sei o que está dentro de sua mão, os ossos etc.” Dessa
forma não é “Oh! Isso é tão fantástico!” Se, ao contrário, percebemos que
“é gostoso e me faz sentir um pouco melhor, mas não vai resolver todos
os meus problemas”, ficamos mais relaxados. É espontâneo, é natural e
não parece artificial para a outra pessoa. Ela também vai se sentir muito
mais à vontade. É isso que queremos. Não queremos dizer “não toque
ninguém, todo mundo é só um saco de excremento”, não é isso. O que
queremos é equilíbrio, para que então possamos realmente trabalhar
para ajudar os outros.

Quando lemos sobre métodos como esses nos grandes textos budistas,
como “O Caminho do Bodhisattva” de Shantideva, precisamos reconhecer
e entender o contexto no qual Shantideva, por exemplo, discute esse
assunto. O contexto é de adquirir estabilidade mental e concentração.
Uma das maiores distrações na meditação é pensar constantemente em
alguém por quem temos desejo e apego. Essa é uma distração muito
grande. Então, para alcançar estabilidade mental e concentração,
especialmente nas práticas meditativas, precisamos aplicar esse método,
mesmo quando não estamos com a pessoa por quem sentimos essa
atração. Esse é o contexto no qual esses métodos são explicados no texto.

Mas esses métodos obviamente podem ser muito bem aplicados fora das
situações nas quais tentamos meditar e ganhar concentração. Eles podem
ser muito bem aplicados em nossos relacionamentos com os outros.
Assim, quando lemos sobre esses métodos para lidar com desejo e apego
nos textos, precisamos pensar em um contexto maior para usá-los, e não
apenas aplicá-los como forças contrárias à distração em meditações de
concentração.

Os textos também contém análises detalhadas e apresentações de vários


métodos para combater outras emoções perturbadoras, como raiva,
inveja e outras, embora não tenhamos tempo para falar sobre eles aqui.
Mas eu acho que esse exemplo de como lidar com apego e desejo por
alguém, baseado em sua aparência, nos dá uma boa idea da metodologia
envolvida.

Lidando com Insegurança

Se olharmos mais fundo, descobriremos que por trás do nosso desejo e


anseio por alguém está a nossa insegurança. Desejando segurança, nós
esperamos encontrá-la no relacionamento com essa pessoa. A
insegurança, uma das emoções perturbadoras mais profundas, é
alimentada pelo medo, pela solidão etc. Como nos livramos dela?

Para fazer isso precisamos realmente entender a verdade mais profunda,


a realidade profunda do “eu” - ou seja, que não há um “eu” sólido,
plastificado, isolado de tudo e todos, que poderia ficar seguro. Não há
nada assim que poderia ficar seguro. Estamos tentando dar segurança a
um exagero da forma como realmente existimos. A realidade é que
estamos constantemente mudando: nosso estado mental, nosso corpo,
nossas emoções estão mudando constantemente. Por convenção, tudo
isso é chamado de “eu”, mas não há nenhum “eu” sólido que está lá fora,
existindo separadamente de tudo isso e que tem que ficar seguro. Tudo
muda o tempo todo.

Se tudo que é convencionalmente rotulado como “eu” está mudando o


tempo todo, então tudo que podemos tentar fazer é ter uma direção clara,
uma direção segura – que é o que refúgio significa – para a qual estamos
indo. Essa direção segura é nos esforçar realisticamente em desenvolver
mais atitudes positivas, em nos aperfeiçoarmos e assim por diante. Mas
não há nada que precise ficar seguro. Não há nada a ser defendido. Nada
existe separado e isolado, que não possa ser afetado por todo o resto. Se
entendemos isso profundamente e estamos convencidos disso, os
problemas de insegurança e solidão lenta e gradualmente diminuem e
desaparecem. De certa forma, não há nada a temer. Mas ao desconstruir a
sensação de um “eu” sólido e permanente, é importante não cair no
extremo niilista de pensar que não existimos e que então não precisamos
assumir responsabilidade por nossas ações. Podemos não ter certeza dos
resultados de nossas ações, mas mesmo assim agimos e tentamos fazer o
melhor possível.

Claro que isso resolve principalmente a insegurança emocional, mas há


outros aspectos da insegurança – insegurança financeira etc. Nessas áreas
também precisamos reconhecer a verdade relativa sobre o “eu” e minhas
responsabilidades. Nós certamente precisamos cuidar do lado econômico
e de qualquer outro aspecto que nos dê uma certa sensação convencional
de segurança. Mas ao fazer isso, assim como na esfera emocional, também
precisamos não exagerar a realidade da situação. A realidade da nossa
situação econômica é que ela não está completamente sob nosso controle.
A situação econômica do mundo inteiro influencia a nossa segurança
financeira, o sistema social etc. Se o comunismo cair, por exemplo, e
surgir uma nova forma de governo e de sistema social, as coisas vão
mudar. Assim, a única coisa que nos dá estabilidade e segurança é ter uma
direção segura para a qual estamos indo e adquirir cada vez mais
ferramentas para poder lidar com o que quer que apareça, o que quer que
aconteça. Só se a vida fosse completamente estática e nunca mudasse
poderíamos ficar completamente seguros, porque saberíamos o que vai
acontecer. Mas isso é impossível.

Nós também precisamos ter contentamento para saber quando algo é


suficiente. Eu conheço pessoas que têm um milhão de dólares e ainda
assim se sentem inseguras, porque pensam, “eu não tenho dez milhões de
dólares, se eu tivesse, me sentiria seguro”. Tente não ser assim. É um
estado mental muito infeliz.

É Inútil Tentarmos nos Livrar da Falta de Consciência?

Você poderia dizer, “Nós somos limitados. Não somos budas, então não
podemos ver ou saber todas as consequências de nossas ações e não
podemos ver a realidade de nós mesmos e dos outros. Então, será que
estamos destinados a sofrer e ser infeliz? Será que um dia poderemos nos
livrar da nossa falta de consciência e da nossa confusão?”

Não, nós certamente não estamos perdidos, porque é possível se livrar da


falta de consciência. Não vai ser fácil e é um longo processo, mas a mente
tem a habilidade de entender as coisas e tem a competência de juntar
tudo. Assim, o que fazemos é tentar expandir nossa compreensão.
Tentamos adquirir cada vez mais percepção e entender cada vez mais
coisas, para que, embora não saibamos exatamente qual será o resultado
do nosso comportamento, pois não sabemos todas as variáveis
envolvidas, nós sabemos cada vez mais. Baseados nisso, podemos ter um
palpite bem informado sobre como melhor agir em qualquer situação,
baseado em probabilidade e experiência e então continuamos nos
esforçando em nos aperfeiçoar.

Para melhorar nossa habilidade de lidar com os outros, tentamos


assimilar o máximo de informação possível, sobre a pessoa, sobre as
circunstâncias e assim por diante. Tentamos notar os padrões do que
normalmente acontece: qual é o padrão de como essa pessoa reage etc. e
também levamos em conta a individualidade da situação e da pessoa.
Com base nisso, temos alguma ideia de pelo menos o que tentar em
termos de como se relacionar com essa pessoa e o que fazer.

Todos nós temos todas essas habilidades, porque é assim que a mente
funciona. Naturalmente nós assimilamos toda a informação sensorial ao
nosso redor. Podemos não prestar atenção, podemos não nos interessar,
mas toda essa informação está lá. Estamos recebendo. E somos
perfeitamente capazes de perceber padrões. Podemos notar, por
exemplo, o que essas três pessoas são, que são mulheres, e então
podemos ver o padrão de como as coisas encaixam. Podemos juntar
informação em padrões e extrair um sentido delas. Podemos reconhecer
que minha mão direita não é minha mão esquerda e assim percebemos a
individualidade das coisas. Também temos a habilidade de nos relacionar
com coisas diferentes de formas diferentes. Sabemos como falar com um
bebê e com um adulto e não falamos com os dois da mesma forma. A não
ser que sejamos muito insensíveis, nós temos essa flexibilidade. Portanto,
todos os materiais básicos estão presentes.

Por falar nisso, as várias formas de funcionamento de nossa mente, são


algumas das características conhecidas como “natureza búdica”. Todos
temos essas qualidades de natureza búdica que nos permitirão tornarmos
budas iluminados. É só uma questão de reconhecê-las e treiná-las.

Conclusão

Resumidamente, é assim que lidamos com emoções perturbadoras,


treinando para poder aplicar métodos habilidosos. Há muitos métodos
para lidar com cada tipo de emoção perturbadora e é muito útil aprender,
praticar e poder aplicar uma grande variedade deles. Isso porque, em
algumas situações, um método pode não ser tão eficaz ou talvez não
consigamos aplicá-lo muito bem. Mas se tivermos alguns outros métodos
alternativos, eles podem ser mais eficazes nessa determinada situação.
Ou, às vezes, como no caso de uma doença, precisamos aplicar uma
combinação de remédios, de forma semelhante podemos precisar aplicar
uma combinação de métodos para lidar com uma emoção perturbadora
mais forte. Assim, quanto mais aprendemos e treinamos, mais capazes
ficamos para lidar com situações difíceis e problemáticas e também evitá-
las.

Para isso, ler e estudar Engajamento no Comportamento de Bodhisattva de


Shantideva é muito útil, porque toda sua apresentação é voltada para o
exame de “por que eu estou deixando essas emoções perturbadoras
mandarem em mim? Por que eu as deixo tão confortáveis na minha
mente? Esse é o inimigo real e ele não tem força de verdade. Uma vez que
eu me livre delas, tire-as da minha mente, para onde irão? Elas não
podem ficar em algum lugar lá fora e me atacar de novo como um inimigo
comum. Não há nada de sólido a respeito delas.” Pensar assim, e nos
convencer que isso é verdade, é muito útil. Isso nos dá uma base firme
para esforçarmo-nos em nos livrar dessas emoções perturbadoras. Não
ficar sob o controle delas nos permitirá assumir mais responsabilidade
pela qualidade de nossas vidas.
Inveja: Lidando com Emoções
Perturbadoras
Dr. Alexander Berzin

Existem muitas formas de inveja. Ela pode manifestar-se simplesmente como


uma falta de habilidade em tolerarmos as realizações alheias, ou pode incluir
um desejo de que fossem nossas. Podemos cobiçar algo que não nos pertence
e desejar que nos pertencesse, e podemos até mesmo desejar que o outro não
o possua. A competitividade também pode estar envolvida, assim como o
pensamento dualista de considerarmo-nos “fracassados” e considerarmos os
outros “vencedores”. Por trás disso está a preocupação com nós mesmos.
Analisando todos esses componentes, o budismo oferece métodos sofisticados
para desconstruirmos nossas emoções perturbadoras e nos livrarmos delas.

Emoções Perturbadoras

Todos nós experimentamos emoções perturbadoras (nyon-mongs, sânsc. klesha,


emoções aflitivas) – estados mentais que, ao surgirem, tiram nossa paz interior e
nos incapacitam de tal modo que perdemos o auto-controle. Exemplos comuns de
emoções perturbadoras são a avidez, o apego, a hostilidade, a raiva, a inveja e o
ciúme. Elas desencadeiam vários impulsos mentais (karma) que normalmente
resultam em comportamentos destrutivos. Esses impulsos podem nos levar a agir
de forma destrutiva com os outros e até com nós mesmos. O resultado é que nós
criamos problemas e sofrimento para os outros e, inevitavelmente, para nós
próprios.

Existe uma grande variedade de emoções perturbadoras. Cada cultura desenha


mentalmente uma linha arbitrária ao redor de um grupo de experiências
emocionais comuns, que a maior parte das pessoas dessa sociedade sente, e toma
decisões em relação a algumas características definidoras, para as descrever como
uma categoria, e depois atribui um nome a essa categoria. Obviamente, cada
cultura escolhe agrupamentos diferentes de experiências emocionais comuns, ou
seja, características definidoras diferentes para as descrever e, deste modo,
constrói diferentes categorias de emoções perturbadoras.

Em geral, as categorias de emoções perturbadoras especificadas por diferentes


culturas não se sobrepõem de forma exata, isso porque as suas definições das
emoções são ligeiramente diferentes. Por exemplo, tanto o sânscrito quanto o
tibetano possuem apenas uma palavra para o que normalmente é traduzido como
“inveja” (phrag-dog, sânsc. irshya), enquanto a maior parte das línguas ocidentais
têm duas. A língua inglesa tem “ jealousy” e “envy,” enquanto a língua alemã tem
“Eifersucht” e “Neid.” Em português, temos “ciúme” e “inveja.” A distinção que é
feita entre os dois termos ingleses não é exatamente a mesma que é feita entre as
duas palavras alemãs, e o sânscrito e tibetano também não correspondem de um
modo exato a nenhum dos termos em qualquer desses idiomas. Se nós, como
ocidentais, temos problemas emocionais dentro dessa categoria geral, designada
pelas categorias formuladas pelas nossas próprias culturas e idiomas, e se
desejamos aprender métodos budistas para superá-los, precisaremos talvez
analisar e ‘desconstruir’ nossas emoções, a forma como as conceitualizamos,
agrupando-as em várias emoções perturbadoras, conforme a definição budista.

Aqui, vamos focar no termo budista em sua tradução como “inveja”, já que essa é a
palavra que mais se assemelha à definição tradicional. O “ciúme”, nos
relacionamentos, já foi discutido na sessão “Budismo no Cotidiano”.

O Que É Inveja?

Os textos budistas classificam a “inveja” (phrag-dog) como parte da hostilidade.


Eles definem “inveja” como “uma emoção perturbadora que foca nas realizações
das outras pessoas – como por exemplo, nas suas boas qualidades, posses ou
sucesso – e a incapacidade de suportar essas realizações alheias devido ao nosso
apego excessivo ao ganho pessoal ou ao respeito que recebemos dos outros.

Apego, aqui, significa que estamos focados em uma certa área da vida no qual
outras pessoas conseguiram atingir mais sucesso que nós, e estamos exagerando
seus aspectos positivos. Em nossa mente, transformamos essa área em um dos
aspectos mais importantes da nossa vida e nela baseamos nossa auto-estima. Aqui,
está implícita uma desmesurada preocupação e apego ao “eu”. Consequentemente,
sentimos inveja porque estamos “apegados ao nosso ganho pessoal ou ao respeito
que recebemos” nessa área. Por exemplo, talvez estejamos fixados na quantidade
de dinheiro que temos, ou em nossa aparência física. A “inveja”, como um aspecto
da hostilidade, adiciona a este apego um elemento forte de ressentimento em
relação àquilo que os outros atingiram nessa área. Assim, a inveja é o oposto de
nos regozijarmos e de nos sentirmos felizes com as realizações das outras pessoas.

Frequentemente, a inveja inclui um elemento de hostilidade em relação à pessoa


que acreditamos estar em uma posição de vantagem. É claro que essa vantagem
pode ser ou não verdadeira, mas de qualquer forma estamos preocupados conosco
e com o que não temos.

Além disso, a inveja, de acordo com a definição budista, cobre parte do sentido,
mas não todo, da palavra inglesa envy. O conceito na língua inglesa é um pouco
mais abrangente, adicionando o que o budismo chama de “cobiça” (brnab-sems). A
cobiça é “o desejo desmesurado por algo possuído por outra pessoa.” Dessa
maneira, a definição de inveja em inglês é “uma consciência que não só sente dor
ou ressentimento devido a um sucesso ou a uma vantagem possuída por uma outra
pessoa, mas também sente o desejo de possuir esse mesmo sucesso ou essa mesma
vantagem”. Em outras palavras, além da incapacidade de suportar realizações
alheias numa área da vida em que, como o budismo indica, nós exageramos a
importância, a inveja é o desejo de possuirmos essas mesmas realizações. Pode ser
que sejamos pobres ou limitados nessa área, ou pode ser que não: se calhar já
temos um nível de sucesso adequado, ou até mesmo acima da média. Se sentimos
inveja e queremos ainda mais é porque a nossa cobiça cresceu e se transformou em
ganância. Frequentemente, embora não necessariamente, a inveja implica o desejo
adicional de que os outros sejam privados do que alcançaram, de modo que a posse
seja nossa ao invés de ser deles. Neste caso a emoção contém um outro ingrediente
adicional, o rancor.

Quando combinada à cobiça, a inveja nos leva à competitividade. Assim, Trungpa


Rinpoche explicou inveja como sendo a emoção perturbadora que nos impele a nos
tornarmos altamente competitivos e a trabalhar freneticamente para ultrapassar
os outros ou a nós mesmos. A inveja está ligada à ação vigorosa – à assim-chamada
“família kármica.” Por sentirmos inveja daquilo que os outros conseguiram
alcançar, nos forçamos, e àqueles abaixo de nós, a fazer mais e mais, como na
competição extrema do mundo dos negócios ou dos esportes. Por isso, o budismo
usa o cavalo para representar a inveja. Um cavalo corre com os outros por inveja.
Não consegue suportar que outro cavalo corra mais depressa.

Inveja e Competitividade

É verdade que, no budismo, a inveja está muito relacionada com a competitividade,


embora a primeira não leve necessariamente à última. Uma pessoa pode ter inveja
de outras pessoas mas, se tiver baixa auto-estima, pode nem sequer tentar
competir. Do mesmo modo, ter um espírito competitivo não implica
necessariamente em inveja. Há pessoas que gostam de competir em esportes
simplesmente para se divertir, aproveitar o tempo e desfrutar da companhia dos
outros, sem ficar marcando quem ganhou e quem perdeu.

O budismo relaciona a inveja e a competição de um modo diferente. Por exemplo,


em Engajando no Comportamento do Bodhisattva (sPyod-‘jug, sânsc. Bodhicharya-
avatara), Shantideva agrupa em uma mesma análise a inveja em relação aos de
posição mais alta, a competitividade com os iguais e a arrogância em relação
àqueles que tem um status menos elevado. A sua análise está dentro do contexto
de aprender a ver todos os seres como iguais.

O problema que o budismo está aqui a tratar é o sentimento de “eu” sou especial,
sentimento esse que está na base de todas as três emoções perturbadoras. Se, nós
pensamos e sentimos que “eu” sou o único que merece fazer algo específico, como
por exemplo alcançar uma posição superior na vida, e se sentimos inveja se outra
pessoa atinge o sucesso, tornamo-nos competitivos. Mesmo que já tenhamos
alcançado um sucesso moderado, nós temos que superar essa pessoa. A inveja é
um forte sentimento de “eu” e uma grande preocupação com nós mesmos. Não
vemos nem apreciamos os outros do mesmo modo que a nós: nos consideramos
especiais.

O remédio que o budismo oferece aos problemas e à infelicidade causada por esse
tipo de inveja, competitividade e arrogância é tratar a falácia que está por trás do
“eu” e do “você”. Precisamos perceber e olhar a todos como iguais. Todas as
pessoas têm as mesmas habilidades básicas, no sentido que todas tem a natureza
búdica – o potencial que permite alcançar da iluminação. Todas as pessoas tem o
mesmo desejo de ser feliz e ter sucesso, e de não ser infeliz e não fracassar. E toda
as pessoas tem o mesmo direito de ser feliz e atingir sucesso e o mesmo direito de
não ser infeliz e não fracassar. Nesse sentido, não há nada especial a “meu”
respeito. O budismo também ensina o amor – o desejo que todas as pessoas sejam
igualmente felizes.

Quando aprendemos a ver todas as pessoas como iguais, em termos de natureza


búdica e amor, estamos abertos para nos relacionar com alguém que conseguiu
alcançar mais sucesso do que nós, ou com alguém que atingiu sucesso enquanto
nós não conseguimos sucesso algum. Ficamos felizes com o sucesso dele, visto que
desejamos que todos sejam felizes. Tentamos também ajudar os nossos iguais a
atingirem o sucesso, ao invés de competirmos com eles e tentarmos ultrapassá-los.
Em relação àqueles que foram menos bem-sucedidos que nós, tentamos também
ajudá-los, em vez de ficarmos felizes com a desgraça alheia e arrogantemente
sentirmos que somos melhores do que eles.

A Reafirmação Cultural da Inveja e da Competitividade

Esses métodos budistas sugeridos são extremamente avançados e particularmente


difíceis de aplicar quando a inveja e a competitividade, que surgem
automaticamente, são reafirmadas, fortalecidas e até recompensadas por certos
valores culturais ocidentais. Afinal, quase todas as crianças gostam de ganhar e
choram quando perdem; é automático. Mas, além disso, muitas culturas ocidentais
ensinam o capitalismo como sendo naturalmente a melhor forma de termos uma
sociedade democrática. Subjacente está a teoria da sobrevivência do mais forte,
que propõe a competição como o ímpeto básico da vida, ao invés de, por exemplo,
o amor e a afeição. E mais, as culturas ocidentais reforçam a importância do
sucesso e da vitória com a sua obsessão pelos esportes competitivos e a sua
glorificação dos melhores atletas e das pessoas mais ricas do mundo.

Além disso, nosso sistema político democrático, com seu processo de campanha
eleitoral, pressupõe que haja competição – nos oferecem e nos vendem como
candidatos, anunciando o quão melhor somos para o cargo do que nossos rivais. A
campanha política, do modo como normalmente é praticada no ocidente, adiciona
a este processo um esforço intenso de encontrar todos os possíveis pontos fracos
nos candidatos rivais, até mesmo em termos das suas vidas privadas, exagerá-los
de forma desproporcional e anunciá-los de um modo extremo, de maneira a
desacreditar os oponentes. Muitas pessoas até vêem este tipo de comportamento,
baseado no ciúme e na competição, como algo justo e digno de elogio. Nesse caso,
traduzir o termo budista como “inveja” é mais apropriado do que traduzirmos
como “ciúme”, apesar da dinâmica emocional ser a mesma.

Por outro lado, a sociedade tibetana vê de modo negativo as pessoas que


desvalorizam as outras e que dizem ser melhores que os outros. Isso é considerado
um traço negativo de caráter. De fato, o primeiro voto-raíz do bodhisattva, é nunca
elogiar a nós mesmos e nunca depreciar os outros quando falamos com pessoas em
posições abaixo de nós – o que incluiria, aqui, anunciar esse tipo de discurso ao
público votante. A motivação é especificada como sendo o desejo pelo lucro, elogio,
amor, respeito e assim por diante, em relação às pessoas com quem falamos, e
inveja em relação às pessoas que desvalorizamos. Não faz diferença se o que
dizemos é mentira ou verdade. Pelo contrário, quando falamos acerca de nós
mesmos, a modéstia extrema é considerada digna de louvor, como quando dizemos
“Eu não tenho boas qualidades; eu não sei nada”. Assim, a democracia e as
campanhas políticas para captação de votos são processos completamente
estranhos e ineficazes na sociedade tibetana se forem praticados do modo
ocidental comum.

Até mesmo dizer que queremos concorrer a uma função é visto com suspeita, como
sinal de arrogância e de motivação não-altruísta. O único meio-termo possível,
talvez, seja que os representantes dos candidatos – e nunca os próprios – falem
com o público acerca das boas qualidades e realizações de seus candidatos, porém
sem as comparar às dos rivais e sem dizer coisas negativas a respeito deles. Isso,
no entanto, quase nunca é feito. Normalmente, são nomeados os candidatos mais
conhecidos, como os que vêm de família nobre ou lamas reincarnados, sem que
lhes seja perguntado se gostariam de concorrer. Se disserem não querer concorrer
ao cargo, isso é visto como sinal de modéstia, uma vez que aceitar de imediato
seria sinal de arrogância e sede de poder. É quase impossível que alguém que
tenha sido nomeado renuncie. A votação, portanto, é feita sem campanha política.
As pessoas normalmente votam no candidato que é mais conhecido.

Assim, o método budista de nos alegrarmos pelas vitórias dos outros – e o método
ainda mais forte de oferecer a vitória ao outro e tomar para si a derrota – talvez
não seja apropriado como o primeiro remédio a ser tomado pelos ocidentais,
fortemente convencidos das virtudes do capitalismo e do seu sistema de campanha
eleitoral. Como ocidentais, antes de encararmos as formas de inveja e competição
que surgem automaticamente, talvez seja preciso reavaliarmos a validade dos
nossos valores culturais e lidarmos com as formas doutrinárias de ciúme, inveja e
competição, que resultam da aceitação desses valores.

Um exemplo que pode nos ajudar a perceber a relatividade do ciúme, inveja e


competitividade ocidentais, que tem base cultural, é o mercado indiano. Na Índia
existem mercados de tecido, de jóias, de vegetais e assim por diante. Cada um tem
corredor após corredor de barraquinhas e de lojas, todas bem juntinhas umas às
outras, todas vendendo quase exatamente as mesmas coisas. A maior parte dos
vendedores são amigos e juntam-se frequentemente à porta das suas lojas para
beber chá. A atitude deles é que se suas lojas têm sucesso, é devido ao karma de
cada um.

As Aparências Enganadoras Subjacentes ao Ciúme e à Inveja

Como já vimos, a inveja é a incapacidade de suportarmos o sucesso de uma outra


pessoa em uma área cuja importância exageramos como, por exemplo, o sucesso
financeiro. Cheios de inveja, desejamos que tivéssemos sido nós, em vez da outra
pessoa, quem tivesse alcançado sucesso. Uma variação disso ocorre quando
alguém recebe algo de outra pessoa como, por exemplo, amor ou afeição. Da
mesma forma, desejamos que tivéssemos sido nós, e não a outra pessoa, a receber
isso.
Essa emoção perturbadora da inveja deriva de duas aparências enganadoras, que a
nossa mente cria e projeta devido à nossa confusão e a simplesmente não
sabermos como as coisas existem. A primeira é a aparência dualista de (1) um “eu”
aparentemente concreto que inerentemente merece alcançar ou receber algo, mas
que não conseguiu alcançar ou receber esse algo, e (2) um “você” aparentemente
concreto e que inerentemente não merece receber. Ao nível do inconsciente,
achamos que o mundo nos deve algo e é injusto que os outros consigam mas nós
não. Dividimos o mundo em duas categories sólidas: os “vencidos” e os
“vencedores” e imaginamos que as pessoas realmente existem e se encontram
dentro dessas “caixas” de categorias verdadeiras e aparentemente sólidas. Então,
nós nos colocamos na categoria permanente e sólida de “vencido” e colocamos a
outra pessoa na categoria permanente e sólida de “vencedor.” Podemos até colocar
todas as pessoas na “caixa” dos vencedores, todos exceto nós. Não só sentimos
ressentimento mas também nos sentimos arruinados ou destinados ao fracasso. O
resultado é ficarmos fixados no doloroso pensamento “pobre de mim.”

O ciúme e a inveja são geralmente acompanhados por uma ingenuidade em relação


às causas e efeitos comportamentais. Por exemplo, não compreendemos o por quê
de alguém ter recebido uma promoção ou um afeto e chegamos a negar que tenha
feito algo para a conseguir ou merecer. E mais, achamos que deveríamos conseguir
o que queremos sem fazer nada, sem criarmos as causas para os resultados que
queremos. Ou então achamos que já fizemos o bastante e que, no entanto, não nos
foi dada nenhuma recompensa. Desse modo, as nossas mentes criam e projetam a
segunda aparência enganadora. Nossas mentes confusas fazem com que as coisas
pareçam acontecer sem nenhuma razão ou por apenas uma razão: que, sozinhos,
fizemos com que acontecessem.

Desconstruindo as Aparências Enganadoras

Precisamos desconstruir estas duas aparências enganadoras. A nossa cultura


talvez tenha nos ensinado que a força motora inerente no mundo dos seres vivos é
a competição: o ímpeto de vencer e a sobrevivência do mais forte. Mas essa
premissa pode não ser verdadeira. Contudo, se nós a tivermos aceitado,
acreditamos que o mundo é inerentemente dividido, por sua própria natureza,
numa dicotomia absoluta entre vencedores e vencidos. Consequentemente,
percebemos o mundo em categorias conceituais fixas de vencedores e vencidos e
obviamente vemo-nos através do mesmo sistema conceitual.

Embora esses conceitos de vencedores, vencidos e competição possam ser úteis


para descrever o processo de evolução, precisamos compreender que são
simplesmente construções mentais arbitrárias. “Vencedor” e “vencido” são apenas
rótulos mentais. São categorias mentais convenientes, usadas para descrever
certos eventos, assim como chegar em primeiro lugar numa corrida, ser promovido
no trabalho no lugar de outra pessoa, ou perder um cliente ou aluno para outra
pessoa. Poderíamos, com a mesma facilidade, dividir as pessoas nas categorias de
“pessoas simpáticas” e “pessoas não muito simpáticas” dependendo do modo como
definimos a palavra “simpática.”
Quando nos damos conta de que todos esses grupos de categorias dualistas são
meras construções mentais, começamos a compreender que nada existe de
inerente, no lado do “eu” ou do “você”, que nos leve a nos aprisionarmos dentro de
categorias sólidas. Não é que sejamos basicamente e inerentemente um fracasso,
mas o que acontece é que, ao pensarmos em nós mesmos como tal, nossa verdade
passa a ser esta – que o “eu” real é um fracasso. Pobre de “mim.” Mas a verdade é
que temos muitas outras qualidades, que vão além de perdermos um cliente para
outra pessoa, então porque enfocar nesse eu, como se fosse o “eu” real?

E mais, é apenas devido às nossas mentes limitadas e à preocupação que temos em


pensar “pobre de ‘mim’” e “seu idiota ‘você,’” que as coisas aparecem como sucesso
e fracasso, ganho e perda, acontecendo sem razão, ou por razões irrelevantes. É
por isso que pensamos que o que nos aconteceu foi injusto. No entanto, o que
acontece no universo, acontece por causa de uma enorme cadeia de causa e efeito.
Tantas coisas afetam o que acontece a nós e aos outros, que está para além da
nossa imaginação incluir cada fator.

Quando desconstruímos essas duas aparências enganadoras (vencedores e


vencidos, e coisas que acontecem sem razão especial) e deixamos de as projetar, o
nosso sentimento de injustiça relaxa. Subjacente à nossa inveja está meramente a
consciência do que foi alcançado, do que aconteceu. Nós perdemos um cliente, e
agora outra pessoa tem este cliente. Esse processo faz-nos conscientes de um
objetivo a alcançar. Se não nos ressentirmos com essa pessoa, pelo o que alcançou
ou recebeu, talvez possamos aprender como ela o fez. Isso nos permitiria ver como
alcançar a mesma coisa. Só sentimos inveja porque sobrepomos à essa consciência
as aparências dualisticas e identidades concretas.

Conclusão

Portanto, o budismo oferece uma variedade de métodos para lidarmos com a


emoção perturbadora da inveja, quer a definamos do modo budista ou do modo
ocidental. Quando estamos preocupados com uma emoção perturbadora, dentro
dessas categorias gerais, o desafio é compreender corretamente as suas
características definidoras e a nossa herança cultural. Quando, através da prática
da meditação, nos habituamos aos vários métodos, podemos escolher o mais
adequado para trabalhar com qualquer dificuldade emocional que venhamos a
experimentar.
Lidando com os Desafios da Vida
À medida que o mundo digital cresce e a interação da vida real parece diminuir
cada vez mais, podemos facilmente nos sentir solitários e esquecer outras
pessoas e seus sentimentos. Métodos de meditação budista podem nos ajudar
a ganhar equilíbrio e estabilidade em nossas vidas.

A Determinação de Ser Livre de


Problemas como um Caminho para a
Felicidade
Dr. Alexander Berzin

Para conseguirmos lidar com o estresse da Era da Informação, precisamos avaliar a forma
como usamos a internet, as mídias sociais, os sistemas de mensagens, etc. Quando
percebermos que nossos hábitos contraproducentes só nos causam mais estresse, veremos
que a fonte de nossa infelicidade é nossa própria mente. Uma vez que estejamos
determinados a não nos estressar mais, podemos utilizar de autodisciplina, concentração,
presença mental e consciência discriminativa, para enfrentar os desafios da vida moderna com
mais calma e clareza.

Não importa se vivemos em grandes centros urbanos, cidades pequenas


ou no campo, todos temos problemas com o mundo moderno. A maioria
das pessoas resumiria esse problemas em uma única palavra: estresse.
Queremos sempre mais, e esse “mais” está disponível instantaneamente
na forma de informação, filmes, canais de TV, música, feeds de redes
sociais, mensagens, produtos virtuais, etc. Superficialmente pode parecer
que tudo isso só melhora nossa vida, mas esse entretenimento
instantâneo também a deixa mais complicada e estressante,
especialmente quando existem tantas opções. Não queremos a sensação
de estar perdendo alguma coisa, como no caso das notícias ou um email
ou mensagem. Temos medo de ficar de fora. Mesmo quando escolhemos
ver algum programa na TV ficamos na dúvida, por que pode estar
passando algo melhor em outro canal e estamos perdendo.

Queremos pertencer à sociedade, a um grupo de amigos; queremos


“curtidas” no nossos posts, para nos sentirmos aceitos. Mas não ficamos
tranquilos e nem satisfeitos com o número de “curtidas” ou com as
notícias que lemos na Internet. Quando o celular indica que recebemos
uma mensagem, ficamos logo ansiosos. O mesmo acontece quando
olhamos o facebook para ver se recebemos mais curtidas ou quando
verificamos as notícias para ver se algo novo aconteceu. Não queremos
perder nada, mas nada nos satisfaz e queremos sempre mais.
Por outro lado, nos sentimos oprimidos pela situação à nossa volta e
usamos nossos dispositivos móveis como fuga. Quando estamos no metrô
ou caminhando pela rua, por exemplo, tentamos bloquear a realidade que
nos cerca fugindo para o mundo virtual. Sentimos uma necessidade
compulsiva de entretenimento. Por um lado, ansiamos por paz e sossego,
por outro tememos o vácuo da ausência de informação, música e assim
por diante. Determinados a nos livrar do estresse do mundo externo, o
abandonamos e nos retiramos para o mundo virtual da internet mas,
aqui, também buscamos companhia e aprovação dos assim chamados
“amigos” da mídia social e não nos sentimos seguros. Será que a solução é
mesmo fugir para o mundo virtual dos dispositivos móveis?

Precisamos reconhecer a infelicidade que sentimos quando ficamos


presos nesse hábito e identificar sua origem. A seguir, precisamos
desenvolver a determinação de nos livrar da infelicidade, aprendendo
métodos para sair dessa situação, e adquirindo confiança neles. Mas não
queremos simplesmente não sentir nada, como um zumbi; queremos ser
felizes. A felicidade não é simplesmente a ausência de infelicidade; é algo
mais do que simplesmente um estado neutro, sem nenhum sentimento,
livre de infelicidade.

A Fonte da Infelicidade é Nossa Própria Mente

Os objeto e situações externas não são a fonte de nossa infelicidade,


sofrimento e estresse. Se fossem, todas as pessoas que entrassem em
contato com um determinado objeto ou situação teriam a mesma
experiência.

A fonte da infelicidade é nossa própria mente, com suas atitudes e emoções,


e nossa forma confusa de lidar com a realidade da vida moderna.

Temos hábitos muito fortes de nos comportar de maneira autodestrutiva,


por conta de atitudes e emoções perturbadoras como insegurança, apego,
aversão, medo e assim por diante. Elas nos fazem agir de forma a gerar
ainda mais estresse e problemas que, como em um ciclo vicioso,
fortalecem ainda mais nossas atitudes e emoções perturbadoras.

A base para essas atitudes e emoções é a falta de consciência. Ou


ignoramos o efeito do nosso comportamento, e não conseguimos ter uma
visão realista da situação, ou não compreendemos corretamente seu
efeito. Por exemplo, ignoramos o fato de que mais “curtidas” não nos fará
mais seguros; o que acontece é justamente o contrário. Ficamos mais
ansiosos, desejando mais “curtidas”, inseguros, checando constantemente
a quantidade de “curtidas” que ganhamos, e sofrendo, por conta da
insatisfação e falta de paz mental. Também podemos ingenuamente achar
que nossos problemas desaparecem quando fugimos para o mundo
virtual dos jogos eletrônicos. Toda essa falta de consciência e essa
ingenuidade, e as emoções perturbadoras que elas provocam, como o
apego, por exemplo, reforçam nosso comportamento autodestrutivo
habitual e os estados mentais perturbadores.

Para lidarmos com essas síndromes, precisamos de consciência


discriminativa da situação em que nos encontramos, como a de um
trabalho que nos exige muito, por exemplo. Temos que lidar com a
situação, essa é a realidade; a única coisa que podemos fazer é dar o
nosso melhor. Precisamos aceitar a realidade dos fatos e das nossas
limitações, e parar de projetar que a situação é monstruosa e que não
somos bons o bastante, por que achamos que temos que ser perfeitos.
Precisamos também de concentração para manter a realidade
apresentada em mente sem subestimá-la ou superestimá-la, atenção para
detectar quando nosso foco não está mais nos fatos, e disciplina para
evitar o comportamento autodestrutivo habitual.

Começamos com autodisciplina e com pequenas coisas. Quando ficamos


estressados, o nível de cortisol (o hormônio do estresse) sobe e
procuramos um alívio: fumar um cigarro, checar a mídia social, procurar
algo interessante na internet, etc. Ficamos animados e felizes antecipando
nos sentirmos melhor e nosso nível de dopamina (o hormônio da
antecipação da recompensa) sobe. Mas após fumar ou checar a internet,
não ficamos satisfeitos, e o estresse retorna.

Precisamos discriminar muito bem as desvantagens de acreditar nesse


equívoco de que o cigarro resolverá nosso problema, ou que as curtidas
resolverão nosso problema, ou que ler as notícias o fará. Só então
conseguiremos desenvolver a determinação de sermos livres. E assim
sendo, nos livraremos do cigarro, ou criaremos uma rotina para checar os
emails, mensagens, mídias sociais e notícias. E não agiremos quando o
impulso compulsivo de fumar ou olhar a internet surgir; nos absteremos.

Assim como precisamos de uma dieta alimentar para nos livrar da


obesidade física, precisamos de uma dieta de informações para nos livrar
da obesidade mental.

Precisamos limitar a ingestão de informações, mensagens, música e assim


por diante, da mesma forma que limitamos a ingestão de comida.

Quando nos abstemos dos velhos hábitos auto-destrutivos, o nível de


cortisol e estresse aumentam inicialmente, já que os hábitos são muito
fortes. Sofremos com a abstinência do cigarro, internet, smartphone ou
música, mas o estresse eventualmente passa e sentimos nossa mente
mais calma e pacífica. Se substituirmos os hábitos negativos por positivos
— como perceber que somos parte da humanidade, que estamos todos
interconectados e que nosso bem estar depende do bem estar alheio —
teremos nossa necessidade de conexão satisfeita, coisa que a mídia social
realmente não faz. E, por fim, o nível de ocitocina (o hormônio do amor)
aumenta e nos sentimos mais feliz e seguros.

Livrando-nos dos Hábitos Auto-Destrutivos

Resumindo, uma vez que tenhamos desenvolvido a determinação de


sermos livres, precisamos treinar autodisciplina, concentração e
consciência discriminativa para nos livrarmos dos velhos hábitos. Esses
são os “três treinamentos”, e precisam trabalhar juntos, mas para
desenvolvê-los de forma adequada temos que nos livrar dos seguintes
obstáculos:

 Arrependimento, um obstáculo à autodisciplina: Por exemplo,


podemos nos arrepender de não checar a internet ou responder
imediatamente as mensagens ou o email. Uma estratégia que pode ser
útil é desligar as notificações, só checar o celular ou o computador em
períodos pré estabelecidos e só responder de imediato aqueles emails
ou mensagens que forem realmente importantes. Precisamos de
autodisciplina para responder os demais emails somente quando
estivermos menos ocupados, ou em um horário pré-determinado que
separamos apenas para responder mensagens.
 Sono, torpor mental e irresponsabilidade,
obstáculos à concentração. Qualquer um desses nos faz esquecer que
evitar checar constantemente as mensagens tornará nossa vida menos
complicada.
 Indecisão e hesitação, obstáculos à consciência
discriminativa. Ficamos considerando o tempo todo se nossa decisão
de checar as mensagens apenas em horários pré-estabelecidos foi
correta. Esse tipo de dúvida surge porque é difícil e estressante evitar
checar os emails. Para lidarmos com essa indecisão, precisamos nos
lembrar das vantagens de mudarmos nossos hábitos.

Existem outras estratégias que também podemos adotar para uma vida
mais feliz. Quando estivermos em um metrô lotado, por exemplo, quanto
mais focarmos em nós mesmos, em nos proteger e fugir para o mundo
virtual do smartphone, mais fechados ficaremos. Nossa energia se
contrairá e nos sentiremos mais tensos. Não conseguiremos relaxar,
porque nos sentimos ameaçados. Mesmo se estivermos totalmente
absortos no jogo do celular ou na música que estamos escutando, o fato é
que construímos um muro à nossa volta e não queremos ser
incomodados, portanto ficamos na defensiva. Por outro lado, se
conseguirmos nos enxergar como parte do grupo de pessoas que está
metrô e desenvolver consideração e compaixão por todas essas pessoas
que compartilham da nossa situação, nosso coração e mente se abrirão.
Podemos estar alertas ao perigo, mas sem a atitude paranóica do foco
concentrado em nós mesmos — queremos que todos estejam seguros.
Não vamos querer nos isolar usando a música e o jogo para fazer com que
os outros sumam. Isso só aumenta a solidão. Se, ao invés disso, nos
sentirmos parte de um grupo maior, de todas as pessoas que estão à
nossa volta, nos sentiremos mais seguros, como um animal em meio a seu
rebanho. Entretanto, para que essa tática seja eficiente, precisamos
aplicar os três treinamento em autodisciplina, concentração e consciência
discriminativa.

Quando estivermos trabalhando e sentirmos que precisamos de um


intervalo, ao invés de irmos para a internet ou checarmos o celular,
podemos adotar a estratégia de nos levantar e andar um pouco. Diminua
os estímulos, ao invés de aumentá-los com internet e telefone.

Conclusão

Se, por determinação de sermos livres, adotarmos esses métodos dos três
treinamentos para minimizar o estresse dos hábitos autodestrutivos,
teremos uma mente mais calma para lidar com a pressão do trabalho,
família, situação econômica e assim por diante. Isso é especialmente
eficaz para as complicações que temos na vida moderna, por conta do
vício de usar informações, internet, música, etc, como válvula de escape. O
que não significa que tenhamos que ficar longe da internet e jogar nosso
celular fora, mas sim que temos que desenvolver hábitos melhores para
utilizá-los de forma benéfica e saudável.
Comentários sobre Manuscritos Lojong
Textos poéticos clássicos indianos e tibetanos oferecem uma ampla gama de
conselhos práticos com os quais podemos treinar nossas mentes a serem
cheias de amor, alegria e compaixão. Essas orientações para a felicidade,
testadas ao longo do tempo, são adequadas para pessoas de qualquer idade e
qualquer cultura.
Comentário sobre a "Guirlanda de
Joias do Bodhisattva"
Dr. Alexander Berzin

Bodhisattvas são pessoas cujo único objetivo na vida é atingir a iluminação


para o benefício dos demais seres. Atisha, um mestre do século XI, apresenta,
em poesia, as diretrizes essenciais para vivermos como um bodhisattva. Como
um cordão de pedras preciosas, essas diretrizes devem ser usadas como uma
guirlanda de flores por todos os que desejam seguir o caminho do
bodhisattva.

Estados Mentais Necessários à


Meditação em Bodhichitta
Verso de Homenagem e Verso 1
Atisha, o Autor

A Guirlanda de Joias do Bodhisattva (Skt. Bodhisattva-mani-avali) foi escrita pelo


mestre indiano Atisha (Atisha Dipamkarashrijnana, 982-1054). Atisha foi um
grande mestre budista do monastério Vikramashila. Ele preocupava-se muito em
obter e preservar os ensinamentos sobre bodhichitta, que não eram amplamente
disponíveis na Índia.

Os ensinamentos do Buda deram origem a três linhagens de sutras Mahayana, e


não a duas, como é normalmente mencionado nas orações de linhagem. Uma
dessas linhagens era amplamente ensinada e tratava de bodhichitta e a outra eram
os ensinamentos profundos sobre a vacuidade — essas duas linhagens estavam
relativamente disponíveis na Índia. Mas, além dessas duas, havia uma terceira, de
prática de bodhichitta. Essa foi a linhagem que Atisha quis aprender. Para isso, ele
fez uma viagem de 13 meses a Sumatra, a fim de estudar com o grande mestre
Serlingpa, o detentor dessa linhagem.

Depois de estudar os ensinamentos dessa linhagem, que mais tarde passou a ser
conhecida como um treinamento mental (lojong, treinamento de atitude), Atisha
retornou à Índia. Algum tempo depois ele foi convidado para ir ao Tibete. Naquela
época, o dharma havia declinado na Terra das Neves, estava seriamente
degenerado, havia muita confusão a respeito de quais eram os ensinamentos
corretos. Por isso Atisha foi convidado ao Tibete, para restaurar os ensinamentos
corretos. Depois de uma viagem muito difícil, ele começou a segunda transmissão
do dharma no Tibete, e também transmitiu os ensinamentos sobre a prática de
bodhichitta.

Atisha também é conhecido por ser o autor do primeiro lam-rim, o texto sobre os
estágios graduais do caminho. A tradição Kadam vem de Atisha e de seu principal
discípulo tibetano, Dromtonpa (1005-1064) — as pessoas que seguem essa
tradição são chamadas de “Kadampas”. A Guirlanda de Joias do Bodhisattva faz
parte do Conjunto Pai de Ensinamentos do “Livro do Kadam”, junto com o
comentário sobre cada um dos versos de Atisha em resposta às perguntas de
Dromtonpa, o “pai” da tradição Kadam.

Gampopa juntou na tradição Kagyu as linhagens da tradição Kadam com os


ensinamentos mahamudra. O resultado foi que os ensinamentos sobre bodhichitta
e treinamento mental são fortemente enfatizados nas tradições Kagyu ligadas a ele.
E as tradições Sakya e Nyingma também adotaram esses treinamentos mentais, ou
ensinamentos de lojong. Fica claro, portanto, que esses ensinamentos tiveram um
papel central no desenvolvimento do budismo no Tibete. Eu acredito que o fato
desses textos aparecerem em primeiro lugar em um conjunto de cem textos de
treinamento mental em tibetano é muito significativo. Isso indica, de várias formas,
que este texto é um dos precursores do gênero.

A uma certa altura, a tradição Kadam se dividiu em três linhagens. Tsongkhapa foi
que as reunificou e originou a tradição Gelug, que continua com a tradição Kadam
de combinar sutra e tantra. Afinal, Atisha também era um mestre tantra, apesar de
ter mantido suas práticas em segredo. Contudo, vemos indícios de seu lado tântrico
em diversos lugares de nosso texto, A Guirlanda de Joias do Bodhisattva.

O Verso de Homenagem

A primeira indicação dessa combinação de sutra e tantra está no verso de


homenagem com o qual Atisha começa texto:

Prostro-me diante da grande compaixão. Prostro-me diante dos


sublimes professores. Prostro-me diante das figuras búdicas, esses são em
quem devemos acreditar.

Grande Compaixão
Compaixão é a aspiração de que os outros estejam livres do sofrimento e das
causas do sofrimento. A grande compaixão é “grande” no sentido de que não é só a
aspiração de que os outros seres estejam livres do sofrimento da dor e do
sofrimento da mudança (a felicidade comum, mundana, que não dura e que não
sabemos o que virá a seguir), é também a aspiração de que estejam livres do tipo
de sofrimento chamado sofrimento que tudo permeia. Esse sofrimento que tudo
permeia está relacionado aos fatores agregados de nossa experiência, ou seja, à
enorme variedade de componentes que compõem cada momento de nossa
experiência em cada um dos renascimentos samsáricos. Esses fatores agregados
originam-se da confusão, são misturados à confusão e perpetuam a confusão e o
sofrimento.

A grande compaixão, portanto, aspira que os outros seres estejam livres de tudo
isso, ou seja, que obtenham a liberação, e mais, que atinjam a iluminação. Essa
compaixão também é grande no sentido de que se estende igualmente a
absolutamente todos os seres sencientes, com a mesma atitude que uma mãe
amorosa tem com seu único filho. Isso é a grande compaixão. É realmente um
estado mental extraordinário. É direcionado a absolutamente todos os seres e seu
objetivo é que todos atinjam a iluminação.

Gurus
A segunda linha do verso de homenagem é: prostro-me diante dos sublimes
professores, ou gurus — os mestres espirituais que corporificam a qualidade da
grande compaixão.

Por possuírem essa qualidade, são professores espirituais devidamente


qualificados. Sua compaixão estende-se igualmente a todos e portanto ajudam
todos os seres a atingirem a iluminação, e não apenas a seus alunos. Talvez o maior
exemplo de um mestre como esse é Sua Santidade o Dalai Lama. Seu incessante
esforço visa ajudar a todos os seres, em todo o mundo, para que todos superem
seus sofrimento. Mesmo quando se cansa, ele tenta continuar. Esse é um professor
sublime, esse é um lama.

A Natureza Búdica e a Inseparabilidade do Guru, de Avalokiteshvara e da


Grande Compaixão
Atisha acrescenta, prostro-me diante das figuras búdicas. Isso refere-se
especialmente a Avalokiteshvara, ou, em tibetano, “Chenrezig”, que é a
corporificação da compaixão no nível iluminado, a total compaixão de um buda. É
bastante significativo o fato de Atisha mencionar os gurus em primeiro lugar, antes
das figuras búdicas (yidams). O motivo disso é porque, como costuma-se dizer, é
através dos professores que fazemos contato com essas figuras búdicas.

Quando falamos em ver o professor como um buda, estamos nos referindo a ver
natureza búdica do professor. Ao olharmos para o professor, focamos nos aspectos
de sua natureza búdica e destacamos aquele que, quando suficientemente
fortalecido, é a habilidade de dar surgimento a um buda completamente iluminado,
que é representado pelo guru. Se o guru é realmente iluminado não vem ao caso. O
ponto não é esse. O ponto é focar em sua natureza búdica como inspiração, a fim de
despertarmos para a nossa própria natureza búdica.

Aqui, o aspecto que é destacado é a total compaixão dos budas, corporificada pela
figura búdica Avalokiteshvara. É por isso que costumamos visualizar essas figuras
búdicas no coração do guru e no nosso. E também é por isso que costumamos
visualizar o guru em nosso coração. Sem o guru, não teríamos acesso às figuras
búdicas e à iluminação. Foi por isso que Atisha falou primeiro do guru e depois das
figuras búdicas.

Referindo-se aos três — à compaixão, ao professor espiritual e à Avalokiteshvara


— Atisha nos fala daqueles em quem devemos acreditar. Isso refere-se
especificamente a acreditar naquilo que é fato. Isso significa não acreditar em
coisas que não temos como saber se é verdade ou que são incertas, tipo “acredito
que vai chover amanhã”; significa acreditar naquilo que é fato. O fato aqui é a
inseparabilidade da compaixão, do guru e de Avalokiteshvara. Então, com total
confiança, consideramos esses três inseparáveis e nos prostramos.

Esse verso de homenagem é muito profundo. Nos faz pensar muito em Sua
Santidade o Dalai Lama, que é reconhecido por todos os seguidores do budismo
tibetano como uma corporificação de Avalokiteshvara, a corporificação da
compaixão. Para acreditarmos nisso como fato, é importante entendemos o que
significa ser uma corporificação. Nossa crença não pode ser baseada em
superstições ou em “Eu não faço a mínima ideia do que isso significa, mas tudo
bem, eu acredito”. Esse tipo de crença não é muito profunda, além de ser instável.
Acho que é muito importante entendermos o que é compaixão, especialmente a
grande compaixão, para que possamos ter uma noção de quem é Sua Santidade e o
que ele faz, e realmente apreciar suas qualidades.

Também é importante termos alguma compreensão do que é a natureza búdica e o


que significa vermos a natureza búdica no guru. O que Avalokiteshvara
representa? Ele representa a natureza búdica da compaixão, de todos os seres. Ou
seja, ele representa a natureza básica da mente de ser calorosa, de cuidar dos
outros, etc. Assim como os outros aspectos da natureza búdica, a compaixão ocorre
no nível da base, do caminho e do resultado.

 O nível da base — aquilo que todos nós temos naturalmente, indicado pelo instinto
maternal ou paternal.
 O nível do caminho — aquilo que estamos desenvolvendo ao alimentarmos esse nível
básico de compaixão, através do treinamento budista.
 O nível do resultado — o nível de um buda.

Podemos obter insights sobre esses três níveis ao olharmos as qualidades do guru.
O guru nos ajuda no processo de desenvolvermos a compaixão nesses três níveis.
Se conseguirmos entender isso, podemos fazer prostrações para a compaixão, o
guru e a yidam Avalokiteshvara com a firme convicção e crença em sua
inseparabilidade.

E é aqui que Atisha coloca um pouquinho do tantra, de forma bem sutil e velada —
que é como que deve ser. Meu próprio professor, de quem recebi este
ensinamento, Geshe Ngawang Dhargyey, sempre enfatizou que existem muitas
coisas a serem contempladas no verso de homenagem. Não devemos achar que ele
só está lá para adornar o início do texto e que basta passarmos os olhos
rapidamente sem prestar atenção.
Verso 1: Estados Mentais Necessários à Meditação em Bodhichitta

Se analisarmos bem, veremos que os pontos principais do texto estão baseados nos
ensinamentos de Shantideva em Engajando-se no Comportamento do
Bodhisattva (Skt. Bodhicharyavatara). Assim como diversos pontos dos
treinamentos mentais — especialmente dos Oito Versos de Treinamento Mental e
do Treinamento da Mente em Sete Pontos — baseiam-se neste texto de Atisha.

Atisha fala principalmente sobre como meditar em bodhichitta e como colocá-la


em prática.

Ele começa assim:

Que eu me livre de todas as dúvidas aflitivas e valorize ser realmente sincero


em minha prática. Assim, que eu me livre completamente da sonolência, da
mente nebulosa e da preguiça, e sempre me esforce com perseverança.

Livrando-nos da Dúvida Aflitiva sobre o Que É Bodhichitta e Como Meditar em


Bodhichitta
Para conseguirmos meditar sobre bodhichitta, precisamos primeiro ouvir o que os
ensinamentos nos falam sobre esse estado mental. Começamos nos livrando de
toda dúvida aflitiva sobre onde encontrar esses ensinamentos: eles derivam
dos Três Cestos (Skt. Tripitaka) de palavras do Buda. Depois precisamos escutar ou
ler cuidadosamente as palavras do Buda e pensar sobre elas, para as
compreendermos corretamente. Fazemos isso para nos livrar da dúvida aflitiva a
respeito de quais ensinamentos devemos seguir, o que são esses ensinamento e o
que é bodhichitta.

Precisamos saber com muita precisão que bodhichitta é uma mente focada em sua
própria iluminação — não na iluminação de um Buda ou em uma iluminação
genérica e amorfa lá em cima no céu. Bodhichitta é uma mente focada
especificamente em sua própria e futura iluminação, que ainda não aconteceu mas
que pode acontecer com base em suas causas, ou seja, com base nos aspectos da
natureza búdica. Portanto, bodhichitta foca em nossa iluminação, que ainda não
aconteceu, com a intenção de atingi-la. O que nos motiva a atingi-la é amor e
compaixão — o desejo de beneficiar todos os seres e ajudá-los a se livrar do
sofrimento. Beneficiar os outros é a segunda intenção que acompanha bodhichitta.
É o que pretendemos fazer quando atingirmos a iluminação, apesar de,
obviamente, tentarmos ajudá-los da melhor forma possível durante todo nosso
caminho.

Portanto, precisamos nos livrar de toda dúvida aflitiva sobre o tópico da meditação
— bodhichitta —, sobre como meditar em bodhichitta e qual é o estado mental
exato que precisamos gerar. Assim, precisamos ouvir os ensinamentos, pensar
sobre eles e compreendê-los. É óbvio que tudo isso é muito importante. Caso
contrário, como poderíamos meditar em bodhichitta?
Meditar em bodhichitta e realmente a desenvolvê-la não é tão simples. O que fazer
durante a meditação e no que focar não é tão óbvio. Não é nem um pouco óbvio ou
fácil. Como focarmos em nossa futura iluminação, que ainda não aconteceu?
Precisamos de algo que a represente. Ela pode ser representada por um buda, pelo
guru, pela árvore de gurus reunidos ou pela yidam, a figura búdica. Ela pode ser
representada por diversas coisas.

Podemos nos questionar como o debate e a meditação em bodhichitta se encaixam.


O propósito do debate é justamente acabar com a dúvida aflitiva. Para meditarmos
adequadamente, precisamos saber no que a mente deve se focar, como ela deve se
focar e quais fatores mentais devem acompanhá-la — amor, compaixão, intenção,
motivação, etc. Então precisamos saber como gerar esse estado mental. Através do
debate conseguimos esclarecer qualquer tipo de dúvida em relação a esses
aspectos.

Muitas pessoas confundem bodhichitta com compaixão. Acham que estão


meditando em bodhichitta quando, na verdade, estão meditando em amor e
compaixão por todos os seres. Meditar sobre a aspiração de que todos os seres
sejam felizes e obtenham as causas da felicidade e estejam livres do sofrimento e
das causas do sofrimentos é uma parte da base de bodhichitta. Essas aspirações
acompanham bodhichitta, mas não são a mesma coisa que bodhichitta. Uma
confusão parecida acontece com a compaixão: muitas pessoas meditam em
compaixão mas não na grande compaixão. Portanto, novamente, é importante
tentarmos nos livrar de toda incerteza e dúvida aflitiva sobre essas questões.

Além disso, quando não temos certeza do que estamos fazendo ao meditar,
teremos o obstáculo da divagação mental. Divagamos pensando: “Será que isso é
bodhichitta, ou será que é aquilo?” “Será que estou meditando corretamente ou
será que entendi tudo errado?” Estamos sempre questionando o que estamos
fazendo.

Portanto, não só precisamos ganhar confiança no que é bodhichitta e em como


meditar em bodhichitta, como também precisamos ter confiança de que a prática
que estamos fazendo é válida. Precisamos nos livrar da dúvida aflitiva que nos faz
divagar, pensando: “Será que esta é a prática correta?” “Será que vai funcionar?” “
Será que não vai funcionar?”. Temos que nos livrar de todas essas dúvidas no
estágio de escutar os ensinamentos e, principalmente, no estágio de pensar sobre
os ensinamentos; o debate pode nos ajudar nisso. Só então conseguiremos meditar
corretamente. Conforme diríamos em alemão: “Alles klar”, tudo tem que estar claro
para que realmente possamos meditar corretamente sobre um determinado
tópico. Caso contrário, estaremos apenas fingindo que estamos meditando.
Estaremos apenas sentados brincando, sem saber exatamente o que estamos
fazendo. Isso não nos levará muito longe.

Para Sermos Totalmente Sinceros em nossa Prática de Bodhichitta a Motivação


Precisa Ser Sincera
Uma vez que tenhamos escutado e pensado com cuidado sobre os ensinamentos, e
nos livrado da dúvida aflitiva, podemos tratar de sermos realmente sinceros em
nossa prática. Isso refere-se à meditação em que cultivamos bodhichitta como um
hábito. Geramos esse estado mental repetidamente, fazendo com que ele fique
cada vez mais forte. Ser realmente sincero significa que nossos esforços em gerar
bodhichitta são totalmente sinceros e que estamos nisso com todo nosso coração.

Para colocarmos todo nosso coração em alguma coisa, precisamos de motivação. Se


nossa motivação for realmente sincera, seremos sinceros em nossa prática e não a
faremos por obrigação, culpa ou algo do gênero. Portanto, é muito importante
trabalharmos na motivação. Para as horas em que ela não for forte, e muitos dias
isso vai acontecer, precisaremos conhecer os vários métodos para a reavivar.

Nossa motivação também vai depender muito de nossas companhias — se as


pessoas ao nosso redor apoiam nossa prática. Ter uma comunidade amistosa e
acolhedora de pessoas engajadas nas mesmas coisas, ter um professor espiritual
por perto e assim por diante, nos ajuda a manter a motivação forte. Além disso,
estar perto de seres que sofrem intensamente pode fortalecer muito a nossa
motivação. Podemos nos inspirar naqueles que estão em uma posição melhor,
como os grandes mestres, e nos que estão em uma posição pior, como os que
sofrem miseravelmente. Conforme disse Shantideva, a iluminação vem tanto dos
budas quanto dos seres sencientes.

(VI. 113) Se a realização do dharma do Buda depende tanto dos seres


sencientes quanto dos Triunfantes (budas), porque não demonstramos aos
seres sencientes o mesmo respeito que demonstramos ao Triunfante?

Esclarecimento sobre Como Meditar em Bodhichitta


Focando em Nossa Iluminação que Ainda Não Aconteceu
A meditação em bodhichitta foca em nossa própria iluminação futura. Não quero
entrar em muitos detalhes, mas, se pensarmos em termos de nosso contínuo
mental, nossa iluminação é algo que pode ser validamente rotulado em nosso
futuro contínuo mental. Nossa futura iluminação, que ainda não aconteceu, pode
ser validamente rotulada na continuação futura de nosso contínuo mental, com
base na continuidade dos aspectos da natureza búdica. Se essas várias causas
forem criadas, nomeadamente as redes de força negativa e consciência profunda, o
estado iluminado, que pode acontecer, vai acontecer. Precisamos nos convencer
disso.

Para conseguirmos focar na iluminação, usamos algo para representá-la, que pode
ser, por exemplo, uma figura búdica ou um Buda. O que a figura búdica ou buda
representam é nossa iluminação futura que pode ser validamente rotulada no
contínuo mental, e que pode ser obtida com base nos aspectos da natureza búdica.
É nisso que nossa mente deve se focar. Essa consciência deve vir acompanhada de
amor, compaixão e da intenção de alcançar esse objetivo para ajudar todos os
outros seres. Existem vários fatores mental que acompanham esse processo, mas
isso é um pouco mais complicado.
Assim como podemos pensar, ver e ouvir ao mesmo tempo, podemos estar cientes
de várias coisas ao mesmo tempo como objetos de nossa cognição — mas o tipo de
atenção que direcionamos a cada uma é diferente. Tanto o amor quanto a
compaixão são direcionados aos seres sencientes, mas a forma como o amor foca é
com a aspiração de que sejam felizes. Já a compaixão foca no sofrimento e com a
aspiração de que todos se livrem dele. Geramos os amor e compaixão, um de cada
vez, já que possuem formas diferentes de focar em seu objeto. Quando geramos o
ideal de bodhichitta, com base no amor e na compaixão, o foco é em nossa futura
iluminação, e a forma como focamos é com a aspiração de alcançá-la. As duas
intenções, a de atingir a iluminação e a de, com isso, beneficiar os seres, também
focam em nossa futura iluminação. Nossa atenção deve estar principalmente em
bodhichitta. Apesar do amor e da compaixão continuarem presentes, eles não são o
foco principal. De certa forma, eles colorem nosso ideal de bodhichitta, mas seu
objeto focal, todos os seres sencientes, não aparece em nossa mente.

Como eu disse, leva tempo e muito pensamento e discussão para realmente termos
uma ideia clara do que significa meditar em bodhichitta. “Agora vou sentar-me e
meditar em bodhichitta” — bom, o que você quer dizer com isso?

Logicamente, precisamos passar por vários estágios até sentirmos bodhichitta


sincera. Precisamos desenvolver amor e compaixão, e existem diversos métodos
para isso: a meditação de causa e efeito de sete partes, a meditação da equalização
e troca de lugar com os outros e a meditação de onze partes, que combina as duas
primeiras.

Quero só acrescentar algo que é muito importante para entendermos o que


significa ter grande compaixão. Quando nosso objetivo é desenvolver e atingir a
iluminação, precisamos saber o que é iluminação. Precisamos saber o que isso
significa e quais são as qualidades do estado iluminado. Por isso, um buda ou uma
figura búdica são uma boa representação. Quando visualizamos um buda ou figura
búdica, precisamos pensar sobre todas as qualidades de um ser iluminado. E,
logicamente, com a grande compaixão o fazemos com a intenção de ajudarmos a
todos os seres. Estamos falando de incontáveis seres, o escopo é incrivelmente
amplo.

Quando começamos a perceber o que é o estado mental de bodhichitta em sua


incrível vastidão, começamos a apreciar o primeiro capítulo de Shantideva, no qual
ele elogia bodhichitta. Caso contrário, é apenas uma bela poesia.

(I.25) Essa extraordinária joia da mente (bodhichitta) — uma mente voltada


para o bem dos seres sencientes e que não surge nos outros seres, nem para o
seu próprio bem — cristaliza-se como uma maravilha sem precedentes.

(I.26) Como pode a força de uma mente que é como uma joia, que é a causa da
felicidade dos seres sencientes e um elixir para os que sofrem, ser mensurada?
Como Focar em Algo que Ainda Não Aconteceu
Você pode se perguntar: “como podemos focar em algo que ainda não aconteceu?”
Darei um exemplo, porque isso é muito importante para entendermos o que é
bodhichitta. Nossa iluminação ainda não aconteceu, assim como o amanhã. O
amanhã ainda não aconteceu, mas será que o amanhã existe? Será que existe um
amanhã? Como podemos focar no amanhã e planejar nosso dia se ele ainda não
existe? No que focamos quando pensamos no amanhã? Não estamos focando no
nada. Esses são pontos que precisamos pensar a respeito e debater.

Algo que Ainda Não Está Acontecendo é um Fenômeno de Negação


Para respondermos à pergunta sobre como focar em algo que ainda não aconteceu,
é muito importante entendermos o conceito filosófico de um fenômeno
validamente conhecível e de fenômenos afirmativos e de negação. Isto porque
nossas categorias ocidentais de existência e não existência são irrelevantes aqui.
De acordo com a apresentação budista, se algo existe pode ser validamente
conhecível, quer seja do ponto de vista conceitual ou do não conceitual; e se não
existe não pode ser validamente conhecível.

Entre as coisas que podem ser validamente conhecíveis existem os fenômenos


afirmativos e os fenômenos de negação. Nossa futura iluminação é um fenômeno
afirmativo. Assim como podemos ver um mangusto mesmo que nunca tenhamos
visto um mangusto antes, podemos focar na iluminação mesmo sem nunca termos
focado na iluminação antes. Quando focamos na iluminação, estamos focando em
um fenômeno afirmativo. Esse fenômeno afirmativo é imputado em um
determinado aspecto de suas causas, que são as redes de força positiva e
consciência profunda. Esse aspecto é sua habilidade de fazer com que a iluminação
se manifeste como resultado quando as causas e condições estiverem completas.
Essa iluminação imputada em suas causas pode ser validamente conhecível, assim
como o amanhã imputado no hoje pode ser validamente conhecível. E mais, o que
pode ser imputado em nossa futura iluminação é o fato de ainda não ter
acontecido. Esse “não ter acontecido” é um fenômeno de negação; nega seu
acontecimento no presente momento. Para sabermos que algo ainda não
aconteceu, precisamos saber o que está acontecendo no momento para então
podermos negá-lo. Por exemplo, precisamos saber que estamos no hoje para
podermos saber que o amanhã ainda não aconteceu.

Podemos representar nossa iluminação que ainda não aconteceu usando uma
figura búdica e imputando o “eu” validamente nela, mas somente quando também
reconhecemos validamente que ainda não somos um Buda, ou seja, que nosso
budato ainda não aconteceu.

Focar a Meditação de Bodhichitta em Algo que Ainda Não Aconteceu Não É o


Mesmo que Focar em Algo que Não Existe
É por causa desses aspectos que digo que precisamos nos livrar da dúvida aflitiva.
Caso contrário, depois de um tempo podemos pensar: “Eu não sei o que estou
fazendo ao sentar aqui tentando meditar sobre bodhichitta. Será que estou focando
em algo que não existe?” E vira uma loucura.
O que Atisha quer deixar claro é que se queremos ser capazes de meditar
unifocadamente e corretamente, precisamos nos livrar da dúvida aflitiva, ou seja,
de nossa incerteza sobre o que estamos fazendo, como fazer, etc. Caso contrário, o
que pode acontecer é começarmos a divagar: “Será que estou fazendo isso direito?
O que está acontecendo? Talvez isso não exista.” Também podemos começar a
divagar quando não estamos convencidos de que realmente podemos alcançar a
iluminação. Portanto, aqui Atisha está nos dando instruções muito profundas de
meditação em pouquíssimas palavras.

Essa nossa discussão sobre bodhichitta é muito importante. É preciso que o


significado do que é meditar sobre bodhichitta esteja muito claro. Se não tivermos
clareza, fica tudo um pouco estranho.

Livrando-nos de Outros Obstáculos à Meditação

Então estamos sendo realmente sinceros em nossa prática. Uma vez sabendo
como gerar bodhichitta e sendo capazes de permanecer focados nesse estado
mental, precisamos nos livrar dos obstáculos que surgem na meditação em si. A
segunda metade do verso diz: Assim, que eu me livre completamente da
sonolência, da mente nebulosa e da preguiça. Já lidamos com a divagação que
surge como resultado da dúvida aflitiva; agora temos os obstáculos que surgem
por causa do torpor.

Sono e Mente Nebulosa


O tipo mais grosseiro de torpor é a sonolência, cair no sono — o que, obviamente,
é um obstáculo a meditação. Com esse tipo de torpor a consciência se retira dos
sentidos. Basicamente, é isso que significa cair no sono. A mente nebulosa é um
tipo sutil de torpor. Quando sentimos nossa mente e corpo muito pesados, é
porque a mente está nebulosa. O terceiro tipo, ainda mais sutil, é a preguiça.
Apesar da preguiça não ser exatamente uma forma de torpor mental, ela está
subjacente. Quando trabalhamos para nos livrar dos obstáculos mentais, tentamos
primeiro nos livrar dos mais grosseiros e só depois dos mais sutis. A preguiça é o
mais sutil.

Os Três Tipo de Preguiça


Shantideva discorre detalhadamente sobre a preguiça no sétimo capítulo de seu
texto, intitulado “Perseverança”.

Existem três tipos de preguiça. O primeiro é a letargia. Letargia significa falta de


energia e entusiasmo — não temos vontade de fazer coisa alguma, então
procrastinamos. Existem três causas para isso. Shantideva explica:

 Apatia em relação aos nossos problemas recorrentes — uma falta de interesse ou


preocupação. Quanto estamos apáticos não nos preocupamos, e então nos tornamos
letárgicos; não queremos fazer coisa alguma.
 Gostar de fazer nada — ter prazer em ficar sentado fazendo nada. Isso nos deixa
letárgicos e, novamente, não temos vontade de fazer coisa alguma.
 Tomar o sono como refúgio — Não conseguimos lidar com as coisas, então só queremos
fugir para nossa cama quentinha e macia.

O segundo tipo de preguiça é nos apegarmos a coisas bobas. Um exemplo seria


ficar de papo furado ou tentar manter-se ocupado com os afazeres domésticos ou
qualquer outra coisa, só como desculpa para não fazer algo construtivo. A
procrastinação também está envolvida nisso, deixamos as coisas para depois
porque estamos apegados a algo bobo no momento.

O terceiro tipo de preguiça é nos desencorajarmos e, portanto, não nos


valorizarmos. Pensamos: “Não consigo, não sou capaz”. E então nem tentamos. Isso
é uma forma de preguiça.

Perseverança como o Oposto da Preguiça


O oposto da preguiça é a perseverança, o “vigor entusiasmante” ou a “coragem
heroica”. A última linha de nosso verso diz: que eu sempre me esforce com
perseverança. Conforme explicou Shantideva, a perseverança baseia-se em
diversos fatores.

 Firme intenção — exuberância e energia com base na firme convicção dos benefícios de
fazer algo positivo. Com a firme intenção temos o sentimento profundo de que “devo
fazer isso e não vou desistir!”
 Firmeza e orgulho — firmeza é a qualidade de permanecer firme, resoluto. Tem como
base a autoconfiança que vem de nos orgulharmos de nós mesmos — sabermos que
somos capazes e não pensarmos mau de nós mesmos.
 Deleite — nos alegrarmos com o que estamos fazendo. E como o que estamos fazendo é
algo construtivo, nos alegramos ainda mais por continuar fazendo.
 Desapego — sermos capazes de nos desapegar do que estamos fazendo quando nos
sentirmos cansados e precisarmos descansar. Se nos esforçarmos demais, se formos
muito fanáticos, podemos ter uma estafa. Também precisamos desapegar quando
terminamos um determinado estágio de prática. Precisamos nos desapegar e continuar
para o próximo estágio. Esses são os dois aspectos do desapego, neste caso.

Shantideva menciona ainda mais dois aspectos:

 Aceitação imediata — precisamos aceitar o fato de que o caminho será difícil.


Precisamos aceitar essa realidade e não criar fantasias achando que será fácil e
adorável. Precisamos aceitar que teremos dificuldades. Ou seja, precisamos ter uma
atitude realista.
 Assumir o controle — Precisamos assumir o controle de nós mesmo: “Eu vou fazer isso”

Causas para que a Mente Não Perca


o Foco em Bodhichitta
Versos 2 e 3
Revisão
Prostrações e Natureza Búdica
Discutimos anteriormente o primeiro verso daGuirlanda de Joias do Bodhisattva,
que fala sobre como meditar e, mais especificamente, como meditar em
bodhichitta.

Esse tópico foi introduzido pelos versos de prostração e homenagem —


comprostrações à grande compaixão, aos professores sublimes (os gurus que
corporificam essa grande compaixão) e às figuras búdica que são inseparáveis
dos professores (as yidams que representam a natureza búdica dos professores).
Quando nos prostramos, o fazemos acreditando na inseparabilidade da
compaixão, dos professores espirituais e das figuras búdicas.

Quando nos prostramos, como no começo de uma aula, por exemplo, estamos
oferecendo as prostrações aos budas e aos demais mestres que atingiram a
iluminação, à nossa futura iluminação, que temos como meta alcançar, ao ideal de
bodhichitta e aos aspectos de nossa natureza búdica, que nos permitirão alcançar a
iluminação. Assim, nos prostramos não só à nossa futura iluminação mas também
à futura iluminação de todos os demais seres e aos aspectos de sua natureza
búdica.

Assim, a maneira como nos prostramos em uma aula é bastante similar ao que
temos aqui neste verso de homenagem, no sentido de que também podemos
pensar nas outras pessoas como as várias figuras búdicas (como se faz no tantra:
ver todos seres como Avalokiteshvara ou outra figura búdica) que possuem,
portanto, as qualidades da natureza búdica, que estão muito conectadas com a
grande compaixão e bodhichitta. Quando lutamos pela iluminação, é muito
importante estarmos convencidos de que é algo possível, e não apenas para nós,
mas para todos os seres. Afinal, porque trabalharíamos para levá-los a iluminação
se achássemos que não é possível?

Além disso, se conseguirmos, podemos nos prostrar e demonstrar nosso respeito


ao bêbado caído na rua, homenageando sua futura iluminação e natureza búdica,
ou ainda, podemos nos prostrar à futura iluminação e natureza búdica de uma
barata.

Você pode se perguntar: bom, e quanto às amebas, elas também tem natureza
búdica? Bom, quando pensamos em amebas e assim por diante, precisamos
analisar: será que estamos falando de seres sencientes? É muito difícil saber onde
fica a linha divisória entre o que é senciente e o que não é. É uma pergunta muito
difícil pois, por um lado, consideramos que fantasmas e criaturas infernais são
seres sencientes, e por outro, não consideramos que as plantas ou os fungos de
nossos pés sejam sencientes. Não é fácil determinarmos quais formas de vida são
realmente sencientes, no sentido de terem algum tipo de consciência e serem
capazes de experimentar prazer e dor como resultados de suas ações kármicas de
vidas passadas.
De qualquer forma, a questão é que se conseguirmos nos prostrar à iluminação e à
natureza búdica de uma barata, confiando em sua capacidade de atingir a
iluminação, por que duvidaríamos da com a nossa própria capacidade? Shantideva
explica bem isso:

(VII.17) Nunca se desencoraje pensando: “Como pode haver iluminação para


mim?” Aquele que Diz a Verdade, Aquele que Assim se Foi (o Buda),
pronunciou esta verdade, assim:

(VII.18) “Até mesmo os que se tornaram pernilongos, mosquitos, vespas e


vermes deverão atingirão a iluminação insuperável, tão difícil de ser alcançada,
através do poder do esforço vigoroso.”

(VII.19) (O que dizer de) alguém como eu, que tem natureza (búdica) e nasceu
como um ser humano capaz de perceber o que é benéfico e o que é maléfico!
Porque eu não deveria atingir a iluminação, desde que não deixe de me
comportar como um bodhisattva?

Se realmente tivermos bodhichitta, estaremos armados com o tipo mais forte de


oponente (força opositora, antídoto), juntamente com a compreensão da
vacuidade, é claro. Mesmo sozinha, bodhichitta é uma oponente muito poderosa
para superamos coisas como a preguiça, que nos leva a pensar: “Não consigo fazer
isso; sou muito idiota” ou “isso é demais para mim”. É muito importante
superarmos esse tipo de pensamento. Caso contrário, não poderemos ter
esperança de realmente trabalhar com bodhichitta. A vacuidade pode nos ajudar a
superar esse obstáculo ensinando-nos que: “eu não sou inerentemente incapaz,
essa não é a minha natureza intrínseca. Alcançar a iluminação é apenas uma
questão de gerar as causas e ter as condições, as influências e a inspiração correta.”

O Estado Mental Necessário à Meditação em Bodhichitta


No que diz respeito a como meditar em bodhichitta, primeiro Atisha diz que
precisamos nos livrar da dúvida aflitiva. Isso refere-se não apenas à nossa
indecisão no que diz respeito ao significado de bodhichitta, como meditar em
bodhichitta e quais métodos são válidos; refere-se também à nossa indecisão
quanto à possibilidade de desenvolvermos bodhichitta e principalmente à
possibilidade de nós, e todos os demais seres, atingirmos a iluminação. Se tivermos
dúvidas sobre nossa capacidade de atingir esse objetivo, não conseguiremos nos
dedicar de todo coração à concentração unifocada e focar em bodhichitta.

Durante o processo de escutar e pensar sobre os ensinamentos, trabalhamos para


nos livrar de todas as nossas dúvidas aflitivas a respeito dessas questões. Então,
diz Atisha, podemos ser realmente sinceros em nossa prática. Isso quer dizer
quepodemos nos dedicar de todo coração. Aqui, Atisha refere-se
especificamente à meditação em bodhichitta. Compreendemos o que significa
bodhichitta e nos convencemos de que podemos desenvolvê-la e alcançar a
iluminação. Portanto, agora podemos colocar todo nosso foco nela e desenvolvê-la
como um hábito benéfico ao coração e à mente — que é o significado da palavra
“meditação”.

Um ponto que gostaria de acrescentar é que também não podemos ficar na dúvida
quanto à maneira com que vamos ajudar os outros seres a alcançar a iluminação.
Isso precisa estar claro. Nossa ajuda não será a de um Deus Todo Poderoso, que só
precisa tocar a pessoa com seu dedo e ela se ilumina. Não podemos ter dúvidas
quanto a isso. Precisamos ter uma ideia clara a respeito de como vamos ajudar os
demais seres a atingirem a iluminação. E também precisamos estar convencidos de
que essa forma de ajudar vai funcionar. Há uma brincadeira que diz: “Se você fosse
um Deus Todo Poderoso, por que precisaria tocar uma pessoa com seu dedo para
iluminá-la? Só para parecer convincente?”

A seguir, precisamos nos livrar dos obstáculos que surgem na meditação em si. No
que diz respeito ao obstáculo do torpor, Atisha diz que precisamos nos livrar da
sonolência, da mente nebulosa e da preguiça. Uma vez livres dos diferentes
tipos de preguiça, poderemos nos esforçar com perseverança. Perseverança é a
coragem heróica de nunca desistir, de colocar toda nossa energia em algo
construtivo, diligentemente, e com orgulho e alegria. Essa energia é uma energia
que emanamos para o universo.

Em muitos textos, a palavra “perseverança” é descrita como “alegria” e várias vezes


é traduzida como “alegre perseverança”. A forma como esta palavra, “alegria”, foi
traduzida do sânscrito para o tibetano é um pouco estranha. O significado que
geralmente é enfatizado é “alegria” mas o outro significado, que é mais parecido
com o significado da palavra sânscrita utsaha é “energia indo para fora”. É a mesma
palavra que “emanar”. Portanto, a energia está indo para fora de uma maneira
alegre — como um buda: a diversão da mente de um buda é irradiar emanações e
influências iluminadoras sem esforço. Esse é o significado da palavra usada aqui. É
o oposto da preguiça.

Portanto, quando vemos a tradução “alegre perseverança”, nos lembramos que não
é só “trabalhar assobiando” ou um sentimento de “estou tão feliz”. “Estou tão feliz
em ir ao pior dos infernos para te ajudar” — não é assim.

Verso 2: Fatores Mentais Necessários à Superação da Agitação


Mental
Que eu sempre proteja os portões de meus sentidos com presença mental,
atenção e cuidado. Portanto, que eu verifique repetidamente meu fluxo mental,
três vezes ao dia e três vezes à noite.

Esse verso continua tratando de como devemos nos concentrar e como meditar em
bodhichitta. Precisamos sempre proteger os portões de nossos sentidos. Isso
significa lidar com a agitação mental. A mente fica agitada quando é atraída por
coisas prazerosas, coisas que desejamos ou às quais nos apegamos. O verso
anterior falou do torpor mental, este verso fala da agitação mental. Esses são os
dois principais obstáculos ao atingimento da concentração unifocada.

Presença Mental, Atenção e Cuidado


Para superarmos a agitação, usamos os poderes da presença mental, da atenção
e do cuidado. Isso também é algo que Shantideva enfatiza. Ele dedica dois
capítulos a esse assunto. Lembre-se dos capítulos em que ele diz, referindo-se a
quando percebemos que vamos fazer alguma coisas negativa ou que vai nos
distrair, “permaneça como um bloco de madeira”. Lembre-se dos títulos dos
capítulos quatro e cinco: “Cuidando (da Bodhichitta)” e “Protegendo com Atenção”.
Ele usa as mesmas palavras [cuidado e atenção]. Esses são os dois capítulos que
tratam da perfeição da disciplina ética, que precisamos aplicar primeiro ao nosso
próprio comportamento. Uma vez que tenhamos aprendido a evitar falar ou agir de
forma destrutiva, podemos aplicar essa autodisciplina ética à nossa mente durante
a meditação.

Proteger tem a conotação de proteger contra o tipo de divagação mental causado


pela mente distraída por objetos sensoriais desejáveis. Protegemos a mente; a
protegemos de todos os perigos, no sentido de “salvar”, resgatamos nossa atenção
quando ela se perde e a trazemos de volta. Todos esses significados estão na
palavra “proteger”.

Tsenzhab Serkong Rinpoche costumava dizer que cada palavra de um texto é cheia
de significados. Assim, temos que ordenhá-la como a uma vaca, para extrair todo o
seu significado — a “vaca realizadora de desejos”, que é o que diríamos na forma
de pensar indiana.

Aqui, estamos lidando com a atenção. Atenção é aquilo que colocamos em um


objeto a fim de permanecermos focados nele. Precisamos de presença mental,
que é como se fosse uma cola mental, que prende a atenção no objeto, fixando-o. É
a mesma palavra que traduzimos como “lembrar”. A atenção é o que vigia. Ela
vigia o controle de qualidade da presença mental, a cola mental, para garantir que
não está muito forte ou muito fraca ou que tenha descolado do objeto.

Tudo isso se baseia em uma atitude cuidadosa — nós cuidamos. Nos importamos
se estamos nos concentrando e como estamos meditando, porque realmente
queremos desenvolver bodhichitta: realmente queremos atingir a iluminação e
ajudar os outros seres. Portanto, tudo isso se baseia em uma atitude de cuidado.

Precisamos usar a atenção, e não apenas durante a prática da meditação mas


durante todo o dia e toda a noite. Precisamos da atenção para verificar o que se
passa com nosso estado mental. Será que estamos sendo egoístas? Será que
estamos agindo sob influência de emoções destrutivas?

Mesmo quando estamos dormindo podemos estar conscientes. Às vezes, as


pessoas têm sono leve e têm consciência de seus sonhos. Se acordarmos no meio
da noite, podemos lembrar do que estávamos sonhando, podemos verificar. Se for
um sonho negativo, podemos estabelecer uma intenção positiva ao invés de
ficarmos perturbados. Tentamos voltar a dormir pensando em nosso professor ou
em algo positivo.

A Necessidade de Introspecção
O principal é termos consciência e atenção para verificarmos o que se passa em
nossa mente. Se for alguma coisa negativa, precisamos corrigir ou “permanecer
como um bloco de madeira”, ou seja, não agir com base no que estamos pensando.
Se estivermos começando a ficar com raiva ou ganância, ou começando a agir de
forma egoísta ou falar idiotices, tentamos logo perceber e parar. Da mesma forma,
se percebermos que estamos começando a ficar deprimidos ou desencorajados,
também paramos. Isso é o que significa ter consciência do que se passa em nossa
mente.

Três vezes não significa “Ah, são três horas, agora vou verificar o que se passa em
minha mente durante trinta segundos”, e quatro horas depois toca um outro
alarme e verifico novamente. Não é isso. A principal prática do dharma é checar
constantemente, mas não de uma forma paranóica, ou como uma atitude de polícia,
pois ficaríamos travados e poderíamos ter muitos problemas — principalmente se
ainda por cima acrescentássemos o complexo de culpa dos ocidentais, o que não
faria sentido nesse caso.

O ponto é estarmos conscientes de como agimos, ter essa introspeção e nos


resguardar, ou nos proteger, de agir baseados em estados mentais negativos. Isso é
o que significa a palavra “dharma”. É uma “medida preventiva”, algo que
nos previne de criar mais sofrimento para nós mesmos. É uma medida preventiva,
algo que fazemos para prevenir o sofrimento. Essa é a etimologia da palavra
“dharma”. Vem da palavra sânscrita dhr, “segurar-se”. Se queremos ter esperança
de progredir no dharma, precisamos ser capazes de aplicá-lo no dia a dia. Para
tanto, precisamos estar conscientes do que se passa em nossa mente e,
obviamente, do que estamos fazendo com nosso corpo e fala, pois eles são afetados
pelo que se passa na mente. Mas, novamente, fazemos isso sem a atitude de
policial, de punição e julgamento, que vem da mitologia ocidental.

Conforme estudamos e aprendemos mais e mais dharma, aprendemos mais e mais


forças opositoras (antídotos)— métodos para lidarmos com os estados mentais
negativos ou inúteis. É muito útil termos um grande repertório de métodos, pois às
vezes um método é mais eficiente ou mais conveniente que outro. Na vida em
geral, é muito bom podermos contar com mais de uma solução. Se uma não
funcionar, podemos tentar outra. Esse é o caso específico da prática do dharma.

Verso 3: Causas para Evitar a Divagação Mental


Que eu deixe que meus defeitos sejam conhecidos e não procure defeitos nos
outros. Assim, que eu esconda minhas boas qualidades e divulgue as boas
qualidades alheias.
Evitando Divagação Mental a Respeito de Nossas Próprias Falhas e dos Defeitos
dos Outros
Esse verso também trata das causas da divagação mental durante a meditação —
apesar da divagação também poder nos afetar nos períodos em que não estamos
meditando. Quando escondemos nossos defeitos, ou imperfeições, geralmente nos
sentimos culpados. Isso nos corrói por dentro. No entanto, se deixarmos que
nossos erros sejam conhecidos, pediremos desculpas ou faremos o que for
necessário; assim, nosso coração ficará muito mais leve e não nos sentiremos
culpados. No português dizemos que “tiramos um peso das nossas costas”. Isso nos
ajuda a diminuir a divagação mental causada por estarmos escondendo nossas
imperfeições.

E não procure defeitos nos outros. Isso também é uma grande causa de
divagação mental. Sentamos pensando: “Ah, ele(a) não é uma boa pessoa” ou “Olha
o que ele(a) fez”, criticando e assim por diante. Isso pode gerar uma enorme
quantidade de divagação mental.

Além disso, frequentemente, vemos nossos próprios defeitos refletidos nos outros.
Por exemplo, digamos que tenha sobrado um último pedaço de bolo no prato e
alguém o pega. Então acusamos a pessoa de ser gulosa: “Seu porco guloso, você
pegou o último pedaço do bolo!” O único motivo pelo qual isso nos incomodou é
porque somos gulosos; queríamos o último pedaço. Se não quiséssemos, que
diferença faria quem o pegou? Normalmente, quando focamos nos erros e defeitos
dos outros, estamos vendo nossos próprios erros refletidos neles. Assim, é melhor
usarmos essa energia para trabalharmos em nós mesmos.

O que geralmente também acontece, é que quando estamos sempre criticando os


outros, as pessoas ficam com uma má impressão a nosso respeito. Se estamos
sempre achando defeitos nos outros e achamos que ninguém mais é bom o
suficiente e assim por diante, as pessoas começam a suspeitar das nossas
qualidades. Por isso o primeiro voto do bodhisattva é abster-se de diminuir os
outros e de se engrandecer. Infelizmente, é o que os candidatos normalmente
fazem em uma eleição no ocidente, porque eles querem ganhar alguma vantagem
ou uma posição de poder. Isso faz com que pessoas mais sensatas suspeitem de
suas intenções. Mas aqui, especificamente na meditação, isso pode ser um grande
obstáculo.

Dromtonpa, o principal discípulo de Atisha no Tibete, disse: “Se você consegue ver
seus próprios defeitos e não procura defeitos nos outros, é sábio, mesmo que não
tenha qualquer outra qualidade.” Isso nos dá muito o que pensar. Às vezes
pensamos que a sabedoria é algo inalcançável e que requer muita inteligência. Mas
isso não é ser sábio. Pessoas podem não ter qualquer tipo de educação formal mas
serem sábias, mesmo quando não são super inteligentes e não conseguem
aprender dez idiomas. Ser “sábio(a)” significa ter consciência discriminativa, que,
por sua vez, significa ser capaz de discriminar entre o que é útil e o que é
prejudicial, o que é benéfico e o que não é benéfico. Se conseguimos fazer isso,
somos sábios.
Evitando Pensamentos de Querer Vangloriar-se e Aparecer
Atisha continua esse verso dizendo: que eu esconda minhas boas qualidades.
Isso porque podemos ficar orgulhosos, arrogantes e querer nos vangloriar de
nossas qualidades. E isso pode criar obstáculos à nossa meditação. Podemos ficar
pensando: “Nossa, como sou maravilhoso. Estou meditando tão bem!” ou “Tenho
essa qualidade, e também aquela.” Além disso, podemos ficar nos vangloriando de
nossas conquistas e boas qualidades mas, ficar falando delas para todo mundo
pode deixar os outros com inveja.

Podemos, todavia, mencionar nossas boas qualidade se servirem de inspiração aos


outros. Porém, precisamos de muita sensibilidade para sabermos se vai lhes
inspirar ou acabar lhes desencorajando ou os deixando com inveja ou o que for. No
geral, é melhor permanecermos totalmente humildes. Tsoghkhapa disse:
“Mantenha a luz da chama da lamparina de manteiga dentro do vaso; ela ilumina o
interior mas não aparece do lado de fora”. Portanto, mantenha a chama de suas
boas qualidades para dentro, “dentro do vaso”; não fique anunciando suas boas
qualidades para o mundo.

Humildade
A ênfase na humildade é muito forte nesta tradição Kadam. O ponto é usar nossas
boas qualidades para ajudar os outros. Para isso, não precisamos nos vangloriar,
dizendo que temos esse ou aquele título ou colocando nossos diplomas na parede e
coisas do gênero.

Ser humilde significa avaliar nossa própria importância como modesta ou baixa,
ter poucas necessidades e assim por diante. Se lermos a biografia de Kunu Lama
Rinpoche, podemos ver o que significa ser muito simples, muito humilde. Ele é o
melhor exemplo disso.

Os mestres da tradição Kadam são normalmente chamados de Geshes Kadampa e


eram conhecidos por serem muito humildes. Primeiro, “geshe” é só a tradução da
palavra sânscrita para “amigo espiritual” (kalyana-mitra). Os Geshes Kadam eram
grandes e humildes mestres, e eram verdadeiros amigos espirituais. Como amigos
espirituais, ajudavam os outros a serem construtivos, agindo como uma influência
construtiva. Mas faziam isso sem os grandes tronos, os brocados e todas essas
coisas.

No entanto, alguns Lamas realmente vestem-se de brocados e falam abertamente


sobre suas realizações. Se perguntarmos qual a motivação desses Lamas, que falam
sobre suas realizações, podemos encontrar dois tipos de motivação. Uma é a
motivação negativa de querer se colocar em uma posição de superioridade. A outra
pode ser a necessidade de se fazer respeitado para que as pessoas o escutem. Se
estivermos em uma sociedade mais primitiva — como era a antiga sociedade
tibetana e mongólica — precisamos de uma forma de fazer com que as pessoas
parem de falar e sejam respeitosas. Pessoas de sociedades violentas e desse tipo de
cultura se impressionam muito ao ouvirem essas coisas; elas sentariam e ouviriam.
O próprio Buda tocou a terra e disse: “que a terra seja testemunha de que alcancei
minha realização”.
Conforme eu disse, existem casos em que, para inspirar as pessoas a acreditarem
que é possível atingirmos a iluminação, precisamos dizer que obtivemos essa ou
aquela realização. Mas precisamos ser muito cuidados e sensíveis em relação à
nossa audiência, pois as pessoas podem pensar: “Ah, isso é impossível. Ele(a) está
inventando tudo isso”. O Buda não estava se vangloriando quando falou aquilo ao
tocar a terra. Ele não estava dizendo: “Eu sou maravilhoso”.

Às vezes, Sua Santidade o Dalai Lama também fala um pouquinho sobre suas
realizações. Na maior parte do tempo ele diz: “Sou apenas um simples monge”, mas
algumas vezes ele diz: “Bom, eu já senti um pouquinho o que é bodhichitta e a
vacuidade”. Ele não diz: “Eu tenho total realização” mas ele diz que já sentiu um
pouquinho dessas coisas.

Falsa Humildade
Existem dois tipo de orgulho. Existe o orgulho de pensar “Sou o melhor”; e também
o orgulho às avessas de pensar “sou o pior”. Existem pessoas que fazem questão de
se mostrar humildes — “Oh, eu não sou bom”, e coisas do gênero. Essa atitude é tão
perturbadora quanto ficar vangloriando-se por ser maravilhoso. Portanto, a
humildade precisa ser sincera. Pessoas que têm um pouquinho de sensibilidade
conseguem saber quando a humildade é falsa e quando é sincera. É tudo uma
questão de apego ao ego, de quanto nos identificamos com a humildade.

Vocês conhecem o exemplo de Atisha? Ninguém sabia que ele praticava o tantra. Só
souberam depois que ele morreu. Quando olharam suas vestes, viram que ele tinha
um sino e um vajra escondido em seu bolso. Ninguém jamais os tinha visto ou o
visto praticando. Ele sempre praticou em privacidade e manteve-se humilde. Ele
não ficava se exibindo com o tamborzinho e o sino para que todos pudessem ver.

Evitando Pensamentos de Inveja


A última linha desse verso é: divulgue as boas qualidades alheias, porque pensar
sobre as boas qualidade dos outros e ficar com inveja pode ser um grande
obstáculo à meditação e uma grande causa de divagação mental. Se, ao invés de
ficarmos com inveja, formos capazes de nos alegrar com as qualidades alheias e os
elogiar os outros de coração, não nos incomodaremos com nossos próprios erros e
defeitos ou os dos outros, e nem com as nossas boas qualidades ou as dos outros.

Mais Causas da Agitação Mental, e


Estabilizando Bodhichitta
Versos 4 a 6
Verso 4: Diminuindo a Agitação Mental ao Diminuir os Desejos
Que eu me livre do [desejo por] ganhos materiais e honra e
[também do desejo de obter] lucro e fama. Assim, que eu tenha
contentamento, poucos desejos e aprecie os atos de gentileza.

Não se Preocupar com Ganhos Materiais, Honra, Riqueza e Fama


Um dos maiores obstáculos durante a meditação é a agitação mental, que
deve-se não apenas ao nosso apego aos objetos do sentido, mas também à
busca por ganhos materiais e honra, além de riqueza e fama. É muito
importante nos livrarmos desses fortes desejos, mas isso é
particularmente importante quando estamos meditando. Nunca
conseguiremos viver em solitude e meditar unifocadamente se
continuarmos a pensar nessas coisas.

Em geral, no que diz respeito ao que estudar e para onde direcionar nosso
esforço, enfatiza-se a importância de darmos total prioridade a estudar e
praticar aquilo que é benéfico à mente, e não aquilo que é benéfico à
conta bancária. Não podemos levar nossa conta bancária para as vidas
futuras, mas os hábitos benéficos que construirmos em nossa mente
serão levados. Portanto, a prioridade que damos a determinadas coisas é
muito importante.

A Paz de Espírito que Vem de Estarmos Contentes


É claro que precisamos viver; precisamos ser capazes de nos sustentar.
Mas, já levando isso em consideração, a próxima linha diz: que eu tenha
contentamento e poucos desejos; caso contrário, nunca teremos o
suficiente — nunca estaremos satisfeitos. Por outro lado, se tivermos
riqueza material, podemos fazer muitas coisas positivas no mundo. Se o
dinheiro chega até nós facilmente, ou se nascemos com dinheiro,
podemos usá-lo para beneficiar os outros; no entanto, nosso principal
objetivo não é ganhar dinheiro e adquirir posses.

Conforme um de meus amigos apontou, quando Tsongkhapa escreveu sua


grande obra, ele não estava pensando em quantas cópias iria vender, que
tipo de royalties receberia ou quantas pessoas leriam seus livros. Só a
história pode nos dizer se sua obra gera benefícios ou não. Assim,
devemos escrever apenas para beneficiar os outros. Se as pessoas se
interessarem por nossos textos e se beneficiarem, tanto melhor. É como
colocar comida para os pássaros no quintal. Se os pássaros aparecerem e
comerem, ótimo. Você não coloca uma placa enorme anunciando o seu
comedouro de pássaros. Acho esse conselho muito bom. Você oferece
suas contribuições positivas ao mundo. Se as pessoas as apreciarem,
ótimo. Se não, ao menos você tentou. O Buda não anunciou suas palestras
no jornal.

Coisas como dinheiro e posses materiais podem ser um grande obstáculo.


Em geral, quanto mais posses temos, mais possessivos e avarentos somos.
Nos preocupamos em ter nossas coisas roubadas. Além disso, fica muito
difícil nos mudarmos, porque temos muitas coisas. Conforme é enfatizado
nos votos monásticos, é importante termos muito poucas coisas. Não
precisamos estar no extremo dos monges e monjas, porém, conforme
disse Milarepa: “Não há nada em minha caverna que possa ser roubado.
Não tenho coisa alguma, portanto não me preocupo com ladrões.”

O mesmo se aplica à fama e à honra. Quanto mais famosos formos, mais


as pessoas nos incomodarão. Não conseguiremos ir a lugar algum sem
que nos parem pedir autógrafos; precisaremos andar disfarçados. As
pessoas ficarão o tempo todo nos mandando emails com perguntas ou
pedindo que façamos isso ou aquilo. E então ficaremos na estranha
posição de ter que ficar dizendo “não”. Isso é muito difícil para alguém
que luta para ser Avalokiteshvara e ajudar a todos os seres. Você terá que
contratar uma secretária para ficar dizendo “não” para você.

Ter Gratidão pela Bondade que Recebemos Como Uma Forma de Deixar o
Coração Mais Leve e Aberto
A última linha do verso é: e aprecie os atos de bondade. Se temos a
oportunidade de praticar o dharma — e aqui estamos falando em meditar
em bodhichitta, tanto a convencional como a mais profunda — é muito
importante apreciarmos a bondade que nos foi dirigida. Fomos alvo de
muita bondade ao receber instruções e ter as condições necessárias para
meditar e praticar. Pode ser que existam pessoas nos sustentando
financeiramente, nos dando o que comer, etc.

Se temos essas oportunidades, não devemos rejeitá-las. Ou seja,


precisamos usá-las da melhor forma possível, mas sem exploração. A
melhor forma de usar sem explorar é mostrar apreciação à bondade que
recebemos — sermos gratos. Além disso, se pudermos ajudar os outros
em troca, o fazemos sem nos sentirmos obrigados ou como se
estivéssemos pagando uma dívida, “Agora sou obrigado a pagar pelo que
recebi. Se não, me sentirei culpado”, e coisas do gênero. Ao invés disso, o
fazemos com grande alegria, apreciação e respeito por aqueles que nos
ajudaram.
E mais, ter um sentimento positivo em relação a toda a bondade que
recebemos deixa o coração muito mais leve quando vamos meditar. Não
fosse por isso, jamais teríamos as circunstâncias que temos para meditar
e praticar. Então, apreciamos a bondade, não nos sentimos culpados e não
desenvolvemos qualquer tipo de conflito em relação a isso. E, se possível,
buscamos recompensar a bondade das pessoas, mesmo que tudo o que
possamos fazer for meditar e praticar bem. Conforme Milarepa disse a
Marpa: “Não tenho nada com que lhe pagar, a não ser a minha prática.
Não tenho posses materiais.”

Isso também nos ajuda muito a sermos capazes de meditar com o coração
leve e desoprimido, com a mente alegre. A capacidade de nos alegrarmos
pelos outros é muito importante à meditação em bodhichitta e
compaixão. Quando pensamos naqueles que nos ajudaram, devemos
sentir alegria e gratidão, e não culpa e dívida. E no que diz respeito
àqueles que sofrem, os imaginamos ficando felizes; afinal, estamos
tentando dar-lhes felicidade. Assim, sempre devemos meditar com um
estado mental de felicidade.

Como meditar no amor, desejando que os outros sejam felizes, quando


nos sentimos tristes? A meditação deve estar amparada em um estado
mental de felicidade, um estado mental que queiramos compartilhar. Essa
é a base do tonglen, a meditação do dar e receber. Se queremos dar, é
necessário que tenhamos algo a dar. Para darmos felicidade aos outros,
precisamos ser capazes de trazer à mente sua natureza básica de êxtase,
ou seja, olhar para o nível mais profundo da mente. Isso nos leva ao
próximo verso, cuja primeira metade diz:

Verso 5: Estabilizando o Ideal de Bodhichitta


Estabilizando o Ideal de Bodhichitta com Amor, Compaixão e Sem Nos
Desencorajarmos

Que eu medite no amor e na compaixão e estabilize meu ideal


de bodhichitta.

Conforme eu estava dizendo, como amar e desejar que os outros seres


sejam felizes quando não temos um estado mental de felicidade? Se
olharmos a partir de um ponto de vista autocentrado, podemos nos
perguntar: como esperar que os outros nos amem quando nós não os
amamos?
Portanto, precisamos estabilizar nosso ideal de bodhichitta — o que o
estabiliza é ter um amor muito forte, um desejo muito forte de que os
outros sejam felizes e possuam as causas da felicidade, e também ter
compaixão, o desejo de que estejam livres do sofrimento e suas causas.
Meditamos para termos essas duas aspirações no mesmo nível da grande
compaixão. As duas focam em todos os seres sencientes. E então temos a
resolução excepcional, que não é simplesmente querer que todos os seres
sejam felizes, querer ajudá-los a se livrar do sofrimento e levá-los à
iluminação. A resolução excepcional é a firme decisão de realmente fazer
isso. Nos responsabilizamos por isso, totalmente, e resolvemos que, se
necessário, faremos tudo sozinhos. Isso é o que estabilizará nosso ideal de
bodhichitta.

Também é importante reafirmarmos e reforçarmos continuamente o


ideal de bodhichitta, porque é muito fácil nos desanimarmos. Temos o
exemplo de Shariputra, um discípulo do Buda. Alguém, algum tipo de
Mara, pediu que ele cortasse sua mão direita e lhe entregasse. Então, ele
cortou a mão direita e a ofereceu com a mão esquerda. Mas a pessoa a
recusou, pois a oferenda foi feita com a mão esquerda (que, na Índia, é
considerada suja e imprópria). Isso fez com que Shariputra ficasse muito
desanimado em relação a bodhichitta e a ajudar os outros. Para evitar
esse tipo de desânimo, precisamos reafirmar constantemente nossa
motivação: o amor e a compaixão.

Outro ótimo exemplo é o de Dignaga. Dignaga foi um grande mestre


budista que escreveu sobre a lógica. Ele mudou-se para uma caverna afim
escrever seu texto Um Compêndio de Mentes que Conhecem de Forma
Válida (Skt. Pramana-samuccaya). Quando, por algum motivo deixou a
caverna — para buscar comida ou alguma outra coisa — alguém entrou e
apagou tudo o que ele havia escrito. Isso aconteceu duas vezes. Então ele
teve que escrever a mesma coisa uma vez, e depois outra e mais outra.

O mesmo aconteceu com Marpa. Ele traduziu muitos textos na Índia, mas
quando estava atravessando o Rio Ganges, para voltar ao Tibete, o barco
virou e ele perdeu todos os seus textos. Assim, Marpa teve que voltar à
Índia e refazer todas as traduções. Portanto, quando alguém apagar
nossos arquivos ou qualquer outra coisa, não podemos nos desanimar.

O que aconteceu a Dignaga é que ele deixou um bilhete para a pessoa que
apagou todo o seu trabalho, dizendo: “Por favor, se você não gostou do
que escrevi, pode vir debater comigo”. E a pessoa foi. Mas era do tipo de
pessoa que se recusa a aceitar a argumentação lógica. Independente do
argumento que Dignaga usasse, ela nunca aceitava. E como tinha o poder
de cuspir fogo, incendiou a caverna de Dignaga e destruiu tudo.
Desencorajado, Dignaga jogou a placa em que escrevia para cima e disse:
“Se cair no chão, desistirei de bodhichitta.” Mas quando ele jogou,
Manjushri a pegou, para que não caísse no chão. E disse: “Dignaga, você
está cometendo um grande erro. Nunca desista de bodhichitta e nunca
desista de escrever essas coisas para o benefício dos seres”. Assim,
Dignaga escreveu seu grandioso texto.

Dizem que a placa que Dignaga usou para escrever o texto ainda existe no
Tibete. Ela era mantida em um local fora de Lhasa, e todos os anos os
monges dos principais monastérios Gelug iam para esse local e passavam
os dois meses do inverno estudando e debatendo o texto Um Compêndio
de Mentes que Conhecem de Forma Válida.

Portanto, é muito importante não desanimarmos quando, por exemplo,


perdemos nossos arquivos ou gastamos um tempo enorme tentando
ajudar e no final nos dizem: “Eu não quero. Não gosto do que fez”. O
principal é o desejo de ajudar. Se o que fizermos vai ajudar ou não,
depende muito do karma das pessoas. Nem o Buda conseguiu ajudar todo
mundo, mesmo tendo o desejo e a intenção de ajudar todos os seres.

É muito fácil nos desanimarmos no caminho do bodhisattva. É por isso


que precisamos estabilizar nosso ideal de bodhichitta, sempre
reafirmando nossa motivação. Lembro-me de um conselho que recebi.
Acho que foi de Geshe Ngawang Dhargyey. Ele disse que quando pedimos
a um Lama que reze por nós, não devemos pedir que ele reze “Por favor,
que meu aluno consiga aquele trabalho”, ou qualquer outra coisa
mundana. Devemos pedir que reze para que consigamos desenvolver
bodhichitta. Esse é o melhor pedido que podemos fazer.

Estabilizando nosso Ideal Através do Desenvolvimento de Força Positiva

Assim, que eu me livre das dez ações destrutivas, permaneça


sempre estável e acredite no que é fato.

Isso refere-se ao fato de que precisamos gerar muitíssima força positiva,


ajudando os outros, se quisermos que nosso ideal de bodhichitta seja
estável a fim de podermos ajudar todos os seres. Para isso, precisamos
evitar agir negativamente, ou seja, evitar agir destrutivamente. Assim,
para garantirmos que nosso ideal de bodhichitta mantenha-se estável e
que tenhamos cada vez mais força positiva, nos livramos das dez ações
destrutivas.

Sem entrar em muitos detalhes, são elas:


 As três ações destrutivas do corpo:
o Tirar a vida
o Tomar o que não nos foi dado
o Engajar-se em comportamento sexual inapropriado
 As quatro ações destrutivas da fala:
o Mentir
o Falar mal dos outros — para fazer com que as pessoas se afastem
umas das outras
o Falar de forma grosseira — dizer coisas que magoam
o Conversa fiada — desperdiçar nosso próprio tempo e o dos outros
com conversa fiada e interromper os demais para falar bobagens
quando ele estão fazendo algo positivo.
 As três formas destrutivas de pensar:
o Pensar com cobiça — “cobiça” significa desejar muito, por inveja, o
que as outras pessoas têm. Não é só desejar algo parecido com o que
o outro tem; é querer algo ainda melhor do que o do outro. Portanto,
existe um fator de competição envolvido. A ação destrutiva é pensar
nisso o tempo todo: pensar constantemente a respeito de como
conseguir determinada coisa ou qualidade
o Pensar com malícia — pensar e planejar formas de machucar
alguém ou de “dar o troco” por algo que fizeram
o Pensar de forma distorcida ou antagônica — não é apenas pensar
algo oposto ao verdadeiro e correto, como em: “É inútil seguir um
caminho espiritual. É inútil tentar ajudar os outros”, e assim por
diante, mas ser contencioso. Em outras palavras, discutir com os
outros e desmerecê-los de forma agressiva. Por isso chamo isso de
pensar de forma distorcida ou antagônica.

Todas essas ações destrutivas da mente referem-se a formas de pensar.


Mas estamos falando de ações, como sentar e planejar: “Como será que
posso conseguir um carro melhor que essa pessoa” ou “Ele me machucou.
O que será que posso dizer da próxima vez que o encontrar, afim de
machucá-lo também?” ou “Ela foi receber ensinamentos de dharma
quando eu queria que ficasse em casa comigo. Qual a melhor forma de
dizer que isso é ridículo e que seria melhor se ela ficasse em casa
comigo?” Simplesmente sentamos e ficamos pensando sobre o que a
outra pessoa está fazendo e como isso é ruim, e gerando raiva, tanta raiva
que, se ela voltasse, nossa vontade seria de dar um soco nela por
ter nos abandonado e ido receber os ensinamentos.

Esses são os dez tipos de ações destrutivas das quais precisamos nos
livrar para gerar cada vez mais força positiva. Essa força positiva nos
ajudará a obter a liberação e também a atingir a iluminação.
Para evitar agir de forma destrutiva, precisamos permanecer sempre
estáveis, e acreditar nos fatos, ou seja, acreditar que as leis de causa e
efeito do karma são verdadeiras e, assim, manter nossa disciplina ética.

Verso 6: Evitar Afastar os Outros ao Tentar Ajudar


Evitar Desanimar os Outros ao Ficar com Raiva ou Ser Arrogante

Que eu supere a raiva e o orgulho e tenha uma atitude humilde.

Para conseguir ajudar os outros, com base em bodhichitta, precisamos


evitar afastá-los. Se ficarmos sempre com raiva, e tivermos episódios de
fúria, as pessoas terão medo de ficar conosco. Além disso, se tivermos
muito orgulho e arrogância, elas não vão querer ficar perto.

Se ficarmos sempre insultando e tratando mal as outras pessoas, por


estarmos com raiva, por que elas iriam querer estar conosco? Além disso,
como poderíamos ajudá-las se todas as nossas ações fossem pautadas
pela raiva ou orgulho? É importante superar essas coisas se quisermos
ser capazes de ajudar os outros — sem falar no sofrimento que esses
estados mentais nos causam — e, conforme já discutimos, ter uma
atitude humilde, que é basicamente tratar os demais com respeito e
gentileza. O mesmo se aplica à reclamação: quem iria querer ficar
conosco? É desagradável, não é? Por exemplo, é claro que teremos dores
quando ficarmos mais velhos e não conseguiremos fazer as coisas que
costumávamos fazer. No entanto, se formos humildes e não ficarmos
reclamando o tempo todo, não afastaremos as pessoas.

A questão do treinamento de sensibilidade também se aplica aqui. Por


exemplo, se formos muito sensíveis e nos magoarmos com qualquer coisa
que nos digam, ninguém vai querer ficar perto. As pessoas ficarão com
medo de ficarmos chateados e começarmos a chorar, fazer uma cena e
assim por diante. Portanto, se realmente pensamos em termos de
bodhichitta, de querer ajudar os outros, é importante nos
conscientizarmos de como nosso comportamento e nossas atitudes
podem afastar as pessoas e fazer com que não sejam receptivas à nossa
ajuda.

Esse tipo de sensibilidade também se aplica à nossa aparência.


Precisamos evitar estarmos sujos, mal arrumados ou qualquer outra coisa
que possa afastar as pessoas à nossa volta ou as pessoas com quem
estamos nos associando.
Existem outras instruções — que não são apresentadas aqui, mas que
fazem parte dos votos secundários de bodhisattva — que dizem que,
contanto que o costume não seja destrutivo ou negativo, precisamos
segui-lo. Devemos seguir os costumes que as pessoas de nossa sociedade
seguem. Assim, se as mulheres na Índia não andam de mini saia, não
devemos andar de mini saia na Índia; caso contrário, ninguém irá querer
ficar perto da gente — e, aqueles que quiserem, provavelmente não o
farão para receber ensinamentos do dharma.

Evitando Dar Conselhos Impraticáveis e Evitando Ser Desonesto

Assim, que eu me livre de meios desonestos de viver e que


ganhe a vida de uma forma que esteja de acordo com o dharma.

Às vezes isso é traduzido como “meio de subsistência errado”. E existem


dois aspectos envolvidos:

O primeiro é usar de meios desonestos para ganhar a vida. Certa vez,


estava traduzindo para um grande Lama, Ugyen Tseten Rinpoche, que às
vezes vem à Berlin. Ele é o antigo abade da Faculdade de Tantra da Base e
um dos principais professores do meu professor Geshe Ngawang
Dhargyey. Estávamos na Austrália e aconteceu uma coisa muito
interessante. Uma pessoa perguntou sobre a questão de nos livrarmos de
meios de subsistência errados, explicando: “Eu vivo no interior da
Austrália, onde a única indústria é a da criação de ovelhas para carne. O
que eu posso fazer se não existem outros empregos disponíveis? Esse é
um meio de subsistência errado? É um meio de subsistência desonesto?”

Então Ugyen Tseten Rinpoche explicou que o principal é não trapacear.


Não podemos dizer que criar ovelhas é “em si” algo totalmente negativo.
Se as matamos, é outra coisa. No entanto, se apenas criamos ovelhas, o
importante é sermos gentis, fazer com que suas vidas sejam as mais
confortáveis possíveis, e não enganar as pessoas que compram as
ovelhas, fazendo propaganda enganosa e coisas do gênero. É claro que o
melhor a fazer seria buscar um outro meio de subsistência. Mas se isso
for absolutamente impossível, o principal é ter uma boa motivação e ser
honesto. Esse é o ponto principal para evitarmos o assim chamado meio
de subsistência errado — e é por isso que traduzo esse termo
como ganhar a vida de forma desonesta.

Para mim, isso demonstrou que ele tinha uma mente muito aberta. Além
disso, foi um meio hábil — não se deve propor alternativas extremas, que
as pessoas não conseguirão seguir e se sentirão culpadas por isso. Neste
caso, elas achariam que o que fazem é errado e que todos deveriam se
mudar, o que, logicamente, faria com que todos os criadores de ovelhas
sentissem-se mal e deixassem de ser receptivos ao dharma. Portanto,
usando de meios hábeis, começamos dizendo: “Bom, o mais importante é
não ser desonesto”.

Isso nos traz de volta à questão de não fazer com que as pessoas nos
rejeitem. Se queremos ajudá-las a viver de acordo com os ensinamentos
do dharma, precisamos sugerir formas de viver que elas consigam seguir.
Se apresentarmos algo que seja quase impossível de seguir, elas não vão
nem tentar. Elas acharão que somos idealistas e estamos fora da
realidade. É muito importante lembrarmos desse conselho,
principalmente quando somos novos no dharma. Quando somos novos no
dharma, tendemos a ser um tanto presunçosos e aconselhar os outros
como se fossemos santos, dando-lhes as regras mais sublimes de
comportamento ético, para que as sigam. Novamente, é tudo uma questão
de ser humilde e prático.

Formas Desonestas de Obtermos Coisas


O outro aspecto de ganhar a vida de forma desonesta e inapropriada
refere-se a uma lista de cinco coisas inapropriadas.

 Adular — O exemplo normalmente dado refere-se aos monges e


monjas que pedem esmolas, mas podemos usar o exemplo de quando
buscamos doações para monastérios ou para alimentar monges e
monjas. Dizemos: “Ah, você é tão maravilhosa e gentil”, só para que a
pessoa nos dê alguma coisa.
 Pressionar - Ser insistente e ficar incomodando os outros: “Porque não
doa? Porque não doa?”
 Extorquir - Conseguir algo através da força ou de ameaças, ou fazendo
os outros sentirem-se culpados: “Bom, você fez uma doação da última
vez. Mas veja outros monges que ainda passam fome.”
 Subornar - “Se você doar uma determinada quantia, lhe daremos uma
torradeira”, ou algo do gênero. Você dá algo pequeno para obter algo
grande em troca.
 Pretensão - fingir que é muito santo e tentar impressionar os outros
por ser tão maravilhoso, e com isso fazer com que lhe deem algo.

É dito que, se vivermos de rendas e oferendas conseguidas dessa forma,


todos os insights que conseguimos com a nossa prática de dharma se
deteriorarão.

É interessante que, na discussão budista sobre formas inapropriadas ou


desonestas de ganhar a vida, não se menciona ou se lista em lugar algum
coisas como matar os outros, fazer armas e caçar. Apesar de podermos
considerar essas coisas como exemplos de meios de vida inapropriados,
elas não estão relacionadas ao ponto principal do que estamos discutindo
aqui. O principal é não sermos desonestos. Assim, se plantamos ou
manufaturamos algum produto — se formos fazendeiros, escultores ou
qualquer outra coisa —, a questão é não vender de forma desonesta,
pressionado as pessoas para que comprem, fingindo que somos muito
bons, usando propaganda enganosa, adulação e assim por diante. “Se
quiser ser muito esperto, comprará o meu produto”, ou “Se você quer
atrair todas as mulheres, ou todos os homens, compre meu produto” — a
maioria das propagandas são assim. E, conforme eu já disse, as eleições
no ocidente normalmente baseiam-se em “Sou tão maravilhoso(a), e os
outros são tão ruins, portanto vote em mim!”

Três Tipos de Crença no Karma


Tudo isso baseia-se em acreditar no que é fato, ou seja,nas causas e
efeitos do comportamento, as causas e efeitos kármicos. Acreditar no que
é fato é acreditar em algo existente e validamente conhecível ou
considerar verdadeiro um fato. A crença no que é fato dá-se de três
maneiras:

 Crença lúcida no fato — consideramos verdadeiro o fato da existência


de causas e efeitos kármicos, e assim livramos nossa mente e coração
de emoções destrutivas como culpa, ganância e assim por diante. Essas
emoções destrutivas nos fazem cometer ações destrutivas ou ter em
um meio de vida inapropriado. Pensar sobre causa e efeito elimina o
tipo de ganância que nos leva a pensar “Tenho que ganhar mais e mais,
mesmo que isso implique em ganhar a vida de forma desonesta”.
 Acreditar no que é fato tendo a razão como base — se acreditamos que
as causas e efeitos do comportamento são um fato verdadeiro, será que
faria sentido enganar os outros para ganhar dinheiro quando nossa
motivação é ajudá-los? Obviamente, não faria sentido algum.
 Acreditar no que é ̱fato com uma aspiração — por acreditarmos no fato
das causas e efeitos do comportamento, desenvolvemos a aspiração de
sempre agir de forma construtiva e evitar formas inapropriadas de
ganhar a vida.

Lidando com os Outros


Versos 7 a 10
Verso 7: Livrando-nos Daquilo que Nos Distrai Durante a
Meditação
Que eu me livre de toda a sobrecarga material e me adorne com
as joias dos aryas. Assim, que eu me livre de todas as atividades
supérfluas e viva em isolamento.

Viver em Isolamento para Evitar Aborrecer-se com os Outros


Aqui, o discurso de Atisha é muito parecido com o de Shantideva no
oitavo capítulo de Engajando-se no Comportamento do Bodhisattva, que
trata da constância da mente, ou seja, da concentração. Shantideva diz
que, se quisermos meditar, é muito importante vivermos uma vida
simples e, de preferência, viver em isolamento.

Viver em isolamento é importante quando nossa mente é muito apegada


às pessoas a nossa volta. Conforme escreveu Togme Zangpo em suas 37
Práticas do Bodhisattva:

(2) A prática do bodhisattva é deixar sua terra natal, onde o


apego aos amigos o deixa agitado como a água, a raiva aos
inimigos o queima como o fogo e a ingenuidade, que o faz
esquecer o que deve ser adotado e o que deve ser abandonado,
o encobre na escuridão.

(3) A prática do bodhisattva é amparar-se na solitude; livrando-


se de objetos nocivos, as emoções e atitudes perturbadoras são
gradualmente contidas; sem distrações, as práticas construtivas
naturalmente aumentam; e adquirindo clareza de consciência, a
confiança no dharma cresce.

Distanciar-se, nem que seja apenas por um ano — ir para a Índia ou algo
assim — ajuda a nos afastar das causas da distração, daquilo que
perturba nossa meditação e nossa prática. Obviamente, depois de
treinarmos bastante, voltamos aos lugares agitados, por causa do desafio
que representam. Dizem que os grandes bodhisattvas voltam do retiro e
vão “meditar nas encruzilhadas”, vão para lugares de bastante trânsito e
distração para aperfeiçoar sua concentração. Eles buscam ser capazes de
praticar até mesmo em situações muito caóticas e desafiadoras. Portanto,
tudo deve estar de acordo com a nossa necessidade e nosso nível.

Livrando-se da Sobrecarga Material que Exige Muito Cuidado


O verso começa com “Que eu me livre de toda a sobrecarga material”.
Uma sobrecarga material é um objeto que é difícil de conseguir, difícil de
manter e difícil de proteger. É um objeto que, se nos roubassem,
ficaríamos muito aborrecidos. Poderíamos até perder nossa vida se um
ladrão tentasse nos roubar. Esse tipo de objeto é chamado de sobrecarga
material: é um fardo ter esses objetos. Isso não significa que não devamos
ter bens materiais. Mas os melhores bens são os que podemos obter com
facilidade, que não são raros e não têm valor inestimável ou algo assim, e
não ficaríamos chateados se os perdêssemos, quebrássemos ou nos
fossem roubados.

Por exemplo, se formos viajar de trem na Índia, não vamos com a nossa
melhor roupa. Vamos com uma roupa que não nos importa se sujar ou
rasgar. Esse é o melhor tipo de bem material, especialmente porque não
nos deixa mesquinhos ou avarentos: “Oh, meu computador precioso, não
quero que ninguém o toque”, esse tipo de coisa.

Acho que essa definição de sobrecarga material é muito útil. Algumas


pessoas montam uma casa super chique e bonita, e depois colocam um
plástico em cima dos móveis porque não querem que os outros sujem. Se
alguém aparecer com um bebê ou uma criança, elas ficam desesperadas,
porque o bebê ou criança vai fazer bagunça e sujar tudo. E não querem
segurar o bebê porque ele pode cuspir e sujar sua linda camisa. Então
seguram-no bem longe do colo.

Outro tipo de sobrecarga material é algo que requer muito cuidado; como
um jardim grande e chique, por exemplo. Por precisar de tanto cuidado,
não conseguimos mais sair de casa, pois é preciso que alguém esteja
sempre cuidando. Ele acaba nos prendendo e tomando todo o nosso
tempo. Viramos escravos do jardim. Também podemos ser escravos do
nosso estilo de cabelo quando ele é muito complicado e leva muito tempo
para arrumar.

As Joias dos Aryas: Estados Mentais que Podemos Levar Para Qualquer Lugar
Ao invés de termos bens desse tipo, podemos nos adornar com as joias
dos aryas. Discutiremos isso no verso 26, então vou apenas listá-las aqui.
As joias são: (1) acreditar no que é fato, (2) autodisciplina ética, (3)
generosidade, (4) escutar, (5) cuidado com o reflexo de nossas ações nos
outros, (6) auto-dignidade moral e (7) consciência discriminativa. Essas
qualidades são qualidades que podemos desenvolver cada vez mais,
ganhando, com isso, riqueza de disciplina, ensinamentos, generosidade e
fé, além do poder de escutar, e assim por diante

Conforme Geshe Ngawang Dhargyey explicou, não podemos usar todas as


nossas joias ao mesmo tempo. Mesmo que tenhamos uma enorme coleção
de joias só podemos usar algumas peças de cada vez. Se tentássemos usar
todas ao mesmo tempo, ficaríamos ridículos. Mas podemos usar todas as
joias dos aryas ao mesmo tempo. Mesmo se nos prenderem ou nos
colocarem em um campo de concentração ainda assim podemos usá-las e
ter riqueza. Podemos ser muito ricos, mesmo em lugares como esses. E
quando tomarmos um avião, não precisaremos nos preocupar com
excesso de peso.

Portanto, essa é a melhor riqueza que podemos acumular. É melhor do


que ter objetos materiais, que são tão difíceis de manter e podem nos
trazer tantas preocupações e problemas. Imagine ir para um retiro de
meditação e ficar o tempo todo preocupado com “minhas plantas” e
“minha casa”, pensando sempre em todas as coisas que podem acontecer.
Seria muita distração.

Livrando-se das Atividades Supérfluas, Que nos Fazem Perder Tempo


Atisha escreve: “Que eu me livre de todas as atividades supérfluas”.
Novamente, essas atividades são grandes distrações. Exemplos de
atividades supérfluas são: encontrar os amigos a toda hora, ficar
conversando em sites de relacionamento, no telefone, no facebook, etc.
Tudo isso é uma grande perda de tempo. Se fizermos essas coisas de vez
em quando, tudo bem; mas se ficarmos o tempo todo nisso não teremos
tempo para praticar, meditar e estudar.

Conforme escreveu Shantideva:

(VIII.13) Se me associar com pessoas infantis, o comportamento


destrutivo inevitavelmente surgirá; [comportamentos] como: me
autoelogiar e denegrir os outros, e tagarelar sobre os prazeres
do samsara.

Isso não significa que devemos ignorar essas pessoas. Significa apenas
que não devemos ficar “tagarelando” com todo mundo, conversando
sobre futilidades.
Também não devemos ficar de um lado para o outro em casa sem fazer
nada. É muito fácil passar o dia todo fazendo pequenas coisas pela casa,
coisas que não têm importância, e não fazer nada produtivo. Ou ficar
pulando de um entretenimento para o outro, mudando o canal da TV o
tempo todo, surfando na internet, esse tipo de coisa. Existem muitos
exemplos de atividades supérfluas.

Podemos fazer o mesmo com os livros. Existem pessoas que são viciadas
em comprar livros, mas nunca têm tempo para ler. Ou, se chegam a ler,
leem um pedacinho aqui e outro ali. E a quantidade de livros torna-se um
fardo. Elas não conseguem se mudar, ir morar em outro lugar. Se tiverem
que se mudar, precisam levar todos os livros, como um prisioneiro que
precisa carregar um monte de pedras nas costas.

Tive uma ótima experiência com isso. Quando terminei toda a minha
formação universitária, tinha mais de mil livros. Quando fui para a Índia,
os deixei na casa da minha mãe. Mas quando minha mãe se mudou para a
Flórida, ela deixou meus livros na garagem da minha tia e eles ficaram no
chão em caixas de papelão. Só que houve uma inundação, a garagem
encheu de água e todos os meus livros viraram sopa. Isso me curou do
vício de comprar livros. Na Índia eu tinha muito poucos livros, e vários eu
doei quando deixei o país. Começamos a perceber que existem bibliotecas
para isso. Não precisamos ter tudo e depois ficar nos preocupando se
nossas coisas vão virar sopa quando houver uma inundação.

Evitando se Desanimar Por Causa dos Outros


Portanto, quero me livrar de todas essas coisas e, seguindo o conselho de
Shantideva, Atisha diz: viver em isolamento. Queremos separar ou
desassociar nossa mente e corpo das coisas que nos distraem, que são
destrutivas ou que nos fazem perder tempo. Isso não significa que
tenhamos que viver em confinamento solitário - o que, para muitas
pessoas, é ótimo. Em vez disso, significa morar com pessoas que apoiam o
que estamos fazendo, como professores e pessoas que têm interesses
parecidos. Assim, viver em isolamento pode ser de muita ajuda. Depende
mais do nosso tipo de personalidade.

Mas não é suficiente isolar apenas o nosso corpo e manter nossa mente
apegada. Se continuarmos sempre pensando nas pessoas que estão em
casa e ligando a internet para falar com elas, o isolamento físico não
servirá de nada.

Nos votos secundários de bodhisattva, diz-se para não passarmos mais de


sete dias e sete noites na casa de um Hinayana. Isso não se refere a
alguém que pratica o budismo Teravada ou Hinayana. O que se quer dizer
com isso é morar na casa de alguém que não respeite nossa prática ou
que diga: “Essas práticas Mahayana, que tentam ajudar os outros, isso é
idiotice”. Alguém que está sempre nos desencorajando a praticar e nos
afasta do nosso caminho espiritual. Se nossa mente, nossa motivação ou
nossa intenção for fraca, essas pessoas podem nos influenciar fortemente
e prejudicar muito a nossa prática.

No entanto, seguir esse conselho pode ser muito difícil. Imagine entrar
para o exército e ter que dormir em um quarto com todos os outros
soldados que se embebedam, fazem arruaças e ficam lhe importunando
quando você está tentando fazer sua prática. Ou ser preso com outras
pessoas na mesma cela. Seriam situações muito difíceis para praticar. Por
isso é tão importante decorar nossas práticas, tê-las na mente, como as
joias dos aryas. Então poderemos levar nossa prática para qualquer lugar,
e não importa quem esteja ao nosso lado.

Anos atrás eu estava viajando com meu professor Tsenzhab Serkong


Rinpoche, indo de lugar em lugar. Certa vez esqueci minha valise com
todas as minhas práticas dentro e não consegui recuperá-la até o dia
seguinte. Serkong Rinpoche, que sempre me repreendia, mas sempre de
forma muito gentil, mostrou que era ridículo eu depender de pedaços de
papel, e que ele, claro, não dependia de nada disso. Então, gentilmente
escreveu de próprio punho as práticas mais importantes que eu tinha que
recitar para que eu não quebrasse meus comprometimentos. Isso me
deixou muito envergonhado. Foi tanta bondade dele! Fiquei muito
envergonhado por um Lama tão grandioso ter que sentar comigo e
escrever minhas preces porque eu havia esquecido de levá-las comigo.

Verso 8: Como se Comportar Quando Praticando com Amigos e


Professores
Como se Comportar, Mesmo Quando Praticando com Amigos do Dharma

Que eu me livre da conversa fiada e contenha minha fala.

Se entrarmos em retiro com amigos do dharma, além de isolar o nosso


corpo e mente, removê-los de todos os apegos, precisamos também nos
livrar da conversa fiada. Se ficarmos conversando sem parar sobre
futilidades será uma perda de tempo. Esse, logicamente, é sempre o caso,
mesmo em situações em que a prática é o foco principal. Como dizem os
professores, “Estamos sempre sedentos e dispostos para uma conversa
fiada, mas assim que começamos a meditar ou ouvir uma palestra caímos
no sono.”
Trijang Rinpoche, o falecido Tutor Júnior de Sua Santidade, costumava
dizer: “Se você não tiver vontade de fazer uma prática de dharma ou
alguma outra coisa construtiva, é melhor tirar um cochilo. É melhor do
que ficar fofocando ou batendo papo. Se você cochilar um pouquinho,
pelo menos acordará disposto, e assim não terá perdido completamente
seu tempo.” A conversa mundana é interminável. Portanto, que nos
livremos de toda conversa fiada.

Nossas conversas não precisam ser sempre profundas, intensas e


significativas. Isso também seria um pouco demais. Mas realmente
devemos buscar ter conversas que abordem principalmente temas
construtivos. Portanto, devemos restringir nossa fala se estivermos só
jogando papo fora, reclamando ou fofocando.

Aproveitando o Tempo com Nosso Professor Espiritual

Assim, quando eu vir um professor sublime, ou um mestre


erudito, que ofereça meus serviços com respeito.

Em outras palavras, ao invés de perdermos tempo batendo papo com


pessoas infantis, que inevitavelmente nos levarão a algum tipo de
comportamento destrutivo, tentamos ajudar nosso professor e, se um
grande mestre ou uma pessoa que tenha muito conhecimento estiver
presente, tentamos ajudá-los também. Ou seja, se formos gastar nosso
tempo com outras pessoas, que seja fazendo algo construtivo, e não algo
que seja uma perda de tempo. E o que de mais construtivo podemos fazer
é ajudar nossos professores a ajudar cada vez mais seres.

Uma das maravilhosas frases de Shantideva é uma oração que diz:

(III.14) “Que nada do que eu faça seja inútil.”

Que eu não perca o meu tempo - esse é um lindo pensamento. E no que


diz respeito ao relacionamento com os professores:

Verso 9: Obtendo nos Outros a Inspiração para a Prática


Quanto às pessoas que possuem os olhos do dharma e os seres
limitados que são principiantes, que eu saiba considerá-los
meus professores.

Podemos aprender com muitas pessoas, não só com as que têm os olhos
do dharma, ou seja, os grandes mestres. Também podemos aprender
com os seres limitados que são principiantes, iniciantes no caminho
espiritual. Podemos nos alegrar com o seu interesse e nos animarmos
com eles. Quando alguém se beneficiar por fazer uma prática, ouvir
ensinamentos e coisas do gênero, podemos nos alegrar. Podemos
aprender mais sobre causa e efeito com eles, porque os vemos
trabalhando e colhendo os resultados.

Se já estamos no caminho, podemos obter muita inspiração com os


principiantes. Não são só os nossos professores que nos inspiram, mas
também os principiantes que são realmente interessados e sinceros.

E também podemos aprender com seus erros. Podemos aprender a ter


paciência, que é um dos melhores presentes que podemos dar, tanto para
os que são mais avançados no caminho, os grandes mestres, como os que
são menos avançados ou mais novos no dharma. Vale muito a pena passar
um tempo com essas pessoas. Os iniciantes no dharma podem não ser
nossos professores, como são os grandes mestres; mas, como é dito aqui,
eles podem nos ensinar muitas coisas. E ainda, em vidas futuras, nós
poderemos ser os principiantes e eles os mais velhos. Essa é uma outra
forma da causa e efeito funcionar. Portanto, passar as coisas de uma
geração para a outra é muito importante.

O Geshe Kadampa Potowa disse que se um discípulo chega a você com


arrogância e achando que sabe tudo, você deve evitá-lo, mesmo que seja
muito inteligente. Se um discípulo for muito teimoso e não quiser ouvir
seus conselhos, não é um discípulo apropriado. Mas se um discípulo
realmente quiser aprender, for aberto e realmente ouvir os seus
conselhos, mesmo não sendo inteligente será um bom discípulo, porque
tem um bom temperamento. Esse é o melhor discípulo. Se ele conseguirá
aprender ou não, dependerá da habilidade e paciência do professor.

Portanto, a qualidade que se busca em um discípulo não é a inteligência; o


que se busca é sinceridade e abertura. Ter uma mente aberta significa
querer aprender, querer trabalhar e corrigir suas falhas, sem ficar na
defensiva ou discutindo. Esse é o melhor discípulo.

Verso 10: Como Considerar os Demais e Evitar Más Influências


Desenvolvendo a Mesma Sensação de Proximidade com Todos

Quando vir um ser limitado, que eu o considere como meu pai,


mãe, filho ou neto.

Isso é parte dos ensinamentos sobre o desenvolvimento de bodhichitta.


Para sermos capazes de beneficiar os outros precisamos primeiro
conseguir enxergar a todos como iguais e pensar neles com amor. Esse
amor é o amor que sentimos quando vemos um amigo querido ou o
membro mais querido de nossa família. Ao vê-los nosso coração esquenta.
Realmente sentimos “como é maravilhoso ver esta pessoa!”

Podemos perceber isso em Sua Santidade o Dalai Lama. Não importa


quem encontre, ele sempre age como se estivesse vendo seu melhor
amigo que não via há muito tempo. Ele fica absolutamente encantado de
ver um outro ser humano, um outro animal, ou qualquer coisa. Essa é
uma qualidade maravilhosa.

A maneira mais fácil de evocarmos esse tipo de sentimento é pensar na


outra pessoa como alguém que nos é muito próximo. O texto fala disso
dentro do contexto de uma família tradicional indiana ou tibetana, onde
as relações familiares são muito boas. Por exemplo, se estivermos com
uma pessoa mais velha, podemos pensar nela como nosso pai ou mãe. Eu
não estou falando aqui no contexto Freudiano, daquilo que se chama
“transferência” na psicanálise, que seria projetar a figura paterna ou
materna em outra pessoa. Estamos apenas focando no sentimento de
proximidade. Se estivermos com uma pessoa mais nova, podemos pensar
nela como um filho ou filha ou neto ou neta. Se for da mesma idade, um
irmão ou irmã. A questão é ter um sentimento de proximidade, sem
apego, aversão ou indiferença. Tudo isso, como eu já disse, está baseado
em uma imagem idealizada de uma família saudável e amorosa.

Obviamente, estaríamos muito avançados se conseguíssemos fazer isso


com uma mosca ou um mosquito que entra no nosso quarto — dar-lhe
boas vindas, encantados por ele ter aparecido: “Bem vindo! Obrigado por
aparecer e vir me visitar.” Se esse for caso, estamos bastante avançados.
Conta-se uma história de um homem que foi preso e vivia em
confinamento solitário. Ele vivia completamente isolado, o único ser que
lhe visitava era uma aranha, que eventualmente entrava em sua cela. Ela
era sua melhor companheira. Sua melhor companheira era uma aranha,
porque não havia mais ninguém. Mas não pense: “Aranhas tudo bem, mas
moscas são inaceitáveis formas de vida”, alienígenas invasores.

Eu estou brincando ao falar de “alienígenas invasores”, mas nos faz


pensar no que nos parece bonito. Lembro-me da primeira vez que fui à
Índia. Não era muito fã de insetos, e a Índia é a terra dos insetos. No lugar
em que morava havia um enorme ninho de aranhas, do tamanho de uma
mão. Certa vez, disse ao meu professor Geshe Ngawang Dhargyey: “Que
horríveis elas são!” E ele me repreendeu dizendo: “Do ponto de vista
delas você é que parece um monstro. Qual ponto de vista está correto?”
Livrando-se das Más Influências

Assim, que eu me livre das más influências e confie-me aos


amigos espirituais.

Isso nos trás às maravilhosas definições budistas de más influências, e


de amigos espirituais - ou bons amigos. Más influências são aqueles que
nos influenciam a cometer ações destrutivas. Essas ações podem não ser
super destrutivas, como roubar uma loja, caçar ou pescar. Pode ser
apenas que esses amigos queiram que estejamos sempre nas festas, que
nos droguemos, bebamos ou apenas que fiquemos falando sobre futebol,
política ou celebridades. Esses amigos são más influências, amigos que
nos afastam das práticas positivas.

A palavra que normalmente é traduzida como “amigo espiritual”


é kalyana-mitra em sânscrito, que, em tibetano quer dizer
“geshe.” Kalyana, a primeira parte da palavra, não significa “espiritual”;
significa “construtivo” ou “virtuoso”. É um amigo que, através de sua
influência, nos leva a fazer ações construtivas. Ao invés de dizer “Vamos
beber!” diz “Vamos meditar!”, “Vamos fazer algo positivo juntos”, “Vamos
estudar juntos” esse tipo de coisa. Esse é um amigo espiritual, ou um
amigo construtivo — alguém que nos encoraja e nos ajuda a prosseguir
na prática.

Pode também ser algo como “Vamos nos exercitar para você ter mais
força de praticar” — mas não é que faremos disso nossa prioridade. E
também não precisamos levar tudo tão a sério: “Ah, só vamos sentar e
rezar quando estivermos juntos”. O que nosso amigo nos encoraja a fazer
pode ser algo diretamente construtivo ou apenas algo que nos ajudará a
manter o comportamento construtivo.

Quando somos fracos em nossa prática, somos facilmente influenciados.


Nesse caso, é ainda mais importante evitarmos as más influências. Se
passarmos a maior parte do tempo com essas más influências,
passaremos a emulá-las e agir como elas. Se, por outro lado, passarmos a
maior parte do tempo com amigos espirituais, amigos positivos, vamos
emulá-los e ser positivamente influenciados por eles. Por isso essa
questão é tão importante.

Gradualmente aprenderemos a ser mais fortes e não agir, como dizem os


tibetanos, como um cachorro, que quando todos os outros cachorros da
vizinhança latem ele também late. Um exemplo disso é quando alguém
começa a reclamar do governo ou algo assim e também começamos a
reclamar e nos estressar. “Se houver algo que possa fazer, faça; caso
contrário, não reclame”, pois isso só fará com que se sinta pior.

Cultivando um Estado Mental Feliz


Versos 11 a 14
Verso 11: Vivendo Feliz sem Apreensões ou Apegos
Como Agir Quando Encontramos Pessoas, Mesmo Quando Estamos Vivendo
em Isolamento

Que eu me livre da hostilidade e dos estados mentais


desconfortáveis, e vá alegremente a todos os lugares.

Aqui, Atisha continua a discussão sobre como devemos nos comportar


quando estamos com outras pessoas. Mesmo morando isolados,
encontraremos outras pessoas. Portanto, quando estivermos com elas, é
muito importante não sermos hostis — “Você está interrompendo minha
prática! Por que veio me incomodar?” — ou outros estados mentais
apreensivos. Se, quando estivermos com outras pessoas, nosso
estado mental for de desconforto, nunca seremos felizes.

Em geral, o desconforto surge por não vermos todos com igualdade, que
foi o que discutimos no verso anterior (a necessidade de ver a todos com
igualdade). Somos apegados a algumas pessoas, temos aversão a outras e
ignoramos ainda outras. Assim, quando aparece alguém que achamos
interessante, ou a quem somos apegados, ficamos felizes e queremos que
fique. Se não achamos interessante, não queremos nem ver, e repelimos
ou rejeitamos. E, se considerarmos a pessoa indiferente, vamos querer
ignorá-la e podemos até lamentar o fato de ter vindo pedir nossa ajuda.

Não tenho certeza se foi Shantideva ou outro grande mestre que disse:
“Quando um(a) bodhisattva fica mais satisfeito(a) é quando lhe pedem
ajuda”. É como alguém que treinou para ser enfermeiro: quando chega a
hora de usar suas habilidades de ajudar os outros, fica muito feliz. Assim,
se treinarmos para ser bodhisattvas e alguém nos pedir ajuda, será uma
ótima oportunidade para nos alegrarmos, e não para ficarmos irritados.
Portanto, que eu me livre da hostilidade e dos estados mentais
desconfortáveis…

… e vá alegremente a todos os lugares. Se já tivermos nos livrado dos


estados mentais negativos, iremos felizes a qualquer lugar. Claro, se
muitas pessoas ficarem nos incomodando e interrompendo por pequenas
coisas, precisaremos nos isolar de vez em quando. Tsongkhapa mesmo
mudou-se diversas vezes quando jovem. Quando ele se estabelecia em um
lugar e muitas pessoas começavam a chegar com oferendas e coisas do
gênero, mudava-se para outro lugar. Quando mais velho, ficava nos
monastérios que tinha fundado. Nessa altura de sua vida, ele era capaz de
ajudar muito, e fundou instituições de ensino que continuaram ensinando
por muito tempo. Mas enquanto estava treinando em vários monastérios,
muitas pessoas viajavam para vê-lo, porque ele era famoso. Ele era o mais
notável entre os eruditos de seu tempo.

Tsongkhapa era como Tsenzhab Serkong Rinpoche. Quando Rinpoche


chegava em um lugar e pessoas começavam a aparecer o dia todo para
oferecer echarpes cerimoniais (katas) e prostrações — certificando-se de
prostrar bem em sua frente para que ele pudesse ver — ele tinha que
sentar, abençoar todas as pessoas e dar-lhes um cordão vermelho para
usar no pescoço ou algo assim. Isso pode tomar todo o tempo da pessoa. E
realmente não beneficia ninguém profundamente — não como os
ensinamentos. Quando isso acontecia a Tsongkhapa — quando pessoas
começavam a chegar com oferendas, com o equivalente a uma rúpia em
dinheiro, com a 575ª caixa de incenso e assim por diante, era hora de se
mudar. Quando se é muito famoso, muitas pessoas aparecem querendo
pequenas coisas e tomam todo seu tempo.

É difícil ver como isso se aplica à nossa situação no Ocidente. Por


experiência própria, sei que ter que viajar para ensinar é muito diferente
de ensinar em apenas um lugar. Serkong Rinpoche sempre dizia que “Se
viajar para ensinar, não fique por muito tempo. Não fique por mais de
alguns dias. Se ficar apenas alguns dias, as pessoas considerarão sua
presença um evento e irão aos ensinamentos. Mas se ficar por muito
tempo, você se tornará fardo para as pessoas que cuidam de você, elas se
acostumarão com sua presença e não irão aos ensinamentos.” Foi isso que
vi acontecer. Principalmente quando você mora no lugar. As pessoas
pensam: “Bom, posso ir na semana que vem”, “Ah, hoje eu tenho um
aniversário para ir” ou “Ah, tem um filme passando que quero ver”. Nesse
caso, é melhor mudar-se para um lugar onde tenha mais utilidade.

Obviamente, precisamos analisar nossa situação pessoal. Por um lado, se


as pessoas precisam de nossa ajuda, temos que estar dispostos a ajudá-
las. Por outro, se não precisam e só perturbam, ou se não estão em uma
situação em que possamos ajudá-las, precisamos seguir com nossa vida.
Podemos nos espelhar na vida de um monástico. Um monástico é alguém
que deixou sua casa, que não tem casa. Novamente, tudo vai depender do
nível da nossa prática.
Livrando-se dos Bens ao Quais Se Tem Apego

Assim, que eu me livre de tudo aquilo a que sou apegado e viva


sem apegos.

Isso refere-se especialmente à posses. Se há algo a que somos


muito apegados, o conselho é doar ou colocar em uma caixa ou no
armário, para que não estejamos sempre vendo e nos preocupando com o
objeto.

Dizem que é bom nossa casa ser o mais simples possível, como em uma
caverna em que não nos apegamos à parede de pedra. Se passarmos o
tempo todo decorando a casa, e tivermos muitos objetos que
consideramos preciosos, nos apegaremos muito. Veja, é bom ter um
ambiente agradável, se isso ajudar a mente, mas não devemos ficar muito
preocupados em deixar tudo lindo.

Na Índia, as casas dos grandes Lamas são decoradas com fotografias de


seus professores e figuras búdicas, as yidams. Elas não são decoradas com
obras de arte. Isso os ajuda a sempre lembrar da prática. Mas, se
acumularmos essas coisas como acumulamos objetos de arte, comprando
apenas as melhores peças, é sinal de que as tratamos como objetos de
apego. Tudo depende de nossa atitude.

Verso 12: Conselho para Viver uma Vida Feliz


Desvantagens do Apego

Com apego, não conseguirei nem mesmo um renascimento feliz


e, de fato, cortarei a vida de minha liberação.

O apego às coisas pode nos levar a ter comportamentos destrutivos. Na


pior das hipóteses, podemos até roubar para obter mais coisas. Quando
somos apegados, temos pensamentos de cobiça, ficamos planejando como
obter mais coisas: “Como conseguir uma coleção de arte melhor do que a
do meu vizinho?” ou “Como ter um altar mais elaborado que o dela?” Se
agirmos assim, não só deixaremos de conseguir um renascimento feliz,
mas, de fato, acabaremos com nossas chances de conseguir liberação.
Nossas chances de liberação diminuem muito com esse tipo de apego ao
samsara. É por isso que Sua Santidade o Dalai Lama diz que, se for para
nos apegarmos a alguma coisa, deveríamos nos apegar a coisas positivas
e não a coisas negativas.
Essa frase do verso também refere-se à luxúria sexual. Luxúria também
gera um tremendo apego. Ela faz com que fiquemos sempre procurando
parceiros melhores e mais bonitos. E isso certamente nos trará muitas
dificuldades em vidas futuras, e também para atingirmos a liberação. Há
uma canção em ritmo calipso que diz: “Se quiser ser feliz para o resto da
vida, nunca faça de uma linda mulher sua esposa.”

Seguindo o Dharma como Fonte de Felicidade

Portanto, onde quer que eu veja um método do dharma [para


trazer] felicidade, que eu me esforce nele.

O método do dharma para trazer felicidade refere-se à ética. Ao evitar


o comportamento destrutivo, ou seja, ao evitar agir com base em emoções
destrutivas e procurar engajar-se em coisas positivas, cultivamos
felicidade. Ética, aqui, é o oposto da luxúria, do apego e da ganância. Ela
nos previne de sair por aí roubando, de ter um comportamento sexual
inadequado com parceiros alheios e assim por diante.

Então, quando virmos uma medida ética do dharma que nos trará
felicidade, que nos esforcemos sempre nisso, ou seja, em evitar agir de
forma negativa. Isso também refere-se ao voto do bodhisattva de abster-
se de se engrandecer e diminuir os outros. Isso não só nos trará felicidade
como também nos ajudará a levar mais felicidade aos outros.

Verso 13: Terminar o Que Começamos


O que quer que eu comece a fazer, que eu termine primeiro.
Assim, tudo sairá bem feito; caso contrário, nada conseguirei
fazer.

Pode ser que reconheçamos essas frases. Atisha as compilou usando


como referência o verso quarenta e três e a primeira parte do verso
quarenta e quatro do quinto capítulo de Engajando-se no Comportamento
do Bodhisattva, de Shantideva.

(V.43) Tendo refletido e começado a fazer uma coisa, não


pensarei em mais nada. Com a intensão direcionada para ela,
devo terminá-la primeiro.
(V.44) Dessa forma, tudo sairá bem feito; caso contrário, nada
será feito.

Esses versos afirmam que precisamos pensar cuidadosamente antes


de começar a fazer uma coisa — quer seja uma atividade voltada ao
aprendizado ou outra coisa qualquer. Precisamos pensar quais são os
benefícios de fazermos tal atividade — e o benefício não só para esta vida,
mas também para vidas futuras. Pensamos em nossa capacidade de fazer
e no tempo que precisaremos para completar — quantos anos e assim
por diante. Assim, decidimos o que fazer, o que não fazer e o que será de
maior benefício para nós e os outros. É importante não apressar-se. Isso
refere-se particularmente a tomar votos. Não se apresse para tomar um
voto. É necessário examinar com muito cuidado se conseguirá mantê-lo. E
se o tomar, precisará mantê-lo direito. Geshe Ngawang Dhargyey
costumava dizer com sarcasmo: “Ainda bem que só temos três conjuntos
de votos. Se houvesse um quarto, seria mais um para tomar e não
manter!” Por outro lado, precisamos evitar o fanatismo ao manter os
votos. Se formos fanáticos, não teremos o mínimo de flexibilidade. Mesmo
no vinaya existem exceções, situações em que precisamos ser flexíveis.
Por exemplo, um monge não deve tocar em uma mulher, mas se uma
mulher estiver se afogando ele não deve dizer: “Desculpa, não posso
ajudá-la. Não posso tocar em mulheres”. Isso seria um absurdo.

Acontece o mesmo quando pensamos em começar uma atividade ou uma


faculdade. Primeiro precisamos pensar com cuidado sobre os benefícios e
não ter pressa. E se formos fazer a atividade ou estudar, que façamos
apropriadamente, que façamos bem feito — mas, novamente, sem
fanatismo. Precisamos nos desapegar quando ela terminar. Geshe
Ngawang Dhargyey costumava dizer: “A vida é muito curta para
experimentarmos tudo. Portanto, não seja um turista profissional no
samsara. Você não precisa experimentar e ver tudo. Isso não lhe levará a
lugar algum” — um conselho muito útil.

Quando formos escolher o que fazer, onde gastar nosso tempo, com quais
pessoas estar e assim por diante, devemos escolher com base em nossos
talentos, naquilo que é preciso ser feito e não está sendo feito por muitas
pessoas e no que beneficiará mais pessoas. Esse é o conselho que Sua
Santidade o Dalai Lama me deu. E, novamente, os benefícios de que
estamos falando aqui não são só para esta vida.

Além disso, conforme Ringu Tulku novamente afirmou quando visitou


Berlin há um tempo atrás, quando escolhemos o que fazer ou quem
ajudar, um outro fator que devemos considerar é o que podemos ganhar
com isso. Isto porque, até sermos um bodhisattva muito elevado, sempre
haverá um componente de egoísmo em nossa motivação. Existem
atividades que nos deixam energizados e existem pessoas que têm muita
energia positiva e que nos inspiram quando as ajudamos, enquanto
outras só drenam nossa energia, nos deixando exaustos. Assim, também
podemos considerar esses fatores ao decidir como gastar nosso tempo e a
quem ajudar.

Quando formos escolher o que trabalhar em nós mesmos, o conselho é


sempre meditar em bodhichitta. Essa é a melhor coisa e a maior fonte de
energia.

Verso 14: Livrando-se de Sentimentos de Superioridade e


Arrogância
Enquanto eu ainda agir negativamente e sem alegria, e um
sentimento de superioridade surgir, que eu elimine meu orgulho
e lembre-me das orientações de meu sublime professor.

Por ainda estarmos em uma situação samsárica, agimos negativamente


e sem a alegria que a liberação ou iluminação traz. Em tempos como
este, em que temos sentimentos de superioridade em relação a
qualquer coisa, como nossa meditação em bodhichitta, nossa prática —
“Oh, sou tão santo” e “estou indo tão bem” e assim por diante —
precisamos eliminar nosso orgulho e lembrar das orientações de nosso
professor que diz que somos como a maré do oceano, que sobe e desce,
sobe e desce. Às vezes ficamos muito orgulhosos por estarmos indo tão
bem; outras vezes nos desanimamos achando que estamos indo muito
mal.

Quando sentimos orgulho, a orientação é pensar sobre a morte e a


impermanência: “Eu sou maravilhoso, mas vou ficar doente e morrer, e
todas essas coisas de que tanto me orgulho não vão durar”. Além disso,
devemos pensar que, independente do quão bom formos, sempre
existirão outros melhores. Se nos compararmos a eles, podemos diminuir
nosso orgulho. Quando ficarmos desanimados, a orientação é pensar em
nossa vida humana preciosa, nas oportunidades que temos e no fato de
que existem outros que estão em situação muito pior. Isso nos ajuda a não
desanimar.

Superando o Desencorajamento
Versos 15 e 16
Verso 15: Não se Desencorajar com a Meditação em Bodhichitta
Lembrando-se da Natureza Búdica para Superar o Desencorajamento

E quando me sentir desencorajado, que eu exalte as glórias da


mente.

Isso refere-se a um grande problema que surge quando queremos


meditar em bodhichitta, que é o desencorajamento e o sentimento de
que “isso é demais para mim: não consigo”. O conselho aqui é exaltar as
glórias da mente. “As glórias da mente” são os aspectos maravilhosos da
mente; especificamente os vários aspectos da natureza búdica. Focando
nos aspectos da natureza búdica, que explicarei em breve, podemos
superar o desencorajamento.

Como lidar com o desencorajamento? Essa é uma questão muito


importante. Para conseguirmos meditar em bodhichitta, precisamos
saber lidar com esse desafio. Com base em minha experiência, e de outras
pessoas, acho que o conselho de Tsongkhapa para a prática de
visualização é muito útil. Ele disse que para visualizarmos alguma coisa,
precisamos primeiro gerar uma imagem mental genérica dessa coisa,
apenas para termos um objeto para focar. E à medida que nossa
concentração melhora os detalhes automaticamente aparecerão. Mas no
começo não devemos nos preocupar com detalhes; caso contrário,
ficaremos muito frustrados.

Acho que esse conselho também se aplica muito bem à meditação em


bodhichitta. No tantra, o foco principal é o sentimento chamado de
“orgulho da deidade”, que é o orgulho de sentir que realmente somos a
figura búdica — sou “eu” — embora estejamos plenamente conscientes
de que estamos apenas chamando de “eu” à figura búdica que podemos
nos tornar com base nas causas que existem em nosso continuum mental.
A figura búdica em si pode estar apenas vagamente em foco; os detalhes
podem não estar claros, mas a confiança de que somos a figura búdica é
forte.

Podemos fazer algo similar com a bodhichitta. Focamos em nossa


iluminação que ainda não aconteceu, mas que pode acontecer com base
em suas causas: os aspectos búdicos de nosso continuum mental. O
estado iluminado que objetivamos alcançar pode estar apenas vagamente
em foco, e os detalhes podem não estar claros, mas a confiança de que
vamos alcançá-lo para o benefício de todos os seres é forte.
No começo, podemos ficar muito frustrados se tentarmos pensar no que
realmente significa a iluminação e no que significa ter todas as qualidades
de um buda — ser capaz de beneficiar cada indivíduo de acordo com suas
necessidades, ser capaz de falar em um idioma que todos entendem, ser
capaz de multiplicar-se em milhões ou bilhões de formas e assim por
diante. Portanto, precisamos focar apenas em uma ideia geral do que
significa a iluminação, e no sentimento de que isso realmente é nossa
futura iluminação.

No começo, precisamos cultivar o estado de mente e coração de


bodhichitta. Só quando estivermos mais avançados no caminho é que o
estado mental surgirá automaticamente. Para gerar esse estado mental,
usamos a meditação de causa e efeito de sete partes ou a meditação de
igualar-se e trocar de lugar com os outros. Mas agora não é a hora de
entrar em detalhes sobre como fazer isso. No que diz respeito ao
sentimento que estamos tentando gerar, o que mais importa é termos um
enorme sentimento de abertura, para ampliar bastante as fronteiras
daquilo com o que nos importamos.

Não importa se o sentimento não é forte no começo. Ele ficará mais forte
com o tempo. É como no caso da visualização: ela fica mais clara à medida
que praticamos. Só queremos ampliar o escopo de nossa mente: “Todos
são iguais, portanto, devo me importar igualmente com todos”. Não se
fixe em detalhes do tipo: “E as baratas?” ou “E os mosquitos?” ou “E as
criaturas dos infernos?” Isso são detalhes. O importante é ampliar o
escopo de nossa mente, ter essa abertura, essa amplitude de escopo.

Então adicionamos a essa abertura o sentimento de “quero ser feliz, assim


como todo mundo. Não quero sofrer, assim como todo mundo. Somos
todos iguais nisso.” Deixamos esses sentimentos de querer ser feliz e não
querer ser infeliz expandir além das fronteiras de nosso senso habitual de
“eu”. Apenas nos abrimos e deixamos esse sentimento irradiar-se. Então
acrescentamos o seguinte pensamento: “Para que eu realmente seja capaz
de trazer felicidade a mim e aos outros, preciso alcançar a iluminação, e
todos os outros seres também”, sentindo fortemente que “eu realmente
quero fazer isso, por mim e por todos os seres”.

É como se houvesse um sol de amor, compaixão e interesse pelos demais


dentro de nós, querendo brilhar sobre todos os seres e levá-los à
iluminação. O que queremos fazer é nos livrar da demarcação que limita
nosso interesse a apenas nós mesmos, e imaginar esse sol brilhando até o
infinito. Não se preocupe com a distância — “se é mil quilômetros, um
milhão de quilômetros ou vinte milhões de anos luz” — amor, compaixão
e interesse imensuráveis e ilimitados. Esse é o ponto: ter um coração
muito, muito vasto e uma mente muito, muito vasta.

Então pensamos: “Iluminação: é isso que preciso alcançar.” E, novamente,


não precisamos de todos os detalhes, apenas de um sentimento genérico.
O sentimento é: “esse é o estado mais elevado possível, o estado mais
elevado de evolução, onde todas as minhas limitações são removidas”.
Apenas tente sentir essa expansão. Não importa quanto tempo levaremos
para atingir a iluminação. Portanto, existe um sentimento de expansão em
relação ao tempo também. Existe essa área muito, mas muito vasta que
engloba todas as dimensões: a dimensão espacial, a dimensão do tempo, a
dimensão do desenvolvimento e a dimensão das qualidades. Novamente,
não se preocupe com os detalhes. Apenas sinta essa vastidão, uma
vastidão de calor humano. Este é o significado de “maha” Mahayana:
vasto.

Então, nisso há — como em uma ilusão — a forma de um buda. Se nos


visualizamos como figuras búdicas, no tantra, ou se visualizamos a figura
à nossa frente, não importa. Podemos também fazer no estilo
mahamudra, em que é apenas a natureza da própria mente, a clareza da
própria mente, que representa o que estamos tentando alcançar. Isso
também é um foco. Assim, temos um foco dual —essa vastidão e uma
representação dela. É como um imã; somo atraídos por essa
representação e por esse vasto escopo. É nisso que focamos com
bodhichitta.

Portanto, bodhichitta não é apenas compaixão: ”Oh, pobre de você aí na


rua, quero te ajudar.” Não é assim; é algo muito mais vasto. Esse é o
estado mental que queremos desenvolver. Me traz lágrimas aos olhos.
Nosso coração fica tão cheio, é tão assoberbante. É realmente um estado
mental extraordinário.

Agora, a questão sobre a possibilidade de nos iluminarmos é muito difícil.


É muito difícil nos convencermos totalmente apenas através da lógica.
Então, o que podemos fazer é dar o benefício da dúvida, que é como nós,
especialmente nós ocidentais, tendemos a abordar a questão do
renascimento. Ou seja, dizemos: “Bom, suponhamos que seja possível.
Então vamos ver onde isso nos leva. Serei paciente porque percebo que é
algo muito difícil de entender e de se convencer. E levarei anos e anos
para atingir esse nível. E nunca acontecerá assim: “Aleluia, agora
acredito!”” Então trabalhamos com a ideia. Acostumamos nossa mente a
ela.
Com o que trabalhamos? Trabalhamos com a natureza búdica, conforme
diz aqui. E do que estamos falando? A natureza búdica é um aspecto, ou
melhor, uma rede de aspectos, que faz com que esse desenvolvimento
seja possível.

 Temos vários aspectos que podem ser estimulados e desenvolvidos.


Por exemplo, existe a afetuosidade natural da mente; o instinto de
cuidar de alguém; a qualidade natural da mente de emitir energia — a
capacidade da mente de comunicar, de compreender, de sentir; a rede
de força positiva e consciência profunda (mérito e sabedoria) que é
imputada em nosso continuum mental. Todas essas qualidades, que já
estão lá, podem ser cada vez mais desenvolvidas

 Existe também a natureza búdica sempre presente, a vacuidade da


mente. Ela também é uma aspecto da natureza búdica. A vacuidade da
mente permite mudança, desenvolvimento.

 O terceiro tipo de aspecto da natureza búdica é a capacidade da mente


em inspirar-se a desenvolver e crescer: não somos como as pedras.

Focar nesses três tipos de aspectos da natureza búdica nos encoraja.


Sabemos que podemos atingir a iluminação com base nesses aspectos.

Em suma, temos uma ligeira ideia das qualidades de buda que estamos
tentando desenvolver, mas não nos fixamos nisso, pois nos
desencorajaríamos. Focamos no sentimento de ser possível crescer, de
que temos os aspectos causais para atingir a iluminação. Quando temos
esse sentimento, e nossa mente tem esse escopo de grande vastidão,
começamos a ser capaz de realmente meditar em bodhichitta.

Se trabalhamos tendo como base a natureza búdica, e nossa mente estiver


aberta a essa vastidão, não nos desencorajaremos. A compreensão do
verdadeiro significado do budato e a convicção de que é possível atingi-lo
virá mais tarde. O principal é a sensação de vastidão e a afetuosidade que
é faz parte dela, e a confiança de que a base para trabalharmos está
presente.

Não entre em um estado mental de “Não consigo. É demais para mim. É


impossível”. Nesse caso, estaríamos nos identificando com o “eu”
limitado. E ao invés de ter o orgulho da deidade, teríamos o orgulho do
“eu” samsárico, o que não ajuda em nada, especialmente se nos
lembrarmos da vacuidade disso, de “isso é besteira. Eu não sou assim”.
Nosso foco está no fato de nossa futura iluminação ainda não ter
acontecido — sabemos que ainda não chegamos lá. Portanto, não que
estamos nos enganando.
Evitando o Desencorajamento Através da Meditação na Vacuidade

E meditar na vacuidade de ambos (os estados).

Para evitar de nos desanimarmos, precisamos meditar na


vacuidade do estado samsárico inadequado, de realmente não sermos
capazes de ajudar a todos agora, e do estado iluminado que estamos
objetivando. Vacuidade significa a ausência total de formas impossíveis
de existência. Não é que esses dois estados, samsárico ou iluminado,
sejam como duas bolas de ping-pong, totalmente encapsulados: sendo
uma bola o pobre e limitado “eu” que não consegue ajudar ninguém ou
que só consegue ajudar de forma muito trivial e a outra a iluminação lá
em cima, tão difícil de alcançar. Os dois estados surgem de causas e
condições.

As condições para a iluminação estão presentes, são os aspectos da


natureza búdica. Atingir a iluminação é apenas uma questão de gerar
suficiente energia positiva e consciência profunda. Conseguimos isso
ajudando os outros e nos familiarizando com a compreensão correta da
vacuidade, ou seja, percebendo que as coisas surgirão na dependência de
causas e efeitos e de nossos esforços.

Essa compreensão nos ajuda a superar o desencorajamento de pensar


que isso é impossível, e a ter uma atitude realista — conforme falamos
anteriormente quando discutimos a perseverança. Não estamos nos
enganando: vai ser difícil. Mas existe outra coisa que valha mais a pena
fazer na vida? Tudo o mais é trivial quando comparado a desenvolver o
ideal de bodhichitta. Shantideva coloca isso muito bem em seu primeiro
capítulo “Os Benefício de Bodhichitta”.

(I.12) Tudo o mais que é construtivos lembra uma bananeira:


uma vez que deu seu fruto, seca. Mas a árvore de bodhichitta
sempre dá frutos e nunca seca, cresce cada vez mais.

Mesmo que não seja possível atingir a iluminação, que é o que estamos
pensando agora — tendo pensamentos duvidosos, de dúvida aflitiva, de
pensar: “É possível ou não? Parece tão fantástico” —, isso não importa. E
também não importa se existem seres iluminados atualmente ou se
existiram no passado. Certamente podemos apreciar o fato de poder nos
desenvolver e evoluir cada vez mais. Assim, representamos tudo isso
como “bom, isso o mais longe que podemos ir em nossa evolução. Vamos
chamar esse estágio de Budato”
A Importância da Inspiração que Obtemos de Nosso Professor Espiritual para
Não Nos Desencorajarmos
Acho que essa é a maneira de começar. Não estou dizendo que essa é a
compreensão final, longe disso, mas é a maneira de começar, para
conseguirmos alçar voo; caso contrário, ficaremos presos ao “não consigo
fazer isso” ou “pobre de mim”. Não conseguimos mesmo entender o que é
um Buda; está além de nossa compreensão. É por isso que dizem que os
gurus são tão importantes. Usando o exemplo de Sakya Pandita, o guru é
como uma lente de aumento que focaliza os raios do sol para acender o
fogo na madeira de nossa mente. Obviamente, o sol nessa analogia é o
Buda.

Com gurus como Sua Santidade o Dalai Lama, ou mesmo com gurus
menos desenvolvidos, podemos sentir como é possível um ser humano
evoluir. Isso nos inspira. Portanto, nos relacionamos com o mais alto
estágio que conseguimos nos relacionar e aspiramos atingi-lo. Assim, nos
desenvolvemos cada vez mais. É claro que não conseguimos nos
relacionar com um buda e todas as qualidades de Shakyamuni Buddha. É
demais para nós. Então não se preocupe, ok?

Quando meditamos e temos bodhichitta convencional — nossa mente se


estende infinitamente — combinamos esse escopo de vastidão com a
compreensão da vacuidade, que também se estende infinitamente. Essa é
a forma de começar a juntar as duas coisas. Pensando em vacuidade,
entendemos que nada existe como uma bola de ping-pong; tudo está
inter-relacionado, tudo é interdependente e afetado em suas qualidades
por tudo o mais, em todas as dimensões do espaço e tempo. Portanto esse
escopo Mahayana é muito importante — enquanto mantemos o foco.

Por isso que é bom ter uma figura búdica ou algo do gênero: dá à mente
algo em que focar. Quando a mente está aberta e ampla, é fácil nos
perdermos. Portanto, procuramos um equilíbrio entre a vastidão e o foco
em uma figura búdica — principalmente porque o que se acrescenta à
meditação é um sentimento de êxtase. Se não tivermos algo em que focar
será muito fácil nos perdermos no êxtase — podemos ficar em um estado
de prazer profundo, como um cachorrinho quando alguém acaricia sua
barriga.
Verso 16: Evitando o Desencorajamento Através da Aplicação da
Vacuidade a Toda Experiência
Considerar Tudo uma Ilusão

Sempre que surgir um objeto de apego ou hostilidade, em


qualquer situação, que eu o considere uma ilusão ou projeção;

Isso é depois de termos nos absorvido na meditação da compreensão da


vacuidade. Quando estivermos lidando com alguma situação que
perturbe nossa mente, é importante considerá-la uma ilusão, para não
nos desencorajarmos. Quando estivermos com dificuldades e surgirem
obstáculos, devemos vê-los uma ilusão, como um sonho. Quando
acordarmos do sonho, o sonho não existirá mais, terá terminado, apesar
de ter ocorrido. Talvez nos lembremos dele, mas sabemos que não está
acontecendo no momento. Portanto, sempre que surgir um estado
mental, um estado de humor ou uma situação desanimadora, devemos
perceber que não é sólida, que surgiu de causas e condições e que vai
passar, como um sonho.

Isso nos dá coragem. Ver tudo como uma ilusão ou como uma
projeção nos dá coragem para não sermos enganados por ela. Se
assistirmos um filme de terror, podemos nos assustar. Mas se
percebermos que é um filme — que são só atores maquiados na tela —
podemos ter coragem e não ficar assustados. Esse é um conselho muito
útil. Coisas acontecem — algo que nos desanime ou uma situação difícil.
Então dizemos: “ok, não tem problema. Surgiu de causas e condições.
Parece sólido mas é como uma ilusão”, e então simplesmente aplicamos
uma força opositora para lidar com isso.

É como estar na Índia e achar um escorpião no sapato. Você não se


desespera; não faz disso um grande problema: “ok, tem um escorpião no
meu sapato.” É como se fosse uma ilusão, no sentido de que não é um
monstro terrível. Você pega seu sapato, vai lá fora e joga o escorpião em
algum lugar. E depois entra e coloca o sapato. E está terminado. Não tem
nada demais nisso, certo?

É assim que devemos lidar com o desencorajamento e com as situações


difíceis. “Ok. Surgiu uma situação. É como um escorpião no meu sapato.
Preciso lidar com isso. E se eu precisar de um tempo para me acalmar, eu
tiro esse tempo para me acalmar. Qual o problema?”
Considerar as Palavras Desagradáveis como Ecos e as Feridas como o
Amadurecimento de Karma Passado

Sempre que ouvir palavras desagradáveis, que eu as considere


ecos; e sempre que meu corpo for ferido, que eu considere (que
isso vem de) um karma anterior.

É como no lojong, o texto de treinamento da mente (treinamento de


atitude) que o professor de Atisha, Dharmarakshita, escreveu — que
quando ouvirmos palavras desagradáveis serão como um eco.
Portanto, é como se as palavras grosseiras que falamos no passado
estivessem voltando para nós e as estivéssemos ouvindo novamente.
E quando meu corpo for ferido, bom, isso veio do meu karma.
Jogamos o bumerangue e agora ele voltou. Somos nós que criamos todos
os problemas. As outras pessoas podem ser a circunstância, mas fomos
nós que criamos as condições para encontrarmos essas circunstâncias.

Assim, tentamos lidar com essas situações sem transformá-las em algo


terrível: “Você é uma pessoa terrível. Você fez algo que eu não gosto”. Se a
pessoa fez alguma coisa que não gostamos, podemos simplesmente dizer:
“Isso não é aceitável. Poderia, por favor, agir de outra maneira? Talvez
desta ou daquela forma.” Se for uma pessoa razoável, ela se adaptará. Se
ela se adaptar e nós nos adaptarmos, não teremos problemas. Se ela não
for uma pessoa razoável e não se adaptar, tentamos nós nos adaptarmos
o máximo possível — ao mesmo tempo que estabelecemos limites.
Estabelecemos os limites do que é aceitável, de acordo com o que é
construtivo e o que é destrutivo.

Como Viver uma Vida Dedicada à


Prática
Versos 17 a 28
Verso 17: Vivendo em Solitude
Que eu viva em um lugar isolado, fora dos limites (de qualquer povoado) e,
como o corpo de um animal morto, me esconda em solitude e viva sem
apegos.

Isso é muito parecido ao que Shantideva explicou no oitavo capítulo de seu texto:
(VIII.37) Portanto, deixem-me viver em solitude em uma adorável e
encantadora floresta, com poucos problemas, e com felicidade e bem estar,
silenciando todas as distrações.

(VIII.35) Deixem que este corpo permaneça isolado, sozinho, sem fazer amigos
íntimos ou conflitos. Se já me considerarem morto, ninguém ficará de luto
quando eu morrer de verdade.

Aqui, Atisha diz que se quisermos melhorar, avançar e realmente nos desenvolver,
é melhor viver em um lugar silencioso e afastado, fora dos limites de qualquer
povoado — este é o significado da palavra monastério em tibetano: um lugar
silencioso e fora do povoado — e ser como o corpo de um animal morto.
Conforme explicou Shantideva, se já nos considerarem mortos, não haverá pessoas
nos incomodando com seus lamentos ou fazendo uma cena quando morrermos.

Se nos escondermos em solitude e vivermos sem apegos, poderemos praticar


corretamente para tentar beneficiar nossas vidas futuras. Porém, é claro que nem
todos podemos fazer isso. Sua Santidade sempre diz que apenas um percentual
muito pequeno de pessoas se sentirão inclinadas a viver em solitude e dedicar sua
vida à meditação; para a grande maioria, é melhor permanecer em sociedade e
envolver-se em ajudar os outros ao máximo. No entanto, às vezes é bom fazer um
retiro por um tempo — ficar em um lugar tranquilo para meditar, escrever coisas
relacionadas ao dharma ou fazer alguma atividade construtiva. Pensar nos grandes
mestres do passado, que viveram assim — e alguns do presente também — nos dá
muita inspiração.

Ter uma vida tranquila é melhor, principalmente para os iniciantes, pois terão
menos distrações. Mas não idealize a Índia e o Nepal, pois não são lugares
tranquilos. São a Terra do Som. Os monastérios tibetanos são extremamente
barulhentos. Todo mundo faz sua prática falando alto. Além disso, mesmo em um
lugar silencioso, podemos, é claro, ter uma mente extremamente barulhenta. Não
há como garantir que se houver silêncio externo também haverá silêncio interno.
No entanto, muitas pessoas se beneficiam do silêncio externo.

Verso 18: Vencendo a Preguiça


Ter uma Prática Diária Estável
(Lá), que eu estabilize minha figura búdica.

Lá, — referindo-se ao lugar afastado e tranquilo onde podemos ficar em solitude


— que eu estabilize minha figura búdica. Aqui, Atisha nos dá mais um sinal de
prática tântrica.

Ele diz, “que eu estabilize”. O que precisamos para obter estabilidade é ter uma
prática meditativa diária, independente de qual seja. É muito bom ter uma prática
estável, algo que façamos todos os dias, principalmente quando temos vidas muito
ocupadas e muita coisa para fazer. Então, independente de quão louca esteja nossa
vida, teremos esse estado mental estável — um lugar estável para nos refugiarmos.
Isso nos dá uma sensação de continuidade, o que é muito importante para a
estabilidade.

Se trabalharmos com um figura búdica, uma yidam, como no tantra, estaremos


abandonando nossa velha autoimagem, associada com uma vida corrida, e
adotando uma nova — baseada na compreensão da vacuidade, em bodhichitta e
em renúncia, claro — Essa nova autoimagem será a de um buda na forma de uma
figura búdica como Avalokiteshvara ou Tara, que são a corporificação de várias
qualidades que estamos tentando desenvolver.

Quando nos retiramos para um lugar silencioso, é muito importante


“desassociarmos” nosso corpo e mente de toda a correria, conforme diz
Shantideva:

(VIII.89) Considerando, com esses e outros aspectos, os benefícios de (me)


desassociar, e acalmar totalmente meus pensamentos desconexos, devo
meditar em bodhichitta.

Não é só o nosso corpo que vai para um lugar isolado. Também isolamos nossa
mente de todas as associações e apegos. Desassociamos nossa mente da
autoimagem que tínhamos no lugar que deixamos. É por isso que trabalhar com
uma figura búdica ajuda muito, nos ajuda a substituir nossa autoimagem samsárica
por uma que seja mais “nirvânica”, se é que podemos usar tal palavra, uma imagem
que não tenha todas as velhas associações negativas — negativas no sentido de
emoções destrutivas. A figura búdica representa nossa futura iluminação, que
objetivamos alcançar com bodhichitta.

Lembrar de Nossos Defeitos Para Superar a Preguiça


E sempre que eu sentir preguiça ou sede de entretenimento, que eu enumere
meus defeitos

Como sempre digo, até nos tornarmos arhats continuaremos tendo nossos altos e
baixos no samsara. Essa é a natureza do samsara. Às vezes temos vontade de
meditar e às vezes não. Às vezes nos sentimos exaustos e preguiçosos e outras não.
O importante é continuar. Conforme foi dito em um verso anterior, consideramos
essas coisas como ilusões. Não damos muita importância aos altos e baixo,
simplesmente continuamos.

Para nos ajudar a superar a preguiça e a exaustão, Atisha diz que


devemos enumerar nossos defeitos. Ou seja, lembrar que preguiça e exaustão
são defeitos. São obstáculos, coisas que queremos superar. Assim, nos lembramos
de nossa motivação para meditar: Queremos superar coisas como a preguiça, o
desencorajamento, a exaustão e a autopiedade, e treinar nossa mente para não
ficar tão distraída, apegada, raivosa e assim por diante. Lembrando-nos de que
“esse é exatamente o motivo de eu estar sentado aqui. É exatamente por isso que
quero meditar — é porque eu tenho preguiça e não tenho vontade de fazer nada de
construtivo”; reafirmamos nossa motivação, e isso nos dá força para continuar. Isto
faz parte da perseverança: aceitar que o samsara tem algos e baixos; aceitar a
dificuldade, não deixar-se iludir, apenas continuar; esforçar-se.

Uma vez que tenhamos relembrado nossa motivação para superar essas falhas,
devemos:

Corrigir-nos com Autodisciplina


e lembre-me dos pontos essenciais para domar o comportamento.

Essa frase refere-se à disciplina ética, à disciplina de corrigir nossas falhas. O que
está sendo explicado aqui é que precisamos reconhecer nossas falhas e defeitos
quando surgirem, e corrigi-los nós mesmos. É a isso que estamos nos referimos
quando falamos no “guru interno”. Não precisamos de um guru externo para nos
corrigir. Não precisamos de um policial ou de uma mamãe ou papai. Nós mesmos
podemos reconhecer quando estamos agindo de uma forma que não condiz com o
que buscamos, quando estamos agindo de uma forma que não é construtiva. Então
nos corrigirmos. Não hesitamos. Apenas fazemos o que tem de ser feito. É como
tentar tomar um banho de água fria — “Apenas entre na água. Ou você entra ou
não entra. Se vai entrar, entra de uma vez!”

Verso 19: Ser Amável e Gentil quando Encontrar Alguém


Mas, se acontecer de ver outras pessoas, que eu fale com calma, suavidade e
sinceridade, que me livre de qualquer carranca ou cara fechada e sempre
sorria.

Novamente, isso nos evoca o texto de Shantideva.

(V.71) Portanto, devo ter autocontrole e apresentar-me sempre com um


sorriso no rosto. Não ficarei de cara fechada ou farei caretas (de
desaprovação), serei amistoso com os seres sencientes, e serei honesto.

Mesmo vivendo e praticando em reclusão, invariavelmente encontraremos outras


pessoas. Quando isso acontecer, é importante sermos calmos e gentis. Se nossa
prática for estável, ficaremos calmos e isso as deixará tranquilas.

No entanto, é importante mantermos a desenvoltura ao interagir com as pessoas.


Quando voltei aos Estados Unidos, depois de alguns anos na Índia, passei um
tempo com minha irmã. Seu comentário foi: “você é tão calmo que me dá náuseas”.
Eu parecia um zumbi, ficava calmo o tempo todo e não mostrava qualquer tipo de
excitação emocional — e minha irmã é muito emocional. Portanto, ser calmo e
gentil não significa não ter expressão e andar por aí feito um zumbi. Precisamos ter
expressão facial, e reagir às situações.
E por falar em expressão facial, o verso diz para nos livrarmos da carranca e da
cara fechada. Isso é especialmente importante quando essas expressões resultam
do desprezo, de pensar que somos melhores que os outros porque “seguimos um
caminho espiritual”. Olhamos para os outros com superioridade, com uma
expressão de desaprovação: “Ah, você tem negócios?”, “Você bebe?”, “Você ainda
bebe vinho?” ou algum outro tipo de atividade samsárica. E fazemos um olhar de
desaprovação, de superioridade.

Portanto, precisamos ter sempre um sorriso nos lábios. Mas não um sorriso falso
de anúncio publicitário. Precisamos ser sinceros, manifestar o que está em nosso
coração e não sermos pretensiosos, não nos vangloriarmos desaprovando os
outros ou algo assim. Conforme costuma dizer Sua Santidade o Dalai Lama, é uma
grande alegria encontrar outro ser humano, de ser humano para ser humano.

Em uma determinada parte do treinamento de sensibilidade, tentamos observar a


própria expressão facial. Tentamos perceber se estamos franzindo as
sobrancelhas, a testa ou a boca. Se percebermos que nossos músculos faciais estão
tensos, tentamos relaxar o rosto, relaxar a expressão. Isso é muito importante, já
que muitas vezes nosso rosto assume uma expressão contraída ou de
desaprovação. Isso é comunicado às outras pessoas. Nós não percebemos, mas as
pessoas percebem.

Por outro lado, nossa expressão facial pode ir para o outro extremo, de uma
expressão exagerada. Percebemos esse extremo quando falamos alguma coisa e a
outra pessoa força muito a reação e a expressão facial. Isso nos deixa
desconfortáveis: “A pessoa ficou mais chateada com o que contei do que eu
mesmo!”

Verso 20: Ser Generoso(a) e Não Competir com as Pessoas com


quem Vivemos ou Praticamos
E quando estiver sempre encontrando pessoas, que não seja avarento, que me
alegre em doar e me livre de qualquer sentimento de inveja.

Às vezes temos que conviver com outras pessoas, quer seja em um ambiente de
retiro, com pessoas que tenham uma mentalidade semelhante, ou outra situação
qualquer, com pessoas que tenham mentalidade diferente. Quando estamos
sempre encontrando pessoas, é importante não sermos avarentos e
compartilharmos nossos bens. Se ficarmos sempre dizendo: “Isso é meu; você não
pode usar”, “Essa comida na geladeira é minha” ou “Essa é a minha cadeira”, vamos
soar como os ursos de Cachinhos Dourados e Os Três Ursos: “Essa é a minha cadeira;
alguém sentou na minha cadeira, alguém dormiu na minha cama!” Isso deixa os
outros muito desconfortáveis e afeta o relacionamento de todas as pessoas com
quem vivemos.

Alegre-se em doar — devemos nos alegrar em compartilhar nossas coisas. E


também precisamos nos livrar da cobiça, de cobiçar os bens alheios: “Quero usar as
suas coisas porque são melhores que as minhas” — esse tipo de coisa.
Logicamente, esse não é um conselho fácil de se por em prática, pois muitas vezes
as pessoas podem querer nos explorar e usar nossas coisas ao invés de suas
próprias. Isso requer muita paciência.

Realmente é muito interessante: quando gostamos muito de uma pessoa, quando


somos muito próximos dela, queremos compartilhar tudo, mas com as outras
pessoas não queremos compartilhar nada. Não queremos nem sentar na mesma
mesa que elas. Nossa capacidade de alegrar-se em doar dependerá muito de
conseguirmos nos igualar aos outros.

Quando precisamos impor limites, o fazemos com base na compreensão do que é


construtivo e destrutivo. Por exemplo, não compartilhamos nosso computador
com crianças pequenas, pois é praticamente certo que irão quebrá-lo. E também
não o compartilhamos com pessoas irresponsáveis, pois também vão quebrá-lo. No
entanto, sabendo o que é construtivo e o que é destrutivo, é importante
compartilhar. Como disse, não é nem um pouco fácil colocar isso em prática.

Mas alegre-se em doar, essa é a chave. Nos faz feliz. A maioria de nós sabe o que é
isso porque já experimentou. Quando realmente amamos alguém, ficamos muito
felizes em dar presentes, e mais ainda quando a pessoa aceita e acha que nosso
presente pode ser útil. Então tentamos ampliar esse sentimento de querer
compartilhar, estendendo-o às pessoas que não nos são próximas. Assim, não
sendo avarento, não cobiçando as coisas alheias e alegrando-nos em compartilhar,
seremos muito amáveis.

Por outro lado, no que diz respeito à nossa prática, precisamos ser tão fortes e
teimosos quanto um touro. Se alguém ficar demandando todo o nosso tempo e não
nos deixar fazer nossa prática diária, precisaremos estabelecer limites. Se
quiserem usar nossas tigelas de oferendas como cinzeiro, não podemos deixar; não
é assim que devemos compartilhar. Precisamos ser determinados em relação à
nossa prática e não deixar que os outros passem dos limites.

Geshe Ngawang Dhargyey citou uma expressão Tibetana que diz: “Não dê a corda
do seu nariz para outra pessoa. Mantenha-na em suas mãos”. Um touro ou búfalo
tem um anel no nariz. Costumava-se passar uma corda por esse anel e o touro
tinha que ir onde a pessoa o levasse. Então a expressão é: “não deixe a corda nas
mãos de outra pessoa. Segure-a em suas próprias mãos.” Isto é, seja seu próprio
mestre. E Atisha diz:

Verso 21: Paciência com os Outros


A fim de proteger a mente dos outros, que eu me livre da discórdia e seja
sempre paciente e tolerante.

Tentamos agradar os outros, fazê-los feliz e não contradizê-los. É isto que


significa discórdia: contradizer e argumentar com alguém. Tsongkhapa colocou
isso muito bem: “Se concordar com a outra pessoa, a discussão estará encerrada”.
Simplesmente concordamos: “Eu concordo. Não vou discutir com você”. Dessa
forma a discussão estará encerrada. Mas, de novo, depende da questão que está
sendo discutida. No geral, especialmente quando a outro pessoa não está disposta
a ouvir, quando está totalmente fechada, devemos simplesmente dizer: “sim, sim”,
mesmo que ela esteja dizendo um absurdo. Nesse caso, não há motivo para
argumentar.

Isso nos remete à frase “aceite a derrota e dê a vitória ao outro”, que tem sua
origem no texto Guirlanda Preciosa (Skt. Ratnavali) de Nagarjuna. Essa é uma das
principais frases do Treinamento da Mente em 8 Versos.

(5) Quando os outros, por inveja, forem injustos comigo, me repreendendo,


insultando ou mais, que eu aceite a derrota e ofereça-lhes a vitória.

Esse é um conselho muito importante e útil. Aceitamos a derrota: “Ok, estou


errado. Você está certo.” Que diferença faz? Não temos que dar sempre a última
palavra. Isso é o que a última frase do verso anterior quer dizer.

Mas existem limites. Se a pessoa está prestes a fazer algo destrutivo, temos que
impor limites. Se alguém disser: “Vamos atirar em cangurus?” temos que colocar
um limite. Temos que dizer não, que não concordamos com isso. Mas se dissermos:
“O céu é azul” e disserem: “Não, é verde”, não há porque continuar argumentando.
O que importa? Isso é especialmente relevante em um debate político ou religioso,
quando a outra pessoa não estiver ouvindo o que dizemos. De que adianta
continuar argumentando? Viraria uma discussão inútil. Então simplesmente
dizemos: “Ok, vamos falar de outra coisa?” E pronto.

Mesmo quando alguém nos critica ou aponta nossos erros e falhas, não devemos
discutir. Simplesmente agradecemos: “Obrigada. Obrigada por me mostrar”. Não
importa que digam que é verdade. Não há motivos para ficarmos na defensiva. E
muitas vezes o que dizem está certo. É importante não ficarmos na defensiva,
especialmente quando a intensão do outro é nos machucar ou ser agressivo. Se
respondermos: “Obrigada por me mostrar isso”, o antagonismo estará desfeito.
Será o fim da discussão.

Porém, se alguém nos acusar de alguma coisa, não devemos agradecer sem apurar
se a acusação está correta. Obviamente precisamos examinar essas coisas, usar
nossa capacidade discriminativa. Se alguém disser: “Você pegou minha caneta” e
não tivermos pego, não devemos agradecer. Senão a pessoa dirá: “Então devolva”, e
não poderemos devolver, porque a caneta não estará conosco. O texto refere-se a
situações em que pessoas criticam nossos erros e defeitos, nos chamam de
gananciosos ou algo do gênero. Nesse caso, dizemos: “Desculpa, obrigada por me
mostrar. Vou trabalhar nisso.” Não fique na defensiva.

Verso 22: Ser um Bom Amigo e Professor


Não Ser Inconstante em Nossas Amizades
Que eu não seja bajulador ou inconstante em minhas amizades, mas que
permaneça sempre fiel.
Isso é importante em uma amizade. No inglês falamos de “amigos de tempo bom”,
que são amigos quando tudo vai bem e a situação é boa, mas que nos deixam
quando estamos com problemas e não somos uma companhia muito agradável.
Quando outras pessoas falam mal da gente, cometem equívocos ou nos machucam,
é importante desejá-las felicidade.

No entanto, também não devemos bajular. Bajular significa elogiar em excesso,


ficar em cima da pessoa, especialmente se ela for agradável, mas abandoná-la
quando ela não estiver bem.

Ser inconstante nas amizades significa ficar mudando de amigos o tempo todo,
abandonar um amigo e seguir para o próximo. É como fazer uma nova conquista,
especialmente quando envolve sexualidade.

Essas coisas indicam que nossas amizades não são estáveis, que não estamos
convencidos de que a pessoa é nossa amiga ou que não somos sinceros. Portanto,
precisamos permanecer fiéis — não só quando o tempo estiver bom, mas também
quando estiver ruim, e não só quando os amigos forem agradáveis, mas também
quando cometerem erros.

Respeitar os Amigos
Que não insulte os outros e seja sempre respeitoso.

Algumas pessoas são gentis apenas com pessoas ricas e poderosas, pessoas que
podem lhes trazer alguma vantagem. E quando descobrem que não vão conseguir
nada — recomendações, dinheiro, oportunidades, sexo ou o que for —
as abandonam. Essas pessoas insultam e desprezam aqueles que não lhes trarão
alguma vantagem, e não querem ser gentis com eles.

Aqui, Atisha tinha em mente o sistema de castas. Não classifique as pessoas em


castas: “Só posso ter amizade com alguém da minha casta”, “Só posso ser amigo de
pessoas da minha idade ou da minha classe social” — o que for. Seja
respeitoso com todas as pessoas. Qualquer pessoa pode ser um amigo próximo.

O que fazer quando as pessoas se aproximam apenas para nos explorar, para
conseguir alguma coisa, e quando não temos mais utilidade nos abandonam?
Primeiro, se estamos praticando como bodhisattvas, devemos ficar felizes por elas
terem se aproximado. Ficamos felizes em poder ajudar. E se elas forem embora, o
problema é delas. É triste elas não estarem mais abertas à nossa ajuda.

Isso é especialmente verdadeiro quando somos professores. Esse é um problema


que muitos professores ocidentais de dharma enfrentam. Muitas pessoas se
aproximam e são seus alunos por um tempo, mas depois vão embora e não voltam
mais. Muito professores ficam chateados. Ficam se perguntando: “Por que eles não
voltaram? O que aconteceu? Será que fiz algo errado?” Nesse caso, precisamos
pensar: “bom, eles é que estão perdendo com isso. O ensinamento está disponível;
se eles não vierem é por conta de seu próprio karma. Se eles só queriam me usar,
isso é um problema deles. Estou aqui para ajudar, quer eles queiram me explorar
ou não.”

Agora, no que se refere à exploração, devemos oferecer o que for apropriado. Não
devemos oferecer demais, isso poderia prejudicá-los, e também a nós. Não
devemos deixá-los nos sugar completamente. Precisamos estabelecer limites.
Conforme disse Ringu Tulku: muitas pessoas vêm nos pedir coisas, mas só
podemos atender algumas, não podemos nos multiplicar em diversas formas
diferentes, ainda não somos budas. Mas tentamos ajudá-las com pelo menos
alguma coisa, para não rejeitá-las completamente.

Quando preciso dizer a alguém que não posso fazer alguma coisa, lembro-me de
uma bela frase da Senhora Boas Maneiras (ing. Miss Manners). A Senhora Boas
Maneiras era uma especialista em etiqueta de uma jornal americano. As pessoas
mandavam suas perguntas para ela. A Senhora Bons Maneiras dizia que em tais
situações devemos apenas dizer “Sinto muito”. Não devemos dar desculpas. Não
devemos enumerar os motivos pelos quais não podemos ajudar. Devemos apenas
dizer: “Oh, sinto muito. Não poderei fazer isso”. Não é preciso explicar. Se
explicarmos, a outra pessoa irá argumentar, e então teremos que nos defender.
Devemos simplesmente dizer: “Sinto muito.” Ótima guru a Senhora Boas Maneiras.

Dar Conselhos ou Ensinar, com o Único Propósito de Ser Útil


Então, quando der orientações a outras pessoas, que eu tenha compaixão e
queira ajudar.

Se dermos conselhos e ensinamentos aos outros — e não precisa ser ensinamentos


formais — não devemos esperar recompensa; não devemos fazer isso por dinheiro
ou fama. E também não devemos fazer porque queremos que a outra pessoa goste
de nós ou fique dependente, o que seria ainda pior. Nosso conselho será mais
sincero se evitarmos essas coisas.

E no que diz respeito a como escolher a prática de dharma que seguiremos, Atisha
diz:

Verso 23: Escolhendo o Que Praticar


Que eu nunca negue o dharma e, ao direcionar minha intenção àquilo que
fervorosamente admiro, que me esforce para passar meus dias e noites
atravessando os portões das dez ações do dharma.

Precisamos perceber que o Buda ensinou muitos métodos diferentes, muitas


práticas diferentes; portanto, não devemos negar nenhum deles. Não devemos
dizer: “Esse não é um ensinamento do Buda” ou “Isso não ajuda em nada” ou “Essa
prática é inapropriada”. Devemos estar abertos e aceitar todos os ensinamentos do
dharma.
Dentro do espectro das práticas budistas, devemos escolher as que nos servem, as
que admiramos e aquelas com as quais sentimos alguma conexão, tenham elas um
estilo tibetano, Theravada ou Zen. Ou, dentro do budismo tibetano, sejam elas de
uma tradição ou de outra, seja Guru Rinpoche ou Tsongkhapa.

Isso não faz diferença. Todas as práticas podem igualmente nos levar à liberação e
iluminação. Precisamos encontrar aquela que é mais adequada para nós, que
podemos admirar fervorosamente. “Admirar” é uma palavra que também
significa “ter uma firme convicção”. Estamos firmemente convictos de que isso nos
é adequado. Não devemos nos deixar influenciar pelo que é popular ou pelo que
nossos amigos estão fazendo. Devemos estar confiantes daquilo que é adequado
para nós, e então praticamos de coração.

As Dez Ações do Dharma


Passar os dias e noites fazendo as dez ações do dharma não significa que temos
que fazer as dez ações todos os dias. “Dias e noites” quer dizer “nosso tempo”.
Tentamos dedicar nosso tempo a uma determinada prática, à prática que nos é
adequada. Que tipo de prática podemos fazer? Temos as dez ações do dharma:

1. “Copiar escrituras” — isso não quer dizer fazer uma fotocópia. Antigamente isso
significava escrever as escrituras, já que não havia versões impressas, e fazer uma
cópia manuscrita tornava o texto acessível a mais pessoas. Até mesmo nos dias de
hoje, quando versões impressas estão disponíveis, escrever ou digitar textos nos
ajuda a criar familiaridade com seu conteúdo. Principalmente quando são
escrituras ou ensinamentos que dizem respeito às práticas que nos interessam.

2. “Fazer oferendas às Três Joias” — isso é sempre bom, mas também podemos
fazer oferendas com a motivação: “Que eu consiga praticar bem”.

3. “Doar aos pobres e doentes” — isso também é genérico, algo que, no Mahayana,
faríamos de qualquer forma.

4. “Ouvir os ensinamentos” — ouvir ensinamentos sobre os tópicos que admiramos


e dos quais estamos convictos.

5. “Ler escrituras” — dos ensinamentos pelos quais temos uma admiração especial.

6. “Internalizar a essência dos ensinamentos através da meditação” — meditar e


engajar-se no tipo de prática envolvida no ensinamento, ou estilo de ensinamento,
que nos é adequado.

7. “Explicar os ensinamentos” — se formos capazes de explicar um ensinamento,


ou compartilhá-lo e discuti-lo com outras pessoas que possam se interessar pelos
mesmos ensinamentos que nos interessam, devemos fazê-lo.

8. “Recitar sutras” — isso também é muito inspirador. Recitar em voz alta os textos
que tratam do tópico que nos interessa — seja pujas, homenagens, sutras ou o que
for — é muito inspirador, especialmente quando o fazemos com um grupo de
pessoas.
9. “Pensar sobre o significado dos textos” que tratam do tópico que nos interessa. E
pensar sobre eles durante o dia, sempre que surgir uma oportunidade.

10. “Meditar unifocadamente sobre o significado dos ensinamentos” — tentando


realmente focar neles.

É assim que deveríamos gastar nosso tempo, estudando e praticando o tipo de


ensinamento que nos atrai. E devemos fazer isso sem negar ou desdenhar os
outros tipos de ensinamentos do Buda. Podemos incluir muitas coisas nessa lista:
transcrever ensinamentos, escrever ensinamentos que recebemos, tornar os
ensinamentos disponíveis para os outros, etc. Essas são ações do dharma.

Verso 24: Dedicar a Força Positiva


Dedicar a Força Positiva para a Iluminação dos Outros
Que eu dedique à grande e inigualável iluminação todos os atos construtivos
que tenha acumulado nos três tempos, e estenda aos seres sencientes a minha
força positiva (mérito).

Se não dedicarmos nossos atos construtivos à iluminação, nosso karma positivo


irá apenas melhorar nossa situação samsárica. Por isso, é importante realmente
dedicarmos essas ações (o que fizemos no passado, o que estamos fazendo agora e
o que vamos fazer no futuro), à iluminação e a que essa força positiva (mérito)
se estenda a todos. Portanto, dedicamos não só à nossa própria iluminação, mas à
iluminação de todos os demais seres.

Além disso, devemos compartilhar com os outros qualquer força positiva que
tivermos. Se aprendermos alguma coisa e ganharmos força positiva como isso,
compartilhamos. Se tivermos conexões na Índia (digamos que saibamos como
conseguir as condições para estudar lá), deixamos essa informação e essas
conexões disponíveis para os outros. Isso é compartilhar a força positiva,
compartilhar nossa boa sorte para que os outros também possam se beneficiar
dela. Para acumularmos essa força positiva, Atisha diz:

Oferecer a Oração dos Sete Ramos para Gerar Força Positiva


Assim, que eu sempre ofereça a grande oração dos sete ramos.

Shantideva também enfatiza isso. A prática dos sete ramos consiste em (1)
prostração, (2) oferenda, (3) admitir abertamente nossas ações negativa e aplicar
as forças opositoras, (4) alegrar-se com as qualidades positivas, (5) pedir
ensinamentos, (6) pedir que os professores não se vão e (7) a dedicação.
Verso 25: Atingir a Iluminação por Completar as Duas Redes
Ao praticar dessa maneira, que eu complete minhas duas redes, de força
positiva e consciência profunda (acumulação de mérito e sabedoria), e esgote
meus dois obscurecimentos.

Ao fazer esse tipo de prática (a prática de sete partes, a meditação e prática das dez
ações dharmicas, etc), acumulamos essas duas redes, de força positiva e
consciência profunda, a assim chamada “coleta de mérito e sabedoria”;
reforçamos essa coleta. Durante esse processo, também esgotamos, ou nos
livramos, dos dois obscurecimentos: os emocionais, que impedem a liberação, e
os cognitivos, que impedem a iluminação.

Ao fazer de minha vida humana algo significativo, que eu atinja a inigualável


iluminação.

Verso 26 e 27: A Sete Joias dos Aryas

No verso 26, Atisha fala da joia dos sete aryas, as sete joias que nos levam ao
estado de arya, o estado de cognição direta da vacuidade. Essas são as joias que ele
mencionou anteriormente:

A Lista das Sete


A joia de acreditar nos fatos, a joia da disciplina ética, a joia da generosidade,
a joia do ouvir, as joias do importar-se com o efeito das minhas ações sobre
os outros e da auto-dignidade moral e a joia da consciência discriminativa,
perfazem sete joias.

Essas joias sagradas são as sete joias que nunca se esgotam.

Elas nunca acabam. Quando falamos de uma joia, não devemos pensar apenas em
uma joia, mas em um tesouro que acumulamos.

Quanto mais nossa compreensão do dharma e dos ensinamentos do dharma


cresce, mais nossa convicção nos fatos ensinados – (1) (a joia de acreditar nos
fatos) crescerá e se tornará um tesouro.

Então, (2) usamos de autodisciplina ética para evitar cada vez mais as ações
negativas e nos engajar cada vez mais em atividades construtivas, como meditar e
ajudar os outros. Isso crescerá cada vez mais, como um tesouro.

(3) A joia da generosidade — dar coisas materiais aos outros, oferecer nosso
tempo e energia, oferecer ensinamentos e conselhos, oferecer proteção contra o
medo. Proteger contra o medo não significa apenas salvar a pessoa quando ela
estiver se afogando, por exemplo; significa também garantir que ela não precisa ter
medo de nós. Ela não precisa ficar com medo de querermos algo dela ou de a
rejeitarmos ou ignorarmos. Temos equanimidade, então oferecemos
equanimidade. Também oferecemos amor, desejando que seja feliz. Podemos
expandir cada vez mais essa generosidade ampliando-a cada vez mais, para incluir
mais e mais pessoas.

(4) A joia do ouvir — Quanto mais ensinamentos ouvirmos — e estudarmos, pois


logicamente precisamos pensar e meditar sobre eles — e quanto mais lembrarmos
dos ensinamentos, mais o ouvir ser tornará um tesouro.

E temos (5) a joia do importar-se com a forma como nossas ações refletem
nos outros e (6) a auto-dignidade moral. Esses são os dois fatores — duas joias
— que formam a base da autodisciplina ética. São as joias que estão sempre
presentes em um estado mental construtivo.

Primeiro precisamos ter auto-dignidade moral: Nos respeitarmos, respeitarmos


nossa natureza búdica, nos importarmos com a forma como nosso comportamento
reflete em nós mesmos. "Eu tenho tanto respeito por mim mesmo e por minha
natureza búdica que jamais agiria feito um idiota; não agiria destrutivamente."
Quando as pessoas não têm autoestima, quando isso lhes foi tomado (o que pode
acontecer em regiões de conflito) elas não se importam com o que fazem. Elas se
tornam soldados suicidas ou algo do gênero. Por outro lado, quando temos um
sentimento de valor próprio, quando temos auto-dignidade moral, evitarmos agir
de forma negativa. Pensamos: "Não vou descer a esse nível".

Depois cuidamos com a forma como nossas ações refletem nos outros. Temos tanto
respeito por nossos pais, professores, amigos, religião, gênero, país, etc, que
pensamos: "O que vão pensar de minha família se eu agir negativamente?” "O que
pensarão do budismo? Afinal, eu sou um praticante budista” "O que pensarão das
pessoas que vêm do meu país?" E assim por diante.

Esses dois fatores (auto-dignidade e cuidado com a forma como nossas ações
refletem nos outros) são a base da disciplina ética, e podem se fortalecer cada vez
mais.

E então temos (7) a joia da consciência discriminativa, que é a capacidade de


discriminar como as coisas existem ou não existem. Mas não é só isso, é também
descriminar entre o que ajuda e o que prejudica, o que é benéfico e o que é
destrutivo, o que é usar bem o tempo e o que é desperdiçá-lo.

Essas são as sete joias que nunca se esgotam. Elas nunca se acabam. E não
podem ser roubadas.

Manter a Prática Privada


Não devem ser mencionadas a semi-humanos.

“Semi-humanos” refere-se a fantasmas, fantasmas que podem nos prejudicar, que


podem causar interferências. Basicamente, o que isso quer dizer é que não
devemos sair por aí anunciando: "eu estudei tanto" ou "tenho tanta disciplina” ou
"tenho tanta fé", pois isso causa interferência. Mantemos essas joias
respeitosamente em nosso interior. Não anunciamos ou nos vangloriamos. Não
precisamos colocá-las em volta do pescoço para impressionar os outros.
Simplesmente as mantemos internamente.

O verso final é sem dúvida o mais famoso do texto, e é muito citado.

Verso 28: Os Pontos Mais Importantes para Quando Estivermos


Sós ou Acompanhados
Quando em meio a muitas pessoas, que eu esteja atento à minha fala; quando
sozinho, que eu esteja atento à minha mente.

Esse é o conselho mais maravilhoso. O que temos de vigiar e corrigir para que não
tome uma direção destrutiva?

Se estivermos acompanhados, temos que vigiar nossa fala. Será que estamos
dizendo uma idiotice? Será que o que estamos dizendo pode machucar o outro?
Será que o que estamos dizendo é falso? Será que estamos nos vangloriando? Será
que estamos reclamando? O que estamos fazendo? Temos que vigiar nossa fala. Se
estivermos prestes a dizer uma idiotice, nos corrigimos ou simplesmente nos
calamos.

Quanto estivermos sós, temos que vigiar nossa mente. Temos que vigiar o que
estamos pensando e sentindo. Mas não é vigiar apenas o que estamos pensando em
termos discursivos; também temos que vigiar nosso estado de humor e as emoções
que estão surgindo. Então, quando percebermos algo destrutivo, algo perturbador,
tentamos aplicar as forças opositoras.

Esse é o melhor conselho. Resume todo o caminho. Como disse, esse verso é muito
famoso e conclui o texto.

Como Integrar Esses Pontos ao Dia a Dia

Podemos começar com algo que acredito ser muito útil: ler o texto todos os dias,
especialmente porque não é muito longo. Também podemos ler dia sim e dia não,
para nos familiarizarmos com os diversos pontos. Se assim o fizermos, quando
estivermos em uma situação parecida com a mencionada no texto, vamos nos
lembrar do que o texto diz, porque já o teremos lido muitas vezes, estaremos
familiarizados como ele.

Não dá para dizer que um ponto do texto é mais importante que o outro. Todos os
pontos tratam do desenvolvimento de bodhichitta — de aprender o que ajuda e,
principalmente, o que atrapalha. Quando reconhecermos as coisas que não ajudam,
poderemos aplicar o conselho do texto. Quando estivermos nos sentindo sozinhos
e apegados a outras pessoas, por exemplo, podemos pensar que passar muito
tempo com essas pessoas nos distrai e interfere em nossa prática. Por outro lado,
quanto houver muitas pessoas a nossa volta, podemos pensar em como ajudá-las.
Cada aspecto desse ensinamento diz respeito a uma situação diferente. Sempre que
nos encontrarmos em uma situação em que podemos aplicá-lo, assim o fazemos.

É bom ler alguma coisa assim todos os dias. Não precisa ser exatamente esse texto,
mas se o acharmos particularmente útil, podemos usá-lo. Conforme nosso dia se
desenrolar, um ou outro ponto nos parecerá relevante, e então podemos parar e
pensar sobre ele. É assim que fazemos. É como recitar um rosário de mantras.
Podemos usar cada uma das contas do rosário para nos lembrar de um ponto.
Assim, estaremos sempre nos lembrando deles. Eu acho que é assim que nos
familiarizamos com esses pontos. E então trabalhamos neles. Existem muitas
formas de fazermos isso. A minha forma é traduzindo. Quando traduzimos ou
escrevemos os ensinamentos somos forçados a pensar sobre eles. Se tomarmos
notas durante a aula, podemos reescrevê-las e organizá-las depois.

Assim, teremos mais uma oportunidade de pensar a respeito dos ensinamento,


principalmente se pensarmos em ajudar as pessoas. Não importa se
conseguiremos ou não ajudar; o que importa é nossa motivação. É muito difícil
simplesmente sentar e fazer uma meditação analítica, e conseguir sustentar o
interesse e a atenção. Mas escrever ou traduzir os ensinamentos realmente nos dá
a oportunidade de pensar profundamente a respeito deles.

Acho que traduzir é muito bom para isso. Tenho trabalhado em uma nova tradução
do texto de Shantideva, tanto do sânscrito quanto do tibetano. Mesmo já tendo
ensinado esse texto há alguns anos, com muito cuidado e bem vagarosamente,
estou revisando-o. Estou revendo cada palavra, tanto no sânscrito quanto no
tibetano, e realmente trabalhando para decidir qual a melhor forma de traduzi-las.
Além disso, estou tentando entender o texto como os tibetanos o entendem; e
também tentando entender a diferença entre os dois idiomas. Me familiarizei tanto
com os versos que agora consigo lembrar vários deles. Portanto, ler o mesmo texto
todos os dias, ou um pedaço de texto repetidamente ajuda muito. Nos
familiarizamos muito mais com ele.

Existem muitos pequenos truques como esse. Ugyen Tseten Rinpoche deu um
exemplo muito bom. Disse que quando faz práticas de recitação, recita três vezes
cada frase. Se fizermos nossa prática assim, realmente pensaremos sobre cada
ponto. Podemos fazer nossa prática de recitação com muita rapidez,
principalmente se recitarmos a mesma coisa todos os dias, mas corremos risco de
fazer a prática com muita pressa, sem pensar no significado do que estamos
recitando. Se recitarmos cada frase três vezes antes de passar para a próxima,
teremos tempo para realmente pensar a seu respeito ou visualizar o que estamos
falando. Esse é um conselho muito útil, que vem da experiência pessoal de um
grande lama, Ugyen Tseten Rinpoche, que atualmente está com cerca de 90 anos.

Portanto, o mesmo se aplica ao ler um texto como esse. Se tivermos tempo,


podemos recitar cada frase três vezes para pensarmos sobre cada uma delas. Se for
muito difícil, não precisamos ler o texto todo; podemos ler apenas uns dois versos.
Conforme disse Shantideva em seus dois primeiros versos, “escrevo isso para
familiarizar minha mente; se alguém mais achar esses versos úteis, ótimo.”
Portanto, o mais importante em nossa prática não é a quantidade, mas a qualidade.

Resumo

Realmente estou muito feliz de ter a oportunidade de compartilhar esses


ensinamentos e essa explicação de Geshe Ngawang Dhargyey. Recebi esses
ensinamentos há muitos anos, em 1973. Por sorte, tomei notas. E, se vocês
tomaram nota, daqui a 30 anos também poderão explicar isso para outras pessoas,
para as gerações futuras. Esses ensinamentos são muito preciosos e muito, mas
muito úteis.
Comentário sobre as “37 Práticas do
Bodhisattva” – Dr. Berzin
Dr. Alexander Berzin

Bodhisattvas são pessoas que lutam para atingir a iluminação a fim de poder
ajudar melhor os outros seres. Neste pequeno poema, o mestre tibetano do
século XIV, Togme Zangpo, destaca 37 práticas para atingirmos esse objetivo.
Com elas, mesmo os que não compartilham desse ideal tão elevado podem
aprender a lidar com os problemas do dia-a-dia e ajudar os outros. A palestra
aqui transcrita correlaciona a formulação poética do caminho do bodhisattva
com os passos do caminho gradual para iluminação.

Aproveitando a Vida Humana


Preciosa
Versos Introdutórios e Versos 1 a 4
Introduçã

Este texto de treinamento da mente, As 37 Práticas de um Bodhisattva, foi


escrito no século XIV, no Tibete,

e é estudado em todas as tradições tibetanas. Seu autor, Sakya Togme


Zangpo, era conhecido por ser um verdadeiro bodhisattva. Além disso, foi
mestre de Rendawa, um dos principais professores de Tsongkhapa.

Togme Zangpo escreveu vários outros textos, sendo o mais famoso deles
o seu comentário sobre Engajando-se no Comportamento de um
Bodhisattva (O Caminho do Bodhisattva), de Shantideva. Também é
responsável pelo mais antigo comentário sobre o Treinamento da Mente
em Sete Pontos, de Geshe Chaykawa. Esses ensinamentos Mahayana
antigos são a base para as práticas por ele destacadas. Através de seus
comentários, e também do próprio texto das 37 Práticas de um
Bodhisattva, podemos perceber que era realmente um especialista no
caminho do bodhisattva.
O número 37 é significativo; aparece repetidas vezes na literatura
budista. Por exemplo, existe um conjunto de 37 práticas de purificação.
Essas práticas incluem as quatro aplicações da presença mental, o
caminho óctuplo e assim por diante. São práticas muito conhecidas, que
todos os que buscam a liberação, pelo caminho Hinayana, ou a
iluminação, pelo caminho Mahayana, seguem. Isso explica o motivo do
número 37 ter sido escolhido para essas práticas dos bodhisattvas.

O texto começa com uma homenagem, conforme a tradição indiana.

Homenagem a Lokeshavara

Lokeshvara é um outro nome para a figura búdica Avalokiteshvara. As


figuras búdicas são representações das várias qualidades de um buda;
neste caso, a compaixão. Quase todos os textos começam com uma
homenagem aos budas ou figuras búdicas. De certa forma, a homenagem
inicial indica a fonte de inspiração para os ensinamentos contidos no
texto. Assim, para um textos sobre práticas de bodhisattvas, a reverência
à compaixão é bastante apropriada. A homenagem, ou reverência,
continua com a prostração.

Prostro-me, sempre respeitosamente, através de minhas três


portas, perante os gurus supremos e o Guardião
Avalokiteshvara o qual, vendo que os fenômenos não vêm e
nem vão, esforça-se apenas para o benefício dos seres errantes.

Quando nos prostramos, o fazemos através dos três portões, que são os
portões, ou portas, por onde agimos, falamos e pensamos, que
correspondem ao nosso corpo, fala e mente.

A quem nos prostramos? Antes de mais nada, aos supremos gurus, os


professores espirituais, e depois, ao nosso Guardião Avalokiteshvara. A
palavra guardião significa que, de certa forma, ele nos inspira, e essa
inspiração nos protege de agir de forma egoísta, sem compaixão. Pode-se
estranhar que os gurus sejam mencionados antes de Avalokiteshvara,
mas existe um motivo para isso. Na maioria dos textos, existe uma razão
para a ordem em que as palavras estão dispostas. É preciso muito
cuidado para que essa ordem seja mantida durante a tradução. O motivo
para os gurus aparecerem antes de Avalokiteshvara é que os professores
espirituais são a fonte de todas as figuras búdicas — neste caso,
Avalokiteshvara.
O caso do mestre indiano Naropa e seu aluno Marpa, o grande tradutor
tibetano, serve como ilustração. Certo dia, Naropa manifestou toda a
mandala da figura búdica Hevajra como um grande holograma de seu
palácio, com todas as figuras dentro. E então, perguntou a Marpa “A quem
se prostrará primeiro, a mim ou a Hevajra?” E Marpa respondeu “Bom, eu
lhe vejo todos os dias, mas esta é a primeira vez que vejo Hevajra! Devo
prostrar-me primeiro a ele.” Naropa estalou os dedos e a mandala
desapareceu. E corrigiu Marpa, dizendo “Você acabou de cometer um
grande erro, que certamente lhe trará consequências negativas. Deve
lembrar-se que, sem os gurus, seria impossível você efetivar as figuras
búdicas. Portanto, os gurus são mais importantes”.

Esse caso nos mostra claramente que não devemos simplesmente venerar
as figuras búdicas, ou os gurus, como se fossem santos. Os gurus,
sozinhos, não conseguem nos salvar. Mas, se seguirmos suas instruções,
tendo-os como inspiração, podemos conseguir a liberação e a iluminação
através de nosso próprio esforço.

A seguir, o texto descreve uma característica dos gurus supremos e de


Avalokiteshvara, isto é, eles percebem que todos os fenômenos não vêm
e nem vão, em uma referênciaaos ensinamentos sobre a vacuidade, que
compreendem perfeitamente. Eles veem claramente que nada pode
existir de uma maneira impossível, incluindo maneiras impossíveis de ir e
vir, algo que o grande mestre indiano, Nagarjuna, também apontou no
verso de homenagem de Versos Raiz do Caminho do Meio:

Prostro-me ao Buda totalmente iluminado, o melhor de todos os


professores, o que nos ensinou a originação dependente, o que
é livre de fabricações mentais, pacificado, não tem fim, não tem
surgimento, não pode ser aniquilado, não permanece, não vem
e não vai, e não é vários ou um.

Podemos relacionar esse verso às nossas próprias emoções


perturbadoras, e à todo o sofrimento e problemas por elas causados.
Quando examinamos nossos problemas, percebemos que não existem
como entidades inerentes e concretas. Eles não vêm e vão, feito bolas de
ping pong lançadas na mente para causar problemas. Todos os nossos
problemas e emoções perturbadoras surgem e perduram na dependência
de causas e condições e, removendo as causas e condições, nos livramos
deles. Se esses estados mentais perturbadores existissem de maneira
sólida e independente, não poderíamos fazer nada a respeito deles.
Qualquer coisa que tentássemos fazer não teria efeito, pois teriam
surgido por conta própria e assim permaneceriam. Para sermos capazes
de ajudar os outros seres, precisamos perceber que as emoções
perturbadoras, e todos os demais fenômenos, são desprovidas de uma
existência verdadeira, um ir e vir independentes.

Compreendendo isso, os gurus supremos e Avalokiteshvara esforçam-se


apenas para beneficiar os seres sencientes. Nosso esforço em ajudar
só será realmente eficaz quando tivermos essa compreensão da
vacuidade, ou seja, da natureza da realidade. Se nossa compreensão de
como as pessoas e seus problemas existem não estiver de acordo com a
realidade, como poderemos efetivamente ajudá-las? Acabaremos por lhes
causar ainda mais problema e confusão.

Quando o texto diz que se esforçam apenas para o benefício dos seres
errantes, isso significa que ajudar os outros é seu único propósito. Eles
não estão preocupados com seus objetivos egoístas, sua única intenção é
trabalhar para o benefício dos demais. Por isso, referimo-nos aos
gurus supremos, e não a qualquer guru, pois existem muitos professores
espirituais que, apesar de ajudarem os outros, também estão buscando
seus próprios objetivos egoístas.

Na frase: para o benefício dos seres errantes, “seres errantes” somos


todos nós, muitas vezes também chamados de “seres sencientes”.
Vagamos perdidos, de um renascimento repleto de sofrimento e
problemas a outro. Trabalhar para o benefício desses seres significa
ajudá-los a alcançar seu objetivo espiritual, seja ele a liberação ou a
iluminação.

O segundo verso introdutório diz:

Os Budas totalmente iluminados, fonte de benefícios e


felicidade, surgiram da realização do dharma sagrado. E mais,
como isso aconteceu na dependência deles conhecerem suas
práticas, devo explicar a prática dos bodhisattvas.

Este é o verso onde o autor promete escrever, onde ele afirma que vai
explicar. Isso é um padrão em qualquer texto indiano ou tibetano. Esse
verso começa com budas totalmente iluminados, fonte de benefícios e
felicidade, significando que, através de seus ensinamentos, os budas nos
concedem o benefício de atingirmos a liberação de todo o sofrimento, ou
a iluminação e a felicidade que a acompanha. Uma vez iluminados
seremos capazes de beneficiar os demais.
Mas como os budas tornaram-se fonte de benefícios e
felicidade? Efetivando o dharma sagrado. Ao falarmos dharma sagrado,
estamos nos referindo à Joia do Dharma, à terceira e quarta nobres
verdades. A terceira nobre verdade, no contexto deste verso, refere-se ao
verdadeiro cessar de todos os problemas e suas causas no continuum
mental de um buda, e a quarta nobre verdade apresenta o verdadeiro
caminho, ou o verdadeiro caminho mental. A compreensão da natureza
da realidade age como caminho para esse verdadeiro cessar, e também
resulta desse cessar. Aqui, estamos descrevendo um estado em que todo o
sofrimento, os problemas, as emoções perturbadoras e as limitações são
removidos. Além disso, todas as realizações são obtidas. Um buda
totalmente iluminado efetivou tudo isso, ou seja, ele ou ela realmente fez
isso acontecer em seu continuum mental.

Os budas não foram sempre iluminados, eram como nós. Trabalharam


duro para remover toda a confusão, emoções perturbadoras e sofrimento
que lhes obscurecia a mente. É crucial sabermos que essas “máculas
efêmeras” são apenas como nuvens que obscurecem a mente. Elas não
pertencem, de forma alguma, à natureza da mente, pois é possível
removê-las completamente.

Claro, para compreendermos e nos convencermos de tudo isso, é


necessário muito estudo e reflexão. Mas, realmente precisamos nos
convencer de que é mesmo possível nos livrarmos de toda a confusão
através da compreensão correta e, assim, nos liberarmos ou iluminarmos.
Precisamos entender que não são só as outras pessoas que conseguem
fazer isso, nós também somos capazes de desenvolver essa compreensão
correta e sempre mantê-la. Todos nós podemos nos livrar da confusão de
nossa mente e, como um buda, chegar a um verdadeiro cessar de tudo
isso através da quarta nobre verdade, ou seja, do verdadeiro caminho
mental.

Mas como o Buda conseguiu? Primeiro, o Buda descobriu e se informou


(ouviu) sobre as práticas. Depois, as contemplou, ponderou e analisou,
até entender correta e completamente e, por fim, meditou para integrá-
las e efetivá-las. Conforme disse Togme Zanpo, é muito importante
lembrarmos que o Buda só conseguiu tudo isso porque aprendeu as
práticas. Precisamos aprender as práticas dos bodhisattvas, isto é, o que
precisamos praticar para nos tornarmos budas. Uma vez que o estado
búdico depende disso, Togme Zangpo explicará as práticas para que
possamos aprendê-las. Assim, poderemos pensar a respeito delas, tentar
compreendê-las, meditar e finalmente colocá-las em prática.
Uma Vida Humana Preciosa

Assim como no lam-rim, os ensinamentos sobre os estágios graduais do


caminho, aqui, o autor também começa falando sobre como utilizarmos
nossa vida humana preciosa, a base para atingirmos a liberação ou
iluminação completa.

Assim, Togme Zangpo começa o primeiro dos 37 versos:

(1) A prática do bodhisattva, agora que obtivemos essa


excelente embarcação (o nascimento humano), com folgas e
oportunidades e difícil de encontrar, é escutar, pensar e meditar
continuamente, dia e noite, para livrar a si e aos outros do
oceano do samsara incontrolavelmente recorrente.

Se você está lendo isto, é porque obteve um renascimento humano


precioso, algo a que Togme Zangpo considera uma excelente
embarcação; termo que também é utilizado no texto Engajando-se no
Comportamento do Bodhisattva, de Shantideva.

(VII.14) Sentado no barco de um renascimento humano,


atravesse o poderoso oceano do sofrimento! Uma vez que esse
barco é tão difícil de encontrar, seu idiota, não é hora para
dormir!

Assim como podemos usar um navio para cruzar o oceano, também


podemos usar nosso nascimento humano como um navio para atravessar
o oceano do samsara, rumo ao outro lado: a liberação. “Samsara” refere-
se ao ciclo de renascimentos incontroláveis, repletos de problemas e
confusão. Mas, o que caracteriza este grandioso navio que é o
renascimento humano precioso? O conjunto de oito folgas e dez
oportunidades.

A palavra “folga” quer dizer um descanso. Conforme explicava Geshe


Ngawang Dhargyey, um de meus professores, é muito bom considerarmo-
nos turistas em um curto renascimento humano, de férias dos
renascimentos piores. Estamos de folga, mas sem dúvida voltaremos a
esses estados piores. Não vou descrever a lista completa das oito folgas e
dez oportunidades mas, de maneira geral, oportunidades são qualidades
ou aspectos que enriquecem e proporcionam tremendas oportunidades à
prática espiritual. Se tivéssemos nascido em estados piores
(renascimentos inferiores), ou como humanos em lugares onde o dharma
não estivesse disponível, ou onde as práticas espirituais fossem
perseguidas, certamente não teríamos tempo ocioso para seguir um
caminho espiritual. Se tivéssemos nascido uma barata, o que poderíamos
fazer, uma vez todos que nos vissem provavelmente tentariam nos
esmagar?

Nossa vida é cheia de oportunidades. Temos ensinamentos disponíveis,


professores espirituais, livros, pessoas que sustentam os centros de
dharma, e tantas outras coisas que nos permitem seguir um caminho
espiritual. Esse tipo de situação é muito, muito difícil de encontrar.
Comparado ao número de insetos e outros animas que existem neste
mundo, sem falar dos seres de reinos que não podemos ver, o número de
seres humanos é muito pequeno. E, mesmo entre humanos, quantos têm
acesso ao dharma? Talvez esse número esteja crescendo com a internet,
mas, ainda assim, entre os que têm acesso, quantos estão realmente
interessados? Quantas pessoas olham um site de dharma mas saem logo
em seguida? Quantos consideram o dharma importante o suficiente para
dar-lhe um lugar central em suas vidas? Quantos realmente se esforçam
para aprender, refletir e meditar? Muito poucos. A maioria das pessoas,
mesmo quando se interessam, não dedicam o tempo necessário e também
não dão a prioridade necessária.

A melhor forma de aproveitarmos essa vida humana preciosa, difícil de


ser encontrada é ouvindo, pensando e meditando diligentemente, dia
e noite. Precisamos aprender o dharma, ou seja, ouvir e depois estudar.
No começo, todos os ensinamentos eram transmitidos oralmente, nada
era escrito, por isso ainda usamos o termo “ouvir o dharma” nos textos.
No entanto, atualmente isso significa que devemos simplesmente ler e
estudar. Precisamos aprender, é assim que tudo começa, pois conforme
escreveu Togme Zangpo, para efetivarmos a prática do dharma,
precisamos primeiro conhecer as práticas.

E não precisamos apenas aprender o dharma, precisamos certificarmo-


nos da autenticidade e confiabilidade de sua fonte. Para não nos
confundirmos e nos desviarmos do caminho, precisamos escolher muito
bem quem irá nos ensinar e o que iremos estudar. É uma tarefa difícil,
uma vez que existem muitos livros e professores que não são confiáveis.
Sua Santidade o Dalai Lama sempre explica que, mesmo sem saber o que
se passa na cabeça de um professor, podemos ao menos avaliar seu
comportamento no nível convencional, ou seja, mundano. Podemos
avaliar como ele ou ela age, relaciona-se com seus alunos e conduz sua
vida. Um dos votos do bodhisattva é jamais fazer algo que leve as outras
pessoas a perderem a fé no dharma. Portanto, se um professor agir de
forma desprezível, estará quebrando seus votos de bodhisattva.

Também precisamos avaliar os livros e páginas da internet, pois nem


todas são autênticas e têm boas traduções. Precisamos comparar os
textos e ver se fazem sentido, além de pedir a opinião das pessoas em
quem confiamos. Uma vez estabelecida a autenticidade de nossas fontes e
professores, precisamos pensar a respeito do que nos foi ensinado, a fim
de conseguirmos realmente entender. Isso não é uma tarefa rápida, leva
tempo. Se tentarmos meditar a respeito de alguma coisa, mas sem a
devida compreensão do assunto, cheios de dúvidas, só produziremos
mais confusão.

This is why debating is a strong tool for learning in the Buddhist


tradition; it is intended to prepare us for meditation, by clearing away
any and all doubts about any particular topic. We are never going to
challenge our own understanding very strongly ourselves, whereas other
people will challenge it without relent, and that’s why debate with others
is very important

Por isso o debate é uma ferramenta tão utilizada para o aprendizado na


tradição budista. Seu objetivo é preparar-nos para a meditação,
esclarecendo todas as nossas dúvidas sobre qualquer assunto. Nunca
desafiaremos profundamente nosso próprio entendimento; mas os outros
sim, desafiarão sem dó nem piedade. Por isso o debate é tão importante.
Todos os alunos têm que debater; ninguém pode apenas sentar e dormir
na aula. Em um debate no estilo tibetano, os pares de alunos debatem
todos ao mesmo tempo, um ao lado do outro e falando bem alto. Isso os
força a desenvolver concentração. Sem uma boa capacidade de
concentração, é impossível debater no estilo tibetano. E, depois, podemos
empregar essa concentração na meditação.

Durante um debate, é inevitável que um aluno diga uma estupidez e


alguém ria. Isso é muito bem para superar o apego ao ego, o que também
é de muita importância durante a meditação. Se meditarmos com o ego,
pensando “Nossa, como eu medito bem!” ou “Olha, sou capaz de repetir
isso cem mil vezes”, só estaremos alimentando-o, ao invés de nos livrar
dele. Mesmo que não tenhamos a oportunidade de debater, precisamos
sempre pensar e questionar o dharma. É muito importante que sempre o
questionemos! O que eu percebi é que traduzir, escrever e transcrever
textos são formas excelentes de pensar sobre os ensinamentos. Afinal, é
necessário que se compreenda o texto para conseguir explicar ou
traduzir.
Portanto, precisamos meditar. Meditar significa transformar uma
compreensão em um hábito benéfico ou uma atitude mental, através da
constante repetição. Quando aprendemos a tocar piano, precisamos
praticar. Se praticarmos o suficiente, conseguiremos tocar naturalmente,
sem ter que pensar onde fica cada nota. Da mesma forma, quando
meditamos sobre o amor, a compaixão, a vacuidade e assim por diante,
essas qualidades passam a se manifestar de forma espontânea.

Precisamos fazer isso constantemente, dia e noite, conforme enfatiza


Togme Zangpo. Também podemos entender que palavra
“constantemente” significa sem distrações mentais. Precisamos fazer isso
dia e noite, ou seja, sempre que tivermos uma oportunidade de ouvir o
dharma devemos aproveitá-la. Essa deve ser nossa principal prioridade.
Não precisamos nos sentar formalmente em um lugar especial para
pensar no dharma, podemos fazê-lo a qualquer hora e em qualquer lugar.
No chuveiro, enquanto comemos, não importa, podemos sempre usar
nosso tempo para pensar sobre algum aspecto do dharma. Obviamente,
não podemos fazer isso em todos os momentos da nossa vida, não seria
natural. O ponto que quero enfatizar é que não precisamos de uma sessão
de meditação, de um quarto especial ou de uma decoração especial com
toda a parafernália que acreditamos que um espaço de meditação tem
que ter. Não precisamos de qualquer dessas coisas. Milarepa certamente
não tinha tudo isso, e nem nós.

Não devemos limitar a meditação a algo que só deve ser feito na almofada
de meditação. A fila do caixa e o engarrafamento também são ótimos
lugares para meditar e praticar paciência. Muitas pessoas praticam as
meditações budistas de amor e compaixão apenas com pessoas
visualizadas, mas não são capazes de fazer com pessoas de verdade. Isso é
um grande erro. Precisamos aplicar todos os bons hábitos, que tentamos
desenvolver com a meditação, à situações reais, com pessoas reais, dia e
noite, conforme nos aconselhou Togme Zangpo.

Qual o motivo ou objetivo de fazermos isso? Togme Zanpo diz que é para
livrarmos a nós e aos outros do oceano do samsara
incontrolavelmente recorrente. Nos livrar do samsara significa buscar
a liberação e a iluminação, a fim de conseguirmos livrar os demais seres
do mesmo oceano. O palavra “oceano” nos conecta a outro termo que o
autor usou no começo do texto: a grande embarcação que é a vida
humana preciosa.
Aproveitando a Vida Humana Preciosa

Togme Zangpo continua, explicando as circunstâncias mais favoráveis


para aproveitarmos nossa vida humana preciosa:

(2) A prática do bodhisattva é deixar sua terra natal, onde o


apego aos amigos o deixa agitado como a água, a raiva aos
inimigos o queima como o fogo e a ingenuidade, que o faz
esquecer o que deve ser adotado e o que deve ser abandonado,
o encobre com escuridão.

Quando permanecemos em nossa terra natal, no lugar onde crescemos —


que pode ser nosso vilarejo, cidade ou país — nossos hábitos negativos e
emoções perturbadoras costumam dominar as experiências e
relacionamentos. Se possível, é aconselhável deixarmos a terra natal por
um período, sairmos de um ambiente dominado por nossos hábitos
negativos, para tentarmos ganhar uma perspectiva maior sobre a vida.
Podemos ir para um centro de retiros, nos inscrever em um programa
intensivo de estudo do dharma, viajar para a Índia ou Nepal, o que seja.
São muitas as possibilidades.

Quando permanecemos na terra natal, o apego aos amigos nos deixa


agitados como a água. Pense em uma folha que cai na água e pode ser
levada para qualquer lugar. Da mesma forma, quando somos apegados a
amigos que nos chamam para ir beber, por exemplo, simplesmente os
seguimos, como folhas levadas pela água. Quando os amigos nos oferecem
um cigarro ou bebida alcoólica aceitamos, por apego a eles. Não
queremos desapontá-los, queremos que gostem de nós, que não pensem
que somos esquisitos. Queremos pertencer, e não perder nossos amigos.
Essas coisas acontecem, e nos impedem de “permanecermos em nossa
base”, como dizem os tibetanos, referindo-se à prática do dharma.

A raiva aos inimigos nos queima como fogo. As pessoas que mais nos
conhecem são as que mais nos irritam, não são? Principalmente quando
não fazem o que queremos ou da maneira que queremos. “Meu amigo não
ligou” ou mesmo “Meu carro não pegou”, esse tipo de coisa. Ficamos com
raiva, pois temos expectativas em relação às pessoas e objetos familiares,
achamos que têm que estar sempre à disposição e fazer o que queremos.

A terceira atitude venenosa, uma das desvantagem de permanecermos


em nossa terra natal, é a ingenuidade. Ela nos faz esquecer o que
devemos adotar e o que devemos abandonar, e nos encobre com
escuridão. A frase “o que deve ser adotado e abandonado” refere-se às
ações construtivas, que devem ser adotadas, e as negativas, que devem
ser abandonadas. Quando estamos com amigos ou pessoas que nos
irritam, tendemos a esquecer o que estamos tentando adotar, ou cultivar.
Do que desejamos que nossa mente esteja livre? Raiva, apego, etc. Quando
somos tomados pela ingenuidade, não sabemos o que faz bem e mal a nós
e aos outros. Essa ingenuidade nos encobre com escuridão, é como se
tivéssemos um saco na cabeça.

(3) A prática do bodhisattva é amparar-se na solitude; livrando-


se de objetos nocivos, as emoções e atitudes perturbadoras são
gradualmente contidas; sem distrações, as práticas construtivas
naturalmente aumentam; e adquirindo clareza de consciência, a
confiança no dharma cresce.

Essa circunstância é a que mais contribui para aproveitarmos nossa vida


humana preciosa. Quando deixamos a terra natal, devemos procurar
viver em um lugar afastado e tranquilo. Se formos iniciantes, e deixarmos
nossa terra para viver em uma cidade grande, agitada e barulhenta, isso
não ajudará. Só quando estivermos muito bem treinados e formos
bodhisattvas avançados é que podemos viver em uma cidade muito
agitada e barulhenta. Aliás, esse era um dos treinamentos tradicionais na
Índia, para quem alcançava um certo nível de estabilidade na prática.
Nesse ponto, os yoguis iam literalmente “viver em uma encruzilhada”, em
uma encruzilhada bem barulhenta. Esse era um grande desafio, que os
ajudava a avaliar a estabilidade de sua prática e realizações. Mas isso é
bem mais a frente. No começo, é importante vivermos afastados.

Esses dois versos lembram muito o que Shantideva escreveu


em Engajando-se no Comportamento do Bodhisattva:

(VIII.37) Portanto, deixe-me viver em solitude, em adoráveis e


encantadoras florestas, sem muitos problemas, feliz e contente,
acalmando todas as distrações.

(VIII.38) Abandonando todas as outras intenções, com um único


intuito, me esforçarei em estabelecer minha mente em absorção
concentrada e domá-la.
Quando vivemos isolados, o que podemos esperar? Bom, livrando-nos
de objetos nocivos, as emoções e atitudes perturbadoras são
gradualmente contidas. Objetos nocivos são as coisas às quais temos
muito apego ou que nos irritam muito. Também pode ser excesso de
comida, álcool ou drogas, tudo o que nos deixa intoxicados e
entorpecidos. Livrarmo-nos das coisas que fazem com que as emoções
perturbadoras surjam, mesmo não sendo uma solução definitiva, ajuda.
As emoções e atitudes perturbadoras começam a ser bloqueadas e
gradualmente diminuem.

Acho que sabemos disso por experiência própria. Se decidirmos nos


divorciar mas tivermos que ver o(a) ex todos os dias, será muito difícil. A
raiva e as emoções perturbadoras surgirão o tempo todo. No entanto, se
deixarmos de vê-lo(a) por um longo tempo, lentamente a força de nossa
raiva e maus sentimento diminuirá, não é? O mesmo se aplica ao apego a
alguém que nos deixa. Se tivermos de ver a pessoa o tempo todo, o apego
e a mágoa permanecerão ali, mas com a distância, gradualmente se
dissolvem.

Quais serão as outras vantagens do isolamento? Togmey Zangpo diz que


ao nos livrarmos das distrações, nossas práticas construtivas
naturalmente aumentam. Se nos livrarmos totalmente do e-mail, celular,
filmes, entretenimento, clube, festas e televisão, não teremos distrações.
Naturalmente, usaremos nosso tempo de forma mais construtiva. Esse é o
nosso objetivo ao buscar o isolamento. E o mesmo se aplica à música.
Existem muitas pessoas que são totalmente viciadas em música, que
andam por aí com seus iPods e acham difícil ficar sem música, mesmo que
por uns instantes. O que isso faz é basicamente nos impedir de pensar
unifocadamente em qualquer coisa que seja. Mas, sem essas distrações,
temos a oportunidade de realmente encarar nossa mente e tentar
entender o que se passa.

Também é engraçado olharmos esse inacreditável fenômeno que é o uso


ininterrupto do celular. Sempre que vejo as pessoas sentadas no ônibus
ou trem, fica claro que a maioria não consegue ficar sentada sem
distrações. Todas estão brincando com seus celulares ou outros aparatos
eletrônicos. É muito esquisito. Se nos livrarmos dessas distrações, nossas
práticas construtivas aumentarão naturalmente, pois teremos mais
tempo.

A última frase é: Adquirindo clareza de consciência, a confiança no


dharma cresce. Quando estamos isolados, nossa consciência e
compreensão ficam mais claras, pois estamos longe dessas distrações e
objetos prejudiciais. Com mais tempo e menos distração, somos capazes
de examinar nossas dúvidas e realmente focar no dharma. Então, nossa
certeza e confiança cresce. Vale muito a pena.

No entanto, é preciso saber que apenas deixar a terra natal e isolar-se não
é garantia de que as emoções perturbadoras e distrações diminuirão.
Podemos ficar muito apegados a pequenas coisas, como nossa almofada
de meditação, por exemplo, ou irritados com um simples mosquito ou, se
nosso retiro for em grupo, com as pessoas que tossem e se mexem
durante a meditação. Apesar de ser mais provável que as emoções
perturbadoras diminuam nesse tipo de ambiente, onde os objetos, que
normalmente as estimulam, estão ausentes, não devemos contar apenas
com o isolamento. Para garantir que não vamos sucumbir às emoções
perturbadoras, contemplamos a morte e a impermanência.

Morte e Impermanência
(4) A prática de um bodhisattva é desistir de se preocupar
exclusivamente com a vida atual. Amigos e parentes, que estão
há muito tempo juntos, irão cada qual para o seu lado; riqueza
e posses adquiridas com esforço terão que ser deixadas para
trás; e a consciência, o hóspede, deve partir do corpo, sua
hospedaria.

Temos esse renascimento humano precioso e devemos tentar aproveitá-


lo ao máximo. Como? Para começar, precisamos pensar além da vida
atual. Mesmo que nos retiremos para um lugar isolado, podemos
continuar a pensar e nos preocupar com os amigos e posses, além de
várias outras coisas. Togme Zangpo diz que precisamos nos livrar de
qualquer preocupação com esta vida, o que significa desistir de se
preocupar exclusivamente com a vida atual. Conforme explica Sua
Santidade o Dalai Lama, não seria realista, e provavelmente seria
impossível, dizermos que estamos 100% desprovidos de preocupações
com esta vida. Afinal, precisamos nos sustentar e, se tivermos família,
sutentá-la também. O melhor, segundo Sua Santidade, é 50/50. 50% de
preocupação direcionada a coisas mundanos, desta vida, e 50%
direcionada aos objetivos espirituais além desta vida.

Uma maneira de conseguirmos parar de nos preocupar exclusivamente


com esta vida é pensar que nossos amigos e parentes, que estão há
muito tempo juntos, irão cada qual para o seu lado. Quando pensamos
sobre a impermanência, isso é tão verdadeiro! No texto Treinamento, em
Verso, em Meditação e Impermanência, o grande mestre tibetano,
Gungtang Rinpoche, ilustra esse ponto belíssimamente.

(11) Amigos, parentes, assistentes e seguidores são como


folhas que terminam caindo no mesmo lugar depois de um forte
vento. Após um breve momento, espalham-se por toda
montanha e vale. O fim de tudo aquilo que se junta é jamais
juntar-se novamente.

Nós, e todos os nossos entes queridos, somos como folhas que caíram de
uma árvore e foram varridas pelo vento. Por um curto período de tempo,
viajamos juntos, com o vento do karma, mas eventualmente o vento faz
com que as folhas se espalhem, voando em diferentes direções.

Riqueza e posses, adquiridas com esforço, terão que ser deixadas


para trás. Quando morremos, não podemos levar coisa alguma. Aqueles
que têm pais ou parentes falecidos devem ter percebido que, depois que
morrem, seus pertences, mesmo os que mais gostavam, frequentemente
acabam no lixo. Se tivermos dinheiro, o que pode acontecer é nossos
parentes virarem inimigos e brigarem por ele. Lógico que não faz muito
sentido direcionarmos todo nosso esforço para obter dinheiro e posses
que simplesmente irão para o lixo ou causarão discórdia. Shantideva
coloca isso muito bem:

(III.11cd) Considerando-se que inevitavelmente teremos que


doar [nossos bens, quando morrermos], é melhor doá-los
[agora] para os seres sencientes.

Antes de morrer, enquanto ainda temos tempo, precisamos doar todas as


nossas posses para aqueles que realmente precisarão delas.

Percebi isso com meu próprio professor, Serkong Rinpoche. Ele parecia
estar bem ciente de quando morreria e, antes de falecer, doou uma
enorme quantidade de bens. Doou seus livros, por exemplo, entre eles a
coleção dos trabalhos de Tsongkhapa, para um monastério. Também
doou seus objetos ritualísticos mais preciosos. Claramente seguiu este
conselho de que riqueza e posses, adquiridas com esforço, devem ser
deixadas para trás.
Então vem a última linha, que diz que a consciência, o hóspede, deve
partir do corpo, sua hospedaria. Shantideva usou a mesma analogia:

(VIII.33) Assim como os que viajam pelas estradas abrigam-se


em algum lugar, os que viajam pelas estradas da existência
compulsiva abrigam-se em um novo renascimento.

Os dois versos precisam ser adequadamente entendidos. Não estamos


falando aqui do “eu sólido”, esse “eu” que parece estar sentado dentro do
corpo, como uma entidade que o habita, utiliza, aproveita e depois que
terminou cai fora. Estamos dizendo que os impulsos kármicos de nosso
continuum mental farão com que tomemos, como base física, diferentes
tipos de corpos em diferentes vidas, e que este corpo em particular, o
corpo desta vida, é apenas temporário. Shantideva fala muito nisso
quando trata da superação do apego ao corpo.

Depois de morrermos, por exemplo, se mantiverem nosso corpo por


alguns dias, ninguém irá querê-lo por perto, pois começará a apodrecer e
cheirar mal. Todos irão querer se livrar dele, então o que há de tão
maravilhoso nesse corpo? Não são só os nossos pertences que vão para o
lixo, nosso corpo também. Este corpo, ao qual temos tanto apreço,
também irá para o lixo. As pessoas vão querer enterrá-lo ou queimá-lo o
quanto antes, como lixo. Isso é a realidade. Não é muito glamorosa ou
romântica, mas é assim! Como disse Shantideva:

(VIII.29) Quando no cemitério, devo comparar meu corpo com as


outras pilhas de ossos, e ver que a decomposição também está
em sua natureza.

(VIII.30) Este meu corpo também apodrecerá e, por cheirar mal,


nem mesmos os chacais vão querer se aproximar.

Quando nos conscientizarmos de nossa vida humana preciosa, e de que


nosso corpo, posses, família e amigos são todos temporários, deixaremos
de nos preocupar exclusivamente com eles. Assim, poderemos aproveitar
a oportunidade que nos foi dada, essa vida humana preciosa, e fazer o que
for preciso para facilitar nosso estudo e prática do dharma.
Amigos Adequados, Direção Segura,
Ética e Liberação
Versos 5 a 9
Revisão

Vimos que Togme Zangpo começa seu poema apresentando os pontos


principais do lam-rim, os estágios graduais do caminho. Após prestar
homenagem a Avalokiteshvara, e prometer escrever o texto, ele fala da
importância da vida humana preciosa e da necessidade de a
aproveitarmos. Em seguida, mostra-nos que encontramos circunstâncias
mais propícias à prática ao deixarmos a terra natal e nos refugiarmos em
um lugar afastado. Além disso, ele fala da urgência em aproveitarmos
nossa vida humana preciosa, pois ela não durará muito tempo. E, por fim,
nos convida a refletir sobre a morte e a impermanência como meio de nos
conscientizarmos dessa urgência.

A Importância de Termos Amigos Adequados

Chegamos ao verso 5, que fala sobre importância dos amigos adequados.


É muito importante termos um apoio adequado à prática do dharma. Por
isso, temos que perceber quais amigos são más influências, as “amizades
destrutivas”, e quais podem nos ajudar no caminho espiritual.

(5) A prática de um bodhisattva é livrar-se das amizades


destrutivas, com quem as três emoções venenosas crescem, as
ações de escutar, pensar e meditar deterioram-se, e o amor e
compaixão tornam-se nulos.

Maus amigos, ou más influências, são basicamente as pessoas que,


apesar de terem a melhor das intenções, nos afastam da prática do
dharma. Ficam dizendo “Vem se divertir” ou “Porque perder tempo com
prostrações, meditação e palestras sobre dharma?” Não são más pessoas,
sua intenção é boa, mas não apreciam ou dão valor ao que estamos
fazendo, ao caminho espiritual. Às vezes, até ridicularizam nosso caminho
esperando que nos afastemos dele.

Conforme nos diz Togme Zangpo, quando nos associamos a eles, as


três emoções venenosas crescem. Esses amigos fortalecem nossa
primeira emoção venenosa, que pode vir a aparecer na forma de desejo e
apego por sair, beber, intoxicar-se, participar de diferentes tipos de
entretenimento e assim por diante. É claro que, de vez em quando,
precisamos relaxar e nos divertir. Mas alguém que nos encoraja a fazer
isso o tempo todo, nos deixando sem tempo para o caminho espiritual,
não pode ser uma boa influência.

Tenho um aluno que costuma se drogar e divide o apartamento com uma


pessoa que tem o mesmo costume. Tentou parar diversas vezes, mas não
conseguia, porque seu amigo estava sempre fumando e o encorajando a
fazer o mesmo. Ele voltava a fumar porque não queria que seu amigo se
sentisse rejeitado.

Portanto, é muito importante escolhermos bem os amigos, especialmente


se formos passar muito tempo com eles. Por exemplo, se sairmos juntos e
eles acabarem irritando-se e brigando com alguém, é muito provável que
os sigamos e, com isso, acabemos reforçando a segunda das emoções
venenosas, a raiva. E talvez reforcemos também a terceira emoção
venenosa, a ingenuidade. Ao segui-los, esquecendo as consequências de
nosso comportamento, agimos com ingenuidade. Consequentemente, as
ações de escutar, pensar e meditar se deterioram. Teremos cada vez
menos tempo para ir aos ensinamentos, estudar, contemplar e meditar, e
nosso amor e compaixão se tornarão nulos.

Existem muitos tipos más influências. Por exemplo, existem amigos que
nos levam a pichar paredes, arranhar automóveis, etc. Há também os que
estão sempre falando mal dos outros, o que pode nos levar a fazer o
mesmo. Quando costumamos conversar com alguém que está sempre
falando de política de forma exaltada e com raiva, tendemos a agir da
mesma forma.

Os amigos são cruciais, especialmente quando nossa prática do dharma


ainda não está muito bem estabelecida. Se tivermos amigos como esses,
precisamos nos livrar deles. Mas isso não quer dizer que os queiramos
mal. Desejamos que sejam felizes, mas não precisamos sair com eles.

Essa questão complica-se quando somos casados com alguém que


consideramos uma má influência e fica pior se tivermos crianças. Não é
uma situação fácil. Nesse caso, precisaremos decidir o que é melhor:
continuar no relacionamento ou sair. Se decidirmos sair, o mais
importante é tentar fazê-lo de forma que ninguém se machuque, sem
raiva. E mesmo que nosso parceiro termine sentindo raiva ou
ressentimento, devemos tentar não retribuir esses sentimentos.
No entanto, acho importante ao menos tentem permanecer no
relacionamento. Nem sempre conseguirão, mas podem tentar explicar ao
parceiro que seu envolvimento com as atividades do dharma não significa
que esteja rejeitando-o. Porém, se passarem a maior parte do tempo
brigando e gritando, talvez seja melhor reconsiderar. Não é simples. E se
as crianças culparem o dharma pela separação dos pais? Podem ficar com
uma impressão muito negativa do dharma. Precisamos ter cuidado.

Se acabarem discutindo com o parceiro por conta do tempo que se


dedicam ao dharma, é melhor, se possível, tentarem desvincular o
budismo da discussão. Não é bom que a outra pessoa desenvolva uma
atitude negativa com o dharma, o que também pode ter um efeito
bastante negativo nas crianças. A questão não é o tipo de ensinamento
que estamos seguindo, mas sim a diferença de valores e a importância
que damos ao caminho espiritual. O fato de sermos budistas, hinduístas
ou qualquer outra religião ocidental é indiferente. Não é essa a base da
discórdia.

(6) A prática de um bodhisattva é ter mais apreço por seu


venerado mestre espiritual do que por seu próprio corpo pois,
ao confiarmos (nosso desenvolvimento) ao santo mestre, nossos
defeitos definham e as boas qualidades se expandem como uma
lua crescente.

A palavra que é traduzida como mestre espiritual significa literalmente


“amigo espiritual”, alguém que seja o oposto de uma má influência. Na
verdade, a palavra “espiritual” nem está no texto original. O termo usado
é “um amigo para o comportamento construtivo”, onde a palavra
“construtivo” é por vezes traduzida como “virtuoso”, e significa um amigo
que faz com que nosso comportamento construtivo cresça cada vez mais.
É um relacionamento construtivo, pois o amigo é construtivo e ficamos
cada vez mais construtivos e positivos ao nos associarmos a ele.

Normalmente, esse amigo é o professor espiritual que nos conduz no


caminho, que nos ensina e nos inspira a agir de forma construtiva, de
acordo com o dharma. No entanto, acho que também devemos incluir
nossos amigos comuns do dharma. Aqueles amigos que, por exemplo, nos
convidam para meditar ou estudar e discutir um determinado tópico do
dharma, que nos encorajam a fazer um trabalho voluntário, a ajudar um
hospital ou algo do gênero. Não são os amigos que vão ao centro, assistem
uma aula e depois vão tomar cerveja.
Agora, em qualquer tipo de amizade é preciso haver uma conexão
kármica, para que nos sintamos confortáveis na presença da outra
pessoa. Existem pessoas que chegam e nos convidam “vamos meditar?”
ou “vamos fazer prostrações?” e, não sei porque, parece estranho. Talvez
tenhamos a impressão de que eles se consideram “muito espirituais” e
isso nos deixe desconfortáveis. Um verdadeiro amigo espiritual é alguém
com quem nos sentimos confortáveis e relaxados, com quem as coisas
fluem naturalmente e é ótimo quando fazemos coisas construtivas juntos.

Mas a ênfase neste verso é mesmo para o mestre ou mentor espiritual. E,


aqui, é bom nos lembrarmos do que Sua Santidade o Dalai Lama costuma
dizer, que não devemos nos basear apenas no nome do professor. Existem
vários professores com muitos títulos e discípulos, mas não significa que
sejam qualificados; precisamos sempre analisar a qualificação do
professor. Sua Santidade refere-se principalmente ao caso dos tulkus, ou
seja, lamas reincarnados que carregam o título de Rinpoche. Existem
vários que, lógicamente, são muito famosos por conta de seu predecessor,
mas não realizam muitos estudos e práticas nesta vida. E, mesmo quando
o professor é bastante qualificado, não significa que seja o professor ideal
para nós. De novo, precisamos avaliar o tipo de relacionamento kármico
que temos com ele ou ela.

Será que nos sentimos confortáveis em sua presença? Afinal,


ensinamentos podem ser obtidos em livros. Claro que o professor pode
responder perguntas, por exemplo, mas seu papel principal é inspirar-
nos. Atualmente, a maioria dos grandes mestres espirituais viaja com
frequência e tem muitos alunos, o que faz com que seja difícil obtermos
atenção personalizada. Devemos nos esforçar para estabelecer um
relacionamento próximo, mas mesmo que não consigamos, ainda assim o
mestre pode nos inspirar. E não devemos simplesmente esperar o guru
cair do céu. É totalmente improvável que apareça um dizendo “Venha
meu querido. Estava lhe esperando. Venha comigo.”

Quando confiamo-nos a um santo mestre, diz Togme Zangpo, nossos


defeitos definham. Aqui, a palavra “santo” significa apenas alguém que é
muito respeitado, e o termo “confiar-se” é muito importante, mas de
difícil compreensão. Em geral, esse termo é traduzido como “devotar-se”,
devotar-se ao guru, mas acho que a palavra devoção pode causar muitos
equívocos, pois, pelo menos no inglês, significa basicamente adorar
cegamente o professor. O termo original é um verbo utilizado não só com
professores espirituais, mas também com médicos. Quer dizer que
confiamo-nos aos seus cuidados. Ou seja, que confiamos neles porque
examinamos suas qualificações e sentimos que são competentes e podem
nos ajudar. Quando estamos doentes e confiamos no médico, confiamo-
nos a ele e aos seus cuidados, fazemos tudo o que ele manda. O mesmo se
aplica ao professor espiritual. E assim como não veneramos o médico,
também não veneramos o professor.

É uma situação delicada, pois, frequentemente, muitas emoções afloram


no relacionamento com o professor espiritual e, apesar de o amarmos
muito, não significa que temos que nos apaixonar por ele ou ela. Quando o
relacionamento é saudável, sentimo-nos revigorados e nossa mente fica
livre de emoções destrutivas, o que é muito interessante. As emoções
ficam mais claras e as emoções destrutivas se acalmam, como barro
assentando-se na água, e nosso estado emocional deixa de ser obscuro.
Mas não devemos nos apegar ao professor por causa disso. Não temos
que sentir desejo ou que precisamos desesperadamente dele. Não temos
que sentir ciúmes de seus outros alunos ou ficarmos bravos e
desapontados quando ele não tem tempo para nós. E não devemos ser
ingênuos ao ponto de achar que o professor é um deus, que nunca precisa
de descanso ou conforto.

Como diz o texto, nossos defeitos definham. As emoções perturbadoras


se acalmam e, aos seguirmos seus ensinamentos, nossos defeitos vão
lentamente definhando. Claro que tudo isso depende do nosso grau de
maturidade ao conhecermos o professor. Não devemos achar que logo no
começo ele fará uma mágica e nossas emoções perturbadoras se
acalmarão. O esforço deve ser nosso, e isso depende de nossa maturidade
em estabelecer um relacionamento saudável com ele. Um relacionamento
doentio pode ter muitas consequências desagradáveis.

A última linha diz que nossas boas qualidades se expandem como uma
lua crescente. Quando convivemos com o professor, realmente
começamos a desenvolver boas qualidades. Nossa personalidade melhora
ao ajudarmos, sermos generosos e assim por diante. Nossa boas
qualidades crescem. A medida que seguimos seus ensinamentos, nosso
amor, compaixão e compreensão naturalmente aumentam.

No que diz respeito aos professores espirituais, o texto diz que nosso
apreço por ele deve ser maior que o apreço pelo próprio corpo. Mas
o que isso significa? Em um certo nível, significa que devemos nos
preocupar mais com o conforto do mestre do que com o nosso. Devemos
estar dispostos a ajudá-lo e, principalmente, ajudá-lo a ajudar os outros,
mesmo que estejamos cansados e isso não nos for conveniente. No meu
caso, com meu professor Serkong Rinpoche, isso significava ir
frequentemente de Dharamsala para Delhi a fim de pegar todos os vistos
para suas viagens.
Direção Segura (Refúgio)

No verso 7, Togme Zangpo descreve como podemos aproveitar a vida


humana preciosa. No âmbito inicial de motivação do lam-rim, nosso
objetivo é melhorar as vidas futuras, mas primeiro precisamos dar uma
direção segura à esta vida, o que também é chamado de tomar refúgio.
Essa é a base para todos os níveis da prática budista.

(7) A prática de um bodhisattva é tomar a direção segura das


Joias Supremas, buscando a proteção daqueles que nunca nos
enganarão — afinal, a quem os deuses mundanos podem
proteger, se eles mesmos ainda estão confinados na prisão do
samsara?

Prefiro usa o termo “direção segura” ao invés de “refúgio” pois refúgio me


parece um tanto passivo. Quando tomamos refúgio, parece que estamos
recebendo algo, e não é o caso. Na verdade, para darmos uma direção
segura à nossa vida, precisamos agir. E a direção segura é indicada pelas
Três Jóias. Ao pensar nas Três Jóias, ou nas Três Raras e Supremas Jóias,
pensamos no Buda, no dharma e na sangha.

Nosso principal objetivo é o dharma. A verdadeira Jóia do Dharma


combina a terceira e a quarta nobres verdades no continuum mental de
qualquer ser altamente realizado, de um arya a um buda. É isso que nos
dá a direção segura. Um arya alcançou parcialmente, e um buda alcançou
totalmente, o estado mental livre de obscurecimentos, emoções
perturbadoras e falta de consciência (ignorância). Esse é o verdadeiro
cessar, a terceira nobre verdade. E a quarta nobre verdade nos apresenta
o verdadeiro caminho mental que conduz à liberação ou iluminação.
Esses estados mentais são a compreensão da quarta nobre verdade, mais
especificamente, a vacuidade. Eles geram o verdadeiro cessar, mas
também são o resultado do verdadeiro cessar. É para essa direção que
queremos ir. Queremos alcançar esse verdadeiro caminho e o verdadeiro
cessar. Essa é a direção segura que tomamos.

Na verdade, a sangha não refere-se aos membros de um centro de


dharma; essa é uma utilização ocidental do termo. A Jóia da Sangha
refere-se aos aryas, ou seja, àqueles que têm uma cognição não conceitual
da vacuidade e, portanto, alcançaram, mesmo que parcialmente, o
verdadeiro cessar e o verdadeiro caminho mental. Não importa se são
monásticos ou leigos.
As Três Jóias causais são o Buda, o dharma e a sangha, conforme
explicamos anteriormente. São aqueles que alcançaram o verdadeiro
cessar e o verdadeiro caminho mental, e cujas atitudes são a causa de
nossa inspiração de seguir essa direção segura. Mas também podemos
tomar o que chamamos de “direção resultante”, que é a mesma direção
segura das Três Jóias, mas refere-se àquilo que nós próprios obteremos
quando nos tornarmos um arya e depois um buda.

Quando Togme Zangpo afirma que devemos buscar a proteção


daqueles que nunca nos enganarão, refere-se às Três Jóias. As Três
Jóias nunca nos enganam. Mas como será que nos protegem? De novo, a
ênfase aqui não deve estar em um ser todo poderoso que protegerá,
contanto que estejamos abertos e nos rendamos à sua proteção, e então
estaremos salvos. Devemos trabalhar para atingir esse verdadeiro cessar
e verdadeiro caminho mental e, só então, estaremos protegidos do
sofrimento. Em outras palavras, no final, somos nós que nos protegemos.
Nunca seremos enganados, pois, se alcançarmos o verdadeiro cessar e o
verdadeiro caminho mental, como os budas e aryas, esses estados
mentais nos protegerão do sofrimento. Nos livraremos para sempre das
causas do sofrimento.

Por outro lado, o deuses mundanos não podem nos oferecer esse tipo de
ajuda. O texto questiona: a quem os deuses mundanos podem proteger
quando eles mesmos ainda estão confinados na prisão do
samsara? Os deuses mundanos — ou mesmo o deus mundano moderno,
o dinheiro — não conseguem nos proteger de coisa alguma. Percebemos
que pessoas ricas às vezes sofrem mais conforme vão ficando mais ricas.
Ficam muito preocupadas com a maneira como devem investir seu
dinheiro e com os impostos, além de ficarem com medo de serem
roubadas. E mais, suspeitam que as pessoas gostem delas apenas pelo seu
dinheiro. É impressionante a quantidade de pessoas muito ricas que são
muito infelizes. É lógico que os deuses mundanos não conseguem nos
proteger, afinal, ainda estão confinados na prisão do samsara. Eles
estão confinados e conectados por toda sorte de emoções perturbadoras
e fazem nossas emoções perturbadoras aumentarem.

No âmbito inicial de motivação do lam-rim, nosso principal objetivo é


melhorar as vidas futuras. Não é que queiramos ir para o céu ou coisa
parecida. O que queremos é continuar a ter nascimentos humanos
preciosos até atingirmos a liberação ou iluminação. Diz-se que aquilo que
separa uma pessoa espiritualizada de outra qualquer é que ela está
trabalhando para as vidas futuras. Isso as diferencia em termos de
dharma, mas outras religiões também ensinam que devemos trabalhar
para o pós-vida, para renascer no paraíso. A existência além desta vida
não é exclusividade budista, só passa a ser quando a colocamos no
contexto da direção segura.

O que visamos é a liberação e iluminação, ou, para ser mais preciso, o


verdadeiro cessar e o verdadeiro caminho mental. Queremos continuar
tendo uma vida humana preciosa como base para atingirmos a liberação e
iluminação. Não é só praticar para ir para o céu. A menos que tenhamos
essa motivação inicial, não podemos considerar que nosso desejo pela
iluminação seja sincero, pois é muito improvável que consigamos nos
iluminar em apenas uma vida. Levará muito tempo. Portanto, precisamos
de muitas vidas humanas preciosas.

Para que possamos trabalhar com o objetivo de obter uma vida humana
preciosa, é óbvio que precisamos acreditar em renascimentos, caso
contrário, como poderíamos querer a liberação dos renascimentos? E
uma vez que queremos a liberação do ciclo de renascimentos
incontroláveis, precisamos trabalhar duro para compreender os
ensinamentos budistas sobre renascimento. Eles não são simples; pelo
contrário, são muito sofisticados. Tudo depende de entendermos como o
“eu” existe e o funcionamento da causa e efeito. Sem uma certa
compreensão da vacuidade do “eu” e do sistema de causa e efeito, fica
muito difícil entender os ensinamentos budistas sobre renascimento.

Evitando o Comportamento Destrutivo

Para nos assegurarmos de que nossas vidas futuras serão humanas e


preciosas, precisamos prestar atenção nas causas e efeitos, especialmente
no que diz respeito ao nosso comportamento. Togme Zangpo fala sobre
evitarmos comportamentos negativos:

(8) A prática de um bodhisattva é nunca cometer qualquer ação


negativa, mesmo que isso lhe custe a vida, pois O Sábio
declarou que os sofrimentos extremamente difíceis de suportar,
dos renascimentos em estados piores, são o resultado de ações
negativas.

Este verso é sobre o karma, que logicamente é um tópico muito complexo.


Mas aqui podemos generalizar: Quando agimos destrutivamente,
geramos infelicidade e, quando agimos construtivamente, geramos
felicidade. Para ser mais específico, o que precisamos fazer para
assegurarmo-nos de que não teremos renascimentos piores é evitar agir
de forma destrutiva. Agir de forma destrutiva gera muita força negativa
no continuum mental e essa força, ou potencial, nos leva a renascimento
piores, dos quais é difícil escapar.

Mas o que queremos dizer com ações negativas, ou destrutivas? O que


seria o oposto disso? O que seria construtivo? Costuma-se explicar que
comportar-se construtivamente significa abster-se de comportar-se
destrutivamente. Mas precisamos compreender muito bem o que é isso.
Por exemplo, podemos detestar caçar e pescar e, por isso, nunca praticar
essas atividades. No entanto, o fato de não participarmos de uma caçada
ou pescaria não significa, necessariamente, que estamos nos abstendo de
uma ação destrutiva, mesmo que realmente não estejamos agindo dessa
forma. Um exemplo que ilustra bem o que é abster-se de uma ação
destrutiva é o exemplo do mosquito. Quando um mosquito fica voando
perto da gente, nossa vontade é de matá-lo, mas nos abstemos, pois
queremos evitar a consequências kármicas. Pensamos na força negativa
que geraríamos ao responder dessa forma — querendo destruir — a algo
que nos incomoda. O comportamento construtivo seria abster-se de
matar e buscar uma forma mais pacífica de tirar o mosquito do quarto.

Acho que dá pra entender que esse último comportamento construtivo é


bem mais difícil que o primeiro. Podemos usar um outro exemplo:
digamos que alguém nos ofereça um tipo de bolo que não gostamos. Não
seria necessário esforço algum de nossa parte para não comê-lo, afinal,
não gostamos mesmo. Entretanto, se nos oferecessem um bolo que
gostamos, nosso bolo favorito, seria muito mais difícil não comê-lo, mas
também seria muito mais construtivo.

Portanto, comportar-se construtivamente é abster-se de agir


negativamente quando nossa vontade é de agir assim, quando
esse é nosso hábito ou tendência. E o motivo para não agirmos é a
consciência das consequências kármicas, de nossa experiência futura, e
não apenas porque “eu quero ser um bom budista”. Nos abstemos de agir
negativamente por pensarmos nas consequências de uma determinada
ação em nossa experiência futura.

Frequentemente lemos frases como esta: nunca cometer qualquer ação


negativa, mesmo que isso lhe custe a vida. O que posso dizer é que é
difícil aceitarmos isso! Pensando bem, quantos de nós já nos encontramos
nesse tipo de situação? Eu moro na Alemanha, e às vezes pergunto aos
meus amigos alemães: Como será que agiríamos se tivéssemos que nos
alistar no exército de Hitler pois, caso contrário, nos matariam? O que
você faria? Essa seria realmente uma questão de vida ou morte. Na época
da guerra do Vietnam, os americanos que não queriam se alistar fugiam
para o Canadá, mas na Alemanha nazista, se você não se alistasse era
morto. O que você faria? Temos que pensar muito seriamente nisso
quando dizemos “mesmo que isso nos custe a vida” . É um ideal
maravilhoso, mas será que conseguiríamos seguí-lo? Eu não sei.

Algumas pessoas tiveram a sorte de serem enviadas para a cozinha ao se


alistarem, para serem cozinheiros. Os nazistas precisavam de gente para
cozinhar, lavar roupa e coisas do gênero. Mas, e se lhe mandassem para o
campo de batalha? Bom, um soldado nem sempre atira bem, você poderia
errar os tiros. Mas, e se aqueles que estivessem atirando em você
acertassem? De novo, apesar do ideal ser muito nobre, temos que
realmente nos questionar para saber se conseguiríamos evitar ações
altamente destrutivas caso nos custasse a vida. Ou seja, se estaríamos
dispostos a sacrificar nossa própria vida. Seria uma conquista e tanto.

Certamente existem pessoas dispostas a morrer ou serem torturadas por


seus princípios. Penso nos vários monges e monjas do Tibete, que se
dispuseram a serem torturados por 20 ou 30 anos em campos de
concentração para não delatar Sua Santidade o Dalai Lama. É mais ou
menos isso a que nos referimos aqui. Será que temos a força e os
princípios para agir assim? Essa é uma pergunta que, como se diz aqui no
ocidente, requer uma “busca profunda na alma”!

Trabalhando para a Liberação

O nono verso nos leva ao nível intermediário de motivação do lam-rim,


que é trabalhar para atingir a liberação:

(9) A prática de um bodhisattva é interessar-se pelo estado


supremo e imperturbável da liberação, uma vez que os prazeres
dos três planos de existência compulsiva são fenômenos que
perecem em um mero instante, como o orvalho nas pontas das
folhas de grama.

O termo “existência compulsiva” refere-se ao samsara: a existência


contínua através de renascimentos incontrolavelmente recorrentes e
compulsivos. Existem três planos onde podemos nascer: (1) o plano dos
objetos sensoriais desejáveis (2) o plano das formas etéreas, ou seja,
muito sutis, e (3) o planos dos seres sem forma, seres que não tem um
corpo grosseiro e que permanecem em estados meditativos muito
profundos.
Para a maioria de nós, é difícil pensar sobre todos esses planos de
existência e os diferentes renascimentos que podemos ter. Temos
dificuldade em compreender a existência de seres presos em reinos onde
não existe nenhum tipo alegria, como os seres dos infernos e os
fantasmas famintos. Existem também os reinos das criaturas rastejantes,
os animais, dos seres divinos ou celestiais, os deuses, e dos pré-deuses ou
quase deuses, os assim chamados “anti-deuses”, que são invejosos,
briguentos e querem ser deuses. Acho que uma forma de entender um
pouquinho melhor isso tudo é pensar no espectro de experiências que
podemos ter.

Por exemplo, no que diz respeito à visão, nós, humanos, só conseguimos


ver uma determinada faixa do espectro de luz. Não conseguimos ver o
ultravioleta e o infravermelho. Mas pode ser que existam outras formas
de vida que conseguem. Por exemplo, muitos animais conseguem ver no
escuro. Os cachorros conseguem escutar muito mais sons do que nós. Por
analogia, se olharmos o espectro de felicidade e infelicidade, prazer e dor,
vemos que os seres humanos ficam inconscientes quando a dor atinge um
determinado nível. E quando o prazer atinge um determinado nível,
acabamos com ele, como no caso do prazer supremo do orgasmo.
Corremos para obtê-lo mas, basicamente, isso o destrói ou dá um fim a
ele. Quando investigamos uma coceira, quando realmente a analisamos,
objetivamente, percebemos que na verdade é um prazer e não uma dor. É
um prazer muito intenso, é prazer demais, e por ser tão intenso, coçamos.
Temos que destruí-lo.

Se existem formas de vida capazes de experimentar diferentes partes do


espectro de luz e som, porque não haveria de existir formas de vida
capazes de experimentar níveis maiores de prazer e dor, ou felicidade e
infelicidade? No nosso caso, é apenas uma questão da forma que
tomaremos em nosso renascimento futuro, isso determinará qual parte
desse espectro poderemos experimentar. E o que importa não é onde
essas formas de vida estão ou qual é a sua aparência, isso não tem tanta
importância, é trivial. O importante é não reduzi-las a estados
psicológicos humanos, e perceber que a mente é capaz de experimentar
uma escala muito mais ampla de prazer e dor, e felicidade e tristeza, do
que nosso aparato humano permite.

O importante é que queremos nos liberar disso, pois, independente da


faixa de prazer e dor, ou felicidade e infelicidade, que sejamos capazes de
experimentar, não dura. Essas experiências e formas de vida surgem da
confusão e só geram mais confusão, a não ser que sejamos um arhat. Por
conta dessa natureza autoperpetuadora do samsara, nossa experiência de
prazer e dor, felicidade e infelicidade, aumenta e diminui constantemente,
e não temos a mínima ideia do que virá a seguir. Nosso objetivo é o estado
inalterável da liberação, um estado que não se altera. Então, teremos
sempre a felicidade que não é misturada com confusão, que não aumenta
nem diminui.

A percepção de que todos os prazeres a que temos acesso nesses três


planos existenciais são fenômenos que perecem em um mero
instante, como o orvalho nas pontas das folha de grama, nos ajuda a
almejar a iluminação. Os prazeres nunca duram, nunca sabemos o que
vem depois, e nada nos satisfaz verdadeiramente. Para atingirmos a
liberação, precisamos nos livrar dessa falta de consciência com que
vivemos, essa confusão. Se nos livrássemos disso, nos livraríamos das
emoções e atitudes perturbadoras que derivam dela, e não ativaríamos
mais nossas tendências e potenciais kármicos. Não geraríamos mais o
karma produzido pela ação compulsiva e impulsiva, e não mais
experimentaríamos a “felicidade maculada” e a infelicidade que é o fruto
do amadurecimento dos potenciais kármicos.

Para nos livrarmos da falta de consciência e alcançarmos a liberação,


precisamos seguir os três treinamentos elevados. O primeiro é o
treinamento em autodisciplina ética elevada. Começamos contendo o
corpo e a fala simplesmente porque a mente é mais difícil. Se
conseguirmos conter o corpo e a fala, evitando ações destrutivas, nos
fortaleceremos para conseguirmos conter a mente através da
concentração elevada. Com a concentração elevada, trabalhamos para
controlar o falatório mental, o torpor, etc.

Claro que é crucial nos abstermos do comportamento mental destrutivo,


que nos leva a pensar, por exemplo, “tenho que ter o que todo mundo
tem”. Ficar planejando como conseguiremos alguma coisa é parte da
cobiça. Também precisamos nos abster de pensar com malícia,
planejando vinganças. Se conseguirmos, talvez consigamos evitar a
distração mental. A parte mental é muito mais difícil que a física e a
verbal. Mas, uma vez que tenhamos treinado a concentração elevada,
podemos aplicá-la para ao treinamento em consciência discriminativa
elevada. Ou seja, podemos usar essa concentração para focar na
vacuidade, que é o que realmente vai nos libertar para sempre da falta de
consciência (ignorância).
Perguntas
Do ponto de vista budista, por que não conseguimos levar
nossas memórias de ensinamentos espirituais de uma vida para
outra? Isso tornaria nossa prática muito mais eficiente.

Primeiro, existem pessoas que realmente se lembram de algumas coisas.


O que carregamos são, principalmente, as tendências muito fortes. Por
exemplo, se praticarmos muito, se criarmos hábitos bem fortes, eles farão
com que seja muito fácil encontrarmos o dharma em uma futura vida
humana preciosa. Quando estudarmos, teremos apenas que nos lembrar
do que já sabíamos. Ou seja, bastará alguém nos dizer uma única vez e já
entenderemos. Meu professor, Serkong Rinpoche, era um dos professores
de Sua Santidade o Dalai Lama e disse-me que nunca tinha que repetir
qualquer coisa para ele. Só precisavam ensiná-lo uma vez e ele já
aprendia.

Isso acontece conosco quando estudamos um idioma quando jovens ou


crianças e nunca mais usamos. Estudei chinês quando era jovem, mas
parei há uns 40 anos atrás. Era bastante fluente, mas agora não lembro
quase nada. No entanto, basta alguém me dizer o nome de alguma coisa
que logo lembro e já sei. Para a maioria de nós isso é o máximo que
podemos esperar. Mas, logicamente, existem alguns lamas que
conseguem lembrar-se e recitar algo que memorizaram em uma vida
passada, sem que ninguém lhes tenha ensinado nesta vida, mas isso é
muito raro.

Parece que muitos de nós ocidentais encontramos o dharma quando


já somos relativamente velhos. Claro que o ideal seria termos tempo
para primeiro aprender e entender os diferentes tópicos e
explicações e então meditar sobre eles, mas geralmente temos
urgência em lidar com nossas emoções e não sabemos como. Não
compreendemos as diversas questões apresentadas nos
ensinamentos e não temos contato com um professor. Como lidar
com essa situação?

Atualmente temos muito mais livros que a 40 ou 50 anos atrás. Mesmo


que não tenhamos professores, temos vários bons livros à disposição.
Além disso, temos a internet e sites como este, com diversos
ensinamentos e áudios em uma variedade de idiomas.
Claro que a maior parte do material está em inglês, então, se não
soubermos inglês, seria bom aprender. Mas existe ainda mais material em
tibetano, portanto, mesmo quem fala inglês ainda está perdendo muita
coisa. Claro, se levarmos a sério a ideia de nos iluminarmos, precisaremos
nos esforçar muito. Parte desse esforço pode estar em aprender outro
idioma.

Com o dharma, estamos tentando treinar nossa personalidade, e uma das


coisas que temos que treinar é a perseverança para trabalhar duro. Não é
fácil atingir a liberação ou iluminação, e ninguém vai nos entregar isso de
bandeja. Qualquer biografia dos grandes mestres tibetanos mostra que
tiveram que enfrentar grandes dificuldades para estudar o dharma. Então
porque seria diferente conosco? Ocidentais tendem a ter baixa
autoestima, desencorajam-se logo. Por isso, é importante encorajá-los,
dar-lhes ensinamentos sobre a natureza búdica, do tipo “vai que você
consegue!”. Mas minimizar a quantidade de trabalho necessário não nos
ajudará! Nossas emoções perturbadoras e hábitos negativos são muito
fortes; se olharmos com honestidade veremos. Não tem saída. Já temos
muita sorte de não termos que ir andando do Tibete à Índia só para
receber ensinamentos. Tudo o que precisamos fazer é ligar o computador
e nos conectarmos à internet. Olhando por esse ângulo, não existe
desculpa!

Uma das histórias mais inspiradoras é a biografia de Marpa, o tradutor.


Em sua primeira viagem à Índia ele aprendeu o idioma e traduziu muitos
textos. Mas na viagem de volta ao Tibete, seu barco virou ao cruzar o Rio
Ganges e ele perdeu todas as suas traduções. Marpa teve que voltar e
traduzir tudo novamente. Quando nosso HD pifar, podemos nos lembrar
de Marpa!

Bodhichitta e o Comportamento do
Bodhisattva
Versos 10 a 17
Revisão

Depois da homenagem e da promessa de escrever, Togme Zangpo passa aos


estágios graduais de motivação do lam-rim, começando pela vida humana preciosa
e pelas circunstâncias que nos permitem aproveitá-la melhor. Assim, aprendemos
que pode ser bom deixar a terra natal e viver em reclusão.
Lembramo-nos da morte e da impermanência e de que nossa vida humana
preciosa não durará para sempre, portanto, não temos tempo a perder. Mas isso
não significa que devemos ser fanáticos! Aqui, meu Koan favorito se aplica muito
bem: “A morte pode vir a qualquer hora. Relaxe.” Para aproveitarmos bem esta
vida, devemos nos manter distantes das más influências e contarmos com amigos
espirituais e mestres qualificados.

Vimos que a direção segura (refúgio) é a base do caminho espiritual budista. Ao


tomarmos refúgio, estamos dando uma direção segura à nossa vida, a direção
indicada pelo dharma, que nos leva ao verdadeiro cessar e ao verdadeiro caminho
mental, que os budas atingiram totalmente e a arya sangha parcialmente. Essa é a
direção que queremos seguir.

No nível inicial de motivação, o objetivo é renascermos nos reinos melhores, mas


buscamos principalmente uma vida humana preciosa, que é o trampolim para a
liberação e a iluminação, conforme indicado pelas Três Jóias. Além disso,
precisamos nos abster de comportamentos destrutivos, a fim de evitarmos
renascimentos piores.

No nível intermediário de motivação, trabalhamos para nos liberar do ciclo


incontrolável de renascimentos. Não importa o tipo de renascimento que
tenhamos, se formos controlados pelo karma e emoções perturbadoras, e se ele for
repleto de ignorância e ações kármicas compulsivas, não produzirá nada além de
sofrimento. Isso é o que cobrimos até o momento.

Desenvolvendo o Ideal de Bodhichitta

Continuaremos com o nível elevado de motivação, que é almejar, com bodhichitta,


a iluminação completa.

(10) A prática de um bodhisattva é desenvolver o ideal de bodhichitta para


liberar inúmeros seres, pois se nossas mães, que cuidaram de nós desde
tempos sem princípio estão sofrendo, o que faríamos com (apenas) a nossa
própria felicidade?

Afinal, o que é bodhichitta? Bodhichitta é um estado mental derivado do amor, da


compaixão e de uma determinação excepcional. Amor é desejar que todos,
absolutamente todos — e não só aqueles de quem gostamos e nos são próximos —
sejam felizes e obtenham as causas da felicidade. Compaixão é desejar que todos
estejam livres do sofrimento — não apenas o sofrimento comum, mas o sofrimento
que tudo permeia — e também de suas causas. Isso inclui assumirmos a
responsabilidade de ajudá-los a superar o sofrimento. Mas, para isso, precisamos
do próximo passo: a determinação excepcional. Termos uma determinação
excepcional significa realmente assumirmos a responsabilidade de ajudar todos os
seres até que atinjam a iluminação — e não apenas temporariamente. Bodhichitta
tem tudo isso como base.
Na primeira fase do desenvolvimento de bodhichitta, focamos em ajudar todos os
seres que buscam a iluminação. Em seguida, vem a fase principal, na qual focamos
em nossa própria iluminação. Nossa iluminação ainda não aconteceu mas pode ser
inferida com base nas causas presentes, assim como podemos inferir a existência
de uma futura flor com base na semente atual. Se todas as causas e condições
necessárias estiverem presentes, a flor desabrochará e teremos uma flor
desabrochada ao invés de uma futura flor que ainda não desabrochou. Da mesma
forma, se trabalharmos com bastante afinco, e as condições para alcançarmos a
iluminação estiverem presentes, nossa iluminação não mais será uma inferência
em nosso continuum mental, será uma realidade presente.

O que acabei de explicar é bastante complicado e sutil, por isso precisamos ser
100% precisos com a terminologia. Caso contrário, será muito difícil sabermos o
que devemos fazer quando focamos em desenvolver bodhichitta. No que
exatamente devemos focar? O que aparece em nossa mente? É a nossa futura
iluminação? Ela ainda não aconteceu, mas será que é não existente e, portanto,
estamos focando em algo que não existe? Esta pergunta pode ficar complicada e, a
não ser que saibamos exatamente no que focar, será muito difícil gerar bodhichitta.
Amanhã, por exemplo, nossa futura iluminação ainda não terá acontecido, mas
pode acontecer e nela podemos focar e fazer planos. Por que ela pode acontecer?
Porque temos os aspectos da natureza búdica.

O ponto principal é que não estamos focando na iluminação de Buda Shakyamuni,


porque essa foi a iluminação dele. E não estamos focando na iluminação como se
fosse um balão no céu, no qual todos estivessem focados. Não é assim. Estamos
falando de nossa própria iluminação. Focamos nos aspectos de nossa natureza
búdica e, sobre esta base, imputamos nossa iluminação que ainda não aconteceu.

Podemos usar a imagem de um buda para representar esse processo, mas


precisamos saber o que a imagem representa. O foco em nossa futura iluminação é
acompanhado de duas intenções. A intenção de alcançar a iluminação e a intenção
de ajudar todos os outros seres a fazerem o mesmo. Atualmente, eu traduzo isso
como o “ideal do bodhisattva”, porque é o nosso ideal, nosso objetivo de vida:
alcançar a iluminação para ajudar os demais da forma mais significativa possível,
ou seja, ajudando-os a fazer o mesmo.

Quando temos a bodhichitta totalmente desenvolvida, dizemos que ela é “livre de


esforço”, ou seja, não precisamos passar por todos os estágios para gerá-la. Num
estalar de dedos, temos bodhichitta total, dia e noite, não importa se estamos
conscientes ou não de nosso ideal. Tudo em nossa vida, tudo o que fazemos,
mesmo quando dormimos, visa a iluminação.

Nossa intenção é trabalharmos para o bem de todos, todos os seres sencientes,


visando levá-los ao mais elevado, desenvolvido e onisciente estado. Um estado
mental inacreditavelmente amplo e incrivelmente abrangente. Esse é o significado
do termo Mahayana, o grandioso veículo mental. Essa é a mente que servirá como
veículo para nos conduzir ao objetivo supremo. Queremos que esse ideal seja tão
central em nossa vida, em nosso continuum mental, que, estejamos ou não
conscientes, esse é o nosso objetivo de vida.
Togme Zangpo nos mostra como desenvolver o ideal de bodhichitta. Ele fala
em liberarmos os seres sencientes, que são nossas mães. Diz: se nossas mães,
que cuidaram de nós desde tempos sem princípio, estão sofrendo, o que
faríamos com (apenas) a nossa felicidade? Essa frase refere-se ao método de
causa e efeito de sete partes para gerar bodhichitta.

Primeiro precisamos desenvolver equanimidade, para não sentirmos atração por


determinadas pessoas, aversão à outras e indiferença em relação a todo o resto.
Queremos estar abertos a todos, e isso é muito importante quando pensamos em
amor e compaixão no contexto Mahayana. Lembrem-se, não estamos falando em
amor e compaixão apenas pelas pessoas que gostamos, isso não seria o amor e
compaixão da tradição Mahayana. Precisamos ter o “amor grandioso” e a
“compaixão grandiosa”. No contexto Mahayana, quando falamos em amor
grandioso e compaixão grandiosa, o que queremos dizer é que estendemos esses
sentimentos igualmente para todos. Claro que é muito difícil alcançarmos isso,
especialmente porque alguns seres sencientes estão em um corpo de mosquito no
momento. Por isso, precisamos compreender o renascimento. Ninguém existe
verdadeiramente apenas na forma em que se manifesta no momento. Todos somos
contínuos mentais individuais que estão passando por inúmeros renascimentos
por causa de seu karma.

Cada continuum mental, ou melhor, cada ser, já foi nossa mãe em alguma vida, por
isso Togme Zangpo os chama de “nossas mães”. Isso acontece porque o tempo é
ilimitado e a quantidade de seres é limitada. Se pensarmos matematicamente,
podemos demonstrar.

Meus alunos da Alemanha criaram um maravilhosa prova Prasangika. A filosofia


Prasangika argumenta utilizando conclusões absurdas. Todos já foram minhas
mães, não só porque o tempo é infinito e os seres são finitos, mas principalmente
porque todos são iguais. Se um ser já foi minha mãe, nomeadamente nesta vida,
então todos já foram minhas mães em alguma outra vida, afinal todos são iguais. Se
esse não fosse o caso, e uma pessoa nunca tivesse sido minha mãe, poderíamos
concluir que ninguém nunca foi minha mãe, pois todos são iguais, incluindo minha
mãe nesta vida. Essa é uma prova Prasangika perfeita, mesmo que os tibetanos não
a usem. Mas eles a aceitam, pois a apresentei ao professor da escola de debate de
Dharamsala e ele concordou que é uma prova válida.

A seguir, o primeiro e importante passo no treinamento de causa e efeito de sete


partes para desenvolvermos bodhichitta:

(1) Reconhecer que todos já foram nossas mães — precisamos nos convencer disso.
Caso contrário, estaremos apenas aceitando, sem realmente compreendermos, o
que faz com que o entendimento seja instável. Se um ser nunca foi minha mãe,
ninguém foi minha mãe, porque todos são iguais. E se uma pessoa já foi minha mãe,
então todos já foram minhas mães, pois todos são iguais. Interessante, não?

E os próximos pontos são:


(2) Lembrar-se da gentileza do amor materno — o simples fato de nossa mãe não
ter nos abortado já demonstra um mínimo de gentileza. Assim, não importa o quão
difícil seja nosso relacionamento com ela, temos que admitir que pelo menos este
nível de gentileza ela tem. A maioria de nós não teria conseguido sobreviver não
fosse pelo amor da mãe.

(3) Apreciando a bondade — costuma-se dizer “retribuir a bondade”, mas acho que
essa frase pode ficar um tanto pesada para os ocidentais, que já carregam tanta
culpa. O termo em tibetano significa “apreciar a bondade” ou “ser grato”. Quando
realmente apreciamos a bondade com que os outros nos trataram, e realmente nos
sentimos gratos, naturalmente sentimos o amor que esquenta o coração. Assim,
sempre que encontrarmos algum ser, nosso coração se encherá de alegria e
felicidade, igual a quando encontramos nossos filhos, e ficaríamos muito tristes se
algo de ruim lhes acontecesse.

(4) Desenvolvendo amor — Desenvolver o desejo de que todos os seres sejam


felizes e encontrem as causas da felicidade. Tem como base o amor que esquenta o
coração.

(5) Desenvolvendo compaixão — Também tem como base o amor que esquenta o
coração, mas aqui desejamos que todos os seres estejam livres do sofrimento e de
suas causas, e nos dispomos a contribuir para que isso aconteça.

(6) Desenvolvendo uma determinação excepcional — decidirmos, de uma vez por


todas, tomar para nós a responsabilidade de levar todos os seres à iluminação.

Com base nas seis causas anteriores, temos o sétimo ponto, o resultado:

(7) Desenvolvendo bodhichitta.

Uma vez que somos todos interconectados, se nossas mães estiverem sofrendo,
como disse Togme Zangpo, o que faríamos com apenas a nossa
felicidade? Precisamos usar a felicidade constante do estado iluminado, que
atingiremos ao nos tornarmos budas, para ajudar os outros e não para
simplesmente relaxar na beira da piscina com uma bebida gelada na mão.

Igualando-nos aos Outros e Trocando de Lugar com Eles

No próximo verso, Togme Zangpo nos mostra outro grande método para
desenvolvermos bodhichitta, que é nos igualarmos aos outros e depois mudarmos
nossa atitude em relação a nós e a eles.

(11) A prática de um bodhisattva é trocar, com pureza, sua felicidade pessoal


pelo sofrimento alheio, porque (todo) o sofrimento, sem exceção, vem de
desejarmos nossa própria felicidade, enquanto um buda totalmente iluminado
nasce da atitude de desejar o bem aos outros.
Primeiro temos que equalizar nossa atitude em relação aos demais. Essa prática
baseia-se na mesma equanimidade utilizada no primeiro método de
desenvolvimento de bodhichitta, onde deixamos de sentir atração por alguns e
aversão ou indiferença por outros. Mas, aqui, vamos um pouco adiante, nos
igualamos aos outros. Isso significa que nós e todos os demais somos iguais em
querermos felicidade e não querermos infelicidade. E mais, todos temos o direito a
essa felicidade e a não sermos infelizes, independente do que fazemos. Então,
porque cuidar apenas de nossa própria felicidade? Em Engajando-se no
Comportamento do Bodhisattva, Shantideva diz:

(VIII.95) Uma vez que a felicidade é algo desejado por todos, que tanto eu
quanto os outros desejamos ser felizes, o que há de tão especial a meu
respeito para que eu cuide de mim e não dos outros?

(VIII.96) E uma vez que ninguém gosta de sofrer, nem eu e nem os outros, o
que há de tão especial a meu respeito para que eu cuide de mim e não dos
outros?

Quando assim igualamos todos os seres, passamos a formar um único corpo de


vida, da mesma forma que as diversas partes do nosso corpo formam um único
corpo. Shantideva nos dá uma bela explicação:

(VIII.91) Assim como o corpo deve ser cuidado como um todo, apesar de suas
diversas partes, como a mão e assim por diante, os seres sencientes, apesar de
suas diferenças, são todos iguais a mim no que diz respeito à felicidade e ao
sofrimento, portanto, formamos um todo.

Não podemos dizer que uma parte do corpo necessite de mais cuidados do que
outra, que é mais importante que uma determinada parte não sinta dor. Todas as
partes são iguais. Então não podemos dizer que uma mão, por exemplo, só deveria
cuidar de mãos. Se um de nossos pés estivesse com dor porque pisou em um
espinho, nossa mão imediatamente o ajudaria. A mesma lógica se aplica ao cuidado
com os outros.

Shantideva colocou da seguinte forma:

(VIII.99) Se quem tem de cuidar de um sofrimento é aquele a quem ele


pertence, porque a mão cuida do sofrimento do pé se ele não a pertence?

(VIII.100) Apesar de não fazer sentido, é assim que funciona, por causa do
conceito de um “eu”. Bom, mas é claro que devemos descartar ao máximo o
que não faz sentido no que se refere ao [“todo” formado por] eu e os outros.
A questão toda está na base sob a qual rotulamos o “eu”. Será que o rotulamos com
base na mão ou em todo o corpo? Será que o estamos rotulando com base apenas
na nossa pessoa? Será que podemos rotulá-lo tendo qualquer um ou mesmo a
todos como base? Shantideva diz:

(VIII.92) Apesar da minha própria dor não machucar o corpo dos outros, [para
mim] ela é insuportável, por ser a dor do “eu” e por causa do meu apego ao
“eu”.

(VIII.93) Da mesma forma, apesar da dor dos outros não me atingir, é a dor de
um “eu”, por isso também é difícil de suportar, por causa do apego a um “eu”.

Shantideva explica que, no momento, estamos baseando nosso conceito de “eu” em


pedaços de corpos de outras pessoas, algo que se desenvolveu a partir do óvulo e
espermatozóide de duas outras pessoas. Não foi de nosso próprio óvulo e
espermatozóide, certo?

Basicamente, o que estamos fazendo é cuidar de algo que veio do corpo de outras
pessoas, então qual é a diferença entre isso e cuidar de qualquer outro corpo que
veio do corpo de outras pessoas? Qual é a diferença entre limpar nosso próprio
nariz com a mão ou limpar o nariz de um bebê? Estamos dispostos a fazer os dois,
se necessário. Mas será que isso seria diferente de limpar o nariz de um bêbado
caído na rua? Shantideva coloca da seguinte forma:

(VIII.111) Por uma questão de familiaridade, consideramos “eu” as gotas de


sêmen e sangue de outras pessoas, apesar desse “eu” não existir como uma
“coisa”,

(VIII.112) Então, por que também não considerar o corpo de outra pessoa
como “eu”? Afinal, não é difícil verificar que aquilo que considero meu corpo
não é “meu”.

Conforme disse Shantideva, o sofrimento deve ser eliminado, mas não por ser meu
ou de outro ser. O sofrimento deve ser eliminado simplesmente porque é
sofrimento e machuca. Shantideva diz que o sofrimento não tem dono. Assim como
podemos cuidar do “eu” que tem como base um único corpo, também podemos
cuidar do “eu” que tem como base o corpo de todos os seres.

(VIII.102) Como o sofrimento não tem dono, não existe diferença entre o
sofrimento [de um ser e de outro]: se existe sofrimento, ele tem que ser
eliminado. Porque impor restrições?

(VIII.94) Portanto, o sofrimento dos outros é algo que deve ser eliminado por
mim, porque é sofrimento, o sofrimento de um “eu”. Assim, os outros seres
devem ser ajudados por mim, porque são seres sencientes, parte do corpo de
um “eu”.

Quando praticamos tonglen, o dar e receber, indicado no texto pela frase


“trocando nossa felicidade pessoal pelo sofrimento dos outros”, recebemos o
sofrimento dos outros como se fosse nosso, e doamos nossa felicidade como se
estivéssemos doando felicidade a nós mesmos. Se não tivermos uma compreensão
da vacuidade e do rotulamento mental de um “eu” convencional dentro do
contexto desta prática, podemos ter problemas. Que tipo de problemas? O
problema que vem de basearmos nossa prática no equivoco da existência um “eu”
sólido, independente e estabelecido por si só. Se praticarmos dessa forma,
poderemos ficar com complexo de mártir, de termos que ser aquele que tira o
sofrimento do universo, como em “Salvarei a todos!”, e isso pode gerar um enorme
medo, afinal, também pensamos “Eu não quero sentir a dor que ele sente ao
morrer de câncer”. Neste caso, nosso pensamento está fixado em um “eu” muito
sólido, separado de todos os outros, e certamente não vamos querer o sofrimento
de alguém que está morrendo.

Mas, se compreendermos a vacuidade do “eu”, e considerarmos um “eu”


convencional expandido, que tem como base todos os seres, essa troca do que é
nosso pelo que é do outro ficaria clara e bastante razoável. Só dá medo se
pensarmos no “eu” sólido. Esse é um ponto muito importante da prática de nos
igualarmos e trocarmos de posição com o outro.

Porque pensar em todos os seres e em sua felicidade ao invés de pensarmos em


nós e na nossa felicidade? Togme Zangpo diz que é porque nosso sofrimento,
sem exceção, vem de desejarmos nossa própria felicidade. Quando agimos de
forma destrutiva, o fazemos porque queremos nossa própria felicidade. Por
exemplo, podemos pensar: “Não gosto desse besouro voando perto de mim. Tenho
medo e quero ser feliz sem sua presença. Ele é uma forma inaceitável de vida”. E,
assim, decidimos matá-lo, tendo como base o pensamento egoísta de preocupação
com nosso próprio bem estar. Outro exemplo de preocupação exclusiva com a
própria felicidade é roubar, por querer o que o outro tem, ou mentir, por querer
que as coisas fossem conforme as imaginamos, ou ter um caso com o parceiro
alheio, porque estamos preocupados com a própria felicidade. Podemos analisar
assim cada uma das dez ações destrutivas. Não é muito difícil perceber que elas
surgem da nossa preocupação com a própria felicidade e por não nos importarmos
com a felicidade dos outros.

Mesmo quando agimos construtivamente, se o fizermos pensando na própria


felicidade, essa ação só servirá para perpetuar nosso samsara. Por exemplo, posso
ser gentil porque quero que gostem de mim ou porque quero me sentir necessário
ou qualquer outra coisa do gênero. Isso também é pensar apenas na nossa própria
felicidade. Na terminologia budista, dizemos que é uma “atitude autocentrada”.

O texto explica que um buda totalmente iluminado nasce da atitude de desejar


o bem-estar alheio. Se nos abstermos de ações destrutivas, como a ação de matar
o besouro, por exemplo, estaremos pensando na felicidade desse outro ser. Se nos
abstermos de roubar um objeto, estaremos pensando na felicidade do dono do
objeto. E podemos analisar dessa maneira todas as dez ações construtivas. Todas
tem como base o pensamento centrado na felicidade alheia e, assim,
progrediremos até desenvolvermos bodhichitta. E como alguém se torna um buda?
Por ter bodhichitta. Bodhichitta tem como base a preocupação com os demais.

Revisando rapidamente os dois métodos para gerar bodhichitta: temos o sistema


de causa e efeito de sete partes, que tem como base considerarmos todos os seres
como nossas mães e temos o de nos igualar e trocar de lugar com os outros. Uma
vez que tenhamos desenvolvido bodhichitta com base nesses dois métodos,
teremos desenvolvido o estado de aspiração de bodhichitta. Aspiramos alcançar a
iluminação para beneficiar todos os seres, e por isso tomamos os votos de
bodhisattva e nos engajamos no tipo de comportamento que nos levará à
iluminação.

Comportamento de Bodhisattva: Lidando com Mal que nos


Infligiram

O comportamento do bodhisattva engloba diversos aspectos, e um dos mais


importantes é a forma de lidarmos com o mal que nos foi infligido. A maneira
básica descrita por Togmey Zangpo é através do tonglen, o dar e receber. Esse é
um dos métodos mais fundamentais para transformar situações negativas em
positivas, e é um tópico muito discutido em vários textos de treinamento mental
(lojong). Lembre-se que Togme Zangpo escreveu um comentário sobre O
Treinamento da Mente em Sete Pontos, de Geshe Chaykawa; logo, encontraremos
aqui muitos similaridades, e também com os Oito Versos para o Treinamento da
Mente, de Langri Tangpa, que é uma base para o treinamento da mente em sete
pontos.

(12) A prática de um bodhisattva édedicar seu (próprio) corpo, recursos e


ações construtivas dos três tempos a alguém que roube, ou mande roubar,
toda sua riqueza.

Se nosso objetivo for realmente desenvolver bodhichitta, a fim de conduzirmos


todos os seres à iluminação, e se realmente estivermos dispostos a dar-lhes toda
essa felicidade, de certa forma, já lhes demos. Talvez não lhes tenhamos dado
fisicamente ou neste exato momento, mas em nossa mente já lhes demos tudo o
que pode ser dado.

Portanto, se alguém nos tomasse ou roubasse alguma coisa, ou se mandasse


alguém roubar, por estar sob o poder do desejo, só levaria o que já lhe pertence.

Shantideva diz algo parecido:

(III.12ab) Uma vez que dei este corpo a todos os que possuem corpos
limitados, a fim de que façam com ele o que bem entenderem,
(III.14ab) Que façam o que quiserem com [meu] corpo, contanto que isso não
lhes cause mal.

Então, se alguém nos tomasse algo, não haveria problema, pois, mentalmente, já
lhes demos tudo. Conforme disse Togme Zangpo, lhes dedicamos nosso corpo,
recursos e ações construtivas dos três tempo. Aqui, “dedicar” significa pensar
“você roubou meu dinheiro, aproveite bem. Quero que seja feliz e espero que isso
lhe traga felicidade.” Tomamos da pessoa qualquer consequência negativa que
possa advir de sua ação, e lhes damos felicidade.

Novamente nos lembramos do que disse Togme Zanpo, que toda a infelicidade vem
de pensarmos apenas em nós mesmos e toda a felicidade vem de pensarmos nos
outros. Quando eu morava em Dharamsala, na Índia, tinha um jardim de flores, e
um dia umas crianças pegaram todas as flores do meu jardim. Como sou um ser
samsárico, fiquei com um pouco de raiva e com vontade de sair gritando e
correndo atrás delas. Então tentei lembrar deste conselho e perceber que não fazia
sentido ficar repetindo “que todos os seres sejam felizes, que todos atinjam a
iluminação” durante minhas práticas e meditações, e ficar bravo por terem levado
minhas flores. Só fiquei zangado e triste porque estava pensando apenas em mim.
Eram minhas flores e eu queria apreciá-las. Mas quando comecei a pensar “que
vocês se alegrem com as flores”, passei a pensar na felicidade alheia, e isso
pacificou minha mente.

Lembre-se da parte em que falamos sobre nos igualarmos e trocarmos de lugar


com os outros: qual seria a diferença entre nós apreciarmos as flores e as crianças
apreciarem as flores? Portanto, as desejamos ainda mais felicidade e dedicamo-
lhes nosso corpo, recursos e ações construtivas dos três tempos — presente,
passado e futuro.

Todos esses versos, que falam de outras pessoas nos fazendo mal, têm o objetivo
de nos ajudar a não ter raiva. Um bodhisattva não ficaria bravo com os outros,
porque raiva é basicamente querer que o outro não seja feliz. Queremos nos livrar
da pessoa, e também queremos que ela pare de fazer o que está fazendo. É claro
que não querer que o outro seja feliz é o oposto de querer que ele seja feliz, não é?
A raiva acaba com a força positiva que desenvolvemos através de várias ações
construtivas, e a enfraquece de forma que demore a amadurecer e seu fruto seja
menor. Precisamos desenvolver paciência. Se tivermos paciência, não ficaremos
com raiva. E a melhor maneira de desenvolver paciência é praticando tonglen, o
dar e receber.

(13) A prática de um bodhisattva é, através do poder da compaixão, tomar


para si as consequências negativas do ato de outra pessoa, mesmo que ela
tenha tentado cortar nossa cabeça sem que tenhamos cometido o mínimo
deslize.

Esse verso dá o exemplo extremo de alguém que tenta cortar nossa cabeça, mas a
mensagem é que não devemos ficar com raiva, mesmo quando nos machucam
intensamente sem que tenhamos culpa. Ao invés disso, devemos praticar tonglen
pensando no sofrimento e nas consequências negativas que a pessoa
experimentará com resultado de cortar nossa cabeça, ou o que quer que tenha
feito. Então fazemos a prática de tomar para nós as consequências negativas
através do poder da compaixão, ou seja, do desejo de que estejam livres do todo
sofrimento.

É muito interessante analisarmos os ensinamentos sobre karma considerando os


fatores que fazem com que ele amadureça com mais força. Nos ensinamentos,
existe uma lista de coisas que fazem com que as consequências de nossas ações
sejam mais pesadas. “Pesadas” é o termo literal. Um dos itens listados considera o
grau de sofrimento que as ações destrutivas infligem no objeto da ação. Se causar
muito sofrimento, as consequências são mais pesadas, e se não causar muito
sofrimento, são mais leves. Normalmente, utiliza-se como exemplo a diferença
entre torturar alguém até a morte ou matar rapidamente.

No caso do exemplo do autor, sobre “cortar cabeças”, se alguém quisesse nos


executar ou matar em uma limpeza étnica, ficaríamos com muita raiva e, portanto,
sofreríamos muito. Assim, a consequência para a outra pessoa seria muito mais
pesada. Ao passo que, se simplesmente cortassem nossa cabeça, morreríamos
rapidamente. Mas, voltando ao verso que fala da situação de sermos roubados, se
ficarmos aborrecidos e com raiva, sofreremos muito mais. Poderíamos tentar
planejar uma vingança e, por causa das emoções destrutivas que geraríamos,
sofreríamos ainda mais, no presente e no futuro. Com isso, as consequências para a
outra pessoa seriam mais pesadas. Mas, e se ao invés de ficarmos com raiva,
pensássemos na pessoa com compaixão? Nesse caso, desejaríamos que a
consequência de sua ação fosse a mais leve possível. Por causa de nossa
compaixão, a situação mudaria, não só para nós, mas também para o outro.

Por isso é tão importante “esquecermos” quando alguém nos faz algo negativo. Por
exemplo, pode ser que alguém nos empreste dinheiro e não pague. Existem
situações em que a pessoa simplesmente não vai pagar. Nessas situações,
simplesmente esqueça! Mas lembre-se que isso é bem diferente do conceito
ocidental de perdão, que implica em um certo sentimento de superioridade, uma
atitude do tipo “Está bem, vou perdoar esse pobre coitado”. A noção ocidental de
perdão também está baseada no conceito de culpa, de que a outra pessoa é culpada
mas nós a perdoamos. Além disso, identificamos a outra pessoa como “a culpada”,
que nós, com toda nossa nobreza, perdoamos. Aqui, tendo como base o sentimento
de compaixão, percebemos que, quanto mais raiva tivermos, e quanto mais
chateados ficarmos, mais a outra pessoa irá sofrer. Por isso, e por queremos que
ela seja feliz, procuramos não ficar com raiva e desejar ainda mais felicidade a ela.

Mesmo que ainda não sejamos bodhisattvas, devemos tentar ao máximo pôr isso
em prática.

(14) A prática de um bodhisattva é, mesmo que alguém divulgue, em milhares,


milhões ou bilhões de mundos, coisas desagradáveis a nosso respeito,
retribuir com uma atitude amorosa, falando das boas qualidades da pessoa.
Quando outras pessoas nos insultam ou dizem coisas que não gostamos, é muito
importante não revidarmos. Se ficarmos sempre criticando e falando mal dos
outros, vão achar que somos fofoqueiros e não confiarão em nós quando
precisarem de ajuda, pois ficarão se perguntando o que falaremos delas. Por isso,
Langri Tangpa escreveu nos Oito Versos para o Treinamento da Mente:

(5) Quando os outros, por inveja, me tratarem injustamente, com repreensões,


insultos e mais, que eu aceite a derrota e ofereça-lhes a vitória.

E mais, Shantideva nos mostrou que todos têm boas qualidades. Ele escreveu
muitos versos questionando o por quê de não querermos nos alegrar com as boas
qualidades das outras pessoas, se queremos que elas se alegrem com as nossas. E
todos fazemos isso. Vejam o que ele disse:

(VI.79) Quando suas qualidades são enaltecidas, você deseja que as outras
pessoas fiquem felizes por você, mas quando são as qualidades delas que são
enaltecidas, você não quer ficar feliz.

(VI.80) Tendo desenvolvido o ideal de bodhichitta, desejando [levar] felicidade


a todos os seres sencientes, porque ficar com raiva da felicidade que eles
conseguem sozinhos?

Se nos alegrarmos com a felicidade alheia, ficaremos mais felizes. Se


desenvolvermos sentimentos negativos e negarmos as qualidades dos outros, o
que ganharemos? Apenas infelicidade. Qual é o nosso estado mental quando
criticamos os outros? É um estado mental infeliz. Alegrar-se com as boas
qualidades alheias, mesmo que pequenas. É um estado mental bem mais feliz! E as
pessoas também se beneficiam muito com isso: ficam mais confiantes, nos
respeitam, confiam e se abrem conosco, e isso nos permite ajudá-las.

Se pensarmos na propaganda negativa que os chineses fazem do Dalai Lama,


veremos que ele é um grande exemplo disso. Eles dizem muitas coisas negativas, e
para o mundo todo! Mesmo sabendo que o que dizem não é verdade, Sua Santidade
nunca critica ou fala mal do governos chinês. Ao invés disso, ele fala das coisas
positivas que a China pode oferecer ao Tibete, não as nega. É uma atitude muito
diferente do terrorismo ou dos movimentos insurgentes que visam destruir um
governo que acham ruim.

O ponto aqui é não falar das qualidades negativas dos outros, mesmo que eles
falem das nossas, e enfatizar suas boas qualidades, com uma atitude amorosa, com
o desejo de que sejam felizes. Todas as pessoas têm boas qualidades, portanto,
devemos nos alegramos com a felicidade que essas qualidades trarão às suas vidas.
Se não conseguirmos aquentar uma pessoa falando mal de nós, nunca
aguentaríamos o que Sua Santidade aguenta, um pais inteiro falando mal dele! Isso
ilustra bem o seu comportamento de um bodhisattva.
(15) A prática de um bodhisattva é, mesmo que alguém exponha seus defeitos
ou fale mal (dele) no meio de um grupo de muitos seres errantes,
cumprimentá-lo respeitosamente, identificando-o como (seu) professor
espiritual.

Langri Tangpa usa uma analogia parecida:

(6) Mesmo que alguém que eu tenha ajudado, ou por quem tenha grandes
expectativas, me prejudique de forma totalmente injusta, que eu o veja como
um professor sagrado.

Quando os outros nos criticam e expõem nossos defeitos, na verdade, estão nos
ajudando, pois estão nos mostrando o que podemos corrigir. Afinal, um bom amigo
é aquele que nos diz que estamos agindo como idiotas quando realmente estamos.
Quando estávamos na escola, se os professores não tivessem apontado nossos
erros, se sempre tivessem dito “Nossa, muito bom o que você escreveu!”, nunca
teríamos aprendido e melhorado. Portanto, podemos considerar que aqueles que
expõem nossos defeitos são como professores espirituais que nos ajudam a corrigi-
los.

Quando as acusações são falsas, temos a oportunidade de verificar se são


realmente falsas. Mesmo quando nossas falhas são expostas em meio a vários seres
sencientes, devemos considerar a pessoa que as expôs um professor. Se realmente
quisermos ser capaz de ajudar os outros, é crucial não escondermos nossas falhas e
defeitos ou fazer de conta que temos boas qualidades quando não as temos.
Alguém que aponta nossos erros em meio a um grupo de pessoas nos dá a
oportunidade de sermos honestas com os demais.

Por exemplo, se somos o professor e um aluno nos corrige, ao invés de sentirmos


vergonha, devemos agradecê-lo. Não precisamos pensar “Que horror! O que as
outras pessoas pensarão de mim?” Podemos dizer “Obrigada! Me enganei.” Assim,
nossos alunos nos respeitarão ainda mais. Às vezes, Sua Santidade o Dalai Lama
comete algum engano ao ensinar. Mas ele reconhece e ri, dizendo “O que acabei de
dizer está errado”. Ele não faz um drama e nem fica achando “Oh, fiz uma coisa
horrível!”

Quando falamos em identificá-lo como professor espiritual, “identificar” é


frequentemente traduzido como “reconhecer”. Mas “identificar” significa ver uma
determinada característica e especificar essa característica identificadora. A
pessoa em questão pode ter vários tipos de características que a faz ser muitas
coisas, mas uma das coisas que podemos identificar é que ela está agindo como um
professor no momento em que aponta nosso erro. Portanto, essa é uma
identificação correta, pois a pessoa realmente tem a característica de nos ajudar a
aprender.
(16) A prática de um bodhisattva é, mesmo que uma pessoa, de quem
tenhamos cuidado e estimado como nosso próprio filho,nos considere um
inimigo, ter uma afeição especial por ela, como a de uma mãe pelo filho (que
foi) atingido por uma doença.

Imagine que seja tarde da noite e dizemos ao nosso filho pequeno que vá dormir,
mas ele fica muito zangado e começa a gritar “Eu te odeio!” Será que acreditamos
na criança e ficamos chateados com ela? Será que pensamos “Oh, meu filho não
gosta mais de mim!” Claro que não, sentimos afeição e continuamos a agir
pensando no bem da criança. Desligamos a televisão e a levamos pra cama. E se ela
estiver doente e passar a noite chorando? Será que ficamos zangados e passamos a
considerá-la uma inimiga? Claro que não, sentimos ainda mais amor e afeição.

O mesmo acontece com qualquer pessoa de quem tomamos conta e ajudamos,


mas que agora nos trata mal, fica zangada e nos considera um inimigo. Nesse
caso, o ideal seria considerá-la da mesma forma como consideramos uma criança
doente, porque ela realmente está doente, com algum tipo de distúrbio emocional.

(17) A prática de um bodhisattva é, mesmo que um indivíduo, igual ou inferior,


nos insulte, tomado por arrogância, recebê-lo respeitosamente na coroa da
cabeça, como um guru.

Quando os outros, por arrogância, nos insultam, é importante não sermos


arrogantes também e não gritarmos de volta, especialmente quando ocupam uma
posição hierárquica igual ou inferior à nossa. Isso nos remete aos ensinamentos
de Shantideva sobre como superar a arrogância e a inveja. Quando percebemos
que estamos sendo arrogantes, ele nos sugere tentar olhar a situação sob o ponto
de vista da outra pessoa. Ela pode pensar: “Quem ele acha que é?” Desfrutamos de
muitas coisas boas na vida e não as compartilhamos com os outros, e ainda por
cima os desdenhamos. É natural que pensem mal de nós.

(VIII.141) “Ele é respeitado, mas eu não; eu não tenho a riqueza que ele tem.
Ele é elogiado; mas eu sou menosprezado, ele tem felicidade, mas eu tenho
sofrimento;

(VIII.142) “Eu faço todo o trabalho, enquanto ele tem uma vida boa. Ele é
considerado superior, enquanto eu sou considerado inferior, desprovido de
boas qualidades.

(VIII.143) “Mas como pode alguém que não tem boas qualidade fazer qualquer
tipo de trabalho? Portanto, todos possuímos boas qualidades! (Inclusive,)
existem pessoas que o consideram inferior e pessoas que me consideram
superior.
(VIII.144) “Coisas como o declínio de minha disciplina ética e visão de mundo
são consequências das emoções perturbadoras, e não do meu controle sobre
elas. Preciso ser curado, tanto quanto possível: aceito até a dor [envolvida na
cura].

(VIII.145) “Mas (além de) ele não me tratar como alguém que precisa ser
curado, porque ainda me olha com ar de superioridade?

Esse é o tipo de ensinamento que Shantideva nos deixou sobre trocarmos de lugar
com os outros. Mesmo que uma pessoa em posição inferior nos insulte e seja
arrogante, é importante lembrarmo-nos desses ensinamentos e não agir da mesma
forma. Ao invés disso, devemos receber essa pessoa na coroa de nossa cabeça,
respeitosamente, como a um guru. Ou seja, ao invés de também sermos
arrogantes, devemos respeitá-la, como respeitaríamos nosso guru, pois ela está
nos ensinando algo; está nos ensinando a não sermos arrogantes.

Não importa se somos ou não insultados por pessoas em posição igual ou inferior,
o importante é termos uma atitude de respeito por elas. Afinal, estão nos ajudando
a alcançar a iluminação e ajudar os outros. Precisamos pensar “É por causa da
minha compaixão, amor e ajuda a elas que serei capaz de atingir a iluminação e
beneficiar os demais. Portanto, merecem muito respeito.”

Quando falamos em inspiração para atingir a iluminação, essa inspiração vem de


duas direções, de cima e de baixo. De cima, vem das Três Joias e de nossos mestres
espirituais, já que nos inspiram com seus exemplos. Mas também nos inspiramos
nos seres sencientes em sofrimento, pois ao vê-los, nosso amor e compaixão faz
com que aspiremos atingir a iluminação para conseguirmos ajudá-los melhor.

Shantideva diz que os budas e os seres senciente são iguais se pensarmos que é
devido à sua gentileza que conseguiremos atingir a iluminação. Por isso,
Shantideva nos pergunta o motivo de mostrarmos respeito apenas pelos budas e
gurus e não pelos sofredores seres sencientes. Ele escreveu:

(VI.113) Uma vez que o atingimento da iluminação depende tanto dos seres
sencientes quanto do Triunfante, por que não respeitamos os seres sencientes
como respeitamos o Triunfante?

Perguntas
Quando percebemos que estamos ficando com raiva, o melhor a fazer seria
sair da situação e esperar a raiva acalmar, para só mais tarde tentar livrar-se
dela?

Sim, esse é um bom passo, e tem a ver com o que disse Togme Zangpo, que um
bodhisattva deve deixar sua terra natal, onde a raiva, o apego e a ingenuidade o
incomodam tanto. Ao tentarmos sair de uma situação onde não conseguimos lidar
com a raiva, estamos fazendo a mesma coisa. É bom nos acalmarmos e nos
recompormos. Provavelmente, a outra pessoa também estará aborrecida e com
raiva, e pouco inclinada a acalmar-se e resolver a situação pacificamente.
Precisamos esperar que ela também se acalme e que ambos tenhamos um estado
mental mais conducente a resolver o conflito.

Estou um pouco confuso a respeito da referência a pessoas inferiores, no verso 17,


pois já havíamos falado que as pessoas são absolutamente iguais. O que significa
alguém ser inferior?

É verdade, todos são iguais, mas no sentido de que todos querem ser felizes e
ninguém quer ser infeliz, e todos têm o direito de ser feliz e estar livre do
sofrimento. Todos foram igualmente gentis conosco quando foram nossas mães,
por exemplo. Segundo Shantideva, os Budas e todos os seres sencientes são
igualmente gentis conosco, portanto, merecem o mesmo respeito. No entanto,
Shantideva deixa bem claro que Budas e seres sencientes não são iguais em todos
os aspectos. O amor, compaixão e sabedoria dos budas estão além de nossa
imaginação. Eles são iguais apenas quando consideramos que dependemos
igualmente dos dois para atingirmos a iluminação — os budas são o exemplo do
que objetivamos alcançar e os seres sencientes são àqueles por quem objetivamos
alcançar a iluminação.

No entanto, no oitavo capítulo, sobre estabilidade mental, Shantideva fala em


trocarmos de lugar com os outros, e usa temos como superiores, iguais e inferiores.
Precisamos superar a arrogância em relação aos que são inferiores, aos que têm
menos dinheiro, por exemplo, e precisamos superar a competitividade agressiva
com aqueles que estão em posição de igualdade. Mantendo o exemplo do dinheiro,
achamos que temos que competir para ter mais dinheiro que eles. E temos que
superar a inveja dos que são superiores, que tem mais dinheiro, por exemplo. Na
verdade, essa ideia de inferior, igual e superior é usada no nível convencional, e
geralmente refere-se a qualidades como riqueza, poder, status, força física, beleza,
etc.

No verso 12, que fala de roubo, ele se refere apenas ao karma da pessoa que nos
rouba ou também ao nosso próprio karma, gerado por reagimos de uma
determinada maneira?

Shantideva disse que a pessoa gera consequências negativas por agir com base no
“eu”, porque ele roubou de “mim”, por exemplo. Quando desenvolvemos paciência,
tendo a pessoa que nos roubou como base, estamos gerando felicidade. Ela está
causando seu próprio sofrimento, por estar agindo com base no “eu”, e nós
estamos gerando felicidade por estarmos agindo com base no “outro”, então,
porque fazê-la sofrer ainda mais ao nos zangarmos? Tendo seu “eu” como base, ela
terá um renascimento pior; e, tendo a ela como base, atingiremos a iluminação. É
estranho, não é? Porque ficarmos com raiva dela?

Podemos olhar a situação sob outro ponto de vista, como o que encontramos em A
Roda de Armas Afiadas, um outro texto de treinamento mental. Segundo esse texto,
devemos nos conscientizar de que cometemos ações negativas no passado, ao
roubar de outras pessoas, e agora isso está retornando a nós. Esta é uma outra
forma de transformarmos a situação. Então, repetindo, quando alguém nos rouba,
pensamos que nossos próprios potenciais negativos estão amadurecendo ou que
estamos gerando potenciais positivos ao não ficarmos com raiva da pessoa.

Situações Críticas e Realização da


Vacuidade
Versos 18 a 24
Revisão

Temos esta vida humana inacreditavelmente preciosa, que serve como base para
atingirmos a liberação e iluminação. Um renascimento como este é muito raro.
Além disso, passa muito rápido e pode acabar a qualquer momento, portanto,
precisamos aproveitá-lo. Para isso, Togme Zangpo nos aconselha a vivermos em
isolamento, afastados da terra natal, a fim de conseguirmos progredir no caminho.

À medida que progredimos, nosso nível de motivação, segundo a classificação do


lam-rim, vai se desenvolvendo, do mais básico ao mais avançado. Não adianta
termos uma motivação avançada porém superficial, é preciso sermos sinceros e
estarmos seguros do que queremos.

Primeiro, almejamos renascimentos melhores, ou mais especificamente,


renascimentos humanos preciosos, a fim de continuarmos no caminho. Com a
morte e a impermanência em mente, e conscientes de que é muito difícil
atingirmos a iluminação em apenas uma vida, buscamos conseguir mais vidas
humanas preciosas. Para isso, precisamos nos certificar de que temos boas
influências em nossa vida, nos livrar das más influências e confiar nos mentores
espirituais qualificados.

A seguir, damos uma direção segura às nossas vidas, tomando refúgio no Buda,
dharma e sangha. Seguimos a direção do verdadeiro cessar e dos verdadeiros
caminhos mentais que os budas realizaram, e a sangha faz parte disso. E para nos
assegurarmos de que não teremos renascimentos piores, procuramos nos abster
de comportamentos destrutivos.

Mesmo que venhamos a ter novas vidas humanas preciosas, ou mesmo um


renascimento em reinos celestiais, nos reinos dos deuses, essas vidas ainda serão
repletas de sofrimento. Afinal, ainda estaremos no samsara e qualquer prazer ou
felicidade será passageira, não durará e não nos deixará satisfeitos.

Esse é um ponto muito importante, porque com o nível inicial de motivação é


muito fácil nos apegarmos à vida humana preciosa. Podemos rezar apenas para
termos renascimentos maravilhosos em que possamos estar com nossos amigos e
professores espirituais e estudar esse lindo e maravilhoso dharma. Mas isso ainda
é apego ao samsara, e no samsara os prazeres terminam em sofrimento da
mudança. Além disso também temos o sofrimento que tudo permeia, todos os
momentos são repletos de confusão, o faz com que os altos e baixos do samsara se
perpetuem.

Por mais difícil que seja almejarmos com sinceridade, do fundo do coração, um
renascimento humano precioso, é ainda mais difícil trabalhar com honestidade, e
sem apego à vida humana, para nos liberarmos do samsara. Não devemos de forma
alguma trivializar a renúncia, o desapego ao samsara. Não importa o quão
maravilhosos sejam nossos amigos e mentores espirituais, são todos
impermanentes. Não dá pra ficar pra sempre com as pessoas. Milarepa não
conseguiu ficar pra sempre com Marpa. Ele teve que deixá-lo; essa é a parte ruim
do apego.

Buscamos uma vida humana preciosa como um degrau para a liberação ou


iluminação, ou, como disse Togme Zangpo, como uma embarcação que servirá para
atravessarmos o oceano do samsara. Mas não podemos nos apegar à nossa
embarcação. Quando chegarmos ao nosso destino, temos que deixá-la, sem
maiores dilemas.

O nível de motivação avançado é ainda mais difícil. Uma vez que tenhamos atingido
a liberação, é fácil simplesmente relaxarmos e aproveitarmos a experiência de
felicidade imaculada. Mas no nível avançado, pensamos em todas os seres, todas as
nossas mães, e, com bodhichitta, almejamos trabalhar mais. Com bodhichitta, a
realização da vacuidade e as seis atitudes de vasto alcance, trabalhamos para
atingirmos a iluminação e ajudar a todos os seres.

Precisamos ir além dos dois extremos do samsara e nirvana, o que é muito difícil e
requer que reconheçamos que a vida humana preciosas e a liberação são apenas
paradas em nosso caminho para a iluminação. Não há como atingirmos a
iluminação sem passarmos por isso.

Hoje em dia, podemos ler, ouvir e aprender facilmente sobre os estágios do


caminho. Mas não é só porque aprendemos sobre esses estágios que os
internalizamos e que será fácil sentimos os sucessivos níveis de motivação. Isso
leva muitos anos! Sentir, com sinceramente, esses níveis de motivação é um feito
muito grande, até mesmo sentir a motivação inicial.

Isto é repetido o tempo todo: que a única forma de progredir é ouvir, estudar e
refletir sobre os ensinamentos. Só assim conseguiremos entendê-los e integrá-los à
nossa vida através da meditação. Esse processo nos levará a realmente sentir esses
níveis de motivação e não apenas conhecê-los superficialmente.

Em seguida, vimos dois métodos para desenvolvermos bodhichitta, e depois


começamos a explicar o comportamento do bodhisattva, começando com formas
de lidar com o mal que nos é afligido. Por vários versos, Togme Zangpo nos mostra
a importância de termos paciência e não ficarmos com raiva, além da prática do
dar e receber. Nessa prática, recebemos o sofrimento dos outros e lhes damos os
potenciais positivos que desenvolvemos através de ações construtivas. Ao invés de
respondermos às pessoas que nos prejudicam com críticas e pensamentos
negativos, destacamos suas boas qualidades. Um outro método é considerar essas
pessoas nossos professores, que nos permitem reconhecer e corrigir nossas falhas.

Duas Situações Críticas na Prática do Dharma

A sessão seguinte trata de duas situações críticas na prática do dharma, às quais


temos que estar muito atentos: quando as coisas vão muito mal e quando as coisas
vão muito bem. Quando as coisas vão mal, nos desencorajamos, e quando vão bem,
ficamos excessivamente entusiasmados e arrogantes. Reagimos exageradamente
às oito coisas transitórias da vida, ou seja, aos “oito dharmas mundanos”. Ficamos
muito chateados com fatos negativos e muito animados com fatos positivos.

(18) A prática de um bodhisattva é, mesmo quando não tiver como se


sustentar e for constantemente insultado pelas pessoas, ou quando tiver uma
terrível doença ou (for) atormentado por espíritos, aceitar, em troca, as forças
negativas e o sofrimento dos seres errantes, e não se desencorajar.

Temos aqui, mais uma referência à prática do tonglen, de tomar o sofrimento dos
outros e dar-lhes nossa felicidade. Imaginem que fossemos muito pobres, doentes,
constantemente insultados e desprezados por outras pessoas e assombrados por
fantasmas, se ficássemos pensando apenas em nós mesmos, nossa visão seria
muito limitada. Seríamos tomados pelo pensamento “pobre de mim” e, além das
dificuldades normais, ainda sentiríamos um tremenda infelicidade. Por outro lado,
se pensássemos em todos os que passam pelos mesmos problemas e ampliássemos
nossa visão para além do “pobre de mim”, para todos os seres, a forma como
viveríamos esse sofrimento seria muito diferente.

Alguns de nós, provavelmente já experimentaram algo parecido quando eram


adolescentes. Se fossemos adolescentes e nossos pais fossem alcoólicos, por
exemplo, provavelmente acharíamos que éramos a única pessoa no mundo com
esse problema. Nos sentiríamos isolados, sozinhos e extremamente infelizes. Mas
quando tomamos consciência de que muitas outras pessoas passam pelo mesmo
problema, nosso escopo fica muito maior. Podemos ir a um grupo de apoio, onde
várias pessoas têm o mesmo problema, e passamos a pensar no problema de todas.
Assim, não nos sentimos mais sozinhos e buscamos uma solução para todas as
pessoas. Nossa forma de vivenciar o problema muda muito!

Expandimos nosso escopo ao nos imaginar trocando de lugar com os outros. Para
isso, precisamos estar interessados em eliminar o sofrimento e em expandir a base
sobre a qual rotulamos o “eu” — de um indivíduo para todos os indivíduos. Além
disso, precisamos aceitar as forças negativas e o sofrimento de todos os seres
sencientes; só então, não nos desencorajaremos. O que nos desencoraja não é
pensar em todos os seres, o que nos desencoraja é pensar “pobre de mim”.

Quando, preocupados em eliminar o sofrimento, pensarmos que todos os seres são


uma base apropriada para o rótulo “eu”, é importante que tenhamos a
compreensão da vacuidade do “eu”. Não é como se ao invés de termos um pequeno
“eu” sólido agora tivéssemos um enorme “eu” sólido, que engloba a todos. Isso não
tem nada a ver com o que estamos almejando, e seria um grande erro. Não é que
agora “eu sou todas as pessoas e vou tomar o mundo!” Se pensarmos assim,
ficaremos ainda mais desencorajados.

No entanto, podemos expandir o âmbito da base sobre a qual rotulamos o “eu”


convencional. Por exemplo, podemos rotular o “eu” convencional usando como
base nós mesmos como indivíduos. No caso do Patrício, por exemplo, ele poderia
dizer, e seria verdade, “eu sou Patrício e estou trabalhando para superar o
sofrimento do Patrício.” E também poderia dizer “Sou um morador de Xalapa” ou
“Sou um morador do México”. Todas essas bases são válidas para rotularmos o
“eu”. Seria apropriado trabalhar para eliminar o sofrimento das pessoas desta
cidade ou país. Mas ele poderia estender ainda mais a sua base de designação, para
“eu sou um ser humano” ou “eu sou um ser senciente” e, assim, trabalhar para
eliminar os problemas que afligem a todos os seres.

Quando trabalhamos para melhorar o meio ambiente e eliminar a poluição, não


estamos trabalhando para resolver apenas o nosso problema, porque esse é um
problema que aflige todos os habitantes do planeta, inclusive os animais.
Similarmente, podemos praticar trocar de lugar com os outros trocando com quem
nos identificamos e para quem trabalhamos para eliminar o sofrimento e trazer
felicidade. Essa é maneira como Sua Santidade o Dalai Lama explica a validade de
expandirmos nossa preocupação a todos os seres. “Sou um ser senciente preso ao
samsara” — está correto, não está? Então seria apropriado dizer que quero ajudar
todos os seres sencientes a saírem do samsara porque eu sou um desses seres. É
uma maneira muito boa de abordarmos o tonglen.

Obviamente, é uma enorme incumbência liberar todos os seres senciente do


universo e levá-los à iluminação. Mas, digamos que nossa tarefa fosse um pouco
menor; se pensássemos em termos do “eu” sólido, ainda assim nos
desencorajaríamos. “ Eu jamais conseguiria fazer isso!” Mas, sem o equívoco de
achar que existe um “eu” sólido, separado de tudo o mais é possível simplesmente
fazer o que tem de ser feito. Acredito que esta é a chave para assumirmos tamanha
incumbência: Simplesmente fazermos o que tem de ser feito.

Eu moro na Alemanha, e a imagem que me vem à mente é das cidades totalmente


destruídas após a Segunda Guerra Mundial. Fico tentando imaginar como eles
conseguiram reconstruir essas cidades! Digamos que fossemos um morador de
Dresden, que foi totalmente destruída por incêndios; será que cuidaríamos apenas
de nossa casinha? Não, isso não faria sentido, não em uma cidade sem qualquer
infraestrutura. Não daria pra viver assim, pois somos totalmente interconectados.
Então, as pessoas simplesmente fizeram o que tinha que ser feito, trabalharam
juntas sem se intimidar pelo pensamento “E agora? Como poderemos reconstruir a
cidade?” Elas simplesmente reconstruíram, e gradualmente conseguiram terminar.
Outra situação crítica é nosso ego inflar e ficarmos prepotentes quando coisas
maravilhosas acontecem conosco. É disso que o próximo verso trata:
(19) A prática de um bodhisattva é, mesmo quando for docemente elogiado,
cumprimentado por muitos seres errantes, ou quando tiver (riquezas)
comparáveis à fortuna de Vaishravana (o Guardião da Riqueza), nunca ser
dissimulado e dizer que a prosperidade mundana não tem essência.

Podemos ficar muito ricos ou famosos e muitas pessoas nos elogiarem dizendo que
somos maravilhosos e que nosso trabalho é incrível, algumas podem até mesmo se
curvar perante nós. Para não ficarmos presunçosos, Togme Zangpo diz que
precisamos perceber que isso tudo não tem essência. Fama e elogios podem,
inclusive, ser um obstáculo. Vejam os atores e cantores muito famosos; eles não
conseguem nem sair de casa sem serem incomodados por dezenas de paparazzi
querendo sua foto. E ainda têm os fãs que gritam e correm atrás deles, tentando até
rasgar suas roupas!! É horrível!

Mesmo quando somos conhecidos apenas em uma determinada área, quanto mais
famosos formos, mais demandas haverão sobre o nosso tempo. Haverá mais
trabalho, mais emails, mais obrigações e convites, e tudo isso pode acabar nos
assoberbando. Não conseguiremos fazer nada do que queremos porque todo
mundo demandará nosso tempo, não teremos um tempo nosso. Se formos
extremamente ricos, sempre haverão pessoas nos incomodando, tentando tomar
nosso dinheiro. E podemos achar que ninguém gosta realmente da gente, que
querem nossa amizade apenas pelo dinheiro.

Para não ficarmos prepotentes, precisamos reconhecer as desvantagens dos


elogios, da fama e do dinheiro, sem falar que tudo isso não tem essência. Além de
não gerarem felicidade genuína, não duram. Assim como ganhamos, podemos
perder. É como o exemplo budista de seres divinos que nascem em reinos
celestiais e depois caem.

Para não nos desencorajarmos quando as coisas vão mal, tomamos o sofrimento e
cultivamos compaixão por aqueles que têm problemas semelhantes. Quando as
coisas vão bem, é importante não sermos presunçosos, ver que existem
desvantagens e que nada disso tem essência. E quando temos dinheiro, fama e
várias circunstâncias favoráveis, devemos reconhecer que isso também apresenta
vantagens. Podemos, e devemos, usar essas vantagens para beneficiar os outros, ao
invés de nos tornarmos prepotentes. Tendo dinheiro, podemos ajudar muitas
iniciativas espirituais, por exemplo.

Superando a Hostilidade e o Apego

Outras situações difíceis que um aspirante a bodhisattva tem que enfrentar são as
que envolvem hostilidade e apego. Togme Zangpo dedica alguns versos a isso.

(20) A prática de um bodhisattva é domar seu continuum mental com as forças


armadas do amor e da compaixão, porque, se não subjugarmos o inimigo
interno — que é a nossa própria hostilidade — mesmo que subjuguemos o
inimigo externo, outros surgirão.

Shantideva também usa a imagem de que o verdadeiro adversário é o adversário


interno, ou seja, nossas emoções perturbadoras, e coloca a paciência como uma
forma de superarmos a raiva e a hostilidade. O amor, a compaixão e a paciência são
todas forças opositoras à raiva. Shantideva disse que não há como cobrirmos todo
a terra com couro para não ferirmos nossos pés nos espinhos. Na verdade, só o que
precisamos fazer é cobrir nosso próprio pé com couro. Assim, poderemos ir a
qualquer lugar sem nos machucar. Da mesma forma, nunca seremos capazes de
nos livrar de todos os inimigos externos, mas se nos livrarmos do inimigo interno,
da raiva, poderemos ir a qualquer lugar sem nos machucarmos.

O verdadeiro inimigo são os obstáculos internos — nossas próprias emoções


destrutivas — e as forças opositoras são as forças armadas que lutam contra elas.
O Buda era da casta dos guerreiros, por isso temos muitas imagens marciais no
budismo, o que frequentemente choca as pessoas. Muitos mestres indianos, como
Shantideva, continuaram a usar a analogia das batalhas. E mestres tibetanos, como
Togme Zangpo, fazem o mesmo, usando analogias como a das forças armadas do
amor e da compaixão.

Acho que as analogias marciais podem ser particularmente úteis quando lidamos
com nossas próprias emoções perturbadoras, porque realmente é como se
estivéssemos travando uma batalha. É uma batalha interna e precisamos lutar
muito. É perigosa, e algumas vezes nos machucamos. Se nos engajarmos em
práticas de purificação, todo tipo de coisas desagradáveis podem surgir, mas se
quisermos nos livrar das emoções perturbadoras mais entranhadas, precisamos
lidar com todas.

Se formos lutar, precisamos de muita coragem. Isso vale não só para batalhas
externas, mas também para as internas. Quando vemos a tradução tibetana da
palavra bodhisattva, percebemos que acrescentaram uma sílaba no final, mudando
o significado da palavra para corajoso, valente. Esse não é precisamente o
significado no Sânscrito. A palavra tibetana para bodhisattva é jang-chub sem-pa. A
primeira parte de palavra, jang-chub , é o equivalente tibetano à bodhi, que
significa iluminação. A segunda parte, sem-pa, seria sattva, o que significa um ser
que tem uma mente. No entanto, os tibetanos trocaram o pa por dpa’, que tem
exatamente a mesma pronúncia, mas que significa corajoso ou valente.

Acho que todos sabemos disso por experiência própria. Podemos deixar de ter
raiva de uma determinada pessoa ou situação, mas continuaremos a ficar com
raiva em outras situações no futuro. Conseguir superar um episódio de raiva não
resolve a situação, precisamos continuar lutando.

(21) A prática de um bodhisattva é abandonar qualquer objeto que faça seu


apego aumentar, pois os objetos do desejo são como água salgada: quanto
mais (os) desfrutamos, (mais) a sede aumenta.
Vimos isso quando falamos do sofrimento da mudança. Prazeres mundanos, coisas
pelas quais temos grande apego e desejo, nunca irão nos satisfazer. Nunca teremos
o bastante. Podemos ter bastante comida e sexo por um tempo, mas depois vamos
querer mais. Isto refere-se especificamente aos objetos que fazem nosso apego
aumentar. Existe uma diferença em desejo e apego. Desejo é por algo que não
temos, e apego é algo temos e não queremos perder.

Todos temos coisas as quais somos muito apegados. Tenho um amigo que é
inacreditavelmente apegado a livros de dharma e compra-os compulsivamente,
mesmo que nunca tenha tempo de ler. Togme Zangpo diz que o remédio para isso é
abandonar o objeto. Sugeri a meu amigo que doasse seus livros para uma
instituição, como um centro de dharma, por exemplo, onde outras pessoas
pudessem se beneficiar deles. Quanto mais ele fica com seus livros, mais apegado
fica e mais ele compra! Quando somos muito apegados a alguma coisa, o que quer
que seja, o melhor remédio é compartilhar. Podemos doar roupas que nunca
usamos e até abrir nossa casa para atividades do dharma.

Togme Zangpo sempre diz que os objetos do desejo, aos quais somos apegados, são
como água salgada. Quanto mais tomamos, mais sede temos. Quanto mais objetos
de apego acumulamos, mais apegados ficamos. Queremos mais e mais, e nunca
temos o suficiente. Quem aqui acha que tem dinheiro suficiente no banco? Sempre
queremos mais e mais.

Obviamente, apenas doar nossos objetos não é a solução mais profunda, porque
ainda podemos ficar com o desejo de tê-los de volta. Mas, como uma forma inicial
de lidar com a questão, pode ser útil. Em um verso anterior, Togme Zangpo disse
que somos muito apegados à nossa terra natal, onde o apego aos amigos nos
deixa agitados como a água, e por isso seria melhor deixarmos a terra natal.
Isso também está relacionado à este verso.

Acabou de me ocorrer um exemplo: existem pais que não largam os filhos, e quanto
mais ficam juntos, mais apegados ficam. Mas é claro que é importante eles terem
vida própria. Quando pequenos, precisamos deixá-los ir à escola, dormir na casa
dos amigos e, mais tarde, fazer faculdade em outra cidade. Também precisamos
nos desapegar para deixá-los casar e mudar para outro lugar. Existem muito pais
que não aprovam os namorados ou namoradas dos filhos, não importa quem seja.
Isto é porque são muito apegados e não querem “perdê-los”.

Claro que podemos perguntar: “Será que Togme Zangpo realmente queria que
abandonássemos nosso computador e celular?” Isso nos dá muito o que pensar, já
que é uma questão cada vez mais proeminente. Existem pessoas que são tão
viciadas que ficam o tempo todo olhando o celular, ou então deixam o computador
o dia todo ligado e conectado à internet para que possam ver os e-mails assim que
chegam. E pode ser que eles sejam como eu, que adoro notícias, e de tempos em
tempos verifico se têm notícias novas na internet ou televisão. Muitas pessoas são
viciadas em estações de rádio especializadas em notícias, e ouvem a mesma
história várias vezes. O conselho de abandonar essas coisas pode ser muito útil,
mesmo que não abandonemos completamente. Eu acho muito difícil verificar os
emails ou as notícias apenas uma vez ao dia ou usar o celular apenas quando
necessário.

Um último exemplo relacionado aos objetos de apego tem a ver com comida.
Quando somos muito apegados a chocolates, biscoitos e guloseimas em geral, e
precisamos fazer uma dieta, será extremamente difícil não comê-las se as tivermos
em casa. A melhor e talvez única forma de mantermos a dieta é simplesmente não
comprar essas coisas. Simplesmente não ter guloseimas em casa, pois, se tivermos,
vamos comer. Não é verdade? Tenho certeza que todos já passaram por isso se
algum dia fizeram uma dieta.

Desenvolvendo a Bodhichitta Mais Profunda, A Realização da


Vacuidade

A próxima sessão cobre o desenvolvimento da bodhichitta mais profunda. Temos a


bodhichitta convencional, ou relativa, que visa atingir a iluminação para beneficiar
todos os seres, e temos a bodhichitta mais profunda, que visa a vacuidade,
especificamente a vacuidade da mente. Isso é essencial à nossa prática de
bodhisattva.

(22) A prática de um bodhisattva é não trazer à mente qualidades inerentes


dos objetos e da mente que os tomou (como objetos), percebendo apenas
como as coisas são. Não importa como as coisas parecem (ser), elas vêm de
nossa mente; e a mente em si é, desde o início, separada dos extremos da
fabricação mental.

Quando falamos de vacuidade, dentro do budismo, nos referimos à ausência de


algo, algo que nunca esteve lá. Esse algo é a maneira impossível de estabelecer ou
considerar a existência de objetos válidos e conhecíveis como sendo aquilo que
parecem ser. Formas impossíveis de existência nunca existiram, não é? O exemplo
mais simples é pensar: “Sou a pessoa mais importante do universo, porque sou o
centro do universo. E já que sou tão importante, as coisas devem sempre estar do
meu jeito. Todos devem sempre me dar amor e atenção.” Impossível! Mesmo que
essa pareça ser a realidade, por conta da importância que damos a nós mesmos,
ninguém pode se estabelecer como o centro do universo; todos somo desprovidos
de tal forma impossível de existência. Nunca foi assim.

Para compreendermos a bodhichitta mais profunda, precisamos perceber que


existem formas cada vez mais sutis de considerarmos que os objetos válidos
conhecidos existem da forma que parecem existir. Não é fácil reconhecermos esses
níveis mais sutis. Portanto, primeiro precisamos refutar e esclarecer os níveis mais
grosseiros, no sentido de perceber que não correspondem a como as coisas
existem de fato. E então trabalharmos em níveis cada vez mais sutis.

Podemos olhar esse verso sob o ponto de vista Sakya, pelo qual as coisas podem
aparecer como objetos externos que surgem de uma fonte própria, e a mente que
os percebe também surge de uma fonte própria e totalmente separada. Por
exemplo, podemos achar que uma determinada pessoa é terrível e que isso vem
dela, a vemos como se realmente tivesse essa característica, inerentemente, como
se realmente fosse a pessoa terrível que aparece para nós, e que é assim que
aparece para todo mundo, não apenas para a nossa percepção. O texto diz para não
prestarmos atenção nisso. Não devemos trazer isso à mente, devemos perceber
como as coisas são. Em outras palavras, não importa que apareçam dessa forma
dualística, essas aparências vêm de nossa própria mente. A aparência dessa
pessoa como uma pessoa terrível e a mente que a vê como terrível vêm da mesma
semente kármica em nossa mente, e não de duas fontes diferentes.

Mas é importante notarmos que a mente não é um projetor verdadeiramente


existente de aparências. A mente em si também é desprovida de existência como
entidade verdadeiramente encontrável. A natureza pura da mente é não existir
como algo que projeta essas fabricações mentais, essas aparências ridículas de
existência dual. Essa seria a maneira Sakya de entender o verso, que certamente foi
o que Togme Zangpo tinha em mente quando o escreveu, já que seguia a escola
Sakya do budismo tibetano. Encontramos uma forma semelhante de discutirmos a
vacuidade no Treinamento da Mente em Sete Pontos, para o qual Togme Zangpo
também escreveu um comentário, e que também explica a vacuidade sob o ponto
de vista Sakya.

Se interpretarmos o verso usando a abordagem Gelugpa mais recente, podemos


compreendê-lo em um nível diferente. Usando o exemplo acima, a pessoa parece
possuir alguma característica inerente que, por si só, é responsável por ela
aparecer para mim como uma pessoa terrível. Não devemos deixar que nossa
mente se apegue a isso, uma vez que não é assim que as coisas são . Essa
aparência enganadora está vindo de nossa própria mente — quer seja dos
potenciais kármicos ou do hábito constante de ansiarmos que as coisas existam de
formas impossíveis. Da forma como as coisas realmente são, a pessoa parece
terrível por causa de uma característica pessoal inerente somada ao rótulo mental
do nosso conceito de “terrível”; ou, em um nível mais sutil, simplesmente por conta
do rótulo mental do nosso conceito de “terrível”.

E mais, a mente em si não se encaixa nos extremos da fabricação mental, ou


seja, ela é destituída de qualquer forma impossível e mentalmente fabricada de
existência. Essa passagem refere-se à vacuidade da natureza convencional da
mente (a atividade mental de dar surgimento às aparências e conhecê-las) e da
natureza mais profunda da mente (a vacuidade).

Esse verso é muito profundo e requer muito estudo. Mesmo que não
compreendamos muito bem a explicação, podemos apreciar a profundidade dos
ensinamentos sobre a vacuidade e os vários níveis em que podemos compreendê-
los. Assim, desenvolveremos respeito e interesse em aprofundar e compreender o
assunto.

Tudo o que falamos aqui é muito importante para conseguirmos ajudar os demais.
Se pensarmos que existe um pobre ser sofrendo lá fora, e que existe algo
encontrável nele que, por si só, faça com que ele seja um pobre sofredor, ele nunca
poderá mudar, não importa o que tentemos fazer para ajudar. Esse tipo de
entendimento é realmente muito importante, não é?

Quando estamos investigando a vacuidade e tentando compreendê-la, existem


duas fases de compreensão. A primeira é quando nossa concentração está
totalmente absorvida na compreensão de que “Não existe tal coisa”, tal maneira
impossível de existir. Para nossa mente ficar totalmente absorvida em “não existe
tal coisa”, nossa compreensão deve estar baseada em uma firme convicção, que
vem da investigação e da lógica de que essa forma de existência é realmente
impossível. Por exemplo, quando dizemos “Não tem chocolate em casa”, podemos
não estar muito convencidos. Mas se procurarmos em toda a casa e não acharmos
chocolate, nossa convicção será muito maior. Podemos também pensar: “não tem
nada interessante na TV”. Podemos chegar a essa conclusão antes mesmo de
procurar por um programa interessante ou podemos procurar em todos os canais.
Quando procuramos em todos os canais e mesmo assim não encontramos nada
interessante, ficamos ainda mais convencidos de que realmente “não há nada
interessante passando na TV”.

Essa é a primeira fase, a absorção total em “não existe tal coisa”, ou seja, na
vacuidade. Quando focamos nisso, é como focarmos em “não tem chocolate em
casa”. O que aparece? Nada. E concluímos que realmente não tem chocolate em
casa. Portanto, quando estamos totalmente absorvidos na vacuidade, nada aparece.
E então temos a fase do atingimento subsequente. Essa fase também é chamada de
fase “pós-meditativa”, mas essa não é uma tradução adequada, pois ainda estamos
meditando.

Depois da absorção total, percebemos que tudo é uma ilusão. Apesar de parecer
haver algo interessante na TV, é como uma ilusão. Apesar das coisas parecerem
existir de uma maneira sólida, por si só, elas são como uma ilusão. Uma ilusão
aparece, mas não existe da forma que parece existir. Ela parece ser algo sólido, mas
não é.

(23) A prática de um bodhisattva é, ao encontrar com objetos agradáveis, não


tomá-los como verdadeiramente existentes, mesmo que pareçam (ser) bonitos
como um arco-íris de verão, e (assim) livrar-se do aferramento e do apego.

Quando encontramos objetos [dos sentidos] bonitos, sejam eles pessoas ou coisas,
o conselho é tentar perceber que não possuem uma qualidade inerente e
encontrável que os faça bonitos por si só. Objetos não são inerentemente
maravilhosos, fazendo com que tenhamos que tê-los. Não há nada neles que os faça
atraentes e poderosos por si só, independente de qualquer outra coisa. Talvez os
objetos possam parecer inerentemente bonitos, atraentes e maravilhosos por si só,
mas precisamos perceber que eles não existem dessa forma. Isso seria impossível,
eles apenas parecem ser assim, como uma ilusão. A analogia que usamos aqui é a
de um arco-íris de verão. Um arco-íris é lindo e parece existir de forma sólida e ser
inerentemente bonito. Mas não há nada sólido nele. Quanto mais o examinamos,
mais percebemos que não há nada a ser encontrado.
Uma palavra importante aqui é como. As coisas são como uma ilusão. Não é que
todas as coisas sejam uma ilusão. Existe uma grande diferença entre uma ilusão e
algo que é como uma ilusão. Shantideva usa o exemplo de um mágico criando a
ilusão de um cavalo; matar a ilusão do cavalo e matar um cavalo real é bem
diferente em termos das consequências kármicas. As consequências dependem de
realmente estarmos afetando alguém quando executamos esse ato. Portanto, tudo
é como uma ilusão, como um arco-íris de verão.

Dessa forma, tentamos nos livrar do aferramento e do apego que sentimos


automaticamente, mesmo que já tenhamos tido uma experiência inicial de
cognição não conceitual da vacuidade. Essa experiência nos livra do apego que
pode ter tido como base alguma doutrina de outra escola não budista; no entanto,
ainda teremos o apego que surge automaticamente, então precisamos continuar
trabalhando com a vacuidade.

Consequentemente, desenvolvemos a compreensão de que a prática mencionada


por Togme Zangpo nos dois versos anteriores, onde nos livramos dos objetos que
causam apego e anseio, é apenas uma solução temporária. A solução mais profunda
é realmente desenvolvermos a compreensão da vacuidade dos objetos
aparentemente bonitos, percebendo que não existem dessa maneira impossível,
que não são inerentemente bonitos e agradáveis, por si só.

(24) A prática de um bodhisattva é, quando encontrar situações adversas, vê-


las como enganadoras, pois muitos sofrimentos são semelhantes à morte de
um filho em um sonho, e tomar (tais) aparências enganadoras como sendo
verdadeiras é um cansativo desperdício.

Isso refere-se à situação oposta, ou seja, a quando encontramos objetos que


achamos desagradáveis ou condições achamos adversas. Precisamos ver que essas
coisas também são como uma ilusão. O objeto desagradável e a condição adversa
parecem ser autoestabelecidos como desagradável e adverso, mas isso é um
engano. É um engano porque a forma como aparecem não corresponde à forma
como realmente existem. Pensamos que existem da forma que aparecem, por isso
dizemos que nos enganam.

Perceber os vários sofrimentos como inerentemente horríveis, e sentir que não


conseguimos dar conta, é semelhante à morte de um filho em sonho. Quando
vivenciamos a morte de um filho em sonho, certamente parece real e horrível, mas
então acordamos e vemos que foi só um sonho. A aparência que vimos no sonho
era enganosa, pois parecia real, mas acreditamos nela. Da mesma forma, apesar do
estado desperto não ser igual a um sonho, nele as coisas também têm uma
aparência enganosa.

Este verso refere-se especificamente à condições adversas e a como as coisas


difíceis que acontecem conosco parecem ser verdadeiramente existentes quando
não são.
As condições adversas que encontramos parecem muito horríveis, mas são
horríveis simplesmente pelo poder do rótulo mental “horrível”. O que é na verdade
uma situação horrível? Uma situação horrível é aquilo a que nos referimos quando
usamos o rótulo “horrível”. Mas não há nada na situação em si que a faça ser
horrível. Afinal, fomos nós e um grupo de pessoas na nossa sociedade que criamos
o conceito de horrível. Definimos o termo, colocamos no dicionário e usamos para
rotular coisas. Mas o conceito de “horrível”, como diz o verso, é criado pela mente.
É válido quando falamos de uma situação difícil, uma situação horrível, em que
todos concordam e usam tal terminologia. Convencionalmente é válida. Mas parece
que existe algo na situação em si que faz com que seja horrível. Isso é enganoso, é
uma aparência que se assemelha a uma ilusão. Quando consideramos
essas aparências enganosas verdadeiras, é um cansativo desperdício. É um
desperdício de tempo, pois só nos deixa mais cansados e exacerba nosso
sofrimento

Por exemplo, se batermos com o pé em um móvel, dói. Claro que dói, mas seria um
desperdício cansativo levar isso ao extremo de ficar pulando e gritando “que coisa
horrível que aconteceu comigo”. Certamente não nos faria sentir melhor. Apenas
prolongaria nosso sofrimento. Eu bati o pé, causa e efeito, ele dói. E daí? Alguma
novidade? O que eu devia esperar do samsara?

Perguntas
O verso 21 fala em abandonarmos os objetos que fazem com que nosso aferramento
e apego aumentem. Qual é a diferença entre esses dois termos e os termos anseio e
desejo?

Existem muitos termos técnicos no budismo, que parecem similares mas tem
definições e usos muito específicos. Quando falamos em nos aferrarmos, falamos
em segurar fortemente alguma coisa que gostamos. A tradição Sakya aponta
quatro coisas principais às quais devemos deixar de nos aferrar: as coisas desta
vida, as coisas das vidas futuras, nossos objetivos egoístas e formas impossíveis de
existência. O termos “aferramento” também é utilizado no contexto da cognição
conceitual. Quando pensamos em algo como membro de uma categoria conceitual,
nosso cachorro na categoria de um animal de estimação, por exemplo, dizemos que
o objeto ao qual essa cognição conceitual se aferra é nosso animal de estimação.

Apego é quando já temos algo que consideramos desejável, exageramos suas


qualidades e não o largamos. Desejo é quando não temos algo que queremos,
provavelmente exageramos suas boas qualidades e ansiamos tê-lo. Anseio é
literalmente a palavra “sede” e é usado especificamente em relação a sentimentos
de felicidade e infelicidade. Quando experimentamos um pouquinho de felicidade,
temos tanta sede que não queremos que ela acabe. E, quando experimentamos
infelicidade, temos sede de separação.

Podemos perceber que a análise dos vários estados mentais pela psicologia budista
é muito sofisticada. Existem muitas distinções e infelizmente nem sempre
possuímos os termos específico em nosso idioma. Quando conhecemos a
terminologia original e sua definição, podemos realmente entender do que se trata
o texto em questão.
Acho muito difícil entender a vacuidade, mas quando ouço seus exemplos, penso:
“Claro, é tudo como um sonho”. Mas no dia-a-dia não consigo integrar essa
compreensão. Como fazer isso?

A única forma de integrar é a meditação a respeito disso, ou seja, praticar


continuamente e pensar no assunto o máximo possível. Uma vez que tenhamos
compreendido o assunto através da meditação, podemos perceber que as situações
que enfrentamos são semelhantes a ilusões. Quanto mais aplicarmos isso, mais
natural ficará, e menos incomodados ficaremos com os altos e baixos do samsara.

Por exemplo, recentemente fui convidado a visitar e ensinar em Bogotá, Colombia,


antes desta viagem ao México. Sua Santidade o Dalai Lama visitará o país em
algumas semanas e eles disseram que eu poderia ajudá-los a se prepararem. Os
dias que eu estaria lá seriam os dias da Páscoa, então lhes perguntei se realmente
teriam tempo para organizar e comparecer ao curso. Certificaram-me de que não
haveria problema. Mas pensei nesse curso como um sonho e não lhe dei muita
realidade. Comprei a passagem e fiz os preparativos.

Algumas semanas antes da data que deveria viajar, recebi um email da Colômbia
dizendo que seria muito difícil organizarem duas visitas, a minha e a de Sua
Santidade. Eles estavam cancelando a minha viagem e não os culpei. Apenas
respondi: “Eu disse!” Verifiquei quanto teria que pagar para cancelar a passagem e
como isso afetaria minha vinda para o México, sem maiores dilemas. Não fiquei
feliz e nem triste.

Mas quando lhes falei das taxas que teriam que pagar pelo cancelamento da
passagem, responderam dizendo que então eu fosse. De novo, não fiquei feliz e
nem triste. Tudo certo, então eu iria, e não fiquei pensando no assunto.

Porém, doze dias antes da data da viagem, recebi um novo email dizendo que eles
perguntaram quem poderia comparecer aos ensinamentos e nem o tradutor
estaria disponível. Perceberam que realmente precisavam cancelar. Foi como uma
ilusão, não fiquei nem feliz e nem triste. Simplesmente cancelei a passagem. Não
sofri e nem fiquei animado. Não foi nada de mais, foi como um sonho, sobre o qual
não precisamos pensar. Se conseguirmos aplicar os ensinamentos sobre a
vacuidade e sobre tudo ser como uma ilusão, veremos que são incrivelmente
eficientes, mas é preciso nos familiarizarmos antes com eles.

As Seis Perfeições e A Prática Diária


Versos 25 a 37 e Versos Finais
As Seis Perfeições

Nos versos seguintes, Togme Zangpo fala sobre as seis atitudes de vasto alcance, as
assim chamadas “perfeições” ou “paramitas,” que é uma base muito importante
para nosso comportamento de bodhisattva. Os votos de bodhisattva, e
especialmente os votos secundários, são uma forma de conseguirmos praticar
essas seis perfeições.

(25) A prática de um bodhisattva é doar generosamente, sem esperar algo em


troca ou o amadurecimento de algum karma, pois se aqueles que desejam a
iluminação têm que doar até seu corpo, o que dizer de suas posses!

A primeira das seis perfeições (atitudes de vasto alcance) é a generosidade.


“Atitudes de vasto alcance” é uma tradução bem literal do termo em sânscrito, no
sentido de que esses estados mentais são de vasto alcance, ou seja, nos levam
muito longe; na verdade, nos levam à iluminação.

Para ser mais preciso, esses estados mentais podem nos levar tanto à liberação
quanto à iluminação. Nas escolas Hinayana, também temos essas perfeições, mas
com o objetivo de atingirmos a liberação, e logicamente ajudar os outros ao longo
do caminho. Consideramos que essas perfeições são Mahayana quando nossa
motivação é bodhichitta. Se formos cultivá-las no contexto Mahayana, é muito
importante que estejam baseadas neste ideal: bodhichitta. Em outras palavras, é
importante que nosso objetivo seja alcançar a iluminação para ajudar os outros ao
longo do caminho e, depois de iluminados, realmente conseguir ajudá-los da
melhor maneira possível.

Shantideva destaca um ponto muito importante quando diz que as seis perfeições
são atitudes e estados mentais, não ações. Conforme disse em Engajando-se no
Comportamento do Bodhisattva:

(V.9) Se a perfeição da generosidade fosse a erradicação da pobreza, como os


Guardiões poderiam tê-la atingido se os seres sencientes ainda passam fome?

(V.10) É dito que a perfeição da generosidade é uma mente disposta a doar


tudo o que é seu e também o resultado [kármico] da doação; portanto, é a
mente.

Uma vez que o importante é o desejo e a disposição de doar tudo o que temos,
podemos desenvolver essa perfeição mesmo quando não temos nada para dar. Por
exemplo, podemos pensar: “que todos possam se alegrar como esse lindo pôr do
sol” ou qualquer outra coisa com a qual nos alegramos. Também podemos nos
imaginar doando tudo o que os outros precisam. Mas, se realmente tivermos o que
doar, não é suficiente apenas imaginarmos que estamos doando. Temos que doar
de verdade!

Quando doamos com generosidade, é importante que o façamos sem esperar algo
em troca. Não é uma transação comercial, não estamos negociando ou dando
alguma coisa para receber algo em troca, mesmo que esse algo não seja material.
Às vezes queremos que a pessoa goste de nós, nos ame ou simplesmente nos
agradeça, mas não devemos esperar nada disso. Não é por isso que estamos
doando. Quando a mão dá comida à boca, não espera um obrigada ou qualquer
outra coisa em troca. Doamos simplesmente porque alguém está precisando. Se
pudermos doar o que os outros estão precisando, e isso não prejudicar ninguém,
devemos doar.

É como ver que têm louça suja na pia; não importa se a louça é nossa ou de outra
pessoa, ela precisa ser lavada. Então simplesmente lavamos.

Assim, quando fazemos uma doação, não devemos esperar que algum karma
amadureça. O fato é que o resultado da generosidade é riqueza, especialmente em
vidas futuras. Não é apropriado sermos generosos e doarmos para centros de
dharma, por exemplo, pensando que é um bom investimento para o futuro e que
seremos ricos nas próximas vidas. Além disso, é importante não ficarmos apegados
aos objetos que doamos ou insistir que a pessoa a quem os doamos use-os
conforme gostaríamos que usassem. Se demos um objeto de presente, a quem ele
pertence? A nós ou à pessoa a quem demos?

Portanto, como disse Togme Zangpo, se aqueles que desejam a iluminação têm
que doar até seu corpo, como o Buda Shakyamuni, que quando era um
bodhisattva avançado deu pedaços de seu corpo para alimentar uma tigresa
faminta, o que dizer de suas posses! Se queremos servir aos demais, não
podemos ter apego às nossas posses, nem mesmo ao nosso corpo.

Mas se não somos um bodhisattva avançado, devemos lembrar que “uma raposa
não pula onde pula um leão”. Se não estamos prontos para dar nosso corpo ou vida
aos outros, não devemos dar. É indiscutível que, se tentarmos fazer isso mas não
estivermos prontos, podemos desenvolver um estado mental muito negativo, que
de nada nos servirá. Inclusive, podemos fazer um teste para verificar o quão
avançados estamos em generosidade: quão dispostos estamos a alimentar um
mosquito quando ele pousa em nosso braço? A maioria das pessoas não está
disposta a deixar que o mosquito leve um pouco de seu sangue. Sua Santidade diz:
“Eles só levam uma pequena gota de sangue. Isso não é nada.”

Se só estamos dispostos a doar algo que não precisamos, não gostamos ou que está
sobrando, tipo “Estou cansado dessas roupas então vou doá-las a uma pessoa
pobre”, não alcançamos grande coisa. O ponto é estar disposto a doar algo que
realmente apreciamos, como nosso “precioso tempo”, por exemplo.

(26) A prática de um bodhisattva é guardar autodisciplina


sem objetivos mundanos, pois, se sem disciplina não conseguimos nem
satisfazer nossos próprios objetivos, querer satisfazer os objetivos alheios é
uma piada.

Autodisciplina ética é a próxima perfeição. É um estado mental que nos impede de


agir de forma destrutiva, e também é a força mental que se engaja em ações
construtivas para ajudar os outros. Quando pensamos sobre autodisciplina,
precisamos pensar em um sentido amplo, assim como fazemos no caso da
generosidade, onde não pensamos em doar apenas coisas materiais, mas também
nosso tempo, atenção, amor, ensinamentos, etc…
Togme Zangpo destaca que guardar autodisciplina ética, ou seja, procurarmos
agirmos de forma apropriada, é algo que precisa ser feito sem objetivos
mundanos. O que significa objetivos mundanos? Porque desenvolver disciplina?
Atletas desenvolvem disciplina e músicos também. É possível desenvolvermos
vários tipos de disciplina. Mas qual é o nosso objetivo ao desenvolvermos
disciplina ética? Será que o fazemos com um propósito mundano, para sermos
bons atletas e ganharmos medalhas ou para sermos músicos talentosos? Nosso
objetivo é desenvolver autodisciplina ética para sermos capazes de alcançar a
liberação ou iluminação e ajudar os outros. Começamos a ajudar quando ainda
estamos no caminho e ajudamos mais quando atingimos a iluminação.

Existem muitas formas mundanas de desenvolvermos autodisciplina ética.


Podemos, por exemplo, fortalecer nosso corpo como um halterofilista, treinando o
tempo todo apenas para sermos fortes. Também podemos treinar não comer
comidas gordurosas e que gostamos só para atrair um parceiro. Mas essas formas
de disciplina vêm da vaidade. Não é disso que estamos falando aqui. É por isso que
acrescento o termo “ética” à autodisciplina, porém mesmo a autodisciplina ética
pode ter um objetivo mundano. Por exemplo, podemos querer ser bons praticantes
budistas para que nosso professor goste de nós. Esse é um objetivo mundano, não
é? Lembrem-se, precisamos praticar as perfeições com bodhichitta, e não só com
bodhichitta convencional, mas com a bodhichitta mais profunda, a compreensão da
vacuidade. Portanto, não estamos cultivando disciplina para atender aos nossos
próprios objetivos egoístas.

Quando Togme Zangpo diz que não conseguimos satisfazer os próprios propósitos
sem autodisciplina ética, ele está se referindo aos objetivos espirituais do nível de
motivação inicial e intermediário. Nosso objetivo é ter um renascimento melhor,
uma vida humana preciosa e obter a liberação. Se, sem autodisciplina ética não
conseguimos alcançar essas coisas, como podemos sequer pensar em realizar os
objetivos alheios em termos de iluminação?

(27) A prática de um bodhisattva é criar o hábito de ser paciente, sem


hostilidade ou repulsa (em relação) à quem quer que seja, porque, para um
bodhisattva que deseja ser rico em força positiva, todos os que
o prejudicam são como tesouros de pedras preciosas.

A paciência é o estado mental de não ficar com raiva daqueles que nos prejudicam,
de não nos deixamos abater por todas as dificuldade que teremos até atingirmos a
iluminação e de não desanimamos com todas as dificuldades envolvidas em ajudar
os outros. Não é fácil ajudar os demais, por isso precisamos cultivar o hábito de
sermos pacientes. Esse é o significado da palavra “meditação”, precisamos
entender que seu verdadeiro significado é cultivar um hábito benéfico. Portanto,
praticamos repetidamente, fazemos da paciência um hábito. A forma como
desenvolvemos o hábito da paciência é não tendo hostilidade ou repulsa por quem
quer que seja. Não importa o quão difícil seja ajudar, não importa o quanto a
pessoa nos prejudique, evitamos ficar com raiva.
Conforme explica Sua Santidade o Dalai Lama, paciência e tolerância não são sinais
de fraqueza, são sinais de força. Ser paciente não significa deixar que os outros
ajam de maneira destrutiva ou pisem em nós. Significa conseguir distinguir entre a
pessoa e suas ações, e não ficar com raiva dela. Conforme disse Shantideva, se
houver uma situação difícil e pudermos fazer algo a respeito, porque ficar com
raiva? Apenas faça o que tem que ser feito. Mude-a. E se não houver nada que se
possa fazer, para que ficar com raiva? A raiva não vai ajudar.

Ter paciência, conforme diz Togme Zangpo, é causa para gerarmos uma tremenda
quantidade de força positiva. Para um bodhisattva que deseja ser rico em força
positiva (mérito), todos os que nos prejudicam são como tesouros de pedras
preciosas. Por que? Bom, como poderíamos desenvolver paciência se não
houvessem pessoas irritantes e difíceis? Encontramos ideias parecidas em outros
treinamentos mentais. Aqueles que nos fazem praticar paciência são como
tesouros, pois com eles podemos ficar ricos em força positiva, com a qual
poderemos alcançar a iluminação.

(28) A prática de um bodhisattva é exercer perseverança, a fonte das boas


qualidades, para servir ao propósito de todos os seres errantes. Pois vemos
que mesmo os shravakas e os pratyekabuddhas, que buscam atingir apenas o
seu próprio objetivo, têm tamanha perseverança que ignorariam até o fato de
suas cabeças estarem pegando fogo.

Perseverança é a quarta perfeição. A palavra sânscrita para essa atitude, “virya,”


está relacionada à palavra “vira”, que significa herói, à palavra latina “vir”, que
significa “homem” e à palavra portuguesa “viril”. Portanto, tem a conotação de
coragem heróica e vigor para engajar-se com energia e conquistar uma meta
positiva difícil de ser conquistada. Com essa atitude, persistimos e continuamos
com nosso trabalho espiritual, independente do quão difícil seja, sem nos
desencorajarmos, sem termos preguiça, sem sentirmo-nos inadequados e achar
que não vamos conseguir e sem procrastinar.

Nos alegramos com o que fazemos, perseverando especialmente nas atividades


construtivas. Essa é a fonte das boas qualidades, ou seja, de alcançarmos a
iluminação para o benefício de todos os seres.

Se os praticantes Hinayana, os shravakas e pratyekabuddhas, que trabalham


apenas para atingir a própria liberação, têm uma inacreditável coragem heróica e
perseverança e se esforçam para alcançar seu objetivo, nós, que estamos
trabalhando como bodhisattvas para beneficiar os outros, temos que ter ainda
mais de tudo isso.

Shravakas são os que têm a oportunidade de ouvir os ensinamentos do buda; já


os pratyekabuddhaspraticam seguindo seus instintos em tempos de trevas, quando
os ensinamento do buda não estão disponíveis. O exemplo dado aqui — e também
em textos anteriores — para demonstrar o tipo de perseverança e coragem que
esses shravakas and pratyekabuddhastêm, é que eles continuariam com sua
meditação, ou qualquer outra prática espiritual que estivessem fazendo, mesmo se
suas cabeças estivessem pegando fogo. Eles simplesmente ignorariam o fato,
ao invés de surtar e tentar apagar o fogo, e continuariam a meditar. Se eles
possuem tamanha perseverança heróica a ponto de não se distraírem com suas
próprias necessidades mundanas, nós, como bodhisattvas, precisamos ter ainda
mais.

Ignorar que sua cabeça está pegando fogo refere-se basicamente à renuncia.
Eles renunciam a essa preocupação mundana com o fogo na cabeça. O termo literal
é afastar-se. Claro, algumas pessoas podem interpretar isso como “afastar o fogo”
ou “apagar o fogo”, mas o significado não é esse. O significado é de renúncia.

(29) A prática de um bodhisattva é transformar em hábito a estabilidade


mental que supera com pureza as quatro (absorções) sem forma através da
compreensão de que um estado mental excepcionalmente perceptivo,
totalmente imbuído de um estado tranquilo e assentado, pode derrotar
completamente as aflições mentais.

Esse verso é cheio de jargões e termos técnicos. Refere-se à perfeição da


estabilidade mental, à qual algumas vezes nos referimos como “concentração”, mas
que não significa apenas concentração. É um estado mental estável que não se
deixa levar pela inconstância da mente, pelo devaneio, distração ou torpor.

Com essa estabilidade mental, é claro que conseguimos fazer qualquer coisa, certo?
O tipo de estabilidade mental que queremos alcançar é a que supera com pureza
as quatro absorções sem forma. As quatro absorções sem forma são estados
meditativos muito profundos que, se nos apegarmos a eles, podem fazer com que
renasçamos em um dos quatro reinos de seres sem forma, o reino sem forma. Essa
estabilidade mental supera isso com pureza. O termo pureza significa, aqui, que
essas quatro absorções são maculadas pelo desconhecimento (ing. unawareness),
ou seja, pela ignorância e, portanto, são impuras. Queremos desenvolver um tipo
de estabilidade mental que é pura, que vai além disso, que não se mistura com
desconhecimento ou confusão.

No que queremos focar essa mente estável? Qual é o estado mental que queremos
atingir, que têm essa estabilidade mental? É uma combinação, um estado que
une vipashyanaeshamatha. Um estado mental tranquilo e assentado é shamata
e um estado mental excepcionalmente perceptivo é vipashyana. O que é um
estado calmo e tranquilo? É livre de devaneios, instabilidade e torpor, e assentado
unifocadamente em um objeto construtivo. Nesse estado mental, existe uma
sensação de plena capacidade, uma plena e estimulante capacidade física e mental,
em que a mente consegue focar em qualquer coisa e permanecer focada pelo
tempo que você quiser.

Meu professor, Tsenzhab Serkong Rinpoche, costumava dizer que é como ter um
enorme jato. Se você o coloca no solo, ele fica, mas quando está no ar,
simplesmente voa. Esse é o sentido de plena capacidade mental, uma mente que se
concentra e faz o que quisermos, e permanece nesse estado estável. É um pouco
parecida com a plena capacidade física de um atleta muito bem treinado, cujo
corpo está em tão boa forma que ele tem a sensação de que pode fazer qualquer
coisa, de que pode correr indefinidamente.

Com essa mente, a pessoa pode continuar e desenvolver também vipashyana, um


estado mental excepcionalmente perceptivo. Esse estado mental já tem shamata, já
é assentado e tranquilo, capaz de focar em qualquer coisa, e agora tem uma
segunda capacidade: perceber e compreender qualquer coisa, não apenas a
vacuidade, mas qualquer coisa. É plenamente capaz, e consegue compreender e
perceber qualquer detalhe, em toda sua profundidade, qualquer coisa. Temos que
entender que só conseguiremos derrotar completamente as aflições mentais se
tivermos esse estado excepcionalmente perceptivo de vipashyana junto com
shamata. Isso, claro, supera as quatro absorções sem forma, que só nos mantém
presos no samsara.

(30) A prática de um bodhisattva é fazer da consciência discriminativa, que


acompanha os métodos e que não formula conceitos sobre os três círculos, um
hábito. Porque sem a consciência discriminativa, as
cinco perfeições não conseguem promover o atingimentoda iluminação
completa.

A consciência discriminativa é frequentemente traduzida com “sabedoria”, mas


acho essa palavra muito imprecisa e vaga. Estamos falando da capacidade de
discriminar entre como as coisas existem e como não existem.

Precisamos de consciência discriminativa junto com métodos. A palavra


“métodos” refere-se a bodhichitta, e bodhichitta tem como base amor e
compaixão. A consciência discriminativa da vacuidade pode nos trazer liberação.
Ela pode nos livrar dos obscurecimentos emocionais que impedem nossa liberação
— nomeadamente o desconhecimento (ignorância), as emoções perturbadoras e
as tendências de ambos. Mas apenas quando a consciência discriminativa está
junto com bodhichitta que tem força suficiente para atravessar o segundo conjunto
de obscurecimentos, que são os obscurecimentos cognitivos que impedem a
onisciência e a iluminação — nomeadamente os hábitos constantes de apegar-se à
existência verdadeiramente estabelecida, que é a causa da mente criar aparências
de existência verdadeiramente estabelecidas. Portanto, bodhichitta com amor e
compaixão são os métodos mencionados aqui.

Este tipo de consciência discriminativa precisa estar livre de concepções sobre os


três círculos. Os três círculos referem-se à pessoa que está meditando, àquilo em
que ela está meditando e à meditação em si, e as concepções são concepções de
existência verdadeiramente estabelecida. Precisamos nos livrar dessa concepção
de existência verdadeiramente estabelecida dos três círculos, e mais, precisamos
que a compreensão seja não conceitual. Quando temos uma cognição conceitual de
alguma coisa, ela projeta uma aparência de existência verdadeiramente
estabelecida e, até conseguirmos nos liberar, acreditamos que ela corresponde à
forma como as coisas realmente existem. Em outras palavras, temos apego à
existência verdadeiramente estabelecida e, portanto, realmente precisamos
conseguir ter uma cognição não conceitual da vacuidade.

Por que precisamos desenvolver essa perfeição? Togme Zangpo diz que é
porque sem a consciência discriminativa, as cinco perfeições não conseguirão
promover nossa iluminação completa. Mesmo com bodhichitta convencional —
o desejo de alcançarmos a iluminação para beneficiar todos os seres — praticar
apenas as cinco perfeições não é o suficiente. Elas precisam estar acompanhadas
da consciência discriminativa de vasto alcance da vacuidade.

Além disso, o que é significativo aqui é que precisamos ter a consciência


discriminativa sobre os três círculos e não apenas sobre a pessoa, o “eu”. Segundo
o hinayana, só precisamos entender que a pessoa, o “eu”, não existe de uma
maneira impossível, com uma alma impossível. Segundo o mahayana, a consciência
discriminativa da vacuidade do “eu” não é o suficiente para obtermos a iluminação.
Precisamos ter a consciência discriminativa da vacuidade de todos os fenômenos,
ou seja, não só de “mim”, aquele que medita, mas também daquilo em que estou
meditando e da ação de meditar. Segundo a visão prasangika da tradição Gelug,
precisamos dessa consciência discriminativa da vacuidade dos três círculos até
para conseguir a liberação.

A Prática Diária de um Bodhisattva

Os próximos versos tratam da prática diária de um bodhisattva

(31) A prática de um bodhisattva é examinar continuamente o autoengano e


livrar-se dele, pois se não avaliarmos nosso autoengano, é possível que
cometamos uma ação não dharmica de uma forma que pareça dharma.

Conforme eu disse no Treinamento da Mente em Sete Pontos, precisamos ter


um espelho

do dharma virado para nós, e não para fora. Precisamos nos avaliar para ver se
estamos praticando o dharma adequadamente, ao invés de ficarmos avaliando os
outros.

O mesmo texto também diz que precisamos ser “as principais testemunhas”,
testemunhar se estamos praticando com pureza ou não. Somos os melhores juízes
para avaliar nossa motivação e o que se passa em nossa mente. É muito fácil nos
enganarmos. Nos enganamos pensando “Estou realmente seguindo o caminho
budista” ou “Realmente superei o egoísmo” e cometendo todo tipo de autoengano.
Precisamos examinar isso com muito cuidado, e nos livrarmos disso.

Se não nos avaliarmos, é possível que sigamos o dharma apenas externamente.


Por exemplo, podemos fazer várias prostrações de uma forma que não tenha nada
de dharma. Poderíamos estar fazendo cem mil flexões, que daria no mesmo.
Frequentemente meditamos ou fazemos práticas porque nos sentiremos culpados
se não fizermos, ao invés de fazermos de coração. Esse é um bom exemplo de fazer
alguma coisa com forma de dharma mas que não é dharma.

(32) A prática de um bodhisattva é não falar dos defeitos de uma pessoa que
entrou no (caminho) Mahayana, pois se sob o poder das aflições mentais,
falarmos sobre os defeitos dos bodhisattvas, nos degeneraremos.

Uma pessoa que entrou no caminho Mahayana é uma pessoa que está
praticando o caminho do bodhisattva. Achar defeitos em um bodhisattva é um
estado mental de menosprezar e achar defeitos em bodhichitta e no
comportamento do bodhisattva. Isso faz com que nosso próprio comportamento
de bodhisattva se degenere, pois temos uma atitude negativa em relação ao
comportamento de um bodhisattva.

Devemos notar que é por estarmos sob o poder de aflições mentais que
falamos dos defeitos dos bodhisattvas. É significativo que Togme Zangpo tenha
deixado isso bem claro. Existem bodhisattvas que não são muito hábeis em seus
métodos, que, de certa forma, são falhos. É claro que podemos fazer uma crítica
construtiva e dar sugestões para serem mais habilidosos. Mas isso é diferente de
falar de seus defeitos por causa de nossas próprias aflições mentais.

A aflição mental pode ser inveja do que eles fazem ou estarmos pensando apenas
em nós próprios, como em “eu não aprovo o que ele está fazendo, eu faria
diferente”. Pode ser arrogância, com em “eu faria melhor”. Pode ser ignorância,
onde simplesmente não compreendemos o método e a intenção de vasto alcance
(sabedoria) do bodhisattva e estamos pensando de forma muito limitada. Pode ser
apego e raiva, como em “eu queria fazer isso e agora esse bodhisattva fez primeiro”
e ficamos com raiva dele. Nesse contexto, se, estando sob poder de aflições
mentais, falarmos sobre os defeitos dos bodhisattvas, nos degeneraremos.

Isso não significa que não possamos fazer sugestões construtivas quando alguém
está tentando ajudar os outros como um bodhisattva ou achar que poderia
melhorar. Claro, fazer críticas destrutivas e falar apenas dos defeitos dos outros
não ajuda em nada. Mas estaríamos cometendo um equívoco se nunca tentássemos
corrigir ou ajudar uma pessoa que está cometendo um erro. Ou seja, se formos
fazer uma crítica construtiva, temos que fazer com muito respeito e com a
motivação de ajudar a pessoa a ser de mais benefício aos outros. Isso requer
humildade, não arrogância. Além disso, precisamos oferecer nossa sugestão na
hora certa e na circunstância correta. Caso contrário, podemos ser mal
interpretados.

(33) A prática de um bodhisattva é livrar-se do apego à casa dos parentes e


amigos e à casa de patrocinadores porque, sob o poder de (querer) ganhos e
respeito, podemos discutir com os outros e nossa atividade de escutar, pensar
e meditar irá declinar.
Podemos perceber que este é o terceiro verso em que Togme Zangpo fala sobre o
tema. É muito difícil ficarmos na casa de amigos, familiares ou patrocinadores,
ou seja, aqueles que nos sustentam financeiramente, se tivermos muitas emoções
destrutivas. Neste caso, ele refere-se a desejar ou querer muito obter ganhos,
querer ganhar muito dinheiro ou respeito do patrocinador.

Se estivermos tentando seguir o caminho do bodhisattva enquanto vivemos com


nossa família, que não respeita ou aprova o que estamos fazendo, e quisermos
ganhar respeito ou aprovação, o que acontecerá? Conforme disse Togme
Zangpo, vamos discutir uns com os outros e nossa atividade de escutar,
pensar e meditar irá declinar. E por estarmos tão preocupado em obter
aprovação, ficaremos muito chateados.

Certa vez, Ra Lotsawa, um grande tradutor tibetano, disse: “A prática do dharma


que estou fazendo é a que meu professor me ensinou a fazer, então, mesmo que
ninguém goste do que estou fazendo, não me importo”. Ou seja, não estamos
praticando dharma para sermos reconhecidos pelas outras pessoas. Se sabemos
que estamos seguindo o caminho budista de acordo com as instruções de um
professor totalmente qualificado, não importa. Não precisamos da aprovação dos
outros. Realmente não podemos nos apegar a isso.

Conta-se que Geshe Ben Gungyal, que meditava em uma caverna nas montanhas,
soube que seu patrocinador vinha visitar. Ele arrumou o altar, limpou o espaço de
meditação e se limpou, na esperança de impressionar o patrocinador e continuar
sendo sustentado por ele. Porém, ele percebeu que isso estava misturado com
preocupações mundanas de fama e respeito, então pegou um pouco de terra e
esfregou nas oferendas. Um outro mestre, que vivia muito longe, viu o que Geshe
Ben Gungyal fez, com sua percepção extra sensorial, e disse: Geshe Ben Gungyal
acabou de fazer a oferenda mais pura de todo Tibete”. Isso diz respeito às mesmas
coisas às quais nosso verso se refere.

(34) A prática de um bodhisattva é livrar-se da linguagem grosseira,


desagradável à mente alheia, pois palavras grosseiras perturbam a mente dos
outros e fazem com que nosso comportamento de bodhisattva decline.

Se falamos grosserias ou gritamos com os outros, certamente vamos desagradá-


los. Ninguém gosta disso, e certamente perturba a mente. Se, como bodhisattvas,
estivermos tentando fazer os outros felizes e ajudá-los a conseguir paz de
espírito, perturbar suas mentes com palavras grosseiras seria o oposto do que
buscamos, portanto, faz nosso comportamento de bodhisattva declinar.
Consideramos palavras grosseiras as que são ditas com malícia, com o desejo de
machucar. Mas é claro que algumas vezes precisamos falar mais alto e
energeticamente. Se uma criança tentar atravessar uma rua de muito trânsito, por
exemplo, é claro que vamos gritar para detê-la.

Às vezes precisamos falar de forma energética para beneficiar os outros. Meu


próprio professor, Serkong Rinpoche — sempre me chamava de “idiota” ou
“bobinho”. Quando ele me aceitou como seu aluno pessoal, o que lhe pedi foi: “Por
favor treine este burro a ser mais habilidoso em ajudar os outros.” Esse foi meu
pedido. Quando eu era jovem, era muito arrogante, porque tinha estudado em
Harvard e coisas do gênero. Serkong Rinpoche levou meu pedido muito a sério e
nunca perdeu uma oportunidade de mostrar quando eu agia feito um idiota,
mesmo quando eu estava traduzindo para ele em frente a um grande grupo de
pessoas. Apesar das pessoas acharem que ele estava fazendo uma grosseria ao me
chamar de idiota ou burro, ele o fazia com grande compaixão, para me ajudar, por
isso eu nunca fiquei com raiva.

Era uma situação bem diferente da qual os versos se referem, que é falar
com grosseria, desagradando a mente dos outros, com a intenção de machucá-
los.

(35) A prática de um bodhisattva é fazer com que os (nossos) soldados da


presença mental e da atenção carreguem as armas opositoras, e forçosamente
destruam as aflições mentais, como o apego e assim por diante, logo que
surgirem, pois, quando nos habituamos às aflições mentais, é difícil paraas
[forças] opositoras fazerem com que recuem.

Este verso segue muito a linha dos ensinamentos de Shantideva. Normalmente,


pensamos na presença mental (ing. mindfulness) e atenção como fatores mentais
que usamos para desenvolver concentração, mas Shantideva fala deles no
desenvolvimento de autodisciplina ética. Eles estão em seu capítulo sobre o
assunto e ele também invoca a ideia de um exército lutando uma batalha. Na
verdade, estamos em uma batalha contra as aflições mentais, que nos fazem agir de
forma destrutiva. Raiva e apego nos fazem agir de forma muito destrutiva, por isso
temos que usar os soldados da presença mental e atenção.

A presença mental é a cola que segura nossa disciplina, e a atenção é o fator mental
que supervisiona a presença mental e certifica-se de que ela não descolou ou colou
com muita força. Esses dois fatores mentais carregam asarmas opositoras. De
modo geral, podemos pensar na disciplina ética como uma força opositora, mas
também existem outras forças opositoras. Por exemplo, a força opositora à raiva é
o amor, se estivermos apegados a um corpo bonito, a força opositora será pensar
na impureza desse corpo e nas substâncias que estão dentro do estômago e
intestinos. A atenção é como se fosse o sistema de alarme, que dispara quando tem
alguma coisa errada com a forma como a presença mental está colando. Quando
tem alguma coisa errada com a cola mental, é a atenção que aparece e a corrige. É a
atenção que restabelece uma forma mais benéfica de olharmos para a outra
pessoas. Por exemplo, ao invés de olharmos com raiva, olhamos com amor.

Tentamos reconhecer quando nossa aderência à disciplina ética e aos estados


mentais positivos está fraca. Tentamos corrigir assim que aflições mentais
começam a aparecer em nossa mente e roubar nosso estado mental positivo,
conforme diz Shantideva. Tentamos fazer isso o mais rápido possível, pois se nos
habituarmos às aflições mentais, se as deixarmos tomar conta de nosso estado
mental sem fazermos nada a respeito, criamos o hábito de pensar de maneira
destrutiva, com essas aflições mentais. E então será muito difícil para as forças
opositoras fazerem com que recuem ou vão embora. Portanto, precisamos
perceber rapidamente quando nossa mente está se desviando da disciplina ética. E
então poderemos corrigi-la com muito mais facilidade.

É como aprender um novo idioma. No começo não conseguimos pronunciar as


palavras corretamente. Isso acontece muito com as pessoas que aprendem
tibetano, e elas acabam se habituando a pronunciar tudo errado. Quando isso vira
um hábito forte, é muito difícil corrigir. Mas se nos corrigirmos desde o começo,
quando começamos a falar errado, conseguiremos desenvolver a pronúncia
correta com muito mais facilidade.

O verso 36 é um resumo do que precisamos fazer para seguir o caminho do


bodhisattva. Togme Zangpo escreve:

(36) Em suma, a prática de um bodhisattva é (trabalhar) para realizar o


propósito dos outros, mantendo continuamente a presença mental e a
atenção, para saber, independente de seu comportamento, em que
condiçõessua mente se encontra.

Este verso é muito parecido com o conselho que Shantideva nos dá no fechamento
de seu texto. Como trabalhar para realizar o propósito dos outros, para ajudar
os outros? Precisamos manter a atenção e a presença mental. É a presença
mental que adere à disciplina, ao amor, à compaixão e à bodhichitta. E a atenção é
o sistema que nos alerta para não nos descolarmos da disciplina ética, do amor, etc,
ou seja, para adequarmos a cola mental.

Assim, não importa onde estamos e como nos comportamos, precisamos sempre
verificar o que está se passando em nossa mente. Na última linha de A Guirlanda de
Jóias de um Bodhisattva, Atisha, um grande mestre anterior a Togme Zangpo, diz:

(28) Quando entre muitos, que eu vigie minha fala; quando sozinho, que eu
vigie minha mente.

É uma ideia semelhante a que acabamos de ver.

(37) A prática de um bodhisattva é, com consciência discriminativa e total


pureza dos três círculos, dedicar as forças construtivas conseguidas com esses
esforçosà iluminação, para eliminar o sofrimento de infinitos seres sencientes.

Este verso refere-se à dedicação. Quando dedicamos alguma ação construtiva ou


força positiva que tenha surgido de nosso comportamento de bodhisattva,
precisamos fazê-lo com consciência discriminativa da vacuidade. Aqui, Togme
Zangpo refere-se a essa consciência discriminativa como a total pureza dos
três círculos. Ou seja, a vacuidade daquele que está criando a força positiva, da
ação que gerou a força positiva e da força positiva em si.
Togme Zangpo diz para dedicarmos tudo isso à iluminação,a fim de
eliminarmos o sofrimento de inúmeros seres sencientes. A maneira
apropriada de fazemos uma dedicação é muito bem descrita por Shatideva no
último capítulo de Engajando-se no Caminho do Bodhisattva, o capítulo da
dedicação. Ele não diz: “Que eu consiga atingir a iluminação para que possa
eliminar o sofrimento de todos os seres.” Ele não faz a dedicação considerando
apenas o caso dele. A ênfase não está no “eu”, como em “Que eu consiga atingir a
iluminação para que eu possa eliminar o sofrimento de todos os seres.” Isso seria
uma dedicação misturada com apego a um “eu”, não seria?

No capítulo da dedicação, Shantideva simplesmente diz: “Que todos possam atingir


a iluminação” e “Que o sofrimento de todos os seres possa ser eliminado”, “Que
isso atue como causa para que todos possam atingir a iluminação, para que
nenhum ser tenha que passar pelo sofrimento dos estados piores (inferiores) de
renascimento”, e assim por diante. Portanto, não tem nada a ver com “eu” me
tornar um grande bodhisattva, me tornar um Buda que vai ajudar os outros.

Em vários textos, diz-se que é como se fossemos fazer uma viagem com pessoas
muito ricas que estivessem levando uma quantidade enorme de grãos para comer
durante o percurso. Podemos imaginar uma caravana no Tibete com exemplo. O
que queremos é contribuir, mesmo que só tenhamos uns poucos grãos. Nossos
grãos irão se misturar com os de todos os outros viajantes, e dos patrocinadores,
para que, de certa forma, possamos contribuir um pouco para o bem de todos.

Da mesma forma, acrescentamos a força positiva que geremos, por menor que seja,
à enorme quantidade de força positiva que todos os bodhisattva dedicaram à
iluminação de todos os seres. Eles não a dedicaram à própria iluminação,
dedicaram-na para a iluminação de todos os seres. Quando acrescentamos uma
pequena quantidade de força positiva à esse enorme estoque, dedicando-a à
iluminação de todos os seres, ela terá um efeito muito maior.

Precisamos ter muito cuidado na nossa prática de bodhisattva para não misturá-la
a preocupações autocentradas: “Que eu — eu, eu, eu — possa atingir a iluminação.
Que eu — eu, eu, eu — possa ajudar todos os seres.” E também não é “Que minha
pequena quantidade grãos possa alimentar a todos”.

É por isso que a compreensão da vacuidade na dedicação da força positiva é tão


importante. Assim, evitamos os extremos de fazer a dedicação preocupados com o
“eu” sólido.

Verso de Conclusão
Tendo seguido a palavra dos seres sagrados e o significado do que foi
declarado nos sutras, tantras e tratados, organizei (essas) práticas, trinta e
sete, para aqueles que desejam treinar no caminho do bodhisattva.

Togme Zangpo afirma que não criou esse material. Ele apena seguiu as palavras de
grandes professores e o significado estipulado nos grandes textos. Podemos ver
que grande parte do material dessas 37 Práticas vem do texto Engajando-se no
Caminho do Bodhisattva, de Shantideva, e do Treinamento da Mente em Sete Pontos,
de Geshe Chekawa. Togme Zangpo também escreveu comentários a esses textos,
assim como a outros da literatura de lojong.

E ele continua:

Por minha inteligência ser fraca e minha educação formal escassa, eles podem
não estar na métrica poética que agrada aos eruditos. Mas por eu ter me
baseado nos sutras e nas palavras dos santos, acredito que (essas) práticas de
bodhisattvas não sejam enganosas.

Togme Zangpo se desculpa pela falta de habilidade poética, já que o texto é escrito
em verso. Ele basicamente diz que esses versos podem não ser os melhores, e que
ele não é muito inteligente ou habilidoso, mas mesmo assim, por ter se baseado
nos sutras e nas palavras de santos como Shantideva e Geshe Chekawa, ele
acredita que essas práticas de bodhisattva não são enganosas.

E continua:

No entanto, como é difícil para um tolo como eu compreender a profundidade


das grandes ondas do comportamento bodhisattva, peço aos santos que sejam
pacientes com minha montanha de falhas, como contradições, falta de
conexão e coisas do gênero.

Novamente, ele está sendo muito modesto ao dizer “Como é difícil para um tolo
como eu compreender a vasta conduta de bodhisattva que os grandes bodhisattvas
praticam.” Ele pede aos grandes seres que sejam pacientes e compreendam
suas falhas e contradições ao escrever sobre as práticas dos bodhisattvas, como se
fossem contraditórias e desconectadas, e também compreendam sua falta de
habilidade em conectar os versos para deixá-los mais compreensíveis e assim por
diante.

E o verso final:

Pela força construtiva gerada, que todos os seres errantes, através da


bodhichitta suprema, profunda e convencional, tornem-se iguais ao Guardião
Avalokiteshvara, que nunca estabelece morada nos extremos compulsivos da
existência samsárica ou da complacência do nirvana.

Perceba que ele não diz “que eu me torne igual ao Guardião Avalokiteshvara”, que
é o que discutimos anteriormente, quando falamos da dedicação. Ele diz: “Que
todos tornem-se iguais ao Guardião Avalokiteshvara”. Ou seja, que todos atinjam a
iluminação ao desenvolverem a suprema bodhichitta mais profunda e a
convencional. Avalokiteshvara é iluminado e não mora nos extremos do samsara
ou nirvana, conforme explicado.
E o colofão:

Isto foi composto na caverna de Rinchen em Ngulchu pelo disciplinado monge


Togmey, professor de escrituras e lógica, para benefício próprio e alheio.

Isto completa os ensinamentos das 37 Práticas do Bodhisattva, de Togme Zangpo,


um grande bodhisattva.

É realmente importante tentarmos colocá-las em prática ao máximo. Recomenda-


se sua leitura diária como uma prática muito útil, e ao lermos não ficarmos só no
“blá, blá, blá”, mas tentarmos manter o significado das práticas em mente.
Podemos tentar focar em um verso a cada dia. É um método muito útil para
lentamente integrarmos esses conceitos à nossa vida. Assim, aos poucos
conseguiremos colocá-los todos em prática.

Resumo

Para tornar-se um bodhisattva, alguém que tem bodhichitta espontânea — um


coração e mente totalmente dedicados à iluminação para melhor ajudar os outros a
superar o sofrimento — precisamos seguir um caminho gradual. Os estágios
graduais do lam-rim nos proporcionam esse caminho. Precisamos principalmente
transformar as circunstâncias negativas em positivas ao superarmos o autoapreço
e praticarmos as seis perfeições (atitudes de vasto alcance). As 37 práticas do
bodhisattva, aqui apresentadas, nos dão as diretrizes para o caminho completo do
bodhisattva.
Comentário sobre os “Oito Versos
de Treinamento da Mente” – O Dalai
Lama
O 14º Dalai Lama

Às vezes encontramos pessoas muito negativas, mal-agradecidas ou que


gritam conosco. Mas se ficarmos chateados ou com raiva, perderemos a
capacidade de ajudar. Através dos métodos de treinamento mental podemos
mudar nossa atitude em relação a essas pessoas para, não só nos mantermos
calmos, mas também sermos mais capazes de ajudar. Os “Oito Versos de
Treinamento da Mente”, ou treinamento de atitude, de Geshe Langri Tangpa,
da tradição Kadampa, explicam como treinarmos a mente com método e
sabedoria, e assim mudarmos nossa atitude quando houver perigo de nos
aborrecermos. Os primeiros sete versos dizem respeito ao método —
nomeadamente gentileza amorosa e bodhichitta — e o oitavo diz respeito à
sabedoria, ou consciência discriminativa.

Verso 1: Todos os Seres São Superiores a Joias Realizadoras de


Desejos
Que eu sempre valorize os seres limitados, por considerá-los
muito superiores à joias realizadoras de desejos no que diz
respeito à conquista do objetivo supremo.

Nós, e todos os outros seres, queremos ser felizes e completamente livres


de sofrimento. Nisso, somos exatamente iguais. Entretanto, cada um de
nós é apenas uma pessoa enquanto os outros seres são infinitos em
número.

Agora, existem duas atitudes a serem consideradas: cuidarmos


egoisticamente apenas de nós mesmos ou cuidarmos dos outros.
Cuidarmos apenas de nós mesmos nos deixa muito fechados. Achamos
que somos extremamente importantes e passamos a desejar basicamente
nossa própria felicidade e que as coisas deem certo para nós, apesar de
não sabemos como fazer para que seja assim. O fato é que nunca
conseguiremos ser felizes se agirmos pensando apenas em nós mesmos.
Por outro lado, aqueles que preocupam-se com os outros consideram
todos os demais seres como mais importantes que eles próprios e
valorizam, acima de tudo, ajudar os outros. Agindo assim, eles acabam
ficando felizes.

Por exemplo, políticos que se interessam genuinamente em ajudar ou


servir as pessoas são lembrados com respeito na história, enquanto os
que só exploram e fazem mal viram exemplos de pessoas execráveis.
Agora, deixando de lado, por um momento, religião, vidas futuras e
nirvana, mesmo na vida [material], as pessoas egoístas acabam criando
repercussões negativas para si por conta de suas ações autocentradas.
Por outro lado, pessoas como Madre Teresa, que dedicaram suas vidas e
energia para ajudar altruisticamente os outros, os pobres e necessitados,
são sempre lembradas com respeito por seu trabalho. As pessoas não têm
nada de negativo para falar delas.

Este é o resultado de nos preocuparmos com os outros: queiramos ou


não, até mesmo aqueles que não são nossos parentes hão de gostar de
nós, ficarão felizes com nossa presença e terão sentimentos calorosos
para conosco. No entanto, se formos o tipo de pessoa que só fala coisas
boas na frente mas pelas costas fala mal, é claro que ninguém vai gostar
da gente. Assim, até mesmo nesta vida, se tentarmos ajudar ao máximo e
tivermos o mínimo possível de pensamentos egoístas, sentiremos muita
felicidade.

Nossa vida não é muito longa; no máximo 100 anos. Se, durante a vida,
tentamos ser gentis, tivermos um coração afetuoso e nos preocuparmos
com o bem estar dos outros, além de sermos menos egoístas e raivosos,
será maravilhoso, excelente. Isso é realmente a causa da felicidade. Se
formos egoístas, sempre nos colocando em primeiro lugar, o resultado é
que chegaremos por último. Mentalmente nos colocando por último, e os
outros em primeiro, é a forma de chegarmos na frente. Portanto, não se
preocupe com a próxima vida ou com o nirvana; essas coisas virão
gradualmente. Se nesta vida permanecermos bons, afetuosos e não
egoístas, seremos bons cidadãos do mundo.

Quer sejamos budistas, cristãos ou comunistas, é irrelevante; o


importante é que enquanto formos seres humanos, precisamos ser bons
seres humanos. Este é o ensinamento do budismo. Esta é a mensagem de
todas as religiões do mundo, mas os ensinamentos budistas contém todos
os métodos para erradicarmos o egoísmo e efetivarmos uma atitude de
apreço aos demais. O maravilhoso texto de Shantideva, Engajando-se no
Comportamento do Bodhisattva (O Caminho do Bodhisattva,
Skt. Bodhicharyavatara), por exemplo, é muito útil para isso. Eu pratico
de acordo com esse livro; é extremamente útil. Nossa mente é muito
astuta, muito difícil de controlar. Mas, se nos esforçarmos
constantemente e trabalharmos sem parar com lógica e análise
cuidadosa, seremos capazes de controlar nossa mente e mudar para
melhor.

Alguns psicólogos ocidentais dizem que não devemos reprimir a raiva, e


sim expressá-la. Dizem, de fato, que devemos praticar raiva! Contudo,
precisamos fazer uma importante distinção entre problemas mentais que
precisam ser expressados e os que é melhor não expressarmos. Algumas
vezes, podemos ser realmente injustiçados e está certo expressarmos
nossos ressentimentos ao invés de deixá-los apodrecerem dentro de nós.
Mas nunca é útil os expressarmos com raiva. Se alimentarmos emoções
negativas perturbadoras, como a raiva, elas se tornarão parte de nossa
personalidade. Cada vez que expressamos raiva, torna-se mais fácil
expressarmos raiva. Fazemos isso cada vez mais, até nos tornarmos
pessoas furiosas totalmente fora do controle. Assim, no que diz respeito a
problemas mentais, é certamente apropriado expressarmos alguns, mas
outros não.

No início, quando tentamos controlar as emoções perturbadoras, é difícil.


No primeiro dia, na primeira semana, no primeiro mês, não conseguimos
controlá-las. Mas, com esforço constante conseguimos gradualmente
diminuir nossas negatividades. Não conseguimos progredir mentalmente
tomando remédio ou outras substâncias químicas, o progresso mental
depende de controlarmos nossa mente. Assim, vemos que se quisermos
realizar nossos desejos, sejam eles provisórios ou definitivos, precisamos
controlar a mente para não termos auto-apreço. Para isso, precisamos
contar com as outras pessoas muito mais do que contamos com joias
realizadoras de desejos. Ou seja, precisamos sempre apreciar os outros
acima de tudo, porque esta atitude é o que realmente vai realizar nossos
desejos.

Melhorar nossa mente e, de fato, fazer algo para ajudar os outros é muito
importante. Se não tivermos uma motivação pura, não importa o que
façamos, nada nos garantirá satisfação.

Portanto, a primeira coisa que precisamos fazer é cultivar uma motivação


pura. Mas não precisamos esperar até a motivação se desenvolver
completamente para ajudar os outros. Lógico, para ajudarmos da maneira
mais eficiente possível, precisamos atingir a iluminação total de um buda.
E mesmo para sermos capazes de ajudar de forma vasta e extensiva,
precisamos ter atingir um dos níveis mentais (bhumi) de um arya
bodhisattva — e precisamos ter cognição não conceitual da vacuidade e
percepção extrassensorial. Todavia, são muitos os níveis de ajuda que
podemos oferecer. Mesmo antes de atingirmos essas qualificações,
podemos tentar agir como bodhisattvas. Mas, naturalmente, nossas ações
serão menos eficazes que as deles.

Então, sem esperar até que estejamos totalmente qualificados, podemos


gerar uma boa motivação e com isso tentar ajudar os outros da melhor
forma que conseguirmos. Esta é uma abordagem mais equilibrada, e
melhor do que simplesmente permanecer isolado em algum lugar
meditando um pouco e fazendo algumas recitações. Claro, isso depende
muito de cada pessoa. Se estivermos confiantes de que ficando em um
lugar remoto podemos obter realizações depois de um certo período, aí é
diferente. Talvez seja melhor passarmos metade do nosso tempo
trabalhando ativamente e a outra metade praticando meditação.

Verso 2: Considere-se Menos que os Outros e Valorize-os Mais do


que a Si Mesmo
Sempre que estiver na companhia de alguém, que eu me
considere menos que todos os demais e, do fundo do meu
coração, valorize-os mais do que a mim mesmo.

Não importa com quem estejamos, sempre pensamos coisas como “Sou
mais forte que ele”, “sou mais bonita que ela”, “sou mais inteligente”, “sou
mais rico”, “sou muito mais qualificado” e assim por diante. Geramos
muito orgulho. Isso não é bom. Ao invés disso, precisamos permanecer
sempre humildes. Mesmo quando estivermos ajudando e engajados em
um trabalho social, não devemos ter a atitude altiva de grande protetor
beneficiando os fracos. Isso também é orgulho. Precisamos nos engajar
nessas atividades de forma muito humilde e pensar que estamos
oferecendo nossos serviços às pessoas.

Quando nos comparamos com animais, por exemplo, podemos pensar “eu
tenho um corpo humano” ou “eu sou um monge” ou “eu sou uma monja” e
nos sentirmos muito superiores a eles. Por um lado, podemos pensar que
por termos um corpo humano e estarmos praticando os ensinamentos do
Buda somos muito melhores que os insetos. Mas por outro lado, podemos
dizer que os insetos são muito inocentes e livres de malícia, enquanto nós
frequentemente mentimos e somos falsos no o intuito de alcançar o que
desejamos ou sermos considerados mais do que somos. Sob este ponto de
vista, podemos dizer que somos muito piores que os insetos, que
simplesmente vivem sua vida sem fingir coisa alguma. Esse é um método
para treinarmos humildade.

Verso 3: Confrontar e Evitar Emoções Perturbadoras Com Métodos


Enérgicos
O que quer que esteja fazendo, que eu sempre verifique meu
fluxo mental, e no momento em que concepções ou emoções
perturbadoras aparecerem, já que elas me debilitam, e aos
outros, que eu as confronte e evite com métodos enérgicos.

Se investigarmos nossa mente nos momentos em que estivermos sendo


muito egoístas, preocupando-nos tanto conosco mesmo a ponto de
excluir os demais, veremos que a raiz desses comportamentos são as
emoções destrutivas e as atitudes negativas. Uma vez que elas perturbam
tanto nossa mente, precisamos aplicar um antídoto assim que
percebermos que estamos nos deixando influenciar por elas.

O antídoto geral para todas as aflições mentais (emoções e atitudes


perturbadoras) é a meditação na vacuidade; mas também existem
antídotos específicos que nós, principiantes, podemos aplicar. Assim, para
o apego, meditamos sobre a feiura; para a raiva, meditamos sobre o amor;
para a ingenuidade, meditamos sobre a originação dependente; para
muitos pensamentos perturbadores, meditamos na respiração e nos
ventos-energia.

Desenvolvemos apego às coisas porque as vemos como muito atraentes.


Tentar vê-las como não atraentes ou feias neutraliza o apego. Por
exemplo, podemos desenvolver apego ao corpo de outra pessoa ao
considerá-lo muito atraente. Porém, quando começamos a analisar esse
apego, percebemos que está baseado apenas na visão da pele. Contudo, a
natureza do corpo que parece bonito para nós é [a natureza] da carne,
sangue, ossos, pele e assim por diante, que o compõe.

Agora, vamos analisar a pele humana: tome a sua, por exemplo. Se um


pedaço dela sair e o colocarmos em uma prateleira por alguns dias, se
tornará extremamente repulsivo. Essa é a natureza da pele. E todas as
outras partes do corpo são a mesma coisa. Não existe beleza em um
pedaço de carne humana. Quando vemos sangue, podemos até sentir
medo, mas não apego. Até mesmo um rosto bonito, se for arranhado não
terá mais nada de bonito. Portanto, a feiura é, de fato, a natureza do corpo
humano. Ossos e esqueletos humanos também são repulsivos. O símbolo
da caveira e ossos cruzados tem uma conotação muito negativa, não tem?
É a assim que devemos analisar algo pelo qual sentimos muito apego, ou
amor — usando a palavra amor no seu sentido negativo, que é de desejo e
apego. Pense mais sobre o lado feio do objeto ou analise a natureza da
pessoa ou coisa segundo este ponto de vista. Mesmo que isso não controle
completamente o apego, ao menos o subjuga um pouco. É o propósito de
se meditar sobre o aspecto feio das coisas, ou cultivar o hábito de olhar o
lado feio das coisas. Existe um outro tipo de amor, ou gentileza amorosa,
que não está baseado no raciocínio de que “tal pessoa é bonita e, por isso,
sinto admiração e devo ser gentil com ela”. A base para o amor puro é,
“Este é um ser vivo que quer felicidade, não quer sofrimento e tem o
direito de ser feliz. Com base nisso, sinto amor e compaixão”. Esse tipo de
amor é totalmente diferente do primeiro, que é baseado em ingenuidade
e ignorância e não é nada saudável.

As razões para cultivar-se a gentileza amorosa são sólidas. Com o amor


que é simplesmente apego, qualquer mudança mínima no objeto, como
uma pequena mudança de atitude, faz com que nosso sentimento mude
imediatamente. Isto porque nossa emoção é baseada em algo muito
superficial. Tome, por exemplo, um casamento recente. Frequentemente,
após algumas semanas, meses ou anos o casal se torna inimigo um do
outro e acaba se divorciando. Eles se casaram sentindo amor profundo —
ninguém escolhe casar por raiva — mas, depois de um curto período de
tempo, tudo mudou. Por que? Porque a base do relacionamento era muito
superficial, então uma pequena mudança em uma das pessoas causou
uma mudança completa na atitude da outra

Precisamos pensar “A outra pessoa é um ser humano, assim como eu.


Certamente quero felicidade, portanto, ela também deve querer. Como
ser vivo, tenho direito à felicidade e pela mesma razão essa pessoa
também tem”. Logo, não importa o quanto nossa visão da pessoa mude —
de boa, para ruim, para feia — ela é basicamente o mesmo ser vivo.
Assim, uma vez que a maior razão para a gentileza amorosa está sempre
presente, nossos sentimentos em relação ao outro são absolutamente
estáveis.

Obviamente, quando apreciamos estar com alguém a quem somos


apegados ou quando apreciamos objetos aos quais somos apegados,
sentimos um certo prazer. Mas, como disse Nagarjuna, em Guirlanda
Preciosa (Skt. Ratnavali) (169),
Coçar dá muito prazer, mas mais prazeroso ainda é não ter
coceira. Da mesma forma, satisfazer desejos mundanos é
prazeroso, mas mais prazeroso ainda é não ter desejos.

O antídoto para a raiva, por outro lado, é a meditação no amor. A raiva é


um estado muito rude e grosseiro da mente, que precisa ser amaciado
com amor.

Já no caso da ingenuidade (ignorância), meditamos nos doze elos da


originação dependente, começando pela falta de consciência ou
ignorância e indo até o envelhecimento e morte. Em um nível mais sutil,
podemos usar a originação dependente como razão para estabelecermos
todos os fenômenos como sendo destituídos de existência verdadeira.

Verso 4: Considerar as Pessoas Cruéis Como Sendo um Tesouro de


Joias
Sempre que vir seres instintivamente cruéis, dominados por
negatividades e problemas sérios, que os valorize como difíceis
de encontrar, como descobrir um tesouro de joias.

Ao encontrarmos alguém que por natureza é muito cruel, rude, nojento e


desagradável, nossa reação usual é evitá-lo. Nessas situações, nossa
preocupação amorosa com os outros está sujeita a diminuir. Ao invés de
permitir que nosso amor enfraqueça, pensando como a pessoa é terrível,
precisamos enxergá-la como um objeto especial de compaixão, e apreciá-
la como se tivéssemos encontrado um tesouro precioso, muito difícil de
encontrar.

Verso 5: Tomar a Derrota para Si e Oferecer a Vitória ao Outro


Quando, por inveja, me tratarem injustamente, com
repreensões, insultos e mais, que eu aceite a derrota e lhes
ofereça a vitória.

Se alguém nos insulta, abusa ou critica dizendo que somos


incompetentes, que não sabemos nada, provavelmente ficaremos com
raiva e contestaremos o que a pessoa disse. Precisamos tentar não reagir
assim. Ao invés disso, devemos aceitar essas palavras duras com
humildade e tolerância.
Apesar de termos de ser humildes e aceitar as palavras duras, devemos
ao mesmo tempo ser realistas no que diz respeito às qualidades que
possuímos. Mas precisamos entender a diferença entre a confiança em
nossas habilidades e o orgulho. Precisamos ter confiança em nossas
habilidades e boas qualidades, e usá-las corajosamente, mas sem ficarmos
arrogantes e orgulhosos. Ser humilde não significa sentirmo-nos
totalmente incompetentes e incapazes. Cultivamos a humildade como
antídoto para a raiva, mas precisamos usar nossas boas qualidades ao
máximo.

Idealmente, precisamos de muita coragem e força, mas não devemos nos


vangloriar ou mostrar pra todo mundo. Quando necessário, reagimos à
altura da situação e lutamos bravamente pelo o que é correto. Isso seria
perfeito. Se não temos nenhuma dessas boas qualidades, mas saímos por
aí nos vangloriando e, quando precisamos de coragem nos acovardamos,
somos exatamente o oposto. Na primeira situação, a pessoa é muito
corajosa mas não tem orgulho, na outra é muito orgulhosa mas não tem
coragem.

No que diz respeito ao conselho de tomar para si a derrota e oferecer a


vitória aos outros, precisamos entender a diferença entre as duas
situações. Se, por um lado, estivermos obcecados com nosso bem estar, e
nossa motivação for egoísta, precisamos aceitar a derrota e oferecer a
vitória ao outro, mesmo que isso nos custe a vida. Mas, por outro lado, se
a situação envolver o bem estar dos demais, precisamos trabalhar muito e
lutar por seus direitos, e não aceitar a derrota de jeito algum. Afinal, um
dos 26 votos secundários de bodhisattva é, em situações em que alguém
esteja fazendo algo muito ruim, não abster-se de usar métodos enérgicos
ou o que for necessário para freiar imediatamente as ações da pessoa, no
caso de todos os métodos pacíficos terem falhado. Ou seja, se não agirmos
energicamente quando formos capazes, teremos transgredido esse
comprometimento.

Pode parecer que esse voto de bodhisattva e o quinto verso, que diz que
devemos aceitar a derrota e oferecer a vitória ao outro, são
contraditórios; mas não são. Os preceitos do bodhisattva lidam com uma
situação na qual nossa principal preocupação é o bem estar do outros: se
alguém estiver fazendo algo extremamente prejudicial e perigoso, é
errado não tomar fortes medidas, caso seja necessário.

Hoje em dia, em sociedades muito competitivas, com frequência é


necessário tomar medidas extremamente defensivas. No entanto, a
motivação nesse caso não deve ser a preocupação egoísta, mas sim
extensos sentimentos de amor e compaixão. Se agirmos com esses
sentimentos, para evitar que se crie karma negativo, estaremos
totalmente corretos.

Quanto a como identificar quando é necessário tomarmos ações


enérgicas, é complicado. Quando consideramos tomar a derrota, temos
que ver se oferecer a vitória aos outros vai beneficiá-los de forma
definitiva ou apenas temporariamente. Também precisamos considerar o
efeito da derrota em nossa capacidade de ajudar os outros no futuro. E é
possível que, ao fazer algo que os prejudique agora, criemos uma grande
quantidade de força positiva (mérito), o que nos possibilitará fazer coisas
amplamente benéficas no longo prazo. Esse é também um fator que
temos que levar em conta.

Conforme disse Shantideva em Engajando-se no Comportamento do


Bodhisattva (V 83-84):

Devo praticar as atitudes de amplo alcance (seis perfeições), da


generosidade e assim por diante, como progressivamente mais
exaltadas. [Mas] nunca devo descartar a maior em favor da
menor: Devo considerar o benefício aos outros como o mais
importante.
Percebendo que é assim, devo sempre me esforçar para
beneficiar os outros. O Compassivo que Vê Longe permitiu [ao
bodhisattva] fazer aquilo que [aos outros] é proibido.

No texto Compêndio de Treinamentos (Skt. Shiksasamuccaya), Shatideva


também fala que os benefícios de cometer uma ação normalmente
proibida, porém feita com bodhichitta, são maiores que a negatividade de
cometê-la sem essa motivação.

Apesar de ser extremamente importante, as vezes pode ser muito difícil


enxergar o limite entre o que fazer e o que não fazer. Por isso, precisamos
estudar o texto que explica essas coisas. Os textos menos elevados nos
dirão que certas ações são proibidas; enquanto os mais elevados nos
dirão que essas mesmas ações são permitidas. Quanto mais soubermos,
mais fácil será decidirmos o que fazer em qualquer situação.
Verso 6: Ver as Pessoas Ingratas como Professores Sagrados
Mesmo que alguém que eu tenha ajudado, ou por quem tenha
grandes expectativas, me prejudique de forma totalmente
injusta, que eu o veja como um professor sagrado.

Normalmente, esperamos que as pessoas a quem ajudamos fiquem muito


gratas; e se reagirem com ingratidão, provavelmente ficaremos com
muita raiva. Em tais situações, não devemos ficar chateados, e sim
praticar paciência. E mais, precisamos ver essas pessoas como
professores que testam nossa paciência e, assim, tratá-los com respeito.
Esse verso resume todos os ensinamentos sobre paciência do
texto Engajando-se no Comportamento do Bodhisattva, de Shantideva.
Existem muitos métodos para cultivarmos paciência. O conhecimento e a
crença na lei do karma, por si geram paciência. Percebemos, “Esse
sofrimento que estou vivenciando é minha total culpa, é o resultado de
ações que cometi no passado. Uma vez que não é possível escapar da
experiência do karma que está amadurecendo, tenho que suportá-lo. No
entanto, se quiser evitar sofrimento futuro, posso cultivar atitudes
construtivas, como a paciência. Ficar irritado ou com raiva só criará mais
karma negativo, o que será causa de infortúnios futuros.” Esta é uma
maneira de cultivarmos paciência.

Outra coisa que podemos fazer é meditar sobre a natureza de sofrimento


do corpo: “Este corpo e mente são a base para todo tipo de sofrimento. É
natural e esperado que deles surja sofrimento.” Esse tipo de percepção é
muito útil para desenvolvermos paciência.

Podemos também lembrar o que disse Shantideva em Engajando-se no


Comportamento do Bodhisattva (VI 10):

Se não pode ser remediado, por que ficar de mau humor? E se


pode, por que ficar de mau humor?

Portanto, se houver uma maneira ou oportunidade de superarmos o


sofrimento, não precisamos nos preocupar ou ficar de mau humor. Se não
houver absolutamente nada que possamos fazer, ficarmos chateados ou
de mau humor em nada nos ajudará. Isto é muito simples e muito claro.

Podemos também contemplar as desvantagens de ficar com raiva e as


vantagens de praticar paciência. Somos seres humanos, e como tais, uma
das nossas maiores qualidades é a capacidade de pensar e julgar. Se
perdermos a paciência e ficarmos com raiva, perderemos a capacidade de
julgar apropriadamente e, assim, perderemos um dos instrumentos mais
poderosos que temos para resolver problemas: a sabedoria humana. Isso
é algo que os animais não têm. Se perdermos a paciência e ficarmos
irritados, estaremos danificando esse instrumento. Precisamos nos
lembrar, então, que é muito melhor termos coragem e determinação, e
enfrentarmos o sofrimento com paciência.

Verso 7: Tomar o Sofrimento dos Outros e Dar-lhes Felicidade


Enfim, que eu ofereça a todas as minhas mães, direta ou
indiretamente, o que quer que as beneficie e lhes traga alegria;
e, secretamente, tome para mim todos os seus problemas e
infortúnios.

Isso refere-se à pratica do de tomar para si todo o sofrimento dos outros


e dar-lhes toda nossa felicidade (tonglen), com a forte motivação de
compaixão e amor.

Queremos felicidade e não queremos sofrimento, e podemos ver que


todos os demais seres sentem o mesmo. Podemos ver que outros seres
também são tomados pelo sofrimento, mas não sabem como livrar-se
dele. Com base nisso, geramos a intenção de tomar todo seu sofrimento e
karma negativo e rezar para que amadureça imediatamente em nós.
Também é óbvio que os outros seres não possuem a felicidade que
buscam e não sabem como encontrá-la. Portanto, sem traço algum de
avareza, oferecemos a eles toda a nossa felicidade — nosso corpo, riqueza
e força kármica positiva — e rezamos para que ela amadureça
imediatamente neles.

Claro, é muito improvável que realmente sejamos capazes de tomar todo


o sofrimento dos outros e dar-lhes nossa felicidade. Quando tal
transferência entre seres ocorre, é o resultado de uma conexão kármica
muito forte e contínua. No entanto, essa meditação é um meio muito
poderoso de gerar coragem em nossa mente e, portanto, é uma prática
muito benéfica.

No Treinamento da Mente em Sete Pontos, Geshe Chekawa diz, “Treine em


dar e receber de forma alternada, seguindo o fluxo da respiração.” E aqui,
Langri Tangpa diz que isso deve ser feito às escondidas, secretamente.
Shantideva, em Engajando-se no Comportamento do Bodhisattva (VIII
120), diz:
Assim, qualquer um que deseje rapidamente dar uma direção
segura a si e aos outros precisa praticar o mais sagrado dos
segredos: trocar de lugar com eles.

A prática é chamada de “secreta” ou “escondida” porque não é apropriada


para a mente de bodhisattvas principiantes: é algo para alguns poucos
praticantes selecionados. Também em Engajando-se no Comportamento
do Bodhisattva (VIII 126cd), Shantideva diz: “Sacrificando-me pelos
objetivos dos outros, adquirirei todas as glórias.” Mas, em Guirlanda
Preciosa (11) Nagarjuna diz, “A prática do dharma não é simplesmente
atormentar o corpo”. Quando Shantideva diz que devemos sacrificar-nos,
ou infligir-nos sofrimento, isso não significa que precisamos bater em
nossa cabeça ou algo assim. O que ele quer dizer é que, quando
pensamentos fortes de auto-apreço surgirem, precisamos debatê-los
fortemente conosco mesmo e usar de métodos enérgicos para subjugá-
los. Em outras palavras, a quem precisamos infligir sofrimento é à nossa
mente de auto-apreço.

Precisamos distinguir claramente entre o “eu” que está totalmente


obcecado com seu próprio bem estar e o “eu” que se iluminará. Existe
uma diferença muito grande. Além disso, precisamos ver esse verso de
Shantideva no contexto dos versos anteriores e posteriores.

O “eu” é discutido de muitas formas diferentes: existe o apego a um “eu”


verdadeiramente existente; existe o auto-apreço em relação a um “eu”;
existe o “eu” com o qual nos engajamos quando olhamos as coisas pelo
ponto de vista dos outros e assim por diante. Precisamos ver a discussão
sobre o self, o “eu”, em todos esses diferentes contextos.

Se realmente beneficiar os outros, se beneficiar nem que seja um único


ser, é apropriado tomarmos para nós o sofrimento dos três planos da
existência samsárica ou ir para um dos infernos, e precisamos
desenvolver a coragem pra isso. A fim de atingirmos a iluminação para o
benefício de todos os seres sencientes, precisamos ser felizes e estarmos
dispostos a passar incontáveis eons no mais inferior dos reinos infernais,
Avichi. Isso é o que significa tomar para si o sofrimento que aflige os
outros.

O ponto é desenvolvermos coragem suficiente para estarmos dispostos a


ir para um dos reinos infernais; mas isso não quer dizer que realmente
precisemos ir. Quando Geshe Chekawa estava morrendo, de repente ele
chamou seus discípulos e pediu que fizessem oferendas especiais,
cerimônias e orações por ele, uma vez que sua prática não havia sido bem
sucedida. Os discípulos ficaram transtornados, pensando que algo terrível
estava prestes a acontecer. No entanto, o Geshe explicou que apesar de
ter rezado durante toda sua vida para nascer nos infernos e beneficiar os
outros, agora ele estava recebendo uma visão futura do que sucederia e
vendo que nasceria em uma terra pura ao invés de um inferno, e por isso
que estava aborrecido.

Da mesma forma, se desenvolvemos um desejo forte e sincero de


renascer em reinos inferiores (reinos piores), para o benefício dos outros
seres, geramos uma vasta quantidade de força positiva, que transforma-
se no resultado oposto. É por isso que sempre digo, se for para sermos
egoístas, que sejamos sabiamente egoístas. Egoísmo míope nos faz cair;
enquanto o egoísmo sábio nos faz virar Budas. Isso é realmente sábio!

Infelizmente, o que acontece é que primeiro nos apegamos a nos


tornarmos budas. Pelas escrituras, entendemos que para atingir o estado
de buda precisamos de bodhichitta e sem ela não conseguimos nos
iluminar. Relutantemente pensamos: “Quero me tornar um buda,
portanto preciso praticar bodhichitta.” Na verdade, não estamos tão
preocupados com bodhichitta quanto com atingirmos o estado de buda, o
que está completamente errado. Precisamos fazer o oposto; esqueça a
motivação egoísta e pense em como realmente ajudar os outros.

Se realmente formos para um reino infernal, não conseguiremos ajudar


nem aos outros e nem a nós mesmos. Como podemos ajudar alguém? Não
é apenas dando coisas materiais ou fazendo milagres, mas sim ensinando-
lhes dharma. No entanto, primeiro precisamos estar qualificados para
ensinar. No momento, não podemos explicar todo o caminho — todas as
práticas e experiências pelas quais uma pessoa precisa passar, desde o
primeiro até o último estágio, até a iluminação. Talvez possamos explicar
alguns dos estágios iniciais pela nossa própria experiência, mas não
muito mais que isso. Para sermos capazes de ajudar de forma mais
extensiva, liderando-os durante todo o caminho para a iluminação,
precisamos primeiro atingir a iluminação. Essa é a razão legítima para
sentir que precisamos praticar bodhichitta. É totalmente diferente do
costumeiro enfoque autocentrado com o qual, por conta de uma
preocupação egoísta com a própria iluminação, pensamos nos outros e
dedicamos nosso coração à bodhichitta simplesmente porque nos
sentimos obrigados. Essa forma de fazer as coisas é completamente falsa,
uma espécie de mentira.
Verso 8: Superar a Perturbação Causada pelos Oito Dharmas
Mundanos ao Realizar a Natureza Ilusória de Todos os Fenômenos
Durante tudo isso, que minha mente permaneça isenta das
máculas das concepções a respeito das oito coisas passageiras,
e que eu entenda todos os fenômenos como uma ilusão, que eu
me liberte da escravidão, sem nenhum apego.

Este verso lida com a consciência discriminativa, ou sabedoria. As


práticas anteriores não devem ser maculadas por concepções a respeito
das oito coisas transitórias da vida, os assim chamados “oito dharmas
mundanos” — elogio ou crítica, ouvir boas ou más notícias, ganhos ou
perdas, coisas indo bem ou indo mal.

Podemos nos referir a esses oito [dharmas mundanos] como branco,


preto ou misturado. Quando sentimos empolgação ao experimentar os
primeiros itens desses pares (elogio, boas notícias, ganhos e coisas indo
bem), ou demasiada depressão ao experimentar os segundos (crítica, más
notícias, perdas e coisas indo mal), e isso tem como causa o apego à
felicidade desta vida, o auto-apreço e o apego a um “eu” verdadeiramente
existente, dizemos que o dharma é preto. Quando não é causado pelo
apego a esta vida mas pelas outras duas motivações dizemos que é
misturado. E quando não é causado pelo apego a esta vida ou pelo o auto-
apreço, mas somente pelo apego a um “eu” verdadeiramente existente,
dizemos que é branco. Acho que não tem problema se eu explicar esse
verso apenas do ponto de vista de quando as práticas dos primeiros sete
versos são feitas sem serem maculadas pelas concepções com as quais
nos apegamos a um “eu” verdadeiramente existente face às oito coisas
transitórias da vida: elogio, crítica e assim por diante.

Como evitar macular nossa prática dessa forma? Reconhecendo que todos
os fenômenos existentes são ilusórios e, portanto, não nos apegando a
eles como sendo verdadeiramente existentes. Desta forma, nos
libertamos da servidão desse tipo de apego.

Entretanto, precisamos que fique bem claro o que a palavra “ilusório”


quer dizer aqui. A existência inerente (existência verdadeiramente
estabelecida) aparece para nossa mente no aspecto dos diversos objetos,
onde quer que se manifestem. Mas, na verdade, não existe existência
inerente. Em outras palavras, a existência inerente aparece apesar de não
haver existência inerente, portanto, essa existência é uma ilusão. Isso
significa que apesar de todas as coisas existentes parecerem ter uma
existência inerente, todos os fenômenos são destituídos desse modo
impossível de existência.

Para entendermos isso, é necessária uma compreensão correta, firme e


decisiva da vacuidade, a vacuidade das aparências manifestas. Primeiro
precisamos constatar que todos os fenômenos são destituídos de uma
existência encontrável e inerente (verdadeiramente estabelecida). A
seguir, quando algo que tem essa natureza vazia parecer ter existência
inerente, refutamos esse modo impossível de existência recordando-nos
de nossa constatação anterior de total ausência de existência inerente.
Quando juntamos essas duas abordagens — a aparência de uma
existência inerente encontrável e sua vacuidade, conforme
experimentada anteriormente — descobrimos a natureza ilusória de
todos os fenômenos. Assim, a aparência de uma existência inerente
encontrável é uma ilusão, e os fenômenos que aparecem como
verdadeiramente existentes são meramente uma ilusão, pois parecem
existir de uma maneira que não corresponde à realidade. Eles se
estabelecem meramente pela originação dependente.

É muito difícil compreender como algo que não é encontrável, e cuja


existência é estabelecida meramente por originação dependente,
funciona. Se conseguimos perceber que a existência, tanto do agente
como da ação, é estabelecida apenas por serem fenômenos que surgem na
dependência uns dos outros, e que não há como existirem por si só,
autoestabelecidos, a vacuidade aparecerá em termos de originação
dependente. Isso é o que há de mais difícil de entender. Se percebermos
corretamente essa forma de existir que não está baseada em uma
natureza encontrável e autoestabelecida — em outras palavras, uma
existência não inerente ou encontrável — a experiência dos objetos
existentes torna-se óbvia. A existência estabelecida ou explicada por uma
natureza encontrável é refutada pela lógica. A lógica nos convence de que
não há como os fenômenos terem uma natureza encontrável que
estabelece ou explica sua existência.

Entretanto, definitivamente os fenômenos existem, porque nossa


experiência deles é válida. Então, como eles existem? Em outras palavras,
o que estabelece ou explica sua existência? Sua existência é estabelecida
ou explicada como surgindo meramente na dependência do poder dos
nomes. Isso não quer dizer que os fenômenos não existam de forma
alguma; nunca se disse que as coisas não existem. O que se diz é que a
existência das coisas só pode ser estabelecida ou explicada na
dependência de nomes. Esse é um ponto difícil; algo que só conseguimos
entender aos poucos, com a experiência.
Primeiro precisamos analisar se as coisas têm ou não uma existência
inerente. Isso significa analisar se sua existência é verdadeiramente
estabelecida ou explicada por algo encontrável por si só, ou, de forma
simplificada, se as coisas são realmente encontráveis ou não. Mas, na
verdade, não conseguirmos encontrar nada que por si só estabeleça a
existência das coisas. De fato, não conseguimos encontrar nada: nada é
encontrável. No entanto, se dissermos que os fenômenos não existem de
forma alguma, isso é um engano, porque nós experimentamos as coisas.
Em outras palavras, apesar de não conseguirmos provar através da lógica
que as coisas têm uma existência inerente e encontrável sabemos, através
de nossa experiência, que elas existem. Assim, podemos concluir que as
coisas existem.

Agora, se as coisas existem, só há duas formas pelas quais sua existência


pode ser estabelecida: por si só, ou seja, por seu próprio poder, ou pelo
poder de outros fatores — quer dizer, ou são completamente
independentes ou surgem na dependência de outros fatores. Uma vez que
a lógica refuta que a existência das coisas pode ser estabelecida
independentemente, por seu próprio poder, a única forma possível de se
estabelecer sua existência é na dependência de outros fatores.

De que as coisas dependem para que sua existência seja estabelecida ou


explicada? Elas dependem de uma base para o rótulo e um conceito ou
nome que as rotule ou nomeie. Se os fenômenos pudessem ser
encontrados quando os procurássemos, seria porque sua existência é
estabelecida pela sua própria natureza. Nesse caso, as escrituras
Madhyamaka, que dizem que a existência das coisas não é estabelecida
pela natureza delas, estariam erradas. No entanto, não conseguimos achar
as coisas quando as procuramos: não conseguimos achar nada nelas que
estabeleça sua existência. O que descobrimos, então, é que a existência
dos fenômenos é estabelecida meramente pelo poder dos outros fatores,
ou seja, pelo poder dos nomes.

Aqui, a palavra “meramente” indica que algo está sendo excluído. Mas, o
que está sendo eliminado não é o nome em si, nem o que ele significa ou a
que se refere, que é o objeto de uma cognição válida. Não estamos
dizendo que nomes não significam nada ou não se referem a nada, e que
os objetos aos quais os nomes se referem não são objetos de cognição
válida. O que a palavra “meramente” exclui é a existência do fenômeno
como algo além do poder dos nomes. A existência dos fenômenos é
estabelecida meramente pelo poder dos nomes; mas nomes referem-se a
algo, e aquilo a que eles se referem são os objetos de cognição válida.
Assim, a natureza verdadeira das coisas é que sua existência é
estabelecida ou explicada meramente pelo poder dos nomes. Não existe
outra alternativa, apenas o poder dos nomes. Mas isso não significa que
não haja nada além de nomes. Os fenômenos existem: existem os objetos
que são a referência para os nomes e existem os nomes. O que estabelece
a existência dos objetos aos quais os nomes se referem? Sua existência
também é estabelecida meramente pelo poder dos nomes. De acordo com
a Prasangika Madhyamaka, a mais elevada e precisa visão, se for um
objeto externo ou uma consciência interna, a situação é a mesma. A
existência de ambos é estabelecida meramente pelo poder dos nomes;
nenhum dos dois tem uma existência estabelecida de forma verdadeira e
encontrável. A existência de pensamentos e conceitos é, da mesma forma,
estabelecida meramente pelo poder dos nomes, o que também ocorre
com a vacuidade, o Buda, o bem, o mal e a indiferença. A existência de
todos os fenômenos, de tudo, é estabelecida apenas pelo poder dos
nomes.

Quando dizemos “apenas nomes” isso exclui os objetos cuja existência


não é estabelecida meramente pelo poder de seus nomes. Não existe
outra forma de entendermos que “apenas nomes” signifique algo além
disso. No entanto, consideremos uma pessoa real e uma pessoa fantasma.
Elas são iguais, no sentido de que sua existência só pode ser estabelecida
ou explicada meramente pelo poder de seu nome. Mas existe uma
diferença entre as duas. O que quer que exista ou não exista pode ser
mentalmente rotulado, e isso é tudo. Podemos rotular mentalmente
“pessoa real” e “pessoa fantasma”. Mas no que diz respeito aos nomes,
alguns nomes referem-se a coisas que existem e outros não. O nome
“pessoa real” refere-se a algo que existe, enquanto o nome “pessoa
fantasma” não se refere a algo existente — refere-se a algo que não existe.

Conclusão

Quando percebemos que pessoas que nos desafiam emocionalmente, e as


palavras duras e o comportamento desagradável que dirigem a nós, são
como uma ilusão, não projetamos nelas uma existência verdadeira e
encontrável como pessoas execráveis, palavras terríveis ou
comportamentos horríveis. Elas são destituídas dessa forma impossível
de existência. Vendo como os conceitos e palavras, ou seja, os nomes, com
os quais rotulamos e designamos essas pessoas afetam a forma como as
consideramos, somos capazes de transformar nossa atitude em relação à
elas, rotulando-as como joias realizadoras de desejos. Vendo-as assim,
consideramos nosso encontro com elas uma oportunidade preciosa de
desenvolvermos boas qualidades, como paciência e humildade.
Comentário sobre “Treinamento da
Mente em Sete Pontos” – Dr. Berzin

Preliminares e Treinamento em
Bodhichitta
Pontos 1 e 2
“Lojong” é uma palavra tibetana que normalmente é traduzida como “treinamento
mental”, mas não acho essa tradução muito apropriada porque, para a maioria das
pessoas, esse termo parece referir-se a algo exclusivamente intelectual. “Lo”
significa “atitude” e “jong” significa “limpar” e “treinar”, no sentido de remover
atitudes negativas e gerar mais atitudes positivas. O objetivo principal das praticas
de lojong é limpar a mente e o coração das atitudes negativas e treinar em
substituí-las por atitudes positivas.

As práticas de lojong chegaram ao Tibete no início do século XI, vindas da Índia


com Atisha. Primeiro elas foram integradas à tradição Kadam e depois
incorporadas em todas as quatro escolas do budismo tibetano. Essas práticas são
um dos ensinamentos que unem todas as tradições, pois a única diferença
significativa entre os comentários das diferentes escolas é a interpretação e a
explicação da vacuidade.

Atisha recebeu a tradição do lojong de seu professor Dharmarakshita, autor


de Roda de Armas Afiadas. Mas o texto Treinamento da Mente em Sete Pontos foi
escrito cerca de um século mais tarde, por Geshe Chaykawa, da tradição Kadam.
Duas linhagens desses ensinamentos derivam de seu discípulo Geshe Lhadingpa.
Uma é a de Togmey-zangpo, autor de 37 Práticas do Bodhisattva, que é seguida
pelas escolas Kagyu, Sakya e Nyingma. A outra chegou às mão de Tsongkhapa
quase três séculos mais tarde, e é seguida pela escola Gelug.

As divergências entre as duas linhagens estão na disposição de algumas linhas nos


versos, e determinadas linhas que aparecem em uma linhagem não aparecem na
outra. Até dentro de uma única linhagem, existem várias versões do mesmo texto,
mas Sua Santidade o Dalai Lama explica que as diferenças não são significativas,
pois o significado final é o mesmo. Aqui, veremos a versão de Togmey-zangpo,
seguida da explicação que recebi de Tsenzhab Serkong Rinpoche e complementada
com alguns explicações de Geshe Ngawang Dhargyey.

Primeiro Ponto: As Preliminares


Prostrações à grande compaixão. Primeiro treine nas preliminares.
O primeiro dos sete pontos cobre as práticas preliminares, que são a base de todos
os ensinamentos Mahayana. Essas práticas nos ensinam a respeito da vida humana
preciosa, da impermanência e morte, e do que é normalmente chamado de
“refúgio”, mas que eu chamo “direção segura”. Não olhamos para o Buda, o dharma
e a sangha, e dizemos “Salvem-me!”. O que fazemos é alinhar nossa vida na direção
segura e positiva indicada pelo Buda, o dharma e a sangha. A seguir, vêm os
ensinamentos sobre o karma, ou seja, as causas e efeitos de nosso comportamento.
E, finalmente, analisamos as desvantagens do samsara, que se refere às situações
incontrolavelmente recorrentes desta e de futuras vidas. As preliminares são
importantes porque fazem com que desenvolvamos uma atitude muito especial
perante a vida, que servirá de base para todos os demais ensinamentos. Passamos
a apreciar as oportunidades preciosas que temos nesta vida, e percebemos que não
vão durar para sempre. Isso nos estimula a aproveitar nossa situação atual e
trabalhar para nos livrarmos de todos os problemas e suas causas, além da
confusão e sofrimento deles resultantes. Para isso, precisamos trabalhar com as
causas e efeitos de nosso comportamento, e não apenas rezar para atingirmos um
objetivo, sem fazermos coisa alguma para que isso aconteça. A maioria de nós está
apenas buscando fazer seu samsara um pouco melhor, mas aqui o objetivo é mais
elevado. Queremos melhorar nossas vidas futuras como um passo no caminho para
a completa liberação de todos os obstáculos, dificuldades e confusão — não
importa quantas vidas necessitemos para isso.

Para a maioria de nós, isso é muito difícil. Normalmente não pensamos muito em
termos de vidas futuras, muito menos de liberação dos renascimentos. Se não
acreditamos em renascimentos, como podemos ter como meta nos liberarmos
deles? Como podemos querer nos iluminar para ajudar todos os outros seres a se
livrarem do ciclo incontrolável de renascimentos? Nada disso é fácil se não
tivermos total convicção na existência dos renascimentos.

Sendo ocidentais, a primeira coisa que precisamos entender é o significado da


explicação budista de renascimento. Mesmo que nossa motivação foque
principalmente em melhorar esta vida, ainda podemos estar abertos à ideia de
renascimentos, da liberação dos renascimentos e da possibilidade de ajudarmos os
outros seres a também se liberarem. A explicação budista de renascimento é
bastante sofisticada, o que faz com que seja muito difícil de entender. Mas é
importante que tenhamos interesse em estudar e meditar sobre o assunto até
conseguirmos entendê-lo corretamente.

Digo isto porque, na verdade, os ensinamentos do lojong são muito avançados.


Realmente não são para iniciantes! Por exemplo, tem um ensinamento que diz que
na hora da morte devemos rezar para renascer em um dos infernos; é um tanto
difícil nos identificarmos com isso, não é? Qualquer que seja a forma como
abordamos os ensinamentos do dharma, precisamos ser honestos e realistas com
relação ao nosso nível de desenvolvimento, e ter uma boa ideia do que é o
verdadeiro caminho. Nunca é bom fingir sermos mais avançados do que somos.
Este texto nos ensina a atitude de realmente querer levar todo e qualquer ser à
iluminação, até mesmo uma simples barata. Quantos de nós podemos dizer que
estamos neste nível?! Precisamos saber que as práticas de lojong são muito
profundas e de longo prazo. Podemos nos beneficiar um pouco se começarmos
agora mas, uma vez que as práticas são progressivas, devemos sempre manter em
mente que, à medida que formos avançando, vamos querer voltar para aprofundar
determinados pontos.

Neste contexto, isso significa que não passaremos pelas preliminares apenas uma
vez. Não são algo de que temos que nos livrar a fim de poder seguir para as
práticas mais interessantes. Esse texto é escrito sob o ponto de vista de pessoas
que têm bodhichitta, ou seja, um coração que almeja a iluminação, a qual só é
alcançável por termos as qualidades da natureza búdica. Bodhichitta tem dois
intuitos, o primeiro é alcançarmos a iluminação e o segundo é, com isso,
beneficiarmos todos os seres. Nos textos dos ensinamentos orais, esses dois
intuitos não são apresentados nesta ordem, pois na prática a ordem é inversa.
Primeiro nossa principal intenção é ajudar os outros. Por estarmos incrivelmente
tocados por compaixão e preocupação, sentimos que simplesmente temos que
ajudá-los a superar o sofrimento. Vemos que, apesar de podermos tentar ajudá-los
agora, para realmente ajudá-los precisamos eliminar todos os nossos obstáculos e
realizar todo o nosso potencial. Precisamos nos tornar Budas para conseguirmos
ajudá-los o máximo possível. Mas essa aspiração de nos tornarmos budas vem em
segundo lugar. A primeira aspiração é ajudar todos os seres.

Simplificando, o fato de termos uma vida humana preciosa, e a oportunidade de


ajudar os outros, é incrível. Mas também é impermanente, pois sem dúvida vamos
morrer, e não sabemos quando. Isso é muito ruim! Mas nos motiva a ajudar as
pessoas ao máximo e agora, antes de termos Alzheirmer, de não conseguirmos
mais usar nossa mente e morremos. Para ajudarmos os outros, precisamos
genuinamente tomar uma direção segura ou refúgio no Buda, dharma e sangha,
além de evitar comportamentos destrutivos. Por causa da desvantagens do
samsara, também devemos evitar o encantamento com o renascimento samsárico
em geral, como o apego aos prazeres efêmeros e as frustrações de termos que
enfrentar problemas após problemas. É simples e direto: tentamos ajudar pessoas
e não ser pegos por nossas próprias emoções perturbadoras. Portanto, as
preliminares precisam ser compreendidas no contexto de bodhichitta.

Ponto Dois: O Verdadeiro Treinamento em Bodhichitta

O segundo ponto cobre o verdadeiro treinamento em bodhichitta, e é dividido em


duas partes: bodhichitta profunda (absoluta) e bodhichitta convencional (relativa).
Primeiro veremos a bodhichitta profunda:

Pondere o fato de que os fenômenos são como sonhos. Examine a natureza


básica da consciência não surgida. A força opositora (antídoto) libera-se em
seu próprio lugar. A natureza essencial do caminho é estabelecer-se em um
estado que a tudo engloba. Entre sessões, aja como uma pessoa ilusória.

A bodhichitta profunda é uma mente voltada à vacuidade, ou seja, a como as coisas


existem. Para atingirmos a iluminação, precisamos entender a realidade de como
nós, os outros e tudo o mais existe, assim, podemos remover os problemas e
hábitos causados pela confusão que fazemos sobre isso.

O que é vacuidade? Colocando de forma bem simples, a vacuidade refere-se à


ausência de formas impossíveis de existência. Diferentes teorias budistas indianas,
e várias escolas budistas tibetanas, definem essas “formas impossíveis de
existência” de maneira ligeiramente diferente. Mas independente disso,
precisamos parar de projetar formas impossíveis de existência no processo de
tentarmos ajudar os outros. Precisamos nos livrar de qualquer pensamento de que
existe um “eu” sólido sentado aqui, um “eu” que é tão maravilhoso ao fazer esse
tipo de prática e tentar ajudar um pobre e desafortunado “você”, que está aí.
Também não devemos pensar que existe um pobre “eu” sólido aqui, que jamais
conseguiria ajudar essa outra pessoa sofrendo aí. Embora possamos imaginar que
isso corresponde à realidade, e embora as coisas possam realmente parecer ser
assim, precisamos estar atentos ao fato de aquilo que achamos ser verdadeiro é, na
realidade, como um sonho, ou uma ilusão. O fato é: estamos todos inter-
relacionados; não existimos como seres isolados em um vácuo. Interagimos uns
com os outros e, assim sendo, podemos ajudar uns aos outros. Outra forma
impossível de existência é acharmos que somos super poderosos e podemos
instantaneamente curar os problemas de todos os seres. Isso é obviamente
impossível. Para que os demais seres superem seus problemas, precisam eliminar
suas causas, ou seja, a confusão. Precisamos entender a realidade, assim como
todos os outros seres. Ninguém pode fazer isso por nós. Podemos mostrar o
caminho e tentar deixar a vida um pouco mais fácil para os outros mas, no final,
eles têm que entender a realidade por si próprios.

A segunda parte do segundo ponto diz respeito à bodhichitta convencional, ou


relativa:

Treine em dar e receber de forma alternada, seguindo o fluxo da respiração.

Esta passagem refere-se a uma sessão de meditação em que a principal prática é


“tonglen,” “dar e receber”. Nesta prática, imaginamo-nos removendo
compassivamente o sofrimento e os problemas de todos os seres e tomando-os
para nós. Aplicando os antídotos com amor, imaginamo-nos dando-lhes as
soluções para seus problemas e toda a felicidade.

Tonglen é uma prática incrivelmente avançada e muito difícil de ser feita com
sinceridade. É fácil fingirmos que estamos fazendo, mas tomar o sofrimento alheio
com sinceridade, e realmente experimentar esse sofrimento, é muito, muito
avançado. Requer uma compreensão genuína da natureza da dor. Se não
compreendermos a relação da dor e do sofrimento com a mente, ficaremos
aterrorizados frente à possibilidade de realmente tomarmos para nós o câncer ou a
dor do câncer de alguém. Por isso é tão importante compreendermos a natureza da
realidade e da mente. Quando temos a compaixão para desejar que os outros se
livrem de seus problemas, e estamos dispostos a tomá-los para nós, isso significa
que estamos dispostos a sofrer.
Não significa que tiraremos o sofrimento deles e simplesmente o jogaremos fora. O
sofrimento precisa passar por nós. Precisamos experimentá-lo. No nível inicial,
isso significa que não podemos temer ficar tristes com o sofrimento alheio.
É triste que alguém tenha câncer ou Alzheimer. É muito triste! Portanto, não
adianta nada fazermos a prática mas erguermos um muro em volta dos nossos
sentimentos porque não aguentamos o sofrimento. Precisamos sentir a tristeza e a
dor da outra pessoa e ver que, no nível da natureza básica da mente, tristeza e dor
são apenas ondas. O nível básico da mente é experiência pura, e alegria e felicidade
são suas qualidades naturais. É com base nisso que somos capazes de projetar
felicidade para os outros seres. No entanto, sem realização da vacuidade e muita
prática de mahamudra, é muito difícil fazermos tonglen com sinceridade. Não
quero desencorajar ninguém a praticar porque, mesmo nos níveis iniciais de
desenvolvimento, esta é uma prática muito útil. Mas realmente, tomar,
experimentar e dissolver o sofrimento na felicidade natural da mente, e enviar aos
outros essa felicidade, é uma prática muito avançada. Na verdade, é uma prática de
mahamudra que, em certo sentido, é para nosso próprio benefício. Isto porque,
para praticá-la, precisamos destruir nossa atitude autocentrada de não querermos
nos envolver nos problema dos outros — uma resistência a “sujar as mãos” ao
termos de lidar com esses problemas.

Mas como essa prática pode beneficiar os demais seres? Todos têm seu próprio
karma, como podemos absorvê-lo com tonglen? Bom, o karma precisa de
determinadas circunstâncias para amadurecer, então, o que podemos fazer é
providenciar as circunstâncias que ajudarão esse karma a amadurecer mais
rapidamente e de uma outra forma. Se a pessoa estiver doente, significa que seu
karma já amadureceu na forma desta doença. No entanto, se for uma doença
curável, ela só será curada se tiver a causa kármica para isso. O que podemos fazer
é providenciar a circunstância que permite o amadurecimento desse potencial
positivo.

Por exemplo, como funciona a prática do Buda da Medicina? O Buda da Medicina


não é Deus; ele não pode, com seu poder, curar-nos de uma doença. Mas, ao
fazermos oferendas e práticas, criamos as condições para que o karma negativo,
que está perpetuando a doença, amadureça de forma muito mais branda. A
inspiração (bênção) do Buda da Medicina é, na verdade, a inspiração que vem de
nossa própria mente de clara luz, que ajuda a trazer à superfície nossos potenciais
mais profundos, para que eles possam amadurecer. O que chamo de inspiração é
normalmente traduzido como “bênção”, como em “Oh Buda da Medicina! Abençoe-
me para que eu melhore!” Nossa forte motivação de melhorarmos, a fim de sermos
capazes de ajudar os outros seres, é o que cria as circunstâncias para que o karma
negativo amadureça de forma muito mais amena, e o karma positivo aflore e
amadureça. Essa energia inspirada de nossa própria mente individual de clara luz,
representada pelo Buda da Medicina, é o que permite que todo esse processo
ocorra.

O mesmo acontece com a prática de tonglen, que cria as circunstâncias para que o
karma negativo da outra pessoa amadureça de forma mais amena e o positivo mais
rapidamente. Os beneficiados não precisam saber — é até melhor que não saibam.
Para sermos capazes de tomar e sentir o sofrimento alheio, e deixar que se dissolva
na natureza pura de nossa mente, precisamos da imensa energia de bodhichitta e
da inspiração de nossos professores, como em qualquer prática Mahayana.
Portanto, antes de praticarmos tonglen, precisamos passar por todos os estágios
de desenvolvimento de bodhichitta. Naturalmente, precisamos ter algum nível de
amor e compaixão para conseguirmos sequer considerar tomar para nós os
problemas alheios. Em um nível mais profundo, precisamos da compaixão amorosa
para, não apenas querer tomar para si os problemas alheios, como também ser
capaz de chegar ao nível de clara luz da mente. É uma prática muito profunda!

Outro fato a respeito do tonglen é que está baseado na compreensão da


bodhichitta mais profunda (absoluta), ou seja, da vacuidade. Se pensarmos em
termos de um “eu” sólido, ficaremos com medo demais de tomar o sofrimento
alheio. Precisamos dissolver esse forte sentimento de “eu”, que nos impede de
praticar com sinceridade, ou seja, de realmente tomar e vivenciar o sofrimento dos
demais, e ter capacidade de suportá-lo. Para isso, precisamos da compreensão da
vacuidade e uma habilidade básica na prática mahamudra da natureza da mente.
Assim, seremos capazes de dissolver o sofrimento na pureza natural da mente. Não
tomamos simplesmente o sofrimento e o mantemos dentro de nós. Uma vez que
possuímos a verdadeira fonte da felicidade, da natureza mais sutil da mente,
também a doamos aos outros.

Mas, como podemos experimentar uma coisa que é de outra pessoa? Basicamente,
o forte desejo de tomarmos para nós o sofrimento alheio é o que age como
circunstância para que nosso próprio karma negativo amadureça em
sofrimento. Queremos que isso aconteça, para que possamos queimar nosso karma
negativo — este é um outro nível que temos que trabalhar na prática do tonglen.
Não estamos tomando o sofrimento dos outros como quem toma o sanduíche de
alguém para comê-lo. É muito mais sutil que isso, é trabalhar em termos das
circunstâncias e condições.

Meu professor, Serkong Rinpoche, sempre usava um exemplo que deixava todo
mundo desconfortável, o de um grande lama que fez tonglen, tomou uma doença
terrível de outra pessoa e morreu. Toda vez que ensinava tonglen, ele contava cada
detalhe dessa história. A questão é que precisamos ser sinceros em nossa vontade
de tomar o sofrimento alheio, devemos estar dispostos a morrer. Perguntávamos a
ele, “Se alguém como você, Rinpoche, tomasse o sofrimento de um cachorro e
morresse, não seria uma pena?” E ele respondia, “Quando um astronauta morre no
espaço, torna-se um herói, e o governo e outras pessoas passam a cuidar de sua
família. Da mesma forma, se um grande professor morrer por praticar tonglen,
alcançará, ou quase alcançará, a iluminação por conta da força de sua compaixão e
bodhichitta e, assim, cuidará de seus discípulos ao proporcionar-lhes inspiração.”

Realmente extraordinário foi o fato de que, tendo ensinado isso muitas vezes, meu
professor realmente morreu de tonglen. Serkong Rinpoche viu que havia um sério
obstáculo à vida de Sua Santidade o Dalai Lama e que seria melhor se o tomasse
para si.

Algumas semana antes, eu levei Serkong Rinpoche para fazer exames e ele estava
com a saúde perfeita. Certo dia, Rinpoche terminou um ensinamento na remota
área de Spiti, nos Himalayas indianos, e foi para a casa de uma determinada pessoa.
Mas primeiro parou no monastério para fazer oferendas. Lá, os monges pediram,
“por favor fique”, mas ele respondeu, “Não, se quiserem me ver novamente, terão
que ir a essa casa para onde estou indo.” Chegando à casa, ele fez o que costumava
fazer à noite, ou seja, práticas muito intensivas, e depois sentou-se em uma postura
que nãoo era o modo como costumava dormir. Então disse ao seu discípulo senior
que entrasse no quarto e começou a fazer uma prática, que obviamente era
tonglen, e morreu.

Foi extraordinário, porque naquela hora Sua Santidade estava em um avião


dirigindo-se a Genebra e Yasir Arafat também estava indo para Genebra na mesma
hora. As autoridades estavam receosas de haver algum atentado terrorista e
disseram que não poderiam garantir a segurança de Sua Santidade. Quando
Rinpoche fez a prática, Arafat, que já estava no ar, mudou de ideia e fez o avião
voltar, não pousando em Genebra. Com a ação de Rinpoche, esse enorme obstáculo
à vida de Sua Santidade ainda assim amadureceu, mas de maneira muito trivial.
Quando Sua Santidade aterrissou, havia uma certa confusão no aeroporto e o carro
em que estava se perdeu, mas foi basicamente isso. O karma negativo amadureceu
como algo muito ameno, e o que Serkong Rinpoche fez serviu como circunstância
para que seu próprio karma de morrer aflorasse, e ele morreu. Tinha apenas 69
anos — mas achou que a maior contribuição que poderia fazer seria prover as
circunstâncias para que a vida de Sua Santidade fosse mais longa. Através de seu
exemplo, proporcionou muita inspiração a seus discípulos. Sempre me perguntei
se ele já não sabia há muitos anos que isso iria acontecer, pois foram muitas as
vezes em que presenciei suas habilidades extra sensoriais.

Tonglen só funciona assim se tivermos uma conexão kármica muito forte, como a
que temos com nossa família e amigos. Serkong Rinpoche tinha tal conexão com
Sua Santidade, já que havia sido um de seus professores desde a infância. O
importante é termos a coragem de sentir isso, de que mesmo que tenhamos de
sofrer a doença de um parente, não tem problema, desde que isto seja a
circunstância para que ela se manifeste de forma mais amena nele.

Geralmente fazemos essa prática de tonglen quando estamos doentes, imaginando


que estamos tomando a doença de todos os que sofrem da mesma circunstância
que nós. No entanto, depois de fazer a prática, podemos continuar doentes e
sofrendo, e a doença dos outros não ter ido embora. Nesse caso, podemos
trabalhar com nossa própria dor e angústia mental com métodos básicos de
mahamudra. Sentimos que somos um oceano e visualizamos a dor e o sofrimento
como apenas uma onda na superfície, uma onda que não perturba as profundezas
do oceano.

Se praticarmos tonglen a fim de tomar para nós toda a gripe dos outros, mas nosso
objetivo real for curar a própria gripe, não funcionará. Mesmo que
inconscientemente, esse tipo de pensamento é um grande obstáculo para o
funcionamento da prática, pois ela precisa ser feita com base em pura compaixão.
Em muitos casos, a prática não funciona porque não temos uma conexão forte o
suficiente com as pessoas. É por isso que temos a oração, “que eu possa eliminar o
sofrimento de todos os seres em todas as suas vidas” Essa oração é importante
porque estabelece a conexão para que esse tipo de prática funcione.

Qual o objetivo da prática? Em um certo nível, é ajudar os outros, claro. Mas na


maioria dos casos isso não funcionará. Portanto, o objetivo secundário é nos ajudar
a alcançar a iluminação. Como? Uma vez que envolve bodhichitta, então deve ser
um método para atingir-se a iluminação. O que nos ajuda a alcançar a iluminação é
desenvolver a coragem para superar o auto-apreço e a disposição em lidar com os
problemas de todos os demais seres. Como bodhisattvas e budas, teremos que
estar dispostos a envolvermo-nos com os problemas mais terríveis. Praticar
tonglen nos ajuda a superar a atitude de auto-apreço: “Não quero me envolver. Não
quero sujar minhas mãos. Não quero ir a um hospital velho e lidar com todos os
pacientes de Alzheimer, porque é muito triste e deprimente. Não consigo
suportar”. Temos que superar o sensação de haver um grande, forte e sólido “eu”,
pois isso é o que está por traz dessa atitude de auto-apreço.

Muitas das visualizações que Serkong Rinpoche ensinava e Sua Santidade ainda
ensina são horríveis, mas muito, muito poderosas. Todas as tradições ensinam que
devemos fazê-las seguindo o ritmo da respiração. Ao inspirarmos, imaginamos
com compaixão (desejando que os outros estejam livres do sofrimento e suas
causas) que todo o sofrimento alheio vem em nossa direção, em alguma forma
gráfica. Ao expirarmos, visualizamos com amor (desejando felicidade e as causas
da felicidade) nossa felicidade sendo enviada para as outras pessoa, na forma das
coisas que elas precisam. Nos métodos mais avançados, ensinados por Serkong
Rinpoche e o Dalai Lama, não visualizamos simplesmente uma luz negra vindo em
nossa direção; imaginamos substâncias sujas, como óleo de carro, graxa e sujeira.
Assim, podemos trabalhar em superar o sentimento de não querermos nos sujar.
Esse é o primeiro passo. Depois, visualizamos o sofrimento vindo na forma de
urina, diarreia, vômito, sangue e tripas. Isso nos ajuda a superar sentimentos de
indiferença, tais como “Oh, alguém foi atropelado por um carro e está deitado na
rua; não quero nem olhar, é muito horrível e nojento.”

Começamos lidando com coisas menos horripilantes, como diarreia e vômito, e


seguimos imaginando o sofrimento vindo na forma daquilo de que realmente
temos medo: aranhas, escorpiões, baratas, cobras, ratos, ou o que seja. Imaginamos
que inspiramos todas essas coisas nojentas e que elas vão para o nosso coração,
opondo-se ao ego sólido que sempre diz, “Nem pensar, não quero lidar com isso!” É
por isso que a prática de tonglen é incrivelmente avançada e profunda. Pois, para
realmente chegarmos ao nível de clara luz, temos que ser capazes de dissolver
todos os nossos medos e as defesas do ego, bem como a dor e o sofrimento alheios
que não queremos experimentar.

Mesmo nos níveis iniciais, essa prática pode ser muito benéfica, porque nos ajuda a
levar a sério os problemas dos outros. Na verdade, este é o primeiro passo. Ao
tomarmos o problema para nós, passamos a lidar com ele como se fosse nosso.
Considere o caso de um sem-teto no inverno, que está com fome e frio, sem
trabalho nem casa, e que está doente ou com dor. Imaginamos como seria e
sentimos o sofrimento. Tentamos buscar alguma solução para lidarmos com ele.
Praticar apenas neste nível já é muito benéfico, mas não é a única forma. Existem
muitos, muitos níveis mais profundos.

Ao tomarmos o sofrimento alheio, temos que ter muito cuidado para não cairmos
no extremo do mártir, pensando “Tomarei o sofrimento de todos para a glória do
Buda”. Isso não tem nada a ver com o que fazemos. E também é muito importante
não achar que tomar todo o sofrimento é o caminho para a iluminação. Precisamos
cuidar para não querermos tomar o sofrimento dos outros por causa de nossa
baixa autoestima. “Sou uma pessoa tão terrível que preciso sofrer, eu mereço.”

Essa prática pode nos trazer à mente a imagem de Jesus tomando todo o
sofrimento da humanidade. Jesus certamente estava disposto a sentir esse
sofrimento e o medo do sofrimento. No entanto, do ponto de vista budista,
ninguém pode impedir todo o sofrimento do universo. Apesar de estarmos
cultivando a aspiração de que ao sofrermos os outros possam se livrar do
sofrimento, não devemos inflar nosso ego achando que podemos fazer milagres e
resolver os problemas de todos os demais. O ponto principal é desenvolver
coragem para ajudar os outros mesmo nas situações mais difíceis — nos Kosovos,
Bosnias e Ruandas do mundo.

A seguir, veremos o que devemos fazer entre as sessões no dia-a-dia:

[No que diz respeito] aos três objetos (seres que consideramos atraentes,
repulsivos ou neutros), [tome para si] as três atitudes venenosas (desejo,
aversão e ignorância) e [dê ao outro] as três raízes do que é construtivo
(desapego, imperturbabilidade e sabedoria), [ao mesmo tempo em que] treina
com palavras em todos os caminhos comportamentais.

Os três objetos são os seres que achamos atraentes, repulsivos ou neutros. E as três
atitudes venenosas são o desejo a aversão e a ignorância (ingenuidade). Quando
sentimos desejo por alguém que achamos atraente, aversão por alguém que
achamos repulsivo e ignoramos alguém que consideramos neutro, nos imaginamos
tomando essas três atitudes venenosas de todos os que as têm. E então lhes damos
as três raízes do que é construtivo, ou seja, desapego, imperturbabilidade, e
sabedoria. Assim lidamos com nossos problemas em relação a isso. Também
podemos suplementar nossa prática com palavras como “Que todo o sofrimento
dos outros amadureça em mim, e que toda a minha felicidade amadureça neles.”

Quanto à ordem (por quem começar), comece consigo.

Se estivermos sofrendo de um determinado problema, precisamos primeiro aceitar


e lidar com ele, só depois podemos aplicar o método de tomarmos para nós o
mesmo problema de todos os outros seres. Por isso, começamos a prática conosco.
Caso contrário, se não conseguimos encarar nossos problemas, podemos focar nos
problemas dos outros como fuga.
Transformando as Circunstâncias e
um Resumo da Prática
Pontos 3 e 4
Ponto 3: Transformando Circunstâncias Adversas em Caminho
para a Iluminação

O terceiro ponto trata da transformação das circunstâncias adversas em caminho


para a iluminação e está dividido em várias partes. Uma, diz respeito aos
pensamentos e as outras às ações. Transformar os pensamentos significa
transformar os pensamentos que estão por trás de nosso comportamento e visão
da realidade. Primeiro veremos os pensamentos que estão por trás de nosso
comportamento:

Quando as pessoas e o meio ambiente à sua volta estiverem cheios de energia


negativa, transforme as condições adversas em caminho para a iluminação,
banindo [a atitude autocentrada], que é a culpada por tudo, e meditando com
grande afetuosidade sobre os outros seres.

Não entrarei em muitos detalhes no que diz respeito ao nosso comportamento; o


principal é percebermos que todas as nossas dificuldades vêm do autoapreço, e
todas as qualidades positivas vêm de cuidarmos e nos preocuparmos com os
outros. Portanto, precisamos nos livrar do autoapreço, que é o culpado por nosso
sofrimento. Quando percebermos a importância e os benefícios de cuidar dos
outros, meditaremos com grande consideração por todos os seres. E quando
estivermos sofrendo, tentaremos ver o sofrimento como resultado, ou culpa, do
autocentramento e do egoísmo.

Mas o que queremos dizer com autocentramento e egoísmo? Bom, digamos que
fomos convidados para uma refeição na casa de alguém, e nosso anfitrião fez um
prato de que realmente não gostamos. Ficamos aborrecidos e sofremos. Portanto,
eis uma situação negativa. Como transformar essa situação em algo positivo, que
nos ajude a ir adiante no caminho para a iluminação? Primeiro, precisamos
identificar o problema e o por quê de estarmos sofrendo. Se ficarmos pensando no
quanto nosso anfitrião é ruim e culpando-o, significa que só estamos pensando em
nós mesmos, o que é um problema. Não estamos pensando nem um pouco na outra
pessoa que tentou fazer uma refeição que nos agradasse, no anfitrião ou anfitriã
que de forma alguma teve a intenção de fazer algo que não gostamos. É por
estarmos pensando em mim e eu, e naquilo que eu quero, que sofremos e ficamos
aborrecidos. Nesse tipo de situação, tentamos usar o ocorrido para atacar a forte
preocupação que temos com o eu e o que eu quero.
A estrutura aqui é bem semelhante à do tonglen. Nas visualizações mais pesadas
do tonglen, tomamos para nós vômito, diarréia, etc, mas naturalmente resistimos,
por causa da preocupação autocentrada. Assim como precisamos superar nossa
falta de vontade de sofrer e nos sujarmos, e deixar que essas coisas simplesmente
passem por nós, também não devemos fazer um drama sobre o que nos serviram
para jantar. Por conta do desejo em fazer nosso anfitrião feliz, tomamos para nós o
sofrimento de comer algo cujo sabor não apreciamos.

É claro que existem exceções, como no caso de sermos alérgicos à comida. Não
precisamos ser fanáticos. Mas, mesmo neste caso, existem muitas formas de nos
justificarmos, que demonstram mais consideração do que simplesmente
preocuparmo-nos com o que queremos e nos irritarmos pensando “Você está
querendo me envenenar?”

Uma outra forma de transformar situações negativas em positivas é vê-las como


uma oportunidade para queimar potenciais kármicos negativos — que, afinal, é
algo que precisamos fazer de qualquer jeito para atingir a iluminação. Podemos
pensar, “Vamos acabar com isso de uma vez por todas!” É como ir ao dentista; ao
invés de fazê-lo perfurar nosso dente um pouquinho a cada sessão, é melhor que o
deixemos fazer tudo de uma vez, assim ficamos logo livres. “Faça tudo de uma vez e
então estarei livre, para sempre”.

Quando pensamos em tomar para nós o sofrimento alheio, o foco de nosso


pensamento deixa de ser “pobre de mim”, o que é basicamente preocupação
autocentrada e autoindulgência. Buscamos seguir o exemplo da mãe cujo filho está
com gripe e deseja, mais que tudo, ficar gripada em seu lugar. Se estamos cuidando
de uma pessoa gripada, temos que estar dispostos a pegar gripe. Pois se ficamos
preocupados em pegar a doença, não conseguimos cuidar. Madre Teresa
costumava dizer isso aos que chegavam para trabalhar com ela. Dizia que para
trabalharmos com leprosos temos que estar dispostos a pegar lepra. Se tivermos
medo de pegar, é melhor não tentarmos ajudar. Inclusive, quanto mais medo
tivermos, maiores nossas chances de realmente pegar, o que é uma ironia. Todos já
percebemos que quando estamos muito preocupados com alguma coisa dar
errado, geralmente dá.

A vacuidade, [cuja compreensão vem] de meditarmos sobre as aparências


ilusórias como sendo os quatro corpos dos budas, é o protetor incomparável.

Também podemos transformar as circunstâncias negativas através de nossa visão,


ou olhar, ou seja, de nossa visão da natureza vazia da realidade. A ilusão, aqui, é o
sofrimento parecer inerente (autoestabelecido). Reminiscente de um Dharmakaya
(a mente onisciente de um buda, ou seja, o estado natural e puro da mente), que
não surge de causas e condições, o sofrimento também não surge inerentemente,
pois tal surgimento não existe. Reminiscente de um Sambhogakaya (manifestações
sutis de um buda) que nunca para de ensinar nas terras puras, o sofrimento nunca
tem um cessar autoestabelecido. Reminiscente de um Nirmanakaya (as formas
com as quais os budas aparecem em nosso mundo), que nunca permanece igual e
está sempre ajudando em formas que mudam continuamente, o sofrimento nunca
tem uma permanência verdadeiramente estabelecida. Remanescente de um
Svabhavakaya (a inseparabilidade desses três corpos dos budas) o sofrimento não
pode ter surgimento, permanência ou cessação autoestabelecidos. Uma vez que o
sofrimento surge, permanece e cessa na dependência de causas e condições, é
totalmente destituído de surgimento, permanência e cessação autoestabelecidos.

É assim que transformamos as circunstâncias difíceis através de nossos


pensamentos.

O método supremos implica em quatro ações. [Portanto,] use imediatamente


em sua meditação o que quer que encontre.

Para transformarmos as circunstâncias adversas através das ações, podemos


usar quatro ações ou métodos:

1. Gerar força positiva - em geral é traduzido como “acumular mérito”, mas essa
tradução é um pouco enganosa. Pois não é como se estivéssemos juntando pontos
ou selos para trocar por um prêmio. O que estamos fazendo é fortalecendo nossa
rede de potenciais positivos através de ações construtivas e do uso de qualidades
positivas. Desta forma, conseguiremos transformar as circunstâncias negativas em
positivas. Por exemplo, no caso de um acidente, ao invés de ficarmos deprimidos e
com medo, podemos usar o ocorrido como uma oportunidade de ajudar ao máximo
as pessoas feridas. Isso gera ainda mais força positiva em nós e muda
completamente a situação.

2. Purificar a força negativa — se agimos de forma negativa e acabamos ferindo


alguém, podemos nos sentir culpados. Mas é possível transformarmos essa
circunstância negativa em positiva através de práticas de purificação. Ao invés de
nos culparmos, podemos reconhecer que o que fizemos foi um engano. Esse
engano não nos fez uma “pessoa má”, no entanto, devemos nos arrepender de ter
agido de tal forma. Assim, tomamos a decisão de tentar não repetir, reafirmamos
nossa direção segura (refúgio) na vida e fazemos algo construtivo para
contrabalançar.

3. Fazer oferendas para os maus espíritos — para que nos tragam mais
sofrimento. Isso é um pouco difícil para nós, ocidentais, entendermos. Uma amiga
minha, a professora de dharma Tsultrim Allione, que é ocidental, desenvolveu uma
prática muito interessante baseada na prática budista de chod (cortar). Ela a
chama “alimentar os demônios”. Digamos que as coisas não estejam indo bem e
estejamos muito tristes e deprimidos. Imaginamos que nossos problemas foram
causados por um espírito maligno ou um demônio interno, que sai de nosso corpo
e senta-se a nossa frente. Perguntamos ao demônio, “O que você quer?” e ele diz:
“Quero que as pessoas me deem atenção. Quero que me amem. Quero ter boa
saúde. Quero ser jovem novamente”, ou o que quer que esteja nos atormentando.
Então, alimentamos o demônio dando-lhe o que quer. Se quiser amor, damos amor.
Se quiser juventude e energia, damos juventude e energia. É uma prática muito útil
e poderosa. Quando o demônio estiver cheio, a maioria das pessoas percebe que
ele vai embora. Apesar de em muitos textos pedirmos que os espíritos malignos
nos causem mais problemas, essa forma de alimentar os espíritos é extremamente
eficiente. Nos mostra que já temos as coisas que achamos que nos falta, precisamos
apenas usar nossa própria força interior para dar-nos o que precisamos.

Como qualquer outra prática, a forma como começamos e terminamos é muito


importante. Assim como um programa de computador que, se não for estruturado
corretamente, pode dar pane. Da mesma forma, quando fazemos práticas
meditativas que lidam com emoções poderosas, precisamos começar e terminar
com gentileza, caso contrário, podemos ter uma pane! A forma de começar e
terminar é focando nas sensações da respiração, do ar que entra e sai pelo nariz, ou
no estufar e encolher do abdomen. Isso nos conecta com nosso corpo e com a terra,
e é muito útil se estivermos lidando com emoções negativas ou aterrorizantes.Se
estivermos trabalhando com uma experiência emocional muito forte é melhor
focarmos no abdomen. O abdomen é onde fica o chakra do umbigo, o centro de
aterramento (o que no ocidente podemos chamar de centro de gravidade do
corpo) e, portanto, nos dá sustentação, nos deixa mais aterrados.

Esse é um exercício muito interessante. Apesar de alguns ensinamentos parecerem


estranhos à primeira vista, seria bom se nos aprofundássemos um pouco neles. Se
tivermos tomado uma direção segura, ou refúgio, no dharma, teremos a confiança
de que esses ensinamento fazem sentido, que não são apenas alguma estranha
superstição tibetana. Podemos experimentá-los quando estivermos atormentados
por sentimentos como “Quero ser aceito. Quero ter sucesso. Quero ser amado”.

4. Solicitar a influência iluminada dos protetores do dharma — a fim de que


nos causem mais sofrimento e destruam nosso autoapreço. Uma forma, menos
habilidosa, de trabalhar com esses protetores é fazer oferendas para ajudarem no
amadurecimento de nossos potenciais positivos, ou seja, para que as coisas corram
bem para nós.Mas essa não é a melhor forma de trabalharmos com os protetores
do dharma, pois uma hora o potencial positivo acabará e cairemos novamente na
influência do potencial negativo. A melhor forma é fazer oferendas e pujas para
que ajudem nosso potencial negativo a amadurecer, porém de uma forma mais
branda. Assim, os obstáculos que poderiam surgir com força são queimados de
forma mais trivial. E, então, sobrarão nossos potenciais positivos e as coisas irão
bem.

Meu professor, Serkong Rinpoche, novamente nos dá um exemplo perfeito de


como isso funciona. Eu costumava viajar por todo o mundo como seu intérprete e,
antes de viajarmos, ele sempre fazia um grande puja aos protetores. Então, no
começo das viagens algo sempre dava errado, mas era sempre algo bem trivial.
Certa vez tomamos o trem noturno de Pathankot para Delhi, para o aeroporto, mas
houve um problema com nossas reservas. O único lugar que conseguimos foi o
beliche ao lado do banheiro, na terceira classe. Só havia um beliche, então eu e
Rinpoche dormimos no beliche e seus dois auxiliares tibetanos tiveram que dormir
no chão. Houve uma situação negativa, portanto, mas nada demais (foi só mal
cheiroso e desconfortável) e serviu para queimar obstáculos. O resto da viagem
correu muito bem.

Assim, com os protetores do dharma, o principal é solicitar “Traga-me sofrimento;


faça com que meu karma negativo amadureça. Eu dou conta!” Nossa disposição em
enfrentar o que quer que amadureça faz com que nosso sofrimento diminua e,
então, os obstáculos se acabam. Quando as coisas vão mal, pedimos que piorem,
para que nos livremos de tudo de uma vez só. Não estamos rezando a Deus, aos
protetores do dharma ou ao Buda para nos dar essas coisas, mas nosso desejo e
orações ajudam a criar as circunstâncias para que nosso karma amadureça. É
bastante prático!

Ponto Quatro: Resumo da Prática de Uma Vida

O quarto ponto é resumir a prática de uma vida em cinco forças. Isso pode ser
feito durante esta vida e também durante a morte, e é realmente muito prático.

Resumindo, a essência dos ensinamentos quintessenciais é aplicar as cinco


forças.

1. A força da intenção — Nesta vida, para cada dia que tivermos, podemos
estabelecer uma intenção ou propósito adequados. Ao acordarmos pela manhã,
estabelecemos nossa intenção, “Que eu possa ajudar a todos; que eu possa atingir a
iluminação para ajudar de forma mais eficaz.” Isso não é importante apenas
quando acordamos, mas sempre que nos depararmos com uma situação difícil. Por
exemplo, quando as crianças estiverem gritando e formos até seu quarto para
acalmá-las, primeiro devemos estabelecer uma forte intenção, “Que eu não me
exalte e que as trate com amor e gentileza para que parem de brigar.” Isso deve ser
feito para que nossa motivação seja realmente beneficiar as crianças, e não apenas
recuperar nossa própria paz mental. Antes de sairmos às compras, podemos
estabelecer a intenção de comprar apenas o que precisamos, “Não vou comprar
chocolate e biscoitos só por ganância ou por que me deu vontade.”

2. A força da semente branca — é a intenção de fortalecermos nossa rede de


força positiva e tentarmos nos livrar dos potenciais negativos. Quando as coisas
vão bem, é o resultado de ações construtivas anteriores e de seu potencial positivo.
Quando vão mal, é o resultado de nossas ações negativas anteriores e de seu
potencial negativo. A semente de nossas dificuldades é o comportamento
destrutivo, então tentamos nos livrar dessa semente e substituí-la pela semente do
comportamento construtivo.

3. A força do hábito — qualquer que seja a situação, devemos usá-la para


fortalecer o hábito positivo de nos preocuparmos com os outros. Pode ser até uma
situação neutra, como comer, por exemplo. Podemos comer para ficarmos fortes e
conseguirmos ajudar os outros. Podemos usar roupas quentes para não ficarmos
doentes e incapazes de ajudar os demais. Mesmo quando vamos dormir cedo ou
ver um filme, podemos pensar que faremos isso para relaxar e ter mais energia e
força para ajudar os outros. Desta forma, até mesmo o relaxamento pode tornar-se
uma força incrivelmente positiva. Mas, claro que precisamos ser sinceros. Não
podemos simplesmente dizer, “Vou me encher de comer sorvete a fim de
beneficiar os outros”. Isso é só uma desculpa para comer sorvete! O que quer que
faça, pense em termos de ajudar as pessoas.
4. A força de eliminar tudo de uma vez — assim que emoções destrutivas como
ganância, apego e raiva surgirem em nossa mente, devemos nos livrar delas o mais
rápido possível — imediatamente, se pudermos — como fazemos com um gato que
pula na mesa para comer nossa comida. Prontamente o enxotamos. Os tibetanos
adoram usar animais para ilustrar esse tipo de ensinamento, e geralmente tais
exemplos são muito úteis.

5. A força da oração — para conseguirmos praticar. Não é ficar pedindo “Deus,


que eu seja capaz de fazer isso”, mas sim que tenhamos o forte desejo de fazer. Isso
pode vir de estarmos tão enojados e fartos de nosso egoísmo e autoapreço que não
vemos a hora de livrarmo-nos deles. É como quando uma mosca fica voando em
torno de nossa cabeça; nos incomoda tanto que fazemos qualquer coisa para nos
livrarmos dela. Quanto mais rejeitarmos nosso autocentramento, nos enojando
dele, mais fraco ele ficará.

No fim do dia podemos rezar, “Que eu nunca me separe de bodhichitta”. Serkong


Rinpoche disse que não devemos pedir aos nossos lamas que rezem para que não
fiquemos doentes, ou para nossos negócios prosperarem. O melhor pedido que
podemos fazer é que rezem para que desenvolvamos bodhichitta o mais rápido
possível. De novo, o pedido precisa ser sincero, e não apenas algo para
impressionar o lama! Esse tipo de oração é muito importante, porque temos o
hábito de rezar apenas quando queremos coisas mundanas.

O ensinamento quintessencial Mahayana para a transferência da mente é as


cinco forças, ao mesmo tempo em que se dá importância ao caminho de saída.

Também podemos aplicar as 5 forças na hora da morte. Esse é considerado o


melhor tipo de powa (transferência de consciência), melhor que métodos
dramáticos de ejetarmos a mente para alguma terra búdica, o que pode não ter
muito sentimento por detrás. Se não compreendermos o que estamos fazendo,
nossa motivação será muito superficial.

1. A força da intenção — A melhor coisa para termos em mente ao morrer é a


aspiração de “Que eu possa desenvolver mais bodhichitta e que mantenha esta
prática em todos as minhas vidas futuras, para que eu consiga ajudar os outros
seres.” É muito, muito, muito importante ter essa intenção quando estivermos
prestes a morrer. Então o que é powa, e para onde estamos querendo transferir
nossa mente? Não queremos ir para o paraíso — isso não é budista. Queremos
transferir nossa consciência para a iluminação.

2. A força da semente branca — devemos doar tudo o que temos antes de


morrer, para não ficarmos apegados ao dinheiro, às posses ou mesmo ao nosso
corpo. Isso é muito importante! É muito triste o que acontece com suas posses
quando as pessoas morrem. Frequentemente, os que ficam acabam disputando a
herança, o que pode causar muitos problemas. Ou, então, tememos que as pessoas
joguem nossas “preciosas” coisas fora, porque para elas é lixo do qual querem se
livrar. É muito melhor lidarmos com tudo isso antes de morrer. Doe tudo para a
família, para os amigos ou para os necessitados, é muito melhor do que ter suas
coisas jogadas no lixo depois de partir.
Por outro lado, não é fácil. Existem muitas prática intensas para conseguirmos
fazer isso. Por exemplo, se o costume em nossa cultura é enterrar os mortos,
podemos oferecer nosso corpo aos vermes, “Vermes, vocês terão meu corpo,
aproveitem-no. Bom apetite! Os tibetanos usam uma imagem horrível: se formos
muito apegados ao corpo, dizem que renasceremos como um dos vermes que
rastejam por nosso corpo em decomposição. É muito nojento, portanto procure
não se apegar!

3. A força do hábito — meditar repetidamente sobre bodhichitta para que, na


hora da morte, à medida que nossa mente for ficando cada vez mais sutil,
consigamos continuar focados em bodhichitta e na iluminação.

Precisamos reconhecer que esse também é o ensinamento da mais elevada classe


do tantra. Iluminação é a realização completa da natureza búdica, ou mente de
clara luz.No anuttarayoga tantra, o nível mais elevado, tentamos morrer
totalmente conscientes da dissolução de nossa consciência grosseira e mente
conceitual na mente mais sutil de clara luz. Tentamos focar na total dissolução que
se seguirá, sinalizando nossa morte. Portanto, nas práticas tântricas é a mesma
coisa, já que temos que nos manter focados na mente de clara luz de tal forma que
acaba sendo uma prática de bodhichitta. Pois isso é feito com a intenção de
permanecer e realizar essa mente, para beneficiar os outros seres.

4. A força de eliminar tudo de uma vez — Na hora da morte, precisamos superar


nossa tendência de cuidar ou se preocupar com o corpo. Ensina-se que devemos
morrer como um pássaro que alça voo a partir de uma pedra, sem olhar para trás.
Então, enojados com nossas ações e atitudes negativas passadas, tentamos tomar
nossos votos e realizar auto-iniciações antes de morrer. Isso não é difícil, porque
mesmo comapenas um pouquinho de consciência conseguimos reafirmar nossos
votos de bodhisattva.

5. A força da oração — isso é difícil, porque é uma oração para renascer em um


reino infernal a fim de tomar para si o sofrimento dos outros seres, e para não se
afastar de bodhichitta. Como sequer imaginar ser sincero nisso?! Assim como
pedimos aos protetores do dharma que provejam as circunstâncias para
queimarmos o karma negativo, ao nascer em um reino infernal também
queimamos karma e nos livramos dele. Precisamos sentir que, se temos o potencial
para nascer no inferno ou como um animal é melhor nos livrarmos disso logo, para
que, com bodhichitta, possamos continuar nosso caminho para a iluminação.

Como é esse desejo de nascer no inferno? Não é que queiramos ir porque somos
maus, ou porque merecemos. O desejo de renascermos no inferno é motivado pelo
desejo de beneficiar os outros o máximo possível e, para tanto, precisamos nos
livrar dos obstáculos kármicos. Ao invés de sentirmos medo e aversão pelos
renascimentos em situações difíceis, os acolhemos como oportunidades de
queimar karma negativo.

Também podemos manter a aspiração, “Que isso seja o suficiente para [queimar o
karma negativo de] todos os que precisam renascer em um inferno”, assim, não
estaremos pensando apenas em nós mesmos. Por causa da motivação positiva, os
potenciais negativos amadurecerão de forma muito mais branda. Diz-se que se
tivermos uma forte motivação de bodhichitta, renascer em um inferno é como uma
bola que quica e retorna.Cairemos no inferno por uns poucos momentos e depois
cairemos fora, mas ainda assim queima muito potencial negativo. Naturalmente,
isso só funciona se a motivação for sincera: “Eu realmente, realmente quero me
livrar desses obstáculos para conseguir ajudar os outros.” Se tivermos a motivação
de simplesmente não ficar muito tempo no inferno, não funcionará.

Muitas pessoas associam a ideia de inferno com religiões não budistas e, por terem
tido experiências difíceis com essas religiões, não querem nem ouvir falar de
inferno no Budismo. Essa é uma visão muito restrita. Uma boa maneira de
compreendermos os infernos é ponderar sobre nossos órgãos sensoriais, que têm
habilidade limitada para perceber todo o espectro de informações disponíveis em
um determinado campo dos sentidos. Por exemplo, só conseguimos perceber a luz
visível, não conseguimos perceber a luz ultravioleta ou infravermelha. Não
conseguimos ouvir todos os sons ou sentir todos os aromas que um cachorro sente.
Da mesma forma, deve haver níveis de prazer e dor que estão além do que pode
ser processado com nossos sentidos físicos. Quando a dor excede um determinado
nível, um mecanismo automático assume o controle sobre nosso corpo e
desmaiamos. Em um renascimento nos infernos, nosso corpo teria habilidade
sensorial para experimentar, com total consciência, extremos mais amplos do
espectro de dor. Para mim, pelo menos, isso parece bastante plausível.

No entanto, se tememos renascer no inferno, não devemos de forma alguma fazer


esta prática. Os ensinamentos do Buda deixam isso muito claro: um bodhisattva de
um nível menor não deve tentar fazer as práticas de um bodhisattva de nível mais
elevado. Uma raposa não pula onde um leão consegue pular. Essas práticas são
muito difíceis e avançadas. Dentre as cinco forças, certamente podemos focar em
bodhichitta durante a morte, e em doar nossas coisas antes de morrer a fim de nos
livrarmos do apego. Não precisamos morrer deixando um bagunça para trás;
podemos limpar tudo antes. Podemos morrer sem arrependimentos e sem
assuntos pendentes.

Avaliando o Resultado do
Treinamento
Ponto 5
O quinto ponto trata das formas de avaliarmos o resultado da limpeza e
treinamento de nossas atitudes:

Se toda sua prática do dharma resumir-se a apenas uma intenção.

Essa intenção é eliminação do autoapreço. Os vários aspectos de toda a literatura


dos sete pontos, assim como todos os outros textos de lojong, focam em
superarmos o egoísmo e a preocupação autocentrada. Saberemos que estamos na
direção certa, e tendo sucesso na prática, analisando uma única intenção: a
diminuição do autoapreço.Se estiver diminuindo, estamos progredindo. Mas o que
queremos dizer com progresso? Quando falamos de progresso no caminho, temos
que entender que não é linear. Somos seres orgânicos vivendo em um mundo
orgânico, e as coisas não acontecem de forma linear, elas não estão sempre
melhorando. Como temos uma apresentação sistemática dos estágios do caminho
— os cinco caminhos, os dez estágios do bodhisattva e assim por diante —
podemos ficar com a impressão de que nosso progresso será assim. Claro que
progredimos de um estágio para o outro, mas o progresso não é contínuo, dia-a-
dia. Em alguns dias a prática vai bem, em outros não. É bom sabermos que isso é
absolutamente normal, assim não nos desencorajamos ou mantemos expectativas
fora da realidade. Todas as instruções de meditação enfatizam esse aspecto.
Buscamos tendências de longo prazo, ou seja, ao longo do tempo. Qualquer que
seja a nossa prática, o importante é ficarmos cada vez menos autocentrados,
mesmo que de um dia para o outro tenhamos altos e baixos. Esse é um sinal de que
estamos fazendo a prática corretamente.

Portanto, nossa principal aspiração na prática regular é superar o egoísmo e a


preocupação autocentrada. Se praticarmos shamata para desenvolvermos uma
mente calma e tranquila, nossa intenção deve ser obter concentração e presença
mental para não sermos egoístas. O objetivo não é só focar na respiração e
concentrar-se perfeitamente. Em geral, é assim que os não budistas praticam e,
portanto, não obtêm os benefícios extras. O principal benefício seria a capacidade
de perceber quando a atenção se distrai, pensando “eu, eu, eu”, e trazê-la de volta
para os demais seres.

A estrutura do texto Engajando-se no Comportamento do Bodhisattva, de


Shantideva (O Caminho do Bodhisattva, Skt. Bodhisattvacharya-avatara) deixa isso
bem claro. Nele, os ensinamentos sobre mudança de atitude, conosco e com os
outros, estão incluídos no capítulo que fala de concentração meditativa.
Poderíamos traduzir concentração meditativa como “uma mente que é estável em
bodhichitta e cuida dos outros”, já que é para isso que precisamos de concentração.
Sabemos que estamos praticando shamata adequadamente quando aplicamos essa
concentração no dia-a-dia. Ou seja, quando sentimos que estamos mais atentos aos
outros. Podemos aplicar esse princípio a todas as nossas práticas. Se a
transformação que conseguimos com as práticas diminuir nosso autocentramento
e nos deixar mais focados em ajudar os outros, é sinal de que estamos indo bem.

O texto continua:

Se, entre as duas testemunhas, considerar-se a principal;

As testemunhas são: nós e as outras pessoas. Essas são as duas testemunhas de


nosso progresso. Mas a principal somos nós. Na verdade, não precisamos
perguntar aos nossos professores ou às pessoas a nossa volta se estamos
praticando adequadamente. Nós sabemos, porque podemos sentir os sinais
internos. Por isso, os comentários falam em sermos nossa própria testemunha e
verificar se conseguimos os cinco sinais de grandiosidade.
O primeiro sinal é ter um grande coração, o que normalmente é traduzido como ter
uma “grande mente”, mas, na verdade, isso refere-se ao coração. A palavra, no
sânscrito, é mahasattva, como no Sutra do Coração. Será que somos pessoas cujo
pensamento está focado principalmente nos outros? Isso é ser uma pessoa com um
grande coração. As outras pessoas não conseguem ver o que se passa dentro da
gente, portanto, nós é que temos que olhar e verificar se estamos pensando mais
nos outros do que em nós. Será que, quando tem um delicioso bolo para
sobremesa, pensamos em como será bom se as outras pessoas gostarem, ou em
como adoramos esse tipo de bolo e esperamos que ninguém mais goste? Será que
quando pegamos uma longa fila no cinema desejamos que as pessoas à nossa
frente consigam bons lugares, ou queremos nos sentar nesses lugares? Não é nada
fácil atingir esse estado de grande coração! Não podemos nos enganar, temos que
investigar, com sinceridade, onde estamos.

Mas, essa abordagem não envolve culpa ou julgamento. Não pensamos “Estou
agindo com egoísmo, então sou mau”, ou, “Não consigo fazer isso direito, sou um
idiota”. Aqui, não existe julgamento moral ou alguém que nos diga
que devemos pensar nos outros e não em nós.Não existe o conceito de “dever” no
budismo. Simplesmente é mais benéfico pensar nos outros; causa menos problema
e sofrimento, simples assim.

Nos estágios anteriores à prática de tonglen, contemplamos as desvantagens de


nos preocuparmos com nós mesmos e as vantagens de nos preocuparmos e
cuidarmos dos demais. Fundamentamo-nos na compreensão de que agir de forma
autocentrada só nos trará mais problemas. Quando sentimos pena de nós mesmos
por estarmos deprimidos, só aumentamos nosso sofrimento. Por outro lado, se
ligarmos para alguém ou tentarmos ajudar outras pessoas, certamente nos
sentiremos melhor. É só uma questão de percebermos as vantagens e
desvantagens de cada uma das atitudes e decidirmos o que queremos. Quando
estamos treinando nossas atitudes, uma das coisas das quais precisamoslivrar-nos
é a culpa e o julgamento moral, caso contrário, todo o processo pode ficar
corrompido. Esse é o primeiro sinal de grandiosidade.

O segundo sinal de grandiosidade é ter um comportamento construtivo.


Novamente, podemos ver por nós mesmos se estamos agindo de forma destrutiva.
Mas precisamos ter um entendimento abrangente das dez ações destrutivas. Uma
ação destrutiva não é apenas sair por aí matando pessoas; até mesmo pensar em
ser física ou verbalmente agressivo pode ser destrutivo. Andar rápido demais com
uma pessoa idosa, de forma que ela não consiga nos acompanhar, é uma atitude
destrutiva baseada no pensamento autocentrado. Agir construtivamente, evitando
machucar os outros, é um sinal de progresso.

O quarto tipo de grandiosidade é o grande mantenedor da disciplina: tomar votos.


Existem vários votos para liberação individual, chamados votos
de pratimoksha, que podem ser tomados por monásticos ou pessoas leigas. Com
esses votos, comprometemo-nos a não matar, roubar, mentir,envolvermo-nos em
comportamento sexual inadequado e ingerir álcool e outras substâncias
intoxicantes. Depois, temos os votos de bodhisattva, onde nos comprometemos a
abstermo-nos dos diferentes comportamentos que nos impedem de ajudar os
outros.Finalmente, temos os votos tântricos, para abstermo-nos de
comportamentos que criam obstáculos ao atingimento da iluminação pelo caminho
tântrico. É importante compreendermos essa intenção, uma vez não existe um
Deus dizendo “Vós não deveis fazer isso”, ao qual só precisamos obedecer, sem
fazer perguntas. Isso não é budismo. Não temos a obrigação de tomar votos. Mas,
se quisermos atingir a iluminação para o benefício dos outros seres, sabemos que
as ações construtivas podemajudar-nos.E precisamos refletir sobre as ações
destrutivas e sobre como elas nos impedem de ajudar. Então, se decidirmos tomar
votos, seremos nossa própria testemunha, verificando se estamos mantendo-os ou
não.

O quinto tipo de grandiosidade é o grande yogui, ou alguém que está totalmente


imerso em bodhichitta. Alguém cuja mente, coração e comportamento estão
totalmente imersos em bodhichitta. Ninguém, além de nós mesmos, consegue
saber se somos assim. E precisamos ser particularmente cuidadosos para
nãodeixar-nos levar pelo orgulho à medida que avançamos no treinamento.
Podemos pensar “Estou ajudando. Estou passando tanto tempo no hospital! Sou
um verdadeiro bodhisattva!” Achar que ajudamos os outros porque somos muito
bondosos é um sinal claro de que não estamos treinando direito.Na verdade, o que
nos leva a ajudar é a inspiração de nossos professores e das grandes figuras da
linhagem. Mas isso também não significa pensar “Não sou nada, sou um verme”.
Precisamos ter equilíbrio. Precisamos nos esforçar, mas com equilíbrio, sem
orgulho. Isso sim é um sinal de progresso.

Existem muitos outros sinais. Um deles vem de contemplar a vida humana preciosa
e sentir que seria um desastre desperdiçar esta oportunidade de ajudar os demais
seres. Da mesma forma, quando a busca por dinheiro e posses não nos atrai, e
preferimos buscar as circunstâncias que nos servirão para ajudar os outros em
vidas futuras, isso é um bom sinal. Lógico que precisamos de um certo nível de
bem estar material e condições favoráveis nesta vida, para podermos ajudar os
outros, mas nunca devemos ter isso como um fim em si mesmo. Precisamos ter
visão de longo prazo, e considerar todas as vidas que nos levarão à iluminação.

Se quisermos ajudar, precisaremos de circunstâncias propícias em todas as vidas.


Nosso objetivo deve estar sempre interligado ao pensamento de ajudar, como ter
dinheiro para ajudar os pobres, ou uma casa grande o suficiente para que
possamos oferecer um lugar para pessoas que precisam de um lugar para ficar. Se
não nos interessamos por coisas materiais, e nosso maior objetivo for nos liberar
das emoções destrutivas, certamente esse é um bom sinal. Significa que não somos
muito apegados a viver em determinado local ou ser determinada pessoa, porque
vemos que quem quer que sejamos e com quem quer que estejamos, tanto faz. Não
importa onde ou com quem estejamos, sempre há perigo de sermos pegos pelo
apego ou aversão, que é o que nos impede de realmente ajudar os outros. Isso não
significa que não devemos nos conectar às pessoas e ao meio ambiente à nossa
volta, é só que nossa conexão baseia-se em como podemos ajudá-los, ao invés de
em como eles podem nos ajudar.

Perceber que ninguém é especial nos permite ver que todos são especiais —
ninguém é melhor que ninguém. Isso nos ajuda a ter uma atitude igualitária,
equânime. Assim, independente da pessoa ou local onde estejamos, podemos
aplicar nossa energia em ajudar. Podemos seguir o exemplo de alguns lamas:
qualquer que seja a pessoa com quem estão momento, parece sempre ser seu
melhor amigo. Eles têm o coração aberto a todos, ninguém é especial. Esse é um
outro sinal de que os ensinamentos estão fazendo efeito.

Quando estivermos com nossos lamas, se sentirmos que não há nada de que
possamos nos envergonhar, isso é um bom sinal. Significa que somos sinceros e
tranquilos por dentro. No geral, se nosso estado de humor for bom, sem grandes
oscilações, é um ótimo sinal. Mas isso não significa não interagir com os outros. Se
precisarmos interagir emocionalmente,é claro que não devemos nos sentar em
silêncio e com cara de paisagem.Sempre lembro-me de quando morei com minha
irmã nos Estados Unidos, depois de passar alguns anos na Índia. Ela sempre me
ajudou muito, mas após um certo tempo, seu comentário era, “você é tão calmo que
me dá vontade de vomitar”. Ser calmo e não interagir de forma adequada não é
uma forma apropriada de praticar. Devemos demonstrar entusiasmo e vivacidade,
e não ficarmos parados como uma estátua. A calma está dentro.

O texto continua:

Se sempre puder confiar que sua mente só tem felicidade

Essa linha significa que, ao invés de ficarmos deprimidos, quando encontramos


situações difíceis, podemos transformar nossa atitude em uma atitude de paz e
felicidade mental. Se conseguirmos — tendo nós mesmos como testemunhas para
ver se realmente conseguimos — é porque estamos praticando corretamente. Os
tibetanos, que adoram exemplos bem quotidianos, dizem que, se você não ganhar
chá à noite, não deve se aborrecer, deve ficar feliz, pois não terá que acordar para
ir ao banheiro no meio da noite! Podemos usar esses truques para ver o lado bom
das coisas. Assim, não ficaremos muito chateados se as coisas não saírem conforme
planejamos. Se conseguirmos fazer isso naturalmente, é um bom sinal.

E finalmente, o último ponto desta seção:

Se, mesmo quando estiver distraído, for capaz, estará treinado.

Podemos usar a direção de um automóvel como exemplo: É fácil dirigir quando


estamos concentrados, mas dirigir distraído é só para os muito bem treinados. Da
mesma forma, pode ser fácil abandonar o autoapreço e pensar nos demais quando
estamos focados e a situação é tranquila. Ajudar os outros a subir no trem quando
não tem muita gente e temos bastante tempo é uma coisa, mas e se o apito tocar e o
trem estiver de partida? E se ainda houver muitas pessoas para entrar? Será que
ainda estaremos interessados em garantir que todos entrem, ou sairemos
empurrando todo mundo para conseguirmos entrar? Mesmo nessas situações
conturbadas, será que nossa principal preocupação continua a ser os outros? Se
sim, realmente mudamos nossa atitude. Esse é o quinto ponto.
18 Práticas para Fortalecer a
Conexão
Ponto 6
O sexto ponto consiste em 18 práticas que fortalecerão nosso treinamento, e o
sétimo contém 22 pontos para limpar e treinar nossas atitudes. Essas listas são
longas, mas são diretrizes maravilhosas para nos tornarmos menos egoístas e
termos mais consideração pelos outros. Detalharei um pouquinho cada ponto, pois
as expressões tibetanas são um tanto obscuras e, se não forem bem explicadas, fica
difícil entendermos seu significado.

A palavra sânscrita samaya (dam-tshig em tibetano) refere-se às práticas que


criam vínculo, que nos conectam com o treinamento de atitudes. Algumas práticas
dizem respeito a coisas que precisamos evitar e outras são ações que precisamos
tomar.

(1-3) Treine sempre nos três pontos gerais.

O primeiro dos três pontos gerais é (1) Não contradiga o que prometeu. Uma
forma de interpretarmos esse ponto éficarmos atentos para não ignorarmos certas
coisas como, por exemplo, as dez ações construtivas. As pessoas podem pensar,
“Estou praticando como um bodhisattva, então posso fazer o que quiser”, mas isso
não é adequado.Éum ponto difícil, mas muito interessante. Um exemplo bem
controverso pode ser o de evitar álcool, que é um dos votos de pratimoksha de um
leigo. Podemos dizer, “Sou um bodhisattva e estou tentando ajudar os outros, se
não beber com meus amigos eles não serão abertos e receptivos a mim. Então vou
ignorar esse ensinamento sobre evitar álcool, porque quero ajudar”. Claro que
pode haver circunstâncias em que é apropriado pensarmos assim, mas devemos
cuidar a fim de não fazer disso uma desculpa para beber apenas porque estamos
com vontade. Além disso, precisamos muita atenção para perceber se esse tipo de
atitude não está, na verdade, encobrindo um sentimento de que esses
ensinamentos do Buda sobre o alcool são idiotas e não concordamos com eles.

No geral, existem coisas que são naturalmente destrutivas, que todos devem evitar,
e coisas que o Buda nos aconselhou a evitar apenas se tivermos um determinado
objetivo. Matar é uma ação naturalmente destrutiva, portanto todos devem evitá-
la. O álcool pode estar em ambas as categorias, mas se quisermos vencer a
influência das emoções perturbadoras, como a raiva, a ganância, o apego, a
ignorância (ingenuidade) e assim por diante, precisaremos evitá-lo.Por que?
Simplesmente porque ele nos deixa mais suscetíveis à influência das emoções
perturbadoras. É basicamente uma escolha! Vai depender do que queremos de
nossas vidas. Se nosso objetivo for vencer as emoções perturbadoras, para
conseguir ajudar melhor os demais, precisamos evitar o álcool. Mas se não
estivermos preocupados com isso, então podemos fazer o que quisermos.
Precisamos ser sinceros e sempre examinar nossa motivação para beber
socialmente. Será que de fato compreendemos o que o Buda disse a respeito do
álcool e do motivo para não bebermos? Será que beber com nossos amigos é a
melhor forma de ajudá-los? Será que existem outras formas de relaxar, sem efeitos
colaterais? Se nossa motivação for ajudar os amigos a relaxar, existem outras
formas de fazer isso, que não envolvem beber álcool. Se tivermos tomado votos de
não beber, é importante não quebrá-los.

Quando treinamos com o objetivo de ajudar outras pessoas, esse treinamento deve
ser no nível mental e físico. Muitos acham que basta fazer oferenda de água e
imaginar-se doando coisas, que não precisamos fazer nada no nível físico. Acham
que podemos fazer tudo no nível mental, e só meditar, que não precisam fazer
práticas físicas como prostrações e oferecimento de mandala. Esse desequilíbrio
também é abordado neste primeiro ponto. Precisamos entender como as
prostrações e o oferecimento de mandala se relacionam com nossa vida diária. E a
oferenda de mandala também não é suficiente; devemos realmente oferecer o que
temos, e isso inclui coisas que nos interessam, nosso tempo e nossa energia. O
mesmo se aplica às prostrações: nossa prática não será boa se mostramos respeito
à estátua do Buda mas não aos nossos pais, amigos e outras pessoas. É necessário
que tudo seja aplicado à vida diária.

O segundo dos três pontos é (2) Não se comporte de forma ultrajante.


Comportar-se de forma ultrajante é fazer algo absurdamente ridículo, como ir ao
ensinamento de um grande lama vestindo mini-saia, com tudo de fora. Além de
ultrajante é inapropriado. Se estamos trabalhando na prática Mahayana de
treinamento de atitude, não podemos achar que está certo sair por aí fazendo
coisas ultrajantes, como cortar árvores e poluir o meio ambiente. Também não
podemos achar que somos invulneráveis ao mal só porque conseguimos
transformar situações negativas em positivas. Ou achar que podemos ser gentis
com outras pessoas mas caçar mosquitos em casa com se estivéssemos em um
safari na África. Tudo isso é ultrajante!

O terceiro ponto é (3) Não seja parcial, isto é, não pratique apenas com amigos e
familiares, ignorando as pessoas com quem tem dificuldades. Se é para mudar
nossa atitude, também precisamos trabalhar com pessoas e situações difíceis. Um
exemplo muito usado pelos tibetanos é aceitarmos que alguém em uma posição
hierárquica superior nos chame a atenção, mas ficarmos aborrecidos e com raiva
se sua posição for inferior a nossa. Normalmente praticamos paciência com o
chefe, afinal, não queremos perder o emprego, mas não praticamos com alguém
que esteja em uma posição inferior.

Os tibetanos costumam achar mais fácil praticar com amigos e familiares do que
com estranhos. No entanto, muitos ocidentais acham o contrário. Em geral,
achamos muito mais difícil praticar com parentes, porque eles nos irritam muito
mais do que estranhos ou amigos. Mas não devemos ser parciais, temos que
praticar igualmente com todos.

(4) Transforme suas intenções, mas permaneça normal.


Isso significa que devemos agir normalmente. Apesar de estarmos tentando
desenvolver compaixão por todos os seres, se começarmos a chorar na frente de
todo mundo, podemos parecer pretensiosos. Vai ficar ridículo se a pessoa que está
sofrendo tiver que nos consolar ao invés de nós a consolarmos! O ponto aqui é não
sermos complacentes com nossas emoções, mas também não demonstrá-las
quando for inapropriado.

Acho que precisamos esclarecer isso no contexto ocidental. Quando alguém nos
conta uma história triste, precisamos sinalizar que sentimos alguma coisa, não
podemos simplesmente ficar parados sem expressão.E quando formos demonstrar
empatia, colocando a mão no ombro de alguém, lógico que temos que avaliar se a
pessoa se sentirá confortável com isso. Algumas pessoas podem querer um ombro
para chorar, mas outras podem ficar na defensiva ao achar que estão com pena
delas.Épor isso que a prática de tonglen deve ser feita em privacidade, sem que
saibam o que estamos fazendo.

Muitas pessoas que se envolvem com o budismo começam a andar por aí com o
rosário ( mala) envolto no pescoço ou pulso, como se fosse um acessório. Ao verem
alguém com problemas dizem “Vamos nos reunir para recitar Om Mani Padme
Hum!”. Isso pode irritar as pessoas, e elas podem achar que ficamos loucos.
Portanto, é importante continuar a agir normalmente. Podemos recitar os mantras
silenciosamente. E certamente não precisamos ter um rosário na mão.

E também tem a questão da cura, em que as pessoas fazem toda uma cena,
impondo mãos,etc. Os tibetanos dizem que isso convida interferências porque,
quando não funciona, o que é possível, terminamos passando por tolos. No
budismo, a principal prática de cura é o tonglen, que, conforme mencionamos,
ninguém precisa saber que estamos fazendo. Se funcionar, não dizemos “Oh, eu fiz
isso pra você! Por favor me agradeça ou me pague!” e se não funcionar, não
precisamos nos envergonhar.Aja normalmente, para que ninguém saiba o que está
fazendo. Mesmo no que diz respeito às preces antes das refeições, é melhor fazê-las
em silêncio, sem demonstrar coisa alguma. Se estivermos entre budistas, aí a
história é outra, mas se começarmos a recitar “Om Ah Hum” quando estivermos
com nossos familiares não budistas, pode ficar esquisito.

(5) Não comente as limitações ou o lado ruim [dos outros].

Os tibetanos costumam dizer, “Não chame um cego de cego na sua frente”. Se uma
pessoa não for muito inteligente, não é preciso chamá-la de idiota. Ela
provavelmente sabe que não é inteligente, você não precisa esfregar isso em sua
cara. É interessante, entramos no tópico do humor e do sarcasmo. Podemos ser
sarcásticos e achar muito engraçado, mas isso pode magoar. Alguns acham que ser
sarcástico com os amigos é sinal de amizade, mas aqui temos que levar em conta a
cultura e a intenção das pessoas.

Os americanos são muito sarcásticos, fazem graça dos narizes uns dos outros, de
suas esposas feias, etc. Existe até um gênero de comédia baseado nisso, em que
pessoas caem da escada ou têm tortas jogadas na sua cara e todo mundo ri. E têm
também desenhos violentos, em que gatos são esmagados por martelos
gigantescos e assim por diante. Isso é para crianças! Se pensarmos bem, é muito
estranho!

Então, apesar de podermos achar que falar mal dos outros, ser sarcástico, e coisas
do gênero é engraçado e inocente, a verdade é que pode magoar as pessoas.

(6) Não pense nada sobre as [falhas] alheias.

Isso significa que não devemos procurar defeitos nos outros, e, se encontrarmos,
não devemos criticar. Por exemplo, nosso relacionamento com o professor
espiritual deve estar baseado em suas boas qualidades, pois são elas que nos
inspirarão. Não precisamos negar suas qualidades negativas, mas também não nos
fixamos nelas, caso contrário, podemos ficar deprimidos. Se percebermos um
defeito no professor, somos instruídos a tratá-lo como uma projeção nossa. Por
exemplo, se nossos pais não nos deram atenção quando éramos crianças, podemos
achar que o professor também não dá, mesmo que isso seja apenas porque ele é
muito ocupado e viaja muito. Se excluirmos a possibilidade de estarmos
projetando as falhas no professor, e mesmo assim ainda as notarmos,
simplesmente focamos nas boas qualidades.

Geralmente, esse tipo de abordagem serve para todos os relacionamentos. Se


estivermos tentando ajudar uma pessoa, podemos até focar em seus defeitos para
auxiliá-la a superá-los, mas irritar-se com eles é outra coisa. Se focarmos em suas
boas qualidades, nos motivaremos a pensar positivamente sobre ela. Queremos
desenvolver uma atitude de apreciação pelos outros, portanto, reclamar de seus
defeitos não ajuda.

Costumamos ser mais críticos em relação àqueles que nos são mais próximos.
Muitas pessoas esperam que seus filhos ou pais sejam perfeitos, e se não forem
ficam criticando. Já que ninguém é perfeito, é muito mais vantajoso focar em suas
boas qualidades. Tudo o que precisamos é ter uma visão realista da outra pessoa.

(7) Livre-se primeiro de sua maior emoção perturbadora.

Seja raiva, apego ou inveja, primeiro devemos tentar superar o problema que mais
nos aflige. Nossas várias emoções perturbadoras nos impedem de ajudar os outros,
portanto precisamos olhar com honestidade para nós mesmos e ver qual é nosso
maior problema. Ao invés de temer encará-lo, devemos olhá-lo nos olhos,
conforme as instruções do tonglen. Para isso, devemos aprender vários métodos,
pois cada um funciona para determinadas situações e não para outras, o
importante é dispormos de uma variedade deles aos quais possamos recorrer.

Ouvimos repetidamente que devemos ser nossa principal testemunha, pois nos
conhecemos melhor do que ninguém. Isso significa que temos que ser bastante
introspectivos, o que muita gente, logicamente, não é. Grande parte das pessoas
precisa de alguém para dizer-lhes que estão agindo de forma egoísta ou idiota, pois
eles mesmos não percebem. No entanto, receber esse tipo de feedback é muito
difícil, requer muita confiança na outra pessoa. Se pedirmos a alguém para nos
ajudar a ter mais sensibilidade em relação ao que acontece dentro de nós, não
podemos ficar na defensiva ou com raiva quando ela nos disser algo que não
gostaríamos de ouvir. Mesmo que essa pessoa seja nosso melhor amigo, ainda
assim ela não é a principal testemunha. Os amigos podem nos dar uma pista, mas
precisamos nós mesmos verificar se é verdade ou não.

(8) Abandone a esperança de ser recompensado.

É muito difícil não esperarmos recompensa, pois frequentemente estamos sob


influência de emoções perturbadoras muito sutis. Em geral não são tão grosseiras
como, “Estou te ajudando por que quero que você me ajude depois”, mas com
frequência queremos ser reconhecidos, agradecidos ou amados como recompensa.
Algumas vezes, só queremos nos sentir necessários e úteis, isso acontece muito
com pais que têm filhos adultos. Precisamos verificar se nossa motivação não está
misturada à preocupação autocentrada. Pois, se estiver, e a outra pessoa nos disser
que não precisa ou não quer nossa ajuda, ficaremos chateados.

Algumas analogias podem ajudar-nos. Por exemplo, é interessante perceber que às


vezes agimos como cachorros. Quando chegamos em casa, nosso cachorro costuma
estar na porta esperando para ganhar carinho. Será que não agimos da mesma
forma quando ajudamos alguém? Esperamos que a pessoa diga “Nossa, foi muito
bom o que fez por mim, muito obrigada!” Mesmo que ela nos agradeça, o que isso
muda? Se nos pegarmos esperando receber um agradecimento, podemos trazer à
mente a imagem de um cachorro esperando carinho, para ver como isso é ridículo.
Se formos ajudar, realmente devemos fazê-lo apenas para o benefício da outra
pessoa.

Isso pode ser um tanto delicado. Pais que fazem tudo por seus filhos — dão roupas,
casa, comida, etc — e depois o que acontece? Em geral o filho nem nota ou
demonstra qualquer tipo de apreciação, apenas aproveita, especialmente quando é
adolescente. Como pais, o que queremos? Queremos que nossos filhos agradeçam
todas as vezes que lavamos suas roupas? Isso seria irrealista! Se algum dia eles
assumirem uma responsabilidade e agirem com maturidade e consideração, este
sim será um sinal de que apreciaram o que fizemos. Apesar de querermos ajudar,
não devemos fazê-lo de forma a que a outra pessoa fique dependente ou se
aproveite da gente. Se nossa ajuda a deixar dependente, não será muito benéfica.

(9) Não coma comida venenosa.

Isso está se referindo a contaminarmos a prática comautoapreço. Mesmo que


tenhamos pensamentos construtivos ou estejamos envolvidos em ações
construtivas, se nossa motivação estiver contaminada com autoapreço, o conselho
é parar, corrigir a motivação e recomeçar. Mesmo que ajamos positivamente, se o
que quisermos for sentir-nos necessários e reconhecidos, a ação estará
contaminada com autoapreço, pois o que estaremos buscando é nos reafirmarmos
através de nossa ação. Portanto, seria bom parar e corrigir a motivação —
novamente, precisamos ser totalmente honestos.

O próprio termo “emoção perturbadora” já indica ao que devemos estar atentos. É


uma emoção que causa desconforto (por isso, “perturbadora”), nos faz perder o
controle e a paz mental. E também pode incomodar os que estão próximos, além de
nos fazer perder o controle.

A sensação de desconforto ou aborrecimento pode ser muito sutil, portanto


“aborrecimento” pode ser uma palavra um pouco forte. Shantideva disse que
quando a mão tira um espinho do pé, não esperamos que o pé agradeça, afinal,
estão conectados. Assim, quando ajudamos alguém, não há porque fazer disso uma
grande coisa ou reclamar. Se temos que lavar a louça, simplesmente lavamos.
Podemos lavar em paz. Se lavarmos pensando “Você é muito bagunceiro! Por que
eu tenho que ficar arrumando sua bagunça? Mas como estou treinando para ser
um bodhisattva, é melhor eu arrumar”, isso é ressentimento, e é uma atitude
venenosa.

Alguns textos de lojong nos aconselham a não ter esperança ou expectativas de que
alguém a quem ajudamos nos retribua com gentileza. Se tivermos sensibilidade o
suficiente para perceber o que se passa na mente, veremos que sentimos um
ligeiro desconforto quando estamos sob a influência do auto-apreço, ou de
qualquer outra emoção perturbadora. O auto-apreço é o que nos faz querer
anunciar “Eu lavei a louça!” Mas por que fazer isso? Novamente, se tivermos
sensibilidade, perceberemos um ligeiro nervosismo antes de falar. Pode ser que
seja bem sutil, mas com a prática conseguiremos perceber. Esse nervosismo vem
do auto-apreço inconsciente, porque ele está lá. Não é uma prática fácil, mas é
essencial.

Existem dois tipos de comportamento construtivo: o misturado com confusão


(nomeadamente auto-apreço) e o não misturado com confusão. O comportamento
construtivo misturado com autoapreço é causa para um renascimento afortunado
mas, ainda perpetua o samsara. Por outro lado, ações construtivas que não são
misturadas com confusão geram potencial positivo para alcançarmos a liberação e
a iluminação. Todos nós possuímos redes de potenciais positivos, que são o
resultado de comportamentos construtivos, mas precisamos fortalecê-las.
Potenciais positivos amadurecem na forma de felicidade, mas se estiverem
misturados à confusão, nos levam ao sofrimento da mudança — a felicidade que
não dura e leva à frustração. Nosso objetivo é fortalecer a rede de potenciais
positivos livres de confusão.

(10) Não considere (seus pensamentos negativos) um bom lugar para


ficar.

Isso significa que não devemos dedicar as vias principais de nossa mente aos
pensamentos perturbadores. Devemos dedicá-las aos pensamentos positivos e à
preocupação e cuidado com os outros. Assim que a raiva, o apego e o autoapreço
surgirem, não brinque com eles — dissolva-os imediatamente. Se pensarmos
“Bom, vamos com calma, não é tão ruim assim ficar com raiva”, isso quer dizer que
estamos permitindo que emoções perturbadoras trafeguem na via principal. Elas
se tornarão cada vez mais fortes, até que uma hora perdemos o controle. Temos
que ser gentiscom os outros, mas não com nossas emoções perturbadoras.
Se tivermos votos tântricos ou de bodhisattva, pode ser bom repassá-los
diariamente. Assim, mantemos em mente essa diretriz que nos foi dada. Mas não
devemos apenas lê-los, podemos dedicar um tempo a contemplar alguns deles e
verificar se os estamos seguindo. Não precisamos ter pressa. Podemos fazer isso de
manhã e à noite. De manhã, podemos estabelecer uma forte intenção de seguí-los.
À noite, revemos nosso dia e verificamos se fomos bem sucedidos. Conta-se que
Geshe Ben Kungyal costumava manter consigo pedrinhas brancas e pedrinhas
pretas. Toda vez que agia conforme seus preceitos, colocava uma pedra branca em
umapilha e, toda vez que não seguia, colocava uma pedra preta. Assim, ao final do
dia, podia ver como havia se comportado.

O ponto é não sentir orgulho pela quantidade de pedrinhas brancas que colocamos
na pilha e culpa pelas pedrinhas pretas; devemos apenas nos alegrar se estivermos
indo bem. Não precisamos exagerar na auto-avaliação, mas se percebermos que
agimos negativamente, podemos nos arrepender e tomar a decisão de melhorar.
Lembre-se, o progresso não é linear — alguns dias são melhores que outros.
Mesmo assim, podemos tentar agir da forma mais positiva e menos egoísta
possível, todos os dias.

(11) Não busque retaliação.

Não revide quando alguém lhe xingar, bater ou agir de forma desagradável. Se nos
agridem com palavras maldosas, não devemos tentar dizer coisas ainda mais
maldosas, apenas deixamos passar. Existem diversas maneiras de fazermos isso. Se
alguém nos diz algo muito maldoso, podemos perceber que as palavras são apenas
sons, vibrações no ar. Ouvir palavras é apenas mais uma experiência da mente. O
surgimento dos sons e o ato de ouvir não têm nada de mais.É apenas quando
sobrepomos a noção dualista de você, pessoa horrível, disse isso pra mim, que nos
aborrecemos e nos sentimos ofendidos, porque estamos pensando apenas em nós
mesmos.

Em situações como esta, os votos de bodhisattva são muito claros. A motivação


para não revidarmos quando alguém nos insulta é evitar prejudicar a pessoa e
tentar ajudá-la. Quanto mais pudermos usar métodos pacíficos, melhor. Mas se não
funcionarem, mesmo depois de tentarmos bastante, podemos tentar combater a
violência com métodos mais enérgicos. Isso não seria uma violação aos votos de
bodhisattva. Precisamos ser realistas.

As pessoas sempre perguntam a Sua Santidade o Dalai Lama sobre o uso da


violência no Tibete, e ele diz que mesmo que os métodos pacíficos pareçam não
estar funcionando, usar de violência e terrorismo não os levaria a lugar algum. Se
eles matassem cem soldados chineses, a China mandaria mais duzentos.Estamos
falando de um país que tem uma população de 1.3 bilhão de pessoas, portanto,
qualquer violência que os tibetanos pudessem produzir, não ajudaria em nada.
Precisamos ser inteligentes, não devemos retaliar só para não parecermos fracos.

(12) Não arme emboscadas.


Se armamos uma emboscada é um sinal de que queremos nos vingar. Esperamos a
pessoa ficar vulnerável e tentamos machucá-la de alguma maneira. Ou seja, se
estivermos em uma situação desfavorável e alguém nos machucar, não faremos
nada, mas guardaremos rancor e esperaremos a pessoa ficar vulnerável para nos
vingarmos. Este ponto também trata a questão de não revidar. Sua Santidade diz
muito bem: quando não revidamos, ficamos com medo da outra pessoa achar que
isso é um sinal de fraqueza, mas na verdade é um sinal de muita força. Fraqueza é
nos rendermos à raiva, como uma criancinha ou um animal.Usar nossa compaixão,
inteligência e paciência requer muita força!

(13) Não constranja [os outros] apontando seus defeitos em público.

Nunca devemos apontar os erros dos outros em público com o propósito de


constrangê-los.Existem muitas formas de ensinar sem ter que constranger as
pessoas.Certa vez, eu estava em Bodh Gaya traduzindo os comentários de Sua
Santidade sobre o texto Engajando-se no Comportamento do Bodhisattva, de
Shantideva.Naquela época, Serkong Rinpoche estava no Nepal e havia vários meses
que eu não o via.Quando nos encontramos, ele abriu o texto e apontou para três
palavras, para ver se eu sabia o significado. Eram palavras realmente difíceis e eu
não sabia muito bem seu significado, então ele me explicou. As três palavras
referiam-se exatamente às atitudes perturbadoras com as quais eu estava tendo
dificuldade. Essa forma indireta de chamar minha atenção foi muito eficaz. Alguns
comentários também nos dizem que esse ponto significa que devemos usar
poderes extra-sensoriais, como magia, se os possuirmos.

(14) Não transfira a carga de um dzo para um boi.

Existe um animal no Tibete chamado dzo, que é o resultado do cruzamento de um


yak com uma vaca. É muito grande e forte, muito mais forte que um boi. Esse dizer
significa que não devemos dar o trabalho de uma pessoa forte para uma mais fraca,
que é incapaz de fazê-lo.

Isso tem muitos significados. Um é que precisamos aceitar a culpa por nossos erros
ao invés de culpar os outros. Outro é não deixar nossa “roupa suja” para os outros
lavarem. Ou, quando pudermos escolher um assento, não darmos o pior para os
outros e ficarmos com o melhor.

(15) Não transforme tudo em competição.

Não corra para pegar o melhor lugar ou o melhor pedaço de comida. Sempre
queremos pegar o melhor para nós e não queremos que os outros peguem. É muito
melhor dar a frente para os outros, então podemos pegar o último ou o pior
pedaço, mas sem que isso soe pretensioso. Certamente não devemos dizer, “Pode
pegar o melhor pedaço, eu pego o pior, nem ligo” Há de ser feito de forma natural,
como os pais que deixam a melhor comida para os filhos, sem se importar nem um
pouco em ficar com a parte queimada ou o que sobrar.
Existe uma outra história com Geshe Ben Kungyal, que é muito boa. Certa vez, ele
foi jantar com uns monges na casa de um patrono. O patrono começou a servir e
Geshe Ben estava sentado atrás de todo mundo. À medida que o dono da casa ia
servindo o iogurte, uma de suas comidas favoritas, Geshe Ben ficava cada vez mais
preocupado e aborrecido pensando “Ele está servindo porções muito grandes, não
vai sobrar nada pra mim”. Então percebeu sua atitude e, quando finalmente chegou
sua vez, emborcou sua tijela e disse “já tomei a minha parte”. Isso exemplifica bem
o ponto.Ao invés de ficarmos preocupados se vai ter o suficiente para nós, devemos
nos preocupar com os outros.

(16) Não inverta o amuleto.

Amuletos são usados para espantar maus espíritos, uma metáfora para o
treinamento mental de nos preocupar e cuidar dos outros. Fazer essas práticas
pensando apenas em si é como usar o amuleto invertido.

Por exemplo, se aceitarmos uma perda só para impressionar os outro e levar


vantagem, estaremos invertendo os ensinamentos. Agir com humildade e
consideração só para impressionar, na esperança de tirar algum proveito, também
é inverter os ensinamentos. Outro exemplo é fazer as práticas só porque queremos
que as pessoas gostem de nós. No final, só o que conseguiremos é fortalecer nosso
autoapreço.

(17) Não transforme um deus em um demônio.

Isso também se refere a contaminar a prática com autoapreço, e ter o intuito


hipócrita e arrogante de sentir-se “melhor” que os outros.É como fazer um retiro e
colocar uma placa na porta dizendo “Não perturbe! Grande meditador!”

Os tibetanos usam o exemplo de fazer um retiro de três anos para ser considerado
um lama e ganhar discípulos, fama e doações. É muito importante ser humilde.
Conforme disse um praticante, “Quando leio nos textos sobre as várias
imperfeições e defeitos, reconheço-me neles, e quando leio sobre as boas
qualidades, reconheço os outros.” Isto certamente é seguir as práticas de
treinamento de atitude.

(18) Não faça do sofrimento [alheio] um degrau para sua felicidade.

Exemplos disso incluem esperar que nossos competidores nos negócios errem
para passarmos a sua frente, ou que as pessoas na empresa se aposentem só para
sermos promovidos, ou que nossos parentes ricos morram logo para que
possamos herdar seu dinheiro e propriedades. Nunca devemos desejar mal aos
outros com o objetivo de nos beneficiarmos. Ao invés disso, devemos nos alegrar e
desejar que as outras pessoas vivam muito e aproveitem seu dinheiro e posição.

Isso conclui as 18 práticas para estreitar o vínculo, que são o sexto ponto.
22 Formas de Treinamento
Ponto 7
O sétimo ponto, o último, consiste em 22 formas de treinamento para limparmos
nossas atitudes:

(1) Faça todos os yogas com apenas uma [intenção]

O que quer que façamos, nossa intenção sempre deve ser a de ajudar os outros. Na
Índia, onde muitas pessoas têm vermes, costuma-se dizer: “Ao comer, que eu
alimente todos os microorganismos de meu corpo”. Mesmo que não consigamos
manter essa motivação durante toda a refeição, podemos pelo menos começar
assim. O verso de dedicação de Nagarjuna, “Como esse alimento não por avidez ou
apego, mas como remédio para poder ajudar os outros” é muito útil.

(2) Acabe com todas as distorções utilizando apenas uma [prática]

Isso pode ser explicado de várias formas. Uma delas é que devemos nos livrar de
nossas emoções perturbadoras utilizando o tonglen — tomando para si as
emoções perturbadoras e o sofrimento dos demais. Mas isso não quer dizer que
devemos tomar a raiva dos outros e nos tornarmos ainda mais raivosos.Conforme
especificado em todos os ensinamentos de tonglen, não guardamos o que tiramos
dos outros, como se fosse algo sólido; usamos de nossa habilidade para
transformar e superar esses sentimentos.

Quando nossas emoções perturbadoras aflorarem, pode ser útil enxergar isso
como um bom sinal; afinal, se elas não aparecerem, como conseguiremos derrotá-
las? Precisamos trazer toda nossa raiva e demais emoções perturbadoras à
superfície, para que possamos nos livrar delas. É um pouco como praticar shamata.
Quando somos iniciantes e tentamos acalmar a mente, temos a impressão de que
ela fica ainda mais distraída e barulhenta. Na verdade, não é a nossa mente tenha
ficado mais agitada que o normal, nós é que nunca havíamos prestado atenção nela
antes. Quando estamos treinando nossa atitude e começamos a observar a mente,
acontece a mesma coisa, percebemos um monte de raiva e apego que nunca
tínhamos visto antes. Na verdade, isso é um bom sinal!

(3) No começo e no final, tome as duas ações

As duas ações são: começar com a intenção de ajudar os outros e terminar


dedicando a força positiva. E, novamente, Geshe Ben Gung-gyel nos ajudará a
ilustrar essa situação com suas pedrinhas brancas e pretas. Ao acordar, ou antes de
fazer alguma coisas difícil, precisamos estabelecer nossa intenção de ajudar os
outros e não sermos egoístas. E, no final do dia, dedicamos o potencial positivo de
nossas ações construtivas e nos arrependemos e purificamos as ações negativas.

(4) Qualquer das duas coisas que aconteça, aja com paciência
Quer estejamos felizes ou infelizes, em boa ou má situação, devemos ser pacientes
e consistentemente desejar a felicidade alheia, além de tomar para si os problemas
dos outros. Quando as coisas vão bem, não devemos ficar orgulhosos ou arrogantes
e quando vão mal é importante não nos sentirmos deprimidos ou impotentes. Se
tivermos dinheiro, devemos usá-lo para ajudar os outros, mas se não tivermos,
podemos fazer oferendas imaginárias. Em ambas as circunstâncias é possível
praticar tonglen.

(5) Proteja os dois, mesmo que isso lhe custe a vida

Isto refere-se aos nossos compromissos, especialmente às práticas de


estreitamento de vínculo. Precisamos protegê-las fortemente. Com mais força,
segundo o texto, do que protegemos nossas próprias vidas.Por isso, precisamos
conhecer muito bem os votos budistas antes de tomá-los. Muitas pessoas se jogam
em práticas e iniciações avançadas porque todo mundo está fazendo ou porque
querem ser praticantes “avançados”, sem uma ideia clara do quesignificam e nem
dos comprometimentos que estarão assumindo. Ou mesmo se serão capazes de
mantê-los.

Antes de pedirmos aos mestres que nos passem práticas avançadas, precisamos
questionar nossa própria moral. Será que conseguiremos manter a autodisciplina?
Será que conseguiremos manter os compromissos? Se a resposta for não, então
não devemos pedir tais práticas. Algumas pessoas fazem o puja de Cherenzig uma
vez por semana achando chato e desinteressante; mas mesmo assim, sempre que
algum lama importante dá uma grande iniciação, ficam ansiosos por tomá-la,
independente do tamanho da sadhana que terão que fazer. Se achamos chato nosso
compromisso semanal, por que achar que podemos ter um compromisso diário?

(6) Treine nas três coisas difíceis

Quando as emoções perturbadoras surgem, temos três coisas difíceis a fazer. A


primeira é reconhecer a emoção e lembrar da força opositora. A segunda é aplicar
a força opositora e a terceira é mantê-la em mente, para que a emoção
perturbadora não volte. Em outras palavras, precisamos interromper a
continuidade de emoções como raiva e ganância, e atitudes como o egoísmo.

(7) Obtenha as três principais causas

As três principais causas são as causas para podermos treinar nossas atitudes. A
primeira é encontrar um professor espiritual que nos ensine e inspire; a segunda é
a própria prática dos ensinamentos e a terceira é ter condições favoráveis para a
prática. Essas condições são, basicamente, ter comida suficiente, uma casa
modesta, roupas modestas e assim por diante, e não se preocupar muito em
agradar o eu. Por exemplo, se ganhamos dinheiro suficiente, devemos ficar
satisfeitos ao invés de querer cada vez mais. Assim, podemos focar nossa energia
em cuidar dos outros.

(8) Medite nas três coisas que não declinam


A primeira coisa que não declina é nossa convicção nas boas qualidades do
professor e apreciação de sua gentileza. Se tivermos essa atitude com o professor,
ela se transferirá para as demais pessoas. Seremos capazes de reconhecer as boas
qualidades dos outros e, portanto, respeitá-los. Também apreciaremos sua
gentileza, mesmo que não estejam fazendo algo que nos afete diretamente. Eles
nos ajudam simplesmente por estarem disponíveis para que nós os ajudemos.

Um dos grandes obstáculos ao desenvolvimento de bodhichitta é olhar para


demais com desdém, pois só conseguiremos ver seus defeitos e sentir que somos
melhores que eles. Por exemplo, se um grande erudito e professor souber muitas
coisas porém for arrogante, seu conhecimento não será de muito benefício aos
outros, nem mesmo a ele próprio, pois seu orgulho será tão insuportável que
ninguém irá querer ouvir o que tem a dizer. Quando rejeitamos os pensamentos e
opiniões dos demais, por conta de nosso orgulho ou arrogância, não nos damos a
oportunidade de aprender com eles. Tentamos impor nossas ideias mesmo quando
estamos errados e rejeitamos qualquer conselho. Se formos humildes e abertos aos
conhecimento dos outros, podemos aprender até com pessoas pouco estudadas,
como crianças. Olhar as boas qualidades e apreciar a gentileza alheia nos abre para
podermos aprender com todas as pessoas. O oposto disso é ignorar e rejeitar o que
os outros dizem simplesmente para protejer e defender nossas posições.

A segunda coisa que não declina é nossa vontade de praticar,portanto, é muito


importante, desde o começo, não sentir que estamos sendo forçados a treinar.Não
devemos pensar, “tenho que fazer isso para ser bom, pra não ser mau”. Quando as
pessoas são forçadas a fazer alguma coisa, geralmente se rebelam e fazem o
contrário. Se realmente refletirmos sobre as vantagens de nos preocuparmos e
cuidarmos do outros, e as desvantagens do auto-apreço, nos entusiasmaremos com
a prática e vamos querer fazê-la.

(9) Possua os três inseparáveis

Isso significa estar consciente e dedicado, de corpo, fala e mente, a praticar o


cuidado com os outros. O exemplo usado para o corpo é não ficar se mexendo o
tempo todo, sentar-se quieto e atento. Nossa fala não deve ser um constante blá,
blá, blá, precisa estar direcionada a ajudar os outros. A mente também deve ser
preenchida com pensamentos de ajuda, ao invés de todo tipo de loucura e coisas
bobas. Independente do que estejamos fazendo, quer envolva o corpo, a fala ou a
mente, é necessário que esteja conectado a algo construtivo.

Os tibetanos dizem que, quando dormimos, não devemos fazer como um boi, que
simplesmente deita e pronto. Antes de nos deitarmos, devemos fazer três
prostrações para reafirmar o ideal bodhichitta e a direção segura que tomamos na
vida. Se dormirmos com a aspiração de “Que eu durma para descansar e continuar
nesta direção”, até mesmo uma noite de sono torna-se um ato extraordinário.

(10) Aja com pureza, seja imparcial em relação aos objetos

Isto significa que devemos treinar com todos os seres, e não apenas com nossos
amigos e parentes. Este ponto é parecido com o ponto seis. E isso aplica-se também
aos animais. Algumas pessoas são muito gentis com gatos e cachorros, mas nem
tanto com insetos e roedores. Isso é ser parcial. Somos gentis com os animais que
gostamos, mas tratamos com desdém e hostilidade os que não gostamos.

É difícil, mas quando falamos em levar todos os seres à iluminação, é importante


percebermos que nenhum ser tem em sua atual forma de renascimento uma
identidade inerente e permanente. Ninguém é inerentemente humano, ou barata,
ou homem ou mulher. Todos temos um continuum mental sem começo, e todos já
renascemos de inúmeras formas diferentes, dependendo de nosso karma. É claro
que, no nível convencional, temos que nos relacionar com os outros em sua forma
atual — como humano, cachorro ou barata — mas, em um nível mais profundo,
vemos que todos têm uma natureza búdica. Todos podem ter sido nossa mãe na
última vida, e talvez na próxima também serão. Assim, podemos começar a
estender nossa prática para todos os seres.

O desejo de cuidar e beneficiar os outros precisa estar acoplado à compreensão da


mente sem começo e da natureza búdica. É por isso que a prática de preocupar-se
com os outros e superar o egoísmo começa com a equanimidade, vendo todos os
seres como nossas mães. Isso nos remete à mente sem começo e a sermos todos
iguais sob esta perspectiva.

(11) Aprecie [aplicar] o treinamento amplo e profundo a tudo

Treinar a mente significa treiná-la em relação a tudo — inclusive a objetos


inanimados. Não devemos ficar com raiva de pessoas, mas também não devemos
ter raiva do carro quando não pega, ou do ônibus quando se atrasa. Precisamos
evitar nos apegarmos a pessoas, mas também a sorvete e dinheiro. E precisamos
fazer isso de coração, não apenas superficialmente.

(12) Sempre medite naqueles que considera [próximos]

Precisamos aplicar essas práticas ao nosso relacionamento com os pais e as


pessoas com quem vivemos. Em geral, as pessoas meditam gerando amor por
todos os seres, mas não conseguem suportar nem mesmo seus pais! Por isso, este
ponto é muito importante e precisamos nos esforçar em treiná-lo. Precisamos
treinar com as pessoas com quem temos uma conexão forte e também com as que
sentimos forte atração ou aversão à primeira vista, pois isso indica uma forte
conexão kármica.

(13) Não dependa de outras condições

O que quer que aconteça, precisamos sempre trabalhar nossa atitude. Se


esperarmos até encontrarmos as condições perfeitas para praticar, esperaremos
para sempre. Um dos grandes mestres tibetanos disse que quando as coisas vão
bem mostramos nossa face espiritual, e quando vão mal mostramos nossa
verdadeira face.
Tudo vai muito bem quando está bem, mas quando a situação complica, muitas
pessoas ficam deprimidas e começam a beber, ao invés de recorrerem às suas
práticas. Independente de como as coisas estiverem, precisamos nos manter firmes
na prática.

Nagarjuna disse que não podemos simplesmente ser pescados do samsara por um
pescador e colocados para fora.Os grandes budas e lamas não conseguem
simplesmenteextrair-nos das situações difíceis, mas conseguem nos ajudar e
inspirar.Não podem, com um estalar de dedos,livrar-nos do egoísmo e dos
problemas. Precisamos nos esforçar e caminhar com nossos próprios pés. Se
esperarmos que nosso guru resolva tudo e não fizermos coisa alguma, nada vai
acontecer.

(14) Pratique, principalmente agora

Certa vez, um lama disse que não devemos agir como turistas nos samsara,
achando que temos muito tempo e que podemos passear e experimentar tudo. Não
podemos! Precisamos trabalhar em nossas atitudes agora, nos esforçar,
desenvolver bodhichitta e atingir a iluminação.

Ajuda imaginar que estamos apenas tirando umas férias dos reinos inferiores.
Estamos em um pequeno intervalo da nossa existência como barata ou cachorro.
Portanto, temos que usar bem este tempo. Ao invés de nos envolvermos em
assuntos mundanos, que aumentam nosso egoísmo, nosso interesse principal deve
ser o dharma e a superação do egoísmo.

Também precisamos ter em mente nossas vidas futuras. A maioria de nós não
pensa sobre isso ou sequer acredita em renascimento. Quando praticamos, mas
não sentimos que estamos progredindo, nos desencorajamos. Então, ouvimos falar
do tantra e de que podemos atingir a iluminação nesta mesma vida. Isso parece
muito tentador! No entanto, a maioria dos praticantes do tantra não atingirão a
iluminação nesta vida. Isso é muito raro. Podemos tentar mas, se não
conseguirmos, não devemos achar que perdemos para sempre nossa chance.
Temos que pensar em termos de continuar nossa prática vida após vida. Não é
tudo ou nada. Precisamos entender muito bem o que o termo “vida futura” significa
no budismo, e isso não é nada simples.

(15) Não inverta a compreensão

Existem seis tipos de compreensão invertida que precisamos evitar:

Compaixão invertida. É quando, ao invés de termos compaixão pelas pessoas bem


vestidas que agem destrutivamente, temos compaixão por praticantes mal vestidos
e engajados em ações construtivas.

Pensamos, “Pobres meditadores nas cavernas. Não têm nada pra comer!” É bom
dar-lhes comida se estiverem com fome, mas as pessoas que realmente estão em
dificuldades são os homens de negócios que passam o dia ludibriando os
outros.Sua forma de agir lhes trará cada vez mais sofrimento, já o meditador está
criando felicidade futura e no fim liberação. Certa vez, três irmãs ricas viram
Milarepa e disseram “Oh, sentimos muito por você!”, e ele respondeu, “Eu é que
sinto por vocês; vocês é que são dignas de compaixão, não eu!”

Paciência invertida. É sermos pacientes e tolerantes com as emoções


perturbadoras e o egoísmo, ao invés de com as pessoas que ficam com raiva da
gente. Ou, não temos paciência para ficarmos sentados durante uma aula de
dharma ou uma sessão de meditação, mas termos paciência para ficar em uma fila
durante horas, no frio, só para comprar ingressos para um show de rock. Isto sim é
paciência invertida!

Intenção invertida. É quando nossa principal intenção é ganhar coisas como


dinheiro, prazer e assim por diante, ao invés de querer ganhar felicidade interior.

Gosto invertido. É querer visitar países distantes ou provar drogas exóticas ou um


sexo diferente, ao invés de querer as experiências espirituais decorrentes de ouvir,
pensar e meditar sobre os ensinamentos.

Interesse invertido. É encorajar as pessoas a ganharem dinheiro nos negócios e


outras coisas materiais, ao invés de encorajá-las a se interessarem por práticas
espirituais.

Alegria invertida. Alegrar-se quando um inimigo ou alguém de quem não


gostamos tem problemas ou dificuldades, ao invés de alegrar-se com suas ações
positivas.

(16) Não seja intermitente

Não pratique um dia e no outro não. Precisamos ser consistentes! E se não formos
fortes em uma prática, não devemos pulá-la e ir para outra, devemosmanter-nos
estáveis como um grande rio.

(17) Treine resolutamente

Se vamos tentar vencer o egoísmo, que o façamos de uma só vez. Minha mãe
costumava dizer,“Faça de uma vez, não fique enrolando.” Não devemos
permanecer em um estado mental em que parte de nós quer praticar e parte não
quer incomodar-se. Precisamos ir direto ao assunto e não enrolar.

(18) Liberte-se através da investigação e escrutínio

Temos de checar cuidadosamente, tanto no nível superficial quanto no profundo,


se realmente estamos mudando nossa atitude. Será que estamos apenas
reprimindo o egoísmo, ou conseguimos cortar o mal pela raiz?

Essa frase também significa que devemos investigar os ensinamentos em


profundidade Se os estudarmos cuidadosamente, saberemos o que precisamos
fazer. Então, poderemos simplesmente fazer, sem hesitar.
(19) Não medite com uma sensação de perda

Em geral, em nossas práticas, doamos mentalmente tudo o que temos, mas na vida
real não conseguimos doar. Isso é o que chamamos praticar com uma sensação de
perda.Se doamos as coisas, elas passam a ser das outras pessoas, e não nossas.
Quando eu morava na Índia, tinha um lindo jardim de flores e as oferecia a todos os
seres durante minha meditação. Mas quando as crianças as colhiam para levar para
casa, eu percebia que isso me irritava. Isso é “sensação de perda”.

Da mesma forma, não devemos lembrar os outros da ajuda que lhes demos, ou o
quanto nos sacrificamos por eles. E o que é mais importante, nunca devemos falar
de nossas práticas, dizendo que fizemos 100.000 prostrações ou o que quer que
seja. A força positiva é gerada ao fazermos a prática, e não ao contarmos aos
outros.Se fizermos um retiro e sairmos nos achando superiores aos nossos amigos
“criaturas samsáricas dignas de pena”, alguma coisa deu errado! Devemos apenas
praticar com sinceridade, sem autocomiseração ou complexo de superioridade.

(20) Não se deixe limitar pela hipersensibilidade

Não devemos nos irritar com pequenas provocações. Precisamos ser capazes de
aguentar abusos, mesmo em público.Shantideva nos aconselha a permanecermos
quietos como uma tora de madeira, mesmo quando alguém estiver gritando
conosco. Uma hora a pessoa vai acabar o arsenal de coisas ruins que tem a dizer,
ou perderá o interesse e vai parar. Mas temos que fazer isso com uma motivação
pura, e não pensando em como nos vingaremos mais tarde.

(21) Não aja apenas por um instante

Não seja volúvel, mudando de ideia a toda hora. Se ficarmos alegres com qualquer
elogio e deprimidos com qualquer cara feia, pareceremos instáveis e
desequilibrados. Se as pessoas nos perceberem assim, nossa capacidade de ajudá-
las ficará prejudicada.Shantideva nos dá o melhor conselho: seja sempre gentil com
as pessoas; não passe o dia inteiro fofocando ou falando bobagem, mas também
não fique em completo silêncio.Não falar com as pessoas com quem moramos pode
ser mais perturbador do que tocar música alta. É bom sermos flexíveis, assim
poderemos praticar durante toda a vida e não apenas por um curto período.

(22) Não deseje que lhe agradeçam

Mencionamos isso quando falamos em não esperar reconhecimento ou mesmo um


obrigado por ajudar os outros. E este ponto inclui evitar os oito dharmas
mundanos, que são os quatro pares de opostos:

• Ficar entusiasmado com ganhos e deprimido com perdas

• Ficar entusiasmado quando as coisas vão bem edeprimido quando as coisas vão
mal
• Ficar entusiasmado com elogios e deprimido com críticas

• Ficar entusiasmado com boas notícias e deprimido com más notícias.

Isso conclui o sétimo ponto.

Versos de Conclusão
[Assim,] transforme em um caminho para a iluminação esse [tempo] em que as
cinco degenerescências se alastram.

Diz-se que vivemos na época das cinco degenerescências.

1. Deterioração do tempo de vida — o tempo de vida das pessoas está cada vez
menor. Muitas pessoas morrem cedo e existem doenças como AIDS e problemas
com drogas e acidentes. As crianças parecem não ter mais infância e, ao chegarem
à adolescência, muitas já experimentaram drogas e sexo. Desse modo,a vida parece
estar encurtando.

2. Deterioração das emoções — mesmo os monges e monjas sofrem de fortes


emoções como raiva, desejo, apego, ingenuidade e assim por diante.

3. Deterioração da visão — Pessoas leigas não respeitam mais os monges e


monjas. Aliás, parece que as pessoas não respeitam coisa alguma hoje em dia. E os
que ocupam os altos cargos políticos e religiosos estão envolvidas em todo tipo de
escândalo.

4. Deterioração dos seres — somos menos capazes de nos cuidar do que antes.
Dependemos tanto da eletricidade, internet, máquinas, computadores, etc, que
temos dificuldade em sobreviver sem essas coisas. Há cinquenta anos atrás, todos
viviam perfeitamente sem computador, mas agora ficamos apavorados se a
internet cai por alguns minutos. Vemos um declínio na saúde, intelecto, forma
física, etc.

5. Deterioração do tempo — Temos cada vez mais desastres naturais. Temos


problemas de mudanças climáticas, furacões, terremotos e tantos mais. Esta é a
hora em que realmente precisamos desse tipo de prática, para transformar tais
situações difíceis em situações conducentes à iluminação.

O texto continua:

A essência de néctar da quintessência dos ensinamentos é a linhagem de


Serlingpa.

Os ensinamentos quintessenciais são os ensinamentos em bodhichitta e assim por


diante, que são como um néctar da imortalidade, por nos conduzirem ao estado
búdico.Os ensinamentos vêm de Serlingpa, o professor de Atisha em Sumatra.
O autor conclui:

Devido ao despertar das reminiscências kármicas de ter treinado


anteriormente, minha admiração [por esta prática] é imensa. Por isso,
ignorando sofrimentos e insultos, solicitei as diretrizes para domar meu auto-
apego. Agora, mesmo que eu morra, morrerei sem arrependimentos.

Se realmente treinarmos nossa mente e atitude, e nos livrarmos do egoísmo e da


preocupação autocentrada, morreremos felizes. Teremos gerado as causas para
continuar ajudando os outros em vidas futuras. No curto prazo, morreremos em
um estado mental de relaxamento, ou ao menos sem arrependimentos.

Esses são os ensinamentos dos Sete Pontos para o Treinamento de Atitude, que
recebi muitas vezes de vários professores: de Sua Santidade o Dalai Lama, de seu
professor Serkong Rinpoche e de Geshe Ngawang Dhargyey. Espero que beneficie
todos os seres.

Perguntas
O que fazer se tivermos medo de praticar esses ensinamentos?

Conforme mencionei, esses ensinamentos são muito avançados, não foram feitos
para principiantes. Antes de começarmos, precisamos de um ego saudável, para
conseguirmos vencer a baixa auto-estima. A Joia do Ornamento da Liberação, de
Gampopa, começa com a natureza búdica, o que significa que precisamos estar
convictos de que temos todas as qualidades que nos permitem atingir o estado
búdico. Esse é primeiro ponto, e realmente nos ajuda a vencer a baixa auto-estima.
Sem isso, não é aconselhável seguirmos para práticas mais avançadas.

O que é um ego saudável? Bom, no budismo tentamos nos livrar do ego inflado, e
não do ego saudável. É com base em um ego saudável que desenvolvemos o
interesse por nossa vida e nossa prática, e nos levantamos de manhã, meditamos e
vamos trabalhar. Precisamos de um ego saudável, caso contrário, não
conseguiremos funcionar no mundo, nem praticar dharma, pois não
conseguiremos acreditar que podemos obter algum resultado.Um ego inflado é
uma distorção em que projetamos no ego saudável um sentimento de que “Sou a
pessoa mais importante do mundo e as coisas devem estar sempre do meu jeito”.
Precisamos nos livrar disso.

O budismo é sempre o caminho do meio; o lema mais famoso do budismo é o


caminho do meio. No que diz respeito ao ego, significa termos um ego saudável.
Nem inflado, onde nos sentimos o centro do universo, nem murcho, onde achamos
que não conseguimos fazer nada sozinhos e somos completamente dependentes.
Este último é tão perigoso e extremo quanto o ego inflado. Sempre falamos em
evitar os extremos de achar que as coisas são sólidas e eternas ou que não existem,
o nos levaria ao niilismo.

Como saber se temos um ego saudável?


Primeiro precisamos nos examinar um pouco, para saber se realmente nos
importamos conosco. Não de forma egoísta, mas se realmente nos importamos
com o que vivenciamos e sentimos, ou se nossa autoestima é tão baixa que
simplesmente não ligamos. Se não ligamos, achamos que não tem problema
agirmos de forma destrutiva. É uma atitude de “tanto faz”, mas que é muito
diferente da equanimidade. Começamos a desenvolver um ego saudável quando
assumimos a responsabilidade por nossas vidas e nos levamos a sério, bem como
nossas ações e sentimentos.

Não precisamos superar completamente a baixa autoestima para praticar dharma,


o que seria um processo muito longo e difícil. Mas precisamos ao menos
reconhecer que essa atitude perturbadora é uma fonte de sofrimento, e querermos
superá-la. E precisamos chegar à conclusão de que é algo que pode ser superado.
Assim, nos envolvemos com as práticas budistas para superá-la.

Um dos fundadores da tradição Sakya, Sonam Tsemo, escreveu um importante


texto chamado Adentrando o Portão do Dharma. Sonam Tsemo foi contemporâneo
de Gampopa, e ensinou que precisamos de três coisas para realmente nos
engajarmos na prática do dharma:

 Primeiro, precisamos reconhecer os problemas e o sofrimento em nossa vida.


 Depois, precisamos estar determinados a nos livrar deles.
 E, finalmente, precisamos um conhecimento básico de dharma.

Tendo isso como base, nos engajamos na prática do dharma porque reconhecemos
que temos problemas, estamos motivados a superá-los e conhecemos os métodos.
Caso contrário, por que nos engajaríamos na prática?

Reconhecer o sofrimento e querer livra-se dele também exige um ego saudável.


Caso contrário, não nos importaremos, ou não procuraremos métodos para
melhorarmos nossa situação. Se tivermos esses três pré-requisitos é porque nosso
ego é saudável o suficiente para engajar-se na prática do dharma. É claro que
queremos melhorar nossa situação. Os textos dizem, “Pratique sem expectativa”,
mas isso é para evitarmos os extremos do ego inflado ou da baixa auto-estima.
Precisamos sentir que não vamos ficar aborrecidos com os altos e baixos da
prática, e também que nos importamos o suficiente para continuar, pois nosso
objetivo é a iluminação. Sem um ego saudável, não conseguimos ter objetivo algum,
muito menos o de nos iluminarmos.

Leia e escute o texto original "Treinamento da Mente em Sete Pontos" de Geshe


Chekawa.
Tantra
O tantra no budismo tibetano aproveita a nossa imaginação - uma ferramenta que todos
nós possuímos. Em vez de lutar contra as emoções como raiva e apego, técnicas do
tantra nos permitem transformar negativismo em uma ajuda para atingir a iluminação.
V I S ÃO G E R A L DO C O N T E ÚD O

 Tantra Budista
 Kalachakra
 Mahamudra e Dzogchen
Tantra Budista
Diversos aspectos do tantra budista, como mantras e mandalas, entraram na
cultura moderna em uma versão pop. Mas no contexto budista, eles tem um
significado específico e são aplicados em formas avançadas de meditação
Mahayana. Quando esclarecemos os mal-entendidos e o misticismo que cerca
o tantra, e quando aprendemos mais sobre ele, adquirimos confiança em seus
métodos, que são bastante profundos.

O Que É Tantra?
Dr. Alexander Berzin

O tantra é em geral mal compreendido no Ocidente mas, na realidade, não há


nada de misterioso nele. O tantra usa uma ferramenta poderosa que todos
podemos acessar — a imaginação. Para praticantes avançados, com uma
fundação sólida nos princípios centrais do budismo, o tantra é um método
para se alcançar, de forma rápida e eficiente, o estado em que podemos ser de
máximo benefício para todos os seres — o estado de buda.

Os Fundamentos da Prática do Tantra

O tantra é um avançado sistema de práticas Mahayana cujo objetivo é


atingirmos a iluminação. É praticado com base em um firme alicerce de
práticas sutrayanas, conforme os ensinamentos do caminho gradual do
lam-rim. São especialmente cruciais as seguintes práticas:

 Direcionamento seguro (refúgio)


 Determinação para libertar-se do sofrimento e de suas causas
(renúncia)
 Rigorosa disciplina ética
 Bodhichitta (atingirmos a iluminação para o benefício de todos os
seres)
 As seis atitudes de vasto alcance (seis perfeições). Especialmente:
o Concentração
o Consciência discriminativa da vacuidade.
Uma vez que os praticantes sérios tenham ganho estabilidade em seus
estudos, e no treinamento de todas as práticas acima, além de ter
completado um certo número de práticas preliminares (ngondro) de
purificação de seus potenciais negativos e construção de potenciais
positivos, finalmente estão preparados para começar a praticar o tantra.
Fazem-no porque sua compaixão pelos outros é tão forte e a bodhichitta
tão profunda, que não suportam o enorme tempo que demorariam para
atingir a iluminação pelo caminho sutrayana. Eles adotam a prática do
tantra como um método para juntar todas as práticas do sutra de forma
extremamente eficiente e holística.

O Significado da Palavra “Tantra”

A palavra sânscrita “tantra” significa “algo que foi esticado” - esticado nos
dois sentidos da palavra. Primeiro, como os fios de urdidura no tear, a
prática do tantra é a urdidura onde tecemos as práticas Sutrayanas.
Segundo, no sentido de um continuum permanente, sem começo nem fim,
que se refere normalmente ao nosso continuum mental, o contínuo de
vivências individuais e subjetivas. Nesse continuum estão incluídos
corpo, fala (formas de comunicação), mente, atividades e várias boas
qualidades, como compreensão e cuidado, tanto consigo como para com
os outros (o instinto de auto-preservação e de preservação da espécie).
De uma forma ou de outra e em maior ou menor grau, todos temos esses
aspectos em cada uma de nossas vidas. Se tomarmos esses aspectos, que
são variáveis, e mais a vacuidade do continuum mental e o fato de que
tais aspectos podem ser estimulados a evoluir, teremos o que chamamos
“fatores da natureza búdica”. Eles constituem um continuum infinito, um
“tantra”.

Tantra de Base, do Caminho Interior e Resultante

Cada continuum tem três níveis: o nível de base, o nível do caminho


interior e o nível resultante.

O nível de base do tantra é o continuum sem começo, nas formas usuais


de cada uma de nossas vidas samsáricas. Essas formas usuais surgem da
inconsciência (ignorância) de como nós e os outros existimos, e também
das emoções destrutivas e comportamentos kármicos compulsivos
derivados dessa inconsciência.

Misturado à essa confusão, o continuum, cheio de várias formas de


sofrimento, perpetua-se e permanecerá eternamente no nível básico, a
menos que façamos algo que remova (purifique) a confusão. O tantra
(continuum) de base é caracterizado, portanto, como sendo impuro.
O tantra resultante é o continuum infinito dos aspectos da nossa natureza
búdica totalmente purificada, agora na forma de um corpo, fala, mente,
atividades e boas qualidade de um buda completamente iluminado.

O tantra do caminho interior é o continuum parcialmente purificado, que


serve como um estágio intermediário entre o continuum de base e o
resultante. Purificamos nosso continuum imaginando os aspectos de
nossa natureza búdica na forma de uma figura búdica (yidam, deidade
tântrica). Sabemos que o que estamos imaginando ainda não está
acontecendo, mas poderá acontecer quando purificarmos nossos aspectos
de natureza búdica.

Por causa dessa característica do praticante imaginar-se na forma de um


Buda, a prática do tantra é conhecida como o “veículo resultante” —
praticamos agora o resultado que teremos no futuro.

Múltiplos Membros

Muitas das figuras búdicas que utilizamos para visualizarmo-nos na


prática do tantra do caminho interior, tem múltiplas faces, braços e
pernas. Essa é a urdidura do tantra, porque nela tecemos aquilo que
representam. Cada característica corporal dessas figuras representa um
aspecto diferente dos ensinamentos Sutrayanas do lam-rim. Por exemplo,
ter seis braços representa ter todas as seis perfeições — generosidade,
disciplina ética, paciência, perseverança, estabilidade mental e
consciência discriminativa — de uma só vez. Ao visualizarmos essas 6
perfeições em um formato gráfico, conseguimos permanecer com todas
elas em mente de modo simultâneo, o que é muito mais fácil do que
tentarmos fazer isso de forma abstrata.

Práticas Preliminares

Engajamo-nos em nossas práticas, tanto as de meditação quanto as


práticas do dia-a-dia, enquanto nos imaginamos nessas formas de
múltiplos membros. Assim, construímos redes de força positiva e
consciência profunda (coleta de mérito e sabedoria). Ajudamos os outros
com amor e compaixão enquanto focamos na vacuidade de tudo.

Essas duas redes também são aspectos da natureza búdica e sua força é o
que faz com que os outros aspectos dessa natureza funcionem nos níveis
de base, caminho interior e resultante. Para iniciarmos esse processo de
fortalecimento das redes, nos engajamos nas praticas preliminares, como
prostrações e purificações de Vajrasattva, antes de tentarmos fazer as
práticas tântricas.
Iniciações

Para começar a imaginarmo-nos como budas, precisamos receber uma


iniciação de um mestre tântrico qualificado, mas só tomamos a iniciação
se tivermos nos preparado adequadamente seguindo os requisitos de
estudos e práticas Sutrayanas e das práticas preliminares (ngondro). É
através do poder da visualização que nosso mestre tântrico e nós fazemos
durante o ritual, que os aspectos da nossa natureza búdica são ativados
para transformarem-se em aspectos de Buda. Para nos assegurarmos de
que a transformação ocorrerá sem empecilhos, tomamos vários votos
para evitar agir, falar e pensar de maneira que prejudique nossa prática.
Esse votos incluem disciplina ética, votos de bodhisattva e, em alguns
casos, votos tântricos. Se não tomarmos conscientemente esses votos, não
recebemos a iniciação, e se não os mantivermos puros, não existe prática
tântrica.

Conclusão

Longe de ter qualquer coisa a ver com sexo ou rituais misteriosos, o


tantra nos propõe um sistema altamente complexo e avançado para
despertarmos nosso potencial. A práticas tântricas não devem ser
tomadas como algo leve; quando participamos ativamente do ritual,
estamos nos comprometendo a manter os votos pelo resto de nossas
vidas. É justamente por isso que só devemos começar a praticar o tantra
quando tivermos uma fundação sólida dos princípios budistas,
especialmente no que diz respeito ao amor e compaixão universais, por
todos os seres, e também um bom entendimento da vacuidade.

Para os praticantes avançados, o tantra é como uma bomba nuclear para


a mente. Se praticado da maneira correta, destrói o ego e a mente que
tende ao auto-apreço, e rapidamente leva o praticante à iluminação,
quando então ele poderá ser de incrível e duradouro benefício para todos
os seres.
O Que é um Mantra?
Quando estamos estressados ou nossa mente está
agitada com pensamentos negativos compulsivos, recitar
mantras é um método útil - e livre de efeitos colaterais -
para acalmar, silenciar o ruído interior, e gerar um estado
mental e emocional mais positivo. Na prática budista,
mantras específicos podem ser usados para trazer à
mente mais compaixão, maior clareza ou uma
compreensão mais profunda. Mantras são uma
ferramenta poderosa que beneficia não só os praticantes
espirituais, mas qualquer pessoa que esteja enfrentando
os desafios da vida moderna.

Quando estamos estressados ou nossa mente está agitada com


pensamentos negativos compulsivos, recitar mantras é um método útil - e
livre de efeitos colaterais - para acalmar, silenciar o ruído interior, e gerar
um estado mental e emocional mais positivo. Na prática budista, mantras
específicos podem ser usados para trazer à mente mais compaixão, maior
clareza ou uma compreensão mais profunda. Mantras são uma
ferramenta poderosa que beneficia não só os praticantes espirituais, mas
qualquer pessoa que esteja enfrentando os desafios da vida moderna.

Mantra. Para algumas pessoas, a palavra evoca imagens de sílabas que


concedem desejos mágicos. Outras pensam em recitá-los como uma
forma de oração ou devoção. Hoje em dia, os partidos políticos e marcas
comerciais divulgam seus "mantras" para nós sob a forma de slogans. No
entanto, na prática budista a finalidade não é essa . No budismo, mantras
são utilizados como ferramentas sofisticadas para nos ajudar a gerar e
manter a o foco sobre os estados benéficos da mente, como a compaixão
pelos outros, ou clareza de pensamento (Veja O que é o Budismo?).

Mantras são frases e sílabas recitadas repetidas vezes como um auxílio à


concentração em um estado benéfico da mente, de forma a proteger a mente de
estados negativos.

A palavra mantra em sânscrito é composta pela raiz, man, que significa


"mente" e pelo sufixo tra que significa "ferramenta" - descrevendo
precisamente que, no budismo, que os mantras são um tipo de
“ferramenta mental". Eles também são encontrados em todas as tradições
espirituais da Índia, e em outras posteriores a elas. Os tibetanos, por
exemplo, os entendiam como uma forma de "proteção da mente", uma
ferramenta para proteger a mente de pensamentos e emoções
perturbadoras.

Recitados em voz alta ou mentalmente, dentro ou fora da meditação, os


mantras ajudam a acalmar nossa mente e a manter a atenção em um
estado positivo (Veja O que é meditação?). Aqui, presença mental se
refere a uma consciência que atua como uma “cola mental”, mantendo a
nossa atenção no mantra e no estado mental associado, e nos impedindo
de vaguear ou cair em torpor.

Sílaba Om / © tashimannox.com

Podemos ir mais longe com a prática de mantra, usando-a para integrar


nossa fala com o nosso corpo e mente. Por exemplo, se formos ajudar ou
consolar alguém e desejarmos gerar um forte sentimento compaixão (o
desejo de que eles se livrem de seus problemas), podemos recitar o
mantra " Om Mani Padme Hum" (provavelmente o mais conhecido de
todos os mantras budistas) suavemente junto com a nossa respiração ou
em nossas mentes. Isso nos mantém focados no sentimento de compaixão
e nos prepara para falar e agir com compaixão enquanto tentamos ajudar.

Alguns mantras contêm palavras em sânscrito misturadas com sílabas,


enquanto outros contêm apenas sílabas. As palavras e sílabas
representam diferentes aspectos dos ensinamentos budistas, como no
mantra "Om Mani Padme Hum":

 OM - essa sílaba é composta de três sons -a, u e m - e representam


tanto o corpo, fala e mente conquistados com a iluminação quanto
nosso corpo, fala e mente ordinários que precisam primeiro ser
purificados de suas imperfeições.
 Mani - essa palavra significa "jóia" e se refere ao primeiro dos dois
fatores que levam a purificação acima, ou seja, ao método. Neste
contexto, o método é a compaixão. É com base na compaixão que temos
o ideal de bodhichitta para alcançarmos a iluminação, a fim de
beneficiar todos os seres, tanto quanto possível.
 Padme - isso significa "lotus", e representa o segundo fator, a
sabedoria, a compreensão da vacuidade. Vacuidade (vazio) é a
ausência total de maneiras impossíveis de existir. Normalmente,
projetamos todos os tipos de preocupaçõestolas a respeito de como
nós, os outros, e o mundo existe, mas estas projeções não
correspondem à realidade. Acreditamos nessas projeções como sendo
verdade, e por isso, tornamo-nos autocentrados e incapazes de
desenvolver uma sincera e altruísta compaixão.
 Hum - essa sílaba indica a indivisibilidade, aqui do método e sabedoria,
que vai dar origem à iluminação para o benefício de todos.
Mantra Mani: Om Mani Padme Hum / © tashimannox.com

No entanto, este mantra, como a maioria dos outros, tem diferentes níveis
de significado. Podemos tornar a prática da compaixão ainda mais eficaz,
direcionando a meditação para aqueles que sofrem de problemas
específicos, enquanto se recitamos o mantra (Veja O que é compaixão?).
Cada sílaba é correlacionada com um conjunto das principais emoções
perturbadoras:

 OM - orgulho e arrogância
 Ma - a inveja e o ciúme
 Ni - desejo, ganância e apego
 Pad - ignorância ingênua e mente fechada teimosa
 Me - mesquinhez e avareza
 Hum - hostilidade e raiva.

Então, um passo adicional seria aperfeiçoarmos nosso espírito


compassivo, permanecendo conscientes das seis perfeições (as seis
atitudes de vasto alcance), também correlacionadas com as seis sílabas:

 OM - generosidade
 Ma - auto-disciplina ética
 Ni - paciência
 Pad - perseverança
 Me - estabilidade mental (concentração)
 Hum - consciência (sabedoria)

Recitar mantras em voz alta envolve a respiração, que, do ponto de vista


budista, afeta as energias sutis do corpo. Mesmo a recitação mental de
mantras pode afetar essas energias. Ao dar um ritmo regular à respiração
e às energias sutis, a recitação de mantras pode ajudar a acalmar as
emoções pensamentos perturbadores compulsivos, acalmando e
tornando a mente mais nítida e clara.

Uma prática de mantra mais avançada, onde realmente regulamos a


respiração e a energia sutil, nos ajuda a ter acesso ao nível mais sutil da
mente. Quando esta mente sutil é focada no vazio, torna-se uma
ferramenta incrivelmente poderosa - a mais poderosa - para nos livrar
para sempre de todo o desconhecimento e confusão sobre a realidade, e
para nos levar à iluminação. Meu principalprofessor, Tsenzhab Serkong
Rinpoche, costumava dizer: "Existem três coisas que são o que há de mais
poderoso neste mundo para trazer benefício aos seres: Medicina,
tecnologia e mantras" . Por mantras, ele estava se referindo ao Sutra
do Coração, que afirma que a perfeição da sabedoria (que abrange
discriminar a consciência do vazio) é "o mantra protetor da mente que é
insuperável ... o mantra que protege a mente acalmando completamente
todo o sofrimento."

Há uma ampla variedade de aplicações para a prática de mantra no


budismo. Como um começo, eles regulam a respiração e energias sutis,
permitindo que nossa mente possa se acalmar. Eles então ajudam a nos
manter focados em estados mentais ou emocionais positivos, como amor
e compaixão. Além disso, eles ajudam a integrar e harmonizar o nosso
corpo, fala e mente. Finalmente, através da prática mais profunda, os
mantras nos ajudam a ter acesso ao nível mais sutil da mente com o foco
no vazio, levando-nos para a realização da iluminação para o benefício de
todos os seres.
O Que É uma Iniciação?
Dr. Alexander Berzin

A iniciações tântricas são usadas no budismo tibetano para despertar nosso


potencial de buda, e para criar uma forte conexão entre a pessoa que está
recebendo a iniciação, seu professor, e também a figura búdica envolvida.
Participar ativamente de uma iniciação com um professor totalmente
qualificado nos da a permissão para nos engajarmos em certas práticas que
têm como finalidade encorajar o crescimento e o fortalecimento da semente da
iluminação, até que estejamos iluminados.

Uma iniciação tântrica (wang) é uma cerimônia que tem como finalidade
ativar os aspectos da nossa natureza-búdica que estão em evolução,
estimulá-los a se desenvolver e plantar novas “sementes” de potenciais.
Os aspectos da nossa natureza-búdica são o material básico de trabalho
para transformarmos nosso corpo, fala, mente, ações e boas qualidades
nas qualidades de um buda. São eles:

 Características búdicas em evolução – aqueles aspectos que podem ser


estimulados a crescer, como nossas redes de força positiva (potencial
positivo) e consciência profunda. Essas redes são frequentemente
traduzidas como “coleções de mérito e sabedoria”.

 Características búdicas perenes – aqueles aspectos que não mudam ao


longo de nossa evolução, como a vacuidade do nosso continuum
mental; eles são a base da nossa transformação. De acordo com
algumas tradições, esses aspectos também estão incluídos na natureza
convencional da atividade mental.

Para recebermos uma iniciação, precisamos não só de um mestre tântrico


qualificado, mas também de estarmos preparados e receptivos, e
participarmos ativamente no processo. Uma preparação adequada
significa, primeiramente, darmos uma direção segura a nossas vidas
(“tomando refúgio”). Isso implica em seguirmos a direção segura indicada
pelo Buda, pelo Dharma e pela Sangha realizada de aryas. Apesar de em
um nível convencional igualarmos o Dharma aos ensinamentos budistas,
em um nível mais profundo o Dharma é aquilo que conseguimos ao seguir
tais ensinamentos. Chegamos a um estado em que todo o sofrimento
cessa, suas causas são definitivamente erradicadas de nosso continuum
mental e nossa mente fica repleta das realizações que geram e que
resultam desse estado. Os Budas são aqueles cujo continuum mental
apresenta esse cessar definitivo e os caminhos interiores verdadeiros da
mente (a verdadeira compreensão que leva, e também resulta, a esse
cessar definitivo, “caminhos verdadeiros”). Sangha de aryas são aqueles
que possuem isso de forma parcial.

Além de termos essa direção segura em nossas vidas, também precisamos


de um nível mínimo de “renúncia”, o que significa estarmos fortemente
determinados a nos livrar do ciclo incontrolável de renascimentos
(samsara). Por causa dessa determinação, estamos dispostos a renunciar
aos verdadeiros sofrimentos e às suas causas, que fazem com que nosso
corpo, fala, mente, atividades e boas qualidades sejam limitados em
nossos renascimentos.

E ainda, para ativarmos o potencial búdico, precisamos de um nível


básico de bodhichitta, através do qual focamos em nossa própria
iluminação, que ainda não aconteceu, mas que poderá acontecer com
base em nossa natureza búdica. O objetivo é atingirmos esse estado
iluminado, e a motivação é ajudarmos os outros a se libertar do ciclo
incontrolável de renascimentos e alcançar a iluminação. Essa motivação
está baseada em um intenso, e igualmente distribuído, amor e compaixão
por todos os seres e também em havermos assumido responsabilidade
universal por todos eles.

Além disso, precisamos de um nível básico de entendimento da vacuidade


— o fato de que nós, os outros, o samsara, a liberação e a iluminação são
todos “primordialmente” desprovidos de formas impossíveis de
existência. Nada disso existe por si só, independentemente de todo o
resto, inclusive as causas, os efeitos e as categorias conceituais usadas
para discuti-los e pensar a respeito deles. Precisamos, também, de um
entendimento básico de como a prática do tantra nos levará à iluminação,
e de confiança em seus métodos e na habilidade de nosso mestre tântrico
em nos guiar nesse métodos.

Durante uma iniciação em qualquer uma dessas quatro classes do tantra,


tomamos votos de bodhisattva, e nas duas classes mais elevadas, também
tomamos votos tântricos.

 Votos de bodhisattva – Evitar comportamentos que contrariem nossa


intenção de ajudar os outros

 Votos tântricos – Evitar comportamentos e formas de pensar que


impeçam nosso sucesso nas práticas tântricas

Para recebermos esses votos, precisamos aceitá-los conscientemente com


a intenção sincera de nos empenharmos ao máximo em mantê-los até a
iluminação. A base para mantê-los é o treinamento ético em disciplina
proporcionado pela manutenção de algum nível de votos de liberação
individual (votos de pratimoksha) como, por exemplo, os votos leigos de
não matar, roubar, mentir, ingerir substâncias tóxicas e ter
comportamento sexual inadequado a alguém que busca a liberação.

O ritual de iniciação tem muitas partes, cada uma vinculada a complexas


visualizações de nosso mestre tântrico como uma figura búdica (yidam),
nosso ambiente como a mandala do palácio da figura e seus arredores, e
nós mesmos como várias figuras búdicas representando nosso futuro
estado iluminado, que objetivamos alcançar com bodhichitta. Mesmo que
não consigamos visualizar tudo isso com clareza, precisamos pelo menos
sentir que nosso mestre tântrico, nosso ambiente e nós mesmos temos
essas formas puras.

Em cada estágio da iniciação, também precisamos imaginar que estamos


experimentando um estado mental de êxtase, focado na vacuidade.
Apesar de talvez não sermos capazes de fazer isso adequadamente,
precisamos, pelo menos, pensar que nada do que está acontecendo existe
independente de suas causas, efeitos, partes, e de ser aquilo a que as
palavras e conceitos se referem. Quando nos lembramos da vacuidade,
precisamos nos alegrar. Essa experiência de bem-aventurada consciência
da vacuidade é o que ativa nossos aspectos búdicos que estão em
evolução, estimula-os a se desenvolverem e planta mais “sementes” de
potenciais. Portanto, precisamos tentar ao máximo gerar esse estado
mental. Dessa forma, realmente receberemos a iniciação, ao invés de
simplesmente testemunhá-la.

Após recebermos uma iniciação nas práticas de uma figura búdica em


particular, podemos, mais adiante, receber um ritual conhecido como
“permissão subsequente” (jenang). Conforme costumava explicar meu
principal professor, Tsenzhab Serkong Rinpoche, se uma iniciação é como
receber uma espada, a permissão subsequente é como afiá-la. Durante o
ritual, reafirmamos nossos votos e damos uma revigorada adicional em
nosso corpo, fala e mente e na integração deles. Na tradição Gelug é muito
fácil percebermos a diferença entre uma iniciação e uma permissão
subsequente: a primeira é dada com base em uma representação da
mandala do palácio, que é colocada junto ao mestre tântrico, enquanto a
segunda é dada com base em uma torma, um bolo em formato cônico, que
é visualizado como sendo uma figura búdica.

Tendo recebido a iniciação, estamos imbuídos do poder de nos imaginar


na forma da figura búdica. Segundo Tsongkhapa, se recebermos apenas a
permissão subsequente, sem nunca termos recebido a iniciação, na
prática de meditação só teremos permissão para visualizarmos a figura à
nossa frente. Mas se já tivermos recebido uma iniciação da mesma classe
ou de uma classe mais elevada de figuras búdicas, mesmo que não
tenhamos recebido antes a iniciação para a figura em questão, ainda
assim teremos a permissão de nos visualizarmos como tal.

Quer recebamos uma iniciação ou uma permissão subsequente,


aceitamos com alegria qualquer compromisso que nosso mestre tântrico
nos der. Afinal, essa era nossa intenção ao participarmos do ritual! Se
comparecermos apenas como um observador neutro ou para receber as
“bênçãos” ou apenas para atualizar nossos votos, e não participarmos
ativamente nos procedimentos ritualísticos, não teremos o
comprometimento para praticarmos esse tantra. Entretanto, se tivermos
a mente aberta, receberemos inspiração para nos tornarmos uma pessoa
mais sábia e gentil.

Conclusão

Não importa o quão obscurecidas estejam, todos temos dentro de nós as


ferramentas necessárias para obtermos a iluminação. No budismo, as
iniciações tântricas nos ajudam a descobrir essas ferramentas,
permitindo que elas espalhem as sementes de nossa futura iluminação.

Existem muitos tipos diferentes de iniciações, e cada uma das escolas do


budismo tibetano promove a prática de determinadas deidades, mas o
objetivo é o mesmo: criar uma forte conexão entre a pessoa que está
recebendo a iniciação, seu professor e a figura búdica em questão.
Participar ativamente de uma iniciação é o começo de um compromisso
vitalício com o próprio desenvolvimento e o trabalho em benefício de
todos os seres.
Equívocos Comuns sobre o Tantra
Dr. Alexander Berzin

É rápido, é fácil, é misterioso. Muita confusão a respeito do tantra surgiu da


engenhosidade com que ele foi divulgado. Pessoas gostam de práticas
“secretas” e avançadas, e também querem algo rápido. Esse artigo analisa
alguns dos enganos mais comuns a respeito do tantra e separa fato de ficção.

Mal-entendidos sobre o Tantra


Achar Que o Tantra e o Dzogchen são Caminhos Fáceis para a Iluminação
São muitos os mal-entendidos no que diz respeito ao tantra. E
frequentemente surgem por causa da forma inteligente com que o tantra
é divulgado. Por alguma razão, muitos professores tibetanos, e ocidentais,
vendem o tantra e o dzogchen como caminhos fáceis, caminhos rápidos,
caminhos mais elevados. Por causa desse marketing, seus alunos ficam
com uma ideia equivocada e pensam que o tantra e o dzogchen são
realmente caminhos fáceis.

Mas por que as pessoas são atraídas por práticas que acham que serão
rápidas e fáceis? Conforme destacou um de meus professores, pode ser
porque são preguiçosas e não querem fazer todo o trabalho necessário;
ou porque querem um atalho. Querem iluminar-se gastando pouco, da
mesma forma que procuramos por ofertas quando fazemos compras.
Muitas vezes temos essa mentalidade quando analisamos os vários
métodos do Dharma: “O que será que está em oferta essa semana?”

A realidade é que a prática do tantra e do dzogchen são tremendamente


sutis e difíceis, e requerem uma quantidade enorme de trabalho árduo.
Para começar, essas práticas especificam que, antes mesmo de iniciar,
você necessita fazer as práticas preliminares, o ngondro, com 100.000 ou
mais prostrações. Isso não é muito fácil - pode levar anos!

Achar Que 100.000 Prostrações Farão Milagres


Mesmo que aceitemos que precisamos fazer as práticas preliminares,
como as prostrações, é um equívoco achar que farão milagres. Essa falsa
impressão também pode ter vindo da divulgação das práticas ou
simplesmente por superestimarmos o poder das preliminares. “Eu estou
tão desesperado. Apenas diga-me o que fazer. Ok, jogo-me no chão
100.000 vezes, repito algumas sílabas em um outro idioma 100.000
vezes, e então todos os meus problemas serão resolvidos. Ótimo, vou
fazer isso.” Isso é um engano. Mas, por desespero, fazemos e esperamos
que no final alguma cura milagrosa aconteça. E não acontece. Então nos
desiludimos completamente com a prática do Dharma e deixamos para lá.

Agora, é claro que as práticas de purificação podem ser eficazes, mas não
se durante 99.9% do tempo sua mente estiver vagando, sem foco no que
você está fazendo e não houver nenhum sentimento ou compreensão por
trás, ou você não tiver uma motivação forte e adequada. Para que essas
práticas sejam eficazes - e mesmo quando são eficazes elas não produzem
milagres - é preciso fazê-las corretamente, com total concentração,
motivação totalmente correta, uma profunda e sincera sensação de estar
dando um direção segura em sua vida (tomando refúgio), uma boa
compreensão do que isso significa e assim por diante. Isso não é fácil, é?

Também é um erro terminar as 100.000 repetições e pensar “Ok, já


cumpri com minha obrigação. Agora vamos começar a parte boa.” De
certa forma, essa atitude é quase como barganhar com as práticas
preliminares, como se elas fossem uma taxa de entrada. Pensando apenas
em completá-las, você não percebe o poder que podem ter para purificar
alguns potenciais negativos e gerar força positiva — ao fazê-las, você está
continuamente reforçando a direção positiva indicada pelo Buda, Dharma
e Sangha, por exemplo. “Esta é a direção que estou tomando.” Ou,
continuamente gerando bodhichitta. Essas práticas preliminares são
muito boas, muito úteis.

Fazer Práticas de Ngondro Prematuramente, sem uma Compreensão Básica do


Dharma
Além disso, é um erro fazer o ngondro antes de se ter uma compreensão
básica do budismo, e acabar considerando-o apenas como uma maneira
de nos livrarmos de nossos pecados, como se esse fosse o seu propósito.
No ocidente, às vezes você conhece um professor de Dharma e
imediatamente, antes de você receber qualquer ensinamento ou
desenvolver um entendimento, ele lhe diz, “Faça 100.000 prostrações!” E
o que é surpreendente é que algumas pessoas realmente fazem!

Aí você se pergunta, “Por que fazem?” Geralmente é por desespero,


achando que vai acontecer algum milagre. Ou, como em um culto, as
pessoas desistem de se responsabilizar por suas vidas e simplesmente
obedecem o professor poderoso, como no exército. Isso é um erro:
obedecer sem questionar e achar que sua relação com o professor deve
ser como a de um soldado com seu comandante.

É muito importante não perdermos o senso crítico. Sua Santidade o Dalai


Lama sempre enfatiza isso. Seja crítico. Isso não significa criticar, embora
a palavra possa soar assim em português. “Criticar” pode ter a conotação
de desdenhar alguém com arrogância, com uma atitude agressiva,
negativa e pensar “Eu sou bem melhor, e você é terrível” mas ser “crítico”
significa examinar o que está acontecendo. Portanto, se formos fazer as
práticas do ngondro, é importante termos uma boa fundação nos
ensinamentos budistas básicos e compreendermos o que estamos
fazendo e por quê estamos fazendo. Isso não significa apenas saber todos
os detalhes de uma visualização complexa, mas ter clareza quanto ao
estado mental que estamos tentando gerar e deixar enraizado.

Fazer Práticas Tântricas Prematuramente


Um equívoco ainda maior é fazer práticas tântricas prematuramente,
mesmo quando começamos pelo ngondro. Por exemplo, nas tradições que
dão forte ênfase às práticas preliminares, existe um ngondro
compartilhado, ou comum, que são os quatro pensamentos que
transformam a mente e nos conduzem ao Dharma. Eles cobrem
basicamente o mesmo material encontrado no lam-rim (o caminho
gradual). Só depois de fazermos as preliminares comuns que devemos
partir para as preliminares incomuns, que são as prostrações e assim por
diante. Pular etapas, trivializar ou minimizar as preliminares comuns (os
ensinamentos básicos do lam-rim), passando imediatamente às
prostrações e demais preliminares incomuns pode nos levar a uma
atitude irrealista em relação as prostrações, ao mantra de 100 sílabas, etc.
Depois de um tempo, você começa a questionar, “Por que afinal estou
fazendo isso? Qual é o sentido de tudo isso?” Mas, se antes de começar
essas práticas, você tiver pelo menos um pouco de clareza sobre a
importância de se gerar força positiva e eliminar potenciais negativos (ou
pelo menos minimizá-los) a fim de se alcançar um determinado objetivo
espiritual, então as preliminares passarão a fazer um certo sentido.

O problema aqui não é apenas começar prematuramente a prática do


ngondro, mas começar o tantra prematuramente. E por que isso acontece
com tanta frequência? Pode ser porque pedimos a lamas visitantes que
deem iniciações mesmo quando nosso grupo não está pronto para fazer
as práticas. Mas também pode ser porque os lamas visitantes oferecem
iniciações mesmo quando a audiência é totalmente despreparada.
Portanto, não somos de todo responsáveis por esse equívoco de enfatizar
demais o tantra e apresentar prematuramente a prática para a maioria
das pessoas.

Por que pedimos para tomar uma iniciação? Pode haver muitas razões.
Podemos achar que é algo elevado, que isso é que é prática de verdade,
que é exótico. Pode ser que as pessoas que administram o centro budista
achem que isso atrairá mais pessoas, ou seja, que arrecadarão mais
dinheiro para que possam pagar o professor visitante e sustentar o
centro. Assim, também pode ser por razões financeiras; o que é um
infortúnio.

Os professores mesmo podem motivar-se pensando, “Ok, não irão


praticar, mas isso plantará sementes para suas vidas futuras.” Bem, a
maioria dos ocidentais não acredita em vidas futuras, portanto isso é um
engano. Pode ser, também, que os professores não compreendam que os
ocidentais não têm a mesma base que os tibetanos para poder praticar o
tantra de forma eficaz. E pode ser que estejam sendo pressionados a
levantar fundos para os monastérios e monges de seu lugar de origem .

Pode haver muitas razões para pedirmos iniciações ou para professores


oferecerem-nas. Mas o que sempre se recomenda é, se houver um
professor visitante, pedir os ensinamentos básicos. E, se quisermos
ensinamentos mais avançados, devemos pedir os ensinamentos
avançados do sutra, sobre bodhichitta ou vacuidade (vazio).

Achar Que se Tivermos Recebido uma Iniciação Tântrica Prematuramente


Estamos Fadados a Ter Que Fazer a Prática
O fato é que muitas pessoas recebem iniciações tântricas antes de
estarem suficientemente preparadas para fazer a prática. Mas algumas
acham que, se não fizerem a prática, são maus budistas e podem ir para
algum tipo de inferno. Assim, tentam manter a prática, mas com quase
nenhuma compreensão do que estão fazendo ou do motivo pelo qual
estão fazendo, e logo desenvolvem uma atitude hostil perante a prática.
Entretanto, é um erro pensar que as únicas alternativas são práticas
torturantes ou torturas no inferno.

Serkong Rinpoche dava um conselho muito útil para essas pessoas. Ele
dizia que, nesses casos, deve-se considerar que tomar a iniciação é como
plantar, no continuum mental, sementes para o futuro. Se, mesmo depois
de analisar honestamente a situação, você ainda achar não está pronto
para iniciar as práticas, imagine-se colocando-as em uma prateleira bem
elevada em sua mente. Mas faça isso com muito respeito e com a intenção
sincera de tirá-las da prateleira e praticá-las quando estiver mais
preparado.

Achar Que Podemos Atingir a Liberação ou a Iluminação sem Superarmos


Questões Biológicas, Principalmente no Que Diz Respeito à Libido
É um equivoco achar que podemos atingir a liberação ou a iluminação
sem superar questões biológicas, principalmente no que diz respeito à
libido. Esse é um ponto particularmente difícil. Apesar de no tantra ser
possível, em estágios avançados, usar o desejo e a energia sexual para nos
livrarmos do desejo e da energia sexual, isto é só se aplica quando
estamos em estágios extremamente avançados e temos controle sobre
nosso sistema de energias sutis. É um erro sério achar que o tantra é um
método para fazermos sexo exótico. Nós estamos tentando atingir a
liberação. Liberação significa atingir a liberação deste tipo de corpo físico
samsárico, com todas suas movimentações biológicas e assim por diante.
Estamos tentando obter o tipo de corpo de um ser liberado, ou iluminado:
feito de luz e livre de limitações biológicas. Entretanto, frequentemente
procuramos uma atalho em nossa prática budista. Queremos atingir a
liberação e a iluminação sem esforço, sem ter que deixar de lado os
prazeres corporais. Isso é um equívoco.

Achar Que a Parte Mais Importante da Prática Tântrica é Visualizar Todos os


Detalhes Corretamente
Quando estamos envolvidos com o tantra e queremos instruções sobre
como praticá-lo, é um equivoco achar que a ênfase principal da prática
está na visualização e, portanto, preocupar-se em conseguir acertar todos
os pequenos detalhes. Meu professor, Serkong Rinpoche, costumava dar
um exemplo para ilustrar esse engano comum entre os ocidentais: “As
pessoas vêm me perguntar se Yamantaka ou Vajrayogini têm umbigo. Isto
é ridículo. Estão perdendo os aspectos importantes da prática.”

Se quisermos desenvolver concentração unifocada utilizando-nos das


práticas de visualização do tantra, certamente precisaremos de todos os
detalhes, mas não é isso que temos que focar ou enfatizar no começo.
Primeiro precisamos focar em adquirir uma compreensão básica daquilo
que Tsongkhapa chama de “os três aspectos principais do caminho,” e em
como esses aspectos se relacionam com a prática tântrica de nos
visualizarmos na forma de uma figura búdica, como Chenrezig ou Tara.

 Renúncia - a determinação a ser livre - renunciar ao apego à nossa


aparência comum e à crença de que nós, e todo mundo, temos uma
existência verdadeira, autoestabelecida.
 Bodhichitta - visamos atingir a iluminação e essas figuras búdicas
representam a iluminação que estamos buscando. Portanto, para a
chegarmos mais rapidamente, imaginamos que já estamos lá. Sem
bodhichitta, por que imaginarmos que temos essas formas e agimos em
benefício alheio? Queremos ser assim a fim de beneficiar os outros.
 Vacuidade (vazio) - sabemos que no momento não existimos dessa
forma, entretanto, possuímos o potencial para nos transformar em
Budas, que é aquilo que essas figuras representam. Mas também
entendemos que para alcançar a iluminação precisamos nos esforçar.
Ou seja, compreendemos que a vacuidade, a operação da causa e efeito,
e a originação interdependente, andam juntas. Não achamos que
realmente somos Tara - ou Cleopatra.

Assim, se algum dia você for pedir ensinamentos sobre o tantra,


certifique-se que estejam nesse nível. O que temos que enfatizar é o
propósito da prática tântrica e o que estamos tentando fazer com ela. É
por isso que precisamos de toda uma preparação inicial, e de não
ficarmos preocupados apenas com detalhes da visualização: como são as
joias e coisas do gênero. Embora realmente existam descrições de como
elas são, não deixe que a ênfase seja essa, principalmente no começo.

É interessante que na iniciação de Kalachakra em Toronto, no Canadá, em


2004, Sua Santidade o Dalai Lama tenha dado um ensinamento
preliminar por três dias sobre um dos textos de Nagarjuna a respeito a
vacuidade, Versos Fundamentais sobre o Caminho do Meio, Chamado
"Consciência Discriminativa." Só depois disso ele deu a iniciação. Era
visível que o número de pessoas que estavam lá para a iniciação era
muito maior que o número de pessoas que compareceram aos
ensinamentos sobre a vacuidade. Sua Santidade disse à audiência que ele
realmente estimava mais àqueles que foram somente para os
ensinamentos de Nagarjuna e não permaneceram para a iniciação do que
as pessoas que fizeram o oposto - que pularam os ensinamentos básicos
iniciais e foram apenas para a iniciação. Isso diz muito.

Pensar nas Figuras Búdicas Como se Fossem Santos para Quem Rezamos
Pedindo Bênçãos
Esse é mais um equívoco no tantra, ver as figuras búdicas, os yidams,
como se fossem santos para os quais rezamos pedindo ajuda: Santa Tara,
Santo Chenrezig, e assim por diante, e venerá-los. Essa forma equivocada
de ver as figuras búdicas não está limitada aos ocidentais. Muitos budistas
tradicionais os veem dessa forma, porém não em uma analogia aos santos
cristãos. Essas figuras búdicas podem nos inspirar, assim como os budas e
a linhagem de gurus mas, para nos iluminamos, precisamos fazer o
trabalho sozinhos.

Alguns desses mal-entendidos estão ligados à tradução das orações de


solicitação, em que fazemos pedidos aos vários gurus e Budas. Primeiro,
para nós, a palavra “oração” tem a conotação de orar para Deus: "Deus,
conceda meus pedidos”, ou de rezar para um santo, para que ele aja como
nosso intermediário perante Deus, para que Deus nos conceda algo. Essa
é uma interpolação cristã, e não é apropriada nesse contexto.
O que pedimos nessas, assim chamadas, “orações" é o que no tibetano
chamamos chin-gi-lab (byin-gyis rlabs), que normalmente é traduzido
como “bênçãos.” Nós pedimos, na tradução, “Me abençoe para poder fazer
isso. Me abençoe para poder fazer aquilo”, como se tudo que
precisássemos fosse que essas figuras viessem e nos abençoassem e, do
nada, obteríamos várias realizações. Isso não é Budismo.

Traduzir usando a palavra “bênção” dá um conotação completamente


diferente do significado real do termo, e pode acabar causando um mal-
entendido. O significado literal do termo tibetano é elevar e clarear. O
termo original sânscrito, adhisthana, significa pôr alguém ou algo em uma
posição mais elevada, exaltar. Eu prefiro traduzir esse termo como
“inspirar.” Pedimos ao Buddha, gurus, figuras búdicas que nos inspirem a
obter essa ou aquela realização. Mas essas figuras, por si só, por poder
próprio, não nos concedem desejos e fazem tudo o que queremos, de
forma que só o que temos que fazer é pedir. Isso, novamente, é uma
interpolação, é projetar uma ideia ou conceito ocidental no budismo. A
ênfase principal é que precisamos fazer o trabalho sozinhos. Os Budas, os
gurus, podem nos inspirar, ensinar, guiar, mas não podem fazer o
trabalho por nós. Temos que entender isso.

Equívocos a Respeito dos Protetores

Da mesma forma, é um equivoco dar uma ênfase muito grande à prática


dos protetores. Isso é muito comum de acontecer nos centros budistas
onde, a cada semana ou mês, é feita uma prática de protetores, e até
mesmo os iniciantes são convidados a participar das recitações, sem que
tenham a mínima ideia do que estão fazendo. Essas pessoas acabam
achando que os protetores vão protegê-las (que, afinal, é o que a palavra
“protetor” quer dizer) de todos os obstáculos e perigos. Elas esquecem,
ou nunca percebem, que nós mesmos é que precisamos nos proteger,
tomando refúgio e estando atentos ao karma.

No que diz respeito ao refúgio, tomamos a direção segura indicada pelo


Buda, dharma e sangha para evitar renascimentos piores. Esse é o escopo
da motivação inicial do lam-rim; e não de nos aproximar de protetores
para evitar renascimentos piores. Em nenhum lugar dos ensinamentos
está dito isso, está? O que fazemos é seguir o Buda, o dharma e a sangha,
mas eles não vão nos proteger, não no sentido de nos salvar. Eles nos
ensinam o que fazer para evitar renascimentos desastrosos e depois
temos que nos virar. Eles dão o exemplo. E quanto ao karma, nos
protegemos dos renascimentos piores evitando comportamentos
destrutivos.
O que significa tomar a direção segura do Buda, dharma e sangha? A
direção segura é indicada basicamente pelo dharma, ou a Joia Profunda
do Dharma, que refere-se à terceira e à quarta nobre verdade. A terceira
nobre verdade é o cessar das causas do sofrimento e, consequentemente,
o cessar do sofrimento. A quarta nobre verdade é o verdadeiro caminho
ou o caminho mental que nos levará a esse cessar, ou seja, a compreensão
da vacuidade e o entendimento que deriva disso. Essas duas nobres
verdades estão totalmente presentes no continuum mental de um buda e
parcialmente presentes no continuum mental da sangha de aryas. Essa é a
direção que tomamos, de ser como eles e alcançar o que eles alcançaram.
Se fizermos isso, nos protegeremos do sofrimento. Dharma, a palavra
sânscrita, vem da raiz dhr, que significa prevenir. O dharma refere-se às
medidas preventivas que evitam criarmos mais sofrimento.

Os protetores não podem fazer isso por nós. Os protetores são como um
complemento à prática principal. Na verdade, existem muitas formas de
enxergarmos os protetores. Serkong Rinpoche costumava descrevê-los
como grandes cães ferozes. Ele dizia que, se você estivesse no centro da
mandala de um palácio e fosse a figura búdica, digamos que fosse a figura
forte e vigorosa de Yamataka, você deveria ser capaz de controlar esses
protetores que convocou para sua mandala e ordená-los a lhe servir. Por
exemplo, você poderia ficar no portão assustando os ladrões, mas porque
fazer isso se você pode ter um cachorro para fazer por você? Mas você
tem que ter o comando, você tem que ter controle. Portanto, mesmo que
acreditemos que o protetor possa nos ajudar, afastando interferências,
ladrões e assim por diante, precisamos estar no controle.

Se considerarmos os protetores como seres reais — espíritos ou o que


seja — o que é o caso dos tibetanos, a única forma deles nos ajudarem é
providenciando as circunstâncias que propiciem o amadurecimento de
nosso próprio karma. Se já não tivermos criado o potencial kármico, os
protetores não conseguirão nos ajudar. Esse é o mesmo mecanismo dos
pujas do Buda da Medicina e dos pujas de longa vida. Eles não são a causa
da nossa melhora, eles são apenas a circunstância para o nosso próprio
karma positivo amadurecer. No caso dos protetores, ás vezes o
mecanismo é ligeiramente diferente. Sua ajuda pode vir na forma de
circunstâncias que amadurecem nosso potencial kármico negativo de
uma forma trivial, para que queimemos obstáculos maiores que
poderíamos ter no futuro e que obstruiriam nosso sucesso. Rituais de
protetores podem funcionar de diversas formas.

Mas o erro aqui, o equivoco, é dar ênfase demasiada à práticas de


protetores e torná-las nosso foco principal, no lugar do Buda, do dharma
e da sangha. Nesse caso, a prática de protetores corre perigo de virar uma
adoração a algum tipo de espírito. Isso pode trazer muitos problemas,
conforme ilustrado pela controversa questão dos protetores entre os
tibetanos. Portanto, precisamos tomar muito cuidado com isso.

Não acho que seja uma boa ideia um centro de dharma ter uma prática
pública de protetores diariamente, semanalmente ou mensalmente, e que
qualquer pessoa possa comparecer, especialmente os iniciantes.
Principalmente se os textos recitados no puja dos protetores forem
traduzidos, eles são meio fortes — “esmague meus inimigos”, e assim por
diante. Podem facilmente ser mal-interpretados.

Equívocos sobre Iniciações


Tomar uma Iniciação Tântrica sem Antes Examinar o Professor e a Prática e
sem a Intenção de Praticar
No que diz respeito às iniciações tântricas, é um equívoco tomar uma
iniciação sem antes examinar o professor e a prática. E mesmo que os
examinemos, é um erro, ou um equívoco, tomar uma iniciação sem ter a
intenção de depois praticar o sistema tântrico. Afinal, o propósito da
iniciação é ativar, fortalecer e reforçar nossos fatores da natureza búdica
para que possamos nos engajar na prática de um sistema tântrico
específico. Esse é o propósito da iniciação. Nossos “fatores de natureza
búdica” referem-se ao potencial que, quando desenvolvido, nos permite
tornar budas. Os vários rituais e visualizações que fazemos durante a
cerimônia de iniciação ativam as sementes de potencial de natureza
búdica e plantam mais sementes, para que possamos nos engajar em uma
prática específica. É uma iniciação para iniciarmos a prática, literalmente.

Quando nos falta essa compreensão, participamos de qualquer iniciação


dada por qualquer lama para qualquer prática e vamos por causa das
“assim chamadas” bênçãos ou por pressão do grupo. Mas participar de
uma iniciação é coisa séria. Precisamos investigar o professor, “Será que
quero estabelecer um relacionamento especial com esse professor como
meu guru tântrico?” A maioria de nós não faz a mínima ideia do que isso
significa. “Será que eu realmente quero fazer essa prática ao invés de uma
outra?” “Será que eu realmente quero me engajar nessa prática diária? Se
não agora, será que eu realmente pretendo fazê-la no futuro?

É óbvio que podemos ir a uma iniciação como se fosse um evento


antropológico para, como um antropólogo, ver o que esses misteriosos
nativos estão fazendo em uma espécie de ritual esotérico. Sua Santidade o
Dalai Lama diz que se você quiser ir como um “observador neutro” não
tem problema. Mas se formos às cegas, sem considerar o motivo pelo qual
estamos indo, corremos o perigo de sair com uma impressão errada do
processo.

Achar Que se Formos a uma Iniciação Apenas Pelas “Bênçãos”, Também


Estaremos Tomando os Votos e Fazendo o Comprometimento
É ainda pior se acharmos que receberemos os votos e comprometimentos
simplesmente por estarmos presentes na iniciação, mesmo que seja como
quem vai a um evento antropológico, ou apenas pelas bênçãos, ou por
pressão do grupo. Só recebemos os votos se, conscientemente e de livre e
espontânea vontade, os aceitarmos. Estar presente não é o suficiente para
que tenhamos tomado os votos ou recebido a iniciação. Os tibetanos
levam seus cachorros com eles para a iniciação. Isso não significa que os
cachorros tomam os votos e que a partir de então eles estão iniciados na
prática. Mas será que queremos participar de uma iniciação como um
cachorro? Ou esperando sentir algo especial, como se fossemos tomar
uma droga? Esse é o ponto.

Achar Que Podemos Tomar uma Iniciação e Fazer as Práticas sem Tomar e
Manter os Votos
Por outro lado, também é um enganos pensarmos que podemos receber
uma iniciação e fazer uma prática sem tomar e manter os votos. Um dos
aspectos mais importantes de uma iniciação são os votos. Está dito de
forma muito clara em vários textos: “Não há iniciação sem votos.” Em
todas as iniciações de todas as classes tântricas, incluindo o dzogchen,
temos no mínimo os votos de bodhisattva.

Tsongkhapa e Atisha enfatizam que o voto de bodhisattva requer uma


certa base em ética. Portanto, também precisamos de algum nível de voto
de pratimoksha, de liberação individual, nem que seja apenas os votos de
leigo. Não precisamos tomar todos os cinco votos – evitar matar, roubar,
mentir, engajar em comportamento sexual inadequado e usar substâncias
intoxicantes, especialmente o álcool. Podemos tomar apenas alguns, nem
que seja somente um. E ainda, se formos tomar uma iniciação em
qualquer uma das duas classes mais elevadas do tantra, yoga tantra e
anuttarayoga tantra, precisamos tomar os votos tântricos. Isso é
absolutamente essencial. E precisamos tomar todo esse conjunto de votos
com seriedade, examinando de antemão se conseguiremos mantê-los.

Achar Que Podemos Negociar com o Professor para Ele Nos Dar um
Compromisso Menor na Iniciação.
Se houver um compromisso de prática na iniciação é um engano achar
que podemos negociar com o professor para diminuir o compromisso,
como pechinchamos com um comerciante em um mercado oriental para
obter um preço mais barato. Às vezes eu vi alguns ocidentais fazendo isso.
Quando Sua Santidade o Dalai Lama dá um iniciação em Dharamsala, o
compromisso usual é fazer a prática todo os dias pelo resto de sua vida.
Os ocidentais querem participar da iniciação, mas tentam negociar
“Temos uma vida atarefada, será que realmente temos que fazer isso?
Será que podemos fazer a prática só quando tivermos tempo?” Eles
tentam receber a iniciação por um preço mais em conta. Mesmo quando
Sua Santidade estabelece vários níveis de comprometimento, muitos
Ocidentais ainda querem barganhar um comprometimento mínimo, um
preço menor.

Principalmente se formos receber instruções ou ensinamentos sobre uma


pratica tântrica, o único motivo para ir é querer fazer a prática. Nesse
caso, estamos levando a sério. Caso contrário, por que receber os
ensinamentos? Só por curiosidade? Esse não é o ponto. Esses
ensinamentos deveriam ser preciosos, algo sagrado, que você só
estudaria porque realmente quer fazer a prática e tem a motivação
adequada. É claro que isso se torna uma questão difícil com a internet e
os livros disponíveis sobre práticas tântricas. Portanto, Sua Santidade o
Dalai Lama diz que existe tanta informação disponível sobre o tantra, e
uma parte tão grande é equivocada, que é melhor que também se
disponibilize informações corretas.

Como a Sua Santidade às vezes brinca, “é melhor ir para o inferno com um


entendimento correto do que com um entendimento errado. Com um
entendimento correto você pula fora bem mais rápido.” Se isso é para ser
tomado literalmente ou como uma piada, eu não sei, mas nos dá algo em
que pensar. Mas não é pelo fato de estar tudo disponível nos livros e na
internet que não temos que praticar. Se vamos tomar a iniciação e
receber os ensinamentos sobre a prática, precisamos nos comprometer
seriamente em fazê-la.

Quando Temos um Compromisso de Prática Diária, Achar Que Podemos Pular


um Dia, e Nos Comprometermos com Muitas Práticas
Se a iniciação tiver um compromisso de recitação diária atrelado, é um
erro não levar isso sério e achar que podemos pular um dia se estivermos
sem vontade de fazer a prática: “Só vou fazer quando tiver vontade”. Ou,
então, adquirir muitos compromissos de fazer práticas pelo resto de
nossas vidas sem pensar realisticamente se conseguiremos mantê-los.

Esse era um equivoco muito comum nos anos 70 na Índia. Naquela época,
iniciações completas, com todos os compromissos, eram dadas com muito
mais facilidade e nós ocidentais as tomamos. Tomamos essas iniciações e
fizemos os comprometimentos achando que poderíamos mantê-los para
sempre. Mas olhando dez anos mais tarde — ou vinte, ou trinta ou
quarenta — quantas pessoas os mantiveram e continuam fazendo a
prática? Apenas umas poucas. E apenas alguns dias depois de fazerem o
compromisso muitas pessoas já tinham dificuldade em fazer a prática
diariamente. Elas diziam que as manhãs eram muito ocupadas. “Manhãs
não são um bom momento para mim”. Pensando assim, deixavam para a
noite, e tinham duas ou três horas de prática para fazer. Mas estavam tão
cansados que caíam no sono durante a prática. Elas sentavam e
cochilavam e levavam metade da noite para fazer tudo. A prática tântrica
torna-se uma tortura. Esse é um grande problema.

Se você for assumir compromissos de prática, seja realista a respeito do


que realmente consegue fazer. Esses compromissos são sérios, implicam
em prometermos fazer a prática diariamente pelo resto de nossas vidas.
Porque alguém se comprometeria a fazer uma coisa todos os dias para o
resto da vida? A única razão é realmente estar empenhado em atingir a
liberação e a iluminação e entender o método tântrico básico e ter
confiança de que, se praticar direito, você conseguirá chegar onde quer.
Isso é muito importante.

Sua Santidade sempre enfatiza que se você for se envolver com o tantra,
tem que compreender o que é o tantra e ter confiança na eficácia do
método. Caso contrario, porque fazer isso? Especialmente se você achar
que a prática é só visualizar umas figuras esquisitas e murmurar uns
mantras e depois de um tempo você desiste porque parece ridículo:
“Porque estou fazendo isso?” Portanto, é muito importante nós realmente
considerarmos se vamos mesmo conseguir manter o compromisso.

Achar Que Fazer a Prática Tântrica É Só Recitar um Ritual e uns Mantras


E, finalmente, é um engano considerar que a prática tântrica é apenas a
recitação de um ritual e a repetição de um mantra. Sem uma forte prática
de meditação em bodhichitta e na vacuidade, nós só estamos recitando
“blá blá blá….” e apesar de tentarmos visualizar, na maioria das vezes não
conseguimos porque é muito complicado. Então fazemos a versão mais
fácil da prática e achamos que conseguiremos alguma coisa com isso.
Muitas vezes nossa prática torna-se simplesmente uma fuga para a Ilha
da Fantasia e não um método eficaz de juntar todos os ensinamentos

O tantra é uma forma de juntarmos todos os ensinamentos. Por exemplo,


durante a recitação do ritual, tem uma altura em que se gera as quatro
atitudes incomensuráveis; em outra altura tomamos o direcionamento
seguro (refúgio) e em outra bodhichitta, nesse ponto você reafirma os
votos e em outro você pratica meditação na vacuidade. Em pontos
diferentes da pratica você gera entendimentos e realizações diferentes do
dharma. Se você não tiver praticado esses pontos antes, quando, durante
o ritual, essas palavras aparecerem “Agora tenho a compreensão da
vacuidade”, o que você faz? Você estará só recitando palavras. Mas recitar
palavras não ajuda em nada. Por isso, a prática tântrica requer muito
estudo e prática prévia. É um equivoco achar que é só recitar de qualquer
jeito — que é o que acabamos fazendo quando a mente está distraída.

Conclusão

É claro que existem muitos mal-entendidos sobre o tantra. Alguns surgem


pela forma com que o tantra é divulgado e outros vem de nossos próprios
desejos: gostaríamos que houvesse um caminho rápido e fácil para a
iluminação. Se entendermos a realidade da prática do tantra,
aumentaremos nossas chances de manter a prática e progredir nela, ao
invés de desistirmos no primeiro obstáculo.
Kalachakra
Kalachakra, que significa "ciclos de tempo", é um sistema de prática budista da
classe mais elevada de tantra. O seu objetivo é libertar-nos da destruição do
karma, que se manifesta ao longo dos ciclos de tempo, e ganhar a iluminação
para o benefício de todos. Sua Santidade o Dalai Lama muitas vezes confere a
iniciação de Kalachakra em grandes reuniões, como forma de promover a paz
mundial.

O Que É o Kalachakra
Dr. Alexander Berzin

Kalachakra é uma prática complexa de meditação da mais alta classe do tantra,


o anuttarayoga. Mais do simplesmente proporcionar um método profundo para
superarmos os efeitos prejudiciais do karma compulsivo e atingirmos a
iluminação para o benefício de todos, o Kalachakra inclui em sua literatura
uma enciclopédia da antiga ciência hindu, que serve para todos, independente
de crenças.

Kalachakra é uma prática complexa de meditação da mais alta classe do


tantra, o anuttarayoga. Mais do simplesmente proporcionar um método
profundo para superarmos os efeitos prejudiciais do karma compulsivo e
atingirmos a iluminação para o benefício de todos, o Kalachakra inclui em
sua literatura uma enciclopédia da antiga ciência hindu, que serve para
todos, independente de crenças.
“Kalachakra” significa ciclos de tempo, sendo que o tempo é uma medida
de mudança, tanto externa, no mundo e no universo, quanto interna, no
corpo. Como tal, podemos medi-lo de diversas formas. Externamente,
existem os ciclos das órbitas dos planetas, dos meses e das estações do
ano, as fases da lua, as horas de um dia e assim por diante, sem falar nos
ciclos históricos de períodos de paz e guerra. Internamente temos os
ciclos dos períodos da vida (infância, juventude, idade adulta e velhice), o
ciclo menstrual, o ciclo do sono e o circadiano, o respiratório e assim por
diante. Podemos traçar um paralelo entre os ciclos externos e os internos.
Assim como as estrelas, galáxias e universos passam por ciclos de
formação, permanência, dissipação e extinção, seres humanos passam por
ciclos de nascimento, vida adulta, velhice e morte, além do bardo, o
período intermediário. E ainda, tanto os ciclos internos quanto os
externos vêm se repetindo desde tempos sem início com o renascimento
contínuo dos universos e da vida.

Nossa experiência desses ciclos internos e externos de tempo é moldada


por nosso karma. O karma é o fator mental que nos leva compulsivamente
a fazer, dizer ou pensar alguma coisa, e está baseado em falta de
consciência e confusão sobre o efeito de nosso comportamento e sobre
como nós, os outros e todas as coisas existem. De acordo com algumas
explicações, o karma também inclui a energia compulsiva com a qual
agimos e falamos e também a forma compulsiva de nossas ações e o som
compulsivo de nossa voz. Como resultado de nosso comportamento
kármico, vivenciamos o ciclo de renascimentos incontroláveis, sujeito aos
efeitos devastadores dos ciclos internos e externos do tempo. E também,
como resultado, experimentamos esses ciclos em conjunto com ainda
outro ciclo, o da infelicidade e felicidade que nunca dura e nunca satisfaz.
O Kalachakra acrescenta a essa descrição os ciclos dos ventos do karma,
que são responsáveis pelas aparências (hologramas mentais) que nossa
atividade mental faz surgir durante os ciclos de vigília, sonho, sono
profundo e durante as ocasionais experiências de bem-aventurança do
orgasmo.

Existe um terceiro ciclo de tempo conhecido como “Kalachakra


alternativo”, composto por iniciações tântricas, dois estágios de prática e
o atingimento do estado de Buda. Esse ciclo não é apenas uma alternativa
ao Kalachakra interno e externo, ele é o antídoto à sua influência
prejudicial. Se, com o passar dos anos, nossa energia, clareza mental e
humor forem influenciados pelo clima, pela quantidade de sol, pelas
mudanças hormonais, degenerações relacionadas à idade, e assim por
diante, isso não só obstrui nossa capacidade de realizar nossos objetivos
como também nos impede de ajudar os outros de forma eficiente.

O Kalachakra é único em vários sentidos. Como parte da apresentação dos


ciclos externos de tempo, sua literatura fornece complexas fórmulas
matemáticas para o cálculo da posição do sol, lua e planetas, a duração do
dia no solstício de verão, o tempo de duração dos eclipses, o calendário
lunar e os mapas astrológicos. Inclui até projetos com instruções para
construção de dispositivos mecânicos para tempos de paz e de guerra.
Nas instruções sobre os ciclos internos, ele descreve em detalhes o
sistema energético sutil do corpo, como os chakras, os canais e as gotas,
além de vários aspectos que foram integrados à medicina tibetana
tradicional, e também a análise da fonética do Sânscrito.

A iniciação de Kalachakra e os dois estágios de prática também são


únicos, com diversos aspectos diferentes dos outros anuttarayoga tantras.
Mantendo o paralelo entre o Kalachakra interno e externos, a iniciação é
dada em estágios que correspondem e reproduzem os estágios da vida. O
palácio da mandala e o corpo da figura búdica tem as mesmas proporções
do modelo do universo e do corpo humano. Devido à complexidade dos
mundos internos e externos e à necessidade de purificação completa de
ambos, a mandala contém mais figuras que quase todos os outros
sistemas do tantra. Os vários grupos de figuras, entre as 722 que estão
dentro e fora do palácio, correspondem a conjuntos como os números de
dias e meses de um ano lunar, os signos do zodíaco, as principais
constelações, o número de ossos e juntas de um corpo, assim como os
sentidos, elementos e os fatores agregados do corpo e mente (skandhas).
E ainda, os estágios finais da prática com o sistema energético sutil cria
uma forma especial de acessar a mente de clara luz (o nível mais sutil de
atividade mental) e um tipo especial de corpo sutil (sem forma) que serve
como um protótipo para os corpos de forma de um buda (Nirmanakaya).

Conclusão

A prática de Kalachakra é extremamente avançada e sofisticada. Mesmo


nos formatos menos complicados, com mandalas mais simples e menor
quantidade de figuras, ainda assim é uma prática muito desafiadora.
Todavia, com motivação adequada, preparação e esforço contínuo, é
extremamente eficaz para atingirmos a iluminação para o benefício de
todos os seres.

Ao contrário de outros tantras avançados, existe uma tradição de dar-se


iniciação de Kalachakra a grandes grupos de pessoas, como forma de
promover a harmonia e paz mundial. Sua Santidade o Dalai Lama deu sua
primeira iniciação de Kalachakra em Lhasa, no Tibete, em 1954 e, desde
então, aproximadamente dois milhões de pessoas participaram das
iniciações que ele deu ao redor do mundo.
O Que É uma Iniciação Kalachakra?
Dr. Alexander Berzin

A iniciação Kalachakra é um ritual budista que é oferecido para promover a paz


mundial e preparar os praticantes para meditações tântricas. Diferentemente de
outros ensinamentos budistas avançados, essa iniciação foi dada tradicionalmente
ao público em geral e tem atraído as maiores audiências. Os dias de hoje não são
exceção. Quando o Dalai Lama dá essa iniciação na India, centenas de milhares de
pessoas de todo o mundo se reúnem. Mas do que ela trata?

Kalachakra significa “ciclos de tempo” e, na verdade, o tempo é o nosso maior


inimigo. Com o passar do tempo nós envelhecemos, perdemos nossas habilidades e
morremos. Se pensarmos em termos de renascimento, aparentemente nós temos
que passar por esse ciclo repetidas vezes sem fim. Que terrível! Mesmo nessa vida
estamos à mercê de ciclos hormonais, sazonais e astrológicos.

As práticas de meditação avançada de Kalachakra permitem que nós nos


libertemos das garras do tempo. Nós nos tornamos capazes de dirigir o curso de
nossas vidas para ajudar os outros, não importa o que esteja acontecendo com os
nossos corpos ou o mundo ao nosso redor. Quando grandes grupos de pessoas de
diferentes origens se reúnem para aprender sobre amor, compaixão e sabedoria,
elas criam um tempo e um lugar de harmonia. Difundidas à distância, ações como
se reunir para uma iniciação Kalachakra são uma ótima maneira de contribuir para
a paz mundial.
Mahamudra e Dzogchen
Mahamudra e dzogchen são práticas avançadas do budismo Mahayana que
enfatizam a meditação sobre a natureza pura inata da mente. Praticados com
base em preliminares extensas e com a orientação de um professor
qualificado, meditadores chegam a reconhecer e descobrir níveis cada vez
mais profundos da mente. No final, eles descobrem a verdadeira natureza da
mente. Após treinar completamente a compaixão e sabedoria, eles alcançam a
iluminação para o benefício máximo dos outros.

O Que É Mahamudra?
Tradução Rosa Frazão
Dr. Alexander Berzin

Mahamudra é um corpo de ensinamentos encontrado em várias escolas do


budismo, e inclui métodos para compreendermos com clareza a natureza de
nossa própria mente, levando-nos à iluminação. Escolas diferentes propõe
abordagens ligeiramente diferentes para atingirmos o mesmo objetivo mas,
independente de qual seguimos, trabalhar para conhecer a natureza real de
nossa mente é uma forma de tornar nossas vidas incrivelmente significativas.

Mahamudra é uma palavra sânscrita que significa “grande selo”, e refere-


se a um sistema avançado e sofisticado de meditação na natureza da
mente, e às realizações que alcançamos através dessa meditação. Assim
como estampavam-se selos de cera em documentos legais para autenticá-
los, o grande selo do mahamudra é estampado nas práticas autênticas que
nos levam à iluminação para o benefício de todos os seres.

A característica que distingue a meditação mahamudra é que ela foca na


mente e em sua relação com o mundo das aparências convencionais e
com a vacuidade (vazio). A confusão e a falta de consciência (ignorância)
dessa relação é o que guia as nossas emoções destrutivas e
comportamentos compulsivos, que resultam em sofrimentos e problemas
sem fim. A meditação mahamudra é um método altamente eficiente para
atingirmos a liberação desse sofrimento e nos iluminarmos, mas somente
se for praticada sobre uma fundação sólida. Ou seja, é necessário um
treinamento extensivo no caminho gradual do lam-rim para
conseguirmos algum progresso.
Práticas no estilo mahamudra são encontradas nas tradições Kagyu,
Sakya e Gelug do budismo tibetano. A Kagyu e Gelug têm práticas no nível
do sutra e do anuttarayoga tantra, focando respectivamente nos níveis
comuns e de clara luz da mente. A escola Sakya transmite apenas o nível
do anuttarayoga tantra. Aqui focaremos no nível sutra, na forma como é
ensinado nas tradições Gelug e Karma Kagyu. Os Gelug enfatizam a
meditação na vacuidade da mente, enquanto os Karma Kagyu enfatizam a
meditação na mente que realiza a vacuidade de forma não-conceitual.

Nas duas abordagens, é crucial distinguirmos o quê exatamente é a


mente.

A mente é a atividade mental individual e subjetiva de vivenciarmos algo.

Essa atividade segue ininterrupta através de nossas vidas, sem começo e


nem fim. A mente, em si, é extremamente difícil de ser identificada;
portanto, o sucesso nessa prática só é possível com base em uma muita
força positiva e na purificação de potenciais positivos através de
repetidas práticas preliminares, ou ngondro.

A Tradição Gelug

A atividade mental tem duas naturezas fundamentais: a natureza


convencional e a natureza profunda. A tradição Gelug define a natureza
convencional como “mera clareza e consciência”.

 Clareza — a atividade mental de fazer surgir aparências (produção de


aparências), ou seja, hologramas mentais de visões, sons, aromas,
gostos, sensações físicas e pensamentos, que são acompanhadas de
algum nível de felicidade, várias emoções e fatores mentais básicos
como atenção e concentração.
 Consciência — algum tipo de engajamento cognitivo. Não está nem
separado e nem é subsequente à produção de aparências — não é que
primeiro surja um pensamento para depois o pensarmos. Consciência é
apenas uma forma subjetiva de descrever a mesma atividade mental de
fazer surgir aparências.
 Mera — a atividade mental é apenas isso, e exclui o fato de haver um
“eu” separado, encontrável, como agente ou observador dessa
atividade, ou uma “mente” separada e encontrável, como se fosse
algum tipo de máquina imaterial que estivesse fazendo tudo. A
atividade mental tem como base física o cérebro e o sistema neural,
mas isso não significa que a mente é equivalente ou pode ser reduzida
a algo físico.
A natureza mais profunda da atividade mental é “vazia de existência
autoestabelecida.”

 Vacuidade (Vazio) — a ausência absoluta de algo encontrável na


clareza e na consciência que, por poder próprio, estabeleça a existência
da atividade mental, ou mesmo dessas próprias características
definidoras.
 Rótulo Mental — o fato de nós, como sociedade, termos o conceito ou a
palavra “mente”, que criamos como a designação e o rótulo mental
para a continuidade de momentos de mera criação de aparências e
engajamento cognitivo que experimentamos. O rotulamento mental, no
entanto, não é uma prática ativa que simplesmente cria as coisas — é
apenas uma forma de considerarmos a existência convencional válida
das coisas. Não existe uma natureza autoestabelecida na atividade
mental ou em qualquer outra coisa que represente sua existência —
isso seria impossível. Vacuidade é a total ausência dessa forma
impossível de estabelecer a existência convencional das coisas.

O estilo Gelug de meditação mahamudra foca primeiramente na natureza


convencional da atividade mental, utilizando a presença mental para
evitar perder o foco e a vigilância para detectar a perda, caso ela aconteça.
Pense em uma lanterna em uma situação em que não prestamos atenção
ao que ela está iluminando (as aparências de objetos sensoriais ou
pensamentos, além do conteúdo emocional que os acompanha). Focamos
na atividade da lanterna de, momento a momento, tornar as aparências
visíveis. É importante não focarmos na atividade mental como se ela fosse
um objeto, apenas ficamos atentamente focados enquanto a atividade
mental ocorre. Certificamo-nos de não identificar a lanterna ou a pessoa
que segura a lanterna ou observa o que aparece, como “eu”. Quando os
pensamentos surgem, simplesmente os notamos, sem sermos pegos pela
história que eles estão contando; então eles desaparecem
automaticamente, e a nossa intenção original de meditarmos focando na
mente em si trás nosso foco de volta para a atividade mental.
Alternativamente, nós mesmos descartamos os pensamentos e trazemos
conscientemente nossa atenção de volta.

Uma vez que atingirmos o estado tranquilo e assentado de shamatha


focado na natureza convencional da atividade mental, focamos em sua
natureza mais profunda, sua vacuidade de existência autoestabelecida.
Eventualmente atingimos o estado excepcionalmente perceptivo de
vipashyana combinado com shamatha e focado na vacuidade da mente.
Continuamos a prática até que esse par torne-se não-conceitual e, estágio
à estágio, atingimos liberação e iluminação.
A Tradição Karma Kagyu
A Apresentação do Terceiro Karmapa
A natureza convencional da atividade mental é a “inseparabilidade entre
a produção de aparências (clareza) e as próprias aparências” A natureza
mais profunda da atividade mental é a “inseparabilidade entre
consciência e vacuidade” e a “inseparabilidade entre produção-de-
aparências/aparências e consciência/vacuidade”.

 Vacuidade — a visão da outra-vacuidade, segundo a qual a vacuidade é


um estado mental além de palavras e conceitos — “além” no sentido de
uma consciência desprovida de todos os níveis grosseiros da mente
nos quais as palavras e os conceitos ocorrem, e também no sentido de
existir de uma forma que é inexprimível com palavras e conceitos.
 Inseparável, equivalente a não-dual — nenhum dos membros de um
par inseparável existe ou pode estabelecer-se por si próprio,
independente do outro.

A Apresentação do Nono Karmapa


A natureza convencional da atividade mental é “criação de clareza, saber
e não-conceitualidade”

 Criação de clareza, ou simplesmente clareza (criação de aparências)”


— descrito com “limpidez”
 Saber — equivalente a “consciência” no sentido de estar
“desperto/acordado”
 Não-conceitualidade — o estado cognitivo desprovido de pensamentos
conceituais. O pensamento conceitual é o que projeta a aparência de
uma existência verdadeiramente estabelecida e categorias de
fenômenos como sendo “isso” ou “aquilo”.

A natureza mais profunda é a inseparabilidade ou a não-dualidade entre


aparências e vacuidade, criação de clareza e vacuidade, e saber e
vacuidade.

 Vacuidade — a visão de auto-vacuidade, segundo a qual a vacuidade é


um estado inexprimível com palavras e conceitos, meramente no
sentido de existir de uma forma que está além daquilo que poderia
corresponder a palavras e conceitos (como existência verdadeira,
existência não-verdadeira, ambas ou nenhuma).

No estilo Karma Kagyu da meditação mahamudra, atingimos o estado de


shamatha ao estabelecermo-nos, com presença mental e vigilância, no
momento presente de criação de clareza, saber e não-conceitualidade,
livre de qualquer pensamento cognitivo. Isso significa meditação sem
expectativas ou preocupações, e sem identificar “esse” ou “aquele” objeto
concreto de forma conceitual:

 O que você sabe — alguma informação sensorial ou um pensamento


aleatório
 O que você está fazendo
 Quem está fazendo
 Qual é a natureza conceitual da mente.

Conclusão

A meditação mahamudra Gelug foca na relação entre mente e aparências


convencionais, do ponto de vista de que a mente faz todos os objetos que
existem convencionalmente aparecerem e serem conhecidos, e o faz
porque ela não existe pelo poder de uma natureza intrínseca encontrável.
Tanto a mente quanto as aparências convencionais só podem ser
consideradas como aquilo a que os conceitos e as palavras se referem
com base na mera criação de aparências e consciência, momento a
momento.

A meditação mahamudra Karma Kagyu foca na relação entre mente e


aparências do ponto de vista de sua não dualidade — nenhuma pode ser
estabelecida como existindo por si só, separadamente da outra. Ambas
estão além de palavras e conceitos, no sentido de que não existem como
um objeto encontrável dentro de uma “caixa”, categoria, correspondente
a determinadas palavras ou conceitos. Independente do método que
utilizamos, chegamos à mesma conclusão: só é possível conhecermos a
natureza das aparências em termos de sua relação com a mente. Quando
compreendemos a mente e o mundo das aparências convencionais, e
temos como base o treinamento no caminho gradual do lam-rim e as
extensivas práticas preliminares, se praticarmos continuamente a
meditação mahamudra obteremos a iluminação para o benefício de todos
os seres.
O Que É Dzogchen?
Dr. Alexander Berzin

O dzogchen pode ter a reputação de ser uma prática que não requer esforço,
mas para começarmos a praticá-lo precisamos nos esforçar tremendamente
para compreendermos aquilo que chamamos as preliminares exteriores e
interiores. Com sabedoria e perseverança, o dzogchen torna-se um método
incrivelmente profundo e eficiente para atingirmos a iluminação para o
benefício de todos os seres.

Dzogchen é um sistema extremamente avançado de meditação nos níveis


mais profundos e sutis da mente. O termo “mente” refere-se aqui à
atividade mental contínua de engajar-se cognitivamente com objetos ou,
de um ponto de vista diferente, à atividade mental de dar origem a
aparências (hologramas mentais).

A palavra “dzogchen” significa “grande completude”, referindo-se ao fato


de que todas as qualidades do estado de um Buda estão completas no
nível de rigpa (consciência pura), o nível mais profundo e fundamental de
todos. Apesar de ser desnecessário acrescentarmos qualquer coisa ao que
chamamos de “rigpa-base” sem início e sem fim, essas qualidades não
estão em pleno funcionamento no momento, devido a uma perplexidade
(estupefação) que tem surgido simultaneamente como um fator
obscurecedor, e que também nunca teve início.

“Perplexidade” é uma inconsciência, automaticamente originada, da


natureza vazia de todos os fenômenos — a ausência completa de
maneiras impossíveis de existir. Essa inconsciência obscurece a chamada
“consciência reflexiva” de rigpa de sua natureza pura, que tem três
características:

 Pureza primordial – desprovida de todos os níveis grosseiros de


cognição (consciência limitada, “sem” em tibetano) onde a cognição
conceitual, as emoções perturbadoras e até mesmo as percepções
comuns dos sentidos ocorrem. E também primordialmente livre de
todas as maneiras impossíveis de existir.

 Estabelecimento espontâneo – dá origem a todas as aparências


(hologramas mentais).
 Responsividade – emana em resposta a causas, condições e às
necessidades dos outros. De certa forma “comunica-se” de maneira
compassiva com essas necessidades.

Cada uma dessas partes é responsável por nossas faculdades de mente,


corpo e fala, respectivamente.

Quando rigpa-base está fluindo juntamente com seu fator fugaz de


perplexidade, ela está funcionando como um alaya para os hábitos — uma
consciência-base onde são imputadas:

 Memórias

 Potenciais e tendências kármicas

 Tendências para emoções perturbadoras e atitudes perturbadoras


nominais

 Hábitos de nos agarrarmos a maneiras impossíveis de existência.

A meta da meditação dzogchen é conseguirmos um cessar dessa


perplexidade e, assim, um cessar do alaya para os hábitos e o
funcionamento completo de todas as boas qualidades inatas de rigpa,
para que possamos beneficiar ao máximo todos os seres.

O dzogchen é tradicionalmente ensinado nas escolas Nyingma e Bon no


Tibete e, posteriormente, foi incorporado também a várias escolas Kagyu.
No sistema de classificação Nyingma dos nove veículos da mente, ele é o
mais elevado dos seis veículos do tantra (atiyoga). Entretanto, nos dias de
hoje, a meditação de estilo dzogchen é frequentemente ensinada fora do
contexto sutra ou tantra — como um método para acalmar-se a mente,
por exemplo, e obter a concentração perfeita de shamata (um estado
mental tranquilo e assentado). Todavia, quando a intenção é a liberação
ou a iluminação, o dzogchen só é praticado tendo-se como base um
extenso estudo e prática de:

 Preliminares externas – a vida humana preciosa, a impermanência, o


sofrimento do samsara, causa e efeito kármicos (ética), os benefícios da
liberação (renúncia) e uma relação saudável com um professor
espiritual qualificado.

 Preliminares internas – refúgio (direcionamento seguro) juntamente


com prostrações, bodhichitta baseada em amor e compaixão,
purificação de Vajrasattva, oferenda de mandala, oferenda de “chod” de
seu próprio corpo e guru-yoga.
Após a conclusão de todas as preliminares, é necessário recebermos uma
iniciação tântrica e mantermos rigorosamente todos os votos tomados
nessa ocasião. Tendo-se isso como base, são requisitos posteriores:

 Prática tântrica de mahayoga – yoga de deidades com figuras búdicas e


mantras

 Prática tântrica de anuyoga – trabalhar com os ventos sutis, canais e


gotas de energia.

Sem um forte acúmulo de energia positiva (mérito), uma consciência


profunda de todas essas práticas e a inspiração e orientação próxima de
um mestre qualificado, não é possível termos sucesso na prática do
dzogchen. É uma prática muito sutil e difícil de fazer.

Sem nenhuma pré-concepção, expectativa ou preocupação, começamos a


meditação de dzogchen acalmando a atividade mental, para chegarmos a
um espaço entre os pensamentos verbais conceituais de “isso” e “aquilo”.
Cada momento e cada sílaba verbal de cada um desses pensamentos
surge, permanece e desaparece, mas só conseguimos identificar esse
processo de forma adequada se tivermos estudado e meditado
previamente sobre a apresentação Madhyamaka da vacuidade do surgir,
permanecer e desaparecer, e a ausência completa de um “eu” que possa
ser encontrado controlando e observando o processo. Mantendo a
atenção plena nesse surgir, permanecer e desaparecer simultâneos, não
há necessidade de um esforço consciente; os pensamentos verbais
conceituais “liberam-se” automaticamente — desaparecem por si
próprios — e estabelecemo-nos nesse espaço entre um pensamento e
outro.

A seguir, precisamos distinguir o surgimento, permanência e


desaparecimento simultâneos dos micro-segundos de cognição sensorial
não-conceitual. Durante esses micro-segundos — incrivelmente difíceis
de distinguir — percebemos as informações, meramente sensoriais, de
apenas uma das faculdades dos sentidos (por exemplo, meramente
formas coloridas) antes de sintetizá-las com informações dos outros
sentidos e de micro-segundos posteriores, e de designar essa síntese
mental como “esse” ou “aquele” objeto convencional. Quando
conseguimos nos estabelecer nesse nível de atividade mental, entre esses
micro-segundos, acessamos o alaya para os hábitos. No entanto, essa
ainda é uma forma limitada de consciência, porque ainda está misturada
com o fator de perplexidade.
Precisamos alcançar um nível mais profundo e sutil de consciência para
que consigamos experimentar e reconhecer esses intervalos cognitivos,
que têm uma profunda consciência de sua natureza tripartida
(primordialmente pura, espontaneamente estabelecida e responsiva).
Fazemos isso com a ajuda de nosso mestre dzogchen, que aplica métodos
especiais para que consigamos reconhecer a natureza da mente. Por
termos “lubrificado” os caminhos de nossos canais energéticos
praticando anuyoga, todos os níveis de atividade mental grosseira se
dissolvem automaticamente, sem que façamos um esforço consciente
para que isso aconteça.

Com o cessar da perplexidade, nosso alaya para os hábitos transforma-se


em rigpa, rigpa-resplandecente, em seu aspecto de ativamente dar
surgimento a aparências cognitivas (hologramas mentais) e ativamente
reconhecê-las, sendo o primeiro aspecto mais proeminente. Mas
precisamos ir ainda mais fundo. Permanecendo focados no surgimento,
permanência e desaparecimento simultâneos dos micro-segundos do
aparecimento puro de rigpa-resplandecente, precisamos
reconhecer rigpa-essência. Esse rigpa é rigpa em seu aspecto de “espaço
aberto” ou “esfera cognitiva”, que permite o surgimento e
reconhecimento das aparências, sendo o reconhecimento mais
proeminente. Quando reconhecemos e focamos nisso, alcançamos o
“atravessar”, o caminho mental da visão (caminho da visão), o terceiro
dos cinco caminhos mentais para a iluminação.

E então, como resultado da prática com figuras búdicas no mahayoga,


rigpa-resplandecente origina o corpo de arco-íris e reconhece-se como tal,
ao invés de como um corpo com os agregados comuns. Assim, no estágio
do “saltar” — equivalente ao caminho mental da familiarização (caminho
da meditação) — rigpa-resplandecente torna-se mais proeminente
enquanto simultaneamente mantém a proeminência de rigpa-essencial,
durante quatro estágios. Quando rigpa-resplandecente e rigpa-essencial
tornam-se igualmente proeminentes, atingimos a iluminação e, como
resultado de nosso amor e compaixão intensos e a meta de bodhichitta
mantidos através dessa prática, somos capazes de beneficiar todos os
seres da forma mais completa possível.

Conclusão

Dzogchen tem a fama de ser um caminho direto e sem esforço, em que


simplesmente permanecermos no estado natural da mente. É verdade
que se apenas reconhecermos o que está acontecendo em nossa
experiência cognitiva, os pensamentos conceituais e todos os outros
níveis de consciência limitada cessam, e a mente dá origem à nossa
aparência pura com as faculdades completas de um Buda. Entretanto,
nada disso é possível se já não tivermos praticado muito, nesta e em vidas
anteriores, todas as preliminares do sutra e tantra. Não podemos ser
ingênuos e subestimar a dificuldade da prática de dzogchen. Entretanto,
com uma preparação adequada, é um dos mais profundos métodos para
atingirmos a iluminação para o benefício de todos os seres.
Textos Originais
Tudo o que Buda e os mestres após ele ensinaram tem o único objectivo de
ajudar-nos a alcançar a felicidade genuína. Esta seleção de textos budistas
fornece ) orientações para a prática diária, através das quais podemos nos
familiarizar com o seu significado e aplicá-las em nosso cotidiano. Se
mantivermos isso, gradualmente superaremos todas as nossas falhas e
alcançaremos nosso potencial pleno para poder beneficiar a todos.

37 Práticas de um Bodhisattva -
Tradução Literal
Homenagem a Lokeshavara.

Prostro-me, sempre respeitosamente, através de minhas três portas,


perante os gurus supremos e o Guardião Avalokiteshvara o qual, vendo
que os fenômenos não vêm e nem vão, esforça-se apenas para o benefício
dos seres errantes.

Os Budas totalmente iluminados, fonte de benefícios e felicidade,


surgiram da realização do dharma sagrado. E mais, como isso dependeu
de eles conhecerem suas práticas, eu devo explicar a prática dos
bodhisattvas.

(1) A prática do bodhisattva é, agora que obtivemos essa excelente


embarcação (o nascimento humano), com folgas e oportunidades e difícil
de encontrar; escutar, pensar e meditar continuamente, dia e noite, para
livrar a si e aos outros do oceano do samsara incontrolavelmente
recorrente.

(2) A prática do bodhisattva é deixar sua terra natal, onde o apego aos
amigos o deixa agitado como a água, a raiva aos inimigos o queima como
o fogo e a ingenuidade, que o faz esquecer o que deve ser adotado e o que
deve ser abandonado, o encobre na escuridão.

(3) A prática do bodhisattva é amparar-se na solitude; livrando-se de


objetos nocivos, as emoções e atitudes perturbadoras são gradualmente
contidas; sem distrações, as práticas construtivas naturalmente
aumentam; e adquirindo clareza de consciência, a confiança no dharma
cresce.

(4) A prática de um bodhisattva é desistir de se preocupar


exclusivamente com a vida atual, na qual amigos e parentes que estão há
muito tempo juntos devem ir cada qual para o seu lado; riqueza e posses
adquiridas com esforço terão que ser deixadas para trás; e a consciência,
o hóspede, deve partir do corpo, sua hospedaria.

(5) A prática de um bodhisattva é livrar-se das amizades destrutivas com


quem, quando nos associamos, as três emoções venenosas crescem, as
ações de escutar, pensar e meditar se deterioram, e o amor e compaixão
tornam-se nulos.

(6) A prática de um bodhisattva é ter mais apreço por seu venerado


mestre espiritual do que por seu próprio corpo pois, ao confiarmos
(nosso desenvolvimento) ao mestre, nossos defeitos definham e as boas
qualidades se expandem como uma lua crescente.

(7) A prática de um bodhisattva é tomar a direção segura das Joias


Supremas, buscando a proteção daqueles que nunca nos enganarão — já
que, a quem os deuses mundanos podem proteger se eles mesmos ainda
estão confinados na prisão do samsara?

(8) A prática de um bodhisattva é nunca cometer qualquer ação negativa,


mesmo que isso lhe custe a vida, pois O Sábio declarou que os
sofrimentos extremamente difíceis de suportar dos renascimentos em
estados piores são o resultado das ações negativas.

(9) A prática de um bodhisattva é interessar-se pelo estado supremo e


imperturbável da liberação, uma vez que os prazeres dos três planos de
existência compulsiva são fenômenos que perecem em um mero instante,
como o orvalho nas pontas das folha de grama.

(10) A prática de um bodhisattva é desenvolver o ideal de bodhichitta


para liberar inúmeros seres, pois se nossas mães, que cuidaram de nós
desde tempos sem princípio estão sofrendo, o que faríamos com (apenas)
a nossa felicidade?

(11) A prática de um bodhisattva é trocar, com pureza, sua felicidade


pessoal pelo sofrimento alheio, porque (todo) o sofrimento, sem exceção,
vem de desejarmos nossa própria felicidade, enquanto um Buda
totalmente iluminado nasce da atitude de desejar o bem-estar dos outros.
(12) A prática de um bodhisattva é, mesmo que alguém, sob domínio de
um desejo muito forte, nos roube ou faça com que alguém roube toda a
nossa riqueza, dedicar a essa pessoa seu (próprio) corpo, recursos e
ações construtivas dos três tempos.

(13) A prática de um bodhisattva é, mesmo não tendo cometido o mínimo


deslize, se alguém tentar cortar nossa cabeça, tomar para si as
consequências negativas de seu ato, através do poder da compaixão.

(14) A prática de um bodhisattva é, mesmo que alguém divulgue, em


milhares, milhões ou bilhões de mundos, todo tipo de coisas
desagradáveis a nosso respeito, retribuir falando das boas qualidades
dessa pessoa, com uma atitude amorosa.

(15) A prática de um bodhisattva é, mesmo que alguém exponha nossos


defeitos ou fale mal (de nós) no meio de um grupo de muitos seres
errantes, cumprimentá-lo respeitosamente, identificando-o como (nosso)
professor espiritual.

(16) A prática de um bodhisattva é, mesmo que uma pessoa de quem


tenhamos cuidado e estimado como nosso próprio filho considerar-nos
um inimigo, ter uma afeição especial por ela, como a de uma mãe pelo
filho (que foi) atingido por uma doença.

(17) A prática de um bodhisattva é, mesmo que um indivíduo igual ou


inferior a nós, nos insultasse, tomado por arrogância, recebê-lo
respeitosamente na coroa de nossa cabeça, como um guru.

(18) A prática de um bodhisattva é, mesmo não tendo um sustento e


sendo constantemente insultado pelas pessoas, ou tendo uma terrível
doença, ou (sendo) atormentado por espíritos, aceitar, como retribuição,
as forças negativas e o sofrimento dos seres errantes e não desencorajar-
se.

(19) A prática de um bodhisattva é, mesmo sendo docemente elogiado,


cumprimentado por muitos seres errantes, ou tendo obtido (riquezas)
comparáveis à fortuna de Vaishravana (O Guardião da Riqueza), nunca
ser dissimulado, dizendo que a prosperidade mundana não tem essência.

(20) A prática de um bodhisattva é domar seu continuum mental com as


forças armadas do amor e da compaixão, porque, se não tivermos
subjugado o inimigo - que é a nossa própria hostilidade, mesmo que
subjuguemos um inimigo externo, mais (inimigos) surgirão.
(21) A prática de um bodhisattva é abandonar qualquer objeto que faça
nosso apego aumentar, pois os objetos do desejo são como água salgada:
quanto mais (os) aproveitamos, (mais) a sede aumenta.

(22) A prática de um bodhisattva é não trazer à mente as qualidades


inerentes dos objetos e da mente que os tomou (como objetos),
percebendo apenas como as coisas são. Não importa como as coisas
pareçam (ser), elas vêm de nossa mente; e a mente em si é, desde o início,
separada dos extremos da fabricação mental

(23) A prática de um bodhisattva é, ao encontrar-se com objetos


agradáveis, não tomá-los como verdadeiramente existentes, mesmo que
pareçam (ser) bonitos, como um arco-íris de verão, e (assim) livrar-se do
aferramento e do apego.

(24) A prática de um bodhisattva é, quando encontrar situações adversas,


vê-las como enganadoras, pois muitos sofrimentos são como a morte de
um filho em um sonho, e tomar (tais) aparências enganadoras com
verdade é um cansativo desperdício.

(25) A prática de um bodhisattva é doar generosamente, sem esperar algo


em troca ou que algum karma amadureça, pois se aqueles que desejam a
iluminação tem que doar até seu corpo; o que então dizer de suas posses?

(26) A prática de um bodhisattva é guardar autodisciplina sem intuitos


mundanos, pois se sem disciplina não conseguimos nem satisfazer nossos
próprios propósitos, querer satisfazer os propósitos alheios é uma piada.

(27) A prática de um bodhisattva é criar o hábito de ser paciente, sem


hostilidade ou repulsa (em relação) à quem quer que seja, porque, para
um bodhisattva que deseja ser rico em força positiva, todos os que o
machucam são como tesouros de pedras preciosas.

(28) A prática de um bodhisattva é exercer perseverança, a fonte das boas


qualidades, para servir ao propósito de todos os seres errantes, pois
vemos que mesmo os shravakas e os pratyekabuddhas, que buscam
atingir apenas o seu próprio propósito, têm tamanha perseverança que
ignorariam um fogo que tivesse começado em suas próprias mãos.

(29) A prática de um bodhisattva é transformar em hábito a estabilidade


mental que supera com pureza as quatro (absorções) sem forma, através
da percepção de que um estado mental excepcionalmente perceptivo,
totalmente imbuído de um estado tranquilo e assentado, pode derrotar
completamente as emoções e atitudes perturbadoras.
(30) A prática de um bodhisattva é fazer da consciência discriminativa,
que acompanha os métodos e que não formula conceitos sobre os três
círculos, um hábito. Porque sem a consciência discriminativa, as cinco
atitudes de vasto alcance não geram a iluminação completa

(31) A prática de um bodhisattva é examinar continuamente o


autoengano e livrar-se dele porque, se não examinarmos nosso
autoengano, é possível que cometamos alguma ação não dharmica
usando uma fachada dharmica

(32) A prática de um bodhisattva é não falar dos defeitos de uma pessoa


que entrou no (caminho) Mahayana, porque se, sob o poder das emoções
e atitudes perturbadoras, falarmos sobre os defeitos dos que são
bodhisattvas, nós nos degeneraremos.

(33) A prática de um bodhisattva é livrar-se do apego à casa dos parentes


e amigos e à casa de patronos porque, sob o poder de (querer) ganhos e
respeito, podemos discutir com os outros e nossa atividade de escutar,
pensar e meditar irá declinar.

(34) A prática de um bodhisattva é livrar-se da linguagem grosseira,


desagradável à mente alheia, pois palavras grosseiras perturbam a mente
dos outros e fazem com que nosso comportamento de bodhisattva
decline.

(35) A prática de um bodhisattva é fazer com que os (nossos) serviçais da


presença mental e da atenção segurem as armas opositoras, e
forçosamente destruam as emoções e atitudes perturbadoras, como o
apego e assim por diante, logo que surgirem porque, quando nos
habituamos a emoções e atitudes perturbadoras, é difícil aos oponentes
fazerem com que recuem.

(36) Em suma, a prática de um bodhisattva é (trabalhar) para realizar o


propósito dos outros, mantendo continuamente a presença mental e a
atenção, para saber em que condição a mente se encontra, qualquer que
seja o comportamento que estejamos tendo.

(37) A prática de um bodhisattva é, com consciência discriminativa e total


pureza dos três círculos, dedicar à iluminação as forças construtivas
conseguidas com esses esforços, para eliminar o sofrimento de infinitos
seres errantes.

Tendo seguido a palavra dos seres sagrados e o significado do que foi


declarado nos sutras, tantras e nos tratados, eu organizei (essas) práticas,
trinta e sete, para aqueles que desejam treinar no caminho do
bodhisattva.

Por minha inteligência ser fraca e minha educação formal escassa, elas
podem não estar na métrica poética que agrada aos eruditos. Mas por eu
ter me baseado nos sutras e nas palavras dos santos, acredito que (essas)
práticas de bodhisattvas não sejam enganadoras.

No entanto, como é difícil para um tolo como eu compreender a


profundidade das grandes ondas do comportamento bodhisattva, eu peço
aos santos que sejam pacientes com minha montanha de falhas, como
contradições, falta de conexão e coisas do gênero.

Pela força construtiva que surgir disso, que todos os seres errantes,
através da bodhichitta suprema, profunda e convencional, tornem-se
iguais ao Guardião Avalokiteshvara, que nunca estabelece morada nos
extremos compulsivos da existência samsárica ou da complacência do
nirvana.

Isso foi composto na caverna de Rinchen em Ngulchu pelo disciplinado


monge Togmey, um professor de escrituras e lógica, para benefício
próprio e alheio.
Pontos Concisos do Caminho
Gradual
Tsongkhapa

Presto homenagem ao Guru Manjughosha!

(1) [Inclinando] a cabeça, prosto-me a você, o Mais Importante [membro]


do (clã) dos Shakyas: seu corpo nasce com um conjunto de [sinais]
esplêndidos, construtivos e excelentes; sua fala concede o desejo de
infinitos seres sencientes; sua mente vê tudo o que é cognoscível assim
como é.

(2) Prostro-me a você, Maitreya e Manjushri, supremos filhos espirituais


do inigualável professor: ao assumir a responsabilidade [de passar
adiante] o conjunto completo das ações do Triunfante, você exibe
emanações em incontáveis mundos.

(3) Prostro-me a seus pés, Nagarjuna e Asanga, aclamados pelos Três


Reinos como [as joias que] adornam o Continente Sul: vocês comentaram
o [texto] mais difícil de se compreender (o Prajnaparamita), Mãe dos
Triunfantes, de acordo com seu significado original.

(4) Curvo-me perante você, Dipamkara (Atisha), detentor de uma fortuna


em instruções que captam completamente e sem erro os pontos
essenciais dos caminhos da visão profunda e da vasta conduta,
[transmitidos através] da excelente linhagem desses dois extraordinários
pioneiros.

(5) Respeitosamente, prostro-me diante de vocês, meus mentores


espirituais, olhos para contemplar todas as infinitas escrituras,
superlativas passagens para que os afortunados atravessem para a
liberação. Vocês esclarecem [tudo] usando de meios hábeis e motivados
por preocupação amorosa.

(6) Os estágios do caminho para a iluminação passaram intactos por


sucessivas gerações a partir de Nagarjuna e Asanga, [que são] as joias da
coroa de todos os mestres eruditos do Continente do Sul e o estandarte
daqueles cuja fama paira acima das massas errantes. [Seguir os estágios]
pode atender [todos] os objetivos espirituais dos nove tipos de
renascimento, [portanto], eles são como reis que nos dão poder com suas
preciosas instruções. Por reunirem miríades de clássicos excelentes,
abrangem um oceano de explicações absolutamente perfeitas e corretas.
(7) [Com o estudo e prática dos estágios,] você compreende todos os
ensinamentos dos Budas, sem contradições. [Sua mente] compreende
todas as declarações das escrituras como instruções diretrizes. Você
facilmente descobre o significado pretendido pelo Triunfante. Eles (os
ensinamentos) o protegem do abismo da grande ação destrutiva [de
renunciar ao dharma]. Diante destes [benefícios], quais examinadores
entre os mestres eruditos da Índia e do Tibete não terão suas mentes
arrebatadas pelos estágios do caminho dos três escopos espirituais, as
instruções supremas às quais muitos afortunados se confiaram.

(8) Apesar de [acumularmos força positiva ao] recitar ou escutar, mesmo


que apenas uma vez, esse tipo de texto (de Atisha) que engloba
completamente os pontos essenciais de todas as declarações das
escrituras, ondas ainda maiores de grandes benefícios certamente se
formam ao ensinarmos ou estudarmos o dharma sagrado [contido nesses
textos]. Permita-me abordar os pontos [sobre como fazer isso
adequadamente].

(9) Vendo que a [causa] raiz mais propícia à originação dependente das
maiores redes [de mérito e sabedoria], nesta e nas próximas vidas, é
esforçar-me e dedicar-me adequadamente, em pensamento e ação, a um
santo mentor espiritual que indique o caminho; que eu o agrade
praticando de acordo com suas palavras iluminadas, as quais não
renunciaria mesmo que isso me custasse a vida.

O enobrecedor e impecável Lama assim praticou. Que eu, também, que


luto pela iluminação, desenvolva-me desta forma.

(10) Essa base de trabalho, [que é a vida humana preciosa] com as [oito]
folgas, é mais excepcional que uma joia realizadora de desejos. [Um
renascimento] como este, adquire-se [talvez] uma única vez. É difícil de
conseguir e fácil de perder, [passa muito rápido], como um raio no céu.
Considerando [a minha vida humana preciosa], e percebendo que
[engajar-se em] atividades mundanas é como [tentar] tirar [algo
significante] do joio, devo [sempre] tirar a essência [da vida], dia e noite.

O enobrecedor e impecável Lama assim praticou. Que eu, também, que


luto pela iluminação, desenvolva-me desta forma.

(11) Depois da morte, nada garante que conseguiremos evitar um


renascimento nos reinos inferiores (estados piores de renascimento);
entretanto, é certo que as Três Raras e Supremas Joias nos dão uma
direcção segura (refúgio) longe do medo [desse destino]. Por isso, que eu
seja extremamente firme ao tomar essa direção segura em minha vida e
não deixe meus pontos de treinamento decaírem. Isso dependerá de eu
considerar [quais são os caminhos] nobres e os escuros das causas e
efeitos kármicos e praticar de acordo com o que deve ser adotado e o que
deve ser abandonado.

O enobrecedor e impecável Lama assim praticou. Que eu, também, que


luto pela iluminação, desenvolva-me desta forma.

(12) Os passos definitivos para realizar-se os supremos caminhos


mentais não serão dados até que eu obtenha, como base de trabalho,
[uma vida humana preciosa] com o conjunto completo dos [oito] fatores
definidores. Portanto, que eu treine [nos atos construtivos que são] a
causa. Assim, o conjunto não ficará incompleto. Como é absolutamente
essencial limpar minhas três portas dessas manchas [que vêm] do karma
negativo e da quebra [de votos], e especialmente de obstáculos kármicos,
que eu acalente devoção contínua ao conjunto completo das quatro forças
opositoras (antídotos).

O enobrecedor e impecável Lama assim praticou. Que eu, também, que


luto pela iluminação, desenvolva-me desta forma.

(13) Se eu não me esforçar para ponderar sobre os verdadeiros


problemas e suas desvantagens, não desenvolverei um interesse forte em
me libertar. Sem considerar os estágios em que as (verdadeiras) origens
do sofrimento me levam ao samsara, não conhecerei os meios para cortar
as raízes desse ciclo [vicioso]. Portanto, que eu me dedique a desenvolver
desgosto pela existência compulsiva e determinação para dela me livrar, e
que eu aprecie saber o que me prendeu a essa roda [do samsara].

O enobrecedor e impecável Lama assim praticou. Que eu, também, que


luto pela iluminação, desenvolva-me desta forma.

(14) Desenvolver bodhichitta é o eixo principal para o caminho mental do


Veículo Supremo, é a base e a fundação para grandes ondas de
comportamento (de bodhisattva). Como um elixir que transmuta coisas
em ouro, [a bodhichitta transforma] as duas redes, [de mérito e
sabedoria, em características iluminadas,] criando, [assim], um tesouro a
partir das forças positivas (mérito) acumuladas por infinitos atos
construtivos. Percebendo que é assim, o corajoso filho espiritual do
Triunfante (Buda) toma essa mente preciosa como seu vínculo mais
profundo.

O enobrecedor e impecável Lama assim praticou. Que eu, também, que


luto pela iluminação, desenvolva-me desta forma.
(15) A generosidade é a joia realizadora de desejos que atende às
aspirações dos seres sencientes; é a melhor arma para desfazer o nó da
mesquinharia. O comportamento de bodhisattva é o que fortalece os
sentimentos de coragem e de não nos sentirmos inadequados; é ele a base
para que nossa fama seja proclamada nas dez direções. Percebendo isso,
o sábio dedica-se ao excelente caminho de doar completamente seu
corpo, posses e força positiva.

O enobrecedor e impecável Lama assim praticou. Que eu, também, que


luto pela iluminação, desenvolva-me dessa forma.

(16) A disciplina ética é a água que lava as manchas de nossas ações


faltosas. É o raio de luar que refresca o calor escaldante das emoções
destrutivas. (Com ela) você brilha entre os nove tipos de seres, como um
Monte Meru. Através de seu poder, todos os seres se curvarão [à sua
influência positiva,] sem que sejam necessários olhares irados.
Percebendo isso, os seres santos protegem, com aos seus próprios olhos,
os votos de disciplina que tão puramente tomaram.

O enobrecedor e impecável Lama assim praticou. Que eu, também, que


luto pela iluminação, desenvolva-me dessa forma.

(17) A paciência é o melhor adorno para os fortes e a maior de todas as


práticas de ascetismo daqueles que são atormentados pelas emoções
destrutivas. É o garuda que plana alto e é inimigo da cobra rastejante da
raiva, e a armadura mais grossa contra as armas afiadas das palavras
abusivas. Percebendo isso, [o sábio] se acostuma, de várias maneiras e
formas, a [usar] a proteção da suprema paciência.

O enobrecedor e impecável Lama assim praticou. Que eu, também, que


luto pela iluminação, me desenvolva-me dessa forma.

(18) Ao vestir a armadura da perseverança jubilosa e inabalável, sua


proficiência e realização nas escrituras crescerá como a lua cheia. Todos
os seus comportamentos passarão a ser significativos, e você conseguirá
terminar tudo o que começar, conforme aspirou. Percebendo isso, o filho
do Triunfante gera grandes ondas de perseverança jubilosa, lavando toda
a preguiça.

O enobrecedor e impecável Lama assim praticou. Que eu, também, que


luto pela iluminação, desenvolva-me dessa forma.

(19) A estabilidade mental é o rei exercendo seu poder sobre a mente.


Fixe-a e ela permanecerá estável como o Poderoso Senhor das
Montanhas. Projete-a e ela se engajará em todos os objetivos
construtivos. Ela induz uma extasiante sensação de aptidão física e
mental. Percebendo isso, os yoguis poderosos dedicam-se continuamente
à concentração absorvida que combate o inimigo da distração mental.

O enobrecedor e impecável Lama assim praticou. Que eu, também, que


luto pela iluminação, desenvolva-me dessa forma.

(20) A consciência discriminativa (sabedoria) é o olho [que nos permite


ter] a visão profunda da natureza da realidade. É o caminho mental para
cortarmos a existência compulsiva pela raiz. É o tesouro das boas
qualidades, louvada em todas as escrituras e renomada como a melhor
lamparina para dissipar a escuridão da ingenuidade. Percebendo isso, os
sábios e aqueles que desejam a liberação esforçam-se para fortalecer este
caminho mental.

O enobrecedor e impecável Lama assim praticou. Que eu, também, que


luto pela iluminação, desenvolva-me dessa forma.

(21) Estabilidade mental unifocada, por si só, não proporciona a


percepção necessária para cortarmos a raiz do samsara; e a consciência
discriminativa (sabedoria), quando separada do caminho da estabilidade
e tranquilidade (de shamata), não consegue reverter as aflições mentais
(emoções e atitudes perturbadoras), não importa o quanto use seu
discernimento analítico. A consciência discriminativa absolutamente
certeira em relação a como as coisas existem [deve] montar o cavalo da
mente inabalável e quieta de shamata. Então, com a lança da lógica
Madhyamaka, [que é] livre de extremos, essa consciência discriminativa
abrangente, que discerne analiticamente de forma correta, destrói todos
os suportes focais para o apego às visões extremas e expande a
inteligência para realizar a natureza da realidade.

O enobrecedor e impecável Lama assim praticou. Que eu, também, que


luto pela iluminação, desenvolva-me dessa forma.

(22) Uma investigação que discerne analiticamente de forma correta


aumenta a concentração absorvida — é desnecessário mencionar que a
concentração absorvida foi atingida através da familiaridade com a mente
unifocada —, que se fixa firme e inabalavelmente em como as coisas são
de fato. Aqueles que, tendo visto [como as coisas existem], esforçam-se
para realizar a união da calma e tranquilidade de shamata com a
percepção excepcional de vipassana são realmente notáveis.

O enobrecedor e impecável Lama assim praticou. Que eu, também, que


luto pela iluminação, desenvolva-me dessa forma.
(23) Tendo meditado tanto na vacuidade que é como o espaço, durante a
absorção total, quanto na vacuidade que é como ilusão, durante a
realização subsequente, combiná-las em o par de sabedoria e método é
aclamado como “atravessar o rio do comportamento bodhisattva”.
Percebendo ser assim, não contentar-se em [alcançar] um caminho
mental unilateral é a tradição dos afortunados que [conseguem atingir a
iluminação].

O enobrecedor e impecável Lama assim praticou. Que eu, também, que


luto pela iluminação, desenvolva-me dessa forma.

(24) Quanto mais eu aprimoro os caminhos mentais comuns como esses,


que os veículos Mahayana, causal e resultante, requerem para
[alcançarmos] o caminho mental supremo (a iluminação), mais preciso
fazer com que meu [renascimento com] liberdades temporárias e
oportunidades (fatores enriquecedores) seja significativo. Assim, devo
me firmar nas orientação de um mestre [tântrico] como navegador, e
embarcar no vasto oceano [das quatro classes do] tantra, confiando-me às
suas instruções diretrizes.

O enobrecedor e impecável Lama assim praticou. Que eu, também, que


luto pela iluminação, desenvolva-me dessa forma.

(25) A fim de acostumar minha mente e beneficiar outros afortunados,


expliquei [aqui], de uma forma fácil de ser compreendida, o caminho
completo que agrada os Triunfantes. Rezo para que através deste ato
construtivo todos os seres senciente não se separem [desses] caminhos
mentais puros e excelentes.

O enobrecedor e impecável Lama assim praticou. Que eu, também, que


luto pela iluminação, desenvolva-me dessa forma.

Esta Apresentação Concisa da Prática do Caminho Gradual para a


Iluminação foi compilada, para que não fosse esquecida, no Monastério de
Ganden Namgyel na Montanha do Grande Cachorro (Tibete), pelo monge
renunciante (Tsongkhapa), Lozang-dragpa, que ouviu a muitos
ensinamentos.
A Guirlanda de Joias de um
Bodhisattva
Atisha

Prostro-me diante da grande compaixão. Prostro-me diante do sublime


professor. Prostro-me diante das figuras búdicas, esses são em quem
devemos acreditar.

(1) Que eu me livre de todas as dúvidas aflitivas e valorize ser realmente


sincero em minha prática. Assim, que eu me livre completamente da
sonolência, da mente nebulosa e da preguiça, e sempre me esforce com
perseverança.

(2) Que eu sempre proteja os portões de meus sentidos com presença


mental, atenção e cuidado. Portanto, que eu verifique repetidamente meu
fluxo mental, três vezes ao dia e três vezes à noite.

(3) Que eu deixe que meus defeitos sejam conhecidos e não procure
defeitos nos outros. Portanto, que eu esconda minhas boas qualidades e
divulgue as boas qualidades alheias.

(4) Que eu me livre do [desejo por] ganhos materiais e honra e [também


do desejo de obter] lucro e fama. Assim, que eu tenha contentamento,
poucos desejos e aprecie os atos de gentileza.

(5) Que eu medite no amor e na compaixão e estabilize meu ideal


bodhichitta. Assim, que eu me livre das dez ações destrutivas, permaneça
sempre estável e acredite no que é fato.

(6) Que eu supere a raiva e o orgulhe e tenha uma atitude humilde. Assim,
que eu me livre de formas desonestas de viver e que ganhe a vida de uma
forma que esteja de acordo com o dharma.

(7) Que eu me livre de toda a sobrecarga material e me adorne com as


joias dos aryas. Assim, que eu me livre de todas as atividades supérfluas e
viva em isolamento.

(8) Que eu me livre da conversa fiada e contenha minha fala. Assim,


quando eu vir um professor sublime, ou um mestre erudito, que ofereça
meus serviços com respeito.
(9) Quanto às pessoas que possuem os olhos do dharma e os seres
sencientes que são principiantes, que eu saiba considerá-los meus
professores.

(10) Quando vir um ser senciente, que eu o considere como meu pai, mãe,
filho ou neto. Assim, que eu me livre das más influências e confie-me aos
amigos espirituais.

(11) Que eu me livre da hostilidade e dos estados mentais


desconfortáveis, e vá alegremente a todos os lugares. Assim, que eu me
livre de tudo aquilo a que sou apegado e viva sem apegos.

(12) Com apego, não conseguirei nem mesmo um renascimento feliz e, de


fato, cortarei a vida de minha liberação. Portanto, onde quer que eu veja
um método do dharma [para trazer] felicidade, que eu me esforce nele.

(13) O que quer que eu comece a fazer, que eu termine primeiro. Assim,
tudo sairá bem feito; caso contrário, nada conseguirei fazer.

(14) Enquanto eu ainda agir negativamente e sem alegria, e um


sentimento de superioridade surgir, que eu elimine meu orgulho e
lembre-me das orientações de meu sublime professor.

(15) E quando me sentir desencorajado, que eu exalte as glórias da mente


e medite na vacuidade dos dois (estados).

(16) Sempre que surgir um objeto de apego ou hostilidade, que eu o


considere uma ilusão ou projeção; sempre que ouvir palavras
desagradáveis, que eu as considere ecos; e sempre que meu corpo for
ferido, que eu considere (que isso vem de) um karma anterior.

(17) Que eu viva em um lugar isolado, fora dos limites (de qualquer
povoado) e, como o corpo de um animal morto, me esconda em solitude e
viva sem apegos.

(18) (Lá), que eu estabilize minha figura búdica e, sempre que sentir
preguiça ou sede de entretenimento, que enumere meus defeitos e
lembre-me dos pontos essenciais para domar o comportamento.

(19) Mas, se acontecer de ver outras pessoas, que eu fale de forma calma,
suave e sincera, que me livre de qualquer carranca ou cara fechada e
sempre sorria.
(20) E quando estiver sempre encontrando pessoas, que não seja
avarento, que me alegre em doar e me livre de qualquer sentimento de
inveja.

(21) A fim de proteger a mente alheia, que eu me livre da discórdia e seja


sempre paciente e tolerante.

(22) Que eu não seja bajulador ou inconstante em minhas amizades, mas


que permaneça sempre fiel. Que não insulte os outros e seja sempre
respeitoso. Então, quando der orientações a outras pessoas, que eu tenha
compaixão e queira ajudar.

(23) Que eu nunca negue o dharma e, ao direcionar minha intenção àquilo


que fervorosamente admiro, que me esforce para passar meus dias e
noites atravessando os portões das dez ações do dharma.

(24) Que eu dedique à grande e inigualável iluminação todos os atos


construtivos que tenha acumulado nos três tempos, e estenda aos seres
sencientes a minha força positiva (mérito). Assim, que eu sempre ofereça
a grande oração dos sete ramos.

(25) Ao praticar desta maneira, que eu complete minhas duas redes de


força positiva e consciência profunda (acumulação de mérito e
sabedoria), e esgote meus dois obscurecimentos. Ao fazer de minha vida
humana algo significativo, que eu atinja a inigualável iluminação.

(26) A joia de acreditar nos fatos, a joia da disciplina ética, a joia da


generosidade, a joia do ouvir, as joias do importar-se com o efeito das
minhas ações sobre os outros e da auto-dignidade moral e a joia da
consciência discriminativa, perfazem sete joias.

(27) Essas joias sagradas são as sete joias que nunca se esgotam. Não
devem ser mencionadas a semi-humanos.

(28) Quando em meio a muitas pessoas, que eu esteja atento à minha fala;
quando sozinho, que eu esteja atento à minha mente.
Os Oito Versos de Treinamento da
Mente
Langri Tangpa

(1) Que eu sempre valorize todos os seres limitados por considerá-los


muito superiores às joias realizadoras de desejos no que diz respeito à
conquista do objetivo supremo.

(2) Sempre que eu estiver na companhia de alguém, que eu me considere


menos que todos os outros e, do fundo do meu coração, valorize os outros
mais do que a mim mesmo.

(3) O que quer que eu esteja fazendo, que eu verifique o fluxo da minha
mente, e no momento em que concepções ou emoções perturbadoras
aparecerem, já que elas me debilitam e aos outros, que eu as confronte e
evite com métodos vigorosos.

(4) Sempre que eu ver seres instintivamente cruéis, dominados por


negatividades e problemas sérios, que eu os valorize como difíceis de
encontrar, assim como descobrir um tesouro de joias.

(5) Quando os outros, por inveja, me tratarem injustamente, com


repreensões, insultos e mais, que eu aceite a derrota e ofereça a vitória
aos outros.

(6) Mesmo que alguém que eu tenha ajudado, ou por quem tenha grandes
expectativas, me prejudique de forma completamente injusta, que eu o
veja, ou a veja, como um professor sagrado.

(7) Enfim, que eu ofereça a todas as minhas mães, direta ou


indiretamente, o que quer que as beneficie e lhes traga alegria; e que
ocultamente tome para mim todos os problemas e infortúnios das minhas
mães.

(8) Durante tudo isso, que minha mente permaneça isenta das máculas
das concepções a respeito das oito coisas passageiras, e que eu entenda
todos os fenômenos como uma ilusão, que eu me liberte da minha
escravidão, sem nenhum apego.

Leia o comentário do Dalai Lama sobre este texto.


Base para as Boas Qualidades
Tsongkhapa

(1) A confiança (saudável) em um gentil mestre espiritual, a base para


todas as boas qualidades, é a raiz do caminho. Vendo isso, peço inspiração
para que nele confie com grande estima, em muitas iniciativas.

(2) Esse excelente material de trabalho, que permite liberdades


temporárias, e que encontramos apenas uma vez, é difícil de ser obtido.
Certo de sua grande importância, peço inspiração para desenvolver, sem
interrupções, uma atitude de aproveitá-lo de todas as formas, dia e noite.

(3) Na hora da morte, meu corpo e força vital se esvairão rapidamente,


como bolhas em um riacho. Lembrando disso, e com a certeza de que
após a morte os frutos de minhas ações soturnas e obscuras me seguirão,

(4) Como a sombra segue o corpo, peço inspiração para me livrar até
mesmo da menor ação que possa dar origem a uma rede de falhas, e
efetuar todas as ações que possam originar uma rede de forças positivas.

(5) Os esplendores da existência compulsiva, mesmo quando


aproveitados, nunca nos satisfazem; porta para todos os problemas, não
servem para dar segurança à mente. Ciente desta armadilha, peço
inspiração para desenvolver um grande e ávido interesse pelo êxtase da
liberação.

(6) Induzido por esse pensamento puro e motivador, peço inspiração


para realizar com presença mental, atenção e muito cuidado, as práticas
de liberação individual, a raiz dos ensinamentos.

(7) Assim como caí no oceano da existência compulsiva, todos os outros


seres sencientes também caíram — eles foram minhas mães. Vendo isso,
peço inspiração para gerar o supremo ideal de bodhichitta e tomar para
mim a responsabilidade de liberar todos os seres sencientes.

(8) Mesmo tendo tomado apenas esta única resolução, se não tiver como
hábito os três tipos de disciplina ética, não conseguirei atingir o
[supremo] estado purificado. Vendo isso, peço inspiração para treinar
com muito esforço nos votos de bodhisattva.

(9) Peço inspiração para desenvolver rapidamente em meu continuum


mental um caminho que combine uma mente quieta e assentada com uma
mente excepcionalmente perceptiva; acalmando a mente que se distrai
com objetos que a distorcem e discernindo apropriadamente o
significado correto [da vacuidade].

(10) Quando tiver treinado nos caminhos usuais e tornado-me um vaso,


peço inspiração para facilmente entrar no Veículo Adamantino, o
supremo entre os veículos, a trilha sagrada dos afortunados.

(11) Então, quando estiver absolutamente certo de tudo o que foi dito,
que a base para obtermos os dois tipos de realização são as práticas que
estreitam nossos vínculos e a manutenção pura dos votos, peço
inspiração para mantê-los mesmo que isso me custe a vida.

(13) Peço inspiração (bençãos) para que os pés dos mentores espirituais
que indicam esse excelente caminho, e os dos amigos que o praticam
adequadamente, permaneçam firmes e que as interferências internas e
externas sejam acalmadas.

(14) Que eu nunca, em todas as minhas vidas, separe-me dos gurus


perfeitos; que eu dê bom uso ao dharma perfeito; e ao atingir
completamente todas as boas qualidades dos estágios e caminhos, que eu
rapidamente alcance o estado de Vajradhara.
O Sutra do Coração
Assim eu ouvi. Certa vez, o Mestre Vencedor Que Superou Todos os
Outros (Bhagavan) encontrava-se na Montanha do Pico dos Abutres,
próximo à Cidade Real de Rajagriha, juntamente com uma grande
assembléia da sangha monástica e uma grande assembléia da sangha de
bodhisattvas.

Naquele momento, o Mestre Vencedor Que Superou Todos os Outros


estava no estado de absorção meditativa que expressa a multiplicidade
dos fenômenos, conhecido como “a aparência do profundo”.

Também naquele momento, o grande bodhisattva mahasattva, o Arya


Avalokiteshvara, o Poderoso Senhor Que Observa Tudo a Seu Redor,
comportando-se de acordo com a profunda consciência discriminativa de
amplo alcance (sabedoria da perfeição), observava, em detalhes, tudo a
seu redor: Ele observava tudo, em detalhes, e viu até mesmo que os cinco
agregados da experiência são desprovidos de natureza inerente.

Entã o, atravé s do poder do Buda, o venerá vel Shariputra disse ao grande


bodhisattva mahasattva Arya Avalokiteshvara: “Como deve treinar um
filho espiritual que possui as características da família (do Buda) e deseja
contemplar a profunda consciência discriminativa de amplo alcance?”

O grande bodhisattva mahasattva Arya Avalokiteshvara disse estas


palavras ao Filho de Sharadvati: “Shariputra, qualquer filho ou filha com
as características da família, que queira contemplar a profunda
consciência discriminativa de amplo alcance, deve observar tudo a seu
redor, em detalhes, da seguinte forma: Precisa manter a visão completa e
detalhada dos cinco agregados da experiência como livres de natureza
inerente. Forma - vacuidade; vacuidade - forma. Forma inseparável de
vacuidade; vacuidade inseparável de forma. (O que tem forma é vazio; o
que é vazio, tem forma). Assim também são as sensações, distinções,
variáveis influentes, tipos de consciência - (são) vacuidade. É assim,
Shariputra, com todos os fenômenos - (são) vacuidade: não têm
características, não surgem, não cessam, não se tornam maculados, não
deixam de ser maculados e deles nada se tira ou adiciona.

“Assim Shariputra, na vacuidade nã o há forma, nem sensaç ões, nem
distinções, nem variáveis influentes, nem tipos de consciê ncia; nã o há
olho, nem ouvido, nem nariz, nem língua, nem corpo, nem mente. Nã o há
visões, nem sons, nem odores, nem paladar, nem sensações físicas, nem
fenô menos. Nã o há uma fonte cognitiva que é um olho, e assim por diante,
até uma fonte cognitiva que é uma mente (nenhuma fonte cognitiva que é
um fenômeno), inclusive nenhuma fonte cognitiva que é uma consciência
mental. Nã o há ignorâ ncia, nem a eliminação da ignorâ ncia e assim por
diante, até o envelhecimento e morte e a eliminação do envelhecimento e
da morte. Da mesma forma, nã o há sofrimento, nem causas do sofrimento,
nem cessaç ão do sofrimento e nem caminho mental (caminho); nã o há a
consciência profunda, nem realizaç ão, nem falta de realização.

“Por isso, Shariputra, como não há as realizaç ões dos bodhisattvas, eles
ou elas vivem confiando-se à consciência discriminativa, sem
obscurecimento mental algum. (Por não possuírem obscurecimentos
mentais) não têm medo, transcendem todos os erros, e finalmente
alcançam o nirvana. Inclusive, é por terem se confiado à consciência
discriminativa, que todos os budas do três tempos manifestam-se no
estado perfeito e inigualável de um Buda completamente iluminado.

“Assim, a consciência discriminativa de amplo alcance é o (grande)


mantra protetor da mente, o mantra do grande conhecimento, o mantra
insuperável, o mantra inigualável, o mantra que pacifica totalmente o
sofrimento. Como não é enganador, deve ser reconhecido como
verdadeiro. Na consciência discriminativa de amplo alcance, o mantra
protetor da mente foi proclamado, ‘Tadyatha, (om) gate gate paragate
parasamgate bodhi svaha. Sua natureza verdadeira: foi, foi, foi além, foi
muito além, estado purificado, que assim seja.’ Oh Shariputra, um grande
bodhisattva mahasattva deve treinar-se desta maneira (para comportar-
se de acordo com) na profunda consciência de amplo alcance”

Então, o Mestre Vencedor Que Superou Todos os Outros emergiu da


absorção meditativa e deu seu aval ao bodhisattva mahasattva Arya
Avalokiteshvara: “Excelente, excelente, meu filho espiritual com as
características da família, é assim mesmo. É assim que ele ou ela devem
comportar-se de acordo com a profunda consciência discriminativa de
amplo alcance. É exatamente como você mostrou, para que os
bodhisattvas (arhats e budas) se alegrem.”

Quando o Mestre Vencedor Que Superou Todos os Outros disse isso, o


venerável Filho de Sharadvati, o grande bodhisattva mahasattva, Arya
Avalokiteshvara, e as duas assembléias dos que são dotados de tudo,
assim como todo o mundo — deuses, humanos, anti-deuses e os músicos
celestiais gandharvas —, alegrando-se, louvaram o que foi declarado pelo
Mestre Vencedor Que Superou Todos os Outros.
Uma Lamparina para o Caminho da
Iluminação
“Byang-chub lam-gyi sgron-ma”, sânsc. “Bodhipathapradipam” por
Atisha (Dipamkara Shrijnana ) traduzido por Alexander Berzin de
acordo com as explicações de Tsenzhab Serkong Rinpoche
seguindo o comentário do Quarto Panchen Lama.
Atisha

Prostro-me ao Bodhisattva Jovial Manjushri.

Promessa de Compor

(1) Tendo prostrado-me respeitosamente a todos os Triunfantes dos três


tempos, ao seu Dharma e à comunidade da Sangha, devo acender uma
lamparina para o caminho da iluminação, instado pelo meu excelente
discípulo Jangchub-wo.

(2) Considerando que (os praticantes) podem ter (capacidade) pequena,


intermediária ou suprema, dizemos que são três os tipos de pessoas
espirituais. Portanto, devo escrever sobre essa distinção específica,
deixando claras suas características.

Escopo Inicial

(3) Uma pessoa muito interessada em atingir, de alguma forma, a mera


felicidade do samsara incontrolavelmente recorrente é conhecida como
uma pessoas do escopo espiritual mínimo.

Escopo Intermediário

(4) Uma pessoa que por natureza vira as costas aos prazeres da existência
compulsiva e aos impulsos negativos do karma, e que tem grande
interesse em obter apenas um estado mental pacífico, é conhecida como
uma pessoa do escopo espiritual intermediário.
Bodhichitta Como Entrada para o Escopo Avançado

(5) Uma pessoa que realmente deseja eliminar por completo todo o
sofrimento dos outros, assim como o sofrimento incluído em seu próprio
continuum mental, é uma pessoa com motivação suprema.

(6) Para esses santos seres, que desenvolveram o desejo pela suprema
iluminação, devo explicar os métodos perfeitos ensinados pelos gurus.

Ritual e Conselhos para a Aspiração de Bodhichitta

(7) Ofereça flores, incenso e qualquer posse material para pinturas,


estátuas, e assim por diante de Budas totalmente iluminados, assim como
para estupas e (textos) sagrados (do dharma).

(8) Com a oferenda de sete ramos mencionada na (Prece) da Conduta


Excelente, e com o pensamento de nunca desistir até atingir a realização
última de sua natureza búdica,

(9) Com grande fé nas Três Jóias Supremas e com os joelhos dobrados
tocando o solo e as palmas das mãos unidas, comece tomando uma
direção segura (refúgio) três vezes.

(10) Depois, com uma mente amorosa direcionada a todos os seres


limitados (seres sencientes), olhe para todos esses seres que sofrem com
o nascimento nos três reinos piores, com a morte, transferência e assim
por diante.

(11) Então, com o desejo de que todos os seres errantes (seres


sencientes) estejam livres do sofrimento da dor, do sofrimento e das
causas do sofrimento, gere a bodhichitta empenhada, com a qual nunca
desistirá.

(12) Os benefícios de gerar uma aspiração como essa foram


minuciosamente explicados por Maitreya no Sutra Que se Alastra Como o
Tronco de uma Árvore.

(13) Quando tiver lido esse sutra ou ouvido ensinamentos de seu guru a
esse respeito, e estiver ciente dos inúmeros benefícios da bodhichitta
completa, gere a aspiração (de bodhichitta) repetidamente para deixá-la
estável.

(14) A força positiva (mérito) disso é detalhada no Sutra Solicitado por


Viradatta. Como é resumida em apenas três estrofes, vou citá-las aqui.
(15) “Se a força positiva de bodhichitta tivesse forma, preencheria todo o
espaço e além.

(16) Se alguém enchesse de joias uma quantidade de campos búdicos


equivalente aos grãos de areia do Ganges e as oferecesse aos Guardiões
do Mundo,

(17) Alguém que juntasse suas mãos e direcionasse sua mente à


bodhichitta estaria fazendo uma oferenda mais nobre, pois seria infinita.”

(18) Tento gerado a aspiração de bodhichitta, fortaleça-a sempre com


vários esforços e, para mantê-la em mente nesta e em outras vidas,
proteja também o treinamento explicado nos textos.

Tomando os Votos de Bodhichitta Engajada

(19) Sem os votos que são a natureza da bodhichitta engajada, sua


aspiração pura nunca crescerá. Portanto, com o desejo de progredir rumo
á aspiração pela iluminação completa, tome-os indubitavelmente e com
determinação.

(20) Aqueles que mantém os votos de qualquer das sete classes de


liberação individual têm o pré-requisito ideal para os votos de
bodhisattva; os outros não têm.

(21) No que diz respeito às sete classes de (votos de) liberação individual,
Aquele Que Progride Adequadamente (Tathagata) afirmou que os de
abstinência gloriosa são supremos; estes são os votos dos monges
completamente ordenados.

(22) Através do ritual descrito no “Capítulo de Disciplina Ética” de Os


Estágios do Bodhisattva, tome os votos (de bodhisattva) de um guru
excelente e totalmente qualificado.

(23) Saiba que um guru excelente é alguém habilitado a conduzir a


cerimônia dos votos, e que vive de acordo com os votos, tem confiança
para conferir os votos e possui compaixão.

(25) Escreverei aqui, muito claramente, como Manjushri gerou


bodhichitta quando era o rei Ambaraja, conforme foi explicado no Sutra
do Adorno Para o Campo Búdico de Manjushri.

(26) “Ante os olhos de meus Guardiões, eu gero bodhichitta e, ao convidar


todos os seres errantes, os libertarei dos renascimentos incontroláveis.
(27) De agora até atingir os estado de purificação suprema (iluminação),
nunca agirei com a intenção de machucar, com uma mente raivosa, com
avareza ou com inveja.

(28) Devo viver de acordo com a conduta de abstinência; devo me livrar


da negatividade e do apego/ganância. Devo treinar continuamente, como
fez o Buda, alegrando-me com os votos de disciplina ética.

(29) Não devo me deleitar em atingir a iluminação rapidamente e em


interesse próprio, devo permanecer até o fim, nem que seja para ajudar
um único ser.

(30) Devo limpar todos os reinos, até que se transformem em reinos


incomensuráveis e inconcebíveis, e devo permanecer nas dez direções
para aqueles que chamarem meu nome.

(31) Devo purificar todas as ações de meu corpo e fala, assim como as
ações de minha mente: Nunca devo cometer ações destrutivas”

Praticando a Conduta de um Bodhisattva


Treinamento em Disciplina Ética Elevada
(32) Se treinar-se bem nos três treinamentos de disciplina ética, vivendo
de acordo com os votos que são a natureza da bodhichitta engajada e a
causa para a completa purificação do corpo, fala e mente, seu respeito por
esses três treinamentos aumentará.

(33) Assim, o estado completamente purificado da iluminação surgirá; já


que, ao esforçar-se em manter os votos de bodhisattva, você completará
as redes (acumulações) necessárias para a iluminação total.

Treinamento na Concentração Superior


(34) Todos os Budas afirmaram que o desenvolvimento da percepção
elevada é a causa para completarmos essas redes de força positiva
(mérito) e consciência profunda (sabedoria).

(35) Assim como um pássaro que não desenvolveu completamente as


asas não consegue voar no céu, sem a força da percepção elevada, não
conseguimos atender aos objetivos dos seres limitados.

(36) A força positiva que uma pessoa com percepção elevada ganha em
um dia e uma noite é maior do que a força positiva que uma pessoa sem
percepção elevada ganha em cem vidas.
(37) Portanto, se deseja completar rapidamente as redes para a
iluminação total, se esforce para conseguir uma percepção elevada. Esse
não é um trabalho para preguiçosos.

(38) Alguém que não tenha atingido uma mente tranquila e assentada
(quietude mental) não conseguirá obter percepção elevada. Portanto, se
esforce repetidamente para atingir uma mente tranquila e assentada.

(39) No entanto, se as condições que geram uma mente tranquila e


assentada forem fracas, mesmo que medite com grande esforço por mil
anos, não atingirá a concentração unifocada.

(41) Assim, mantenha as condições mencionados no capítulo Uma Rede


Para a Concentração Unifocada. E mantenha sua mente (focada) em algo
construtivo, ou seja, um dos objetos apropriados para o foco.

(41) Quando um yogui atinge um mente tranquila e assentada, ele ou ela


também atinge a percepção elevada

Treinando em Consciência Discriminativa Elevada


No entanto, se você falhou em cultivar a consciência discriminativa de
amplo alcance (perfeição da sabedoria), não conseguirá acabar com os
obscurecimentos.

(42) Portanto, para se livrar de todos os obscurecimentos que dizem


respeito às emoções perturbadoras e aos fenômenos conhecidos, cultive
sempre a consciência discriminativa de amplo alcance com método
(meios hábeis).

(43) Foi dito que consciência discriminativa (sabedoria) sem método


(meios hábeis), e método sem consciência discriminativa é considerado
ainda estar na escravidão. Portanto, não desista de nenhum dos dois.

(44) Para eliminar dúvidas sobre o que é a consciência discriminativa e o


que é método, esclarecerei a diferença entre consciência discriminativa e
método.

(45) O Triunfante explicou que, com exceção da consciência


discriminativa de amplo alcance (perfeição da sabedoria), todas as redes
de fatores construtivos (práticas virtuosas), como a generosidade de
amplo alcance (perfeição da generosidade) e assim por diante, são
métodos.
(46) É pelo poder do cultivo dos métodos que alguém que possui
bodhichitta, pode rapidamente atingir a iluminação meditando
cuidadosamente na consciência discriminativa. A iluminação não surge de
meditarmos apenas na ausência de uma identidade inerente.

(47) A consciência da vacuidade da existência inerente, que compreende


que os agregados, as fontes cognitivas e os estimuladores cognitivos não
surgem inerentemente, foi descrita como consciência discriminativa.

(48) Se as coisas existissem inerentemente (quando do surgimento de


suas causas), não seria lógico termos de produzi-las. Se fossem
(inerentemente) não existentes, não seria possível produzi-las, como uma
flor de espaço. Uma vez que esses dois erros são absurdos, as duas outras
(hipóteses) (ser inerentemente existente e não-existentes ao mesmo
tempo) também são impossíveis.

(49) Fenômenos não surgem de si mesmos, nem de algo (inerentemente)


diferente de si mesmos, nem das duas opções conjuntamente. E também
não surgem de nenhuma causa. Por isso, é da natureza de todas as coisas
não possuir uma existência inerente.

(50) Além disso, quando analisamos todas as coisas como sendo


(inerentemente) uma ou muitas, e como não conseguimos encontrar algo
que seja existente por natureza, podemos estar certos da não-existência
da existência inerente.

(51) A linha de raciocínio de As Setenta Estrofes Sobre Vacuidade, de O


Texto Raiz do Caminho do Meio e assim por diante, também explica como
a natureza dos fenômenos é a vacuidade.

(52) Para não deixar este texto muito longo, não elaborei muito esse
assunto. O que expliquei foi simplesmente para o propósito de meditação
em um sistema comprovado de princípios filosóficos.

(53) Assim, uma vez que não conseguimos encontrar a existência


inerente das coisas, sem exceção, a meditação na ausência de existência
inerente é a meditação na consciência discriminativa.

(54) A consciência discriminativa nunca encontra existência inerente nos


fenômenos; é dito que o mesmo se a aplica à existência da própria
consciência discriminativa. Assim, medite na vacuidade de forma não
conceitual.

(55) Essa existência compulsiva que vem dos pensamentos conceituais


(de existência inerente) tem uma natureza verdadeira (meramente
fabricada) por esses pensamentos conceituais. Portanto, o estado livre de
todos os pensamentos conceituais, sem exceção, é o estado supremo de
Nirvana Além do Sofrimento.

(56) O Mestre Vencedor Que a Todos Superou (Bhagavan) disse, “O


pensamento conceitual (de existência inerente) é a grande ignorância,
aquilo que nos faz cair no oceano do ciclo incontrolável de existência. Ao
permanecermos em concentração unifocada desprovida de pensamentos
conceituais (de existência inerente), ficará claro que (a mente) sem essas
concepções é como o espaço”

(57) Em A Fórmula Dharani para Engajar-se na Não Conceitualidade, ele


disse: “Se os filhos do Triunfante, envolvidos nesse dharma puro,
contemplarem esse estado livre de pensamentos conceituais (de
existência inerente), transcenderão os pensamentos conceituais que são
tão difíceis de serem superados e gradualmente atingirão um estado livre
de tais concepções”

(58) Quando você tiver adquirido certeza, através dessas citações e linhas
de raciocínio, de que todas as coisas são desprovidas de existência
inerente e de um surgimento (inerentemente existente), medite em um
estado de pensamentos não conceituais (de existência inerente)

Manifestando o Resultado

(59) Tendo meditado assim na realidade e tendo gradualmente atingido o


(estágio do) “calor” e assim por diante, você atingirá (o estágio)
“extremamente jubiloso” e assim por diante, e a iluminação de um buda
não estará muito distante.

(60) No entanto, se através de ações como pacificação, estimulação e


assim por diante, geradas pela força de mantras, das oito grandes
realizações e de outras realizações, como a realização do vaso excelente,

(61) E, se através da consciência bem aventurada, você desejar completar


as redes que levam à iluminação, e também praticar o mantra secreto
conforme descrito nas classes kriya, charya e assim por diante do tantra,

(62) Para que lhe seja conferida a iniciação do (mestre) vajra, agrade seu
santo guru respeitosamente servindo-o, dando-lhe substâncias preciosas
e assim por diante e fazendo o que ele diz.

(63) Por ter agradado seu guru, ao ser-lhe conferida a iniciação completa
do mestre (vajra) você se purificará completamente de todas as forças
negativas e sua natureza será a de alguém que tem o suficiente para
alcançar as realizações verdadeiras.

(64) Por ter sido estritamente proibido em O Grande Tantra do Buda


Primordial, a iniciação secreta e da consciência discriminativa não devem
ser recebidas (de forma literal) por aqueles que praticam abstenção.

(65) Se você tomar essas iniciações enquanto vive de acordo com a


prática asceta de abstinência, estará cometendo uma ação proibida e,
assim, seu voto de ascetismo se degenerará.

(66) Em outras palavras, como praticante da conduta domada, você cairia


na desgraça da derrota e, considerando-se que certamente cairia em um
dos piores estados de renascimento, nunca conseguiria uma realização.

(67) No entanto, se tiver recebido (de forma não literal) a iniciação


conferida pelo mestre (vajra) e estiver ciente da realidade, não haverá
problemas em suas ações de ouvir todos os tantras, explicá-los, fazer
pujas de fogo, pujas de oferendas e assim por diante.

Eu, o Ancião Shri Dimpakara, tendo visto (tudo ser) explicado nos
ensinamentos de dharma dos sutras e assim por diante, compus esse
resumo da explicação do caminho para a iluminação à pedido de
Jangchub-wo.

Isso conclui o texto A Lamparina para o Caminho da Iluminação composto


pelo Grande Mestre Dipamkara Shrijanana. Este texto foi traduzido,
editado e finalizado pelo próprio abade indiano (Dipamkara Shrijnana) e
pelo tradutor tibetano, o monge Geway-lodro. Este texto do dharma foi
composto no Templo Toling em Zhang-zhung.

“Byang-chub lam-gyi sgron-ma”, Skt. “Bodhipathapradipam” por Atisha


(Dipamkara Shrijnana ) traduzido por Alexander Berzin de acordo com as
explicações de Tsenzhab Serkong Rinpoche seguindo o comentário do
Quarto Panchen Lama.
A Prece dos Sete Ramos
Shantideva

Tomo direção segura, até meu purificado estado, nos Budas, Dharma e
Suprema Assembleia. Pela força positiva da minha generosidade e coisas
mais, que eu possa alcançar a Budeidade para ajudar aqueles que
vagueiam.

Que em todas as direções a superfície da terra possa ser pura, sem


nenhuma pedra que seja, tão suave como a palma da mão duma criança,
naturalmente brilhante, tal como uma esmeralda.

Que os objetos de oferenda, divinos e mundanos, realmente oferecidos ou


simplesmente visualisados como inigualáveis nuvens de oferendas de
Samantabhadra, possam preencher totalmente a esfera do espaço.

(1) Prostro-me perante os Budas que agraciaram os três tempos, ao


Dharma e à Suprema Assembleia, reverenciando com corpos tão
numerosos quanto os átomos do mundo.

(2) Assim como Manjushri e outros fizeram oferendas aos Triunfantes,


faço também oferendas aos que Assim Progrediram, nossos Guardiões, e
aos sua prôgenie espiritual.

(3) Desde o samsara sem início, nesta e noutras vidas, tenho


inadvertidamente cometido atos destrutivos, ou levado outros a agirem
da mesma forma, oprimido pela confusão da ingenuidade. Tenho até
regojizado com tudo isso. Vendo esses erros, eu abertamente os declaro à
vos, nossos Guardiões, do fundo do coração.

(4) Com alegria, me regojizo do oceano de força positiva do


desenvolvimento de bodhichitta, desejando levar felicidade a todos os
seres limitados e trabalhando para bem de todos.

(5) Com mãos pressionadas juntas, peço aos Budas de todas as direções
que acendam a luz do Dharma àqueles que estão tateando na escuridão
do sofrimento.

(6) Triunfantes, desejoso eu de passar além da dor, vos suplico com as


mãos em prece: estes seres vagueiam cegos sem ninguém para guiá-los;
por favor, vivam por eras incontáveis.
(7) Pela força positiva acumulada por tudo o que fiz dessa maneira, que
todos os sofrimentos de todos os seres limitados possam desaparecer.

Ao dirigir e oferecer aos campos búdicos esta base, ungida com água
aromática, espargida com flores; e ornada com o Monte Meru, quatro
ilhas, um sol e uma lua, que todos aqueles que vagueiam possam ser
levados às terras puras.
Om idam guru ratna mandala-kam nir-yatayami.
A vós, preciosos gurus, eu vos envio este mandala.
Treinamento da Mente em Sete
Pontos
Edição Comentada por Togme Zangpo
Geshe Chekawa

Prostrações à grande compaixão.

Ponto Um: As Preliminares

Primeiro treine nas preliminares (renascimento humano precioso, morte


e impermanência, causas e efeitos de nosso comportamento e as
desvantagens do samsara).

Ponto Dois: O Treinamento em Bodhichitta


Treinando em Bodhichitta Profunda (Absoluta)
Pondere o fato de que os fenômenos são como sonhos. Examine a
natureza básica da consciência que não tem surgimento. A força opositora
(antídoto) libera-se em seu próprio lugar. A natureza essencial do
caminho é estabelecer-se em um estado que a tudo engloba. Entre
sessões, aja como uma pessoa ilusória.

Treinando em Bodhichitta Convencional


Treine em dar e receber de forma alternada, seguindo o fluxo da
respiração.

[No que diz respeito] aos três objetos (seres que consideramos atraentes,
repulsivos ou neutros), [tome para si] as três atitudes venenosas (desejo,
aversão e ignorância) e [dê ao outro] as três raízes do que é construtivo
(desapego, imperturbabilidade e sabedoria), [ao mesmo tempo em que]
treina com palavras em todos os caminhos comportamentais.

Quanto à ordem, comece tomando de si mesmo.

Ponto Três: Transformando Circunstâncias Adversas em Caminho


para a Iluminação
Transformando-se Através da Reflexão Sobre o Comportamento
Quando as pessoas e o meio ambiente à sua volta estiverem cheios de
energia negativa, transforme as condições adversas em caminho para a
iluminação, banindo [a atitude auto-centrada], que é a culpada por tudo, e
meditando com grande afetuosidade sobre os outros seres.

Transformando-se Através da Reflexão Sobre a Visão


A vacuidade, [cuja compreensão vem] de meditarmos sobre as aparências
ilusórias como sendo os quatro corpos dos budas, é o protetor
incomparável.

Transformando-se Através das Ações


O método supremo implica em quatro ações (1. gerar força positiva
(mérito), 2. purificar-se das forças negativas, 3. fazer oferendas aos
espíritos perigosos e 4. solicitar a influência iluminada dos protetores do
dharma.) [Portanto,] o que quer que encontre, use imediatamente em sua
meditação.

Ponto Quatro: Resumo da Prática de uma Vida


Durante a Vida
Resumindo, a essências dos ensinamentos quintessenciais é aplicar as
cinco forças (1. intenção, 2. semente branca, 3. hábito, 4. eliminar tudo de
uma vez e 5. oração).

Ao Morrer
O ensinamento quintessencial Mahayana para a transferência da mente é
as cinco forças, ao mesmo tempo em que se dá importância ao caminho
de saída.

Ponto Cinco: Os Critérios de Avaliação do Treinamento de Atitude

Se toda sua prática do dharma resumir-se a apenas uma intenção


(eliminar o auto-apreço).

Se, entre as duas testemunhas (você e os outros), considerar-se a


principal (ao verificar se: 1. é um ser com um grande coração, que pensa
principalmente nos outros, 2. é um grande ser treinado em
comportamentos construtivos, 3. é um grande ser, capaz de suportar
dificuldades e vencer negatividades, 4. é disciplinado para manter seu
votos, 5. é um grande yogui, amarrado ao ideal de bodhichitta).

Se sempre puder confiar que sua mente só tem felicidade.

Se, mesmo quando estiver distraído, for capaz [de não ter auto-apreço],
estará treinado.
Etapa Seis: Dezoito Práticas para Fortalecer a Conexão

(1-3) Treine sempre nos três pontos gerais: (Não contradiga o que
prometeu. Não se comporte de forma ultrajante. Não seja parcial).

(4) Transforme suas intenções, mas permaneça normal.

(5) Não comente as limitações ou o lado ruim [dos outros].

(6) Não pense nada sobre as [falhas] alheias.

(7) Livre-se primeiro de sua maior emoção perturbadora.

(8) Abandone a esperança de ser recompensado

(9) Não coma comida venenosa.

(10) Não considere (seus pensamentos negativos) um bom lugar para


ficar.

(11) Não busque retaliação.

(12) Não arme emboscadas.

(13) Não constranja [os outros] apontando seus defeitos em público.

(14) Não transfira a carga de um dzo para um boi.

(15) Não transforme tudo em competição.

(16) Não inverta o amuleto.

(17) Não transforme um deus em um demônio.

(18) Não faça do sofrimento [alheio] um degrau para sua felicidade.

Ponto Sete: Vinte e Dois Pontos para Treinar

(1) Faça todos os yogas (práticas) com apenas uma [intenção: ser capaz
de ajudar melhor os outros].

(2) Acabe com todas as distorções utilizando apenas uma [prática: dar e
receber]
(3) No começo e no final, tome as duas ações (a motivação de ser mais
capaz de ajudar os outros e a dedicação da força positiva)

(4) Qualquer das duas coisas que aconteça (coisas boas ou coisas ruins),
aja com paciência.

(5) Proteja os dois (os comprometimentos espirituais em geral e,


especificamente, estas práticas e pontos de treinamentos), mesmo que
isso lhe custe a vida.

(6) Treine nas três coisas difíceis (estar consciente das forças opositoras
(antídotos), ter presença mental para aplicá-las, ter presença mental para
mantê-las).

(7) Obtenha as três principais causas [necessárias para se praticar esses


pontos: encontrar um professor espiritual que os ensine, aplicar os
ensinamentos, ter circunstâncias favoráveis].

(8) Medite nas três coisas que não declinam (a confiança e apreciação dos
professores espirituais, vontade de praticar seus ensinamentos,
estabilidade para manter essas práticas e treinamento).

(9) Possua os três inseparáveis (meu corpo, fala e mente inseparáveis do


ato de ajudar os outros).

(10) Aja com pureza, seja imparcial em relação aos objetos.

(11) Aprecie [aplicar] o treinamento amplo e profundo a tudo.

(12) Sempre medite naqueles que considera [próximos].

(13) Não dependa de outras condições.

(14) Pratique, principalmente agora.

(15) Não inverta a compreensão.

(16) Não seja intermitente.

(17) Treine resolutamente.

(18) Liberte-se através da investigação e escrutínio.

(19) Não medite com uma sensação de perda.

(20) Não se deixe limita pela hipersensibilidade.


(21) Não aja apenas por um instante.

(22) Não deseje que lhe agradeçam.

Versos de Conclusão

[Assim,] transforme em um caminho para a iluminação esse [tempo] em


que as cinco degenerescências (do tempo de vida, emoções
perturbadoras, visão, seres e tempo) se alastram.

A essência de néctar da quintessência dos ensinamentos é a linhagem de


Serlingpa.

Devido ao despertar das reminiscências kármicas de ter treinado


anteriormente, minha admiração [por essa prática] é imensa. Por isso,
ignorando sofrimentos e insultos, solicitei as diretrizes para domar meu
auto-apego. Agora, mesmo que eu morra, morrerei sem arrependimentos.

Leia o comentário de Dr. Berzin sobre este texto.


Os Três Principais Aspectos do
Caminho
Tsongkhapa

Prostro-me aos meus nobres e perfeitos lamas.

(1) Devo tentar explicar, da melhor forma possível, o significado essencial


dos pronunciamentos escriturais dos Triunfantes, o caminho aclamado
pelos santos filhos dos Triunfantes, a trilha para os afortunados que
desejam a liberação.

(2) Oh afortunado cuja mente se confia ao caminho que agrada os


Triunfantes, que não se apega aos prazeres da existência compulsiva e
anseia em dar um significado à sua vida de folgas e oportunidades
(fatores enriquecedores), escute com uma [mente] clara.

(3) Ter forte interesse pelos prazeres do oceano da existência compulsiva


e não ter renúncia pura não constitui um método para se [alcançar] a paz
[da liberação] — de fato, ao ansiar pelos efeitos das situações
compulsivas, os seres sencientes ficam totalmente presos — portanto,
primeiro lute [para ter] renúncia.

(4) Acostume sua mente [ao fato de que] não há tempo a perder, já que
uma vida com folgas e oportunidades é muito difícil de se obter, e livre-se
da obsessão com as aparências desta vida. Pense muitas vezes sobre os
problemas dos renascimentos recorrentes e sobre o fato de que [as leis
das] causas e efeitos dos comportamentos nunca falham, e livre-se da
obsessão com as aparências das [vidas] futuras.

(5) Acostumando-se desta maneira, quando não mais gerar, nem por um
instante, uma mente que aspira os esplendores do samsara, e [quando
tiver] desenvolvido a atitude de estar dia e noite fortemente interessado
na liberação, [então] você terá desenvolvido renúncia.

(6) Mesmo tendo desenvolvido renúncia, se não for mantida com o


desenvolvimento do ideal de bodhichitta, ela não se tornará uma causa
para os esplendores e o êxtase do estado purificado inigualável [da
iluminação], [portanto,] aqueles que têm bom senso desenvolvem o
supremo ideal de bodhichitta.

(7) Carregado pelas correntes dos quatro rios violentos, amarrado pelos
grilhões do karma, que são tão difíceis de desamarrar, jogado na malha de
ferro do apego à identidades verdadeiras, encoberto pelas trevas da
escuridão da ignorância,

(8) Implacavelmente atormentado pelos três tipos de sofrimento, vida


após vida na existência compulsiva sem limites — pensando na condição
de suas mães que se encontram em uma situação como essa, desenvolva o
supremo ideal de bodhichitta

(9) Mesmo tendo criado o hábito da renúncia e do ideal de bodhichitta, se


não tiver a consciência discriminativa que percebe a natureza da
realidade, não conseguirá cortar a raiz de sua existência compulsiva.
Portanto, se esforce nos métodos para realizar a originação dependente.

(10) Qualquer um que tenha visto que [as leis] de causa e efeito de todos
os fenômenos do samsara e nirvana nunca falham, e que tenha visto os
suportes para suas cognições [de existência inerente] desaparecerem,
quaisquer que sejam, entrou no caminho que agrada aos budas.

(11) Aparências são originações dependentes não-falaciosas (válidas) e a


vacuidade é livre [de formas impossíveis de existência]. Enquanto você
tiver esses dois entendimentos separadamente, ainda não realizou o
desígnio dos Hábeis (budas).

(12) Mas, quando [essas duas realizações] ocorrerem


concomitantemente, e não alternadamente, e sua convicção, que vem de
[ver os fenômenos como] meras originações dependentes não-falaciosas,
fizer com que todas as suas formas de tomar objetos [como sendo
inerentemente existentes] desmoronem, seu discernimento da visão
correta estará completo.

(13) Além disso, quando perceber como as aparências descartam o


extremo da existência e a vacuidade descarta o extremo da não existência,
e a vacuidade se manifestar como causa e efeito, nunca mais será
capturado por visões que se agarram a extremos.

(14) Quando tiver entendido os pontos desses três aspectos principais do


caminho, como eles são, confie-se à solidão e, gerando o poder da
perseverança jubilosa, realize rapidamente, meu filho, seu objetivo final.

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