Você está na página 1de 2

O Espírito Tradicional

Texto de Shunryu Suzuki, extraído do livro


"Mente ZEN, mente de principiante"

"Se você está procurando atingir a iluminação, está criando carma e sendo levado
por ele. Está perdendo tempo sentado em sua almofada preta".

As coisas mais importantes em nossa prática são a postura física e a maneira de


respirar. O que nos interessa não é tanto uma profunda compreensão do budismo.
Como filosofia, o budismo é um sistema de pensamento muito profundo, amplo e
sólido, mas o Zen não se preocupa com o entendimento filosófico. Damos ênfase à
prática. Devemos entender por que nossa postura física e o exercício de respiração
têm tanta importância. Em lugar de um profundo entendimento do que foi
ensinado, necessitamos de uma forte confiança no ensinamento que nos diz que,
originalmente, temos a natureza de Buda. Nossa prática baseia-se nesta fé.

Antes de Bodhidharma ir para a China, quase todo o vocabulário Zen já estava em


uso. Havia, por exemplo, o termo correspondente a "iluminação súbita".
"Iluminação súbita" não é uma tradução adequada, mas vou tentar usá-la. A
iluminação nos chega de repente. Esta é a verdadeira iluminação. Antes de
Bodhidharma, acreditava-se que depois de uma longa preparação viria uma súbita
iluminação. Zen era então uma espécie de treino para atingir a iluminação. Na
verdade, muitas pessoas hoje praticam zazen com essa idéia. Mas esta não é a
compreensão tradicional do Zen. O critério transmitido desde o Buda até nossos
dias é que quando você começa a praticar zazen já há iluminação - mesmo sem
qualquer preparo. Pratique ou não zazen, você tem a natureza de Buda. E porque
você a tem é que há iluminação na sua prática. O que enfatizamos não é o estado
que atingimos, mas a vigorosa confiança que temos na nossa natureza original e na
sinceridade de nossa prática. Devemos praticar o Zen com a mesma sinceridade do
Buda. Se temos originalmente a natureza de Buda, a razão pela qual praticamos
zazen é que devemos comportar-nos como o Buda. Transmitir nosso caminho é
transmitir nosso espírito búdico. Assim, temos que harmonizar nosso espírito, nossa
postura física e nossa atividade, com o caminho tradicional. Claro que você pode
atingir um certo estado, mas o espírito de sua prática não deve estar fundado em
uma idéia egocêntrica.

De acordo com o entendimento budista tradicional, a natureza humana carece de


ego. Quando não temos idéia de ego, temos a mesma visão de vida do Buda.
Nossas idéias egocêntricas são ilusões que encobrem nossa natureza búdica.
Sempre as estamos criando, sempre as estamos seguindo. E ao repetir esse
processo sem cessar, nossa vida fica completamente tomada por idéias
egocêntricas. E a chamada vida cármica ou, s implesmente, carma. A vida budista
não deve ser vida cármica.

O propósito de nossa prática é interceptar o rodopio da nossa mente cármica que


gira como um fuso. Se você está procurando atingir a iluminação, isto faz parte do
carma; você está criando carma e sendo levado por ele, e está perdendo seu tempo
sentado em sua almofada preta*. De acordo com a compreensão de Bodhidharma,
a prática fundada em qualquer idéia de ganho não é mais que uma repetição de seu
carma. Esquecendo-se deste ponto, muitos mestres Zen posteriores enfatizaram a
obtenção de certos estados através da prática.

Mais importante que qualquer estado que você venha a atingir é sua sinceridade,
seu esforço correto. O esforço correto deve basear-se em uma verdadeira
compreensão de nossa prática tradicional. Uma vez entendida esta questão, você
compreenderá como é importante manter sua postura correta. Quando isto não é
entendido, a postura e o modo de respirar são apenas meios de procurar a
iluminação. Se esta for a sua atitude, melhor seria tomar alguma droga em vez de
sentar-se com as pernas cruzadas! Se nossa prática é apenas um meio de tentar
alcançar a iluminação, não há como alcançá-la! Perdemos o significado do caminho
que conduz à meta. Porém, quando acreditamos firmemente em nosso caminho, já
atingimos a iluminação. Quando você acredita no seu caminho, a iluminação está
aí. Mas, quando você não acredita no significado da prática que está fazendo neste
momento, nada pode ser feito. Está às voltas com o objetivo, com a sua mente de
macaco. Está sempre procurando por algo sem saber o que está fazendo. Se você
quer ver uma coisa, deve abrir os olhos. Se você não entende o Zen de
Bodhidharma é porque está procurando olhar para uma coisa com os olhos
fechados. Não é que menosprezemos a idéia de alcançar a iluminação; mas o que
consideramos mais importante é este momento, e não algum dia no futuro. Temos
de fazer nosso esforço neste momento. Isto é o que há de mais importante em
nossa prática.

Antes de Bodhidharma, o estudo dos ensinamentos do Buda resultou numa filosofia


budista profunda e elevada, e as pessoas procuravam alcançar esses altos ideais.
Isso foi um erro. Bodhidharma descobriu que criar algum ideal profundo e elevado
e depois tentar atingi-lo pela prática do zazen é um engano. Se nosso zazen for
isso, não difere em nada de nossa atividade comum ou da nossa mente de macaco.
Pode parecer uma atividade muito sublime e sagrada mas, na verdade, não há
diferença entre isso e a nossa mente de macaco. Eis o que enfatizou Bodhidharma.

Antes de o Buda atingir a iluminação, ele fez todos os esforços possíveis. Por fim,
alcançou uma plena compreensão dos vários caminhos. Você pode pensar que o
Buda tenha atingido um estado em que estivesse livre da existência cármica, mas
não é assim. O Buda contou muitas histórias sobre suas experiências depois que
alcançou a iluminação. Ele não era em nada diferente de nós. Quando seu país
entrou em guerra com um poderoso vizinho, ele falou sobre seu próprio carma aos
seus discípulos; de como sofreu quando viu que seu país seria conquistado pelo rei
vizinho. Se ele fosse alguém que tivesse atingido a iluminação isenta de carma, não
haveria razão para tal sofrimento. Mesmo depois de atingir a iluminação, ele
continuou com o mesmo esforço que estamos fazendo. Mas sua visão da vida não
era passível de ser abalada; era firme e ele ponderava a respeito da vida de todos,
inclusive a dele próprio. Observava a si próprio e aos outros com os mesmos olhos
com que observava as pedras, as plantas ou qualquer outra coisa. Tinha uma
compreensão muito científica. Essa era sua forma de viver depois que alcançou a
iluminação.

Uma vez que tenhamos o espírito tradicional de acompanhar o curso da realidade


tal como é, e que pratiquemos nosso caminho sem nenhuma idéia egocêntrica,
então sim, obteremos a iluminação em seu verdadeiro sentido. E ao entender isto,
empenharemos o melhor de nossos esforços a cada momento. Esse é o verdadeiro
entendimento do budismo. Portanto, nosso entendimento não é apenas intelectual.
Nosso entendimento é, ao mesmo tempo, sua própria expressão: é a própria
prática. Não é por meio de leituras ou contemplação filosófica que podemos
entender o que é o budismo, mas unicamente através da prática, da prática
verdadeira. Devemos praticar zazen constantemente, com firme confiança na nossa
natureza verdadeira, quebrando a corrente de atividade cármica e encontrando
nosso lugar no mundo da prática verdadeira.

Você também pode gostar