Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1 INTRODUÇÃO
Ao final de 2008, a crise financeira iniciada no ano anterior nos Estados Unidos
espalhou-se pelo mundo. Vários países da Europa ocidental, na verdade, já vi-
nham sendo afetados pelo colapso do mercado de hipotecas subprime nos Estados
Unidos desde o ano anterior. A quebra do banco de investimento Lehman Bro-
thers, no entanto, gerou ondas de choque que atingiram um largo conjunto de
economias desenvolvidas e emergentes, inclusive o Brasil.
Neste contexto nasceu o Grupo dos 20, ou G20, como é conhecido atualmen-
te, já que o agrupamento anterior que respondia por esta sigla dificilmente seria re-
conhecido no de agora.1 O “novo” G20 nasceu, antes de tudo, da perplexidade com
o agravamento contínuo e acelerado de uma crise que poucos acreditavam pudesse
crescer além dos limites do setor inicialmente atingido, o financiamento habitacional
americano a famílias de baixa renda. Esta crise “setorial” era conhecida pelo menos
desde o primeiro semestre de 2007, mas autoridades públicas americanas se reveza-
ram na função de tranquilizar a população de seu país, e do mundo, com relação à
possibilidade de contágio para a economia como um todo. Os muitos relatos deta-
lhados da evolução da crise das hipotecas subprime mostram que até o momento no
qual se determinou que o banco Lehman Brothers deveria falir, sem receber qual-
quer ajuda do governo americano, o secretário do Tesouro norte-americano Henry
Paulson ainda acreditava que a crise poderia ser contida. Na verdade, as autoridades
americanas acreditavam que a falência deste banco de investimentos ajudaria a con-
ter a crise, mostrando a firmeza da decisão política de deixar quebrar instituições
financeiras, que se acreditava não serem sistemicamente importantes, que estivessem
envolvidas na generalização de práticas de negócios duvidosas. A firme recusa em
resgatar estas instituições sinalizaria a não contemporização com o risco moral.
A crise financeira, porém, não foi contida. Ao contrário, ela se alastrou, se tor-
nou mais violenta e transformou-se, finalmente, numa crise econômica, ao racionar
a oferta de crédito nos Estados Unidos e na Europa, elevar juros e aumentar a volati-
lidade dos mercados monetários internacionais, causando uma forte diminuição do
comércio internacional. Ao tornar-se global, tornou-se evidente a necessidade de de-
finição de um fórum de coordenação de políticas econômicas de controle de danos
e combate à crise, de modo a evitar que países buscassem aquelas saídas individu-
ais que ajudaram a tornar a crise dos anos 1930 em uma catástrofe internacional.
Um fórum como esse, na verdade, já existia, o G8, o grupo das economias mais
avançadas do mundo.2 O G8 obviamente não estava à altura deste desafio. Primei-
ro, porque as reuniões do G8 há muito haviam se transformado no que se conhece
como photo opportunity no mundo anglo-saxão. Reuniões de líderes dos países mais
avançados eram pouco mais do que iniciativas de relações públicas em que mui-
tas promessas eram feitas e praticamente nenhum resultado real era perseguido, e
muito menos alcançado. Em segundo lugar, os países que compõem o G8 eram os
causadores da crise e mostravam-se completamente paralisados e perplexos com o
desmoronamento de suas economias, depois de tantos anos a fazer exortações a paí-
ses em desenvolvimento sobre como governar melhor seus países. Finalmente, o país
mais importante do G8, e da economia mundial, os Estados Unidos, vivia situação
particularmente dramática. Não apenas era ali que a crise mostrava sua face mais
violenta, mas também 2008 era o ano em que um presidente em fim de mandato,
e com prestígio popular em rápido declínio, não demonstrava nem compreender,
nem ter poder de iniciativa para definir e adotar as políticas anticrise necessárias.
O caráter global que a crise assumiu no segundo semestre de 2008 pedia soluções
globais. Os líderes de países desenvolvidos reunidos no G8 não se mostraram à altura
do desafio de formular essas soluções. Os fóruns internacionais, por outro lado, como o
Fundo Monetário Internacional (FMI) ou a Organização das Nações Unidas (ONU),
também não pareciam promissores, pelo grande número de membros com direito a
voz, o que se acreditava que poderia inviabilizar a identificação e a discussão de soluções
eficazes para enfrentar a crise. É nesse contexto que o G20, um agrupamento de repre-
sentantes de países criado em 1999, surgiu como uma tábua de salvação.
Para que o G20 pudesse responder ao desafio que lhe foi colocado, no
entanto, sua natureza, escopo e horizontes tiveram de ser dramaticamen-
te alterados. Em uma primeira avaliação, a ativação do G20 parece ter sido
uma decisão acertada, pelo menos do ponto de vista de articulação de políti-
cas de combate à crise. É preciso, porém, qualificar essa avaliação com algu-
ma cautela, já que o consenso em torno da necessidade de adoção de políticas
�������������������������������������������������������������������������������������������������������������
. Como os outros grupos de semelhante natureza, incluindo-se o G20, o número de participantes não é rigorosa-
mente indicado pela sua denominação. Das reuniões do G20, por exemplo, participa, embora não seja membro, a
Espanha. O G7 tornou-se G8 pela inclusão da Rússia, menos por sua importância econômica do que pelo seu poderio
militar, herdado da extinta URSS.
O G20 e a Reforma do Sistema Financeiro 17
2 A CRIAÇÃO DO G20
Pelo acordo de Bretton Woods, assinado em 1944, os países signatários concor-
davam em manter as paridades cambiais declaradas no início de sua vigência,
aceitando mudá-las apenas quando houvesse a aprovação das alterações preten-
didas pelos cossignatários. Foi criada uma instituição específica para monitorar
o funcionamento do regime cambial (conhecido como de taxas fixas, mas rea-
justáveis) e examinar pleitos para alteração das taxas de câmbio quando um país
pudesse mostrar que mudanças fundamentais haviam ocorrido em sua economia
e as quais exigissem uma redefinição do valor externo de sua moeda.
Implicitamente, a manutenção de um sistema de câmbio fixo traz consi-
go a demanda por algum grau de coordenação de políticas macroeconômicas.
No entanto, por várias razões, o acordo reconheceu a autonomia de cada país
na escolha de suas políticas econômicas domésticas. Contudo, seria possível ao
FMI examinar estas políticas e, eventualmente, aconselhar a sua alteração, mas
sem qualquer poder efetivo de compulsão. O FMI só teria este poder, de acordo
com os desenvolvimentos na sua forma de operação nos anos 1950, quando um
país em dificuldade em seu balanço de pagamentos tivesse de recorrer a ele para
obter ajuda financeira. Nesses casos, o FMI assumia, informal mas efetivamente,
a função de impor políticas “corretas” aos países que a ele apelavam por meio das
condicionalidades, medidas de política que o país se comprometia a implementar
como garantia do empréstimo.3 Na ausência de planos de ajuste, o FMI teria, na
melhor das hipóteses, a força moral de representação da comunidade, na prática
3. Conferir Carvalho (2009), para uma discussão da evolução das condicionalidades exigidas pelo FMI na concessão
de sua ajuda financeira.
18 As Transformações no Sistema Financeiro Internacional
4. Houve um reconhecimento implícito do próprio FMI de que sua atuação durante a direção de Michel Camdessus foi
injustificadamente excessiva no fato de que os diretores-gerentes que o sucederam, Horst Köhler, Rodrigo de Rato y
Figaredo e Dominique Strauss-Kahn, todos defenderam a redução das condicionalidades, especialmente as chamadas
“condicionalidades estruturais”, que buscavam forçar a mudança na estrutura econômica dos países em crise na
direção da acomodação de interesses privados sediados nos países mais avançados.
5. Certamente o mais duro dos críticos do FMI foi Joseph Stiglitz (2002). Um sumário das críticas mais frequentes na
literatura é encontrado em Carvalho (2000/2001).
6. Isto foi admitido por Larry Summers, à época secretário do Tesouro dos Estados Unidos (Summers, 1998). Uma
publicação insuspeita, como a revista The Economist, em sua edição de 18/9/1999, afirmou: “nos últimos anos, o FMI e
o Banco [Mundial] foram sequestrados por seus acionistas majoritários para fins abertamente políticos. Seja no México
em 1994, na Ásia em 1997 ou na Rússia através dos anos 1990, as instituições se tornaram a ferramenta mais explícita
da política externa ocidental, e particularmente americana”.
O G20 e a Reforma do Sistema Financeiro 21
7. Por outro lado, a proposição japonesa de criação de um fundo monetário asiático foi abandonada por causa da
forte oposição do governo norte-americano e do próprio FMI. O tratado de Chiang Mai acabou por criar facilidades
de financiamento para os países da região, desde que os países que solicitassem ajuda concordem com as condicio-
nalidades definidas pelo FMI.
22 As Transformações no Sistema Financeiro Internacional
não falar da completa falta de iniciativa. Era preciso, no entanto, dar uma resposta
efetiva ao agravamento da crise, ou pelo menos dar a aparência de que alguma
resposta estava sendo encaminhada. Foi neste contexto que o G20 não apenas foi
lembrado, mas também foi quando mudou sua natureza e seu raio de ação. Por
que o G20? Possivelmente porque o grupo já existia, o que permitiria poupar os
esforços e as tensões políticas na convocação de um novo fórum, exigindo a defi-
nição de número máximo de participantes de modo a manter a funcionalidade de
seus encontros, a determinação de critérios de inclusão e exclusão de membros etc.
Embora a composição do G20 não seja necessariamente apropriada para lidar com
a agenda que lhe foi atribuída, era de qualquer modo possível argumentar que a sua
representatividade em termos tanto de produto quanto de população lhe conferiria
algum grau de legitimidade.
A reunião convocada em novembro de 2008, por outro lado, não foi realiza-
da entre ministros de finanças e presidentes de bancos centrais, mas entre chefes
de governo ou de Estado dos países membros. Com isso, esperava-se não apenas
sinalizar a seriedade com que a crise passaria a ser encarada como também evitar
a armadilha das limitações de escopo que fatalmente teriam de ser encaradas,
caso a reunião fosse apenas mais um encontro de autoridades setoriais. O fato de
reunirem-se chefes de Estado e de governo significava que a agenda do encontro
seria como se desejasse que fosse, porque estes líderes políticos representavam o
máximo poder político em seus países, ao contrário de funcionários cujo poder é
delegado e cuja jurisdição é limitada. Finalmente, como no caso de outros grupos
semelhantes, o G20 não é uma instituição, com regras formais de constituição e
operação, ou com qualquer autoridade que não seja a da influência política e do
compromisso moral que seus membros decidam assumir.
A abertura da agenda é, contudo, “uma faca de dois gumes”. Se a restrição
de jurisdição efetivamente ameaçaria tornar a ação do G20 tão inócua quanto
tinha sido até então, pelas razões discutidas na seção anterior, a liberdade de
fixação de agendas que a reunião de líderes políticos permite poderia criar uma
dispersão de atenção e interesses que poderia comprometer a eficácia do grupo.
Isso, de fato, é o que parece ter ocorrido. Após um período inicial, de emergên-
cia, em que os esforços se concentraram na coordenação de políticas nacionais
voltadas para o objetivo comum de contenção da crise, os horizontes temáticos
se abriram possivelmente em demasia, reforçando tendências centrífugas que em
si já seriam de difícil gerência, enraizadas nas diferenças de visão e de interesses
econômicos dos diversos participantes.
Desse modo, o G20 tem definido áreas de interesse extremamente varia-
das, que vão da reforma do sistema financeiro internacional, sua missão origi-
nal, ao ataque a problemas sociais ou ambientais, sobre os quais o grupo não
O G20 e a Reforma do Sistema Financeiro 25
8. Também foram introduzidas mudanças na governança no Banco Mundial, que não são tratadas aqui.
26 As Transformações no Sistema Financeiro Internacional
�������������������������������������������������������������������������������������������������������������������
. A rigor, houve uma crítica mais importante aos acordos dizendo respeito à negligência com a liquidez das institu-
ições bancárias. A crítica, no entanto, foi fraseada mais em termos de aperfeiçoamento da estratégia aceita do que uma
revisão mais profunda dessa mesma estratégia.
O G20 e a Reforma do Sistema Financeiro 27
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Muitas expectativas cercaram a evolução do G20 para principal fórum interna-
cional, em novembro de 2008. Especialmente para os países emergentes mais im-
portantes, isso foi visto como um reconhecimento da importância que estes países
assumiram no cenário internacional, um passo em um processo mais longo e
profundo de reformulação das regras de relacionamento político e econômico en-
tre as nações. Nesse sentido, a oportunidade de participação no G20 não poderia
28 As Transformações no Sistema Financeiro Internacional
REFERÊNCIAS
BLUSTEIN, P. The chastening: inside the crisis that rocked the global financial
system and humbled the IMF. New York: Public Affairs, 2001.
CARVALHO, F. C. The IMF as crisis manager: an assessment of the strategy in
Asia and of its criticisms. Journal of Post Keynesian Economics, v. 23, n. 2,
p. 235/266, Winter 2000/2001.
______. Once again, on the question of IMF’s conditionalities. 2009. Dispo-
nível em: <http://policydialogue.org/files/events/CardimdeCarvalho_question_
IMFconditionalities.pdf>.
DE VRIES, M. G. Balance of Payments Adjustment, 1945 to 1986: the IMF
experience. Washington: IMF, 1987.