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SALVADOR
2020
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SALVADOR
2020
RESUMO
ABSTRACT
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SUMÁRIO
1.INTRODUÇÃO………………………………………………………………………...
2. A CIRCUNSCRIÇÃO METODOLÓGICA E TEÓRICA………………………….
3. A BAHIA DOS ANOS 80 E OS RESQUÍCIOS DE UM ENIGMA………………..
3.1.Contexto Econômico e Social………………………………………………………...
3.2.A Educação Regional………………………………………………………………...
3.3.Ensino Superior e Capital do Estado, Uma Liderança em Mudança…………….
4.UMA VERDADE INCONTORNÁVEL: GOLPE E REGIME MILITAR
DE 1964-1985……………………………………………………………………………..
4.1.Seus Efeitos na Educação Básica………………………………………………….....
4.2.Seus Efeitos no Ensino Superior…………………………………………………….
5. DO COTIDIANO DOS CONSUMIDORES AO PODER
DOS PRODUTORES NASCE UMA UNIVERSIDADE E SEU CAMPUS I………...
5.1. O Corpus Documental……………………………………………………………….
5.2. Relatos Involuntários: Relatórios Institucionais e Jornais………………………...
5.2.Relatos Voluntários: Vidas, Oralidade e Memórias………………………………...
6.CONCLUSÃO…………………………………………………………………………..
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Introdução
São exemplos das duas últimas marcas: primeiro, a invasão da Universidade Federal de
Brasília que ocorreu dias depois do golpe resultando na demissão de seu reitor, o baiano
Anísio Teixeira. Em depoimento presente no documentário Uma Semana em 64, fomentado
pela TV Senado, o cineasta Jorge Bodanzky, ex-aluno da UNB, assim narra o ocorrido:
“Eles entraram e invadiram a universidade, prenderam professores; bateram em
professores e alunos. Entraram com caminhões para retirar os livros da biblioteca que eles
acreditavam que eram livros de esquerda.” Segundo, as medidas modernizadoras do ensino
superior na égide do pós 64, através dos decretos-lei nº53/66 e nº 252/67, instituídos pelo
ministro da educação Raymundo Moniz de Aragão.
4
sistema comum para toda a universidade; coordenação das atividades
interescolares e sua supervisão ao nível da administração superior da universidade;
unidade e indissolubilidade do ensino e da pesquisa; e substituição da cátedra
autônoma e vitalícia pelo sistema departamental.(NISKIER,1989,p.385;grifo
nosso)
Isto posto, multiplicaram-se por todo país as faculdades e institutos de ensino superior,
cuja natureza isolada e pragmatista não favorecia o desenvolvimento do ensino ligado a
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ciência. Considerando o interesse econômico, boa parte destas instituições localizavam-se
em regiões mais urbanas e populosas, onde puderam alcançar um número maior de clientes,
pondo em segundo plano a oferta de atendimento às prioridades regionais e nacionais
(NISKIER,1989, p.384).
6
Art. 1º - Fica criada, nos termos da Lei Federal nº 5.540, de 28 de novembro de
1968, a Universidade do Estado da Bahia - UNEB, sob a forma de autarquia em
regime especial, vinculada à Secretaria da Educação e Cultura, com personalidade
jurídica de direito público, autonomia acadêmica, administrativa e financeira e
patrimônio próprio. (BAHIA, 1983, p.1)
Ademais, mesmo no território jurídico a lei de criação per si não foi suficiente para
habilitar a universidade para o exercício pleno das atribuições, Edivaldo Machado
Boaventura, então secretário da educação e criador da UNEB inferiu que a:
Desta forma, fica claro que a criação da instituição educativa UNEB, como
personalidade jurídica autárquica, se distanciou de um automatismo jurídico no que tange a
sua criação. Em uma escala ascendente, o aceite do pleno exercício das atividades
universitárias manteve-se dependente da aprovação federal, que só foi concedida em 1986 e
mesmo em escala descendente a gênese da universidade já estava constituída em 1980, com
a SESEB. Sem dúvida, uma dinâmica complexa que articula agentes internos e externos,
sob olhar da pesquisa, o problema para os historiadores é analisar a natureza desse “sentido
do passado” na sociedade e localizar suas mudanças e transformações (HOBSBAWN, 2013,
p.17).
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UNEB, consequentemente, suas memórias, levantamos a hipótese que relatos individuais
podem desvelar novos aspectos sobre o processo de criação da universidade em tela.
Conceitualmente entendemos memória como:
Confirmando-se a hipótese, resta saber quais as mudanças efetivas os sujeitos (na condição
de testemunhas e agentes intrainstitucionais) tendem a destacar em seus relatos, neste
sentido, utilizamos o termo “servidores” em sentido amplo, isto é, praticantes de funções
tanto docentes como administrativas, considerando as várias atribuições que os mesmos
podem ter ocupado ao longo da carreira. Chamados a palavra, os servidores por meio das
entrevistas que nos foram concedidas possibilitaram conhecer os pontos de aproximação e
divergência destes relatos com as produções históricas e memorialística já existentes sobre a
UNEB.
3 Trata-se de estágio remunerado concedido a alunos do ensino médio de escolas públicas do Estado na Bahia.
Na ocasião os alunos tinham a oportunidade de exercer funções em variados órgãos da administração pública,
dentre eles a UNEB.
8
desempenho das funções e os vínculos construídos com homens e mulheres que lá
trabalhavam e por vezes relatavam suas memórias, tomamos conhecimento que a
Universidade existia há pouco mais de um quarto de século, no entanto, a organicidade
advinha de instituições mais antigas, quais sejam, o Centro de Educação Técnica da Bahia
(CETEBA), criado na década de 1960, posteriormente diluído na Superintendência de
Ensino Superior do Estado da Bahia, criada em 1980.
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onde ao mesmo tempo retoma as raízes do ensino superior no país e fez um balanço da
trajetória da Universidade Estadual; MARQUES, 2010 buscou conhecer a trajetória
histórica da Universidade Federal da Bahia dando ênfase às reformas administrativas que a
mesma sofreu.
4 Utilizamos como referência as universidades elencadas pelo Ranking Universitário Folha 2016.
Disponível no site: http://ruf.folha.uol.com.br/2016/. As dez primeiras universidades são respectivamente:
UFRJ, USP, UNICAMP, UFMG, UFRGS, UNESP, UFPR, UFSC, UNB e UFC.
10
escrever um relato circunstanciado, registrar os feitos dos grandes homens (RAGO et al.,
2003, p.68).
11
A incursão nos sites institucionais onde detectamos que mesmo as próprias
instituições em voga não apresentam com solidez seu percurso de criação reforça a ideia
de que a historicidade das universidades é um caminho que ainda carece de contribuições
de diversas ordens, inclusive das ciências humanas.
modernização da sociedade, a medida que ela evolui fica mais difícil a troca de
experiências vividas e opiniões vivenciadas, já não se narra o que foi
experimentado, o que foi vivido e para Benjamin isso está visível ao se abrir
um jornal, e percebermos o seu nível cada vez mais baixo da noite pro dia, e as
imagens do mundo exterior e do mundo ético que sofreram transformações
nunca antes imagináveis. (SILVA, 2011, p.168)
12
e depois fixar-se enfim, na multidão do público. Sociologização e
antropologização da pesquisa privilegiam o anônimo e o cotidiano onde os zooms
destacam detalhes metonímicos- partes tomadas pelo todo. (CERTEAU, 2013,
p.55)
8 Pode ser compreendida a partir da dinâmica das trocas entre pares/docentes/discentes, o que implica a
autonomia dos sujeitos envolvidos nesse processo, permitindo-lhes, a partir da reestruturação individual dos
seus esquemas de conhecimento, resolver diferentes situações didático-pedagógicas e profissionais. O
compartilhar de ideias, inquietações, dúvidas e ajuda pressupõe atividades colaborativas, favorecendo o
avanço do processo formativo em andamento (BOLZAN & ISAIA, 2010, p 18.).
13
críticas, a Escola dos Annales é de longe reconhecida como:
Também visitamos o Sistema Central de Arquivos da UNEB (SIARQ), que tem sob
sua tutela ampla documentação sobre a instituição; seus departamentos e órgãos
administrativos. Deste arquivo analisamos, os relatórios institucionais de 1980 a 1983 e o
regulamento da SESEB.
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história institucional, é um tipo de entrevista que se assemelha e a uma conversa. Ao todo
foram nove entrevistados, sendo dois professores universitários, e sete técnicos
administrativos o corpus narrativo a ser analisado totaliza aproximadamente quatro horas
de gravação.
De certo, nosso objeto de estudo situa-se no espaço tempo da capital baiana da segunda
metade do século XX. Nossas fontes, longe de constituírem um todo de natureza
homogênea, são relatos orais, documentos institucionais e notícias de jornal. Esse conjunto
de características permitiria uma vinculação com uma diversidade de categorias ou,
utilizando a linguagem de Ronaldo Vainfas e Ciro Flamarion Cardoso, de domínios da
história.
Por conseguinte, se dentre os campus iniciais da UNEB optamos pelo que se situa na
capital como centro de nossa pesquisa ergue-se um marcador caro a História Regional visto
que esta estuda o contexto histórico de determinado espaço (HOT; CAMPOS; BARBOSA,
2015, p. 2); tratando-se da criação de uma instituição pública, dependente da ação concreta
de determinados agentes dotados de competência para tal ato, poderíamos vincular com a
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História Política praticada pela historiografia pós Escola dos Annales, visto que emergiram
paradigmas que apontavam para o político a partir do entendimento dos fatos tendo como
base uma perspectiva das relações de poder entre os diversos agentes da história.
(GRZYBOWSKI, 2007, p.90).
É diante da variedade de searas que afirmamos nossa alternativa voltada a História da
Educação em intersecção com a tendência historiográfica da Nova História Cultural. Do
ponto de vista etimológico, polissemicamente, interseção como substantivo feminino pode
significar o ponto estabelecido em que se transpõem ou cruzam duas linhas ou então, 9em
uma perspectiva matemática, a operação através da qual se consegue um conjunto composto
por elementos comuns a outros dois conjuntos. A analogia com ambos conceitos nos
importa pois por meio do primeiro, as considerações que aqui serão feitas reconhecem
elementos semelhantes entre o desenvolvimento da História Cultural e da História da
Educação, nos permitindo um cruzamento entre ambas e do segundo advém a observância
tanto da metodologia quanto da teoria, uma vez que é consenso que a história enquanto
disciplina científica possui um modus operandi comum, para além das especificidades dos
dois campos que correlacionamos. .
Dessa maneira, mesmo a história cultural clássica (BURKE, 2008), cujos primórdios
remetem amiúde aos trabalhos de historiadores como Jacob Burckhardt e Johan Huizinga,
contou com a influência da sociologia, em outras palavras, "Algumas das maiores
contribuições à história cultural desse período, especialmente na Alemanha, vieram de
acadêmicos que não trabalhavam nos departamentos de história." (BURKE, 2008, p.12).
Citamos como exemplo Max Weber, com especial destaque para o livro A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo. Por meio dele Weber buscou compreender como
foi construído os princípios culturais do sistema econômico que dominou a Europa e a
América, nesta busca identificou o protestantismo (mas especificamente o sistema de
crenças e valores nele embutido) como elemento central para o acúmulo riqueza dos
burgueses.
Já Norbert Elias retomou alguns aspectos da pesquisa de Huizinga, mas voltou-se para
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o estudo da questão do autocontrole nas côrtes europeias entre os séculos XV e XVII, em
certa medida, fruto da centralização do Estado e a submissão ou domesticação de uma
nobreza guerreira (BURKE,2008, p.13). Seu livro O Processo Civilizador, elabora um
esquema de diferenciação entre o significado de termos como kultur e zivilisation, no
contexto alemão.
A obra em questão ainda na contemporaneidade traz elementos chave para
compreendermos como os conceitos permanecem ou se modificam socialmente, a esta
altura vale incluir parte das considerações originárias deste autor no que se refere a kultur e
zivilisation que, a nosso ver, são caras a pesquisa que empreendemos por explicarem a
complexa movimentação empreendida pelos atores sociais na reutilização e ressignificação,
do sentido de passado no ato de anamnese e comunicação, principalmente ao inferir:
17
FARIA FILHO, 2005, p.76).
A primeira corrente, marcada pelas publicações do Instituto Geográfico Brasileiro, na
primeira metade do século XIX, mantinham como objetivo principal a compilação de leis e
dados estatísticos sobre a educação ofertada pelo Estado, com destaque para “A Instrução
Pública no Brasil: História e Legislação (1500-1889)” primeiro livro voltado unicamente
para a história nacional da educação, do médico José Ricardo Almeida. Seguidamente, o
advogado Primitivo Moacyr, teve sua produção com maior vigor sobre diversos temas
ligados a educação, metodizando documentos como relatórios e regimentos escolares tanto
de instituições públicas quanto particulares, são de sua autoria: “Instrução no Império,
Instrução e as Províncias” e “Instrução e a República.”10
A segunda é mais esparsa no tempo e se constitui com os intelectuais provenientes das
Universidades, Fernando de Azevedo integra este grupo embora sua atuação tenha ocorrido
em diversos contextos: redator do manifesto dos pioneiros da educação, na universidade foi
responsável pelo ensino de filosofia, sociologia, ciências e letras da mesma forma que por
meio da reforma que empreendeu na educação do Rio de Janeiro em 1928, introduziu a
história da educação como disciplina da escola Normal, não obstante ter presidido a
Associação Brasileira da Educação11 e ter atuado como jornalista. As habilidades oriundas
deste último ofício se fizeram presentes na escrita de sua mais importante obra, “A Cultura
Brasileira”, inseriu Azevedo no rol de intelectuais que ainda no século XX tentaram explicar
as origens da formação social brasileira.
Utilizando-se de um discurso bipolar, Azevedo desenhava o novo, associado as
reformas de 1920 e 1930, em oposição ao velho, forças reacionárias de
pensamento educacional e construía a história da educação como um movimento
ascensorial em direção ao novo, a renovação do sistema educacional. Estavam
assim delineadas as duas ênfases da análise de Azevedo: a história das ideias e dos
projetos pedagógicos e a história da organização dos sistemas de ensino. Sujeito
da narrativa e do jogo político em que se disputavam os projetos de uma educação
nacional no âmbito do recém-criado Ministério da Educação e Saúde (1930),
Fernando Azevedo transformava a si mesmo em herói, sua trajetória profissional e
pessoal em fonte. (VIDAL e FARIA FILHO, 2005, p. 99).
10 Apesar de já figurar como um objeto de análise historiográfica devido o tempo em que foi produzido, o
estado de arte atribuído a Almeida representa uma contribuição relevante à história da educação nacional,
levando em conta a amplitude de seus livros. Sobre a instrução pública contamos com 15 volumes,
abordando vários regimes políticos e com especial destaque para a educação no Estado de São Paulo.
11 Também conhecida como A.B.E, foi uma instituição que concatenou vários intelectuais ligados a educação
na primeira e segunda metade do século XX, foi de fundamental importância para os esforços em torno da
conquista da educação às expensas do Estado.
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pesquisa que a partir dos anos 60 ganhou alguma notoriedade por trabalharem com fontes
primárias.
É por meio da terceira corrente que encontramos outro aspecto de aproximação entre a
História Cultural e a História da Educação. Ao ser integrada como componente curricular
nos cursos de formação de professores bem como nos manuais didáticos, a história da
educação tomou contornos únicos, cabe-nos remeter que este fato deu-se por meio da ação
de um sujeito já pertencente a vertente anteriormente abordada, foi através da reforma da
educação empreendida por Fernando de Azevedo em 1928 que a escola normal passou a
contar, como disciplina, a história da educação.
De pronto, mediante a dinâmica formativa de um curso, um dos elementos que mais
caracterizou essa vertente foi a utilização dos conteúdos históricos sob uma ideia utilitarista.
Nessa perspectiva, estudar a história da educação serviria para compreender o presente e
intervir no futuro por meio do estudo do passado, não repetindo os erros já cometidos
(LOPES e GALVÃO, 2010, p. 22), quanto aos manuais produzidos nesta época, destacou-se
a organização dos conteúdos em forma de tópicos com o predomínio de uma condensação
de assuntos comentados e distanciamento da pesquisa histórica em arquivo.
Ocorre que quando cultura era sinônimo de costume (SAMPAIO, 2010, p. 141), isto
é, antes do que chamamos de História Cultural Clássica, esta modalidade de história era
sinônimo de estudos isolados como: história da filosofia, das artes, da matemática, da
mente, da escrita e também a história da própria história, novamente recorremos a BURKE
que atesta:
A primeira história da literatura histórica foi apresentada pelo senhor feudal de La
Popelinière, em L' Historie des histories (1599), afirmando que a historiografia
atravessou quatro estágios-poesia, mito, anais e, por fim, uma "história perfeita"
(historie accompelie), que era filosófica, além de exata. (2000, p.25)
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Com tal aproximação, não descartamos as diferenças de espaço tempo que cercam os
elementos elencados e ressaltamos que nem a História da Cultura, na presente pesquisa, se
sobrepõe a História da Educação nem esta a aquela.
Em verdade se nos fosse possível erigir um terceiro aspecto de semelhança seria que
tanto a História Cultural quanto a História da Educação, embora estejam amplamente
consolidadas, foram tidas como secundárias na pesquisa histórica. A história cultural foi
descartada pelos seguidores de Leopold von Ranke, considerada marginal ou amadorística,
já que não era baseada em documentos oficiais dos arquivos e não ajudava na tarefa de
construção do Estado (BURKE,2008, p.11) , mesmo no século XX , jocosamente, BURKE
afirma que a história cultural, outrora uma Cinderela entre as disciplinas, desprezada por
suas irmãs mais bem-sucedidas, foi redescoberta nos anos 1970 (2008, p.6). A História da
Educação continua relegada entre os estudos históricos feitos pelos programas de pós-
graduação em história, em grande medida, sendo praticada por educadores interessados
neste tipo de estudo. Ao analisar a já citada obra de Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo
Vainfas, “Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia” volume um, Dermeval
Saviani constatou que se mantém o silêncio em relação a História da Educação. Doze anos
depois, quando lançado o volume dois do mesmo livro, observamos a continuação da
ausência, no entanto:
Os investigadores-educadores especializados em história na educação têm feito
um grande esforço de sanar as lacunas teóricas, adquirindo as competências no
âmbito historiográfico capaz de estabelecer um diálogo de igual para igual com os
historiadores. E, ao menos no Brasil, cabe frisar que esse diálogo tem se dado por
iniciativa dos educadores num movimento que vai dos historiadores da educação
para os, digamos assim, 'historiadores de oficio', e não no sentido inverso.
(SAVIANI,2013,p.7)
Outrossim, se até aqui foram feitas inferências sobre a aproximação entre dois
territórios devemos também afirmar que mais recentemente a História Cultural guarda
peculiaridades que lhe são caras como a diversidade metodológica e teórica com que é
efetivada e a abertura para interdisciplinaridade principalmente com os conceitos ligados a
antropologia, mas não exclusivamente com eles, uma vez que:
É no século XX que a história cultural, quer como história das idéias, quer como
história intelectual, ou ainda como história cultural propriamente dita, irá eclodir,
de início com um coquetel intelectual de idealismo, historicismo, positivismo e
psicanálise. Na área do marxismo, as duas primeiras gerações após a morte de
Engels, em 1895, ocuparam-se, com sua "desnaturalização" e sua "recuperação"
ante a expansão imperialista, deixando para os anos após 1930 - ou seja, para o
período que se inicia com a grande crise do capitalismo mundial subsequente ao
crack da Bolsa de Nova Iorque em 1929, - o tratamento em profundidade da
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"questão ideológica". É a partir daí, da obra de Antonio Gramsci, Georg Lukács e
dos teóricos da chamada Escola de Frankfurt, como Karl Korsch, que a área
cultural passará a interessar seriamente ao pensamento marxista. (CASTANHO,
2011, p.2)
A História da Educação, longe de abandonar os temas que lhe são típicos como a
criação desta ou daquela instituição educativa, em interlocução com a história cultural,
passa a aborda-los de forma diferenciada não “mais pensados em si, nem somente em sua
relação com o que podemos chamar de universo escolar, como uma instância autônoma que
na verdade não é.” (FONSECA,2008,p.63) mas como fenômeno prenhe de relações que se
construíram por meio de grupos e sujeitos e suas respectivas visões e representações de
mundo.
De certo, não há que se cogitar a utilização de métodos, no interior de ambos campos
de pesquisa, que almejem apenas descrever, e não explicar nem analisar o passado histórico,
como supõe (VIEIRA, 2015,p.371) mas utilizar instrumentos de pesquisa que melhor
permitam captar as nuances do objeto pesquisado, bem como problematiza-lo. Para a
história a variedade de procedimentos e a utilização de ciências auxiliares não significa a
desintegração da história como campo científico das ciências humanas, a multiplicidade dos
procedimentos metódicos é indispensável, sem que tal acarrete, em última análise, um saber
histórico heterogêneo e incompatível, mas sim possibilite a ampliação da perspectiva
histórica eficaz na orientação do agir (RÜSEN, 2007, p. 107), desde que os princípios gerais
do método histórico sejam mantidos, nas palavras de Marc Block,
Poucas ciências, creio, são obrigadas a usar, simultaneamente, tantas ferramentas
distintas. É que os fatos humanos são mais complexos que quaisquer outros. É que
o homem se situa na ponta extrema da natureza. É bom, a meu ver, é indispensável
que o historiador possua ao menos um verniz de todas as principais técnicas de seu
ofício. (2001,p.81; grifo nosso).
O autor, um dos pioneiros da Escola dos Annales, traz a pluralidade dos métodos
para sua origem, isto é, os métodos são múltiplos, pois a história é ciência que volta-se para
a ação dos homens no tempo; homem que é agente formado por atravessamentos de ordens
diversas, assim, na busca de compreendermos nosso objeto de estudo afirmamos que o
método por excelência a que nos vinculamos é o método histórico 12, com a utilização de
procedimentos atinentes a história oral13 pois esta, ao se interessar pela oralidade, procura
12 Para tratar do método histórico nos atemos ao campo que, em nosso entendimento, com mais propriedade tem
investigado sobre a capilaridade da pesquisa em história. A teoria da história se volta para os fundamentos da ciência da
história, sempre presentes e pressupostos quando se faz pesquisa histórica e quando se escreve história com base em
pesquisa. (RÜSEN,2001,p.84)
13 Entendemos história oral como a interpretação da história e das mutáveis sociedades e culturas através da escuta das
pessoas e do registro de suas lembranças e experiências.(THOMPSON,2002,p.9)
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destacar e centrar a análise na visão e versão que dimanam do interior e do mais profundo
da experiência dos atores sociais (LOZANO, 2001, p.16).
Assim, em nossa pesquisa utilizamos relatos 14 voluntários, isto é, os relatos orais dos
funcionários da UNEB e também involuntários, constituídos a partir dos documentos
oficiais da instituição e os jornais da época, dando maior destaque aos primeiros, pois se
ligam ao nosso objetivo principal. O entrelaçamento de fontes de natureza diversa relaciona-
se, em verdade, a gênese das práticas comuns a história, aliás nunca confiar numa única
fonte é um dos mandamentos da profissão de historiador (BECKER, 2001, p.30) ao passo
que todas as fontes se submetem ao escrutínio do método histórico esquematizado em três
fases, bem assim:
Na primeira, que poderia chamar de formulação da pergunta histórica, carências
de orientação no tempo são enunciadas como perguntas históricas. Na segunda
fase, trata-se de dirigir essas perguntas às fontes, e obter destas as informações
necessárias para respodê-las. A terceira e última fase consiste então em formular
as informações obtidas das fontes como respostas às perguntas postas. Poder-se-ia
falar aqui da fase de formação da resposta histórica. (RÜSEN, 2007, p. 111)
14 Em “Apologia da História” Marc Block denomina os documentos oficiais e os testemunhos dados pelos sujeitos como
relatos diferenciando-os apenas como voluntários ou não. Essa forma nos é cara, por ao mesmo tempo, horizontalizar
ambos como fontes e identificar que possuem uma natureza particular.
22
uma universidade (BOAVENTURA, 2007, p. 336)
15 Encerramos as entrevistas com este quantitativo tendo como critério o fato de que as informações acerca
da pesquisa começaram a se repetir.
23
Por fim, “interpretação” constitui-se como o exercício de compreender o sentido
histórico das entrevistas, contribuindo para descortinar novos e específicos aspectos no que
tange a temporalidade da instituição educativa UNEB, á luz da perspectiva teórica que
utilizamos. A interpretação põe à disposição da narrativa histórica um fio condutor de
conteúdo empírico, discutível e fundamental em sua forma teórica, mediante o qual os fatos
singulares do passado são interligados de modo especificamente histórico (RÜSEN,2007, p.
126). Para aqueles que elegeram fontes orais como material analítico, interpretar denota:
Neste diapasão, a lente teórica adotada baseia-se na ação de determinados sujeitos, sem
desprezar a influência das estruturas nem a incontornável dinâmica de relações entre atores
de posições sociais diversas que formam o tecido social, principalmente em culturas não
estamentais. Essa tendência aflorou na história principalmente na segunda metade do século
XX e volta-se para explorar as experiências históricas daqueles homens e mulheres, cuja
existência é tão frequentemente ignorada, tacitamente aceita ou mencionada apenas de
passagem na principal corrente da história (SHARPE, 1992,p.41). Corroborou com essa
visão o historiador inglês ao ter declarado:
Estou procurando resgatar o pobre tecelão de malhas, o meeiro luddita, o tecelão
do ‘obsoleto’ tear manual, o artesão ‘utópico’ e mesmo o iludido seguidor de
Joanna Southcott, dos imensos ares superiores de condescendência da posteridade.
Seus ofícios e tradições podiam estar desaparecendo. Sua hostilidade frente ao
novo industrialismo podia ser retrógrada. Seus ideais comunitários podiam ser
fantasiosos. Mas eles viveram nesses tempos de aguda perturbação social, e nós
não. (THOMPSON, 1987, p.13)
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cálculo das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito
de querer e poder é isolável de um ambiente, isto é, da “estratégia”, agem sobre o curto
espaço de tempo, por intuição e por extinto operacionalizando a ressignificando um
determinado conteúdo em um cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto
com uma fronteira que distingue o outro como totalidade do visível. É a “tática”.
(CERTEAU,2013).
O real significado de tal jogo de palavras tornou-se mais elucidativo por meio dos
exemplos utilizados ao longo da obra “A Invenção do Cotidiano; Artes do fazer”. Nele,
Certeau revisitou os eventos da colonização européia na América Lática, onde depreendeu:
Há bastante tempo que se tem estudado que equívoco rachava, por dentro, o
‘sucesso’ dos colonizadores espanhóis entre as etnias indígenas: submetidos e
mesmo consentindo na dominação , muitas vezes esses indígenas faziam das ações
rituais, representações ou leis que lhes eram impostas outra coisa que não aquela
que o conquistador julgava obter por elas. Os indígenas as subvertiam, não
rejeitando-as diretamente ou modificando-as, mas pelas suas maneiras de usá-las
para fins e em função de referências estranhas ao sistema do qual não podiam
fugir. Eles eram outros, mesmo no seio da colonização que os ‘assimilava’
exteriormente; seu modo de usar a ordem dominante exercia o seu poder, que não
tinham meios para recusar; a esse poder escapavam sem deixá-lo. A força de sua
diferença se mantinha nos procedimentos de ‘consumo’. Em grau menor, um
equívoco semelhante se insinua em nossas sociedades com o uso que os meios
‘populares’ fazem das culturas difundidas e impostas pelas ‘elites’ produtoras de
linguagem.(CERTEAU,2013, p. 39)
Jesuíta- errante 16; um dos mestres do rigor17; um crente em tempos de descrença 18. Jean
Emmanuel de La Barca de Certeau transitou por variados campos do conhecimento como
letras, antropologia, filosofia, teologia e história; justamente pela abrangência de
conhecimentos, Paul Ricoeur em “A História, A Memória, O Esquecimento” considerou
Certeau um intelectual ‘outsider’ embora o conjunto de seus escritos possuam vetores
ligados a assuntos diversos existem ideias determinantes que perpassam a base de sua
compreensão intelectual. Exemplo disso encontramos em “A Escrita da História” onde o
autor voltou-se para a escrita praticada pelos historiadores; seus métodos e leis de análise
tantas vezes orientados conforme instituição a que os historiadores se vinculam; em
síntese: a operação historiográfica (CERTEAU,1982).
16Alusão presente no texto Michel de Certeau e a difícil arte de fazer história das práticas, de Diana
Gonçalves Vidal.
17Extraído do livro A História, A Memória, O Esquecimento, relacionando Certeau com Norbert Elias e
Michel Foucault.
18 O Programa de Educação Tutorial de História da Universidade Federal de Campina Grande promoveu de
24 a 26 de Setembro de 2011 curso intitulado Michel de Certeau: História, Cotidiano e Linguagem, ministrado
pelo professor Durval Muniz Albuquerque Júnior (UFRN). As considerações feitas neste evento tiveram
grande valor elucidativo no que tange a vida e produção intelectual de Michel de Certeau.
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Destarte, para abordar tais problemáticas ainda no primeiro capítulo da obra em questão
foi utilizada a categoria “lugar” como território que modula o conteúdo e a empiria da
produção científica em história, essa categoria reaparece em outros livros do mesmo autor
como “A Cultura no Plural19”, o que nos permitiu afirmar que faz parte do que aqui
chamamos de base da compreensão intelectual.
A historiadora da educação Diana Gonçalves Vidal nos recordou 20 que a presença
intelectual de Certeau foi marcada pela ação politicamente engajada e ao mesmo tempo a
tentativa de observar os eventos e os sujeitos com alteridade, principalmente por esta razão
foi um dos poucos eruditos que ensaiou in loco uma explicação sobre os fatos ocorridos na
França em Maio 1968 por meio de “La Prise de parole et autres écrits politiques”. Na
ocasião, declarou que "em maio de 1968, tomou-se a palavra como tomou-se a Bastilha em
1789". A linguagem como forma de expressão foi reiteradas vezes tema de suas
considerações com destaque para oralidade, para o ato de falar pois este: “coloca em jogo
uma apropriação, ou reapropriação, da língua por interlocutores; instaura um presente
relativo a um momento e um lugar; este estabelece um contrato o outro (o interlocutor)
numa rede de lugares e de relações.”(CERTEAU,2013, p.40)
Essa oralidade referida por Michel de Certeau subsidiou nossas reflexões para pensarmos
o tempo do nosso objeto, onde o desmonte do regime autoritário na década de 1980
representou o paulatino avanço do direito à palavra outrora cerceada, como na situação
fática do dia 2 de Abril de 1964 descrita na introdução bem como a coordenada sobre os
aspectos que abrangem a entrevista oral, em sua capilaridade:
O intercâmbio ou comunicação social exige uma correlação de gestos e de corpos,
uma presença das vozes e dos acentos, marcado pela inspiração e pelas paixões,
toda uma hierarquia de informações complementares, necessárias para interpretar
uma mensagem além do simples enunciado- rituais de mensagem e de saudação,
registros de expressão escolhidos, nuanças acrescentadas pela entonação e pelos
movimentos do rosto. É-lhe necessário aquele timbre de voz que identifica e
individualiza o locutor, e aquele tipo de laço visceral, fundador entre o som o
sentido e o corpo. (CERTEAU, 1996, p. 336-337).
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aposentados), os diálogos realizados antes e depois da entrevista. Todos estes elementos
tratados tangencialmente podem ser incluídos como parte importante do processo de
captação da fonte oral.
Em certo ponto esse interesse por elementos que a princípio aparentam ser pouco
promissores para o campo científico foi experienciado pelo próprio Certeau em um dos
volumes de “A Invenção do Cotidiano”. Em parceria com a historiadora Luce Giard, os
pesquisadores investigaram como os hábitos alimentares podem revelar um cruzamento
diverso de influências e comportamentos sociais construídos ao longo de séculos, não por
acaso, partilham o entendimento que cada hábito alimentar compõe um minúsculo
cruzamento de histórias (CERTEAU,1996, p.234).
Esta abordagem analítica a partir dos sujeitos vêm ganhando destaque sob diversas
formas no campo das ciências sociais, com destaque para História Oral que desde o
segundo quartel do século XX tem produzido e consolidando a contribuição dos relatos e
mesmo das gravações em vídeo e áudio como meios de acesso a uma temporalidade
antes não alcançada e singular, conforme Fico, a pressão dos contemporâneos ou a
coação pela verdade, isto é, a possibilidade desse conhecimento histórico ser confrontado
pelo testemunho dos que viveram os fenômenos que buscam narrar e/ou explicar.(2012,
p. 44) é uma possibilidade também relacionada às fontes orais.
Com efeito, se os primeiros escritos que utilizaram os relatos orais voltavam-se a uma
abordagem mais pontual sobre determinados eventos do passado, mais recentemente,
existe uma preocupação relacionada aos instrumentos de registro e interpretação das
fontes orais que permitem um alcance mais abrangente. Isso se deve ao caráter
interdisciplinar da história oral, enquanto método (THOMPSON, 2002, p.10).
É do âmbito interdisciplinar que emerge a perspectiva de uma escuta sensível por parte
dos investigadores no momento de realização da entrevista, como propõe René Barbier 21.
Com semelhança, a obra “História Oral Como Arte da Escuta” de Alessandro Portelli
expôs a existência de um processo de “cocriação” estabelecido entre quem entrevista e
quem é entrevistado:
Para exemplificar, ele fala sobre o momento em que, supostamente terminada a
entrevista, o gravador é desligado: são frequentes os casos em que se escutam
histórias tão interessantes quanto as do registro gravado ou ainda mais
21 Escuta sensível na formação de profissionais de saúde. conferência na Escola Superior de Ciências da Saúde -
http://www.saude.df.gov.br Brasília, julho 2002.
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surpreendentes. Apesar de consciente do compromisso do entrevistador de
proteção à sua privacidade, o entrevistado, mais relaxado nessa “informalidade”,
se permite confidências inesperadas.(apud MENIN,2017,p.241-242)
A situação descrita fez eco em nossa pesquisa, fortalecendo a prática de notas escritas
feitas após as entrevistas, nelas, apontamos informações que eventualmente estiveram
fora da gravação e foram imperativamente relevantes. Sem embargo, a pesquisa com
relatos orais insere o pesquisador em um processo autorreflexivo, buscando no momento
da interpretação ,em sua própria memória, as nuances de outrora.
o pesquisador é um caçador do invisível, é aquele que sai em busca daquilo que
não foi dito, daquilo que não está escrito, com o propósito de ampliar o seu
campo de interpretação e de se aproximar cada vez mais da voz do narrador. Sua
tarefa, no momento da interpretação, é também destrinçar o oculto que se
esconde no visível, é ir além dos limites da visão. O oral, o escrito e o imagético
carregam em si o não dizer; cabe ao pesquisador abrir as portas para a
obscuridade do que não pode ser dito com palavras, mas pode ser decifrado por
detrás dos gestos, do olhar, dos sons das palavras, dos silêncios, pela via da
imaginação e da subjetividade.(COSTA, 2014, p.51)
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