Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Corção, Gustavo - Curso de Religião Obra Póstuma Inacabadao PDF
Corção, Gustavo - Curso de Religião Obra Póstuma Inacabadao PDF
O texto deste "Curso de Religião", que aqui apresentamos com exclusividade, Corção deixou
inacabado, embora o tenha continuado verbalmente em suas aulas em nossa sede. O leitor
que quiser prosseguir com os estudos, contudo, não se verá prejudicado se, com o auxílio de
bons livros, prosseguir do ponto em que este texto termina.
INTRODUÇÃO
1. PRIMEIRAS MOTIVAÇÕES
2. POSIÇÃO DO HOMEM
1
Os vários seres que compõem o universo existem e movem-se, cada um a
seu modo, cumprindo sua função segundo sua natureza e as tendências
nela inscritas. Pode-se dizer também que, cada um a seu modo, obedece e
louva a Deus. Nesse grande conjunto cósmico observam-se certos seres
especiais que, por assim dizer, se segregam em si mesmos e se destacam
dos cosmos: são os seres vivos, que muito mais do que os inorgânicos se
caracterizam por essa integridade. Cada ser vivo, embora pertencendo ao
universo pela comunidade da matéria (são compostos de oxigênio, carbono,
etc. como outros seres não vivos podem ser), e embora pertencendo à
comunidade da espécie, se destaca por sua unidade, por sua inteireza e por
sua organização defensiva de tal integridade.
Com mais este título de destaque e autonomia, o animal irracional está bem
inserido na espécie e no meio, e tem em suas tendências naturais todos os
instintos para se desincumbir bem de seu papel no drama da existência. O
gato pode se desavir com o cão, ou pode devorar o rato, mas nenhum
desses animais se deterá a fazer cogitações sobre o que é, o que deve
fazer, e de onde veio e para aonde irá.
2
mundo. E decididamente não poderemos viver o cristianismo se nos
entregarmos à má filosofia que nega a nota específica, a espiritualidade da
alma, e a conseqüente transcendência do homem sobre o mundo. O
secularismo ou temporalismo que hoje, como erva daninha, quer abafar a
videira do Cristo (como se possível fosse ao homem tal vitória), tem estas
características, e concebe o homem como parte do cosmos, imanente,
imerso na comunidade cósmica.
3. CIÊNCIA E SABEDORIA
Para nós, estas ciências mais altas, por causa do valor e da dignidade de
seus objetos, merecem o nome de Sabedoria. Versam sobre todas as coisas,
mas sob um ângulo mais profundo do que o das ciências do fenômeno.
Tomemos um exemplo — a psicologia. Com essa mesma denominação, há
duas psicologias, a empírica e a racional ou filosófica. Note-se que o termo
empírico, em nossa linguagem filosófica, não tem o sentido pejorativo da
linguagem comum, onde empírico é quase sinônimo de a-científico. Para
nós esse termo designa o conhecimento científico fundado na observação e
na experiência.
3
experimental, se se fechar aos ensinamentos de critérios mais altos,
quererá chamar de normais as reações mais encontradiças, e chamará de
doente o indivíduo que apresentar sérias inconformidades com o meio em
que vive. Quererá, em suma, e como ideal supremo, inserir as pessoas nos
quadros existentes. Ora, esses quadros podem estar e freqüentemente
estão gravemente deteriorados como tão bem assinala Erich Fromm em
Sane Society.
A teologia nos ensinará ainda mais: ela nos dirá como Deus quer ser
conhecido e amado, e como Ele faz questão, zelosamente de ser bem
identificado, “não terás outros deuses diante de minha Face”, (Ex. 20,
3) e bem obedecido. E por aí já se vê que essas formas de saber são mais
decisivas e importantes para o homem do que todos os conhecimentos que
lhe asseguram certo domínio sobre os seres da natureza inferior. Ai do
mundo se os homens quiserem possuir cada vez mais Ciências a respeito
das coisas e cada vez menos Sabedoria da alma e de Deus!
O estudo e progresso no saber mais alto têm uma dificuldade que é uma
facilidade, ou vice-versa. Expliquemo-nos: A Sabedoria, ao contrário da
Ciência do fenômeno, é um saber global em que o conhecimento de cada
parte implica o conhecimento das outras. Tomemos a Física: podemos
estudar a mecânica deixando para ulterior estudo a Termodinâmica ou a
Ótica, sem que essa protelação prejudique a compreensão da primeira
parte. Na matemática, na geometria, por exemplo, o estudo progride
vetorialmente, partindo de definições e postulados, e conquistando
gradativamente novas relações métricas ou novas propriedades das figuras.
Progride-se nestas ciências quando se conhecem mais coisas.
Na Filosofia não sabemos bem por onde começar. Podemos começar pela
Lógica, pressupondo, porém, algum conhecimento metafísico ou
psicológico. Reciprocamente poderíamos começar pela Metafísica, ou pela
Psicologia (racional), pressupondo algum conhecimento de Lógica. Seria
impossível o estudo da Filosofia se de algum modo, embora imperfeito, não
conhecêssemos todos os seus capítulos. Felizmente temos no senso
comum, ou no exercício da razão espontânea, uma primeira elaboração
4
geral que nos permite a vaga visão do todo quando nos detemos no estudo
de uma das partes. Progride-se nesse saber mais alto não por saber mais
coisas, mas por saber mais a fundo as mesmas coisas. O progresso das
ciências empíricas é extensivo; o da filosofia (e teologia) é intensivo.
4. A SAGRADA DOUTRINA
5
São os seguintes:
Teologia Dogmática
Conhecimento dos artigos de fé.
“Creio em Deus Pai todo poderoso”.
Teologia Moral
Conhecimento da Vontade de Deus.
Dez mandamentos. “Seja feita a sua vontade...”.
Eis o texto que devemos reter e repetir como oração e ato de fé:
CREIO
em Deus Pai Todo Poderoso, Criador
do Céu e da Terra;
e em Jesus Cristo um só seu Filho,
Nosso Senhor
o qual foi concebido pelo do Espírito Santo,
nasceu de Maria Virgem,
padeceu sob o poder de Pôncio Pilatos,
foi crucificado, morto
e sepultado;
desceu aos infernos,
ao terceiro dia ressurgiu dos mortos,
subiu aos Céus, está sentado à direita
de Deus Pai Todo Poderoso,
de onde há de vir a julgar os vivos e mortos;
CREIO
no Espírito Santo,
na Santa Igreja Católica,
na comunhão dos Santos,
na remissão dos pecados,
6
na ressurreição da carne,
na vida eterna.
1 – MAIOR – de fé.
2 – MENOR – de razão.
3 – CONCLUSÃO – conclusão teológica.
7
A Revelação, como veremos a seguir, está encerrada. Mas para nós evolui
o aprofundamento do depósito Sagrado.
8
Sem esse resguardo, e sem aquelas conexões que traz o estudo, a doutrina
será em nós um sistema de idéias bambo e mal encaixado. Ao primeiro
solavanco da vida, quem não religou os dados de sua religião, quem não
assimilou o que engoliu, vomitará tudo, e sairá procurando outros alimentos
para sua pobre alma vazia.
CAPÍTULO I
CREIO...
1. A PALAVRA CHAVE
9
Antes de analisarmos sucessivamente os vários artigos do Símbolo dos
Apóstolos precisamos compreender bem a importância e o sentido exato da
primeira palavra, que está para o conjunto dos artigos como a clave para a
partitura musical.
2. CERTEZAS E INCERTEZAS
Todos nós nos guiamos na vida por certas coisas que sabemos com
certeza, e outras que sabemos com graus diversos de incerteza. Os
filósofos nos ensinam que o critério supremo da certeza é a evidência com
que uma determinada verdade se impõe aos nossos sentimentos ou à nossa
inteligência. Os céticos dirão que esse critério é falso e que na verdade
somos todos enganados e nos movemos entre sombras. Esse exagero do
ceticismo vem do fato incontestável de serem obscuros e imperfeitos os
nossos conhecimentos; mas o conhecimento pode ser certo e imperfeito.
10
Tomemos um exemplo sensível: “eu conheço o professor Francisco e sei,
com certeza, que ele está sentado diante de mim”. Este conhecimento
sensível, no caso visual, é certo, mas não é perfeito porque não sei tudo
nem vejo tudo da referida pessoa. Tomemos um exemplo científico: “os
metais são condutores de eletricidade” ou “o calor dilata os corpos”. Essas
proposições também são certas, mas também não são perfeitas porque não
sabemos tudo a respeito desses fenômenos. As certezas mais perfeitas que
possuímos são aquelas que envolvem princípios universais: “tudo o que
age, age por uma causa”, “o todo é maior do que as partes”, “duas
quantidades iguais a uma terceira são iguais entre si”. Essas mais perfeitas
certezas que possuímos são a certeza metafísica e a certeza
matemática. Essas certezas podem ser espontâneas, ou axiomáticas, e
desde logo evidentes; ou demonstradas por um raciocínio perfeito e
tornadas evidentes na conclusão. À primeira espécie pertencem os
chamados axiomas, e à segunda os teoremas como este: “a soma dos
ângulos internos do triângulo (na geometria de postulados euclidianos) é
igual a dois retos”. A certeza matemática é mais perfeita do que a
metafísica porque esgota todas as significações envolvidas; a certeza
metafísica é mais perfeita em razão de seu objeto e no plano mais alto e
mais rico em que se estabelece. Abaixo de ambas está a certeza física que
nos vem da intuição dos sentidos, a que nos referimos atrás.
Sistematizemos:
11
A física, por causa da matéria envolvida em seus fenômenos, só é conhecida
em grau aproximado. E quanto maior for a densidade de dados, maior será
a imprecisão, ou a dificuldade de precisão. O prestígio que cerca os eclipses
vem do simples fato de se tratar de um fenômeno muito isolado e muito
isento de perturbações. O sistema planetário que habitamos fica a distância
prodigiosa dos outros sistemas que possivelmente existam, e por isso é
extremamente pequena a probabilidade de uma interferência de corpo
estranho que venha perturbar a regularidade de nosso relógio planetário.
Mas essa interferência não é impossível; o eclipse previsto para o ano de
3000 poderá não se realizar, ou se realizar atrasado ou adiantado. E por aí
se vê que a certeza astronômica não tem o rigor e o absoluto das certezas
metafísicas e matemáticas.
12
absoluta que muitas vezes chamamos simplesmente de certeza, que está
diante de um câncer. Perguntem-lhe agora qual é a causa do câncer, e qual
é sua terapêutica: o médico mostrará logo a situação de dúvida em que se
acha o problema, longe da suspeita e da opinião.
3. A FÉ HUMANA.
13
mesmos, e dessas, poucas são as que sabemos com certeza, e
pouquíssimas as que sabemos com certeza e perfeição.
A fé humana está exilada no domínio das ciências; mas está em sua terra
natal na vida social e na convivência política. Por mais que a amarga
experiência nos prove que os homens mentem e atraiçoam, não há
possibilidade de estruturar um corpo político na base da pura desconfiança.
Ponderem bem e considerem a imensa área de coisas que sabemos, e que
utilizamos, porque outros nos disseram. Obedecemos ao médico por fé
humana; casamo-nos por fé humana; marcamos encontros; fundamos
instituições, debruçamos sobre as crianças por fé humana (e no caso
também pela certeza que temos de que devemos praticar o bem e evitar o
mal); votamos por fé humana; sabemos que existe o Vietnam por fé
humana; e assim por diante.
14
Nossa vida religiosa não consiste em atos de fé humana, e até se pode dizer
que somos muito exigentes nessa matéria, mas não deixa de sofrer grandes
aflições quando sentimos abalados os vínculos normais de estima e
respeito, e, sobretudo quando vemos funcionar mal a camada social de
onde esperávamos as melhores lições.
4. A FÉ DIVINA
Mas agora cabe aqui a pergunta: como sabemos que isto nos foi dito por
Deus? Ou então: como sabemos que a Revelação é de origem divina? Se
fomos nós mesmos, ou os papas, ou os apóstolos que discerniram o divino
na Revelação, então fomos nós que julgamos e que decidimos aceitar a
Autoridade reveladora, e, portanto, será ainda humano (e, portanto
enganador por falta da evidência) o principal do ato de fé divina.
15
Esta “nova pupila” que nos permite discernir e ver o divino é a virtude
teologal infusa da Fé divina.
Deus nos atende assim de dois modos: dá-nos a notícia externa de seus
mistérios, e dá-nos a possibilidade interna de nivelarmos nossa inteligência
para tal objeto. Mais adiante veremos melhor a riqueza interior que nos vem
dos dons divinos. Desde já convém fixarmos, numa primeira aproximação, a
seguinte noção: o que Deus dá à alma humana que aceita seus misteriosos
convites (“Levanta-te minha amiga, minha bela, e vem!”. Ct. 2, 10) é
uma qualidade divina, uma marca que excede nossa natureza, que é
sobrenatural. Essa marca ou qualidade habitual se chama graça
santificante. Além dessa forma nova e habitual, Deus dá, para todos os
atos sobrenaturais, uma força, moção, chamada graça atual. Desse
organismo sobrenatural resultam as virtudes e os dons. As virtudes
teologais são a Fé, a Esperança e a Caridade. Todas elas estão voltadas
para Deus e para o convívio a Ele nos chama.
16
circunstancial sine qua non. DEUS quis que a Igreja que instituiu fosse o
instrumento de nossa salvação, e instrumento sine qua non. Mas não é a
Igreja que nos salva, é Deus; nem é a Igreja que nos revela, é Deus.
5. TUDO OU NADA
17
Filho e do Espírito Santo, ensinando-os também a observar meus
mandamentos e eu estarei convosco até o fim do mundo”. (Mt. 28,
19).
E daí se conclui o que era de esperar. Uma vez que o critério de nosso
assentimento de Fé divina, ou teologal, é a palavra de Deus, primeiro
anunciada pelos profetas, e depois, na plenitude dos tempos confirmada e
completada pelo próprio Verbo Divino, temos de aceitar todos os artigos, e
temos de nos submeter ao condicionamento do Magistério, sem o quê
perdemos aquele critério e com ele todo o valor divino de nossa Fé.
Estamos diante de uma opção sem igual no mundo, e podemos dizer que
Deus espera de nós uma rendição incondicional: tudo ou nada.
6. FÉ SOBRENATURAL
Já mais de uma vez aludimos a esta característica essencial de nossa Fé. Ela
consiste no teor divino da qualidade criada por Deus nas almas dóceis, ou
melhor, consiste no caráter sobrenatural de tudo o que deriva da Fé
divina. Trata-se, pois, de uma qualidade, de uma faculdade, e de operações
que não pertencem à ordem da natureza e sim à ordem da graça. E é
essa ordem, esse domínio, e essa vida que chamamos de sobrenatural.
18
Mas adiante, no momento azado de estudar esses problemas da moral e da
psicologia sobrenatural, completaremos, ou melhor, dilataremos essas
noções. Agora, não podemos dispensar uma referência mínima a esse
dualismo da vida cristã: não podemos prosseguir o estudo de nosso Credo
sem esta advertência: estamos no domínio das verdades sobrenaturais, cuja
altitude e cuja pureza é um dos nossos principais pontos de honra. Mais de
uma vez, ensinando aos seus discípulos, Jesus reage vivamente quando
algum deles tenta puxar para baixo (hoje diríamos: horizontalizar) as coisas
da Fé divina. Um belo exemplo é o dia em que o Cristo instituía o papado e
elegeu Pedro, primeiro pontífice.
Por outro lado, e até por causa do flagelo do “naturalismo” (que quer
destruir o sobrenatural), lembremo-nos que devemos aos nossos irmãos o
benfazejo testemunho de Cristo, e a saudável refração nas obras temporais
dos princípios santos que nos purificam o coração.
19
CAPÍTULO II
1. O INSTINTO DE DEUS
20
Concluiríamos nós que é evidente a existência de Deus?
Não. A idéia de Deus e de sua existência não é evidente, não é inata, não é
universal como a ciência dos primeiros princípios, nem pode ser anterior à
experiência como pretenderam os teólogos, como Santo Anselmo, que
tentaram a demonstração apriorística da existência de Deus. O que
podemos desde já é dizer que Deus se torna visível nos seus efeitos, e que a
primeira noção, ingenuamente revestida de uma imagerie que dependerá
da cultura dos povos, é um patrimônio universal do senso comum, isto é,
das primeiras e mais espontâneas elaborações da razão tiradas da
experiência.
21
Pouco inteligente, muito pouco sensata, será a atitude produzida nos
homens por certas correntes da história. Pelo fato de medirem os céus e a
terra, e de fabricarem veículos velozes, os homens se esqueceram dos
antigos temores e da antiga sabedoria, se viciaram a viver no exíguo pé-
direito de suas realizações técnicas e por isso, com prodigiosa insensatez,
passaram a dispensar qualquer apelo mais alto, e se puseram de pé na
crosta do mundo como se fossem senhores de sua vida e de sua sorte. A
eliminação de Deus pelos transistores e naves espaciais é realmente muito
menos razoável e inteligente do que a procura de Deus motivada pelo medo
e pelo sentimento de dependência.
2. A EXISTÊNCIA DE DEUS
3. AS CINCO VIAS
22
A exposição das famosas cinco vias da demonstração metafísica da
existência de Deus, desenvolvidas dentro da corrente aristotélico-tomista,
(ver Santo Tomás, Suma Teológica, I, Q. 2 a 3) envolve dificuldades e
terminologia filosófica que exige preparação prévia.
PRIMEIRA VIA
23
mecânica, o qual, por sua vez foi empurrado por uma série de fenômenos
químicos, térmicos e mecânicos na formação do depósito de carvão, da
crosta da Terra, etc., etc.
SEGUNDA VIA
TERCEIRA VIA
24
os seres por esses elos de dependência; mas novamente diremos que não
se explicaria o universo pelo prolongamento desse encadeado até o infinito.
QUARTA VIA
Esta quarta via procede dos graus de perfeição que se observam as coisas.
Vê-se realmente mais ou menos por toda a parte. O universo é
hierarquizado e pode-se dizer sem nenhum artifício que a planta tem uma
perfeição que os minerais não possuem; que os animais têm no
conhecimento sensível uma perfeição que as plantas ignoram; e que o
homem tem no conhecimento racional uma perfeição que todo o universo
visível não possui. Ora, o mais e o menos se diz das coisas na medida
diversa em que se aproximam daquilo que realiza a máxima perfeição.
Haverá pois algo que é soberanamente verdadeiro, soberanamente bom,
soberanamente nobre e também, por conseqüência, soberanamente ser.
QUINTA VIA
A quinta via, diz Santo Tomás, remonta a Deus pelo governo das coisas. Nós
vemos que as coisas privadas de conhecimento agem em vista de um fim.
Basta observar as plantas e os animais para ver que não agem ao acaso e
sim segundo uma tendência que busca o melhor. Consideremos, por
exemplo, a astúcia com que as espécies vegetais procuram espalhar as
sementes e atirá-las o mais longe possível da sombra materna e mortífera:
esta inventa um pára-quedas, para cair devagar e oferecer ao vento
maiores oportunidades, aquela inventa uma cápsula explosiva que atira as
sementes à distância, sem falar nas árvores que confiam aos pássaros e às
abelhas a disseminação que lhes assegura o bem da espécie.
Ora, aquilo que está privado de inteligência não pode tender a um fim senão
por um agente dotado de inteligência. Haverá então uma Inteligência
Suprema governando todas as coisas. E é esse agente governador do
mundo que chamamos Deus.
25
Bastará a leitura atenta dessas cinco vias para convencer alguém da
existência de Deus? Não creio que alguém respondesse afirmativamente a
essa pergunta. Nós respondemos: não, sem hesitar. Mas então não
demonstram realmente? Respondemos: demonstram, mas não
demonstram facilmente para todos, nem, em todos, penetram em toda a
profundidade da alma de modo a produzir um abalo em todas as raízes da
inteligência, da vontade e do afeto.
26
inconveniente (apesar de tudo o que dizem os modernos racionalistas da
pastoral catequética) podemos usar imagens, desde que envolvidas no
sentimento de respeito que será, para a criança, a principal descoberta. Ela
está habituada a ver nos pais a mais alta instância do quadro familiar, e
agora, diante do respeito que os pais demonstram pelo Pai do Céu, ela se
sente solicitada a ultrapassar os quadros visíveis e rotineiros de sua vida.
E assim, gemendo, a alma sobe à procura duma razão de ser das coisas que
em si mesmas não têm a própria razão de ser. Hoje estou aqui, hoje faço
previsões, cálculos, programas, e ouso estender por dias e até anos os
meus projetos insensatos. De repente cruzam-se as órbitas, as minhas e as
de outro fenômeno qualquer, e eu tombo.
27
Alguns textos de inspiração divina ou humana poderão ajudar a alma
inquieta: “Ó Senhor, diante de vós sou como um verdadeiro nada... como
tivestes lembrança de mim para me criar?”. São Francisco de Sales usa essa
consideração para sua primeira meditação na Introdução à Vida Devota:
“Considera que há tantos anos não existias, e teu ser era um verdadeiro
nada. Onde estávamos nós, ó minha alma, nesse tempo? O mundo já durara
tanto, e de nós não tinha sequer notícias...”.
“Mas naquele tempo eu não existia. Minha mãe brincava com boneca. Se
por hipótese alguém lhe gritasse ao ouvido o meu nome: — José Maria! José
Maria! Ela não teria nenhum sobressalto materno. Eu não era. Nem havia
necessidade de que fosse. O ar do mundo não tinha o menor frêmito que
me denunciasse e que me anunciasse. Não havia papel caído no chão de
que pudesse dizer: foi o José Maria. Não havia um livro esquecido numa
cadeira de que pudesse afirmar: é do José Maria. Nada. Nada. Um nada
branco, transparente, inocente, indolor. Um não ser de que ninguém se
poderia lastimar, de que ninguém se poderia espantar...”.
(Lições de Abismo — Cap. X).
Por outro lado sou obrigado a reconhecer que medi as distâncias dos astros,
compus óperas, construí monumentos, desmontei átomos, como se minha
raça tivesse o domínio sobre todas as coisas — um domínio gradualmente
conquistado, mas, ainda assim, verdadeiro e cada vez maior. Tenho
inteligência para medir, compor, analisar, e ao mesmo tempo tenho a sorte
frágil das moscas. Poderei razoavelmente pensar tamanho absurdo?
Poderei pensar que seja, como homem, e por puro acaso, o único ser
inteligente do Cosmos? Poderei pensar que a pura matéria, na sua cega
loteria, alcance sucessivamente formas perfeitas que não estavam na
memória e na intenção dos inocentes átomos de hidrogênio? Poderei pensar
que não houve intenção, que não houve finalidade na elaboração de um
olho? Ou então deverei dizer que vejo porque tenho olhos e jamais que
tenho olhos para ver?
28
6. EXPERIÊNCIAS DA ALMA
A filosofia nos ensina que as coisas são para nós inteligíveis pela forma,
que é, nas coisas, espírito ou reflexo de espírito. Em si mesmas, as coisas
serão mais inteligíveis à medida que se imaterializam; mas para nós essa
luz de inteligibilidade passa por um máximo no nível proporcionado a nossa
natureza. Assim é que para nós o máximo de clareza se encontra na ciência
física, que estuda as formas ou as essências das coisas corporais, ou na
ciência matemática onde a quantidade, categoria própria dos seres
materiais, se encontra em estado de decantação abstrata. Daí por diante, e
à medida que se espiritualiza o ser, cresce nele o fulgor da inteligibilidade,
mas diminui para nós a percepção, como se a luz excessiva nos ofuscasse.
Os antigos diziam que a inteligência humana, a mais baixa das inteligências,
padece de certa nictalopia, que vê melhor nos ambientes de sombras.
Temos “olhos de coruja”, e por isso o Sol dos seres, que é Deus, é visto
dentro de uma grande ofuscação.
29
Além disso, o conúbio em que vivem sempre em nós o conhecimento
racional e o sensível, a cada instante nos estorva. Sim, a cada instante
queremos imagens das coisas espirituais. Mais adiante, quando chegarmos
ao ponto de Encarnação do Verbo, veremos que Deus se relacionou conosco
de modo a atender a exigência de totalidade de nossa natureza dual.
Teremos então nos Sinais Sagrados uma visibilidade de nosso comércio com
Deus.
30
UNIDADE, que é como a conseqüência lógica de todas as
outras: Deus é uno e único. (Note-se desde já que essa unidade
se refere à natureza de Deus, e não exclui a Trindade de Pessoas
vista na Fé).
Com a Fé, a alma humana galga todas essas dificuldades e diz: “Abba, Pai!”.
Ou diz: “Creio em Deus Pai...” ou ainda, como o próprio Cristo nos ensinou:
“Pai nosso, que estais no céu...”. Mas a própria inteligência reclama seus
direitos e consegue, no mais tenso de seus exercícios, balbuciar alguma
coisa sobre as perfeições divinas a partir das perfeições humanas. E as duas
afirmações se completam e se amparam: o título de Pai ajuda a inteligência
a manter a difícil proporcionalidade de analogia entre o quase nada da
31
criatura e o Tudo do Criador; e a elevação da inteligência ajuda a ver na Fé
um Pai que transcende todo o universo: o Pai nosso, que está no céu.
32