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Resumo
Cinquenta anos depois da abertura do Concílio Vaticano II devemos admitir que
conhecemos muito pouco os seus documentos. Este artigo quer contribuir para um
melhor conhecimento da Constituição dogmática sobre a Revelação divina Dei Verbum,
apresentando a preparação e a repercussão deste documento. A partir de algumas
afirmações do Papa Bento XVI na Exortação Apostólica Pós-Sinodal sobre a Palavra de
Deus na vida e na missão da Igreja Verbum Domini (30.9.2010) queremos encontrar a
afirmação central do documento Dei Verbum para ver como esta doutrina foi preparada
pelos documentos do magistério antes do Concílio. O artigo quer mostrar qual era a
preocupação do magistério acerca da Sagrada Escritura que se manifesta nos
documentos anteriores ao Concílio sobre a Bíblia, como esta preocupação foi acolhida
no Concílio, como a Constituição dogmática Dei Verbum respondeu a esta preocupação,
e como os documentos depois do Concílio foram marcados pelo seu ensinamento.
1
Mestre em Teologia e professor da Faculdade Católica de Anápolis
INTRODUÇÃO
2
S. Bernardo, Homilia super missus est, IV,11: PL 183, 86B.
3
Cf. DV 10.
4
DV 12.
5
Contra epistolam Manichaei quam vocant fundamenti, V,6: PL 42,176.
6
Cf. Origenes, Peri Archon, 1,2,8: SC 252,127-129.
7
DV 9.
tema da inspiração é decisivo para uma adequada abordagem das Escrituras e para a sua
correta hermenêutica8, que deve, por sua vez, ser feita no mesmo Espírito em que foi
escrita9. Quando esmorece em nós a consciência da inspiração, corre-se o risco de ler a
Escritura como objeto de curiosidade histórica e não como obra do Espírito Santo, na
qual podemos ouvir a própria voz do Senhor e conhecer a sua presença na história.
Além disso, os Padres sinodais puseram em evidência como ligado com o
tema da inspiração esteja também o tema da verdade das Escrituras10. Por isso, um
aprofundamento da dinâmica da inspiração levará, sem dúvida, também a uma maior
compreensão da verdade contida nos livros sagrados. Como indica a doutrina conciliar
sobre o tema, os livros inspirados ensinam a verdade: E assim, como tudo quanto
afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos deve ser tido como afirmado pelo Espírito
Santo, por isso mesmo se deve acreditar que os livros da Escritura ensinam com certeza,
fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse
consignada nas sagradas Letras. Por isso, “toda a Escritura é divinamente inspirada e
útil para ensinar, para corrigir, para instruir na justiça: para que o homem de Deus seja
perfeito, experimentado em todas as boas obras (2 Tim 3,16-17)”11.
Não há dúvida de que a reflexão teológica sempre considerou inspiração e
verdade como dois conceitos-chave para uma hermenêutica eclesial das Sagradas
Escrituras. No entanto, deve-se reconhecer a necessidade atual de um condigno
aprofundamento destas realidades, para se responder melhor às exigências relativas à
interpretação dos textos sagrados segundo a sua natureza. Nesta perspectiva, desejo
vivamente que a investigação possa avançar neste campo e dê fruto para a ciência
bíblica e para a vida espiritual dos fiéis (VD 19).
A partir destas afirmações chegamos à conclusão de que a afirmação central
da DV é a sua doutrina sobre a inspiração e a verdade bíblica: As coisas divinamente
reveladas, que se encerram por escrito e se manifestam na Sagrada Escritura, foram
consignadas sob inspiração do Espírito Santo. Pois a Santa Mãe Igreja, segundo a fé
apostólica, tem como sagrados e canônicos os livros completos tanto do Antigo como
do Novo Testamento, com todas as suas partes, porque, escritos sob a inspiração do
Espírito Santo (cf. Jo 20,31; 2 Tim 3,16; 2 Pd 1,19-21; 3,15-16), eles têm Deus como
autor e nesta sua qualidade foram confiados à Igreja.
8
Cf. Propositiones 5.12.
9
DV 12.
10
Cf. Propositiones 12.
11
Cf. DV 11.
Na redação dos livros sagrados Deus escolheu homens, dos quais se serviu
fazendo-os usar suas próprias faculdades e capacidades, a fim de que, agindo Ele
próprio neles e por eles, escrevessem, como verdadeiros autores, tudo e só aquilo que
ele próprio quisesse.
Portanto, já que tudo o que os autores inspirados ou os hagiógrafos afirmam
deve ser tido como afirmado pelo Espírito Santo, deve-se professar que os livros da
Escritura ensinam com certeza, fielmente e sem erro a verdade que Deus em vista da
nossa salvação quis fosse consignada nas Sagradas Escrituras. Por isso, toda a Escritura
divinamente inspirada é também útil para ensinar, para arguir, para corrigir, para instruir
na justiça: a fim de que o homem de Deus seja perfeito, preparado para toda obra boa (2
Tim 3,16-17) (DV 11).
Queremos agora ver, como estas palavras do Concílio foram preparados
pelos documentos do magistério sobre a Sagrada Escritura antes do Concílio, e qual era
a repercussão nos documentos sobre a Sagrada Escritura depois do Concílio Vaticano II.
1. Preparação
Providentissimus DEUS:
“A Providentissimus Deus, quer sobretudo proteger a interpretação católica
da Bíblia contra os ataques da ciência racionalista”12.
“A Providentissimus Deus apareceu numa época marcada por polêmicas
12
A interpretação da Bíblia na Igreja, 3.
virulentas contra a fé da Igreja. A exegese liberal trazia a estas polêmicas um apoio
importante, porque utilizava todos os recursos das ciências, desde a crítica textual até à
geologia, passando pela filologia, pela crítica literária, pela história das religiões, pela
arqueologia e ainda por outras disciplinas”13.
“Contra as ofensivas da exegese liberal, que apresentava as suas alegações como
conclusões fundadas sobre aquisições da ciência, ter-se-ia podido reagir lançando
anátema sobre a utilização das ciências na interpretação da Bíblia, e ordenando aos
exegetas católicos que se limitassem a uma explicação „espiritual‟ dos textos”. A
Providentissimus Deus não envereda por este caminho. Pelo contrário, a Encíclica
convida insistentemente os exegetas católicos a adquirirem uma verdadeira competência
científica, de modo a superarem os seus adversários no terreno dos mesmos. O primeiro
meio de defesa, diz ela, “encontra-se no estudo das línguas antigas do Oriente, bem
como no exercício da crítica científica” (EB, 118). A Igreja não tem medo da crítica
científica. Ela só teme as opiniões preconcebidas, que têm a presunção de se fundar na
ciência mas que, na realidade, fazem sair sub-repticiamente a ciência do seu domínio14.
Por isso aqui não vale dizer que o Espírito Santo tenha tomado homens
como instrumentos para escrever, como se algum erro tivesse podido escapar não
certamente do autor principal, mas dos escritores inspirados.
Com efeito, ele mesmo assim os excitou e moveu a escrever com a sua
virtude sobrenatural, assim os assistiu enquanto escreviam de modo que todas aquelas
coisas e aquelas somente que ele queria, as concebessem retamente com a mente, e
tivessem a vontade de escrevê-las fielmente e as exprimissem de maneira apta com
infalível verdade: do contrário, não seria ele mesmo o autor de toda a Sagrada Escritura
(EB 125).
É totalmente ilícito, ou restringir a inspiração a algumas partes somente da
Sagrada Escritura, ou conceder que o mesmo autor sagrado tenha errado. Não se pode
tolerar a maneira de agir daqueles que, para desfazer-se das objeções (contra a verdade
da Escritura), não hesitam em afirmar que a inspiração divina se refere às coisas de fé e
moral, e nada mais ... A inspiração divina é incompatível com qualquer erro: por sua
essência, ela não só exclui todo erro, mas o exclui com a mesma necessidade com a qual
DEUS, suma Verdade, não é autor de erro algum. Esta é a fé antiga e o costume da
Igreja (EB 124).
13
A interpretação da Bíblia na Igreja, 3.
14
A interpretação da Bíblia na Igreja, 4.
Spiritus Paraclitus:
A Enciclica Spiritus Paraclitus de Bento XV, publicada em 1920, por
ocasião do XV centenário da morte de São Jerônimo, de conformidade com o antigo
doutor sublinha que o influxo inspirador, enquanto impede o escritor sagrado de ensinar
o erro, não cria obstáculo algum à expressão própria do seu gênio e da sua cultura. E,
quanto à natureza da inspiração, descreve-a do ponto de vista da dinâmica psicológica
do escritor, na linha da Providentissimus Deus:
Conferida a graça, Deus dá antecipadamente uma luz à mente do
escritor para propor aos homens a verdade como “da parte da pessoa
de Deus” (São Jerônimo); e, além disso, move a sua vontade e a
impele a escrever; e o assiste, por fim, de modo especial e contínuo,
até que tenha composto o livro (EB 448).
15
A interpretação da Bíblia na Igreja, 3.
gravíssimo perigo para a Igreja e para as almas: o sistema crítico-
científico no estudo e na interpretação da Sagrada Escritura, os seus
desvios funestos e as suas aberrações16.
16
A interpretação da Bíblia na Igreja, 3.
17
A interpretação da Bíblia na Igreja, 4.
18
A interpretação da Bíblia na Igreja, 6.
19
A interpretação da Bíblia na Igreja, 7.
com um interesse incessantemente renovado20.
20
A interpretação da Bíblia na Igreja, 8.
21
A interpretação da Bíblia na Igreja, 9.
importam para a salvação". Esse princípio "deverá aplicar-se às ciências afins,
especialmente à história", isto é, refutando "de modo semelhante os sofismas dos
adversários" e defendendo das suas objeções a verdade histórica da Sagrada Escritura.
Nem pode ser taxado de erro o escritor sagrado, "se aos copistas escaparam algumas
inexatidões na transcrição dos códices" ou "se é incerto o verdadeiro sentido de algum
passo". Enfim é absolutamente vedado "coarctar a inspiração unicamente a algumas
partes da Sagrada Escritura ou conceder que o próprio escritor sagrado errou", pois que
a divina inspiração "de sua natureza não só exclui todo erro, mas exclui-o e repele-o
com a mesma necessidade com que Deus, suma verdade, não pode ser autor de nenhum
erro. Esta é a fé antiga e constante da Igreja".
“Esta doutrina, pois, que nosso predecessor Leão XIII com tanta gravidade
expôs, propo-mo-la nós também com nossa autoridade e a inculcamos, para que seja de
todos escrupulosamente professada” (EB 539s).
2. Repercussão
A interpretação da Bíblia na Igreja, 15 abr 1993.
Este documento da Pontifícia Comissão Bíblica- P.C.B estuda os diferentes
métodos de interpretação da Bíblia, cumprindo deste modo o que a Dei Verbum indicou:
“Como, porém, Deus na Sagrada Escritura falou por meio dos homens e à maneira
humana, o intérprete da Sagrada Escritura, para saber o que Ele quis comunicar-nos,
deve investigar com atenção o que os hagiógrafos realmente quiseram significar e que
aprouve a Deus manifestar por meio das suas palavras” (DV 12).
Diz Papa João Paulo II no seu discurso sobre a interpretação da Bíblia na
Igreja:
A Divino afflante Spiritu, como se sabe, recomendou particularmente
aos exegetas o estudo dos gêneros literários utilizados nos Livros
Sagrados, chegando a dizer que a exegese católica deve “adquirir a
convicção de que esta parte da sua tarefa não pode ser negligenciada,
sem grave dano para a exegese católica” (EB, 560).
22
A interpretação da Bíblia na Igreja, 8.
de gêneros literários então em uso. Pois, para corretamente entender aquilo que o autor
sacro haja intencionado afirmar por escrito, é necessário levar devidamente em conta
tanto as nossas maneiras comuns e espontâneas de pensar, falar e contar, as quais já
eram correntes no tempo do hagiógrafo, como as que costumavam empregar-se no
intercâmbio humano daquelas eras.
Mas como a Sagrada Escritura deve ser também lida e interpretada naquele
mesmo Espírito em que foi escrita, para bem captar o sentido dos textos sagrados, deve-
se atender com não menor diligência ao conteúdo e à unidade de toda a Escritura, levada
em conta a Tradição viva da Igreja toda e a analogia da fé. Cabe aos exegetas trabalhar
esforçadamente dentro destas diretrizes para mais aprofundadamente entender e expor o
sentido da Sagrada Escritura, a fim de que, por seu trabalho de certo modo preparatório
amadureça o julgamento da Igreja. Pois tudo o que concerne à maneira de interpretar a
Escritura está sujeito em última instância ao juízo da Igreja, que exerce o mandato e
ministério divino de guardar e interpretar a palavra de Deus23.
O documento Verbum Domini afirma:
Em primeiro lugar, é preciso reconhecer os benefícios que a exegese
histórico-crítica e os outros métodos de análise do texto,
desenvolvidos em tempos mais recentes, trouxeram para a vida da
Igreja24. Segundo a visão católica da Sagrada Escritura, a atenção a
estes métodos é imprescindível e está ligada ao realismo da
encarnação: “Esta necessidade é a consequência do princípio cristão
formulado no Evangelho de João 1, 14: Verbum caro factum est. O
facto histórico é uma dimensão constitutiva da fé cristã. A história da
salvação não é uma mitologia, mas uma verdadeira história e, por isso,
deve-se estudar com os métodos de uma investigação histórica séria25.
Por isso, o estudo da Bíblia exige o conhecimento e o uso apropriado
destes métodos de pesquisa (VD 32).
23
DV 12.
24
A interpretação da Bíblia na Igreja, Ench. Vat. 13, 2846-3150.
25
P.P. Bento XVI, 14.10.2008. Cf. Propositio 25.
26
DV 10.
27
P.P. João Paulo II, 23.4.1993, AAS 86 (1994), 232-243.
da história. Não desprezava a crítica científica; desconfiava-se
somente “das opiniões preconcebidas que pretendem fundar-se sobre a
ciência mas, na realidade, fazem astuciosamente sair a ciência do seu
campo”28. Por sua vez, o Papa Pio XII encontrava-se perante os
ataques dos adeptos duma exegese chamada mística, que recusava
qualquer abordagem científica. Com grande sensibilidade, a Encíclica
Divino afflante Spiritu evitou que se desenvolvesse a ideia de uma
dicotomia entre a “exegese científica” para o uso apologético e a
“interpretação espiritual reservada ao uso interno”, afirmando, pelo
contrário, quer o “alcance teológico do sentido literal metodicamente
definido”, quer a pertença da “determinação do sentido espiritual (…)
ao campo da ciência exegética”29. De tal modo ambos os documentos
recusam “a ruptura entre o humano e o divino, entre a pesquisa
científica e a visão da fé, entre o sentido literal e o sentido
espiritual”30. Este equilíbrio foi, sucessivamente, expresso no
documento de 1993 da Pontifícia Comissão Bíblica: “No seu trabalho
de interpretação, os exegetas católicos jamais devem esquecer que
interpretam a Palavra de Deus. A sua tarefa não termina depois que
distinguiram as fontes, definiram as formas ou explicaram os
processos literários. O objetivo do seu trabalho só está alcançado
quando tiverem esclarecido o significado do texto bíblico como
Palavra atual de Deus31 (VD 33).
34
P.P. Bento XVI. 14.10.2008. Cf. Propositio 25.
35
P.P. Bento XVI. 14.10.2008. Cf. Propositio 27.
36
P.P. Bento XVI. 14.10.2008. Cf. Propositio 25.
uma salutar sabedoria concernente à vida do homem e admiráveis tesouros de preces,
nos quais enfim está latente o mistério de nossa salvação.
Deus, pois, inspirador e autor dos livros de ambos os Testamentos, de tal
modo dispôs sabiamente, que o Novo estivesse latente no Antigo e o Antigo no Novo se
aclarasse. Com efeito, embora Cristo tenha estabelecido uma Nova Aliança em seu
sangue (cf. Lc 22,20; 1 Cor 11,25), contudo, os livros todos do Antigo Testamento,
recebidos na pregação evangélica, obtêm e manifestam seu sentido completo no Novo
Testamento (cf. Mt 5,17; Lc 24,27; Rom 16,25-26; 2 Cor 3,14-16), e por sua vez o
iluminam e explicam (DV 15-16).
37
Bíblia e Moral, 11.5.2008, 13,32,109.
constante renovação, com a esperança de que a mesma se torne cada vez mais o coração
de toda a actividade eclesial” (VD 1).
Um conceito-chave para receber o texto sagrado como Palavra de Deus em
palavras humanas é, sem dúvida, o de inspiração. Também aqui se pode sugerir uma
analogia: assim como o Verbo de Deus Se fez carne por obra do Espírito Santo no seio
da Virgem Maria, assim também a Sagrada Escritura nasce do seio da Igreja por obra do
mesmo Espírito. A Sagrada Escritura é “Palavra de Deus enquanto foi escrita por
inspiração do Espírito de Deus”38. Deste modo se reconhece toda a importância do autor
humano que escreveu os textos inspirados e, ao mesmo tempo, do próprio Deus como
verdadeiro autor.
Daqui se vê com toda a clareza – lembraram os Padres sinodais – como o
tema da inspiração é decisivo para uma adequada abordagem das Escrituras e para a sua
correta hermenêutica39, que deve, por sua vez, ser feita no mesmo Espírito em que foi
escrita40. Quando esmorece em nós a consciência da inspiração, corre-se o risco de ler a
Escritura como objeto de curiosidade histórica e não como obra do Espírito Santo, na
qual podemos ouvir a própria voz do Senhor e conhecer a sua presença na história.
Além disso, os Padres sinodais puseram em evidência como ligado com o
tema da inspiração esteja também o tema da verdade das Escrituras41. Por isso, um
aprofundamento da dinâmica da inspiração levará, sem dúvida, também a uma maior
compreensão da verdade contida nos livros sagrados. Como indica a doutrina conciliar
sobre o tema, os livros inspirados ensinam a verdade: “E assim, como tudo quanto
afirmam os autores inspirados ou hagiógrafos deve ser tido como afirmado pelo Espírito
Santo, por isso mesmo se deve acreditar que os livros da Escritura ensinam com certeza,
fielmente e sem erro a verdade que Deus, para nossa salvação, quis que fosse
consignada nas sagradas Letras”. Por isso, “toda a Escritura é divinamente inspirada e
útil para ensinar, para corrigir, para instruir na justiça: para que o homem de Deus seja
perfeito, experimentado em todas as boas obras (2 Tim 3,16-17)”42.
Não há dúvida que a reflexão teológica sempre considerou inspiração e
verdade como dois conceitos-chave para uma hermenêutica eclesial das Sagradas
Escrituras. No entanto, deve-se reconhecer a necessidade atual de um condigno
38
DV 21.
39
Cf. Propositiones 5.12.
40
Cf. DV 12.
41
Cf. Propositio 12.
42
DV 11.
aprofundamento destas realidades, para se responder melhor às exigências relativas à
interpretação dos textos sagrados segundo a sua natureza. Nesta perspectiva, desejo
vivamente que a investigação possa avançar neste campo e dê fruto para a ciência
bíblica e para a vida espiritual dos fiéis (VD 19).
CONCLUSÃO
Os documentos tratados nos mostram a preocupação do Magistério de
explicar que a Sagrada Escritura é Palavra de DEUS expressa em palavras humanas.
Quanto mais compreendemos este mistério, que podemos chamar a Cristologia da
Sagrada Escritura, tanto mais compreenderemos o sentido verdadeiro da Bíblia. A
constituição dogmática Dei Verbum fez uma contribuição importantíssima para este
tema.
Peçamos a Maria, a Mãe do Verbo, introduzir-nos sempre mais nas escuta
fiel da Palavra de Deus.
Os Padres sinodais declararam que o objetivo fundamental da XII
Assembleia foi “renovar a fé da Igreja na Palavra de Deus”; por isso é necessário olhar
para uma pessoa em Quem a reciprocidade entre Palavra de Deus e fé foi perfeita, ou
seja, para a Virgem Maria, “que, com o seu sim à Palavra da Aliança e à sua missão,
realiza perfeitamente a vocação divina da humanidade”43. A realidade humana, criada
por meio do Verbo, encontra a sua figura perfeita precisamente na fé obediente de
Maria. Desde a Anunciação ao Pentecostes, vemo-La como mulher totalmente
disponível à vontade de Deus. É a Imaculada Conceição, Aquela que é “cheia de graça”
de Deus (cf. L c 1, 28), incondicionalmente dócil à Palavra divina (cf. L c 1, 38). A sua fé
obediente face à iniciativa de Deus plasma cada instante da sua vida. Virgem à escuta,
vive em plena sintonia com a Palavra divina; conserva no seu coração os
acontecimentos do seu Filho, compondo-os por assim dizer num único mosaico (cf. L c
2, 19.51)44.
No nosso tempo, é preciso que os fiéis sejam ajudados a descobrir melhor a
ligação entre Maria de Nazaré e a escuta fiel da Palavra divina. Exorto também os
estudiosos a aprofundarem ainda mais a relação entre mariologia e teologia da Palavra.
Daí poderá vir grande benefício tanto para a vida espiritual como para os estudos
43
Propositio 55.
44
Cf. Bento XVI, Sacramentum caritatis (22 de fevereiro de 2007), 33.
teológicos e bíblicos. De fato, quando a inteligência da fé olha um tema à luz de Maria,
coloca-se no centro mais íntimo da verdade cristã. Na realidade, a encarnação do Verbo
não pode ser pensada prescindindo da liberdade desta jovem mulher que, com o seu
assentimento, coopera de modo decisivo para a entrada do Eterno no tempo. Ela é a
figura da Igreja à escuta da Palavra de Deus que nela Se fez carne. Maria é também
símbolo da abertura a Deus e aos outros; escuta ativa, que interioriza, assimila, na qual a
Palavra se torna forma de vida.
Nesta ocasião, desejo chamar a atenção para a familiaridade de Maria com a
Palavra de Deus. Isto transparece com particular vigor no Magnificat. Aqui, em certa
medida, vê-se como Ela Se identifica com a Palavra, e nela entra; neste maravilhoso
cântico de fé, a Virgem exalta o Senhor com a sua própria Palavra: “O Magnificat – um
retrato, por assim dizer, da sua alma – é inteiramente tecido de fios da Sagrada
Escritura, com fios tirados da Palavra de Deus. Desta maneira se manifesta que Ela Se
sente verdadeiramente em casa na Palavra de Deus, dela sai e a ela volta com
naturalidade. Fala e pensa com a Palavra de Deus; esta torna-se Palavra d‟Ela, e a sua
palavra nasce da Palavra de Deus. Além disso, fica assim patente que os seus
pensamentos estão em sintonia com os de Deus, que o d‟Ela é um querer juntamente
com Deus. Vivendo intimamente permeada pela Palavra de Deus, Ela pôde tornar-Se
mãe da Palavra encarnada45.
Além disso, a referência à Mãe de Deus mostra-nos como o agir de Deus no
mundo envolve sempre a nossa liberdade, porque, na fé, a Palavra divina transforma-
nos. Também a nossa ação apostólica e pastoral não poderá jamais ser eficaz, se não
aprendermos de Maria a deixar-nos plasmar pela ação de Deus em nós: A atenção
devota e amorosa à figura de Maria, como modelo e arquétipo da fé da Igreja, é de
importância capital para efetuar também nos nossos dias uma mudança concreta de
paradigma na relação da Igreja com a Palavra, tanto na atitude de escuta orante como na
generosidade do compromisso em prol da missão e do anúncio46.
Contemplando na Mãe de Deus uma vida modelada totalmente pela Palavra,
descobrimo-nos também nós chamados a entrar no mistério da fé, pela qual Cristo vem
habitar na nossa vida. Como nos recorda Santo Ambrósio, cada cristão que crê, em certo
sentido, concebe e gera em si mesmo o Verbo de Deus: se há uma só Mãe de Cristo
45
Bento XVI, DEUS caritas est (25 de dezembro de 2005), 41.
46
Propositio 55.
segundo a carne, segundo a fé, porém, Cristo é o fruto de todos47. Portanto, o que
aconteceu em Maria pode voltar a acontecer em cada um de nós diariamente na escuta
da Palavra e na celebração dos Sacramentos (VD 27-28).
ABSTRACT
Fifty years after the opening of the Second Vatican Council, we must admit that we
know very little about the conciliar documents. This article wants to contribute towards
a better understanding of the dogmatic Constitution on Divine Revelation Dei Verbum,
presenting the preparation and the repercussions of this document. Using some of the
affirmations of the Apostolic Exhortation of Pope Benedict XVI on the Word of God in
the life and mission of the Church, Verbum Domini (September 30, 2010) we wish to
find the central message of the document Dei Verbum of the Council. In order to see
how this document was prepared by the documents of the Magisterium before the
Council, this article wants to show what was the preoccupation of the Magisterium
concerning Sacred Scripture which was manifest in the documents on the Bible before
the Council, how this preoccupation was accepted by the Council, how the dogmatic
Constitution Dei Verbum responded to this preoccupation, and how the post-conciliar
documents were influenced by the teaching of the Council.
Key Words: Vatican Council II, dogmatic Constitution Dei Verbum, central doctrine of
Dei Verbum.
Abreviações:
VD = Verbum Domini.
DV = Dei Verbum.
PL = Migne, Patrologia Latina.
EB = Enchiridion Biblicum.
Ench. Vat. = Enchiridion Vaticanum.
P.C.B. = Pontifícia Comissão Bíblica.
SC = Escritores Cristãos.
AAS = Acta Apostolicae Sedis.
47
Cf. Expositio Evangelii secundum Lucam 2,19: PL 15, 1559-1560.