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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

PROGRAMA DE PÓS-GADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL


DISCIPLINA: HISTÓRIA DA ANTROPOLOGIA
DOCENTE: EDVIGES IORIS

BOAS, Franz. A mente do ser humano primitivo. São Paulo, Editora Vozes, 2010.

Thiago Mota Cardoso


26/04/2012

A obra “A mente do ser humano primitivo”, de Franz Boas, que completou um século de
existência no ano passado, pode ser considerada não só como um marco na história da antropologia
norte-americana, mas sim como um texto de alcance e impactos globais. Boas têm o mérito de tratar
do tema da diversidade cultural, pondo em questão – para não dizer em xeque - a crença
generalizada de que raça e cultura devem estar intimamente associados e que a origem racial
determinaria a vida cultural. A critica boasiana se estende à idéia de que as diversas culturas
estariam organizadas numa escala evolutiva linear, indo do “homem primitivo” até o “civilizado”.
Boas afrima que esta crença não se baseia em conhecimento científico sólido, mas sim em
simples reações emocionais motivadas pela condição social de hierarquização social no contexto
norte americano e europeu, não sendo “de forma alguma” fundamentada racionalmente. Opiniões
impregnadas de afã para defender a escravidão como instituição. As ideias dos evolucionistas
estariam impregnadas de pontos de vistas biológicos. Ao contrário, em sua obra, Boas busca colocar
em xeque estes dois princípios do evolucionismo social: 1) o de que cultura está subordinada à um
tipo racial (corporal) e; 2) o de que cada sociedade/cultura estaria alocada numa etapa específica de
um único processo evolutivo.
Nesta obra o autor argumenta que não haveria possibilidade de comparar as raças e as
culturas pois as mesmas seguem processos históricos de desenvolvimento culturais independentes,
tendo no máximo a capacidade de difusão de elementos de uma cultura para outra. A evolução mais
rápida de uma cultura deveria ser explicada mais ao acaso, a uma posição relativa, do que à
comparação e ranqueamento inter-cultural. E esta evolução cultural (da mente) para Boas não seria
dependente das aptidões inatas da raça (do corpo) mas sim da própria historicidade da cultura de
determinado povo, ou dos acontecimentos históricos particulares que determinam a evolução
cultural. Desenvolve assim as bases do que viria a se constituir o culturalismo e o relativismo da
antropologia norte americana na primeira metade do século passado.
O relativismo boasiano se dá na afirmação de que “processos mentais entre primitivos e
civilizados são essencialmente o mesmo. Atitude mental dos indivíduos que desenvolvem crenças
de uma tribo é análoga do filósofo civilizado”.
Como observaremos, logo após esta introdução, Boas desenvolve suas teses se utilizando de
um conceito de raça como uma unidade biológica instável e dependente de forças externas e de
cultura como uma totalidade das reações e atividades mentais e físicas que caracterizam o
comportamento dos indivíduos que compõem um grupo social. O conceito biológico de raça é
amplamente rebatido nos primeiros capítulos do livro, onde o autor se utiliza da antropologia física
e da antropologia cultural, notadamente na linguística e na arqueologia, para desconstruir a ideia de
uma raça pura determinante das funções mentais e sociais. Nos capítulos seguintes realiza uma
análise problematizadora sobre os estágios da cultura, propondo como saída a evolução
independente das culturas.
No capítulo intitulado “análise histórica”, Boas deixa claro a quem e a que teses direciona
suas atenções. Só para ilustrar listo alguns exemplos, que ilustram a obra de Boas, das teses
evolucionistas sobre a inseparabilidade entre o biológico (corpo) e o intelectual (mente).

− Gobineau: essência, imutabilidade e impossibilidade de inter-penetrações entre as raças;


Excelência suprema do europeu norte ocidental;

− Klemm: Humanidade: metade ativa (masculina) e uma metade passiva (feminina)

− Carus: 4 raças: diurna, de cérebro grande (Europeus e asiáticos ocidentais); noturna, de


cérebro pequeno (negros); amanhecer, de cérebro pequenos (mongóis); crepúsculo, de
cérebro intermediário (ameríndios).

− Morton: características da raça por atributos físicos: caucasiana, alto nível intelectual;
mongóis, engenhosos, imitadores e suscetíveis à cultura; malaio, ativo, engenhoso,
migratório, marítimo; americano, avesso à cultura, lentos, cruéis, turbulentos, vingativos e
amantes da guerra; negro, alegre, flexível, indolente, o mais baixo grau de humanidade.

− Chamberlain: grandes civilizações – extirpe excelente, obtida por processos seletivos


endogâmico, com mescla de linhagens de grande qualidade.

− Stodard: “civilização é o corpo e a raça é a alma”.

Em boa parte da obra, em seus capítulos iniciais, Boas realiza um exercício prolongado de
antropologia física buscando invalidar as bases biológicas das teses evolucionistas. O primeiro
elemento a ser questionado é a noção de que tipos humanos são estabelecidos de acordo com a
comparação das diferença entre seus valores físicos médios, como por exemplo, o tamanho da
cabeça, a estatura e a cor do cabelo. Procedendo desta forma o teórico evolucionista determinaria o
que convencionam denominar de raça pura. Para Boas, a comparação entre médias dos atributos
físicos, seria uma forma subjetiva e aleatória de definição de uma raça.
A impossibilidade de uma raça pura é afirmada por Boas diante da questão da
hereditariedade (linhagem). No pensamento geral evolucionista a manutenção dos padrões raciais,
pressupõe determinação da forma corporal de todos indivíduos da raça (tamanho, estatura, cérebro,
órgão, cor), só abalada por condições exteriores. Para Boas na verdade as raças seriam um
complexo de linhagens familiares de origens e caráter distintas (diversas) e muitas vezes
desconhecidas. A homogeneidade absoluta de uma raça seria impossível, mesmo em sistemas
endogâmicos.
Dando continuidade a seus argumentos, Boas afirma que, longe de ser determinada, a forma
corporal é instável e elástica. Para ele o ser humano seria uma espécie auto-domesticada, onde
traços distintivos correspondem a fatores distintos dos animais selvagens, com certa homogeneidade
genética. Pelo contrário, os humanos, assim como algumas espécies animais e vegetais
domesticadas, possuiriam uma grande variação corpórea. Tais variações individuais seriam
decorrentes da influência da dieta na forma corporal, do ambiente e clima e do modo de vida na
forma do corpo. Variações numa mesma raça dependente, diante destes argumentos, de conjunturas
ambientais, socioeconômicas, políticas e nutricionais., contrariando as teses de permanência das
características anatômicas das raças atuais, derivado da hereditariedade.
No que tange a posição morfológica das raças, Boas afirma que a mesma não determina as
estruturas da mente, assim como não é possível correlacionar a morfologia com a proximidade ou
não de certas raças com um tipo animal. Todas as raças possuiriam características que as
aproximariam ou distanciariam dos animais. O que há, segundo Boas, é uma escolha arbitrária das
diferenças morfológicas para criar a tese de que atributos inferiores (mais animalescos) engendram
mentes inferiores. Quanto as funções fisiológicas e psicológicas, Boas argumenta que um mesmo
corpo pode ter funções fisiológicas variáveis e funções mentais mais flutuantes e variáveis ainda. Se
atentando para os aspectos individuais da variação nestes casos.
Boas destaca a importância do ambiente cultural na formação psicológica do indivíduo, onde
o psicológico deve ser considerado social ao mesmo tempo. A inteligência assim, seria uma
miscelânea de inato com o contexto da experiência da vida social, colocando a raça em
subordinação ao marco cultural. A personalidade, neste mesmo sentido, seria influenciada por
condições sociais, com a ressalva de que “a existência de uma personalidade cultural que abarque
toda a raça é, quando muito, uma ficção poética”.
Para a tese corrente, cada raça humana seria uma combinação do tipo físico, língua e
cultura. Segundo Boas, considerações históricas e etnológicas comprovam o contrário desta
assertiva. Vários exemplos de mudança de língua e cultura sem mudança de tipo físico e vice-versa.
A variação poderia ocorrer com a retenção de tipo com mudança de idioma ou retenção de idioma
com mudança de tipo. Casos de assimilação completas seriam raras ou quase inexistentes, apesar da
difusão cultural. Para Boas as mais variadas formas culturais existem na maioria das raças,
impedindo a organização progressiva de tipos raciais supostamente puros.
Reforçando seu enfoque culturalista Boas refuta as quatro principais interpretações da
cultura ligadas as teses culturalistas. Critica, primeiramente, a unidade da mente humana e da
cronologia evolutiva linear única ou em poucas linhas separadas, influenciada pela teoria da
evolução. Da mesma forma põe em questão a teoria da sobrevivência de Taylor e das etapas
evolutivas. Em terceiro plano refuta o determinismo geográfico, propondo a tese de que o ambiente
não cria cultura mas a possibilita/modifica. Por fim, critica a cultura subordinada a um
determinismo econômico.
No entanto, Boas se mentém de acordo com a premissa de que as culturas avançam de forma
progressiva, mas de forma independente e tendo o desenvolvimento da inteligência como “motor”
dos processos evolutivos. Importante frisarmos que a evolução da inteligência para o autor se dá na
passagem de um tipo intelectual ilógico-tradicional-superticioso para um tipo lógico-racional-
calculista. Tal inteligência só poderia ser desenvolvida em regiões com um ambiente mais
produtivo, que possibilitasse mais alimento e, portanto, menos tempo gasto com trabalho e mais
tempo disponível para atividades intelectuais. Desta forma, para Boas, só seria possível medir de
forma cientifica a evolução cultural através do estudo da arte, da técnica e do empenho intelectual.
Tal “tipo” de teoria evolucionista de Boas também afirma que as tradições seriam empecilhos para a
evolução cultural e que a mesma lógica evolutiva se dá tanto entre culturas avançadas e menos
avançadas como dentro de uma mesma raça.
Com a tese de que, “Não há nenhuma diferença fundamental nos modos de pensar do
homem primitivo e do homem civilizado. Nunca foi demonstrada uma conexão estreita entre raça e
personalidade”, e de que “O conceito de tipo racial, tal como é comumente utilizado mesmo na
literatura científica, é enganoso e requer uma redefinição tanto lógica como biológica”, a obra de
Boas, indubitavelmente supera a abordagem racial do desenvolvimento da cultura numa época de
intenso racismo nos E.U.A e de avanço do nacional socialismo alemão. O mesmo insere seus
pensamentos no contexto politico ao afirmar que “a tentativa de justificar a dominação de um povo
por outro com argumentos de raça é uma aplicação do etnocentrismo comum a todos os grupos
humanos para fins políticos” e de forma positiva aponta para um projeto antropológico em que
“Valorizaremos e cultivaremos a variedade de formas assumidas pelo pensamento e pela atividade
humana, e rejeitaremos, como um caminho que leva à completa estagnação, todas as tentativas de
imprimir um padrão de pensamento sobre nações inteiras ou mesmo sobre o mundo inteiro”
Apensar do avanço na época, da influência tentacular de suas idéias e de sua atualidade
inconteste, Boas se mantém dentro do esquema epistemológico e teórico evolucionista A proposição
de evoluções independentes e da difusão entre culturas, no marco teórico do progresso
sociocultural e da influência da personalidade e da inteligência abre caminhos para seus discípulos
desenvolverem seus estudos no âmbito dos quatro campos, tem temáticas que vão desde a
personalidade, economia formal, ecologia cultural e aculturação, bem como abre um leque de
possibilidades de criticas e avanços teóricos.

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