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VIII

SOBRE A PRISÃO
Magazine Littéraire:

Uma das preocupações de seu livro é denunciar as lacunas dos estudos históricos.

Você observa, por exemplo, que ninguém fez a história do exame.

Ninguém pensou nisto, mas é impensável que ninguém tenha pensado.

Michel Foucault:

Os historiadores, como os filósofos e os historiadores da literatura, estavam habituados a uma história das sumidades.


Mas hoje, diferentemente dos outros, aceitam mais facilmente trabalhar sobre um material "não nobre".


A emergência deste material plebeu na história já data bem de uns cinqüenta anos.


Temos assim menos dificuldades em lidar com os historiadores.


ocê não ouvirá jamais um historiador dizer o que disse em uma revista incrível, Raison Présente, alguém, cujo nome não importa, a
propósito de Buffon e de Ricardo:


Foucault se ocupa apenas de medíocres.

.

M.L.: Quando você estuda a prisão, lamenta; ao que parece, a ausência de material, por exemplo de monografias sobre esta ou aquela
prisão.

M.F.: Atualmente retoma−se muito a monografia, mas a monografia tomada menos como o estudo de um objeto particular do que como
uma tentativa de fazer vir novamente à tona os pontos em que um tipo de discurso se produziu e se formou.


O que seria hoje um estudo sobre uma prisão ou sobre um hospital psiquiátrico?


Fez−se centenas deles no século XIX, sobretudo acerca dos hospitais, estudando−se a história das instituições, a cronologia dos
diretores, etc.


Hoje, fazer a história monográfica de um hospital consistiria em fazer emergir o arquivo deste hospital no movimento mesmo de sua
formação, como um discurso se constituindo e se confundindo com o movimento mesmo do hospital, com as instituições, alterando−as,
reformando−as.


Tentar−se−ia reconstituir a imbricação do discurso no processo, na história.


Um pouco na linha do que Faye fez com relação ao discurso totalitário

A constituição de um corpus coloca um problema para minhas pesquisas, mas um problema sem dúvida diferente do da pesquisa lingüística,
por exemplo.


Quando queremos fazer um estudo lingüístico, ou um estudo de mito, vemo−nos obrigados a escolher um corpus, a definir este corpus e a
estabelecer seus critérios de constituição.


No domínio muito mais vago que estudo, o corpus é num certo sentido indefinido: não se chegará jamais a constituir o conjunto de discursos
formulados sobre a loucura, mesmo limitando−nos a uma época e a um país determinados.


No caso da prisão não haveria sentido em limitarmo−nos aos discursos formulados sobre a prisão.


Há igualmente aqueles que vêm da prisão: as decisões, os regulamentos que são elementos constituintes da prisão, o funcionamento mesmo da prisão,
que possui suas estratégias, seus discursos não formulados, suas astúcias que finalmente não são de ninguém, mas que são no entanto vividas,
assegurando o funcionamento e a permanência da instituição.


E tudo isto que é preciso ao mesmo tempo recolher e fazer aparecer.


E o trabalho, em minha maneira de entender, consiste antes em fazer aparecer estes discursos em suas conexões estratégicas do que constituí−los
excluindo

outros discursos.
M.L.: Você determina, na história da repressão, um momento central: a passagem da punição vigilância.


M.F.: Sim. O momento em que se percebeu ser, segundo a economia do poder, mais eficaz e mais rentável vigiar que punir.


Este momento corresponde à formação, ao mesmo tempo rápida e lenta, no século XVIII e no fim do fim do XIX, de um novo tipo de
exercício do poder.


Todos conhecem as grandes transformações, os reajustes institucionais que implicaram a mudança de regime político, a maneira pela
qual as delegações de poder no ápice do sistema estatal foram modificadas.


Mas quando penso na mecânica do poder, penso em sua forma capilar de existir, no ponto em que o poder encontra o nível dos
indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida quotidiana.

O século XVIII encontrou um regime por assim dizer sináptico de poder, de seu exercício no corpo social, e não sobre o corpo social.


A mudança de poder oficial esteve ligada a este processo, mas através de decalagens.


Trata−se de uma mudança de estrutura fundamental que permitiu a realização, com uma certa coerência, desta modificação dos
pequenos exercícios do poder.


Também é verdade que foi a constituição deste novo poder microscópico, capilar, que levou o corpo social a expulsar elementos como a
corte e o personagem do rei.


A mitologia do soberano não era mais possível a partir do momento em que uma certa forma de poder se exercia no corpo social.


O soberano tornava−se então um personagem fantástico, ao mesmo tempo monstruoso e arcaico.

Há assim correlação entre os dois processos, mas não uma correlação absoluta.


Houve na Inglaterra as mesmas modificações de poder capilar que na França.


Mas lá o personagem do rei, por exemplo, foi deslocado para funções de representação, em vez de ser eliminado.


Assim não se pode dizer que a mudança, ao nível do poder capilar, esteja absolutamente ligada às mudanças institucionais a nível das
formas centralizadas do Estado.


M.L.: Você mostra que a partir do momento em que a prisão se constituiu sob a forma de vigilância,

secretou seu próprio alimento, isto é, a delinqüência.

M.F.: Minha hipótese é que a prisão esteve, desde sua origem, ligada a um projeto de

transformação dos indivíduos. Habitualmente se acredita que a prisão era uma espécie de depósito

de criminosos, depósito cujos inconvenientes se teriam constatado por seu funcionamento, de tal

forma que se teria dito ser necessário reformar as prisões, fazer delas um instrumento de

transformação dos indivíduos. Isto não é verdade: os textos, os programas, as declarações de

intenção estão aí para mostrar. Desde o começo a prisão devia ser um instrumento tão

aperfeiçoado quando a escola, a caserna ou o hospital, e agir com precisão sobre os indivíduos. O

fracasso foi imediato e registrado quase ao mesmo tempo que o próprio projeto. Desde 1820 se

constata que a prisão, longe de transformar os criminosos em gente honesta, serve apenas para

fabricar novos criminosos ou para afundá−los ainda mais na criminalidade. Foi então que houve,

como sempre nos mecanismos de poder, uma utilização estratégica daquilo que era um

inconveniente. A prisão fabrica delinqüentes, mas os delinqüentes são úteis tanto no domínio

econômico como no político. Os delinqüentes servem para alguma coisa. Por exemplo, no proveito

que se pode tirar da exploração do prazer sexual: a instauração, no século XIX, do grande edifício

da prostituição, só foi possível graças aos delinqüentes que permitiram a articulação entre o prazer

sexual quotidiano e custoso e a capitalização.

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