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ISSN 1413-389X Trends in Psychology / Temas em Psicologia – Setembro 2017, Vol.

25, nº 3, 913-926
DOI: 10.9788/TP2017.3-02Pt

Skinner e Feyerabend sobre o Método e o Papel da Ciência


em uma Sociedade Livre

César Antonio Alves da Rocha1, *


1
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil

Resumo
Da obra de B. F. Skinner fazem parte preocupações de ordem epistemológica, encerrando discussões
sobre metodologia e critérios de verdade, e outras de ordem política e social, concernentes à relação entre
ciência e sociedade. De um discurso, em alguns aspectos, coincidentes com uma forma de positivismo,
Skinner passou a crítico de tendências puramente formalistas sobre o método científico, e de uma defesa
do gerenciamento da sociedade por especialistas, passou a uma crítica à centralização do poder e à
proposta de uma forma de organização baseada no controle face-a-face. Tratando de temas semelhantes,
Paul Feyerabend desconstruiu a ideia de um método científico universal, denunciou um caráter
potencialmente opressor da ciência, reclamando que o conhecimento científico não deveria ter inerente
predileção sobre outras formas de conhecimento para o acesso às instituições de poder. Considerando
a relevância da obra de ambos os autores para debates suscitados no âmbito da história e da filosofia
das ciências, este trabalho objetiva apresentar e discutir aspectos do comportamentalismo radical, de
Skinner, e do anarquismo epistemológico, de Feyerabend, que tratam de temas comuns. Conclui-se
que, apesar de diferenças salientes, as duas perspectivas contêm algumas proposições convergentes
e virtualmente complementares, cuja interlocução poderia ser útil a seus objetivos de busca por uma
sociedade livre.
Palavras-chave: Filosofia da ciência, B. F. Skinner, Paul Feyerabend, Comportamentalismo radical,
Anarquismo epistemológico.

Skinner and Feyerabend on the Method and the Role of Science


in a Free Society

Abstract
B. F. Skinner’s work encompasses epistemological concerns, including discussions about methodology
and truth criteria, along with political and social ones, concerning the relationship between science
and society. From a speech, in some aspects, coincident with a kind of positivism, Skinner came to
criticize purely formalist tendencies about scientific method, and from the defense of the management
of society by experts, he came to a criticism of the centralization of power and to the proposal of
a form of organization based on face to face control. Dealing with similar topics, Paul Feyerabend
deconstructed the idea of a universal scientific method, denounced an oppressive potential of science,

* Endereço para correspondência: Al. dos Narcisos, 235, Apto. 32C, Cidade Jardim, São Carlos, SP, Brasil
13566-534. E-mail: alvesdarocha@gmail.com
Esse texto resulta de trabalho final apresentado à disciplina “Introdução à Filosofia da Ciência”, cursada na
condição de aluno especial, junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade da
Universidade Federal de São Carlos. O autor é aluno regular do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da mesma universidade, e bolsista de doutorado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo,
processo 2014/02981-1.
914 Rocha, C. A. A.

and claimed for scientific knowledge to have no inherent preference over other forms of knowledge
to access to institutions of power. Considering the importance of both authors for the debates in the
context of history and philosophy of science, this study aims to present and discuss aspects of Skinner’s
radical behaviorism and Feyerabend’s epistemological anarchism that deal with common themes. We
conclude that, although salient differences, both perspectives contain some convergent and virtually
complementary propositions, whose dialogue could be useful to their pursuit of a free society.
Keywords: Philosophy of science, B. F. Skinner, Paul Feyerabend, Radical behaviorism, Epistemolo-
gical anarchism.

Skinner y Feyerabend sobre el Método y el Papel de la Ciencia


en una Sociedad Libre

Resumen
De la obra de B. F. Skinner forman parte preocupaciones epistemológicas, incluyendo discusiones sobre
metodología y criterios de verdad, y políticas y sociales, sobre la relación entre ciencia y sociedad. De
un discurso, en algunos aspectos, coincidente con una forma de positivismo, Skinner pasó a crítico de
tendencias puramente formalistas del método científico, y de una defensa de la gestión de la sociedad
por los expertos, pasó a una crítica a la centralización del poder y a la propuesta de una forma de orga-
nización basada en el control cara a cara. Tratando con temas similares, Paul Feyerabend deconstruyó
la idea de un método científico universal, denunció el potencial opressivo de la ciencia, y afirmó que el
conocimiento científico no tiene preferencia inherente sobre otras formas de conocimiento para acceder
a las instituciones de poder. Este estudio tiene como objetivo presentar y discutir aspectos del conductis-
mo radical de Skinner, y del anarquismo epistemológico, de Feyeratend, que tratan de temas comunes.
Llegamos a la conclusión de que, aunque las diferencias sobresalientes, ambas perspectivas contienen
algunas propuestas convergentes y prácticamente complementarias, cuyo diálogo podría ser útil para los
objetivos de la búsqueda de una sociedad libre.
Palabras clave: Filosofía de la ciência, B. F. Skinner, Paul Feyerabend, Conductismo radical,
Anarquismo epistemológico.

A obra de B. F. Skinner (1904-1990) é ex- dificultam a elaboração de uma “resposta skin-


tensa, complexa, e sofreu influência de diferen- neriana”, singular e definitiva, à questão “qual
tes correntes filosóficas. De uma perspectiva, é o papel da ciência em uma sociedade livre?”.
em alguns aspectos, simpática a uma forma de Diversos filósofos e sociólogos da ciência
positivismo (cf. Skinner, 1938, p. 44), sua visão contemporâneos se dedicaram ao problema, sen-
sobre a ciência sofreu contínuas transformações do Paul Karl Feyerabend (1924-1994) autor de
(Moxley, 1998), culminando em um discurso alguns dos mais notáveis e polêmicos argumen-
alinhado com filosofias como o pragmatismo e o tos. Desconstruindo a noção canônica do que se
darwinismo (Laurenti, 2012). Suas visões políti- sagrou como “método científico”, Feyerabend
cas, outrossim, parecem oscilar bastante, varian- (1975/1993) denunciou o caráter potencialmen-
do de um flerte com a tecnocracia, até tendências te opressor da ciência, chegando a alertar que a
supostamente próximas ao anarquismo e à de- prevalência da ciência poderia representar uma
mocracia direta (Lopes, 2015). A liberdade foi ameaça à democracia (Feyerabend, 1978), como
tema muito abordado por Skinner (1971), mas será explorado a seguir. A reação a tais decla-
sua interpretação sobre a luta pela liberdade fez rações foi severa. Alguns criticaram a maneira
com que muitos o considerassem um inimigo da como Feyerabend retratou episódios da histó-
liberdade. Tomados em conjunto, esses aspectos ria da ciência para fundamentar suas ideias (cf.
Skinner e Feyerabend sobre o Método e o Papel da Ciência em uma Sociedade Livre. 915

Sokal & Bricmont, 1998), e de “filósofo da ci- sob a tutela de um personagem já bem conheci-
ência”, Feyerabend chegou a ser alcunhado de do no contexto da filosofia da ciência: Sir Karl
“o mais perigoso inimigo da ciência” (Horgan, Popper, cuja influência sobre Feyerabend reper-
1993, p. 36). cutiu de maneiras diversas.
Mas uma apreciação atenta aos textos dos Ocorre que Popper era um racionalista e um
autores supracitados, que faça justiça à comple- liberal: sua principal obra, A lógica da pesquisa
xidade de suas formulações filosóficas, revela científica, encerra uma detalhada crítica aos câ-
que, assim como Skinner não é inimigo da li- nones do positivismo lógico, além de uma nova
berdade, Feyerabend não é inimigo da ciência. proposta para a lógica da ciência (baseada em
A despeito das diferenças salientes, que não são um procedimento de conjecturas e refutações) e
poucas, os esforços de ambos constituem contri- para a sua demarcação, ao que se deu o nome de
buições relevantes a temas comuns. Explorando falsificacionismo. A perspectiva popperiana para
pontos de distanciamento e afinidades eletivas a epistemologia é, assim, claramente prescritiva.
(no sentido de que são convergências possíveis, Além de questões epistemológicas, o filósofo
elencadas pelo autor deste texto), objetiva-se também escreveu sobre questões sociais e polí-
apresentar e discutir algumas ideias pontuais do ticas, e em seu A Sociedade Aberta e seus Inimi-
anarquismo epistemológico, de Feyerabend, e do gos registrou duras críticas a diferentes formas
comportamentalismo radical, de Skinner. Justifi- de totalitarismo e a governos autoritários.
ca-se tal esforço tanto pela relevância de ambos Considerando isso, poder-se-ia supor que a
os autores no contexto dos debates sobre o pa- tendência anti-autoritária de Popper viu-se refle-
pel da ciência na sociedade, quanto pelo caráter tida na obra de Feyerabend, o que se expressaria
inédito e contraintuitivo de tal aproximação. Por em sua obstinada crítica ao emprego da ciência
inesperado que possa parecer, aspectos de cada como esteio ao poder exercido por governos au-
proposta poderiam ser vistos como complemen- toritários. Contudo, se há algo em que Popper
tares, configurando uma nova perspectiva, mais e Feyerabend se distanciam decisivamente é
ampla e conciliatória, que embora então destoe em sua avaliação acerca do racionalismo. Ape-
daquelas que a originaram, poderia vir a consti- sar de ser o autor da primeira crítica de grande
tuir uma perspectiva promissora. impacto à doutrina do positivismo lógico, Po-
Para esse itinerário, serão examinadas con- pper (1959/1972) preserva e amplia a tendência
siderações de ambos acerca do método científi- racionalista, com seu nominado “racionalismo
co, e, em seguida, descritas e comentadas suas crítico”, no qual se vislumbra não apenas uma
visões sobre a relação entre ciência e sociedade. lógica universal sobre o empreendimento cientí-
Tal divisão encerra duas partes principais, sendo fico, como também a possiblidade de um conhe-
que na primeira serão expostos aspectos virtu- cimento estritamente objetivo, cabendo à atitude
almente convergentes, e, na segunda, aspectos racionalista iluminar o caminho que conduzirá
divergentes. Finalmente, encaminham-se breves ao desenvolvimento humano (cf. Marin, 2012).
reflexões a título de considerações finais. Assim, conquanto Feyerabend pareça in-
fluenciado pela orientação liberal do tutor, se
Convergências: Contra o Método, afasta da visão popperiana sobre a prioridade da
a Favor da Ciência razão e do conhecimento científico, e suas prer-
rogativas na busca por uma sociedade livre. Tal
Feyerabend foi um filósofo da ciência austrí- afastamento fica claro já em Contra o Método,
aco, bastante popular a partir da década de 1970, onde lê-se: “A ciência é um empreendimento es-
quando publicou duas importantes obras sobre sencialmente anárquico: o anarquismo teórico é
filosofia e história das ciências, nomeadamente, mais humanitário e mais suscetível de estimular
Contra o Método e A Ciência em Uma Socieda- o progresso do que suas alternativas representa-
de Livre, lançadas em 1975 e 1978. Doutorou-se das por ordem e lei” (Feyerabend, 1975/1993, p.
em filosofia pela London School of Economics, 9). O autor ainda observa que embora não consi-
916 Rocha, C. A. A.

dere o anarquismo a mais interessante proposta que passam a ser vistos como totalmente inde-
à filosofia política, considera-o um bom remédio pendentes das contingências que governam a
para a epistemologia, por encorajar o questiona- ação dos cientistas.
mento produtivo de professados cânones essen- Tal movimento constitui parte dos esforços
ciais do método científico. que objetivam propagar a ideia de uma tradição
Criticando a suposição de neutralidade, científica que se mantém sempre una graças à
Feyerabend (1975/1993) reivindica uma pers- observância das regras metodológicas que se
pectiva histórica, e não meramente formal, sobre pretendem universais. Feyerabend (1975/1993),
o empreendimento científico: porém, questiona: seria desejável dar apoio a
É possível, naturalmente, simplificar o meio uma tradição como essa? Sua reposta, é claro,
em que o cientista atua, através da simpli- será enfaticamente negativa, justificando-a com
ficação de seus principais atores. Afinal de a constatação de que o próprio progresso cientí-
contas, a história da ciência não consiste fico se revela condicionado a uma independência
apenas de fatos e de conclusões retiradas dos em relação à uniformização metodológica. Vem
fatos. Contém, a par disso, ideias, interpre- daí a polêmica sobre seu apregoado aforismo: “o
tações de fatos, problemas criados por in- único princípio que não inibe o progresso é: tudo
terpretações conflitantes, erros, e assim por vale” (p. 14).
diante. Análise mais profunda mostra que Posteriormente, há uma espécie retratação
a ciência não conhece “fatos nus”, pois os comedida, seguida da explicação de que tal afo-
fatos de que tomamos conhecimento já são rismo não se trata exatamente de um “princí-
vistos sob certo ângulo, sendo, em consequ- pio” no sistema de pensamento de Feyerabend
ência, essencialmente ideativos. Se assim (1975/1993), mas de uma “exclamação estarre-
é, a história da ciência será tão complexa, cida” daquele que observa a história de perto.
caótica, permeada de enganos e diversifi- Enumeram-se variados exemplos na história da
cada quanto o sejam as ideias que encerra; ciência, principalmente na história da física, em
e essas ideias, por sua vez, serão tão caóti- vias de respaldar tal observação:
cas, permeadas de enganos e diversificadas . . . não há uma só regra, embora plausível e
quanto as mentes dos que as inventaram. In- bem fundada na epistemologia, que deixe de
versamente, uma pequena lavagem cerebral ser violada em algum momento. Torna-se
muito fará no sentido de tornar a história da claro que tais violações não são eventos aci-
ciência mais insípida, mais simples, mais dentais, não são o resultado de conhecimen-
uniforme, mais “objetiva” e mais facilmente to insuficiente ou de desatenção que poderia
accessível a tratamento por meio de regras ter sido evitada. Percebemos, ao contrário,
imutáveis. (p. 11) que as violações são necessárias para o pro-
Apesar da natureza plural da ciência, gresso. Com efeito, um dos notáveis traços
consequência da diversidade das “mentes dos dos recentes debates travados em torno da
cientistas”, a educação científica tenderia sem- história e da filosofia da ciência é a compre-
pre a simplificar a atividade científica, oblite- ensão de que acontecimentos e desenvolvi-
rando tudo aquilo que foge a uma reconstrução mentos tais como a invenção do atomismo
puramente racional. É a isso que o autor se re- na Antiguidade, a revolução copernicana, o
fere ao falar em “lavagem cerebral”: o modo surgimento do moderno atomismo (teoria
como são ensinados e divulgados os achados cinética; teoria da dispersão; estereoquími-
científicos seria, nessa visão, um modo por ca; teoria quântica), o aparecimento gradual
meio do qual ensina-se também um ideário da teoria ondulatória da luz só ocorreram
específico, que assevera a superioridade dessa porque alguns pensadores decidiram não se
forma de produção de conhecimento e todas deixar limitar por certas regras metodológi-
as suas prerrogativas. Na ótica de Feyerabend, cas “óbvias” ou porque involuntariamente
isso penetra a natureza dos fatos científicos, as violaram. (1975/1993, p. 14)
Skinner e Feyerabend sobre o Método e o Papel da Ciência em uma Sociedade Livre. 917

Esse último aspecto, a “violação involuntá- deve ser contingente. Por isso as regras precisam
ria” de regras metodológicas, será especialmen- ser constantemente “reinventadas”, por vezes
te providencial no estabelecimento de paralelos até em forma de “contra-regras”, com ditames
com o comportamentalismo de Skinner. Mas diametralmente opostos às regras metodológicas
atendo-se ainda a Feyerabend, convém notar outrora empregadas.
sua insistência, que chega a soar redundante, em Como exemplos de “contra-regras” que
afirmar que a maneira anárquica de proceder em surgem na prática “oportunista” dos grandes
ciência não é característica de algumas ciências cientistas, há a contra-indução e a introdução
em específico, ou de episódios isolados, mas de hipóteses ad hoc, contrárias a princípios me-
algo que se revela necessário para o desenvolvi- todológicos básicos do indutivismo positivista e
mento do conhecimento científico em geral. Por do racionalismo crítico popperiano. Uma consi-
isso há, além das ocasiões em que o pesquisador derável parte, se não a maior parte, da obra de
viola regras de forma involuntária, aquelas em Feyerabend consiste em análises detalhadas de
que o faz de maneira deliberada. episódios da história das ciências em que as su-
Conforme Feyerabend (1975/1993), uma pracitadas contra-regras se fazem presentes, com
análise mais proximal do desenvolvimento das especial atenção às ciências físicas, e a persona-
ciências revela diversos episódios em que a ar- gens como Galileu Galilei (1564-1643) e Isaac
gumentação racional perde sua característica Newton (1642-1727). É importante destacar,
antecipadora para se tornar um obstáculo ao pro- contudo, que tal exercício não se confunde com
gresso científico. Quando isso acontece, mesmo a proposição de uma nova metodologia cientí-
os autoproclamados racionalistas recorrem a es- fica, uma espécie de “metodologia anárquica”.
tratégias escusas à tradição científica formal. Há Segundo o próprio autor afirma, seus objetivos,
ocasiões em que mais descritivos que prescritivos, são mais mo-
Até o mais rigoroso dos racionalistas se vê destos:
forçado a deixar de arrazoar, para recorrer à Alguém pode ter a impressão de que eu es-
propaganda e à coerção, não porque hajam tou recomendando uma nova metodologia
deixado de ser válidas algumas de suas ra- que substitui a indução pela contra-indução
zões, mas porque desaparecem as condições e que utiliza uma multiplicidade de teorias,
psicológicas que as tornavam eficazes e ca- pontos de vista metafísicos, contos de fada,
pazes de influenciar terceiros. (p. 16) ao invés do costumeiro par teoria/observa-
Mas se mesmo a argumentação racional ção. Essa impressão seria equivocada, com
não se vê a salvo, como seria possível sustentar certeza [itálicos adicionados]. Minha in-
que o princípio de “tudo vale” não equivaleria a tenção não é de substituir um conjunto de
uma forma de proceder completamente arbitrá- regras gerais por outro; minha intenção é,
ria e caótica? Buscando esclarecer esse ponto, o ao invés disso, convencer o leitor que todas
autor nota que é certo que padrões, modelos e as metodologias, até mesmo as mais óbvias,
normas metodológicas para a ciência existem, e têm seus limites [itálicos adicionados]. A
possivelmente sempre existirão; no entanto, eles melhor maneira de mostrar isto é demons-
surgem a partir do próprio processo de pesquisa, trar os limites e até a irracionalidade de al-
e não de uma racionalidade antecipatória, pura- gumas regras que todos consideram básicas.
mente lógica. Entendido dessa forma, o “tudo (Feyerabend, 1975/1993, p. 23)
vale” não significa a celebração da desordem na Consideradas essas posições do anarquismo
prática científica, mas, isso sim, que o estabele- epistemológico de Feyerabend, cabe agora exa-
cimento de regras metodológicas depende da si- minar de que forma poderiam encontrar paralelo
tuação de pesquisa no momento presente, dentro no comportamentalismo de B. F. Skinner.
de seu respectivo contexto e do conhecimento Skinner foi um psicólogo estadunidense,
disponível no dado momento. Deve respeitar cir- prógono do comportamentalismo radical, filoso-
cunstâncias locais e correntes. Em uma palavra, fia subjacente à sua proposta científica: a análise
918 Rocha, C. A. A.

do comportamento. Suas primeiras publicações comportamento científico. O texto em que tal de-
relatavam experimentos com ratos e pombos, claração se apresenta talvez seja o mais profícuo
avançando para uma extrapolação dos achados para sondar afinidades eletivas com o anarquis-
experimentais para a compreensão do compor- mo epistemológico: trata-se de Uma história de
tamento humano individual e social, e da evo- caso no método científico (Skinner, 1956). Nesse
lução das culturas, a partir de uma perspectiva artigo, Skinner descreve cinco princípios, de for-
selecionista. Ao longo de seis décadas, suas pro- ma bem-humorada e aparentemente intentando
posições teóricas e metodológicas sofreram mu- ironizar o rígido controle pretensamente exer-
danças profundas (cf. Laurenti, 2012; Moxley, cido pela observância às regras metodológicas
1999). Diferentes concepções de ciência podem tradicionais. São eles: (a) quando encontrar algo
ser derivadas a partir da análise do comporta- de interessante, deixe tudo mais e estude aquilo,
mento, conforme Skinner a descreveu em várias (b) alguns modos de pesquisar são mais fáceis
ocasiões, sendo que talvez uma das definições que outros, (c) algumas pessoas têm sorte, (d)
mais notórias é aquela que concebe o conheci- a aparelhagem às vezes quebra, e (e) serendipi-
mento científico como uma forma de comporta- dade, ou seja, ao procurar uma coisa, às vezes
mento verbal. Nas palavras de Skinner (1974), encontra-se outra.
O conhecimento científico é comportamen- Cada um desses princípios é ilustrado com
to verbal, embora não necessariamente lin- exemplos de achados importantes, como a des-
guístico. É um corpo de regras para a ação coberta do registro cumulativo, da curva de ex-
eficaz, e há um sentido especial em que tinção, e dos esquemas de reforçamento, a que
poderia ser “verdadeiro” se produzir a ação se seguiu o abandono do conceito de reserva de
mais eficaz possível. Mas as regras nunca reflexos. É especialmente interessante notar que
são as contingências que descrevem; per- em meio à descrição de tais princípios, Skinner
manecem sendo descrições e sofrem as li- (1956) declara (em tom possivelmente irônico):
mitações inerentes ao comportamento ver- “Uma vez que eu não desejo depreciar o método
bal. (p. 259) hipotético-dedutivo, tenho o prazer de testemu-
Reconhecendo uma limitação intransponí- nhar aqui a sua utilidade” (p. 226). Tal declara-
vel do conhecimento científico imposta pelas ção refere-se à suposta hipotetização a que Skin-
variáveis controladoras do comportamento do ner recorreu no episódio em que, pela primeira
cientista, Skinner se afasta de perspectivas re- vez, programou um esquema de reforçamento
presentacionistas, elaborando uma interpreta- intermitente, e vai de encontro a declarações
ção sobre o conceito de verdade que o aproxima anteriores (e.g., Skinner, 1950, p. 215) em que
do critério pragmatista. As regras das ciências, o método hipotético-dedutivo é rechaçado, e a
incluídas aí as regras metodológicas, não espe- metodologia indutiva é ratificada como metodo-
lham as contingências como elas são: tratam-se logia modelar da análise comportamental. Em
apenas de enunciados capazes de guiar a ação sua avaliação da epistemologia comportamenta-
humana eficazmente. lista radical, Chiesa (1994/2006) escreveu: “En-
Compreender a ciência como comporta- quanto estudantes de psicologia continuam a ser
mento verbal suscita ainda uma série de questões treinados principalmente nos métodos formais
suplementares. Quais seriam as “limitações ine- de teste e falsificação de hipóteses, o compor-
rentes ao comportamento verbal” mais impor- tamentalismo radical é caracterizado por uma
tantes para a compreensão da ciência segundo abordagem indutiva menos formal” (p. 53).
essa acepção? E qual seria a função do método Por certo, o modo pelo qual a “formulação
científico para a produção desse tipo de conheci- de hipóteses” inspirou o episódio narrado não se
mento? Questões como essas preocuparam Skin- identifica com os procedimentos a que recorrem
ner (1956), que admitiu que o atual estágio de pesquisadores para os quais tal modelo é o méto-
desenvolvimento da ciência do comportamento do basilar de sua ciência: a fórmula popperiana
limitava uma compreensão satisfatória acerca do de conjecturas e refutações nem de longe carac-
Skinner e Feyerabend sobre o Método e o Papel da Ciência em uma Sociedade Livre. 919

teriza o padrão convencional de pesquisa em então era bastante limitado, e só sua expansão
análise do comportamento. Contudo, isso não garantiria uma melhor compreensão sobre o pro-
dirime tal episódio e os demais como amostra de cesso científico: “Nós não sabemos o suficien-
um certo hibridismo: pelo modo como foi des- te sobre o comportamento humano para saber
crita e exemplificada em Uma história de caso..., como o cientista faz o que faz” (1956, p. 221).
a experiência prática do próprio Skinner destoa Curiosamente, embora o discurso de Skinner
da rigidez metodológica prescrita por aborda- (1950) sobre a prioridade do indutivismo e do
gens formalistas, como o positivismo lógico e o modelo de sujeito único contraste com a tendên-
racionalismo crítico. cia não-prescritiva de Feyerabend, à semelhança
Além disso, é importante mencionar o con- do anarquismo epistemológico, o comportamen-
texto no qual Uma história de caso... fora escri- talismo skinneriano também considera que siste-
to: por solicitação da American Psychological matizações meramente formais sobre o método
Association, diversos pesquisadores de renome não são suficientes para dar conta da ciência tal
foram solicitados a descrever os passos que como ela é.
seguiam na execução de suas pesquisas. A tal Como em Feyerabend (1975/1993), em
campanha deu-se o nome de Projeto A. Como Skinner (1956) nota-se um interesse maior
aponta Dutra (2004, p. 181), “o Projeto A tinha em descrever limitações do modelo corrente e
claramente uma fundamentação filosófica base- recomendar sua não-hegemonização, do que em
ada no positivismo lógico”. O texto de Skinner preceituar uma alternativa: “quando finalmente
(1956) veio em resposta a tal projeto, e os prin- tivermos uma abordagem empírica adequada
cípios por ele enunciados iam na contramão de do comportamento do homem pensante, vamos
uma sistematização lógica perfeita, da prática entender tudo isso. Até lá, pode ser melhor não
científica. Mais que isso, compreendido em seu tentar encaixar todos os cientistas em um único
contexto, o texto de Skinner pode ser encarado molde [itálicos adicionados]” (Skinner, 1956, p.
como uma espécie de manifesto subversivo ao 233).
status quo da metodologia científica à época sa-
cralizada: Divergências: O Papel da Ciência
Skinner está claramente tentando subverter a em Uma Sociedade Livre
ordem que os teóricos da metodologia cien-
tífica queriam impor à pesquisa experimen- No ensaio ‘Ciência.’ O mito e seu papel na
tal. Seus cinco princípios e seus exemplos sociedade, Feyerabend (1975) introduz questões
ilustrativos para cada um deles, tomados de que ultrapassam um escopo meramente episte-
seus anos iniciais de pesquisa em psicologia mológico: são questões que passam a tratar de
experimental, tentam, de fato, exprimir sua elementos típicos da sociologia da ciência. É
ideia de que não há regras nem padrões me- um dos textos em que se apresentam algumas de
todológicos impostos de fora e concebidos suas proposições mais explosivas, que só seriam
previamente ao próprio desenvolvimento melhor desenvolvidas três anos depois, com a
contingencial da pesquisa científica. (Dutra, publicação de A Ciência em Uma Sociedade Li-
2004, p. 181) vre. Um dos pontos abordados por Feyerabend
Destarte, ciente das limitações inerentes ao (1975) refere-se à relação entre a ciência e o es-
comportamento verbal, que descreve normas tado, e mais especificamente os processos edu-
metodológicas, Skinner enumerou cinco “prin- cativos e o ensino de ciências:
cípios” (que nada mais eram que recomendações Uma ciência que insiste em ser a detento-
derivadas de sua experiência de laboratório) em ra do único método correto e dos únicos
vias de alertar para o fato de que só uma maior resultados aceitáveis é ideologia, deve ser
compreensão acerca do comportamento humano separada do Estado e, especialmente, dos
poderia lançar luz sobre os aspectos mais deci- processos de educação . . . Um cidadão ama-
sivos da ciência. O conhecimento disponível até durecido não é um homem que foi instru-
920 Rocha, C. A. A.

ído em uma ideologia especial — como o cimento em ciência, e não mais se busque pro-
puritanismo ou o racionalismo crítico — e pagar a ideia de que há um método áureo e um
que agora é portador dessa ideologia, como modelo uno de se pensar cientificamente.
de um tumor mental; um cidadão amadu- Uma vez que se optasse por uma abordagem
recido é uma pessoa que aprendeu a tomar histórica, em que a ciência como disciplina pas-
decisões e que decidiu em favor daquilo se a ser ensinada a partir de episódios tangíveis,
que mais lhe convém. É pessoa de alguma detalhados em suas peculiaridades, cairia por
solidez espiritual (não se apaixona pelo pri- terra o establishment de acordo com o qual seria
meiro trovador ideológico que lhe cruze o possível vislumbrar ideais universais de méto-
caminho) e que, portanto, está apta a esco- do científico. É uma defesa de que se ensine a
lher conscientemente a tarefa que lhe pareça ciência como ela é, “encarnada” nos cientistas,
mais atraente, em vez de deixar-se dominar contaminada por suas idiossincrasias, situada
por ela. Preparando-se para essa escolha, a historicamente, e irremediavelmente influen-
pessoa estudará as ideologias mais impor- ciada pelas circunstâncias. Aqueles afeitos aos
tantes em termos de fenômenos históricos, tradicionalismos da ciência moderna certamen-
estudará a ciência como fenômeno histórico te não veriam com bons olhos a priorização da
e não como o único e sensato meio de en- contingência no lugar da universalidade, da his-
frentar um problema. Estudará a ciência a toricidade no lugar da incondicionalidade, e tal-
par de outros contos de fadas, tais como os vez isso explique em parte a reação depreciativa
mitos de sociedades “primitivas”, de sorte a com a qual as propostas de Feyerabend foram
contar com as informações necessárias para recebidas.
chegar a uma decisão livre. Parte básica de Mas essa é apenas parte da controvérsia:
uma educação geral dessa espécie são co- Feyerabend (1975) reclama não apenas uma
nhecimentos dos principais propagandistas perspectiva histórica para o ensino de ciências,
de todos os campos, de modo que o neófito mas também defende que a ciência seja ensinada
possa desenvolver resistência contra todas como um saber como outros, e que não possua
as formas de propaganda, incluindo a pro- nenhum privilégio de antemão sobre os demais
paganda que se denomina “argumento”. So- saberes. Uma vez introduzidos a abordagens
mente após esse processo de endurecimento científicas e não-científicas sobre os “mesmos”
será ele chamado a pronunciar-se em face fenômenos, ou fenômenos “análogos”, indivídu-
das questões racionalismo-irracionalismo, os estariam em melhor condição de comparar,
ciência-mito, ciência-religião e outras ques- avaliar e deliberar sobre os tipos de explicação
tões semelhantes. A decisão que tome em que melhor lhes sirvam. Deveras interessante é
prol da ciência — admitindo que a tome — que Feyerabend (1975) defende essa coexistên-
será muito mais “racional” do que é hoje cia entre ciência e não-ciência no âmbito do ensi-
qualquer decisão em favor da ciência. (pp. no como fator decisivo para que aqueles que op-
175-176) tarem pela ciência o façam de maneira racional,
A defesa de que a forma como se ensina ci- ponderando os benefícios da explicação cientí-
ência seja orientada por uma perspectiva histó- fica em relação a formas de explicação menos
rica ajuda a entender, a um só tempo, por que razoáveis. Pois somente com a ciência colocada
Feyerabend não é um inimigo da ciência, bem em posição de igualdade para competir com ou-
como por que tantos insistiram em assim classi- tras formas de conhecimento é que os indivíduos
ficá-lo. O que se constata em Feyerabend (1975) estariam em condição justa e legítima de optar
é simplesmente uma defesa de que a ciência seja pela explicação científica por convicção de que
ensinada de um ponto de vista histórico, e que suas virtudes são, em algum sentido, melhores,
esse ponto de vista não mascare seus embaraços superiores, mais convenientes ou mais efetivas
típicos. Ao contrário: que se dê relevo à natureza para satisfazer as necessidades que tais indivídu-
contingencial e humana da produção de conhe- os consideram que deveriam ser satisfeitas.
Skinner e Feyerabend sobre o Método e o Papel da Ciência em uma Sociedade Livre. 921

Nesse sentido, o anarquismo epistemológi- vezes preconceituoso e carente de controle por


co se aproxima de algumas tendências da filo- fontes externas à própria ciência. Essa é uma
sofia pragmatista contemporânea, que igualmen- preocupação especialmente relevante no campo
te critica a noção de “discursos privilegiados”. político, onde é comum a aliança entre estado
Talvez não haja melhor representante de tal e ciência, fazendo com que propostas políticas
tendência do que Rorty (1998), filósofo que ope- sejam acreditadas pelo parecer dos cientistas.
rou uma atualização do pragmatismo clássico, e Nesse contexto, muitas vezes o argumento de
que afiança: “a ciência, a religião e as artes são escolha é o da unanimidade: a comunidade cien-
instrumentos para a satisfação de desejos. Ne- tífica, tendendo sempre a convergir em direção
nhuma dessas áreas pode ditar, embora qualquer à unanimidade, ofereceria melhor alicerce à de-
uma delas possa e deva sugerir, quais desejos liberação política.
ter ou qual hierarquia avaliativa erigir” (p. 199). Em resposta a isso, Feyerabend (1978) in-
Na crítica à suposição de privilégio incondicio- verte o argumento, notando que, não raro, é jus-
nal da racionalidade científica e seu papel em tamente a unanimidade um resultado de decisão
uma sociedade que se pretende livre, Feyera- política:
bend (1975/1993) chega a mencionar a “filosofia A unanimidade é muitas vezes resultado de
pragmática”, declarando: uma decisão política: os dissidentes são su-
Uma sociedade baseada na racionalidade primidos ou permanecem em silêncio para
não é inteiramente livre; tem-se de jogar o preservar a reputação da Ciência como uma
jogo dos intelectuais. Uma troca aberta, em fonte de conhecimento confiável e quase in-
contrapartida, é guiada por uma filosofia falível. Em outras ocasiões, a unanimidade
pragmática . . . Uma troca aberta respeita é resultado de preconceitos compartilhados:
o parceiro, seja ele um indivíduo, seja uma as posições são tomadas sem um exame de-
cultura inteira, ao passo que uma troca ra- talhado do assunto sob inspeção e infundi-
cional promete respeito somente na estru- das com a mesma autoridade da pesquisa
tura conceitual de um debate racional. (pp. detalhada. (p. 88)
227-228) Mas como proceder, afinal? Se não se de-
É difícil ler Feyerabend sem conjecturar vem basear em ciência as decisões políticas,
como seriam os desdobramentos práticos de em que, então, elas deveriam se basear? Em um
uma abordagem anarco-epistemológica no cam- mundo repleto de problemas sociais dramáticos,
po social. Diante, por exemplo, da reclamação fomentar a suspeição diante de cientistas que
de que a ciência esteja separada do estado na buscam soluções possíveis parece ser tudo do
exata medida em que a religião está (ou deve- que a humanidade não precisa no momento. Não
ria estar): como isso se poderia manifestar no obstante, a perspectiva de Feyerabend (1978)
contexto da vida em sociedade? Em relação ao não reclama a exclusão da ciência e da racio-
ensino de ciências, como exposto, não é o caso nalidade do campo político. Não se trata, pois,
de excluir a ciência, mas sim de fazê-la conviver de destruir a ciência, mas de a destituir de uma
com demais possibilidades de conhecimento, e posição de privilégio. Tal destituição significaria
garantir que sua pluralidade metodológica e suas colocar a ciência em igualdade de condições na
limitações sejam salientadas em vez de eclipsa- competição com formas alternativas de conhe-
das. Ou seja, que se dê relevo aos imprevistos, cimento, garantindo que tenham igualdade de
percalços, acidentes, e que se previna a propaga- acesso às instituições do poder.
ção da ideia de ciência como um campo de saber Além disso, Feyerabend (1978) recomen-
superior e metodologicamente monolítico. da colocar a ciência sob o crivo de leigos que
Outra repercussão prática do anarquismo avaliem sua legitimidade. Tal proposta é levada
epistemológico envolveria mudanças nas re- pelo autor às últimas consequências, propondo
lações de poder entre especialistas e leigos. O que leigos, por geralmente serem aqueles dire-
parecer dos especialistas, afirma-se, é muitas tamente envolvidos com os problemas aos quais
922 Rocha, C. A. A.

a ciência se declara ocupada em resolver, deve- democracia de tal maneira que a grupo algum
riam deter o direito de supervisioná-la. A super- seja reservada a prerrogativa sobre o conheci-
visão da ciência pelos leigos poderia ocorrer em mento científico. Horizontalizando dispositivos
setores diversos: decisórios e radicalizando mecanismos demo-
Comitês de leigos devidamente eleitos cráticos tanto quanto o possível, a ciência não
precisam examinar se a teoria da evolução teria prerrogativa para servir à política como um
está realmente tão bem estabelecida quan- tribunal. No lugar de uma racionalidade perfeita
to os biólogos nos querem fazer crer, se o e incólume, a virtude mais desejável, nessa pers-
fato de estar estabelecida na opinião deles pectiva, seria a maturidade, que por Feyerabend
resolve a questão, e se ela deve substituir (1978) é entendida de maneira bastante particu-
outras ideias nas escolas. Eles devem exa- lar: “A maturidade de que estou falando não é
minar a segurança de reatores nucleares . . uma virtude intelectual, é uma sensibilidade que
. precisam examinar se a medicina merece só pode ser adquirida por meio de contatos fre-
a posição incomparável de autoridade teóri- quentes com pontos de vista diferentes” (p. 107,
ca . . . Os comitês também devem examinar itálicos adicionados).
se a mente das pessoas é avaliada de forma Passando, enfim, ao comportamentalismo,
adequada pelos testes psicológicos, o que se como seria possível articular proposições tão ex-
deve dizer sobre a reforma nos presídios – e travagantes como as de Feyerabend com o pen-
assim por diante. Em todos os casos a última samento de Skinner sobre o papel da ciência em
palavra não será dos especialistas, mas das uma sociedade livre? Como afirmado anterior-
pessoas diretamente envolvidas. (Feyera- mente, os discursos políticos presentes no texto
bend, 1978, pp. 120-121) skinneriano são vulneráveis a interpretações di-
Um dos mais frequentes argumentos con- versas. Uma delas, conduz a uma proposta mui-
trários afirma que essSe tipo de recomendação to distante da de Feyerabend (1978): trata-se de
desvia atenção do problema maior, qual seja, a uma forma de elogio à tecnocracia, um gover-
necessidade de instrumentalizar (leia-se, infor- no de técnicos, em que os processos de tomada
mar cientificamente) os leigos, para que então, e de decisão estariam concentrados nas mãos de
somente então, estivessem em legítima condição especialistas. É justamente uma realidade desse
de avaliar o conhecimento científico. Feyera- gênero a descrita na novela utópica Walden two
bend (1978), por certo, não esteve inadvertido de (Skinner, 1948), uma sociedade em que a deli-
tal argumento: sua resposta, contudo, é que essa beração política se centraliza em um grupo de
instrumentalização do leigo amiúde implicaria “planejadores”, havendo pouco espaço para par-
uma formação já alinhada com valores conven- ticipação popular e a comunidade leiga.
cionais, nos quais o privilégio da ciência é pre- Cabe ressaltar, porém, que Walden two, na
sumido de antemão, e assim veiculado. Subjugar ótica de Skinner (1948, 1969), descreve uma
o leigo como incapaz, nesse sentido, equivaleria sociedade idealizada, igualitária, onde cidadãos
a subscrever à ideia de que na sociedade os inte- gastariam poucas horas diárias com trabalho,
lectuais, por direito legítimo, é quem devem dar e sem que fossem obrigados a tal, onde as ar-
as cartas do jogo: ao anarquista epistemológico, tes e a ciência florescem e são incentivadas, e,
isso seria precisamente o oposto de uma socie- teoricamente, onde estariam abolidas formas
dade livre. espoliativas de controle. Para garantir o ideal
Para Feyerabend (1975/1999), a ciência “é funcionamento da comunidade, uma junta de
uma disciplina intelectual que pode ser exami- especialistas concentra o poder político, condu-
nada e criticada por quem estiver interessado, e zindo a uma espécie de “gestão experimental”
que parece difícil e profunda somente por causa da cultura, na emblemática busca utópica por um
de uma campanha sistemática de ofuscamento mundo melhor. Skinner (1948) tenta justificar a
realizada por muitos cientistas” (p. 187). O mais ausência de participação popular nesse processo
importante, desse ponto de vista, é expandir a de maneira um tanto quanto inusitada, como se
Skinner e Feyerabend sobre o Método e o Papel da Ciência em uma Sociedade Livre. 923

verifica na declaração do personagem Frazier, mocracia direta, ou participativa, podendo até


um dos planejadores: mesmo ser lido como um discurso com tendên-
O povo não está em condições de avaliar cias anarquistas. Trata-se de uma leitura bastan-
especialistas . . . O leigo não avalia a ne- te diversa da visão tecnocrática, fomentada pelo
cessidade de experimentação. Exige que o modelo de sociedade descrito em Walden two
especialista saiba. E é totalmente incapaz (cf. Lopes, 2015). Na descrição de tal possibili-
de aguentar o período de dúvida durante dade, encontra-se uma crítica à concentração de
o qual um experimento se desenvolve. Os poder: “A concentração de poder em uma agên-
especialistas devem ou disfarçar seus expe- cia é condenável, não só porque ele é caracte-
rimentos e fingir que sabem o resultado an- risticamente mal utilizado e desperdiçado, mas
tecipadamente, ou parar de experimentar in- porque destrói contatos interpessoais” (Skinner,
teiramente e lutar para manter o status quo. 1978, p. 9).
(Skinner, 1948, p. 251) A diferença importante a ser notada é entre
Seria possível argumentar que Walden two um Skinner (1948) que defenderia o gerencia-
se trata apenas de um romance, logo, não seria mento da sociedade por especialistas que con-
honesto avaliar a posição de Skinner a partir do centram poder político, e um Skinner (1978) que
que ali resta escrito. Todavia, tais críticas pode- advertiria que a concentração de poder por uma
riam ser respondidas por meio de declarações do agência controladora implica que tal poder seria
próprio autor, que observou, em referência ao caracteristicamente mal utilizado: o que pode-
romance, em primeiro lugar, que “para alguns riam revelar essas inconsonâncias? É possível
leitores o livro pode parecer ter sido escrito com supor que, na ótica skinneriana, diferentemente
ironia, mas foi na verdade uma proposta bastante de governo, religião, educação, psicoterapia e
séria” (Skinner, 1969, p. 199), e em segundo lu- economia – instâncias detalhadamente descritas
gar, que “os pontos de vista de Frazier são essen- como agências de controle do comportamen-
cialmente os meus próprios – mais agora do que to (Skinner, 1953/2005) – a ciência não é vista
quando eu os escrevi” (1983/1984, p. 9). como mais uma agência. Se a ciência será em-
Logo, no que se refere ao papel do conhe- pregada para o bem ou para o mal, isso é algo
cimento científico para a organização social, e que foge a seu próprio escopo: o problema não
mais especificamente para a política, é um tan- estaria na ciência per se, mas em suas aplicações.
to quanto claro que, para Skinner (1948), pelo Se isso estiver correto, a análise de Skin-
menos em uma das possíveis leituras que se ner (1953/2005) sobre o controle exercido pelas
pode fazer de sua visão política, a ciência e os diferentes agências poderia ser vista como uma
cientistas devem, sim, ocupar posição privilegia- forma de emprego do conhecimento científico
da, preferencialmente como gerentes, ou, mais para a denúncia de abusos do poder instituído.
precisamente, como planejadores da cultura. A ciência serviria tanto aos controladores quan-
Trata-se de garantir, numa aposta contrária à de do aos controlados – não seria mais libertária ou
Feyerabend (1978), que o especialista comande despótica por sua própria natureza. Os controla-
o processo de deliberação política, excluindo-se dos se poderiam valer da ciência do comporta-
a participação do leigo. mento para compreender em que medida o po-
Apesar disso, uma leitura alternativa do dis- der instituído os controla, e então se engajar em
curso político skinneriano é possível: em Com- estratégias do que Skinner (1953/2005) chamou
portamento humano e democracia, publicado de contra-controle, a exemplo de fuga, revolta e
quase três décadas após Walden two, Skinner resistência pacífica. Desse modo, o conhecimen-
(1978) apresenta uma crítica à democracia re- to fornecido pela análise do comportamento, ao
presentativa, acenando para possibilidades de viabilizar a compreensão e eventual desmantela-
organização social baseadas no que chama de mento de contingências opressivas, seria de es-
“controle face a face”, algo mais próximo à de- pecial interesse à luta pela liberdade.
924 Rocha, C. A. A.

Considerações Finais de com demais formas de conhecimento (tanto


no contexto dos processos educativos, quanto na
Ao longo do século XX, coexistiram discur- arena política), como também deveria se sujeitar
sos muito variados acerca da natureza da ciência à supervisão por leigos. Skinner, por seu turno,
e do método científico. Estabelecido nas primei- oscilando entre inspirações tecnocráticas e pró-
ras décadas, o positivismo lógico foi progressi- -anárquicas, ora recomendou o privilégio à ci-
vamente suplantado, especialmente da segunda ência no âmbito da deliberação política e a con-
metade do século em diante, primeiramente por centração de poder político por especialistas, ora
conta das críticas de Popper (1959/1972), a que criticou a concentração de poder, ao passo em
se seguiram perspectivas epistemológicas his- que preservou um otimismo em relação à ciência
toricamente orientadas, sendo uma delas a de como instrumento providencial ao contra-con-
Feyerabend (1975/1993). Nesse ínterim, B. F. trole e, consequentemente, à luta pela liberdade.
Skinner ocupava-se, sobretudo, com o estabe- A título de desfecho, convém arriscar uma
lecimento de uma ciência do comportamento, sugestão conciliatória: conquanto a olhos in-
dedicando-se, eventualmente, a discussões mais cautos aparentem ser pontos de vista, a um só
genéricas sobre a ciência e o método científico tempo, extremistas e radicalmente antagônicos,
em geral. Em Skinner (1956), notam-se anteci- as ideias de Skinner e Feyerabend, por inespe-
pações de algumas ideias que posteriormente rado que possa parecer, encerram proposições
surgiriam radicalizadas em traços do anarquismo virtualmente complementares. Se, por um lado,
epistemológico de Feyerabend. de Skinner deriva-se tanto a proposta de uma ati-
Desse modo, a perspectiva de Skinner tude experimental em política, quanto um alerta
(1956) representa relativo pioneirismo, consi- sobre os problemas da concentração de poder,
derando que, até então, a tendência positivista talvez valha a pena considerar vias que combi-
lógica ainda preservava influência considerável, nem o emprego da experimentação no campo do
em paralelo com progressiva ascensão do racio- governo, com a mitigação dos riscos do poder
nalismo crítico. É certo que inúmeras disparida- concentrado.
des podem ser assinaladas entre Skinner e Feye- Tal mitigação poderia, por exemplo, ser efe-
rabend. Mesmo sendo um empirista firmado, o tuada por meio da implementação da proposta
primeiro possivelmente não referendaria o exas- de Feyerabend (1978) sobre conselhos de leigos,
perado ataque de Feyerabend ao racionalismo. eleitos para supervisionar a ciência, abandonan-
De maneira semelhante, é provável que na ótica do-se, complementarmente, a recomendação do
deste último, o discurso skinneriano, conquan- primeiro Skinner (1948) sobre a prerrogativa ex-
to pontualmente crítico de formalismos, jamais clusiva dos especialistas em planejar a cultura.
seria suficientemente subversivo a ponto poder Os critérios de legitimação para os mecanismos
ser considerado fiador de um anarquismo episte- de planejamento seriam, portanto, definidos por
mológico. Mas afora as diferenças mais óbvias, aqueles diretamente envolvidos com os proble-
ambos produziram, cada qual a seu modo, con- mas a serem resolvidos. O silêncio de Skinner
tribuições significativas para pensar a empresa sobre o papel da ciência como uma agência con-
científica a partir da experiência prática, histori- troladora poderia ser corrigido com auxílio dessa
camente situada, convergindo em direção a uma proposição de Feyerabend.
epistemologia menos formalista e universalista, Adicionalmente, a constatação de Feye-
e mais contingencial. rabend (1975/1993) de que há, historicamente,
Em relação ao papel da ciência em uma uma relação íntima entre progresso e pluralismo
sociedade livre, notam-se as divergências mais metodológico poderia informar a proposta skin-
salientes entre Feyerabend e Skinner. Para o neriana de planejamento cultural. Galvanizado
primeiro, em uma sociedade livre, a ciência não por uma atitude anarco-epistemológica, o plane-
apenas deveria competir em posição de igualda- jamento poderia ver radicalizado seu caráter em-
Skinner e Feyerabend sobre o Método e o Papel da Ciência em uma Sociedade Livre. 925

pírico, submetendo à experiência uma variedade Feyerabend, P. K. (1993). Against method. London:
de procedimentos, garantindo e expandindo sua Verso. (Original publicado em 1975).
multiplicidade, e até mesmo recorrendo a pro- Feyerabend, P. (1999). How to defend society against
cedimentos, artifícios e técnicas provenientes de science. In J. Preston (Ed.), Paul K. Feyerabend:
formas de conhecimento alheias à ciência. As- Knowledge, Science and Relativism: Philoso-
sim, a tendência pragmatista de Skinner (1974), phical Papers Vol. 3 (pp. 181-191). Cambridge,
em se afastar do representacionismo e fazer da MA: Cambridge University Press. (Original pu-
efetividade seu critério de verdade, poderia con- blicado em 1975).
fluir com a tendência pragmatista de Feyerabend Feyerabend, P. (1975). ‘Science’. The myth and
(1975/1993), que recusa conceber a ciência como its role in society. Inquiry, 18(2), 167-181.
discurso privilegiado. Uma absoluta rejeição à doi:10.1080/00201747508601758
participação da ciência nos processos de geren- Feyerabend, P. K. (1978). Science in a free society.
ciamento da vida em sociedade, que poderia ser London: Verso.
inspirada pelas críticas de Feyerabend (1978),
Horgan, J. (1993, May). Profile: Paul Feyerabend –
mereceria ser revista a partir de um diálogo com
The Worst Enemy of Science. Scientific Ameri-
algumas das ideias de Skinner (1971) em favor can, 36-37.
de uma cultura deliberadamente planejada.
Ressalte-se o caráter sabidamente polêmico Laurenti, C. (2012). O lugar da análise do compor-
tamento no debate científico contemporâneo
da proposta aqui esboçada, a qual dificilmente
[The place of behavior analysis in the contem-
encontraria guarida sob a perspectiva de cada
porary scientific debate]. Psicologia: Teoria
um desses autores isoladamente. Não obstante, e Pesquisa, 28, 367-376. doi:10.1590/S0102-
considera-se uma proposta auspiciosa justamen- 37722012000300012. doi:10.1590/S0102-
te na medida em que procura abstrair de cada 37722012000300012
um deles aquilo que parecem oferecer de mais
Lopes, C. E. (2015). The political discourses of beha-
interessante, a exemplo do experimentalismo
vior analysis. Operants, 27-32.
comportamentalista e do irredutível plurarismo
de Feyerabend. Marin, S. R. (2012). Intervenção social e desenvol-
vimento humano em Karl Popper. In P. E. Oli-
De que modo uma proposta como essa se
veira (Ed.), Ensaios sobre o pensamento de Karl
veria efetivada na prática é uma questão que res-
Popper (pp. 252-273). Curitiba, PR: Círculo de
ta ser averiguada. Uma eventual coalizão entre o Estudos Bandeirantes.
experimentalismo comportamentalista e o plura-
lismo anarco-epistemológico poderia gerar con- Moxley, R. A. (1998). Why Skinner is difficult. The
Behavior Analyst, 21(1), 73-91.
sequências tão inusitadas quanto imprevisíveis.
Não obstante, parece se tratar de uma aliança Moxley, R. A. (1999). The two Skinners, modern
promissora, posto que fiada por uma esperança and postmodern. Behavior and Philosophy, 27,
pela qual vale a pena trabalhar, qual seja, a espe- 97-125. Recuperado em http://www.jstor.org/
rança de que a busca por um mundo melhor não stable/27759395
obstrua o caminho em direção a uma sociedade Popper, K. R. (1972). A lógica da Pesquisa Cientí-
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