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CULTURA E MEMÓRIA: narrativas de artesãs ribeirinhas de Cuiabá

Cilene Leite de Mello


Mestranda do Programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura
Contemporânea (PPG ECCO) UFMT
Professora na Secretaria de Estado de Cultura de Mato Grosso (SEDUC)
Universidade Estadual de Mato Grosso (UNEMAT)
cilenemello@bol.com.br

RESUMO

O objetivo é compartilhar reflexões sobre relato de experiência da artesã ribeirinha, ceramistas, moradora do
São Gonçalo Beira Rio na cidade de Cuiabá MT. Fundamentamos nos princípios teóricos dos estudos
culturais e no pensamento sobre o sujeito ordinário e sua arte de fazer (CERTEAU, 1998), a
invisibilidade das pessoas comuns na sociedade, sobre a imposição do sistema capitalista pela sociedade
de controle (DELEUZE, 1992; 2006) e sobre a necessidade que as culturas populares possuem em ter
agentes modernos para a mercantilização dos saberes (CANCLINI, 1998). Metodologicamente é de cunho
qualitativo, com entrevista e das narrativas da artesã foi produzido um vídeo com intuito de valorizar a
memória e mostrar a força da cultura local. Constata-se a necessidade de compreender o fazer diário das
artesãs um trabalho de resistência, participação e de pertencimento ao local.

Palavras-Chave: Artesanato. Cultura. Popular. Sociedade.

ABSTRACT
The objective is to share reflections on the experience report of riverside artisan, potters, resident of São
Gonçalo Beira Rio in the city of Cuiabá - MT. We grounded in the theoretical principles of cultural studies
and the thinking about the 'ordinary subject' and his 'art of doing' (CERTEAU, 1998), the 'invisibility' of
ordinary people in society, about the imposition of the capitalist system by the 'control society'. '(DELEUZE,
1992; 2006) and on the need that' popular cultures' have for 'modern agents' for the commodification of
knowledge (CANCLINI, 1998). Methodologically it is of a qualitative nature, with an interview and from
the artisan's narratives, a video was produced in order to value the memory and show the strength of the local
culture. There is a need to understand the daily making of artisans a work of resistance, participation and
belonging to the place.

Keywords: Crafts. Culture. Popular. Society.

INTRODUÇÃO

Este relato de experiência se dá a partir da fala de uma artesã, moradora de uma comunidade
ribeirinha, onde um grupo de artesãs, pertencentes a Associação de Ceramistas, receberam a visita
de um representante de uma indústria de móveis e artigos de decoração na comunidade, onde o
mesmo propôs a essas ceramistas que fabricassem várias peças de argila (barro) para que a empresa
escolhesse entre elas, dez modelos para que fossem fabricados para a comercialização em todo
Brasil.

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Nessa proposta, estava incluso um curso de manuseamento de forno elétrico (digital), um


curso de administração financeira para vendas dos produtos em grande escala e embalagens para
esses produtos. Essa intenção visava que as artesãs escolhidas, deixassem seu modo artesanal de
produção (peça por peça), inclusive a queima dos produtos que eram feitas em fornos caseiros (de
barro) no fundo do quintal, para passarem a fazer em fornos elétricos digitais, em grande escala,
visando o lucro.
Esse relato de experiência inclui um audiovisual com 10 (dez) minutos de duração, em
formato de desenho, como um mecanismo de apresentação da pesquisa. O objetivo deste
audiovisual é valorizar essa tecnologia como um recurso para mostrar pesquisas realizadas na
concepção de saberes locais.1
Neste relato de experiência, vamos fazer uma breve análise sobre a visão de Michel de
Certeau (1998) sobre o homem ordinário e sua arte de fazer, a invisibilidade dessas pessoas comuns
na sociedade, sobre a imposição do sistema capitalista pela sociedade de controle colocada por
Jacques Deleuze (1992) e sobre a necessidade que as culturas populares possuem em ter agentes
modernos para a mercantilização dos saberes simbólicos e materiais colocado por Néstor Garcia
Canclini (1989), fazendo uma ponte desses assuntos com o relato da artesã em relação à situação
que aconteceu em sua comunidade.
O uso do vídeo como ferramenta de pesquisa é baseado na fala de Jacques Deleuze que diz
que com o advento da televisão, o mundo começou a fazer o seu próprio filme, usando as câmeras
de celulares, webcans, tabletes ou até profissionais para relatar o cotidiano das pessoas. Esses
relatos expõem, muitas vezes, as banalidades do dia a dia. É uma movimentação em favor de uma
formação profissional do olho, onde há o mundo de controladores e controlados que se comunicam
através da admiração pela técnica, nada, além disso, .
Esse domínio do audiovisual é controlado por agentes que tem como objetivo a manipulação
dos controlados sob o mundo capitalista. Evidenciamos que esse recurso potencializa a reflexão em
relação as falas dos autores aqui citados, associando-as a experiência ocorrida na região ribeirinha,
na cidade de Cuiabá, no Estado de Mato Grosso.

1. O SUJEITO ORDINÁRIO NO CAPITALISMO

Certeau conceitua a cultura popular como aquela que desenvolve uma arte de fazer, ou seja,
uma arte de consumos combinatórios associada a arte de utilizar:

rios. Essas práticas

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maneira de agir, uma arte de combinar indissociável de uma arte de utilizar.


(CERTEAU, 1998, p. 42).

Essa arte se dá como qualquer pratica cotidiana: de falar, caminhar, cozinhar. A cultura
popular é valorizada a partir desses tipos de arte, realizada pelo homem ordinário no seu dia a dia,
conforme conceituado por Certeau: um ser que, até então, não é valorizado pela sua capacidade de
criatividade. Ele simplesmente realiza as tarefas do seu dia a dia. Homens e mulheres comuns,
desprovidos de recursos interessantes à sociedade, onde vivem em um ambiente simples, com
escassez de recursos e produzem produtos que até então não eram notados pela sociedade.
[...] A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta

astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente, silenciosa


e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de
empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante.
(CERTEAU, 1998, p. 39).

Os produtos feitos por esse homem denominado por Certeau, como ordinário, tem uma força
que, embora pareça invisível, é capaz de se impor diante da sociedade de controle colocada por
Deleuze:
A sociedade de controle é a sociedade subsumida na sua integralidade, até os
centros vitais de sua estrutura social; trata-se de um controle que invade a
profundidade das consciências e dos corpos da população, atravessando as relações
sociais e as integralizando (PELBART, 2006, p. 82-83).

A preocupação imediata com o dinheiro e com o lucro é uma das características principais
desta sociedade no mundo capitalista. Ela não se preocupa com o homem que produz, mas com os
produtos que são produzidos por ele e podem gerar lucro.
[...] Em termos de bens culturais: a cultura erudita e de massas absorvendo a
estética ou objetos da cultura popular, e esta introduzindo elementos da cultura
erudita e de massas, tudo dentro de uma lógica de mercado que obedecia ao
riações populares, mas não as pessoas que as criam
(CANCLINI apud LIFSCHITZ, 2006, p. 68)

Esse interesse demonstra a intenção da sociedade de controle, representantes da indústria


cultural, de se apropriar dos bens simbólicos da cultura popular, com o objetivo de ampliar o
consumo, repassando a ideologia de que estão ajudando e valorizando essa cultura.
Certeau apud Foucault (1998, p.41) substitui a análise dos aparelhos que exerce o poder (...)
pelos dos dispositivos que vampirizam as instituições e reorganizam clandestinamente o
funcionamento do poder: (...) tecnologias mudas determinam ou curto-circuitam as encenações
. Assim ele diz:
Se é verdade que por toda parte se estende e se precisa a rede da vigilância , mais
urgente ainda é descobrir como é que uma sociedade inteira não se reduz a ela: que
procedimentos populares (também minúsculos e cotidianos) jogam com os

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mecanismos da disciplina e não se conformam com ela a não ser para alterá-los;
formam a contrapartida do lado dos consumidores
dos processos mudos que organizam a ordenação sócio-
política. (CERTEAU, 1998, p. 41).

Essa sociedade, que até então parecia ter o outro, principalmente político e financeiro, nas
suas mais bárbaras propostas realizadas em relação a cultura popular, se defronta com as tais

resistência a esse controle: uma proteção aos seus produtos que tão dignamente não podem ser
confiados a essa indústria cultural que visa somente lucro, sacrificando-os em suas formas de fazer
chamadas Canclini (2001) demonstra essa situação de uma forma diferente:
Contudo, as neocomunidades não devem ser interpretadas como mero processo de
mercantilização da tradição, do qual somente os agentes modernos se beneficiam.
Os agentes modernos podem estabelecer, com os agentes tradicionais, relações de
mútua dependência. Por um lado, as instituições externas, que representam a
modernidade, precisam da tradição comunitária para viabilizar seus projetos e para
gerar novos recursos vinculados ao patrimônio material e imaterial. Por outro, a
comunidade, que representa a tradição, precisa das instituições externas para
projetar seu valor, tanto no sentido simbólico quanto no material (CANCLINI,
2001, p. 68).

Para ele, as comunidades culturais populares necessitam de agentes modernos que os


beneficiem no sentido de proteger seu patrimônio material e imaterial projetando o seu valor no
sentindo simbólico e material. É como se a comunidade é o meio organizador desse patrimônio
unido aos agentes modernos que possuem a tecnologia, e meios especializados da mercantilização
dos saberes. Mas Canclini (2001) não descarta a ideia de que embora toda essa união de cultura
popular mais agentes modernos podem resultar em conflitos e devem ser analisados
adequadamente.
Canclini entende que a cultura popular produz as chamadas

Mas Canclini (1989) se preocupa também com as necessidades contraditórias do consumo:


que se de um lado, há turistas estrangeiros que gostam de comprar o artesanato rudimentar, pelo
valor conotativo dele, atestando sua viagem ao estrangeiro, demonstrando a compra do que há de
mais primitivo e ao mesmo tempo demonstrando a forma de
sociedade mecanizada e a capacidade de "escapar" mediante a aquisição de objetos singulares, por
outro lado, esses próprios produtos fabricados pela arte de fazer, são menos usados na própria
cultura popular, sendo substituídos por produtos industrializados.

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Na verdade, percebemos que os que são a favor, ou contrários a indústria cultural adentrar a
comunidades como um meio de apropriação dos bens simbólicos, revelam que sempre haverá uma
situação de conflito e uma possível desestruturação dessa comunidade.
Os modernizadores extraem dessa oposição a moral de que seu interesse pelos
avanços, pelas promessas da história, justifica sua posição hegemônica, enquanto o
atraso das classes populares as condena à subalternidade. Se a cultura popular se
moderniza, como de fato ocorre, isso e para os grupos hegemônicos uma
confirmação de que seu tradicionalismo não tem saída; para os defensores das
causas populares torna-se uma evidência da forma como a dominação os impede de
ser eles mesmos. (CANCLINI, 1990, 206).

Canclini (1990) aponta que a cultura popular só sobreviverá em função da ajuda da


ombinar com o moderno quando a exaltação das
tradições se limita à cultura enquanto a modernização se especializa nos setores social e
(CANCLINI, 1990, p. 206). Mas, isso é algo de longa discussão e estudo, uma vez que,
na visão de Canclini, o popular se constrói a partir de uma perspectiva moderna, ou seja, ele passa a
não ser mais ele mesmo, mas se reconstrói

2. O LUGAR E O COTIDIANO DAS ARTESÃS

O relato de experiência se deu a partir da visita da pesquisadora na comunidade. Uma das


artesãs, moradora do bairro São Gonçalo Beira Rio, na cidade de Cuiabá MT mencionou a
tentativa de industrialização da arte. Vale destacar que nessa comunidade moram aproximadamente
223 (duzentos e vinte e três) habitantes conforme o senso 2010, sendo 113 (cento e treze) homens e
110 (cento e dez) mulheres. A faixa etária de maior prevalência é entre 15 a 64 anos. 2
É a partir dessa comunidade que surgiu a cidade de Cuiabá, datando sua fundação no ano de
1719, como diz Santos:
A origem e o povoamento da comunidade de São Gonçalo Beira Rio, em Cuiabá,
datada a partir do século 18, quando as primeiras expedições de bandeirantes
paulistas chegaram em Mato Grosso. A missão era capturar índios (Bororos), a fim
de torná-los escravos. A comunidade foi um dos primeiros povoados de Cuiabá.
Segundo relatos de moradores, a pequena imagem do santo que deu origem ao
nome do bairro foi encontrada dentro do rio por um dos primeiros ocupantes da
área. A partir dessa data o local passou a ter o nome que persiste até hoje. De
localização estratégica, à margem esquerda do rio Cuiabá, o primeiro povoado só
veio a se concretizar com a descoberta das minas do Coxipó do Ouro, em meados
de 1719, sendo denominado de Arraial de São Gonçalo Beira Rio. Para assegurar o
direito de posse da área, foi lavrada uma ata de fundação, no dia oito de abril de
1719. Neste período, a região detinha o porto que permitia a comunicação entre as
minas e a Capitania. Por isso, próxima à barra do rio Coxipó, foi erigida uma
capela dedicada a São Gonçalo. (SANTOS, 2009, p. 4)

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ribeirinhas logo nos ligamos ao ponto central do


termo: ribeirinho que vem de rio
que a presença do rio é um fator preponderante na formação da identidade cultural desse povo.
A presença do rio elucida práticas naturais na comunidade como pesca, caça e plantio, sendo
assim, imaginamos ser um povo que vive em casas de madeiras, que sobrevivem de caça e pesca,
em que a maioria dos moradores são familiares, que praticam a troca de mercadorias e vivem de
forma rudimentar, longe do progresso e das tecnologias da cidade. Cruz (2011, p.2) nos diz que:
Esse padrão espaço-temporal se molda a partir de uma forte dependência da
natureza, num ritmo lento plasmado num modo de vida e numa sociedade pautadas
no esquema rio-várzea-floresta. A vida se tece pelas relações estabelecidas através
do rio.

Esses homens e mulheres pertencentes a comunidade são homens comuns, que trabalham em
função de suas famílias, gerando fonte de renda e de alimentos e fabricando seus próprios utensílios
como forma de sobrevivência.
Mas em um dado momento essa cultura pura e genuína é invadida pelo progresso:
década de 1960, a comunidade foi incorporada à área urbana de Cuiabá, quando os técnicos da
prefeitura promoveram a alteração de sua denominação de São Gonçalo Velho para bairro São
Gonçalo Beira Rio. (SANTOS, 2009, p. 4)
Parte de suas casas foram reconstruídas de alvenaria, as ruas de terras foram substituídas por
asfalto, o ônibus substituiu o transporte à pé e/ou de barco. A vida pacata foi substituída por um
ambiente de bares, peixarias, restaurantes que oferecem a população de Cuiabá os produtos da terra:
peixes, comidas típicas, artesanato, festas.

a. O RELATO DA ARTESÃ

No dia vinte e sete de setembro do ano de dois mil e dezenove fiz uma visita a comunidade do
bairro São Gonçalo Beira Rio para conhecer meu campo de pesquisa. A primeira pessoa que
encontrei foi uma artesã da qual tive uma conversa informal. Essa artesã é associada a Associação
dos Ceramistas do bairro São Gonçalo Beira Rio. Nesta conversa ela relatou alguns fatos sobre o
lugar, dos quais uma das falas me chamou a atenção, da qual irei pontuar à partir do ponto de vista
dos autores.
A artesã moradora do São Gonçalo Beira Rio, em Cuiabá MT nos relatou a situação da
seguinte forma:
Um dia recebemos a visita de um representante de uma indústria de móveis e
produtos de decoração. Esse representante veio até a nossa comunidade nos
conhecer. Mediante essa visita, esse homem nos fez uma proposta: para as

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mulheres pertencentes a Associação dos Ceramistas do São Gonçalo Beira Rio.


Essa proposta consistia em que cada mulher fizesse algumas peças de cerâmica,
para entre todas as peças, fossem escolhidas dez, para a fabricação por essa
empresa.

Em um primeiro momento, essa fala nos chamou a atenção por relacionarmos essa arte de
fazer do homem ordinário, citada por Certeau (1998) com a prática dessas artesãs ribeirinhas no que
tange a realização das peças de argila, ou seja, o desenvolvimento de sua atividade como ceramista,
que envolve uma prática realizada no seu cotidiano desde a infância e que vem do rio como diz
Cruz (2011).
Essa arte se dá como qualquer pratica cotidiana: de falar, caminhar, cozinhar. Essa prática
vem dos seus antepassados, passando de mães para filhas. Conforme depoimento da artesã, ela
aprendeu a fazer as cerâmicas com sua mãe e todo o processo de extração do barro. Elas iam ao
local onde encontravam a argila, levando enxada e pá e traziam a canoa cheia até a comunidade,
onde faziam o artesanato.
Nessa época, fazer duas bolas, uma maior e outra menor e, coloca-las uma em cima da outra,
já era considerado um boneco, um enfeite de cerâmica, conforme o próprio testemunho da artesã. O
objetivo principal era apenas fazer objetos que fossem utilizados no seu dia a dia, como ferramentas
utilitárias para uso doméstico.
Com o passar do tempo, suas peças foram se aprimorando, se tornando mais bonitas, e além
de utilizar como utensílios domésticos na comunidade, elas também tinham uma propriedade de
embelezamento, de ornamento.
As peças que eram feitas para o próprio uso doméstico como jarras, copos, botijas para água,
foram se tornando fruto de admiração de outras pessoas, dando uma iniciação a comercialização. Na
descoberta desse valor, as artesãs passaram a produzir suas peças e leva-las para o outro lado do rio,
onde havia uma espécie de feira onde comercializavam esses produtos.

pessoas que não tem educação, bruto, bravo, que fala errado e são grossos. 2
Essa mulher comum, desconhecida, sem muito valor pela sociedade, na posição de homem
ordinário e representante da cultura popular, que pode falar em nome de muitos, nos lembra da fala

narrador, quando define o lugar (comum) do discurso e o espaço (anônimo) de seu

Uma história narrada pela figura central do acontecimento, estabelecendo a relação espaço-
lugar, definido a partir de sua própria visão e experiência, expressados em sua arte de fazer,

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Esse grupo de mulheres ceramistas foram capazes de produzir algo que despertou o interesse

vida comum e sua produção colocado por Deleuze (1992), no que se refere a ser uma sociedade
subsumida na sua integralidade(...)que invade a profundidade das consciências e dos corpos da
-83).
Mas Canclini (2001) deixa bem claro que os agentes externos possuem interesse apenas nos
produtos que os agentes culturais produzem.
[...] Em termos de bens culturais: a cultura erudita e de massas absorvendo a
estética ou objetos da cultura popular, e está introduzindo elementos da cultura
erudita e de massas, tudo dentro de uma lógica de mercado que obedecia ao

(CANCLINI apud LIFSCHITZ, 2006, p.68)

Não interessa o artesão, ou artesã, o artista, ou seja, a quem podemos atribuir a produção do
bem. Apenas o produto produzido é o foco de interesse. O objeto que irá proporcionar venda lucro,
riquezas.
Seguindo o depoimento da artesã, ela disse que:
A proposta era que as próprias ceramistas, fabricassem essas peças, mas usassem o
forno elétrico. Então o negócio se dava da seguinte forma. Aquelas que fossem
escolhidas, fariam um curso de manuseamento de forno elétrico, sobre mercado
financeiro e orçamentos e também embalagens. Ao final do curso, ganhariam o
forno elétrico como presente. Assim, as artesãs concordaram com a proposta e
foram escolhidas as dez peças. As mesmas foram para o Sebrae participaram de
todos os cursos propostos inclusive do forno elétrico, que era todo digital. Mas o
problema foi o seguinte: o representante solicitou que fabricássemos cinco mil
peças para o início do negócio e nos pagaria após noventa dias. Só que tem um
porém. O artesão trabalha com o dinheiro girando, rápido. Ele não consegue ficar
parado. Porquê .. precisa... é muita coisa que tem que fazer. Puxa uma argila, é
armazenamento, é lenha, é forno essas coisas. Aí o que aconteceu com essa
empresa: ela veio... nós fizemos o treinamento, aprendemos a lidar, a fazer
orçamento, a lidar com o mercado, embalagem, tudo, nós tivemos um aparato de
informações para atender mercado. Até prateleira. Ganhamos forno elétrico em
comodato com o Sebrae. Mas é complicado, porque? Quando nós preparamos o
forno a lenha, ele tem oscilações de temperatura, então assim, sai uns mais
vermelhos, outros mais branquinhos. O forno elétrico, ele é padrão, uma cor só. Ele
é fechado e é pelo computador. Nós fizemos o curso do computador, do forno
elétrico. Foi eu, a minha irmã, e assim nós fizemos. Então você vai lá e coloca a
peça: quero que a peça seja queimada a 950 graus. Ai eu digito a temperatura, e eu
quero que seja queimado em oito horas, eu vou lá e digito oito horas. Fecho o forno
e vou pra casa, pode chover, fazer frio, tô tranquilo. Vai sai tudo num padrão só de
queima. Nós fizemos tudo isso pra tentar. Ai o Sesc, não o Senai, deu esse curso
pra gente, pra atender mercado.

Podemos fazer uma associação da proposta que o representante da indústria de móveis e


produtos de decoração fez às artesãs e a preocupação da fabricação de seus produtos em
quantidades maiores, usando o forno elétrico, como tecnologia digital, ferramenta das sociedades de
controle relatada por Deleuze, com a fala de Certeau:

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No saber-fazer conseguiu aos poucos isolar aquilo que poderia ser destacado da

retirados da competência manual (ultrapassam-na tornando-se máquinas) e


colocados num espaço próprio, sob a jurisdição do engenheiro. Passam a
subordinar-se a uma tecnologia. E agora o saber-fazer se acha lentamente privado
daquilo que o articulava objetivamente num fazer. Aos poucos essas técnicas lhes
são tiradas para serem transformadas em máquinas, então o saber-fazer parece
retirar-se para um saber subjetivo, separado da linguagem de seus procedimentos
(que agora lhe são devolvidos e impostos em máquinas produzidas por uma
tecnologia). (CERTEAU, 1998, p. 141)

Ao comentar sobre o uso de máquinas na sociedade, classificando cada uma delas a partir do

de uma terceira espécie, máquinas de informática e computadores, cujo perigo passivo é a

Há uma relação forte entre a fala de Certeau e Deleuze no que se refere a invasão das
máquinas ou recursos tecnológicos substituindo o fazer do artesão. Uma tecnologia que força a
ingenuidade das culturas populares na produção de seus objetos artesanais (manual) na substituição
pelo aparato tecnológico.
A artesã prossegue dizendo:
Eu não aceitei, minha peça foi escolhida, duas peças. Eu não aceitei porque: Eu sou
artista plástico e gosto de fazer muita peça exclusiva. Tenho muitas peças
exclusivas, ai eu crio na hora. A vezes eu to na madrugada e dá um estalo, eu penso
em uma peça, eu quero fazer aquela. Ninguém consegue fazer igual, porque é peça
única. Trabalho muito com escultura, e até pra eu pagar alguém pra me auxiliar, é
até difícil, porque, escultura, ela é própria da pessoa. É seu o estado emocional, a
sua energia que está ali.

Essa fala da artesã confirma tal qual o comentário de Canclini:


Se a cultura popular se moderniza, como de fato ocorre, isso e para os grupos
hegemônicos uma confirmação de que seu tradicionalismo não tem saída; para os
defensores das causas populares torna-se uma evidência da forma como a
dominação os impede de ser eles mesmos (CANCLINI, 1990, 206).

A artesã diz que a maneira como a sociedade de controle quer impor seu modo de produção
tecnológica, a impede de ser ela mesma, de desenvolver seu talento como artista. Confirma-se
então, que muitos estudos devem ser feitos para intermediar essa relação entre o tradicional e o
moderno, entre as culturas populares e os agentes externos.
A artesã diz ainda:
Ai o que eles queriam? Eles queriam, por exemplo: eles vêm aqui e me encomenda
cinco mil peças. Eu tenho que fechar com eles as cinco mil peças e não posso
vender pra ninguém, exclusivamente deles, ai eles só iam passar o dinheiro pra
mim, em noventa dias: isso não existe. Você fica escravo.

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Nessa lógica de substituição (fazer manual X máquina) a intenção era convencer as artesãs de

organização transversal de indivíduos livres... Estão inteiramente penetradas pelo dinheiro: não por

A preocupação imediata com o dinheiro e com o lucro é uma das características principais do
mundo capitalista. Ao ler notícias diárias vemos que as indústrias têm por objetivo chegar a uma
produção com cem por cento de qualidade, visando um controle de sistema de automação,

desde o projeto até a produção final do produto.


No momento em que as artesãs rejeitaram o uso do forno elétrico, elas tiveram uma atitude
3
bricolagem colocada por Certeau em relação a
cultura dominante. No entendimento de que o uso dessa ferramenta (forno elétrico)
descaracterizaria sua obra de arte, usaram de seus próprios meios para burlar a intenção da
sociedade de controle, ou seja, da indústria de móveis e objetos de decoração.
A artesã continua dizendo que:
O forno auxilia, ajuda? Ajuda, mas eu tenho o forno caipira, e eu uso muito,
minha irmã que ta lá. O forno elétrico ta lá na casa da minha irmã. E agente atende
assim, quando é coisa rápida, fazer casamento, uma encomenda rápida, você tem
agilidade, lembrança de aniversário, essas coisas, pecinha pequena, ai agente usa
bastante. Mas, para outros tipos de coisas, não funciona, por quê? Primeiro: o forno
elétrico tem que ta em ponto zero. A cerâmica, a peça tem que tá zero, zero, em
tempo de osso, ela não pode ter um milímetro de água. Se ela for pro forno elétrico,
eu tenho todo o trabalho de um mês inteiro, uma fornada, eu perco tudo, porque ela
explode tudo. Uma peça destrói outra. No forno a lenha eu controlo o fogo, eu
costumo dizer para os meus clientes, assim: eu controlo o fogo, porque eu coloco
peça molhada lá e consigo tirar ela prontinha.

A tentativa das artesãs resistirem a tal procedimento, nos arremete a fala já citado acima de
Canclini (2001) que nos chama a atenção que, em uma situação de oposição entre culturas
populares e agentes modernos, pode haver uma concordância no sentido de que ambas podem ser
beneficiadas nessa relação:
[...] Por um lado, as instituições externas, que representam a modernidade,
precisam da tradição comunitária para viabilizar seus projetos e para gerar novos
recursos vinculados ao patrimônio material e imaterial. Por outro, a comunidade,
que representa a tradição, precisa das instituições externas para projetar seu valor,
tanto no sentido simbólico quanto no material. (CANCLINI, 2001, p. 68)

Nesse relacionamento, a cultura popular, pode se utilizar das tecnologias dos agentes
externos, representantes da modernidade, como um meio de divulgar sua cultura, de ter recursos
financeiros para manter suas tradições. Já os representantes da modernidade, classificado como a

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sociedade de controle por Deleuze, podem ter seus lucros rentáveis, no sentido de ideologicamente
contribuir para a manutenção de uma cultura tradicional e ao mesmo tempo produzir seus ganhos
monetários.
De certa forma, há um jogo de interesse: por um lado os agentes externos necessitam
viabilizar seus projetos para acarretar recursos vinculados ao patrimônio material e imaterial e, do
outro lado, a comunidade ribeirinha que tem interesse em projetar seu valor simbólico e material.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ribeirinho é o homem ordinário, invisível comentado por Certeau. Ele é invisível, até que
produza algo que chame a atenção da indústria cultural. Mas é bem claro, que o interesse passa a ser
pelo objeto produzido por esse ribeirinho, como argumenta Canclini.
Deleuze considera que esse interesse visa apenas lucro para as indústrias e não considera se
prejudicará a cultura popular ou não.
Podemos considerar que o desejo da continuidade de produzir as peças, uma a uma, se
preocupando com a arte de fazer cotidianamente, tendo o prazer no trabalho popular, sem ofuscar a
arte de um povo ribeirinho, mantendo o desejo de enriquecimento longe de suas tradições, é uma
forma de opor-se ao capitalismo cultural como citado Certeau.
As comunidades ribeirinhas, considerada como neocomunidades por Canclini, necessitam de
agentes externos para que o seu processo cultural seja cultivado. Há uma necessidade de se
estabelecer uma relação de mútua dependência entre os agentes tradicionais, representados por essa
comunidade e os agentes modernos. Assim, as comunidades conseguirão projetar seu valor e
cultivará seu valor simbólico e material e os agentes modernos viabilizarão seus projetos e gerarão
novos recursos vinculados ao patrimônio material e imaterial (CANCLINI, 2001).
Através desse relato observamos que muitos estudos devem ser levantados em função de se
pesquisar o que é prejudicial ou não as culturas populares. Devem-se desenvolver meios de diálogos
entre as culturas populares e agentes externos no intuito de se descobrir o que ajuda e o que
prejudica essas culturas. Há uma necessidade de se buscar meios para que a entrada de agentes
externos não venha a forçar a cultura popular a ter que se reconstruir aos modos dos agentes
externos, interferindo em toda a sua verdadeira estrutura, conforme Canclini.

NOTAS
Link do audiovisual:
https://www.youtube.com/watch?v=7YYoe5S-VXw&feature=youtu.be&t=23&fbclid=IwAR0n0m-
68XdcD3SbGIJmsFQzF75UhHQ_t9T9LtwwdILHk5O9yOzQPJyCtvo

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As informações foram tiradas do site http://populacao.net.br/populacao-sao-goncalo-beira-


rio_cuiaba_mt.html

REFERÊNCIAS

CANCLINI, Néstor Garcia. Las Culturas Populares em el Capitalismo. México: Nueva Imagem,
Cuarta Edición, 1989.

___________________ Culturas Híbridas: Estratégias para entrar e sair da modernidade/ Tradução


Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP, 4ª ed., 2015 (1990).

CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: Artes de fazer. 3ª ed. Petrópolis: Editora Vozes,
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CRUZ, Valter do Carmo. Rio Como Espaço de Referência Identitária na Amazônia: considerações
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