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RELIGIÕES
Introdução
A fundação do cristianismo, enquanto religião oficial, não ocorreu de forma
rápida ou abrupta. Alguns teóricos e pensadores atribuem o surgimento
do cristianismo e a sua ascensão à abertura dada pelo helenismo. Vale
lembrar que tal movimento possibilitou a expansão do território grego
e também a intersecção cultural entre os povos desse período. Assim,
existiam várias escolas de pensamento, o que demonstra uma abertura
à pluralidade e à alteridade. Devido a essa expansão, a religião foi se
transmutando do helenismo para o politeísmo.
Nesse sentido, faz-se necessário, ainda, que tal discussão seja de ca-
ráter mais moderno, distinguindo dentro da história de religião o ponto
em comum que configura o que é sagrado e o que é profano, inclusive
para se entender a instituição de uma religião. Teologicamente, é rico o
debate da obra tão atual de Santo Agostinho, que, apesar de ter vivido
nos primórdios da Idade Média, contribui para entendermos o argumento
com viés filosófico, histórico e religioso sobre o cristianismo.
Neste capítulo, você vai ver como ocorreu a transição do mito ao
cristianismo ou, ainda, do politeísmo greco-romano ao monoteísmo
cristão. Além disso, vai conhecer a relação, do ponto de vista sociológico,
entre sagrado e profano e, por fim, o pensamento teológico de Santo
Agostinho, inclusive como crítica ao politeísmo.
2 A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média
Jocasta, sua mãe. Assim, Laio decidiu que o menino deveria morrer, convocou
um pastor e o incumbiu de pendurar o bebê pelos pés, em uma árvore presente
nas encostas do monte Citerão, e deixá-lo para ser comido pelos gaviões e
outros animais (SÓFOCLES, 1995). O pastor ficou com pena e não conseguiu
abandonar o bebê; em seguida, entregou-o para a família do rei de Corinto,
Políbio, que o adotou como filho. Quando Édipo cresceu, os pais lhe contaram
o segredo e o jovem se rebelou; ao sair transtornado, acabou encontrando
alguns viajantes e, em meio a uma discussão, matou-os. Um dos mortos era
o seu pai biológico e, sem saber disso, Édipo dá continuidade a sua viagem
solitária. Chegando a Tebas, Édipo desvenda um desafio que foi proposto
pela Esfinge “[...] que criatura pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem
dois, à tarde tem três?” (SÓFOCLES, 1995, p. 397). Édipo decifra o mistério:
trata-se do ser humano que, quando bebê, engatinha, quando adulto, caminha
com suas duas pernas, e, quando envelhece, caminha com três porque usa a
bengala. Assim, quem desvendasse o desafio deveria se tornar rei, casando-se
com Jocasta, a rainha. Édipo se casa com a sua mãe, têm quatro filhos e, ao
consultar o oráculo, descobre que cumpriu o seu destino. Arrependido, vaza
os próprios olhos e se torna um mendigo.
Tal mito representa a superioridade religiosa a despeito da ordem racional
(SÓFOCLES, 1995). Ou seja, Édipo, ao desvendar o mistério da esfinge, coloca
em uso toda a sua capacidade racional, que, ao mesmo tempo, não lhe serve
muito ao pensar os próprios acontecimentos de sua vida, ao tentar desvendá-la.
O politeísmo grego, então, alude a uma experiência ulterior do ser humano,
que busca no divino explicação para a qual a razão não orienta naturalmente.
Por outro lado, observamos, também, que o autor, Sófocles, está expressando
a crença humana na justiça divina: uma justiça incompreensível.
Nesse sentido, apesar de ter sido “superada”, a religião grega mantém na
humanidade que viria a se tornar cristã a função fulcral da religião. Vários
motivos são associados a essa transição, e um deles é, incontestavelmente, a
ascensão da filosofia como busca do conhecimento racional sobre a realidade.
Contudo, no período intitulado helenismo, temos tanto o confronto entre poli-
teísmo e monoteísmo quanto a mistura e a sincretizacão de ambas as doutrinas
(JAEGER, 2011). Certamente, isso só foi possível graças à abertura cultural
empreendida por Alexandre. Embora não tenha sido seu motivo inicial levar a
cultura grega a outras, acabou por criar um acesso entre elas, o que propiciou
o surgimento de uma crença diferente da politeísta.
O cristianismo mais primitivo, aquele que começou a emergir após a morte
de Alexandre, o Grande, foi marcado pela negação, pela repulsa à filosofia
considerada pagã. Contudo, podemos observar um movimento relativo a
4 A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média
[...] o fenômeno religioso é que ele supõe sempre uma divisão bipartida do
universo conhecido e conhecível em dois gêneros que compreendem tudo o
que existe, mas que se excluem radicalmente. As coisas sagradas são aquelas
que as proibições protegem e isolam; as coisas profanas, aquelas a que se
aplicam essas proibições e que devem permanecer à distância das primeiras
(DURKHEIM, 1996, p. 24).
como se estabelecesse um decalque entre quem a pessoa era e quem ela passa
a ser após adentrar, fazer parte de uma religião. Já nesse ato, vê-se uma ideia
de separação, de divisão entre o que é mundano (que não pertence a Deus) e
o que não é (DURKHEIM, 1996). Estabelece-se uma hierarquização a partir
de tal separação, uma valoração entre os indivíduos: aqueles dignos e aqueles
não dignos. A religião se configura, assim, a partir daquilo que deve ser exal-
tado, de crenças e práticas, de normas morais e de condutas que configuram
modos de se relacionar com o sagrado por meio de uma institucionalização
da religião — igrejas, mesquitas, sinagogas, terreiros, entre outros.
Durkheim (1996) apresenta, então, uma base sociológica universal para
a religião, para o fenômeno religioso: as representações sociais em seu mais
amplo aspecto. É traçada, assim, uma espécie de genealogia da religião e
da sociedade, tal qual como se o surgimento, e o desenvolvimento, de uma
estivesse entrelaçado ao de outra. Seria a formação religiosa à base das pro-
jeções, das representações sociais/morais/culturais; da hierarquização social,
econômica e política; e, também, do surgimento do que podemos chamar
de epistemologia da religião. Isto é, a religião se encontra tão nas bases da
performatividade existencial que mesmo aquele que não participa de uma
comunidade religiosa, que não se reconhece religiosa, foi constituído e, de
alguma forma, afetado culturalmente pela religião, dado que ela (a religião)
fundamenta a experiência social e cultural. Nesse sentido, cabe ressaltar o
argumento contemporâneo acerca da correlação entre a fé e a razão, entre o
processo secular e dessecular da sociedade, pois só podemos afirmar uma
posição diante da outra (DURKHEIM, 1996). Assim, também é possível
compreender acerca do movimento pós-estruturalista no século XX: não há
dicotomia estrutural, mas acontecimentos que ocorrem ao mesmo tempo e
que excluem uma leitura reducionista e simplista em prol de uma dicotomia,
tal qual a de oposição entre fé e ciência, fé e razão.
Durkheim (1996) rejeitou essa correlação: para o sociólogo, há, sim, uma
distinção mais acentuada entre sagrado e profano e, frente ao argumento
mais cientifico, defende que a própria ciência só se fez possível a partir das
representações coletivas que constituíram a sociedade; portanto, a gênese
da ciência seria a religião. Isto é, ainda que a experiência religiosa detenha a
gênese das representações sociais, não é nas coisas ordinárias em que se dá o
sagrado. É correto afirmar que a religião contém uma proposta de indivíduo
que a representa socialmente em sua conduta e valores, mas a experiência
com o sagrado está restrita a caminhos propostos pelas práticas religiosas.
Conclui-se, a partir da obra de Durkheim (1996), que a experiência com o
sagrado está ligada à religião, à coletividade, à formação de um corpo social,
8 A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média
Você conhece a corrente filosófica helenista chamada “estoica”? Pois bem, o estoicismo
ficou conhecido como uma escola que pregava também um modo de vida. Fundada
na Grécia por Zenão de Cítio, no século III a. C., a filosofia influenciou muito o então
nascente cristianismo no período helênico. Para os estóicos, a vida boa está relacionada
com colocar em prática as virtudes. Nesse sentido, a virtude deve estar de acordo
com a natureza, visto que a natureza é o bem. Mais tarde, após a ascensão cristã, o
estoicismo passou a ser adotado como uma forma de interpretar a palavra de Cristo,
principalmente por filósofos como Sêneca e Epiteto, que defendiam que a virtude é
o caminho para a felicidade.
a leitura da obra platônica por uma ótica cristã. Antes de tudo, Agostinho
conseguiu reunir a história, a fé e a filosofia. Em A cidade de Deus (1999), é
apresentada uma crítica ao politeísmo greco-romano, com aceno para outras
religiões politeístas; desse ponto, Agostinho busca compreender o cristianismo
em relação à sua formação histórica, o que culmina em uma teologia da histó-
ria. Muito disso se deve ao contexto de invasões que ocorriam na Europa, em
especial em Roma, cidade na qual o filósofo vivia. Nesse sentido, Agostinho
(1999) uniu uma critica às religiões “bárbaras, selvagens” a uma crítica à
invasão de Roma, que já se mostrava como a capital católica da Europa. Ao
contrário das problematizações que se deram posteriormente, em que fé e
história significavam um paradoxo inconciliável, criando uma distinção entre
o Jesus histórico e Cristo, tal como na teologia moderna, Agostinho entendia
a história como chave de sentido ao cristianismo.
Ao pensar a história, Agostinho a entendia como o espaço de criação divina.
Assim, o homem é tão só alguém que habita nesse espaço que foi criado por Deus
e, inclusive, seu avanço só é possível porque Deus quis criar o tempo (AGOSTI-
NHO, 1999). Portanto, a história só existe porque Deus criou tempo. Feito isso,
ao enviar o seu filho à Terra, Deus possibilitou a formação do ponto central da
história. Isto é, o tempo, inclusive, passa a ser contado regressivamente e pro-
gressivamente após a passagem de Cristo pela Terra. Nesse sentido, Agostinho
compreende na passagem de Cristo pela Terra, além da instituição do tempo,
também a contagem para a volta de Cristo, que seria o Juízo Final. É durante
esse tempo que o homem pode se redimir de seus pecados (AGOSTINHO, 1999).
É nessa linearidade que segue a teoria agostiniana acerca da dualidade com
ênfase platônica. Em A República (2000), Platão apresenta a dualidade que pos-
sibilita a existência das coisas no mundo terreno, legível e, portanto, real. A ideia,
o mundo inteligível, seria aquele perfeito de onde tudo advém. No mundo dos
sentidos, legível, portanto, real, temos apenas uma cópia do que a coisa é no mundo
perfeito. Assim, até mesmo as virtudes — tais como a bondade (conhecimento), a
amizade, a honestidade, entre outras — são reflexos desse mundo ideal. Na inter-
pretação agostiniana, são apresentadas duas sociedades para ilustrar o dualismo
entre cristãos e não cristãos. Trata-se, assim, de duas cidades: a cidades de Deus,
do povo de Deus; e a cidade dos ímpios, a cidade mundana, terrestre:
[...] dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, le-
vado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si
próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus,
porque aquela busca a glória dos homens e tem esta por máxima glória a Deus,
testemunha de sua consciência (AGOSTINHO, 1999, p. 28).
10 A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média
Leituras recomendadas
BOEHNER, P.; GILSON. E. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa.
Petrópolis: Vozes, 1998.
DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
FIALHO, M. do C. G. Z. Rei Édipo: introdução, tradução e notas. Lisboa: Edições 70, 1991.
(Clássicos Gregos e Latinos).
LIBÂNIO, J. B. Religião no início do milênio. Loyola: São Paulo, 2002.
VAZ, H. C. L. Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991.