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HISTÓRIA DAS

RELIGIÕES

Mayara Joice Dionizio


A religião cristã na
Antiguidade e na
Idade Média
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Descrever a transição do politeísmo para o monoteísmo na Idade Antiga.


 Caracterizar as bases de identificação do sagrado e do profano.
 Definir os princípios da teologia de Santo Agostinho.

Introdução
A fundação do cristianismo, enquanto religião oficial, não ocorreu de forma
rápida ou abrupta. Alguns teóricos e pensadores atribuem o surgimento
do cristianismo e a sua ascensão à abertura dada pelo helenismo. Vale
lembrar que tal movimento possibilitou a expansão do território grego
e também a intersecção cultural entre os povos desse período. Assim,
existiam várias escolas de pensamento, o que demonstra uma abertura
à pluralidade e à alteridade. Devido a essa expansão, a religião foi se
transmutando do helenismo para o politeísmo.
Nesse sentido, faz-se necessário, ainda, que tal discussão seja de ca-
ráter mais moderno, distinguindo dentro da história de religião o ponto
em comum que configura o que é sagrado e o que é profano, inclusive
para se entender a instituição de uma religião. Teologicamente, é rico o
debate da obra tão atual de Santo Agostinho, que, apesar de ter vivido
nos primórdios da Idade Média, contribui para entendermos o argumento
com viés filosófico, histórico e religioso sobre o cristianismo.
Neste capítulo, você vai ver como ocorreu a transição do mito ao
cristianismo ou, ainda, do politeísmo greco-romano ao monoteísmo
cristão. Além disso, vai conhecer a relação, do ponto de vista sociológico,
entre sagrado e profano e, por fim, o pensamento teológico de Santo
Agostinho, inclusive como crítica ao politeísmo.
2 A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média

1 A transição do politeísmo para o monoteísmo


na Idade Antiga
A história da religião acompanha a história da humanidade, de modo que po-
demos dizer que não é possível dissociar uma da outra. Contudo, apesar das
mudanças contextuais e temporais, podemos afirmar que os rituais, as práti-
cas religiosas e as condutas auxiliam psicologicamente a humanidade a lidar
com as questões existenciais mais agudas. Dessa forma, momentos felizes são
simbolizados e criados em torno das crenças, assim como rituais de passagem
tristes, tais como a morte (DURKHEIM, 1996). Portanto, independentemente da
cosmovisão, as instituições religiosas operam sobre a noção de sagrado, trazem
um sentido simbólico sobre a realidade, postulam um projeto de humano, criam
comunidade e estabelecem uma conduta baseada em normas. Esse conjunto
de práticas, de símbolos e de corpos religiosos expressa a busca transcendental
estabelecida pela necessidade religiosa. É desse modo, também, que podemos
pensar a passagem do politeísmo ao monoteísmo na Idade Antiga.
Ao contrário do que é mais disseminado acerca da religião na antiguidade
ocidental, a crítica à religião politeísta grega ocorria mesmo durante o período
clássico. Alguns teóricos, como Jaerger, em Paideia (2011), assinalam para o
movimento histórico semelhante à ascensão iluminista no século XVIII; isso
porque, a partir do governo de Péricles, vários pensadores atenienses se opuseram
ao discurso religioso. Mais comumente, atribuem essa crítica aos filósofos da
Antiguidade; porém, personagens como Hipócrates, o médico, eram críticos
assíduos ao argumento religioso como explicativo da realidade. Para Hipócrates,
os males e as doenças tinham que ser tratados a partir de uma causa natural, ou
seja, não havia uma explicação sobrenatural. Outrossim, também contribuíram
a essa oposição Tucídedes, que buscou compreender a sociedade a partir da
história; Demócrito, que compreendia a religião como uma criação humana a
partir dos temores e da ausência de explicação dada naturalmente; e Anaxágoras,
que, a partir dos estudos de um meteoro, pesquisou os corpos celestes e chegou
à conclusão de que não se tratava de deuses (JAEGER, 2011). Mais adiante, nas
explicações mais conhecidas, temos Platão (2000), que atribui o conhecimento
às ideias, à inteligibilidade e não aos deuses, e Protágoras, que defende que a
necessidade dos deuses é secundária, uma vez que a necessidade do fogo e da
sabedoria a antecede.
Um dos mitos que mais ilustra a relação grega entre humano e divindades é,
incontornavelmente, o “Rei Édipo”, que conta a história de uma profecia. Édipo
foi condenado à morte após nascer, pois o rei Laio, que era seu pai, escutou do
oráculo de Delfos que seu filho cresceria, então o mataria e desposaria a rainha
A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média 3

Jocasta, sua mãe. Assim, Laio decidiu que o menino deveria morrer, convocou
um pastor e o incumbiu de pendurar o bebê pelos pés, em uma árvore presente
nas encostas do monte Citerão, e deixá-lo para ser comido pelos gaviões e
outros animais (SÓFOCLES, 1995). O pastor ficou com pena e não conseguiu
abandonar o bebê; em seguida, entregou-o para a família do rei de Corinto,
Políbio, que o adotou como filho. Quando Édipo cresceu, os pais lhe contaram
o segredo e o jovem se rebelou; ao sair transtornado, acabou encontrando
alguns viajantes e, em meio a uma discussão, matou-os. Um dos mortos era
o seu pai biológico e, sem saber disso, Édipo dá continuidade a sua viagem
solitária. Chegando a Tebas, Édipo desvenda um desafio que foi proposto
pela Esfinge “[...] que criatura pela manhã tem quatro pés, ao meio-dia tem
dois, à tarde tem três?” (SÓFOCLES, 1995, p. 397). Édipo decifra o mistério:
trata-se do ser humano que, quando bebê, engatinha, quando adulto, caminha
com suas duas pernas, e, quando envelhece, caminha com três porque usa a
bengala. Assim, quem desvendasse o desafio deveria se tornar rei, casando-se
com Jocasta, a rainha. Édipo se casa com a sua mãe, têm quatro filhos e, ao
consultar o oráculo, descobre que cumpriu o seu destino. Arrependido, vaza
os próprios olhos e se torna um mendigo.
Tal mito representa a superioridade religiosa a despeito da ordem racional
(SÓFOCLES, 1995). Ou seja, Édipo, ao desvendar o mistério da esfinge, coloca
em uso toda a sua capacidade racional, que, ao mesmo tempo, não lhe serve
muito ao pensar os próprios acontecimentos de sua vida, ao tentar desvendá-la.
O politeísmo grego, então, alude a uma experiência ulterior do ser humano,
que busca no divino explicação para a qual a razão não orienta naturalmente.
Por outro lado, observamos, também, que o autor, Sófocles, está expressando
a crença humana na justiça divina: uma justiça incompreensível.
Nesse sentido, apesar de ter sido “superada”, a religião grega mantém na
humanidade que viria a se tornar cristã a função fulcral da religião. Vários
motivos são associados a essa transição, e um deles é, incontestavelmente, a
ascensão da filosofia como busca do conhecimento racional sobre a realidade.
Contudo, no período intitulado helenismo, temos tanto o confronto entre poli-
teísmo e monoteísmo quanto a mistura e a sincretizacão de ambas as doutrinas
(JAEGER, 2011). Certamente, isso só foi possível graças à abertura cultural
empreendida por Alexandre. Embora não tenha sido seu motivo inicial levar a
cultura grega a outras, acabou por criar um acesso entre elas, o que propiciou
o surgimento de uma crença diferente da politeísta.
O cristianismo mais primitivo, aquele que começou a emergir após a morte
de Alexandre, o Grande, foi marcado pela negação, pela repulsa à filosofia
considerada pagã. Contudo, podemos observar um movimento relativo a
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algumas escolas helenísticas, tais como os epicuristas, estoicos, céticos e eclé-


ticos (PEPIN, 1983). Essas escolas filosóficas dialogavam com o cristianismo
em diversos aspectos: voto de pobreza, importância do perdão, do amor ao
próximo, entre outros valores.
Historicamente, podemos pensar a relação entre o cristianismo e o hele-
nismo como uma disputa pela posse da verdade (PEPIN, 1983). Ou seja, em
um primeiro momento, vemos uma reivindicação entre gregos e cristãos pela
religião que mais teria afinidade intelectual com a realidade para conseguir
explicá-la e, então, instaurar-se como universal. Isto é, trata-se de uma relação
correlacional e opositora ao mesmo tempo, à mesma época: se, por um lado,
o cristianismo consegue se consolidar fazendo uso do helenismo, de seu
arcabouço intelectual, de outro lado, o helenismo também cede e se deixa
utilizar pelo cristianismo. Seria, então, uma própria conversão dos gregos ou
uma imposição cristã? Podemos entender esse embate por distintos ângulos,
inclusive, que se complementam (PEPIN, 1983):

 com a expansão territorial e o sincretismo cultural, o homem grego


não se sentia mais tão orientado como antes, quando havia um ideal
claro de cidadão da pólis e de homem grego — isso facilitou a adesão
de uma parte dos gregos ao cristianismo;
 foram traçados paralelos entre a cosmogonia grega e a cristã.

Nesse contexto, Justino argumenta à população de Alexandria que a criação


do mundo se deve a Deus, que é o mesmo que o logos, uma vez que toda a
inteligência provém de Deus (PEPIN, 1983). Outros argumentos foram ressig-
nificados em prol da criação divina, como o taciniano, segundo o qual o verbo
era a projeção do mundo para fora de si — portanto, o verbo é Deus; e o de
que Deus é e, por isso, tudo que não era só poderia ter vindo de algo existente.
É nesse momento que passa a ser conhecida a figura do discípulo Paulo, que
defendia que a sabedoria da filosofia consistia em uma persuasão; portanto, a
verdade cristã não necessitaria fundamentar-se na inteligência, mas, sim, na
experiência espiritual. Porém, cabe ressaltar que Paulo, em seus ensinamentos
cristãos, vale-se em grande parte dos argumentos platônicos e estoicos, no sen-
tido de que o que é divino (platonicamente a ideia) não se personifica em obras
humanas, pois essas são representações imperfeitas de Deus; o que tem valor para
o homem (riquezas e bens materiais) não tem valor para Deus (PEPIN, 1983).
Tal forma de compreender e ensinar o cristianismo se fez presente nos
anos posteriores na tradição cristã: a aproximação entre a religião e a filosofia
grega e, do mesmo modo, a repulsa entre ambos os argumentos. Outrossim,
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é também com Paulo, ao estabelecer a interpretação da Santa Trindade, que


se pode determinar uma antropologia da religião cristã. Isto é, o humano é
entendido de três formas a partir da concepção paulina (PEPIN, 1983):

 aquele que tem sua fragilidade em seu corpo, sua carne;


 aquele que, contudo, tem vida;
 aquele que é dotado de força espiritual e que, por meio de tal força,
consegue relacionar-se espiritualmente com Deus.

Conclui-se que a transição do politeísmo ao monoteísmo não se deu de


forma abrupta, o que nos permite dizer que não se trata de uma religião, a
cristã, que se apoderou dos argumentos filosóficos a fim de fundamentar
logicamente a existência divina, mas, antes, de uma realização intelectiva do
humano enquanto sujeito histórico e na história (PEPIN, 1983).

2 As bases de identificação do sagrado


e do profano
A discussão, a associação e a dissociação entre o sagrado e o profano se
intensificam, principalmente com a ascensão do cristianismo como religião
oficial após o período helenístico. Para tanto, tal distinção se tornou necessária
para separar fiéis de pagãos. Posteriormente, com a fixação e a hegemonia
cristã, o conceito de “blasfêmia” se torna recorrente para designar aqueles que
atentam, de qualquer forma, mesmo sem saber, contra a religião. Nesse sentido,
acentuam-se também as relações políticas, culturais e econômicas. Na Idade
Média, a instituição católica era detentora de um grande poder conjuntamente,
e correlativamente, à Coroa. Desse modo, a imposição acerca do que é sagrado
se institucionalizou e se tornou um modo de concentração de poder e controle
sobre os sujeitos (DURKHEIM, 1996). Com o surgimento da sociologia na
Idade Moderna, tal distinção passou a ser estudada pelos sociólogos, e um
dos que mais se destacou nesse contexto foi Émile Durkheim.
Na obra As formas elementares da vida religiosa (1996), Durkheim apresenta
uma distinção entre o que seria sagrado e o que seria profano. Entretanto, para
compreender tal dimensão, é necessário elucidar como Durkheim compreende
a religião para, então, entender o que o sociólogo considerava profano e sagrado.
Em 1895, Durkheim publicou a obra intitulada Regras do método sociológico
(1987), em que já é possível encontrar a interpretação durkheimiana do fenômeno,
pois é nesse texto que aparece o argumento sobre a eternidade da religião: todas
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as sociedades das quais temos rastros em documentos se dedicaram a alguma


forma de religião, ainda que primitiva; desde então, todas as sociedades, até a
contemporaneidade do sociólogo (e posteriormente, como vimos), partilharam
religiões. Assim, tocamos no ponto em que a sociologia de Durkheim se volta
ao estudo da religião enquanto forma de organização, de estruturação social.
No contexto moderno em que viveu Durkheim, as correntes argumenta-
tivas em prol de um cientificismo eram predominantes. O campo religioso
não foi tratado de modo diferente: diversos pensadores passaram a pensar
o fenômeno como alienação (MARX, 2005), como ilusão (FREUD, 1976),
como dissolúvel frente à racionalidade (COMTE, 1978). Porém, a persistência
da religião em distintas culturas e contextos também levou outros pensadores
a problematizar a religião a partir de sua formação de comunidade, do seu
sentido simbólico, de sua inefabilidade, que, nesse sentido, poderia ensinar
muito sobre o humano. Assim como Durkheim, mas a partir de outros ar-
gumentos, Max Weber (2004) também se dedicou a refletir sobre a religião.
Ambos pensadores se destacavam nesse cenário moderno por dignificarem
a reflexão acerca da manifestação religiosa.
Para Durkheim (1996), a religião é, antes de tudo, o fundamento cultural e
social dos indivíduos. Ao nascer, o individuo nasce em uma família, em uma
sociedade, cheia de normas e condutas e com uma base cultural. Essa base
é constituída por um sistema de valores que são construídos socialmente;
Durkheim defendia que os indivíduos construíram tais sistemas a partir do
desenvolvimento intelectivo da humanidade, e a religião foi, e é, o primeiro
desses sistemas. Há, nesse fenômeno, distintas manifestações: as sobrena-
turais, as misteriosas, as divinas e mágicas (DURKHEIM, 1996). Contudo,
tais distinções não conseguem, por si só, definir o que seria sagrado e o que
seria profano, pois isso compete à ordem do social, que, por sua vez, deve ser
estudado sociologicamente:

[...] o fenômeno religioso é que ele supõe sempre uma divisão bipartida do
universo conhecido e conhecível em dois gêneros que compreendem tudo o
que existe, mas que se excluem radicalmente. As coisas sagradas são aquelas
que as proibições protegem e isolam; as coisas profanas, aquelas a que se
aplicam essas proibições e que devem permanecer à distância das primeiras
(DURKHEIM, 1996, p. 24).

O sagrado, desse modo, é caracterizado a partir de diferentes modos de


ser. Durkheim (1996) se vale de vários exemplos, mas o que demonstra mais
a distinção é o que algumas religiões intitulam como “batismo”. Esse ritual de
iniciação simboliza a passagem de um estado profano a um estado sagrado,
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como se estabelecesse um decalque entre quem a pessoa era e quem ela passa
a ser após adentrar, fazer parte de uma religião. Já nesse ato, vê-se uma ideia
de separação, de divisão entre o que é mundano (que não pertence a Deus) e
o que não é (DURKHEIM, 1996). Estabelece-se uma hierarquização a partir
de tal separação, uma valoração entre os indivíduos: aqueles dignos e aqueles
não dignos. A religião se configura, assim, a partir daquilo que deve ser exal-
tado, de crenças e práticas, de normas morais e de condutas que configuram
modos de se relacionar com o sagrado por meio de uma institucionalização
da religião — igrejas, mesquitas, sinagogas, terreiros, entre outros.
Durkheim (1996) apresenta, então, uma base sociológica universal para
a religião, para o fenômeno religioso: as representações sociais em seu mais
amplo aspecto. É traçada, assim, uma espécie de genealogia da religião e
da sociedade, tal qual como se o surgimento, e o desenvolvimento, de uma
estivesse entrelaçado ao de outra. Seria a formação religiosa à base das pro-
jeções, das representações sociais/morais/culturais; da hierarquização social,
econômica e política; e, também, do surgimento do que podemos chamar
de epistemologia da religião. Isto é, a religião se encontra tão nas bases da
performatividade existencial que mesmo aquele que não participa de uma
comunidade religiosa, que não se reconhece religiosa, foi constituído e, de
alguma forma, afetado culturalmente pela religião, dado que ela (a religião)
fundamenta a experiência social e cultural. Nesse sentido, cabe ressaltar o
argumento contemporâneo acerca da correlação entre a fé e a razão, entre o
processo secular e dessecular da sociedade, pois só podemos afirmar uma
posição diante da outra (DURKHEIM, 1996). Assim, também é possível
compreender acerca do movimento pós-estruturalista no século XX: não há
dicotomia estrutural, mas acontecimentos que ocorrem ao mesmo tempo e
que excluem uma leitura reducionista e simplista em prol de uma dicotomia,
tal qual a de oposição entre fé e ciência, fé e razão.
Durkheim (1996) rejeitou essa correlação: para o sociólogo, há, sim, uma
distinção mais acentuada entre sagrado e profano e, frente ao argumento
mais cientifico, defende que a própria ciência só se fez possível a partir das
representações coletivas que constituíram a sociedade; portanto, a gênese
da ciência seria a religião. Isto é, ainda que a experiência religiosa detenha a
gênese das representações sociais, não é nas coisas ordinárias em que se dá o
sagrado. É correto afirmar que a religião contém uma proposta de indivíduo
que a representa socialmente em sua conduta e valores, mas a experiência
com o sagrado está restrita a caminhos propostos pelas práticas religiosas.
Conclui-se, a partir da obra de Durkheim (1996), que a experiência com o
sagrado está ligada à religião, à coletividade, à formação de um corpo social,
8 A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média

moral, cultural e político. Já o indivíduo está ligado ao profano, ao que destoa


do coletivo e estabelece uma relação espiritual autocentrada. Pensar a sociedade
a partir dessa divisão durkheimiana é considerar as representações de forma
dicotômica. As formas elementares são aquilo que divide os indivíduos: as
pessoas se unem por identitarismos, segundo a teoria durkheimiana, o que
faz da religião um espaço do sagrado, porque se trata de uma instituição. O
profano representa, portanto, aquilo que não forma corpo, que não forma
conduta, que não forma cultura nem moral, pois é individual.

Você conhece a corrente filosófica helenista chamada “estoica”? Pois bem, o estoicismo
ficou conhecido como uma escola que pregava também um modo de vida. Fundada
na Grécia por Zenão de Cítio, no século III a. C., a filosofia influenciou muito o então
nascente cristianismo no período helênico. Para os estóicos, a vida boa está relacionada
com colocar em prática as virtudes. Nesse sentido, a virtude deve estar de acordo
com a natureza, visto que a natureza é o bem. Mais tarde, após a ascensão cristã, o
estoicismo passou a ser adotado como uma forma de interpretar a palavra de Cristo,
principalmente por filósofos como Sêneca e Epiteto, que defendiam que a virtude é
o caminho para a felicidade.

3 Os princípios da teologia de Santo Agostinho


Agostinho de Hipona (354–430) ou Santo Agostinho, como ficou mais conhecido,
foi um dos mais importantes filósofos, bispos e teólogos da Idade Média. Sua obra
se ocupou de forjar a doutrina, os costumes, os dogmas e a fé com base na filosofia
greco-romana. O período no qual viveu Agostinho é conhecido como patrística e
data do fim do Império Romano. Vale lembrar que Agostinho teve uma trajetória
singular: o bispo nasceu na África e se converteu ao cristianismo com 33 anos de
idade. Sua conversão ficou marcada como um processo que aconteceu até o fim
de sua vida. Na obra Confissões (1996), o filósofo trata sobre o seu processo de
conversão, que não se encerrou com o batismo em 387, em Milão, com o bispo
Ambrósio. Nesse contexto, Agostinho trabalha as questões filosóficas e teológicas
da fé cristã a partir da elaboração de uma concepção teórica.
Santo Agostinho foi um dos responsáveis por estabelecer os alicerces
cristãos por meio da filosofia platônica. Contudo, é necessário compreender
os principais princípios estabelecidos em sua obra para definir como se dá
A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média 9

a leitura da obra platônica por uma ótica cristã. Antes de tudo, Agostinho
conseguiu reunir a história, a fé e a filosofia. Em A cidade de Deus (1999), é
apresentada uma crítica ao politeísmo greco-romano, com aceno para outras
religiões politeístas; desse ponto, Agostinho busca compreender o cristianismo
em relação à sua formação histórica, o que culmina em uma teologia da histó-
ria. Muito disso se deve ao contexto de invasões que ocorriam na Europa, em
especial em Roma, cidade na qual o filósofo vivia. Nesse sentido, Agostinho
(1999) uniu uma critica às religiões “bárbaras, selvagens” a uma crítica à
invasão de Roma, que já se mostrava como a capital católica da Europa. Ao
contrário das problematizações que se deram posteriormente, em que fé e
história significavam um paradoxo inconciliável, criando uma distinção entre
o Jesus histórico e Cristo, tal como na teologia moderna, Agostinho entendia
a história como chave de sentido ao cristianismo.
Ao pensar a história, Agostinho a entendia como o espaço de criação divina.
Assim, o homem é tão só alguém que habita nesse espaço que foi criado por Deus
e, inclusive, seu avanço só é possível porque Deus quis criar o tempo (AGOSTI-
NHO, 1999). Portanto, a história só existe porque Deus criou tempo. Feito isso,
ao enviar o seu filho à Terra, Deus possibilitou a formação do ponto central da
história. Isto é, o tempo, inclusive, passa a ser contado regressivamente e pro-
gressivamente após a passagem de Cristo pela Terra. Nesse sentido, Agostinho
compreende na passagem de Cristo pela Terra, além da instituição do tempo,
também a contagem para a volta de Cristo, que seria o Juízo Final. É durante
esse tempo que o homem pode se redimir de seus pecados (AGOSTINHO, 1999).
É nessa linearidade que segue a teoria agostiniana acerca da dualidade com
ênfase platônica. Em A República (2000), Platão apresenta a dualidade que pos-
sibilita a existência das coisas no mundo terreno, legível e, portanto, real. A ideia,
o mundo inteligível, seria aquele perfeito de onde tudo advém. No mundo dos
sentidos, legível, portanto, real, temos apenas uma cópia do que a coisa é no mundo
perfeito. Assim, até mesmo as virtudes — tais como a bondade (conhecimento), a
amizade, a honestidade, entre outras — são reflexos desse mundo ideal. Na inter-
pretação agostiniana, são apresentadas duas sociedades para ilustrar o dualismo
entre cristãos e não cristãos. Trata-se, assim, de duas cidades: a cidades de Deus,
do povo de Deus; e a cidade dos ímpios, a cidade mundana, terrestre:

[...] dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, le-
vado ao desprezo a Deus, a terrena; o amor a Deus, levado ao desprezo de si
próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus,
porque aquela busca a glória dos homens e tem esta por máxima glória a Deus,
testemunha de sua consciência (AGOSTINHO, 1999, p. 28).
10 A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média

Ambas as cidades formam um só povo, que convive em suas diferenças;


além disso, para alguns desses cidadãos, a cidade é a possibilidade de se
misturar o cristianismo com outras doutrinas e religiões pagãs (AGOSTINHO,
1999). Porém, Agostinho denota o caráter teológico da história, pois é nesse
sentido que o desenrolar da história como escrita por Deus acontece. Mesmo
misturadas, existem duas cidades dentro dessa, dois povos dentro desse: trata-
-se daquela cidade, daqueles que se findarão com o Juízo Final e daqueles
que reinarão ao lado de Deus, pois são os celestiais, que não se renderam às
malícias terrestres. A obra de Agostinho é marcada por tais dualidades, que,
apesar de decorrerem da leitura platônica, também foram influenciadas por
outras dicotomias. Em relação à divisão entre as cidades, Agostinho recorre
também às figuras simbólicas de Abel e Caim, que prefiguram, nessa narra-
tiva, a distinção, a divisão entre os povos: enquanto Caim pertence à cidade
terrestre, dos ímpios, Abel faz parte do povo de Deus. A partir dessa narrativa,
podemos identificar a divisão entre ação moral e norma da fé em Agostinho.
Se podemos falar em uma moral já preestabelecida pelo cristianismo, cer-
tamente ela se encontra ligada a uma forma de conceber a justiça e as virtudes
ligadas a Deus. Logo, a moral agostiniana se enquadra naquilo que podemos
chamar de moral teocêntrica — com ênfase para o cristocentrismo. Isto é, uma
moral estabelecida com vistas ao juízo final, portanto, que trabalha a punição,
a culpa, o mérito, a recompensa como norma, enquanto conduta, o que significa
que a moral agostiniana está fundamentada na ação prática. Para tanto, o filó-
sofo estabelece que, para se agir bem, de acordo com Deus, é necessário que o
humano se encontre consigo para que possa falar sobre Deus (AGOSTINHO,
1999). Encontrar-se consigo, nesse sentido, é agir bem, virtuosamente. Vale
ressaltar que, no período em que viveu Agostinho, na Patrística, o humano era
entendido como sujeito, aquele que se sujeita socialmente: à monarquia, à Igreja,
à sociedade, a outrem. A salvação só era possível em relação a todos, uma vez
que o amor próprio era considerado um ato de vaidade, de individualismo e, por
isso, de pecado. Pensar a relação individual, de um com o outro, só é possível
a partir da Idade Moderna, quando, inclusive, passa a se utilizar o conceito de
indivíduo. Trata-se de uma filosofia do individuo que é inaugurada com o cogito
cartesiano: “penso, logo, existo” (DESCARTES, 2009, p. 62). Apesar de essa
relação passar a ser pensada mais enfaticamente na modernidade, ainda que
com a noção de identidade social, Agostinho já trabalhava essa relação entre
“indivíduos”: a relação de um com o outro, em que se dá a ação moral.
É nesse entremeio que também surge a ação ruim, a ação má (AGOSTINHO,
1980; 1999). Na convivência com os outros, o sujeito se reconhece e também
se distancia dos demais, ao mesmo tempo em que se identifica, antagoniza-se,
A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média 11

em uma alteridade paradoxal. Contudo, ao lidar com os outros, o sujeito não


age somente de forma passiva, ou seja, há também a discordância, e é a partir
desse antagonismo que surgem problemas da ordem do livre-arbítrio, que, em
linhas gerais, é aquilo que o homem pode decidir sobre sua ação, sobre a sua
vontade, porém, consciente do que isso pode implicar em relação ao juízo
final (AGOSTINHO, 1980; 1999). Assim é posta, por Agostinho, a verdade de
Deus como verdade ontológica, a priori na própria ideia de bondade; com essa
verdade, vem a verdade normativa, que deve seguir os mandamentos de Deus.
O humano tem, então, uma capacidade distinta da de outros seres; a ele é
dada a capacidade da memória e da razão — se não puder acreditar somente
pela fé, que compreenda por meio da história e da razão, pois lhe foi dada a
especialidade de ter sido feito à imagem e semelhança de Deus. A memória
e o aprendizado são dons complementares que Deus nos deu: enquanto o
aprendizado se dá pela prática, pela experiência, a memória nos permite
lembrar, por meio do nosso aprendizado, de Deus.
Conclui-se que Agostinho compreende a filosofia, a história e a fé como
saberes correlacionais e que caminham juntos (AGOSTINHO, 1980; 1999).
A história é positiva na teoria agostiniana e possibilita que o ser humano
evolua, progrida e caminhe em direção a Deus quanto mais conhece e mais
se lembra. É operando juntamente às faculdades intelectivas que a filosofia
se une à história: a filosofia permite a reflexão, o conhecimento de Deus (do
bem platônico); a história permite o exercício da memória, que o humano se
lembre o que aprendeu; e a fé direciona, orienta o homem pelo caminho celeste.

AGOSTINHO, S. A cidade de Deus: parte II. Petrópolis: Vozes, 1999.


AGOSTINHO, S. Confissões: de magistro. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
COMTE, A. Catecismo positivista. São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Coleção Os Pensadores).
DESCARTES, R. Discurso sobre o método. São Paulo: Escala, 2009.
DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália.
São Paulo: Martins Fontes, 1996. (Coleção Tópicos).
FREUD, S. O Futuro de uma Ilusão, o Mal-Estar na Civilização e outros trabalhos (1927–1931).
Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 21).
JAEGER, W. Paideia: a formação do homem grego. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
12 A religião cristã na Antiguidade e na Idade Média

MARX, K. Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.


PEPIN, J. Helenismo e cristianismo. In: CHÂTELET, F. (org.). A filosofia medieval, do séc. I ao
século XV. Rio de Janeiro: Zahar, 1983. (Coleção História da filosofia, ideias, doutrinas, 2).
PLATÃO. A República. 3. ed. Belém: EDUFPA, 2000.
SÓFOCLES. Édipo rei. Pinheiros: Hedra, 2018.
WEBER, M. A ética protestante e o ‘espírito’ do capitalismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2004.

Leituras recomendadas
BOEHNER, P.; GILSON. E. História da filosofia cristã: desde as origens até Nicolau de Cusa.
Petrópolis: Vozes, 1998.
DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
FIALHO, M. do C. G. Z. Rei Édipo: introdução, tradução e notas. Lisboa: Edições 70, 1991.
(Clássicos Gregos e Latinos).
LIBÂNIO, J. B. Religião no início do milênio. Loyola: São Paulo, 2002.
VAZ, H. C. L. Antropologia Filosófica I. São Paulo: Loyola, 1991.

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