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2ª Edição

VERSÃO ACTUALIZADA

Tratado de Clínica Pediátrica


João M. Videira Amaral
Esta obra, de cariz prático, pretende apresentar de forma concisa dados actuais sobre
tópicos fundamentais da clínica pediátrica de complexidade variável, quer no âmbito
do ambulatório, quer no âmbito da prática hospitalar.

Concretizada com a colaboração de uma plêiade de autores convidados, é apresentada


em 3 volumes compreendendo 33 partes e 376 capítulos.

O Tratado de Clínica Pediátrica (nesta segunda edição, revista, actualizada, ampliada e


em DVD) tem como principais destinatários estudantes de Medicina e de áreas relacio-
nadas com as Ciências da Saúde, internos de medicina geral e familiar e de pediatria,
médicos de família, pediatras gerais, assim como profissionais da saúde interessados na
área da Medicina da Criança e do Adolescente. A bibliografia seleccionada, que encerra
cada capítulo ou parte, contribuirá para esclarecimento complementar do leitor inter-
essado.

O coordenador-editor espera que o conteúdo, escrito em espírito de missão por todos


os autores, seja útil aos leitores, quer no âmbito da formação pré/pós-graduada e
contínua, quer no âmbito do desempenho profissional. O objectivo último é contribuir
para a saúde e bem-estar da criança e adolescente, e da comunidade em geral. João M. Videira Amaral
VERSÃO ACTUALIZADA
João M. Videira Amaral
O coordenador-editor (João M. Videira Amaral) é médico-pediatra e professor catedrático jubilado da
Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. Até Outubro de 2007 foi director da
Clínica Universitária de Pediatria no Hospital de Dona Estefânia, Lisboa e regente das disciplinas de
Pediatria e de Clínica Pediátrica da mesma Universidade. É autor ou co-autor de cerca de 260 artigos em
revistas científicas e em livros de texto, sobretudo na área da Pediatria Neonatal e da Educação Médica.
Foi Presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria (1989-92) e actualmente é Director da Acta
Pediátrica Portuguesa, revista científica da referida Sociedade.

Volume 2
Com o apoio de: Abbott Laboratórios, Lda.
2ª Edição

Volume
TRATADO
DE CLÍNICA
PEDIÁTRICA
Tratado de Clínica Pediátrica

IIº Volume

2ª Edição
VERSÃO ACTUALIZADA

JOÃO M. VIDEIRA AMARAL


Editor-Coordenador
© João M Videira Amaral
Tratado de Clínica Pediátrica, 2008

Produção Gráfica
IDG – Imagem Digital Gráfica

Exemplares
5 000 ex.

2ª Edição não comercial em DVD, apoiada e distribuída por ABBOTT Laboratórios, 2013

Abbott Laboratórios, Lda.


Estrada de Alfragide, 67, Alfrapark, Edifício D – 2610-008 AMADORA
Tel.: 21 472 71 00 Fax: 21 471 44 82
Contribuinte e Matrícula na Conserv. do Reg. Com. da Amadora sob Nº 500 006 148
Capital Social: € 3 396 850
www.abbott.com
O conteúdo desta publicação é da inteira responsabilidade dos seus autores.

Depósito Legal
280864/08

ISBN
978-989-96091-3-6

ADVERTÊNCIA

1. Não é permitida a reprodução total ou parcial desta edição por meio electrónico, mecânico, fotocópia ou outros sem
prévia autorização escrita dos autores e editor.

2. Sendo a Medicina uma área do conhecimento em constante e rápida evolução, nomeadamente no que respeita a fár-
macos, e embora tenha sido feito todo o esforço por parte de editor e autores quanto ao rigor no registo das respectivas
doses e formas de apresentação, salientamos que a responsabilidade final da prescrição é do médico que a institui.

3. Sendo consensual que na prática clínica existem diferentes modos de actuação, nem os autores, nem o editor poderão
ser responsabilizados por erros ou pelas consequências que advenham de informação aqui contida. Os produtos
mencionados no livro devem ser utilizados conforme a informação veiculada pelos fabricantes.
Autores (por ordenação de capítulos) – II Volume

António Bessa de Almeida Judite Batista


Médico pediatra. Chefe de Serviço de Pediatria no HDE, Lisboa. Médica pediatra nefrologista. Assistente Graduada e Coordenadora ex-
Assistente de Pediatria da Faculdade de Ciências Médicas da officio da Unidade de Nefrologia do HDE, Lisboa.
Universidade Nova de Lisboa (FCM/UNL).
Ana Paula Serrão
Ema Leal Médica pediatra nefrologista. Assistente Graduada na Unidade de
Médica pediatra na Unidade de Hematologia do HDE, Lisboa. Nefrologia do HDE, Lisboa. Assistente Convidada de Pediatria da
FCM/UNL.
João M. Videira Amaral
Professor Catedrático Jubilado de Pediatria da Faculdade de Ciências Gisela Neto
Médicas da Universidade Nova de Lisboa (FCM/UNL). Médico-pe- Médica pediatra. Assistente Graduada na Unidade de Nefrologia do
diatra. Chefe de Serviço e Director ex-officio da Clínica Universitária HDE, Lisboa.
de Pediatria do Hospital de Dona Estefânia (HDE), Lisboa.
Margarida Abranches
Lígia Braga Médica pediatra nefrologista. Assistente Graduada na Unidade de
Professora Auxiliar Convidada de Pediatria da FCM/UNL. Médica pe- Nefrologia do HDE, Lisboa.
diatra. Assistente Graduada na Unidade de Hematologia do
Hospital de Dona Estefânia (HDE), Lisboa. Isabel Castro
Médica pediatra nefrologista. Assistente Graduada e Coordenadora da
Liza Aguiar Unidade de Nefrologia do HDE, Lisboa.
Médica pediatra estagiária na Unidade de Hematologia do HDE, Lisboa.
Arlete Neto
Faisana Amod Médica pediatra nefrologista. Chefe de Serviço ex-officio na Unidade de
Médica pediatra estagiária na Unidade de Hematologia do HDE, Lisboa. Nefrologia do HDE, Lisboa.

Júlia Galhardo Rui Alves


Médica interna de Pediatria na Unidade de Hematologia do HDE, Cirurgião pediatra. Assistente Graduado no Serviço de Cirurgia
Lisboa. Aluna de doutoramento e investigadora na Universidade de Pediátrica do HDE, Lisboa. Assistente Convidado da FCM/UNL.
Bristol (Reino Unido).
Maria de Lurdes Lopes
Andreia Teixeira Médica pediatra endocrinologista. Assistente Graduada na Unidade de
Médica pediatra estagiária na Unidade de Hematologia do HDE, Lisboa. Endocrinologia do HDE, Lisboa. Coordenadora da Unidade de
Endocrinologia do HDE. Doctorat pela Universidade de Genève,
Deolinda Barata Suíça. Assistente Convidada de Pediatria da FCM/UNL (1999-2006).
Médica pediatra intensivista. Chefe de Serviço e Coordenadora ex-offi-
cio da Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos (UCIP) do HDE, Catarina Limbert
Lisboa. Membro do Núcleo de Apoio à Família no HDE e do Instituto Médica pediatra endocrinologista. Professora Auxiliar Convidada da
de Apoio à Criança. FCM/UNL. Assistente Graduada na Unidade de Endocrinologia do
HDE, Lisboa. Investigadora na Universidade de Wurzburg,
Sofia Sarafana Alemanha.
Médica pediatra estagiária na UCIP do HDE, Lisboa.
Guilhermina Romão
Deonilde Espírito Santo Médica pediatra endocrinologista. Assistente Graduada e Coordenadora
Médica imuno-hematologista. Chefe de Serviço e Directora do Serviço ex-officio da Unidade de Endocrinologia do HDE, Lisboa.
de Imuno-Hemoterapia do HDE, Lisboa.
VI TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Rosa Pina Aldina Alves


Médica pediatra endocrinologista. Assistente Graduada na Unidade de Médica fisiatra. Consultora no Serviço de Medicina Física e Reabilitação
Endocrinologia do HDE, Lisboa. Assistente Convidada de Pediatria (SMFR) do HDE, Lisboa.
da FCM/UNL (1995- 2006).
Sashicanta Kaku
João Estrada Doutor em Medicina-Cardiologia pela FCM/UNL. Médico cardiologis-
Médico pediatra intensivista. Assistente Graduado na UCIP e Unidade ta pediátrico. Chefe de Serviço e Director do Serviço ex-officio do
de Desenvolvimento do HDE, Lisboa. Director do Internato Médico Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa Marta,
do HDE. Lisboa.

Maria do Carmo Vale António J. Macedo


Médica pediatra. Mestre em Bioética pela Faculdade de Medicina da Médico cardiologista pediátrico. Chefe de Serviço ex-officio no Serviço
Universidade de Lisboa. Assistente Convidada da FCM/UNL. de Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa Marta, Lisboa.
Assistente Graduada e Coordenadora da Unidade de Desenvolvi- Cardiologista pediátrico no Hospital dos Lusíadas, Lisboa.
mento do HDE, Lisboa.
Graça Nogueira
José Pedro Vieira Médica cardiologista pediátrica. Assistente Hospitalar no Serviço de
Médico neuropediatra. Assistente Graduado no Serviço de Neurope- Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa Marta, Lisboa.
diatria do HDE, Lisboa.
Fátima F. Pinto
Ana Isabel Dias Médica cardiologista pediátrica. Chefe de Serviço e Directora do Serviço
Médica neuropediatra. Assistente Graduada no Serviço de Neurope- de Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa Marta, Lisboa.
diatria do HDE, Lisboa.
Anabela Paixão
Clara Abadesso Médica cardiologista pediátrica. Chefe de Serviço no Serviço de
Médica pediatra no Serviço de Neuropediatria do HDE, Lisboa. Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa Marta, Lisboa.
Assistente Hospitalar do Hospital Fernando Fonseca, Amadora-
Sintra. Ana Cristina Ferreira
Médica pediatra. Assistente Hospitalar no HDE. Estagiária no Serviço
Eulália Calado de Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa Marta, Lisboa.
Médica neuropediatra. Chefe de Serviço e Directora do Serviço de
Neuropediatria do HDE,Lisboa. Coordenadora do Núcleo de Spina Ana Carriço
Bifida do HDE. Médica cardiologista pediátrica. Assistente Hospitalar de Cardiologia
Pediátrica do Hospital de São João, Porto.
Sandra Jacinto
Médica pediatra neurologista no Serviço de Neuropediatria do HDE. Mónica Rebelo
Médica cardiologista pediátrica. Assistente Hospitalar de Cardiologia
Clara Loff Pediátrica no Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa
Médica fisiatra. Consultora no Serviço de Medicina Física e Reabilitação Marta, Lisboa.
(SMFR) do HDE, Lisboa.
Hugo Vinhas
Elisabete Gonçalves Médico cardiologista pediátrico. Assistente Hospitalar de Cardiologia
Médica neuropediatra. Assistente Graduada e Directora do Serviço de Pediátrica do Hospital Garcia de Orta, Almada.
Pediatria do Hospital do Barreiro.
Conceição Trigo
Rita Silva Médica cardiologista pediátrica. Assistente Graduada de Cardiologia
Médica neuropediatra. Assistente Hospitalar no Serviço de Neurope- Pediátrica no Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa
diatria do HDE, Lisboa. Marta, Lisboa.

Fernando Tapadinhas António Fiarresga


Médico pediatra neurologista no Hospital de Faro. Médico cardiologista no Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hospital
de Santa Marta, Lisboa.
Carla Moço
Médica neuropediatra. Assistente Graduada do Hospital de Faro. Sofia Ferreira
Médica cardiologista pediátrica. Assistente Hospitalar de Cardiologia
Ana Moreira Pediátrica do Hospital Fernando Fonseca, Amadora-Sintra.
Médica neuropediatra. Assistente Graduada no Serviço de Neurope-
diatria do HDE, Lisboa
Autores VII

Marisa Peres Ignacio Villa Elizaga


Médica cardiologista pediátrica. Assistente Hospitalar de Cardiologia Professor Catedrático Jubilado de Pediatria e Neonatologia da
Pediátrica do Hospital de Santarém. Estagiária no Serviço de Faculdade de Medicina da Universidade Autónoma de Madrid,
Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa Marta, Lisboa. Espanha. Médico-pediatra neonatologista. Director ex-officio do
Departamento de Pediatria e do Centro de Investigação do Hospital
Isabel Freitas Universitário Gregorio Marañon de Madrid, Espanha.
Médica estagiária de Cardiologia Pediátrica no Serviço de Cardiologia
Pediátrica do Hospital de Santa Marta, Lisboa. J. de Salis Amaral
Professor Catedrático Aposentado de Ortopedia da FCM/UNL. Médico-
Miguel Pacheco ortopedista. Chefe de Serviço e Director ex-officio do Serviço Uni-
Médico cardiologista pediátrico. Assistente Hospitalar de Cardiologia versitário de Ortopedia do Hospital Egas Moniz, Lisboa.
Pediátrica do Hospital de Angra do Heroísmo, Açores. Estagiário no
Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa Marta, Lisboa. J. Lameiras Campagnolo
Médico ortopedista. Assistente Hospitalar no Serviço de Ortopedia do
Ana Leça HDE, Lisboa.
Médica pediatra. Assistente Graduada do HDE. Membro do Núcleo de
Apoio à Criança e Família no HDE. Directora dos Serviços de Maria José Costa
Prevenção e Controlo de Doenças da DGS. Médica fisiatra. Consultora no Serviço de Medicina Física e Reabilitação
(SMFR) do HDE, Lisboa.
José Diogo Martins
Médico cardiologista pediátrico. Assistente Hospitalar de Cardiologia M. Madalena de Quinhones Levy
Pediátrica no Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hospital de Santa Médica fisiatra. Chefe de Serviço e Directora ex-officio do Serviço de
Marta, Lisboa. Medicina Física e Reabilitação (SMFR) do HDE, Lisboa.

J. A. Melo Gomes João Goyri O´Neill


Médico reumatologista. Assistente Graduado de Reumatologia do Instituto Professor Catedrático de Anatomia e Director do Departamento de
Português de Reumatologia, Lisboa. Reumatologista Consultor do Anatomia da FCM/UNL. Especialista em Oftalmologia. Colabora-
Hospital Dona Estefânia, Lisboa. Reumatologista Consultor do Serviço dor científico do Serviço Universitário de Oftalmologia do Hospital
de Pediatria do Hospital de S. Francisco Xavier, Lisboa. Reumatologista Egas Moniz, Lisboa.
Consultor do Serviço de Pediatria do Hospital de Faro.
Ana Xavier
Sónia Melo Gomes Médica oftalmologista. Assistente Graduada de Oftalmologia na Uni-
Médica pediatra no Hospital de Caldas da Raínha e no Instituto dade de Oftalmologia do HDE, Lisboa.
Português de Reumatologia, Lisboa.
José Luís Dória
Marta Conde Médico oftalmologista. Chefe de Serviço no Serviço Universitário de
Médica pediatra. Assistente Hospitalar no Hospital Dona Estefânia, Lisboa. Oftalmologia do Hospital Egas Moniz, Lisboa. Assistente de
Colaboradora no Instituto Português de Reumatologia, Lisboa. Oftalmologia da FCM/UNL. Professor de Oftalmologia na Escola
Superior de Tecnologias da Saúde (Curso de Ortóptica).
Maria Manuela Costa
Médica reumatologista. Assistente Graduada de Reumatologia no Cristina Brito
Hospital de Santa Maria,Lisboa. Médica oftalmologista. Assistente Graduada de Oftalmologia e
Coordenadora da Unidade de Oftalmologia do HDE, Lisboa.
Margarida Paula Ramos
Médica pediatra. Assistente Hospitalar no HDE, Lisboa. Responsável José Nepomuceno
pela Consulta de Doenças Reumáticas do HDE, Lisboa. Assistente Médico oftalmologista. Assistente Graduado de Oftalmologia na Uni-
Convidada de Pediatria da FCM/UNL. dade de Oftalmologia do HDE, Lisboa.

Rui Figueiredo José Mesquita


Médico reumatologista no Instituto Português de Reumatologia, Lisboa. Médico oftalmologista. Chefe de Serviço ex-officio da Unidade de
Assistente Convidado da disciplina de Mecanismos da Doença da Oftalmologia do HDE, Lisboa.
Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.
Rosário Malheiro
Maria Teresa Ramos AscensãoTerreri Médica estomatologista. Assistente Graduada e Coordenadora da
Professora Afiliada da disciplina de Alergia, Imunologia Clínica e Unidade de Estomatologia do HDE, Lisboa. Docente Convidada de
Reumatologia do Departamento de Pediatria da Universidade Pediatria da FCM/UNL. Competência em Gestão de Unidades de
Federal de São Paulo (UNIFESP/EPM – São Paulo), Brasil. Médica Saúde.
reumatologista.
Índice

Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXI 10 Crianças e adolescentes com necessidades


Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXIII especiais – Aspectos gerais da habilitação
Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXV e reabilitação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62
Glossário Geral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXVII Maria Helena Portela
Abreviaturas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XXXV 11 Continuidade de cuidados à criança e
adolescente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
Maria do Céu Soares Machado

PARTE III Genética e Dismorfologia 69


I VOLUME 12 Genética Médica na Clínica Pediátrica . . 70
Luís Nunes, Raquel Carvalhas e Teresa Kay
PARTE I Introdução à Clínica Pediátrica 1 13 Genética: Importância do laboratório . . . 75
1 A Criança em Portugal e no Mundo. Salomé Almeida, Teresa Kay, Raquel Carvalhas e Luís Nunes
Demografia e Saúde . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 14 Formas de hereditariedade . . . . . . . . . . . . . 78
João M. Videira Amaral Salomé Almeida, Teresa Kay, Raquel Carvalhas e Luís Nunes
2 Os superiores interesses da criança . . . . . 17 15 Anomalias cromossómicas . . . . . . . . . . . . . 83
João Gomes-Pedro Luís Nunes, Márcia Rodrigues, Salomé Almeida,
3 Ética, humanização Raquel Carvalhas e Teresa Kay
e cuidados paliativos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23 16 Doenças multifactoriais . . . . . . . . . . . . . . . 88
Maria do Carmo Vale e João M. Videira Amaral Luís Nunes, Rui Gonçalves, Salomé Almeida e Teresa Kay
4 Formação em Pediatria 17 Diagnóstico pré-natal . . . . . . . . . . . . . . . . . 92
na pós-graduação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30 Teresa Kay, Diana Antunes, Raquel Carvalhas e Luís Nunes
João M. Videira Amaral 18 Anomalias congénitas . . . . . . . . . . . . . . . . . 98
5 Investigação e clínica pediátrica . . . . . . . . 34 Maria de Jesus Feijoó e João M. Videira Amaral
João M. Videira Amaral
PARTE IV Crescimento Normal
PARTE II Clínica Pediátrica Hospitalar e Patológico 111
e Extra-Hospitalar 39 19 Crescimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112
6 Clínica pediátrica hospitalar . . . . . . . . . . . 40 Maria de Lurdes Lopes e Rosa Pina
Mário Coelho 20 Baixa estatura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119
7 Aspectos metodológicos da abordagem Maria de Lurdes Lopes e Rosa Pina
de casos clínicos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 46
João M. Videira Amaral PARTE V Desenvolvimento
8 A Imagiologia em Clínica Pediátrica . . . . 49 e Comportamento 127
Francisco Abecasis, Eugénia Soares e Leonor Bastos Gomes 21 Desenvolvimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128
9 Aspectos do Serviço de Patologia Clínica Maria do Carmo Vale
num hospital pediátrico . . . . . . . . . . . . . . . 59 22 Desenvolvimento e intervenção . . . . . . . 131
Rosa Maria Barros, Antonieta Viveiros, Antonieta Bento, Ana Alegria, João Estrada e Maria do Carmo Vale
Isabel Daniel, Isabel Griff, Margarida Guimarães, Virgínia 23 Comportamento e temperamento . . . . . . 136
Loureiro, Vitória Matos Maria do Carmo Vale
X TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

24 Deficiência mental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 140 PARTE VIII Clínica da Adolescência 223


Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto 43 Adolescência, crescimento
25 Perturbações da linguagem e desenvolvimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 224
e comunicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143 Maria do Carmo Silva Pinto
Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto 44 Adolescência e comportamento:
26 Habilitação da criança com dificuldades abordagem clínica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 234
na comunicação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147 Maria do Carmo Silva Pinto
Isabel Portugal
27 Aprendizagem e insucesso escolar . . . . . 148 PARTE IX Aspectos da Relação entre Medicina
Maria do Carmo Vale Pediátrica e Medicina do Adulto 241
28 Perturbações do sono . . . . . . . . . . . . . . . . 152 45 Doenças da idade pediátrica com
Maria do Carmo Vale e João M. Videira Amaral repercussão no adulto . . . . . . . . . . . . . . . . 242
29 Síndroma da apneia obstrutiva do sono João M. Videira Amaral
(SAOS) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 156 46 Hipertensão arterial em saúde infantil
Mário Coelho e juvenil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 252
30 Perturbações do espectro do autismo . . 162 João M. Videira Amaral
Maria do Carmo Vale e Mónica Pinto 47 Doença aterosclerótica . . . . . . . . . . . . . . . 258
31 Perturbações de hiperactividade João M. Videira Amaral
e défice de atenção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 166
Mónica Pinto e Maria do Carmo Vale PARTE X Fluidos e Electrólitos 263
48 Equilíbrio hidroelectrolítico
PARTE VI Pedopsiquiatria 171 e ácido-base . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 264
32 Introdução à Clínica Pedopsiquiátrica . . . 172 Maria do Carmo Vale, João Estrada e João M. Videira Amaral
Maria José Gonçalves 49 Desidratação aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . 270
33 Perturbações da ansiedade . . . . . . . . . . . . 175 Maria do Carmo Vale, João Estrada e João M. Videira Amaral
Maria José Gonçalves e Margarida Marques 50 Reidratação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 272
34 Depressão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 178 Maria do Carmo Vale, João Estrada e João M. Videira Amaral
Maria José Gonçalves e Margarida Marques
35 Psicoses . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181 PARTE XI Nutrição 281
Maria José Gonçalves e Margarida Marques 51 Nutrientes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 282
36 Perturbações do comportamento . . . . . . 183 Ignacio Villa Elizaga e João M. Videira Amaral
Maria José Gonçalves e Margarida Marques 52 Alimentação com leite materno . . . . . . . 296
João M. Videira Amaral
PARTE VII Ambiente, Risco e Morbilidade 187 53 Leites e fórmulas infantis . . . . . . . . . . . . . 302
37 A criança maltratada . . . . . . . . . . . . . . . . . 188 Carla Rego e António Guerra
Deolinda Barata e Ana Leça 54 Probióticos, pré-bióticos e simbióticos . 310
38 Traumatismos, ferimentos e lesões Aires Cleofas da Silva
acidentais – O papel da prevenção . . . . . 196 55 Alimentação diversificada
Mário Cordeiro no primeiro ano de vida . . . . . . . . . . . . . . 316
39 Intoxicações agudas . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207 António Guerra
António Marques e Margarida Santos 56 Alimentação após o primeiro ano de vida
40 Viagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211 incluindo as idades pré-escolar, escolar
Luís Varandas e adolescência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 325
41 Acidentes de submersão . . . . . . . . . . . . . . 215 Ignacio Villa Elizaga e João M. Videira Amaral
José Ramos e Isabel Fernandes 57 Obesidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 329
42 Sindroma da morte súbita do lactente . . 218 Carla Rêgo
Hercília Guimarães 58 Síndromas de má-nutrição
energético-proteica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 338
Ignacio Villa Elizaga e João M. Videira Amaral
Índice XI

59 Carências vitamínicas e minerais . . . . . . 343 79 Avaliação audiológica . . . . . . . . . . . . . . . . 439


João M. Videira Amaral Luísa Monteiro
60 Regimes vegetarianos
e erros alimentares . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 350 PARTE XIV Pneumologia 449
João M. Videira Amaral 80 Anomalias da parede do tórax . . . . . . . . . 450
61 Alterações do comportamento João M. Videira Amaral
alimentar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 352 81 Anomalias congénitas do sistema
João M. Videira Amaral respiratório . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 452
Julião Magalhães e João M. Videira Amaral
PARTE XII Imunoalergologia 357 82 Pneumonia adquirida
62 Doenças alérgicas na criança – na comunidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 456
Epidemiologia e prevenção . . . . . . . . . . . 358 Laura Oliveira e Fátima Abreu
J. Rosado Pinto 83 Derrame pleural . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 464
63 Aspectos do diagnóstico Fátima Abreu
da doença alérgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 362 84 Pneumonia recorrente . . . . . . . . . . . . . . . . 469
Ângela Gaspar José Guimarães
64 Asma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 369 85 Bronquiolite aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . 473
Mário Morais de Almeida António Amador e Joaquim Sequeira
65 Rinite alérgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 383 86 Bronquiolite obliterante . . . . . . . . . . . . . . 481
Graça Pires José Guimarães
66 Alergia de expressão cutânea . . . . . . . . . 386 87 Bronquite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 484
Cristina Santa Marta João M. Videira Amaral
67 Alergia medicamentosa . . . . . . . . . . . . . . 394 88 Bronquiectasias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 486
Paula Leiria Pinto Ana Margarida Reis e José Cavaco
68 Alergia e intolerância alimentares . . . . . 399 89 Síndromas de aspiração . . . . . . . . . . . . . . 489
Sara Prates João M. Videira Amaral
69 Imunodeficiências primárias . . . . . . . . . . 403 90 Hemossiderose pulmonar e síndromas
Conceição Neves de hemorragia alveolar difusa . . . . . . . . . 491
70 Síndroma de imunodeficiência Mafalda Paiva e A. Bessa Almeida
adquirida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 409 91 Fibrose quística . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 495
António Bessa Almeida, Júlia Galhardo e Ema Leal Ana Maia Pita e José Cavaco
92 Reabilitação respiratória . . . . . . . . . . . . . . 501
PARTE XIII Otorrinolaringologia 417 António Teixeira
71 Faringite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 418
Carlos Ruah PARTE XV Dermatologia 505
72 Amigdalite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 419 93 Introdução à Dermatologia pediátrica . . . 506
Carlos Ruah António Pinto Soares
73 Adenoidite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 422 94 Dermatite seborreica . . . . . . . . . . . . . . . . . 507
Carlos Ruah Teresa Fiadeiro
74 Rino- sinusite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 423 95 Dermatite atópica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 509
Vital Calado Maria João Paiva Lopes
75 Otite média aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 427 96 Acne . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 513
Vital Calado Ana Macedo Ferreira
76 Otite sero- mucosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 431 97 Dermatite das fraldas . . . . . . . . . . . . . . . . 517
Vital Calado Teresa Fiadeiro
77 Otomastoidite aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . 434 98 Psoríase . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 519
Maria Caçador e Carlos Ruah Ana Fidalgo
78 Patologia inflamatória aguda laríngea . . 436 99 Pitiríase rosada (doença de Gibert) . . . . 522
Carlos Ruah Ana Fidalgo
XII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

100 Pediculose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 523 123 Transplantação hepática . . . . . . . . . . . . . . 601


Luísa Caldas Lopes Isabel Gonçalves
101 Escabiose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 524 124 Pancreatite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 606
Luísa Caldas Lopes Helena Flores
102 Molusco contagioso . . . . . . . . . . . . . . . . . . 526
Maria João Paiva Lopes PARTE XVII Oncologia 611
125 Introdução à Oncologia Pediátrica . . . . . 612
PARTE XVI Gastrenterologia Mário Chagas
e Hepatologia 529 126 Tumores, ambiente e genética . . . . . . . . . 614
103 Vómitos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 530 Mário Chagas
Mafalda Paiva e Filipa Santos 127 Aspectos básicos do diagnóstico
104 Refluxo gastresofágico . . . . . . . . . . . . . . . 533 oncológico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 617
Gonçalo Cordeiro Ferreira Mário Chagas
105 Dor abdominal recorrente . . . . . . . . . . . . 538 128 Aspectos básicos do tratamento
José Cabral oncológico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 621
106 Doença péptica e Helicobacter pylori . . . 543 Mário Chagas e Ana Teixeira
José Cabral 129 Leucemias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 627
107 Gastrenterite aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . 546 Mário Chagas
Mafalda Paiva, Filipa Santos e João M. Videira Amaral 130 Linfomas não Hodgkin . . . . . . . . . . . . . . . 632
108 Diarreia crónica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 551 Mário Chagas
Gonçalo Cordeiro Ferreira 131 Linfomas de Hodgkin . . . . . . . . . . . . . . . . 635
109 Doença celíaca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 554 Mário Chagas
Gonçalo Cordeiro Ferreira 132 Neuroblastoma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 637
110 Giardíase . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 556 Mário Chagas
Gonçalo Cordeiro Ferreira 133 Tumor de Wilms . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 640
111 Diarreia crónica inespecífica . . . . . . . . . . 557 Mário Chagas
Gonçalo Cordeiro Ferreira 134 Tumores do sistema nervoso central . . . . 642
112 Doença inflamatória do intestino . . . . . . 558 Mário Chagas e Duarte Salgado
Isabel Afonso
113 Obstipação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 561
Gonçalo Cordeiro Ferreira II VOLUME
114 Doença de Hirschprung . . . . . . . . . . . . . . 567
Rui Alves PARTE XVIII Hematologia 647
115 Síndroma do intestino curto . . . . . . . . . . 570 135 Hematopoiese . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 648
Sara Silva e Raul Silva Ema Leal e A. Bessa Almeida
116 Hepatite vírica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 577 136 Síndromas hematológicas em idade
Gonçalo Cordeiro Ferreira pediátrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 652
117 Hepatite autoimune . . . . . . . . . . . . . . . . . . 584 João M. Videira Amaral
Gonçalo Cordeiro Ferreira 137 Anemias. Generalidades . . . . . . . . . . . . . 658
118 Colestase do recém-nascido e lactente . . . 587 João M. Videira Amaral
Inês Pó 138 Anemia ferropénica . . . . . . . . . . . . . . . . . . 661
119 Doença de Wilson . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 591 Júlia Galhardo e A. Bessa Almeida
Isabel Afonso 139 Anemia megaloblástica . . . . . . . . . . . . . . . 670
120 Cirrose hepática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 593 João M. Videira Amaral
Maria de Lurdes Torre 140 Anemias hemolíticas. Generalidades . . 673
121 Hipertensão portal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 596 Lígia Braga
Maria de Lurdes Torre 141 Esferocitose hereditária . . . . . . . . . . . . . . 674
122 Insuficiência hepática aguda . . . . . . . . . . 599 Lígia Braga
Maria de Lurdes Torre
Índice XIII

142 Anemias hemolíticas por defeitos 163 Alterações tubulares renais . . . . . . . . . . . 778
enzimáticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 679 Isabel Castro
Liza Aguiar, Faisana Amod e Lígia Braga 164 Infecção urinária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 785
143 Anemias hemolíticas por defeitos Arlete Neto
da hemoglobina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 684 165 Anomalias congénitas do rim . . . . . . . . . 795
Lígia Braga, João M. Videira Amaral João M. Videira Amaral
144 Hemoglobinúria paroxística nocturna . . . 700 166 Refluxo vésico-ureteral . . . . . . . . . . . . . . . 797
João M. Videira Amaral Rui Alves
145 Anemias hemolíticas de causa 167 Uropatia obstrutiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . 801
extrínseca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 701 Rui Alves
João M. Videira Amaral 168 Diagnóstico pré-natal das uropatias
146 Policitémia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 704 malformativas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 807
João M. Videira Amaral João M. Videira Amaral
147 Neutropénia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 705 169 Insuficiência renal aguda . . . . . . . . . . . . . 809
Ema Leal e A. Bessa Almeida Isabel Castro
148 Trombocitopénia e trombocitose . . . . . 711 170 Insuficiência renal crónica . . . . . . . . . . . . 812
Júlia Galhardo e A. Bessa Almeida Isabel Castro
149 Anomalias funcionais das plaquetas . . . 717 171 Alterações da bexiga . . . . . . . . . . . . . . . . . 815
João M. Videira Amaral Rui Alves
150 Aplasia medular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 718 172 Alterações do pénis e uretra . . . . . . . . . . . 818
João M. Videira Amaral Rui Alves
151 Hemofilias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 722 173 Alterações do conteúdo escrotal . . . . . . . 823
Andreia Teixeira e A. Bessa Almeida Rui Alves e João M. Videira Amaral
152 Doença de von Willebrand . . . . . . . . . . . 729
João M. Videira Amaral PARTE XX Endocrinologia 829
153 Hipercoagulabilidade 174 Doenças da supra-renal.
e doença trombótica . . . . . . . . . . . . . . . . . . 731 Generalidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 830
João M. Videira Amaral Maria de Lurdes Lopes
154 Coagulação intravascular 175 Hiperplasia congénita da supra-renal . . . . 832
disseminada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 734 Maria de Lurdes Lopes
Deolinda Barata e Sofia Sarafana 176 Insuficiência supra-renal . . . . . . . . . . . . . 837
155 Terapêutica transfusional . . . . . . . . . . . . . 742 Maria de Lurdes Lopes
Deonilde Espírito Santo 177 Síndroma de Cushing . . . . . . . . . . . . . . . . 842
Maria de Lurdes Lopes
PARTE XIX Nefro-Urologia 753 178 Tumores do córtex supra-renal . . . . . . . . 845
156 Introdução à Nefro-Urologia . . . . . . . . . . 754 Maria de Lurdes Lopes
Judite Batista 179 Feocromocitoma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 847
157 Glomerulonefrite aguda . . . . . . . . . . . . . . 755 João M. Videira Amaral
Ana Paula Serrão e Gisela Neto 180 Doenças da tiroideia . . . . . . . . . . . . . . . . . 849
158 Glomerulonefrite crónica . . . . . . . . . . . . . 758 Catarina Limbert
Ana Paula Serrão e Gisela Neto 181 Puberdade normal e patológica . . . . . . . 860
159 Síndroma nefrótica idiopática . . . . . . . . . 764 Guilhermina Romão
Judite Batista 182 Diabetes mellitus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 866
160 Síndroma hemolítica urémica . . . . . . . . . 769 Rosa Pina
Ana Paula Serrão 183 Cetoacidose diabética . . . . . . . . . . . . . . . . 880
161 Trombose da veia renal . . . . . . . . . . . . . . . 771 João Estrada e Maria do Carmo Vale
João M. Videira Amaral 184 Hipoglicémia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 885
162 Hipertensão arterial e doença renal . . . . 772 João M. Videira Amaral
Margarida Abranches
XIV TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

PARTE XXI Neurologia 891 206 Coarctação da aorta . . . . . . . . . . . . . . . . . . 995


185 Cefaleias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 892 Hugo Vinhas, Conceição Trigo e Sashicanta Kaku
José Pedro Vieira 207 Estenose aórtica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 998
186 Ataxia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 898 António Fiarresga e Sashicanta Kaku
José Pedro Vieira 208 Síndroma do coração
187 Epilepsia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 903 esquerdo hipoplásico . . . . . . . . . . . . . . . 1002
Ana Isabel Dias Sofia Ferreira, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku
188 Acidentes vasculares cerebrais . . . . . . . . 913 209 Estenose pulmonar . . . . . . . . . . . . . . . . . 1005
Clara Abadesso e José Pedro Vieira Anabela Paixão, Marisa Peres e Sashicanta Kaku
189 Paralisia cerebral . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 920 210 Tetralogia de Fallot . . . . . . . . . . . . . . . . . 1007
Eulália Calado e Sandra Jacinto Isabel Freitas, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku
190 Defeitos do tubo neural . . . . . . . . . . . . . . 927 211 Transposição completa
Eulália Calado das grandes artérias . . . . . . . . . . . . . . . . . 1011
191 Habilitação para a marcha e ajudas técnicas Sashicanta Kaku e Miguel Pacheco
em crianças com spina bifida . . . . . . . . . . 934 212 Doença de Kawasaki e doença cardíaca –
Clara Loff Abordagem multidisciplinar . . . . . . . . . 1014
192 Discranias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 937 Anabela Paixão e Sashicanta Kaku (Cardiologia)
João M. Videira Amaral Júlia Galhardo e Ana Leça (Pediatria Médica)
193 Alterações da migração neuronal 213 Cardite reumática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1021
e outras anomalias do SNC . . . . . . . . . . . 942 António J. Macedo e Sashicanta Kaku
João M. Videira Amaral 214 Endocardite infecciosa . . . . . . . . . . . . . . 1029
194 Síndromas neurocutâneas . . . . . . . . . . . . . 944 Isabel Freitas, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku
Elisabete Gonçalves, Rita Silva e Eulália Calado 215 Miocardite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1031
195 Doenças neuromusculares . . . . . . . . . . . . 949 José Diogo Martins e Sashicanta Kaku
Fernando Tapadinhas e José Pedro Vieira 216 Pericardite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1033
196 Doenças neurodegenerativas . . . . . . . . . . 960 José Diogo Martins e Sashicanta Kaku
Carla Moço e Ana Moreira 217 Cardiomiopatias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1035
197 Reabilitação neurológica . . . . . . . . . . . . . . 965 José Diogo Martins e Sashicanta Kaku
Aldina Alves
PARTE XXIII Reumatologia 1041
PARTE XXII Cardiologia 971 218 Introdução à clínica das doenças
198 Introdução à Cardiologia Pediátrica . . . 972 reumáticas juvenis . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1042
Sashicanta Kaku J. A. Melo Gomes
199 Cardiologia fetal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 973 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) . . . . . 1043
Graça Nogueira e António J. Macedo J. A. Melo Gomes
200 Não doença e pseudodoença cardíaca 220 Doenças reumáticas juvenis englobadas
em idade pediátrica . . . . . . . . . . . . . . . . . . 976 no grupo das AIJ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1067
Fátima F. Pinto e Sashicanta Kaku J.A. Melo Gomes
201 Cardiopatias congénitas. 221 Síndromas auto-inflamatórias juvenis . . 1074
Grupos fisiopatológicos . . . . . . . . . . . . . . 978 Sónia Melo Gomes, Marta Conde e J.A. Melo Gomes
Anabela Paixão e Sashicanta Kaku 222 Lúpus eritematoso sistémico infantil
202 Persistência do canal arterial . . . . . . . . . . 981 e juvenil . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1081
Ana Cristina Ferreira, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku Maria Manuela Costa
203 Comunicação interauricular . . . . . . . . . . . 984 223 Dermatomiosite e polimiosite juvenis . 1092
Ana Carriço, Fátima F. Pinto e Sashicanta Kaku Margarida P. Ramos
204 Comunicação interventricular . . . . . . . . . 987 224 Esclerodermias juvenis . . . . . . . . . . . . . . 1097
Anabela Paixão, Ana Cristina Ferreira e Sashicanta Kaku Rui Figueiredo e J. A. Melo Gomes
205 Defeitos do septo aurículo-ventricular . . . 990 225 Vasculites sistémicas . . . . . . . . . . . . . . . . 1101
Mónica Rebelo e António J. Macedo Margarida P. Ramos
Índice XV

226 Febre reumática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1119 245 Reabilitação de anomalias congénitas


Maria Teresa Ramos Ascensão Terreri da mão. Noções gerais . . . . . . . . . . . . . . . 1196
227 Dores de crescimento . . . . . . . . . . . . . . . 1125 Maria José Costa
J. A. Melo Gomes 246 Reabilitação de anomalias congénitas e
adquiridas dos membros inferiores.
PARTE XXIV Osteocondrodisplasias 1127 Noções gerais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1200
228 Displasias esqueléticas e doenças afins. M. Madalena de Quinhones Levy
Conceitos fundamentais . . . . . . . . . . . . . 1128
Ignacio Villa Elizaga e João M. Videira Amaral PARTE XXVI Oftalmologia 1203
229 Osteogénese imperfeita . . . . . . . . . . . . . 1137 247 Introdução à Oftalmologia Pediátrica . . 1204
Ignacio Villa Elizaga João Goyri O’Neill
230 Dentinogénese imperfeita . . . . . . . . . . . 1141 248 Exame oftalmológico
Ignacio Villa Elizaga na idade pediátrica . . . . . . . . . . . . . . . . . 1208
231 Síndromas de Ehlers-Danlos . . . . . . . . . 1142 João Goyri O’Neill
Ignacio Villa Elizaga 249 Anomalias de refracção (ametropia) . . 1216
232 Síndroma de Alport . . . . . . . . . . . . . . . . . 1145 João Goyri O’Neill
Ignacio Villa Elizaga 250 Estrabismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1217
233 Epidermólise bolhosa . . . . . . . . . . . . . . . 1146 Ana Xavier
Ignacio Villa Elizaga 251 Ambliopia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1219
234 Síndroma de Marfan e aracnodactilia João Goyri O’Neill e J.L. Dória
congénita . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1148 252 Obstrução do aparelho lacrimal . . . . . . 1221
Ignacio Villa Elizaga João Goyri O’Neill e J.L. Dória
235 Cutis laxa, pseudoxantoma elástico 253 Glaucoma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1224
e síndroma de Williams . . . . . . . . . . . . . 1150 Cristina Brito
Ignacio Villa Elizaga 254 Síndroma do “olho vermelho” . . . . . . . 1227
José Nepomuceno
PARTE XXV Ortopedia 1155 255 Doenças da retina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1232
236 Introdução à Ortopedia Pediátrica . . . . 1156 Cristina Brito
J. de Salis Amaral 256 Catarata . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1244
237 Osteomielite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1161 Cristina Brito e J. Mesquita
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo 257 Traumatismos óculo-orbitários . . . . . . . 1246
238 Artrite séptica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1164 J. Mesquita
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo
239 Tumores ósseos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1167 PARTE XXVII Estomatologia 1251
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo 258 Crescimento e desenvolvimento
240 Desvios axiais dos membros . . . . . . . . . 1169 maxilo-facial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1252
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo Rosário Malheiro
241 Patologia regional específica 259 Oclusão e aspectos da relação molar
do membro superior . . . . . . . . . . . . . . . . 1172 e da relação incisiva . . . . . . . . . . . . . . . . . 1257
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo Rosário Malheiro
242 Patologia regional específica 260 Traumatologia alvéolo-dentária . . . . . . 1259
do membro inferior . . . . . . . . . . . . . . . . . 1173 Rosário Malheiro
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo 261 Cárie dentária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1268
243 Patologia regional específica do tronco . 1186 Rosário Malheiro
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo 262 Principais síndromas alvéolo-dentárias . 1276
244 Patologia traumática . . . . . . . . . . . . . . . . . 1191 Rosário Malheiro
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo 263 Infecções odontogénicas . . . . . . . . . . . . . 1278
Rosário Malheiro
XVI TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

III VOLUME 282 Infecçções por Haemophilus influenzae . . 1434


Maria João Brito
PARTE XXVIII Urgências e Emergências. 283 Tosse convulsa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1440
Tópicos seleccionados 1285 Ana Leça e João Farela Neves
264 Serviços de Urgência e Emergência. 284 Doença meningocócica . . . . . . . . . . . . . . 1446
Aspectos organizativos . . . . . . . . . . . . . . 1286 João M. Videira Amaral
Deolinda Barata e António Marques 285 Infecções por Salmonella . . . . . . . . . . . . 1450
265 Reanimação cárdio-respiratória . . . . . . 1293 João M. Videira Amaral
Margarida Santos e António Marques 286 Brucelose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1459
266 Estado de mal epiléptico . . . . . . . . . . . . 1305 Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
Rosalina Valente e Gabriela Pereira 287 Meningite bacteriana pós-neonatal . . . 1464
267 Coma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1309 Ana Leça
Gabriela Pereira e Rosalina Valente 288 Riquetsioses (excluindo febre
268 Choque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1315 escaronodular) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1474
Lurdes Ventura e Deolinda Barata Ana Leça e Mónica Baptista
269 Sépsis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1323 289 Febre escaronodular . . . . . . . . . . . . . . . . 1477
Lurdes Ventura e Deolinda Barata Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
270 Hipertermia e Hipotermia . . . . . . . . . . . 1329 290 Febre Q . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1481
Isabel Fernandes e Sérgio Lamy Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
271 Traumatismos cranioencefálicos . . . . . . 1336 291 Doença do arranhão do gato . . . . . . . . . 1483
Sérgio Lamy e Isabel Fernandes Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
272 Queimaduras. Abordagem 292 Leptospirose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1486
multidisciplinar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1344 Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
Rui Alves (Cirurgia) e Maria José Costa (Medicina 293 Doença de Lyme . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1489
Física e Reabilitação) Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
273 Mordeduras e picadas . . . . . . . . . . . . . . . 1355 294 Febre recorrente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1493
João M. Videira Amaral Ana Serrão Neto e Filomena Cândido
295 Tuberculose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1496
PARTE XXIX Infecciologia 1361 Ana Leça
274 Imunizações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1362 296 Infecções por Mycoplasma . . . . . . . . . . . 1513
Ana Leça e João M. Videira Amaral João M. Videira Amaral
275 Princípios gerais da terapêutica 297 Infecções por Parvovírus B19 . . . . . . . . 1515
antimicrobiana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1381 Conceição Neves
A. Bessa Almeida e Ana Rute Ferreira 298 Infecções por Vírus Herpes
275 Doenças infecciosas exantemáticas (Varicela-Zóster, Citomegalovírus
– Uma visão global . . . . . . . . . . . . . . . . . 1393 e Epstein-Barr) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1520
Andrea Teixeira e Luís Varandas Ana Leça e Raquel Ferreira
277 Febre sem foco de infecção detectável . . . 1397 299 Infecções por Enterovírus
Ana Leça e Cristina Henriques (excluindo Poliovírus) . . . . . . . . . . . . . . . 1531
278 Doença pneumocócica . . . . . . . . . . . . . . . 1403 Ana Leça e Paula Kjollerstrom
Maria João Brito 300 Meningoencefalites víricas . . . . . . . . . . 1537
279 Escarlatina e outras infecções Rute Neves, Dora Gomes e João Baldaia,
por Streptococcus pyogenes . . . . . . . . . . 1409 301 Parasitoses. Abordagem global . . . . . . . 1541
Ana Serrão Neto e Filomena Cândido Luís Varandas
280 Infecções da pele e dos tecidos moles . . . 1416 302 Calazar (Leishmaniose viseral) . . . . . . . 1553
Leonor Carvalho e Ana Leça João M. Videira Amaral
281 Celulites periorbitárias e orbitárias . . . 1430 303 Malária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1558
Ana Leça e Leonor Carvalho Luís Varandas
Índice XVII

304 Infecções por fungos . . . . . . . . . . . . . . . . 1564 PARTE XXXI Perinatologia


Raquel Ferreira e João M. Videira Amaral e Neonatologia 1669
305 Infecções e cuidados de saúde . . . . . . . 1582 *Feto e recém-nascido
Paula Kjollerstrom, Cristina Henriques e João M. Videira 324 Aspectos da Medicina Perinatal . . . . . . 1670
Amaral Ricardo Jorge Fonseca
325 Introdução à Neonatologia . . . . . . . . . . . 1677
PARTE XXX Cirurgia 1587 João M. Videira Amaral
306 Anomalias bucofaciais . . . . . . . . . . . . . . 1588 326 Adaptação fetal à vida extra-uterina . . 1687
Julião Magalhães João M. Videira Amaral
307 Fístulas e quistos da cabeça e pescoço . . . 1591 327 Exame clínico do recém-nascido . . . . . . 1702
Julião Magalhães João M. Videira Amaral
308 Hérnia diafragmática congénita . . . . . . 1595 328 Cuidados ao recém-nascido aparentemente
Julião Magalhães, Rui Alves e João M. Videira Amaral saudável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1718
309 Hérnia diafragmática congénita como Cláudia Santos, Helena Carreiro e Maria do Céu Machado
modelo em investigação. Implicações
clínicas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1602 *Recém-nascido de alto risco
Jorge Correia-Pinto, Maria João Baptista e Cristina 329 Reanimação do recém-nascido
Nogueira-Silva no bloco de partos . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1722
310 Eventração diafragmática . . . . . . . . . . . . 1608 Filomena Pinto, Isabel Santos, Teresa Costa e A. Marques
João M. Videira Amaral Valido e João M. Videira Amaral
311 Atrésia do esófago . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1610 330 Alterações do crescimento fetal . . . . . . 1735
Rui Alves e João M. Videira Amaral Luís Pereira da Silva e João M. Videira Amaral
312 Onfalocele . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1614 331 Prematuridade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1742
Rui Alves Graça Henriques, Fernando Chaves e João M. Videira Amaral
313 Gastrosquise e outros defeitos 332 Recém-nascidos de gestação múltipla . . . 1752
da parede abdominal . . . . . . . . . . . . . . . . 1617 Daniel Virella e Ana Dias Alves
Rui Alves 333 Embriofetopatia diabética . . . . . . . . . . . 1762
314 Hérnias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1621 M.R.G Carrapato, S. Tavares, C. Prior e T. Caldeira
Julião Magalhães 334 Recém-nascido de mãe
315 Síndromas de oclusão do tubo digestivo 1626 toxicodependente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1771
Julião Magalhães João M. Videira Amaral
316 Estenose hipertrófica do piloro . . . . . . . 1638 335 Dor no recém-nascido . . . . . . . . . . . . . . . 1778
Julião Magalhães João M. Videira Amaral e Luís Pereira da Silva
317 Anomalias ano-rectais . . . . . . . . . . . . . . . 1641 336 Cuidados paliativos ao recém-nascido . . . 1784
Rui Alves João M. Videira Amaral
318 Hemorragias do tubo digestivo . . . . . . . 1644 337 Transporte do recém-nascido . . . . . . . . . 1785
João M. Videira Amaral João M. Videira Amaral
319 Divertículo de Meckel . . . . . . . . . . . . . . 1647
Julião Magalhães *Problemas hidroelectrolíticos e metabólicos
320 Apendicite aguda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1649 338 Balanço hidroelectrolítico
Julião Magalhães no recém-nascido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1790
321 Enterocolite necrosante . . . . . . . . . . . . . . 1652 João M. Videira Amaral
Rui Alves e João M. Videira Amaral 339 Alterações do metabolismo do cálcio,
322 Aspectos da Ginecologia Pediátrica . . . 1661 fósforo e magnésio . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1799
Rui Alves Maria João Lage, Cristina Henriques e João M. Videira
323 Idades recomendadas para intervenção Amaral
cirúrgica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1667 340 Alterações do metabolismo da glucose . . 1806
Julião Magalhães Maria João Lage, Cristina Henriques e João M. Videira
Amaral
XVIII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

341 Insuficiência renal aguda 356 Trombocitopénia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1919


no recém-nascido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1814 António Vieira Macedo e João M. Videira Amaral
João M. Videira Amaral 357 Doença hemorrágica por défice
de vitamina K . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1925
*Alimentação e nutrição no recém-nascido João M. Videira Amaral
de alto risco 358 Icterícia neonatal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1928
342 Nutrição entérica no recém-nascido João M. Videira Amaral
pré-termo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1822
João M. Videira Amaral *Infecção do feto e recém-nascido
343 Nutrição parentérica 359 Aspectos gerais da infecção
no recém-nascido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1828 no recém-nascido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1950
Luís Pereira-da-Silva Maria Teresa Neto
344 Doença metabólica óssea 360 Infecção congénita . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1953
da prematuridade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1840 Maria Teresa Neto
João M. Videira Amaral 361 Infecção bacteriana de origem materna . . 1964
Maria Teresa Neto
*Problemas respiratórios do recém-nascido 362 Infecção associada à prestação
345 Problemas respiratórios do recém-nascido. de cuidados de saúde . . . . . . . . . . . . . . . 1967
Generalidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1845 Maria Teresa Neto
Marta Nogueira, J. Nona, A. Marques Valido
e João M. Videira Amaral *Problemas neurológicos e traumáticos
346 Doença da membrana hialina . . . . . . . . 1856 363 Traumatismo de parto . . . . . . . . . . . . . . . 1970
Marta Nogueira, J. Nona, A. Marques Valido e João Lincoln Justo Silva
M. Videira Amaral 364 Convulsões no recém-nascido . . . . . . . . 1982
347 Taquipneia transitória . . . . . . . . . . . . . . . 1865 Leonor Duarte e João M. Videira Amaral
Marta Nogueira, J. Nona, A. Marques Valido e João 365 Encefalopatia hipóxico-isquémica . . . . 1988
M. Videira Amaral Leonor Duarte
348 Síndroma de aspiração meconial . . . . . 1868 366 Hemorragia intraperiventricular . . . . . . 1994
Marta Nogueira, J. Nona, A. Marques Valido e João Leonor Duarte
M. Videira Amaral 367 Leucomalácia periventricular . . . . . . . . 2001
349 Síndromas de ar ectópico . . . . . . . . . . . . 1873 Leonor Duarte
Marta Nogueira, J. Nona, A. Marques Valido e João
M. Videira Amaral PARTE XXXII Doenças Hereditárias
350 Hemorragia pulmonar . . . . . . . . . . . . . . 1880 do Metabolismo 2005
João M.Videira Amaral 368 Introdução à clínica das doenças
351 Hipertensão pulmonar persistente . . . . 1882 hereditárias do metabolismo . . . . . . . . . 2006
João M. Videira Amaral João M. Videira Amaral
352 Assistência ventilatória 369 Defeitos do metabolismo
no recém-nascido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1887 dos aminoácidos e proteínas . . . . . . . . . 2008
J. Nona, A. Marques Valido e João M. Videira Amaral João M. Videira Amaral
353 Displasia broncopulmonar . . . . . . . . . . 1897 370 Defeitos do metabolismo dos hidratos
Marta Nogueira, A.Marques Valido e João M. Videira Amaral de carbono . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2017
João M. Videira Amaral
*Problemas hematológicos e afins 371 Doenças do ácido nucleico e do
354 Anemia neonatal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1908 metabolismo do heme . . . . . . . . . . . . . . . 2024
Ana Nunes e João M. Videira Amaral João M. Videira Amaral
355 Policitémia e hiperviscosidade . . . . . . . 1914 372 Doenças dos organelos . . . . . . . . . . . . . . 2027
Ana Nunes, Maria dos Anjos Bispo e João M. Videira João M. Videira Amaral
Amaral
Índice XIX

373 Doenças do metabolismo energético


mitocondrial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .2044
João M. Videira Amaral
374 Defeitos do metabolismo dos lípidos
incluindo dislipoproteinémias . . . . . . . .2057
João M. Videira Amaral

PARTE XXXIII Clínica Pediátrica e Novos


Paradigmas 2073
375 Medicina baseada na evidência-princípios
e aplicações em Pediatria . . . . . . . . . . . . 2074
Paulo Sousa e Isabel Saraiva de Melo
376 Qualidade e segurança em cuidados
de saúde . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2079
Maria João Lage e Idalina Bordalo

Anexos 2085

Índice remissivo 2103


Prefácio

Como referi no Prefácio da 1ª edição desta obra, divulgada em 2008, há muito que se
sentia em Portugal a falta de um tratado dedicado à prática clínica pediátrica.

Felizmente, o Prof. João Videira Amaral chamou a si esta hercúlea tarefa e, volvidos
quatro anos, surge a segunda edição do Tratado de Clínica Pediátrica, também em três
volumes, na versão de DVD. Como se poderá verificar pelo índice, este Tratado toca
todos os pontos da Pediatria.

Como particularidades relativamente à 1ª edição, cumpre-me salientar que a obra foi


actualizada e ampliada, quer no que respeita a conteúdos nucleares, quer quanto a
glossário geral e índice remissivo.

São indiscutíveis as vantagens pedagógicas da divulgação do Tratado em DVD.


Considerando esta estratégia mais abrangente pela possibilidade de atingir mais desti-
natários, será também mais atractiva para as novas gerações de estudantes e jovens
médicos, habituadas a lidar com as modernas tecnologias.

Para colaborar na sua edição, o Prof. João Videira Amaral convidou alguns dos
maiores nomes da Medicina de Portugal, Espanha e Brasil; a maioria dos autores integra
colegas seus colaboradores, dado que, com o decorrer dos anos, o mesmo formou uma
esplêndida equipa.

Este tratado deve ser dedicado, não só aos alunos e aos internos de Pediatria, mas
também aos médicos de Clínica Geral, já que na grande maioria dos centros as crianças
são observadas por Médicos de Família. Também deve ser enviado para os diversos
países de língua portuguesa, especialmente Cabo Verde, Angola, Moçambique e Brasil.

Afirmei anteriormente que coordenar uma obra desta envergadura constitui um tra-
balho hercúleo. Mas, conhecendo as qualidades do Prof. João Videira Amaral, a sua per-
sistência, o seu perfeccionismo, a sua honestidade e o seu saber, acho que foi a pessoa
indicada. Além deste imenso trabalho de coordenação, o mesmo ainda intervém como
autor na publicação de numerosos capítulos do livro.

Como um dos decanos da Pediatria portuguesa, julgo que em seu nome posso
agradecer ao coordenador-editor João Videira Amaral o seu esforço. Mas quem está ver-
dadeiramente de parabéns são as crianças do nosso País. Muito e muito obrigado.

Nuno Cordeiro Ferreira


Apresentação da 2ª edição

“O conhecimento é como uma esfera –


quanto maior, mais contacto com o desconhecido”
Pascal

O presente livro sempre figurou na lista dos meus projectos, essencialmente por duas
ordens de razões: – a necessidade de um livro de texto, manifestada por estudantes meus
alunos e estagiários da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa
/UNL, por internos de Pediatria e de Medicina Geral e Familiar realizando estágios no
Hospital de Dona Estefânia em Lisboa, onde sempre trabalhei, e por colegas; – e o enten-
dimento da missão do professor universitário como agente disponível e facilitador de
informação científica com vista ao ensino – aprendizagem, considerando como valor incal-
culável a experiência vivida de Colaboradores e de Colegas Docentes de diversas institui-
ções com quem mais convive ou a quem esteja mais ligado.

É, pois, de admitir que tal informação (supostamente mais personalizada) podendo


servir de suporte à prática clínica durante os estágios no âmbito da pré- e pós gradua-
ção, e no desempenho profissional, suscite o confronto com outra informação congéne-
re internacional ou nacional, incluindo a veiculada pela net, alargando horizontes.

Da abrangência com que, intencionalmente, este livro foi concebido (agora em segun-
da edição revista, actualizada e ampliada), resultou o título. O mesmo está dividido em
3 Volumes, desdobrados em grandes tópicos ou Partes, integrando na totalidade 376
Capítulos. Manteve-se nesta edição a filosofia de apresentar os tópicos fundamentais da
clínica pediátrica hospitalar e extra-hospitalar, de complexidade e frequência diversos,
de forma simples e de modo prático (clássico), estruturando-os, por razões didácticas,
em alíneas tais como, definições, importância do problema, aspectos epidemiológicos,
etiopatogénese, manifestações clínicas, diagnóstico, tratamento, prevenção e prognósti-
co.

Dado que a Medicina não é considerada uma ciência exacta, a controvérsia subsistirá
nalguns pontos e a dúvida poderá surgir noutros, pois existem variantes quanto a ati-
tudes e procedimentos. Contudo, a bibliografia seleccionada que encerra cada Capítulo
ou Parte do livro contribuirá para que o leitor interessado forme a sua opinião.

A obra é o resultado dum esforço colectivo e dedicado de uma plêiade de Autores


convidados, Colegas e Amigos de reconhecida competência a quem foi distribuída a
grande série de tópicos de acordo com as respectivas áreas de interesse e de experiência.
XXIV TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

De salientar que para tornar o texto mais compreensivo tentando evitar, quer repeti-
ções, quer omissões, o editor, simultaneamente coordenador e autor ou co-autor, esfor-
çou-se por uniformizar o estilo linguístico. Sobre o assunto polémico do Novo Acordo
Ortográfico, na sequência de pareceres de filólogos de renome que consultei, a opção foi
não o adoptar.

Desejo expressar aqui o testemunho do meu enorme reconhecimento a todos os


Colegas e Amigos que aceitaram colaborar com grande empenho, neste projecto. Bem
hajam pelo inestimável e imprescindível contributo. Ao longo do tempo, sacrificando
momentos de lazer e de convívio familiar, saliento o prazer da permuta de ideias com que
muito aprendi em múltiplos encontros, imprescindíveis para a prossecução da tarefa.

Considerando este livro aberto à crítica e à apreciação por parte dos seus leitores,
espero vivamente que o espírito de missão com que todos os Autores o materializaram
contribua para a saúde e bem-estar da criança, adolescente, e da comunidade em geral,
e se traduza em instrumento de utilidade para os principais destinatários: alunos e esta-
giários universitários, internos de Pediatria e de Medicina Geral e Familiar, Pediatras,
Médicos de Família, e Profissionais ligados às Ciências da Saúde.

João Manuel Videira Amaral

DEDICATÓRIA E MEMÓRIA

Dedico este livro a todas as Crianças e Jovens de Portugal que são o nosso futuro.
Considero incluídos os meus onze netos, todos em idade pediátrica: Lourenço, Constança,
Gonçalo, Francisco, Mafalda, Carlota, Sebastião, João Manuel, Madalena, Carolina e Leonor.
E à minha Família, especialmente à minha Mulher, Zana, a quem roubei as horas de conví-
vio devotadas ao livro.
Na minha memória tenho o exemplo do meu Pai (João José de Amaral) que era médico no
Fundão e nos deixou prematuramente; com ele muito aprendi, incutindo-me desde a minha
entrada na Universidade, o gosto pela clínica exercida com rigor e humanismo tendo como base
indispensável o estudo perseverante e a actualização permanente.
Agradecimentos

Ao Professor Doutor Nuno Cordeiro Ferreira, meu Mestre, que me honrou com o
Prefácio desta obra.

Aos Colegas e Amigos (citados por ordem alfabética do primeiro nome) pelo con-
tributo inestimável em ideias, sugestões e críticas desde o início:

Prof. Doutor Álvaro de Aguiar Prof. Dr. José Guimarães


Prof. Doutor António Guerra Dr. José Mesquita
Dr. António Gama Brandão Prof. Dr. José Rosado Pinto
Dr. António Pinto Soares Drª Judite Batista
Dr. António Valido Dr. Julião Magalhães
Dr. Carlos Vasconcelos Profª Doutora Lígia Braga
Prof. Doutor Carlos Ruah Prof. Doutor Luís Nunes
Drª. Deolinda Barata Prof. Doutor MRG Carrapato
Drª. Eulália Calado Drª. Maria dos Anjos Bispo
Drª. Felisberta Barrocas Drª Maria do Carmo Silva Pinto
Dr. Francisco Abecasis Mestre Drª Maria do Carmo Vale
Prof. Dr. Gonçalo Cordeiro Ferreira Profª Doutora Maria do Céu Machado
Drª. Guilhermina Romão Drª Maria de Jesus Feijoó
Drª. Helena Portela Drª Maria de Lurdes Lopes
Prof. Doutor Henrique Carmona da Mota Drª Maria José Gonçalves
Profª Doutora Hercília Guimarães Dr. Mário Chagas
Prof. Doutor Ignacio Villa Elizaga Drª Micaela Serelha
Drª Isabel de Castro Dr. Vital Calado
Prof. Doutor João Gomes-Pedro Drª. Rosa Maria Barros
Prof. Doutor João Goyri O´Neill Drª. Rosário Malheiro
Dr. José António Melo Gomes Prof. Doutor Sashicanta Kaku
Prof. Doutor José de Salis Amaral Drª. Sílvia Sequeira

À memória da Drª Maria de Jesus Feijoó que desde o início aderiu com dedicação
inexcedível a este projecto e nos deixou recentemente. O testemunho de muita mágoa e
de enorme gratidão.

Aos Drs. Lídia Gama e João Falcão Estrada, Amigos e Colegas responsáveis pelo
Núcleo Iconográfico do Hospital de Dona Estefânia, pelo trabalho minucioso e dedica-
do de selecção de imagens solicitadas, e identificadas pela sigla NIHDE. Toda a docu-
mentação fotográfica não identificada como tal é pertença e fruto da experiência de
autores, editor ou colegas devidamente assinalados que gentilmente colaboraram.
Ao Colega e Amigo Dr. Aguinaldo Cabral, pediatra de prestígio e especialista no
campo das doenças metabólicas, o testemunho de enorme reconhecimento pela orien-
tação temática e revisão dos manuscritos que integram a Parte XXXII.

Ao Dr. Francico George, Director Geral da Saúde, e à Nestlé Nutrition, por terem
autorizado a reprodução de tabelas e quadros.

Ao Prof. Doutor Renato Procianoy, meu Amigo e interlocutor junto da Sociedade


Brasileira de Pediatria, pela permissão em reproduzir alguns quadros e figuras.

Ao Dr. Marcos Gil da Veiga, pelo apoio inestimável que me propiciou no âmbito da
revisão das provas tipográficas.

À Drª M. Dulce Barreto, Responsável pela Biblioteca do Hospital de Dona Estefânia


e à sua colaboradora Margarida Vicente, pela eficiência na obtenção de material bibli-
ográfico, fundamental para concretizar a presente versão actualizada.

À Direcção da ABBOTT Laboratórios e ao Sr. Pedro Moreira, pelo apoio em espírito de


grande cordialidade desde a primeira hora. Numa fase ulterior, e relativamente ao patro-
cínio da 2ª edição, o agradecimento é extensivo a D. Alexandra Madeira que passou a cola-
borar também.

À IDG – Imagem Digital Gráfica na pessoa do Sr. Carlos Didelet, seu Director, pelo
eficiente trabalho de tipografia com a colaboração empenhada dos Srs. Bruno Ribeiro e
Pedro Alves.
Glossário Geral

Na eventualidade de o texto, figuras ou quadros consultados conterem expressões e termos não sufi-
cientemente explicitados, é divulgado este glossário para facilitar a compreensõo do leitor. Determinados
capítulos integram igualmente glossários parcelares relacionados com temáticas específicas.

Aborto > Expulsão ou extracção completa (espontânea ou provocada) Alimento > Substância que, introduzida no organismo, contribui para
do corpo da mãe de embrião ou feto (idade gestacional inferior a 20- a nutrição.
22 semanas ou 140-154 dias completos) com ou sem sinais de vida. Anteversão > Considerando o plano frontal anatómico, aumento de an-
Acrocefalia > Palavra derivada do grego significando “cabeça alta”; es- gulação da cabeça e colo femoral relativamente à articulação do joe-
pecificamente trata-se de anomalia congénita craniana resultante de lho.
“fusão” precoce das suturas sagital e coronal e englobando outras Apraxia > Incapacidade de executar movimentos voluntários coorde-
alterações como turricefalia, oxicefalia, entre outras. nados, apesar de se conservarem as funções musculares e sensoriais.
Acufeno > Sensação auditiva que não tem origem em som exterior; sinó- Artrodese > Bloqueio cirúrgico da articulação.
nimo de zumbido. Artrogripose > Termo descritivo, não diagnóstico, que inclui um grupo
Adolescente ou jovem > Pessoa entre 12 e 18 anos. de quadros clínicos específicos, todos eles com contracturas congé-
Afasia > Alteração ou perda da capacidade de falar ou de compreender nitas e fraqueza muscular, e antecedentes de diminuição dos movi-
a linguagem falada ou escrita, o que é explicável por lesão cerebral, mentos fetais. Na maioria dos casos (> 300 factores etiológicos des-
sem alteração dos órgãos de fonação. critos, por ex distrofia miotónica, má-posição intrauterina, etc.) exis-
Afasia visual > O mesmo que alexia. te amioplasia, salientando-se a variabilidade das manifestações clí-
Agentes biológicos > Produtos desenvolvidos por via tecnológica, com nicas. Na forma neuropática existe défice do desenvolvimento das
indicações precisas em doenças mediadas por imunidade. São consi- células do corno anterior medular levando a hipodesenvolvimento
derados 4 tipos: anticitocinas (por ex. infliximab e etanercept); anti- muscular. As articulações das extremidades evidenciam hipomobi-
células B (rituximab, epratuzumab); inibidores da co-estimulação lidade pela fraqueza muscular e fibrose articular. A forma clássica,
(abatacept); e antimoléculas de adesão (natalizumab, efalizumab). típica, não é geneticamente transmitida e a função cognitiva está pre-
Agnosia > Impossibilidade de reconhecer objectos através das suas ca- servada.
racterísticas: forma, cor, peso, temperatura, etc., apesar de as funções Artroplastia > Reconstrução cirúrgica de determinada articulação.
sensoriais elementares (visão, olfacto, gosto, audição, sensibilidade Artrotomia > Incisão cirúrgica para abordagem directa de determina-
superficial ou profunda) estarem intactas. da articulação.
Agrafia > Incapacidade de escrever por afecção dos centros nervosos da Barreira, produtos > Tópicos cutâneos que previnem a penetração
escrita. É uma forma de apraxia. transcutânea e ou absorção de substâncias químicas potencialmen-
Água de limpeza > Produto em geral fabricado com água termal in- te irritantes, sensibilizantes ou tóxicas através da pele.
corporando detergentes, humidificantes e amaciadores, aplicados Bebé ou lactente > Criança até 1 ano de idade.
em algodão para remover loções de limpeza ou zona de fraldas. Bezoar > Termo derivado da língua árabe “bazahr” (significando, se-
Alexia > Defeito de compreensão da escrita devido a lesão cerebral sem gundo a tradição e crenças ancestrais contra – veneno ou antídoto),
qualquer afecção da acuidade visual. no sentido lato significa concreções calculosas ou “massas” de di-
Alfa 1-antitripsina (A1-AT) > É o principal inibidor sérico de enzimas versas substâncias nas vias digestivas de humanos ou certos ani-
proteolíticas tais como a elastase dos neutrófilos. O seu défice consti- mais. Na gíria médica significa diversidade de substâncias ou cor-
tui causa importante de doença hepática na idade pediátrica. Os pos estranhos amalgamados no tubo digestivo susceptíveis de ori-
doentes com deficiência na forma homozigótica (fenótipo ZZ inibi- ginarem obstrução do tubo digestivo (por ex. cabelos ingeridos).
dor, ou PiZZ) têm baixa actividade sérica de A1-AT, ~10-15% dos va- Biofilme > Termo usado em microbiologia para significar agregados de
lores normais. Raramente poderá originar, na sua forma homozigó- diferentes tipos de microrganismos (bactérias, protozoários, fungos,
tica doença pulmonar crónica, com relevância para o enfisema. microalgas, etc.) que se ligam a superfícies sólidas ou uns aos outros,
Alfa-fetoproteína (AFP) ou fetuína > Glicoproteína segregada pelo fí- estabelecendo interacções metabólicas, mantendo-se encerrados nu-
gado do feto e RN, presente também no líquido amniótico e que de- ma matriz polisacarídica e formando emaranhado de fibras ou del-
saparece quase completamente do organismo alguns meses depois gados invólucros. Tal fenómeno, que é descrito no âmbito da etio-
do nascimento. Pode reaparecer em certos casos de cancro e hepa- patogénese das otites médias com derrame, torna os agentes micro-
topatia. bianos mais resistentes aos antimicrobianos.
Alimentação > Acção de introdução de alimento no organismo. BNP > ver Péptidos natriuréticos.
XXVIII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Calcaneus > Posição de dorsiflexão do retro-pé. Disartria > Dificuldade da fala por perturbações motoras dos órgãos da
Camptodactilia > Anomalia que consiste em flexão permanente e irre- fonação: língua, lábios, véu do paladar, etc., associada a afecções bul-
dutível de um ou mais dedos. bares e cerebelosas.
Cavo (ou cavus) > Arcada plantar longitudinal do pé alta (muito afasta- Dislexia > Perturbação da capacidade de leitura que se traduz por er-
da do plano horizontal), geralmente com ante-pé plantar em flexão. ros, omissões, inversão de letras, de sílabas, ou de números, nas
Cegueira verbal > O mesmo que alexia. crianças em idade de aprender a ler, pressupondo ausência doutro
Cintigrafia (ou cintilografia ou gamagrafia) > Procedimento em que tipo de problema susceptível de explicar tal situação (visão, audi-
se injecta por via IV um produto radioactivo com afinidade selecti- ção, capacidades intelectuais normais).
va para determinado órgão o qual passará a emitir radiação gama Dispraxia > Dificuldade em executar movimentos voluntários coorde-
identificada por sistema detector/cintilador. A imagem pontilhada nados (movimentos “desajeitados”), associados a atraso psicoafec-
esquemática do órgão designa-se cintigrama, podendo detectar-se, tivo. Não existe relação com parésia ou ataxia.
por ex. nódulos, zonas necróticas, etc. No caso do rim pode empre- Doença de Kikuchi-Fujimoto > Afecção de causa desconhecida, consi-
gar-se como radionúclido (radiofármaco) o ácido dimercaptosuccí- derada benigna e auto-limitada (evolução entre 1-4 meses) cujas ca-
nico-Tc 99 (DMSA). racterísticas principais incluem febre e linfadenopatia cervical dolo-
Clinodactilia > Deformação em valgo do 5º dedo, por vezes hereditária rosa, salientando-se que a linfadenopatia pode ser generalizada; po-
e bilateral. de haver hepatosplenomegália. Os dados histopatológicos ganglio-
Comedão > Também designado por ponto negro, traduz a obliteração do nares evidenciam aspecto compatível com linfadenite necrotizante:
orifício excretor de um folículo pilossebáceo por uma espécie de rolhão, imunoblastos, monócitos plasmocitóides, pequenos linfócitos cir-
acastanhado a negro, constituído por aglomerado de células córneas e cundando áreas de necrose fibrinóide e ausência de granulócitos; ob-
sebo. A cor escura é devida à melanina presente. Pode ser aberto ou fe- servam-se igualmente filamentos extracelulares relacionados com
chado conforme existe ou não a permeação do canal infundibular. apoptose. O diagnóstico diferencial faz-se com doenças linfoproli-
Comensalismo > Este tipo de simbiose implica uma proximidade espa- ferativas, linfomas Hodgkin e não Hodgkin, doença de Kawasaki,
cial, permitindo que o comensal se alimente de nutrientes ingeridos infecções por vírus, bactérias ou protozoários (por ex. VEB, CMV,
pelo hospedeiro. Os dois intervenientes podem sobreviver inde- HSV, Yersinia, Bartonella, Toxoplasma, etc.) e doenças autoimunes.
pendentemente. Têm sido descritos casos tratados com êxito com hidroxicloroquina
Contractura congénita > Limitação do movimento de determinada área isoladamente, ou com AINE, ou ainda com corticóides.
do corpo por anomalia músculo-esquelética. Podem ser isoladas ou Doença de Lafora > Forma de epilepsia mioclónica progressiva acom-
múltiplas; o pé boto é um exemplo de contractura isolada, uni ou bi- panhada de demência e relacionada com mutações genéticas rela-
lateral. cionadas com laforina (EPM2A) e malina (EPM2B). Pode haver fo-
Creme > Forma de emulsão O/A (ver adiante) mais fluida, menos oleo- to- sensibilidade. Inicia-se na segunda infância ou, mais frequente-
sa e menos oclusiva. mente, na adolescência. Através da biopsia muscular ou da pele po-
Creme gordo > Forma de emulsão A/O mais gordurosa, mais emoliente dem ser identificadas as chamadas inclusões ou corpos de Lafora,
e mais oclusiva. PAS positivas.
Criança > Pessoa entre 0 e 11 anos. Doença de Palizaeus-Merzbacher > Doença recessiva ligada ao X, ca-
Criança andante > Criança com idade entre 1 ano e 3 anos. racterizada essencialmente por nistagmo e anomalias da mielina. É
Criança em idade pré-escolar > Criança com idade entre 4 e 5 anos. causada por mutação no gene da proteína PLP1 no cromossoma
Criança em idade escolar > criança com idade de 6 ou mais anos. Xq22, essencial para a formação da mielina e formação e diferencia-
Deformação de Sprengel > Defeito uni ou bilateral da omoplata por ção dos oligodendrócitos.
défice de abaixamento da mesma em fase precoce da embriogénese, Doença de Unvericht Lundborg > Forma de epilepsia mioclónica pro-
do nível de C4 para o de C7. O mesmo compromete a mobilidade es- gressiva acompanhada de demência e relacionada com mutação e
capulo-torácica. cistatina B. Tipicamente inicia-se na adolescência.
Dengue > A dengue é uma doença infecciosa provocada por arbovírus Doença de von Hippel-Lindau > Afecção que, afectando diversos
da família flavivirus transmitida por vectores (mosquitos, sendo o órgãos (cerebelo, espinhal medula, retina, rins, pâncreas, epidídimo)
principal o A aegypti) vivendo em locais com água estagnada e hi- resulta de mutação dum gene supressor tumoral (VHL). São mani-
giene precária. Pode surgir em epidemias de instalação súbita. As festações características os hemangioblastomas cerebelosos e os an-
manifestaçõs clínicas são essencialmente febre, artralgias, mialgias, giomas retinianos; existem frequentemente associados à doença o
cefaleias, mialgias e fadiga acentuada que se mantém na convales- feocromocitoma e lesões quísticas dos rins, pâncreas, fígado e epidí-
cença. Por vezes há exantema do tipo escarlatiniforme ("febre ver- dimo. O carcinoma renal é a causa de morte mais frequente.
melha"). Podem surgir hemorragias e complicações sistémicas. O Doenças neoplásicas e proliferativas > De acordo com a taxonomia ac-
tratamento é sintomático. tual, incluem: dermatofibroma, mastocitose e histiocitose.
Dentisteria (ou Medicina Dentária ou Odonto-Estomatologia) > Emoliente > Produto que “amolece e amacia”; na sua composição en-
Estudo e prática médico-cirúrgica de tudo o que se refere aos dentes tram lípidos que restauram a elasticidade da pele evitando a perda
e, por extensão, à boca e aos maxilares. transepidérmica de água, atraem a água para a pele, e com acção
Dermatofibroma (ou histiocitoma fibroso) > Designação que corres- oclusiva (impedem que a água se evapore). Diversas substâncias tais
ponde a pequenos nódulos vermelho acastanhados (com mm a 2 cm como emulsões, cremes, leites, pomadas, loções, soluções, sus-
de diâmetro), em geral, benignos, com tendência para se manterem. pensões ou óleos poderão ter tais características.
Diabetes lipoatrófica > Designação para várias formas de lipodistrofia Emulsão > Produto constituído por dois ou mais componentes não
associadas a resistência à insulina e diabetes. miscíveis – um aquoso, e outro oleoso ou gordo – em proporções em
Glossário geral XXIX

que pode predominar um ou outro (óleo em água → O/A; ou água Idade gestacional > Duração da gestação contada a partir do 1º dia do
em óleo → A/O). último período menstrual exprimindo-se em semanas ou dias com-
Entese > Local de inserção tendinosa no osso. pletos (40ª semana corresponde ao período entre o 280º dia e 286º dia).
Epidemiologia > Termo que tem origem no grego: epi (entre), logy (es- Incapacidade (Disability) > Termo genérico utilizado para deficiência,
tudo), demos (pessoas) e significa: no sentido estrito, estudo das limitação da actividade e restrição na participação. Corresponde a
doenças epidémicas (infecciosas); no sentido lato, estudo das doen- aspectos negativos da interacção entre um indivíduo (com determi-
ças e dos diferentes fenómenos biológicos ou sociais do ponto de vis- nada condição de saúde) no contexto de factores ambientais e pes-
ta da sua frequência, da sua distribuição e dos factores susceptíveis soais (ver Funcionalidade).
de os influenciar. Constitui a ciência básica da Saúde Pública, im- Incidência > Número ou percentagem de novos casos numa determi-
plicando multidisciplinaridade e envolvendo métodos próprios nada população e num determinado intervalo de tempo. Avalia o
(medições, comparações, etc.). risco de aparecimento de doença.
Epigenética > Termo que traduz a interface entre a genética e os factores Índice Sintético de Fecundidade (ISF) > Número médio de filhos por
ambientais. Com base em dados experimentais, determinados genes mulher. Em Inglês <> Fertility.
(epialelos) sensíveis a influências ambientais (por ex. dieta), sofrem Infibulação > Forma mais radical de mutilação genital feminina: remo-
alterações moleculares (por ex. metilação do ADN sem alterar a res- ção total ou parcial dos genitais externos seguida de sutura dos pe-
pectiva sequência nucleotídica) mantendo-se estáveis em sucessivas quenos lábios com linha, espinhos ou outros materiais com o objec-
gerações, levando a repercussão funcional daqueles (por ex. afec- tivo de estreitamento da entrada vaginal.
tando a actividade de transcrição). Janeway (lesões de) > Pequenas lesões hemorrágicas ou eritematosas
Equinus > Posição de flexão plantar do ante-pé, retro-pé ou de todo o subungueais, indolores.
pé. Lactante > Mulher (idealmente a mãe) que amamenta.
Expectativa de vida ao nascer > Número de anos que um recém-nas- Lactente > Sinónimo de bebé.
cido viveria estando sujeito aos riscos de morte prevalentes para a Leprechaunismo > Situação clínica integrando: RCIU, hipoglicemia em
amostra de população no momento do seu nascimento. jejum, hiperglicemia pós-prandial e resistência à insulina; a concen-
Flora > Ver adiante «Microbiota». Este termo deveria ser abandonado tração sérica desta última pode atingir valores 100 vezes superiores
uma vez que se refere às plantas. Esta taxonomia deriva de Lineu. aos normais.
Fómite > Objecto inanimado ou substância capaz de absorver, reter e Lesões de Janeway > ver Janeway.
transportar microrganismos e parasitas. Letalidade > Risco que uma doença apresenta de ser mortal.
Forese > Significa transporte. Em geral, trata-se dum organismo pe- Loção > Forma de emulsão O/A mais fluida e menos oleosa.
queno transportado mecanicamente por um hospedeiro, em geral de Loção de limpeza > Forma de emulsão O/A com baixa viscosidade, mas
maiores dimensões (ex. fixação de protozoários sedentários ao cor- boa capacidade emulsionante, por conter agentes tensioactivos.
po de animais aquáticos). Luxação > Perda completa (subluxação se incompleta) do contacto entre
Funcionalidade > Termo genérico utilizado para as funções e estrutu- duas superfícies articulares.
ras do corpo, actividades e participação. Corresponde aos aspectos Manchas de Roth > ver Roth.
positivos da interacção entre um indivíduo (com uma condição de Mastocitose > Grupo de doenças em que se verifica infiltração dos te-
saúde) no contexto de factores ambientais e pessoais (ver Incapa- cidos e órgãos, especialmente a pele (nódulos, placas e pápulas), por
cidade). mastócitos. A urticária pigmentosa é a forma mais comum.
Gasping > Termo da língua inglesa empregue frequentemente na gíria Melatonina > Hormona segregada pela glândula pineal ou epífise (lo-
médica, significando “movimentos respiratórios de amplitude e rit- calizada no centro do encéfalo), com regularidade e em ritmo circa-
mo irregulares, e ineficazes”. diano a partir dos 3 meses de idade. Salienta-se o papel da "escu-
Hipofosfatasia > Defeito AR salientando-se membros inferiores ar- ridão da noite ou ausência de luminosidade " como estímulo natu-
queados com rarefação metafisária/mineralização irregular, denti- ral desencadeante da secreção a partir do núcleo supra-quiasmáti-
na e cimento dos dentes deficiente com tendência para queda pre- co; assim, os níveis mais elevados atingem-se entre as zero e as oito
coce dos caducos, encerramento tardio das fontanelas com ou sem horas (horário do sono). A luz (sobretudo entre 460 e 480 nm) inibe
craniossinostose, deficiência de fosfatase alcalina (sérica e tecidual); este mecanismo. Como principais acções citam-se o relaxamento da
as formas homozigóticas têm manifestações mais acentuadas. musculatura lisa gastrintestinal e a indução do sono, comprovando-
Histiocitoses > Conjunto de afecções de etiopatogénese desconhecida se que o leite materno contém níveis substanciais da referida hor-
cuja característica comum é a proliferação e infiltração dos tecidos mona, com implicações práticas na redução das cólicas infantis.
por histiócitos (um dos tipos de células diferenciadas a partir da me- Actualmente têm sido estudados os efeitos da melatonina noutras
dula óssea, recebendo, tal como outras, designações diversas confor- situações, como perturbações do sono, PHDA, mucopolissacari-
me a morfologia e função – monócitos, células dendríticas, macró- doses tipo III, autismo, RGE, cólicas infantis, etc..
fagos, etc.) fazendo parte do sistema histiocitário – macrofágico. Microbiota ou Microbioma > Conjunto de microrganismos que se en-
Existem dois grupos de histiocitoses: de células de Langerhans e não contram geralmente associados a tecidos (pele, mucosas/boca,sis-
Langerhans. Estas últimas células, que se localizam entre as células tema digestivo, conjuntivas, vagina, etc.). Os microrganismos (>
do estrato espinhoso de Malpighi, têm papel importante como apre- 10.000 espécies incluindo triliões de bactérias e fungos, por sua vez
sentadoras de antigénios. A histiocitose de células de Langerhans transportando vírus) constituídos em colónias à superfície ou no in-
(anteriormente chamada histiocitose X) considerava três entidades terior do organismo sem produzir doença compõem a microbiota
a que correspondem termos hoje obsoletos: doença de Letterer-Siwe, normal; a microbiota transitória é composta por agentes infecciosos
doença de Hand –Schuller-Christian e granuloma eosinófilo. presentes por períodos variáveis.
XXX TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Miotonia > Contracção muscular lenta, seguida de relaxamento lento, Pasta protectora > Pasta mais gorda e oclusiva, e mais difícil de apli-
que se produz durante movimentos musculares voluntários por ex- car e retirar; por exemplo, pasta de Lassar ou mistura em partes
citabilidade e contractilidade musculares anómalas. iguais de talco de Veneza, amido, lanolina e vaselina.
Mortalidade materna > Morte de mulheres durante a gravidez ou den- Pediatria > Medicina integral de um grupo etário desde a concepção ao
tro de 42 dias completos após término da gravidez devido a causa fim da adolescência.
relacionada com a gravidez ou agravada pela mesma; excluem-se as Pediatria Social > Ramo da Medicina que diz respeito à criança saudá-
causas acidentais ou incidentais. vel e doente em função do grupo humano de que faz parte e do meio
Morte fetal > É o óbito de um produto de concepção (feto-morto) antes no qual se desenvolve. Desde que se exerça uma acção colectiva, na-
da expulsão ou extracção completa do corpo da mãe, independen- cional ou internacional, a Pediatria torna-se social.
temente da duração da gravidez. Um vez separado do corpo da mãe, Período neonatal > Período que se inicia na data de nascimento e termi-
o produto de concepção não evidencia movimentos respiratórios na após 28 dias completos de idade pós-natal. É subdividido em: pre-
nem outros sinais de vida como batimentos cardíacos, pulsação do coce (primeiros sete dias completos ou 168 horas completas) e tardio
cordão umbilical ou movimentos efectivos dos músculos de contrac- (após sétimo dia ou 168 horas completas, até 28 dias completos ou 672
ção voluntária (nado-morto). horas completas). A criança neste período é designada recém-nascido.
Morte neonatal > É o óbito ocorrido no período neonatal; considerando as Péptidos natriuréticos > Grupo de péptidos segregados pelos mióci-
subdivisões do período neonatal (precoce e tardio), as mortes neonatais tos do miocárdio, principalmente nos ventrículos, em resposta a so-
podem ser subdivididas, respectivamente, em precoces e tardias. brecarga de pressão ou volume nas cavidades cardíacas, regulando
(Nota: A data de morte ocorrida durante o primeiro dia de vida (dia ze- o volume extracelular e a pressão arterial. Salientam-se: o BNP
ro) deve ser registada em minutos completos ou horas completas de vi- (Brain-type natriuretic peptide) ou chamado péptido natriurético
da. A partir do segundo dia de vida (dia 1) e até menos de 28 dias com- B/activo; e o N-terminal-pro-BNP ou NT-proBNP/inactivo, com
pletos de vida (672 horas), a idade de morte deve ser registada em dias. maior estabilidade in vitro e com vida média mais longa. Derivam,
Mutualismo > Associação entre dois indivíduos em que cada um deles por clivagem, do Pro-BNP. Antagonistas do sistema renina-angio-
depende fisiologicamente do outro. tensina-aldosterona, provocam aumento da diurese, natriurese e va-
Mutilação genital feminina > a) Percentagem de mulheres entre 15 e sodilatação. Trata-se de marcadores biológicos com interesse na
49 anos de idade que foram submetidas a manobras cruentas de res- avaliação de diversas formas de disfunção cárdio-respiratória (por
secção de órgãos genitais externos por razões sociais; b) Percentagem ex. PDA, taquipneia transitória, hipertrofia ventricular, HDC, HPP
de mulheres com, pelo menos, uma filha genitalmente mutilada (cli- no RN, doença de Kawasaki, etc.).
toridectomia, extirpação total ou parcial do clítoris e pequenos lá- Percentagem > Proporção apresentada como parte de um todo (100%).
bios, e infibulação). No texto devem ser sempre apresentados o numerador e o deno-
Nascimento vivo (nado vivo) > Expulsão ou extracção completa do cor- minador para qualquer percentagem.
po da mãe, independentemente da duração da gravidez, de um pro- PIB per capita > Produto Interno Bruto por cabeça correspondendo à
duto de concepção que, depois da separação, respire ou apresente quantidade de bens e serviços produzidos dentro das fronteiras dum
sinais de vida tais como batimentos cardíacos, pulsação do cordão país (por nacionais e estrangeiros) dividida pela sua população.
umbilical, ou movimentos efectivos dos músculos de contracção vo- Tipifica a riqueza média dum país e os níveis relativos de desenvol-
luntária, quer o cordão umbilical tenha sido ou não cortado, quer a vimento económico. NB- Não inclui rendimentos provenientes do
placenta tenha sido ou não retirada. O produto de um nascimento exterior (por ex. remessas de emigrantes).
ocorrido nestas circunstâncias é denominado nado-vivo. PNB > Produto Nacional Bruto correspondendo à produção de bens e
Natalidade > Número de nascimentos vivos por 1.000 habitantes. serviços pelos agentes económicos nacionais. NB- Inclui remessas de
Nódulos de Osler > ver Osler. emigrantes.
Nutrição > Conjunto de processos de assimilação e desassimilação dos ali- Polidactilia > Anomalia congénita caracterizada pela presença de dedos
mentos no organismo implicando trocas entre o organismo vivo e o supranumerários nas mãos ou nos pés.
meio ambiente. Ciência que trata da alimentação e dos alimentos sob Pomada ou unguento > Forma de emulsão A/O mais gordurosa,mais
todos os seus aspectos: utilização e transformação dos alimentos no or- emoliente e mais oclusiva.
ganismo, má-nutrição, problemas de comportamento relacionados com Pós > Agentes secos, micronizados em partículas finas, com proprie-
a alimentação, produção e distribuição dos géneros alimentares, etc.. dades higroscópicas (atraindo água); por ex. talco (salicilato de ma-
Nutriente > Substância alimentar que pode ser assimilada sem sofrer gnésio), argila, amido, caolino, óxido de zinco.
transformação digestiva. Prevalência > Número ou percentagem de casos existentes numa de-
Ortótese > Aparelho ou dispositivo destinado a suplementar ou corri- terminada população e num determinado momento temporal.
gir a alteração morfológica de um órgão, de um membro ou seg- Avalia a carga que a doença representa na referida população.
mento de membro, ou a deficiência de uma função. Prevenção > Conjunto de meios médicos, médico-sociais e ambientais
Osler (nódulos de) > Nódulos intradérmicos moles nas polpas dos de- para salvaguardar a saúde dos indivíduos sãos, evitando doença
dos das mãos e pés. (prevenção 1ª), impedindo um agravamento (prevenção 2ª), ou evi-
Osteotomia > Secção cirúrgica do osso. tando sequelas tardias (prevenção 3ª) de modo a propiciar, tanto
Parasitismo > Relacionamento simbiótico entre dois organismos: o pa- quanto possível, vida próxima do normal. Trata-se dum conceito
rasita, em geral de menores dimensões (ex. verme intestinal), e o hos- mais lato que o de profilaxia.
pedeiro, do qual depende o primeiro. Produtos-barreira > Tópicos cutâneos que previnem a penetração e ou
Pasta > Forma de emulsão (pomada) onde se suspendeu pó para ab- absorção de substâncias químicas potencialmente irritantes, sensi-
sorver exsudado. bilizantes ou tóxicas através da pele.
Glossário geral XXXI

Profilaxia > Método de prevenção ou protecção dirigido contra uma tremo baixo peso) > Criança nascida com peso inferior a 1000 gra-
doença através do emprego de substância (por ex. fármacos, vaci- mas (999 ou menos) independentemente da idade gestacional.
nas, imunoglobulinas, etc.). Trata-se dum conceito mais restrito que Rendimento per capita > Soma do valor da contribuição de todos os
o de prevenção. produtores nacionais acrescido de todos os impostos(menos subsí-
Progéria > Alopécia, atrofia da gordura subcutânea, hipoplasia e dis- dios) que não são incluídos na avaliação da produção, a que são
plasia do esqueleto, atraso da dentição caduca, aterosclerose pre- acrescentadas as receitas líquidas (pagamento de assalariados e ren-
matura. das de propriedades) provenientes de fontes externas.
Proporção > Tipo específico de razão em que o numerador é parte do Renograma isotópico > Curva traduzindo, em função do tempo, a eli-
denominador, sendo que o tempo não constitui factor. Vai de 0 a 1.No minação renal dum produto com radionúclidos, injectado por via IV,
texto deve ser sempre apresentado o numerador e o denominador que emite radiação gama. Esta eliminação provoca radioactividade
de qualquer proporção. transitória dos dois rins a qual pode ser detectada por sonda de cin-
Prótese > Aparelho ou dispositivo destinado a substituir um órgão, um tilação/cintilador ao nível de cada região lombar. O gráfico tradu-
membro ou parte de um membro destruída ou gravemente afecta- zindo a eliminação permite avaliar a função de cada rim. Os ra-
da. diofármacos habitualmente utilizados são: mercaptoacetilglicina-
Rabdomiólise > Ruptura e/ou necrose das células musculares estriadas Tc99 (MAG3) depurada por secreção tubular, e o ácido dietileno tria-
por factores mecânicos ou miopatias primárias com consequente li- mino pentacético (DTPA-Tc99), filtrado pelo glomérulo.
bertação para o sangue de enzimas, electrólitos e mioglobina. O do- Resistência à insulina tipo A > Situação clínica associada a mutações
seamento da enzima cretinaquinase (CK ou CPK)permite avaliar o no gene do receptor da insulina, verificando-se concomitantemente
grau de lesão celular/necrose. hirsutismo, masculinização, ovários quísticos no sexo feminino e,
Razão (fracção) > Numerador e denominador não têm relação especí- por vezes, acanthosis nigricans não acompanhada de obesidade. Duas
fica (ex: rapazes/raparigas 1/4; risco de 1/1.000, etc.). (ver mutações específicas no gene referido originam formas graves inte-
Proporção) grando os quadros designados por leprechaunismo (ver atrás) e sín-
Recém-nascido pré-termo > Criança nascida com menos de 37 sema- droma de Rabson – Mendenhall (ver adiante).
nas completas (menos de 259 dias) de idade gestacional. Roth (manchas de) > Lesões hemorrágicas lineares subungueais.
Recém-nascido de termo > Criança nascida com idade gestacional com- Saúde > Estado de bem estar físico, mental e social ,e não apenas au-
preendida entre 37 semanas completas e 41 semanas e 6 dias (259 a sência de doença.
293 dias). Selagem > Em Dentisteria e em Ortopedia, processo de fixação dum ma-
Recém-nascido pós-termo > Criança nascida com idade gestacional terial protector do dente (Selante), ou de material de prótese ou de
igual ou superior a 42 semanas completas (294 dias ou mais). osteossíntese.
Recém-nascido leve ou pequeno para a idade gestacional (LIG) > (na Simbionte > Organismo que vive algum tempo ou toda a sua vida inti-
prática, quase sempre sinónimo de RN com restrição de crescimen- mamente ligado a outro de espécie diferente; tal relacionamento de-
to intra-uterino) – Recém-nascido (RN) com peso inferior ao que cor- signa-se por simbiose.
responde ao percentil 3 ou a dois desvios padrão abaixo da média Simbiose > Ver atrás- Simbionte. Consideram-se quatro categorias de
para a respectiva idade de gestação e género, isto é, leve para a ida- simbiose: comensalismo, forese, parasitismo e mutualismo.
de de gestação (LIG) numa curva representativa da população. Sincinésia > Tendência para executar involuntária e simultaneamente
Outros autores preferem utilizar o termo pequeno para a idade ges- um movimento similar e simétrico, numa tentativa para executar um
tacional (PIG). movimento voluntário do lado oposto, observada em certas parali-
Recém-nascido com peso adequado para a idade gestacional para a sias unilaterais.
idade gestacional (AIG) > Recém-nascido (RN) com peso entre o Sindactilia > Anomalia congénita caracterizada pela junção de dois ou
percentil 3 ou dois desvios padrão abaixo da média para a respecti- mais dedos das mãos ou dos pés; tal junção pode ser superficial
va idade de gestação e género, e o percentil 97 ou dois desvios-pa- (membranosa), muscular ou óssea.
drão acima da média para a respectiva idade de gestação e género Síndroma de Apert > Craniossinostose (coronal>lambdóide>sagital),
numa curva representativa da população. braquicefalia, acrocefalia, hipertelorismo, proptose, estrabismo, hi-
Recém-nascido grande ou pesado para a idade gestacional (GIG) > poplasia maxilar, palato estreito/ogival, sindactilia invariável(cutâ-
Considera-se que um RN teve um crescimento intrauterino excessi- nea e óssea).
vo (ou hipercrescimento) quando o peso de nascimento é superior Síndroma de Angelman > Entidade clínica explicada por deleção no
ao percentil 97 ou dois desvios padrão acima da média para a idade cromossoma 15 de origem materna estando implicado o gene activo
de gestação e género numa curva representativa da população; tal E3A (UBE3A), envolvido na degradação de proteínas cerebrais.
RN é designado grande (G) ou pesado (P) para a idade de gestação: Traduz-se essencialmente por convulsões, atraso do desenvolvi-
(GIG) ou (PIG). mento e marcha atáxica. (ver Síndroma de Prader Willi).
Recém-nascido de baixo peso de nascimento(RNBP) > Criança nasci- Síndroma de Carpenter > Acrocefalia, polidactilia e sindactilia dos pés,
da com peso inferior a 2500 gramas (2499 ou menos) independente- atraso mental, braquissindactilia das mãos com clinodactilia, obesi-
mente da idade gestacional. dade, cardiopatia congénita, hipogenitalismo, etc..
Recém-nascido de muito baixo peso de nascimento (RNMBP) > Síndroma de Cockayne > Quadro clínico de transmissão AR, descre-
Criança nascida com peso inferior a 1500 gramas (1499 ou menos) vendo-se 3 tipos: I (em relação com gene CSA), II (em relação com ge-
independentemente da idade gestacional. ne CSB); e III (em relação com gene XP-CS). Caracteriza-se por alte-
Recém-nascido de muito muito baixo peso de nascimento ou com rações do tipo senil iniciando-se pelo 1º ano de vida, degenerescên-
imaturidade extrema (RNMMBP), sinónimo de RN de EBP (ex- cia retiniana, défice auditivo, hipocrescimento e hipogonadismo com
XXXII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

criptorquidia, fotossensibilidade (aparecimento de eritema facial em cida, actualmente o diagnóstico é clínico e baseado nas principais ca-
“asa de borboleta” por acção de raios ultra-violeta). Distingue-se da racterísticas: défice cognitivo grave, epilepsia por vezes refractária,
progéria pelas anomalias oculares e pela fotossensibilidade. baixa estatura, microcefalia, dismorfia facial peculiar, deformidades
Síndroma de Cornelia de Lange > Quadro esporádico ou AD, caracte- ósseas mais notórias nas mãos e pés, e cabelo escasso.
riza-se essencialmente por restrição do crescimento fetal e pós-na- Síndroma de Noonan > Simile síndroma de Turner sem cromossomo-
tal, sinofris, lábios delgados com uma pequena “saliência” na linha patia sendo que em ~ 60% dos casos resulta de mutação em
média do lábio superior e correspondente “chanfradura”no lábio in- PTPN1/cromossoma 12q24.1. Principais características: baixa esta-
ferior, comissura bucal dirigida para baixo, micromélia, insuficiên- tura, inserção baixa posterior do cabelo, pescoço curto e ou pteri-
cia cognitiva, etc.. gium colli, hipogonadismo, criptorquidia. Afecta ambos os sexos, ao
Síndroma de Cowden > É considerado o protótipo das síndromas tu- contrário da síndroma de Turner, com padrão diverso de cardiopa-
morais PTEN (ver adiante) em que se verifica elevada susceptibili- tia congénita (estenose pulmonar, defeitos septais).
dade para cancro do endométrio, mama, e tiróide. Síndroma de Pfeiffer > De hereditariedade AD por mutação genética
Síndroma de Crouzon > De transmissão AD, integra como característi- (FGFR1 ou FGFR2), integra craniossinostose (coronal> sagital>
cas mais frequentes: craniossinostose (coronal > lambdóide > sagi- lambdóide) associada a outros defeitos como acrocefalia, hipertelo-
tal), hipertelorismo, proptose, estrabismo e hipoplasia maxilar. rismo, proptose, hipoplasia maxilar, 1ºs dedos alargados com des-
Síndroma de Hallermann-Streiff > De hereditariedade esporádica, in- vio radial. São descritos os tipos I, II e III.
tegra como mais relevantes as seguintes anomalias: dentes neona- Síndroma de Poland > Situação clínica integrando deformidades (unila-
tais, baixa estatura, cabelo escasso, cataratas, microftalmia e extre- terais) da parede torácica tais como pectus excavatum e ausência da glân-
midade nasal estreita. dula mamária, hipoplasia dos músculos grande e pequeno peitoral,
Síndroma de Holt – Oram > De transmissão AD em relação com muta- anomalias dos dedos da mão do mesmo lado (por ex. sindactilia).
ção no gene TBX5, integra anomalias do membro superior e ao ní- Síndroma de Prader-Willi > Entidade clínica explicada por deleção no
vel da cintura escapular, associadas a defeitos cardíacos tais como cromossoma 15 de origem paterna estando implicado o gene activo
dos septos ventricular e auricular, e alterações na condução auricu- E3A(UBE3A), envolvido na degradação de proteínas cerebrais.
loventricular. Traduz-se essencialmente por hipotonia neonatal acentuada, obesi-
Síndroma de Kabuki > Anomalias congénitas múltiplas com identifi- dade, mãos e pés pequenos e alteração do comportamento com atra-
cação de base molecular, salientando-se: características faciais típi- so mental. (ver Síndroma de Angelman).
cas (fendas palpebrais alongadas com eversão do terço externo da Síndroma de Rabson-Mendenhall > Entidade clínica com manifesta-
pálpebra inferior, sobrancelhas arqueadas,etc.), pavilhões auricu- ções aparentadas com leprechaunismo: resistência à insulina, ano-
lares grandes e proeminentes, défice cognitivo, hipocrescimento, malias dos dentes e unhas, e hiperplasia pineal.
susceptibilidade para doenças autoimunes, entre outros defeitos. Síndroma de Rapunzel > Situação clínica em que os cabelos deglutidos
Síndroma de Kearns – Sayre > Oftalmoplegia, retinopatia pigmentar, formam um chamado tricobezoar (ver atrás “bezoar”) de compri-
cardiomiopatia. mento considerável, desde o estômago ao intestino delgado, como
Síndroma de Landau-Kleffner > Forma grave de epilepsia associada a que uma “cauda de animal”, originando síndroma oclusiva intesti-
agnosia auditiva, disartria e afasia. nal de grau variável.
Síndroma de Larsen > Luxação articular múltipla, fácies plana, unhas Síndroma de Rett > Entidade clínica resultante de mutações no gene
dos dedos das mãos curtas, polegares em espátula, etc.. MECP2 localizado em Xq28: alterações do neurodesenvolvimento,
Síndroma de Laurence – Moon – Biedl > Como principais característi- com défice cognitivo grave, predominantemente no sexo feminino
cas há a registar: obesidade, polidactilia, retinite pigmentar, defi- (prevalência ~1/10.000 raparigas aos 12 anos).
ciência mental, diabetes insípida e baixa estatura. Admite-se here- Síndroma de Reye > Situação hoje rara, é caracterizada por encefalo-
ditariedade AR. patia aguda e disfunção hepática comportando elevada mortalida-
Síndroma de Loeffler > Condensação pulmonar fugaz detectada por de (30-40%) por edema cerebral. Em geral precedida por infecção ví-
radiografia, associada a eosinofilia, e de etiologia diversa; mais fre- rica (sobretudo varicela e influenza) 3-5 dias antes, verifica-se forte
quentemente relacionada com parasitoses, sobretudo Ascaris lum- associação com o uso de ácido acetilsalicílico.
bricoides. O substrato anatomopatológico pulmonar inclui infiltra- Síndroma de Robinow > Inclui, entre outros defeitos: hipogonadismo,
dos de eosinófilos e plasmócitos. antebraços curtos, braquidactilia, bossas frontais, hipertelorismo,
Síndroma de Mallory – Weiss > Situação clínica traduzida por hemor- longo philtrum, mento pequeno, cariótipo normal.
ragia digestiva alta resultante de vómito com esforço levando a Síndroma de Rothmund-Thomson (ou poiquilodermia congénita) >
lesão/solução de continuidade por efeito de estiramento ao nível da Quadro clínico de transmissão AR relacionado com mutações no ge-
junção gastresofágica. ne RECQL4 na maioria dos casos. Surgindo as manifestações pelos
Síndroma de McCune Albright > Hereditariamente esporádica, inclui 3 anos de idade, há a destacar: placas de eritema com ulterior hi-
determinados sintomas e sinais com frequência variável: manchas perpigmentação, atrofia, telangiectasias e alopécia. Hipogonadismo
cor de “café com leite”, hiperfunção de vários órgãos endócrinos,, e risco de cancro.
bócio multinodular, hipertiroidismo, displasia óssea poliostótica e Síndroma de Rubinstein-Taybi > Baixa estatura, polegares e dedos dos
puberdade precoce (independente de GnRH). A gonarca precoce re- pés largos, fendas palpebrais antimongolóides , hipoplasia do maxi-
sulta de hiperfunção ovárica e, por vezes, da formação de quistos le- lar com palato estreito, etc..
vando à secreção de estrogénios. Resulta de mutações da subunida- Síndroma de Seckel > De hereditariedade AR, com restrição do cresci-
de da proteína G. mento pré e pós-natal, microcefalia com sinostose prematura, insu-
Síndroma de Nicolaides-Baraitser > de base genética ainda não conhe- ficiência cognitiva, nariz proeminente, etc..
Glossário geral XXXIII

Síndroma de Smith-Lemli-Opitz > Escafocefalia, narinas em ante- Taxa de mortalidade de menores de 5 anos (TMM5) > Número de óbi-
versão, e ou ptose palpebral, sindactilia do 2º e 3º dedos do pé, hi- tos entre o nascimento e a data em que são completados os 5 anos
pospadia, criptorquidia no sexo masculino, etc.. de idade por mil (1.000) nado-vivos.
Síndroma de Sotos (Gigantismo cerebral) > Macrossomia evidente ao Taxa de mortalidade materna > Número anual de mortes de mulheres
nascer, mãos e pés grandes, maturação óssea avançada, etc.. devidas a complicações decorrentes da gravidez por 100.000 partos
Síndroma de Werner > Envelhecimento precoce símile progéria, (ma- de crianças nascidas vivas.
nifestando-se mais tarde do que esta), salientando-se esclerose vas- Taxa de mortalidade fetal tardia > Esta taxa é calculada segundo a fór-
cular e cardiomiopatia. Hereditariedade autossómica recessiva em mula:
relação com os genes WRN e LMNA. Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas
Síndroma de Wolff-Parkinson – White > Situação também designada ———————————————————— x 1000
por pré-excitação ou ante-sistolia, em que o ECG evidencia alarga- Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas + Nº de nado-vivos com >= 1.000 gramas
mento do complexo QRS e encurtamento P-R; habitualmente acom- Taxa de mortalidade neonatal (bruta) > Esta taxa é definida pela re-
panhada por crises de taquicardia paroxística, o seu prognóstico de- lação:
pende da eventualidade de cardiopatia associada. Número total de óbitos de RN ocorrendo até 28 dias completos (672 ho-
Síndroma de Wolfram > Inclui diabetes mellitus não autoimune, atrofia óp- ras) / 1.000 nado vivos (qualquer que seja o peso).
tica, diabetes insípida, surdez neurossensorial e anomalias do aparelho Esta taxa é subdividida em:
urinário e neurológicas, com prognóstico muito reservado e baixa espe- a) precoce: nº de óbitos até aos primeiros sete dias completos (ou 168 ho-
rança de vida. Mutações em dois genes relacionados com proteínas do ras completas) /1.000 nado-vivos;
retículo endoplásmico, neurónios e vasopressina, a qual é deficiente. b) tardia: nº de óbitos após sete dias completos (168 horas) e até 28 dias
Síndroma de Zollinger-Ellison > Situação rara caracterizada por doen- completos (672 horas) /1.000 nado-vivos;
ça péptica ulcerada grave e refractária ao tratamento causada por hi- Notas: a) As taxas de mortalidade total, precoce e tardia (não bruta)
persecreção de gastrina relacionada com gastrinoma (tumor neu- consideram apenas RNs com peso de nascimento igual ou superior
roendócrino). Em > 90% dos doentes são verificados níveis elevados a 1.000 gramas, quer no numerador, quer no denominador;
de gastrina em jejum. O tratamento de eleição inclui inibidores da b) Não sendo conhecido o peso, considera-se habitualmente que idade
bomba de protões e antagonistas dos receptores H2. gestacional de 28 semanas e /ou comprimento de 35 cm correspon-
Síndroma stiff-man ou do “homem rígido” > Situação clínica do SNC, dem a 1.000 gramas;
rara e autoimune, caracterizada por rigidez progressiva e espasmos
axiais e acompanhada de títulos muito elevados de anticorpos GAD- Taxa de mortalidade perinatal por 1.000 (fetos mortos+nado-vivos)
65. Em cerca de 30% dos doentes surge DM1. > Esta taxa é calculada segundo a fórmula:
Síndromas tumorais PTEN > conjunto de situações com elevada varia- Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas
bilidade na expressão clínica - incluindo diversas patologias genéti- + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 1.000 gramas)
cas - e pleiotropismo, relacionadas com disfunção do gene supres- ————————————————————————— x 1000
sor tumoral PTEN. (ver síndroma de Cowden) Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas + total de nado-vivos com >= 1.000 gramas
Sinofris > Convergência/junção das sobrancelhas na linha média ao ní-
vel da raiz nasal. Taxa de mortalidade perinatal por 1.000 (nado-vivos) > Esta taxa é
Solução > Mistura líquida homogénea duma substância sólida, líquida calculada segundo a fórmula:
ou gasosa, considerando-se, no sentido correcto do termo, soluto a Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas
substância dissolvida, e solvente o líquido (geralmente em quanti- + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 1.000 gramas)
dade elevada). ————————————————————————— x 1000
Suspensão > Preparado farmacêutico constituído pela dispersão duma Nº de nado-vivos com >= 1.000 gramas
fase sólida insolúvel numa fase líquida (ou seja, líquido no qual se
encontram partículas insolúveis finamente dispersas). Taxa de mortalidade perinatal total por 1.000 (fetos mortos+nado-
Syndet > Detergente sintético (sabão “sem sabão”) com pH neutro, fa- vivos) > Esta taxa é calculada segundo a fórmula:
zendo espuma escassa; a forma sólida designa-se por “pain”. Nº de nado-mortos com >= 500 gramas
Taxa > Tipo específico de razão em que o numerador e o denominador + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 500 gramas)
estão relacionados, constituindo o tempo uma parte intrínseca do ———————————————————————— x 1000
denominador. Nota: Segundo os epidemiologistas a designação, por Nº de nado-mortos com >= 500 gramas + Nº de nado-vivos com >= 500 gramas
ex. de taxa de mortalidade, não é correcta.
Taxa de alfabetização de adultos > Percentagem de pessoas com 15 Taxa de mortalidade perinatal total por 1.000 (nado-vivos) > Esta
anos ou mais que sabem ler e escrever. taxa é calculada segundo a fórmula:
Taxa bruta de mortalidade > Número de óbitos anuais por 1.000 pes- Nº de nado-mortos com >= 500 gramas
soas. + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 500 gramas)
Taxa bruta de natalidade > Número anual de nascimentos por 1.000 ———————————————————————— x 1000
pessoas. Nº de nado-vivos com >= 500 gramas
Taxa de letalidade > Relação entre o número de mortes por determi-
nada doença e o número total dos seus casos numa dada população. Taxa de nado-mortalidade > Número de nado-mortos com peso de nas-
Taxa de mortalidade infantil (TMI) > Número de óbitos no primeiro cimento >1000 gramas /1.000 nascimentos totais (nado-mortos + na-
ano de vida por cada 1.000 nado vivos. do-vivos pesando > 1.000 gramas) durante determinado período.
XXXIV TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Taxa total de fertilidade > Número de crianças que nasceriam por mulher,
se esta vivesse até ao fim dos seus anos férteis e tivesse filhos em cada
etapa, de acordo com as taxas prevalentes para cada grupo etário.
Trabalho infantil > Percentagem de crianças entre 5 e 14 anos de idade
recrutadas para tarefas próprias para adultos.
Valgo (ou valgus) > membro ou segmento desviado para fora.
Valores de referência em antropometria > Valores que descrevem co-
mo as crianças efectivamente crescem na realidade.
Valores – padrão em antropometria > Valores que pretendem repre-
sentar o crescimento ideal.
Varo (ou varus) > membro ou segmento desviado para dentro.
Vigilância pré-natal > Percentagem de mulheres entre 15 e 49 anos as-
sistidas pelo menos uma vez durante a gestação por profissional de
saúde treinado (médicos, enfermeiros ou parteiros); em Portugal
considera-se, pelo menos,a ocorrência de 3 consultas médicas.
Xenobióticos > São compostos estranhos ao organismo que poderão es-
tar presentes na alimentação, incluindo leite materno. Distinguem-
se 3 grandes grupos: 1] contaminantes naturais (por ex. glicoal-
calóides presentes em batatas e tomates,etc.); 2] contaminantes do
meio ambiente pela actividade humana/antropogénicos (por ex. ni-
tritos, pesticidas, metais pesados, etc.); 3] tóxicos formados durante
o processamento culinário (por ex. hidrocarbonetos policíclicos
aromáticos).
Xeroftalmia > Secura e retracção das conjuntivas bulbar e palpebral, que
se tornam esbranquiçadas e perdem o brilho. Esta situação pode ser
secundária a défice de vitamina A ou a tracoma.
Xerose > Secura da conjuntiva, muitas vezes a primeira fase da xerof-
talmia.

BIBLIOGRAFIA
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Clássica Editora, 1995
Uvarov EB, Chapman DR, Isaacs A. Dicionário de Ciência (tradução por-
tuguesa). Lisboa: Europa América Editora, 1964
Abreviaturas

A ALTE – apparent life threatening event (episódio associado a risco de


AA – aminoácidos vida)
AAG – anticorpos antigliadina AME – atrofia muscular espinhal
AAP – American Academy of Pediatrics (Academia Americana de Pediatria) AMP – adenosina-5-monofosfato (monophosphate)
AAS – ácido acetil-salicílico (Aspirina®) AMPc – AMP cíclico
A1-AT – alfa 1-antitripsina AN – anorexia nervosa
ABO – grupos sanguíneos ABO (AB zero) ANA – anticorpos antinucleares (anti nuclear antibodies)
Ac ou AC – anticorpo, anticorpos ANCA – anticorpos anticitoplasma do neutrófilo
Ác – ácido ou ácidos ANDAI – Associação Nacional de Doentes com Artrite Infantil e Juvenil
ACE – angiotensin converting enzyme ou enzima de conversão da ANP – atrial natriuretic peptide ou PNA
angiotensina A-P – ântero-posterior
ACF – anemia de células falciformes APIR – agregação plaquetária induzida pela ristocetina (RIPA em
ACG – angiocardiograma inglês)
ACJ – artrite crónica juvenil AR – artrite reumatóide
ACo – acetilcolina ARA – arachidonic acid ou ácido araquidónico
AcoE – acetilcolinesterase ARC – AIDS related complex (complexo relacionado com SIDA)
ACOG – American College of Obstetricians and Gynecologists (Colégio ARDS – adult respiratory distress syndrome (SDR tipo adulto)
Americano de Obstetras e Ginecologistas) ARJ – artrite reumatóide juvenil
ACR – American College of Rheumatology ARM – angiorressonância magnética
ACTH – corticotrofina ou hormona corticotrópica hipofisária- ARN – ácido ribonucleico
adrenocorticotropic hormone ARNm – ARN mensageiro
AD – aurícula direita ARNs – ARN solúvel ou de transferência
ADE – acção dinâmica específica ARP – actividade da renina palsmática
ADH – antidiuretic hormone (ou HDA-hormona antidiurética) As – símbolo químico do arsénio
ADN – ácido desoxirribonucleico AST – aspartato aminotransferase/transaminase glutâmico-pirúvica
ADP – adenosine diphosphate (ou adenosinadifosfato) ASCA – anticorpos anti Saccharomyces cervisae
AE – alimentação entérica (ou enteral) AT – antitrombina, ajudas técnicas, apoio tecnológico
aEEG – EEG de amplitude integrada ATM – articulação temporomandibular
AESP – actividade eléctrica sem pulso ATP – adenosina trifosfato (Adenosine Tri Phosphate)
AFP – alfa-fetoproreína ATPase-Na+/K+ – bomba de sódio
Ag – antigénio; símbolo químico de prata Au – símbolo químico do ouro
A/G – relação albumina-globulina AUS – azoto ureico no sangue (vidé BUN)
AGL – ácido gordo livre AV – nódulo auriculoventricular
AGNE – ácido gordo não esterificado ou PUFA (poly unsaturated fatty A-V – diferença arteriovenosa
acid) AVB – atrésia das vias biliares
AGS – adrenogenital syndrome; SAG-síndroma adrenogenital AVBEH – AVB extra-hepáticas
AHA – American Heart Association AVC – acidente vascular cerebral
AHAI – anemia hemolítica autoimune AVP – arginina-vasopressina
AIA – acidente isquémico arterial AZT – azidotimidina (zidovudina segundo denominação
AIDS – acquired immunodeficiency syndrome; ou SIDA-síndroma de internacional)
imunodeficiência adquirida
AIE – asma induzida pelo esforço B
AIG – peso do RN adequado para a idade gestacional B1 – primeiro ruído do coração (=S1)
AIJ – artrite idiopática juvenil Ba – bário
AINE – anti-inflamatórios não esteróides BAV – bloqueio auriuloventricular
ALT – alanina aminotransferase/transaminase glutâmico-oxalacética- BCC – bloqueante dos canais do cálcio
TGO BCG – bacilo Calmette-Guérin
XXXVI TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

BEI – iodo extraído (removido) pelo butanol (Butanol Extractable Iodine) CIA – comunicação interauricular
BERA – Brainstem evoked response audiometry CIAS – cold induced autoinflammatory syndrome ou síndroma auto-
BHCG – Gonadotrofina coriónica humana beta (ou GCHB) inflamatória induzida pelo frio
BHE – barreira hematencefálica CIAV – comunicação interauriculoventricular
Bi – bismuto CID – classificação internacional de doenças, lesões e causas de óbitos
BIPAP – bilevel positive airway pressure (OMS/WHO); ou coagulação intravascular disseminada
BK – bacilo de Koch CIM – concentração inibitória mínima
BN – bulimia nervosa CINCA – chronic infantile neurologic cutaneous and articular syndrome
BNP – B-type natriuretic peptide; ver NT- proBNP CIV – comunicação interventricular
BO – bronquiolite obliterante CK – creatinaquinase/creatinacinase
BOOP – BO com pneumonia organizativa (organizing pneumonia) CL – compliance pulmonar/distensibilidade pulmonar
BP – baixo peso (<2500 gramas) ou binding protein (factor de ligação) Cl – símbolo do cloro
BPE – baixo peso extremo(<1000 gramas) cl – centilitro
BPM ou bpm – batimentos por minuto CM – concentração máxima
Br – bromo cm – centímetro/cm2 - centímetro quadrado; cm3 - centímetro cúbico
BR – biópsia renal ou cc
BRB – bilirrubina CMH ou MHC – Complexo major de histocompatibilidade (locus no
BRD – bloqueio do ramo direito cromossoma 6 com genes que codam antigénios (glicoproteínas de
BRE – bloqueio do ramo esquerdo superfície) de histocompatibilidade (vidé adiante MHC)
BSE – bovine spongiform encephalopathy ou encefalopatia espongiforme CMO – corticosterona metil oxidase
bovina/doença das vacas “loucas” CMV – citomegalovírus ou vírus citomegálico/de inclusões
BSP – bromossulftaleína citomegálicas ou corpos multivesiculares (surfactante)
BT – bilirrubina total (B ou BRB) CO – monóxido de carbono
BUN – blood urea nitrogen ou azoto ureico do sangue CO2 – dióxido, anidrido ou gás carbónico
Co – cobalto
C CoA – coenzima A
C – Celsius, carbono Cox – cicloxigenase
Ca – cálcio, carcinoma CPAP – continuous positive airways pressure ou pressão positiva
CaBP – calcium binding protein ou proteína fixadora do cálcio contínua no final da expiração ou pressão de distensão contínua
CAD – cetoacidose diabética CPK – creatine phospho kinase ou creatina fosfo quinase (ou cinase)
Cal – kcal (quilocaloria) CPK-MB – idem – isoenzima MB (cérebro,musculo) da CPK
Cal – caloria CPRE – colangiopancreatografia retrógrada endoscópica
CAMP – adenosinamonofosfato cíclico CPT – capacidade pulmonar total
CAO (índice de cárie) – C- dentes cariados; A-ausentes; O-obturados CPV – canal peritoneovaginal
CASH – cortico adrenal stimulating hormone (hormona estimulante Cr – crómio
córtico- suprarrenal diferente da ACTH) CR – cicatriz renal
CAV – canal atrioventricular comum CREST – sigla de calcinose cutânea, fenómeno de Raynaud,
cc – centímetro cúbico (ou cm3) compromisso esofágico, esclerodermia, telangiectásias
CCI – comissão de controlo de infecção CRF – capacidade residual funcional ou corticotropin releasing factor
CCMH – concentração corpuscular média em hemoglobina (=CGMH) (factor libertador da corticotrofina)
CCU – cancro do colo do útero CRH – corticotropin releasing hormone (hormona libertadora da
Cd – cádmio corticotrofina)
CDC – Centers of Disease Control, em Atlanta, EUA CRMO – chronic recurrent multifocal osteomielitis
CDG – carbohydrate deficient glycoprotein CRP – C Reactive Protein ou PCR
CDPN – Centro de Diagnóstico Pré-natal CS – craniossinostose
CEA – corionic embrionary antigen ou antigénio embrionário coriónico 17-CS – 17 cetosteróide
CEC – circulação extracorporal CSP – cuidados de saúde primários
CERAC – Centro de Estudos e Registo de Anomalias Congénitas CTCIG – Comissão Técnica de Certificação de Interrupção da
CFRD – cystic fibrosis related diabetes Gravidez
CFTR – cystic fibrosis transmembrane conductance regulator CTG – cardiotocografia ou cardiotocograma
CGMH – concentração globular média em hemoglobina (= CCMH) Cu – cobre
CH – concentração de hemoglobina CUM – cistouretrografia miccional
CHARGE – Associação de anomalias (sigla de coloboma, heart disease, CV – capacidade vital, campo visual, coluna vertebral
atrésia dos coanos, retarded growth and development associado a CVEDT – Centro de Vigilância Epidemiológica de Doenças
anomalias do SNC, ear anomalies) Transmissíveis
CHC – carcinoma hepatocelular
CI – capacidade inspiratória D
Ci – Curiecentímetro cúbico D – dalton, densidade
Abreviaturas XXXVII

D – dia de vida (por ex. D5 ou 5º dia) ou nível de vértebra dorsal (por DTPA – dietileno-tetra-pentacético
ex. D8) DV – dador vivo
DA – dermatite atópica DVP – derivação ventriculoperitoneal
DAG – diacilglicerol
DAR – dor abdominal recorrente E
DB – decibel ou Doença de Behçet EAEC – enteroaggregative E. coli
DBP – displasia broncopulmonar EACA – ácido épsilon-aminocapróico
DC – débito cardíaco EB – epidermólise bolhosa
DCE – doença crónica do enxerto EBP – extremo baixo peso (recém-nascido de )
DD – diagnóstico diferencial EBV – Epstein-Barr virus ou vírus de Epstein-Barr
DDA – displasia de desenvolvimento da anca ECG – electrocardiograma
DDAVP – 1-deamino-8-d-arginino-vasopressina ECHO virus – ou vírus ECHO (enteric cytopathic human orphan)
DDO – doenças de declaração obrigatória ECMO – extracorporal membrane oxygenation ou oxigenação com
DDT – dicloro-difenil-tricloroetano membrana através de circulação extracorporal
DEXA – dual X ray absorptiometry ECN – enterocolite necrosante
DGPI – diagnóstico genético de pré-implantação EcoCG – ecocardiograma
DGS – Direcção Geral da Saúde EDTA – ácido edético ou etileno-diamima-tetra-acetato
DH – doença de Hirschsprung EEC – espaço ou compartimento extracelular, contendo LEC
DHA – docosahexanoic acid ou ácido docosa-hexanóico EEEPC – estudo europeu sobre a etiologia da paralisia cerebral
DHABO – doença hemolítica por incompatibilidade ABO EEG – electroencefalograma
DHEA – di-hidro-epi-andosterona EEI – esfíncter esofágico inferior
DHEAS ou DHEA-S – sulfato de di-hidro-epi-andosterona EH – esferocitose hereditária
DHPNRh – doença hemolítica perinatal por incompatibilidade Rh EHEC – enterohemorrhagic E. Coli
DHRN – doença hemolítica do recém- nascido EHI – encefalopatia hipóxico-isquémica
DHT – di-hidro-testosterona EHP – estenose hipertrófica do piloro
DI, DII, DIII – derivações bipolares electrocardiográficas EIC – espaço intracelular, contendo LIC
DI – dentinogénese imperfeita EID – espaço intercostal direito
DID – diabetes insulinodependente EIE – espaço intercostal esquerdo
DII – doença intestinal inflamatória EIEC – enteroinvasive E. Coli
DIT – diiodotirosina ELISA – enzyme-linked immunosorbent assay
DIU – dispositivo intrauterino EMG- electromiografia / electromiograma
DK – doença de Kawasaki EMLA – eutectic mixture local anesthetics
DMARD – disease modifying agents in rheumatic disease EN – eritema nodoso
DMG – diabetes mellitus gestacional EOG – electro-oculograma
DM2 – diabetes mellitus do tipo 2 EPEC – enteropathogenic E. Coli
DMJ – dermatomiosite juvenil EPI – enfisema pulmonar intersticial
DMG – diabetes mellitus gestacional EPO – eritropoietina
DMO – doença metabólica óssea ERA – Evoked response audiometry
DMSA – ácido dimercapto-succínico ERG – electrorretinograma
DNA ou ADN – ácido desoxirribonucleico ESPGHAN – European Society for Gastroenterology Hepatology and
DNM – doença neuromuscular Nutrition
DOCA – acetato de desoxicorticosterona ET – exsanguinotransfusão
DOPA – Di-hidroxi-fenilalanina ETCO – end tidal carbon monoxide
DP – desvio-padrão ou diálise peritoneal ETEC – enterotoxigenic E. Coli
DPC – doença pulmonar crónica ETP – exsanguinotransfusão parcial
DPG – diabetes pré-gestacional EUA – Estados Unidos da América do Norte
2,3 - DPG – 2,3 difosfoglicerato e.v./EV – endovenoso (ou intravenoso - IV)
DPI – doença pulmonar intersticial ex/ex: – por exemplo
DPN – diagnóstico pré-natal
DPOC – doença pulmonar obstrutiva crónica F
DPPC – dipalmitoilfosfatidilcolina FA – fosfatase alcalina
DSM-III, DSM IV – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders FAO – Food and Agricultural Organization
III , IV FC – frequência cardíaca
DRGE – doença do refluxo gastro-esofágico FCAS – familial cold autoinflammatory syndrome ou síndroma familiar
DST – doença sexualmente transmissível auto-inflamatória
DT (vacina) – antidifteria e antitétano FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia
DTN – defeito do tubo neural FDA – Food and Drug Administration
DTP (vacina) – antidifteria, antitétano e antipertussis Fe – Ferro
XXXVIII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

FeNa – fracção excretada de Na (sódio) urinário H


FeNo – fracção expirada de NO h – hora
FETENDO – sigla em inglês de Fetal Endoscopy H – hidrogénio
FEV – forced expired volume HA – hemaglutinação ou hepatite A
FFA – free fatty acids ou ácidos gordos livres HAD – hormona antidiurética (arginina-vasopressina)
FG – fosfatidilglicerol HAI – hepatite autoimune
FGR – filtração glomerular renal ou GFR HAP – hospital de apoio perinatal
FhO2 – fracção ou concentração de oxigénio na hipofaringe HAPD – hospital de apoio perinatal diferenciado
FI – fosfatidil inositol Hb ou Hgb – hemoglobina
FiO2 – fracção ou concentração de oxigénio no ar inspirado HB – hepatite B
FISH – Fluorescence in situ hybridation HbGM ou HGM – hemoglobina globular média
FIV – fertilização in vitro HBIG – imunoglobulina específica para o vírus da HB
FM – feto morto HbO2 – oxiemoglobina
FMF – febre mediterrânica familiar HBsAg – antigénio de superfície do vírus da hepatite B
FO – fundo do olho HC – hidrato de carbono
FQ – fibrose quística (mucoviscidose) HCG – gonadotrofina coriónica humana (human chorionic gonadotropin)
FR – frequência respiratória, factor reumatóide ou febre reumática HCl – ácido clorídrico (anteriormente Cl H)
FSF – factor XIII de coagulação (fibrin stabilizing factor) HCS – somatotrofina coriónica humana
FSH – gonadotrofina A, hormona foliculostimulante (follicle-stimulating Hct – hematócrito; ou Ht
hormone) HDC – hérnia diafragmática congénita
FSH-RH – idem hormona libertadora d FSH… releasing hormone HDE – Hospital de Dona Estefânia
FTE – fístula tráqueo-esofágica HDL – high density lipoprotein ou lipoprotéina de alta densidade
FVSP – fibrilhação ventricular sem pulso He – hélio
FvW – factor de von Willebrand HELLP syndrome – Hemolysis, Elevated Liver Enzymes, Low Platelets ou
síndroma com hemólise, enzimas hepáticas elevadas e plaquetas
G baixas
g – grama HFF – Hospital Fernando Fonseca
GABA – ácido gama-amino-butírico HFV – high frequency ventilation (VAF em português)
GADA – anticorpos antidescarboxilase do ácido glutâmico Hg – mercúrio
Gal – galactose HIC – hipertensão intracraniana
GBM – glomerular basement membrane HIDS – hyper IgD syndrome ou síndroma hiper IgD
G-CSF – granulocyte colony stimulating factor HIV – hemorragia intraventricular ou Human Immunodeficiency Virus
GEA – gastrenterite aguda HLA – human leucocyte antigen ou antigénio de histocompatibilidade
GFR – glomerular filtration rate HMGCoA – Hidroxi-metil-glutaril-coenzima A
GGT – gama glutamil transferase Hp – Helicobacter pylori
GH – growth hormone (hormona do crescimento) HPC – Hospital Pediátrico de Coimbra
GHRF – growth hormone releasing factor ou factor de libertação da GH HPP – hipertensão pulmonar persistente
GH-RIH – growth hormone release inhibiting hormone ou somatostatina HPT – hormona paratiroideia (ou paratormona- PTH)
ou hormona inibidora da libertação da hormona de crescimento HPV – vírus do papiloma humano
GI – gastrintestinal HSD – hidroxi-esteróide desidrogenase
GIG – RN grande para a idade gestacional HSJ – Hospital de São João
GINA – global initiative for asthma HSM – Hospital de Santa Maria
GMP – guanosinamonofosfato HSV – herpes simplex vírus ou vírus herpes simples
GMPc – guanosina-monofosfato cíclico Ht – o mesmo que Hct
GM-CSF – granulocyte macrophage colony stimulating factor HT – hormonas tiroideias
GNA – glomerulonefrite aguda HTA – hipertensão arterial
GNAPE – GNA pós-estreptocócica Htc ou Ht – hematócrito
GnRH – gonadotropin releasing hormone ou hormona libertadora das HTP – hipertensão pulmonar
gonadotrofinas HV – hepatite vírica
GNRT – GN rapidamente terminal HVA – ácido homovanílico
GOT – glutamato-oxalacetato-transaminase ou ALT HVD – hipertrofia ventricular direita
G-6PD – glucose 6 fosfato desidrogenase HVE – hipertrofia ventricular esquerda
GPT – glutamato-piruvato-transaminase ou AST Hz – Hertz
GRISI – Grupo de Rastreio e Intervenção da Surdez Infantil
GST – genes supressores de tumores (ou TSG) I
GWAS – genome-wide association studies I – símbolo químico do iodo
Gy – unidade de radiação usada em radioterapia (1 Gy <> 100 rads) IAA – anticorpos anti-insulina
IACS – infecção associada à prestação dos cuidados de saúde
Abreviaturas XXXIX

ICA – anticorpos anti-células B dos ilhéus KR – quiloroentgen


ICC – insuficiência cardíaca congestiva ou imunocomplexos Kt – constante de tempo
circulantes kV – quilovolt
ICSH – interstitial-cell stimulating hormone ou gonadotrofina B, kW – quilowatt
hormona estimulante das células intersticiais
IDP – imunodeficiência primária L
IECA – inibidor da enzima de conversão da angiotensina l – litro
IF – interfalângicas L – nível de vértebra lombar (L3 = 3ª vértebra), ou litro
IFA – immunofluorescent antibody ou anticorpo imunofluorescente LA – leucemia aguda ou líquido amniótico
IFD – interfalângica distal Lactente – no sentido restrito, a criança alimentada com leite ou que
IFN – interferão “recebe” leite; no sentido lato, criança pequena em geral até ao 1
IFP – interfalângica proximal ano
IFR – índice de falência renal (ou de insuficiência renal) Lactante – pessoa (em geral a mãe) que amamenta ou “dá” o leite
Ig – imunoglobulina natural
IL – interleucina LAF – lymphocyte activating factor ou factor de activação linfocitária
ILAE – International League Against Epilepsy LCPUFA – long chain polyunsaturated fatty acid ou ácido gordo poli-
IGF – insulin-like growth factor ou IGF /Factor de crescimento insaturado de longa cadeia
semelhante à insulina LCR – líquido céfalorraquidiano
IGFBP – insulin-like growth factor binding protein (proteína de ligação) LDH – lácticodesidrogenase
IGIV – imunoglobulina intravenosa LDL – low density lipoproteins
IGSC/ou SCIG) – imunoglobulina subcutânea LEC – líquido extracelular contido no EEC
ILAR – International League Against Rheumatism LES – lúpus eritematoso sistémico
ILGF – insulin-like growth factor ou IGF /Factor de crescimento LH – luteinizing hormone ou hormona luteinizante ou gonadotrofina B
semelhante à insulina LHR – sigla do inglês right lung area to head circumference ratio
im/ IM – intramuscular Li – lítio
IMC – índice de massa corporal LIC – líquido intracelular contido no EIC
IMV – ventilação “mandatória”/obrigatória intermitente LIG – RN leve para a idade gestacional
IN – infecção nososcomial (ou adquirida no hospital) LIP – lymphocytic interstitial pneumonia ou pneumonia intersticial
INE – Instituto Nacional de Estatística linfocitária (PIL)
iNO – óxido nítrico inalado Lis – lisina
IO – idade óssea, índice de oxigenação LLC – leucemia linfóide crónica
IOTF – International Obesity Task Force LM – lesões mínimas
IP – índice ponderal no RN: razão peso (gramas)/comprimento (cm)3 x LMA – leucemia mielóide aguda
100 ou inibidor das proteases LP – líquido pleural
IPLV – intolerância às proteínas do leite de vaca LPF – líquido pulmonar fetal
IPPV ou IPPB – intermitent positive pressure ventilation/breathing ou LPR – Lipid Research Program
ventilação com pressão positiva intermitente LPS – lipopolissacárido
IPR – índice de produção reticulocitária LPV – leucomalácia periventricular ou leucocidina de Panton e
IRA – insuficiência renal aguda Valentine
IRC – insuficiência renal crónica LRG – leucine – rich alpha-2-glycoprotein
IRCT – insuficiência renal crónica terminal LSD – dietilamida do ácido lisérgico
IRIDA – iron resistant iron-deficiency anemia LTH – luteotropic hormone ou prolactina
ISAAC – International Study of Asthma and Allergies in Chidhood
IU – infecção urinária M
iv/IV – intravenoso (ou endovenoso) M – molar
IVD – insuficiência ventricular direita M1 a M7 – tipos morfológicos da classificação das LMA
IVE – insuficiência ventricular esquerda MAG3 – mercaptoacetil triglicina
IVG – interrupção voluntária da gravidez MALT – mucosa associate lymphoid tissue
MAP – mean airway pressure (ou Paw) ou pressão média na via aérea
J MAPA – monitorização ambulatória da pressão arterial
J – Joule MAR – manometria ano-rectal
MAS – síndroma de activação macrofágica
K MBE – Medicina Baseada na Evidência
K – símbolo de potássio, ou Kelvin MBP – muito baixo peso (<1500 gramas)
Kcal – quilocaloria MCF – metacarpo-falângica
Kg – quilograma MCH – mean corpuscular hemoglobin ou hemoglobina globular média
Km – quilómetro MCHC – mean corpuscular hemoglobin concentration ou concentração de
kPa – capa pascal (medida de pressão); (kPa x 7.5 = mmHg) hemoglobina globular média
XL TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

mcg (ug) – micrograma NIH – National Institute of Health ou Instituto Nacional de Saúde
MCV – mean corpuscular volume ou volume globular médio NIHDE – Núcleo Iconográfico do Hospital de Dona Estefânia
ME – meningoencefalite NIPS – Neonatal Infant Pain Scale
MELAS – mitochondrial myopathy encephalopaty lactic acidosis and stroke NIV – Nutrient Intake Values
like episodes nm – namómetro
MENDS – MElatonin in children with Neurodevelopmental Disorders NNN – meio de cultura de Novy, McNeal e Nicolle
and impaired Sleep NO – óxido nítrico
mEq/L – milequivalente por litro NOC – norma de orientação clínica
MERRF – mitochondrial encephalomyopathy with ragged red fibers; NP – nutrição parentérica (ou parenteral)
epilepsia mioclónica (associação a doenças hereditárias do NPT – nutrição parentérica total(ou exclusiva)
metabolism) NR – nefropatia do refluxo
Met Hb – metemoglobina NS – não significativo
MFR – Medicina Física e Reabilitação NT-proBNP – N terminal –proBNP (ver Glossário geral: péptidos
Mg – símbolo químico do magnésio natriuréticos)
mg – miligrama NV – nado vivo
MHC ou CMH – (ver atrás) NYHA – New York Heart Association
MHz – mega hertz
min – minuto O
ml – mililitro O – oxigénio
MM – mielomeningocelo OD – olho direito
MMBP – muito muito baixo peso (sinónimo de EBP), recém-nascido OE – olho esquerdo
de mmc/mmc ou por mmc ou /mm3 (= µL) OEA – oto-emissões acústicas
Mn – símbolo químico do manganês OGE – órgãos genitais externos
MNI – mononucleose infecciosa OGI – órgãos genitais internos
Mo – símbolo químico do molibdénio OI – osteogénese imperfeita
mol – mole OMA – otite média aguda ou opsoclónus, mioclónus, ataxia
mmol – milimole OMS – Organização Mundial de Saúde
mOsm – miliosmole (mOsm/kg de H2O <>mmol/L) ONSA – Observatório Nacional da Saúde
mR – mili-roentgen ORL – Otorrinolaringologia
MR – meticilina- resistente ORS – oral rehydration solute, ou SRO
mrad – mili-rad OSM – otite seromucosa
MRCP – magnetic resonance cholangiopancreatography
mRNA – RNA mensageiro (ou ARNm) P
MS – meticilina sensível P – fósforo ou Pressão ou peso
MSH – melanocyte stimulating hormone ou hormona melanotrópica ou p – pressão
melanotropina P50 – pressão à qual a Hb se encontra saturada a 50% de O2
MTD – mãe toxicodependente Pa – Pascal
MTF – metatarso-falângica PA – pressão arterial ou pancreatite aguda
MTX – metotrexato PAB ou PABA – ácido para-amino-benzóico
MV/mV/uV – mega/mili/micro Volt PAF – Platelet Activating Factor ou factor de activação plaquetária
MW/mW/uW – mega/mili/micro Watt PAH – ácido para-amino-hipúrico
MWS – Muckle-Wells syndrome PAM – pressão arterial média
PAN – poliaterite nodosa
N PANDAS – sigla de Pediatric Autoimmune Neuropsychiatric Disorders
Na – sódio Associated with Streptococcal infections
NAD, NADH- nicotinamida-adenina dinucleotidofosfato (oxidado ou Pa O2 – pressão parcial arterial de O2
reduzido) PA O2 – pressão alveolar de O2
NASPGAN – North America Society for Pediatric Gastroenterology and PAO – pressão arterial ocular
Nutrition PAP – proteína associada à pancreatite
NB – note bem PAPA – sindroma englobando artrite piogénica, piodermite
NCI – National Cancer Institute gangrenosa, e acne
NEC – necrotizing enterocolitis (ou ECN-enterocolite necrosante) PAPP-A – sigla do inglês de pregnancy-associated plasma protein A
NFCS – Neonatal Facial Coding Scale PAR – pressão arterial retiniana
ng – nanograma (1 nanograma<> 1 milionésimo de mg) PAS – pressão arterial sistólica ou ácido para-amino-salicílico
NHCS – National Center for Health Statistics Paw – pressure airway ou pressão media na via aérea (ou MAP)
NIDCAP – Newborn Individualized Developmental Care Assessment Pb – chumbo
Program (Programa Individualizado de Avaliação do PB – prega bicipital
Desenvolvimento do RN) PBI – Protein Binding Iodine ou iodo ligado às proteínas
Abreviaturas XLI

PC – paralisia cerebral /doença motora cerebral ppm – partes por milhão


PCA – persistência do canal arterial PPN – prova de provocação nasal
PCE – poliartrite crónica evolutiva PPO – prova de provocação oral
PCI – paralisia cerebral infantil PR – poliartrite reumatóide
PCP – poliartrite crónica primária ou pneumocistose pulmonar ou PRH – prolactin releasing hormone
Pneumocystis pneumonia PRINTO – Pediatric Rheumatology International Trials Organization
PCR – proteína C reactiva ou polymerase chain reaction (reacção de PRIST – paper radio immune sorbent test
polimerização em cadeia) ou paragem cárdio-respiratória PSE – prega subescapular
PCT – procalcitonina PSI – prega supra-ilíaca
PDA – persistência do ductus arteriosus ou canal arterial (PCA) PSP – phenol sulpha phtalein ou fenolsulfaftaleína ou proteína específica
PDAY – pathobiological determinants of atherosclerosis in youth do pâncreas na pancreatite aguda
PDE – phosphodiesterase ou fosfodiesterase PT – prega tricipital
PDF – produtos de degradação do fibrinogénio PTA – plasma thromboplastin antecedent ou factor XI de coagulação
PDGF – platelet derived growth factor, ou factor de crescimento derivado PTC – plasma thromboplastin component ou factor IX de coagulação
das plaquetas Ptc – pressão transcutânea
PDHC – pyruvate dehydrogenase complex PTH – paratormona ou hormona paratiroideia (HPT)
PEATC – potenciais evocados auditivos do tronco cerebral PTHrP – parathyroid hormone-related peptide
PEG – polietilenoglicol PTI – púrpura trombocitopénica idiopática
PEEP, PEP – Pressão expiratória positiva ou positive end expiratory PTT – púrpura trombocitopénica trombótica ou tempo de
pressure tromboplastina parcial
PET – positron emission tomography ou tomografia por emissão
depositrões Q
PFAPA – síndroma englobando febre periódica, aftas, faringite e q b p – quanto baste para
adenopatias QG – quociente geral
PG – prostaglandina ou fosfatidil glicerol (phosphatidyl glycerol) QI – quociente de inteligência
PGE – prostaglandina E (outras PG associadas a outras letras) QR – quociente respiratório
pg – picograma QRS – complexo QRS
pH – logaritmo decimal do inverso da concentração hidrogeniónica
em hidrogeniões - grama por litro R
Phe – fenilalanina R – roentgen
PHS – púrpura de Henoch Schonlein RA – reserva alcalina
PI – perda insensível de água RAA – reumatismo articular agudo ou sistema renina – angiotensina-
PIC – pressão intracraniana aldosterona
PIF – prolactin inhibiting factor ou factor inibidor da prolactina RANU – rastreio auditivo neonatal universal
PIG – RN pequeno para a idade gestacional (na prática, sinónimo de LIG) RAST – rádio allergo sorbent test ou doseamento sérico
PIO – pressão intra-ocular radioimunológico das IgE específicas de antigénios
PIP – pico de pressão inspiratória/peak inspiratory pressure RCIU – restrição de crescimento intrauterino
PIVKA – protein induced in vitamin K absence RDS – respiratory distress syndrome ou síndroma de dificuldade
PL – punção lombar respiratória/SDR
PlGF – placental growth factor REM – rapid eye movements ou fase de movimentos rápidos dos olhos
PLUG – sigla do inglês Plug the Lung Until it Grows durante o sono (sono paradoxal, sonho)
PLV – ventilação líquida parcial (sigla do inglês) RER – retículo endoplásmico rugoso
PM – polimiosite juvenil RF – releasing factor ou factor libertador
PMI – protecção materno-infantil RFC – reacção de fixação do complemento
Pn – peso de nascimento RFI – renal failure índex ou IFR
PNA – péptido natriurético auricular (ou ANP) RGE – refluxo gastresofágico
PNB – Produto Nacional Bruto RH – releasing hormone ou hormona libertadora
PNET – peripheral primitive neuroectodermal tumors (tumores Rh – Rhesus
neuroectodérmicos primitivos periféricos) RIA – radio-immunoassay
po- per os ou por via oral RIPA – ver APIR
PO2 – pressão parcial de CO2 (anidrido carbónico) no sangue RMN – ressonância magnética nuclear
PO2 – pressão parcial de O2 ( oxigénio) no sangue RMS – rabdomiossarcoma (sarcoma das partes moles mais frequente
PPB – prova de provocação brônquica na Criança)
PPC – puberdade precoce central RN – recém-nascido
PPF – puberdade precoce periférica RNA – ribonucleic acid ou ácido ribonucleico
PPGSS – sigla de papular purpuric gloves and socks syndrome RNBP – recém-nascido de baixo peso
PPI- pressão positiva intermitente ou IPPV ou IPPB ou inibidor da bomba RNMBP – recém-nascido de muito baixo peso
de protões (pump proton inhibitor) ou prova de provocação inalatória RNBMPE – recém-nascido de muito baixo peso extremo
XLII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

RNMD – recém-nascido de mãe diabética SNV – sistema nervoso vegetativo


RNMTD – recém-nascido de mãe toxicodependente SP – surfactante pulmonar
ROP – retinopathy of prematurity (ver RP) SPA – single photon absorptiometry
ROT – reflexo osteotendinoso SPCA – serum prothrombin conversion accelerator ou pró-convertina
RP – retinopatia da prematuridade SPP – Sociedade Portuguesa de Pediatria
RRAI – reflexo recto-anal inibidor SR – supra-renal
Rrp – reabilitação respiratória pediátrica SRAA – sistema renina-angiotensina-aldosterona
rT3 – T3 reversa, inactiva SRE – sistema retículo-endotelial
rTPA – activador recombinante do plasminogénio tecidual SRH – somatopropin releasing hormone ou hormona libertadora da
RT-PCR – reverse transcription polymerase chain reaction omatotropina
RVP – resistência vascular pulmonar SRIF – somatotropin release inhibiting factor ou somatostatina (factor
RVU – refluxo vésico-ureteral inibidor da libertação da somatotropina
SRO – solução de reidratação oral, ou ORS
S STA – síndroma torácica aguda
S – som cardíaco (por ex. S1 ou 1º som cardíaco) ou semana STAN – análise computadorizada do segmento ST do ECG fetal
Sa ou Sat – saturação associada ao CTG
SA – síndroma de Alport STH – somatotropic hormone ou somatotropina ou hormona
SAEET – síndroma de ar ectópico extratorácico somatotrópica, ou hormona do crescimento ou GH
SAEIT – síndroma de ar ectópico intratorácico SUG – seio urogenital
SALT – skin associated lymphoid tissue ou tecido linfóide da pele Sv – Sviert
SAMR – Staphylococcus aureus meticilina - resistente SWM – síndroma de Wilson-Mikity
SAN – síndroma de abstinência neonatal
SAOS – síndroma da apneia obstrutiva do sono T
SaO2 ou SatO2 – saturação da hemoglobina em oxigénio T3 – triiodotironina (activa, ao contrário da rT3)
SAPHO – síndroma englobando sinovite, acne, pustulose, hiperostose T4 – tetraiodotironina (tiroxina)
e osteíte TA – tensão (ou pressão) arterial
SARA – sigla de Sistema de Alerta e Resposta Adequada TAB – (vacina) anti-tifóide – paratifóide A e B
SB – spina bifida TAC – tomografia axial computadorizada ou TC
SC ou sc – subcutâneo TAR – terapêutica antirretrovírica
SCEH – síndroma do coração esquerdo hipoplásico TASO – título de anti-estreptolisinas O
SCHAD – short chain hydroxyacyl CoA dehydrogenase hyperinsulinism TB-MR – tuberculose multirresistente
SCN – Staphylococcus coagulase negativo TB, TBC – tuberculose
SCPE – surveillance of cerebral palsy in Europe TBG – tyroxine binding globulin ou globulina que fixa a tiroxina
SDR – síndroma de dificuldade respiratória (RDS-sigla do inglês) TC – tomografia computadorizada, sinónimo de TAC
Se – símbolo químico do selénio TCAD – TC de alta definição
SEC – secreção em excesso de catecolaminas TCE – traumatismo cranioencefálico
SED – síndroma de Ehlers-Danlos TCM – triglicéridos de cadeia média
SEDA – síndroma de eczema dermatite atópica TCL – triglicéridos de cadeia longa
SF – soro fisiológico ou soluto salino (NaCl a 0,9%) TC/PET – sigla em inglês de TC com emissão de positrões
SGOT – transaminase glutâmico – oxalo- acética TD – toxicodependente
SGPT – transaminase glutâmico-pirúvica Te – tempo expiratório
SHU – síndroma hemolítica urémica TEACCH – treatment and education of autistic and related
SIADH – síndroma de secreção inapropriada de hormona antidiurética communications of handicapped children
SIC – síndroma do intestino curto TeTAB – (vacina) antitetânica-tifóide-paratifóide
SIDA – síndroma de imunodeficiência adquirida TFG –taxa de filtração glomerular ou simplesmente FGR/GFR
SIHAD – idem Tg – tiroglobulina
SIR – síndroma de insuficiência respiratória TG – triglicéridos
SIRS – síndroma de resposta inflamatória sistémica TGA – thromboplastin generation accelerator ou acelerador da formação
SLEDAI – systemic lupus erythematous disease activity index da tromboplastina
SLICC – Systemic Lupus International Collaborating Clinics TGO – transaminase glutâmico-oxalacética (GOT ou ALT)
SM – síndroma de Marfan TGP – Transaminase glutâmico-pirúvica (GPT ou AST)
SMSL – síndroma da morte súbita do lactente TGT – transglutaminase tecidual
SN – síndroma nefrótica TH – transplantação hepática (ou transplante)
SNA – sistema nervosos autónomo Ti – tempo inspiratório
SNC – sistema nervoso central TINU – tubulointerstitial nephritis with uveitis
SNG – sonda nasogástrica TIR – tripsina imunorreactiva
SNN – Secção de Neonatologia TIT – teste de imobilização de treponemas
SNS – Sistema/Serviço Nacional de Saúde, sistema nervoso simpático TLV – ventilação líquida total (sigla do inglês)
Abreviaturas XLIII

TMI – taxa de mortalidade infantil VATS – vídeo assisted thoracoscopic surgery


TMM5 – taxa de mortalidade em menores de 5 anos Vc – volume corrente
TMO – transplante de medula óssea VC – velocidade de crescimento
TMPN – taxa de mortalidade perinatal VCA – viral capsid antigen
TMP-SMZ – trimetoprim-sulfametoxazol ou cotrimoxazol) VCI – veia cava inferior
TMRA – taxa média de redução anual VCS – veia cava superior
TN – translucência da nuca VCT – valor calórico total (propiciado pelos vários nutrientes em %)
TNF – tumor necrosis factor ou factor de necrose tumoral VD – ventrículo direito
TORCHES- sigla de infecções pré-natais (toxoplasmose, outras, VDRL – reacção de aglutinação da sífilis (Venereal Diseases Research
rubéola, citomegalovírus, herpes simples, Epstein-Barr. sífilis, etc.) Laboratories)
Torr – abreviatura de medida de pressão (Torricelli); 1Torr = 1 mmHg VE – ventrículo esquerdo
TP – tempo de protrombina VEB – vírus de Epstein Barr
TPI – teste de Nelson (Treponema pallidum immobilization test) ou teste VEGF-1 ou -2 – sigla do inglês: vascular endothelial growth factor 1 ou 2
de imobilização treponémica VEGFR – receptor do VEGF
TPN – trifosfopiridinanucleótido VEMS – volume expiratório máximo por segundo
TPNH – trifosfopiridinanucleótido reduzido VG – volume globular, volume garantido
Tracking – estabilidade ou tendência para manutenção de determinada VGM – volume globular médio
situação ou parâmetro ao longo do tempo VH – vírus da hepatite (A, B, C, D, E, G)
TRAPS – TNF receptor associated periodic syndrome VIH – vírus da imunodeficiênca humana
TRBAb – thyrotropin receptor blocking antibody VIP – polipéptido vasoactivo intestinal (vasoactive intestinal polypeptide)
TRF – thyrotropin releasing factor (factor libertador de tirotrofina) VLDL – lipoproteínas de muito baixa densidade (Very Low Density
TRH – thyrotropin releasing hormone (hormona libertadora da tirotrofina) Lipoproteins)
TRSAb – thyrotropin receptor stimulating antibody VM – ventilação máxima (ou ventilação mecânica)
TSA – teste de sensibilidade aos antibióticos VMA – ácido vanil mandélico (Vanyl Mandelic Acid)
TSG – o mesmo que GST VO – via oral (o mesmo que po)
TSH – thyroid stimulating hormone (hormona tirostimulante) VRE – volume de reserva expiratória
TVR – trombose da veia renal VRI – volume de reserva inspiratória
TVSP – taquicardia ventricular sem pulso VS ou VSG – velocidade de sedimentação (globular)
TXR – transplante renal VSR – vírus sincicial respiratório (ou VRS)
VTEC – verotoxin-producing E. coli
U VUP – válvulas da uretra posterior
U – urânio, unidade VVZ – vírus da varicela-zoster
UB – unidades Bodansky
UCF – unidade coordenadora funcional W
UCI – unidade de cuidados intensivos W – watt
UCIN – UCI neonatais WB – western immunoblot test
UCIP – UCI pediátricos WHO – World Health Organization ou OMS (Organização Mundial da
UDP – uridina-di-fosfato Saúde)
UDPG – uridina-di-fosfo-glicose WISC – Wechsler Intelligence Scale
UDPGT – uridina-di-fosfo-glucoronil-transferase WPW – síndroma de Wolff-Parkinson-White
UFF – urticária familiar pelo frio
UI – unidade internacional X
UIV – urografia intravenosa ou de eliminação X – cromossoma X
UM – uropatia malformativa Y – cromossoma Y
UNICEF – Agência das Nações Unidas para a Infância e Família
UNL – Universidade Nova de Lisboa ou Upper Nutrient Level Z
USF – Unidade de Saúde Familiar Zn – zinco
UTP – uridina-tri-fosfato
UV – ultra-violetas (radiações) Símbolos
UVP – Unidade de Vigilância Pediátrica > : maior que
< : menor que
V ~ : próximo, semelhante ou cerca de
V – volt, velocidade, ventilação, valência <> : correspondente a
VACTERL – sigla do inglês: vertebral, ano-rectal, cardíaco, tráqueo-
esofágico, renal, limb/membro
VAF – ventilação de alta frequência
VATERR – sigla do inglês: vertebral, anal, traqueal, esofágico, radial,
renal
PARTE XVIII
Hematologia
648 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

135
(leucócitos) e plaquetas, só produzindo glóbulos
vermelhos (eritrócitos) pelas 28-30 semanas. Deduz-
-se que no recém-nascido muito imaturo se verifica
hematopoiese extramedular, salientando-se que o
fígado constitui o órgão hematopoiético predomi-
nante entre as 20 e 24 semanas de gestação.
HEMATOPOIESE No recém-nascido de termo (> 37 semanas), a
medula óssea (suporte estrutural e microambiente
Ema Leal e A. Bessa Almeida para a hematopoiese) da quase totalidade dos
ossos, constitui o principal local de produção de
eritrócitos.
Com o crescimento, apenas a medula óssea do
Introdução esqueleto axial – vértebras, costelas, crânio, ossos
da bacia e fémur proximal – mantém actividade
A hematopoiese (termo sinónimo de hemopoiese hematopoiética (medula vermelha). Após a pu-
ou hemocitopoiese) é o processo pelo qual são berdade, a hematopoiese fica praticamente restri-
produzidos os elementos figurados do sangue. Tal ta ao esqueleto axial. Nos outros ossos, embora
processo de desenvolvimento envolve uma série com espaço medular preenchido predominante-
de etapas que se iniciam numa célula com poten- mente por tecido adiposo (medula amarela), é
cialidades de diferenciação – a chamada célula mantida a capacidade hematopoiética.
hematopoiética pluripotencial ou estaminal; com Na vida adulta, a hematopoiese medular é sufi-
efeito, as células estaminais, diferenciando-se, ciente para cobrir as necessidades em condições de
constituem os primórdios de todos os elementos normalidade. Em caso de doença da medula óssea
celulares sanguíneos (eritrócitos, vários tipos de com insuficiência funcional (por exemplo infecção
granulócitos, monócitos, plaquetas) e de células ou neoplasia), a actividade hematopoiética extra-
do sistema imunitário. medular pode desenvolver-se novamente (desi-
À luz dos conhecimentos actuais, existem es- gnadamente no fígado e baço).
sencialmente duas ordens de factores que deter-
minam a diferenciação no sentido de determinada Etapas de hematopoiese
linhagem celular: factores moleculares intracelu-
lares (intrínsecos) e factores externos ou extrínse- As células estaminais pluripotenciais encontram-
cos (factores de crescimento hematopoiético en- -se nos locais de hematopoiese numa proporção
globando interleucinas, eritroproietina, trombo- de uma célula estaminal para 104 células medu-
poietina e factores de crescimento de colónias de lares, podendo ser encontradas em pequena pro-
macrófagos e de granulócitos). porção no sangue periférico.
Neste capítulo são descritos aspectos funda- As referidas células pluripotenciais, dividin-
mentais da hematopoiese para melhor compreen- do-se, dão origem a células com uma linhagem de
são dos problemas clínicos que integram os capí- crescimento restrita.
tulos seguintes. Dois tipos principais de células derivam da cé-
lula estaminal pluripotencial: a célula progenitora
Locais de hematopoiese linfóide que dá origem aos diferentes tipos de lin-
fócitos; e a célula mielóide ou progenitora de gra-
Durante o desenvolvimento embrionário, o local nulócitos, eritrócitos, monócitos e megacariócitos,
onde ocorre a hematopoiese varia ao longo do tem- que dá origem aos restantes elementos celulares
po, sendo que os respectivos locais mais precoces sanguíneos. Estas células perdem a capacidade de
são o saco vitelino, com início aos 10 a 14 dias de auto – renovação e originam uma linhagem celu-
gestação e, posteriormente, o fígado pelas 6 a 8 lar específica. (Quadro 1)
semanas. Pelas 22-24 semanas de gestação, a medu- As células hematopoiéticas crescem e adqui-
la óssea fetal começa a produzir glóbulos brancos rem estádios de maturação numa rede de células
CAPÍTULO 135 Hematopoíese 649

QUADRO 1 – Diferenciação da célula estaminal

Célula estaminal pluripotencial


Célula mielóide: → células progenitoras para cada tipo celular →neutrófilo
→ monócito → macrófago
→ eosinófilo
→ eritrócito
→ megacariócito
→ mastócito
→ basófilo
Célula linfóide: → progenitor B → precursor B → LB maduro → plasmócito
→ célula B memória
→ progenitor T → precursor Tc → Tc maduro → célula T citotóxica
→ célula T memória
→ precursor Th → Th maduro → Th1
→ Th2
Abreviaturas: LB – linfócito B; Tc – célula T; Th – T helper

do estroma não hematopoiéticas que incluem adi- eritrócitos e regulando a produção dos mesmos;
pócitos, células endoteliais, fibroblastos e macró- – factor da célula estaminal que,originada na
fagos. Com a comparticipação de factores de cres- matriz medular, promove a proliferação das célu-
cimento é, assim, criado um microambiente favo- las progenitoras de determinada linhagem;
rável à hematopoiese. – interleucinas (IL), numeradas de 1 a 23, que
A capacidade de determinada célula progenito- estimulam a diferenciação de vários tipos celu-
ra se diferenciar no sentido de determinada li- lares;
nhagem depende da aquisição de resposta a certos – trombopoietina (TPO) que estimula o cresci-
factores de crescimento, sendo que o microambiente mento e diferenciação dos progenitores plaque-
particular, no qual a célula progenitora se incorpo- tários.
ra, contribui para a regulação de tal diferenciação. Estes factores são biologicamente activos, mesmo
em concentrações muito baixas.
Factores de crescimento Os CSFs (citocinas produzidas no microam-
hematopoiéticos biente da medula óssea por macrófagos, células
endoteliais e fibroblastos reticulares) actuam por
Foram identificados vários factores de crescimen- etapas, induzindo a maturação adequada.
to hematopoiéticos: A IL – 3 actua precocemente, ao nível da célula
– factor estimulador de colónia multilinhagem pluripotencial, para induzir a formação dos eritró-
(multi – CSF/colony stimulating factor ou IL-3/inter- citos, monócitos, granulócitos (neutrófilos, eosinó-
leucina – 3); filos, basófilos) e megacariócitos.
– factor estimulador de colónia de granulócitos O GM – CSF actua num estádio ulterior e os M-
e macrófagos (GM-CSF/granulocyte-macrophage – CSF e G – CSF, ainda mais tarde.
colony stimulating factor); De referir que a diferenciação de uma célula
– factor estimulador de colónia de macrófagos progenitora verifica-se paralelamente ao processo
(M – CSF /macrophage-colony stimulating factor); de expressão progressiva de receptores de mem-
– factor estimulador de colónia de granulócitos brana celular que são específicos para determina-
(G – CSF/granulocyte-colony stimulating factor); das citocinas.
– eritropoietina (EPO) que induz o desenvolvi-
mento da chamada EC-FU/erythroid colony-form- Eritrocitopoiese
ing unit ou unidade formadora de colónia eritrói-
de, conduzindo sequencialmente à formação dos A eritrocitopoiese (ou eritropoiese) corresponde à
650 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

produção e desenvolvimento de glóbulos verme- eritrócitos fetais são diferentes dos eritrócitos das
lhos maduros (eritrócitos). Inicia-se, tal como todas crianças maiores quanto a teor em enzimas (menor)
as outras células, com a célula estaminal pluripo- e quanto a deformabilidade (menor) da respectiva
tencial. membrana.
A primeira célula que é reconhecida e pré- O tempo de vida médio do eritrócito em circu-
-determinada para conduzir especificamente ao de- lação no adulto e crianças mais velhas é 100 a 120
senvolvimento de eritrócitos, é o proeritroblasto (ci- dias; na criança mais pequena tal período é inferi-
toplasma basófilo, cromatina laxa e nucléolos). Com or; no recém – nascido de termo, 60 a 90 dias, e no
o desenvolvimento, o respectivo núcleo torna-se pré – termo, 35 a 50 dias. Estas diferenças ocorrem
mais pequeno e o citoplasma mais basófilo devido à por imaturidade metabólica. No final deste perío-
presença de ribossomas. Nesta fase a célula, dimi- do a célula é removida para o baço e submetida a
nuindo progressivamente de dimensões, é designa- fagocitose.
da por eritroblasto basófilo. Posteriormente, o cito- Todo este processo é, como foi referido, regula-
plasma capta coloração básica e eosina, pelo que a do pela eritropoietina, hormona (glicoproteína)
mes-ma se passa a chamar eritroblasto policromató- produzida no rim como resposta à hipóxia dos
filo (maior condensação cromatínica, citoplasma de tecidos; no feto, o valor elevado de hemoglobina
tonalidade intermédia entre a basófila e a acidófila). resulta da produção de eritropoietina (no fígado,
O citoplasma torna-se, entretanto, mais eosinofílico neste caso), como resposta ao valor baixo da
e a célula passa a chamar-se eritroblasto ortocro- pressão do oxigénio (PO2) durante a vida intra-
mático (máxima condensação cromatínica, citoplas- uterina.
ma acidófilo); perdendo o seu núcleo, entra na cir- Durante os primeiros meses da vida pós-natal
culação como reticulócito, sendo que o citoplasma o crescimento rápido, a vida média encurtada dos
se mantém acidófilo. eritrócitos e o processo de menor actividade da
A designação de reticulócito é explicada pelo eritropoiese, originam um declínio progressivo
aspecto de redes de polirribossomas que exibe; de dos níveis de hemoglobina, atingindo-se os valo-
referir que tal precursor altamente especializado do res mais baixos por volta das 8-10 semanas; é o
eritrócito tem papel fundamental na formação de chamado nadir fisiológico, o qual é mais precoce e
cadeias de globina, de heme e de enzimas glicolíti- mais acentuado se o parto tiver ocorrido prematu-
cas; o ferro acoplado à transferrina, ligando-se aos ramente (gravidez encurtada).
receptores desta no mesmo reticulócito, é incorpo- Como resposta à diminuição da hemoglobina e
rado no heme que, por sua vez, se combina com a ao consequente défice de oxigenação tecidual, ve-
globina (com 4 cadeias de polipéptidos designadas rifica-se uma “retoma” da eritropoiese por estimu-
por letras do alfabeto grego: alfa, beta, delta, gama, lação da eritropoietina; tal “retoma” é traduzida
ou α, β, δ, γ) para formar a hemoglobina. pelo aumento do número de reticulócitos circu-
Perdendo os ribossomas, o reticulócito torna- lantes, aumentando, entretanto, de modo gradual
-se glóbulo vermelho maduro (eritrócito). o nível de hemoglobina com incremento de pro-
Durante a vida embrionária e fetal os genes da dução de Hb A (que compreende o tipo A1 e o tipo
globina são sequencialmente activados e inactiva- A2). Pelos seis meses de idade, nas crianças sau-
dos. A hemoglobina (Hb), produzida durante o pe- dáveis a síntese de cadeias gama (γ) (que faz parte
ríodo de eritropoiese operada no saco vitelino, é da Hb F) é vestigial. (ver adiante)
mais tarde substituída pela hemoglobina fetal (he- Em resumo, em situações de normalidade a
moglobina F- com cadeias de globinas; 2 alfa e 2 proporção das várias hemoglobinas, numa pers-
gama) na fase de eritropoiese hepática. Durante o pectiva cronológica, é a seguinte: no recém-nasci-
terceiro trimestre da gestação, diminuindo a pro- do: Hb F 50-88% e Hb A1 20-40%; neste momento
dução de cadeias gama, estas são substituídas por é excepcional a presença de Hb A2. Por volta dos
cadeias beta, do que resulta a hemoglobina A, com 5 meses encontra-se 3-15% de Hb F, no segundo
2 cadeias alfa (α) e 2 cadeias beta (β). Nos casos de semestre cerca de 2,9%, no segundo ano 1,8% , no
gravidez decorrendo com diabetes materna poderá terceiro ano 1%, e, no quarto ano 0,8%. À medida
verificar-se atraso na produção de cadeias beta. Os que a Hb desce, verifica-se aumento progressivo
CAPÍTULO 135 Hematopoíese 651

de Hb A1 em cada eritrócito. Por volta do quarto Salienta-se que somente os bastonetes e os neu-
ano, a composição hemoglobínica do indivíduo é trófilos maduros têm capacidade funcional plena
a seguinte: Hb A1 – 96 a 98%; Hb A2 – 1 a 3%; Hb com respeito à fagocitose, quimiotaxia e destruição
F – vestigial. bacteriana.
Recorde-se também a designação das cadeias Quando se verifica aumento do número de
de globinas nas várias hemoglobinas normais bastonetes diz-se que há “desvio à esquerda”.
segundo o critério cronológico atrás definido:
todas as Hb normais têm 2 cadeias alfa; Hb A1: α2 Monocitopoiese
e β2 – (fórmula: α2 β2); a Hb F possui 2 cadeias α
e 2 γ – (fórmula: α2 γ2); a Hb A2 possui duas A primeira célula identificável “destinada” ao
cadeias α e duas cadeias δ – (fórmula: α2 δ2). desenvolvimento de monócitos é o monoblasto.
Este evolui para promonócito e, posteriormente,
Linfocitopoiese para monócito maduro. O monócito maduro pou-
co depois de ser formado, entra em circulação,
A primeira célula morfologicamente reconhecível onde permanece três dias. Posteriormente migra
como pertencente à linhagem linfóide é o linfo- para os tecidos, não voltando à corrente sanguínea.
blasto. Este divide-se 2 a 3 vezes para formar o
promielócito. O promielócito diferencia-se em lin- Trombocitopoiese
fócito B ou T maduro.
A diferenciação do progenitor B até ao estádio A primeira célula identificável que dá origem às
de linfócito maduro completa-se na medula óssea plaquetas é o megacarioblasto. Este duplica o seu
com migração ulterior para órgãos linfáticos (gân- núcleo e citoplasma até 7 vezes, sem que ocorra
glios linfáticos, baço e amígdalas). Somente ocorre divisão celular. Forma, assim, o megacariócito.
diferenciação em plasmócito ou célula B de me- O megacariócito é uma célula gigante, a qual
mória após exposição antigénica. se identifica como célula maior num aspirado de
A diferenciação do progenitor T até ao estádio medula; é multinucleada, sendo o seu conteúdo
de linfócito T precursor também ocorre na medula em DNA superior, cerca de 15 a 30 vezes, ao con-
óssea. Esta célula desloca-se mais tarde para o timo teúdo de DNA numa célula em geral.
onde prossegue a sua diferenciação. As plaquetas derivam dos megacariócitos, for-
mando-se por invaginação da respectiva mem-
Granulocitopoiese brana celular com ulterior fragmentação do cito-
plasma do qual se destacam.
A granulocitopoiese corresponde ao processo de Tal como os reticulócitos, não têm núcleo, sendo
desenvolvimento dos glóbulos brancos granulóci- o tempo de vida médio em circulação, também, de
tos – neutrófilos, eosinófilos e basófilos. sete a dez dias.
O primeiro precursor identificável ou elemento As plaquetas aderem ao endotélio e superfície
diferenciado no sentido da granulocitopoiese é o subendotelial lesados com o concurso de receptores,
mieloblasto. Seguem-se os estádios de promie- factor de von Willebrand e fibrinogénio; para o
lócito, mielócito, metamielócito e bastonete (núcleo processo de adesão e agregação também concorrem
em crescente ou em U). grânulos específicos libertados pelas mesmas pla-
A maturação dos neutrófilos dura aproxi- quetas.
madamente sete a oito dias. As células maduras
permanecem na medula durante cinco dias, sendo Apoptose
posteriormente libertadas para a circulação san-
guínea. Após circularem durante cerca de seis A hematopoiese é um processo contínuo ao longo
horas, migram para os tecidos periféricos onde da vida. A produção de células sanguíneas ma-
sobrevivem dois a cinco dias (nesta fase maturati- duras é equivalente à sua perda. Este processo é
va verifica-se segmentação do núcleo: polisseg- regulado por mecanismos complexos. A divisão
mentos ou lobos); é o granulócito segmentado. e diferenciação celulares durante a hematopoiese
652 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

136
equilibra-se com o processo da chamada apoptose
(morte celular programada), para garantir a nor-
malidade funcional do organismo. Durante a apo-
ptose há diminuição do volume celular, alteração
do citosqueleto com mudança na conformação da
membrana, condensação da cromatina, degrada-
ção do DNA, aparecimento de corpos apoptóticos SÍNDROMAS HEMATOLÓGICAS
e fagocitose rápida dos mesmos para evitar a in-
flamação. Quando a apoptose falha desenvolve-se EM IDADE PEDIÁTRICA
um estádio leucémico. (Parte XVII)
João M. Videira Amaral
Volume sanguíneo (Volémia)

O valor da volémia no recém-nascido de termo e


pré-termo é respectivamente 85 mL/kg e 90 Sistematização
mL/kg. Após o 6º mês de vida extra-uterina são
atingidos valores semelhantes aos de crianças Em clínica pediátrica os problemas hematológicos
maiores e adultos: 75-77 mL/kg. mais frequentes dizem respeito, essencialmente, a
alterações dos elementos figurados (anemia, poli-
BIBLIOGRAFIA citémia, neutropénia, trombocitopénia) e a alte-
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011 rações da coagulação (coagulopatia e fenómenos
Kaushansky K. Lineage-specific hematopoietic growth factors. trombóticos).
NEJM 2006; 354: 2034-2045 Cabe igualmente uma referência às anomalias
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). da função das plaquetas, abordadas em capítulo
Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier especial.
Saunders, 2011 O Quadro 1, cujo conteúdo releva a importân-
Marcdante KJ, Kliegman RM, Jenson HB, Behrman RE(eds). cia da anamnese e do exame objectivo, sintetiza as
Nelson Essentials of Pediatrics.Philadelphia: Elsevier manifestações clínicas que determinarão os exa-
Saunders, 2011 mes complementares a realizar para se obter o
McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of diagnóstico definitivo.
Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010 Nesta perspectiva, torna-se fundamental ter em
Orkin SH, Nathan DG (eds). Hematology of Infancy and consideração os principais valores de referência he-
Childhood. Philadelphia: Saunders, 1998 matológicos do recém-nascido, criança e adolescente.
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Valores de referência e parâmetros
Medical , 2011 hematimétricos

Os Quadros 2 e 3 sintetizam alguns valores de


referência dizendo respeito à série vermelha, pa-
râmetros hematimétricos relacionados, e à série
branca. Os aspectos referentes a plaquetas e fac-
tores de coagulação são abordados no âmbito dos
respectivos capítulos.
Seguidamente é estabelecida a definição de
determinados parâmetros hematimétricos que
permitem classificar as anemias, (abordadas no
próximo capítulo):
– O volume globular médio (VGM) medido em
fentolitros (1 fL= 1μ3) obtém-se pelo quociente:
CAPÍTULO 136 Síndromas hematológicas em idade pediátrica 653

QUADRO 1 – Síndromas hematológicas

Síndroma Manifestações clínicas Entidades


Anemia Palidez, icterícia, astenia, insuficiência Carência em ferro, ácido fólico, vitamina B12,
cardíaca anemia hemolítica
Policitémia Cianose, irritabilidade, convulsões, cefa- Cardiopatia cianótica, mucoviscidose,
leia, icterícia, acidente vascular cerebral RNMD
Neutropénia Febre, estomatite, faringite,linfadenopatia, Neutropénia congénita ou adquirida
bacteriémia (por fármacos), leucémia
Trombocitopénia Equimoses,petéquias,epistaxe, HGI PTI, leucémia
Pancitopénia Infecção, hemorragias, anemia Aplasia medular, LHH
Coagulopatia e Trombose venosa, embolia pulmonar, Lúpus, défice de factores de coagulação
Trombose hematoma, hemorragias das mucosas, (antitrombina III, proteínas C,S), factores
hemartrose anómalos (V Leiden, protrombina 20210),
hemofilia, doença de Von Willebrand, CID,
doença hemorrágica do RN
Abreviaturas: RNMD: recém-nascido de mãe diabética; HGI: hemorragia gastrintestinal; PTI: púrpura trombocitopénica idiopática; CID: coagulação intravascular disseminada; LHH: linfo-
histiocitose hemofagocitária(primária/genética ou secundária/adquirida).

QUADRO 2 – Valores de referência da série vermelha e hematimetria

Hb (g/dL) Ht (%) VGM (fL) CHGM (% ou g/dl) Rt (%)


Criança Média Limites Média Limites Mínimo Média
Cordão 16.8 13.7–20.1 55 45-65 110 31-37 5.0
umbilical
2 semanas 16.5 13.0–20.0 50 42–66 1.0
3 meses 12.0 9.5–14.5 36 31–41 25-35 1.0
6 meses – 6 anos 12.0 10.5–14.0 37 33-42 70-74 25-30 1.0
7 – 12 anos 13.0 11.0–16.0 38 34-40 76-80 25-33 1.0
Adulto
Sexo feminino 14.0 12.0–16.0 42 37–47 80 26-34 1.6
Sexo masculino 16.0 14.0–18.0 47 42-52 80 26-34 1.6

Valores de referência de hemoglobina (Hb), hematócrito (Ht), volume globular médio (VGM) em fentolitros (fL), concentração média de hemoglobina globular (CHGM) em % ou g/dl, e reti-
culócitos (Rt) em diferentes idades.
(Adaptado de Rudolph CD et al, 2011)

Ht (volume ocupado pelos eritrócitos ou Ao contrário da CHGM, varia não somente em


hematócrito) x 10 / nº de eritrócitos em milhões função do conteúdo de Hb por unidade de volu-
por mm3. me, mas também em função do volume globular:
– A concentração de hemoglobina globular quanto maior o eritrócito, maior o conteúdo de Hb
média (CHGM), em % ou g/dL, obtém-se pelo em concentração igual.
quociente: – O valor da contagem de reticulócitos indica a
Hb (em g/dL) x 100 / Ht (em %). presença de células da série vermelha formadas nas
-A hemoglobina globular média (HGM), ex- 48 horas anteriores à colheita de sangue; corres-
pressa em picogramas (pg), corresponde ao peso ponde a cerca de 0,5-1,5% do total de eritrócitos
médio de Hb contido em cada eritrócito; obtém-se (50.000-75.000/mm3) em situações de normalidade.
pelo quociente: O chamado índice de produção de reticulóci-
Hb (em g/dL) / nº de eritrócitos em milhões tos (IPR) calcula-se através da fórmula:
por mm3. Nº de reticulócitos por mil eritrócitos x Hb (em
654 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 3 – Valores de referência de leucócitos em diferentes idades

Leucócitos/mm3 Neutrófilos Linfócitos• Eosinófilos Monócitos


(%) (%) (%) (%)
Criança Média Limites Média Limites Média Média Média
Cordão 18000 9000-30000 61 40-80 31 2 6
umbilical
2 semanas 12000 5000-21000 40 48 3 9
3 meses 12000 6000-18000 30 63 2 5
6 meses – 6 anos 10000 6000-15000 45 48 2 5
7 – 12 anos 8000 4500-13500 55 38 2 5
Adulto
Sexo feminino 7500 5000-10000 55 35–70 35 3 7
Sexo masculino 16,0 5000-10000 55 35-70 35 3 7

A presença de linfócitos indiferenciados (grandes, espiculados, polimorfos, hiperbasófilos)
Adaptado de IM Hann et al, e de A Galdó et al (bibliografia). no sangue periférico na proporção de > 4% dos leucócitos totais sugere estimulação por
processo infeccioso por vírus (LUC ou Lymphocyte Undifferentiated Cells).

g/dL) observada / Hb normal x 0,5. As células endoteliais intactas inibem a adesão


O valor de IPR > 3 sugere hemorragia ou das plaquetas através da produção de NO e pros-
hemólise. (Capítulo 137) taglandina I , que também tem efeito vasodilata-
– Considerando a relação células nucleadas / dor. As referidas células produzem igualmente
100 leucócitos, o valor é zero a partir dos 3 meses, factores teciduais (FT), inibidor de FT(TFPI), acti-
variando entre 3 e 10 pelos 15 dias de vida, sendo vador do plasminogénio tecidual(t-PA), antitrom-
~7 no sangue do cordão. bina (AT), trombomodulina, prostaciclina, assim
– O índice RDW (range deviation width), ou como a proteína de superfície para a activação da
índice de dispersão das dimensões eritrocitárias, é proteína C(PC).
utilizado para detectar anisocitose (normal entre Em condições de normalidade é mantido a flui-
11,5 e 14,5%). Deverá estabelecer-se a relação entre dez sanguínea mediante equilíbrio acção-inibição
VGM e RDW. do sistema hemostático.
– O índice de Mentzer obtém-se através do No caso de formação de coágulo na sequência
quociente: de alteração da superfície vascular, existem acções
VGM/eritrócitos (em milhões/mm3). destinadas a evitar a propagação do trombo e a
O valor > 13,5 sugere anemia por carência de possibilitar o seu desaparecimento uma vez resta-
ferro; < 11,5 sugere traço talassémico; valor entre belecida a continuidade do endotélio vascular.
11,5 - 13,5: inconclusivo. Ainda que os distintos mecanismos estejam
– O estudo do esfregaço do sangue periférico perfeitamente ligados, sob o ponto de vista de com-
permite avaliar a morfologia eritrocitária. preensão didáctica é possível a subdivisão em
hemostase primária, hemostase secundária/coagu-
Hemostase lação, e fibrinólise.
A chamada hemostase primária tem como
A hemostase* no sentido lato é um mecanismo função fundamental a formação do rolhão de pla-
fisiológico complexo destinado a garantir a fluidez quetas ou “tampão” hemostático que se gera rapi-
do sangue e a impedir a sua saída do leito vascular damente (em 3-5 minutos), especialmente eficaz
em caso de lesão vascular. em vasos de pequeno calibre. Especificando, são
Este processo dinâmico implica a interacção das então verificados os eventos a seguir referidos.
plaquetas, da parede vascular, de determinadas Após ruptura da superfície interna do vaso surge
proteínas plasmáticas (factores de coagulação e
inibidores, de produção hepática ou endotelial) e Nota: *Homeostase (diferente de hemostase) significa tendência do or-
um sistema fibrinolítico. ganismo para manter constantes as condições fisiológicas.
CAPÍTULO 136 Síndromas hematológicas em idade pediátrica 655

vasoconstrição para deter a saída de sangue do vaso;


Lesão Vascular
neste processo de vasoconstrição participam as pla-
quetas mediante a libertação de potentes vasocons-
tritores(designadamente serotonina e tromboxano
A2). Por outro lado, as células endoteliais produzem
factor de von Willebrand (FvW), necessário para a
adesão das plaquetas à superfície vascular lesada. Colagénio
Após a adesão, as plaquetas são activadas con-
tinuando a libertar grânulos contendo ADP, trom-
boxano A2 e outras proteínas, o que leva à agre- Plaquetas Via Via
gação das mesmas. Uma das proteínas da matriz intrínseca extrínseca
subendotelial contendo colagénio, libertadas pela
lesão vascular – o factor tecidual ou FT – liga-se às Adesão
plaquetas e ao factor VII.
A partir desta fase é activada a chamada casca-
ta da coagulação, a que corresponde a fase da Libertação Trombina
hemostase secundária em que os factores de coa- Factor 3
gulação, designados em números romanos, são plaquetário
activados. As Figuras 1 e 2 descrevem de modo
ADP Adrenalina Coágulo
conciso o processo da hemostase (primária e se-
cundária), o qual pode ser compreendido pela lei-
tura deste texto. O Quadro 4 discrimina a desig- Agregação Agregação
nação dos factores de coagulação. reversível irreversível
A coagulação é, pois, a transformação duma
proteína solúvel (fibrinogénio) numa proteína
FIG. 1
insolúvel (fibrina), o que implica que a trombina –
resultante da transformação da protrombina, acti- Hemostase primária: participação fundamental das plaquetas
vada pelo factor 3 plaquetário e pelo cálcio – actue em número e função, e dos microvasos.
sobre o fibrinogénio.
Neste processo actuam os chamados factores QUADRO 4 – Factores da coagulação
intrínsecos (via intrínseca ou endógena), os fac-
tores extrínsecos (via extrínseca ou exógena) e I Fibrinogénio
factores comuns às duas vias. II Protrombina
Virtualmente todas as proteínas procoagulantes III Tromboplastina, protrombinase, tromboplastina
estão em equilíbrio com uma proteína anticoagu- tecidual
lante que regula ou inibe a função procoagulante. 3 PL Factor 3 plaquetário
Há 4 anticoagulantes naturais principais que IV Cálcio
regulam a extensão do processo de coagulação: V Pró-acelerina, factor lábil
antitrombina III(AT-III), proteína C, proteína S, e o VII Pró-convertina, factor estável
TFPI/tissue factor pathway inhibitor ou inibidor da VIII Globulina anti-hemofílica ou factor anti-hemo-
via dos factores teciduais . fílico
A AT-III é um inibidor das proteases leuco- IX Componente tromboplastínico do plasma (PTC)
citárias que regula predominantemente o factor – factor de Christmas
Xa (X activado); em menor grau são igualmente X Factor de Stuart-Power
inibidores os factores IXa, XIa, e XIIa. XI Antecedente tromboplastínico do plasma (PTA)
Quando a trombina no sangue circulante con- XII Factor de Hageman
tacta com o endotélio intacto, liga-se à trombo- XIII Factor estabilizador da fibrina
modulina, o seu receptor endotelial. O complexo Nota: os factores(F) activados são designados pela adição da letra (a), por ex. IIa.

trombina-trombomodulina actua sobre a proteína


656 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Via intrínseca Via extrínseca

XII
Pré-
aPTT Calicreína PT

XIIa
VII Factor Tecidual
IX (Tromboplastina)
XI XIa

X
VIII IXa
Trombina
(IIa) VIIIa VIIIa
Ca2+ Ca2+
Xa

Ca2+
V Va XIII
Trombina Ca2+
(IIa)
XIIIa
II IIa
Protrombina Trombina

PT& a PTT
Fibrinogénio (I) Fibrina (Ia)

FIG. 2
Hemostase secundária (Consultar texto e Quadro 2): participação fundamental dos factores de coagulação.

C que passará à forma activada. Em presença do No fígado os complexos de factores de coagu-


cofactor proteína S, a proteína C activada pro- lação activados são desmembrados e novas pro-
move a proteólise e inactivação do factor Va e fac- teínas pró- e anticoagulantes são sintetizadas para
tor VIIIa. O factor Va, uma vez inactivado é, de manter o equilíbrio do processo descrito.
facto, um anticoagulante funcional que inibe a
coagulação. O inibidor final é o TFPI, que impede Alterações da hemostase
a activação do factor X pelo factor VII e factor teci- e semiologia clínica
dual (TF), e desvia o local de activação do TF e do
factor VII para o factor IX. A alteração de qualquer dos componentes deste
Uma vez formado o coágulo fibrina/plaque- complexo sistema pode ocasionar uma doença
tas, o sistema fibrinolítico limita a sua extensão e hemorrágica ou trombótica.
provoca a lise do mesmo (fibrinólise) restabele- A doença hemorrágica pode resultar de
cendo a integridade vascular. A plasmina, gerada afecção dos vasos, das plaquetas ou dos factores
a partir do plasminogénio, degrada o coágulo de de coagulação.
fibrina, do que resulta a formação de produtos de As doenças dos vasos e das plaquetas podem
degradação da referida fibrina. surgir associadas e, sob o ponto de vista semio-
A via fibrinolítica é regulada pelos inibidores lógico, ambas se manifestam predominantemente
do activador do plasminogénio e pela alfa-2 anti- ao nível dos pequenos vasos; sob o ponto de vista
plasmina. clínico-etiopatogénico integram, respectivamente,
CAPÍTULO 136 Síndromas hematológicas em idade pediátrica 657

as chamadas púrpuras vasculares (vasculopatias) destas situações é feita nas Partes sobre Reuma-
e púrpuras plaquetares. Ambas traduzem ano- tologia e Osteocondrodisplasias.
malias da hemostase primária. A designação de Como exemplos de púrpuras de causa hema-
“púrpura” deriva da cor verificada ao nível da tológica citam-se as situações de trombocitopénia,
pele. primárias ou secundárias, abordadas em capítulo
As púrpuras vásculo-plaquetárias manifes- especial.
tam-se por alterações na coloração da pele ou mu- O défice congénito ou adquirido de determi-
cosas, secundárias ao extravasamento de eritróci- nada proteína procoagulante, originando também
tos nesses locais. Consideram-se petéquias as doença hemorrágica, integra as chamadas coagu-
lesões hemorrágicas minúsculas, menores que 2 lopatias ou anomalias da coagulação, traduzindo
mm, ao nível da derme; e equimoses as maiores alteração da hemostase secundária; manifestam-
que 2 mm, ao nível da hipoderme. -se predominantemente ao nível de grandes
Poderão surgir igualmente epistaxes, gengivor- vasos. Como tradução clínica, surgem os chama-
ragias, hematúria, hematemeses, melenas, etc.. dos hematomas (derrames sanguíneos no tecido
As púrpuras de causa vascular (não hema- celular subcutâno e massas musculares), sufusões
tológica) traduzem-se por petéquias predominan- (derrames sanguíneos em larga superfície do teci-
temente nos membros inferiores, (muitas vezes do celular subcutâneo), hemartroses (hemorragias
agravadas pela posição ortostática) e ou exantema na cavidade articular) e/ou hemorragias viscerais
eritemato-papuloso com sede preferente na super- e intracavitárias.
fície de extensão dos membros inferiores (mas Como exemplos citam-se as coagulopatias pri-
sem poupar outras regiões), de distribuição simé- márias (hemofilia,défice de função plaquetária e
trica nalgumas formas clínicas. doença de von Willebrand) e as secundárias (coag-
Como exemplos de púrpuras de causa vascu- ulação intravascular disseminada, ingestão de fár-
lar-não hematológica citam-se a vasculite de causa macos anticoagulantes, anticonvulsantes maternos,
imunoalérgica (por ex. púrpura de Schonlein- insuficiência hepática, insuficiência renal, doença
Henoch), a associada a lesões traumáticas (por hemorrágica do recém-nascido por défice de vita-
exemplo síndroma da criança maltratada), a asso- mina K, etc.).
ciada a síndroma de Ehlers-Danlos, e a telangiecta- De salientar que nas doenças adquiridas da
sia, angiodisplasia, varizes, etc.. A abordagem hemostase há frequentemente problemas múlti-

QUADRO 5 – Avaliação laboratorial nas alterações da hemostase

• Contagem de plaquetas → Número e morfologia das plaquetas → 150.000-400.000/mmc


• Fibrinogénio → Fase 3 da coagulação → 200-400 mg/dL
• Tempo de hemorragia (TH) → Qualidade/função das plaquetas → até 8 minutos
•Tempo de coagulação (TC) → Vias intrínseca e comum → 3-10 minutos
• Tempo de tromboplastina parcial activada (PTTa) → idem (factores VIII, IX, X, XI, XII) → 40-50 segundos
• Tempo de protrombina (PT) → idem (factores V, VII, X,protrombina,fibrinogénio) → 12-15 segundos (#)
• Tempo de trombina → Fase 3 da coagulação → 10-12 segundos
• Tempo de lise da euglobina → Acção da plasmina → 90-300 minutos
• Produtos de degradação do fibrinogénio → Actividade fibrinolítica → até 6,5 μg/mL
Na púrpura trombocitopénica:TH → > ; Plaquetas → < ; PTT → N; TP → N
Na púrpura não trombocitopénica: TH → N ou > ; Plaquetas → N; PTT → N; TP → N
Na coagulopatia primária: TH → N; Plaquetas → N; PTT → >; TP → N ou >

(#) O PT é a prova de coagulação utilizada para avaliar a anticoagulação com varfarina. De acordo com recomendações actuais, deve utilizar-se o chamado INR (International Normalized Ratio)
que permite a comparação do PT utilizando larga variedade de reagentes ou instrumentos, e de determinações laboratoriais. No âmbito do tratamento padronizado da doença trombótica o valor
a obter para o INR é 2,0-3,0; nos casos de forma homozigótica do défice de proteína C, ou de doentes com próteses valvulares o valor a atingir para o INR é 3,0-4,0. (ver Capítulo
Hipercoagulabilidade e doença trombótica).
> = aumentado; < = diminuído; N = normal
Nota: 1) PT e PTT são siglas em inglês, correspondentes às abreviaturas em português, respectivamente TP e TTP. 2) Para a compreensão dos parâmetros a avaliar sugere-se a revisão da Figura 2
(relação entre parâmetros a medir e factores implicados).
658 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

137
plos associados. No caso de infecção sistémica
com choque e acidose concomitantes verifica-se
activação da coagulação e da fibrinólise com im-
possibilidade de garantir a função hemostática
normal. No caso de septicémia grave verifica-se
consumo de factores procoagulantes e de antico-
agulantes com consequente desequilíbrio da he- Anemias – Generalidades
mostase pendendo, ou para hemorragia excessiva,
ou para coagulação excessiva. João M. Videira Amaral
O défice congénito ou adquirido de anticoagu-
lante predispoe a trombose ou doença trombóti-
ca, entidade que é abordada no capítulo 153.
O Quadro 5 resume os exames complementares Definição
fundamentais para a avaliação do processo de
hemostase com menção, respectivamente, das A anemia (não uma doença em si, mas manifes-
funções avaliadas e dos valores de referência. (con- tação de vários processos mórbidos) define-se (sob
sultar Figura 2) o ponto de vista quantitativo) como o valor de Hb
inferior ao percentil 5 ou a 2 desvios- padrão (DP)
BIBLIOGRAFIA em relação ao valor médio normal da população
Bain BJ. Diagnosis from the blood smear. NEJM 2005; 353: 498- da mesma idade e do mesmo sexo.
507 Reportando-nos ao capítulo anterior e respec-
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011 tivo Quadro 2, cabe referir que o valor normal de
Christensen RD (ed). Hematological Problems of the Neonate. Hb na data de nascimento é cerca de 17 g/dL,
Philadelphia: Saunders, 2000 diminuindo depois até atingir o valor mínimo de
Figueira F, Alves JGB, Bacelar CH. Manual de Diagnóstico 11 g/dL, aumentando depois até cerca da idade de
Diferencial em Pediatria. Rio de Janeiro: Guanabara 1 ano, atingindo ~12 g/dL; depois, o valor vai
Koogan AS, 2005 aumentando até à puberdade, sendo que na ado-
Freeman HR, Ramanan AV. Review of haemophagocytic lescência os valores de Hb são mais elevados no
limphohistiocytosis. Arch Dis Child 2011; 96:688-693 sexo masculino do que no feminino devido à
Galdó A, Cruz M. Exploracion Clinica en Pediatria. Barcelona: acção dos androgénios.
Editorial Jims,1999 Sob o ponto de vista funcional é importante re-
Hann IM, Gibson BES, Letsky EA. Fetal and Neonatal ferir que pode haver situações de anemia com valo-
Haematology. London : Baillere Tindall, 2001 res de Hb dentro dos limites da normalidade: é o
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson caso das cardiopatias cianóticas ou de doenças pul-
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, monares crónicas em que a Hb tem elevada afini-
2011 dade para o oxigénio, isto é, menor capacidade de
McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of libertação de oxigénio ao nível dos tecidos; de
Pediatrics. Madrid: Panamericana,2010 facto,a causa do défice de oxigenação tecidual (cri-
Rudolph CD, Rudolph AM, et al (eds). Rudolph´s Pediatrics. tério funcional) nos últimos exemplos citados, é
New York: McGraw Hill Medical, 2011 diversa da que resulta das situações associadas a
Hb deficitária (critério de definição quantitativa).
Na prática, de acordo com a Organização Mun-
dial de Saúde, e excluído o recém-nascido (ver
Parte XXXI) são estabelecidos os seguintes critérios
de definição de anemia:
– Entre 7 meses e 5 anos: Hb < 11 g/dL
– Entre 6 e 9 anos: Hb < 11,5 g/dL
– Adolescentes: Hb < 12 g/dL (sexo feminino)
e Hb < 12,5 g/dL (sexo masculino)
CAPÍTULO 137 Anemias – Generalidades 659

Adaptação fisiológica à anemia Nos casos em que se verifica resposta reticulo-


citária, esta associa-se, em geral, a policromatofilia
Embora a redução do teor de Hb circulante dimi- (eritrócitos corados com 2 ou mais corantes).
nua a capacidade de transporte do oxigénio, dum Os receptores de transferrina também aumen-
modo geral somente surge palidez da pele e tam no sangue nalgumas situações tais como ane-
mucosas quando a Hb atinge valor < 7-8 g/dL. mia por carência de ferro, eritropoiese ineficaz
Verifica-se, pois, um fenómeno de adaptação (talassémia, anemia megaloblástica); tal não acon-
compensatória do organismo, traduzido nomea- tece nos casos de medula hipoproliferativa.
damente por incremento do débito cardíaco, e da
libertação do oxigénio ligado à Hb no sentido de Diagnóstico diferencial
maior oferta daquele (O2) aos tecidos de órgãos
vitais, explicada pelo aumento da concentração de Dada a grande variedade de anemias com meca-
difosfoglicerato eritrocitário (2,3-DPG) com conse- nismos etiopatogénicos diversos, antes da abor-
quente desvio para a direita da curva de dissoci- dagem de entidades específicas nos capítulos se-
ação do oxigénio. guintes, será importante apresentar a respectiva
Outro fenómeno de adaptação é a elevação do classificação (Quadro 1), valorizando para o dia-
nível de eritropoietina (EPO), que contribui para gnóstico diferencial os parâmetros hematimétri-
aumentar a produção de eritrócitos (eritropoiese), cos que fazem parte do hemograma, já referidos
evidenciada no sangue periférico pelo aumento de no capítulo anterior, e excluíndo também o perío-
reticulócitos circulantes (>IPR ou índice de pro- do de recém-nascido.
dução reticulocitária). Salienta-se, no entanto, que Eis, então, a interpretação dos parâmetros:
nalguns tipos de anemia não se verifica tal estim- – Microcitose: VGM < 75 fL
ulação de EPO. – Macrocitose: VGM > 100 fL

QUADRO 1 – Classificação etiopatogénica da anemia

IPR <2
a) Microcítica, hipocrómica
Anemia ferropénica,Talassémia, Doença inflamatória crónica, Carência em cobre,
Intoxicação pelo chumbo, Intoxicação pelo alumínio, Anemia sideroblástica, Hemoglobina CC, Piropoiquilocitose here-
ditária, etc..
b) Normocítica, normocrómica
Doença infiltrativa maligna da medula óssea, Aplasia/hipoplasia da medula, Infecção por vírus da imunodeficiência
humana (VIH), Síndroma hemofagocitária, Hemorragia recente,Doença renal crónica, Doença inflamatória crónica
(conectivites, doença inflamatória intestinal), Eritroblastopénia transitória , etc..
c) Macrocítica
Carência em ácido fólico (hemólise crónica, má-nutrição, má absorção,antimetabolitos, fenitoína, trimetoprim-sulfame-
toxazol), Carência em vitamina B12 (regimes vegetarianos, anemia perniciosa, ressecção do íleo, transporte intestinal anó-
malo, défice congénito de factor intrínseco, etc.), Hipotiroidismo, Acidúria orótica, Doença crónica hepática, Síndroma de
Lesch-Nyhan, Síndroma de Down, Insuficiência medular (mielodisplasia, anemia de Fanconi, anemia aplástica, etc.),
Fármacos (álcool, zidovudina, etc.).
IPR >3
a) Hemorragia
b) Doença hemolítica
Hemoglobinopatia (Hb SS,S-C, S-β talassémia), Enzimopatia (défice da desidrogenase da glucose 6- fosfato/G6PD, défice
da cinase do piruvato/PK), Membranopatia (esferocitose hereditária, eliptocitose, ovalocitose), Anemia hemolítica de
causa imune (autoimune, isoimune, provocada por fármacos), Outras causas (síndroma hemolítica urémica, púrpura
trombocitopénica trombótica, coagulação intravascular disseminada), Abetalipoproteinémia, Doença de Wilson, Carência
em vitamina E, Queimaduras.
660 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

– Hipocromia: CHGM < 25% (ou g/dL) BIBLIOGRAFIA


– IPR > 3: sugestivo de produção eritrocitária au- Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011
mentada por hemólise ou por perda de sangue; Greer JP, Foerster J, Lukens J, et al(eds). Wintrobe´s Clinical
– IPR < 2: sugestivo de produção eritrocitária Hematology. Baltimore: Williams & Wilkins, 2004
diminuída ou ineficaz relativamente ao grau Hoffman R, Benz EJ, Shattil SJ, et al (eds). Hematology: Basic
de anemia; poderá também explicar-se por Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier Churchill
destruição de reticulócitos na medula por Livingstone, 2007
anticorpos, por doença da medula óssea ou Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
por atraso na resposta da medula óssea face Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
a situações de anemia aguda. Valores entre 2 2011
e 3 podem ser considerados inconclusivos. Nathan DG, Orkin SH, Ginsburg O, Look AT. Nathan and
– Índice de Mentzer > 13,5 sugere anemia fer- Oski´s Hematology of Infancy and Childhood.
ropénica; Philadelphia: Saunders, 2003
– Índice de Mentzer < 11,5 sugere traço talas- Palminha JM, Carrilho EM (eds). Orientação Diagnóstica em
sémico; valor entre 11,5-13,5: inconclusivo. Pediatria. Lisboa:Lidel, 2003
– RDW normal (11,5 - 14,5%) pode surgir no Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
traço talassémico, hemorragia aguda e ane- AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
mia aplástica. Medical , 2011
– RDW elevado pode surgir em anemia fer-
ropénica, anemia hemolítica, megaloblástica,
CID, SHU.
A situação de anemia hipocrómica microcítica
traduz deficiente produção de Hb; como causas
mais importantes citam-se a anemia por carência
de ferro (ferropénica ou ferripriva) e talassémia
(forma de hemoglobinopatia).
A situação de anemia macrocítica é, em geral,
causada por carência de vitamina B12 e ácido fólico.
A situação de anemia normocítica associa-se,
em geral, a doença sistémica com consequente
défice de produção eritrocitária na medula óssea.
Como se pode depreender, os parâmetros labo-
ratoriais devem ser interpretados em função da
clínica e não isoladamente. (Capítulo 7)

Nos capítulos seguintes são abordadas as situ-


ações clínicas do foro hematológico com que o pedi-
atra e o clínico geral mais frequentemente se con-
frontam. Realça-se a elevada prevalência da anemia
ferropénica cuja prevenção e tratamento são da
competência do pediatra (não subespecialista em
hematologia), em colaboração com o clínico geral;
outras, no entanto, obrigarão a internamento hospi-
talar, sendo importante que o clínico exercendo
actividade em ambulatório esteja sensibilizado para
a respectiva identificação e encaminhamento em
tempo oportuno para centros especializados.
O tópico Leucemias foi abordado na Parte
XVII . (Capítulo 129)
CAPÍTULO 138 Anemia ferropénica 661

Metabolismo do ferro

138 Património de ferro


O ferro (Fe) está presente em todas as células
humanas. Graças à capacidade de coexistir em
duas formas estáveis de oxidação (Fe2+ ou ferroso;
ANEMIA FERROPÉNICA Fe3+ ou férrico), desempenha inúmeras funções
vitais como catalizador redox, dando e recebendo
Júlia Galhardo e A. Bessa Almeida electrões de forma reversível.
O organismo de um feto de 1 kg de peso con-
tém cerca de 64 mg de Fe; um recém-nascido com
peso de 3 kg contém aproximadamente entre 70 a
Aspectos epidemiológicos 125 mg/kg deste mineral, e o de um adulto con-
e importância do problema tém cerca de 5 gramas.
Tal património de Fe tem a seguinte dis-
As situações de deficiência (ou carência) em ferro tribuição: maioria (70 a 90%) existe na hemoglobi-
(Fe) constituem a alteração nutricional mais fre- na, cerca de 5 % na mioglobina, e cerca de 15% sob
quente em todo o mundo e a principal causa de a forma de ferritina como depósitos ou reservas.
anemia na criança e no adolescente. Uma pequena proporção (cerca de 0,1%) faz parte
De acordo com dados da Organização Mun- de cofactores de múltiplas enzimas, heme e não
dial de Saúde/ UNICEF (2001), a maioria da po- heme, nomeadamente, oxidases citocrómicas, cata-
pulação apresenta deficiência de ferro, sendo de lases, redutases de ribonucleotídeos e peroxidases.
referir que cerca de um terço (aproximadamente 2 Quando diluído em soluções aquosas, o ião ferroso
biliões de pessoas) sofre de anemia resultante de é rapidamente oxidado em sais férricos insolúveis
tal carência (anemia ferropénica). Na Europa a a pH fisiológico e, por conseguinte, sem utilidade
prevalência deste problema hematológico ronda biológica. Para que a solubilidade possa ser manti-
13% em crianças com menos de 5 anos, e cerca de da, é necessária a sua ligação a agentes proteicos,
10% na idade escolar. quelantes cruciais para o ciclo metabólico.
Durante os primeiros 15 anos de vida é neces- Recorde-se que o composto heme é sintetizado
sária a aquisição diária de 1mg de ferro elementar nas mitocôndrias dos eritroblastos a partir de uma
(o equivalente ao existente em 1mL de eritrócitos) sequência de precursores; o último destes precur-
para suprir as necessidades inerentes ao crescimen- sores é a protoporfirina III à qual se pode ligar o
to e compensar as perdas decorrentes da esfoliação Fe, constituindo-se, assim, o referido heme.
mucocutânea. No intuito de manter um balanço
positivo, e uma vez que a taxa de absorção é de Absorção
apenas 10%, o regime alimentar diário deverá con- O ferro é absorvido principalmente no duodeno e
ter aproximadamente 10 mg deste elemento. jejuno proximal, e tanto mais quanto maior a ca-
Múltiplos estudos demonstraram uma diversi- rência no organismo. Contrariamente, quando as
dade de consequências funcionais decorrentes da reservas estão repletas, o ferro existente nas célu-
carência de Fe no organismo citando-se como prin- las da mucosa é devolvido ao lume através da
cipais as seguintes: hipodesenvolvimento cogniti- descamação. Nenhum órgão tem como função a
vo, dificuldades na aprendizagem e na aquisição excreção deste elemento, sendo a absorção a única
de competências psicomotoras e sensoriais, forma fisiológica de ajustar a homeostase.
diminuição da força muscular, compromisso do Admite-se que a absorção do ferro seja com-
processo de regulação térmica, diversos tipos e participada, pelo menos, por cinco reguladores
graus de imunodeficiência com repercussão nos fisiológicos:
macrófagos, na fagocitose, nas células T, nas inter- 1 – o conteúdo em Fe no regime alimentar;
leucinas, e na virulência de agentes patogénicos após uma refeição rica em ferro, a acumulação
intracelulares. intracelular diminui a taxa de absorção subse-
662 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

quente, independentemente da existência de defi- O Fe-não heme está presente nos alimentos de
ciência sistémica; origem vegetal, nos ovos e nos suplementos me-
2 – a depleção dos depósitos; quando tal se dicinais, sendo que, na passagem pelo estômago,
verifica, existe capacidade de aumentar 2 a 3 vezes a diminuição do pH reduz a forma férrica a fer-
a taxa de absorção; admite-se, efectivamente, que rosa, mais eficazmente absorvida. Assim, compos-
a saturação da transferrina interfira com os locais tos como o ácido ascórbico, o ácido cítrico e os
de ligação do ferro nos enterócitos duodenais em aminoácidos da alimentação facilitam a absorção.
desenvolvimento; Inversamente, os fitatos (cereais integrais e legu-
3 – a eritropoiese; nas situações em que esta é minosas), os fosfatos (leite de vaca em natureza),
ineficaz (por exemplo, na talassémia ou na anemia os oxalatos (espinafres e beterraba), os taninos
sideroblástica), e através de mecanismo ainda não (chá, café e chocolate) e os polifenóis (certos legu-
esclarecido, a absorção é altamente incrementada, mes) dificultam a absorção; igualmente, o cálcio, o
mesmo na presença de excesso de ferro no orga- cobalto, o chumbo, o manganês, o estrôncio e o
nismo; no entanto, tal não acontece nos casos de zinco, catiões bivalentes próximos do ferro, ao
destruição periférica, como é o caso das anemias competirem com este pelos mesmos receptores
autoimune ou falciforme. celulares, limitam a sua absorção.
4 e 5 – a hipóxia e a inflamação; a travessia do
Fe pela barreira celular depende ainda da integri- Distribuição
dade da mucosa do intestino delgado superior Aproximadamente 0,1% do ferro corporal total
relacionável com hipóxia e inflamação. circula no plasma ligado a uma beta-2 globulina –
O processo de regulação antes referido[de 2 a a transferrina (ou siderofilina). Esta proteína tem
5] parece fazer-se através duma molécula efectora uma capacidade normal de fixação de 350 mg de
(péptido/hormona) chamada hepcidina ou regu- Fe por 100 ml de soro, variando tal capacidade em
lador negativo da absorção de Fe e da libertação função de determinados estados patológicos (ca-
de Fe dos macrófagos, sendo a expressão desta pacidade aumentada nas anemias ferropénicas,
dependente do estado de repleção ou esgotamen- capacidade normal ou reduzida nas anemias asso-
to dos depósitos de Fe: repleção ou sobrecarga das ciadas a processos inflamatórios). (ver adiente)
reservas em Fe resultam em aumento da A transferrina aumenta a solubilidade do Fe,
expressão da hepcidina; em situações de carência previne a formação de radicais livres nefastos e
ocorre o contrário. amplifica o suprimento celular do mesmo Fe. To-
Por sua vez, o aumento da expressão da hep- davia, a sua grande afinidade para o Fe diminui a
cidina resulta em sequestração celular do Fe, e em eficácia dos quelantes (desferroxamina) utilizados
diminuição do Fe sérico. Na prática prática, a ele- em situações de toxicidade.
vação do nível sérico da hepcidina traduz-se em
diminuição do Fe sérico. Transporte e armazenamento
No que respeita ao mecanismo de absorção, Os complexos Fe-transferrina são captados por
existem dois tipos de ferro, heme e não-heme, os receptores de transferrina localizados nas mem-
quais utilizam receptores e vias de passagem dis- branas celulares de todas as células nucleadas. Na
tintos (Ferro ligado ou não ao composto heme). fase seguinte, os referidos complexos Fe- transfer-
O Fe-heme, presente na carne e no peixe, cons- rina ligam-se a organelos celulares (ligandos, com
titui 5 a 10% do ferro ingerido diariamente nos país- porção intracelular e porção extracelular, mais
es desenvolvidos. De elevada biodisponibilidade (2 abundantes na medula óssea, fígado e baço, e
a 3 vezes superior à do não-heme), é absorvido tanto mais quanto maior a carência daquele).
independentemente do pH local e do ciclo da trans- Ocorrida a ligação, inicia-se um processo de inva-
ferrina (ver adiante), sendo pouco influenciado ginação com formação de vesículas de endocitose
pelas reservas reticuloendoteliais. O cálcio constitui para incorporação do Fe na célula. Quando o pH é
o único factor com interferência negativa. Depois de inferior a 6, a transferrina desliga-se do Fe, fixan-
retirado do complexo pela heme- oxigenase, o ferro do-se avidamente ao respectivo receptor antes de
elementar é libertado no plasma. retornar à circulação.
CAPÍTULO 138 Anemia ferropénica 663

Refira-se que também a porção extracelular reservas, a qual é traduzida pela diminuição pro-
destes ligandos é libertada no plasma pelos reti- gressiva do valor da ferritina sérica e da hemossi-
culócitos em maturação, pelo que o seu dosea- derina nos macrófagos da medula óssea.
mento sérico pode ser correlacionado com a taxa 2 – Numa segunda fase mais tardia e de carên-
de eritropoiese. cia mais acentuada, quando a ferritina atinge valor
Cerca de 70 a 90% do metal contido nos endosso- < 12 μg/L (ou < 12 ng/mL), ocorre a situação de
mas corresponde a uma forma activa (Fe2+), maiori- défice de ferro sérico; esta fase traduz-se por
tariamente para ser incorporado na hemoglobina. O diminuição do Fe sérico (quanto maior a carência
restante é armazenado de modo inactivo (Fe3+) no sis- em Fe, mais este é veiculado para a eritropoiese e
tema reticuloendotelial [células de Kupfer do fígado reservas), diminuição da saturação da transferrina
e macrófagos da medula óssea], incorporado em pro- com aumento consequente da capacidade total de
teínas – a ferritina (lábil e rapidamente acessível) ou fixação do ferro aos receptores da mesma transfer-
a hemossiderina (estável e insolúvel). rina, e aumento da protoporfirina eritrocitária livre.
A ferritina reflecte as reservas de Fe no fígado, Refira-se, a propósito, que normalmente a taxa
baço e medula óssea; apenas é identificável por de transferrina alcança cerca de 0,27g/dL, e aproxi-
microscópio electrónico. [ 1 ng/mL de ferritina <> 8 madamente 1/3 encontra-se saturada com o
mg de Fe das reservas ou depósitos]. A hemosside- chamado ferro sérico (22-184 μg/dL). Costuma
rina pode ser identificada por microscopia óptica denominar-se transferrina não saturada, ou sim-
pela coloração dos eritrócitos (siderócitos) do esfre- plesmente transferrina, a fracção correspondente
gaço obtido por aspiração da medula com “azul da aos restantes 2/3 da proteína sérica. A máxima
Prússia” (reacção de Perls, detectando grânulos na capacidade de transporte ou capacidade total de
periferia dos referidos siderócitos). fixação do ferro (CTFF) corresponde, de facto, à
transferrina total (soma das duas fracções).
Reciclagem O aumento da protoporfirina eritrocitária livre
Por último, os eritrócitos senescentes sofrem um traduz acumulação no sangue de precursores do
processo de destruição (lise) plasmática ou de re- heme, o seu não aproveitamento, e diminuição ou
tenção nos macrófagos esplénicos (hemocaterese). impossibilidade de síntese de Hb.
A hemoglobina e grupos heme livres ligam-se, 3 – Numa terceira fase, de carência extrema de Fe,
respectivamente, à haptoglobina e hemopexina, a que corresponde suprimento deste à medula óssea,
sendo posteriormente transportados até ao fígado. mínimo ou nulo, verifica-se diminuição do VGM e
Após processamento, o complexo Fe2+ – transferrina do conteúdo eritrocitário em Hb (CHGM), atingindo-
é reposto em circulação, para ulterior reutilização. se o estádio caracterizado por produção de eritrócitos
Apesar de muitos dos mecanismos ainda não hipocrómicos e microcíticos, ou seja, de anemia fer-
estarem suficientemente esclarecidos, a captação ropénica. Concomitantemente, diminui também a
de ferro, a produção de globina e a biossíntese do síntese de outras metaloenzimas essenciais.
heme ocorrem, em circunstâncias fisiológicas, de
maneira coordenada. Vias reguladoras subjacen- Ferro no organismo fetal
tes permitem aos precursores eritróides rendibi- Um feto pesando cerca de 1 kg contém cerca de 65
lizar a formação de hemoglobina, sem que para mg de Fe, calculando-se que são incorporados nos
isso sobrevenha um excesso de proteína, iões fér- tecidos fetais cumulativamente ao longo da gravi-
ricos livres ou compostos intermediários deriva- dez, cerca de 65-70 mg/kg. Este elemento provém
dos da protoporfirina, que são tóxicos. exclusivamente da placenta, que o remove da circu-
lação materna independentemente da existência de
Fisiopatologia défice. Necessidades crescentes promovem, não só o
aumento do número de receptores de transferrina
Aspectos gerais neste órgão, mas também uma maior absorção intes-
A carência em ferro no organismo processa- se em tinal na grávida. Parece existir, assim, um sistema
3 fases sucessivas, de gravidade crescente: regulador subjacente à unidade feto-placenta-en-
1 – Numa fase inicial verifica-se a depleção das terócitos, que favorece o ser em desenvolvimento.
664 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Desta forma, a anemia neonatal decorrente de fer- QUADRO 1 – Causas de anemia ferropénica
ropénia materna é pouco frequente, sendo observa- em idade pediátrica
da apenas nos raros casos de carência extrema.
Contudo, estes revestem-se de marcada gravidade Aumento das necessidades fisiológicas
face à imaturidade do tracto gastrintestinal, com Crescimento rápido
passagem ineficaz de nutrientes. Gravidez
O recém-nascido de termo (com > 37 semanas Perdas hemorrágicas
completas) possui reservas de ferro suficientes • Menstrual
para os primeiros 4 a 6 meses. Durante este perío- • Gastrintestinal
do, em virtude do acelerado crescimento e da ex- • Pulmonar
pansão do volume sanguíneo, a sua taxa de uti- • Perinatal
lização é consideravelmente elevada, diminuindo • Urinária
o armazenamento para 50%. Ingestão inadequada
A prematuridade, a restrição do crescimento Prolongamento do aleitamento materno exclusivo
intrauterino e a gemelaridade constituem situa- Diminuição da quantidade e/ou biodisponibilidade
ções de menor acumulação de Fe, com precária Má-absorção
formação de depósitos ou reservas. Por outro lado, Cirurgia gastrintestinal extensa
sendo a velocidade de crescimento pós-natal mais Doença celíaca
acentuada, tais reservas esgotam-se, mais rapida- Infecção parasitária
mente, em cerca 2 a 3 meses. Doença de Crohn
A anemia observada nos primeiros 60 a 90 dias Defeitos congénitos
de uma criança de termo (ou nos primeiros 30 a 60 Atransferrinémia
dias de uma pré-termo) decorre da destruição Transferrina disfuncional
eritrocitária fisiológica e não da deficiência de Hiper-hepcidinémia
ferro. Pelo contrário, este é armazenado e gradual- Adaptado de Rudolph CD, et al, 2011

mente reutilizado.

Factores etiológicos te explicados pelo facto de o primeiro conter


menos cálcio e mais ácido ascórbico e lactoferrina.
Nos países menos desenvolvidos a insuficiência As fórmulas enriquecidas possuem em média 10 a
deste mineral é atribuída maioritariamente a ca- 13mg/L, mas a sua taxa de absorção é inferior a
rências nutricionais, agravadas por perdas san- 5%. Nos primeiros 4 meses a alimentação com
guíneas crónicas motivadas por infecções para- leite materno e fórmulas de fabrico industrial
sitárias gastrintestinais e pela malária. Nas nações preenchem os requisitos de ferro necessários.
industrializadas um regime alimentar pobre em Contudo, crianças que permaneçam em aleita-
ferro constitui o factor etiológico principal . mento exclusivo após os 6 meses de vida apresen-
No Quadro 1 encontram-se enumeradas as tam risco crescente de depleção. Situação semel-
principais causas de anemia ferropénica em idade hante ocorre quando o leite de vaca é introduzido
pediátrica. antes de a criança completar o ano de idade; este,
para além de fornecer uma quantidade insuficien-
Regime alimentar te de ferro, pode provocar perdas hemáticas gas-
Em geral, a anemia ferropénica é mais frequente trentéricas, agravando ainda mais o estado defi-
entre os 6 meses e os 2 a 3 anos de idade, essen- citário.
cialmente por motivos relacionados com o padrão Na idade pré-escolar ocorre uma desacelera-
alimentar. Apesar de o leite humano e o leite de ção do crescimento, e com ela uma diminuição das
vaca terem a mesma concentração deste elemento necessidades de ferro para cerca de metade.
(0,5mg/L), a sua biodisponibilidade é de 50% e A adolescência constitui outra das fases de
10%, respectivamente. Os motivos desta diferença aumento da susceptibilidade, não só pelo incre-
são mal compreendidos, podendo ser parcialmen- mento da massa corporal, mas também pelas ca-
CAPÍTULO 138 Anemia ferropénica 665

racterísticas restritivas de comportamento alimen- Manifestações clínicas


tar inerentes a tal período. As suas consequências
são ainda exacerbadas por possíveis perdas uriná- Os sinais e sintomas de sideropénia variam com a
rias e gastrintestinais decorrentes do exercício de gravidade do défice, sendo habitualmente inespe-
competição e, após a menarca, pelas perdas pe- cíficos e inexistentes nos casos ligeiros. Em situações
riódicas relacionadas com a menstruação (deple- de carência moderada a palidez mucocutânea é o pri-
ção mensal ~ 20mg). meiro sinal, podendo ainda existir irritabilidade, aste-
nia, anorexia e náuseas. Nos casos graves surge pro-
Hemorragia gressivamente dispneia, diaforese, taquicárdia, pal-
O aparelho digestivo é o local hemorrágico mais pitações, sopro sistólico de ejecção e cardiomegália.
frequente, sendo a presença parasitária um dos A anemia pode ainda provocar manifestações
principais motivos de consideráveis perdas san- clínicas gerais associadas à carência de ferro, entre
guíneas microscópicas assintomáticas. As infec- elas as cefaleias, as parestesias, a estomatite angu-
ções por Necator americanus e Ancylostoma duode- lar, a gastrite atrófica e a cor azulada das escleróti-
nale são endémicas em várias regiões tropicais e cas (fruto do espessamento provocado por altera-
subtropicais. O Trichuris trichiura é também um ções na síntese do colagénio). A síndroma de
agente a ter em consideração nestas áreas geográ- Plummer-Vinson (glossite, membrana esofágica
ficas, especialmente dos 2 aos 10 anos de idade. pós-cricoideia e disfagia), a atrofia cutânea e a coi-
Entre nós, é frequente a Giardia lamblia. loníquia são exemplos de complicações raras.
A enteropatia induzida pelo leite de vaca e as Existem numerosas situações comprovada-
lesões estruturais locais (nomeadamente as ano- mente associadas à sideropénia, especialmente se
malias artério-venosas, o divertículo de Meckel e a esta ocorrer nos dois primeiros anos de vida.
úlcera péptica) são outras causas importantes de Primeiramente, o atraso de desenvolvimento
perdas de sangue. devido, não só a um défice encefálico de ferro,
A anemia ferropénica provocada por hema- mas também à redução de neurotransmissores e a
túria renal é infrequente, sendo a doença de efeitos sistémicos da hipóxia. Em segundo lugar e
Berger e a síndroma de Goodpasture as mais bem paralelamente, ocorre uma redução da velocidade
caracterizadas. A última, juntamente com a he- de crescimento.
mossiderose pulmonar, provoca ainda perdas res- Noutros casos surge perturbação do foro ali-
piratórias. mentar, sob a forma de geofagia ou pica. Esta, alia-
da à estimulação da absorção, pode aumentar a
Erros metabólicos congénitos plumbémia, pela eventual ingestão de substâncias
A atransferrinémia é uma deficiência de transfer- com chumbo, exacerbando ainda mais a clínica
rina transmitida de modo autossómico recessivo, neurológica.
na qual o ferro absorvido pelos enterócitos circula Por último, o défice de ferro afecta de modo
no plasma de forma livre ou precariamente ligado adverso a função imunitária ao provocar uma
a outras proteínas séricas; tal leva à deposição do diminuição da mieloperoxidase e do número de
referido elemento noutros tecidos, nomeadamente linfócitos T circulantes, prejudicando a resposta
nos hepatócitos. mitogénica e a actividade das células NK.
A síntese de moléculas de transferrina de Na idade pré- escolar e escolar, a carência em
estrutura anómala e, por isso, disfuncionais, tem ferro pode ter repercussão negativa no desenvol-
consequências metabólicas sobreponíveis. vimento cognitivo e, na adolescência, igualmente
Níveis muito elevados de hepcidina (hiper- no desempenho físico e desportivo.
hepcidinémia) podem relacionar-se com fenómeno
paraneoplásico ou doença hereditária do metabo- Diagnóstico laboratorial
lismo. O quadro designado por IRIDA (iron resist-
ant iron-deficiency anemia) corresponde, de facto, Considerada a definição de anemia atrás explanada,
a uma das formas de anemia refractária por carên- cabe referir que o exame-padrão para a identifi-
cia de ferro, de causa metabólica. cação da etiologia de carência em ferro é a biópsia
666 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

medular permitindo identificar ausência de colo- rência, após esgotamento dos depósitos; por outro
ração dos eritrócitos pelo azul da Prússia. O exame lado, sofre uma variação diurna cíclica (valores 30%
da medula óssea evidencia hipercelularidade, com mais elevados de manhã em relação à tarde) e a
hiperplasia eritróide. Porém, pelo seu carácter inva- influência de inúmeros factores (regime alimentar,
sivo não pode ser empregue por rotina, havendo a inflamação, infecção); assim o seu valor poderá não
necessidade de recorrer a exames indirectos. Desta traduzir com fidelidade o estádio de armazenamen-
forma, são utilizados vários parâmetros hema- to. Na prática, e tendo em conta tais limitações que
tológicos e bioquímicos. (Quadro 2) deverão ser ponderados caso a caso, considera-se
O hemograma evidenciará diminuição do carência se o ferro sérico for < 30 μg/dL.
número de eritrócitos assim como do valor de Hb A capacidade total de fixação do ferro (CTFF)
abaixo do valor esperado para cada faixa etária, mede a disponibilidade dos locais de captação
de acordo com os valores especificados anterior- deste elemento existentes nas moléculas circulantes
mente. (Capítulo 136) de transferrina sendo, por conseguinte, um valor
O volume globular médio eritrocitário (VGM) indirecto dos níveis séricos da proteína de trans-
e a concentração de hemoglobina globular média porte (transferrina). O Quadro 2 elucida sobre os
(CHGM) encontram-se diminuídos (microcitose respectivos valores de referência, concluindo-se
ou VGM < 75 fl) e hipocromia ou CHGM < 25%), que os mesmos vão aumentando à medida que a
enquanto o índice de dispersão globular) (RDW) carência se vai acentuando e se considera anemia
está aumentado (anisocitose ou RDW > 14%). ferropénica se os respectivos valores forem > 410
O número relativo de reticulócitos é normal ou μg/dL. (Nas situações inflamatórias, no entanto, a
discretamente elevado, mas a sua contagem abso- CTFF diminui atingindo valores < 200 μg/dL).
luta apresenta-se reduzida, indicando resposta in- Por outro lado, (e de acordo com o referido na
suficiente à anemia. A diminuição da concentra- Fisiopatologia) a saturação da transferrina (Tsat
ção de hemoglobina reticulocitária (CHr) (< 29 ou razão – em % – entre a concentração de ferro
pg) constitui um indicador precoce de deficiência sérico e a CTFF), indica a proporção de locais de
de ferro, superando a Hb, VGM, RDW, o ferro ligação do ferro à transferrina. Consultando os
sérico e a saturação de transferrina. valores de referência do Quadro 2, (valor normal
O número de leucócitos habitualmente é nor- de 35±15 %), salienta- se que em situação, já de
mal, sendo, por outro lado, frequente a tromboci- depleção de depósitos ou reservas, a saturação
tose (valor de plaquetas entre 500000-700000/μL) ainda é muito próxima do normal, o que constitui
secundária à estimulação megacariocítica pela eri- uma limitação. Quando se atingem valores mais
tropoietina. Todavia, nos casos muito graves pode baixos (<10%) atingiu-se já a fase de anemia.
existir trombocitopénia. Com a deficiência tecidual de ferro ocorre um
A ferritina é o indicador mais precoce de carência aumento paralelo na quantidade de receptores de
de ferro, reflectindo os depósitos do mesmo no fíga- transferrina. Assim, a medição da porção sérica
do, baço e medula óssea. Em geral valores < 10 μg/L destes ligandos (sTR) em nmol/L é útil, não só
(ou < 10 ng/mL) estão associados à referida carência, como marcador precoce de deficiência em ferro,
devendo ter-se em consideração a ampla variabili- mas também na distinção entre esta situação e a
dade fisiológica interindivíduos e a circunstância de anemia das doenças com hipoproliferação eritroci-
o respectivo valor sérico estar aumentado em deter- tária medular.
minadas situações tais como processos inflamató- Sendo o valor normal de sTR < 35 nmol/L, o
rios, doença hepática, infecção, neoplasia, pois se critério para o diagnóstico, quer de estado de
trata de um reagente da fase aguda. depleção de reservas, quer de carência de ferro
Valores baixos de ferritina também poderão sérico, quer de anemia ferropénica, é a verificação
verificar-se em casos de défice de vitamina C e de de sTR = > 35 nmol/L. Salienta-se que nos estados
hipotiroidismo. de hipoproliperação eritrocitária medular o valor
O nível do ferro sérico não é suficientemente de sTR é inferior a 35 nmol/L.
fidedigno para o diagnóstico, pois somente se veri- Nas situações de sideropénia há quantidade
ficam valores baixos em estádios avançados de ca- insuficiente de ferro para se combinar com a pro-
CAPÍTULO 138 Anemia ferropénica 667

QUADRO 2 – Marcadores hematológicos e bioquímicos de sideropénia

Normal Depleção Deficiência Anemia ferropénica


das reservas de ferro plasmático
Hb (g/dL) ≥ 11 ≥ 11 ≥ 11 < 11* ↓
VGM (fL) 70-100 70-100 70-100 < 75* ↓
RDW (%) < 15 < 15 < 15 ≥ 15 ↑
CHr (pg) ≥ 29 ≥ 29 < 29 ↓ < 29 ↓
Rt (%) 1-5 1-5 1-5 <1 ↓
Ferritina (μg/L) 100±60 < 20 ↓ ≤ 10 ↓ < 10 ↓
Ferro sérico (μg/dL) 115±50 < 115 < 30 ↓ < 30 ↓
CTFF (μg/dL) 330±30 360-390 390-410 N/↑ > 410 ↑
Tsat (%) 35±15 < 30 < 20 ↓ < 10 ↓
sTR (nmol/L) < 35 ≥ 35 ↑ ≥ 35 ↑ ≥ 35 ↑
PEL(μg/dL) < 40 < 40 40-70 ↑ > 70 ↑
* Valores para idades compreendidas entre os 6 e os 24 meses
Adaptado: Wu AC, 2002

toporfirina e formar o grupo heme da hemoglobi- de microcitose resistente ao tratamento com ferro.
na; consequentemente, verifica-se acumulação de No caso do traço β-talassémico os estudos elec-
protoporfirina nos eritrócitos (protoporfirina eri- troforéticos evidenciam um pico de HbA2.
trocitária livre ou PEL). Valores superiores a 70
μg/dL são considerados indicativos de carência Doença crónica
em ferro. De acordo com o Quadro 2 pode veri- A anemia no contexto de doença crónica (também
ficar-se que o valor normal é <40 μg/dL, e que chamada da inflamação crónica) é classicamente
este valor se mantém ainda na fase de depleção de normocítica/normocrómica. No entanto, cerca de
reservas. 20 a 30% evolui para microcítica/hipocrómica
A protoporfirina eritrocitária está também ele- devido ao encurtamento da sobrevida eritroci-
vada nas situações de carência de vitamina C, tária, à dificuldade na mobilização do ferro exis-
infecção/inflamação e intoxicação crónica pelo tente nos macrófagos (com consequente prejuízo
chumbo. na sua reutilização) e à diminuição da absorção
deste nutriente.
Diagnóstico diferencial Em tais circunstâncias o RDW e o sTR são nor-
mais, a CTFF diminui, e a ferritina sérica aumenta.
O diagnóstico diferencial de anemia ferropénica
inclui situações hematológicas caracterizadas por QUADRO 3 – Diagnóstico diferencial
microcitose e hipocromia. (Quadro 3) de anemia ferropénica

Talassémia Síndromas talassémicas


Esta situação deve ser considerada especialmente Doenças Crónicas
em crianças provenientes de regiões endémicas, Infecciosas
nomeadamente Mediterrâneo, África e Sudeste Neoplásicas
Asiático. Inflamatórias
Os exames laboratoriais evidenciam incremen- Renais
to no número de eritrócitos, valores normais ou Intoxicação por chumbo
aumentados do ferro e ferritina séricos, e CTFF Deficiência de vitamina B6
dentro dos parâmetros fisiológicos. A proporção Deficiência de cobre
de células hipocrómicas é inferior à de microcíticas Anema sideroblástica (alguns casos)
e o RDW habitualmente está diminuído. Trata-se
668 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

As doenças crónicas sem componente infla- gnóstico e terapêutico. Assim, 3 a 4 dias depois
matório não produzem geralmente este tipo de observa-se reticulocitose periférica seguida de
anemia. melhoria clínica e aumento progressivo da hemo-
globina (1-2 g/dL em 4 semanas). Em geral, a
Tratamento reposição das reservas ocorre entre 30 e 90 dias.
O tratamento deve ser prolongado até 3 meses
A pedra basilar do tratamento da anemia ferro- após normalização dos valores de hemoglobina.
pénica assenta na correcção da(s) causa(s) subja- A deficiente adesão à terapêutica, dose desajus-
cente(s) e na reposição das reservas corporais de tada, absorção insuficiente, perdas sanguíneas per-
ferro. sistentes e erro diagnóstico podem estar na origem
Na administração oral de sais de ferro deve ser de resposta inadequada ao tratamento substitutivo.
dada preferência ao sulfato ferroso pela sua maior A transfusão de concentrado eritrocitário tem
biodisponibilidade e baixo custo. Este composto lugar apenas quando a anemia desencadeia grave
contém 20% de ferro elementar pelo que, para ren- compromisso cardiovascular (insuficiência cardía-
dibilizar a resposta, é necessária uma dose diária de ca), ou está associada a valores de Hb < 5 g/dL.
6mg/Kg de Fe elementar dividida em 2 a 3 tomas Relativamente ao tratamento (futuro) da anemia
administradas sem leite e no intervalo das refeições. na inflamação crónica, cabe referir a investigação
Os efeitos laterais são dose-dependentes, sendo os actualmente em curso no âmbito da hepcidina.
mais frequentes do foro gastrintestinal (manchas Estudos recentes demonstraram, em doentes
dentárias, náuseas, cólicas abdominais, obstipação e febris, valores séricos elevados de hepcidina, fer-
diarreia). Habitualmente, a redução da dose, ou a ritina e de ratio ferritina/ferro, associados a
sua administração com alimentos, diminui estas siderémia baixa.
complicações.
O ferro administrado por via parentérica, Prevenção
actualmente com indicação excepcional, utiliza-se
quando os compostos administrados por via oral Apesar da baixa sensibilidade e baixa especifici-
são mal tolerados ou mal absorvidos. dade, o inquérito nutricional pode ter utilidade
A dose pode ser calculada através da seguinte para identificar situações de carência: <5 refeições
fórmula: semanais de carne, cereais, legumes e fruta;
Ferro (mg) a administrar = Défice de Hb >500mL/ dia de leite de vaca; ingestão diária de
(g/dL) x Peso corporal (Kg) x 0.22 snacks, doces e refrigerantes, etc..
Nota: não ultrapassar 7mg/Kg em cada adminis- Os profissionais de saúde exercendo no âmbito
tração. dos cuidados primários de saúde têm um papel
A injecção intramuscular de ferro é bastante do- fundamental na prevenção da carência de ferro e
lorosa, podendo provocar coloração cutânea perma- das suas complicações, promovendo, como norma
nente, necrose muscular e abcessos estéreis, pelo que geral, a alimentação com cereais e alimentos ricos
foi abandonada. O ferro-dextrano intravenoso em ferro a partir dos 4-6meses.
poderá originar anafilaxia, pelo que deve ser sempre A Academia Americana de Pediatria recomen-
realizada uma prova de tolerância (10 mg perfundi- da o rastreio universal (Hb e hematócrito):
dos durante 30 minutos) em local com possibilidade – Entre os 9 e os 12 meses de vida, e nova-
de reanimação. As preparações de ferro-sacarose e mente 6 meses mais tarde, em comunidades com
ferro-gluconato de sódio estão aparentemente elevada prevalência de anemia ferropénica
menos associadas a este tipo de complicações. Ou- – Na restante população, tal rastreio deverá ser
tros efeitos laterais da administração parentérica realizado nas mesmas idades, mas dirigido aos
englobam náuseas, vómitos, cólicas abdominais, grupos de risco (recém-nascidos com anteceden-
rubor facial, cefaleias, mal-estar, mialgias, artralgias, tes de prematuridade, restrição de crescimento
urticária, linfadenopatia e derrame pleural. intra-uterino e/ou baixo peso de nascimento, ali-
O aparecimento de resposta hematológica e mentados com fórmulas não enriquecidas, crian-
bioquímica constitui um importante factor dia- ças com mais de 6 meses alimentadas com leite
CAPÍTULO 138 Anemia ferropénica 669

materno e regime alimentar pobre em ferro, cri- age). Pediatrics 2010;126:1040-1049


anças alimentadas com leite de vaca completo Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011
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no exclusivamente, deve iniciar-se suplemento de Pediatrics 2013; 131: e 1530- e 1537
ferro oral, respectivamente aos 1-2 e 4 meses até McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
que a alimentação diversificada proporcione supri- Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010
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tar depende do peso de nascimento, variando entre Hematol and Oncol 2004; 21: 521-534
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aos 12 meses, as mesmas devem ser suplemen- AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
tadas em ferro (10-12 mg de Fe elementar/L). Medical , 2011
– Por fim, por se falar em prevenção, importará Segel GB, Hirsh MG, Feig SA. Managing anemia in pediatric
referir alguns factores ou circunstâncias que fa- office practice: Part 1. Pediatrics in Review 2002; 23: 75-83
vorecem a absorção do ferro: fases de eritropoiese Wu AC, Lesperance L, Bernstein H. Screening for iron deficen-
muito activa (gestação, crescimento), esgotamento cy. Pediatrics in Review 2002; 23: 171–177
das reservas de ferro, factor intrínseco (pela seme-
lhança estrutural entre a vitamina B12 e o heme),
ácido ascórbico reduzindo o ferro à forma ferrosa,
acidez gástrica; os sais ferrosos de fumarato, lacta-
to, glutamato, succinato e sulfato aumentam tam-
bém a taxa de absorção.
Nota: Informação adicional sobre suplemen-
tação em ferro (de leites, fórmulas e alimentos em
geral) pode ser obtida na Parte XI.

BIBLIOGRAFIA
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diagnosis and prevention of iron deficiency and iron-defi-
ciency anemia in infants and young children (0-3 years of
670 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

139
e de ácido fólico conduz a diminuição da metio-
nina, de homocisteína, de tetra-hidro-folato, de ti-
midina trifosfato, e a síntese deficitária de ADN.
Para a absorção da vitamina B12 torna-se fun-
damental a sua combinação com o factor intrín-
seco (FI) formando um complexo que é absorvido
ANEMIA MEGALOBLÁSTICA no íleo terminal.
Considerando embora a raridade, a situação
João M. Videira Amaral mais frequente de carência de vitamina B12 rela-
ciona-se com anomalias da absorção, congénitas ou
adquiridas. Como exemplos citam-se: ausência ou
défice de FI (respectivamente anemia perniciosa
Definição e importância do problema congénita e anemia perniciosa juvenil de causa
autoimune); síndroma de Imerslund-Grasbeck em
A chamada anemia megaloblástica engloba um que existe um defeito congénito selectivo ao nível
conjunto de situações caracterizadas por anomalia do íleo terminal comprometendo a absorção de vit-
da síntese de ácido desoxirribonucleico (ADN) amina B12, não susceptível de correcção com FI.
com consequente aumento do volume dos precur- Outra situação rara, congénita, (autossómica
sores das três séries hematopoiéticas, apoptose recessiva) é explicável por deficiência do principal
intramedular e hematopoiese ineficaz. transportador fisiológico da vitamina B12, a trans-
A verificação de macrocitose associa-se a três cobalamina II (TC-II) do que resulta defeito da
grupos de factores: falência medular, diminuição absorção.
da produção de eritropoietina e anomalia do pro- O papel da TC-II para a vitamina B12 é seme-
cesso de maturação medular. lhante ao da transferrina para o ferro, sendo que
A anemia megaloblástica, rara em idade pediá- em células necessitando de Fe e vitamina B12 exis-
trica, tem manifestações multissistémicas. Salienta- tem receptores específicos para TC-II e transferrina.
-se a importância do diagnóstico e tratamento de Outras causas de má-absorção de vitamina B12
certas formas deste tipo de anemia pela possibili- incluem infecção por Helicobacter pylori, síndro-
dade de lesões neurológicas irreversíveis caso tal mas em que se tenha verificado ressecção do íleo
não se verifique. terminal ou exista disfunção do mesmo (por
exemplo, síndroma de ansa cega, síndroma de
Etiopatogénese intestino curto, doença de Crohn, pancreatite,
etc.). A administração de fármacos como a colesti-
Existem dois nutrientes com vias metabólicas ramina compromete igualmente a absorção de
comuns, essenciais para a síntese de ADN: a vita- vitamina B12 por bloqueio metabólico.
mina B12 (cobalamina) e o ácido fólico, interagin- O défice de ingestão, designadamente em ve-
do, cuja carência é determinante para a génese da getarianos e em crianças amamentadas por mães
anemia megaloblástica. portadoras de estados carenciais também contribui
À vitamina B12 é uma coenzima do 5- metil- para a carência daquela.
tetra-hidro-folato ligando-se ao respectivo grupo A carência de ácido fólico, mais frequentemente
metil formando-se tetra-hidro-folato; de tal li- associada a baixa ingestão é, em geral, acom-
gação resulta a metilcobalamina que interfere (tal panhada de carência proteica e de outros nutrientes.
como o ácido fólico) na conversão da homocisteí- O paradigma é a anemia pluricarencial no contexto
na em metionina. de má-nutrição.
O tetra-hidro-folato é fundamental para a for- Para além do défice de ingestão, tal carência
mação de diversos cofactores que intervêm na sín- pode ser devida a: absorção inadequada (ano-
tese da timidina-trifosfato, essencial para a síntese malia ao nível do terço superior do intestino del-
de ADN. gado), bloqueio metabólico (medicação com feno-
Consequentemente, a carência de vitamina B12 barbital e difenil-hidantoína), alimentação exclusi-
CAPÍTULO 139 Anemia megaloblástica 671

va com leite de cabra (mencionada apenas por Exames complementares


razões históricas), amamentação por mães com
estados carenciais com especial incidência se exis- A carência de ácido fólico traduz-se pelo seguinte
tirem antecedentes de prematuridade, aumento quadro hematológico: anemia macrocítica (volume
das necessidades de folato (tratamento com sub- globular médio > 100 fL), reticulocitopénia, trom-
stâncias evidenciando antagonismo com o ácido bocitopénia, neutropénia, hipersegmentação do nú-
fólico, infecções repetidas, hepatopatias crónicas, cleo dos neutrófilos; o mielograma evidencia pro-
anemias hemolíticas, tumores malignos), excreção cesso de maturação megaloblástica.
aumentada (carência de vitamina B12, diálise cró- Os achados bioquímicos evidenciando tal
nica), destruição aumentada (excesso de suple- carência são os valores de folato sérico < 3 ng/mL
mentos oxidantes), etc.. (valor normal: 5-20 ng/mL) e de folato eritrocitário
Uma situação congénita, muito rara, entre ou- < 160 ng/mL (valor normal: 160-600 ng/mL).
tras, relaciona-se com o défice congénito da redu- Outros achados acompanhantes incluem: ní-
tase do di-hidrofolato, do que resulta incapaci- veis séricos normais de ácido metilmalónico e ele-
dade para se formar tetra-hidrofolato biologica- vados de homocisteína (estes últimos revertendo
mente activo. após tratamento).
Uma vez que os referidos nutrientes têm vias Os achados explicáveis pela eritropoiese inefi-
metabólicas comuns – como foi referido atrás – a caz são: elevação da bilirrubinémia não conjuga-
carência de um deles pode alterar os níveis séricos da, desidrogenase láctica (LDH), ferritina e satu-
do outro. (Parte XI) ração da transferrina.
Nos casos de carência de vitamina B12 compro-
Manifestações clínicas va-se quadro hematológico semelhante ao ve-
rificado na carência de ácido fólico.
As manifestações clínicas, ligeiras de início, progri- O achado bioquímico comprovativo de carência
dem insidiosamente, dependendo a sua exuberân- de vitamina B12 é o valor sérico de vitamina B12 <
cia da duração da carência; as mesmas podem ini- 140 ng/mL; os níveis séricos de homocisteína, e os
ciar-se entre os 10 meses e 10 anos de idade. séricos e urinários de ácido metilmalónico estão
Na carência de ácido fólico verifica-se a pre- elevados (na urina: > 3,5 mg/24 horas).
sença de sinais e sintomas de anemia, de desnu- A comprovação de anemia megaloblástica associ-
trição, púrpura por trombocitopénia, glossite, úl- ada a valores séricos normais de vitamina B12 e de
ceras e atrofias das mucosas com repercussão no folato aponta para defeito de TC-II, obrigando a
tubo digestivo (má absorção, anorexia, vómitos, exames específicos para este transportador na ausên-
diarreia); a icterícia sugere hemólise explicável pela cia doutra doenças hereditárias do metabolismo.
eritropoiese ineficaz. Para avaliar a absorção de vitamina B12 poderá
Na carência de vitamina B12, além dos sinais e ser usada em circunstâncias especiais a prova de
sintomas descritos nas situações de carência de Schilling: (administração de dose mínima de vita-
ácido fólico, surgem manifestações neurológicas mina B12 marcada com cobalto radiocativo que, em
traduzindo essencialmente a instalação de quadro condições normais se combina com o factor
de neuropatia periférica: irritabilidade, ataxia intrínseco do estômago e é absorvida ao nível dos
espástica, parestesias simétricas, diminuição da receptores do íleo; concomitantemente injecta-se
força muscular e hipo ou hiper-reflexia. dose de carga de vitamina B12 não radioactiva
Estão descritas igualmente alterações de com- pondo à disposição do organismo excesso de vita-
portamento (demência, amnésia, depressão, etc.), mina B12 a qual levará a uma eliminação impor-
por vezes não acompanhadas de alterações hema- tante, (de vitamina B12 urinária), o que permite
tológicas. apreciar comparativa e cumulativamente se a vita-
Salienta-se que em situações de carência de vi- mina B12 radioactiva foi absorvida.
tamina B12 a administração de ácido fólico pode mas- Para confirmar se a má absorção de vitamina B12
carar as manifestações hematológicas daquela en- é devida a ausência de factor intrínseco FI pode
quanto progridem as manifestações neurológicas. repetir-se o procedimento injectando nova dose de
672 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

vitamina B12 radioactiva; se se verificar absorção para garantir a sua utilização e rendibilizar o
normal poderá concluir-se que a anomalia não transporte, as doses referidas devem ser aumen-
reside na falta de FI, mas possivelmente na ausência tadas (via parentérica duas vezes por semana,
de receptores ileais ou noutras causas intestinais. durante toda a vida).
Em condições normais, a medição da radioac- No que respeita ao regime alimentar há que
tividade da urina mostra que mais de 10-15% da vit- privilegiar as fontes naturais mais ricas no nu-
amina B12 radioactiva injectada é eliminada na urina; triente (vitamina B12) tais como carnes bovina e
se a taxa de eliminação for inferior, tal significa que suína, ovos, leite e produtos lácteos.
a vitamina B12 radioactiva não foi absorvida. Além da correcção das carências específicas, o
tratamento inclui igualmente outras medidas para
Tratamento correcção de problemas eventualmente associados
tais como trombocitopénia, hemorragias, neu-
Tendo em conta que nos casos de carência de vita- tropénia, infecções, outras carências nutricionais
mina B12 a administração de ácido fólico poderá associadas, etc..
agravar o respectivo quadro neurológico, o início da
terapêutica como objectivo de corrigir as carências Profilaxia
de vitamina B12 e de ácido fólico somente deverá ter
lugar após comprovação laboratorial das mesmas. Como medidas gerais apontam-se, essencialmente:
Na carência de ácido fólico está indicada a – detecção dos grupos de risco (indivíduos em
administração de folato na dose de 0,5 a 1 mg/dia que são identificados factores etiopatogénicos
durante 2 a 4 meses, tempo necessário para a atrás discriminados);
reposição das reservas no organismo; em síndro- – regime alimentar incluindo designadamente
mas de má- absorção poderá estar indicado trata- frutas e vegetais crus;
mento continuado (0,25 a 1 mg/dia). – determinação dos níveis séricos de vitamina
No que respeita a regime alimentar, recorda-se B12 e ácido fólico em vegetarianos estritos;
que as frutas, vegetais frescos crus e carnes são – evicção do leite de cabra (não habitual no
fontes importantes de folatos. nosso país, mas mencionado apenas por razões
Na carência de vitamina B12 o tratamento é le- didácticas e históricas).
vado a cabo com a forma activa de vitamina B12 - a
hidroxicobalamina – por via intramuscular, BIBLIOGRAFIA
podendo ser utilizados diversos esquemas; em Carmel R, Green R, Rosenblatt DS, et al. Update on cobalamin,
regra, aplica-se a dose de 25- 100 μg/dia durante folate and homocysteine. Hematology Am Soc Educ
uma semana, tempo em geral suficiente para pro- Program 2003; 62-81
mover a regressão de sinais e sintomas e para Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics.
reposição das reservas. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004
A dose de manutenção é 200-1000 μg / semana Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon,2011
por via intramuscular durante 5 semanas até se Hoffman R, Benz EJ, Shattil SJ, et al. Hematology: Basic
verificar normalização dos parâmetros hema- Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier Churchill
tológicos (iniciada com reticulocitose após 5-8 dias Livingstone, 2007
de tratamento). Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
Nos casos acompanhados de sinais neurológi- Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011
cos preconiza-se 1000 μg/mês ou quinzena, apro- Koletzko B. Pediatric Nutrition in Practice. Basel: Karger, 2008
ximadamente durante 6 meses, em função da McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
resposta terapêutica. Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010
Nas síndromas de má absorção não susceptí- Nathan G, Orkin SH, Ginsburg O, Look At. Nathan and Oski’s
vel de correcção está indicado o tratamento con- Hematology of Infancy and Childhood. Philadelphia:
tinuado na dose de 200-1000 μg/mês. Saunders, 2003
Nos defeitos congénitos de TC-II, tendo em Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA(eds).
conta a necessidade de níveis altos de cobalamina Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Medical, 2011
CAPÍTULO 140 Anemias hemolíticas – Generalidades 673

140
QUADRO 1 – Anemias hemolíticas de causa
intrínseca (intraglobular)

Hereditárias
– Defeitos da membrana
Anomalias morfológicas específicas da membrana
ANEMIAS HEMOLÍTICAS – • Esferocitose hereditária
• Eliptocitose hereditária
GENERALIDADES • Estomatocitose hereditária
• Anemia hemolítica congénita com eritrocitos
Lígia Braga desidratados
Alteração da composição dos fosfolípidos (aumento da lecitina)
Defeitos secundários da membrana
• Abetalipoproteinémia
Definições e etiopatogénese
– Defeitos enzimáticos
Anemia hemolítica é definida como a anemia Défice da desidrogenase da glucose –6-fosfato
resultante de destruição excessiva de eritrócitos. Défice de piruvatoquinase
Este grupo de doenças hematológicas partilha Défice de hexoquinase
uma característica comum: o encurtamento da Défice de fosfofrutoquinase
vida média do eritrócito a qual, em condições de Défice de triosefosfatoisomerase
normalidade, é cerca de 120 dias. Défice de fosfogliceratoquinase
Quando se verifica diminuição do tempo de
– Defeitos da hemoglobina
vida média, o sistema hematopoiético incrementa
Heme
a actividade, não surgindo anemia até que tal
• Porfíria congénita eritropoiética
capacidade compensadora seja ultrapassada.
Globina
Quando, em circunstâncias de hemólise, os
• Qualitativos: hemoglobinopatias de estrutura/
valores de hemoglobina (Hb) e de eritrócitos (E) se
síndromas falciformes
mantêm dentro dos limites da normalidade, uti-
• Quantitativos: hemoglobinopatias de síntese/
liza-se o termo de hemólise compensada; por
síndromas talassémicas
outro lado, quando tais valores diminuem, utiliza-
-se o termo de anemia hemolítica.
Não hereditárias
Existem dois tipos de hemólise: extravascular
– Hemoglobinúria paroxística nocturna
e intravascular; o primeiro consiste num aumento
(patológico) do processo natural ou fisiológico e
crónico de destruição eritrocitária nos macrófagos Classificação
do fígado e baço (SRE) e acompanha-se de esple-
nomegália; o segundo corresponde a um fenó- O Quadro 1 discrimina as principais entidades
meno patológico, em geral agudo, cursando com clínicas que fazem parte do grupo “causa intrínse-
hemoglobinúria. ca realçando-se que, na sua grande maioria, se
trata de situações hereditárias.
Recordam-se os principais mecanismos res- As anemias hemolíticas de causa extrínseca
ponsáveis pela hemólise: causa intrínseca ou (acção de agentes externos actuando sobre eritró-
anomalia intraglobular (alterações da membrana citos estruturalmente normais) são doenças adqui-
eritrocitária, da hemoglobina, das enzimas eritro- ridas, independentemente de se manifestarem no
citárias), e causa extrínseca ou por mecanismo recém-nascido (congénitas, embora adquiridas in
extraglobular. utero).
Destes mecanismos decorre a classificação, É difícil elaborar uma classificação totalmente
abordada na alínea seguinte. satisfatória dos pontos de vista etiopatogénico e
674 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

141
QUADRO 2 – Anemias hemolíticas de causa
extrínseca (extraglobular)

Anemia hemolítica isoimune


Anemia hemolítica autoimune
Anemia hemolítica adquirida não autoimune
– Microangiopatia trombótica (CID, PTT, SHU, etc.) ESFEROCITOSE HEREDITÁRIA
– Prótese valvular em cirurgia cardíaca
– Síndroma de Kasabach-Merritt Lígia Braga
– Dislipoproteinémias
– Carência em vitamina E
– Toxinas
– Infecções e parasitoses Importância do problema e aspectos
Abreviaturas: CID = coagulação intravascular disseminada; SHU = síndroma hemolítica
urémica; PTT = púrpura trombocitopénica trombótica.
epidemiológicos

A esferocitose hereditária (EH), a mais frequente


semiológico, porquanto, na génese dos processos de todas as anemias hemolíticas hereditárias e
mórbidos em geral e dos processos anémicos em membranopatias, caracteriza-se pela existência de
especial, só raramente intervém um mecanismo eritrócitos de forma esférica (microsferocitos), de
isolado; por outro lado a expressão sintomática fragilidade osmótica aumentada, com deformabi-
dos vários quadros intrinca-se e, com frequência, é lidade e elasticidade alteradas, o que confere
próxima da de processos de génese totalmente maior probabilidade de sequestração no baço.
distinta. A referida designação engloba um grupo hete-
Com esta ressalva, apresenta-se o Quadro 2 rogéneo, quer quanto à base genética, quer quan-
que discrimina as principais entidades clínicas to à expressão clínica.
que fazem parte deste grupo. Tendo sido descrita na maioria dos grupos
A CID e SHU são abordadas respectivamente étnicos, ocorre com maior frequência no Norte da
nos capítulos 154 e 160. Europa, entre 1/2000 a 1/5000 nascimentos; de
Nos capítulos seguintes são abordadas de referir que as formas clínicas de menor gravidade
modo sequencial, com base nos Quadros 1 e 2, as são as mais frequentes.
patologias com as quais o clínico mais frequente- Existem duas formas de transmissão: autos-
mente se defronta. sómica dominante (cerca de 75% dos casos) e
autossómica recessiva ou por mutações de novo
BIBLIOGRAFIA nos restantes casos. A forma autossómica recessi-
Considerada em conjunto com o capítulo 141. va homozigótica tem expressão clínica mais grave
em comparação com a forma heterozigótica, com
manifestações ligeiras ou inaparentes.

Etiopatogénese

O defeito básico molecular é uma alteração da


espectrina (α e β), proteína “filamentosa “ acom-
panhando a camada interna da dupla camada
lipídica da membrana do eritrócito; esta, por sua
vez, é intercalada ou atravessada em diversas
zonas por proteínas designadas por banda 3
(canal de transporte ou permuta de aniões), e gli-
coproteínas (glicoforina) em forma de “moca”
cujas extremidades fazem procidência, quer na su-
CAPÍTULO 141 Esferocitose hereditária 675

glicoforina

bicamada lipídica

banda 3
4.2
anquirina 2.1
4.1
actina

β – espectrina α – espectrina

(Adaptado de Bolton-Maggs PBH, et al, 2004)

FIG. 1
Estrutura molecular da membrana dos eritrócitos focando aspectos fundamentais.

perfície externa da referida dupla camada lipídica, da membrana fazem com que a mesma sofra rup-
quer na sua superfície interna. Entre as extremi- tura ou perda durante a passagem dos eritrócitos
dades internas da banda 3, glicoforina, e a espec- pelo baço com consequente remoção pelos macró-
trina existem proteínas intercalares designadas fagos; tal é facilitado pela diminuição da veloci-
por 4.2, 4.1, anquirina 2.1. Esta estrutura no seu dade circulatória dos mesmos.
conjunto é a principal determinante da forma e Os esferócitos afectados são excessivamente
flexibilidade dos eritrócitos. (Figura 1) permeáveis ao sódio com consequente hiperac-
Estas proteínas e outras (não mencionadas por tividade da bomba Na-K que expulsa este ião do
razões de simplificação) são codificadas por cinco interior do eritrócito por contragradiente osmóti-
genes localizados nos cromossomas 6 e 12. co. A referida bomba requer energia (ATP) que
Especificamente, na EH as anomalias ao nível provém da glicólise.
da membrana eritrocitária envolvem alteração dos Acontece também que no baço o baixo teor de
componentes lipídicos, défice quantitativo ou dis- glicose necessária para o funcionamento da referi-
função das referidas proteínas por mutações di- da bomba contribui para a claudicação desta por
versas dos genes da anquirina, da alfa e beta es- défice de energia, o que também favorece a he-
pectrina (mais frequente), e da banda 3. mólise.
A diversidade de mutações possíveis traduz-se
As anomalias estruturais de base molecular em variabilidade de manifestações clínicas embo-
alteram a flexibilidade dos eritrócitos que, de dis- ra se verifique heterogeneidade das mesmas entre
cos bicôncavos e deformáveis, se tornam esféricos indivíduos com idêntica mutação.
e pouco deformáveis – os denominados esferóci- Por outro lado, há certas associações genó-
tos que se observam no sangue periférico em tipo/fenótipo. Referem-se os seguintes exemplos:
quantidades variáveis – evidenciando fluxo mais – a mutação no gene da banda 3 (AE1) contribui
difícil na microcirculação, designadamente ao para que cerca de 20% da EH apresente um
nível do baço onde o pH mais ácido e o mais baixo quadro clínico de hemólise ligeira compensada; –
teor em oxigénio favorecem a alteração da forma. mutações no gene da α-espectrina (SPTA1), em
A instabilidade funcional e maior fragilidade doentes heterozigóticos e homozigóticos resultam
676 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

em EH grave com níveis baixos de espectrina; – 50% dos doentes no lactente, sendo mais frequen-
mutações no gene da β-espectrina (SPTB) são te nas idades pré-escolar e escolar. De salientar
responsáveis por EH dominante ligeira a modera- que a esferocitose hereditária deve ser considera-
da; – mutações no da proteína 4.2 (EPB42) são da hipótese em todos casos cursando com anemia,
muito frequentes nos japoneses. especialmente se houver história familiar de
O défice da banda 3 e proteína 4.2 (forma do- esplenomegália.
minante), ou só da proteína 4.2 (forma recessiva), Nas formas moderadas o diagnóstico é feito
corresponde a uma minoria de casos. mais tarde, (na idade adulta) e na sequência da
O défice de anquirina verifica-se na maior avaliação de outra patologia não relacionada.
parte dos doentes com EH na forma dominante, Os doentes com EH, tal como os portadores
sendo que também corresponde à anomalia mais doutras anemias hemolíticas crónicas, têm fre-
frequente. quentemente episódios de dores abdominais di-
Microscopicamente, os esferócitos mostram fusas, náuseas, vómitos acompanhando crises de
pouca espectrina nas ligações complexas entre a hemólise (traduzidas por agravamento da ane-
espectrina, anquirina e proteína 4,1 mas com con- mia, icterícia, esplenomegália e reticulocitose).
servação da arquitectura global da membrana,
excepto nas formas graves da doença. Exames complementares

Manifestações clínicas O exame do esfregaço do sangue periférico revela


a existência de número variável de esferócitos no
A EH evidencia grande variabilidade de expres- sangue periférico (superior a 97% nas formas
são dependendo do grau de alterações na mem- graves e cerca de 25 a 35% nas formas ligeiras),
brana eritrocitária; a tríade sintomática clássica é: anisocitose moderada, poiquilócitos, eritrócitos
anemia, icterícia e esplenomegália. com ponteado basófilo fino e difuso, assim com
A doença revela-se em grande número de eritrócitos fragmentados; de referir, a propósito,
casos por icterícia moderada, anemia moderada que nas formas clínicas de expressão discreta tais
ou associação de ambas. alterações morfológicas são igualmente discretas.
Em cerca de 15- 20% dos casos a descoberta é No que respeita aos parâmetros eritrocitomé-
casual face à sintomatologia discreta relacionada tricos que apontam para o diagnóstico de EH,
com uma hemólise ligeira e valores de hemoglobi- mesmo no contexto de anemia ligeira (normocró-
na (Hb) entre 6-10 g/dL, ou normais – hemólise mica, normocítica ou microcítica), há que salien-
compensada. tar: VGM normal embora a CHGM esteja muitas
A icterícia evidencia-se em cerca de 10-15% vezes aumentada (36-38 g/dL). Os esferócitos,
dos casos, sendo que existe grande variabilidade com menor diâmetro parecem, de facto, hiper-
de valores de bilirrubinémia no mesmo doente; crómicos no esfregaço como resultado da maior
torna-se, por vezes, mais evidente no decurso de CHGM. O aumento da CHGM e o grau de aniso-
infecções víricas ou após exercício físico. citose (elevação do range deviation width – RDW)
Nas crianças mais velhas pode haver icterícia em simultâneo, têm uma sensibilidade de 100%.
intermitente e anemia ligeira refractária. O número de reticulócitos está sempre aumen-
No período neonatal a hiperbilirrubinémia e tado, quer em valor absoluto, quer em percen-
anemia podem ser muito intensas pela gravidade tagem, inclusivamente fora dos períodos de crises
da hemólise (cerca de 30-50% dos casos de EH), hemolíticas.
obrigando por vezes à necessidade de medidas A diminuição da resistência globular (ou maior
correctivas como fototerapia e exsanguinotrans- fragilidade osmótica) a soluções salinas hipotó-
fusão (ver Parte XXXI). Nos casos não correcta- nicas constitui uma prova diagnóstica de grande
mente tratados existe risco de encefalopatia bilir- valor para o diagnóstico da EH. Refira-se que em
rubínica (kernicterus). cerca de 25% dos doentes se evidencia resistência
A esplenomegália (cujo grau é independente globular normal; no entanto quando a prova é rea-
da gravidade da doença) é detectada em cerca de lizada com eritrócitos (esferócitos) incubados a
CAPÍTULO 141 Esferocitose hereditária 677

37ºC, a sensibilidade da prova aumenta para cerca diagnóstico é duvidoso (nos esfregaços atípicos,
de 100%. formas ligeiras da doença e ausência de antece-
De salientar que, perante comprovação de es- dentes familiares, designadamente).
ferócitos no sangue periférico, a prova não per- Há provas específicas, apenas viáveis em cen-
mite obviamente distinguir a EH doutras situa- tros especializados, tais como: ectacitometria de
ções clínicas em que se verifica igualmente a exis- gradiente osmótico que mede a deformabilidade
tência de esferócitos (certas formas de anemia eritrocitária; provas de crio-hemólise e auto-
autoimune, isoimunização ABO no RN, etc.). hemólise que avaliam a Hb livre; citometria de
A prova de resistência globular tem limitações fluxo para estudar a proteína da membrana; técni-
quando realizada no recém-nascido pelo facto de cas específicas de electroforese para quantificar as
os respectivos eritrócitos serem mais resistentes à proteínas em défice; e o estudo molecular através
lise osmótica pelo elevado teor em hemoglobina de DNA para rastreio das mutações.
fetal (Hb F). Os achados de determinados exames comple-
Entre os dados bioquímicos, para além da hi- mentares obtidos em conjunto permitem determi-
perbilirrubinémia não conjugada, pode verificar- nar a gravidade da EH: o Quadro 1 é elucidativo.
-se hipersiderémia e hipercolesterolémia nalguns
doentes. Complicações
No que respeita a achados radiológicos cabe
referir sinais ósseos de hiperplasia eritropoiética Nas formas graves existe maior probabilidade de
(alargamento da medular dos ossos longos e adel- complicações as quais podem ser sistematizadas
gaçamento da cortical, crânio em “escova”, etc., do seguinte modo:
em relação com a gravidade do quadro hema- 1) atraso de crescimento e/ou do desenvolvi-
tológico). mento sexual;
A prova da lise pelo glicerol é uma prova sim- 2) crises aplásticas com duração de 10 a 14 dias
ples que confirma o diagnóstico nas formas secundárias, designadamente a infecção por
ligeiras ou nas heterozigotias, não sendo influen- parvovírus B19, sendo que podem também ser
ciada pela esplenectomia. a primeira manifestação da doença; precedidas
Outros exames complementares poderão estar por febre, dor abdominal, vómitos e sinais
indicados numa minoria de doentes em que o intensificados de anemia, coincidem com

QUADRO 1 – Gravidade da esferocitose hereditátria

Traço Esferocitose Esferocitose Esferocitose Esferocitose


ligeira moderada moderada grave
a grave
Hemoglobina (g/dL) Normal 11-15 8-12 6-8 <6
Reticulócitos (%) 1-3 3-8 ≥8 ≥10 ≥10
Bilirrubina (mg/dL) 0-1 1-2 ≥2 2-3 ≥3
Conteúdo de espectrina (% normal) 100 80-100 50-80 40-80 20-50
Morfologia do sangue Normal Esferocitose Esferocitose Esferocitose Esferocitose e
periférico moderada poiquilocitose

Fragilidade osmótica*
Sangue fresco Normal ou Normal ou Muito Muito Muito
ligeiramente ligeiramente aumentada aumentada aumentada
aumentada aumentada
Sangue incubado Aumentada Muito Muito Muito Muito
aumentada aumentada aumentada aumentada
* Exame gold standard
678 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

diminuição do número de reticulócitos,do Tratamento


hematócrito, acumulação de ferro não uti-
lizado e ausência de eritroblastos na medula A esplenectomia, embora melhore a evolução da
óssea; EH nomedamente quanto aos parâmetros anemia,
3) crises hemolíticas,mais frequentes do que as hiperbilirrubinémia, reticulocitose, fragilidade
crises aplásticas, coincidindo em geral com osmótica e vida média eritrocitária, não altera o
infecções víricas e caracterizando-se por defeito intrínseco dos eritrócitos. No entanto,
agravamento da icterícia,reticulocitose e previne a litíase, sendo mais eficaz nos doentes
esplenomegália; com défice de espectrina/ anquirina do que no
4) crises de anemia megaloblástica secundárias défice de banda 3. Em geral , sempre que o quadro
a défice de ácido fólico por elevado consu- clínico o permita, deverá diferir-se até cerca dos 6
mo deste nutriente na hematopoiese; anos no sentido de diminuir o risco de infecção,
5) litíase biliar (5% dos casos na primeira década sobretudo por bactérias capsuladas como S. pneu-
de vida e cerca de 50-75% na idade adulta); moniae e H. influenzae.
6) úlceras de perna e hematopoiese extramedu- Preconiza-se colecistectomia concomitante
lar (na adolescência e idade adulta). para profilaxia da colelitíase.
Considerando os parâmetros hematológicos, a
Diagnóstico diferencial esplenectomia não deverá ser levada a cabo se Hb >
10g/dL e reticulócitos < 10%. Exceptuam-se os
O Quadro 2 resume as situações que poderão casos com formas muito graves (raras) por neces-
impor o diagnóstico diferencial com EH pela veri- sitarem de transfusões periódicas ou regulares; por
ficação de esferócitos no sangue periférico. sua vez, deverá ser realizada não depois dos 10 anos
A associação com outras síndromas sugere que de idade pelo risco acrescido de colelitíase. Após
a mutação de genes de proteínas da membrana esplenectomia está indicada a profilaxia da anemia
doutras células pode ter implicações noutros teci- megaloblástica com ácido fólico (2,5 mg/dia até aos
dos; é o caso, por exemplo, da acidose tubular 5 anos e 5 mg/dia após os 5 anos de idade).
renal. Nas formas graves de doença, de manifestação
Por outro lado, a co-hereditariedade explican- no recém-nascido ou durante o primeiro ano de
do a associação a outras anemias hemolíticas vida, o valor de hemoglobina (Hb) deve ser man-
como a β-talassémia e a hemoglobinopatia SC difi- tido acima de 7 g/dL recorrendo a transfusões re-
cultam o diagnóstico pela modificação do quadro gulares assim como a administração regular de
clínico. ácido fólico (~1 mg/dia) para reduzir o risco de
A carência em ferro, vitamina B12 e ácido fólico anemia megaloblástica e assegurar adequada
podem modificar também os achados laboratoriais. evolução estaturoponderal.
Por fim, a hiperbilirrubinémia conjugada, alte- Refira-se, a propósito, que as necessidades
rando a composição dos lipídos da membrana, transfusionais diminuem progressivamente com a
contribui também para alterar a morfologia dos idade.
eritrócitos. (Capítulo 145)
BIBLIOGRAFIA (capítulos 140-141)
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in SLC4A1.Am J Hematol 2013; 88: 159-160 Após a entrada de glicose no eritrócito, a mesma é
metabolizada através duas vias:
– via das pentoses-fosfato (PP) para a protec-
ção antioxidante (10%);
– via de Embden-Meyerhof (glicólise) para a
produção de ATP (90%).
Na via de Embden-Meyerhof cada molécula de
glicose é metabolizada em duas moléculas de lacta-
to, sendo libertadas duas moléculas de adenosina
trifosfato (ATP). A adenosina monofosfato (NAD) é
uma coenzima essencial para a produção de ener-
gia no eritrócito e para a formação do lactato.
O ATP é necessário para: a manutenção da
forma e deformabilidade; fosforilação dos fos-
folípidos; transporte activo de várias moléculas;
síntese parcial de nucleotídeos de purina e pirimi-
dina; e síntese de glutatião reduzido (GSH).
Devido ao facto de o eritrócito depender uni-
camente da glicólise anaeróbia para a produção de
ATP, deficiências das enzimas envolvidas neste
processo podem ter efeitos significativos na vida
média do eritrócito.
Este tipo de anemias hemolíticas, também de-
signado por enzimopatias eritrocitárias, compre-
ende dois grandes grupos, correspondentes a
anomalias das vias metabólicas previamente
descritas: 1) défice de desidrogenase da glucose –
6 – fosfato (do inglês, vulgo, glucose-6-fosfato
desidrogenase ou G-6PD) e outras alterações rela-
cionadas com a via das pentoses; 2) défice de piru-
vatoquinase (PK) e outras alterações relacionadas
com a via da glicólise.
Neste capítulo é dada ênfase às enzimopatias
680 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

mais frequentes tendo em atenção a sua relativa mente importante: cataliza a oxidação da glicose-
raridade. 6-fosfato em 6-fosfoglicerato, reduzindo concomi-
tantemente a nicotinamida adenina dinucleotídeo
fosfato (NADP) em NADPH.
1. DÉFICE DE DESIDROGENASE A NADPH, cofactor utilizado em muitas
DA GLUCOSE-6-FOSFATO reacções biossintéticas, mantém o glutatião na sua
forma reduzida (GSH).
Importância do problema Assim, o glutatião reduzido nos eritrócitos,
e hereditariedade actuando na neutralização de agentes que poten-
cialmente oxidam a hemoglobina (Hb) ou os com-
O défice de G-6PD é o defeito enzimático mais fre- ponentes da membrana eritrocitária, tem acção
quente do eritrócito, do que resulta maior suscep- preventiva contra lesões resultante de oxidação,
tibilidade aos oxidantes, relacionável com perda sendo que os eritrócitos estão frequentemente su-
total ou parcial da capacidade redutora da referi- jeitos a estresse oxidante.
da enzima. Estima-se que mais de 400 milhões de Se não se formar o glutatião reduzido, a Hb
pessoas em todo o mundo estejam afectadas, precipita formando-se os chamados corpúsculos
sendo na sua maioria assintomáticas. de Heinz; a membrana eritrocitária é lesada, com
Esta doença, também conhecida por “favismo” consequente diminuição da vida média do eritróc-
tem uma distribuição universal com maior ito predispondo a destruição prematura ou
prevalência nas regiões tropicais e subtropicais do hemólise.
Oriente, entre negros africanos Bantús, países da Uma noção importante a reter é a seguinte: a
bacia oriental do Mediterrâneo e Médio Oriente tendência para a hemólise e a gravidade da doença
(valores médios entre 8 e 30%). Portugal é consi- dependem do grau do defeito enzimático; por outro
derado um país de baixa prevalência (cerca de lado, há que atender ao facto de existirem muitas
0,5%) sendo mais elevada nos distritos de Castelo variantes genéticas (mais de 400) de G-6PD a que
Branco, Setúbal, Faro e Lisboa. correspondem actividades enzimáticas variáveis e
A hereditariedade é de tipo recessivo, ligada espectro de manifestações clínicas também variáveis
ao cromossoma X; assim, os indivíduos afectados (desde exuberantes até mínimas ou irrelevantes).
são geralmente do sexo masculino. Contudo, em A forma normal da enzima corresponde à va-
populações com prevalência muito elevada é fre- riante B.
quente encontrar homozigotia com manifestações Entre mais de 400 variantes anormais identifi-
clínicas no sexo feminino. cadas, as mais comuns são as chamadas variantes
Em regra, no sexo feminino a heterozigotia A(-), A(+), e B(-) ou mediterrânicas.
corresponde a formas assintomáticas;de referir A forma mediterrânica B(-), com genótipo de-
que nesta circunstância se verifica resistência à signado por Gd Med/(B-), é mais comum em indi-
malária (Plasmodium falciparum). víduos originários de Portugal, da bacia do
O défice de G-6PD, que se intensifica com o Mediterrâneo (sobretudo Grécia e Itália, Médio
envelhecimento dos eritrócitos, resulta de muta- Oriente), do Irão, Índia e Paquistão. Nesta forma a
ções dum gene localizado no cromossoma X, actividade enzimática de indivíduos do sexo femi-
banda Xq28, gene que possui 18 kb distribuídos ao nino homozigóticos e do sexo masculino hemizi-
longo de 13 exões. Cada mutação produz substitu- góticos é inferior a 5%; os indivíduos do sexo
ições de aminoácidos na enzima com consequente feminino heterozigóticos evidenciam uma taxa de
redução da sua actividade. actividade enzimática entre 30-50%.
A forma A(-), com genótipo designado por Gd
Etiopatogénese (A-), é mais frequente nos indivíduos originários
de África os quais evidenciam actividade enzimá-
No eritrócito, célula anucleada sem mitocôndrias tica entre 8-20%.
nem outros organelos, a G-6PD (aliás presente em De acordo com a Organização Mundial de
todas as células) assume um papel particular- Saúde (OMS), a relação entre o grau de actividade
CAPÍTULO 142 Anemias hemolíticas por defeitos enzimáticos 681

enzimática e o grau de hemólise é classificada do enzimática de G-6PD são aparentemente saudá-


seguinte modo: veis; nalguns casos surgem crises agudas de ane-
Tipo I – Défice enzimático acentuado e anemia mia hemolítica relacionáveis com a exposição a
hemolítica crónica; situação rara. determinados agentes atrás referidos, a adminis-
Tipo II – Défice enzimático acentuado e hemó- tração de fármacos, ou a verificação de certos esta-
lise intermitente. dos mórbidos.
Tipo III – Défice enzimático ligeiro a modera- Existem as seguintes formas clínicas de apre-
do e hemólise intermitente desencadeada por sentação:
infecções, cetoacidose diabética, ingestão de favas,
e por exposição a fármacos ou determinados 1. Anemia hemolítica aguda
agentes químicos. Nesta situação, típica da forma mediterrânica A(-),
Tipo IV – Défice enzimático inexistente. verifica-se crise de hemólise intravascular desen-
A hemólise desencadeada por infecção surge, cadeada por estresse oxidante (por exemplo, expo-
sobretudo, nos indivíduos com a variante A(-). Os sição a agentes oxidantes como primaquina, sul-
agentes mais frequentemente implicados são E. coli, famidas, entre outros, ou por ingestão de favas).
Salmonella, Streptococcus β-hemolítico, vírus Influenza Salienta-se, em plena saúde aparente, o apare-
e vírus das hepatites A, B, C, D, entre outros. cimento de irritabilidade, letargia, febre, sintomas
Admite-se que os eritrócitos deficientes em G- gastrintestinais e colúria (urina de cor de vinho do
6PD sejam menos resistentes à hipertermia manti- Porto).
da, não tolerando o aumento do teor de oxidantes O exame objectivo evidencia palidez, icterícia,
produzidos pelos granulócitos durante o processo taquicárdia e, nos casos mais graves, evolução
de fagocitose. aguda para choque hipovolémico ou, menos fre-
Relativamente à cetoacidose diabética, a dimi- quentemente, insuficiência cardíaca. Destaca-se
nuição do pH, o aumento do piruvato e a hiper- ainda a presença de hepatosplenomegália mode-
glicémia são causa de saturação da via das pen- rada.
toses. Desconhece-se o mecanismo exacto da he- Através dos exames laboratoriais comprova-se
mólise, a qual regride habitualmente com a cor- anemia normocrómica e normocítica, moderada a
recção da acidose. extremamente grave (Hb atingindo, por vezes, va-
A hemólise induzida por fármacos foi inicial- lores de 2,5 a 4 g/dL) com anisocitose e poiquilo-
mente descrita associada à primaquina. Entretan- citose marcadas. A reticulocitose acentuada (por
to, outros fármacos ou agentes químicos foram vezes ultrapassando 30%) torna-se evidente como
implicados: analgésicos e antipiréticos, antimalá- resposta eritropoiética por volta do 5º-7º dia após
ricos, drogas cardiovasculares, citotóxicos e anti- início do quadro de hemólise aguda.
bacterianos, sulfonamidas e sulfonas, naftalina, A presença de corpúsculos de Heinz nos
azul de toluidina, trinitrotolueno,etc.. O risco e a eritrócitos (complexos de Hb desnaturada) é
gravidade relacionam-se com o tipo de substância patognomónica. No entanto, a sua observação é,
em causa, dose e duração da actuação. Na sua em geral, transitória, já que os respectivos eritró-
forma clássica, a hemólise inicia-se com a exposi- citos são rapidamente removidos da circulação.
ção ao agente desencadeante. A análise sumária da urina revela colúria e
Os efeitos da ingestão de favas/Vicia faba (fa- hemoglobinúria.
vismo) verificam-se na variante mediterrânica ou A principal complicação é a insuficiência renal
B(-). O grau de hemólise é variável de exposição aguda por necrose tubular.
para exposição, sendo mais susceptíveis a esta O grau de hemólise traduz a gravidade da
situação os indivíduos mais jovens , sobretudo se doença, variando, como foi dito, com o tipo e in-
existir infecção concomitante. tensidade da exposição ao agente desencadeante e
com a gravidade de deficiência enzimática.
Manifestações clínicas Habitualmente trata-se de situação autolimita-
da com tendência para a regressão espontânea,
Na grande maioria, os portadores da deficiência com normalização do valor de Hb entre três a seis
682 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

semanas; com efeito, com a regeneração eritro- A anemia normocrómica associada a reticuloci-
citária pós- crise reticulocitária atrás mencionada, tose acentuada é variável, não se observando alte-
verifica-se, como atrás foi referido, que a activi- rações da morfologia dos eritrócitos.
dade da G-6PD é mais elevada nos eritrócitos
mais jovens. Exames complementares

2. Icterícia neonatal Uma vez realizados a anamnese (com ênfase para


Trata-se duma forma de apresentação possível no os antecedentes familiares) e o exame objectivo,
recém-nascido (RN), ocorrendo, na sua maioria, para o diagnóstico de portadores da deficiência de
na ausência de exposição a agentes oxidantes. G-6PD podem utilizar-se técnicas qualitativas ou
No entanto, a ingestão de drogas oxidantes quantitativas com as quais é possível demonstrar
pela grávida (situação por vezes não inquirida na diminuição ou ausência da actividade enzimática).
anamnese) poderá originar manifestações no O doseamento da actividade enzimática é efec-
feto/RN deficiente em G-6PD. tuado por medição da cinética enzimática. Pela
Assim, o défice de G-6PD neste período etário, avaliação directa, tal actividade em indivíduos
associado a outros factores que se somam e tam- afectados é igual ou inferior a 10%. Para tal avalia-
bém predispoem à hemólise (baixos níveis de vi- ção importa conhecer os valores absolutos de re-
tamina E e da redutase da metemoglobina) pode ferência:
traduzir-se de duas formas: – 4,5 a 8,5 UI/g de Hb até um ano de idade.
– Forma predominantemente ictérica; trata- se – 3,5 a 5,5 UI/g de Hb após um ano de idade.
de quadro de icterícia de grau variável, em geral Diferentes estudos de biologia molecular per-
surgindo entre o 2º e 3º dia de vida (raramente nas mitem conhecer a sequência de ADN do gene que
primeiras 24 horas), mais importante do que a codifica a G-6PD.
anemia; no entanto, a hiperbilirrubinémia não No estudo da morfologia do sangue periférico
conjugada, se for muito acentuada e não correcta- podem ser identificadas os chamados eritrócitos
mente tratada (exsanguinotransfusão), poderá “mordidos” ou degmócitos.
originar encefalopatia (kernicterus). Esta forma Poderá existir ou não anemia e reticulocitose.
ocorre em diversas variantes. A colheita de sangue não deve ser efectuada
– Forma predominantemente anémica; o durante as crises hemolíticas ou processos infec-
quadro clínico é o de anemia aguda por hemólise ciosos, uma vez que, em tais circunstâncias, a
relacionável com exposição a agente (icluindo na- destruição dos eritrócitos mais dficientes em G-
ftalina na roupa), medicamento, ou infecção; uma 6PD, a elevação do número de reticulócitos e de
variante descrita resulta da exposição a favas ou leucócitos (células ricas na enzima em causa)
fármacos oxidantes ingeridos pela grávida. podem alterar os resultados; igualmente acontece
Numa e noutra forma a hepatosplenomegália após transfusão de sangue (dador contendo G-
poderá não estar presente. (Capítulo 358) 6PD com actividade normal).

3. Anemia hemolítica congénita crónica Tratamento e prevenção


Esta forma de apresentação ocorre invariavel-
mente no sexo masculino e é, em geral, causa de Não existe tratamento específico. A transfusão de
icterícia inicialmente não explicada; no período concentrado eritrocitário apenas está indicada no
neonatal poderá estabelecer a indicação de favismo agudo e nas situações em se verifique re-
exsanguinotransfusão. Como particularidade em percussão hemodinâmica da anemia.
relação à forma anterior,cabe referir que, após a No período neonatal importa seguir as normas
exsanguinotransfusão, a anemia reaparece e a de actuação em caso hiperbilirrubunémia. (Parte
icterícia não regride (hiperbilirrubinémia cró- XXXI)
nica). A esplenectomia apenas está indicada em pre-
Em muitos casos, o diagnóstico faz-se mais sença de hiperesplenismo.
tarde, face à verificação de litíase biliar. No que respeita à prevenção, importa evitar as
CAPÍTULO 142 Anemias hemolíticas por defeitos enzimáticos 683

fontes potenciais de agentes oxidantes, incluindo A esplenomegália é um sinal clínico constante.


as relacionadas com o tratamento das infecções;de No sexo feminino o quadro clínico inicial mani-
salientar que a evicção daqueles contribui para festa-se, por vezes, no decurso da gravidez ou de
reverter a situação. infecção intercorrente, realçando-se que nesta
Na variante A(-), doses usuais de ácido acetil- doença a hemólise não é desencadeada por estresse
salicílico (AAS) e TMP-SMX não provocam oxidante.
hemólise importante. No entanto, doses de AAS
para tratamento da febre reumática (60-100 Exames complementares
mg/kg/dia) podem originar episódio hemolítico
grave. O exame hematológico clássico revela parâmetros
O rastreio no recém-nascido apenas se justifica compatíveis com anemia hemolítica não esfero-
nos países com elevada prevalência do defeito cítica e reticulocitose acentuada.
enzimático. O estudo morfológico do sangue periférico
evidencia ocasionalmente macrócitos, eritrócitos
espiculados e raros acantócitos.
2. DÉFICE DE PIRUVATOQUINASE Dada a possibilidade de crises aplásticas, poderá
ser identificado quadro compatível com pancitopé-
Importância do problema nia.
e hereditariedade O diagnóstico definitivo baseia-se na demons-
tração da actividade enzimática (PK) diminuída.
O défice de piruvatoquinase (PK) é a enzimopatia Nos casos de heterozigotia tal diminuição é
mais frequente, a seguir ao défice de G-6PD. A sua muito ligeira.
frequência média é estimada em cerca de 5 casos Os leucócitos têm actividade normal da PK,
por milhão de habitantes de raça caucasiana, com devendo ser eliminados do hemolisado quando se
predomínio nos países do norte da Europa e em pretende determinar a actividade eritrocitária da
comunidades com elevada consanguinidade. referida enzima.
O mecanismo de transmissão é autossómico
recessivo, sem predomínio de sexos; a expressão Tratamento
da doença observa-se sobretudo em indivíduos
homozigóticos ou de dupla heterozigotia, isto é, A exsanguinotransfusão está indicada nas situa-
portadores de dois genes com diferente tipo de ções de hiperbilirrubinémia neonatal grave.
mutação; a possibilidade de combinações muito Nos casos de anemia crónica e grave com
variadas de genes alterados explica a variabili- necessidade de regime transfusional frequente
dade de manifestações. (cada 4 a 8 semanas), está indicada a esplenecto-
Curiosamente, do défice de PK resulta aumen- mia, a realizar após os 5-6 anos. Nos casos de
to do 2,3-DPG(2,3-difosfoglicerato) eritrocitário crises aplásticas estão indicados os procedimentos
com consequente incremento na distribuição de descritos a propósito deste tópico.
oxigénio aos tecidos, desligando-se da Hb. Este A mortalidade relacionada com a sépsis pneu-
fenómeno (diminuição da afinidade O2-Hb) tem mocócica pós-esplenectomia, torna obrigatória a
implicações clínicas: menor fadiga e maior tole- aplicação das respectivas imunizações (hoje cor-
rância ao esforço, apesar da anemia. rentes) e a profilaxia com penicilina após a esple-
nectomia.
Manifestações clínicas
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constituída por quatro cadeias de polipéptidos
(tetrâmero).
Existem três hemoglobinas normais a saber:
Hb F predominante a partir da 9ª semana da vida
intrauterina e no recém-nascido, a Hb A1 habitual
no adulto, e a Hb A2 que apenas surge em peque-
nas quantidades. Entre as 4 e 14 semanas de ges-
tação são sintetizadas as Hb Gower 1, Gower 2 e
Portland.
À nascença, segundo diversos estudos são
obtidos os seguintes valores médios: Hb F entre
50-88%, Hb A1 entre 20-40% e Hb A2 entre 0,2-
0,8%. Por volta dos 5 meses encontra- se 3-15% de
Hb F, no segundo semestre 2,9%, no segundo ano
1,8%, no terceiro ano 1%, e no quarto ano 0,8%. A
composição hemoglobínica do indivíduo a partir
do 4º ou 5º ano de vida é a seguinte: Hb A1:
96-98%; Hb A2: 1-3%; Hb F – vestigial.
De referir que a transição do espectro hemoglo-
bínico fetal para o do adulto em cada eritrócito se
faz lentamente com aumento progressivo da A1 e
diminuição igualmente progressiva da F, sendo
que se encontram eritrócitos no decurso de tal
evolução com proporções diferentes das várias Hb.
Na Hb A1 existem duas cadeias designadas
por alfa (α) e outras duas designadas por beta (β)
pelo que a fórmula da globina A1 se representa
por alfa 2 beta 2 (α2 β2).
Todas as Hb normais contêm cadeias α (alfa); a
F possui cadeias γ (gama) em vez de β (beta),
CAPÍTULO 143 Anemias hemolíticas por defeitos da hemoglobina 685

sendo a sua fórmula globínica α2 γ2 (alfa2 cadas conforme o tipo de cadeia globínica afecta-
gama2); a A2 contém δ (delta) em vez de β (beta) da (α, β, γ ou δ), ou a designação da hemoglobina
pelo que a sua fórmula é α2 δ2 (alfa2 delta2). As anormal produzida.
cadeias α (alfa) contêm 141 aminoácidos enquan- É importante salientar que nas hemoglo-
to as β (beta), γ (gama) e δ (delta) compreendem binopatias de estrutura cada variante estrutural é
146 aminoácidos. o resultado de uma mutação específica de gene de
No respeita às Hb embrionárias, a composição um único aminoácido na cadeia da β-globina; por
quanto a cadeias é a seguinte: outro lado, nas talassémias verifica-se uma diver-
Gower 1 → ζ (zeta) 2 ε (epsilon) 2 sidade de mutações (mais de 150) nos genes das
Gower 2 → α2 ε2 cadeias α e β-globina.
Portland → ζ2 γ2 Nalguns países procede-se ao rastreio neonatal
Estas diferentes composições globínicas con- das hemoglobinopatias.
ferem características físico-químicas diferentes às
respectivas hemoglobinas.
Os genes que regulam a síntese das cadeias 1. PORFÍRIA CONGÉNITA
descritas segundo um mecanismo complexo ERITROPOIÉTICA
encontram-se na extremidade do braço curto dos
cromossomas 16 e 11, cada um com uma chamada Importância do problema
zona de agrupamento de genes (cluster).
No cromossoma 16 a referida zona engloba 3 A síntese do heme tem como ponto de partida a
genes responsáveis pela formação de uma cadeia glicina e a succinil-coenzima A com uma sequên-
zeta e duas cadeias alfa (1+2 genes respectiva- cia metabólica e interferência, em vários pontos da
mente). mesma, de determinadas enzimas. As principais
No cromossoma 11 a referida zona de agrupa- porfírias hereditárias correspondem a diversos
mento de genes engloba 5 genes responsáveis pela défices enzimáticos na referida sequência.
formação 1 cadeia ε, 1 cadeia δ, 1 cadeia β e 2 A porfíria congénita eritropoiética ou doença
cadeias γ (1+1+1+2 genes respectivamente) de Gunther é uma doença hereditária rara por
As porfírias congénitas representam as ano- défice de isomerase; transmite-se de modo autos-
malias do heme, enquanto as hemoglobinopatias sómico recessivo.
e as síndromas talassémicas, representam anoma-
lias da globina (respectivamente qualitativas e Manifestações clínicas e laboratoriais
quantitativas).
No que respeita aos problemas relacionados As manifestações, surgindo em geral nas pri-
com a patologia da hemoglobina alguns livros de meiras semanas ou meses de vida, são o apareci-
texto, consideram o conceito “defeitos da hemoglo- mento de urina de cor vermelha e episódios de
bina” como sinónimo de “hemoglobinopatias”. fotossensibilização evidenciados por eritema e
Segundo outros, é estabelecida a seguinte sistemati- bolhas (hydroa estival) podendo conduzir a muti-
zação: lações e cicatrizes nas regiões do corpo descober-
– hemoglobinopatias propriamente ditas ou tas. Outros sinais incluem anemia hemolítica,
de estrutura (referentes a mutação genética deter- esplenomegália e lesões oculares.
minando substituição de um aminoácido numa O diagnóstico é confirmado pela demonstra-
das cadeias polipeptídicas, sendo que as hemo- ção, na urina, de taxa elevada de uroporfirina I e
globinas anormais comuns – S, C, D, E provêm de de coproporfirina I.
substituições nas cadeias β; são exemplos as diver-
sas formas de doença falciforme); e Diagnóstico diferencial
– hemoglobinopatias de síntese (devidas a
défice de síntese das cadeias de globina, originan- O diagnóstico diferencial faz-se com a protoporfíria
do-se uma produção desequilibrada das mesmas; eritropoiética hereditária, a coproporfíria eritro-
são exemplos as síndromas talassémicas classifi- poiética hereditária, porfíria hepática hereditária e
686 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

a porfíria secundária de causa tóxica (chumbo, sul- tação de ambos os genes da β-globina no cromos-
famidas, barbitúricos, hexaclorobenzeno, etc.). soma 11 em ambos os progenitores, varia entre
0,2% nos negros americanos e 6% em certas regiões
Tratamento e prevenção de África; a heterozigotia, que corresponde a
mutação de apenas 1 gene da β-globina de um dos
Os princípios básicos do tratamento baseiam-se progenitores, apenas afecta cerca de 12% dos
na supressão da eritropoiese através de trans- negros americanos e cerca de 40% da população
fusões de sangue e de administração de hidroxi- em certas regiões de África.
ureia para elevar o valor da Hb. No que respeita a Portugal a prevalência dos
O carvão por via oral diminui a absorção de portadores do gene βs na população autóctone
porfirinas. Nos casos graves pode estar indicada portuguesa é ~0,32% (Norte: 0,19%; Sul 1,5%,
transplantação de medula óssea ou de células esta- salientando-se regiões – Coruche, Alcácer do Sal e
minais. A prevenção primária passa pelo aconse- Pias – com valores ~5% onde a malária foi endé-
lhamento genético. A protecção da luz solar e a mica até meados do séc. XX). Tal prevalência
administração de beta-carotenos são medidas pre- explica-se, sobretudo, pela imigração de escravos
ventivas secundárias. africanos no séc. XV para o nosso país.
Nalgumas partes do mundo onde coexistem os
dois tipos de hemoglobinopatia com elevada fre-
2. DOENÇA de CÉLULAS quência, um doente pode herdar genes de dife-
FALCIFORMES e TRAÇO FALCIFORME rentes variantes, o que contribui para a grande he-
terogeneidade e complexidade clínica, com subse-
Sistematização e aspectos quentes problemas de diagnóstico.
epidemiológicos A anemia de células falciformes (ACF), tam-
bém chamada drepanocitose, é a forma mais
Doença de células falciformes é o nome dado a um grave da doença falciforme, e a hemoglobinopatia
conjunto de defeitos da Hb em que se verifica a pre- mais frequente, com maior distribuição geográfi-
sença de HbS. De acordo com o Quadro 1 pode ca. De transmissão autossómica recessiva, tais
deduzir-se que tal nosologia integra diversos genó- entidades, com diversidade de apresentação clíni-
tipos a que corresponde sintomatologia variada, ca, evidenciam morbilidade e mortalidade muito
desde a forma homozigótica – Hb SS (ver adiante) significativas, partilhando com as síndromas
ao chamado traço falciforme – HbAS, este último talassémicas muitas características.
assintomático ou com manifestações benignas. Com efeito, em relação à respectiva distri-
A homozigotia HbSS, que corresponde a mu- buição, ambas apresentam uma elevada frequên-
cia nos países do Mediterrâneo, Médio Oriente,
QUADRO 1 – Doença de células falciformes Índia e África Oriental e Equatorial, nos quais
e traço falciforme constituem um problema de saúde pública.
Afectando fundamentalmente a raça negra, a sua
Anemia de células falciformes (ACF) distribuição na Europa e Américas incluindo
(Homozigotia SS) Caraíbas, explica-se pelo fluxo migratório desde
• Hb S + Hb S há mais de cinco séculos, o que tem implicações
Heterozigotias duplas de ordem genética.
• Hb S + Hb C Ambas coincidem com as regiões onde a ma-
• Hb S + Hb D lária pelo Plasmodium falciparum foi endémica, o
• Hb S + β talassémia (Hb S β° ou HbS β+)* que confere uma selecção natural responsável pela
• Hb S + Hb F manutenção e perpetuação dos genes.
Traço falciforme Calcula-se que cerca de 250 milhões de pessoas
• Hb S + Hb A (cerca de 4,5% da população mundial) sejam por-
* β° significa gene talassémico com ausência de síntese da cadeia β
β+ significa gene talassémico com diminuição de síntese da cadeia β
tadoras de um defeito da hemoglobina. Em cada
ano nascem 300.000 pessoas homozigóticas com
CAPÍTULO 143 Anemias hemolíticas por defeitos da hemoglobina 687

uma distribuição semelhante entre os referidos doença de células falciformes são variáveis consti-
dois grandes grupos de hemoglobinopatias. tuindo o epifenómeno de anemia hemolítica
crónica e de diversos episódios de hemólise
Etiopatogénese aguda. Em geral, não surgem antes dos 3 meses; a
forma de começo pode ser insidiosa com palidez,
A base molecular da anemia de células falciformes icterícia, colúria e esplenomegália, ou aguda (adi-
(ACF), a forma mais grave das síndromas falci- ante especificada).
formes, é a substituição de um único aminoácido Nos extremos deste espectro clínico (fenótipo) a
na cadeia da β-globina (valina por ácido glutâmico que correspondem, com se viu, diversos genótipos
na sexta posição originando a HbS ou α2 βs2); tal (Quadro 1), estão o traço falciforme e a anemia de
acarreta modificação da forma do eritrócito, per- células falciformes, que pormenorizamos a seguir.
dendo a forma bicôncava e adquirindo a forma em
foice (falciforme) donde deriva o nome da doença. Traço falciforme
A HbS (α2 βs2) tem a propriedade única e própria Esta forma clínica, por vezes assintomática, carac-
da variante β6 Glu-Val de se polimerizar quando desoxi- teriza-se por manifestações ligeiras e benignas: ane-
genada, processo central da vasoclusão e causa mia ligeira, dores articulares (por vezes confundi-
primária de certas manifestações clínicas. Na das com certas formas de reumatismo), hematúria,
polimerização poderão interferir factores agravantes disfunção renal (hipostenúria, compromisso da
(como a hipóxia e acidose, desidratação, elevação da capacidade de acidificação urinária-pH urinário
temperatura, factores genéticos, etc.), ou atenuantes alcalino) (predomínio de Hb A sobre Hb S).
como por exemplo a percentagem de hemoglobina Em ambiente de grande altitude (> 3000 me-
fetal (Hb F), a qual constitui o inibidor mais potente tros) a diminuição da fracção de oxigénio no ar
da despolimerização da desoxi-hemoglobina. inspirado/Fi O2 (<21 %), pode levar a enfartes
Os referidos eritrócitos falciformes têm fragili- pulmonares e esplénicos.
dade excessiva, menor deformabilidade (eritrócitos
mais rígidos), vida média muito encurtada (cerca Anemia de células falciformes ou drepanocitose
de 20 dias), circulando com dificuldade na micro- As manifestações têm, em geral, início após os 3
circulação por hiperviscosidade, aderindo à parede meses de idade, coincidindo com diminuição da
do endotélio e lesando-a (vasculopatia secundária). HbF e aumento da HbA, sendo que quanto maior o
Na vasculopatia, a hipóxia, componente funda- teor de Hb F como foi referido, menor o risco de fal-
mental da fisiopatologia da ACF, leva à diminuição ciformação eritrocitária. Para além das manifes-
da produção de óxido nítrico (NO), o qual é impor- tações que surgem nas formas mais benignas (desig-
tante regulador do tono vascular, de adesão celular nadas por “traço”), estão classicamente presentes
e da formação de trombose. outras descritas a seguir.
As consequências são estase, vasoclusão, hipó- É importante salientar que todos os órgãos e
xia tecidual, trombose, enfarte e fibrose, entre outras sistemas podem ser afectados, com maior relevân-
alterações crónicas ao nível de vários órgãos. No cia o respiratório, o circulatório e o renal.
baço, tal processo de fibrose conduz a redução de As chamadas crises vasoclusivas agudas a que
dimensões e a uma depressão funcional do órgão, o se aludiu a propósito da etiopatogénese, manifes-
que corresponde a verdadeira “autosplenectomia”. tam-se por sinais e sintomas que dependem da
Os enfartes teciduais traduzem-se na clínica por localização específica: sistema respiratório (por ex.
dor, por vezes intensa, com localização variável. pneumopatia, enfartes pulmonares), osteoarticu-
O processo de falciformação é muitas vezes ini- lar (tumefacção simétrica e dolorosa denominada
ciado e/ou agravado pela diminuição da pressão síndroma “mão-pé” ou dactilite drepanocítica,
parcial de oxigénio e pela acidémia. (Figura 1) (Figura 2) dores nos ossos longos), sistema diges-
tivo (dor abdominal intensa relacionável com
Manifestações clínicas enfartes em órgãos abdominais), sistema nervoso
central (acidente vascular cerebral na formas de
As manifestações clínicas das diversas formas de enfarte, sobretudo nos territórios das artérias
688 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Infecção – Inflamação Proteína C reactiva

Expressão do
factor tecidual

Libertação de mediadores biológicos

Activação da cascata
da coagulação
Activação de Activação de
leucócitos endotélio
Formação de trombina

Adesão de eritrócitos
ao endotélio Activação plaquetária

Libertação
Libertação do factor
de trombospondina*
de von Willebrand

Obstrução vascular
Fraca deformabilidade
dos eritrócitos

Desidratação clínica Acidose Alteração do


tónus vascular

Desidratação dos eritrócitos Formação de eritrócitos Hipóxia


falciformes

Diminuição do fluxo
sanguíneo
* Glicoproteína interagindo com factores coagulantes e
anticoagulantes com acções várias (adesão celular, agregação
plaquetária, proliferação celular, angiogénese, etc.)

FIG. 1
Vasoclusão na anemia de células falciformes. Adaptado de Embury et al, 1994.

carótida interna, cerebral média e anterior). -se por um conjunto sintomático designado por
O acidente vascular cerebral (AVC) pode síndroma torácica aguda, mais frequente em cri-
assumir também a forma isquémica; globalmente, anças do que em adultos e uma causa importante
considerando todas as formas etiopatogénicas de de internamento. Como sintomatologia destacam-
AVC mais ou menos graves, segundo a experiên- se: dificuldade respiratória, dor torácica aguda,
cia da autora a sua frequência é cerca de 6 –10% febre, hipoxémia e prostração.Na idade pediátrica
entre os 6 e 18 anos. (Figura 3) os principais factores desencadeantes são as
Os chamados enfartes silenciosos (com sintoma- infecções por S. pneumoniae, Mycoplasma pneumo-
tologia discreta) podem contribuir para comprome- niae, Chlamydia e micobactérias. (Figura 4)
ter o desenvolvimento cognitivo de modo paulatino. As denominadas crises de sequestração, fre-
A repercussão no sistema respiratório traduz- quentes entre os 6 meses e 3 anos, constituem
CAPÍTULO 143 Anemias hemolíticas por defeitos da hemoglobina 689

lume do baço. Podem também ocorrer no fígado


(com a mesma gravidade mas mais raras).
As crises hipoplásticas e as crises de hiper-
hemólise são outro tipo de manifestações típicas.
No primeiro caso está, em geral, afectada a série
vermelha sendo frequentemente desencadeadas
por exposição a fármacos oxidantes e por in-fec-
ções (designadamente por Parvovirus B19). As
crises de hiper-hemólise são traduzidas por apare-
FIG. 2
cimento agudo de icterícia (ou por agravamento
Síndroma mão – pé (dactilite) na ACF. (NIHDE) de icterícia crónica ligeira) e palidez.
Nos adolescentes e adultos jovens poderão
A B surgir úlceras na região maleolar e priapismo;
este pode surgir em episódios de duração e perio-
dicidade variáveis. Igualmente poderão aparecer
necrose asséptica da cabeça femoral e osteomie-
lite por Salmonella e infecções por Streptococcus
pneumoniae. (Figura 5)
A colelitíase, rara na infância, é frequente após
os 10 anos.
Verifica-se impacte significativo da doença de
células falciformes sobre o rim, traduzido por glo-
merulopartia que, em cerca de 20% dos casos, cul-
mina em insuficiência renal.
FIG. 3
Em termos de magnitude e gravidade das
Angiografia (A) e TAC CE (B) – no contexto de ACF: imagens manifestações clínicas a forma heterozigótica Hb S
sugestivas de lesões isquémicas por oclusão nos territórios das Betaº é sobreponível à ACF(Hb S Hb S); nas res-
artérias cerebral anterior e média. tantes as manifestações são ligeiras a moderadas.

outro tipo de episódios agudos em que, por causa Exames complementares


desconhecida e de forma aguda, se acumulam
grandes quantidades de sangue no baço com con- Na anemia drepanocítica, através do hemograma,
sequntes choque hipovolémico e aumento do vo- verifica-se anemia normocrómica e normocítica, em

A B

FIG. 4
ACF: Padrão radiográfico compatível com síndroma torácica
aguda. A – Radiografia convencional (infiltrado no hemitórax FIG. 5
direito); B – TAC evidenciando alterações fibróticas residuais Quadro radiológico de osteomielite do úmero no contexto da
num adolescente. ACF. (NIHDE)
690 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

geral com valor de Hb entre 7 e 9 g/dL e número de rastreio, nomeadamente o doseamento de alfa-1 e
reticulócitos muito aumentado (entre 5 e 15%). beta-2 microglobulina (Capítulo 163 e Anexos).
Pelo estudo do esfregaço do sangue periférico
nem sempre são detectadas células falciformes, as Tratamento
quais poderão ser evidenciadas pela prova de fal-
ciformação; no entanto tal prova não permite dis- A actuação nos casos de doença das células falci-
tinguir o estado homozigótico SS do estado de formes é dirigida no sentido de evitar as compli-
portador heterozigótico ou doutras hemoglo- cações, uma vez que não existe tratamento especí-
binopatias; o esfregaço permite ainda identificar fico; as medidas gerais dizem respeito essencial-
eritrócitos nucleados e corpos de Howell-Jolly. mente a: nutrição, prevenção da desidratação e
As provas de rastreio baseadas na insolubili- reidratação, prevenção de infecções, imunizações
dade da Hb evidenciam unicamente Hb S e Hb F, (designadamente anti Meningococcus, anti-Hemo-
sendo de referir que as Hb não patogénicas D e G philus influenzae tipo B, anti-S. pneumoniae), trata-
(correspondendo ao conceito de hemoglobinose) mento de infecções, prevenção e tratamento das
migram juntamente com a Hb S em meio alcalino; crises dolorosas, tratamento da anemia e suporte
por esta razão a destrinça implica a realização de psicológico.
electroforese complementar em meio ácido. As principais indicações do internamento hos-
A proporção de Hb F nas hemoglobinopatias S pitalar em doentes com síndroma falciforme são:
varia entre 1 e 20%; por sua vez a relação per- hipertermia (> 40ºC), mau estado geral (choque e
centual entre Hb S, Hb A1, Hb A2 pode ser desidratação), sinais imagiológicos de infiltrado
traduzida do seguinte modo: pulmonar, hiperleucocitose ou leucopénia, respec-
Hemoglobinopatia AS ◊ Hb S: 30-40%; Hb A1: tivamente > 30.000/mmc e < 5.000/mmc), plaque-
60-70%; Hb A2: 2-4%; tas < 100.000/mmc, Hb< 5g/dL, e antecedentes de
Hemoglobinopatia SS ◊ Hb S: 75-95%; Hb A1: septicémia por S. pneumoniae.
0%; Hb A2: 2-5%. As crises vasoclusivas, traduzindo-se por dor
Em situações especiais poderá estar indicado o intensa em qualquer local do organismo (sendo os
estudo molecular. ossos os territórios mais frequentemente acometi-
As formas heterozigóticas em associação com dos), implicam a instituição de analgésicos pro-
β-talassémia podem evidenciar diminuição do movendo concomitantemente a correcta hidrata-
volume globular médio (VGM) e da concentração ção endovenosa (solução salina diluída a 1/2 em
de hemoglobina globular média (CHGM). glicose a 5% em água).
O exame da medula óssea mostra sinais de Os analgésicos mais frequemente empregues
hiperplasia eritróide. são:
As radiografias do crânio e da coluna verte- – nas formas mais ligeiras, o paracetamol (10 a
bral evidenciam córtex estreitado, alargamento do 15 mg/kg/dose cada 4-6 horas ou o ibuprofeno
espaço medular; ao nível do crânio é típico o pa- (5-10 mg/kg/dose cada 6-8 horas) por via oral;
drão de “crânio em escova”, igualmente observá- – nas formas de dor moderada a grave, a mor-
vel nas síndromas talassémicas (ver adiante). fina por via endovenosa (0,10-0,15 mg/kg/dose
A verificação de hemoglobina anormal implica cada 3-4 horas, não ultrapassando a dose de 10
a realização de estudo familiar para investigar mg), ou a meperidina por via endovenosa (0,75 a
idêntica patologia. 1,5 mg/kg/dose cada 2-4 horas, não ultrapassan-
O estudo imagiológico por Doppler transcrani- do 100 mg).
ano permite identificar precocemente lesões A profilaxia com penicilina (penicilina benzatí-
estenóticas nas artérias carótida interna distal, nica cada 21 dias) deve ser mantida até aos 5 anos
cerebral média proximal e cerebral anterior. nas seguintes doses: crianças com < 10 kg: 300.000
Tendo em conta a probabilidade de compro- U; 10-25 kg: 600.000 U; > 25 kg: 1.200.000 U.
misso renal atrás referido, justifica-se em todos os No que respeita a aspectos nutricionais está
casos de doença das células falciformes a avali- indicada a administração de ácido fólico (1
ação anual da microalbuminúria como forma de mg/dia) durante toda a vida, tendo em conta a
CAPÍTULO 143 Anemias hemolíticas por defeitos da hemoglobina 691

actividade eritropoiética aumentada secundária a alternativa com sucesso nos doentes com a forma
hemólise crónica, a qual pode levar a deficiência homozigótica após os 2 anos de idade; promoven-
do referido nutriente. do o aumento da Hb F, melhora o quadro clínico
A anemia crónica é bem tolerada na maior e, designadamente, o número de episódios vaso-
parte dos doentes, uma vez que a Hb S tem menor clusivos, da síndroma torácica aguda, a duração
afinidade para o oxigénio, o que facilita a sua li- do internamento, e a necessidade de transfusões.
bertação ao nível dos tecidos. A dose é 15-20 mg/kg/dia com incrementos
As transfusões de concentrado eritrocitário de 2,5-5 mg/kg cada 8 semanas até máximo do 35
têm o objectivo de melhorar a capacidade de mg/kg/dia.
transporte de oxigénio e diluir as células falci- Actualmente, para uma pequena percentagem
formes em circulação para melhorar a perfusão de doentes com homozigotia, a transplantação de
microvascular; consegue-se, assim, baixar os células progenitoras/estaminais ou stem cells de
níveis da Hb S para valores ≤ 30% da Hb total, ou familiares HLA compatíveis tem permtido resul-
aumentar a Hb para cerca de 10g/dL (Capítulo tados considerados bons.
255). A transplantação de medula óssea somente
As transfusões têm indicações precisas: Hb está indicada em doentes com quadro clínico
< 5g/dL; nas crises aplástica ou hipoplástica; nas grave, necessitando de regime transfusional inten-
sequestrações esplénicas e hepática; nos acidentes sivo e desde que exista dador HLA idêntico.
vasculares cerebrais e na sua prevenção, quer pri- A terapêutica génica constitui uma medida
mária, quer secundária; nas síndromas torácicas promissora de “cura”.
agudas isoladas ou de repetição; nas situações de O óxido nítrico (NO) tem sido alvo igualmen-
lesão multiorgânica; e no pré-operatório de inter- te de investigação para a terapêutica.
venções cirúrgicas com anestesia geral. No que respeita à terapêutica preventiva clás-
A esplenectomia está indicada apenas quando sica nos casos de microalbuminúria significativa
as necessidades transfusionais anuais ultrapas- utilizam-se os inibidores da enzima de conversão
sam os 200 ou 250 ml/kg, devendo ser protelada da angiotensina (IECA).
até cerca dos cinco anos e seguida de profilaxia
antibiótica. Prognóstico e prevenção
A terapêutica transfusional intensiva com risco
de hemossiderose obrigará a terapêutica quelante* A sobrevivência destes doentes melhorou drasti-
com a desferroxamina b (por via endovenosa ou camente devido à melhoria das condições sócio-
subcutânea) que implica vigilância rigorosa face económicas, ao melhor conhecimento da fisiopa-
aos efeitos tóxicos adversos; a forma mais eficaz, tologia, à possiblidade de diagnóstico precoce e de
por via subcutânea, implica a utilização de bomba prevenção, e ao tratamento das complicações.
de perfusão. A dose mínima efectiva é 10 Face à necessidade de diagnóstico precoce
mg/kg/dia em doentes com menos de 10 anos; de tendo em vista medidas profilácticas, o aconselha-
11-15 anos pode alcançar-se a dose até 60 mento genético e orientação familiar para os por-
mg/kg/dia; e de 80 mg/kg/dia depois dos 16 tadores do gene da Hb S, o diagnóstico pré-natal e
anos (5 a 6 vezes por semana em perfusões de 8 o rastreio no recém-nascido nas áreas do globo
horas cada). com maior prevalência são estratégias de extrema
Actualmente preconiza-se a terapêutica que- importância para a melhoria do prognóstico.
lante dupla associando a desferroxamina (2 dias) à A prevenção primária do AVC tem sido levada
deferiprona em suspensão oral (75-100 mg/Kg/ a cabo nalguns centros pela técnica do Doppler
dia) em 3 doses diárias em 5 dias. transcraniano medindo a velocidade sanguínea na
A hidroxiureia (HU) constitui uma terapêutica porção terminal da carótida interna, e na porção
proximal da artéria cerebral média. Em 30% dos
*A terapêutica quelente está indicada quando os doentes dependentes casos evidenciando dados anómalos (lesões
de transfusões tenham recebido 10-12 transfusões, ou a ferritina tenha
atingido valores constantes superiores a 1.000 mcg/L. Existe risco de estenóticas), existe probabilidade de AVC is-
toxicidade quando o valor é inferior a 1.000 mcg/L. quémico dentro do período de 4 anos.
692 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

3. OUTROS DEFEITOS Em condições normais cerca de 1% de Hb está


DA HEMOGLOBINA sob esta forma de metemoglobina, sendo que várias
enzimas redutoras (metemoglobina-redutases ou
Sistematização diaforases) assegurando a sua retransformação per-
manente em Hb funcional ou transformação de Fe
Faz-se uma referência breve a outras hemoglobi- férrico em Fe ferroso, impedindo que aquela percen-
nas anormais (Hb C , D, E, G, J, K, L, M, etc.), raras tagem de metemoglobina aumente. A forma princi-
no mundo ocidental, em geral em estado hete- pal de diaforases tem por coenzima a NADH (nicoti-
rozigótico com a Hb A, e determinando quadros namida-adenina dinucleótido fosfato ) reduzida.
clínicos benignos e oligossintomáticos (anemia li- A metemoglobina não é um pigmento trans-
geira, células em alvo, reticulocitose discreta, etc.). portador de oxigénio aos tecidos; assim, a curva
Este conjunto é designado classicamente por de dissociação O2-Hb está também desviada para
hemoglobinoses. a esquerda, do que resulta um aumento da
Tendo em conta a semelhança quanto à etiopato- afinidade do O2 para a Hb, com défice de liber-
génese sob o ponto de vista estrutural, e não quan- tação de O2 para os tecidos e consequente hipóxia.
to à manifestação de hemólise, nem sempre verifi- A maioria dos doentes atingidos por esta
cada, cabe também uma referência às chamadas: doença (transmitida de modo autossómico reces-
– hemoglobinas termolábeis (instáveis). Inte- sivo e frequente nos índios Navajo) tem défice
gram quadros diversos de anemia hemolítica inter- NADH citocromo b5 redutase ou de diaforase 1. A
mitente transmitidos de modo autossómico domi- percentagem de metemoglobina é da ordem dos
nante, destacando-se uma característica biológica 40%, não originando, em geral sintomas; poderá
clássica: o aparecimento de corpos de Heinz nos verificar- se cianose ligeira, depressão respiratória
eritrócitos após incubação a 37ºC durante 48 horas; ou policitémia compensadora.
e às A clássica cor de chocolate do sangue é notória
– hemoglobinopatias com afinidade anormal sempre que a proporção de metemoglobina for
para o oxigénio, em geral transmitidas de modo superior a 15-20%. Proporções superiores a 70%
autossómico dominante. Se a afinidade estiver são potencialmente letais.
aumentada, a tradução clínica é défice de oxige- Tratando-se de formas assintomáticas, não está
nação tecidual podendo conduzir a policitémia com- indicado qualquer tratamento.
pensadora; se a afinidade estiver diminuída, o resul- Nas formas sintomáticas a abordagem é seme-
tado poderá ser anemia (Hb Seattle), ou cianose (Hb lhante à descrita para as formas tóxicas (adquiri-
Kansas). das), adiante referidas a propósito do diagnóstico
Neste capítulo é abordada uma entidade clínica diferencial.
designada por metemoglobinémia a qual partilha, A electroforese das Hb e o estudo espectrofo-
na sua forma congénita hereditária características tométrico contribuem para o esclarecimento diag-
etiopatogénicas, quer com outras alterações ao nóstico.
nível do heme (por anomalia enzimática, metemo- Nota: Embora este tópico seja abordado no capítulo
globina-redutases ou diaforases), quer com outras de anemias hemolíticas pelas razões atrás apontadas,
anomalias estruturais da globina (afectando chama-se a atenção para o facto de que na metemoglo-
cadeias α, ou cadeias β, originando a Hb M). binémia por défice enzimático não existe hemólise.

Metemoglobinémia hereditária Metemoglobinémia hereditária


devida a défices enzimáticos associada a Hemoglobina M

A hemoglobina converte-se em metemoglobina Existem diversas variantes de Hb M as quais


quando o ferro do heme (ferroso na hemoglobina resultam, com referido antes, de anomalias estru-
ou Fe2+), uma vez oxidado, passa a férrico ou Fe3+, turais das cadeias α ou β.
na metemoglobina; esta última é a chamada Hb As formas homozigóticas são letais; nas for-
desnaturada. mas heterozigóticas a percentagem de metemo-
CAPÍTULO 143 Anemias hemolíticas por defeitos da hemoglobina 693

globina oscila entre 20% e 30%, a que corresponde mada), em presença de pressão arterial de O2 (Pa
clinicamente cianose com PaO2 normal. O2) normal ou elevada, são: taquipneia, taquicár-
Ao contrário do que acontece com a metemoglo- dia, acidose metabólica, disritmias, convulsões,
binémia por défice enzimático, existe diminuição da coma; e, em situações com teor superior a 70%,
afinidade da Hb para o O2 verificando-se, portanto, morte.
desvio da curva da Hb-O2 para a direita permitindo O tratamento (de urgência) da metemoglo-
maior distribuição de O2 aos tecidos e explicando, binémia tóxica (adquirida) consiste na admi-
designadamente, que não se verifiquem sintomas nistração por via endovenosa de azul de metileno
respiratórios. (solução a 1%) na dose de 1-2 mg/kg de peso
A característica clínica mais chamativa é a durante 5 minutos; a dose pode ser repetida em
cianose verificável a partir dos 4-6 meses de idade; intervalos de 4 horas até máximo de 7 mg/kg. [O
nas variantes de Hb M Saskatoon e Hyde Park azul de metileno está contraindicado nos casos de défice
(hemoglobinas instáveis) pode verificar-se anemia de G – 6PD]. Em alternativa: ácido ascórbico na
hemolítica crónica. dose de 200-500 mg/dia (efeito mais lento).
A electroforese das Hb e o estudo espectrofo- Nos casos em que não se verifica resposta está
tométrico contribuem para o esclarecimento diag- indicada exsanguinotransfusão ou oxigenação hi-
nóstico. perbárica. [O azul de metileno e o ácido ascórbico
Nas formas sintomáticas a abordagem é seme- são ineficazes em casos de metemoglobinémia
lhante à descrita para as formas adquiridas. associada a Hb M].

Diagnóstico diferencial e tratamento


4. SÍNDROMAS TALASSÉMICAS
O diagnóstico diferencial das metemoglobinémias
hereditárias faz-se essencialmente com a metemo- Importância do problema e aspectos
globinémia adquirida (tóxica). epidemiológicos
Esta situação resulta da acção de certas drogas
e agentes químicos oxidantes que provocam des- As síndromas talassémicas constituem um grupo
naturação da hemoglobina tais como toxinas pro- heterogéneo de doenças hereditárias caracteriza-
duzidas por certas enterobacteriáceas em casos de das por anemia hipocrómica, e causadas por
diarreia, nitritos, nitratos(certos aditivos alimenta- défice da síntese de uma ou mais das cadeias poli-
res,fertilizantes), primaquina, derivados da anili- peptídicas da globina.
na (corantes, certos lápis), sulfonamidas, análogos As síndromas talassémicas classificam-se habi-
da vitamina K, benzocaína, etc.. Os recém-nasci- tualmente de acordo com o tipo de cadeia glo-
dos são mais susceptíveis à formação de metemo- bínica afectada. Ou seja: nas α-talassémias há uma
globina dado que possuem maior percentagem de perturbação da síntese das cadeias polipeptídicas
hemoglobina F e mais baixo nível de metemoglo- alfa; nas β-talassémias a alteração assenta nas
bina-redutase. cadeias beta, sendo estas formas as mais fre-
As manifestações clínicas traduzem-se essen- quentes. As cadeias γ e δ são mais raramente afec-
cialmente por cianose – que não responde à admi- tadas.
nistração de oxigénio. Aliás, trata-se duma As síndromas talassémicas são relativamente
pseudocianose com coloração da pele descrita frequentes, sobretudo na bacia do Mediterrâneo,
classicamente como “mais castanha do que azul”. donde a denominação sinónima que se consagrou
Tais manifestações somente se verificam se a taxa ao longo de décadas de “anemias mediterrâni-
de Hb reduzida for superior a 5 gramas/dL. Se os cas”. No entanto, encontram-se espalhadas por
valores de metemoglobinémia forem superiores a quase todo o mundo, provavelmente por difusão
1,5 gramas/dL, o sangue evidencia cor castanha a partir de migrações de povos mediterrânicos.
(tipo “chocolate”). Nesta perspectiva, têm perfeito cabimento rela-
Outros sintomas e sinais (tanto mais exube- tivamente a este tópico os aspectos epidemiológi-
rantes quanto maior o teor de metemoglobina for- cos focados a propósito das síndromas falciformes.
694 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Etiopatogénese Convencionou-se a seguinte nomenclatura re-


lativamente ao genótipo da globina (α): – α/α α ◊
Considerando os tipos mais frequentes (α e β deleção de 1 gene; – α/– α ◊ deleção de 2 genes,
–talassémia) há a salientar as seguintes noções: sendo um de cada cromossoma; – –/αα ◊ deleção
– na forma (β) o impedimento da formação da de 2 genes de apenas um cromossoma; – –/– α ◊
cadeia (β) leva ao predomínio de síntese de deleção de 3 genes; – –/– – ◊ deleção de 4 genes;
cadeias (γ) e (δ) pelo que aparecem globinas α2 γ2 αααα ◊ ausência de deleção.
e α2 δ2, isto é, cadeias de Hb F e de Hb A2, respec- A mutação em um só gene não produz efeito
tivamente em vez de cadeias de Hb A1; clínico significativo (estado de portador silencioso).
– na forma (α) geram-se globinas sem cadeias A mutação em dois genes dá origem ao
α, originando Hb H de fórmula β 4 com cadeias β quadro caracterizado por microcitose, com ou sem
normais, após nascimento, ou Hb Bart de fórmula anemia ligeira (traço).
γ4 com cadeias γ também normais, na vida fetal. A mutação em quatro genes origina situação de
As mutações podem resultar em ausência de hydrops fetalis, anemia intrauterina grave que poderá
síntese de globina (β° ou α°), ou em diminuição de levar a morte fetal na ausência de intervenção.
síntese (β+ ou α+). A mutação em três genes conduz à formação
As α – talassémias derivam ordinariamente de de Hb Bart e de Hb H. (Ver adiante)
deleções de material genético, enquanto as β – Estão descritas mais de 30 mutações em genes
talassémias resultam em geral de genes disfuncio- da α-globina.
nantes. As mutações em genes em indivíduos de
Especificando, as alterações genéticas podem origem africana ocorrem em diferentes cromosso-
classificar-se da seguinte forma: mas (trans) sendo a situação clínica benigna.
Grandes deleções Pelo contrário, em indivíduos de origem asiáti-
Trata-se de perda de grande fragmento de ca as deleções podem ocorrer no mesmo cromos-
ADN (600 – a mais de 20.000 nucleótidos) que soma (cis), daí a maior probalidade de, nos dois
contém o gene das globinas. Nestas circunstâncias cromossomas 16 dos descendentes se verificar
os genes não são transcritos porque não estão pre- maior número de genes afectados.
sentes, ou porque perderam partes importantes
das suas regiões reguladoras. Hemoglobinopatias de cadeia β
Pequenas deleções ou inserções As hemoglobinopatias de cadeia (β), mais comuns
Trata-se de perdas (ou mais raramente acres- do que as de cadeia (α), dependem de 2 genes, 1
centos) de um, dois ou quatro nucleótidos, com por cada cromossoma 11. Este grupo abrange dois
consequente deslocação de bases ao longo do subgrupos:
ADN, de modo que a mensagem transmitida pelo – aquele em que mutações de gene ou genes
ARNm, sendo incorrecta, não permite a síntese das cadeias β, determinam alteração estrutural ou
duma cadeia de globina completa e estável. qualitativa da Hb (por ex. Hb C, Hb E, Hb D, e Hb
Mutações S, esta última já estudada noutro capítulo);
Neste tipo de alterações existe substituição de – aquele em que as mutações dos genes das
apenas uma base no ADN. cadeias β condicionam anomalias de síntese, ou
A este propósito são analisadas noções básicas de uma cadeia β apenas, de duas cadeias β, origi-
transpostas para a formação das cadeias de globina. nando situações clínicas de gravidade variável.
Hemoglobinopatias de cadeia α Estão descritas mais de 200 mutações em genes
Uma vez que as cadeias (α) são necessárias para a da β-globina.
eritropoiese fetal e para a produção de Hb F (α2
γ2), as hemoglobinopatias de cadeia alfa (α) 4.1. β-Talassémias
podem estar presentes e manifestar-se in utero.
As cadeias (α) dependem de 4 genes (α, α, α, Sistematização
α) presentes nos dois cromossomas 16 (respectiva- São descritas quatro síndromas clínicas de β-talas-
mente 2 genes por cromossoma). sémia, nomeadamente, o estado de portador
CAPÍTULO 143 Anemias hemolíticas por defeitos da hemoglobina 695

silencioso, traço talassémico β, talassémia inter- crinas (diabetes, hipotiroidismo, diminuição da


média e talassémia major. actividade da somatomedina) possivelmente em
Se somente um gene da β globina está afecta- relação com o depósito do ferro e hipóxia crónica.
do, a β-talassémia resultante pode corresponder: à De salientar que o o ferro acumulado provém,
forma de portador silencioso (β+ ou expressão par- tanto da degradação da Hb, como da sua absorção
cial do gene); ou traço (β° ou ausência de expres- intestinal aumentada; como consequência poderá
são do gene). (Ver adiante) instalar-se um quadro de deposição visceral gene-
Se os dois genes da β-globina estiverem afecta- ralizada de Fe.
dos, o fenótipo resultante é mais exuberante e Por volta dos 4 a 6 anos passa a ser progressi-
grave, dependendo do grau de expressão dos vamente notório um conjunto de características
genes e das características das β globinas formadas. dismórficas craniofaciais ou fenótipo sui generis:
Os genótipos β+/β+ ou β+/βº originam a forma prognatismo do maxilar superior, retrognatismo
intermédia, e o genótipo β°/β° origina a forma do inferior, procidência das bossas frontais, tur-
mais grave (major). ricefalia. As alterações esqueléticas são o resultado
Salienta-se que tais síndromas correspondem da hiperplasia da medula óssea que determinam
ao grau de expressão dos 2 genes que codificam a alargamento do espaço medular, com adelgaça-
β-globina e não ao número de genes que sofreram mento da cortical e marcada osteoporose. Com
mutação. efeito, estas alterações são mais evidentes nos
São referidas sucintamente, também outras for- ossos do crânio (padrão radiográfico “crânio em
mas raras. escova”, já citado a propósito da drepanocitose)
(Figura 7) e face dando origem à típica fácies
4.1.1. β-Talassémia major asiática (malares e gengivas salientes e aumento
(Anemia de Cooley) da espessura dos ossos do crânio). Estas alterações
e a eritropoiese extramedular são o epifenómeno
Etiopatogénese de eritropoiese ineficaz. (Figuras 8)
A ausência de síntese das cadeias β da globina a
que corresponde o genótipo β° β°, determina ane- Exames complementares
mia hemolítica intensa e crónica. Como mecanis- O hemograma demonstra sinais de anemia grave
mo compensador do organismo verifica-se hiper- com microcitose e hipocromia (índice de Mentzer
plasia do tecido hematopoiético (expansão das <11,5).
cavidades medulares, hepatosplenomegália) e No recém-nascido os valores iniciais de Hb são
aumento da absorção digestiva do ferro. (Figura 6) normais, diminuindo progressivamente para atin-
girem progressivamente valores inferiores a
Manifestações clínicas e sua 5g/dL nos primeiros meses de vida. O número de
interpretação fisiopatológica reticulócitos varia entre 2 e 8%.
Em geral as manifestações não surgem antes dos 6 O estudo morfológico do sangue periférico
meses por motivo do efeito protector da Hb fetal evidencia células em alvo, anisocitose e poiqui-
normal. Os sinais iniciais são palidez, icterícia e locitose marcadas. O número de plaquetas é nor-
hepatosplenomegália ligeiras (por eritropoiese mal não existindo hiperesplenismo.
extramedular) que são mais notórias pelos 2 anos O exame da medula óssea mostra sinais de
de idade. Concomitantemente verifica-se compro- hipercelularidade com intensa hiperplasia eritróide
misso progressivo do crescimento com agrava- e diseritropoiese. Os depósitos de ferro estão muito
mento da síndroma anémica (palidez “terrosa”) aumentados. A resistência osmótica está também
ao longo dos anos. aumentada. A siderémia está elevada assim como a
Poderão surgir progressivamente alterações saturação da transferrina e a ferritina.
cardíacas como resultado do estado hiperdinâmi- O estudo das hemoglobinas evidencia pre-
co secundário à anemia de gravidade progressiva, domínio de Hb F. O nível de Hb A1 pode ser inde-
e hemossiderose miocárdica, a principal causa de tectável. O valor da HbA2 é paralelo ao da Hb A,
mortalidade (< 10%). Igualmente, alterações endó- sendo que a relação HbA2 / Hb A1 é inferior a
696 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

γ α β
Exces
so
α2γ2 Desnaturação
Degradação
HbF
Sobrevivência selectiva
dos precursores contendo
HbF Hemólise Destruição dos precursores
dos eritrócitos

↑ níveis de HbF Esplenomegália


nos eritrócitos (sequestro, expansão
do volume plasmático) Eritropoiese ineficaz

↑ afinidade dos eritrócitos Anemia


para o O2

↓L al
ibe
rta cidu
te
çã
od xia
eO ipó
H
2
Eritropoietina Transfusão

Expansão medular

↑ Ab
sorçã
o de Deposição de Fe
Fe
Deformidades ósseas
↑ Metabolismo basal
Caquexia
Deficiência de folato
Gota Disfunção endócrina
Cirrose
Insuficiência cardíaca

FIG. 6
Etiopatogénese da β-talassémia. Adaptado de Weatherall DJ, 1998.

1/20 (em condições normais é 1/30). Outras complicações são: pericardite aguda
A avaliação da cinética do ferro mostra um inespecífica benigna, fracturas ósseas recorrentes
padrão de eritropoiese ineficaz. explicáveis pela etiopatogénese descrita, hipocres-
cimento e hipodesenvolvimento, designadamente
Complicações em relação com o desenvolvimento pubertário.
Existe maior susceptibilidade para infecções, A hemólise crónica pode originar litíase biliar
mesmo antes da esplenectomia; a este propósito e colecistite, sobretudo na adolescência.
cabe referir que se verifica: diminuição dos linfó- As complicações de maior relevância relacio-
citos T; aumento da actividade das células NK nam-se, sobretudo, com a deposição tecidual de
(natural killer) e de imunocomplexos, estes últimos Fe secundária à absorção excessiva de ferro, quer
com eventual papel na génese da cirrose que, por por via digestiva, quer através de múltiplas trans-
vezes, afecta estes doentes. fusões. Este aspecto pode, até certo ponto, ser
CAPÍTULO 143 Anemias hemolíticas por defeitos da hemoglobina 697

A minorado através da administração de agentes


quelantes. (ver síndromas falciformes). A adminis-
tração de vitamina C (100-200 mg/dia) no mo-
mento de iniciar a administração de desferroxa-
mina B contribui para mobilizar os depósitos de
ferro, aumentando a sua excreção.

Tratamento
O tratamento inclui transfusões de concentrado
eritrocitário, utilização de quelantes do ferro,
administração de ácido fólico, esplenectomia e
transplantação de medula óssea.
O regime de hipertransfusões de concentrado
eritrocitário deverá ser planeado de modo a man-
ter níveis de Hb > 9,5 g/dL, o que implica, em
geral, volumes transfusionais de 15 ml/kg cada 4-
B 5 semanas; com esta estratégia é possível diminuir
a absorção intestinal de ferro (que, como se re-
feriu, está aumentada), contribuindo para uma
maior eficácia da eritropoiese.
A indicação da esplenectomia é dada pelas di-
mensões do baço, em princípio directamente pro-
porcionais ao grau de hiperesplenismo e à neces-
sidade de transfusões. Como foi referido noutro
capítulo, deverá ser protelada até aos 5 anos, sem-
pre que possível.
Têm igualmente cabimento, quer as medidas
profilácticas e terapêuticas anti-infecciosas, quer as
FIG. 7
medidas nutricionais (administração de ácido fóli-
Radiografia do crânio: A – Crânio em escova; B – Sinais de co) descritas a propósito das síndromas falciformes.
hiperplasia medular. (NIHDE) A transplantação medular constitui uma opção
terapêutica sempre que se disponha de dador
HLA idêntico.
Por fim, uma referência à terapêutica génica
ainda em fase experimental, mas seguramente a ter-
apêutica definitiva no futuro, de cariz mais etiológico
do que as actualmente disponíveis: introdução de
genes da globina veiculados por células estaminais
pluripotenciais por meio de um vector retrovírico.

4.1.2. Talassémia intermédia

Esta forma, correspondendo a 2 genes da β-globi-


na afectados, integra fundamentalmente os genóti-
pos β+/β+ ou β+/βº. A electroforese das Hb revela
HbA~20-40%; Hb A2~5%; HbF~60-80%.
FIG. 8 *Este quadro exuberante, observado há três décadas, é hoje raro dados
os progressos verificados no diagnótico e na terapêutica. (Cortesia da
Fácies talassémica. Hepatosplenomegália exuberante*. (NIHDE) Profª MG Gomes da Costa ao NIHDE).
698 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Verifica-se anemia microcítica (hipocromia), genótipos Beta/Beta+ e Beta/Betaº são englobados


icterícia e esplenomegália moderadas; o valor de no fenótipo traço beta-talassémico (minor).
Hb por vezes atinge 8 g/dL. Poderão ser obser-
vadas células em alvo com pontuações basófilas. 4.1.5. δ-β-talassémia
Trata-se duma forma de β-talassémia mais li-
geira, raramente necessitando de transfusões pe- A esta forma, caracterizando-se por anemia hipo-
riódicas. crómica ligeira, corresponde o genótipo δβ°/A. A
Nota: Existe uma forma de hemoglobinopatia Hb F na electroforese revela valores de 5-20%
ocorrendo sobretudo na Ásia com fenótipo sobre-
ponível ao da b-talassémia intermédia. Trata-se da 4.1.6. δ-β-talassémia Lepore
chamada [HβE-βº-talassémia], gerada por co-
hereditariedade [(gene da HβE (βE) e alelo da β- Esta forma corresponde a 2 genótipos: hete-
talassémia grave (βº)]. rozigótico βLepore/A, e homozigótico e βLepore/βLepore.
As manifestações clínicas, variáveis, são se-
4.1.3. Traço β-talassémico (minor) melhantes às da β-talassémia major ou talassémia
intermédia.
Esta forma a que corresponde ausência de
expressão de 1 gene da β-globina afectado (genó- 4.1.7. Persistência hereditária
tipo ββº), caracteriza-se por escassez de sinais e da Hb fetal (PHHF)
sintomas.
Encontra-se distribuída em grupos étnicos da Nesta entidade (de que existem descritas >20 va-
zona mediterrânica (Itália e Grécia), Sueste asiáti- riantes), resultante de deleção ou mutação origi-
co e em populações de origem africana. nando défice de produção de cadeias β ou δ ou de
O hemogrma evidencia anemia hipocrómica e ambas, verifica-se incapacidade para a síntese da
microcítica com CHGM diminuída. Os reticulócitos cadeia γ na fase de transição da vida intrauterina
poderão estar ligeiramente aumentados em número. para a extrauterina; de tal resulta a manutenção
A electroforese da Hb demonstra Hb A2 ~5-7% durante toda a vida de níveis elevados de Hb F.
e aumento moderado de Hb (2-10%) F. A Hb F pode As manifestações são silenciosas (anemia e mi-
evidenciar valores dentro dos limites do normal. crocitose ligeiras).
O diagnóstico diferencial faz-se com a anemia
ferropénica. 4.2 α-Talassémias
O ferro sérico e a capacidade de fixação do
ferro são normais ou aumentados, e a medula ós- Sistematização
sea pode mostrar depósitos excessivos de ferro na Os indivíduos normais – como foi referido antes –
criança mais velha. possuem quatro genes (α) activos responsáveis
Não existe tratamento disponível, salientando- pela síntese de cadeias α.
se que, obviamente não deverá ser administrado Nas α – talassémias, a que corresponde largo
ferro sob pena de agravamento da tendência para espectro de síndromas, há diminuição da síntese
hemossiderose. de cadeias α levando a anemia, salientando-se que
o grau de anemia é directamente proporcional ao
4.1.4. Portador silencioso número de deleções.
Para além das mutações relacionadas com
Esta forma, a que corresponde expressão parcial de deleções, existem mutações dos referidos genes da
1 gene da β-globina afectado (genótipo ββ+), é car- α-globina não delecionais, a mais comum das
acterizada por microcitose assintomática. Verifica- quais é a chamada constant spring de genótipo α αcs.
se elevação da HbA2 e elevação variável de HbF. Nas alíneas seguintes são descritos quatro
Quanto a formas raras, citam-se as que corres- quadros clínico-laboratoriais de α-talassémia rela-
pondem às alíneas 4.1.5, 4.1.6 e 4.1.7. cionados com mutações delecionais.
Nota importante: Segundo alguns autores os
CAPÍTULO 143 Anemias hemolíticas por defeitos da hemoglobina 699

4.2.1. Hidropisia fetal por Hb Bart Paediatrics and Child Health 2011; 21:353-356
Claster S, Vichinsky EP. Managing sickle cell disease. BMJ
Este quadro, em que se verifica deleção de 4 genes 2003; 327: 1151-1555
[genótipo (– –/– –) mais frequente na Ásia], Cunningham MJ. Update on thalassemia: Clinical care and
corresponde à situação homozigótica (αº) em que, complications. Pediatr Clin North Am 2008; 55: 447-460
por não haver síntese de cadeias, não há HbA nem Driscoll MN, Hurlet A, Styles L, et al. Stroke risk in siblings
HbF: os achados electroforéticos detectam unica- with sickle cell anemia. Blood 2003; 101: 2401-2404
mente Hb Bart e pequenas quantidades de HbH e Kelly MJ, Pennarola BW, Rodday AM, et al. Health-related
Hb Portland. quality of life (HRQL) in children with sickle cell disease
As consequências são hydrops fetalis (hepatos- and thalassemia following hematopoietic stem cell trans-
plenomegália e anasarca tal como acontece na plant (HSCT). Pediatr Blood Cancer 2012; 59:725-731
doença hemolítica do feto-recém-nascido por Kizito M, Mworozi E, Ndugwa C, et al. Bacteraemia in
incomptatibilidade sanguínea feto-materna) com homozygous sickle cell disease in Africa: Is pneumococcal
elevado risco de morte fetal e neonatal. prophylaxis justified? Arch Dis Child 2007; 92: 21-23
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
4.2.2. Doença por Hb H Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
Saunders, 2011
Nesta afecção apenas um dos quatro genes está Platt OS, Dover GJ. Sickle cell disease. In Nathan DG, Oskin
ctivo (– –/– α). Existe, portanto, deleção de 3 genes. SH, Ginsburg D, Look AT (eds): Hematology of Infancy and
Na vida adulta predomina a HbA com 5-30% Childhood. Philadelphia: Saunders, 2003; 709-822
de Hb H; no período neonatal predomina a HbF Rehman HU. Methemoglobinemia. West J Med 2001; 175: 193-
com 10-20% de Hb Bart, sendo vestigial o teor de 196
Hb H. Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
O quadro clínico é semelhante ao da talas- AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
sémia major ou da intermédia. Medical , 2011
Rund D, Rachmilewitz E. β-Thalassemia. NEJM 2005; 353:
4.2.3. Traço α-talassémico 1135-1146
Telfer PT. Management of sickle cell disease: outpatient and
Esta forma integra o genótipo (– α/– α ou – –/α α) community aspects. Paediatrics and Child Health 2011;
a que corresponde deleção de 2 genes. 21:357-362
Não se verificam manifestações clínicas, iden- Wonke B. Clinical management of beta-thalassemia major.
tificando-se apenas no esfregaço do sangue pe- Semin Hematol 2001; 38: 350-359
riférico microcitos hipocrómicos.
No período neonatal identifica- se Hb Bart na
percentagem de 5-10%.

4.2.4. Portador silencioso

Esta forma integra as formas de genótipo (– α/α


α); no período neonatal detecta-se Hb Bart na
ordem de 1-2%. A detecção destes portadores
pode fazer-se recorrendo a métodos de ADN.

BIBLIOGRAFIA
Cataldo F. Immigration and changes in the epidemiology of
hemoglobin disorders in Italy: an emerging public health
burden. Italian Journal of Pediatrics 2012; 38:32
/doi:10.1186/1824-7288-38-32
Chiruka S, Darbyshire P. Management of thalassaemia.
700 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

144
Nos episódios hemolíticos agudos pode estar
indicada corticoterapia. A possibilidade de fenó-
menos trombóticos, a complicação mais frequente
e temível, pode estabelecer a indicação de terapia
anticoagulante prolongada.
Actualmente utiliza-se o anticorpo monoclonal
HEMOGLOBINÚRIA eculizumab que, actuando contra a fracção C5 do
complemento, estabiliza os níveis de Hb e reduz a
PAROXÍSTICA NOCTURNA necessidade de transfusões.

João M. Videira Amaral BIBLIOGRAFIA


Brodsky RA. New insights into paroxysmal nocturnal hemo-
globinuria. Hematology Am Soc Hematol Educ Program
2006; 24-28
Trata-se duma anomalia adquirida da hemato- Hill A, Kelly R, Hillmen P. Thrombosis in paroxysmal noctur-
poiese (stem cells) caracterizada por um defeito da nal hemoglobinuria. Blood 2013; doi:10.1182/blood-2012-
síntese duma proteína reguladora (glicosilfosfa- 09-311381
tidilinositol) da membrana do eritrócito e outras Hillmen P, Young NS, Shubert J, et al. The complement
células, tornando-os mais susceptíveis à destruição inhibitor eculizumab in paroxysmal nocturnal hemoglobin-
prematura por substâncias normalmente presentes uria. NEJM 2006; 355: 1233-1243
no soro, incluindo componentes do sistema regu- Hoffman R, Benz EJ, Shattil SJ, et al (eds). Hematology: Basic
lador do complemento (CD55 e CD59); tal processo Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier Churchill
é activado pela properdina. (Capítulo 150) Livingstone, 2007
Como consequência, surge anemia hemolítica Risitano AM, Notaro R, Luzzatto L, et al. Paroxysmal noctur-
crónica com hemólise intravascular. nal hemoglobinuria -hemolysis before and after eculizum-
Na base desta situação clínica estão mutações ab. N Engl J Med 2010; 363:2270-2272
num gene relacionado com a biossíntese glicoli- Smith LJ. Paroxysmal nocturnal hemoglobinuria. Clin Lab Sci
pídica (PIGA). 2004; 17: 172-177
Na hemoglobinúria paroxística nocturna,rara Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
em idade pediátrica, surgem tipicamente episó- Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
dios de hemoglobinúria relacionados com o sono 2011
(período em que diminui o pH sérico), indepen- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
dentemente de ser dia ou noite. AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
O diagnóstico de hemoglobinúria paroxística Medical , 2011
nocturna é confirmado pela demonstração de
hemólise de eritrócitos do doente em presença de
soro normal a 37ºC, acidificado; a verificação fre-
quente de pancitopénia implica o diagnóstico
diferencial com anemia aplástica.
A citometria de fluxo constitui o método de
escolha para o diagnóstico. Nos eritrócitos é de-
monstrável a diminuição da actividade da acetilcol-
inesterase. Existe igualmente diminuição de CD 59.
A perda de ferro conduz, em geral, a anemia
ferropénica.
Nos casos de hemoglobinúria paroxística noc-
turna poderá estar indicada terapêutica com ferro
e, em certos casos, terapêutica transfusional, dadas
as perdas do referido nutriente por via urinária.
CAPÍTULO 145 Anemias hemolíticas de causa extrínseca 701

145
férico e de esferócitos, permitem confirmar o dia-
gnóstico.
Este tópico (anemia hemolítica isoimune/
doença hemolítica perinatal) é retomado, com
mais pormenor, na Parte XXXI.

ANEMIAS HEMOLÍTICAS
2. ANEMIA HEMOLÍTICA AUTOIMUNE
DE CAUSA EXTRÍNSECA
Etiopatogénese
João M. Videira Amaral
Na anemia hemolítica autoimune os anticorpos do
doente são dirigidos contra os eritrócitos do
mesmo. Os anticorpos são, na maioria, quer do
1. ANEMIA HEMOLÍTICA ISOIMUNE tipo IgM (anticorpos “frios”), quer do tipo IgG
(anticorpos “quentes” ou “incompletos”).
Etiopatogénese Na base desta patologia está provavelmente
um processo de modificação de antigenicidade
A hemólise de causa isoimune (admitindo como dos eritrócitos associado a lesão da membrana
paradigma a incompatibilidade sanguínea mater- celular por infecção ou por agente químico (fár-
no-fetal) é provocada por imunização materna maco, por ex.); poderá também estar em causa o
activa contra antigénios fetais não existentes nos aparecimento de um novo antigénio (neoantigé-
eritrócitos maternos. São exemplos os anticorpos nio) formado pela combinação do agente infec-
contra os antigénios A, B, D e outros dos sistemas cioso com o eritrócito.
Rh Kell, Duffy etc.. Na prática, as situações frequentemente asso-
A hemólise anti-A e anti-B é provocada pela pas- ciadas a tal anomalia são:
sagem transplacentar mãe → feto de aglutininas – infecções por Mycoplasma, vírus de Epstein-
(anticorpos naturais) da mãe do grupo O (com aglu- Barr, outros vírus (nestas situações o paradigma é
tininas alfa e beta) as quais poderão provocar hemó- o aparecimento de aglutininas chamadas “frias”,
lise em RN dos grupos A ou B respectivamente. isto é, actuando a temperaturas inferiores a 37ºC);
Tendo escolhido a anemia hemolítica isoimune – doenças crónicas autoimunes (lúpus eritema-
do recém-nascido como paradigma, cabe referir que toso sistémico, doenças linfoproliferativas, doença
nas reacções hemolíticas transfusionais decorrentes de Hodgkin, tiroidite de Hashimoto, leucemia lin-
de transfusão de sangue incompatível a etio- fóide crónica, síndromas de imunodeficiência,
patogénese é sobreponível à de incompatibilidade de etc.); em geral, estas afecções estão associadas ao
grupo sanguíneo, não mãe-filho, mas dador-receptor. aparecimento de anticorpos IgG (“quentes”) por
terem a máxima actividade, sem necessidade do
Manifestações clínicas e laboratoriais complemento, entre 37-40°C;
– hemoglobinúria paroxística desencadeada
As manifestações resultantes da hemólise (que no pela exposição ao frio (resultante de episódios de
sistema Rh pode ocorrer já no feto) são anemia no hemólise intravascular mediada pela hemolisina
feto/recém-nascido, possível hydrops fetalis, hiper- de Donath-Landsteiner ou autoanticorpo IgG
bilirrubinémia, hepatosplenomegália, etc.. reactivo ao frio, fixando complemento a tempe-
As provas de Coombs positivas (directa – reali- ratura abaixo de 37ºC, provocando aglutinação e
zada no recém-nascido, permitindo detectar anti- hemólise quando a temperatura se eleva); em
corpos fixados sobre os eritrócitos, e indirecta- geral, o processo está associado a infecções víricas
realizada na mãe, permitindo evidenciar anticor- e a sífilis congénita ou adquirida;
pos no respectivo soro), a presença de precursores – fármacos formando um hapteno ao nível da
eritróides imaturos (eritroblastos) no sangue peri- membrana (por ex. penicilina) ou complexos imu-
702 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

nes (por ex. quinidina); consequentemente a acti- Tratamento


vação do complemento induz hemólise;
– outros fármacos administrados durante Na fase aguda pode estar indicada transfusão san-
longo tempo como a alfa-metildopa provocam al- guínea, eventualmente como medida urgente;
teração da membrana do eritrócito, do que resulta salientam-se as dificuldades que por vezes surgem
a formação de neoantigénios a que atrás se aludiu, para a determinação do grupo sanguíneo tendo
com consequente formação de anticorpos. em conta a existência de autoaglutininas.Nos casos
de hemoglobinúria paroxística desencadeada pelo
Manifestações clínicas frio, a transfusão comporta riscos (adição de com-
plemento e probabilidade de hemólise).
O quadro clínico mais frequente (cerca de 80% dos Outras medidas incluem a administração de
casos) surge em crianças entre os 2 e 12 anos na corticosteróide (prednisolona em doses entre 2 a 6
sequência de infecção, na maioria respiratória. Os mg/kg/dia em função da intensidade da hemó-
sinais e sintomas, de início agudo,duram cerca de lise, e com duração dependente da mesma) e de
3 a 6 meses: prostração, palidez progressiva, icterí- imunoglobulina intravenosa (nos casos em que a
cia, febre, hemoglobinúria e esplenomegália. corticoterapia não é eficaz), como meio de blo-
Outra forma clínica, mais insidiosa e de maior quear os receptores Fc dos macrófagos e de depu-
duração (meses a anos), manifesta-se sobretudo rar os eritrócitos sensibilizados.
em adolescentes e jovens adultos. Nos casos refractários está indicado o anticor-
No caso de a anemia autoimune constituir um po monoclonal (rituximab) actuando ao nível dos
epifenómeno de doença subjacente, manifestar-se linfócitos B como frenador da produção de anti-
–ão também os respectivos sintomas e sinais. corpos.
O quadro de hemoglobinúria paroxística de- Nos casos em que as medidas anteriores não
sencadeada pela exposição ao frio (temperaturas tenham sido eficazes, deverá ser ponderada a
inferiores a 37ºC) é autolimitado, explicando cerca esplenectomia, obtendo-se melhores resultados
de 30% dos episódios de hemólise de causa imune. nos casos devidos a IgG. A mesma, que comporta
risco elevado de infecções por germes capsulados,
Exames complementares sobretudo nas crianças de idade inferior a 2 anos,
obrigará a medidas profilácticas, designadamente
O hemograma e o estudo do sangue periférico evi- imunização anti- pneumocócica, meningocócica e
denciam: anemia normocítica e normocrómica, Haemophilus influenzae.
moderada a grave (por vezes são atingidos níveis
de hemoglobina da ordem de 4 a 6 g/dL), esfe- Prognóstico
rocitose, células nucleadas e reticulócitos, assim
como leucocitose. (Quadro 2 – Capítulo 141) A forma aguda anteriormente descrita, independen-
O número de plaquetas em geral é normal; no temente da gravidade do quadro, é autolimitada.
entanto, poderá verificar-se púrpura trombocito- Na globalidade, em cerca de 20% dos casos há
pénica concomitante, associação que corresponde tendência para hemólise crónica.
à chamada síndroma de Evans. (Capítulo 148) Nos casos de síndroma de Evans o prognóstico
O exame da medula óssea revela hiperplasia é reservado com tendência para a cronicidade.
eritróide marcada. A mortalidade nas formas crónicas depende
As provas de Coombs directa e indirecta são da doença de base.
positivas. A bilirrubinémia não conjugada está ele-
vada assim como o urobilinogénio nas fezes e
urina. 3. ANEMIA HEMOLÍTICA ADQUIRIDA
No caso da hemoglobinúria paroxística desen- NÃO AUTOIMUNE
cadeada pelo frio, a prova de Coombs é positiva
no decurso do episódio, e negativa na fase assin- A hemólise pode também ser provocada por me-
tomática. canismos extra-eritrocitários vários, não mediados
CAPÍTULO 145 Anemias hemolíticas de causa extrínseca 703

por anticorpos. Seguidamente são referidos al- acontece em doentes com insuficiência renal
guns dos mecanismos, relacionando-os com situa- crónica.
ções clínicas.
3. Carência de vitamina E
Lesão mecânica da membrana Nestas situações de carência verifica- se sensibili-
eritrocitária dade anormal dos lípidos da membrana ao
estresse oxidante; como exemplos desta carência
1. Microangiopatia trombótica citam-se: a que surge em recém-nascidos com an-
A membrana dos eritrócitos pode ser lesada meca- tecedentes de prematuridade não suplementados
nicamente sempre que se verifique um processo com a referida vitamina, sendo que tal carência
obstrutivo de microangiopatia trombótica. Tal pode ser agravada pela administração de ferro
pode surgir na coagulação intravascular dissemi- (agente oxidante); má-nutrição; síndromas de má-
nada (CID), púrpura trombocitopénica trombótica absorção (incluindo a fibrose quística); regime
(PTT), síndroma hemolítica urémica (SHU), reac- transfusional intensivo traduzindo-se por supri-
ção de hospedeiro contra-enxerto, hipertensão mento elevado em ferro.
maligna, etc.(Capítulos 148, 154, 160).
4. Infecções e parasitoses
2. Outros exemplos são constituídos: pelas próte- Numerosas infecções bacterianas originam hemó-
ses valvulares pós-cirurgia cardíaca em que os lise por libertação de hemolisinas eritrocitárias, do
eritrócitos contactam com superfície não endote- que resulta hemoglobinémia e hemoglobinúria.
lial; e pelo fluxo sanguíneo elevado em heman- Nos casos de anemias por protozoários (por
giomas gigantes (síndroma de Kasabach-Merritt). ex. malária) verifica-se destruição directa dos eri-
O estudo morfológico do sangue periférico trócitos pelos plasmódios que os parasitam.
evidencia eritrócitos fragmentados, microsferoci-
tos, policromasia e eritrócitos em forma de lágri- 5. Agentes físicos
ma. Sendo discutível a acção das radiações ionizan-
tes,é aceite a acção da hipertermia ou das queima-
Lesão da membrana eritrocitária por duras; com efeito, temperaturas da ordem dos
mecanismos diversos 50ºC originam eritrócitos esferocíticos e fragmen-
tados, com diminuição da resistência osmótica.
1. Dislipoproteinémias
As dislipoproteinémias, sobretudo a hipercoles- BIBLIOGRAFIA
terolémia, provocam alterações da membrana eri- Gehrs BC, Friedberg RC. Autoimmune hemolytic anemia. Am
trocitária (aumento do conteúdo em colesterol e J Hematol 2002; 69: 258-271
alteração da relação colesterol/fosfolípidos) dimi- Henry K, Harris CR. Deadly ingestions. Pediatr Clin North Am
nuindo a sua deformabilidade, o que predispõe à 2006; 53: 293-315
hemólise. Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
No sangue periférico são identificados eritró- Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
citos “com esporões”, também observados na abe- Saunders, 2011
talipoproteinémia e em certas hepatopatias acom- Lopez LM, Villa Am (eds). Hematologia y Oncologia Pedia-
panhadas de dislipoproteinémia. tricas. Madrid: Ediciones Ergon, 2004
Petz L. Treatment of autoimmune hemolytic anemias. Curr
2. Toxinas Opin Hematol 2001; 8: 411-416
Determinadas toxinas (como as produzidas por Ramanathan S, Koutts J, Hertzberg MS. Two cases of refracto-
répteis venenosos) e certos metais pesados (cobre ry warm autoimmune hemolytic anemia treated with ritu-
e arsénico), provocam hemólise através da respec- ximab. Am J Hematol 2005; 78: 123-126
tiva ligação ao grupo sulfidrilo da membrana. Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
No sangue periférico podem ser observados AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
eritrócitos com “espículas” irregulares, tal como Medical , 201
704 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

146
crónica, hipoventilação de causa central, etc. Pode
associar-se igualmente a tumores produtores de
eritropoietina (por ex. tumor de Wilms).
As causas neonatais são discutidas no capítulo
355.

POLICITÉMIA Manifestações clínicas

João M. Videira Amaral As manifestações mais comuns da policitémia


vera são: hepatosplenomegália, rubiose, hiper-
tensão arterial, cefaleias, polipneia, e sinais neu-
rológicos (em geral em relação com hipervis-
Definição cosidade sanguínea). Existe granulocitose (que
pode provocar diarreia ou prurido por liber-
Diz-se que há policitémia (eritrose ou poliglo- tação de histamina) e trombocitose (acompanha-
búlia) quando o número total de eritrócitos, o valor da ou não de disfunção das plaquetas); a trom-
da Hb e o volume total eritrocitário excedem os bocitose pode originar doença trombótica ou
limites superiores do normal. Na pós-puberdade, hemorragia.
hematócrito > 60% no sexo masculino, ou > 56% no Nas formas secundárias são notórias manifes-
sexo feminino indicam que há eritrocitose. tações de cianose, hiperémia das mucosas e escle-
Existe falsa policitémia quando existe volume róticas, hipocratismo digital; outras manifestações
plasmático diminuído(por ex. queimaduras, desi- relacionam-se com o problema clínico de base (por
dratação); nestas circunstâncias é mais correcto ex. cianose a partir de teor de Meta-Hb > 1,5 g/dL,
falar-se em hemoconcentração, pois a massa eri- sinais de desidratação em que se verifica hipo-
trocitária não está, de facto, aumentada, verifican- volémia, etc.).
do-se normalização do valor da Hb com a norma- Para o diagnóstico de policitémia vera são uti-
lização do volume plasmático. lizados critérios major: aumento da massa eritro-
citária, saturação Hb/O2 ≥ 92% na ausência de
Etiopatogénese causas secundárias, e esplenomegália); como cri-
térios minor são considerados: plaquetas >
Na entidade clínica designada por policitémia 400.000/mmc, leucócitos > 12.000/mmc, aumento
vera/primária – doença panmieloproliferativa da fosfatase alcalina e aumento do teor de vitami-
rara em idade pediátrica – comprovou-se mutação na B12 (>900 pg/mL).
no gene JAK2 em cerca de 75% dos casos. O recep- O diagnóstico baseia-se na verificação de 3
tor da eritropoietina é normal, e nas culturas in critérios major associados a, pelo menos 1 minor.
vitro de precursores eritróides de pessoas afectadas Os critérios utilizados para o diagnóstico da
não se torna necessária a eritropoietina para esti- policitémia no RN são diferentes. (Capítulo 355)
mular o crescimento. Os níveis séricos de eritro-
poietina estão dentro da normalidade ou baixos. Tratamento
A policitémia secundária, mais frequente na
idade pediátrica, pode surgir no contexto de O tratamento da policitémia primária ou secundá-
hemoglobinopatias (por ex. metemoglobina), ria inclui fundamentalmente: flebotomia (se he-
tumores malignos ou benignos acompanhados de matócrito >65-70% e Hb > 23 g/dL); suplemento
hipersecreção de eritropoietina, (hepáticos, da com ferro cujas necessidades estão aumentadas
supra-renal, síndroma de Cushing,doença renal, por hiperprodução eritrocitária conduzindo a
hipóxia da altitude (incremento em 4% da Hb por microcitose e hiperviscosidade sanguínea; e antia-
cada + 1000 metros de altitude), afecção metabóli- gregantes plaquetários para prevenção da trom-
ca (défice de 2,3-DPG), cardiopatias cianóticas bose e doença hemorrágica.
com shunt direito-esquerdo, doença pulmonar Nos casos de policitémia primária em que
CAPÍTULO 147 Neutropénia 705

147
estas medidas não são efectivas, têm sido empre-
gues interferão-alfa e hidroxiureia.

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Pappas A, Delaney-black V. Differential diagnosis and man- 13500/µL. (7-12 anos) (Capítulo 136 – Quadro 3).
agement of polycythemia. Pediatr Clin North Am 2004; 51: Neutropénia é a designação que corresponde
1063-1086 ao número absoluto de neutrófilos no sangue peri-
férico < 1.500/µL (entre 1 mês e 10 anos, con-
siderando limites de normalidade os valores 1500
e 8000 células/µL); < 1.800/uL em adultos de
ambos os sexos; e < 1.200 /µL em adultos de raça
negra.

Importância do problema
e manifestações clínicas

O número de leucócitos na data do nascimento é


elevado, seguindo-se um declínio rápido a partir
das 12 horas, até ao final da primeira semana.
Após este declínio, os valores estabilizam até ao
ano de idade. Um declínio lento e mantido do
número de leucócitos continua pela infância até
serem atingidos na adolescência os valores seme-
lhantes aos do adulto.
Em função do número de neutrófilos, a neu-
tropénia pode ser ligeira, com valor de neutrófilos
entre 1000 e 1500 células/µL; moderada, com
valor entre 500 e 1000 células/µL; grave, com
valor entre 200 e 500 células/µL; e muito grave,
com valor < 200 células /µL.
Apenas os doentes com neutropénia grave têm
maior susceptibilidade a infecções que poderão
ser fatais, principalmente se aquela persistir por
vários dias. A susceptibilidade a infecções nos
doentes com neutropénia grave é, contudo, bas-
tante variável de indivíduo para indivíduo.
706 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Neste contexto, as manifestações clínicas mais Montanhas Rochosas, erliquiose, etc.) são também
frequentemente relacionáveis com neutropénia causas de neutropénia.
são febre, exantema, celulite, abcessos cutâneos,
furunculose, pneumonia, septicémia, otite média, Fármacos
infecções perianais e da cavidade oral. Os fármacos como analgésicos / anti-inflamatórios
Os agentes infecciosos isolados mais frequen- (acetaminofeno, ibuprofeno), antibióticos (cloran-
temente nos doentes neutropénicos são Staphylo- fenicol, penicilinas), sulfonamidas, anti – convulsan-
coccus aureus e bactérias gram negativas; salienta- tes (carbamazepina) e citostáticos, etc. são outras
-se, no entanto, que não se verifica susceptibili- causas. Nestas circunstâncias, a neutropénia inicia-
dade aumentada para infecções víricas, fúngicas, se de forma súbita 7 a 14 dias após a primeira expo-
parasitárias ou meningite bacteriana. sição ou imediatamente a seguir à reexposição. A
neutropénia induzida por fármacos, resultante de
Classificação, etiopatogénese mecanismos tóxicos, imunológicos ou de hipersensi-
e relação com a clínica bilidade, é grave, comportando taxas de mortali-
dade elevadas. A intervenção terapêutica mais eficaz
Quanto à duração, a neutropénia classifica-se em: consiste em retirar os fármacos não essenciais,
aguda, se for de alguns dias e; em crónica, se evo- podendo ser necessária a administração de factor de
luir durante meses a anos. crescimento de colónias de granulócitos (G-CSF).
Quanto a factores etiológicos, a neutropénia
pode ter na sua base: Causa imunológica
1. Factores extrínsecos às células mielóides – A neutropénia isoimune está associada à presença
mais frequente. de anticorpos antineutrófilo circulantes que provo-
2. Alterações adquiridas das células estaminais cam a destruição de neutrófilos mediada pelo com-
e mielóides – menos frequente. plemento, ou a fagocitose esplénica dos neutrófilos
3. Defeito intrínseco que afecta a proliferação e opsonizados.
maturação das células estaminais e mielóides – rara. Ocorre por sensibilização pré-natal a antigé-
nios específicos dos neutrófilos herdados do pai
1. Secundária a factores extrínsecos (não presentes nos neutrófilos maternos) com
às células mielóides ulterior passagem transplacentar de anticorpos Ig
G maternos contra antigénios dos neutrófilos do
Infecções feto (processo semelhante ao que se passa na ane-
A causa mais frequente de neutropénia na infância mia e trombocitopénia isoimunes).
(transitória) é a infecção vírica (vírus respiratório Como manifestações clínicas mais típicas há a
sincicial, influenza A e B, varicela, rubéola e salientar: “queda” tardia do cordão umbilical,
sarampo). A neutropénia instala-se nos primeiros infecções cutâneas leves, febre e infecções respira-
2 dias da doença e pode persistir 3 a 8 dias, o que tórias incluindo pneumonia.
corresponde a um período de virémia aguda. A neutropénia verifica-se durante o tempo em
Ocorre redistribuição dos neutrófilos (do “conjun- que circulam os anticorpos maternos transferidos
to” circulante para o “conjunto” marginado ou via placenta, o que geralmente acontece entre as 7
aderente ao endotélio vascular), sequestro das semanas e os 6 meses após o parto.
células por lesão tecidual e diminuição da pro- O tratamento, de suporte, inclui antibioticotera-
dução de neutrófilos induzida pelo vírus. pia adequada na fase de neutropénia. A adminis-
Outras infecções víricas (vírus de Epstein- tração de IGIV (imunoglobulina intravenosa) po-
Barr/VEB, vírus citomegálico/CMV, vírus da derá diminuir a duração da neutropénia.
imunodeficiência humana/VIH),etc.), bacterianas A neutropénia autoimune surge por mecanis-
(septicémia, tosse convulsa, febre tifóide e para- mo semelhante ao da trombocitopénia ou da ane-
tifóide, tuberculose disseminada, brucelose, etc.), mia hemolítica autoimunes.
fúngicas (histoplasmose disseminada); protozoá- Distingue-se doutras formas de neutropénia
rios (malária, leishmaníase) e riquétsias (febre das apenas pela demonstração de anticorpos antineu-
CAPÍTULO 147 Neutropénia 707

trófilo (de salientar que, por vezes se obtêm resul- Na prática clínica tal processo pode ocorrer
tados negativos-falsos), sendo a medula óssea nas seguintes circunstâncias: leucemia mielocítica
normo ou hipercelular. Ocorre frequentemente em ou linfocítica aguda, mielodisplasia, hemoglo-
crianças com formas congénitas ou adquiridas de binúria paroxística nocturna, anemia aplástica,
imunodeficiência, incluindo disgamaglobulinémia. deficiência em vitamina B12 ou ácido fólico, pre-
A neutropénia autoimune da infância é tipica- maturidade, terapêutica com trimetoprim – sulfa-
mente diagnosticada em crianças entre os 5 e os 15 metoxazol ou fenitoína, má-nutrição energético-
meses, com discreto predomínio no sexo femini- proteica, anorexia nervosa e alimentação parenté-
no. Não coexiste com outras doenças autoimunes. rica prolongada.
As manifestações clínicas incluem: infecções
ligeiras como otite, gengivite, infecções respira- 3. Defeito intrínseco que afecta
tórias, gastrenterite e celulite. Na grande maioria a proliferação e maturação das
dos casos não está associada a risco aumentado de células estaminais e mielóides
infecções recorrentes, mesmo com neutropénia
grave. Em cerca de 95% dos doentes verifica-se Trata-se de situações congénitas raras que cursam com
remissão espontânea em 7 a 24 meses. neutropénia grave. Como exemplos citam-se: imun-
O tratamento é sintomático, estando indicada odeficiências combinadas graves, síndroma de hiper
a antibioticoterapia na maioria dos doentes; IgM, imunodeficiência comum variável, glicogenose
poderá haver necessidade de recorrer ao G-CSF. do tipo Ib, neutropénia cíclica, neutropénia congéni-
A neutropénia autoimune da infância em ta grave, mielocatexe, síndroma de Shwachman –
geral desenvolve-se entre os 5 e 24 meses, per- Diamond, disceratose congénita, síndroma de
sistindo muitas vezes durante períodos prolonga- Chediak-Higashi, e neutropénia congénita benigna,
dos. Trata-se da causa mais comum de neutropé- síndroma hiper-IgM e síndroma de Barth.
nia crónica da infância (incidência anual de Seguidamente são abordadas as entidades
aproximadamente 1/100.000). mais frequentes deste grupo:
Nesta situação são identificados autoanticor-
pos IgM, IgG, IgA ou combinação destes. Neutropénia cíclica
Em geral, a doença regride em período variá- A neutropénia cíclica é uma doença rara que pode
vel (6 meses a 4 anos), não havendo tendência de ter transmissão autossómica dominante ou reces-
evolução para doença autoimune sistémica. siva, ou ser esporádica (gene ELA2)
Poderá verificar-se ao nível da medula óssea: Caracteriza-se por episódios regulares de neu-
hiperplasia mielóide (se associação a lúpus erite- tropénia grave (valores < 200 /µL ) durante 3 a 6
matoso disseminado); ou hipoplasia mielóide se dias, surgindo aproximadamente de 3 em 3 sema-
os anticorpos forem antiprecursores mielóides. O nas, acompanhada de monocitose e, por vezes, de
prognóstico é bom. eosinofilia. (Recorde-se que a vida média dos neu-
No recém-nascido a neutropénia autoimune trófilos é 6-7 horas, em comparação com a das pla-
pode surgir em casos de asfixia, sépsis, hiperten- quetas – 10 dias, e a dos eritrócitos-120 dias)
são materna e eclâmpsia, sendo relacionável com Esta doença é frequentemente designada por
esgotamento das reservas de precursores medu- hematopoiese cíclica, por ocorrer alteração simul-
lares por acção dos autoanticorpos. tânea de outras células – reticulócitos, plaquetas e
Embora anteriormente se tenha utilizado IGIV monócitos.
(imunoglobulina intravenosa) e corticóides, na maior Como manifestações clínicas coincidentes com
parte dos doentes comprova-se resposta ao G-CSF. os períodos de neutropénia, cabe salientar: mal
estar, febre, úlceras da mucosa oral, estomatite,
2. Alterações adquiridas das células gengivite, periodontite, faringite e infecções cutâ-
estaminais e mielóides neas com adenomegálias.
Nos períodos de normalização dos valores dos
Estas alterações são responsáveis por mielopoiese neutrófilos os doentes não evidenciam sinais ou
ineficaz da qual decorre neutropénia. sintomas.
708 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

A gravidade das infecções relaciona-se com a rem eosinofilia, monocitose, trombocitose e ane-
gravidade da neutropénia, embora nem todos os mia ligeiras.
doentes sejam afectados por infecções. Apesar de Apesar de os níveis endógenos de G-CSF esta-
ser considerada benigna, uma proporção de cerca rem elevados, a administração de G-CSF exógeno
de 10% dos doentes morre com infecções compli- leva a elevação do número de neutrófilos.
cadas (pneumonia e peritonite com sépsis por Com efeito, antes da era do tratamento com G-
Clostridium perfringens). Não existe risco aumenta- CSF, a maioria dos doentes morria de infecções
do de desenvolvimento de leucemia mielóide. fatais antes da adolescência. De salientar que a
Para se estabelecer o diagnóstico, torna-se mutação no receptor do G-CSF (CSF3R), condi-
obrigatória a contagem de neutrófilos, pelo menos ciona má resposta à terapêutica e surge mais fre-
2 vezes por semana, durante 6 a 8 semanas. O quentemente em doentes que evoluem para
diagnóstico é confirmado com estudos genéticos mielodisplasia ou leucemia mielóide aguda (cerca
moleculares, que demonstram mutação no gene de 10% dos casos).
da elastase (ELA2). Apenas os doentes que não respondem ao G-
O tratamento inclui identificação e tratamento CSF são candidatos a transplante de células esta-
das infecções, higiene oral correcta e, em casos minais de um irmão HLA compatível. Este é tam-
seleccionados, o factor recombinante estimulador bém o único tratamento curativo para os doentes
do crescimento de granulocitos (G-CSF), o qual com neutropénia congénita grave que evoluem
modifica a evolução da doença, diminuindo o nú- para mielodisplasia ou leucemia mielóide aguda.
mero de dias de neutropénia e a intensidade dos
sintomas, aumentando o número de neutrófilos. Mielocatexe
A mielocatexe é uma doença rara de transmissão
Síndroma de Kostmann autossómica dominante. Caracteriza-se por infec-
A síndroma de Kostmann, forma de neutropénia ções bacterianas recorrentes, neutropénia modera-
congénita grave, é uma doença rara, autossómica da a grave e alterações degenerativas dos gra-
recessiva, que se caracteriza por uma paragem na nulócitos. É explicável por uma mutação no rece-
maturação mielóide na medula óssea na fase de ptor de citocinas CXCR4.
promielócito. Deste facto resulta número absoluto Como manifestações clínicas salientam-se
de neutrófilos inferior a 200 células/µL, o que se infecções respiratórias benignas de repetição após
pode verificar desde o nascimento ou na primeira as quais se verifica subida do número de neutrófi-
infância; em geral existe monocitose associada. los. O mielograma revela sinais de medula hi-
Em mais de 80% dos casos existe associação a percelular com neutrófilos maduros e hiperse-
mutações no gene ELA2 o qual codifica a elastase gmentados. A mobilidade dos neutrófilos também
da glicoproteína do neutrófilo. O mecanismo alterada, associando-se a hipogamaglobulinémia,
fisiopatológico não está totalmente esclarecido, verrugas cutâneas (warts), infecção no contexto de
mas admite-se que a mutação condiciona uma neutropénia, integra a síndroma WHIM.
acumulação excessiva de elastase no neutrófilo
com consequente apoptose precoce. Síndroma de Shwachman – Diamond
Como manifestações clínicas mais frequentes A síndroma de Scwachman-Diamond é uma
há a citar: úlceras orais, gengivite, otite média, doença de transmissão autossómica recessiva,
infecções respiratórias graves, celulite e abcessos multissistémica, caracterizada por citopénia
dos tecidos moles. sobretudo à custa de neutropénia, insuficiência
Os agentes infecciosos predominantes são o pancreática exócrina, alterações esqueléticas (dis-
Staphyloccocus aureus e Streptoccocus. O diagnóstico ostose metafisária, hipocrescimento) e infecções
faz-se pela demonstração de número absoluto de recorrentes. Estando na sua base disfunção do
neutrófilos inferior a 200/µL em três ocasiões se- ribossoma, ocorre por um defeito na célula esta-
paradas num período de um mês. O mielograma minal que afecta as linhagens mielóide e linfóide
revela sinais de paragem de maturação celular no (gene SBDS). Os granulócitos têm alterações na
estádio de promielócito; concomitantemente ocor- migração, mobilidade e quimiotaxia. A neutropé-
CAPÍTULO 147 Neutropénia 709

nia pode progredir para pancitopénia e aplasia Exames complementares


medular grave. O mielograma revela sinais de
hipocelularidade com escassos neutrófilos A abordagem da criança com neutropénia implica
maduros. O tratamento inclui substituição enz- anamnese pormenorizada e exame físico rigoroso,
imática e G-CSF. os quais são determinantes para as hipóteses de
diagnóstico etiológico a formular. Consequente-
Disceratose congénita mente, os exames complementares deverão ser
A disceratose congénita é uma doença de trans- feitos de modo racionalizado:
missão recessiva ligada ao cromossoma X, por dis- 1. Determinação no número absoluto de neutró-
função do ribossoma, caracterizada pela tríade: filos: se inferior a 1000 células / µL deve proceder-
distrofia ungueal, leucoplasia mucosa e hiperpig- se a contagem diferencial manual para excluir a
mentação cutânea reticulada; concomitantemente existência de blastos ou neutrófilos imaturos.
verifica-se hipoplasia medular. A maioria dos 2. A gravidade e duração da neutropénia de-
doentes sobrevive até à idade adulta. Existe uma terminam a extensão da avaliação laboratorial. Se
forma autossómica dominante associada ao gene existir neutropénia no momento da observação ou
hTR. pouco tempo depois de uma infecção vírica, deve
proceder-se a contagem de neutrófilos 3 a 4 sema-
Síndroma de Chediak-Higashi nas depois.
A síndroma de Chediak-Higashi caracteriza-se No doente assintomático com neutropénia per-
por albinismo oculocutâneo parcial, lisossomas sistente, deve ser pesquisada a existência de anti-
gigantes em vários tipos celulares, incluindo gran- corpos antineutrófilo.
ulócitos, e neuropatia. A neutropénia é ligeira. O exame da medula óssea não é necessário no
Existe transmissão autossómica recessiva doente com neutropénia aguda sem sintomatolo-
(mutação no gene LYST localizado no cromosso- gia de infecção grave inabitual e sem antecedentes
ma 1(q42-43). de gengivite crónica ou de estomatite ulcerosa
recorrente.
Neutropénia congénita benigna 3. Determinação quantitativa completa 2 vezes
Trata-se de doença esporádica ou familiar trans- por semana durante 6 semanas para determinar o
mitida, nalguns casos, de modo autossómico do- eventual ciclo de 21 ± 4 dias, o que é relevante
minante. A neutropénia congénita benigna cursa para distinguir a neutropénia cíclica da neutropé-
com neutropénia ligeira, não havendo risco nia congénita grave.
aumentado de infecções graves; de facto, a carac- 4. Os estudos medular, anatomopatológico e
terística funcional mais importante decorrente da citogenético são necessários para avaliar o risco de
neutropénia é a evolução lenta das infecções que mielodisplasia ou de leucemia mielóide aguda, as-
surgem. sim como o estado de maturação mielóide.
5. Na presença de síndroma de má-absorção
Síndroma Hiper-IgM acompanhada de neutropénia, deve excluir-se a
Esta síndroma, caracterizada por IgG ausente, síndroma de Schwachman-Diamond através de
IgM elevada, neutropénia, e citopénia autoimune estudos de função pancreática.
tem hereditariedade ligada ao cromossoma X. Na 6. Havendo suspeita de vasculopatia no con-
forma mais comum é resultante de mutações no texto de conectivite ou sintomatologia de carência
gene do ligando de CD40. nutricional, deve proceder-se à detecção de anti-
corpos antinucleares e proceder-se ao doseamento
Síndroma de Barth de folato e de vitamina B12, respectivamente.
Trata-se duma situação rara, de transmissão reces- 7. Deve proceder-se a estudos de imunidade se
siva ligada ao cromossoma X, cursando com alte- exixtir suspeita de imunodeficiência concomitante.
rações neuromusculares e metabólicas, cardio- 8. Na pancitopénia deve proceder-se ao exame
miopatia, fraqueza muscular esquelética,neu- medular, com eventual estudo citogenético, cito-
tropénia e atraso do crescimento. métrico e coloração especial.
710 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Tratamento como foi referido anteriormente, em várias doen-


ças que cursam com neutropénia.
Embora, a propósito das várias entidades descri- Nalgumas situações, como na neutropénia
tas na alínea sobre classificação já tivessem sido congénita grave, é recomendado o seu uso pro-
abordados aspectos específicos da actuação tera- filáctico crónico.
pêutica, cabe referir agora alguns princípios de or- 9. Por fim cabe referir que a transplantação de
dem geral. medula óssea é curativa nalgumas doenças que
1. Os doentes neutropénicos devem ter uma cursam com neutropénia.
alimentação adequada, boa higiene corporal (oral
e perineal) e programa de imunizações clássicas BIBLIOGRAFIA
actualizado. Boxer LA. Neutrophil abnormalities. Pediatr Rev. 2003; 24: 52- 62
2. A vigilância da temperatura corporal deve James RM, Kinsey SE. The investigation management of chron-
ser feita com regularidade, mas nunca utilizando ic neutropenia in children. Arch Dis Child 2006; 91: 852-858
a via rectal. Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds). Nelson Textbook of
3. O tratamento depende da causa e da gravi- Pediatrics. Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
dade da neutropénia. A grande preocupação resi- Lakshman R, Finn A. Neutrophil disorders and their manage-
de na possibilidade de desenvolvimento de infec- ment. J Clin Pathol 2001; 54: 7-19
ções piogénicas; a febre pode ser o único indica- Nathan DG, Orkin SH, Ginsburg O, Look AT (eds). Nathan
dor de infecção. and Oski’s Hematology of Infant and Childhood.
4. Assim, os doentes febris com neutropénia Philadelphia: Saunders, 2003
devida a disfunção medular devem ser tratados Tantawy AA, Sallam TH, Ibrahim DM, et al. Pathogenesis and
rápida e agressivamente com antibióticos de largo prognosis of neutropenia in infants and children admitted
espectro após realização de hemoculturas e outras in a university children hospital in Egypt.Pediatr Hematol
culturas consideradas necessárias. Se se verificar Oncol 2013; 30:51-59
evolução para apirexia e as culturas forem negati- Zeidler C, Welte K. Kostman syndrome and severe congenital
vas, os antibióticos devem ser mantidos até 3 dias neutropenia. Semin Hematol 2002; 39: 82-88
de apirexia. No caso de persistência da febre,
mesmo com culturas negativas, os antibióticos
devem ser mantidos.
5. Numa percentagem elevada destes doentes
sob antibioticoterapia durante uma semana, há
possibilidade de desenvolvimento de infecções
fúngicas, as quais devem ser tratadas empirica-
mente com anfotericina B.
6. Os doentes neutropénicos com infecções fún-
gicas documentadas ou sépsis bacterianas por gram
negativos que respondem mal à terapêutica indica-
da são candidatos a transfusão de neutrófilos.
7. Nos casos em que se verifique celularidade
medular normal ou aumentada, o doente neu-
tropénico febril pode ser tratado com antibioti-
coterapia em ambulatório, excepto se a infecção
for grave.
8. O tratamento com o objectivo de incremen-
tar o número de neutrófilos inclui classicamente a
administração de corticóides e imunoglobulina
endovenosa (IGIV), cujo sucesso é variável.
O tratamento actual com G-CSF melhorou bas-
tantes os resultados, sendo utilizado com sucesso,
CAPÍTULO 148 Trombocitopénia e trombocitose 711

148
Em circunstâncias normais, o baço alberga um
terço do número total de plaquetas, funcionando
como um reservatório. Na presença de hemorra-
gia profusa, a libertação de adrenalina provoca
contracção esplénica, com aumento temporário
das células sanguíneas circulantes, sendo que o
TROMBOCITOPÉNIA número de plaquetas armazenadas é directamente
proporcional ao tamanho do baço.
E TROMBOCITOSE Na sua génese encontram-se múltiplas etiolo-
gias congénitas e adquiridas, por vezes coexis-
Júlia Galhardo e A. Bessa Almeida tentes, considerando-se três mecanismos princi-
pais: 1) diminuição da produção medular associa-
da a hipoplasia e a processos infiltrativos ou
lesivos; 2) aumento da destruição por fenómenos
1. TROMBOCITOPÉNIA imunológicos ou mecânicos angiopáticos; 3)
sequestro decorrente da esplenomegália congesti-
Definição e importância do problema va ou infiltrativa.
No Quadro 1 encontram-se enumeradas as
A trombocitopénia, independentemente da idade, é principais etiologias subjacentes, excluindo as
definida como diminuição da concentração plaque- verificadas no recém-nascido, abordadas no capí-
tária superior a dois desvios-padrão relativamente tulo 356.
à média populacional, ou seja <150.000/µL (ou <
150 x 109/L). Manifestações clínicas
As plaquetas, essenciais à hemostase primária,
são responsáveis pela formação de microtrombos Como resultado da diminuição do número de pla-
nas áreas vasculares com lesões, provocando quetas (< 50.000/µL) surge discrasia hemorrágica
ainda vasoconstrição local através da libertação de com expressão típica na pele e mucosas. As mani-
serotonina e histamina. Assim, a deficiência quali- festações mais frequentes incluem petéquias,
tativa e/ou quantitativa destes corpúsculos origi- equimoses superficiais, epistaxe e gengivorragia.
na risco hemorrágico acrescido. As hemorragias das mucosas associam-se a
Na sua grande maioria (mais de 95% dos valores mais baixos de plaquetas. Com défices
casos) a trombocitopénia faz parte da entidade progressivos, sobrevêm perdas de gravidade cres-
clínica designada por púrpura trombocitopénica cente, nomeadamente gastrintestinais, hematúria,
idiopática (PTI) com uma incidência mundial de menorragia e hemorragia intracraniana, esta últi-
aproximadamente 4 a 6 em cada 100.000 crianças. ma surgindo em < 1% dos casos. (Quadro 2)
Na trombocitopénia as equimoses observadas
Etiopatogénese são múltiplas e com distribuição preferencial em
locais de contacto, especialmente nos membros
As plaquetas são fragmentos celulares anucleados, superiores e na região pré-tibial.
com cerca de 1 a 2,5µ de diâmetro e 7 a 9fL de volu-
me, resultantes da diferenciação dos megacarióci- Exames complementares
tos existentes na medula óssea, por acção da trom-
bopoietina. Este factor de crescimento apresenta Nas situações em que a clínica suscita dúvidas
relação inversa relativamente ao número de trom- quanto à existência de verdadeira diminuição do
bócitos circulantes, permitindo a sua manutenção número de plaquetas, é importante confirmar se
dentro de parâmetros fisiológicos definidos. Após os valores observados traduzem uma verdadeira
um período de aproximadamente 7 a 14 dias, as depleção. Entre as possíveis causas de pseudo-
plaquetas sofrem destruição pelos macrófagos do trombocitopénia incluem-se a presença de aglu-
sistema reticuloendotelial. tininas frias ou de anticorpos dependentes do
712 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Causas mais frequentes de trombocitopénia (excluído o período neonatal)

Diminuição da produção Diminuição da sobrevida


– Anemia aplásica – Púrpura trombocitopénica idiopática
– Infiltração medular – Doença autoimune/ linfoproliferativa
– Lesão induzida por fármacos/ radiação – Pós-transfusional/ Pós-transplante
– Carências nutricionais (ferro, folato, cobalamina) – Alergia/ anafilaxia
Sequestro – Infecção
– Hiperesplenismo – Fármacos (heparina)
– Hipotermia Mecânica
Diluição pós-transfusional – Patologia cardiopulmonar
– Cateteres/ próteses vasculares
– Vasculites
– Coagulação intravascular disseminada
– Síndroma hemolítica-urémica
– Púrpura trombocitopénica trombótica
– Infecção

QUADRO 2 – Relação entre valor numérico das plaquetas e risco de hemorragia

Plaquetas (x103/μL) Hemorragia


>100 Assintomático
50-100 Mínima (após intervenção cirúrgica ou traumatismo major)
20-50 Leve (cutânea)
5-20 Moderada (mucocutânea)
<5 Grave (sistema nervoso central)
Outras variáveis a ter em consideração: função plaquetária, coagulopatia associada e alterações vasculares.

Adaptado de Buchanan GR, 2005

anticoagulante (ácido etilenodiaminotetracético – alguns laboratórios procedem à determinação do


EDTA) conduzindo a agregação das mesmas no número de plaquetas jovens, permitindo deduzir
tubo de colheita de sangue, sendo que tal “con- o mecanismo fisiopatológico subjacente.
junto” de plaquetas “não é identificado” pelo A observação do esfregaço sanguíneo tem tam-
aparelho de contagem automática, ficando a res- bém extrema importância na orientação diagnósti-
pectiva determinação falseada. ca. Assim, e a título de exemplo, a verificação de
A avaliação inicial deve incluir a repetição do eritrócitos fragmentados é compatível com
hemograma completo, colhido em tubo de citrato. microangiopatia, a leucocitose com grânulos tóxi-
Com excepção da trombocitopénia amegacario- cos sugere sépsis, e a presença de blastos está , até
cítica congénita e da trombocitopénia com ausên- prova em contrário, associada a leucemia.
cia do rádio (com expressão no recém- nascido), as Na maioria dos casos não são necessários ou-
situações de decréscimo da produção medular tros exames auxiliares. Contudo, em crianças evi-
atingem simultaneamente as outras linhagens denciando mau estado geral, deverá ser realizado
sanguíneas. o doseamento do fibrinogénio e a determinação
Pelo contrário, o aumento do volume plaque- dos tempos de protrombina e de tromboplastina
tário frequentemente é sinónimo de população parcial.
recente, traduzindo aumento da renovação celu- Nos casos de doença arrastada, aconselha-se
lar. À semelhança da contagem reticulocitária, ainda a avaliação das funções renal, hepática e
CAPÍTULO 148 Trombocitopénia e trombocitose 713

imune, bem como a determinação da serologia dução em cerca de 1/25.000 crianças, nas 6 sema-
para o vírus da imunodeficiência humana nas seguintes à inoculação. Nestas situações deve
(VIH). ser avaliada a serologia e, no caso de ausência de
Por último, na presença de sinais clássicos de imunidade, recomenda-se uma segunda dose da
trombocitopénia e de valores normais é obrigatório vacina.
o estudo da função plaquetária. Actualmente, o O aparecimento súbito de exantema petequial
tempo de hemorragia é considerado obsoleto, pelo generalizado e púrpura na idade pré-escolar sem
que se recomendam, entre outros, os testes de agre- outras alterações clínicas, constitui a apresentação
gação. clássica da PTI. Ocasionalmente, podem ser obser-
O aspirado e a biópsia medular têm utilidade vadas linfadenopatia e/ou hepatosplenomegália
na distinção entre hipoprodução e aumento da ligeiras, habitualmente secundárias à infecção
destruição, devendo ser ponderados os resultados vírica. Todavia, a sua presença deverá dirigir a
na presença de neutropénia, anemia ou outros atenção para o restante exame objectivo e para o
sinais sugestivos de patologia medular. hemograma.
Através de exames laboratoriais verifica-se trom-
Diagnóstico diferencial bocitopénia isolada, frequentemente < 20.000/µL. A
tentativa de rápida reposição destes corpúsculos
Para o diagnóstico diferencial das situações clíni- provoca um aumento do seu volume para 10 a
cas acompanhadas de trombocitopénia, torna-se 15fL.
fundamental ter em conta, para além da idade da Os níveis de trombopoietina não estão fre-
criança e do seu estado geral (bom ou aparente- quentemente aumentados apesar da destruição
mente saudável, ou mau ou aparentando doença periférica das plaquetas.
de grau variável) um conjunto de manifestações Habitualmente, a hemoglobina e o volume glo-
clínicas e achados de exames complementares. bular médio eritrocitário apresentam valores ade-
Discriminam-se, a seguir, alguns quadros clíni- quados à idade mas, na presença de hemorragia
cos abordando, a propósito, aspectos particulares moderada a grave, podem estar diminuídos. A
da respectiva etiopatogénese, sendo dada ênfase à prova de Coombs deverá ser efectuada na anemia
situação mais frequente – a púrpura tromboci- inexplicada, ou com o intuito de excluir a síndroma
topénica idiopática. de Evans (quadro de icterícia com anemia hemo-
lítica e trombocitopénia de origem autoimune).
1. Púrpura trombocitopénica idiopática aguda Os valores das contagens total e diferencial de
A sua origem assenta na síntese de um auto-anti- leucócitos, o estudo da coagulação e as provas de
corpo (não específico da PTI) que, ao ligar-se à função plaquetária também se encontram dentro
superfície destas células, amplifica a fagocitose de parâmetros normais. Através da observação do
macrofágica reticuloendotelial mediada por um esfregaço sanguíneo comprova- se apenas escas-
receptor Fc. Os anticorpos produzidos podem sez de trombócitos.
também interferir com a trombopoiese. A presença do anticorpo antinuclear (ANA) é
Pelo menos 50% dos casos surge entre 1 e 4 mais frequente no adolescente, podendo indicar
semanas após uma infecção vírica inespecífica ou, uma maior predisposição para a evolução para a
menos frequentemente, por VEB, varicela-zoster cronicidade. Por outro lado, a detecção do anticor-
ou VIH. A asso-ciação com a varicela necessita de po agressor é desprovida de validade diagnóstica
particular atenção, uma vez que, por vezes, se for- e, por conseguinte, sem qualquer utilidade.
mam concomitantemente anticorpos dirigidos às Finalmente, nas crianças estáveis e com as altera-
proteínas S e/ou C, daí resultando alterações da ções clínico-laboratoriais referidas anteriormente
hemostase mais complexas. Também as imuniza- é dispensável a biópsia de medula óssea. Pelo con-
ções podem provocar reacção cruzada, com for- trário, recomenda-se a sua realização na presença
mação de imunoglobulinas antiplaquetárias. de situações atípicas, antes da instituição de corti-
Estima-se que a vacina anti-sarampo-parotidite- coterapia e na ausência de resposta à terapêutica.
rubéola (VASPR) seja responsável pela sua pro- A PTI é um diagnóstico de exclusão, devendo
714 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ser afastadas todas as situações de trombocitopé- longamento dos tempos de protrombina e de


nia em que é preservado o estado geral, concreta- tromboplastina parcial e diminuição dos níveis de
mente as decorrentes de exposição farmacológica, fibrinogénio.
patologia autoimune, hiperesplenismo e anemia c – Duas entidades relacionadas resultam da
de Fanconi. lesão vascular endotelial, com consequente ane-
Em cerca de 75% das situações ocorre um mia microangiopática e consumo plaquetário.
aumento plaquetário progressivo nas 2 a 3 sema- Trata-se da síndroma hemolítica urémica (SHU) e
nas seguintes, com paralela diminuição da ten- da púrpura trombocitopénica trombótica (PTT).
dência hemorrágica e resolução espontânea com- Na SHU, muito mais frequente na infância, a
pleta dentro de 6 meses. lesão é provocada por toxinas produzidas por
De referir que não está completamente esclare- determinadas estirpes de bactérias, nomeada-
cido o mecanismo que regula a produção de anti- mente Escherichia coli O157:H7 ou S. pneumoniae.
corpos antiplaquetas quando se verifica remissão Esta situação envolve primariamente o rim (oligú-
espontânea da PTI. ria, edema e hipertensão arterial) e a mucosa do
cólon (diarreia hemática). Inicialmente a tromboc-
2. Púrpura trombocitopénica idiopática crónica itopénia é ligeira, podendo diminuir rapidamente
Por definição, a PTI crónica é aquela que perdura para valores < 20-30.000/µL, com alguma activa-
além dos 6 meses. Com uma prevalência de cerca ção da cascata da coagulação. Todavia, a hemor-
de 4,6/100.000 crianças, corresponde a 15% dos ragia é pouco frequente. (Capítulo 160)
casos de início agudo, com maior probabilidade A PTT engloba cinco componentes: anemia
de se instalar se os sintomas e sinais tiverem início hemolítica microangiopática, febre, disfunção
após os 10 anos de idade. Tal como na PTI aguda, renal, trombocitopénia, e anomalias neurológi-
grande parte dos doentes apresenta bom estado cas(cefaleias, convulsões, hemiparésia e ou coma).
geral, não sendo evidente qualquer patologia sub- Surge quando multímeros de grandes dimensões
jacente. Contudo, alguns têm trombocitopénia do factor de von Willebrand são libertados a par-
secundária a outras situações imunológicas cróni- tir das células endoteliais vasculares para a circu-
cas, nomeadamente síndroma de Evans, síndroma lação (Capítulo 152), estando ausente a protease
autoimune linfoproliferativa (diminuição da apo- ADAMTS13 cuja função é cindir as referidas
ptose dos linfócitos B, com linfadenopatia e hepa- moléculas em moléculas de menor peso molecu-
tosplenomegália associadas), lúpus eritematoso lar. As grandes moléculas provocam microan-
sistémico e infecção pelo VIH. (Capítulo 145) giopatia em diversos órgãos, especialmente rim e
O risco de hemorragia significativa depende cérebro.
da duração da trombocitopénia moderada a grave A PTT pode ser congénita e recorrente( expli-
(0,5% aos 12 meses). cada por mutações no gene da ADAMTS13), ou
adquirida (em geral no contexto de lúpus eritema-
3. Outras situações toso disseminado, em que surge um autoanticor-
a – A presença de febre, palidez, equimoses, po inibidor, neutralizando a protease ADAMTS13.
adenopatia e/ou hepatosplenomegália sugerem A forma adquirida poderá implicar tratamento
compromisso medular primário, orientando o com plasmaférese (para remoção do inibidor) e
clínico para a necessidade de realização de aspira- corticoterapia, para além da terapêutica com
do/biópsia. A diminuição dos megacariócitos imunomoduladores.
deve-se essencialmente à aplasia da medula óssea
e à leucemia aguda. Tratamento
b – Na criança gravemente doente com
petéquias, febre, letargia e/ou instabilidade hemo- As medidas gerais de tratamento a considerar nos
dinâmica, a coagulação intravascular dissemina- casos de trombocitopénia podem ser levadas a
da associada a sépsis é o diagnóstico mais prová- cabo em regime de ambulatório, com repouso re-
vel. Os respectivos achados laboratoriais incluem a lativo compatível com o estado geral, a idade e a
leucocitose ou leucopénia, sinais de hemólise, pro- colaboração da criança; com efeito, está demons-
CAPÍTULO 148 Trombocitopénia e trombocitose 715

trado que a hospitalização não reduz o risco de (> 20.000/µL ao 3ºdia; > 50.000/µL entre o 5º e o 7º
hemorragia intracraniana. dias). Contudo, é um derivado sanguíneo caro, de
Para além das orientações a dar aos pais/fami- administração intravenosa, que frequentemente
liares ou responsáveis pelos cuidados à criança, provoca cefaleias intensas, náuseas e vómitos.
haverá que evitar injecções por via intramuscular e Como manifestações mais raras incluem-se as
a utilização de fármacos que interfiram na função reacções alérgicas, a insuficiência renal e a menin-
das plaquetas tais como ácido acetilsalicílico, cer- gite asséptica.
tos anti-histamínicos e anti-inflamatórios. Por último, a imunoglobulina anti-D pode ser
utilizada em indivíduos Rh+ (50-75mg/Kg), pro-
1. Púrpura trombocitopénica idiopática aguda duzindo um aumento plaquetário sobreponível à
Nos casos ligeiros a moderados, a abordagem IVIG. A principal desvantagem consiste na possi-
geral consiste numa atitude expectante, com vigi- bilidade de desencadear anemia hemolítica tran-
lância laboratorial periódica. O hemograma deve- sitória.
rá ser repetido 10 dias mais tarde, no intuito de A transfusão plaquetária tem como única indi-
assegurar a ausência de alteração medular primá- cação a hemorragia intracraniana ou outra perda
ria em curso. Ulteriormente, excepto se surgirem sanguínea com risco de vida. Simultaneamente,
dados clínicos inesperados, não há qualquer deve ser iniciada terapêutica imunomoduladora
necessidade de monitorização laboratorial perió- intravenosa com corticóides (metilprednisolona)
dica até que a resolução clínica sugira o início da em alta dose e IGIV. (Capítulo 155)
remissão. Os pais devem ser esclarecidos quanto à
benignidade da situação e alertados para os sinais 2. Púrpura trombocitopénica idiopática crónica
de alarme. A frequência escolar pode ser mantida, Na maioria dos casos (com valores plaquetários
sendo de primordial importância a evicção de evidenciando valores >20.000/µL, e podendo sur-
actividades com risco acrescido de traumatismo. gir em cerca de 20% dos doentes remissão espon-
Também o uso de anti-inflamatórios não-esterói- tânea que pode atingir 4 anos), não haverá neces-
des deverá ser evitado. sidade de tratamento específico, excepto na pre-
A decisão de instituir farmacoterapia é basea- sença de traumatismo grave, cirurgia, extracção
da na gravidade clínica e não apenas no défice dentária ou cataménio abundante. Nestas situa-
plaquetário, uma vez que nenhum tratamento ções, mais uma vez o uso de prednisolona, IVIG e
conhecido altera o curso natural da doença, pre- imunoglobulina anti-D, poderão contribuir para a
venindo a sua progressão para a cronicidade ou elevação do número de plaquetas.
acelerando o catabolismo do anticorpo em ques- A maioria dos doentes melhora progressiva-
tão. Com vista ao aumento temporário do número mente, com aumento gradual da concentração pla-
de plaquetas são habitualmente utilizados três fár- quetária e resolução clínica. Desta forma, a es-
macos. Todos têm efeitos laterais significativos, plenectomia está apenas indicada nas emergências
devendo ser empregues apenas nas crianças que hemorrágicas e nos doentes com PTI grave, persis-
apresentem hemorragia moderada a grave. tente (> 12 a 24 meses), com diminição significativa
A prednisolona oral (1-2mg/Kg/dia durante 2 da qualidade de vida. O risco de ulterior infecção
semanas, ou 4mg/Kg/dia durante 4 dias) é pouco por microrganismos capsulados não pode ser des-
dispendiosa, permitindo elevar o número plaque- curado, pelo que se recomenda, sempre que pos-
tário mais rapidamente do que na ausência de tra- sível, a sua realização após os 4 anos de idade,
tamento. Todavia, à medida que a dose é diminuí- devendo ser precedida de imunização para o pneu-
da, regride também o número de plaquetas. mococo, e seguida de quimioprofilaxia com peni-
A IGIV, actuando por bloqueio dos receptotres cilina durante 3 anos. Cabe referir, a propósito, que
Fc, opondo-se à destruição das plaquetas no SRE, em cerca de 25% das situações, esta intervenção é
deve ser reservada às emergências hemorrágicas e ineficaz, não sendo conhecidos factores preditivos
à profilaxia pré-cirúrgica, na dose única de 0,8- para esta ausência de resposta. Como medida últi-
1g/Kg. Com uma eficácia que ronda 80%, permite ma de recurso poderão ser utilizados imunossu-
um incremento plaquetário muito mais acelerado pressores (ciclofosfamida, azatioprina, ciclosporina
716 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

e/ou anticorpo monoclonal rituximab). clonal. Acompanha-se de organomegalia, anoma-


Nalguns centros tem-se empregue um factor lias morfológicas das plaquetas, comportanto
proteico com efeito estimulador da trombopoiese riscos, quer trombótico, quer hemorrágico.
– o AMG 531 As opções terapêuticas para esta forma raríssi-
ma (cuja especificação ultraptassa os objectivos
As situações equacionadas atrás (número 3.) deste livro) incluem fármacos antiplaquetas e
são abordadas noutros capítulos. citorredutores.
Relativamente à síndroma hemolítica urémica
cabe referir que a transfusão plaquetária rara- BIBLIOGRAFIA
mente é necessária. Quanto à púrpura tromboci- Bengston KL, Skinner MA, Ware RE. Successful use of anti-CD20
topénica trombótica, reitera-se que a pedra basilar (rituximab) in severe, life threatening childhood immune
do tratamento é a plasmaférese seguida da admi- thrombocytopenic purpura. J Pediatr 2003; 143: 67-73
nistração de plasma fresco congelado; salienta-se Bussel JB, Kuter DJ, George JN, et al. AMG 531, a throm-
que a transfusão plaquetária pode exacerbar a bopoiesis – stimulating protein for chronic ITP. NEJM 2006;
situação, devendo ser realizada apenas na pre- 355: 1672-1681
sença de hemorragia grave. (Capítulo 155 – Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011
Quadro 2) British Committee for Standards in Haematology. General
Haematology Task Force. Guidelines for the investigation
and management of idiopathic thrombocytopenia purpura
2. TROMBOCITOSE in adults, children and in pregnancy. Br J Hematol. 2003;
120: 574-596
A trombocitose, definida como um valor de pla- Buchanan GR. Thrombocytopenia during childhood: what the
quetas superior a 500 x103/µL é geralmente pediatrician needs to know. Pediatr in Rev. 2005; 26, 11:
secundária a determinada situação clínica (trom- 401–408
bocitose reactiva), podendo ocorrer em crianças Hoffman R, Benz EJ, Shattil SJ, et al (eds). Hematology: Basic
hospitalizadas na proporção ~15%, com carac- Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier Churchill
terísticas transitórias. (Quadro 3 e Capítulo 129). Livingstone, 2007
Mesmo nos casos com valores > 1.000 x 103 / Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
uL não existe probabilidade aumentada de trom- Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
bose, exceptuando nos casos pós-esplenectomia 2011
ou com factores de risco protrombótico. Loirat C, Coppo P, Veyradier A. Thrombotic thrombocytopenic
A chamada trombose primária, forma extre- purpura in children. Curr Opin Pediatr 2013; 25: 216-224
mamente rara em idade pediátrica(~1/10 milhões) Nathan DG, Orkin SH, Ginsburg O, Look AT (eds). Nathan
é causada por anomalia da célula hematopoiética and Oski’s Hematology of Infancy and Childhood.
Philadelphia: Saunders, 2003
QUADRO 3 – Causas de trombocitose Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
1. Secundária(reactiva) Medical , 2011
Estados infecciosos e inflamatórios, lesão traumática,
anemia ferropénica, status pós-esplenectomia, doença
de Kawasaki, doenças malignas (neuroblastoma,
linfoma, hepatoblastoma), doença renal, anemia
hemolítica, doença autoimune, hemorragia, fármacos
(epinefrina, corticóides, alcalóides da vinca), etc..
2. Primária
Trombocitose familiar, doenças mieloproliferativas,
(trombocitémia essencial, policitémia vera, leucemia
mielóide crónica).
CAPÍTULO 149 Anomalias funcionais das plaquetas 717

149
As plaquetas, em número normal têm volume
normal e o tempo de hemorragia é prolongado.
As manifestações descritas (mais graves na doen-
ça do tipo I) são, essencialmente: epistaxe, hemorra-
gia digestiva, gengivorragia, menometrorragia, etc..
A verificação de petéquias e equimoses no
ANOMALIAS FUNCIONAIS mesmo doente aponta no sentido de alteração da
função das plaquetas.
DAS PLAQUETAS O tratamento é substitutivo com adminis-
tração de concentrado de plaquetas, salientando-
João M. Videira Amaral se o risco de formação de isoanticorpos contra
proteínas exógenas.

Síndroma de Bernard-Soulier
Importância do problema Nesta síndroma, transmitida de modo autossómico
recessivo, o defeito básico é a ausência de receptores
Para além das situações caracterizadas pela dimi- (glicoproteínas ou GP): Ib ou receptor do FvW, V e
nuição do número de plaquetas, cabe uma refe- IX, levando a defeito de adesão plaquetária.
rência breve às anomalias funcionais destes com- As manifestações clínicas traduzem-se funda-
ponentes sanguíneos. Trata-se de situações raras mentalmente por hemorragias gengivais espon-
(congénitas ou adquiridas) cuja base etiopato- tâneas; concomitantemente, existe risco aumenta-
génica ultraestrutral assenta, em geral, em defei- do de hemorragias relacionáveis com lesões trau-
tos de proteínas de membrana, de receptores e de máticas e com intervenções cirúrgicas ou mano-
grânulos plaquetários. bras invasivas.
Com o desenvolvimento da tecnologia é hoje Como achados laoratoriais ressalta-se: trom-
possível identificar a disfunção plaquetária – bocitopénia discreta, plaquetas de volume aumen-
fazendo parte de determinadas entidades clínicas tado e tempo de hemorragia > 20 minutos.
– através de estudos de biologia molecular. O tratamento consiste em transfusão de con-
centrado plaquetário nas situações de hemorragia
Anomalias funcionais congénitas grave com risco vital, dado o risco de formação de
isoanticorpos contra proteínas exógenas.
Dum modo geral as anomalias funcionais plaque-
tárias congénitas relacionam-se com defeitos do Anomalias dos grânulos plaquetários
receptor do FvW (complexo de glicoproteína Neste âmbito inclui-se um grupo heterogéneo de
GPIb) ou do receptor do fibrinogénio (GP-IIb-IIIa) defeitos ao nível do funcionamento dos chamados
É dada ênfase às seguintes entidades: grânulos-delta das plaquetas, os quais se associam
a determinadas síndromas como a síndroma de
Trombastenia de Glanzmann Chediak-Higashi.
Na base desta doença, transmitida de modo autos- A base etiopatogénica é a ausência de secreção
sómico recessivo, está um defeito molecular (muta- ou de libertação de serotonina ou adenosinas
ção de genes que codificam o receptor do fibrino- (ADP e ATP).
génio (designado por GP IIb-IIIa) fundamental para As manifestações hemorrágicas são benignas.
a agregação plaquetária; estão descritas duas formas A agregação plaquetária é normal com risto-
clínicas: tipo I (em que há ausência total da GP) e tipo cetina, e reduzida com colagénio.
II (em que há défice parcial variável – 5% a 25%).
Como, consequência do defeito, em resposta Anomalias funcionais adquiridas
aos agonistas habituais (trombina, ácido araqui-
dónico, colagénio, ADP, ristocetina, etc.), não se Na prática clínica poderão surgir situações diver-
verifica agregação plaquetária, ou esta é anómala. sas originando secundariamente anomalias fun-
718 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

150
cionais das plaquetas tais como: insuficiência
renal, hepatopatias diversas, coagulação intravas-
cular disseminada (CID), etc..
A administração de fármacos como antibióti-
cos em doses elevadas (penicilina, cefalosporinas,
carbenicilina), certos anestésicos, anti-histamíni-
cos, psicotrópicos, ácido acetilsalicílico e anti- APLASIA MEDULAR
inflamatórios não esteróides poderá conduzir
igualmente às referidas anomalias. João M. Videira Amaral

Diagnóstico diferencial e tratamento

Os exames complementares realizados em casos Definição e importância do problema


de suspeita de anomalia funcional plaquetária
têm como fundamento avaliar a agregação pla- A aplasia (ou insuficiência/falência) medular
quetária com determinados agonistas (por exem- define-se pela verificação de pancitopénia no
plo ristocetina, trombina, ácido araquidónico). Os sangue periférico (ou seja, diminuição quantitati-
estudos moleculares têm como objectivo compro- va de eritrócitos, leucócitos e plaquetas) provoca-
var o defeito específico em causa. da pela diminuição ou ausência de produção de
O método PFA-100 (platelet function analyzer) é células sanguíneas na medula óssea. A aplasia
mais sensível que o tempo de hemorragia. ligeira a moderada tembém é designada por
Nas situações congénitas há que informar a hipoplasia medular
família e doente sobre a doença tendo em conta Trata-se duma situação clínica rara (segundo
certos riscos, como os relacionados com inter- estatísticas europeias e norte-americanas, cerca de
venções cirúrgicas ou técnicas invasivas. 5-6 casos / 1 milhão de habitantes) que pode ser
As medidas terapêuticas gerais habitualmente hereditária (de expressão em idade variável, por
aplicadas dizem respeito à utilização de trans- conseguinte, não necessariamente congénita ou de
fusões de plaquetas, corticóides e de desmopressi- manifestação no recém-nascido), ou adquirida.
na (0,3µg/kg IV) em casos seleccionados. Cerca de 1/4 das anemias aplásticas na idade
Nas formas adquiridas o tratamento, logica- pediátrica são hereditárias. De acordo com a base
mente, consiste em eliminar a causa (Capítulo 155). de dados da Unidade de Hematologia do Hospital
Dona Estefânia-Lisboa, no período de 10 anos
BIBLIOGRAFIA (2002-2011) foram admitidos 13 casos, sendo 3
Andrews RK, Berndt MC. Platelet physiology and thrombosis. hereditários e 10 adquiridos.
Thromb Res 2004; 114: 447-453
Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics. Etiopatogénese
Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson Nas formas adquridas, para explicar a falência
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011 (ausência ou défice de produção) da medula óssea
Posan E, McBane RD, Grill DE, et al. Comparison of PFA-100 não se encontram causas patentes na maioria dos
testing and bleeding time for detecting platelet hypofunc- casos (70-80%); este grupo constitui, por isso, as
tion and von Willebrand disease in clinical practice. chamadas formas idiopáticas.
Thromb Haemost 2003; 90: 483-490 Nos restantes 20-30% de casos adquiridos os
Ramasamy I. Inherited bleeding disorders of platelet adhesion factores etiológicos encontrados são: exposição a
and aggregation. Crit Rev Oncol hematol 2004; 49: 1-35 certos fármacos, produtos químicos, e vírus que
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA(eds). infectam os precursores sanguíneos.
Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Medical, 2011 Os fármacos mais frequentemente associados
Shapiro AD. Platelet function disorders. Haemophilia 2000; 6: a aplasia medular são: cloranfenicol, citosina-ara-
120-127 binósido, vincristina, ciclofosfamida, carbama-
CAPÍTULO 150 Aplasia medular 719

zepina, difenil-hidantoína, indometacina, fenilbu- A anemia, de instalação lenta (normocítica nor-


tazona, cloroquina, quinidina, acetazolamida, mocrómica), traduz-se por palidez da pele e mu-
penicilamina, alopurinol, sulfametoxazol-trimeto- cosas, astenia,adinamia, dispneia, entre outros sinais
prim, lítio, metildopa, etc.. e sintomas.
Relativamente aos agentes químicos citam-se As manifestações clínicas variam em função
alguns insecticidas, certos metais de ouro e bis- do grau de pancitopénia; na aplasia grave a celu-
muto, perclorato de potássio, etc.. laridade da medula, segundo os achados da bióp-
Os vírus mais frequentemente implicados são: sia óssea, é inferior a 25%. Nalgumas situações de
vírus das hepatites A, B, C, vírus da imunodeficiência hipoplasia medular a celularidade da medula ós-
humana (VIH), vírus de Epstein – Barr (VEB), par- sea pode estar normal ou aumentada.
vovírus B19, vírus herpes humano-6 (VHH-6), cito- Como critério de gravidade da aplasia é uti-
megalovírus (CMV), vírus da rubéola, da parotidite, do lizada a verificação dos valores a seguir descritos
sarampo,etc.. (pelo menos dois entre três parâmetros):
Na base da anomalia verificada parece estar – neutrófilos(número absoluto) < 500/ mmc
uma perturbação da imunomodulação por intermé- (muito grave se <200/mmc).
dio dos referidos agentes exógenos os quais, acti- – plaquetas < 20.000/ mmc.
vando o sistema imune, conduzem a destruição das – reticulócitos(valor corrigido) < 1%.
células progenitoras/estaminais da medula óssea, (cálculo do valor corrigido: número de reticulóci-
sendo esta última substituída por tecido adiposo. tos do doente x Hb do doente/Hb normal para a
As formas de aplasia medular de base genética idade).
fazem parte de quadros sindromáticos tais como:
anemia aplástica familiar, anemia de Fanconi, sín- O mielograma evidencia medula óssea hipoce-
droma de Schwachman-Diamond, disgenésia lular, rica em gordura, células plasmáticas e célu-
reticular, trombocitopenia amegacariocítica, sín- las reticulares; a biópsia óssea, fundamental para
droma de Down, etc.. estabelecer o diagnóstico sindrómico definitivo,
Em determinadas situações existe associação a tem a vantagem de permitir examinar uma área
anomalias congénitas (baixa estatura, defeitos no mais extensa, tornando mais fácil a avaliação do
rádio e polegar) e risco aumentado de doenças grau de celularidade. Os achados que sugerem fa-
malignas (especialmente síndroma mielodisplási- lência da medula óssea são: valor baixo do núme-
ca, leucemia mielóide aguda, tumores sólidos, car- ro de reticulócitos, formas anormais de leucócitos
cinomas de células escamosas atingindo o pes- ou elementos mielóides muito imaturos (mais
coço, cabeça e tracto genital) (Capítulo 129). imaturos que bastonetes), plaquetas pequenas, e
volume globular médio elevado em desproporção
Manifestações clínicas com o valor baixo de reticulócitos.
e exames complementares Seguidamente são abordadas de modo sucinto
algumas entidades clínicas.
As manifestações são explicáveis, designada-
mente quanto à cronologia de início de manifes- 1. Anemia de Fanconi
tações, pelas diferenças de vida média entre pla- A anemia de Fanconi é uma forma constitucional
quetas e leucócitos (mais curta), em relação à dos de anemia aplástica em cuja base etiopatogénica
eritrócitos (mais longa). assenta um defeito do mecanismo de reparação do
Assim, surgem primeiramente hemorragias ADN o qual constitui factor predisponente de de-
por trombocitopénia (petéquias, equimoses, epis- senvolvimento de doença maligna (designada-
taxes e hemorragia gengival fácil). mente leucemia aguda que surge em cerca de 10%
Os sinais de infecção não surgem, em geral, dos casos).
como manifestação inicial exceptuando nos casos Manifesta-se, em geral, na idade de 7-8 anos
de número de granulócitos < 200/mmc; podem (média), variando a data do diagnóstico entre o
estar presentes febre, infecções bacterianas, oro- nascimento e os 30 anos; transmite-se de modo
faringite e gengivostomatite. autossómico recessivo.
720 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Em cerca de 60% dos casos existem anomalias resposta imune e, consequentemente, inefectiva.
congénitas associadas; os achados mais típicos e Pode ser de causa genética ou secundária a infec-
frequentes são: baixa estatura, defeitos dos pole- ções (designadamente por VEB, CMV), doenças
gares (por ex. agenésia, dedo supranumerário – malignas, situações auto-inflamatórias ou meta-
ou com 3 falanges – Figura 1), máculas de hipo- bólicas. Verifica-se hipercrescimento de histiócitos
pigmentação, máculas do tipo “café com leite”, com consequente fagocitose histiocitária das célu-
anomalias renais (por ex. rim em ferradura), dis- las sanguíneas nos gânglios linfáticos, medula
morfismo facial (hipoplasia facial, micrognatismo óssea, fígado e baço.
e base nasal alargada). As manifestações mais típicas são: pancitopé-
Os doentes com anemia de Fanconi, numa fase nia, hepatosplenomegália, hipertrigliceridémia e
inicial, poderão evidenciar citopénia isolada (por pleiocitose evidenciada no líquido cefalorraquidi-
ex. trombocitopénia ou leucopénia isoladas). ano.
O diagnóstico baseia-se na demonstração, pelo
estudo citogenético, de fracturas cromossómicas 4. Hemoglobinúria paroxística nocturna
espontâneas e induzidas por agentes que provo- Esta doença, rara na infância, manifesta-se em
cam lesão do ADN (por ex. mitomicina e DEB ou geral depois dos 5 anos de vida. Caracteriza-se por
dietil-epoxi-butano). hemólise intravascular moderada a grave mediada
pelo complemento, seguida por anemia aplástica,
2. Disceratose congénita trombose e carência de ferro. Em cerca de 30% dos
Trata-se de uma forma de displasia ectodérmica casos comprova-se quadro de hipoplasia medular.
transmitida de modo recessivo ligado ao cromos- (Capítulo 144)
soma X. As manifestações típicas incluem a tríade:
pigmentação cutânea anormal, distrofia das unhas Diagnóstico diferencial
e leucoplasia mucosa. A anemia aplástica surge
em cerca de 50% dos casos, em média por volta O diagnóstico diferencial da aplasia medular em
dos 10 anos de idade. geral faz-se com:
1) situações em que existe doença infiltrativa
3. Linfo-histiocitose hemofagocitária ou fibrose da medula óssea (tumores sólidos,
Esta síndroma (hemofagocitária) consiste num especialmente neuroblastoma, leucemia, doenças
quadro de hiperinflamação com desregulação da de armazenamento/tesaurismoses, osteopetrose e
mielofibrose) acompanhada de pancitopénia cuja
etiopatogénese é diversa da descrita atrás;
2) situações de carência de vitamina B12 e
ácido fólico em que se verifica destruição intra-
medular de elementos hematopoiéticos;
3) situações em que se verifica destruição peri-
férica aumentada (ao nível do baço, fígado ou
outros territórios do sistema reticuloendotelial) de
células sanguíneas maduras; o hiperesplenismo
associado a quadros clínicos diversos tais como
hipertensão portal, hipertrofia esplénica associada
a talassémia, histiocitose, malária, tesaurismoses
(já mencionadas como exemplo de mecanismo
diferente), pode contribuir para tal destruição pe-
riférica. Os sinais que apontam no sentido de des-
truição periférica aumentada são: reticulocitose,
elementos eritróides ou mielóides imaturos evi-
FIG. 1
denciados no esfregaço do sangue periférico, pla-
Anemia de Fanconi. Defeito do polegar (com 3 falanges). (NIHDE) quetas de grandes dimensões, elevação do nível
CAPÍTULO 150 Aplasia medular 721

de bilirrubina não conjugada e da desidrogenase – antibioticoterapia de largo espectro por via


láctica. parentérica em situações acompanhadas de febre
4) crises aplásticas no contexto de anemia he- e após realização de exames culturais diversos;
molítica crónica; O tratamento curativo ideal é a transplantação
5) as situações congénitas ou adquiridas em que da medula óssea com dador HLA compatível, sen-
se verifica citopénia isolada da linhagem eritro- do de salientar: que os doentes candidatos a este
citária uma vez que, em fases iniciais de aplasia procedimento deverão ser transfundidos o míni-
medular, apenas tal linhagem poderá estar afecta- mo possível a fim de evitar sensibilização; e que
da; são exemplos: poderá surgir rejeição do enxerto (doença do en-
5.1) síndroma de Blackfan-Diamond (anemia xerto contra hospedeiro).
hipoplástica congénita); esta síndroma, transmitida O tratamento medicamentoso (tendo como
de modo autossómico recessivo, corresponde a base a imunossupressão) está indicado nos casos
aplasia eritrocitária pura (verificando-se produção de aplasia grave adquirida em que não é possível
normal de leucócitos e de plaquetas), acompanhada recrutar dador HLA compatível. As modalidades
de elevação da hemoglobina fetal (Hb F), presença de imunossupressão disponíveis são: ciclosporina,
de antigénio fetal i, macrocitose ou normocitose, e corticosteróides, factores de crescimento hemato-
elevado risco de leucemia. Parece haver a compar- poiético (M-CSF, G-CSF, GM-CSF), etc..
ticipação de mutações em 2 genes, respectivamente Nas situações familiares – tomando como
nos cromossomas 19q13 e 8p, responsáveis por modelo a anemia de Fanconi – são utilizados
incremento da apoptose ao nível das células prog- androgénios e corticóides sempre que não é exe-
enitoras. As manifestações surgem no recém-nasci- quível o recrutamento de dador HLA compatível
do, ou até ao 1 ano de idade em 90% dos casos. para transplantação de medula óssea; é habitual
Do fenótipo podem fazer parte os seguintes haver recaídas após suspensão daqueles fármacos.
sinais: baixa estatura/comprimento, polegar com Encontra-se em investigação a terapêutica génica
três falanges, pterigium colli, lábio leporino, etc.. utilizando vectores víricos e não víricos.
5.2) eritroblastopénia transitória; esta entida-
de clínica de tipo adquirido corresponde a uma BIBLIOGRAFIA
anomalia transitória da eritropoiese (supressão da Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics. Philadel-
síntese de eritrócitos) que se observa, em geral phia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004
após os 6 meses de idade, de modo insidioso numa Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
criança até então saudável. A anemia pode ser gra- Freitas O, Braga L, et al. Anemias aplásticas. Revisão de 10
ve, mas a remissão é espontânea. anos (2002-2011) na Unidade de Hematologia do Hospital
Ao contrário da síndroma de Blackfan- Dona Estefânia, Lisboa. Reunião clínica de 10 de Abril de
Diamond, a taxa de Hb F é normal e a anemia é 2012.
sempre normocítica. Hoffman R, Benz EJ, Shattil SJ, et al (eds). Hematology: Basic
Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier Churchill
Tratamento Livingstone, 2007
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
Cabe salientar, antes da abordagem do tratamento Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
propriamente dito em centros especializados, um 2011
conjunto de medidas a pôr em prática que dizem Nathan G, Orkin SH, Ginsburg O, Look At (eds). Hematology
respeito à prevenção de infecções (internamento em of Infancy and Childhood. Philadelphia: Saunders, 1998
áreas de isolamento implicando cuidados especiais). Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
As medidas gerais de suporte a considerar em AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
situações de aplasia medular adquirida, a pon- Medical , 2011
derar em função do quadro clínico e hematológi-
co, incluem:
– transfusões de plaquetas e de concentrado
eritrocitário;
722 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

151
repetidas, e dos problemas relacionados com os
tratamentos com derivados sanguíneos.

Aspectos epidemiológicos

Exceptuando a doença de von Willebrand, as he-


HEMOFILIAS mofilias A e B constituem os defeitos congénitos da
coagulação mais frequentes com uma incidência de
Andreia Teixeira e A. Bessa Almeida cerca de 1/5.000- 1/ 10.000 recém-nascidos do sexo
masculino sendo de referir a hereditariedade rece-
siva ligada ao X; no entanto em cerca de 20% dos
casos não existem antecedentes familiares, o que
Definição e importância do problema traduz elevada frequência de mutações.
Cerca de 85% dos casos corresponde a hemofilia
A hemofilia é uma diátese hemorrágica here- A e cerca de 15% a hemofilia B; a hemofilia C, jun-
ditária originada por deficiência na produção dos tamente com deficiências doutros factores de coa-
factores da coagulação VIII (hemofilia A) ou IX gulação, são situações autossómicas recessivas, de
(hemofilia B) ou XI (hemofilia C) traduzindo muito maior raridade (incidência de 1/1.000.000 a
defeito da hemostase secundária. 2.000.000) e menor gravidade. Neste capítulo a
Recorda-se, a propósito, o esquema global da hemofilia C é abordada de modo mais sucinto.
coagulação descrito no capítulo 136 – Síndromas
hematológicas em idade pediátrica. Manifestações clínicas
A característica fisiopatológica fundamental
das hemofilias é o atraso na formação de coágulo Clinicamente indistinguíveis e com um padrão de
o qual, por sua vez, é anómalo. hereditariedade semelhante, as hemofilias A e B
Os genes que codificam os factores VIII e IX são abordadas em conjunto.
estão localizados no braço longo do cromossoma
X. As hemofilias A e B são doenças monogénicas Hemofilia grave (A e B)
com um único gene mutante responsável, respec- A hemofilia grave é geralmente diagnosticada
tivamente F8 e F9, localizados no braço longo do durante o primeiro ano de vida ou, mais rara-
cromossoma X (Xq28) O gene que codifica o factor mente, já na data do nascimento havendo antece-
XI localiza-se no cromossoma 4q32-35. dentes familiares.
Na maioria dos casos de hemofilia A e B veri- Cerca de 30-50% dos doentes com hemofilia
fica-se défice quantitativo da proteína que consti- grave têm manifestações neonatais (hematoma de
tui o factor de coagulação. Em cerca de 5-10% dos grandes dimensões, hemorragia prolongada do
casos de hemofilia A e 40-50% dos casos de he- cordão umbilical), e hemorragia intracraniana em
mofilia B existe alteração qualitativa (disfunção) cerca de 1-2% dos casos.
do respectivo factor de coagulação. Após o período neonatal e durante os primei-
Um tipo raro de hemofilia B designado por ros meses de vida as manifestações são raras até
hemofilia B de Leiden está associado a mutação na que a criança se movimente com mais autonomia
região promotora do gene do factor IX; esta par- e comece a andar; no entanto poderá ocorrer
ticularidade traduz-se em elevação dos níveis de hemorragia nalgumas situações como durante a
factor IX na puberdade com consequente evolução erupção dentária, secção do freio da língua, cir-
mais favorável dos quadros hemorrágicos a partir cuncisão ou na primeira injecção, em geral rela-
desse período etário. cionada com aplicação de vacinas.
A gravidade da doença está ligada ao valor do À medida que a mobilidade progride e a activi-
défice do factor, sendo o respectivo prognóstico dade física aumenta, os hematomas e hemartroses
dependente das complicações hemorrágicas em (espontâneos ou após lesões traumáticas ligeiras)
zonas vitais, das sequelas devidas a hemorragias tornam-se frequentes constituindo a principal causa
CAPÍTULO 151 Hemofilias 723

de morbilidade; com efeito, se a criança não for sub-


metida a terapêutica, com a evolução natural da
doença, tais hemorragias ocorrendo em média com
uma frequência de 20 a 30 episódios anuais, resul-
tam inevitavelmente em artropatia crónica e inca-
pacitante. (Figuras 1, 2 e 3)
Os hematomas musculares constituem a se-
gunda localização mais frequente, podendo ser
complicados por compressão nervosa e síndromas
de compartimentação; por outro lado, as hemorra-
gias localizadas aos grandes músculos (como os da
coxa ou psoas-ilíaco) acarretam perdas sanguíneas
significativas; refira-se que a hemorragia do psoas-
ilíaco pode simular um quadro de abdómen agudo.
FIG. 3
As hemorragias do sistema nervoso central,
espontâneas ou pós-trauma, constituem a princi- A – Hematoma inguinocrural. (NIHDE)

pal causa de mortalidade; em geral manifestam-se


por cefaleia, vómitos ou letargia.
Também as hemorragias da via aérea, nomea-
damente os hematomas da base da língua e do teci-
do retrofaríngeo, podem constituir uma emergên-
cia pela risco de obstrução aguda. (Figura 4)
De salientar ainda, nas hemofilias graves, o
aparecimento de hematúria persistente, epistaxe e
hemorragia gastrintestinal.

Hemofilia moderada (A e B)
Nesta forma, menos exuberante, raramente se ve-
rificam hemorragias espontâneas; contudo, sem
tratamento poderá haver hemorragias prolon-
FIG. 1
gadas após lesões traumáticas ligeiras, com uma
A – Hematoma do coiro cabeludo. (NIHDE) frequência muito variável.

FIG. 2 FIG. 4
A – Hemartrose do joelho. (NIHDE) A – Hematoma da base da língua. (NIHDE)
724 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Hemofilia ligeira (A e B) verá estar prolongado; no entanto, um valor de


Os indivíduos com hemofilia ligeira evidenciam aPTT normal não exclui uma hemofilia ligeira ou
sintomatologia apenas em situações de lesões até moderada, devido à fraca sensibilidade de tal
traumáticas importantes (intervenções cirúrgicas, exame laboratorial.
fracturas, extracções dentárias, etc.). Em síntese, conjugando os dados clínicos com
os laboratoriais, pode afirmar-se que o diagnósti-
Hemofilia C co de hemofilia pode ser admitido existindo he-
Nesta forma de hemofilia a tendência hemorrági- morragias prolongadas com localização profunda
ca não é tão grave como nas A e B, sendo que tal em indivíduos do sexo masculino, com aPPT pro-
tendência não se correlaciona com o défice de fac- longado e resultados dos restantes parâmetros de
tor XI. Muitas vezes as manifestações só surgem rastreio normais.
no contexto de intervenção cirúrgica ou de O passo seguinte será o doseamento sérico dos
extração dentária, a não ser que exista concomi- factores de coagulação (VIII e IX). É neste dosea-
tantemente outra doença (por ex. DVW). mento que se baseia, não só o diagnóstico definiti-
vo, como a sua classificação segundo a gravidade
Exames complementares clínica.
A actividade normal dos factores VIII e IX situa-
Hemofilias A e B se entre 50-100%; no entanto, níveis > 35% já são
A verificação de diátese hemorrágica, designada- hemostáticos, não se traduzindo por qualquer sin-
mente com antecedentes familiares de idêntica tomatologia.
patologia e com uma semiologia compatível com A idade do diagnóstico e a gravidade dos
défice de factores, (localização hemorrágica nos episódios hemorrágicos estão relacionadas com o
músculos e articulações) implica o encamin- nível de actividade do factor. (Quadro 1)
hamento do doente para centro especializado para
correcta avaliação com a colaboração do pediatra Hemofilia C
hematologista e do patologista laboratorial. Na forma homozigótica (défice de factor XI) o PTT é
Nestas situações, a avaliação laboratorial inicial muitas vezes superior ao que se verifica nos défices
tendo em vista o diagnóstico etiológico, deve incluir de factores XVIII ou IX; este aparente paradoxo surge
os seguintes parâmetros: contagem plaquetária, porque o factor VIIa pode activar o factor IX in vivo.
avaliação da função plaquetária (PFA), tempo de O diagnóstico do défice de factor XI faz-se por
protrombina (PT), tempo de tromboplastina parcial doseamento específico.
activada (aPTT), e fibrinogénio.
Nos casos de hemofilia moderada a grave o Diagnóstico diferencial
único parâmetro que sofre alteração é o tempo de
tromboplastina parcial activada (aPTT) que de- Quando existe suspeita de coagulopatia, a história

QUADRO 1 – Hemofilias A e B: algumas características

Grau Actividade do factor Tipo de hemorragia Idade do diagnóstico


GRAVE <1% Frequentemente <1 ano
< 1 U/dL espontânea

MODERADA 1-5% Relação com trauma mínimo 1-5 anos


1-5 U/dL Raramente espontânea

LIGEIRA 6-35% Prolongada após trauma Mais tardio


6-35 U/dL grave ou intervenções
cirúrgicas
CAPÍTULO 151 Hemofilias 725

clínica e o exame objectivo são elementos essen- não acarreta um risco acrescido de produção de
ciais na abordagem inicial. A localização das anticorpos inibidores. Os inconvenientes destes
hemorragias (superficiais/profundas) é impor- produtos estão, sim, relacionados com o preço e
tante na diferenciação entre alterações da hemos- com a sua disponibilidade.
tase primária e secundária. O diagnóstico diferencial Além disso, na produção de factor VIII recom-
entre hemofilia ligeira e doença de von Willebrand pode binante é utilizada albumina humana, não elimi-
ser difícil. A história familiar com um padrão de nando assim o risco (até agora apenas teórico) de
hereditariedade autossómica dominante pode ser transmissão de priões humanos. Os novos produ-
indicativa deste último diagnóstico. tos, chamados de segunda geração, são menos
De referir que o estado de portador de hemo- sensíveis à degradação proteolítica, não existindo
filia A ou B no sexo feminino pode, por vezes, cor- albumina na sua formulação final.
responder a sintomatologia ligeira. O factor IX recombinante não necessita de
qualquer proteína humana ou animal na sua for-
Tratamento mulação ou preparação.

Aspectos gerais Abordagem dos episódios hemorrágicos


Nas últimas três décadas, após a introdução da A terapêutica substitutiva tem como objectivo a
terapêutica de substituição com concentrados de reposição do factor deficiente para determinado
factor VIII e IX, a esperança média de vida do nível hemostático ao primeiro sinal de hemorragia
doente hemofílico aumentou substancialmente, para prevenir complicações; o nível da resposta indi-
acompanhada de uma diminuição significativa da vidual depende do tipo e gravidade da hemorragia.
morbilidade. O Quadro 2 resume algumas noções importantes a
A escolha entre concentrados de factores ter em conta na prescrição do factor deficitário.
derivados do plasma e recombinantes ainda hoje Por outro lado, são considerados dois tipos de
não é consensual. O uso de plasma fresco ou criopre- objectivos gerais a atingir quanto a níveis de fac-
cipitado está hoje contra-indicado (pelo menos nos tores, em função de situações específicas:
países em que existem alternativas disponíveis). – Feridas ligeiras, extracções dentárias, he-
A propósito do caso especial da hemofilia C a uti- morragias articulares e musculares: pretende-se
lização do plasma é abordada adiante em alínea alcançar níveis de factor de 30-40U/dL.
especial. – Situações de grande cirurgia, hemartrose da
Em Portugal tem sido privilegiado o uso de anca, hemorragias com compromisso vital e sín-
produtos recombinantes nos vários centros de dromas compartimentais: pretende-se alcançar
tratamento de hemofilia. níveis de 80-100 U/dL.
Os procedimentos de segurança hoje utiliza-
dos no processamento dos factores derivados do QUADRO 2 – Efeito da administração
plasma incluem, não só o rastreio sistemático e de factores VIII, IX e plasma
por fases de todos os dadores, como processos de
inactivação vírica térmica e solventes/deter- Factor VIII
gentes, altamente eficazes na inactivação dos Semi-vida de 8-12 horas.
vírus das hepatites B, C e do VIH. No entanto, 1 U/kg aumenta o nível de factor em 2%. (valor percentual
estas medidas não previnem a transmissão de do nível hemostático pretendido x peso em kg x 0,5)
vírus termorresistentes, como o parvovírus B19. Factor IX
Os produtos recombinantes começaram a ser Semi-vida de 18-24 horas
utilizados no início dos anos 90 e os estudos clíni- Derivado do plasma: 1 U/kg aumenta o nível de factor
cos realizados demonstraram a sua excelente em 1 %
eficácia e uma alta correlação entre a dose e o nível Factor rIX: 1,2 U/kg aumenta o nível de factor em 1%
plasmático. (valor percentual do nível hemostático pretendido x
Ao contrário do que fora inicialmente sus- peso em kg x 1,3)
peitado, a terapêutica com factores recombinantes
726 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

O Quadro 3 descreve, com mais pormenor, as compressão e fisioterapia;estas medidas devem ser
normas de actuação quanto a tratamento substitu- iniciadas o mais precocemente possível. Não devem
tivo em função do problema específico ser usados o ácido acetilsalicílico ou derivados.

Outras medidas associadas Normas quanto a localizações específicas


– Desmopressina (DDAVP) que liberta as – Hemorragia musculoesquelética
reservas endoteliais de factor VIII resultando num A hemorragia articular deve ser reconhecida o
aumento transitório do mesmo; pode ser útil nos mais precocemente possível, pois a reposição dos
casos de hemofilia ligeira a moderada, mas é inefi- níveis hemostáticos nesta fase previne a lesão teci-
caz nos casos de hemofilia A grave e hemofilia B. dual perpetuando o ciclo hemorragia/lesão/ he-
Pode ser administrada por via endovenosa ou morragia.
nasal. Os hematomas intramusculares profundos
– Antifibrinolíticos (ácido aminocapróico) que podem por vezes ser difíceis de diagnosticar. Um
são inibidores competitivos da activação do plas- caso paradigmático é a hemorragia do psoas-ilíaco
minogénio; neutralizam a actividade fibrinolítica que se pode manifestar por dor abdominal, lombar
salivar estabilizando o coágulo, pelo que têm utili- ou da articulação coxo-femoral com limitação
dade nas hemorragias da mucosa oral. Devem ser importante da extensão da coxa (mas não dos movi-
evitados em hemorragias do tracto urinário e em mentos de rotação). Pode também haver parestesias
doentes submetidos a tratamento com concentrado da coxa ou outros sinais de compressão do nervo
de complexo pró-trombínico. femoral. A tomografia computadorizada pode ser
– Tratamento analgésico e anti-inflamatório in- importante no diagnóstico diferencial, estando a
cluindo medidas de repouso, aplicação de gelo, hospitalização, dum modo geral, indicada.

QUADRO 3 – Normas de actuação quanto a administração de factores VIII e IX

Localização e tipo Nível hemostático Hemofilia A dose* Hemofilia B dose**


da hemorragia pretendido (U/Kg) (U/Kg)
Articular 40% 20 40
Muscular (durante 72horas)
(excepto psoas-ilíaco) 40% 20 40
Psoas-ilíaco
♣ Inicial 80%-100% 40-50 80-100
♣ Manutenção (14 dias) 50% 25 50
SNC
♣ Inicial 80%-100% 40-50 40-50
♣ Manutenção (14-21dias) 50% 25 25
Região cervical e pescoço
♣ Inicial 80%-100% 40-50 40-50
♣ Manutenção (7-14 dias) 50% 25 25
Gastrintestinal ou abdominal
♣ Inicial 80%-100% 40-50 40-50
♣ Manutenção 50% 25 25
Oftálmica 80-100% 40-50 80-100
Renal 50% 25 50
Laceração profunda 50% 25 50
Cirurgia
♣ Inicial 80%-100% 40-50 40-50
♣ Manutenção 50% 25 25
* Factor VIII; ** Factor IX
CAPÍTULO 151 Hemofilias 727

– Hemorragia do sistema nervoso central ou IX administrados, neutralizam ou inibem a


Constitui uma emergência médica. Todos os actividade do factor de coagulação, tornando a
traumatismos cranianos e cefaleias significativas sua reposição ineficaz.
devem ser tratados como hemorragia do SNC, até A presença de inibidores é hoje a complicação
prova em contrário. Deve em primeiro lugar ini- mais frequente e preocupante no doente hemofíli-
ciar-se a terapêutica, somente depois se proceden- co. A sua incidência é da ordem de 20-30% nos
do à avaliação mais pormenorizada do doente. doentes com hemofilia A moderada a grave, e ape-
– Hemorragia renal nas 1-4% na hemofilia B. Neste último caso
Nesta situação os agentes antifibrinolíticos (hemofilia B) poderão também surgir reacções
devem ser evitados. A hematúria microscópica e anafilactóides ao factor IX exógeno.
indolor deve ser tratada com repouso e hidratação Admite-se que os factores genéticos e as
vigorosa durante 48horas. Uma hematúria ma- mutações subjacentes à hemofilia em cada família
croscópica e persistente obriga a terapêutica de tenham um papel no desenvolvimento de inibido-
substituição; em casos seleccionados poderão ser res, sendo que nas famílias de origem africana e
utilizados corticóides com bons resultados. latinoamericana existe maior probabilidade de
surgir esta complicação.
Caso especial da hemofilia C No tratamento dos doentes com baixos títulos
Na hemofilia C a infusão de plasma (10-15 de inibidores (< 5 Unidades Bethesda) as hemor-
mL/kg) contribui para incrementar os níveis de ragias podem ser dominadas com o aumento das
factor XI em 20-30%; poderá haver necessidade de doses de factor VIII ou IX. No entanto, em doentes
várias tansfusões sendo a vida média do factor XI com títulos de inibidores superiores a 5 Unidades
> 48 horas. Como medida geral é referida a com- Bethesda, o tratamento dos episódios hemorrági-
pressão local no âmbito de intervenções de peque- cos deve ser obrigatoriamente discutido com o
na cirurgia, extracções dentárias, etc.. hematologista uma vez que a reposição com factor
se torna totalmente ineficaz.
Complicações Nesta situação utilizam-se como alternativas o
factor VII recombinante ou concentrado de com-
Estão descritas as seguintes complicações: plexo protrombínico.
– Artropatia hemofílica Alguns doentes podem necessitar de um
A lesão articular crónica resultava, no passado, esquema de indução de imunotolerância, com a
numa situação muito incapacitante. Hoje, a tera- administração regular de doses elevadas de factor
pêutica profiláctica tornou esta patologia uma até diminuição dos títulos para níveis aceitáveis.
raridade, sendo possível para as crianças hemo-
fílicas uma qualidade de vida muito boa. Profilaxia
– Complicações infecciosas
Até ao fim da década de 80 na maioria dos Tendo como base o dado de que os indivíduos
doentes (>80%) com hemofilia grave verificava-se com hemofilia moderada raramente são afectados
infecção pelos vírus da hepatite C, B, A e VIH. de artropatia crónica, a administração programa-
Felizmente, as crianças nascidas após este perío- da de factor para manter uma taxa mínima entre
do, com os novos métodos de rastreio e inacti- 1% e 5% (25-40 U/ kg de factor VIII três vezes por
vação vírica, não existe este problema. Embora semana, ou de factor IX duas vezes por semana)
esta complicação tenha hoje apenas um significa- deverá prevenir, nas hemofilias graves, o desen-
do histórico, é importante manter uma vigilância volvimento de artropatia secundária a hemartro-
rigorosa e um elevado nível de suspeita clínica, ses de repetição.
dada a possibilidade de transmissão de agentes São considerados dois tipos de profilaxia em
infecciosos ainda desconhecidos. função do momento em que se inicia a adminis-
– Anticorpos inibidores e anafilaxia tração do factor:
Os anticorpos inibidores, aloanticorpos dirigi- – Profilaxia primária
dos contra os factores VIII (predominantemente) É iniciada entre o 1 ano e os 2 anos de idade
728 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

(antes de a criança começar a sofrer de hemar- praticar desporto compatível (pois a tonificação
trose ou após a primeira hemorragia articular). Tal muscular é essencial na estabilização das articu-
medida possibilita uma redução drástica do nú- lações); obviamente, há que evitar os desportos de
mero de episódios hemorrágicos, preservando as contacto físico como o futebol, artes marciais,
articulações; os inconvenientes são a necessidade desportos radicais, etc..
de via central de acesso venoso permanente e o Finalmente, recorda-se que a abordagem destas
elevado custo do factor. crianças deve ser feita por uma equipa multidisci-
– Profilaxia secundária plinar que inclua, designadamente, hematologista,
Considera-se esta modalidade se o tratamento pediatra/médico assistente/médico de família,
regular contínuo tiver sido iniciado após os 2 anos estomatologista, enfermeira, assistente social, fisia-
de idade, ou após duas ou mais hemorragias numa tra e ortopedista, entre outros profissionais.
articulação-alvo.
De salientar, no entanto, que o esquema pro- BIBLIOGRAFIA
filáctico deve ser individualizado tendo em conta Bolton-Maggs PH, Stobart K, Smyth RL. Evidence-Based
a frequência dos episódios hemorrágicos, a adesão Treatment of Haemophilia 2004; 10 (suppl 4): 20-24
da família e a disponibilidade de acessos venosos. Chalmers EA. Haemophilia and the newborn. Blood Rev 2004,
Após um período inicial de adaptação da 18: 85-92
família, a mesma deve ser motivada para a cola- Dunn Al, Abshire TC. Recent advances in the management of
boração na administração do factor no domicílio, the child who has hemophilia. Hematol Oncol Clin North
o que contribui para diminuir a dependência as- Am 2004; 18: 1249-1276
sistencial da instituição de saúde. Giangrande PLF. Management of haemophilia. Paediatrics and
Child Health 2011; 21:344-347
Aconselhamento genético Gouw SC, Van der Bom Jg, Ljung R, et al. Factor VIII products
e educação para a saúde and inhibitor development in severe hemophilia A. N Engl
J Med 2013; 368:231-239
Realça-se a importância do estudo molecular, não Hoffman R, Benz EJ, Shattil SJ, et al. (eds). Hematology: Basic
só para a confirmação diagnóstica como comple- Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier Churchill
mento do doseamento sérico dos factores, mas Livingstone, 2007
também para o estudo familiar e aconselhamento Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
genético. Outra vantagem prende-se com o seu Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
valor preditivo quanto ao fenótipo clínico prová- 2011
vel e ao risco de desenvolvimento de inibidores. Lopes LM, Villa AM. Hematologia y Oncologia Pediatricas.
Assim, após detecção de uma mutação no caso Madrid: Ediciones Ergon, 2004
index está indicado proceder ao estudo genético Manco-Johnson M. Hemophilia management: optimizing
da família, uma vez que em 70% dos casos a mãe treatment based on patients needs. Curr Opin Pediatr 2005;
é portadora da mutação genética. 17: 3-6
No que respeita a recomendações gerais à família McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
(e ao próprio doente em função da idade) cabe acen- Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010
tuar que todas as vacinas do PNV podem ser admi- Oldenburg J, Ananyeva NM, Saenko EL. Molecular basis of
nistradas às crianças hemofílicas assim como a vaci- haemophilia A. Haemophilia 2004; 10 (suppl 4): 133-139
na anti-hepatite A. As vacinas podem ser admi- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
nistradas por injecção subcutânea sem necessidade AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
de profilaxia específica, devendo o local de punção Medical, 2011
ser comprimido durante, pelo menos, 10 minutos. Zimmerman B, Valentino LA. Hemophilia: in review. Pediatr
O doente hemofílico deve ser alertado para a Rev 2013; 34: 289 - 294
importância de uma higiene dentária cuidadosa
com avaliação regular e periódica pelo estomato-
logista.
A criança hemofílica deve ser estimulada a
CAPÍTULO 152 Doença de Von Willebrand 729

152
Além da forma congénita, existe também a for-
ma adquirida, relacionável com situações tais
como linfoma não-Hodgkin,doenças mieloproli-
ferativas, tumor de Wilms, administração de fár-
macos (ciprofloxacina,ácido valpróico, griseoful-
vina), leucemia linfocítica crónica, hipotiroidismo,
DOENÇA DE VON WILLEBRAND etc..

João M. Videira Amaral Classificação etiopatogénica

Sob o ponto de vista fenotípico são considerados


três tipos de DvW de acordo com o tipo de alte-
Definição e importância do problema ração do FvW subjacente:
– tipo 1 ou clássica (défice quantitativo parcial)
A designação de doença de von Willebrand (DvW) surgindo em cerca de 80% dos casos; é subdividi-
engloba um conjunto heterogéneo de situações do em três subtipos de acordo com o conteúdo
hemorrágicas relacionáveis com defeito primário intraplaquetário do FvW;
(anomalia qualitativa) ou défice (anomalia quanti- – tipo 3 (défice quantitativo total);
tativa) do factor de von Willebrand (FvW), o qual – tipo 2 (defeito ou anomalia qualitativa) sub-
forma um complexo ligado ao factor VIII. dividido nos subtipos designados por 2A, 2B, 2M
O gene do FvW localiza-se no cromossoma 12. Os e 2N.
níveis de FvW oscilando entre 0,5-2U/mL variam O nível de factor VIII:C nos tipos 1 e 2 é normal
com o grupo sanguíneo (tipo O < A < B < AB), o ou discretamente reduzido, estando muito reduzi-
que constitui característica genética; o estresse e as do no tipo 3.
influências hormonais contribuem igualmente As anomalias do FvW têm como consequência
para os referidos níveis. a diminuição da adesão e da agregação das pla-
O FvW é uma glicoproteína com duas impor- quetas. Quanto mais ligeira a variante fenotípica,
tantes funções na hemostase: 1) mediar a adesão mais difícil o diagnóstico.
das plaquetas ao subendotélio e endotélio vascu- De referir que existe uma entidade designada
lar lesados; 2) transportar o componente procoa- por DvW de tipo plaquetário ou pseudo – DvW;
gulante da molécula do factor VIII (ou factor VIII: trata-se duma doença das plaquetas com trans-
C) na circulação, facilitando a formação do coágu- missão autossómica dominante em que o com-
lo de fibrina e impedindo a sua inactivação pela plexo genotípico das mesmas apresenta maior
proteína C e factor X activados. afinidade pelo FvW.Os respectivos doentes pode-
O FvW, sintetizado pelas células endoteliais e rão evidenciar ou não fenómenos hemorrágicos.
megacariócitos, é armazenado nos grânulos secre- Discute-se hoje se todos os casos de DvW tipo
tórios das células endoteliais (corpúsculos de 1 se relacionam com mutações no gene do FvW no
Weilberg-Palade) e nos grânulos alfa das plaquetas. cromossoma 12 ou se existem factores modu-
Esta entidade clínica surge com uma frequên- ladores, como o grupo O sanguíneo e o hipoti-
cia aproximada de 0,8-2% entre a população geral, roidismo que determinam a variação fenotípica
sendo transmitida hereditariamente, na maioria (níveis mais baixos de FvW).
dos casos, de modo autossómico dominante; a
transmissão autossómica recessiva é rara. Ambos Manifestações clínicas
os sexos são afectados. Trata-se da doença hemor-
rágica hereditária mais frequente, sintomática na Como manifestações clínicas citam-se: tendência
ordem de 0,01% (1/10.000). hemorrágica ligeira a moderada, em geral atingin-
Dada a penetrância incompleta, a inexistência do as superfícies cutaneomucosas, sobretudo no
eventual de antecedentes familiares não exclui a contexto de lesão traumática ou intervenção cirúr-
doença. gica,extracção dentária, epistaxes, gengivorragias,
730 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

menorragias e melenas; em muitos casos, com a às plaquetas e a agregação destas (agregação pla-
comprovação das anomalias bioquímicas, não se quetária induzida pela ristocetina (APIR ou sigla
verifica qualquer sintomatologia hemorrágica. Na RIPA em inglês)
história familiar identificam-se casos com tendên- Nos tipos 1 e 3 verifica-se redução da agluti-
cia hemorrágica excessiva. nação proporcional aos níveis de Ag FvW.
Nas formas graves associadas a défice do com- No tipo 2 não se verifica tal proporção, sendo
ponente procoagulante da molécula do factor VIII que a actividade funcional é menor que a presença
(ou factor VIII:C) as manifestações são seme- antigénica do FvW.
lhantes às da hemofilia A, realçando-se a he- • Estudos de genética molecular
martrose. Estão descritas situações em que se
demonstrou a presença de um factor inibidor. Tratamento

Exames complementares Como medidas gerais para contenção de episódio


hemorrágico em caso de epistaxe prolongada e
A história clínica sugestiva obrigará à realização abundante, apontam-se a pressão local e eventual
de exames laboratoriais: cauterização a cargo do otorrinolaringologista.
• Tempo de hemorragia O tratamento da DvW tem por objectivo corri-
Embora se trate de prova laboratorial com sen- gir os dois defeitos hemostáticos da doença:
sibilidade e reprodutibilidade variáveis, pode ser baixos níveis de FVIII: C e do Ag FvW no plasma;
considerada o indicador da hemostase primária, e o prolongamento do tempo de hemorragia.
com sensibilidade suficiente para avaliar a quali- Nos doentes com o tipo 1 de doença, e nalguns
dade e quantidade do FvW plasmático e intrapla- casos de tipo 2, utiliza-se para prevenir ou para
quetário. combater os episódios hemorrágicos (por ex.
Está, dum modo geral, prolongado na DvW, intervenções cirúrgicas) a desmopressina (1-
podendo ser normal nas formas ligeiras e quando deamino-8-D-arginina-vasopressina) a qual con-
o FvW intraplaquetário é normal. tribui para elevar o teor de FvW.
• Contagem de plaquetas Pode ser utilizada por via endovenosa (0,3
De valor em geral normal, podendo estar dimi- µg/kg até máximo de 20 ug) diluída em soluto
nuído no subtipo 2B e no tipo plaquetário (ou salino (~50mL) em 30 minutos. Poderá repetir-se
pseudodoença de von Willebrand) a dose várias vezes (cada 12-24 horas) de acordo
• Tempo de tromboplastina parcial activado com o resultado obtido.Poderá ser utilizada tam-
(PTTa) bém a via intranasal (150 µg em doentes com
Avalia os níveis de factor VIII:C; os valores menos de 50 kg e 300 µg em doentes com peso
podem ser normais ou evidenciar prolongamento superior) em situações ligeiras.
variável. Ainda nos doentes do tipo 1 (casos de extra-
Os exames complementares essenciais para ções dentárias, hemorragias das mucosas prolon-
confirmação diagnóstica e identificação do tipo são: gadas, epistaxes intensas e prolongadas) podem
• Doseamento do FVIII: C ser usados antifribinoliticos (ácido aminocaprói-
Nos tipos 1 e 2 é normal ou discretamente co) na dose de 100 mg/k de 6/6h.
reduzido, sendo muito reduzido (inferior a 5 %) De salientar que os tipos 3 e 2M não respon-
no tipo 3. dem à desmopressina, estando contra-indicada no
• Determinação quantitativa do FvW / proteí- 2B.
na circulante por métodos imunológicos corres- Nos casos não respondentes à desmopressina,
pondendo a antigénio FvW (Ag FvW) nas lesões traumáticas com risco de vida ou
Na DvW do tipo 1 o valor está diminuído, nor- grande cirurgia, está indicado o tratamento com
mal ou reduzido no tipo 2, e inferior a 5% no tipo 3. concentrado de FvW na dose para promover
• Determinação da actividade funcional do aumento de 30%, o que implica conhecer a con-
FvW (Act FvW) utilizando o antibiótico ristoceti- centração do referido preparado. Na terapêutica
na como cofactor, o qual induz a ligação do FvW actualmente disponível utiliza-se preparado de
CAPÍTULO 153 Hipercoagulabilidade e doença trombótica 731

153
FvW derivado do plasma (que também contém
factor VIII). De salientar que 1 U/kg aumenta o
respectivo nível plasmático cerca de 1,5%. A vida
média do FvW é ~8-10 horas; o concentrado puro
de FvW recombinante, sem factor VIII não está
ainda disponível no mercado. O esquema prático
de administração do FvW é o seguinte: 20 a 30 HIPERCOAGULABILIDADE
U/kg em 20 minutos de 8/8 ou 12/12h para man-
ter níveis superiores a 50%. A administração con- E DOENÇA TROMBÓTICA
comitante de 20 a 30 U do cofactor da ristocetina
aumenta a concentração plasmática para 50 a João M. Videira Amaral
100% ou aproximadamente 0,7 U/ml.
No tipo 3 poderá haver necessidade de maior
nível reposição de FvW (82 a 100%); se a hemorra-
gia não for dominada com as doses referidas Importância do problema
poderá ser necessário transfusão de plaquetas.
Não se deverá empregar o crioprecipitado pelo As anomalias da coagulação caracterizadas por
facto de o mesmo não ser viralmente atenuado. hipercoagulabilidade predispõem a trombose ou
Duas notas importantes devem ser realçadas: fenómenos tromboembólicos venosos ou arteriais
vacina anti-hepatite B antes de o doente ser trata- (trombofilia). Tais anomalias, que podem ser con-
do com derivados do plasma, e evicção de ácido génitas /hereditárias ou adquiridas, comportam
acetilsalicílico, o qual tem acção antiagregante pla- risco elevado de morbilidade e mortalidade.
quetária. Os eventos tromboembólicos são raros em
crianças saudáveis; a sua incidência é maior em
BIBLIOGRAFIA RN em estado crítico e nos casos de doenças cróni-
Choudhuri S, Bolton-Maggs. Von Willebrand disorder. cas. Estatísticas hospitalares dos EUA apontam
Paediatrics and Child Health 2011; 21:348-352 para taxas médias de alterações adquiridas da
Favoloro EJ, Lillicrap D, Lazzari MA, et al. Von Willebrand dis- ordem de 10/100.000, com variações em função da
ease: laboratory aspects of diagnosis and treatment. idade (maiores picos em lactentes e adolescentes).
Haemophilia 2004; 10: 164-168 De referir que, independentemente de factores
Gill JC. Diagnosis and treatment of von Willebrand disease. predisponentes, a tendência para trombose dimi-
Hematol Oncol Clin North Am 2004; 18: 1277-1299 nui significativamente após o período neonatal;
Hann IM, Gibson BES, Letsky EA. Fetal and Neonatal por outro lado, quanto menor a idade gestacional,
Haematology. London: Baillere Tindall, 2001 maior a deficiência, quer em proteínas anticoagu-
Hoffman R, Benz EJ, Shattil SJ, et al. (eds). Hematology: Basic lantes, quer em factores procoagulantes.
Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier Churchill
Livingstone, 2007 Etiopatogénese e manifestações
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson clínicas
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
2011 O Quadro 1 sintetiza as situações mais frequentes
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon que predispoem a trombose. Na base da sistemati-
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New Yor : McGraw-Hill zação do mesmo quadro, importa referir os
Medical, 2011 mecanismos (um ou mais ) que levam à trombose
ou trombose seguida de embolia: lesão vascular,
anomalia do processo de adesão/agregação das
plaquetas, activação do mecanismo da coagu-
lação, deficiência ou disfunção do sistema de anti-
coagulação, disfunção do mecanismo de fibri-
nólise, e diminuição da velocidade circulatória. A
732 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Estados protrombóticos QUADRO 2 – Doenças trombóticas hereditárias

Congénitos Défice ou anomalias qualitativas dos inibidores dos


Lesão do endotélio factores de coagulação activados
Homocistinémia • Défices de: AT,TM (trombomodulina), proteína C,
Níveis elevados de procoagulantes proteína S; resistência à proteína C activada (APC)
Gene mutante da protrombina G20210A Anomalia na lise do coágulo
Níveis elevados de factor VIII • Disfibrinogenémia; défices de plasminogénio, TPA
Resistência ao cofactor da proteólise (activador do plasminogénio tecidual); excesso de
Gene mutante do factor V (factor V Leiden) actividade do PAI ( inibidor-1 do activador do
Défice de anticoagulantes plasminogénio
AT-III, proteína C, proteína S, plasminogénio Defeito metabólico
• Hiper-homocistinémia
Adquiridos Anomalias de factores ou cofactores da coagulação
Obstrução vascular ou diminuição do débito sanguíneo • Mutação do gene da protrombina, níveis elevados de
Policitémia/hiperviscosidade factores VIII, IX, X, XI
Cateterismo
Gravidez
Imobilização nas anticoagulantes (proteína C, proteína S ,ou
Lesão vascular AT-III) verifica-se tendência para doença trom-
Traumatismo boembólica venosa desde idades muito precoces.
Intervenção cirúrgica A forma homozigótica de défice de proteína C
Inflamação pode originar no RN o quadro de púrpura neonatal
Doença inflamatória intestinal, vasculite, síndroma de fulminante caracterizada fundamentalmente por
Behçet
necrose da pele e tromboses dos grandes vasos;
Estados diversos de hipercoagulabilidade
esta situação implica o diagnóstico diferencial
Tumores malignos
com sépsis e CID. De salientar que no RN os
Síndroma nefrótica
níveis de proteína C são muito baixos.
Síndroma antifosfolípido
Abordando de modo global as manifestações
L-asparaginase
clínicas de doença tromboembólica, cabe salientar
Níveis elevados de factor VIII
determinados sinais gerais: 1) as tromboses arte-
Contraceptivos orais
riais geralmente manifestam-se por disfunção de
Causas raras
órgão devida a isquémia (por ex. pele e extremi-
Disfibrinogenémia,hemoglobinúria paroxística
dade fria, ausência de pulso); 2) as tromboses
nocturna, trombocitémia, enxertos vasculares, etc.
venosas dos membros superiores ou inferiores
manifestam-se por edema, extremidade não fria
antiga tríade de Virchow (hiperviscosidade, dimi- ou quente, e/ou rubor ; as veias torácicas proxi-
nuição do débito sanguíneo e lesão endotelial) mais constituem outra possível localização; 3) as
continua a ter validade nesta patologia. tromboses venosas profundas são, na maioria das
O Quadro 2 discrimina as principais entidades vezes, assintomáticas até que se desenvolva
clínicas classificadas como doenças trombóticas embolia pulmonar; 4) a embolia pulmonar resulta
hereditárias, na sua maioria, de transmissão em geral de lesão endotelial provocada por cateter
autossómica dominante, ou desconhecida. venoso central, derivação ventrículo-auricular no
O factor V Leiden encontra-se em cerca de 5% contexto de hidrocefalia, ou de endocardite asso-
da população caucasiana e o gene mutante da pro- ciada a cardiopatia congénita; pode manifestar-se
trombina em cerca de 1-2%, também da população por dor de tipo pleurítico, tosse, hemoptise, febre,
caucasiana; a prevalência destas mutações noutras e padrão radiográfico do tórax anómalo; 5) os
etnias é desconhecida. eventos vasculares oclusivos na idade pediátrica
Nas formas heterozigóticas de défice de proteí- têm, como regra, aparecimento súbito.
CAPÍTULO 153 Hipercoagulabilidade e doença trombótica 733

O diagnóstico diferencial da doença trom- a regra é utilizar prioritariamente trombolítico


boembólica depende do órgão afectado e do tipo (rTPA ou activador recombinante do plasminogénio
de vaso. No caso de sinais de trombose arterial tecidual na dose de 0,1-0,2 mg/kg/hora IV durante
fundamentalmente há a considerar a hipótese de 6-12 horas, seguindo-se tratamento anticoagulante).
arterite no contexto de doença de Kawasaki e de O rTPA promove a transformação do plasmi-
LES. Verificando-se quadro de trombose venosa nogénio em plasmina e a lise da fibrina.
das extremidades, as lesões traumáticas e infec- No caso de insucesso de trombólise está indi-
ciosas originam idêntica sintomatologia. cada a ressecção cirúrgica do coágulo em casos
seleccionados.
Diagnóstico A actuação nos casos de AVC é abordada no
capítulo 188 – Parte XXI.
O diagnóstico sindrómico pode ser feito através
de ecografia Doppler ou por angio-ressonância BIBLIOGRAFIA
magnética; em casos especiais poderá estar indica- Bhojwani D, Hart D. Thrombophilia in childhood. Curr Probl
da a angiografia com contraste. Pediatr Adolesc Health Care 2004; 34: 190-212
As provas de coagulação de rotina não têm Christiansen SC, Cannegieter SC, Koster T, et al. Thrombophilia,
utilidade para o diagnóstico de evento tromboem- clinical factors and recurrent venous thrombotic events.
bólico. (Capítulos 136 e 154). JAMA 2005; 293: 2352-2361
Para o diagnóstico etiológico e identificação Hoppe C, Matsunaga A. Pediatric thrombosis. Pediatr Clin
específica da anomalia em causa (na base dos ante- North Am 2002; 49: 1257-1283
cedentes familiares e da anamnese levando à sus- Kenet G, Nowak-Gottl U. Venous thromboembolism in
peita de deficiência hereditária de proteínas anti- neonates and children. Best Pract Res Haematol 2012;
coagulantes ou de proteínas reguladoras), está in- 25:333-344
dicado o estudo analítico quantitativo e funcional Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
das proteínas C, S, da AT-III, do factor V Leiden e Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
da protrombina 20210. Actualmente, em centros 2011
especializados é possível o estudo molecular diri- Kyrle PA, Eichinger S. Deep vein thrombosis. Lancet 2005; 365:
gido aos genes do factor V Leiden e da protrom- 1163-1174
bina (G20210A), mais sensível e específico que o Morley SL.Management of acquired coagulopathy in acute
baseado nas provas de coagulação. paediatrics. Arch Dis Child Educ Pract Ed 2011; 96:49-60
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
Aspectos básicos do tratamento AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
Medical , 2011
Como regra, nas situações de trombose venosa Serelha M, Neto MT, Amaral JMV, et al. A utilização do acti-
(com demonstração de trombo de idade indeter- vador recombinante do plasminogénio tecidual na trom-
minada) utiliza-se tratamento anticoagulante com bose venosa do recém-nascido. Acta Pediatr Port 1999; 30:
heparina standard: dose inicial de 75 U/kg em bolus 523-525
seguida por infusão contínua na dose de 20-28
U/kg/hora com incrementos de 5-10% cada 6
horas até se atingir PTT 2-2,5 vezes o valor normal,
e nível de heparinémia ~0,3-0,7 U/mL. Como
alternativa pode empregar-se heparina de baixo
peso molecular (enoxaparina) : 1-1,5 mg/kg de 12-
12 horas por via subcutânea. Segue-se o tratamen-
to com varfarina (0,1-0,2 mg/kg/dia per os ajus-
tando-se a dose de modo a manter o TP o dobro do
normal ou valor de INR entre 2 e 3.
Nas situações de trombose venosa ou arterial de
início recente e com risco de gangrena de membro,
734 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

154
QUADRO 1 – Principais factores etiológicos
de CID

CID aguda
Sépsis grave
– Gram negativos (endotoxinas)
COAGULAÇÃO INTRAVASCULAR – Gram positivos (mucopolissacáridos)
– Vírus
DISSEMINADA
Traumatismo grave
Deolinda Barata e Sofia Sarafana – Lesão tecidual grave (por ex: queimados)
– Traumatismo craniano
– Embolia gorda

Definição e importância do problema Patologia obstétrica


– HELLP
A coagulação intravascular disseminada (CID) é – HELLP com placenta prévia
uma síndroma caracterizada por activação difusa – Embolia por líquido amniótico
e não regulada dos mecanismos procoagulantes ,
anticoagulantes e fibrinolíticos, que conduz a uma Reacções imunitárias
depleção dos mesmos; de tal resultam manifesta- – Reacção hemolítica transfusional
ções microvasculares hemorrágicas (predominan- – Incompatibilidade ABO
tes) e de hipercoagulabilidade com produção de – Reacções alérgicas graves

trombina e depósito de fibrina (trombóticas); as


Neoplasias
alterações trombóticas originam lesões isquémicas
– Leucémias (LLA, LPA)
(microêmbolos em vários territórios), por vezes
– Neoplasias sólidas (pulmão, pâncreas, outras)
irreversíveis, que podem ter como consequência
falência multiorgânica.
Toxinas / Fármacos
Na literatura mais antiga, a CID era designada
Doença hepática
imprecisamente pelo termo “coagulopatia de con-
– Insuficiência hepática aguda
sumo”. Refira-se que esta descrição era imprecisa
– Icterícia obstrutiva
porque a maior parte dos constituintes do plasma
é degradada pela plasmina, não se restringindo o
CID subaguda / crónica
problema ao consumo de factores.
– Doenças cardiovasculares
Trata-se, evidentemente, duma situação que,
– Doenças vasculares renais
uma vez suspeita, deverá ser encaminhada para
– Doenças hematológicas
centro especializado com unidade de cuidados
– Doenças inflamatórias
intensivos pediátricos.
– Doenças autoimunes (rejeição de transplante)
– Doenças neoplásicas
Etiopatogénese
Abreviaturas: LPA - leucemia pró-mielocítica aguda; LLA - leucemia linfocítica aguda;
HELLP - síndroma de hemólise, aumento das enzimas hepáticas e baixo
A CID não é uma doença, mas uma síndroma número de plaquetas.

resultando de diversos problemas clínicos subja-


centes os quais constituem, assim, factores etio-
lógicos. da membrana celular das bactérias (lipopolis-
O Quadro 1 enumera as situações clínicas que sacárido ou endotoxina) ou as exotoxinas bacte-
mais frequentemente desencadeiam CID. rianas (por ex. toxina α dos estafilococos), induzin-
A sépsis é a causa mais comum de CID, poden- do a libertação de factores plaquetários e lesão
do ocorrer em 30-50% dos casos. Os componentes endotelial, activam factores de coagulação.
CAPÍTULO 154 Coagulação intravascular disseminada 735

Os vírus da varicela e hepatite, e o citomegalo- ção materna activa o sistema de procoagulação,


vírus são os mais habitualmente associados a CID. levando de modo agudo a CID.
Os mecanismos desencadeantes estão menos Assim, globalmente a síndroma de CID é de-
esclarecidos do que nas infecções bacterianas, mas sencadeada pela activação sistémica da coagulação
podem envolver a activação de factor XII por com- sanguínea, a qual é mediada por vários mecanis-
plexo antigénio-anticorpo, reacções de libertação mos em simultâneo. A deposição sistémica de fi-
de plaquetas, ou lesão endotelial com exposição brina resulta da produção de trombina mediada
do colagénio subendotelial. pelo factor tecidual, com supressão simultânea dos
A hepatite vírica fulminante e a insuficiência mecanismos fisiológicos de anticoagulação e alte-
hepática aguda de qualquer causa podem levar a ração da fibrinólise (causada pelo inibidor do acti-
CID, salientando-se a dificuldade que por vezes vador do plasminogénio, tipo I).
existe em distinguir esta doutras alterações da As alterações da coagulação e fibrinólise resul-
coagulação resultantes de disfunção hepática tam de diversas citocinas pró-inflamatórias. A in-
grave. terleucina-6 (IL-6) é o principal mediador da acti-
A incidência de CID em doentes com trauma- vação da coagulação, sendo que o factor de necrose
tismo grave é da ordem de 50 a 70%. tumoral (TNF-alfa) inibe as vias fisiológicas de anti-
A libertação de fragmentos de tecidos lesados coagulação e da fibrinólise (Figura 1). São descritos
(designadamente fosfolípidos a partir do tecido a seguir os principais eventos fisiopatológigos.
adiposo) na circulação sistémica, hemólise e lesão
endotelial causam activação da coagulação medi- Produção de trombina
ada por factor tecidual. O aumento das citocinas A produção de trombina mediada por factor teci-
circulantes (TNF-α e IL-1) levam a deposição gen- dual (FT) desempenha um papel central na fisio-
eralizada de fibrina nos microvasos, do que resul- patologia da CID. A produção de trombina na CID
ta resposta inflamatória sistémica mantida e sín- é exclusivamente iniciada pela activação do
droma de disfunção multiorgânica (SDMO). FT/complexo VII activado. Nem sempre é clara a
Verifica-se CID em 10 a 15% dos doentes com fonte exacta do FT. Monócitos, células polimor-
leucemia aguda e em cerca de 15% dos doentes fonucleares, e células endoteliais expressam FT
com neoplasias sólidas. Com efeito, em tais cir- em resposta a citocinas pró-inflamatórias. O FT e
cunstâncias verifica-se libertação de moléculas factor VII activado catalizam a conversão dos fac-
procoagulantes (factor tecidual e cisteína protease tores IX e X. Os factores IXa e Xa aumentam a acti-
que activam o factor X). A CID associada a neo- vação de factor X e pró-trombina, levando à for-
plasia é habitualmente crónica e compensada. mação de trombina (Figura 2). A trombina con-
A transfusão de eritrócitos ABO incom- verte fibrinogénio em fibrina e é um activador
patíveis pode causar CID aguda. Os anticorpos potente das plaquetas. As plaquetas formam
IgM naturais ligam-se a antigénio A ou B na “uma superfície de fosfolípidos” sobre a qual se
superfície das células transfundidas e formam depositam complexos de factores de coagulação
imunocomplexos que activam a cascata do com- activados, ampliando a activação da coagulação.
plemento. Estes imunocomplexos, por sua vez,
causam lesão endotelial desencadeando a acti- Disfunção das vias fisiológicas
vação da coagulação. da anticoagulação
A CID aguda é uma complicação grave de A produção de trombina é normalmente limitada
várias entidades obstétricas, como embolia por pela antitrombina III (AT III), proteína C e inibidor
líquido amniótico, placenta prévia e eclampsia. da via do factor tecidual (IVFT). Na CID estes sis-
Tal é explicável pelo facto de o líquido amniótico temas de regulação são defeituosos como resulta-
conter uma substância com afinidades para a do da disfunção endotelial. Ocorre produção
tromboplastina, altamente potente, e igualmente generalizada de trombina, levando à deposição de
com propriedades antifibrinolíticas. Esta activi- fibrina. A AT-III é o inibidor mais importante da
dade procoagulante aumenta com o tempo de ges- trombina e factor Xa. Na CID os níveis de ATIII
tação. A entrada de líquido amniótico na circula- são muito baixos como resultado do consumo,
736 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

DOENÇA SUBJACENTE

Citocinas pró-inflamatórias

IL-6 TNF-α IL-1

Endotélio e plaquetas
Libertação de
FT-VIIa
IAP-1

Produção Inibição de anticoagulantes, Inibição


de trombina (Prot. C, AT III e IVFT) da fibrinólise

Esgotamento de factores de
coagulação e plaquetas

HEMORRAGIA TROMBOSE MICROVASCULAR


Abreviaturas:
IL= interleucina; AT III – antitrombina III;
FNT = factor de necrose tumoral; VIIa =
factor VII activado; IAP-1 = inibidor do
activador do plasminogénio, tipo I liberta-
do pelas células endoteliais e plaquetas
COAGULAÇÃO INTRAVASCULAR DISSEMINADA activadas; IVFT = inibidor da via do factor
tecidual

FIG. 1
Fisiopatologia da coagulação intravascular disseminada.

degradação pela elastase libertada por neutrófilos tuem marcadores de doença em progressão e su-
activados, diminuição da síntese hepática e ex- gerem mau prognóstico.
travasamento através de capilares permeáveis. Os
baixos níveis de AT-III na CID estão associados a Interacção entre a coagulação e a inflamação
um aumento da mortalidade em doentes com sép- A activação da coagulação produz proteases, as
sis. quais induzem mediadores pró-inflamatórios com
efeitos procoagulantes e amplificam a cascata que
Disfunção da fibrinólise leva a CID.
Na CID as células endoteliais e as plaquetas acti-
vadas libertam inibidor tipo I do activador do Manifestações clínicas
plasminogénio (IAP-1). Em estudos clínicos, os
elevados níveis de IAP-1 e os níveis baixos do Dum modo geral, as manifestações clínicas tra-
complexo alfa 2 antiplasmina-plasmina consti- duzindo situação de aparência geral grave rela-
CAPÍTULO 154 Coagulação intravascular disseminada 737

FIG. 3
Quadro de CID aguda/diátese hemorrágica grave.
FIG. 2 (doente da Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos do
Cascata da coagulação e via fisiológica da anticoagulação. Hospital Dona Estefânia, Lisboa).

cionável com as da entidade subjacente (por exem- arritmia), insuficiência suprarrenal aguda (ne-
plo, infecção, neoplasia, traumatismo grave, diver- crose suprarrenal), púrpura fulminante e trom-
sas entidades obstétricas, transfusão de sangue bose venosa hepática.
incompatível, golpe de calor, afogamento em água Os achados na autópsia em doentes com CID
doce,etc.), somam-se às devidas a trombose e crónica ou subaguda mostram sinais de hemorra-
hemorragia. De salientar que a CID duplica aproxi- gia difusa em diversos locais, de necrose hemor-
madamente o risco de morte em doentes com sép- rágica dos tecidos, e de trombose em pequenos e
sis ou lesão traumática grave. grandes vasos.
A hemorragia é a manifestação clínica mais dra-
mática da CID aguda, associada a uma formação Exames complementares
excessiva de plasmina: equimoses em locais de ve-
nopunção e feridas, hematomas, hematúria, assim A anamnese e o exame objectivo, conduzindo à
como petéquias no palato mole e pele (Figura 3). suspeita de CID, obrigam à realização de exames
Nas formas graves podem surgir hemorragias complementares, sendo de referir que nenhum
maciças com localizações diversas:génito-uriná- exame laboratorial isoladamente permite diagnos-
ria, pulmonar, gastrintestinal, sistema nervoso ticar ou excluir CID.
central, etc..
Ocorre febre e hipotensão em 50% dos casos, e Aspectos gerais
anemia hemolítica microangiopática em cerca de As anomalias observadas nos resultados de diver-
15%. sos exames biológicos podem variar em função da
A CID subaguda ou crónica associada a neo- fase em que se encontra o doente, gravidade e tipo
plasias, doenças do tecido conjuntivo ou doença de doença subjacente, e eventual suporte hemo-
renal crónica, manifesta-se habitualmente como terapêutico já levado a cabo anteriormente.
entidade pró-trombótica e não como doença Na prática, em caso de CID observa-se:
hemorrágica. Menos óbvia clinicamente é a – diminuição rápida do número de plaquetas
microtrombose vascular causada pela deposição ou número < 100.000 por mm3 ;
de fibrina em diversos territórios, levando à falên- – aumento dos tempos de coagulação, tempo
cia de órgãos. de protrombina (TP), tempo de tromboplastina
As manifestações trombóticas habitualmente parcial activada (TTPa);
observadas são: insuficiência renal aguda (necrose – verificação e aumento de produtos de degra-
cortical bilateral, necrose tubular aguda), acidente dação da fibrina no plasma (PDF) e de dímeros D,
vascular cerebral, isquémia do miocárdio (enfarte, estes últimos o indicador biológico mais sensível;
738 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

– baixos níveis de inibidores da coagulação me relativamente inespecifico, uma vez que várias
(como antitrombina III). outras entidades (por ex. lesão traumática, infla-
De acordo com o que anteriormente foi referi- mação ou tromboembolismo venoso) podem
do, a síndroma de CID não pode ser excluída se os aumentar os níveis de PDF.
resultados dos exames referidos estiverem dentro Provas mais específicas que detectam os produ-
do intervalo de normalidade; com efeito, a respos- tos resultantes da degradação de fibrina pela plas-
ta de fase aguda leva à diminuição do tempo de mina (os dímeros-D) são mais úteis, uma vez que
tromboplastina parcial activada e ao aumento da indicam que ocorreu coagulação e fibrinólise. Os
concentração de fibrinogénio. dímeros-D estão aumentados em 95% dos doentes.
Segundo as normas da Sociedade de Trombose • Marcadores de formação de trombina.
e Hemostase, o Quadro 2 sintetiza os achados prin- Níveis plasmáticos elevados de trombina
cipais como critérios auxiliares de diagnóstico. podem reflectir-se em aumento dos níveis de: frag-
mento F1 (F1+2) de activação da protrombina,
Aspectos específicos complexo trombina-antitrombina (TAT) e fibrino-
Tendo como base os conceitos da fisiopatologia péptido A. A conversão de protrombina em trom-
antes descritos, são referidos mais em pormenor bina leva a libertação de fragmento inactivo F1+2
os seguintes exames: e de um elemento intermédio, pré-trombina 2, que
• Provas para detectar a formação intravascular de mais tarde forma trombina. A trombina pode de-
fibrina e produtos de degradação da fibrina/fibrinogénio. gradar o fibrinogénio por proteólise e libertar fi-
Uma vez que o principal factor desencadeante brinopéptido A. Em alternativa, pode formar-se
da fisiopatologia da CID é um aumento da for- um complexo estável, inactivo com antitrombina, o
mação de fibrina, a comprovação da existência de complexo TAT. Níveis aumentados de F 1+2, TAT e
fibrina no plasma seria essencial no diagnóstico fibrinopéptido A são indicadores sensíveis de CID
de CID. O aumento do nível de fibrina solúvel tem quando as manifestações são subclínicas. Contudo,
uma elevada sensibilidade (90-100%), como prova a sua utilidade é limitada pela necessidade de
diagnóstica. Contudo, este exame não está dispo- manuseamento cuidadoso da amostra e pela falta
nível nos laboratórios de rotina. de especificidade. Estes exames não estão dispo-
Os produtos de degradação da fibrina (PDF) níveis na maioria dos laboratórios comuns.
formam-se quando há degradação de fibrina e/ou • Contagem de plaquetas.
de fibrinogénio. Os níveis de PDF estão aumenta- A agregação de plaquetas induzida por trom-
dos em 80-100% dos doentes com CID e podem bina contribui significativamente para o consumo
ser detectados através de métodos ELISA ou de de plaquetas na CID. Contudo, podem ocorrer
aglutinação de látex. Contudo, trata-se dum exa- alterações na produção de plaquetas em doentes

QUADRO 2 – Exames laboratoriais para confirmação de CID

CID aguda CID crónica ou compensada


Tempo de protrombina (TP) ⇑ N ou ⇓
Tempo de tromboplastina parcial activada (TTPa) ⇑ N ou ⇓
Número de plaquetas ⇓ N ou ⇓
Concentração de fibrinogénio ⇓ N, ⇓ ou ⇑
D-dímeros ⇑ N ou ⇑
Produtos de degradação da fibrina (PDF) ⇑ N ou ⇑
Monómeros de fibrina ⇑ N ou ⇑
Esfregaço de sangue Esquizócitos
Complexo trombina antitrombina ⇑
Fragmentos de activação da protrombina tipo 1 e 2 ⇑
Complexo plasmina antiplasmina (PAP) ⇑
Abreviaturas: N = normal; ⇑ = aumentado; ⇓ = diminuído.
CAPÍTULO 154 Coagulação intravascular disseminada 739

gravemente doentes. A repetição da contagem de • Marcadores de fibrinólise aumentada.


plaquetas com intervalos de 1 a 4 horas reflecte a Várias provas comprovam o aumento de fi-
extensão da formação de trombina em curso. brinólise que se observa na CID. A medição direc-
• Factores de coagulação e inibidores. ta dos níveis plasmáticos de plasmina é difícil
O consumo de factores de coagulação resulta porque esta forma rapidamente um complexo
no aumento de parâmetros globais de coagulação com a alfa-2 antiplasmina. O aumento dos níveis
como o tempo de protrombina (TP) e tempo de de complexos alfa-2 antiplasmina-plasmina (PAP)
tromboplastina parcial activada (TTPa) em apenas pode ser detectado pelo método ELISA, imuno-
50 a 70% dos doentes. Assim, valores normais electroforese e radioimunoensaio.
destes parâmetros não excluem o diagnóstico de Os níveis plasmáticos de plasminogénio e alfa-2
CID. antiplasmina são baixos em doentes com CID indi-
As concentrações plasmáticas de factores de cando o consumo destas proteínas. Identificam-se
coagulação específicos, como os factores V e VII, concentrações elevadas de inibidor tipo I do acti-
são habitualmente baixas. Contudo, os níveis de vador do plasminogénio (IAP-1), o que comporta
factor VIII e de fibrinogénio podem manter-se mau prognóstico.
normais, apesar do consumo, pois são reagentes
de fase aguda. Nos casos graves observam-se Escala de avaliação
baixos níveis de fibrinogénio; no entanto, esta A Sociedade Internacional de Trombose e Hemostase
prova evidencia uma baixa sensibilidade (28%). propôs recentemente um algoritmo de diagnóstico
Os níveis plasmáticos de inibidores fisiológi- em 5 passos para o diagnóstico de CID orientando
cos da coagulação, como antitrombina III e proteí- igualmente na actuação a seguir . (Quadro 3).
na C, são indicadores indirectos da activação da Com esta estratégia são utilizadas provas labo-
coagulação. Uma baixa concentração plasmática ratoriais simples disponíveis na maior parte dos
correlaciona-se com mau prognóstico. laboratórios hospitalares.

QUADRO 3 – Escala de avaliação diagnóstica de CID e actuação

1. Avaliação do risco
O doente tem alguma doença subjacente associada a manifestações de CID?
Se sim continuar; se não não utilizar este algoritmo

2. Proceder à realização de exames complementares globais


(contagem de plaquetas, tempo de protrombina, fibrinogénio, monómeros solúveis de fibrina, produtos de degradação
da fibrina)

3. Atribuir um valor (pontuação) aos resultados das provas de coagulação


• n.° de plaquetas (>100.000/mmc = 0; <100.000/mmc = 1; <50.000/mmc = 2)
• aumento dos monómeros solúveis de fibrina ou PDF
(sem aumento = 0; aumento moderado = 2; aumento franco = 3)
• tempo de protrombina prolongado (< 3 seg. = 0; 3-6 seg. = 1; >6 seg. = 2)
• nível de fibrinogénio (= ou >1 g/L = 0; <1 g/L = 1)

4. Calcular valor
Pontuação total

5. Se > ou = 5: compatível com CID com manifestações; repetir a avaliação diária

6. Se < 5: sugestivo de CID sem manifestações; repetir nos próximos 1-2 dias
740 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Novas perspectivas * Plasma fresco congelado


Actualmente está a ser desenvolvido um processo Dose: 10 a 20 ml/Kg/dia
que consiste na análise de ondas de transmissão em Indicações:
provas de coagulação de rotina. A onda de “trans- – doentes com hemorragia activa
missão” é o perfil óptico gerado em testes de coagu- – procedimento ou cirurgia invasivos
lação padrão como TP e TTPa, documentando alte- Não está indicado nas alterações laboratoriais
rações na transmissão da luz durante o processo de sem evidência de hemorragia.
formação e manutenção do coágulo. A onda normal
do TTPa é uma curva sigmóide. Em doentes com * Concentrado de plaquetas
CID, observa-se uma onda bifásica. A sensibilidade Dose: 1U para cada 10 Kg de peso
e a especificidade da onda bifásica do TTPa é respec- Indicações:
tivamente 97,6 e 98%. – hemorragia e número de plaquetas inferior a
A análise das ondas de transmissão pode tam- 50 x 109/L
bém ser utilizada para detectar CID subclínica. A – hemorragia e suspeita de disfunção plaque-
forma crónica ou compensada de CID precede fre- tária (qualquer valor de plaquetas).
quentemente a forma de descompensação aguda.
Do ponto de vista terapêutico, seria melhor inter- *Crioprecipitado
romper o processo antes de ocorrer a descompen- Dose: uma Unidade contém 250mg de fibrino-
sação. Infelizmente, a CID compensada não é génio e uma pequena quantidade de plasma. O
clinicamente evidente e as provas de diagnóstico número de unidades é calculado tendo em conta o
habituais podem ser normais. peso do doente, o nível de fibrinogénio e o volume
Embora se trate duma nova técnica de grandes plasmático. A regra geral é: 1U para cada 10 Kg de
potencialidades diagnósticas, a mesma exige peso.
equipamento especializado que ainda não está Objectivo:
disponível na generalidade dos centros. – manter níveis de fibrinogénio superiores a
100 – 150 mg/dL.
Tratamento
Anticoagulantes
O princípio fundamental do tratamento da CID A utilização da heparina no tratamento da CID
diz respeito ao tratamento rápido e agressivo da continua a ser controversa.
doença subjacente. Contudo, nas situações de Admite-se que a diminuição dos níveis plas-
resposta inflamatória sistémica (como na sépsis, máticos de antitrombina associada a CID pode
traumatismo grave, ou queimaduras extensas), a diminuir a eficácia da heparina uma vez que, para
CID poderá não ter resolução espontânea apesar se garantir a acção anticoagulante da heparina, é
do tratamento adequado e dirigido à doença de necessária uma concentração plasmática adequa-
base. Nestes casos poderá ser necessário tomar da de antitrombina III. Contudo, a heparina em
medidas de suporte e estratégias específicas doses terapêuticas está indicada em doentes com
incidindo sobre os vários processos envolvidos na tromboembolismo e manifestações clínicas ou
fisiopatologia da CID. evidência de deposição extensa de fibrina, como
isquémia das extremidades.
Tratamento transfusional
Pretende corrigir os diferentes défices de coagu- Inibidores da coagulação
lação com factores contidos no plasma e outros A antitrombina constitui, não só um importante
hemoderivados. De salientar que não se deve pro- inibidor fisiológico da coagulação, como possui
ceder a administração de transfusões “profilácti- propriedades anti-inflamatórias (através da liber-
cas” em doentes com CID; as indicações surgem tação de prostaglandina I2 das células endoteliais).
apenas quando existem manifestações clínicas da Embora se tenham demonstrado efeitos bené-
doença e/ou necessidade de realizar procedimen- ficos (sobre os parâmetros laboratoriais, o encurta-
tos invasivos. mento da evolução da CID e a função dos órgãos)
CAPÍTULO 154 Coagulação intravascular disseminada 741

em doentes com sépsis ou choque séptico tratados patients. Sem Thromb Hemost 2001; 27: 585–592
com concentrados de antitrombina III, não se tem Hardaway RM, Williams CH, Vasquez Y. Disseminated
verificado redução significativa na mortalidade. intravascular coagulation in sepsis. Sem Thromb Hemost
A proteína C, uma serina-protease dependente 2001; 27: 577–583
da vitamina K, inibe os factores activados V e VII Helfaer MA, Nichols DG (eds).Roger's Handbook of Pediatric
prevenindo, assim, a produção de trombina. Intensive Care. Philadelphia: Lippincott Williams &
A proteína C humana recombinante activada Wilkins, 2009
(PCAhc) na dose de 24 mg/kg/h em infusão con- Hoffman R, Benz EJ, Shattil SJ, et al (eds). Hematology: Basic
tínua ao longo de 96 horas reduz a mortalidade, Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier Churchill
melhora o perfil de coagulação, evidenciando Livingstone, 2007
também propriedades anti-inflamatórias media- Johnson LH., Gittelman M. Management of bleeding diathesis:
das pela modulação do factor kappa-B. A case-base approach. Clin Ped Emerg Med 2005; 6: 149-155
Contudo, devem tomar-se precauções quando Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
se administra PCArh em doentes com tromboci- Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
topénia (número plaquetário < 50 x 109/L) dada a 2011
maior probabilidade de hemorragia intracraniana, Levi M, Schultz M. Coagulopathy and platelet disorders in
o que implica , em tal circunstância, proceder a critically ill patients. Minerva Anestesiol 2010; 76:851-859
transfusão de plaquetas previamente. Levi M. Current understanding of disseminated intravascular
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742 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

155
ficativa de sintetizar imunoglobulinas; ou seja, até
esta idade, praticamente todos os anticorpos são
adquiridos a partir da mãe, por transferência pla-
centária.
Consequentemente, até cerca dos 3- 4 meses de
idade, as provas pré-transfusionais têm limitações,
TERAPÊUTICA TRANSFUSIONAL sendo que a pesquisa de anticorpos pode, em
princípio, ser efectuada no soro da mãe.
Deonilde Espírito Santo Numa perspectiva didáctica, para a realização
da transfusão em idade pediátrica são considera-
dos dois períodos:
– neonatal e pós-neonatal, desde o nascimento
Importância do problema até aos 4 meses de vida;
– pediátrico, dizendo respeito à criança com
A terapêutica transfusional é determinante em mais de 4 meses e à adolescência.
pediatria, nomeadamente na correcção de situa- Estes dois períodos, por terem características
ções do foro hemato-oncológico e envolvendo tão distintas são abordados separadamente.
procedimentos cirúrgicos. Embora se trate duma No fim do capítulo, faz-se alusão às principais
terapêutica indispensável na medicina moderna, a reacções transfusionais e é apresentado um glossário.
mesma comporta certos riscos.
No Hospital de Dona Estefânia (HDE), numa Transfusão na idade
tentativa de diminuir tais riscos, em complemento dos 0 aos 4 meses
das medidas clássicas de segurança levadas a cabo
nacional e internacionalmente, existe uma comis- Anemia da prematuridade
são que emite recomendações e elabora normas. Durante as primeiras semanas de vida verifica-se
Nesta perspectiva, utiliza-se uma estratégia que, um declínio do teor da hemoglobina (Hb). Tal
na sua essência, consiste em reduzir o número de declínio fisiológico da hemoglobina (que pode
dadores por doente submetido a transfusão; pre- atingir 9 g/dL e o nadir por volta das 10 – 12 sema-
tende-se, efectivamente, que antes da prescrição nas), é bem tolerado no RN de termo. Esta situa-
de qualquer componente sanguíneo sejam sempre ção corresponde à chamada anemia fisiológica do
ponderados riscos e benefícios associados a esta lactente.
terapêutica, alternativas terapêuticas existentes e, Na criança nascida prematuramente (antes das
sempre que a resolução prioritára da situação 37 semanas de gestação), este declínio ocorre mais
clínica o permita, a obtenção do consentimento cedo (4 – 6 semanas), é mais pronunciado e habi-
esclarecido do doente e ou da família. tualmente é exacerbado pelas múltiplas flebotomias
Neste capítulo, para melhor compreensão da necessárias para a realização de estudos analíticos.
problemática da terapêutica transfusional, alguns Pode, assim verificar-se, anemia sintomática (por
aspectos dos procedimentos e das atitudes a tomar exemplo, episódios de apneia, taquicárdia, taqui-
são relacionados com a respectiva fundamentação pneia, défice ou ausência de progressão ponderal),
fisiopatológica (ver adiante Glossário). podendo implicar terapêutica transfusional (Capí-
tulos 333 e 354).
Particularidades na idade pediátrica
Sangue total
Na criança a terapêutica transfusional comporta as- A utilização do sangue total pode estar indicada
pectos muito específicos, considerando a evolução nos doentes que necessitam de exsanguinotrans-
fisiológica que faz parte do crescimento e desen- fusão ou nos casos que requerem reposição de vo-
volvimento do feto, do recém-nascido (RN) e da cri- lume superior à volémia (volémia na criança: ~85
ança. De referir que somente a partir dos 3-4 meses mL/kg de peso) em menos de 24 horas (trans-
de idade o organismo adquire a capacidade signi- fusão maciça), por hemorragia mantida e intensa.
CAPÍTULO 155 Terapêutica transfusional 743

No HDE, quando necessário, reconstitui-se o damentar a decisão transfusional em critérios


sangue total com os componentes provenientes da mais fisiológicos, como a determinação da massa
mesma colheita – componentes solidários- cum- eritrocitária circulante ou a capacidade de ex-
prindo um dos objectivos de expor o doente ao tracção de oxigénio pelos tecidos.
menor número possível de dadores. As indicações de CE no pré-termo, não em esta-
No período neonatal os concentrados eritroci- do crítico mas com anemia moderada, (hematócrito
tários utilizados na reconstituição do sangue total <24% ou Hb< 8.0 g/dL) são extremamente va-
são previamente “lavados”, com o objectivo de riáveis. Se se verificar estabilidade clínica não
remover a solução anticoagulante/preservadora. haverá necessidade de transfusão.
Tem havido uma grande preocupação com os Se surgirem sinais e sintomas como bradicár-
eventuais efeitos adversos das soluções anticoa- dia, taquipneia, dificuldade respiratória, crises de
gulantes/preservadoras utilizadas, por conterem apneia, deficiente progressão ponderal, etc., a
habitualmente adenina, glucose e/ou manitol. transfusão de CE está indicada por permitir uma
Enquanto a adenina e o manitol têm efeitos maior libertação de oxigénio a nível do sistema
tóxicos renais, o manitol, por ser diurético potente nervoso central o que contribui para diminuir os
e causar flutuações do fluxo cerebral no pré-termo, episódios de apneia.
constitui factor de risco. Por consequência, nas Nos doentes com cardiopatias congénitas cia-
transfusões de grande volume e na exsanguino- nóticas ou com doenças respiratórias graves, re-
transfusão, é aconselhável a sua remoção através querendo suporte ventilatório contínuo, recomen-
da lavagem. da-se manter o Ht > 40% e a hemoglobina > 13
Nas situações de aloimunização por incompa- g/dL, particularmente nos submetidos a monito-
tibilidade sanguínea feto-materna e sempre que rização analítica frequente. Esta prática é baseada
esteja indicada a exsanguinotransfusão, deve uti- no facto de que os glóbulos vermelhos do dador,
lizar-se sangue do grupo O. Na presença de outros por conterem maioritariamente Hb A em oposição
anticorpos pode efectuar-se com sangue compatí- à Hb F predominante no feto e RN, libertam mais
vel no sistema ABO e Rh, mas que não contenha o facilmente o oxigénio ao nível dos tecidos no
antigénio correspondente ao anticorpo em causa. período em que a sua função pulmonar está com-
prometida. (ver adiante)
Concentrado eritrocitário No Quadro 1 apresentam-se as recomendações
O concentrado eritrocitário (CE) é o componente quanto à transfusão de CE elaboradas pela comis-
mais transfundido durante o período em análise são transfusional (CT) do HDE para o período
(0-4 meses). Poderá ser necessário proceder a neonatal.
múltiplas transfusões de pequeno volume (10-15 Após a decisão de transfundir ter sido tomada
ml/kg), muitas vezes para substituir as perdas é importante dispor de um produto de boa quali-
decorrentes de colheitas de sangue para análises dade e de baixo risco.
laboratoriais, e tanto mais quanto mais pequena No HDE, após a recepção do pedido e exe-
for a criança e mais crítico for o seu estado. Os cução das respectivas provas de compatibilidade,
mais pequenos são em geral mais transfundidos reserva-se uma unidade compatível, que fica de
por serem os que têm doenças mais graves e os imediato identificada para o doente, sendo dessa
que necessitam de exames analíticos mais fre- unidade que, em câmara de fluxo laminar e uti-
quentes. lizando um selador de conexões em condições de
Em geral, as transfusões são realizadas para esterilidade, se vão retirando as pequenas porções
manter um nível de hemoglobina e de hemató- de acordo com as necessidades transfusionais. A
crito (Ht) que se pensa ser o mais benéfico para a unidade é utilizada durante todo o período de
situação clínica de cada doente, permitindo uma conservação (42 dias). (ver glossário)
adequada oxigenação dos tecidos. Tradicionalmente eram utilizadas unidades
É largamente reconhecido que a decisão de colhidas há menos de 7 dias, com base em três
transfusão baseada nestes princípios é imprecisa. razões fundamentais: 1 – a elevação do teor em ião
Contudo, não existe ainda a possibilidade de fun- potássio com o tempo de conservação; 2 – a di-
744 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Recomendações transfusionais queno volume, realizadas lentamente (2–4 horas),


de concentrado de eritrócitos a dose de potássio administrada é irrelevante não
no período neonatal causando hipercaliémia, sendo de considerar, por
outro lado, as necessidades diárias de K+. (Capítu-
1. Hb ≤ 13g/dL ou Ht ≤ 40% lo 51)
• Nas primeiras 24 h de vida, especialmente na anemia Recorde-se, a propósito, que os eritrócitos do
por perdas perinatais. feto e recém-nascido têm maior teor de Hb F e
• Na anemia por perda aguda ou iatrogénica menor teor de 2,3 - DPG que, interagindo, con-
(>10% de volémia em < 72h) duzem a maior afinidade de O2 para a Hb, difi-
• Nas cardiopatias congénitas cianóticas. cultando a sua distribuição aos tecidos.
• Com assistência ventilatória de Fi O2 > 50% e MAP Nas primeiras semanas após o nascimento, a
> 8 cm H2O . progressiva substituição de Hb F por Hb A, a que
corresponde elevação paralela do teor de 2,3 -
2. Hb ≤ 12g/dL ou Ht ≤ 35% DPG eritrocitário, desviando a curva de dissoci-
• Com assistência ventilatória de Fi O2 > 35% (CPAP ação Hb-O2 para a direita, reduz a apetência da
ou IMV) e MAP > 6 e < 8 cm H2O . Hb para o O2; este último fica pois, mais disponív-
• Sempre que haja sintomatologia atribuível à anemia. el para ser distribuído aos tecidos.
Em relação ao terceiro factor, a quantidade de
3. Hb ≤ 10g/dL ou Ht ≤ 30% aditivos, considera-se que se trata igualmente de fac-
• Com Fi O2 < 35% tor irrelevante em transfusões de pequeno volume.
• Cirurgia major Vários investigadores demonstraram que na
• Nas anemias hemolíticas, sempre que haja sintoma- criança multitransfundida a exposição a dadores
tologia ou a descida de Hb seja muito rápida, inde- pode ser reduzida com segurança pelo uso exclu-
pendentemente de outras terapêuticas. sivo de uma unidade para cada doente, que será
conservada durante cerca de 21 dias.
4. Hb: 7 – 9g/dL ou Ht: 25% – 30%
• Apneia/bradicárdia > 10 episódios/24h ou 1
Concentrado plaquetário
episódio necessitando de reanimação com máscara.
O número de plaquetas do recém-nascido é idênti-
• Taquicárdia mantida > 180 min. Ou taquipneia >80
co ao do adulto. Um número inferior a 150.000/µL
min. (vários períodos durante 24 h).
numa criança nascida de termo ou pré-termo é
• Ausência de progressão ponderal durante 4 dias
anormal, sendo de referir que cerca de 20% dos
(< 10g/dia, com suprimento nutricional adequado).
doentes internados em unidades de cuidados in-
• Cansaço excessivo ao mamar e diminuição marcada
tensivos neonatais apresentam trombocitopénia
da actividade.
durante o internamento.
Múltiplos mecanismos podem estar envolvi-
5. Hb ≤ 7g/dL ou Ht ≤ 20%
dos na etiopatogénese da trombocitopénia, sendo
• Com reticulócitos < 4% em RN assintomático, com
a acelerada destruição de plaquetas, a deficiente
suprimento adequado de hemopoiéticos (ferro,
produção de trombopoietina, o efeito de diluição
ácido fólico).
secundário à transfusão maciça ou exsanguino-
transfusão alguns dos principais. (ver Parte XXXI)
minuição do 2,3 difosfoglicerato (2,3 DPG) eritro- No RN pré-termo em fase de estabilidade clíni-
citário; 3 – os efeitos adversos da solução anticoa- ca está indicado manter as plaquetas dentro de
gulante/conservante. valores superiores a 20-30.000/µL e no de muito
Efectivamente, após 42 dias de armazenamen- baixo peso, superiores a 50.000/µL, particular-
to da unidade de CE, o potássio extracelular en- mente nas primeiras 72 horas.
contra-se muito aumentado (0,05 mEq/mL) e o 2,3 A transfusão de plaquetas está indicada:
DPG muito diminuído. 1) nos RN com valores de plaquetas inferiores
De referir que vários estudos clínicos têm, no a 50.000/µL, ou inferiores a 100.000/µL em
entanto, demonstrado que em transfusões de pe- situações de hemorragia activa;
CAPÍTULO 155 Terapêutica transfusional 745

2) na prevenção hemorrágica de procedimen- vermelhos, existe a possibilidade de limitar o nú-


tos invasivos se o doente evidenciar valores mero de dadores a que o doente é exposto.
inferiores a 50.000/µL. O plasma utilizado na transfusão destes
O concentrado plaquetário deve ser adminis- doentes também deve ser ABO compatível e livre
trado na dose de 5-10 ml/Kg. É aconselhável que de anticorpos clinicamente significativos. O plas-
sejam do mesmo grupo ABO do doente, porque ma do grupo AB é muitas vezes o utilizado.
grandes quantidades de anticorpos anti-A e anti-B
adquiridos passivamente podem provocar hemó- Crioprecipitado
lise. O crioprecipitado usa-se frequentemente em con-
No HDE os concentrados plaquetários, tal junto com a transfusão de plaquetas no âmbito do
como os eritrocitários, são desleucocitados previa- tratamento da CID. Tal como o plasma e as pla-
mente ao armazenamento. quetas, deve ser ABO compatível com o receptor
(Capítulo 154).
Plasma fresco congelado
Os factores da coagulação não atravessam a placen- Transfusão na idade superior
ta, mas vão sendo progressivamente sintetizados a 4 meses e no adolescente
pelo feto no decurso da gravidez. Na data de nasci-
mento o tempo de protrombina e o tempo parcial de Concentrado eritrocitário
tromboplastina activada estão prolongados compa- As indicações transfusionais na criança com mais
rativamente aos de crianças mais velhas e adultos, de 4 meses são muito semelhantes às do adulto,
devido primariamente aos baixos níveis fisiológicos devendo ter-se em consideração determinadas
de factores da coagulação vitamina-K dependentes. especificidades: idade, volémia, capacidade de to-
As proteínas C, S e inibidores da antitrombina tam- lerância e de recuperação da anemia, etiologia,
bém apresentam níveis baixos. Estes dois sistemas entre outras.
equilibram-se e, por isso, hemorragias espontâneas e Tal como no recém-nascido, o concentrado eri-
tromboses são raras no recém-nascido saudável. trocitário é o componente mais transfundido. O
Contudo, podem ocorrer hemorragias graves na mesmo é utilizado para aumentar a capacidade de
primeira semana de vida devido à imaturidade transporte de oxigénio e manter uma adequada
hemostática em associação com defeitos adquiridos. oxigenação dos tecidos.
As deficiências hereditárias da coagulação ra- Na hemorragia aguda, desde que se mantenha
ramente provocam hemorragias significativas no a volémia, a compensação fisiológica ocorre com
recém-nascido. Mais frequentemente, as coagu- aumento do débito cardíaco e do volume sistólico
lopatias são consequência de defeitos adquiridos, de ejecção em consequência da diminuição da vis-
como na doença hepática ou na coagulação intra- cosidade sanguínea, das resistências periféricas e
vascular disseminada. do aumento do retorno venoso. Há redistribuição
A doença hemorrágica do recém-nascido que do fluxo sanguíneo aos órgãos vitais e maior
ocorre devido a deficiência dos factores depen- extracção de oxigénio ao nível da microcirculação.
dentes da vitamina K, é actualmente rara nos paí- As medidas iniciais devem ser: parar a hemor-
ses desenvolvidos, em que a referida vitamina K ragia e restaurar o volume intravascular, pre-
(0,5-1 mg) é administrada preventivamente após o venindo o choque hipovolémico. Os cristalóides
parto. (capítulo 357) e/ou colóides devem ser administrados de ime-
O plasma fresco congelado (PFC) pode ser diato para manter a volémia e a perfusão tecidual.
usado no recém-nascido para substituir os fac- Se as perdas sanguíneas forem superiores a 25%
tores da coagulação, particularmente quando da volémia e os parâmetros vitais se tornarem
estão envolvidas deficiências múltiplas. instáveis, há indicação para transfusão de concen-
A dose usual é 10-20 ml/kg, a qual contribui trado eritrocitário.
para aumentar a actividade do factor na ordem de Nas crianças verifica-se uma maior capacidade
10-20%. de estabelecimento de mecanismos fisiológicos de
Tal como se referiu em relação aos glóbulos compensação da anemia do que nos adultos. De
746 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

uma forma geral, aquelas suportam níveis de hemo- Nos doentes com hemoglobinopatias devem
globina mais baixos do que os adultos, pelo que as ser seguidos protocolos transfusionais específicos.
indicações de transfusão se estabelecem para níveis A alguns destes doentes são administradas trans-
mais baixos de hemoglobina e de hematócrito. fusões, não só para combater a hipóxia, mas tam-
Nas intervenções cirúrgicas programadas, as bém para suprimir a eritropoiese.
necessidades em sangue são habitualmente deter-
minadas com base nas perdas habituais em deter- Concentrado plaquetário
minado procedimento cirúrgico; contudo, em No grupo etário em análise, tal como no recém-
cirurgia pode fazer-se a previsão das necessidades nascido, considera-se trombocitopénia o valor de
numa base individual, tendo em consideração o plaquetas inferior a 150.000/µL. (Capítulo 148)
quadro clínico específico de cada doente. As indicações para a transfusão de plaquetas,
Para cada doente pode calcular-se a perda má- bem como a dose recomendada para a criança e
xima de sangue (PMS) antes de se admitir a neces- adolescente, são idênticas às do adulto.
sidade de transfusão, entrando em conta com o Considera-se que um doente com um número
hematócrito mínimo (Ht min) que o doente pode de plaquetas entre 10.000 e 20.000/µL tem trombo-
tolerar, a volémia (V), o hematócrito inicial (Ht i) e citopénia grave e está em risco de hemorragia
o hematócrito médio (Ht m), através da seguinte grave. Se apresentar um valor de 50.000/µL existe
fórmula: risco hemorrágico nos casos de procedimentos
PMS = Vx (Ht i – Ht min)/Ht m invasivos. Os doentes com valores entre 100.000/µL
e 50.000 /µL geralmente estão assintomáticos.
Na anemia crónica, os efeitos metabólicos reper- A administração profiláctica de concentrados
cutem-se na afinidade da hemoglobina para o plaquetários deve ser bem ponderada devido ao
oxigénio (curva de dissociação da Hb/O2) favore- risco de aloimunização e de eventual ausência de
cendo a sua libertação aos tecidos periféricos. Em resposta a ulteriores administrações.
tais circunstâncias, as crianças podem estar assin- Alguns centros recomendam a transfusão pro-
tomáticas com níveis muito baixos de hemoglobina. filáctica de plaquetas a crianças com falência me-
Como regra geral, a transfusão está indicada dular e valores inferiores a 20.000/µL, consideran-
para minorar a sintomatologia e sempre que a tera- do que o risco de hemorragia espontânea aumen-
pêutica médica correctamente instituída tenha sido ta marcadamente quando este nível é atingido,
ineficaz. A transfusão deve ser efectuada unidade a particularmente se houver infecções, anemia, dis-
unidade, com reavaliação do doente após cada função hepática, renal ou pulmonar.
transfusão. Outros consideram que não há indicação para
As indicações da transfusão têm em conta, não a transfusão de plaquetas se se verificar estabili-
apenas o valor da hemoglobina, mas também a dade clínica sem discrasia para valores de plaque-
presença de: tas entre 5.000 – 10.000/µL .
– sinais e sintomas de anemia e a capacidade A decisão de transfundir plaquetas é, pois,
funcional do doente; controversa e depende da causa da hemorragia, da
– presença ou ausência de doença cardio-respi- situação clínica do doente, do número e da função
ratória e do sistema nervoso central; das plaquetas circulantes. Demonstrando-se
– etiologia da doença de base e ineficácia da alterações qualitativas das plaquetas (hereditárias
terapêutica médica anterior; ou adquiridas), justifica-se a transfusão indepen-
– terapêuticas alternativas, por exemplo ferro e dentemente do número, se houver hemorragia.
eritropoietina. A administração de concentrados plaquetários
deve ser ABO/Rh compatível com o receptor,
No doente cardíaco o compromisso na libertação consistindo habitualmente em pools de 2 a 10
de oxigénio aos órgãos críticos pode ocorrer antes de unidades; nesta circunstância, de facto, verifica- se
haver compensação fisiológica. Nestes doentes, com exposição a múltiplos dadores o que aumenta o
limitada reserva fisiológica, pode ser necessário risco de não resposta ulterior e de aloimunização.
manter o nível de hemoglobina mais elevado. Na presença de aloimunização podem ser uti-
CAPÍTULO 155 Terapêutica transfusional 747

lizadas plaquetas de um único dador, e compatí- QUADRO 2 – Utilização de plasma fresco


veis com o receptor no sistema HLA- A, B, DR. congelado
Tais plaquetas podem ser mais eficazes do que as
resultantes de pools, o que reduz a possibilidade Recomendações
de aloimunização. O PFC só deve ser utilizado para tratar episódios hemor-
A trombocitopénia de etiologia imune não deve rágicos ou preparar doentes com alterações dos factores
ser tratada com transfusões de plaquetas, excep- da coagulação para cirurgia e/ou outras técnicas
tuando nos casos associados a hemorragia invasivas.
intracraniana ou em situações de risco de vida.
Por outro lado, na púrpura trombocitopénica Indicações da utilização de PFC
trombótica e na trombocitopénia induzida pela Como terapêutica substitutiva:
heparina, pode verificar-se a formação de trombos 1. Na deficiência congénita ou adquirida de determina-
plaquetários e outras complicações trombóticas do factor de coagulação, (desde que não haja disponi-
após as transfusões de plaquetas. bilidade do concentrado de factor específico), ou
défice combinado de múltiplos factores.
Plasma fresco congelado 2. Na deficiência hereditária de inibidores da coagula-
Existem recomendações nacionais para a utiliza- ção ou fibrinólise.
ção do plasma fresco congelado (PFC). (Quadro 2) 3. Na deficiência do inibidor da esterase de C1.
A utilização terapêutica do plasma tem vindo 4. Na coagulação intravascular disseminada aguda
a decair desde meados dos anos 80, principal- (CID).
mente devido à reformulação das suas indicações e ainda:
e à utilização de terapêuticas alternativas. 5. Para reversão imediata dos efeitos dos dicumarínicos.
Uma vez que o plasma contém níveis fisiológi- 6. Na púrpura trombocitopénica trombótica (PTT) e na
cos dos factores lábeis e estáveis da coagulação, síndroma hemolítica urémica (SHU).
recomenda-se a sua utilização nas deficiências iso-
Utilização condicionada do PFC
ladas ou múltiplas da coagulação para as quais
Em qualquer das situações indicadas, mas unicamente
não exista ainda factor específico.
na presença de hemorragia com alteração da coagulação:
Nos doentes submetidos a terapêutica com
1. Pós-transfusão.
anticoagulantes orais, com deficiências múltiplas
2. Doença hepática.
da coagulação, hemorragia activa e com indicação
3. Cirurgia cardiopulmonar (by-pass)
de intervenção cirúrgica urgente, pode ser admi-
4. Situações pediátricas específicas.
nistrado, uma vez que o efeito da vitamina K,
entretanto prescrita para combater tais situações,
Não se deve utilizar o PFC
não é imediato.
1. Para repor a volémia (hipovolémia).
Na transfusão maciça (transfusão de volume
2. Nos procedimentos de troca plasmática (plasmaférese).
superior a uma volémia em menos de 24 horas) é
3. Como suporte nutricional.
necessário administrar plasma fresco congelado
4. Para tratar situações de imunodeficiência.
devido ao efeito de diluição provocado pela referi-
5. Como fórmula de substituição.
da transfusão, e ao consumo motivado pelas per-
(INSTITUTO PORTUGUÊS DO SANGUE)
das hemorrágicas.
Poderão ser necessários grandes volumes para
manter o teor dos factores da coagulação acima do (CE) continham algum plasma residual, este con-
nível crítico, pois a sua eficácia pode estar reduzi- tribuia para manter a estabilidade na coagulação.
da devido ao rápido consumo. Actualmente os CE são suspensos em solução adi-
No tratamento da coagulação intravascular tiva sendo a actividade dos factores da coagulação
disseminada (CID) o PFC também tem um papel irrelevante.
determinante, assim como os crioprecipitados e
concentrados plaquetários. Crioprecipitado
Nota: Quando os concentrados eritrocitários A sua utilização é habitualmente necessária na te-
748 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

rapêutica da CID e na transfusão maciça, quer 6 – Verificar a diurese registando o volume e


pelo efeito de diluição, quer pelo consumo devido coloração.
às perdas sanguíneas.
No tratamento da afibrinogenémia e hipofi- Classificação das reacções
brinogenémia, dá-se preferência à utilização do transfusionais
produto purificado e com garantia de inactivação
vírica, actualmente disponível. Numa perspectiva didáctica, as reacções transfu-
Genericamente, a transfusão de uma unidade sionais podem ser classificadas em quatro catego-
por 7 quilos de peso aumenta o valor do fibri- rias:
nogénio em 75 mg/dL. Para se garantir a hemos- 1 – Imunológicas agudas;
tase, o fibrinogénio deve ter um valor de cerca de 2 – Agudas não imunológicas;
100 mg/dL. 3 – Imunológicas tardias;
4 – Tardias não imunológicas.
Efeitos adversos da transfusão As reacções agudas são as que ocorrem desde
os primeiros minutos a horas (< 24 horas) após o
A transfusão de componentes e derivados sanguí- final da transfusão.
neos não constitui um acto inócuo. Antes da pres- As tardias são as que ocorrem após este perío-
crição deste tipo de terapêutica é sempre neces- do.
sário ponderar os benefícios e os possíveis riscos As reacções imunológicas são devidas à
imediatos e tardios. resposta imune do organismo contra os antigénios
As reacções transfusionais integram um conjun- das células sanguíneas.
to de eventos relacionáveis com a administração de Os Quadros 3, 4, 5 e 6 descrevem de modo
sangue e derivados identificados imediatamente sucinto exemplos concretos de cada tipo de
ou após a concretização da mesma. A diversidade reacção, incluindo manifestações clínicas mais fre-
dos referidos eventos implica correspondente quentes e medidas terapêuticas indicadas.
diversidade de actuações; contudo, existe um con-
junto de regras básicas universais, comuns a toda e Procedimento nos casos de reacção
qualquer reacção que o médico e o profissional de hemolítica suspeita ou confirmada
saúde em geral devem conhecer.
Ou seja, todos os profissionais envolvidos na No âmbito do SIH está indicada a seguinte actua-
terapêutica transfusional devem estar habilitados ção pelo médico responsável:
a reconhecer uma reacção transfusional e a tomar – Tratamento dos sintomas administrando em
prontamente as medidas adequadas e prioritárias função de cada caso: antitérmico,anti-histamínico
no âmbito do tratamento inicial. e corticóide, se necessário;
No HDE utiliza-se a chamada ficha de inci- – Avaliação laboratorial colhendo três amos-
dente transfusional (FIT) a qual deve ser preen- tras de sangue, respectivamente:
chida pelos médicos e enfermeiros do serviço do • com anticoagulante (EDTA) para pesquisa
doente que sofreu o referido incidente; nesta ficha de Hb livre no plasma, prova de Coombs
estão descritas as medidas imediatas a tomar directa e hemograma;
assim discriminadas : • sem anticoagulante para repetição do grupo
1 – Suspender imediatamente a transfusão; sanguíneo, repetição de provas de compati-
2 – Manter os acessos venosos, com soro fisio- bilidade e pesquisa de anticorpos irregulares;
lógico; • com citrato na hipótese de estar indicado
3 – Verificar a identificação do doente e da proceder a provas de coagulação.
unidade transfundida; – Administração de soro fisiológico(soluto de
4 – Contactar o médico do serviço de imuno- NaCl a 9/1000) por via endovenosa na dose
hemoterapia (SIH); (ver adiante) de 20 ml/kg, com o objectivo de promover a
5 – Devolver os componentes envolvidos na diurese da ordem de 1-2 ml/kg/hora;
reacção ao SIH; – Administração de diuréticos com o objectivo
CAPÍTULO 155 Terapêutica transfusional 749

QUADRO 3 – Reacções transfusionais agudas – (imunológicas)

Tipo Etiologia Manifestações Medidas terapêuticas


Hemolítica Incompatibilidade entre Dor no local de infusão, agitação, Manter acessos venosos com soro
Aguda antigénios eritrocitários do dispneia, dor lombar, febre, fisiológico; Manter débito
dador e receptor. calafrios, hemoglobinúria, urinário ~1-2ml/Kg/h;
insuficiência renal, CID, etc. analgésicos; vasopressores
Febril Anticorpos antileucocitários, Febre, calafrios, cefaleias, Antipiréticos; desleucocitação de
não hemolítica citocinas vómitos componentes sanguíneos
Urticariforme Anticorpos contra as Urticária, prurido Anti-histamínicos
proteínas plasmáticas do
dador
Anafiláctica Anticorpos antiproteína de Hipotensão, taquicárdia Posição de Trendlenburgo,
dador: anti-IGA, C4, broncospasmo, ansiedade, anti-histamínicos,
haptoglobina edema da glote corticosteróides, epinefrina
Edema Anticorpos antileucocitários Hipoxémia, insuficiência Oxigenoterapia, assistência
pulmonar no dador respiratória, edema pulmonar respiratória de acordo com a
agudo não agudo sem compromisso da gravidade do quadro clínico
cardiogénico função cardíaca

QUADRO 4 – Reacções transfusionais agudas – (não imunológicas)

Tipo Etiologia Manifestações Medidas terapêuticas


Quadro de Contaminação Febre, calafrios, hipotensão Antibioticoterapia
sépsis bacteriana
Sobrecarga Sobrecarga de volume Dispneia, ortopneia, tosse, Oxigenoterapia, diuréticos
circulatória hipertensão, cefaleias
Hipocalcémia Rápida infusão de citrato Parestesias, tetania, arritmia Infusão lenta de cálcio
Hipotermia Transfusão rápida de Arritmia Utilizar sistemas de aquecimento
componentes sanguíneos de componentes sanguíneos,
frios particularmente quando são
transfundidos grandes volumes.
(*)
(*) Um método simples e prático que pode ser utilizado quando se trata de transfundir pequenos volumes de sangue é colocar a bolsa de sangue, antes da transfusão, durante alguns minutos numa
incubadora com sistema de aquecimento servocontrolado(isto é, equipada com sensor que monitorize a temperatura, colocando o referido sensor sobre o referido saco) evitando temperaturas superiores
a 37ºC.

de forçar a diurese e prevenir a insuficiência GLOSSÁRIO


renal (furosemido endovenoso: 1 mg/kg/dose Transfusão > Injecção endovascular de sangue compatível, fresco ou
a repetir eventualmente sem ultrapassar 6 conservado; este conceito engloba também um constituinte do
mg/kg; ou manitol endovenoso: 0,25 g/kg sangue separadamente (leucócitos ou eritrócitos ou plaquetas) ou
endovenoso); de um seu sucedâneo.
– Administração de bicarbonato de sódio Unidade de sangue total > É a quantidade de sangue colhida a um
(HNaCO3) a 8,4 % (3 ml/kg/ de 12-12 horas) dador previamente seleccionado, utilizando material estéril e de uso
para alcalinização da urina,mantendo pH único, contendo uma solução anticoagulante/preservador. O volu-
urinário superior a 7; me da unidade deve ser 450 ml ± 10%, excluindo o anticoagulante.
– Proceder a provas de coagulação com o Tem um período de conservação limitado. Com o armazenamento
objectivo de detectar eventual quadro clínico observa-se uma rápida deterioração do factor VIII, leucócitos e pla-
de coagulação intravascular disseminada. quetas, o que o torna um produto inviável para tratar alterações da
750 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 5 – Reacções transfusionais tardias – (imunológicas)

Tipo Etiologia Manifestações Medidas terapêuticas


Alo-imunização Resposta imune aos Aparente ineficácia Identificar anticorpos e
antigénios estranhos do transfusional; transfundir sangue compatível;
eritrócito, leucócito ou não resposta à transfusão de desleucocitar os componentes
plaquetas plaquetas, febre, icterícia
Reacção Os linfócitos do dador Exantema máculo-papular, Corticosteróides, citotóxicos.
de tipo enxerto opõem-se aos do receptor anorexia, nauseas, vómitos, Prevenção: irradiação dos
contra imunodeprimido diarreia, hepatite, componentes celulares
hospedeiro pancitopénia (rara) (concentrados de eritrócitos e
plaquetas)(#)
Púrpura Anticorpos antiplaquetários Púrpura trombocitopénica, Imunoglobulina intravenosa,
pós- no receptor 8-10 dias após a transfusão. Plaquetas negativas para HPA1
transfusional
(#) As principais indicações absolutas para irradiação de componentes celulares sanguíneos são:
– Transfusões de granulócitos
– Doença de Hodgkin
– Síndromas de imunodeficiência celular congénita

QUADRO 6 – Reacções transfusionais tardias – (não imunológicas)

Tipo Etiologia Manifestações Medidas terapêuticas


Hemossiderose Excesso de ferro devido a Diabetes, Quelantes de ferro
múltiplas transfusões de cirrose,
concentrado eritrocitário cardiomiopatia
(> 100 unidades)

coagulação após 24 horas de conservação. A sua maior aplicação diz volume de 40-70 mL de plasma. Só podem ser conservadas durante
respeito à preparação de outros componentes sanguíneos. cinco dias.
Concentrado eritrocitário > É o componente obtido por remoção par- Concentrado unitário de plaquetas > É obtido de um único dador uti-
cial do plasma de uma unidade de sangue total. Consoante o tipo de lizando um separador automático de células. Dependendo do tipo
processamento efectuado é possível obter concentrados eritroci- de processamento e do equipamento utilizado, pode obter-se um
tários com maior ou menor contaminação de glóbulos brancos, pla- número de plaquetas que oscila entre 200-800x109.
quetas e plasma. Plasma fresco congelado > É a porção aquosa e acelular do sangue total,
Concentrado eritrocitário sem “buffy coat”, em solução aditiva, e contendo proteínas, colóides, nutrientes, cristalóides, hormonas e vita-
desleucocitado > Este tipo de concentrado eritrocitário apresenta minas. A albumina é a proteína mais abundante, mas também contém
menor contaminação de glóbulos brancos, plaquetas e plasma do outras como: fracções do complemento, enzimas, imunoglobulinas e
que o anteriormente referido, porque no método de produção, além factores da coagulação, nomeadamente, fibrinogénio, factor II, VII, IX,
de ser removido o plasma, é também retirada a camada leucopla- X, XIII, VIII. Pode ser obtido a partir do sangue total ou por aférese.
quetária, sendo subsequentemente adicionada às células uma Deve ser congelado num período de tempo e a uma temperatura que
solução nutritiva apropriada. Em seguida é desleucocitado, antes permita manter adequadamente, em estado funcional, os factores da
do armazenamento. Em média este componente tem um volume de coagulação. Contém um volume aproximado de 180-300 mL.
250 ml ± 10%. Tem um hematócrito que oscila entre 50-70% e um Crioprecipitado > É um preparado que contém a fracção crioglobulíni-
mínimo de 45g de hemoglobina por unidade. ca do plasma, obtido através da descongelação do PFC a 4ºC e
Concentrado plaquetário > É um componente obtido a partir de uma removendo o sobrenadante. É rico em fibrinogénio, factor VIII,
unidade de sangue total, devendo conter a maioria das plaquetas da vários multímeros de factor de Von Willebrand, fibronectina e factor
unidade original. Dependendo do método de preparação, o número XIII. Segundo o Conselho da Europa deve ter um volume entre 30 –
médio de plaquetas numa unidade deve ser 70x109 suspensa num 40 ml.
CAPÍTULO 155 Terapêutica transfusional 751

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PARTE XIX
Nefro-Urologia
754 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

156
QUADRO 1 – Doenças glomerulares

I – Glomerulopatias congénitas ou hereditárias


Síndroma de Alport
Síndroma nefrótica congénita tipo Finlandês (SNC)
Hematúria familiar
INTRODUÇÃO À Síndroma nail-patella
II – Glomerulopatias adquiridas
NEFRO-UROLOGIA Primárias ou idiopáticas
Doença de lesões mínimas (LM)
Judite Batista Glomerulonefrite mesangial proliferativa
Glomerulosclerose focal e segmentar
Glomerulonefrite membranoproliferativa (GNMP) tipos
I,II e III
Importância do problema Glomerulopatia membranosa
e sistematização Nefropatia IgA (NIgA)
Glomerulonefrite rapidamente progressiva (GNRP)
As doenças que afectam o sistema nefro-urológico Glomerulonefrite proliferativa focal
podem classificar-se em primárias (com origem Glomerulonefrite proliferativa difusa
no rim ou tracto urinário), ou secundárias (como Glomerulonefrite crónica não classificada
repercussão renal de doença sistémica). As mani- Secundárias
festações de doença renal (glomerular ou tubular) A infecções: GN aguda pós-estreptocócica (GNAPE)
são muito variáveis. Hepatite B
Classicamente, como resultado de lesão/agressão A doença multissistémica: PHS
glomerular, distinguem-se três síndromas clínicas: LES
glomerulonefrite aguda e crónica caracterizadas pela SHU
tríade hematúria, hipertensão e elevação da ureia no A fármacos
sangue; síndroma nefrótica, definida por proteinúria A neoplasias
e hipoalbuminémia; e síndroma hemolítica urémica Outras: Rejeição crónica de transplante

definida por anemia hemolítica microangiopática,


trombocitopénia, e insuficiência renal.
Qualquer doença renal não identificada atem- Para além da descrição sucinta das doenças
padamente e/ou não tratada pode conduzir a glomerulares e tubulares (tubulopatias) mais co-
insuficiência renal potencialmente fatal. A este muns em idade pediátrica, os restantes capítulos,
respeito, de referir o conceito de renoprotecção: com ordenação intencionalmente didáctica e sem
conjunto de medidas que, controlando a pressão estabelecer barreiras estanques, integram outros
arterial e reduzindo a excreção urinária de proteí- tópicos, designadamente do foro urológico, na
nas, previnem a progressão da doença renal no maior parte das vezes identificados pelo pediatra
sentido da cronicidade. ou clínico geral, implicando abordagem multidis-
As doenças glomerulares (Quadro 1), algumas ciplinar e, nalguns casos, hospitalização e cor-
das quais hereditárias, mas na sua maioria adquiri- recção cirúrgica.
das e geralmente consideradas imunologicamente
mediadas, são uma causa importante de morbili- BIBLIOGRAFIA
dade e de insuficiência renal crónica terminal (ver Capítulo 158)
(IRCT) em pediatria. O seu diagnóstico poderá
obrigar, à realização de biópsia renal (BR). As clas-
sificações das glomerulopatias baseiam-se nos
achados histológicos, imunocitoquímicos e da mi-
croscopia electrónica (ME).
CAPÍTULO 157 Glomerulonefrite aguda 755

157
As lesões glomerulares originam-se, quer pela
formação de imunocomplexos antigénio-anticor-
po (ICAg-Ac) in situ, quer pela deposição de
imunocomplexos circulantes (ICC). Embora diver-
sos antigénios estreptocócicos tenham sido identi-
ficados nos depósitos glomerulares de origem
GLOMERULONEFRITE AGUDA imune, são referidas duas proteínas de particular
interesse designadas por Spe B (exotoxina B cisti-
Ana Paula Serrão e Gisela Neto na proteinase) e NAPIR (receptor plasmático asso-
ciado a nefrite).
A via alterna do complemento está primaria-
mente envolvida e é activada pela presença destes IC
Definição nos glomérulos. A activação do C3 leva ao recruta-
mento de monócitos e neutrófilos que, através da li-
A GNA é um processo inflamatório agudo bertação de citocinas, originam as lesões inflama-
glomerular, secundário a alterações imunológicas; tórias e proliferativas ao nível dos capilares glomeru-
manifesta-se na clínica por uma síndroma nefríti- lares, levando ao padrão histológico de GN endo-
ca. A forma de apresentação típica é caracterizada capilar proliferativa. Podem surgir igualmente, em
pelo aparecimento súbito de hematúria, edema, certas formas, fenómenos de auto-imunidade com
hipertensão arterial (HTA), oligoanúria e insufi- formação de anticorpos anti-IgG, anti-C1q, anti-
ciência renal de graus variáveis. Mas, muitas ADN e ANCA. Estas alterações inflamatórias tra-
vezes, manifesta-se por associações incompletas. duzem-se, na clínica, pelo aparecimento de hema-
Trata-se duma entidade nosológica à qual túria, proteinúria, diminuição do filtrado glomerular
estão subjacentes diferentes etiologias assim como com retenção hidrossalina, levando a uma sobrecar-
diversas alterações histológicas glomerulares. ga hídrica que se manifesta por edema e HTA. A
Estas não são específicas da entidades clínica; isto hipertensão arterial (HTA) resulta de hipervolémia e
é, uma doença pode apresentar-se com diferentes da estimulação do sistema renina-angiotensina.
padrões histológicos e um dado padrão histológi- A GNAPE habitualmente surge 3 a 6 semanas
co pode ser encontrado em doenças distintas. após uma infecção cutânea e 7 a 14 dias após uma
infecção das vias respiratórias superiores (farin-
Etiopatogénese gite, amigdalite) causadas por estirpes nefritogéni-
cas (com antigénios/proteínas M designados,
Na idade pediátrica a causa mais frequente de sin- respectivamente, M 47, 49, 55,57 e M 1, 2, 4, 12.
droma nefrítica é a GNA pós-infecciosa, estando im- Existem outros antigénios nefritogénicos como
plicados os seguintes germes: Estreptococo, Estafilo- NAPlr e SPEB.
coco, Pneumococo, Salmonella typhi, Mycoplasma, A GNAPE atinge sobretudo o grupo etário dos
Virus-Herpes (VEB), vírus ECHO, Coxsackie, etc.; ou- 5 aos 15 anos, com predomínio do sexo masculino
tras etiologias devem, no entanto, ser consideradas. (2:1). Pode ocorrer esporadicamente ou em epi-
Uma vez que a GNA pós-infecciosa é, na crian- demia, neste último caso sobretudo nos países em
ça, a etiologia mais frequente da GNA, e a GNA vias de desenvolvimento.
pós-estreptocócica (GNAPE), o seu exemplo par-
adigmático, será abordada com mais pormenor Manifestações clínicas
esta última.
A patogénese da GNAPE não está ainda com- Na síndroma nefrítica a hematúria macroscópica
pletamente esclarecida, mas admite-se ser neces- (urina cor de coca-cola/vermelha acastanhada,
sária a conjugação de factores dependentes do excluindo factores susceptíveis de alterarem a cor da
hospedeiro e do agressor (estreptococo beta urina como a ingestão de fármacos, tóxicos,
hemolítico do grupo A de Lancefield) para se dar beterrabas, amoras, corantes, traumatismo lombo-
início às alterações imunológicas. sagrado, etc) é frequentemente o primeiro sinal de
756 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

alarme. Noutras situações é o edema, a oligúria, a dor * C3 e C4 (fracções do complemento)


no flanco ou, mais raramente, a dispneia ou convul- A determinação de C3 é essencial para a confir-
sões por encefalopatia hipertensiva que a revelam. A mação de GNAPE, já que nesta os seus níveis
insuficiência renal é geralmente ligeira, com oligúria estão sempre diminuídos e tipicamente nor-
transitória. A proteinúria é habitualmente não malizam ao fim de 6 a 8 semanas.
nefrótica (<40mg/ m2/h). Em 60 a 80% das situações Os níveis de C4 que revelam envolvimento da
existe HTA, de ligeira a moderada, mesmo em via clássica do complemento estão geralmente
doentes sem grande alteração do filtrado glomerular. normais. A sua redução significativa e per-
Salienta-se que existem formas de apresentação sistente leva a admitir outras etiologias – GNA
subclínica, traduzidas apenas por hematúria secundária a LES, endocardite bacteriana, etc..
microscópica e pressão arterial normal ou elevada. * ANCA (anticorpos anticitoplasma dos neu-
A presença de anúria, proteinúria e insuficiên- trófilos), ANA (anticorpos antinucleares) e
cia renal significativa, devem levantar a suspeita anti-DNA (Ácido desoxirribonucleico) dupla
de uma outra etiopatogénese, nomeadamente de hélice (dh) para detecção de GN lúpica.
uma GN rapidamente progressiva. 3 – Avaliação da função renal:
Tal como a etiologia, também a evolução clíni- * Ureia, creatinina, ionograma, cálcio e fósforo
ca pode ser extremamente variável e só um segui- séricos.
mento atento e bem dirigido, por vezes até longo, * Gasometria – nos casos de insuficiência renal
permite o diagnóstico etiológico. * Proteínas totais e albumina séricas
4 – Avaliação hematológica e da repercussão sistémica:
Exames complementares * Hemograma, plaquetas, e eventual estudo do
sangue periférico. Habitualmente verifica-se
1 – Confirmação da hematúria e da sua origem glome- anemia normocrómica ligeira, quer por
rular: hemodiluição, quer por hemólise ligeira.
* Contagem de eritrócitos com % de eritrócitos
dismórficos e pesquisa de cilindros hemáti- Diagnóstico diferencial
cos (em amostra de urina fresca).
Considera-se hematúria microscópica o valor A verificação de hematúria a valorizar no contex-
de > 3-5 eritrócitos por campo em grande ampli- to de cada caso (macro ou microscópica) implica o
ação. diagnóstico diferencial com outras situações tais
* Relação proteinúria/creatininúria > 0,2 como, para além das que constam do Quadro 1 do
mg/mg capítulo anterior (causa glomerular), as extra-
2 – Identificação do factor etiológico: glomerulares (por ex. túbulo – intersticial, vascu-
a – Agente infeccioso lar, cristalúria, hemoglobinopatia, hidronefrose,
* Exame bacteriológico do exsudado nasofa- doença quística, trauma, tumor, etc.), e as locali-
ríngeo (NB: ~20% das crianças sem doença zadas no tracto urinário inferior (cistite, uretrite,
são portadoras) coagulopatia, litíase, etc.).
* TASO (Título de antiestreptolisinas O)
* Anticorpos anti-hialuronidase, antidesoxirri- Tratamento
bonuclease B e antiestreptoquinase
O TASO está geralmente elevado após infecção As medidas relacionadas com o tratamento são
faríngea, mas tal é pouco provável após infecção sistematizados do seguinte modo:
cutânea estreptocócica. 1 – Erradicação do agente (tem como objectivo
A determinação do título de anti-DNA-ase B é reduzir a disseminação da infecção nos contac-
mais sensível para identificar infecção cutânea. tos, já que não interfere na evolução da doença
* Estudo virológico (VEB, VHB; ECHO, devido ao seu mecanismo imunológico):
Coxsackie) * Penicilina benzatínica (< 15 kg – 600.000 U; > 15
b – Determinação das alterações imunológicas kg – 1.200.000 U) – dose única; ou, em caso de
(fundamental no diagnóstico diferencial): alergia, eritromicina, 50 mg/kg/dia (2-4 doses
CAPÍTULO 157 Glomerulonefrite aguda 757

QUADRO 1 – Glomérulo-Nefrite aguda pós-estreptocócica (alterações persistentes possíveis)

Hematúria macroscópica; oligúria; azotémia

HTA

↓ C3

Proteinúria
Hematúria microscópica

Proteinúria intermitente

Meses Dados de Consulta de Nefrologia Pediátrica do Hospital Dona Estefânia, Lisboa (2005)

diárias), cefalosporina de primeira geração por longo prazo. Em geral atinge-se rapidamente a
ex. cefradina, 25-100 mg / kg/dia (3-4 doses remissão clínica, podendo, no entanto, persistir
diárias), ou clindamicina, 15-40 mg/kg/dia (3- algumas alterações ao longo do tempo (Quadro 1
4 doses diárias), durante 10 dias. que se refere a 100 casos ao longo de 15 anos).
2 – Controlo dos contactos: Atendendo à história natural da GNAPE, raras
* Exsudado nasofaríngeo – se se confirmar a são as situações com indicação para biópsia renal
presença da bactéria, administração de peni- (BR). A BR visa o esclarecimento do diagnóstico, a
cilina e vigilância de hematúria e HTA, nos selecção de uma terapêutica adequada e a avali-
30 dias após o contacto infeccioso. ação do prognóstico. Constituem indicação para
3 – Terapêutica de suporte: BR na GNA:
a) Medidas gerais – peso diário, balanço hídri- * Hematúria macroscópica, insuficiência renal
co, dieta – restrição hídrica (em função da e HTA persistentes, em associação ou iso-
diurese e perdas insensíveis) e salina; res- ladamente, para além de 3 semanas;
trição de proteínas, potássio e fósforo (estas * C3 persistentemente baixo às 6-8 semanas;
últimas dependendo do controlo analítico e * Serologia compatível com LES (↓C4; positivi-
em situação de insuficiência renal). dade de ANCA, ANA, anti-DNA dh);
b) Terapêutica da sobrecarga hídrica – diuréti- * Serologia positiva para vírus da Hepatite B
co (furosemido), mas com atenção à possí- ou outros;
vel iatrogenia. * Micro-hematúria e/ou proteinúria significa-
c) Terapêutica da HTA (ver capítulo 162). tiva (nefrótica ou não) para além dos 6 meses;
d) Terapêutica das complicações: * Hematúria microscópica persistindo mais de
– insuficiência renal aguda 18 meses;
– edema agudo do pulmão * Idade <4 anos e >15 anos.
– encefalopatia hipertensiva. Em regra, todo o doente com síndroma nefríti-
ca tem indicação para ser hospitalizado.
Prognóstico Os doentes com GNAPE adquirem imunidade
definitiva em relação a novos episódios devido à
A maioria das situações de GNAPE evolui de forma intensa resposta imunológica induzida pelas estir-
benigna, autolimitada, com excelente prognóstico a pes de estreptococo hemolítico do grupo A.
758 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

158
BR é realizada após o diagnóstico da hematúria.
No Japão, cerca de dois terços dos casos são diag-
nosticados apenas com hematúria microscópica,
com ou sem proteinúria, devido ao rastreio sis-
temático em todas as crianças com mais de 6 anos.

GLOMERULONEFRITE CRÓNICA Etiopatogénese

Ana Paula Serrão e Gisela Neto Considerada uma doença de IC, parece ser causa-
da por anomalias do sistema imune IgA.
Os mecanismos patogénicos podem dividir-se
em duas etapas:
Importância do problema I – Da formação de IgA circulante até ao seu depósi-
to no mesângio:
O termo glomerulonefrite crónica (GNC) englo- O principal subtipo de IgA circulante, o qual se
ba as situações acompanhadas de lesão glo- deposita no mesângio, é a IgA1. Esta tem origem
merular que se perpetua, com o consequente iní- medular, é polimérica e com excesso de cadeias λ.
cio de destruição celular e de evolução para insu- Em 50% dos casos esta produção exagerada de IgA
ficiência renal crónica terminal (IRCT). Embora se acompanha-se de ICC. A associação de episódios
admita a comparticipação de mediadores imuno- de hematúria macroscópica com infecções das vias
lógicos, a etiologia da maioria destas doenças respiratórias superiores sugere que esta resposta
glomerulares é desconhecida. No caso da síndro- imune seja induzida por antigénios microbianos.
ma nefrótica congénita (SNC) e da síndroma Fora das fases agudas, verifica-se um aumento da
Alport foi encontrada uma base genética após a permeabilidade intestinal responsável por uma
identificação dos genes responsáveis. ruptura do fenómeno de “tolerância da mucosa”
que se associa a uma baixa da produção de IgA
pelas mucosas. Os mecanismos reguladores são
1. NEFROPATIA IgA (NIgA) ainda desconhecidos. Está presente um defeito de
galactosilação da região charneira das IgA1.
Aspectos epidemiológicos Trata-se de um défice funcional ou de uma
anomalia estrutural de uma enzima dos linfócitos
Trata-se da glomerulopatia primária mais fre- B produtores de IgA. Estas IgA1 hipogalactosi-
quente em todo o mundo, também conhecida na ladas são menos captadas pelos receptores hepáti-
forma primária como nefropatia de Berger. cos e a sua degradação está, assim, diminuída.
Descrita em 1968 por Berger e Hinglais, foi inicial- Associam-se às IgG e depositam-se no mesângio.
mente considerada uma doença renal benigna. No Nesta fase intervém ainda uma regulação negati-
entanto, sabe-se que é responsável pela evolução va do receptor para o fragmento Fc das IgA
para IRCT em 20 a 50% dos adultos e em 2,5 a 9% (CD89) que apresenta um defeito de sialisação,
das crianças. Surgindo em todas as idades, mas diminuindo a expressão do receptor à superfície
principalmente na segunda e terceira décadas, das células monocitárias.
predomina no sexo masculino (M:F de 2:1 a 6:1), II – Mecanismos efectores das lesões glomerulares:
raramente ocorrendo na raça negra. Poucos casos Embora não específicos, estes mecanismos en-
familiares foram descritos. A incidência geográfica volvem factores hemodinâmicos e vasculares como
é diversa (18-40% no Japão e 2-10% no Canadá, o sistema endotélio-monóxido de azoto, citocinas e
Estados Unidos e Grã-Bretanha). Este facto é os factores de crescimento como a interleucina 6 e o
provavelmente influenciado por factores raciais e factor de crescimento das plaquetas, entre outros.
ambientais, assim como pela diferença no rastreio Apesar dos progressos científicos continua
de hematúria em crianças aparentemente saudá- ainda por se compreender, na totalidade, a etiolo-
veis, e pela facilidade e/ou prontidão com que a gia e patogenia e, consequentemente, quais as
CAPÍTULO 158 Glomerulonefrite crónica 759

melhores atitudes adoptar, preventivas e terapêu- A maior dificuldade reside em saber qual a
ticas. melhor atitude terapêutica perante doentes assin-
tomáticos e/ou com alterações mínimas (hema-
Manifestações clínicas e laboratoriais túria microscópica isolada e relação pro-
teinúria/creatininúria em mg/mg < 0,6 no sexo
A forma de aparecimento mais comum é a masculino e < 0,8 no sexo feminino).
hematúria macroscópica (70-80%), geralmente
precipitada por uma infecção das vias respira- Prognóstico
tórias superiores de etiologia vírica. Outras for-
mas de apresentação são: hematúria microscópica É ainda imprevisível o prognóstico de todos os
com ou sem proteinúria, assintomáticas (20%); doentes cujo diagnóstico foi efectuado na idade
sindroma nefrítica; e sindroma nefrótica (< 10%). pediátrica, sendo necessários mais estudos. No
O intervalo entre o início da infecção e as mani- entanto, com base na bibliografia, a NIgA corres-
festações clínicas é 1 a 2 dias. A maioria tem episó- ponde a 1,5% de todos os casos de IRCT na
dios recorrentes de hematúria macroscópica com Europa. Aos 24 anos, em 17% dos doentes com
hematúria microscópica persistente intercrise. IRCT tinha sido iniciada diálise e, aos 35 anos esse
Raramente a NIgA evolui para glomerulonefrite valor aumentou para 40%. Apesar de se conside-
rapidamente progressiva (GNRP). rar que o prognóstico é melhor na criança que no
Em menos de 20% a IgA sérica pode estar ele- adulto, a sua evolução é variável. São indicadores
vada, sugerindo o diagnóstico. Uma vez que, iso- de pior prognóstico na criança, proteinúria de
ladamente, os achados clínicos não são diagnósti- magnitude semelhante à da síndroma nefrótica na
cos, é importante dosear C3, TASO, e factores anti- data do diagnóstico, HTA, diminuição da taxa de
nucleares para excluir outras causas, já que os filtração glomerular (TFG) e alterações histológi-
valores destes parâmetros são normais na NIgA. cas como: proliferação difusa extracapilar com
uma percentagem de glomérulos com crescentes
Diagnóstico diferencial superior a 50%, fibrose intersticial, lesões seg-
mentares e focais atingindo mais de 30% dos glo-
O diagnóstico é feito por biópsia renal que revela mérulos. A sobrevida renal é ~ 99% aos 7 anos, não
a existência de depósitos de IgA como imunoglo- existindo proteinúria nefrótica nem insuficiência
bulina, predominante no mesângio glomerular. renal inicial; passa, contudo, para 21% quando
A NIgA pode ser primária (doença de Berger) estes dois parâmetros coexistem. Verificou-se tam-
ou secundária, a púrpura de Henoch-Schönlein bém que existe uma boa correlação entre os acha-
(PHS), a cirrose hepática ou a síndroma de dos histológicos e o prognóstico.
Goodpasture. Embora o transplante renal não esteja contra-
indicado, é importante saber que em 50% dos rins
Tratamento transplantados pode existir recorrência dos depó-
sitos de IgA; trata-se duma situação geralmente
O tratamento primário diz respeito à vigilância e assintomática, raramente ocorrendo rejeição do
tratamento da HTA. Está indicada a utilização de enxerto.
IECA (inibidores da enzima de conversão da
angiotensina) e de bloqueantes dos receptores da
angiotensina. Estes levam a redução na excreção de 2. SÍNDROMA DE ALPORT
proteína com preservação da função renal; mas deve-
rão provavelmente ser reservados para as crianças Definição e importância do problema
que apresentam proteinúria significativa e evidên-
cia de lesão glomerular crónica. Outras terapêuticas A síndroma de Alport é uma doença glomerular
incluem prednisolona, dipiridamol, azatioprina, hereditária, de grande heterogeneidade genética,
heparina-varfarina, óleo de peixe (com ácidos gor- causada por mutações nos genes que codificam o
dos ómega-3, com acção anti-inflamatória). colagénio de tipo IV, componente importante da
760 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

membrana basal. Em cerca de 85% dos casos ocorre A alteração ocular mais frequente (e em 30-
uma forma clínica ligada ao cromossoma X (mu- 40% dos casos ligados ao X), é a lenticone anterior,
tação no gene COL4A5). geralmente associada a deterioração da visão e a
A forma autossómica dominante ligada aos genes miopia axial. Trata-se duma extrusão da porção
COL4A3 -COL4A4 corresponde a cerca de 5% dos central do cristalino para a câmara anterior.
casos. Ausente na data do nascimento, surge na segunda
ou terceira década de vida; é também mais
Manifestações clínicas comum no homem, tendo uma incidência de 15 a
30%. Tal alteração ocular, apesar de não ser pato-
Habitualmente apresenta-se de início com hema- gnomónica, é extremamente sugestiva de síndro-
túria microscópica persistente, como primeiro ma de Alport. Alterações maculares e perimacu-
episódio de hematúria macroscópica; pode tam- lares podem ser observadas nalguns casos e são
bém ser diagnosticada no decurso de rastreio geralmente bilaterais. Nalgumas crianças, o
familiar de síndroma de Alport. Se o episódio de desaparecimento do reflexo da fóvea pode ser um
hematúria macroscópica coincidir com uma achado precoce. (Capítulo 256)
infecção das vias respiratórias superiores, há que
fazer o diagnóstico diferencial com NIgA e com Diagnóstico
GNAPE. De salientar que cerca de 30-50% das cri-
anças com hematúria persistente têm alteração heredi- O diagnóstico é feito com base na história familiar,
tária da membrana basal glomerular. presença de surdez neurossensorial, lenticone, estu-
A doença é mais grave nos indivíduos do sexo do molecular e nas características alterações ultra-
masculino. Nestes, a hematúria pode ser detecta- estruturais da membrana basal glomerular (MBG)
da no 1º ano de vida ou mesmo no período neona- observadas por microscopia electrónica. No entan-
tal. Embora a hematúria microscópica possa estar to, o diagnóstico pode ser difícil, principalmente em
presente no sexo feminino, somente tal ocorre em doentes do sexo feminino; neste caso a biópsia
10-15% dos casos. Com a progressão da doença, a cutânea pode ser um precioso auxiliar no rastreio.
proteinúria surge no rapaz no final da primeira
infância ou início da adolescência, podendo ser de Tratamento
tipo nefrótico. A HTA e/ou insuficiência renal
poderão eventualmente surgir nos homens afecta- Não existe tratamento específico. A doença geral-
dos, mas a taxa de progressão para IRCT é variá- mente progride para insuficiência renal terminal
vel. Nalgumas famílias, a IRC pode instalar-se necessitando de diálise e de transplante. Nalguns
apenas na terceira ou quarta décadas de vida, doentes (até 10%), podem surgir autoanticorpos
enquanto em outras ocorre na primeira década. contra a MBG após receberem transplante renal de
Nas mulheres afectadas geralmente não se desen- dador são. Este facto não é, no entanto, considera-
volve IRC, embora haja excepções. do contra-indicação para o transplante.
Fazem parte do quadro clínico de síndroma de
Alport a surdez e defeitos oculares.
O défice de audição é bilateral e do tipo neu-
rossensorial. Geralmente não detectável na data
3. GLOMERULONEFRITE MESANGIAL
do nascimento, desenvolve-se nos primeiros 10
PROLIFERATIVA (GNMP)
anos de vida. O diagnóstico precoce pode ser feito
apenas por audiometria embora, com a progres- Importância do problema
são da doença, as frequências afectadas envolvam
a zona da linguagem relacionada com a conver- A GNMP é a causa mais comum de GNC em crian-
sação e se torne muito acentuada. Tal como a ças mais velhas e adultos jovens. De etiologia
doença renal, também o défice auditivo é mais desconhecida, foi descrita como entidade clínico-
grave no sexo masculino e não melhora após o patológica distinta em 1965. É desconhecida qual a
transplante renal. exacta prevalência. Afecta primariamente crianças
CAPÍTULO 158 Glomerulonefrite crónica 761

mais velhas e em 6-13% apresenta-se como síndro- de C1q e C4 e a presença de ICC podem ser obser-
ma nefrótica idiopática (SNI). No entanto, pode vados na GNMP tipo I, mas não nos tipos II e III.
manter-se assintomática por longos períodos de Uma vez que, quer a GNMP, quer a GNAPE se
tempo, tornando-se evidente após detecção de manifesta com hematúria macroscópica, C3 baixo
hematúria microscópica ou proteinúria em análise e, concomitantemente, níveis aumentados de
sumária de urina. A probabilidade de evolução para TASO, somente a evolução clínica permitirá fazer
IRC é elevada, podendo verificar-se recorrência o diagnóstico diferencial. Enquanto a GNAPE
após o transplante renal. Com base nos achados de melhora significativamente em 2 meses, na
microscopia electrónica, são descritos 3 tipos de GNMP as manifestações clínicas persistem, obri-
GNMP: O tipo I (o mais comum), II e III. Tal des- gando à realização de BR.
trinça não é possível pela microscopia óptica.
Tratamento
Manifestações clinicas
Embora existam casos descritos de remissão com-
A maioria dos doentes tem idade superior a 6 pleta ou temporária desta doença crónica, tal não
anos. O momento exacto do início das alterações é a regra. As múltiplas variáveis que influenciam,
é, na maior parte dos casos, difícil de precisar. Não quer o modo de apresentação, quer a evolução,
há predomínio de sexo e a doença parece ser rara dificultam a existência de um tratamento consi-
na raça negra. derado óptimo. Vários fármacos têm sido experi-
No início a GNMP pode apresentar-se com um mentados, quer isoladamente quer em associação
largo espectro de manifestações, desde hematúria (corticosteróides orais, pulsos de metilpredniso-
assintomática à glomerulonefrite rapidamente pro- lona endovenosa, ciclofosfamida, dipiridamol e
gressiva (GNRP). Aproximadamente em 25-30% outros antiagregantes plaquetários).
dos casos há micro-hematúria e proteinúria assin-
tomáticas; 30% têm um início com síndroma nefríti- Prognóstico
ca aguda e em cerca de 40-45% surge síndroma
nefrótica. No entanto, não é raro apresentar-se como A GNMP apresenta recorrência frequentemente
síndroma nefrítica/nefrótica. O facto de 25 a 45% após transplante renal. A taxa de recorrência para
dos casos ter história de infecção das vias respi- o tipo I é ~ 30% e para o tipo II ~ 90%. Não
ratórias superiores precedendo o quadro, pode con- obstante, aquele não está contra-indicado, deven-
duzir a diagnósticos como nefropatia IgA (NIgA) ou do ser ponderado caso a caso.
glomerulonefrite pós-estreptocócica (GNAPE). A
HTA é um achado frequente; pode ser grave,
surgindo especialmente nos doentes cuja manifes-
tação inicial corresponde a síndroma nefrítica.
4. NEFRITE ASSOCIADA A LÚPUS
ERITEMATOSO SISTÉMICO
Exames laboratoriais
Definição e importância do problema
A análise sumária da urina mostra os achados típi-
cos de doença glomerular (hematúria, proteinúria, O lupus eritematoso sistémico (LES) é uma doen-
cilindros). Os restantes achados laboratoriais de- ça autoimune, multissistémica, de etiologia des-
pendem do modo de apresentação: evidências de conhecida, com formação de imunocomplexos
síndroma nefrótica, função renal normal ou alte- provocando lesão tecidual do rim. A maior parte
rações em grau variável desta. Nalguns casos a dos depósitos contém IgG e C3; por vezes, tam-
alteração da função renal pode ser tão grave que bém IgM ou IgA. Atinge sobretudo as mulheres
simula uma GNRP. Em cerca de 60% dos casos os jovens e somente 10 a 17% dos casos são diagnos-
níveis de C3 estão diminuídos no momento do ticados antes dos 16 anos.
diagnóstico. Porém, o facto de este valor ser nor- Os critérios de diagnóstico do LES são descritos
mal não exclui a hipótese de GNMP. Níveis baixos no capítulo 222.
762 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

A nefrite é uma complicação frequente do LES, QUADRO 1 – Avaliação do grau de actividade


surgindo em 30 a 80% dos doentes pediátricos. e cronicidade (Nefrite do LES)
Rara antes dos 5 anos, atinge em particular o gru-
po etário acima dos 10 anos, e em apenas 25% des- Alterações glomerulares
tes doentes a doença renal surge como primeira Critérios de actividade
manifestação. A proteinúria é o achado mais fre- – Proliferação celular
quente, muitas vezes precedendo o aparecimento – Necrose fibrinóide, cariorrexia
de síndroma nefrótica. No entanto, mais do que a – Crescente celular
forma de apresentação, o grau e extensão do com- – Trombos hialinos - “wire loops”
promisso renal são factores determinantes do – Infiltração leucocitária
prognóstico. Critérios de cronicidade
– Esclerose glomerular
Etiopatogénese – Crescentes de fibrina
Alterações tubulointersticiais
A etiopatogénese do LES não está ainda completa- Critérios de actividade
mente esclarecida. Sabe-se que a acção de factores – Infiltrado de células mononucleares
ambientais (sol-raios ultravioleta, vírus, estresse, Critérios de cronicidade
hormonas), sobre indivíduos geneticamente pre- – Fibrose intersticial
dispostos, desencadeia alterações da imunidade – Atrofia tubular
com formação de autoanticorpos cuja deposição
nos orgãos e tecidos está na génese das manifes-
tações clínicas. Manifestações clínicas
Trata-se, pois, de manifestações clínicas mediadas
por imunocomplexos (IC), tendo sido identifi- A nefrite lúpica manifesta-se de modo diverso, va-
cadas alterações, quer das células B, quer das célu- riando desde a ausência de sinais ou sintomas, até
las T. à presença de proteinúria, hematúria, hipertensão
De acordo com a classificação da OMS, foram arterial e insuficiência renal, isoladamente ou em
descritas as seguintes classes de alterações his- associação. A verificação de um sedimento
tológicas: urinário rico em elementos celulares, com eritró-
– Classe I - rim normal citos, leucócitos, cilindros eritrocitários, granulo-
– Classe II - glomerulonefrite mesangial sos ou de leucócitos e cilindros grossos e gordu-
– Classe III - glomerulonefrite segmentar e fo- rosos, é muito sugestiva de LES; de referir no
cal entanto, que tais características também podem
– Classe IV - glomerulonefrite proliferativa di- surgir noutras conectivites. O diagnóstico é suge-
fusa rido também pela detecção de autoanticorpos cir-
– Classe V - glomerulonefrite extramembranosa culantes (antinucleares, anti-DNA, antinucleosso-
– Classe VI - glomerulonefrite esclerosante mas e anti a-actininina). Na maior parte dos casos
Em cada fragmento de biópsia é fundamental de doença activa os valores séricos de C3 e C4
caracterizar as alterações glomerulares e túbulo – estão diminuídos.
intersticiais de acordo com o critério de avaliação Entre os factores individuais preditivos de
do grau de actividade e cronicidade – OMS, (sim- mau prognóstico renal, salientam-se pelo seu si-
plificado). (Quadro 1) (Capítulo 163). gnificado prejorativo, existência de insuficiência
A lesão será tanto mais grave, quanto maior o renal, proteinúria, hipertensão arterial, aumento
número de critérios de actividade e/ou cronici- do título de anticorpos anti-DNA, e diminuição
dade. dos factores do complemento, de uma forma man-
É possível, em cada doente, a evolução de um tida. Por outro lado, considera-se remissão sero-
padrão histológico para outro de maior gravi- lógica a normalização de anti-DNA e dos níveis de
dade, o que se poderá relacionar com tratamento C3 e C4.
inadequado.
CAPÍTULO 158 Glomerulonefrite crónica 763

Tratamento BIBLIOGRAFIA (capítulos 156-158)


Ariceta G. Clinical practice. Proteinuria. Eur J Pediatr 2011; 170:
A terapêutica da nefrite lúpica tem como objectivo 15-20
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Esta ocorre em cerca de 25 a 30% dos doentes, em Philadelphia: Lippincot & Wilkins, 2004
geral após 10 anos de terapêutica. De los Santos NM, Wyatt RJ. Pediatric IgA nephropathies: cli-
Apesar de existir uma grande variedade de nical aspects and therapeutic approaches. Semin Nephrol
opções terapêuticas, não há, até à data, alguma 2004; 24: 269-286
que seja totalmente eficaz. A controvérsia man- Hoy WE, White AV, Dowling A, et al. Post-streptococcal
tém-se, sobretudo na escolha do agente imunossu- glomerulonephritis is a strong risk for chronic kidney dis-
pressor, (azatioprina ou ciclofosfamida), já que o ease in later life. Kidney Int 2012; 81: 1026-1032
uso de corticóides (prednisona) é universalmente Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
aceite. Nos doentes com nefrite da classe IV tem Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
sido utilizado o anticorpo monoclonal rituximab 2011
A decisão terapêutica baseia-se na clínica e, Meyers KE. Evaluation of hematuria in children. Urol Clin
particularmente, no padrão histológico, na avalia- North Am 2004; 3: 559-573
ção dos riscos de toxicidade (infecção, infertili- Perfumo F, Martini A. Lupus nephritis in children. Lupus 2005;
dade, malignidade) e na experiência individual e 14: 83-88
colectiva dos médicos e da equipa de trabalho. A Postlethwaite RJ, Webb NJA(eds). Clinical Paediatric
precocidade do início da terapêutica é muito Nephrology. New York: Oxford University Press, 2003
importante: permite reduzir o número de recor- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
rências, a frequência de evolução para a insufi- AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
ciência renal, assim como a mortalidade. Medical , 2011
A actividade da doença é monitorizada não só Tullus K, Marks SD. Indications for use and safety of rituximab
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lonephritis. International Journal of Pediatrics 2012 doi:
A morbilidade a longo prazo é significativa e 10.1155/2012/426192
resulta do equilíbrio dinâmico entre a eficácia Yanagihara T, Hayakawa M, Yoshida J, et al. Long term follow-
terapêutica e possível iatrogenia (por ex. risco de up of diffuse membranoproliferative glomerulonephritis
HTA, osteoporose, obesidade e diabetes mellitus, type I. Pediatr Nephrol 2005; 20: 585-590
associados a corticoterapia crónica).
A sobrevivência dos doentes com nefrite lúpi-
ca tem vindo a aumentar muito nos últimos 30 a
40 anos, sendo a mortalidade ainda 15 a 20%. A
infecção, muitas vezes secundária à imunossu-
pressão, constitui a maior causa de mortalidade
destes doentes. Também a doença cardiovascular
associada tem sido progressivamente identificada
como causa importante de morbilidade tardia.

GLOSSÁRIO
Cariorrexia > Durante a necrose de uma célula, fragmentação do núcleo
celular, cuja massa de cromatina se dissemina no citoplasma.
764 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Etiopatogénese

159 Sob ponto de vista etiológico existem grandes


diferenças entre o que se passa no adulto e na
criança. Cerca de 90% das síndromas nefróticas
(SN) na criança resultam de uma doença glomeru-
SÍNDROMA NEFRÓTICA lar primária e apenas 10% são secundárias a uma
doença sistémica. Entre as causas de SN secun-
IDIOPÁTICA dária na criança destacam-se: o lúpus eritematoso
sistémico, a púrpura de Henoch Schönlein, a
Judite Batista drepanocitose, a sífilis congénita, a malária, a pi-
cada de abelha, a amiloidose, fármacos e toxinas
(penicilamina, sais de ouro, triantereno, captopril,
heroína, etc.). Na SN primária a maioria dos casos
Definições e importância do problema (80 a 85%) tem um padrão histológico de lesões
mínimas (LM) e 10 a 15% tem por base uma
Em situações de normalidade a excreção urinária glomerulopatia crónica (glomerulosclerose segmen-
de proteínas é diminuta (< 4 mg/m2/hora ou < tar e focal, glomerulonefrite membranoproliferativa,
100 mg/m2/ 24 horas). glomerulonefrite membranosa e glomerulonefrite
A síndroma nefrótica (SN) define-se pela coe- mesangial proliferativa).
xistência de proteinúria maciça (≥40 mg/m2/hora), Cerca de 80% dos casos de SN corticorre-
hipoproteinémia (< 5.5 g/dL) e hipoalbuminémia sistente estão associados ao quadro histopatológi-
(< 2.5 g/dL), relação de proteínas/creatinina na co de glomerulosclerose segmentar e focal.
urina ou UPr/Cr > 2.0, edema e hiperlipémia. Estudos recentes sugerem um decréscimo da
Conceptualmente integra uma constelação de prevalência das lesões mínimas e um aumento
sinais clínicos comuns a várias doenças renais (ver dos casos de glomerulosclerose segmentar e focal.
Anexos-Vol 3). O significado clínico dos subtipos histológicos
A síndroma nefrótica idiopática ou primária da SNI não é linear. A experiência demonstra que
(SNI), que corresponde a cerca de 90% dos casos é a resposta à corticoterapia o factor determinante
de SN, é a glomerulopatia mais frequente na idade do prognóstico, independentemente do tipo his-
pediátrica, com uma incidência de 2-7 novos casos tológico.
/ ano por 100.000 indivíduos com menos de 18 Como substracto patogénico subjacente, cabe
anos. À forma congénita ou hereditária será feita referir o aumento da permeabilidade da parede
referência breve na alínea Etiopatogénese. capilar glomerular que leva a proteinúria maciça
Trata-se duma situação potencialmente cróni- (englobando Ig e C3b) e a hipoalbuminémia;
ca, com períodos de remissão clínica e laboratori- admite-se como, causa desta anomalia, a dis-
al, e de recaída; em cerca de 80 a 90% dos doentes função das células T com alteração secundária das
registam-se uma ou mais recaídas ao longo do citocinas causando perda da carga negativa das
tempo de doença. Em geral, tal ocorre entre os 18 glicoproteínas ao nível da parece capilar glomeru-
meses e os seis anos com uma relação sexo mas- lar. Admite-se ainda: o possível papel dum factor
culino/sexo feminino de 2/1. plasmático produzido pelos linfócitos no aumento
Nos casos de recaída dentro do período de 28 da referida permeabilidade; alterações estruturais
dias após paragem da corticoterapia (ver adiante), de proteínas nos podócitos (podocina, alfa-actini-
ou enquanto o doente é submetido a corticoterapia na 4, nefrina) por mutação nos respectivos genes,
em dias alternados, fala-se em SN corticodependente. (NPHS2, FSGS1, NPHS1); outros genes como
Na ausência de resposta à corticoterapia den- WT1, MYH9 e LMX1B, e NEPH1 poderão explicar
tro de 8 semanas, fala-se em SN corticorresistente. alterações estruturais de outros componentes do
Considera-se SN com recaídas frequentes a veri- aparelho de filtração glomerular como a fenda
ficação de 4 recaídas no período de 12 meses. interpodocitária. Certos tipos HLA (-DR7, -B8, -
CAPÍTULO 159 Síndroma nefrótica idiopática 765

B12) estão associados a incidência mais elevada de edema periorbitário à anasarca. Nalguns doentes
SN*. (30%) há referência a infecções víricas ou bacteria-
A alteração das cargas negativas na membrana nas recentes antecedendo o aparecimento do
basal glomerular resulta na fusão dos podócitos, edema; o mesmo se verifica em 70% das recaídas.
na perda dos diafragmas dos poros, e na passa- Concomitantemente com a instalação do edema
gem de albumina através da membrana basal há redução da diurese. Macroscopicamente a
glomerular. Esta perda de albumina pela urina urina tem aspecto de espuma e uma cor concen-
leva à hipoalbuminémia, e esta à diminuição da trada (alaranjada). A existência de hematúria
pressão oncótica intravascular com passagem macroscópica não é habitual na SNI, alertando
transcapilar de água e solutos para os tecidos, com para a eventualidade de trombose da veia renal ou
formação de edema. A perda de proteínas incluin- de glomerulopatia crónica. A hematúria micros-
do Ig e inibidores da coagulação/fibrinolíticos cópica ocorre em 15% dos casos de lesões mínimas
(AT III, proteínas C e S) predispõe respectiva- (LM). A pressão arterial é, em regra, normal;
mente a infecção e a trombose (ver adiante). Para somente cerca de 15% dos doentes registam uma
o risco de trombose concorrem ainda a síntese hipertensão moderada. A existência de hiperten-
hepática aumentada de factores pró-coagulantes são grave não é compatível com SNI de LM. Pode
como o fibrinogénio. haver compromisso da função renal de carácter
Em consequência das alterações hemodinâmi- transitório, relacionado com a hipovolémia.
cas que se registam, há contracção do volume Outras manifestações relacionadas com o
intravascular e activação do sistema renina- edema incluem: hepatomegália, diarreia (entero-
angiotensina-aldosterona com patia exsudativa), dificuldade respiratória, risco
retenção de sódio e água, e perpetuação do infeccioso e hipercoagulabilidade.
edema. Igualmente, a contracção do volume A dor abdominal na criança com SNI é um sin-
intravascular estimula a HAD com consequente toma de importância vital; as causas podem rela-
incremento da reabsorção de água nos tubos co- cionar-se com peritonite primária por Strepto-
lectores. Por sua vez, a hipoalbuminémia estimula coccus pneumoniae, ou E. coli; com isquémia do ter-
a síntese hepática de colesterol – LDL e de ritório da mesentérica por hipovolémia grave; ou
triglicéridos, explicando a hiperlipémia. com trombose vascular.
A SN congénita/hereditária resulta da Existe igualmente risco de trombose, abordado
mutação em 4 genes: NPHS1, NPHS2 (tipo fin- anteriormente.
landês), WT1 e LAMB2). No episódio inaugural, o doente deve ser hos-
De referir, no entanto, que os mecanismos des- pitalizado para estabelecer o diagnóstico sindró-
critos não se aplicam a todos os casos de SN, pois mico e etiológico, avaliar a resposta à terapêutica,
há situações que cursam com hipervolémia e dimi- e instruir a família acerca da cronicidade da
nuição do nível sérico de renina e de aldosterona. doença e das medidas de vigilância e controlo.
Nalguns centros tem-se procedido ao rastreio
genético de SN corticorresistente na adolescência. Exames complementares

Manifestações clínicas Os exames complementares têm como objectivo


confirmar o diagnóstico e proceder à avaliação
O edema constitui a principal manifestação clínica pré-terapêutica: proteínas totais e albumina séri-
da SN; o início é insidioso e o espectro vai do cas, proteinúria de 12 horas, hemograma, iono-
grama sérico, factores de coagulação, calcémia,
*A síndroma de Denys-Drash é explicada por mutação no gene fosforémia, fosfatase alcalina, ureia, creatinina,
supressor de tumor de Wilms (WT1) do que resulta função anómala colesterol, triglicéridos, glicémia, C3, C4, CH100,
dos podócitos. Trata-se duma forma de SN de início precoce, com insu-
ficiência renal progressiva, ambiguidade genital e tumor de Wilms. anticorpos antinuclear/ANA e anti-DNA, serolo-
A síndroma de Pierson resulta de mutações no gene LAMB2 que origi- gia para infecções designadamente VEB e VHB e
na anomalias estruturais da beta 2-laminina, componente crítico das
membranas basais ocular e glomerular. Apresenta-se como SN con-
estudo genético em função da clínica, etc. (ver
génita e microcória(miose fixa por estreitamento da pupila). adiante diagnóstico diferencial).
766 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Na urina, para além da análise sumária, há que 3) Proteínúria tubular, caracterizada por pre-
proceder ao doseamento das proteínas e da crea- domínio excretório de proteínas de baixo peso
tinina no período de 12 horas (relação na urina de molecular, está associada tipicamente a situações
proteínas/creatinina ou UPr/Cr). Uma relação como necrose tubular aguda, pielonefrite, nefro-
UPr/Cr>2,0 numa primeira amostra matinal de patias estruturais, doença renal poliquística, e to-
urina, só por si, excluindo proteinúria ortostática, xicidade por antibióticos e agentes quimioter-
é sugestiva de estar relacionada com SN-ver atrás. apêuticos (Capítulo 163 e Anexos). A combinação
Valores entre 0,2 e 2,0 traduzem proteinúria ligeira de proteinúria tubular com glicosúria e perda
a moderada, mas não de tipo nefrótico. tubular de electrólitos integra a síndroma de
De salientar que o Ca total está baixo, sendo Fanconi;
normal a fracção ionizada. No que respeita ao pro- 4) Proteinúria glomerular, muitas vezes tradu-
teinograma: alfa-2 elevada, diminuição de gama zindo doença glomerular (hematúria, eritroci-
(IgA e IgG). Quanto aos factores de coagulação: túria, HTA, insuficiência renal), caracteriza-se por
AT III e plasminogénio diminuídos; e, factores I, proteinúria de peso molecular variável e grau va-
II, V,VII VIII, X, XIII aumentados. riável de proteinúria; constituem exemplos a
A creatinina sérica está geralmente normal; SHU, a GNAPE e a SN de LM (ver atrás).
pode estar aumentada em situações de hipoper-
fusão renal resultante de contracção do volume Por outro lado, a verificação de critérios de
intravascular. Os valores séricos de colesterol e diagnóstico de SN obrigará a admitir a hipótese
triglicéridos estão elevados e os de C3 e C4 nor- de o referido quadro ser secundário, reportando o
mais. Na maior parte dos casos não é requerida a leitor à alínea Etiopatogénese, onde são discrimi-
biópsia renal (BR); está indicada se houver nadas as respectivas causas.
hipertensão arterial grave, hematúria macroscópi- O diagnóstico diferencial da situação acompan-
ca, insuficiência renal mantida, C3 baixo e, nos hada de edema marcado inclui insuficiência hep-
casos corticorresistentes, depois de tentada a ciclo- ática, ICC, GNA ou crónica, e má nutrição proteica.
fosfamida (ver adiante).
Está também indicada a radiografia do tórax e Tratamento e medidas preventivas
prova de Mantoux para esclarecimento etiológico,
e antes de admitir o diagnóstico de SNI. No episódio inaugural, o doente deve ser hospi-
Nos doentes tratados com corticóides torna-se talizado para estabelecer o diagnóstico sindrómi-
fundamental vigiar a densidade e idade ósseas. co e etiológico, avaliar a resposta à terapêutica, e
(Parte IV). instruir a família acerca da cronicidade da doença
e das medidas gerais de vigilância e controlo, tais
Diagnóstico diferencial como limitação da actividade física, dieta hipos-
salina e suspensão de vacinações..
A verificação de proteinúria , devendo ser devida-
mente enquadrada nos dados da anamnese e 1. Corticóides
exame objectivo, sob o ponto de vista etiopatogé- Os corticóides são os fármacos de eleição (sem
nico obrigará fundamentalmente ao diagnóstico biópsia renal prévia) para induzir a remissão nos
diferencial com quatro situações. casos de SN não complicada entre os 1-8 anos pela
1) Proteinúria transitória que se pode observar probabilidade de se tratar de forma clínica asso-
após exercício físico, febre, desidratação, convul- ciada a padrão de LM. Nas crianças em que é
sões e terapêutica com agonistas adrenérgicos. menos provável a SN com LM (< 1 ano e > 8 anos,
Não indicativa de doença renal, é ligeira (UPr/Cr hematúria, HTA, hipocomplementémia e insufi-
< 1) e de natureza glomerular; ciência renal) deverá ser considerada a biópsia
2) Proteinúria postural (ortostática), situação renal antes do início do tratamento (ver atrás).
benigna definida por excreção normal de proteí-
nas quando em posição de decúbito, e elevada • SN supostamente associada a LM
quando há mobilização corporal e posição bípede; Após confirmação de prova tuberculínica nega-
CAPÍTULO 159 Síndroma nefrótica idiopática 767

tiva e administração de vacina pneumocócica poli- gnificativos relacionados com a corticoterapia.


valente, é iniciada administração de prednisona na A ciclofosfamida (2 mg/kg/d, per os, durante
dose única diária de 60 mg/m2 durante > 6 sema- 8 a 12 semanas) e o clorambucil (0,2 mg/kg/d, per
nas, recomendando-se 2/3 da dose de manhã e os, durante 8 semanas) têm a vantagem de mino-
1/3 ao fim da tarde (dose máxima diária, 80 mg). rar os referidos efeitos e de induzir remissões
Cerca de 80-90% dos doentes respondem à cortico- duradouras em muitos doentes.
terapia com remissão clínica (verificação durante A resposta à ciclofosfamida é melhor se tiver
3 dias consecutivos , de incremento da diurese, havido boa resposta à corticoterapia. Assim, nas
regressão total da proteinúria ou diminuição signi- situações atrás referidas, é recomendável iniciar a
ficativa da mesma - urina com “vestígios”) ao cabo ciclosfosfamida depois de induzida a remissão
de 3 semanas. É importante salientar que o incre- com a prednisona, mantida em dose mínima
mento acentuado da diurese poderá originar hipo- durante o tempo de ciclosfosfamida, o que poupa
volémia e aumentar o risco de trombose. o doente aos efeitos acessórios dos corticóides. O
Após este curso terapêutico de 6 semanas, a risco de toxicidade a longo prazo impõe que a
prednisona é diminuída para 40 mg/m2 em dias dose cumulativa total não seja ultrapassada (a
alternados, também em dose única no dia do dose cumulativa para a ciclofosfamida é 200
tratamento, durante pelo menos 4 semanas, proce- mg/kg, e para o clorambucil, 8 mg/kg).
dendo-se ulteriormente , no período de 1-2 meses, O levamisol, a ciclosporina, o tacrolimus e o
à diminuição gradual até à interrupção (redução micofenolato têm sido utilizados com bom resul-
~15 mg/m2 cada 10-15 dias). Durante a corticoter- tado em particular nas SN corticodependentes. A
apia deve administrar-se vitamina D, cálcio suple- dose de levamisol é 2,5 mg/kg em dias alterna-
mentar e dipiridamol. (ver Parte XI) dos, três dias por semana durante um ano, tam-
De facto, diversos estudos demonstraram que bém em conjunto com prednisona em dose míni-
doses mais elevadas e maior duração da terapêu- ma. A ciclosporina (3-6 mg/Kg/d em 2 doses
tica prolongada ou repetida com corticóides diárias) induz remissões de menor duração e
reduzem o risco de recaídas (de 60-80% para 30- parece ser menos eficaz se existir hipercoles-
40%), chamando-se no entanto a atenção para a terolémia grave; sendo potencialmente nefrotóxi-
vigilância dos respectivos efeitos secundários ca, é necessário proceder à monitorização dos
(atraso de crescimento estatural, obesidade, osteo- níveis de ciclosporinémia. Estes factos transfor-
porose, cataratas, alterações psicológicas, etc.). mam a ciclosporina numa droga a utilizar quando
as outras alternativas estão esgotadas. A dose de
• Recaídas de SN tacrolimus é 0,15 mg/kg/dia em 2 doses.
Nas recaídas, a indução da remissão é alcança- Nas SNI corticorresistentes a Sociedade Fran-
da com prednisona na dose de 60 mg/m2/dia – cesa de Nefrologia Pediátrica propõe administrar
dose única diária pela manhã (máximo 80 ciclosporina e prednisona em presença de LM ou
mg/dia), passando-se à administração em dias de glomerulosclerose segmentar e focal com
alternados de prednisona, que é diminuída para função renal normal. A ciclofosfamida ou o clo-
40 mg/m2 (máximo 60 mg) logo que a proteinúria rambucil podem ser tentados quando há compro-
seja negativa durante 3 dias consecutivos. O trata- misso da função renal ou falência da ciclosporina.
mento em dias alternados mantém-se mais 4 se- Outros autores, utilizam os inibidores da enzi-
manas, após o que se inicia a redução gradual até ma de conversão da angiotensina (IECA), os blo-
à interrupção, tal como foi referido a propósito da queantes da angiotensina II, rituximab, e zinco.
terapêutica inicial. Relativamente aos esquemas descritos existem
controvérsias.
2. Outros fármacos
Os doentes portadores de SN com recaídas fre- 3. Hipovolémia
quentes, corticodependente e corticorresistente, Nos casos de hipovolémia a correcção é feita com
são candidatos a outras terapêuticas alternativas, transfusões de plasma (20ml/kg) ou albumina a
particularmente se existirem efeitos acessórios si- 20% endovenosa (1g/kg, em 4 horas); é necessário
768 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

proceder à monitorização das frequências respi- graves de hiperlipidémia, para além da dieta,
ratória e cardíaca, e da pressão arterial. estão indicadas as estatinas.

4. Diuréticos Prognóstico
Os diuréticos só estão indicados em caso de
edema grave e depois da correcção da hipo- O prognóstico da SNI é, dum modo geral, bom. As
volémia; devem ser usados com precaução pelos recaídas nos casos que respondem aos corticóides
riscos de agravamento da depleção do volume (SN corticossensíveis) têm tendência a diminuir
intravascular, de tromboembolismo, de insuficiên- com o decorrer do tempo. O prognóstico é melhor
cia renal aguda e de alterações graves do balanço nos casos com resposta rápida aos corticóides em
hidro-electrolítico. que não são verificadas recaídas nos 6 meses após
o diagnóstico.
5. Regime alimentar Nos casos de terapêutica prolongada com ciclo-
Quanto ao regime alimentar, durante a corticote- fosfamida torna-se indispensável esclarecer a
rapia, deve ter-se em atenção particularmente o sal, família sobre a possibilidade de infertilidade futura.
os hidratos de carbono e os produtos lácteos. Na O prognóstico é reservado em cerca de 10%
fase aguda, a restrição de sal, já referida, está indi- dos casos (padrão histológico de glomeruloscle-
cada na prevenção e tratamento do edema grave. rose focal segmentar).

6. Imunoglobulina varicela-zoster BIBLIOGRAFIA


A varicela num doente imunodeprimido é uma Avner E D, Harman W E, Niaudet P (eds). Pediatric
doença grave. Em caso de exposição do doente com Nephrology. Philadelphia: Lippincot & Wilkins, 2004
SN a caso da varicela, está indicada a prevenção Bagga A, et al. Indian Society of Pediatric Nephrology
com aciclovir. Na mesma circunstância, nos casos Guidelines. Management of steroid resistant nephrotic syn-
de racaídas, deve administratar-se imunoglobulina drome. Indian Pediatrics 2009; 46:35-37
varicela-zoster dentro de 72 horas após exposição. Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011
Nas crianças não imunes contra a varicela (títu- Eddy AA, Symons JM. Nephrotic syndrome in childhood.
los serológicos negativos) está indicada a vacina Lancet 2003; 363: 629-639
antivaricela na fase de remissão, ou na fase de cor- Gipson DS, Massengill SF, Yao L, et al. Management of child-
ticoterapia com doses baixas em dias alternados. hood onset nephrotic syndrome. Pediatrics 2009; 124: 747 -
Numa perspectiva preventiva estão igual- 757
mente indicadas as vacinas antigripe anualmente, Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
e a vacina antipneumocócica. Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011
Lipska BS, Iatropoulos P, Maranta R, et al. Genetic screening in
Complicações adolescents with steroid-resistant nephrotic syndrome.
Kidney Int 2013 Mar 20.doi: 10.1038/ki.2013.93
A sintomatologia abdominal descrita a propósito Loeffler K, Gowrishankar M, Yiu V. Tacrolimus theraphy in
das manifestações clínicas pode, de facto, relacio- pediatric patients with treatment-resistant nephrotic syn-
nar-se com complicações: 1) peritonite (mais fre- drome. Pediatr Nephrol 2004; 19: 281-287
quentemente por Streptococcus pneumoniae, e Mao J, Zhang y, du L, et al. NPHS 1 and NPHS 2 gene muta-
menos por gram negativos; 2) isquémia da mesen- tions in chinese children with sporadic nephrotic syn-
térica e seus territórios; 3) trombose. A antibiotico- drome. Pediatr Res 2007; 61: 117-122
terapia profiláctica da peritonite é controversa. Postlethwaite RJ, Webb NJA(eds). Clinical Paediatric
A anticoagulação profiláctica não é recomen- Nephrology. New York: Oxford University Press, 2003
dada, excepto nos casos de evento tromboembóli- Prytula A, Iijima K, Kamei K, et al. Rituzimab in refractory
co prévio. nephrotic syndrome. Pediatr Nephrol 2010; 25: 461-468
No que respeita à hiperlipidémia, factor de Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
risco cardiovascular, cabe referir que o enfarte do AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
miocárdio é raro na idade pediátrica. Nas formas Medical , 2011
CAPÍTULO 160 Síndroma hemolítica urémica 769

160
semelhante à produzida por Shigella/toxina
Shiga - like.
A SHU atípica ou não associada a antecedentes
de diarreia compreende situações como: 1) indução
por drogas (tacrolimus, cisplatina, valaciclovir,
quinino, etc.; 2) doenças autoimunes (síndroma
SÍNDROMA HEMOLÍTICA antifosfolípido, LED, défice de anti ADAMTS13,
anticorpos anti-factor H, etc); 3) desregulação here-
URÉMICA ditária do complemento (défice de factores H, B, I,
etc.); 4) défice de ADAMTS13 geralmente associado
Ana Paula Serrão a púrpura trombocitopénica trombótica; 5) ano-
malias do metabolismo da vitamina B12; 6) indução
por infecções como por S. pneumoniae, VIH, S. beta
hemolítico do grupo A,etc.; 7) Miscelânea: carcino-
Definição e importância do problema ma disseminado, HTA maligna, etc..
No que respeita à infecção por S. pneumoniae
A tríade anemia hemolítica microangiopática, (geralmente pneumonia e ou meningite) admite-
insuficiência renal e trombocitopénia, caracteri- se que tal agente, produtor de neuraminidase,
za a situação clínica designada por síndroma através do antigénio chamado de Thomsen-
hemolítica urémica (SHU). Descrita pela primeira Friedenreich, origine lesão endotelial e hemólise.
vez por Gasser e colaboradores em 1955, constitui
a principal causa de insuficiência renal aguda Aspectos epidemiológicos
intrínseca na primeira infância.
Trata-se duma situação que partilha característi- A incidência anual de infecção pela VTEC varia de
cas com a púrpura trombocitopénica trombótica, a acordo com as regiões geográficas e de ano para
qual ocorre sobretudo em adultos jovens do sexo ano. Estima-se que seja de 1 a 30 casos por 100.000
feminino e é acompanhada de compromisso do SNC. habitantes nos países industrializados, sendo mais
elevada na primeira infância e nos meses de Verão.
Etiopatogénese Nos surtos de infecção por VTEC pensa-se que
5 a 15% dos doentes evoluem para SHU (13% nas
O evento primário na patogénese da SHU é uma crianças com menos de 5 anos, 6 % entre os 5 e 10
lesão celular endotelial, neste caso ao nível dos anos e 8% com mais de 10 anos) .
capilares e arteríolas do rim, conduzindo a coagu- Entre os sobreviventes pode desenvolver-se pro-
lação localizada; os referidos vasos com parede teinúria e diminuição progressiva da função renal
alterada permitem a passagem de eritrócitos para em percentagem variável que pode atingir 5-20%.
o tecido circundante, lesando-os. A SHU associada a S. pneumoniae corre-
A trombocitopénia é provocada por lesão das sponde a cerca de 5-15% de todos os casos de
plaquetas ou agregação das mesmas ao nível da SHU.
parede vascular alterada com consequente oclusão
e diminuição da taxa de filtração glomerular. Manifestações clínicas
A lesão endotelial inicial está associada a e exames complementares
diminuição de C3 por desregulação ou activação,
secundariamente àquela. A SHU atinge, sobretudo, crianças previamente
A SHU típica é precedida por gastrenterite saudáveis. Caracteriza-se, como foi referido, pelo
aguda, secundária a infecção por E. coli produtora início súbito de anemia hemolítica microangio-
de verocitotoxina, geralmente correspondendo ao pática, trombocitopénia e insuficiência renal, geral-
serótipo 0157:H7 (VTEC). De referir que outros mente após um período prodrómico de gas-
serótipos podem estar implicados como os rela- trenterite aguda com diarreia, muitas vezes san-
cionados com estirpes produtoras de toxina guinolenta. O quadro gastrintestinal pode ser grave,
770 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

com colite hemorrágica, megacólon tóxico, prolapso trinça entre SHU e trombose da veia renal (TVR).
rectal e necrose intestinal. Com efeito, ambas as situações são precedidas por
Nas formas associadas a S. pneumoniae, a síndro- doença gastrintestinal com desidratação, palidez e
ma é precedida, como foi referido, por pneumo- evidência da anemia hemolítica microangiopática,
nia, com ou sem derrame e ou meningite, pode trombocitopénia e IRA.
existir também: compromisso hepático com Os dados que apontam no sentido de TVR são:
hepatomegália e aumento dos valores das nefromegália e ausência de fluxo venoso renal
transaminases; e pancreático (em menos 10 % dos detectado por ecografia-Doppler renal.
casos), manifestado por intolerância à glicose e
pelo aparecimento de diabetes mellitus. Esta últi- Prevenção
ma pode ser transitória ou permanente.
A hematúria microscópica e a proteinúria são No estado actual dos conhecimentos a melhor
uma constante. maneira de prevenir a infecção por E. coli produto-
O valor da Hb pode atingir 5-9 g/dL; os valores ra de toxina semelhante à da Shigella (Shiga-toxina
de Hb plasmática estão aumentados e os de hapta- -like é a cozedura da carne, fervura ou pasteuriza-
globina, diminuídos. O esfregaço do sangue pe- ção de leite e lavagem correcta de frutos e vegetais,
riférico revela alterações morfológicas dos eritróci- para além da lavagem das mãos. No que respeita à
tos (fragmentação, forma de “capacete”, etc.). A con- prevenção da infecção por S. pneumoniae, acon-
tagem de reticulócitos revela valores ligeiramente selha-se a consulta dos capítulos 274 e 278.
aumentados e a prova de Coombs é negativa; veri-
fica-se em geral leucocitose (> 30.000/mm3) e trom- Tratamento
bocitopénia (20.000 – 100.000/mm3) em mais de
90% dos casos. Com a evolução da doença, os va- A instituição precoce de medidas tais como as
lores normalizam. O prolongamento do tempo de transfusões de sangue e ou plasma, a correcção
coagulação está em relação, sobretudo, com défice das alterações hidroelectrolíticas, o suprimento
de vitamina K, e não com CID. nutricional, a terapêutica anti-hipertensiva, o con-
A oligoanúria ocorre em cerca de 50 % dos trolo das complicações extra-renais (edema cere-
doentes, e 40 a 75% destes vão necessitar de tera- bral, enfarte do miocárdio, diabetes) e a diálise,
pêutica dialítica (diálise peritoneal, hemodiálise), reduziram a mortalidade de 40 % nos anos 50 a
com maior probabilidade nas formas atípicas. 60, para cerca de 8 % na actualidade.
Secundariamente à oligoanúria instala-se quadro de A transfusão de plaquetas deve ser feita apenas
sobrecarga hídrica que se manifesta por edema, nas situações associadas a diátese hemorrágica ou
hipertensão arterial e insuficiência cardíaca. A hi- perante a necessidade de intervenção cirúrgica em
pertensão arterial pode também contribuir para dis- crianças com trombocitopénia grave (por exemplo,
função do sistema nervoso central, a qual pode sur- colocação de cateter central ou de diálise peritoneal).
gir em cerca de 30% dos casos. Tal disfunção com- Actualmente diversos estudos comprovaram a
porta um prognóstico reservado e manifesta-se por eficácia de anticorpos monoclonais nas formas
irritabilidade, alterações do comportamento, ataxia, atípicas: eculizumab ou anticorpo anti-C5 e ritux-
tonturas, tremores, apatia e convulsões. A proteinúria imab ou anticorpo anti-CD20.
e diminuição da taxa de filtração glomerular (< 80 Nas situações de insuficiência renal terminal,
mL/min/1.73m2) surgem em cerca de 25% dos casos. a transplantação renal é a opção terapêutica. Po-
De salientar que a expressão clínica desta sín- derá verificar-se recorrência da SHU nos casos de
droma pode ser muito heterogénea e, por vezes, rim tansplantado (menos de 10%). Outro pro-
mesmo subtil, o que implica elevado índice de blema que poderá surgir, e com maior incidência,
suspeição. diz respeito à rejeição aguda após transplantação.

Diagnóstico diferencial BIBLIOGRAFIA


(ver Capítulo 161)
Em determinados casos poderá ser difícil a des-
CAPÍTULO 161 Trombose da veia renal 771

161
dois rins (de modo agudo) traduzindo-se por:
massa renal palpável e/ou hematúria macro ou
microscópica, em mais de 50% dos casos; e outros
sinais e sintomas associados ao aumento do volu-
me renal e à hematúria, tais como distensão abdo-
minal, choque, febre, taquipneia, oligo-anúria. A
TROMBOSE DA VEIA RENAL hipertensão arterial é pouco frequente.
O diagnóstico diferencial faz-se, essencialmente,
João M. Videira Amaral com situações acompanhadas de aumento de vo-
lume do rim e de hematúria (por exemplo, síndroma
hemolítica urémica, hematoma peri-renal, doença
renal quística, hidronefrose, tumor renal, etc.).
Etiopatogénese e importância
do problema Exames complementares

Esta situação clínica, unilateral ou bilateral (esta A história clínica e a situação de base determi-
última, menos frequente) surge sobretudo no narão a realização de determinados exames com-
lactente, podendo ter a sua génese in utero. plementares na perspectiva do diagnóstico sin-
Observa-se quando existem determinados fac- drómico e do diagnóstico etiológico.
tores predisponentes ou de risco tais como: cho- Uma vez que em mais de 50% dos casos de
que, gastrenterite com desidratação hiperosmolar, trombose da veia renal (TVR) surgem alterações
septicémia, hipóxia perinatal, diabetes materna, hematológicas, e que, por outro lado, se deve
anomalias congénitas renais, síndroma nefrótica, admitir sempre a hipótese de trombofilia, sobretu-
pielonefrite, cardiopatia congénita cianótica,etc.. do na ausência de factores de risco clássicos atrás
Pode ser classificada em: primária (se a lesão vas- mencionados, faz-se referência especial a determi-
cular renal tem como ponto de partida o próprio rim); nados achados hematológicos habitualmente pre-
e em secundária (se o processo trombótico tem origem sentes: anemia hemolítica micro-angiopática com
na veia cava inferior com extensão para o rim). fragmentação de eritrócitos; baixos níveis de fi-
Os denominadores comuns patogénicos deste brinogénio, de factor V e de plasminogénio;
problema clínico são, essencialmente, hipovolémia, aumento dos produtos de degradação da fibrina;
hemoconcentração, hiperviscosidade sanguínea e trombocitopénia; alteração de outros factores da
hiperosmolaridade. coagulação atrás mencionados.
Nos casos em que não são identificados os fac- A análise sumária de urina torna-se obri-
tores de risco mencionados, haverá que admitir a gatória por razões óbvias.
possibilidade de trombofilia (estado de hipercoa- Determinadas análises bioquímicas (creatini-
gulabilidade) relacionável, com predisposição na, azotémia) contribuem para a avaliação da dis-
hereditária para trombose por: défice de proteínas função renal, não esquecendo, em função do con-
anticoagulantes (proteínas C ou S, antitrombina III, texto clínico, a determinação do perfil lipídico
ou plasminogénio); anomalia de proteína procoa- (incluindo lipoproteína (a) – cujo valor aumenta-
gulante tornando-a resistente à proteólise pelo do está associado a maior risco de trombose e a
respectivo inibidor (factor V de Leiden); mutação hiper – homocisteinémia).
originando níveis elevados de proteína procoagu- Relativamente a exames de imagem ressaltam-
lante; anticorpos antifosfolípidos; hiper – homocis- se: ecografia renal com Doppler e renograma
teinémia originando lesão endotelial. isotópico, evidenciando ausência de fluxo na veia
renal e nefromegália. (Capítulo 159)
Manifestações clínicas
e diagnóstico diferencial Tratamento

Os sinais clínicos clássicos são: aumento de um ou O tratamento da TVR (a realizar em centros espe-
772 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

162
cializados), tal como o de outras situações trom-
bóticas, depende da situação de base.
Os fármacos habitualmente utilizados são:
– heparina por via endovenosa (dose inicial:50
Unidades/kg seguidas por 100 Unidades/kg de
4-4 horas com o objectivo de obter tempo de coa-
gulação de cerca de 20 minutos); HIPERTENSÃO ARTERIAL
– agentes fibrinolíticos (rTPA ou activador
recombinante do plasminogénio tecidual); E DOENÇA RENAL
– terapêutica de substituição (que pode consti-
tuir terapêutica de emergência no recém-nascido Margarida Abranches
em situações de défices hereditários comprovados
(com plasma, concentrados de antitrombina – III,
concentrados de proteína C, etc.).
Em casos especiais de comprovada predis- Importância do problema
posição hereditária para trombose é empregue a
varfarina (anticoagulação de longa duração). No adulto, a hipertensão arterial (HTA), constitui
um dos principais factores de risco cardiovascular,
BIBLIOGRAFIA (capítulos 160-161) cerebrovascular e renal. A HTA detectada em
Bonnardeaux A, Pichette V. Complement dysregulation in idade pediátrica também não é benigna, sabendo-
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Dakes RS, Siegler RL, McReynolds MA, et al. Predictors of fa- adulto têm a sua génese na idade pediátrica (ver
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mediated renal diseases. Curr Opin Pediatr 2013; 25: 225- ambulatória da pressão arterial
231
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA O ritmo circadiano é um ciclo intrínseco de 24
(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill horas que diz respeito a numerosas funções
Medical , 2011 biológicas. O tono vascular, as resistências vascu-
Spinale JM, Ruebner RL, Kaplan BS, et al. Update on lares periféricas, a frequência cardíaca e a PA
Streptococcus pneumoniae associated hemolytic uremic aumentam nas primeiras horas da manhã nos
syndrome. Curr Opin Pediatr 2013; 25: 203-208 indivíduos normotensos e nos hipertensos. Este
aumento corresponde a um aumento da activi-
dade da renina plasmática, com diminuição da
secreção das catecolaminas. A PA atinge um
“pico” cerca das 9 horas da manhã e cai para um
valor mínimo cerca das 3 horas da manhã. Na
altura do despertar ocorre um aumento significa-
tivo da “resposta PA” devido à activação do sis-
tema neuroendócrino e dos seus receptores.
Embora os factores ambientais, principalmente
os ciclos dia-noite, tenham uma influência na va-
CAPÍTULO 162 Hipertensão arterial e doença renal 773

riação circadiana da PA, alguns aspectos parecem izado numa população pediátrica utilizando
ser determinados geneticamente. monitorização de PA ambulatória (mmHg).

Definição Classificação e aspectos


epidemiológicos
A monitorização ambulatória da pressão arterial
(MAPA) é um método importante para identificar A maioria dos casos de HTA no adulto é de etiolo-
as alterações que a PA sofre durante as 24 horas e gia desconhecida e denominada hipertensão
conhecer a relação com a actividade física, perío- primária ou essencial. É provável que o maior co-
dos de estresse e o sono. Por outro lado, a referida nhecimento do genoma humano e a identificação
monitorização ambulatória da PA é essencial para de novas formas genéticas de HTA conduzam a
demonstrar a subida rápida de PA ao despertar, a um número cada vez menor de casos de HTA pri-
qual está associada a risco acrescido de acidentes mária. Na criança, a HTA primária é rara, mas em
cardiovasculares. É também útil para a avaliação séries recentes a sua prevalência parece estar a
da eficácia terapêutica. aumentar principalmente quando associada à
O Quadro 1 discrimina os critérios de definição obesidade infantil. (Capítulo 57)
da hipertensão arterial ligeira e grave em relação Na criança a HTA secundária é mais frequente,
com idade, sexo e percentis de altura, baseados no e em geral, associada a idades mais jovens e a
maior estudo epidemiológico multicêntrico real- maior gravidade.
A prevalência da HTA na criança é cerca de 1-
QUADRO 1 – Critérios de definição da HTA 3%. A forma grave é inferior e ronda 0,1%. Em
ligeira e grave em relação com cerca de dois terços dos casos é secundária a uma
idade, sexo e percentis de altura causa renal ou está associada a insuficiência
renal (HTA não tratada de causa renal conse-
Percentil de PA e Altura quente a lesão vascular renal).
HTA Ligeira HTA Grave A HTA grave, quando não tratada, comporta
PA 95% PA 95% PA>95% um risco elevado de morbilidade e mortalidade.
Idade Altura 5% Altura 95% Qualquer Na maior parte dos casos é secundária a uma
Altura causa subjacente e potencialmente tratável.
Sexo masculino O Quadro 2 discrimina as principais etiologias
Recém-nascido 90/… 90/… >106/… de HTA em idade pediátrica.
1-12 meses 98/55 106/59 >115/75
1-3 anos 104/63 113/67 >118/82 Etiopatogénese da HTA de causa renal
4-6 anos 109/72 117/76 >124/84
7-10 anos 114/77 123/82 >130/86 A estenose da artéria renal origina HTA através da
11-13 anos 121/79 130/84 >134/86 estimulação do sistema renina-angiotensina-aldos-
14-17 anos 132/85 140/89 >144/92 terona.
>18 anos sem valores 140/90 >160/100 A renina é uma enzima proteolítica segregada
Sexo feminino pelas células justaglomerulares, a qual converte o
Recém-nascido 88/… 88/… >106/… angiotensinogénio em angiotensina I.
1-12 meses 101/57 107/60 >115/75 A secreção de renina é influenciada pela pressão
1-3 anos 104/65 110/68 >118/82 de perfusão arteriolar aferente, natrémia, natriúria
4-6 anos 108/71 114/75 >124/84 tubular, activação do sistema nervoso simpático e
7-10 anos 116/77 122/80 130/86 outros factores tais como prostaglandinas, suprimen-
11-13 anos 121/80 128/84 134/90
to de potássio, e péptidos natriuréticos auriculares.
14-17 anos 126/83 132/86 144/92
A angiotensina I, com escassa actividade fisio-
>18 anos sem valores >140/90 >160/100
lógica, é rapidamente convertida em angiotensina
(Valores em mmHg) II pela ECA. Esta enzima é também responsável
Adaptado de Brewer ED, 2004
pela degradação das cininas vasodilatadoras.
774 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 2 – Principais etiologias de HTA HTA primária e o risco aumenta três vezes se
relacionadas com a idade existir obesidade.
• Sinais clínicos. Os sinais clínicos associados
Idade Etiologia à HTA incluem sucintamente: vómitos, pro-
Recém-nascido Trombose da artéria renal teinúria, cefaleias, retinopatia e convulsões.
(cateterismo umbilical) Nos lactentes são típicos o hipocrescimento e
Trombose da veia renal a insuficiência cardíaca. O feocromocitoma
Malformação congénita renal pode originar palpitações paroxísticas e
Coarctação da aorta sudação exagerada.
Estenose da artéria renal • Gravidade da HTA. Existem guias de orien-
Displasia broncopulmonar tação por idade, sexo e altura, que auxiliam a
1 mês – 6 anos Doença parenquimatosa renal estabelecer a gravidade da HTA (Quadro 1).
Estenose da artéria renal Quando a HTA é ligeira ou moderada pode
Coarctação da aorta prosseguir-se a investigação diagnóstica
Fármacos (corticóides, albuterol, antes de iniciar terapêutica. Se a HTA é gra-
pseudoefredina) ve, pode ser emergente iniciar a terapêutica
Causas endócrinas anti-hipertensiva e reduzir os níveis de PA
6-10 anos Doença parenquimatosa renal antes de começar a investigação diagnóstica.
Estenose da artéria renal Convém não esquecer que alguns procedi-
HTA essencial mentos diagnósticos podem ser alterados
Causas endócrinas pelos fármacos, nomeadamente os níveis
Adolescência HTA essencial de renina plasmática, sendo conveniente
HTA da “bata branca” (estresse realizar uma colheita de sangue antes do iní-
do impacte com o médico)
cio da terapêutica. Na HTA grave é essencial
Doença parenquimatosa renal
pesquisar lesões de órgãos alvo que podem
Toxicodependência (cocaína, anfe-
já estar presentes na altura da apresentação
taminas, metanfetaminas, fencicli-
(por exemplo retinopatia).
na, metilfenidato, cafeínas)
• Hipertensão arterial ocasional, transitória
Causas endócrinas
ou mantida. Na HTA ocasional, devem ser
Adaptado de Brewer ED, 2004 excluídas causas reactivas de HTA: ansiedade,
dor, choro, agitação. São causas de HTA tran-
sitória, situações em que existe uma elevação
temporária da PA que raramente evolui para
Por sua vez, a angiotensina II é um potente HTA permanente. A situação clínica mais fre-
vasoconstritor que leva à retenção de água e sal. quente é a glomerulonefrite aguda, mas tam-
No caso das endocrinopatias (da tiroideia, bém pode ocorrer nos casos de síndroma de
paratiroideia e suprarrenal) a HTA relaciona-se Guillain-Barré, hipercalcémia, administração
essencialmente com secreção aumentada de mine- de corticóides, de pseudoefedrina, de fenile-
ralocorticóides. frina, e após a administração de sangue, plas-
ma, albumina ou soluções salinas. Na ado-
Avaliação da criança com HTA lescência é importante inquirir sobre a utiliza-
ção de drogas ilícitas, bebidas com cafeína ou
Na criança, a avaliação da HTA deve incidir nos guaraná. A HTA mantida ou permanente está
seguintes parâmetros: geralmente associada a uma causa renal ou
• Idade. As principais etiologias da HTA va- renovascular e, na apresentação, pode haver
riam consoante o grupo etário (Quadro 2). sinais de lesão de órgãos alvo: cardiomegália,
Existe uma maior probabilidade de a HTA retinopatia e encefalopatia.
ser secundária e permanente nas crianças • Doença renal ou renovascular. As doenças
mais jovens. Nos adolescentes predomina a parenquimatosas renais e renovasculares
CAPÍTULO 162 Hipertensão arterial e doença renal 775

prevalecem na etiologia da HTA em qual- adolescentes com valores de PA entre o percentil 90 e


quer grupo etário pediátrico. A HTA secun- 95 e nos que têm HTA documentada.
dária a uma causa renal reveste-se de maior
gravidade na apresentação clínica e pode Tratamento farmacológico
surgir em idades mais jovens.
Nas crianças e adolescentes com HTA secundária
O primeiro passo na avaliação de uma criança ou com lesão de órgãos alvo é geralmente neces-
hipertensa é a confirmação do diagnóstico. A sário utilizar medicações anti-hipertensivas. Estas
metodologia recomendada para a avaliação da HTA terapêuticas são também muitas vezes úteis quan-
em clínica pediátrica não faz parte do âmbito deste do não existe vontade de alterar hábitos de vida.
livro, mas é útil realçar algumas questões. O anti-hipertensor ideal não existe. Uma vez que
O diagnóstico de HTA assenta num valor arbi- pode haver necessidade de utilizar anti-hiper-
trário absoluto determinado a partir de uma tabela tensores ao longo de vários anos, a melhor tera-
de valores normais de PA. É essencial a compreen- pêutica é a que se administra de preferência, uma
são de que se trata de um “valor absoluto”. Tendo vez ao dia, e com o mínimo de efeitos acessórios e
em conta a variabilidade da PA (ritmo circadiano, de interferência com a vida quotidiana.
emoções, grau de actividade, variações fisiológicas A terapêutica farmacológica da HTA na crian-
com a idade, etc.), é difícil admitir o diagnóstico de ça está limitada pela ausência de ensaios clínicos
HTA baseado, apenas, em valores absolutos. É im- controlados que assegurem a segurança e eficácia
portante conhecer as condições em que foi realiza- das prescrições, e também pela falta de infor-
do o diagnóstico, eliminar o mais possível even- mações farmacocinéticas adequadas às idades
tuais factores de erro (ansiedade, realizar pelo pediátricas. A maioria dos regimes terapêuticos
menos três determinações independentes, braça- conhecidos é extrapolada do adulto. As opções
deira adequada) e registar o método utilizado farmacológicas na terapêutica anti-hipertensiva
(esfigmomanómetro de mercúrio, oscilometria, são variadas. No Quadro 3 são discriminados os
“Dinamap®”). É recomendável que o mesmo agentes terapêuticos considerados de primeira
método seja utilizado no seguimento e na ava- linha no controlo da HTA pediátrica.
liação da resposta à terapêutica. Assim se com-
preende a importância da interpretação dos valo- Inibidores da enzima de conversão
res tensionais em termos relativos. (Capítulo 46) da angiotensina (IECA)
Os inibidores da enzima de conversão da angio-
Tratamento não farmacológico tensina (IECA) são muito utilizados em pediatria
no controlo da HTA primária e secundária. Os
Reitera-se que a pressão arterial é influenciada por mesmos impedem a conversão da angiotensina I
múltiplos factores: geográficos, ambientais, emo- em angiotensina II (AII), reduzindo os efeitos
cionais, endógenos (ritmos circadianos), fisiológicos vasoconstritores da AII e a libertação de aldos-
(idade, sexo, estatura, massa corporal), grau de acti- terona. Indirectamente, os IECA também dimi-
vidade, etc.. O reconhecimento da influência destes nuem a PA através da acção da vasopressina, fac-
factores nos valores da PA justifica intervenções não- tor natriurético auricular, prostaglandinas e a acti-
farmacológicas, principalmente nas situações que vação do SNS; inibem, ainda, a cinase II que pode
cursam com HTA ligeira a moderada. Modificações reduzir a PA ao aumentar os níveis circulantes das
de regimes alimentares com restrição de sal, suple- bradicininas, que são agentes vasodilatadores.
mentos minerais (potássio, cálcio, magnésio), exercí- O captopril e o enalapril são utilizados com
cio físico, alteração de estilos de vida (álcool, tabaco, segurança e eficácia nas idades pediátricas. O ca-
estresse), são atitudes não dispendiosas e constituem ptopril tem uma vida média curta e os comprimi-
hábitos de vida saudável. Além de contribuirem para dos podem ser reduzidos a pó, o que facilita a sua
reduzir os valores de PA, podem evitar o recurso a utilização nos recém-nascidos e lactentes. Nas
uma terapêutica anti-hipertensiva. É recomendável crianças mais velhas deve preferir-se o enalapril. A
uma intervenção não-farmacológica nas crianças e utilização endovenosa do enalaprilat está também
776 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 3 – Principais fármacos anti-hipertensores utilizados em clínica pediátrica

Fármaco RN/Criança Adulto


Captopril 1-6 mg/kg/dia 12.5-450 mg/dia
Enalapril 0.1-0.5 mg/kg/d 2.5-40 mg/dia
Enalaprilat 5-10 μg/kg/dose IV 1.25 mg IV 6-6h
Amlodipina 0.1-0.6mg/kg/dia 2.5-20 mg/dia
Nicardipina (IV) 0.5-5.0 μg/kg/min 5-15 mg/h
Nifedipina AP 0.25-3.0 mg/kg/dia 30-120 mg/dia
Atenolol 1-3 mg/kg/dia 25-100 mg/dia
Labetalol 1-40 mg/kg/dia 200-2400 mg/dia
Propranolol 0.5-8.0 mg/dia 80-480 mg/dia
Furosemido 0.5-4.0 mg/kg/dia Dose idêntica
Hidroclorotiazida 1-3 mg/kg/dia 25-200 mg/dia

Adaptado de Vogt BA, Davis ID. Treatment of hypertension. In: Avner ED, Harmon WE, Niaudet P, eds. Pediatric Nephrology. Philadelphia: Williams & Wilkins, 2004: 1199-1220

aprovada na idade pediátrica. Deve ser utilizado receptores da AII é recente. Actuam por bloqueio
com cuidado porque está associado a hipotensão da ligação da AII ao subtipo AT-1 dos receptores
prolongada e insuficiência renal aguda oligúrica, da AII nos vasos sanguíneos e noutros tecidos.
principalmente no recém-nascido. Em relação aos Este bloqueio reduz a PA por inibição dos efeitos
novos IECA existentes no mercado (benazepril, vasoconstritores da AII e da libertação da aldos-
lisinopril, ramipril, entre outros) e às formulações terona. Losartan foi o primeiro antagonista dos
combinadas com diuréticos e bloqueantes dos receptores da AII aprovado para utilização no
canais de cálcio, estão em curso estudos farma- adulto e começa agora a ser utilizado na popu-
cocinéticos e farmacodinâmicos e perspectivam-se lação pediátrica. Estão em curso estudos farma-
futuras recomendações para a idade pediátrica. cocinéticos e farmacodinâmicos para determinar
A utilização dos IECA está contra-indicada na posologias pediátricas.
gravidez pelo risco de oligo-hidrâmnio, hipotensão
fetal grave, insuficiência renal neonatal reversível e Bloqueantes dos canais de cálcio (BCC)
irreversível, e morte neonatal. Os IECA também Os bloqueantes dos canais de cálcio são agentes
estão contra-indicados na estenose da artéria renal anti-hipertensivos muito utilizados em pediatria.
bilateral, na estenose da artéria renal em rim único São vasodilatadores directos que inibem a con-
e na insuficiência renal aguda. Devem ser utiliza- tracção do músculo liso das paredes vasculares
dos com cuidado na insuficiência renal crónica, interferindo com o influxo de cálcio celular. A
pela dificuldade em monitorizar o potássio. eficácia terapêutica e o perfil de efeitos secundá-
Os IECA são agentes terapêuticos de eleição na rios dos diversos BCC são determinados pela
HTA crónica pelas suas propriedades protectoras afinidade relativa para certos tecidos musculares
renais e cardíacas. As propriedades de protecção (parede vascular, miocárdio). Há três classes de
renal devem-se à redução da AII que está implica- BCCs: as di-hidropiridinas (amlodipina, nifedi-
da na progressão da doença crónica renal. Por pina e nicardipina), as fenilalquilaminas (vera-
outro lado, nos adultos com doença cardiovascu- pamil) e as benzotialzepinas (diltiazem). Pela
lar, reduzem de modo significativo a morbilidade selectividade para o músculo liso arteriolar, as di-
e mortalidade cardiovascular. Pelos efeitos benéfi- hidropirinas são as mais utilizadas em pediatria.
cos referidos, são agentes terapêuticos anti- Uma das maiores vantagens dos BCC é a
hipertensivos de primeira linha. disponibilidade de preparações com duração pro-
longada que permite a administração uma ou duas
Antagonistas dos receptores da angiotensina II vezes ao dia. Os comprimidos de amlodipina
A utilização pediátrica dos antagonistas dos podem ser reduzidos a pó, o que facilita a admi-
CAPÍTULO 162 Hipertensão arterial e doença renal 777

nistração a crianças pequenas. A nicardipina é o risco de nefrocalcinose nos diuréticos de ansa; no


único BCC disponível para administração endove- perfil lipídico adverso e no risco de hiperglicémia
nosa. nas tiazidas. No entanto, são úteis nos estados
Os BCC constituem uma alternativa ao nitro- hipervolémicos.
prussiato e ao labetalol em cuidados intensivos no
tratamento da emergência hipertensiva. A utiliza- No processo de selecção de um agente anti-hi-
ção de BCC de acção rápida (nifedipina) no adulto pertensivo o clínico deverá, pois, comparar:
está associada a sequelas cardiovasculares e neu- • Os efeitos fisiológicos de cada fármaco no
rológicas (enfarte de miocárdio, acidente vascular sistema hemodinâmico e nas funções cardía-
cerebral e síncope), devendo ser evitada. Os mes- ca e renal.
mos parecem ter propriedades protectoras renais • Os principais efeitos secundários (Quadro 4).
melhorando o fluxo sanguíneo renal e a taxa de fil- • As contra-indicações relativas à sua utiliza-
tração. ção.
• O valor económico.
Antagonistas β-adrenérgicos Conjugando com atenção estes factores é pos-
Os antagonistas beta-adrenérgicos (beta-bloquean- sível avaliar com maior segurança e eficácia o
tes) constituiram durante muito tempo a primeira e risco/benefício de uma determinada terapêutica
mais utilizada opção terapêutica anti-hipertensiva. anti-hipertensiva.
Não existem estudos comparativos entre os antago-
nistas β-adrenérgicos e os diuréticos, BCC e IECA BIBLIOGRAFIA
como terapêutica de primeira linha. Assim, os anta- Avner ED, Harmon WE, Niaudet P (eds). Pediatric
gonistas β-adrenérgicos são actualmente opções te- Nephrology. Philadelphia: Williams & Wilkins, 2004
rapêuticas de segunda ou terceira ordem. Brierley J, Marks SD. Treating the causes of paediatric hyper-
tension using non-invasive physiological parameters. Med
Diuréticos Hypotheses 2010; 75:439-441
Os diuréticos continuam a ser importantes como Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon,2011
terapêutica coadjuvante dos BCC e IECA. Embora Chesney RW, Jones DP. Is there a role for β-adrenergic blockers
sejam eficazes, bem tolerados e baratos, foram in treating hypertension in children? J Pediatr 2007; 150:
substituídos como agentes de primeira linha na 121-122
HTA pediátrica. As principais razões residem: na Khan IA, Gajaria M, Stephens D, et al. Ambulatory blood pres-
necessidade de monitorizar o potássio, magnésio sure monitoring in children: a large center experience.
e ácido úrico nas tiazidas e diuréticos de ansa; no Pediatr Nephrol 2000; 14: 802-805

QUADRO 4 – Principais efeitos acessórios dos fármacos anti-hipertensores

Diuréticos Antagonistas β-adrenérgicos IECA BCC


Hipocaliémia Bradicárdia Insuficiência renal Edema periférico
Depleção de volume Síncope Hipercaliémia Tonturas
Hipotensão Pertubações visuais Neutropénia Cefaleias
Hipomagnesiémia Perturbações do sono Exantema Fraqueza muscular
Hipercalcémia Fraqueza Tosse seca Hipotensão transitória
Intolerância à glucose Fadiga Broncospasmo Obstipação
Hiperlipidémia* Depressão Angioedema Hiperplasia gengival
Hiperuricémia Broncospasmo Fetopatia Taquicárdia/bradicárdia
Irritação gástrica Hiperlipidémia Não usar na estenose
da artéria renal bilateral

IECA, inibidor da enzima de conversão da angiotensina; BCC, bloqueante dos canais de cálcio.
*Apenas com as tiazidas.
Adaptado de Avner ED, et al, 2004
778 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

163
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1049-1056 A homeostase do organismo é mantida através
Webb N, Postlethwaite R (eds). Clinical Pediatric Nephrology. da reabsorção (passagem no sentido do lume
Oxford: Oxford University Press, 2003 tubular → célula tubular → sangue) e da secreção
(passagem no sentido do sangue → célula tubular
→ lume) tubulares de água e sais. A disfunção
tubular, congénita ou adquirida, pode originar
profundas alterações hidroelectrolíticas.
O túbulo proximal é responsável pela maioria
da reabsorção de água e solutos incluindo sódio,
potássio, bicarbonato, fosfato, aminoácidos e pro-
teínas de baixo peso molecular (designadamente
alfa-1 microglobulina e beta-2 microglobulina)-
consultar Anexos.
O túbulo distal é responsável pela composição
final da urina, regulando a reabsorção de sódio e
potássio, e excreção de hidrogenião.
Os principais mecanismos hormonais com
influência no balanço do sódio incluem o “eixo” reni-
na – angiotensina – aldosterona, o factor natriurético
auricular, e a nor-epinefrina. A angiotensina II e a
aldosterona aumentam a reabsorção de sódio nos
túbulos proximal e distal, respectivamente. A nor-
epinefrina, libertada como resposta à depleção de vo-
lume, não actua directamente sobre os mecanismos
de transporte tubular, embora influencie o balanço de
sódio através da diminuição do débito sanguíneo
renal com consequentes diminuição da carga de
sódio filtrada e estimulação da libertação de renina.
CAPÍTULO 163 Alterações tubulares renais 779

Havendo depleção de volume muito acentua- vo com especial atenção para a somatometria, pres-
da, verifica-se igualmente libertação da HAD. são arterial e presença de sinais de raquitismo; e à
Recorda-se que a excreção de sódio é promovi- realização de exames laboratoriais (ureia, creatini-
da pelo factor natriurético auricular e pela na, ionograma, glicose, cálcio, fósforo e magnésio
supressão da renina. (Capítulo 48) em amostra de sangue e de urina, e gasometria capi-
A acidose tubular renal (ATR) é uma situação lar), e imagiológicos (ecografia renal e vesical e,
clínica caracterizada por acidose metabólica com pelo menos, radiografia do punhos).
anião gap/hiato iónico normal*, resultante, quer de Deve, pois, suspeitar-se de defeito tubular renal
alteração da reabsorção do bicarbonato, quer da perante:
falência da excreção do hidrogenião. Fundamen- • Má progressão ponderal – associada ou não
talmente o compromisso da acidificação da urina a anorexia, irritabilidade, mau humor, dor
resulta de disfunção de uma ou mais proteínas ou abdominal, hipotonia ou outras alterações
transportadores envolvidos em tal processo (H+ neurológicas;
ATP-ase), troca de aniões HCO3-/Cl-, ou compo- • Poliúria/polidipsia – é importante avaliar a
nentes da via da aldosterona. Existem formas idade de início do problema, não esquecen-
hereditárias e adquiridas, primárias e secun- do detalhes da gestação como polidrâmnio;
dárias. As 3 formas principais são a ATR tipo I • Microalbuminúria definida como taxa de
(distal), tipo II (proximal), e hipercaliémica (tipo excreção urinária de albumina da ordem de
IV). Existem formas mistas (I+II) designadas por 20-200 mcg/minuto ou 30-300 mg/24 horas;
tipo III por alguns autores (deficiência hereditária • Episódios frequentes ou de difícil controlo –
da anidrase carbónica). Os referidos tipos de ATR de vómitos, desidratação, febre ou convul-
(formas hereditárias) têm na sua base outras tan- sões;
tas mutações em diferentes genes: I- SLC12A1; II- • Raquitismo resistente às doses habituais de
ROMK1; III- CLCNKB; IV- CLCNKA. vitamina D;
Neste capítulo procede-se a uma abordagem • Acidose ou alcalose metabólicas – na ausên-
sucinta de algumas formas clínicas mais represen- cia de insuficiência renal;
tativas de disfunção tubular renal com etiopatogé- • Nefrocalcinose (detectada por ecografia renal).
nese diversa. O fluxograma que integra a Figura 1 resume os
passos fundamentais a seguir perante suspeita de
Manifestações clínicas e diagnóstico disfunção tubular ditada por situação de défice
estaturo-ponderal acompanhado de anorexia,
Na sua maioria, os defeitos da função tubular vómitos, poliúria e polidipsia em que se detecta
apresentam-se nos primeiros anos de vida, fre- inicialmente, ou alcalose metabólica, ou acidose
quentemente através de sinais e sintomas inespe- metabólica.
cíficos como anorexia, vómitos e hipocrescimento.
A poliúria e polidpsia são importantes indica- Formas clínicas e actuação
dores de disfunção tubular, mas, na prática, não
são habitualmente valorizadas pelos pais; a Os Quadros 1 e 2 abordam de modo conciso os
evidência de tal disfunção decorre, pois, da obser- aspectos gerais (clínicos, laboratoriais e terapêuti-
vação cuidadosa do balanço hídrico. Apesar disso, cos) da acidose tubular renal (tipos I, II , I+II, e IV)
frequentemente as crianças que “bebem muito” e da síndroma de Bartter, incluindo sua variante
não têm qualquer disfunção tubular, mas simples- síndroma de Gitelman.
mente criaram o hábito de elevada ingestão de Nas alíneas seguintes 1., 2. e 3. faz-se uma referência
líquidos (por ex. sumos, coca-cola, etc.). especial respectivamente à síndroma de Fanconi, aos
Perante suspeita de tubulopatia, após anamnese chamados raquitismos de causa renal (primários), à dia-
cuidadosa, é necessário proceder: a exame objecti- betes insípida nefrogénica e à nefrite tubulointersticial.

* Situação de acidose metabólica, sem elevação de ácido láctico, com


glicémia normal e pH urinário alcalino leva a admitir que se esteja em
1. Síndroma de Fanconi
presença de ATR (I ou II). A ATR proximal (tipo II) é uma componente da
780 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

DÉFICE ESTATURO PONDERAL

VÓMITOS / ANOREXIA
POLIÚRIA / POLIDIPSIA

pH capilar
HCO3 capilar

ALCALOSE METABÓLICA ACIDOSE METABÓLICA *

Hipocaliémia
Hipoclorémia
Hipo / Normo natrémia

após correcção da acidose com NaHCO3: 3 mEq/kg – oral


SÍNDROMA DE BARTTER

FEHCO3 > 15%


FEHCO3 < 5%
Cloro urinário Acidose tubular
Acidose tubular
Proximal
Distal
pH urina > 5,5
↓ N ↑↑
• Perda extra renal • Diuréticos
ou • Síndroma de Bartter
suprimento pH urina < 5,5 pH urina > 5,5
diminuído (secreção H+ Normal) (secreção H+ Diminuída)
Hipocaliémia

Raquitismo
Síndroma de Fanconi Hipocaliémia
Hipercaliémia
Normocaliémia
Nefronoptise
(se creatinina ↑ e alterações ecográficas)

(FE = fracção excretada)


(N = normal); ↑ = aumentado; ↓ = diminuído
* 1) Acidose metabólica com hiato iónico aumentado, e cloro normal, pode indicar acumulação de produtos
Síndroma de Gitelman (variante BARTTER) ácidos com acção tóxica (ácidos orgânicos, seus metabolitos), lactato ou ainda corpos cetónicos.
(se Mg++ sérico ↓) 2) Na+ + K+ > Cl– ◊ excreção de NH4 diminuída.

FIG. 1
Fluxograma exemplificando os passos essenciais da marcha diagnóstica em caso de suspeita clínica de disfunção tubular.

síndroma de Fanconi, situação em que se verifica Para além das formas consideradas idiopáti-
também perda de urinária excessiva de aminoáci- cas, e esporádicas ou transitórias, descrevem-se
dos, proteínas de baixo peso molecular, glucose, as hereditárias (sendo as mais comuns: doença de
fosfatos, bicarbonato, sódio, cálcio, potássio e Wilson, intolerância à frutose, tirosinémia, galac-
uratos. Como seus sinais cardinais citam-se: tosémia, cistinose, glicogenoses, doença de Dent /
poliúria e polidipsia, desidratação, acidose me- nefrolitíase ligada ao X, síndroma de Lowe ou dis-
tabólica hiperclorémica, raquitismo, osteoporose e trofia óculo – cerebral – renal) e as secundárias
hipocrescimento. (em relação com drogas e toxinas, intoxicação com
CAPÍTULO 163 Alterações tubulares renais 781

QUADRO 1 – Acidose Tubular Renal (ATR) tipos I, II, III e IV – Súmula

• A mais frequente alteração tubular.


• Geralmente do Tipo I (distal) e menos habitualmente do Tipo II (proximal) O Tipo III corresponde a associação de I+II
• Ambos os tipos podem ser primários ou secundários.
• A ATR I é geralmente um defeito isolado (por vezes secundária a infecção urinária superior, obstrução urinária, intoxi-
cação por vitamina D, etc.).
• A ATR II em geral pode ser secundária a cistinose, nefronoptise, e metabolopatias.
• Tipicamente há atraso de crescimento, poliúria e polidipsia de início ≥ aos 4 meses de idade (ATR I mais precoce que a
ATR II).
• A hipercalciúria, a hipocitratúria e a nefrocalcinose estão frequentemente associadas a acidose distal.
• A ATR IV (hipercaliémica) resulta de hipoaldosteronismo/défice de secreção de aldosterona, ou de resposta alterada à
aldosterona, sendo que a aldosterona tem efeito directo sobre a H+/ATPase, responsável pela secreção de hidrogénio,
do que resultará acidose.
• Terapêutica alcalinizante :
- Bicarbonato de sódio a 8,4%/ 24 horas: 3-10 mEq/kg(na ATR I); 5-20 mEq/kg (na ATR II); e 2-4 mEq/kg (na ATR IV);
ou citrato de sódio e de potássio a 10% – geralmente mais tolerado e de grande utilidade para evitar a nefrocalcinose.
• A resposta terapêutica é geralmente boa (principalmente na ATR I), com normalização da acidose, correcção da ca-
liémia, calciúria e citratúria, originando aceleração da velocidade de crescimento, prevenção da doença óssea e pre-
venção da nefrocalcinose.

Notas importantes 1) Bicarbonato de sódio a 8,4% (Molar): 1 ml ◊ 1 mEq de bicarbonato + 1 mEq de sódio; 2) citrato de sódio e potássio a 10% – este sal é metabolizado pelo organismo fornecen-
do, por cada 1 mL: 2 mEq de bicarbonato + 1 mEq de sódio + 1 mEq de potássio

QUADRO 2 – Síndromas de Bartter e Gitelman – Súmula

• Situações autossómicas recessivas em que se verifica alteração na absorção do cloro no ramo ascendente da ansa de
Henle; geralmente manifestam-se na 1ª infância por atraso de crescimento, poliúria e polidipsia.
• Na forma neonatal, mais rara e mais grave, há polidrâmnio, prematuridade e nefrocalcinose patente ao nascer; difícil
balanço hidroelectrólítico.
• Na forma típica a síndroma de Bartter apresenta: alcalose metabólica hipoclorémica com hipocaliémia, hiponatrémia e
elevada excreção urinária de cloro.
• Há hiperreninémia (hiperplasia do aparelho justa glomerular) sem hipertensão arterial, e com hiperaldosteronismo.
• O magnésio plasmático é normal; na síndroma de Gitelman (variante Bartter) encontra-se diminuído.
• O cálcio urinário é geralmente elevado; na síndroma de Gitelman está diminuído.
• O tratamento consiste na administração de indometacina ( 1 – 4 mg/kg/d) para promover a reabsorção de sódio e
potássio pelo túbulo proximal.
• Por vezes é necessária a suplementação com cloro, potássio, sódio e magnésio .

metais pesados, doenças hematológicas, autoi- meadamente nos punhos). Verifica-se diminuição
munes, hiperparatiroidismo, etc.). de consistência dos ossos com consequentes de-
formações.
2. Raquitismos de causa renal Tal como foi referido no (Capítulo 59), e recor-
As síndromas de raquitismo caracterizam-se por dando o metabolismo da vitamina D, o metabólito
falência do ritmo normal de mineralização óssea hidroxilado em posição 25 no fígado (25-OH-cole-
devida a inadequadas concentrações de iões cálcio calciferol ou calcidiol) é submetido a nova hidro-
e de fosfato mono-hidrogeniónico com conse- xilação no rim em posição 1 por acção da enzima 1-
quente acumulação de osteóide não mineralizado, alfa hidroxilase, do que resulta o metabolito activo
mais notório nas metáfises dos ossos longos (no- 1,25 - OH - colecalciferol ou calcitriol.
782 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Assim, a patologia renal intrínseca ou primária


pode interferir, quer na formação do metabólito acti-
vo (1,25-OH-colecalciferol), quer na resposta das
suas células alvo (representadas essencialmente
pelas células tubulares) ao referido metabólito acti-
vo, quer ainda no sistema de transporte dos fosfatos.
Os aspectos clínicos dos referidos raquitismos
dependem da causa subjacente e variam com o
grau de alteração fisiopatológica e idade de início.
Surge habitualmente durante a infância, tradu-
zindo-se por deformações dos membros inferi-
ores, genu varum/valgum, se início após aquisi-
ção da marcha, e/ou dos membros superiores se
início enquanto a criança gatinha.
São também notórios atraso de crescimento,
outras alterações como bossa frontal, tumefacção e
alargamento das metáfises dos punhos, joelhos e
tornozelos, e rosário costal, com as corresponden-
FIG. 2
tes alterações radiográficas.
A Figura 2 mostra a deformação dos membros Genu valgum e recurvatrum acentuados no contexto
inferiores numa criança com raquitismo hipofos- de criança com raquitismo hipofosfatémico. (NIHDE)
fatémico.
Os Quadros 3 e 4 esquematizam aspectos es- distal: incapacidade de concentração da urina,
senciais da etiopatogénese, clínica, resultados mesmo em presença de HAD, também chamada
laboratoriais e terapêutica. arginina-vasopressina (AVP).
Na forma clínica mais frequente existe trans-
3. Diabetes insípida nefrogénica missão hereditária ligada ao X. Estão também des-
A diabetes insípida nefrogénica é uma situação critas formas AD e AR em que o sexo masculino e
rara relacionada com alteração ao nível do túbulo feminino estão igualmente afectados.

QUADRO 3 – Raquitismos de causa renal: resumo da etiopatogénese e da terapêutica

Tipo Etiopatogénese Tarapêutica


Raquitismos – Dominante ligado ao X – Défice do sistema de transporte de – 1,25-OH vit. D3: 1–3 µg/d
hipofosfatémicos – Dominante autossómico fosfatos (mutação no gene PHEX) (60-70 ng/kg/d) (vigi-
hereditários – Autossómico recessivo – Alteração do metabolismo da vita- lância da calciúria)
(Mutações no gene CYP2B1) mina D – Fósforo: 1-4 g/d
– Alterações primárias dos osteoblas-
tos
Raquitismo – Autossómico recessivo – Defeito enzimático da 1-alfa – 1,25-OH vit. D3: 1–3
vitamino hidroxilase (25-OH vit.D3 µg/d (vit. D activa) (com
dependente tipo I normal e 1,25-OH vit.D3 baixo) vigilância da calciúria)*
Raquitismo – Autossómico recessivo – Resistência periférica dos órgãos – 1,25(OH)2D3: 5–20 µg/d
vitamino – Esporádico alvo à 1,25(OH)2D3 (vitamina D3
dependente tipo II – Consanguinidade activa) (1,25-OH vit.D3 elevado)
Deficiência de – Autossómico recessivo – Deficiência de 25-hidroxilase – Semelhante*
25-hidroxilase (Mutações no gene (25,OH vit. D3 baixo)
CYP2R1)
CAPÍTULO 163 Alterações tubulares renais 783

QUADRO 4 – Raquitismos de causa renal: resumo dos dados laboratoriais

Absorção
Tipo Ca P FA PTH 25 (OH) 1,25 (OH)2 TRF • intestinal
D3 D3 Ca P
Raquitismo
hipofosfatémico N ↓↓ ↑↑ N N N ↓ ↓ ↓
hereditário
Raquitismo
vitamino ↓ ↓/N ↑↑ ↑ N ↓ ↓ ↓ ↑
dependente tipo I
Raquitismo
vitamino ↓ ↓ ↑↑ ↑ N ↑↑ ↓ ↓ ↑
dependente tipo II
Deficiência de 25-hidroxilase ↓ ↓ ↑↑ ↑ N ↑↑ ↓ ↓ ↑


Taxa de reabsorção do fósforo: 1 - (Fósforo na urina fresca x Creatinina sérica) x 100
(valor de referência > 85%)
(Fósforo sérico x Creatinina na urina fresca)

FA: Fosfatase Alcalina Ca: Cálcio P: Fósforo PTH: Paratormona

A forma mais frequente ligada ao X deve-se a QUADRO 5 – Diagnóstico diferencial


defeito no gene AVPR2 relacionado com o recep- de poliúria e polidipsia
tor para a HAD ao nível dos túbulos colectores, o
que na prática corresponde a ausência de resposta • Diabetes insípida de causa central (défice de HAD)
ou insensibilidade à mesma HAD. – genética (autossómica dominante)
As formas adquiridas relacionam-se com – adquirida (tumor, defeito congénito/adquirida in
patologia renal diversa, < K+, > Ca++ e acção de fár- utero, traumatismos, intervenção cirúrgica, doença
macos. infecciosa, doença auto-imune, efeito de fármacos)
O resultado final é perda maciça de água pela • Diabetes insípida nefrogénica
urina (poliúria associada a polidipsia) com dimi- – genética (ligada ao X, AD, AR)
nuição de densidade e osmolalidade urinárias. – adquirida (doença renal, efeito de fármacos,
Poderão surgir episódios de desidratação hiperna- hipocaliémia, hipercalcémia).
trémica, e hipocrescimento. A longo prazo pode- • Polidipsia primária
rão surgir alterações do comportamento (irritabi- • Diabetes mellitus
lidade e hiperactividade). (Capítulo 50)
Estão descritas formas adquiridas, secundárias
a nefrite intersticial, drepanocitose, hipercalcémia, 300 mOsm/Kg está indicada a prova de privação
fármacos (lítio, anfotericina), uropatias obstruti- de água ou administração de HAD para destrinça
vas, etc.. entre DI de causa central e nefrogénica. Se se tra-
O diagnóstico diferencial faz-se fundamental- tar de causa central, a administração de HAD ori-
mente com outras situações clínicas cursando com gina diminuição da diurese e elevação da osmola-
poliúria e polidipsia (Quadro 5). lidade urinária; tal resposta não se verifica na
O diagnóstico de diabetes insípida (DI) é suge- forma nefrogénica.* (ver página seguinte)
rido se a osmolidade sérica for > 300 mOsm/Kg e Os aspectos principais do tratamento da dia-
a osmolalidade urinária < 300 mOsm/Kg. betes insípida nefrogénica incluem: 1) promover
Pelo contrário, o diagnóstico é improvável se a regime alimentar com solutos de baixa osmolari-
osmolalidade for < 270 mOsm/Kg e a urinária > dade e baixo teor em sódio (< 0,7 mEq/kg/dia); 2)
600 mOsm/Kg. tiazidas (diuréticos): 2-3 mg/kg/dia de hidro-
Nos casos de osmolalidade sérica entre 270 e clorotiazida, induzindo a perda de sódio e estimu-
784 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

lando a reabsorção de água ao nível do túbulo work tool for clinical and genetic diagnosis of primary
proximal; 3) nos casos sem resposta aos diuréticos tubulopathies. Eur J Pediatr 2013; 172: 775-780
pode empregar-se a indometacina (2mg/kg/dia) Nicoletta JA, Schwartz GJ. Distal renal tubular acidosis. Curr
com efeito na redução da excreção de água. Opin Pediatr 2004; 16: 194-198
Paul E, Van Why S, Carpenter TO. Hyperthyroidism: a novel
4. Nefrite tubulointersticial (ou intersticial) feature of the tubulointerstitial nephritis and uveitis syn-
Trata-se dum termo aplicado a situações agudas drome. Pediatrics 1999; 104: 314 - 317
ou crónicas em que se verifica inflamação e lesão Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA
tubulares, poupando relativamente os glomérulos (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
e vasos. Contudo, a nefrite intersticial pode asso- Medical , 2011
ciar-se a doença glomerular primária e a doenças Selvan C, Thukral A, Chakraborthy PP, et al. Refractory rickets
sistémicas afectando o rim. (Capítulo 158) due to Fanconi's syndrome secondary to Wilson's disease.
A etiopatogénese não está completamente Indian J Endocr Metab 2012; 16:399-401
esclarecida, admitindo-se mecanismo imune Webb N & Postlethwaite R (eds). Clinical Paediatric
mediado por células T. Como factores etiológicos Nephrology. New York: Oxford University Press, 2003; 79-91
têm sido implicados certos fármacos (antimicro- http://www.renaltube.com (acesso em Agosto de 2013)
bianos, anticonvulsantes, analgésicos), infecções e
doenças sistémicas como LED.
Entre as formas crónicas descreve-se um
quadro clínico raro autoimune associado a uveíte,
com maior prevalência na adolescência e por
vezes associado a doença renal progressiva (sigla
do inglês: TINU ou tubulointerstitial nephritis with
uveitis). Tal quadro não é abordado no âmbito das
alterações tubulares renais por alguns autores.

BIBLIOGRAFIA
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
Haque SK, Ariceta G, Batlle D. Proximal renal tubular acidosis:
a not so rare disorder of multiple etiologies. Nephrol Dial
Transplant 2012; 27: 4273-4287
Hsu SY, Tsai IJ, Tsau YK. Comparison of growth in primary
Fanconi syndrome and proximal renal tubular acidosis.
Pediatr Nephrol 2005; 20: 460-465
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
2011
Mejia N, Santos F, Claverie-Martin F, et al. Renal tube: a net-

*Nota: Embora esta alínea incida fundamentalmente sobre a diabetes


insípida nefrogénica, vem a propósito focar, as bases da actuação na DI
de causa central uma vez confirmada.
Nos RN e lactentes está contra – indicada a vasopressina pelo risco de
hiponatrémia; assim, estando preservado o mecanismo de sede, o trata-
mento é baseado no suprimento de fluidos (3L/m2/dia), tolerando o
organismo valores de natrémia e de osmolalidade sérica no limite
superior do normal.
Nas crianças maiores está indicado o análogo da vasopressina de efeito
prolongado: desmopressina (dDAVP), por via nasal (10μg/0,1 mL)
ajustando a dose empiricamente em função da diurese obtida.
Nas formas agudas de DI central decorrente de intervenção neuro-
cirúrgica está indicada a vasopressina aquosa sintética IV, o que obriga
a doseamento sanguíneo ulterior desta para controlo.
CAPÍTULO 164 Infecção urinária 785

164
Murphy renal positivo, aumento da velocidade de
sedimentação (VS) ou da proteína C reactiva (PCR),
leucocitose com neutrofilia e diminuição da densi-
dade urinária. O diagnóstico definitivo é dado pela
cintigrafia renal com DMSA (ver adiante).
– Cistite – IU em que o processo inflamatório
INFECÇÃO URINÁRIA está confinado ao epitélio da bexiga, estando rara-
mente associada a complicações.
Arlete Neto – Uretrite – IU em que o processo inflamatório
se estende ao longo da uretra.
– Bacteriúria assintomática – Isolamento de bac-
térias na urina sem sintomas ou sinais de doença.
Definições e importância do problema – Contaminação – Situação sugerida pela pre-
sença de bacteriúria sem leucocitúria (excepto nos
A infecção urinária (IU) é uma das causas mais fre- imunodeprimidos), ou pelo isolamento de mais
quentes de doença aguda na idade pediátrica com do que um microrganismo.
uma prevalência aproximada de 5%, em crianças – Infecção urinária simples – IU causada por
febris e, neste grupo, a segunda causa de interna- um agente microbiano usual, num tracto urinário
mento hospitalar, por doença infecciosa. A IU na anatómica e funcionalmente normal, num hos-
criança assume particular relevância não só pela pedeiro saudável.
morbilidade que encerra, mas também pela varia- – Infecção urinária complicada – IU que ocorre
bilidade de abordagem diagnóstica e terapêutica num sistema urinário com anomalias estruturais
de que é ainda alvo.O refluxo vesico-ureteral, asso- e/ou funcionais, numa criança imunodeprimida
ciado ou não a defeitos anatómicos, é a anomalia ou causada por um agente microbiano de grande
funcional mais frequentemente associada (18 a virulência (ex: Staphylococcus aureus). Os factores
50%). A morbilidade não está limitada ao episódio considerados de risco são: litíase, refluxo vesico-
agudo de doença, mas estende-se às complicações ureteral, divertículos vesicais, obstrução do sis-
renais que dela podem advir, nomeadamente tema excretor, bexiga neurogénica, diabetes melli-
hipertensão arterial (HTA) e diminuição da função tus, imunosupressão, antibioticoterapia recente,
renal com eventual evolução para doença renal cateterismo vesical prolongado, instrumentação
crónica. É, por isso, essencial um diagnóstico cor- do tracto urinário e infecção nosocomial.
recto, a instituição precoce da terapêutica e a orien- – Recorrência de IU – Duas ou mais IU em seis
tação das crianças com esta patologia para uma meses, ou três ou mais num ano; esta situação
investigação adequada. implica a erradicação da bactéria pela terapêutica
A IU corresponde à inflamação do epitélio da e, após um período de tempo variável, a rein-
bexiga e/ou do rim, geralmente secundária à fecção por outro agente.
invasão e multiplicação de microrganismos, na sua A Associação Europeia de Urologia – subclas-
maioria de etiologia bacteriana, mas também víri- sifica a IU recorrente em 2 tipos:
ca ou fúngica. No entanto, uma vez que o isola- 1) IU não resolvida – causada pela prescrição
mento de microrganismo na urina não significa obriga- de doses subterapêuticas, deficiente adesão
toriamente IU, há que definir conceitos, com impli- à terapêutica ou presença de bactéria resis-
cações importantes em clínica pediátrica: tente à terapêutica instituída.
– Infecção urinária (IU) – Crescimento bacteri- 2) Resistência bacteriana – causada por situa-
ano no tracto urinário acompanhado de sinais ção patológica que condiciona a perpetua-
clínicos. ção da IU, como por exemplo a litíase renal
– Pielonefrite aguda – Infecção localizada aos (Outubro 2008).
ureteres, bacinete e parênquima renal. A presunção – Recaída de IU – IU nas duas semanas se-
do diagnóstico é feita pela presença de sinais indi- guintes após término da antibioticoterapia, causa-
rectos de compromisso renal: febre, sinal de da pelo mesmo agente; traduz falência da ter-
786 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

apêutica. O refluxo vesico-ureteral (RVU), coex- por bacilos Gram negativos, sendo o principal
istindo ou não com defeitos anatómicos, é a anom- agente encontrado nas IU adquiridas na comu-
alia funcional mais frequentemente associada (18- nidade Escherichia coli (80%), seguida por
50%) (Capítulo 166). Enterococcus faecalis, Klebsiella sp, Staphylococcus
coagulase negativos, Staphylococcus epidermidis e
Aspectos epidemiológicos Proteus mirabilis.
Menos frequentes são as IU causadas por Serratia
A verdadeira prevalência da IU é desconhecida. A marcercens, Acinobacter, Pseudomonas e Staphylococcus
sua determinação está dependente dos meios dia- aureus que surgem em doentes de risco.
gnósticos utilizados, em particular da técnica de Existe uma grande variabilidade internacional
colheita de urina. Sabe-se que 7% das crianças do e regional relativamente à epidemiologia e aos
sexo feminino e 2% do sexo masculino têm a pri- padrões de resistência dos microrganismos cau-
meira infecção antes dos 6 anos de idade; em 50% sadores de IU. É, por isso, fundamental, conhecer
dos casos verifica-se recorrência no período de um com precisão os principais agentes etiológicos de
ano. Antes dos 2 anos é a causa de 5% dos episó- cada país e mesmo de cada instituição hospitalar,
dios febris sem foco, estando os dois sexos igual- por forma a optimizar as opções terapêuticas.
mente envolvidos, aumentando a partir desta A patogénese da IU é complexa, envolvendo a
idade a relação sexo feminino/sexo masculino; a interacção de vários factores presentes no hos-
frequência é mais elevada nos rapazes não circun- pedeiro e no agente infectante. A via de infecção
cidados (4 a 20 vezes maior do que nos circuncida- pode ser hematogénica, mais frequente no
dos em que a taxa ronda apenas 0,2 a 0,4%). recém–nascido, ou ascendente, desde o orifício ure-
A prevalência da IU em crianças febris é tanto tral até à bexiga e, posteriormente, ao bacinete e rim.
maior quanto mais baixo o grupo etário: A virulência do microrganismo invasor e a sus-
– Criança de 1 a 28 dias com febre tem risco ceptibilidade do hospedeiro são fundamentais para
elevado de infecção bacteriana; a instalação da IU. O factor determinante da vir-
– Criança com menos de 1 ano de idade, com ulência microbiana está dependente da sua capaci-
febre sem foco identificado, deve ser considerada dade de adesão à mucosa urogenital, da existência
com risco de IU; de endotoxina e de antigénios da parede celular.
– Rapariga com mais de 1 ano e menos de 2 No caso da E. coli cabe referir o papel das pili
anos de idade, com febre sem foco identificado, ou fimbrae (fímbrias ou estruturas “franjadas” da
deve ser considerada com risco de IU. parede celular, saliências).
A presença de foco infeccioso reduz a proba- Existem fímbrias de 2 tipos: 1) tipo I, encontradas
bilidade de IU em 50%. na maior parte das estirpes de E. coli, que se ligam a
Toda a criança com IU deve ser investigada, receptores de determinadas células alvo. Ora as fím-
pois a probabilidade de anomalia estrutural do brias de tipo I são bloqueadas pela D-manose e não
aparelho urinário é grande (10 a 50%). têm papel na pielonefrite; 2) tipo II (não inibidas pela
D-manose ou manose resistentes), ligam-se a recep-
Etiopatogénese tores (glicosfingolípidos) presentes em certas células
uro-epiteliais e eritrócitos. As referidas fímbrias,
Em condições normais o tracto urinário é estéril, aglutinando os eritrócitos com os respectivos recep-
ao contrário do que acontece com outros sistemas tores (eritrócitos do grupo P), são conhecidas como
do nosso organismo em contacto com o exterior. A fímbrias P, com papel importante na génese da
contaminação com microrganismos da flora pielonefrite; cerca de 75-95% das estirpes pielo-
comensal dos sistemas gastrintestinal ou genital, nefritogénicas têm fímbrias P.
que colonizam a região perineal, pode desen- A bexiga com normal funcionamento tem a
cadear um processo infeccioso no tracto urinário capacidade de depuração das bactérias em 24-72
se o microrganismo envolvido for suficientemente horas, quer através da renovação da urina com
virulento e/ou se o hospedeiro estiver imunode- total esvaziamento, quer pela presença de sub-
primido. As IU são mais frequentemente causadas stâncias bacteriostáticas que inibem o crescimento
CAPÍTULO 164 Infecção urinária 787

bacteriano, quer ainda pelas propriedades líticas Manifestações clínicas


da própria mucosa vesical. Assim, qualquer
condição que leve à estase urinária como a obsti- Os sintomas clássicos de IU não são observados
pação, cálculos, uropatia obstrutiva, disfunção em pediatria; variam com a idade do doente,
vesical ou RVU predispõe a IU. (sendo tanto mais inespecíficos quanto mais
Se os germes microbianos atingirem o rim, jovem é a criança) e com o tipo de infecção e gravi-
poderá ocorrer pielonefrite. Em circunstâncias dade do quadro clínico. Assim, a recusa alimentar,
normais as papilas renais possuem um mecanis- vómitos, irritabilidade, dor lombar, atraso de
mo anti-refluxo, que impede a entrada da urina crescimento ou febre podem ser indicadores de
nos tubos colectores. No entanto, ao nível dos IU. A febre alta (> 39ºC) inexplicável é aceite como
polos superior e inferior do rim as papilas morfo- provável “marcador clínico” de envolvimento do
logicamente diferentes não previnem tal entrada. parênquima renal, pelo que em toda a criança com
A urina infectada estimula resposta inflamatória e idade < 2 anos com este sinal se deve efectuar uma
imunológica que poderá culminar em lesão, desi- análise de urina. Sintomas e sinais específicos do
gnadamente cicatriz renal (CR). De salientar que aparelho urinário somente surgem nas crianças
a glucose na urina constitui um meio de cultura e mais velhas. O exame físico deverá pesquisar
inibe as funções de agregação, adesão e fagocitose hipertensão, massas palpáveis, alterações neu-
dos leucócitos polimorfonucleares; tal facto rológicas, anomalias genitais e caracterizar o jacto
aumenta o risco de infecção. urinário. O Quadro 1 resume os principais sinais e
Em suma, o desenvolvimento de CR está sintomas considerando quatro períodos etários.
dependente de vários factores para além da
infecção e do refluxo, como a idade da criança, o Diagnóstico
atraso no diagnóstico, o início da terapêutica, as
características do microrganismo responsável, a Após a suspeita clínica de IU é urgente ter um
existência de infecções urinárias de repetição ou diagnóstico de certeza. A escolha dos exames
defeitos anatómicos associados. complementares de diagnóstico vai colocar-nos
No entanto, a relação entre RVU/CR/NR não perante dois dilemas cuja decisão é fulcral para o
está ainda perfeitamente esclarecida. doente. Com resultados falsos negativos, se não os

QUADRO 1 – Manifestações clínicas de infecção urinária

RN 1ª Infância Idade pré-escolar Idade escolar e


(2 a 6 anos) adolescência
Compatíveis com sépsis Diarreia Diarreia
Má progressão ponderal Má progressão ponderal Má progressão ponderal
Irritabilidade Irritabilidade Irritabilidade
Febre Febre/Convulsão febril Febre Febre
Recusa alimentar/Anorexia Anorexia Anorexia Anorexia
Globo vesical Globo vesical Globo vesical Globo vesical
Rins palpáveis Rins palpáveis Rins palpáveis Rins palpáveis
Doença aparente Doença aparente Doença aparente Doença aparente
Dor abdominal Dor abdominal Dor abdominal
Dor no flanco Dor no flanco Dor no flanco
Dor lombar Dor lombar Dor lombar
Cheiro intenso da urina Cheiro intenso da urina Cheiro intenso da urina
Disúria Disúria
Urgência em urinar Urgência em urinar
Polaquiúria Polaquiúria
Incontinência Incontinência
788 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

valorizamos, podemos não tratar doentes que – Análise sumária de urina


podem vir a ter complicações futuramente. Os Os parâmetros a valorizar na amostra de urina
resultados falsos positivos podem condicionar um centrifugada, havendo suspeita de IU, são os bio-
tratamento e investigação de imagem desne- químicos (leucosterase e nitritos) e o exame
cessários. Assim é de extrema importância co- microscópico (contagem de leucócitos e bactérias).
nhecer a sensibilidade e especificidade de cada O teste para os nitritos não é um bom marcador na
teste laboratorial ou de imagem de modo a optar criança, em particular no recém-nascido e lactente,
por aqueles que melhor sirvam o nosso objectivo: pelo pouco tempo que a urina permanece na bex-
diagnóstico precoce e correcto da IU. iga impedindo a sua formação, pelo que, se nega-
tivo, não invalida a presença de infecção, mas
Exames analíticos dada a sua grande especificidade, a probabilidade
– Urina: colheita e análises de IU é grande quando positivo.
A análise sumária de urina e a urocultura são dois A leucocitúria surge em várias situações clíni-
exames de particular importância, dado que con- cas que cursam com febre alta (Infecção estrep-
duzem ao diagnóstico. A primeira, um instrumen- tocócica e D. kawasaki).
to de rastreio, dá uma informação rápida para o A ausência de piúria na IU da criança é rara. A
suporte do diagnóstico; a urocultura (se positiva) presença de bactérias numa urina fresca centrifu-
permite estabelecer o diagnóstico definitivo de IU. gada, colhida em condições de assepsia é alta-
– Colheita de urina mente específica de IU.
A colheita de urina para o exame sumário pode Quanto maior o número de parâmetros posi-
ser feita nas crianças sem controle dos esfíncteres tivos, maior a probabilidade de IU na presença de
por saco colector, após se ter procedido à lavagem sinais clínicos sugestivos; no entanto, em cerca de
correcta da zona perineal e atendendo a algumas 10% dos casos pode existir IU com normalidade
premissas: após a colheita da urina, o seu proces- de análise sumária, pelo que nunca se deve pre-
samento deve ser efectuado dentro de uma hora scindir da realização da urocultura.
se a urina estiver à temperatura ambiente ou até 4 O Quadro 2 mostra, de modo estruturado, a
horas se a urina for refrigerada a 4ºC, no sentido sensibilidade e especificidade dos parâmetros
de serem asseguradas a sensibilidade e a especifi- atrás referidos (componentes de urina considera-
cidade dos resultados obtidos. dos isoladamente ou em combinação) para o dia-
A colheita de urina para urocultura deve ser gnóstico de IU.
feita por punção vesical ou cateterismo uretral, no – Urocultura
recém-nascido, lactente e criança até controlo dos Os critérios de diagnóstico de IU em função da
esfíncteres, ou por jacto intermédio da micção, na positividade microbiana em colónias/mL variam
criança mais velha. No caso do cateterismo uretral, conforme o modo de colheita da urina em con-
devem ser desperdiçadas as primeiras gotas de dições de assepsia.
urina, no sentido de serem eliminadas as bactérias – Jacto médio - ≥105 colónias/mL
que contaminam a uretra. Apesar de este método – Cateterismo transuretral - ≥ 104 colónias/mL
de colheita ser invasivo e criticável por alguns – Punção vesical - ≥1 colónias/mL se Gram ne-
autores, ele deve ser usado em toda a criança febril gativo; ≥103 colónias/mL se Gram positivo.
sem foco infeccioso detectável, pois é fundamental Segundo as recomendações da Academia
para o diagnóstico de IU (Recomendação da Americana de Pediatria (Agosto 2011) o diagnósti-
Academia Americana de Pediatria, Agosto 2011). co de IU é feito pela conjugação dos dados da
O diagnóstico não deve ser feito pelo resultado análise sumária de urina e da urocultura. Na cri-
da cultura de urina colhida por saco colector, pois ança a IU é comprovada pela presença de piúria /
a contaminação por bactérias fecais ou da colo- bacteriúria e, pelo menos, 50.000 colónias/ml da
nização uretral, conduzem a resultados falsos po- bactéria isolada, numa urina obtida por punção
sitivos em 88% dos casos, atingindo no sexo mas- vesical ou cateterismo uretral.
culino valores de 95% nos não circuncidados e A IU é causada por uma única bactéria, pelo que
99% nos circuncidados. a presença de duas ou mais sugere contaminação.
CAPÍTULO 164 Infecção urinária 789

QUADRO 2 – Sensibilidade e especificidade de parâmetros, isolados e em combinação,


para o diagnóstico de IU

Teste Sensibilidade % Especificidade %


Leucosterase 83 (67-94) 78 (64-92)
Nitritos 53 (15-82) 98 (90-100)
Leucosterase
93 (90-100) 72 (58-91)
Nitritos
Leucócitos (microscopia) 73 (32-100) 81 (45-98)
Bacteriúria (microscopia) 81 (16-99) 83 (11-100)
Leucosterase
Nitritos 99,8 (99-100) 70 (64-92)
Bacteriúria (microscopia)
Marcadores urinários sugestivos de pielonefrite: LDH > 150 U/L; PCR> 30 mcg/mL; IL-1-beta e IL-8 elevadas

– Análise de sangue • Idade (baixo risco de refluxo vésico-ureteral


Em função do contexto clínico, nos casos de suspei- acima dos 5 anos);
ta de compromisso do parênquima renal (pielone- • Factores de risco nefro-urológico;
frite) é fundamental para o clínico avaliar determi- • Grau de adesão ao plano terapêutico;
nados parâmetros através do hemograma, PCR, VS • Avaliação no período agudo da IU;
e procalcitonina. Constituem marcadores indirectos • Avaliação sequencial;
de provável compromisso do parênquima renal: leu-
cocitose com neutrofilia, e elevação da PCR e da VS. Avaliação no período agudo
A procalcitonina, propéptido da calcitonina pro- – Ecografia renal e vesical
duzido nas células C da tiróide e desprovida de Está indicado realizar este exame concomitante-
actividade hormonal, é um marcador directo de mente com a primeira infecção urinária de acordo
diagnóstico e de gravidade da lesão renal. Trata-se com o algoritmo (Figura 1) e tão cedo quanto pos-
dum parâmetro sensível e específico para o diagnós- sível. A ecografia reno-pélvica fornece infor-
tico precoce de pielonefrite aguda, salientando-se mações cruciais sobre os rins, bacinetes, ureteres e
valor preditivo mais robusto relativamente à PCR e bexiga. Detecta defeitos congénitos, não observa-
ao leucograma. Considerando o valor de corte de 0,8 dos no período pré-natal. Não permite o diagnós-
ng/mL, a sensibilidade e especificidade são 83,3% e tico de refluxo vesico-ureteral. É um exame não
93,6%, respectivamente. invasivo, fundamental para nos orientar sobre o
Para corroborar a suspeita clínica e/ou laborato- tipo de estudo subsequente a efectuar.
rial de pielonfrite, torna-se fundamental proceder, – Cintigrafia renal com DMSA (ácido dimer-
em função de cada caso, a exames imagiológicos. capto-succínico marcado com 99m Tecnésio).
Este exame baseia-se na afinidade do isótopo
Exames de imagem para as células tubulares. Tem especial interesse
Após diagnóstico de IU há que ponderar a neces- (método de excelência) tanto no diagnóstico de
sidade de uma avaliação imagiológica que permi- localização de IU, como na pesquisa de cicatrizes
ta a detecção precoce de anomalias anatómicas (CR). Durante a fase aguda de doença (IU), é pos-
(não diagnosticadas no período pré-natal) ou dis- sível detectar zonas de hipocaptação, traduzindo
funcionais do aparelho urinário de modo a pre- a existência de áreas de isquémia. Estes dados
venir o risco de reinfecção e lesão renal. estão associados a sinais clássicos de pielonefrite
– Indicações aguda (ver adiante).
Na selecção do estudo imagiológico há que ter em A cintigrafia com DMSA feita no período
consideração: agudo da IU, se normal – permite concluir que
• Sintomatologia clínica e tempo de resolução não há risco de desenvolvimento de cicatriz a
da infecção urinária; médio e longo prazo. Não deve ser um exame de
790 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

PRIMEIRA INFECÇÃO URINÁRIA

Sexo masculino – TODOS Sexo feminino – TODAS ≥ 7 anos


Sexo feminino – idade ≤ 3 anos Sexo feminino – idade ≥ 3 anos
Com febre (Temp. ≥ 38,5°C) Sem febre (Temp. ≤ 38,5°C)

ECOGRAFIA RENAL E VESICAL VIGILÂNCIA CLÍNICA,


SEM ESTUDO DE IMAGEM

Alterada Normal®
RECORRÊNCIA
Sim
DE INFECÇÃO

Sexo feminino –
GAMACISTO ISOTÓPICA 2ª IU com febre
masculino –
CISTOURETROGRAFIA
Não

6 Meses após IU

CINTIGRAFIA RENAL COM DMSA TERMINAR A INVESTIGAÇÃO

Normal Alterada

PARAR A INVESTIGAÇÃO CONSULTA NEFROLOGIA/UROLOGIA

® Crianças com infecção urinária febril, com idade ≥ 3 anos, cuja cintigrafia renal com DMSA é normal (realizada após IU), deve terminar-se a investigação.

FIG. 1
IU e exames imagiológicos.

rotina, tendo indicação nesta fase de doença, se urinário que levassem, por um lado ao aumento da
houver dúvida no diagnóstico e/ou não resposta recorrência de IU e, por outro, lado à lesão do
à terapêutica correctamente instituída numa cri- parênquima renal, com formação de cicatrizes.
ança gravemente doente. Como o RVU é a anomalia mais frequentemente
associada, a cisto-uretrografia era o exame obri-
Avaliação sequencial gatóriamente efectuado 2 a 6 semanas após a
Cisto-uretrografia miccional e pós-miccional primeira IU, em todas as crianças, sendo mantidas
Nas últimas quatro décadas a estratégia para pro- sob terapêutica antibiótica profiláctica, se o refluxo
tecção renal, após a primeira infecção urinária na fosse comprovado e até à sua resolução. Sabe-se
criança, consistia em detectar anomalias do tracto hoje que numa grande percentagem de crianças se
CAPÍTULO 164 Infecção urinária 791

desenvolve pielonefrite sem refluxo. Foi baseada lizado um antibiótico bactericida, com espectro de
nesta evidência científica, bem como na análise acção selectivo, com boa concentração urinária, com
custo/benefício para os doentes, que a Associação mínimo de efeitos secundários e com baixa capaci-
Americana de Pediatria recomenda a realização dade de induzir o aparecimento de estirpes
deste exame radiológico nas seguintes situações: resistentes. Igualmente importante é a posologia, a
1. Após a 1ª IU com febre, se a ecografia reve- tolerância e aceitabilidade dos preparados exis-
lar hidronefrose, cicatriz ou outras alterações su- tentes no mercado, sobretudo quando a terapêutica
gestivas, quer de alto grau de refluxo, quer de é instituída em ambulatório. Os antibióticos com
uropatia obstrutiva, bem como noutras circun- eliminação renal, mas que não atinjam concen-
stâncias clínicas atípicas ou complexas. trações terapêuticas na corrente sanguínea, tal como
2. Após a 2ª IU com febre (Figura 1). a nitrofurantoína, não devem ser utilizados para o
A cistografia isotópica (gamacistografia) só tratamento da IU com febre, pois a sua concentração
tem indicação nas raparigas acima dos três anos e a nível do parênquima renal pode ser insuficiente
sem disfunção vesical. Em todos os outros casos para tratar uma pielonefrite ou uro-sépsis.
há que realizar sempre a cistografia radiológica A terapêutica oral ou parentérica tem a mesma
(Figura 1). eficácia.
A duração do tratamento nunca deverá ser
Cintigrafia renal com DMSA inferior a sete dias ou superior a 14 dias, não
Está preconizada após a infecção urinária, para havendo dados que identifiquem o benefício de
rastreio de cicatriz renal (CR) – no mínimo 6 prolongar o tratamento por mais de sete dias na
meses após a infecção. Não deve ser feita com criança sem factores de risco.
periodicidade. Só se justifica a repetição, mesmo Seguidamente é descrito o esquema de trata-
se alterada, caso haja posteriores pielonefrites e mento nas situações de pielonefrite aguda e de cis-
factores de risco que possam condicionar o tite em diversas idades, de acordo com as normas
aparecimento de novas CR (probabilidade de sur- aceites pela Sociedade Portuguesa de Infeccio-
girem em ~15% dos casos de pielonefrite aguda). logia e aplicadas na Unidade de Nefrologia do
Hospital de Dona Estefânia; de referir que existem
Tratamento variantes de actuação de acordo com a literatura
consultada (Quadros 3 e 4).
Deve ser iniciado o mais precocemente possível,
após colheita de urina para urinocultura. Pielonefrite aguda
A antibioticoterapia é inicialmente instituída 1º Fluidoterapia
de forma empírica e, logo que possível, ajustada 2º Antibioticoterapia inicial (empírica)
de acordo com o resultado do teste de sensibili- • Recém-nascido
dade aos antibióticos (TSA). Na instituição de – Idade ≤ 1 semana: ampicilina + gentamicina;
uma terapêutica empírica, há que ter em conta fac- – Idade > 1 semana: ampicilina + ceftriaxona
tores que se relacionam com o agente infectante, (14 dias de terapêutica parentérica);
com o hospedeiro e com a farmacocinética dos • Lactente (< 3 M) e criança mais velha com
antibióticos. É igualmente importante ter o conhe- factor de risco – 10 dias de terapêutica - cefuroxi-
cimento, em cada área comunitária, das bactérias ma + gentamicina*;
mais frequentes, bem como do seu padrão de sen- • Lactente (> 3 M) e criança mais velha sem
sibilidade. factor de risco – 7 a 10 dias de terapêutica -
Relativamente ao hospedeiro importa consi- cefuroxima*.
derar a idade, os agentes infectantes mais fre- 3º Antibioticoterapia oral
quentes de acordo com o grupo etário, a gravi- – Lactente > 28 dias ≤ 3 M (na sequência da te-
dade da situação clínica, a existência ou não de rapêutica parentérica) de acordo com o TSA, ou
patologia nefro-urológica ou outra, bem como as
* Via parentérica até apirexia de 24 – 48h e tolerância oral
terapêuticas antibióticas previamente instituídas. Nota importante: Logo que possível passar a monoterapia de acordo
No que diz respeito aos fármacos, deve ser uti- com clínica e TSA.
792 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 3 – Antibioticoterapia por via parentérica na IU

Antibiótico Dose, Frequência e Dose Máxima Diária Comentários


Ampicilina 50-100 mg/Kg/dia Reservado para crianças < 30 dias de
EV RN – 100 mg/Kg/dose idade para cobertura de infecção por
≤ 7 dias - 12/12h Streptococcus B, Listeria monocytogenes ou
> 7≤ 21 dias - 8/8 Enterococcus, em associação com gentamicina
> 21 dias - 6/6h
(Dose máxima: 12g/d)
Cefuroxima 75 - 150 mg/Kg/dia
EV/IM 8 em 8 horas
(Dose máxima: 250 mg/Kg ou 9 g/dia)
Ceftriaxona 50 - 100 mg/Kg/dia Reservado para via IM nas crianças com
EV/IM 24 / 24 horas intolerância alimentar e/ou sem acesso venoso.
Uso com precaução no RN com icterícia
Gentamicina 4 - 5 mg/kg/d* Não deve ser utilizada como monoterapia.
EV/IM 24 / 24 horas Se < 1ª semana de vida – associar com
ampicilina para cobertura de infecção por
Listeria monocytogenes ou Enterococcus
NB: Doseamento sérico
*ajustar dose de acordo com o valor do filtrado glomerular

amoxicilina (50 - 100 mg/kg/d de 8 em 8 horas) Se houver intolerância isolada ao antibiótico


ou cefixima (8 mg/kg/d de 24 em 24 horas) por via oral, em criança com suspeita clínica de
– Lactente e criança > 3 M – cefuroxima axetil pielonefrite aguda, considerar administração por
(30 a 40 mg/kg/d de 12 em 12 horas). via parentérica em regime de hospital de dia, até a
Nota importante: Se às 48 h de terapêutica não via oral ser tolerada.
se verificar melhoria do quadro clínico, impõe-se
revisão analítica e avaliação imagiológica. Profilaxia e seguimento

Cistite A taxa de recorrência no 1º anos após o diagnósti-


Cefalosporina de 1ª geração ou sulfametoxazol (40 co de IU é cerca de 30% nos rapazes e de 40% nas
mg/Kg/dia)/trimetoprim (8 mg/Kg/dia). A dura- raparigas, o que impõe a aplicação de medidas
ção do tratamento é de sete dias. O Quadro 4 é elu- profilácticas, com o objectivo de diminuir a proba-
cidativo, adaptando-se igualmente a esta nosologia. bilidade de lesão renal (cicatriz).
Nas últimas quatro décadas estas medidas
Critérios de hospitalização consistiam, para além das medidas gerais, na pes-
São estabelecidos os seguintes critérios: quisa de malformações do tracto urinário (o RVU
– Idade ≤ 3 meses; é ao mais frequente) e na instituição de tera-
– Todas as crianças, independentemente da ida- pêutica antimicrobiana em dose profiláctica, até
de, com: necessidade de administração de fluidos resolução do refluxo. No refluxo grave (grau V e
EV (desidratação, vómitos), indicação para /ou pielonefrites de repetição, com cicatrizes, a
antibiótico EV (doença grave, ausência de resposta correcção cirúrgica tinha indicação.
e/ou agravamento clínico em criança já medicada Medidas gerais
com antibiótico oral), incerteza no cumprimento da – Reforço hídrico
terapêutica no domicílio; – Higiene
– Presença de factores de risco: anomalia géni- – Uso de roupa de algodão, folgada
to-urinária major, suspeita de obstrução ou de – Correcção da obstipação
litíase, imunodeficiência. – Tratamento das parasitoses
CAPÍTULO 164 Infecção urinária 793

QUADRO 4 – Antimicrobianos para tratamento das IU do tracto superior em regime ambulatório

Antibiótico Dose, Frequência e Dose Máxima Diária Comentários


Cefuroxima axetil 30 - 40 mg/kg/dia* Somente após 3 M de idade. Dar
Por exemplo: 12/12 horas após as refeições. Absorção
Zipos® 5 ml=125/250 mg (Dose máxima: 500mg/dia) diminuída com fármacos que
1 comp=250/500 mg diminuem a acidez gástrica
Zoref® 5 ml=125/250 mg
1 cart=125/250 mg
Cefixima D1 – 8mg/kg/dia – 2 tomas* Suspensão oral com melhor
Por exemplo: D2-D10 – 8mg/kg/dia – 1 toma absorção que o comprimido
Tricef® 5 ml=100 mg (Dose máxima: 400mg)
1 comp=400 mg
Sulfametoxazol/trimetoprim Dose baseada no trimetoprim* Não usar no RN
Por exemplo: 6 – 10mg/kg/dia Não usar na insuficiência hepática
Bactrim® 5 ml=200/40 mg S/T 12/12 horas Não usar nos casos de défice da
1 cp=800/160 mg S/T (Dose máxima: 320mg TMP / G6PD e de anemia megaloblástica
Septrim® 5 ml=200/40 mg S/T 1600mg SMT)
1 cp=400/80 mg S/T
Cefadroxil 30mg/kg/dia* Absorção rápida e total
Por exemplo: 12/12 horas
Cefacile® 5 ml=500 mg (Dose máxima: 2g)
Ceforal® 5 ml=250 mg
Amoxicilina+Ác. clavulânico 50-100mg/kg/dia (amoxicilina)* Boa biodisponibilidade
Por exemplo: Dada a epidemiologia local só
Augmentin® 8/8 horas (Dose máxima: 3g) utilizar de acordo com TSA
5 ml=125 mg + 31,25 mg
5 ml=250 mg + 62,5 mg
5 ml=400 mg + 57 mg
1 comp= 875 mg + 125 mg
Augmentin Duo® 12/12h
5 ml=400 mg + 57 mg

*ajustar dose de amoxicilina de acordo com o valor do filtrado glomerular; D = dia de tratamento; cp= comprimido

– Detecção e correção da disfunção vesical relevo ao quadro clínico e não preconizam a qui-
– Correcção de fimose e coalescência dos pe- mioprofilaxia, tendo em conta os dados anterior-
quenos lábios. mente referidos. Contudo, até termos, num futuro
Quimioprofilaxia que se espera próximo (há vários estudos multi-
Nos últimos anos, vários estudos aleatorizados cêntricos em curso) mais dados sobre o genoma
e com valor científico comprovado, demon- do hospedeiro e da bactéria infectante do tracto
straram que um número significativo de crianças urinário, o que vai definir com maior precisão os
com idade a 2 anos, desenvolvem pielonefrite sem factores de risco de lesão renal, a quimioprofilaxia
RVU e que a profilaxia antibiótica contínua, tem fará sentido ser iniciada em todas as crianças com
pouco significado ou nenhum na prevenção das episódio anterior de pielonefrite comprovada até
recorrências de IU (Quadro 5). caracterização morfológica e funcional do seu
Assim, as últimas recomendações da Associa- aparelho urinário, o que irá determinar ou não a
ção Americana de Pediatria acerca da infecção continuação desta terapêutica. São considerados
urinária febril < 2 anos de idade, dão um grande como factores de risco: refluxo grau V, com pielo-
794 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 5 – Recorrência de IU febris/ Pielonefrite e grau de RVU em Crianças 2-24 meses de idade
com e sem profilaxia antibacteriana®

Grau de refluxo Com Profilaxia Sem Profilaxia


Nº recorrências Total doentes Nº recorrências Total doentes P
nenhum 7 210 11 165 0.15
I 2 37 2 35 1.00
II 11 133 10 124 0.95
III 31 140 40 145 0.29
IV 16 55 21 49 0.14
®
Adaptado das recomendações para diagnóstico e tratamento das IU febris nas crianças > 2M e ≤2 anos da Academia Americana de Pediatria (2011).

nefrites de repetição e alterações disfuncionais da 1998; 57: 573-574


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alternativas à profilaxia, para além de uma vigi- Fam Physician 2005; 72: 2483-2488
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sem outro foco, é o uso de probióticos. and evaluation of the initial urinary tract infection in febrile
Os fármacos mais utilizados são o trimeto- infants and young children. Pediatrics 1999; 103: 843-852
prim, solução oral a 1% (manipulado) na dose de American Academy of Pediatrics. Urinary tract infection:
1mg/Kg/dia ou a nitrofurantoína na dose de 1- Clinical Practice Guideline for Diagnosis and Management
2mg/Kg/dia, em toma única diária. As baixas of the Initial UTI in Febrile Infants and Children 2 to 24
doses destes fármacos têm a vantagem de, perante Months. Pediatrics 2011;128:595-610
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Oxford: Oxford University Press, 2003 forma, tamanho ou estrutura.
Wennerstrom M, Hansson S, Jodal U, Rune S, Stokland E. O termo displasia corresponde a um diagnóstico
Renal damage one year after first urinary tract infection in histológico; caracteriza-se pela presença de estru-
childhood. J Pediatr 2000;136: 30-34 turas primitivas ductais agrupadas de vários modos
Yamaçake KGR, Nguyen HT. Current management of antena- (focal, segmentar, difuso) como resultado de dife-
tal hydronephrosis. Pediatr Nephrol 2013; 28: 237-243 renciação metanéfrica anormal. A causa é multifac-
torial. Foram identificados cerca de 30 genes rela-
cionados com formas sindrómicas incluindo de-
feitos renais – por ex. síndroma de Fraser (agenésia,
displasia) associada a gene FRAS1 (ver Capítulo 18
– Anomalias congénitas).
A incidência de anomalias renais está aumen-
tada em situação de artéria umbilical única ou car-
diopatia congénita. Outras anomalias estão fre-
quentemente associadas: do pavilhão auricular,
ânus imperfurado, escoliose, etc.. Tais anomalias
poderão obrigar, em função do contexto clínico, a
796 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

detecção de anomalia renal através de exame eco- Rim multiquístico


gráfico.
São referidas sucintamente neste capítulo as Trata-se de uma displasia renal multiquística (em
entidades clínicas mais representativas dos defei- geral unilateral) com incidência semelhante à da
tos do desenvolvimento do rim fetal. agenésia renal bilateral. É caracterizada por anoma-
lia de diferenciação estrutural conduzindo a ausên-
Agenésia renal unilateral cia completa de função; por conseguinte, se a alte-
ração for bilateral, há incompatibilidade com a vida.
Surge com uma frequência aproximada de 1/450- É possível fazer o diagnóstico pré-natal por
1/1.000 recém-nascidos. Podendo estar associada ecografia, a qual evidencia padrão imagiológico
a anomalias doutros sistemas, é um dos compo- patognomónico.
nentes da associação VACTERL (anomalias verte- A nefrectomia está indicada nos casos de hi-
brais, atrésia anal, defeitos cardíacos, fístula pertensão arterial grave ou infecções urinárias
tráqueo-esofágica ou atrésia do esófago, agenésia recorrentes.
ou displasia renal, defeitos dos membros/limbs).
(Capítulo Anomalias Congénitas) Rins poliquísticos
A agenésia renal é distinta de aplasia, situação esta
em que uma parcela de tecido não funcionante Esta situação abrange um largo espectro de doen-
recobre um uréter normal ou anormal. Clinica- ças genéticas, tendo como denominador comum a
mente a distinção poderá ser difícil. existência de quistos (doença poliquística), afe-
ctando ambos os rins e outros órgãos.
Agenésia renal bilateral Estão descritas duas formas de doença poli-
quística:
Ocorrendo com uma incidência de cerca de 1/3.000 1 – doença renal poliquística autossómica
recém- nascidos, constitui um dos componentes da recessiva (tipo infantil) que ocorre com uma fre-
síndroma de Potter (fácies e nariz achatados, pés quência estimada entre 1/10.000 e 1/50.000 na
botos e hipoplasia pulmonar como consequência primeira ou segunda infância; como característi-
de oligo-âmnio com compressão do feto pelo cas são referidas: quistos localizados no córtex e
útero), incompatível com a vida extra-uterina. A na medula, dilatação dos tubos colectores, fibrose
morte ocorre após o nascimento por hipoplasia pul- intersticial e atrofia progressiva tubular conduzin-
monar, antes de se manifestar falência renal. do a disfunção renal progressiva; nesta forma de
doença renal existe fibrose hepática associada
Hipoplasia renal levando a hipertensão portal. Como consequência
do aumento de volume dos rins exercendo efeito
Nesta anomalia do desenvolvimento renal os rins compressivo, poderá surgir in utero hipoplasia
são de menores dimensões, comprovando-se por pulmonar fetal conduzindo a morte fetal.
exame anátomo-patológico, diminuição do número As manifestações clínicas desta forma renal de
de nefrónios, de cálices e grau importante de fibrose doença quística são: massas renais palpáveis, pro-
com repercussão na função tubular renal, traduzida teinúria, hematúria, hepatomegália e pneumotórax.
essencialmente pela perda de sódio e água. 2 – doença renal poliquística autossómica do-
Existe HTA, poliúria, polidipsia e evolução minante (tipo adulto) que ocorre classicamente na
para IR. idade adulta (3ª ou 4ª décadas de vida, raramente
Uma variante desta entidade é a oligomegane- antes dos 7 anos), embora possa também surgir na
frónia, caracterizada por número de nefrónios faixa etária descrita para a forma autossómica
reduzido com hipertrofia dos presentes. recessiva.Refira- se que surge com uma incidência
A forma segmentar de hipoplasia renal, desi- muito mais elevada do que a forma infantil:
gnada por rim de Ask Upmark, é detectada, em (1/1.000 recém-nascidos), ao ponto de ser conside-
geral, após os 10 anos no contexto de HTA; na rada a doença hereditária renal mais frequente.
maioria dos casos está indicada a nefrectomia. O quadro clínico é semelhante ao do tipo infan-
CAPÍTULO 166 Refluxo vesico-ureteral 797

166
til. Como particularidades há a destacar: quistos
glomerulares e tubulares, assim como associação a
quistos hepáticos (em cerca de 30% dos casos),
pancreáticos, esplénicos, ováricos e a aneurismas
cerebrais.
Os estudos imagiológicos mais utilizados são
a ecografia e o renograma isotópico. REFLUXO VÉSICO-URETERAL
Quanto ao tratamento, podem ser adoptadas
medidas conservadoras, diálise ou transplantação Rui Alves
renal em função do contexto clínico de cada caso.

Anomalias de forma e posição do rim


Definição e importância do problema
Durante o desenvolvimento renal fetal os rins em
circunstância de normalidade mudam progressi- O refluxo vésico-ureteral (RVU) consiste no re-
vamente de posição no sentido ascendente pelve – torno da urina vesical para o uréter, isto é, no sen-
posição das locas renais. tido contrário ao normal, por falência do mecanis-
Em circunstâncias anómalas o rim ou rins mo valvular que existe ao nível da junção ure-
podem ficar em posição pélvica, ilíaca (“subida” terovesical. O chamado RVU simples, de carac-
insuficiente), ou torácica (“subida excessiva”); é o terísticas não patológicas, é a situação urológica
rim ectópico que surge com uma frequência mais frequente, com uma prevalência de cerca de
aproximada de 1/900 RN. 0,5% da população. No lactente a incidência é
Pode existir igualmente fusão dos rins origi- semelhante: cerca de 0,1-0,2%. No recém-nascido
nando o chamado rim em “ferradura” ocorrendo com dilatação piélica existe risco aumentado de
em cerca de 1/500 RN, situação por sua vez asso- RVU em 10%-40% dos casos. Na idade escolar é
ciada frequentemente a síndroma de Turner e a cinco vezes mais frequente no sexo feminino.
tumor de Wilms. O RVU patológico é a causa mais frequente de
A função renal é geralmente normal. infecção urinária recorrente (cerca de 30%), asso-
ciada a degradação da função renal progressiva e
BIBLIOGRAFIA a desenvolvimento de hipertensão arterial (HTA)
Baskin LS, Kogan BA (eds). Handbook of Pediatric Urology. de causa renal, sobretudo na adolescência.
Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2005 Está frequentemente associado a anomalias
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson congénitas do tracto urinário.
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
2011 Etiopatogénese
Marcdante KJ, Kliegman RM, Jenson HB, Behrman RE(eds).
Nelson Essentials of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier O RVU primário é uma situação geneticamente
Saunders, 2011 determinada AD; havendo antecedentes fami-
McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of liares, a probabilidade de surgimento é 20-50 vezes
Pediatrics. Madrid:Panamericana, 2010 maior. Cerca de 35% dos familiares em 1º grau de
Postlethwaite RJ, Webb NJA (eds). Clinical Paediatric crianças afectadas têm a mesma patologia.
Nephrology. New York: Oxford University Press. 2003 A natureza do RVU deriva da manutenção da
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon abertura do ostium ureteral, devida a uma confor-
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill mação anómala do mesmo; ou a uma localização
Medical , 2011 ectópica supratrigonal, originando uma dimi-
nuição do comprimento do trajecto transvesical
do uréter e, por isso, uma falência do mecanismo
valvular fisiológico que se opõe à deslocação re-
trógrada da urina.
798 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

As perturbações da função coordenada entre o detrusor ou não sinergia do detrusor - dissiner-


detrusor e o esfíncter (não sinergia detrusor- gia). O megauréter refluxivo está também pre-
esfincteriana), pode também propiciar um aumen- sente na síndroma prune-belly.
to de pressão intravesical e originar o estabeleci-
mento de RVU. Classificação
Outras situações associadas a anomalias con-
génitas ao nível da junção ureterovesical explicam O RVU classifica-se em cinco graus (G) de I a V, de
outras formas de RVU primário: duplicação urete- envolvimento crescente. Também se pode classi-
ral, ureterocele com duplicação, ectopia ureteral, ficar o RVU de acordo com a localização anatómi-
divertículo ureteral. ca da inserção ureterovesical e a conformação dos
As formas de RVU secundário devem-se, em ostia ureterais.
geral, a pressão intravesical aumentada, processos A Figura 1 esquematiza o padrão morfológico dos
inflamatórios da bexiga ou a procedimentos cirúr- graus I, III e V.
gicos afectando a junção ureterovesical. (Quadro 1) Pormenorizando: nos graus I e II não há dila-
A situação de megauréter associado a RVU tação do uréter; no grau II a urina atinge o bacinete
merece uma menção especial. Esta anomalia con- e cálices; no grau IV verifica-se dilatação franca do
génita (dilatação extrema do uréter, geralmente uréter, bacinete e cálices; o grau V corresponde a
associada à dilatação do bacinete) em oposição ao um refluxo maciço com tortuosidade e perda da
RVU simples, tem frequentemente expressão pré- impressão papilar.
natal, e encontra-se associada a degradação renal
progressiva. Está dependente de um aumento de Manifestações clínicas e diagnóstico
pressão intravesical devido a obstrução mecânica
ao esvaziamento da bexiga (válvulas da uretra O RVU gera um quadro de nefro-uropatia de
posterior/VUP ou a perturbações da função refluxo, intimamente relacionado com a existência
detrusor-esfíncter (contracções não inibidas do de infecção urinária. De salientar que a cronici-
dade desta situação patológica pode originar cica-
QUADRO 1 – Tipos e causas de RVU trizes renais (CR) com degradação progressiva da
função renal, predispondo a HTA.
Tipo Causa O diagnóstico do RVU é feito por cistouretro-
Primário Incompetência congénita do grafia miccional ou gamacistografia isotópica. A
mecanismo valvular da junção primeira permite uma melhor caracterização da
vesicoureteral
Primário associado a Duplicação ureteral
anomalias congénitas Ureterocele com duplicação
ao nível da junção Uréter ectópico
vesicoureteral Divertículo paraureteral
Secundária a pressão Megauréter com RVU
intravesical Bexiga neuropática
aumentada Disfunção de bexiga (não
neuropática)
Obstrução da junção
vesicouretral
Secundário a Cistite bacteriana Ligeiro Moderado Grave
processos Litíase vesical Grau I Grau III Grau V
Refluxo atingindo Moderada dilatação do Grande dilatação do
inflamatórios Corpo estranho apenas o uréter uréter e bacinete uréter, bacinete e cálice
Secundária a Status pós-intervenção
intervenção cirúrgica
ao nível da junção FIG. 1
ureterovesical Graus de RVU.
CAPÍTULO 166 Refluxo vesico-ureteral 799

uretra e a classificação mais precisa do grau de A B


refluxo (graus I a V); a segunda, uma maior sensi-
bilidade para a detecção de refluxo intermitente.

Indicação cirúrgica
e terapêutica operatória

Os casos de RVU de GI ou GII apresentam uma re-


solução espontânea em cerca de 80% dos doentes,
não sendo necessário proceder a intervenção cirúr-
gica correctiva.
A indicação operatória formal está reservada
para os casos de RVU GIV e GV, em que não se
verifica remissão espontânea.
Nos casos de RVU GIII, a opção cirúrgica deve-
rá ser ponderada se não houver sucesso de tera-
pêutica médica supressora, se se verificar gravi-
dade progressiva, ou se surgirem cicatrizes renais FIG. 2
pós-infecciosas. A – RVU de grau III; B – RVU de grau III (pormenor) – imagem
A terapêutica cirúrgica baseia-se na criação de contrastada de bexiga e uréter. (NIHDE)
um ostium ureteral competente e no desenvolvi-
mento de um túnel submucoso vesical, aumentan-
do o trajecto ureteral transvesical, com uma
relação entre o comprimento do túnel submucoso
e do diâmetro do uréter de 4-5/1, favorecendo,
assim, os mecanismos anti-refluxo.
Actualmente, pode optar-se por uma correcção
por meio de uma injecção por cistoscopia para
implante de material exógeno (teflon; copolímero
de ácido hialurónico; hidroxiapatite) junto do
ostium ureteral, criando um obstáculo físico ao
refluxo. Esta técnica minimamente invasiva e já
praticada no Hospital Dona Estefânia, está a ter
uma aceitação cada vez maior, nomedamente nos
refluxos de menor gravidade, permitindo uma
rápida resolução do problema e obviando a neces-
sidade de realizar cirurgia formal.
A indicação operatória no caso de síndroma de
megauréter com refluxo é sobreponível à descrita no FIG. 3
RVU simples. Deverá corrigir-se previamente a dis- Megauréter demonstrado por cistouretrografia miccional.
função vesical ou a obstrução à drenagem vesical. A (NIHDE)
terapêutica cirúrgica consiste na reimplantação
ureteral de acordo com os príncipios enunciados Complicações pós-operatórias
anteriormente e com recurso a eventual remodelação
(redução do calibre) da porção terminal do uréter. A complicação cirúrgica mais frequente é o
A Figura 2 mostra o padrão obtido por cis- insucesso da intervenção cirúrgica ou do implante
touretrografia miccional (RVU de grau III). A de material exógeno, permanecendo o RVU.
Figura 3 mostra imagem de megauréter utilizando Poderá também originar-se uma obstrução urete-
a mesma técnica. ral: por uma reimplantação demasiado competen-
800 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

te: ou por trajecto ureteral transvesical excessiva- Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
mente longo e de trajecto anómalo. Drzewiecki BA, Thomas JC, Pope JC 4th, et al. Observation of
patients with vesicoureteral reflux off prophylaxis: physi-
Seguimento cian bias on patient selection and risk factors for recurrent
febrile urinary tract infection. J Urol 2012; 188: 480-484
O seguimento desta situação implica a manuten- Elder JS. Imaging for vesicoureteral reflux – Is there a better
ção do esquema de profilaxia antimicrobiana até way? J Urol 2005; 74: 7-8
ao sexto mês pós-operatório, data em que deverá Fanos V, Cataldi L. Antibiotics or Surgery for vesicoureteric
ser realizada uma cistografia de controlo com o reflux in children. Lancet 2004; 364: 1720-1722
objectivo de excluir a persistência de RVU. (capí- Ismaili K, Hall M, Piepez A, et al. Primary vesicoureteral
tulo 164) refleux detached in neonates with a hystory of fetal renal
No caso da síndroma do megauréter (RVU pelvis dilation – A prospective clinical and imaging study. J
secundário) há a salientar que as imagens ecográ- Pediatr 2006; 148: 222-227
ficas de dilatação ureteral se mantêm no seu tra- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
jecto lombar e pélvico, apesar do sucesso da tera- AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
pêutica cirúrgica. Medical, 2011
Thompson M, Simon SD, Sharma V, et al. Timing of follow-up
Prognóstico cystourethrogram in children with primary vesicoureteral
reflux. Development and application of a clinical algo-
O prognóstico global desta patologia depende do rithm. Pediatrics 2005; 115: 426-434
status inicial da função renal e da presença de cica- Venhola M, Huttunen MP, Uhari M. Meta-analysis of vesi-
trizes renais pré-operatórias. O sucesso da tera- coureteral reflux and uriniary tract infection in children.
pêutica cirúrgica anti-refluxo permite evitar o Scand J Urol Nephrol 2006; 40: 98-102
agravamento da função renal por prevenção da
nefropatia motivada pelas cicatrizes renais pro-
gressivas. Assim, o prognóstico é bom, descreven-
do-se desaparecimento de RVU em cerca de 95% a
97% dos casos.
O prognóstico nos casos de síndroma do
megauréter com RVU secundário depende da
natureza etiológica do megauréter.
A síndroma de Mitchel consiste na presença
de megauréter devido a válvulas da uretra poste-
rior (VUP), coexistindo com displasia renal bilat-
eral, devido à presença de RVU exuberante pré-
natal. O prognóstico nestes casos não é favorável,
devido a insuficiência renal progressiva.
Pelo contrário, a correcção cirúrgica de RVU,
não relacionada com obstrução ao drenado vesical
ou sem cicatrizes renais graves, é favorável com a
resolução cirúrgica em cerca de 80% dos casos.

BIBLIOGRAFIA
Afshar K, Papanikolaou F, Malek R, et al. Vesicoureteral reflux
and complete ureteral duplication. Conservative or surgical
management? J Urol 2005; 173: 1725-1727
Al-Sayyad AJ, Pike JG, Leonard MP. Can prophylactic antibi-
otics safely be discontimed in children with vesicoureteral
reflux? J Urol 2005; 174: 1587-1589
CAPÍTULO 167 Uropatia obstrutiva 801

167
mais graves, por compressão do parênquima
renal com alterações da diferenciação córtico-me-
dular e parênquimo-sinusal.
Este defeito tem uma incidência de 1/2.000
nascimentos, sendo mais frequente no sexo mas-
culino e no lado esquerdo. A anomalia pode ser
UROPATIA OBSTRUTIVA bilateral em 20% dos casos.

Rui Alves Manifestações clínicas e diagnóstico

Actualmente, devido aos progressos verificados


na vigilância pré-natal e à rotina do estudo eco-
Importância do problema gráfico durante o referido período, esta anomalia
do aparelho urinário é a mais frequentemente
A obstrução do tracto urinário pode ser congénita detectada por diagnóstico pré-natal. Porém, o
(anatómica), ou causada por traumatismo, neopla- achado ecográfico de dilatação do excretor supe-
sia, cálculos, processos inflamatórios; e como rior não é sinónimo ou indicativo de obstrução
resultado de procedimentos cirúrgicos. Na maior mecânica total, podendo esta situação desaparecer
parte dos casos trata-se de lesões congénitas. no período neonatal precoce. Contudo, é consis-
As lesões obstrutivas podem localizar-se a tente com uma atitude de vigilância clínica e ima-
qualquer nível, desde o meato uretral às infundibu- giológica. O factor de decisão mais importante é a
la caliciais. sintomatologia e a evidência de degradação da
As repercussões sobre o parênquina renal função renal. Por essa razão, está indicado um
dependem do nível da obstrução, do seu grau, da conjunto de exames complementares que nos au-
idade da criança e do modo como surge (agudo ou xiliam na decisão terapêutica durante o período
crónico). neonatal.
Seguidamente são descritas algumas das enti- Nos doentes sem diagnóstico pré-natal ou sem
dades clínicas mais representativas deste tipo de sintomatologia neonatal, o quadro clínico pode
patologia. ser muito variável. Pode surgir como infecção
urinária, como causa de dor abdominal – lombar
recorrente, como massa lombar pela dilatação
extrema do bacinete, ou como causa obscura de
1. SÍNDROMA DA JUNÇÃO hipertensão de natureza renovascular. Na segun-
PIELO-URETERAL da infância, a SJPU pode ser causa de hematúria
macroscópica pós-traumatismo do rim, mesmo
Definição e aspectos epidemiológicos ligeiro.
O diagnóstico deste defeito é fundamental-
A síndroma da junção pielo-ureteral (SJPU) é uma mente imagiológico. A ecografia permite identi-
anomalia do aparelho urinário superior caracteri- ficar a dilatação do bacinete e dos cálices renais, e
zada pela obstrução funcional ou estrutural da também estabelecer a diferenciação córtico-medu-
junção pielo-ureteral, de carácter completo ou lar e parênquimo-sinusal no rim afectado.
parcial. Essa obstrução pode ser devida a um O renograma isotópico DTPA permite confir-
obstáculo mucoso endoluminal do uréter, a válvu- mar a presença de obstrução mecânica à excreção
la anómala do uréter, a angulação do mesmo, a do radiofármaco, mais evidente na prova com
compressão extrínseca por bandas fibróticas furosemido. Salienta-se que estes exames podem
retroperitoneais, ou por vaso anómalo originário ser unicamente realizados após a 3ª ou 4ª semana
da artéria renal polar inferior. de vida por limitações técnicas que se prendem
A SJPU é responsável por dilatação progressi- com o peso do recém-nascido, a sua capacidade de
va do bacinete e dos cálices renais e, em estádios processamento do radiofármaco e a captação
802 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

pelos aparelhos de leitura. Actualmente, o uso de crobiana iniciada, uma vez estabelecido o dia-
renograma com MAG3 pode encurtar o intervalo gnóstico da situação. (Capítulo 164)
de estudo para a 2ª semana de vida. O renograma
isotópico permite avaliar a função renal diferen- Prognóstico
cial e a taxa de filtração glomerular.
A utilização de contraste iodado convencional Na ausência de complicações cirúrgicas, nomea-
na urografia endovenosa (de eliminação) está re- damente urinoma pós- operatório ou estenose da
servada apenas para casos particulares para anastomose pielo-ureteral, o prognóstico é em
delimitação anatómica (por imagem) do excretor geral bom, tendo a cirurgia correctiva sucesso em
alto. mais de 95% dos casos.

Indicação cirúrgica e terapêutica


operatória
2. MEGAURÉTER OBSTRUTIVO
Os critérios de indicação cirúrgica no SJPU são de
carácter clínico e funcional. Definição e aspectos epidemiológicos
Os critérios clínicos são constituídos por
existência de massa renal palpável, sintomatolo- A dilatação do uréter (> 7 mm) de natureza con-
gia dolorosa ou infecção renal recorrente ou de génita obstrutiva é denominada megauréter
carácter subclínico. obstrutivo. O megauréter obstrutivo surge como
Os critérios funcionais prendem-se com a resultado de estenose da junção ureterovesical, ou
medição ecográficado do diâmetro ântero-posterior de implantação ectópica do mesmo, desenvolven-
do bacinete (DAPB > 20 mm), o atraso de excreção do-se uma dilatação a montante por aumento da
de radiofármaco superior a 20 minutos, e a função pressão endoluminal na árvore excretora. A
renal diferencial (FRD) inferior a 35% (do lado afec- incidência é cerca de 1/2.000.
tado em relação ao contralateral). (ver Capítulo 168). O megauréter pode ser bilateral em cerca de
As várias opções cirúrgicas disponíveis para a 25% a 30% dos casos e está associado a duplici-
resolução do SJPU baseiam-se no princípio da dade da árvore excretora em cerca de 85% dos
ressecção da zona estenosada e ulterior anasto- mesmos.
mose alargada ao bacinete, permitindo uma
drenagem passiva mais eficaz. A pieloplastia de Etiopatogénese
Anderson-Haynes é a técnica cirúrgica mais uti-
lizada na maior parte dos casos. Esta anomalia é devida a uma alteração histológi-
ca da porção terminal do uréter com hipertrofia
Complicações pós-operatórias das fibras de colagénio, escassez de fibras muscu-
lares longitudinais e hiperplasia de fibras muscu-
A pieloplastia é um procedimento cirúrgico com lares circulares.
uma frequência baixa de complicações. As com-
plicações pós-operatórias mais descritas estão Manifestações clínicas e diagnóstico
associadas a infecção da ferida operatória e à
pequena extravasão de urina pela anastomose Esta situação tem diagnóstico pré-natal frequente
pielo-ureteral. (cerca de 65%), sendo característica do sexo mas-
culino.
Seguimento O quadro clínico é pouco característico e reve-
la-se, na maior parte dos casos, por infecção
O seguimento da situação é realizado em ambu- urinária recorrente.
latório com a realização de ecografia ao 3º mês e A litíase ureteral pode também complicar o
renograma de controlo ao 6º mês pós-operarório. quadro obstrutivo em cerca de 5% dos casos. A
Até então deverá ser mantida a profilaxia antimi- existência de um megauréter obstrutivo agravado
CAPÍTULO 167 Uropatia obstrutiva 803

pelo encravamento distal de cálculos constitui vencional mesmo após cirurgia de reimplantação
uma urgência em urologia, tendo indicação para com sucesso, uma vez que a dilatação ureteral no
descompressão imediata. seu trajecto lombar e pélvico não é alterada com a
Como exames complementares de diagnóstico, intervenção cirúrgica. Este aspecto é muito impor-
a ecografia renal, vesical e ureteral fornecem uma tante de notar e não deve alarmar o médico assis-
imagem de uréter-hidronefrose volumosa, muitas tente, salvo nos casos de manutenção do quadro
vezes associada a alterações da diferenciação cór- de infecção urinária ou de dor lombar por disten-
tico-medular e parênquimo-sinusal renal. A cis- são da árvore excretora.
tografia com tempo miccional deverá ser realizada Esta situação patológica implica acompa-
para exclusão da etiologia refluxiva do megau- nhamento assíduo por equipa multidisciplinar
réter. O renograma isotópico com DTPA ou MAG3 (pediatra, imagiologista, etc.) pelo risco de degra-
confirma a natureza obstrutiva da lesão e permite dação progressiva da função renal.
avaliar a função renal diferencial. A cintigrafia O seguimento imagiológico pós-operatório é
renal com DMSA faculta a imagem da perfusão do realizado por meio de ecografia renal ao terceiro
parênquima e a possível presença de cicatrizes mês, e por renograma isotópico ao sexto mês. Pos-
renais pós-infecciosas. A urografia endovenosa teriormente, é necessário realizar um renograma
permite realizar a definição anatómica da porção isotópico com uma periodicidade anual em simul-
final do uréter e da sua relação com a junção tâneo com estudo de parâmetros laboratoriais da
uréter-vesical, ou da sua inserção ectópica. função renal.

Indicação cirúrgica Prognóstico


e terapêutica operatória
O prognóstico desta patologia depende directa-
A indicação cirúrgica desta situação é essencial- mente do status da função renal pré-operatória. A
mente colocada na presença de defeito anatómico correcção cirúrgica do megauréter, quando reali-
da junção uréter- vesical, e de implantação anómala zada com sucesso, pode evitar a degradação pro-
do uréter ectópico no colo vesical. Outra indicação gressiva da função renal, mas não pode melhorar o
cirúrgica premente é a degradação progressiva da status renal decorrente da situação pré-operatória.
função renal secundária à presença de infecção Na ausência de complicações pós-operatórias e
urinária recorrente associada a esta anomalia. de degradação progressiva da função renal o
A terapêutica cirúrgica baseia-se na reimplan- prognóstico é, em geral, bom.
tação uréter-vesical eutópica (ou no local normal)
e na ureteroplastia de redução de calibre quando
necessária, para se poder reimplantar o uréter,
com segurança, na bexiga.
3. URETEROCELE

Complicações pós-operatórias Definição

As complicações pós-operatórias mais frequentes O ureterocele é uma dilatação quística terminal da


são a manutenção do quadro obstrutivo e a per- porção intravesical do uréter, geralmente associada
sistência de infecção urinária recorrente. Poderá a estenose do ostium ureteral. Esta anomalia está
também haver desenvolvimento de um quadro associada a duplicidade do sistema excretor em 80%
refluxivo, por ostium ureteral reimplatado com dos casos (pielão superior) e a ectopia e bilaterali-
função anómala. dade, respectivamente em 60% e 10% dos casos.

Seguimento Manifestações clínicas e diagnóstico

É de salientar que as imagens de dilatação do uré- Actualmente cerca de 60% dos casos de ureteroce-
ter se mantêm na ecografia e na radiologia con- le têm diagnóstico pré-natal. A clínica é muito
804 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

pouco característica e manifesta-se fundamental- ressecção do pielão superior renal, com excisão do
mento por infecção urinária. No sexo feminino megauréter; e, por incisão vesical, a excisão do
pode manifestar-se por incontinência urinária ureterocele, e reimplantação eutópica do uréter
primária permanente. originário do pielão inferior no trígono vesical
O diagnóstico é feito, na maior parte dos casos, homolateral.
por meio ecográfico, no âmbito da investigação de
um quadro de infecção urinária. A ecografia Complicações pós-operatórias
fornece imagens características compatíveis com a
presença de uma massa quística intravesical, com A complicação pós-operatória mais frequente é o
uréter pélvico visível. O exame ecográfico permite estabelecimento de RVU secundário, quer ao pro-
também diagnosticar a presença de sistemas du- cedimento endoscópico, quer à terapêutica cirúr-
plos de drenagem renal. A urografia de eliminação gica. Ambas as situações obrigam a correcção ulte-
permite delinear a anatomia do sistema excretor, a rior por cirurgia anti-refluxiva. Por vezes, poderá
ectopia da relação distal do uréter, e a típica ima- haver lesões iatrogénicas do colo vesical secun-
gem translúcida de subtracção intravesical que é dárias à ressecção de ureteroceles gigantes interes-
patognomónica. A cistouretrografia com tempo sando a região do colo, com consequente pertur-
miccional permite diagnosticar a presença de bação dos mecanismos de continência do colo.
refluxo para o pielão inferior, nos sistemas duplos
(50% dos casos) e para o uréter contralateral (25 % Seguimento
dos casos).
O seguimento deve ser rigoroso e estar focado no
Indicação operatória controlo e preservação da função renal bilateral,
e terapêutica cirúrgica assim como na manutenção dos mecanismos de
continência urinária.
O ureterocele tem sempre indicação cirúrgica, Estes doentes necessitam: de controlo ecográfi-
porque está associado a alterações anatómicas e co na terceira semana pós-operatória, para certifi-
funcionais da relação distal do uréter, e cursa fre- cação do sucesso cirúrgico da ressecção do urete-
quentemente com um quadro de infecção urinária rocele; da realização de cistografia miccional para
recorrente. rastrear o estabelecimento de RVU pós-procedi-
O objectivo do tratamento do ureterocele é o mento; e de controlo isotópico anual para contro-
controlo da infecção urinária, a preservação da lo da função renal total e diferencial.
função renal, a protecção funcional das unidades
de drenagem renal normal homolaterais ou con- Prognóstico
tralaterais, e a manutenção da continência
urinária. O prognóstico global depende da função renal
Nos ureteroceles pequenos, eutópicos e não residual. A terapêutica cirúrgica é correctiva em
associados a dilatação ureteral de grande dimen- mais de 90% dos casos.
são, o tratamento cirúrgico pode ser realizado por
via endoscópica transuretral com ressecção do
mesmo. Este tipo de tratamento tem sucesso clíni-
co em cerca de 85% dos casos; a descompressão do
4. VÁLVULAS DA URETRA
ureterocele está especialmente indicada no recém-
POSTERIOR
-nascido. Se houver RVU secundário ao procedi-
mento, a reimplantação secundária é necessária. Importância do problema
Porém, nos casos de ureteroceles de grande
dimensão, associados a duplicidade da árvore ex- As válvulas da uretra posterior (VUP) são peque-
cretora renal ou ectópicos, a terapêutica cirúrgica nas pregas mucosas da uretra masculina, que se
convencional é a mais indicada. Nesta abordagem constituem como obstáculo ao fluxo anterógrado e
cirúrgica, por incisão lombar, deverá ser feita a normal de urina. Estão localizadas na crista ure-
CAPÍTULO 167 Uropatia obstrutiva 805

tral, na proximidade do veru montanum. Tal ano- O diagnóstico da situação é, por conseguinte,
malia já existe por volta da 12ª semana gesta- feito com a concordância da clínica e dos exames
cional, quando começa a formar-se urina. complementares.
Considerando a globalidade dos processos O exame ecográfico pós-natal pode oferecer
obstrutivos infravesicais, as VUP constituem as imagem de uma bexiga de capacidade aumenta-
situações de maior relevância, uma vez que o grau da, sinais de parede espessada por hipertrofia
e duração da obstrução poderão conduzir a lesão muscular, trabeculação da mucosa, divertículo da
renal irreversível na ausência de tratamento. bexiga e dilatação do tracto excretor por refluxo
Quanto à localização, estas anomalias são clas- vésico-ureteral de grau elevado; pode verificar-se
sificadas do seguinte modo: tipo I (as mais fre- também a presença de hidronefrose do excretor
quentes e mais distais ao veru montanum); tipo II alto. Dependendo do compromisso do desen-
(muito raras, entre o colo da bexiga e o veru mon- volvimento do parênquima renal, poderão ser evi-
tanum) e tipo III (sobre o veru montanum). dentes imagens de displasia renal bilateral.
Actualmente as VUP integram-se na síndroma O exame de excelência ou gold-standard para o
denominada síndroma válvula-bexiga à qual está diagnóstico de VUP é a cistografia miccional. Este
ligada um conceito funcional: a persistência de exame permite, na fase de enchimento vesical,
obstrução uretral origina disfunção vesical grave quantificar a capacidade da bexiga, delimitar o
(bexiga permanecendo com baixa capacidade em contorno mucoso da mesma (presença de trabecu-
repouso e elevadas pressões sob enchimento) e lações), detectar a presença de divertículos e de
ulterior desenvolvimento de uréter-hidronefrose refluxo vésico-ureteral; e, na fase miccional, apre-
ascendente com repercussão funcional renal. sentar as alterações típicas da uretra posterior na
presença de válvulas da uretra: alongamento e
Manifestações clínicas e diagnóstico alargamento da uretra prostática e hipertrofia do
colo da bexiga.
As manifestações clínicas deverão ser considera- O exame que permite a definição anatómica de
das dentro de um espectro de gravidade variável. VUP é a uretrocistoscopia. Com esta técnica é
As formas mais graves manifestam-se já no possível obter a imagem em tempo real do tipo
recém-nascido. Por outro lado, existem casos de específico de VUP, assim como a sua localização
obstrução discreta, assintomáticos durante um em relação ao veru montanum. Por outro lado, com
período longo de tempo. a mesma, é possível a terapêutica das VUP por
Simultaneamente, existem formas de apresen- ablação endoscópica. Esta manobra cirúrgica po-
tação de extrema gravidade, de expressão ecográ- de ser realizada no período neonatal.
fica pré-natal com oligoâmnio, sinais de dilatação Nos casos de incapacidade técnica de ablação
do aparelho excretor alto e alterações do desen- endoscópica, poderá ser necessário construir uma
volvimento do parênquima renal bilateral. vesicostomia temporária para derivar o tracto
As manifestações clássicas, já detectáveis no urinário pré-uretral.
recém-nascido, são caracterizadas por jacto uri-
nário fraco ou gotejante, sinais de retenção vesi- Prognóstico
cal (saliência hipogástrica dura e não depressível
relacionada com bexiga de parede espessada e As VUP são uma situação clínica cujo prognóstico
com hipertrofia muscular da mesma), massa decorre do espectro de apresentação e da precoci-
abdominal-lombar compatível com mega-uréteres dade da ablação cirúrgica.
refluxivos, e hidronefrose marcada do excretor Com efeito, o tratamento endoscópico precoce
alto. Por vezes, por perfuração do tracto excretor, evita o agravamento progressivo da disfunção
pode surgir ascite urinária volumosa. vesical e do refluxo vésico-ureteral de grau eleva-
A infecção urinária, resultante da retenção do, o que contribui para o não agravamento do
grave, pode ser complicada de sépsis urinária. As status funcional renal. O estádio mais grave é ca-
VUP podem igualmente ser causa de hipertensão racterizado por displasia renal bilateral, com
arterial no recém-nascido. episódios de hipertensão e insuficiência renal de
806 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

instalação progressiva (a qual poderá surgir com Mitchell M, Close C. Early valve ablation for posterior urethral
frequências oscilando entre 25 e 50%). valves. Semin Ped Surg 1996; 5: 66-69
Inversamente, a evicção do obstáculo ao esva- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
ziamento vesical promove o crescimento harmó- AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
nico e cíclico da bexiga, contribuindo para uma Medical , 2011
capacidade normal, com pressões de enchimento Shcraft KW (ed). Pediatric Urology. Philadelphia: Saunders,
e de esvazimento também normais. De igual 2005
modo, a inexistência de refluxo vésico-ureteral e
de uretér-hidronefrose volumosa, evita a degrada-
ção renal progressiva, promovendo o desenvolvi-
mento e diferenciação do rim do recém-nascido.

5. SÍNDROMA DE EAGLE BARRETT


(prune-belly)

No âmbito da abordagem do tópico “Obstrução


do tracto urinário” é clássico mencionar esta situa-
ção rara (1/40.000 RN) sendo 95% do sexo mas-
culino, com elevada mortalidade fetal. Esta sín-
droma caracteriza-se fundamentalmente por defi-
ciente desenvolvimento da musculatura abdomi-
nal e da bexiga, aspecto flácido e pregueado da
pele abdominal (daí o nome de “barriga com as-
pecto de abrunho”), e obstrução do tracto urinário
incluindo uretra. De tal resultam oligoâmnio, por
vezes ascite urinária, fácies Potter e hipoplasia
pulmonar. Outras anomalias incluem displasia
renal, defeitos cardíacos, ectopia testicular, etc..
O prognóstico depende da hipoplasia pul-
monar e do grau de disfunção renal. Há casos sub-
metidos a transplante renal com bons resultados.

BIBLIOGRAFIA
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CAPÍTULO 168 Diagnóstico pré-natal das uropatias malformativas 807

168
válvulas da uretra posterior (1-5%), ureterocele (1-
3%), situações mais raras (quistos renais, ectopia
do uréter, síndroma prune-belly, rim poliquístico,
etc.) (<1%).

2. Reportando-nos ao rastreio ecográfico pré-


DIAGNÓSTICO PRÉ-NATAL DAS natal dos defeitos nefro-urológicos, segundo a
SFU e a Secção de Nefrologia da SPP, no 3º
UROPATIAS MALFORMATIVAS trimestre, os parâmetros a avaliar com importân-
cia na actuação pós-natal são os seguintes: 1) Rins:
João M. Videira Amaral grau de dilatação (diâmetro ântero-posterior do
bacinete em mm (DAPB), presença de dilatação
calicial, presença de dilatação dos uréteres, espes-
sura do parênquima, ecogenicidade, perda de
Importância do problema diferenciação corticomedular, presença de quistos
corticais; 2) Bexiga; 3) Volume do líquido amnióti-
As anomalias nefro-urológicas constituem a pato- co.
logia mais frequentemente detectada por ecogra- De salientar que a avaliação do líquido am-
fia fetal (variando entre 1 a 5% dos exames efectu- niótico é um indicador da função renal e com im-
ados), sendo a hidronefrose (dilatação do bacinete) plicações no prognóstico; oligo-hidrâmnio grave
o defeito urogenital mais comum, sugerindo a pre- na presença de uropatia está associado a mau
sença de processo obstrutivo. prognóstico.
O maior benefício do rastreio pré-natal é permi- Estudos realizados no período pós-natal reve-
tir o diagnóstico e tratamento precoces das referidas lam a existência de relação entre a anomalia ob-
anomalias, evitando complicações como infecção servada na ecografia fetal e a evolução pós-natal
urinária, litíase e perda progressiva da função renal. quando o DAPB fetal é > 4 mm antes das 33 sem-
No entanto, o tópico em análise suscita por vezes anas, ou > 7 mm depois das 33 semanas. De acor-
dilemas e controvérsias em relação sobretudo com o do com a SFU, valorizando os dados da ecografia
significado de certas dilatações da via excretora com do 3º trimestre (DAPB) considera-se hidronefrose
implicações na actuação pós-natal. ligeira se for 7-8 mm (56-88% dos casos); mode-
rada se 9-14 mm (10-30%); grave se > 15 mm (1,5-
Etiopatogénese e ecografia fetal 13%). O chamado índice de Zhan, segundo a ex-
periência dalguns centros, quantificando os
1. Considerando a embriologia e fisiologia do sis- parâmetros DAPB em mm, a espessura do parên-
tema urinário fetal, salienta-se que o atraso na quima em mm, e a morfologia/grau de ectasia dos
maturação do mesmo poderá originar dilatações cálices, permite estabelecer a destrinça entre
transitórias (15 a 54%) no período pós-natal sem hidronefrose fisiológica e patológica.
repercussão sobre a função renal. De facto, as mes-
mas surgem em regra a partir da 28ª semana de Aspectos epidemiológicos nacionais
gestação como resultado do aumento da produção
da urina, que duplica entre a 32ª e 39ª semanas. Numa casuística da Unidade de Nefrologia do
De acordo com a Society for Fetal Urology (SFU) Hospital de Dona Estefânia (HDE), Lisboa,
e T. Nguyen, a hidronefrose detectada no período abrangendo 362 casos com anomalias ecográficas
pré-natal é explicável por diversas situações pré-natais num período de dez anos (1997 – 2006)
surgindo com frequências diversas: transitória/fi- verificou-se um predomínio de hidronefrose fetal
siológica (50-70%) – a mais comum, obstrução (78,5%); quistos/displasia multiquística em 10,8%,
uretero-pélvica (10-30%), refluxo vésico-ureteral oligo-hidrâmnio em 3,3%, e outras anomalias (não
(RVU) (10-40%), obstrução da junção uretero-vesi- nefro-urológicas) em 3,8%. No estudo evolutivo
cal (5-15%), displasia renal multiquística (2-5%), pós-natal de 284 crianças com antecedentes de
808 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

hidronefrose fetal confirmou-se uropatia em 44% e 72 horas ou entre as 2 e 4 semanas de acordo com
dos casos. o grau de dilatação do bacinete/DAPB. Em função
Num estudo multicêntrico nacional no âmbito do quadro clínico, poderá ser repetida ulterior-
das Secções de Nefrologia, e Neonatologia da SPP, mente (Anexos).
e da Sociedade de Cirurgia Pediátrica (SN, NN/ Cisto-uretrografia
SPP, SCP) realizado em 2012, foram divulgados os *A cisto-uretrografia miccional seriada (CUMS)
dados ecográficos pré-natais /3º trimestre, os quais quando indicada, permitirá detectar a presença e
constam do Quadro 1. De acordo com o referido es- grau de refluxo vésico-ureteral (RVU), avaliar a
tudo, cabe salientar que em 81% das crianças evi- bexiga para detecção de divertículos e ureteroce-
denciando no período pré-natal sinais de ectasia les, e avaliar igualmente a uretra para detecção de
piélica ou ureteral não obstrutiva (das quais 80% válvulas da uretra posterior. Um limitação deste
com DAPB < 15 mm) verificou-se evolução para a exame, gerando por vezes controvérsia, relaciona-
normalidade, ou para melhoria do grau de hidrone- se com o facto de somente permitir a detecção de
frose nos dois anos de seguimento pós-natal. RVU em 12-21% dos casos (ver fluxograma).
*A cisto-uretrografia radio-isotópica/gamacis-
Actuação pós-natal tografia, não contemplada no fluxograma, é reali-
zada com radiofármacos (DTPA-Tc99) não ab-
Perante antecedentes pré-natais de anomalia evi- sorvidos pela mucosa vesical (ver adiante). Tal
denciada pela ecografia, designadamente no 3º procedimento expõe 100 vezes menos o paciente à
trimestre, para além do exame físico do RN, estão radiação relativamente à CUMS.
indicados determinados procedimentos e exames Exames com radiofármacos: cintigrafia
pós-natais em função de determinados critérios, e renograma
enquadrados nos fluxogramas que integram as *Trata-se de exames considerados comple-
Figuras 1 e 2 (ver Anexos). As opções iniciais de- mentares da ecografia , indicados para avaliação do
pendem dos valores do DAPB evidenciados na grau de compromisso do parênquima renal, função
ecografia pré-natal, considerando-se dois grandes renal diferencial e caracterizar o grau de obstrução
grupos: dilatação pré-natal grave (= ou > 15 mm) e (Consultar Anexos com fluxograma e Glossário
dilatação pré-natal ligeira ou moderada (7-14 mm). geral relativamente às indicações e cronologia da
respectiva realização). Como regra geral, a cinti-
Exames pós-natais grafia realiza-se após as 6 semanas de idade tendo
Ecografia renal e vesical pós-natal em conta o processo de maturação renal.
São analisados os mesmos parâmetros já avali- *Para a realização de cintigrafia e de renogra-
ados aquando da ecografia pré-natal, exceptuan- ma são utilizados essencialmente três radiofár-
do, claro, o parâmetro “líquido amniótico”. A macos: DTPA-Tc99 (ácido dietileno triamino pen-
primeira ecografia poderá ser realizada entre as 48 tacético, filtrado pelos glomérulos); MAG3-Tc99
(mercaptoacetiltriglicina, depurado por secreção
QUADRO 1 – Resultados de ecográfias tubular, possuindo alta fracção de extracção pelos
pré-natais no 3º trimestre rins); DMSA-Tc99 (ácido dimercapto-succínico,
ligando-se principalmente às células dos túbulos
(n= 736)* Hidronefrose 620 proximais). Utiliza-se o estímulo diurético da
Displasia multiquística 37 furosemida (1 mg/kg) quando for visualizada a
Agenesia 8 máxima distensão do bacinete. De referir que os
Megauréter 7 bacinetes demasiado distendidos e sem obstrução
Duplicidade pielo-ureteral 3 servem como “reservatório”, não se verificando
Rim pélvico 1 eliminação do mesmo após o estímulo diurético.
Rim em ferradura 1 No fluxograma foram considerados apenas MAG3
* excluídos 59 casos por DAPB não quantificado; nos casos de patologia bilateral, foi con-
e DMSA (consultar Glossário Geral e Anexos).
siderado o bacinete com maior DAP.
(Estudo multicêntrico nacional- SN, NN/SPP, SCP) atrás citado.
Ressonância Magnética Nuclear Urográfica
Apesar de proporcionar melhor informação
CAPÍTULO 169 Insuficiência renal aguda 809

169
morfofuncional que outros exames imagiológicos,
tem maiores custos e exige sedação, pelo que não
é contemplada no fluxograma.

Profilaxia com antimicrobiano


Como regra geral, quando indicada e em toma úni-
ca diária, utiliza-se o trimetoprim em suspensão a INSUFICIÊNCIA RENAL AGUDA
1%, manipulada, na dose de 1 mg/kg/dia.
(Consultar Anexos e Capítulo 164). Isabel Castro

BIBLIOGRAFIA
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tal das anomalias do tracto urinário: dez anos de experiên- Definição e importância do problema
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agement of antenatal hydronephrosis. J Pediatr Urol 2010; (como acontece nas formas de IRA por nefrotóxi-
6:212-231. cos, por exemplo).
Passerotti CC, Kalish LA, Chow J, et al. Thr predictive value of Surge em cerca de 2-3% das crianças admitidas
the first postnatal ultrasound in children with antenatal hy- para centros especializados; no período neonatal a
dronephrosis. J Pediatr Urol 2011; 7: 128-136 frequência coresponde a cerca de 8% dos casos
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Yamaçake KJR, Nguyen HT. Current management of antenatal medular, e a lesão tubular com reacções metabólicas
hydronephrosis. Pediatr Nephrol 2013; 28:237 – 243 e inflamatórias celulares. Daqui resulta fenómeno
obstrutivo que leva a diminuição da FGR.
Agradecimento muito cordial às colegas Drªs Margarida Habitualmente classifica-se a IRA em: pré-renal
Abranches e Judite Batista pelas opiniões apresentadas. – se causada por redução do fluxo sanguíneo renal;
renal ou intrínseca – se a causa reside no próprio
parênquima renal; e pós-renal – se devida a
obstrução ao fluxo de urina.
São causas possíveis de IRA pré-renal:
• Hipovolémia, gastrenterite/desidratação,
hemorragia, queimaduras, hipoproteinémia,
cetoacidose diabética, perdas para o 3º
espaço;
810 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

• Vasodilatação periférica, sépsis, anti-hiper- • Traumatismo;


tensores (bloqueantes dos canais de cálcio); • Tumor; síndroma de lise tumoral;
• Insuficiência cardíaca congestiva, choque • Obstrução de algália.
séptico;
• Drogas, diuréticos, imunossupressores, anti- A necrose tubular aguda é a causa mais fre-
bióticos, antifúngicos, etc.. quente de IRA e geralmente resulta de hipoper-
fusão renal. Um dos factores subjacentes é a
Pormenorizando a situação de hipovolémia: hipóxia-isquémia secundária a hipoperfusão,
como consequência surge activação do sistema levando a vasoconstrição renal e a eventual lesão
nervoso simpático e do sistema renina-angiotensi- tubular. A necrose tubular renal também pode
na; e, como consequência verifica-se elevação da resultar da acção de drogas, toxinas exógenas
nor-epinefrina e da angiotensina II, levando a (etilenoglicol, metanol), ou endógenas (mioglobi-
vasoconstrição renal e diminuição da FGR. na, hemoglobina) – ver atrás.
Surgem entretanto mecanismos de compensação Estes três grupos não são independentes, po-
no sentido de ser garantida a FGR: elevação da dendo a IRA pré-renal ou pós-renal inicial evoluir
angiotensina II e prostaglandinas vasodilatadoras, para IRA renal. O Quadro 1 estabelece três parâme-
dilatação aferente e constrição eferente. tros de destrinça na criança e recém-nascido.
Causas possíveis de IRA renal ou intrínseca:
• GNA, SHU; Diagnóstico diferencial
• Necrose tubular aguda, necrose cortical aguda;
• Nefrite intersticial; Para além da anamenese e do exame objectivo
• Vasculite – (LED; PSH; Poliarterite) (para avaliação do estado de hidratação, pressão
• Hipercalcémia/hiperfosfatémia/hiper- arterial, sinais infecciosos, exantema, artropatia,
uricémia; hemoglobinúria; mioglobinúria, febre, dor abdominal, alterações miccionais, mas-
etc.; sa abdominal, bexiga palpável, etc.) frequente-
• Agudização de doença renal crónica; mente reveladores da causa da IRA, pode fazer-se
• Nefrotóxicos; o diagnóstico diferencial entre IRA pré-renal e
• Remoção de rim único, iatrogénica; renal de forma relativamente simples, através de
• Trombose/oclusão arterial/venosa renal. amostra de sangue e de urina.
As causas pós-renais podem ser facilmente
Causas possíveis de IRA pós-renal ou obstru- identificadas por ecografia renal (por dilatação
tiva: dos segmentos a montante da obstrução).
• Válvulas da uretra posterior, ureterocele; Dum modo geral as crianças com IRA necessi-
• Bexiga neurogénica; tam de vigilância clínica e laboratorial com espe-
• Cálculo; cial atenção para o peso, pressão arterial, balanço

QUADRO 1 – Critérios de distinção entre IRA pré-renal e renal

Pré-renal Renal
Criança Recém-nascido Criança Recém-nascido
Na+ na urina (mmol/L) < 20 < 40 > 50 > 40
Osmolaridade urinária > 500 > 400 < 300 < 400
(mOsm/kg H2O)
Fracção excretada de sódio <1 <2 >1 >3
% ( FENa)*

* ( FENa) = sódio urinário x creatinina plasmática x 100 ⇒ avalia a quantidade de sódio filtrada pelo
sódio plasmático x creatinina urinária glomérulo que, não sendo reabsorvida
pelo túbulo, é excretada na urina.
CAPÍTULO 169 Insuficiência renal aguda 811

QUADRO 2 – Tratamento da IRA

Objectivo Medicação Dose


Estabilização do miocárdio Gluconato de cálcio a 10% 0,5 – 1 ml/kg – EV
em 5-10 minutos


Desvio do potássio do espaço Salbutamol Aerossol – 2,5mg se < 25kg
extracelular para o intracelular – 5 mg se > 25 kg
EV - 4µg / kg - em 10 min.
Bicarbonato de sódio a 8,4% 1 – 2 ml / kg – EV
Glicose 0,5 – 1 g/kg/h
Insulina 0,2 U por cada grama de glicose
Remoção de potássio do organismo Resina permutadora de iões 1 g / kg – via oral / rectal se
Diálise hipercaliémia elevada/persistente

hídrico e valores séricos de ureia, creatinina, iono- Restrição de fluidos + diurético (furosemido
grama, cálcio e gasometria. 2mg/kg EV).
Nalguns centros utiliza-se um biomarcador Hipotensores: nifedipina 0,5 – 1 mg/kg – sub-
urinário de lesão e falência renal precoces em lingual.
diversas situações (por ex. sépsis); trata-se da Hemodiálise/hemofiltração: se há oligúria e
NGAL (neutrophil-gelatinase-associated lipocalin). risco de encefalopatia.
5) Hipo ou hipernatrémia – mais vulgarmente
Tratamento (bases fundamentais) hiponatrémia:
Restrição de fluidos – porque frequentemente
A correcção da IRA baseia-se na evicção da causa é devida ao respectivo excesso;
desencadeante e na correcção das alterações exis- Soro salino hipertónico – se natrémia <120
tentes. mEq/L – geralmente devida a poliúria (Capítulo 50).
Frequentemente a IRA pode constituir uma 6) Hipocalcémia – geralmente assintomática,
emergência com necessidade de correção imedia- por vezes devida à correcção da acidose ou da
ta de determinados eventos. (Quadro 2) hipercaliémia com bicarbonato. Administrar glu-
1) Hipercaliémia (especialmente se associada a conato de cálcio a 10% - 0,1 mmol/kg/hora ~ (0,5
alterações do ECG) (Quadro 2). (Capítulos ml/kg/h) se espasmos musculares, convulsões
48-50) e/ou diminuição do cálcio ionizado.
2) Acidose metabólica por incapacidade de o Regra geral, o prognóstico da IRA depende do
rim excretar hidrogeniões, e por aumento da controlo e correção atempada da causa subjacente.
sua produção.
Se pH sérico < 7,2: bicarbonato de sódio a 8,4% BIBLIOGRAFIA
- 1-2 ml/kg; (ou conforme cálculo: nº de mEq de Andreoli SP. Acute renal failure in the newborn. Semin
bicarbonato a administrar = 0,3 x défice de base x Perinatol 2004; 28: 112-123
peso em kg), sendo que 1 mL de bicarbonato de Avner E D, Harman W E, Niaudet P (eds). Pediatric
sódio a 8,4% ◊ 1 mEq de bicarbonato. Nephrology. Philadelphia: Lippincott & Wilkins, 2004
Nota: a hipernatrémia comporta risco de HTA. Du Y. Urinary biomarkers to detect acute kidney injury in the
3) Choque – por hipovolémia: pediatric emergence center. Pediatr Nephrol 2011; 26: 267-274
Soro fisiológico ou albumina a 5% ou lactato Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
de Ringer – 20 ml/kg/h – EV. Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011
Sangue total – se hemorragia aguda. Lamiere N, Van Biesen W, Vanholder R. Acute renal failure.
4) HTA/Insuficiência cardíaca congestiva – Lancet 2005; 365: 417-430
devidas a sobrecarga de fluidos e/ou alterações Singri N, Ahya SN, Levin ML. Acute renal failure. JAMA 2003;
vasculares ou parenquimatosas renais: 289: 747-751
812 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

170
etiologia mais prevalente é a glomerulopatia
crónica, primária ou secundária a doença sistémi-
ca, nomeadamente lúpus (LED), púrpura de
Schönlein-Henoch (PSH), síndroma hemolítica
urémica (SHU), seguidas da nefrite intersticial e
pielonefrite crónica (esta última ainda com eleva-
INSUFICIÊNCIA RENAL CRÓNICA da prevalência entre nós); e, mais raramente, a
doença vascular renal.
Isabel Castro No Quadro 2 comparam-se as diferentes etio-
logias da IRC abaixo dos 18 anos de idade, regis-
tadas no Reino Unido, EUA, Suécia e na Unidade
de Nefrologia do Hospital de Dona Estefânia
Definição e importância do problema (Lisboa).
As manifestações clínicas da IRC resultam de
Define-se insuficiência renal crónica (IRC) como diversos factores: 1) incapacidade de manutenção do
perda irreversível da função renal, cuja gravidade equilíbrio hidroelectrolítico, salientando-se a retenção
é proporcional à redução da massa renal funcio- de fosfatos (toxinas vasculares) por diminuição da
nante. (Quadro 1) FGR; 2) acumulação de metabólitos tóxicos (toxinas
Calcula-se uma prevalência de cerca de 18/1 mi- urémicas); 3) perda de hormonas renais como a
lhão na população pediátrica. Trata-se duma eritropoietina, e da forma activa da vitamina D; 4)
situação clínica cujo prognóstico melhorou muito hiperparatiroidismo secundário levando a desmi-
desde há 40 anos pelos progressos realizados neralização óssea e risco de deformações e fracturas;
quanto a suporte nutricional, diálise, tratamento 5) alterações da resposta dos órgãos alvo às hormonas
empregando eritropoietina, hormona de cresci- endógenas (hormona de crescimento).
mento, e transplantação renal. De salientar que a elevação dos valores séricos
de fosfato (P) na insuficiência renal avançada, jun-
Etiopatogénese tamente com a desregulação dos valores de cálcio,
paratormona e vitamina D contribuem para uma
São várias as causas de IRC, variáveis com a entidade clínica designada por complexo doença
idade. Nos primeiros seis anos de vida (e funda- renal crónica-doença mineral óssea (sigla em
mentalmente nos 2 primeiros) predominam as inglês: CKD-MBD). Outro aspecto a relevar rela-
anomalias congénitas (uropatia obstrutiva, cionado com P elevado e demonstrado in vitro diz
hipoplasia/displasia renal e rins poliquísticos), respeito ao desenvolvimento de apoptose das
susceptíveis de diagnóstico ecográfico pré-natal células da parede arterial e de calcificação das
em mais de 50% dos casos. A partir dessa idade a mesmas contribuindo para rigidez e calcificação,

QUADRO 1 – Insuficiência renal crónica e graus de disfunção

Massa renal Filtração glomerular renal Manifestações clínicas


funcionante (%) (FGR)-(ml/min/1,73m2)
IRC ligeira 50 – 25 75 – 50 Assintomática


IRC moderada 25 – 15 50 – 25 Alterações metabólicas
Alterações do crescimento
Alterações do equilíbrio ácido-base
IRC grave 15 – 5 25 – 10 Deterioração progressiva da função renal
IRC terminal <5 <10 Necessidade de terapêutica
de substituição da função renal
(transplante ou diálise)
CAPÍTULO 170 Insufuciência renal crónica 813

QUADRO 2 – IRC: Comparação de etiologias em diferentes países

Reino Unido EUA 1987-2000 Suécia Portugal**


1999 (683) (6878) 1986-1994 (118) 1986-2001(100)
Anonalias congénitas 55,1% 40% 40,7% 38%
Hipoplasia /displasia 22,5 15,8 17,8 18
Uropatia obstrutiva 20,2 16,1 19,5 20
Nefropatia de refluxo 7,2 5,4 0 35
Doenças hereditárias 17,6% 13,3% 26,3% 6%
Nefronoptise* 5,3 2,8 6,8 1
Doença poliquística 1,8 2,8 5,1 –
Cistinose 2 2,1 – 1
Oxalose 0,4 0,6 – 1
Síndroma nefrótica congénita 6,9 2,6 5,1 2
Síndroma de Alport – – – –
Glomerulopatias 10,3% 22% 14,4% 8%
Glomerulopatias segmentar e focal 6,4 11,6 2,5 7
Outras 3,9 10,4 11,9 1
Doença sistémicas 5,6% 6,8% 3,4% 9%
LED – 1,7 – 1
PSH 1,6 1,4 – –
SHU 3,2 2,7 3,4 5
Outras 0,8 1 – –
Doença vascular renal 4,5% 1,7% 6,8% 2%
* Doença renal quística hereditária com fenótipo histológico semelhante ao da nefrite tubulointersticial crónica; ** Lisboa/HDE

designadamente nas coronárias, o que correspon- • Massa abdominal / bexiga palpável – por
de a risco cardiovascular. uropatia obstrutiva (malformação, bexiga
Nas situações de IRC demonstrou-se também disfuncional, tumor, etc.).
valor aumentado do FGF23 (um factor de cresci- • Infecção do aparelho urinário – que pode
mento dos fibroblastos, produzido pelos osteóci- resultar de anomalia grave ou de refluxo
tos) com papel regulador na homeostase do fosfa- vésico-ureteral (grande responsável por
to e actuando ao nível do rim. pielonefrite crónica).
• Enurese – principalmente se for secundária e
Manifestações clínicas / ou com antecedentes de poliúria.
• Osteodistrofia renal – relacionada com
A sintomatologia das crianças com IRC pode ser retenção de fosfato devida a baixa FGR (< 50-
muito variada e relacionada com a doença renal 70 mL / min / 1,73 m2) e diminuição de 1,25
primária e/ou com as consequências da alteração (OH) D3, traduzida por desmineralização
da função renal. O início da IRC pode ser “silen- óssea com risco de deformações e fracturas.
cioso” e a sua progressão insidiosa, com apareci- • Atraso de crescimento – devido à urémia
mento da sintomatologia só tardiamente. crónica responsável por anorexia e vómitos,
Assim, o modo de apresentação da IRC pode principalmente nos lactentes e primeira
ser sugerido por: infância; baixa estatura.
• Ecografia pré-natal – através da detecção de • Atraso pubertário e dificuldades de apren-
anomalias do aparelho urinário (uropatia dizagem.
obstrutiva / válvulas da uretra posterior; • Letargia e palidez – por anemia normocítica
rins poliquísticos; aplasia / displasia renal) – normocrómica resultante da urémia; surgem
susceptíveis de originar IRC pós natal. tardiamente na evolução da IRC, mas oca-
814 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

sionalmente são o ponto de partida para o fosfatase alcalina, PTHi, proteínas totais,
seu diagnóstico. albumina, siderémia,ferritina e gasometria
• Síndroma nefrítica/nefrótica; síndroma ne- no sangue; cálcio, fósforo, proteínas e creati-
frótica corticorresistente e sindroma nefróti- nina na urina).
ca congénita – são situações que comportam • Radiografia de punhos e mãos – para ava-
risco elevado de lesão grave e progressiva da liação da idade óssea e detecção de osteodis-
massa renal, originando ou revelando IRC. trofia renal. Radiografia de tórax.
• Hipertensão arterial (HTA) – geralmente sin- • ECG / Ecocardiograma
tomática, pode ser a forma de apresentação
da IRC resultante de pielonefrite crónica Tratamento
habitualmente secundária a refluxo vésico-
ureteral (nefropatia de refluxo). O tratamento da IRC (que implica a intervenção de
• Insuficiência cardíaca congestiva – resultante uma equipa em centro especializado integrando
de HTA não controlada e/ou sobrecarga nefrologista pediátrico, enfermeiro, dietista, assis-
hidro-salina; pode surgir tardiamente na IRC, tente social e psicólogo) é variável, dependente do
sendo por vezes a forma de apresentação. grau de disfunção e da existência de complicações
• Convulsões – secundárias a HTA ou a alte- (HTA, osteodistrofia, baixa estatura, etc.).
rações hidroelectrolíticas, particularmente Os objectivos da tal tratamento são:
hipocalcémia; podem também ser revelado- • reversão da sintomatologia urémica – náu-
ras da IRC. sea, vómito, anorexia, astenia, adinamia, etc.;
• Incapacidade de recuperação de insuficiência • manutenção do equílibrio hidroelectrólitico,
renal aguda (IRA) – surge ocasionalmente, fósfo-cálcico e ácido-base;
devida a glomerulonefrite rapidamente pro- • promoção do crescimento normal;
gressiva, responsável por declínio irreversível • prevenção de complicações e/ou tratamento
e progresssivo da função renal, traduzindo-se das existentes;
frequentemente por persistência / agrava- • redução / interrupção da progressão da IRC;
mento da proteinúria e/ou HTA. • preparação da criança e família para a IRC
Nota importante sobre rastreio familiar – indi- terminal e eventual necesssidade de diálise
cado nos irmãos de crianças com IRC geneticamen- (peritoneal / hemodiálise) e/ou transplanta-
te determinada, (nefronoptise; síndroma de Alport; ção renal.
doença poliquística ou nefropatia de refluxo), pode Assim, é importante no doente com IRC vigiar:
eventualmente detectar situações de IRC ligeira / • Nutrição
assintomática. – suprimento enérgético adequado;
– suprimento proteico adequado;
Exames complementares – restrição de fósforo e potássio (e por vezes
sódio);
Para elucidação da etiologia da IRC, estão indica- – suplementação com vitaminas e minerais;
dos em função do contexto clínico: • Equilíbrio hidroelectrolítico – com especial
• Ecografia renal e vesical atenção:
• Cistouretrografia miccional e pós miccional – Hipo / hipernatrémia;
• Estudo isotópico: DMSA; MAG3 ou DTPA – Hipercaliémia – dieta, antagonistas do
• Urografia de eliminação potássio (resinas permutadoras, salbuta-
• Análise de urina (sumária, cultura, NGAL, etc.) mol, etc.);
• Doseamento de C3; C4; ANA; anti-DNA; anti- – Edema / hipertensão – restrição de líqui-
GBM (membrana basal do glomérulo) e ANCA dos e sódio; e eventualmente diurético
• Biópsia renal e/ou anti-hipertensor);
Para avaliar a gravidade e duração da IRC: – É importante manter o fósforo sérico normal
• Hemograma e outros exames (ureia, creati- – dieta e quelantes do fósforo (carbonato de
nina, ácido úrico, ionograma, cálcio, fósforo, cálcio, e raramente hidróxido de alumínio);
CAPÍTULO 171 Alterações da bexiga 815

171
– Suplementação com 1,25 (OH) D3 se, ape-
sar da redução de fósforo, ainda houver
sinais de hiperparatiroidismo.
• Equilíbrio ácido–base – fundamental nos lac-
tentes e crianças pequenas, sendo impres-
cíndivel evitar a acidose metabólica (que res-
tringe o crescimento e contribui para a degra- ALTERAÇÕES DA BEXIGA
dação muscular, desmineralização óssea e
hipercaliémia). Tal desiderato obtém-se para Rui Alves
além de medidas dietéticas especiais, com a
administração de bicarbonato de sódio oral;
• Anemia – por défice de produção renal de
eritropoietina. Deve ser corrigida com ferro Sistematização
oral (6mg/kg/d), ácido fólico , vitamina C e,
se necessário, administração de eritopoietina Neste capítulo são abordadas de modo sucinto as
por via subcutânea ou EV, de acordo com os alterações anátomo-funcionais da bexiga, sinteti-
valores da Hb, Hct e ferritina sérica. zadas no Quadro 1.
• Crescimento – é o indicador mais sensível da
eficácia do tratamento da IRC. Quando, não
obstante todas as medidas anteriores, o 1. EXTROFIA DA BEXIGA
crescimento continua deficiente (velocidade
de crescimento < 2DP) está indicado a tera- Definição, etiopatogénese
pêutica com hormona de crescimento em e importância do problema
colaboração com a equipa de endocrinologia.
A extrofia da bexiga (sinónimo de extroversão) é uma
BIBLIOGRAFIA anomalia em que se verifica ausência das paredes
Avner E D, Harman W E, Niaudet P (eds). Pediatric anteriores do abdómen e da bexiga, do que resulta
Nephrology. Philadelphia: Lippincot & Wilkins, 2004 exteriorização e saliência da mucosa vesical, (assim
Bonewald LF, Wacker MJ. FGF23 production by osteocytes. como dos ostia ureterais) ao nível do hipogastro, e
Pediatric Nephrology 2013; 28: 563-568 diastase ou ausência de fusão da sínfise púbica.
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon ,2011 Admite-se que o defeito embriológico esteja rela-
El Nahas AM, Bello AK. Chronic kidney disease: The global cionado com a não migração mesenquimatosa entre
challenge. Lancet 2005; 365: 331-340 o folheto endodérmico e ectodérmico da membrana
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Pediatr Nephrol 2003; 18: 796-804 • Alterações da micção
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Nephrology. New York: Oxford University Press, 2003 – Incontinência no sexo feminino
816 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

fragilidade da membrana da cloaca predispõe à sua


ruptura, expondo o seio urogenital primordial.
Este defeito integra um complexo de anoma-
lias raras do qual faz frequentemente parte a epis-
padia (ou anomalia de posição do meato uretral
que se abre na face dorsal da glande ou do pénis).
Daí o conceito de complexo extrofia – epispadia
traduzindo etiopatogénese comum para o defeito
da bexiga e da uretra.
A frequência do referido complexo de anoma-
lias é cerca de 1/10.000 a 1/50.000 nascimentos,
registando-se antecedentes familiares de tal pato- FIG. 1
logia em cerca de 3% dos casos. A epispádia sur- Extrofia da bexiga no recém-nascido: mucosa saliente na
gindo isoladamente é muito mais rara, ocorrendo linha média entre o coto do cordão umbilical e o pénis.
com uma frequência de 1/100.000 nascimentos. A (NIHDE)
relação sexo masculino/feminino é cerca de 2.7/1
na extrofia pura, e de 3.5/1 na epispadia.

Manifestações clínicas e diagnóstico

O complexo extrofia-epispadia abrange um espectro


variado de apresentações clínicas: extrofia vesical iso-
lada exposta ou recoberta secundariamente por pele;
fissura vésico- intestinal (em que o intestino se abre
na placa vesical) associada a imperfuração anal; epis-
padia rudimentar ou de diversos graus (balânica,
peniana); divisão em duas partes dos órgãos geni-
tais(clítoris e pénis). No sexo masculino os testículos FIG. 2
têm localização abdominal. (Figuras 1 e 2) Extrofia da bexiga: aspecto de pormenor permitindo observar
No caso de ter sido realizado diagnóstico pré- o pénis epispádico entre a mucosa vesical saliente e o escroto.
natal, o aspecto sugestivo ecográfico é a verifi- (NIHDE)
cação de sinais de bexiga sem conteúdo líquido,
presença de “massa abdominal” correspondendo Tratamento
à placa vesical, e emergência do cordão umbilical
em posição mais ventral. A extrofia da bexiga tem sempre indicação ope-
Após o nascimento, está indicada ecografia ratória. O objectivo final da terapêutica cirúrgica é
renal e ureteral para detecção de eventuais alte- a criação de um reservatório vesical de boa capaci-
rações concomitantes do excretor alto e da dife- dade, pressão interna normal, com mecanismo de
renciação parênquimo-sinusal e córtico-medular continência eficaz e uma correcção da epispadia .
do rim. O status nefrológico da criança é determi- Simultaneamente há que preservar a função renal.
nante para o prognóstico global do defeito. O objectivo cirúrgico é dificil de atingir pela
A região inguinal deverá ser objecto de cuidado complexidade do defeito e das suas relações aná-
especial, para detecção de hérnia inguinal e de cri- tomo-fisiológicas entre diversas estruturas de
ptorquidia bilaterais. Deverá ser realizado um exame diferente natureza histológica e funcional.
perineal para verificar a localização e permeabilidade Por essa razão, na abordagem cirúrgica do com-
do orifício anal. A conformação dos genitais externos plexo extrofia-epispadia, deve existir uma equipa
deverá ser descrita e registada. A existência de ano- multidisciplinar de cirurgia pediátrica, urologia pe-
malias associadas dos genitais externos tem também diátrica e ortopedia pediátrica. A correcção é rea-
extrema importância prognóstica. lizada por fases.
CAPÍTULO 171 Alterações da bexiga 817

A primeira etapa é completada no primeiro ou de mau prognóstico que são, essencialmente: a


segundo dia de vida e destina-se a encerrar a placa incontinência irreversível; e a degradação pro-
vesical. Durante o segundo ou terceiro ano de vida gressiva da função renal.
é reconstruída a epispadia. Posteriormente, pelo Esta abordagem multidisciplinar, permite que
quarto ano de vida, é reconstruído o colo vesical. haja actualmente uma sobrevida global superior a
95%.
Complicações cirúrgicas
pós-operatórias
2. DIVERTÍCULOS DA BEXIGA
Todas as fases da correcção cirúrgica descritas
anteriormente podem originar complicações Em geral, os divertículos da bexiga ocorrem ao nível
específicas e, fundamentalmente, comprometer o da junção ureterovesical, estando associados a RVU.
sucesso da fase seguinte.
As complicações mais frequentes e de difícil
resolução surgem na primeira etapa. Destacam-se 3. ANOMALIAS DO ÚRACO
a deiscência total ou parcial do encerramento
primário da placa vesical e a má derivação do Estas anomalias são mais frequentes no sexo mas-
fluxo urinário, favorecendo o aparecimento de fís- culino. Um úraco patente (relíquia embriológica)
tulas urinárias. pode surgir isolado ou associado a VUP ou a sín-
droma prune-belly. A manifestação clínica típica é a
Seguimento saída de urina pelo umbigo. O quisto do úraco é
outra anomalia manifestada em geral por massa
Estes doentes necessitam de um seguimento infra-umbilical/suprapúbica; pode haver infecção
pluridisciplinar e prolongado. A cirurgia de cor- secundária.
recção do complexo extrofia-epispadia é muito O estudos imagiológicos (ecografia ou TAC)
exigente para todo o pessoal envolvido no trata- são importantes para o diagnóstico de localização.
mento. Com efeito, a dimensão bio-psico-social de O tratamento é cirúrgico.
tal situação clínica obriga a apoios de diversa
ordem, não só médica, mas também social, escolar
e de reabilitação funcional. 4. BEXIGA NEUROPÁTICA
Há três factores indicativos da qualidade do
seguimento destes doentes. Um deles, de aprecia- A disfunção vesical neuropática é geralmente con-
ção objectiva e subjectiva, é a qualidade de vida pes- génita, podendo resultar de defeitos do tubo neu-
soal e social de cada um. Outro factor prende-se ral ou doutras anomalias espinhais.
com a capacidade de prevenir e diagnosticar preco- As manifestações clínicas mais importantes são
cemente o aparecimento de adenocarcinoma ou car- incontinência urinária, infecções urinárias e hidrone-
cinoma espinocelular da mucosa vesical, o qual frose por RVU ou não sinergia detrusor-esfíncter (não
surge nestes doentes com uma frequência quatro- relaxamento do esfíncter com a contração da bexiga),
centas vezes superior à da população em geral. O com probabilidade elevada de disfunção renal.
último factor está dependente da capacidade de Entre as várias complicações cabe citar a per-
função sexual normal e de fertilidade. Actualmente, furação, a formação de cálculos e o carcinoma (ca-
este objectivo é atingido em cerca de 70% dos casos. pítulos 189 e 190).

Prognóstico
5. ENURESE NOCTURNA
Hoje em dia, não só devido à melhoria das técni-
cas cirúrgicas, mas fundamentalmente pelo me- Como complemento do que foi referido na Parte V
lhor acompanhamento multidisciplinar propicia- do livro sobre Desenvolvimento e Comportamento,
do, poderá evitar-se a ocorrência de dois factores cabe referir o papel de factores genéticos: genes
818 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

172
relacionados com a enurese, localizados nos cro-
mossomas 12q e 13q.

6. INCONTINÊNCIA URINÁRIA DIURNA

A causa mais frequente desta situação é a chama- ANOMALIAS DO PÉNIS


da bexiga pediátrica instável (hiperactiva ou
espasmódica) com manifestações, por vezes, até à E URETRA
adolescência.
Outras causas incluem a chamada micção va- Rui Alves
ginal por coalescência dos pequenos lábios ou por
não afastamento das coxas durante a micção (por
obesidade), uréter ectópico drenando para a vagi-
na ou uretra posterior, etc.. Sistematização

O Quadro 1 sistematiza as principais anomalias do


7. SÍNDROMA DE HINMAN pénis e uretra.
Neste capítulo, pela sua importância e maior fre-
Trata-se de não sinergia detrusor-esfíncter, (não quência em clínica pediátrica, são abordados a fimo-
relaxamento do esfínter externo durante a mic- se, a parafimose, a hipospadia e o falso micropénis. O
ção). Pode surgir isoladamente ou fazer parte do micropénis pode estar associado a hipopituitarismo.
quadro de bexiga neuropática. A agenésia do pénis é raríssima (1/10 milhões).

8. INCONTINÊNCIA NO SEXO FEMININO 1. FIMOSE

As causas mais frequentes são a ectopia ureteral Definição


(uréter drenando na vagina), a epispadia, e a
incontinência desencadeada pelo riso (relaxamen- A fimose caracteriza-se pela presença de estenose
to súbito do esfíncter urinário). Neste último caso fisiológica do prepúcio, não permitindo a exposição
pode utilizar-se o metilfenidato em baixa dose. da glande quando se faz a retracção do mesmo.

BIBLIOGRAFIA QUADRO 1 – Anomalias do pénis e uretra


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2005
CAPÍTULO 172 Anomalias do pénis e uretra 819

A fimose é normal no período neonatal. Aos


seis meses de idade apenas 20% dos lactentes per-
mitem a retracção do prepúcio. Aos três anos de
idade já é possível realizar a retracção prepucial
em 90% dos casos.
A causa do aperto do anel fimótico não é co-
nhecida, mas é considerada fisiológica pela gene-
ralidade dos autores. A fimose torna-se patológica
quando existem processos inflamatórios balano-
prepuciais conducentes ao estabelecimento de
fibrose prepucial secundária.

Manifestações clínicas

O diagnóstico é redundante. A presença de fimose


fisiológica enquanto a criança não controla os
esfíncteres impede as lesões irritativas da glande
pelo contacto com a urina na fralda. (Figura 1) FIG. 1
A presença de aderências balanoprepuciais, Fimose fisiológica em RN.
sem fimose associada, é corrente na primeira
infância. Por vezes coexiste a presença de quistos plastia de Duhamel (plastia dorsal do prepúcio)
de retenção de material sebáceo subprepucial, ou a circuncisão formal (ablação do prepúcio).
denominados “quistos de esmegma”, os quais
podem ser eliminados com a retracção do referido Complicações pós-operatórias
prepúcio.
A ocorrência de balanite e postite, processo As complicações da cirurgia correctiva da fimose
inflamatório balanoprepucial, pode ser de têm uma incidência de 0,1% a 15%. As compli-
natureza recorrente e conduzir ao estabelecimento cações mais frequentes prendem-se com a técnica
de fibrose prepucial secundária. Simultaneamente cirúrgica ou com o status peniano pós-múltiplos
pode haver formação de uma “casca” fibrótica episódios de balanite.
periglande e mesmo estenose inflamatória do As complicações cirúrgicas mais correntes são:
meato urinário denominada balanite esclerótica estenose do meato, infecção da ferida operatória,
obliterante (“balanitis xerotica obliterans”). hematoma pós-operatório, excesso de pele ventral
peniana e persistência do anel fimótico.
Actuação prática A reintervenção cirúrgica pode ser indicada
por razões estéticas ou funcionais.
A aplicação tópica de cremes com esteróides (por
ex. propionato de fluticasona a 0,05%) duas vezes Seguimento
por dia poderá ser eficaz em certos casos. Se tal
não resultar, a fimose fisiológica tem indicação Após a plastia prepucial os familiares do doente
cirúrgica (ressecção do prepúcio ou circuncisão): devem favorecer a manutenção de bons hábitos de
após a idade de controlo esfincteriano, na impos- higiene local e realizar a retracção prepucial fre-
sibilidade de retracção prepucial; ou antes da quente para evitar a recorrência de aderências
referida idade, na presença de fimose esclerótica balanoprepuciais pós-operatórias.
obliterante ou de balanites de repetição.
Devido a condicionalismos étnicos, culturais e Prognóstico
religiosos, a fimose fisiológica, pode também ter
indicação cirúrgica a pedido de familiares. O prognóstico é, em geral, bom com cura cirúrgi-
A técnica cirúrgica mais utilizada é a postato- ca em cerca de 98% dos doentes.
820 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

2. PARAFIMOSE 4. HIPOSPADIA

A chamada parafimose consiste no estrangula- Definição e importância do problema


mento e ingurgitamento da glande quando um
prepúcio de abertura muito estreita é retraído até A hipospadia é uma anomalia congénita do pénis,
à zona proximal da glande, não podendo, depois, caracterizada pela associação de três alterações mor-
ser puxado até à sua posição inicial, o que é por fológicas, sendo a primeira de carácter constante:
sua vez dificultado pelo edema que também surge (1) Localização ventral do meato urinário.
no próprio prepúcio. (2) Curvatura ventral do pénis.
Pela inspecção o edema do prepúcio peri-base (3) Presença de prepúcio com rafe não fundido
da glande resultante de estase venosa assemelha-se na sua linha média e na sua porção ventral,
a “pneu” que comprime a base da glande. (Figura 2) como que "cortado" longitudinalmente.
O tratamento (redução) consiste em lubrificar (4) Ausência de artéria frenular.
o prepúcio e glande tentando fazer o referido
“pneu” ultrapassar o sulco coronal no sentido dis- Relacionando as alterações morfológicas com o
tal exercendo pressão suave sobre a glande ao desenvolvimento embriológico, a hipospadia pode
nível do meato, no sentido meato-púbis, mas ser definida como uma atrésia do raio ventral do
mantida, com o auxílio de analgesia. pénis. O aspecto ventral do pénis é caracterizado
Em casos raros poderá ser necessário proceder pela existência de pele fina e aderente à parede da
a circuncisão sob anestesia geral. uretra, a glande é pouco desenvolvida e não encer-
rada ventralmente e, por fim, o corpo esponjoso, a
jusante da abertura ectópica do meato urinário, é
3. FALSO MICROPÉNIS de aspecto atrésico.
(PÉNIS ESCONDIDO) Esta anomalia surge com uma incidência va-
riando entre 8 e 15/1.000 nascimentos .
Nesta situação o pénis, de dimensões aparente-
mente normais está “mergulhado” ou camuflado Etiopatogénese
por abundante almofada de gordura envolvente
suprapúbica. Retraindo por compressão a gordu- Os factores etiológicos deste defeito não estão
ra envolvente e repuxando distalmente o pénis completamente esclarecidos, admitindo-se altera-
verifica-se que as dimensões são aparentemente ções da produção hormonal, dos receptores peri-
normais. Poderá estar indicada intervenção cirúr- féricos e anomalias vasculares locais, de base
gia por razões cosméticas. (Figura 3) genética.

FIG. 2 FIG. 3
Parafimose. Pénis escondido ou “sepulto”.
CAPÍTULO 172 Anomalias do pénis e uretra 821

Nalguns estudos especulou-se sobre o possível


papel da exposição in utero de agentes químicos
com acção antiadrogénica ou estrogénica (fitoes- Glanular
trogénios, policlorobifenóis, etc.). Anterior Coronal
Peniana
Diagnóstico pré-natal anterior

O diagnóstico da hipospadia pode ser obtido no Média Peniana


média
período pré-natal, por meio de estudo de ecografia
morfológica realizada ao feto. Actualmente é possí-
vel obter a indicação diagnóstica indirecta da ano- Peniana
malia peniana pela existência de imagem ecográfica posterior
Peno-escrotal
de curvatura peniana exagerada e de baixo percentil
na medição do comprimento peniano. Posterior

Escrotal
Manifestações clínicas e classificação Vulviforme
perineal
Na maior parte dos casos, o diagnóstico da hipos-
padia é obtido no exame do recém-nascido (RN),
no período pós-parto.
FIG. 4
De acordo com a localização ectópica do meato,
no sentido ântero-posterior é estabelecida a seguinte Localização ectópica do meato urinário (Hipospadia).
classificação anatómica e descritiva (Figura 4):
(1) Glanular. obrigatória a realização de ecografia renal e vesi-
(2) Coronal. cal para detecção de anomalias anatómicas asso-
(3) Peniano anterior / médio / posterior. ciadas do aparelho urinário; tal associação pode
(4) Peno-escrotal. surgir em cerca de 10% dos casos de hipospádia ,
(5) Escrotal. com maior probabilidade nas hipospadias de
(6) Vulviforme/perineal. localização mais posterior.
A presença da curvatura ventral do pénis (corda), As anomalias do aparelho urinário mais fre-
aspecto fundamental a ter em conta na descrição da quentemente associadas são: displasia renal uni
hipospadia, deriva da confluência de quatro factores: ou bilateral, duplicidade ureteral, dilatação pielo-
(1) Aderência da pele ventral à uretra. calicial por obstrução da junção pielo-ureteral e
(2) Aderência da placa uretral aos corpos ca- refluxo vésico-ureteral.
vernosos.
(3) Atrésia do corpo esponjoso a jusante do Tratamento cirúrgico
meato urinário.
(4) Assimetria dos corpos cavernosos. A hipospadia tem sempre indicação operatória.
A classificação correcta da hipospadia, que Os objectivos da correcção cirúrgica são:
deverá incluir a localizazção do meato e a existên- (1) Colocação do meato urinário em posição
cia ou não de curvatura ventral, tem interesse não glanular anatómica.
só para a planificação do acto cirúrgico, como (2) Criação de um meato urinário fisiológico
também para o estabelecimento do prognóstico. em fenda vertical.
As Figuras 5 e 6 mostram aspectos de hipospa- (3) Correcção da curvatura ventral do pénis.
dia anterior. (4) Correcção do defeito ventral prepucial.
(5) Criação de uma boa relação estética entre a
Anomalias associadas bolsa escrotal e a emergência peniana.
Na terapêutica cirúrgica da hipospadia (geral-
Em todos os RN com diagnóstico de hipospadia, é mente a iniciar antes dos dois anos de idade)
822 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

do tipo de hipospadia, da localização do meato


urinário ectópico e das técnicas utilizadas.
Assim, a sua frequência é maior nas hipospa-
dias posteriores com curvatura ventral mais pro-
nunciada, e em reintervenções relacionadas com
complicações prévias.
A complicação mais frequentemente encontrada
é a fístula. A sua incidência varia entre 4%, (nas for-
mas mais distais) e 20%, nas formas mais complexas.
O aparecimento de fístula deve-se a uma permeabi-
lização do trajecto uretral devido a desvitalização do
tecido utilizado, de natureza isquémica ou infecciosa.
FIG. 5 Outras complicações importantes são: a infec-
Hipospadia glanular em RN. ção da sutura ventral peniana originando invaria-
velmente a deiscência da mesma, e a formação de
uma fístula urinária; a estenose uretral, decorren-
te do processo de cicatrização excessiva da glanu-
loplastia; e a persistência da curvatura ventral im-
plicando a revisão cirúrgica da situação para per-
mitir uma erecção peniana completa.

Seguimento

Os doentes com hipospadia devem ser seguidos


durante a idade pediátrica até à adultícia. A exis-
tência de uma frequência algo elevada de compli-
cações pós-operatórias funcionais ou estéticas leva
à necessidade de acompanhamento em serviço de
FIG. 6 cirurgia pediátrica durante longo período.
Hipospadia coronal. O seguimento deve ser orientado para a ver-
tente funcional e estética e, igualmente, incluir a
podem ser utilizadas uma multiplicidade de téc- avaliação da situação clínica do ponto de vista fi-
nicas operatórias. Essas técnicas podem ser apli- siológico e psicológico.
cadas em um só tempo cirúrgico ou, pelo con-
trário, em vários tempos. Prognóstico
Independentemente das técnicas utilizadas, é
fundamental que se preserve o prepúcio, o qual é O prognóstico global da patologia é em geral bom,
utilizável na reconstrução anatómica. na ausência de defeitos associados da maturação
O problema da curvatura ventral deve ser cor- renal da árvore excretora e da junção uréter-vesi-
rigido prévia ou concomitantemente à reconstrução cal conducentes a deterioração da função renal.
do trajecto uretral. Este príncipio consagra a possi- O prognóstico funcional depende do tipo de
bilidade de haver reconstrução em um só tempo ou hipospadia, da técnica utilizada e das complica-
em fases diferidas. Ambas as opções terapêuticas ções pós-operatórias. Porém, apesar da presença
têm total aceitação e devem ser equacionadas de de complicações cirúrgicas, é possível, na genera-
acordo com as especificidades de cada caso. lidade dos casos, concluir o tratamento com bom
resultado funcional e estético.
Complicações pós-operatórias
BIBLIOGRAFIA
As complicações pós-operatórias são decorrentes Ashcraft KW, Holder TM (eds). Paediatric Surgery. Philadel-
CAPÍTULO 173 Alterações do conteúdo escrotal 823

173
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Wein AJ, Kavouss LR, Novick AC, et al (eds). Campbell-Walsh
Urology. Philadelphia: Elsevier, 2008 Sistematização

O Quadro 1 sistematiza as principais situações


clínicas relacionadas com alterações do conteúdo
escrotal. A hérnia inguinoscrotal é abordada
noutro capítulo.

1. TESTÍCULO ECTÓPICO

Definições

Testículo ectópico (ou distopia testicular) significa


testículo em situação anormal (ectopia ou disto-
pia: significa situação anormal de um órgão, em
geral de origem congénita). Tal situação verifica-
se como resultado de os testículos não ocuparem a
sua posição normal intraescrotal.
O âmbito da distopia abrange diversas moda-
lidades em função da etiopatogénese:
1 – Criptorquidia que corresponde à situação
de testículo não descido (que não pode ser mani-
pulado para a bolsa escrotal, encontrando-se loca-

QUADRO 1 – Alterações do conteúdo escrotal

• Testículo ectópico (localização anormal ou não descido)


• Tumefacção do escroto e “escroto agudo”
• Hérnia inguinoscrotal
• Varicocele
• Hidrocele
• Quisto do cordão
• Espermatocele
• Tumor testicular
824 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

lizado em algum ponto do seu trajecto normal de Com efeito, como resultado da localização
descida); pode estar localizado no interior da cavi- anómala, tornam-se evidentes alterações histoló-
dade abdominal, ou no canal inguinal (na maioria gicas durante o segundo ano, as quais se caracteri-
das vezes). Com uma incidência de cerca de 2% a zam por insuficiência na transformação dos
6% nos recém-nascidos de termo e cerca de 30% gonócitos em espermatogónias diferenciadas, com
nos pré-termo, a criptorquidia é unilateral em 80- oligospermia, atrofia das células de Leydig e
90% dos casos. Pode estar associada a anomalias anomalias nas células de Sertoli. Têm sido
diversas. descritas anomalias de desenvolvimento das célu-
2 – Testículo ectópico propriamente dito (raro) las germinais no testículo contralateral nos casos
que corresponde à situação de testículo fora do tra- unilaterais, o que sugere a possibilidade de um
jecto normal de descida, geralmente na coxa ou no defeito de desenvolvimento global ou endócrino;
períneo, região suprapúbica ou bolsa escrotal con- tal é igualmente corroborado pela presença fre-
tralateral. Também unilateral em 80-90% dos casos. quente de defeitos do epidídimo.
3 – Testículo retráctil que corresponde à cha- Quando se verifica criptorquidia isolada na
mada situação de testículo "em ascensor"; há data do nascimento, o testículo pode descer em
mobilidade do testículo no trajecto do canal 1/3 dos casos nos primeiros 6 meses de vida; e, se
inguinal, entre a bolsa escrotal e o anel inguinal tal não acontecer até ao final do primeiro ano de
superficial. Uma vez "agarrado" pelos dedos do vida, já não se verificará o processo de descida. De
observador é levado facilmente à bolsa escrotal, aí referir que o testículo pode estar localizado na
permanecendo sem grande tensão. Na maior bolsa na data do nascimento e subir depois.
parte dos casos é bilateral, explicando-se a "subida A não descida do testículo é acompanhada de:
como um ascensor" pela hiperactividade do mús- hérnia inguinal em 90% dos casos (o que se torna
culo cremasteriano. Esta tendência deixa de ser lógico, pois o canal peritoneovaginal só se encerra
notória com a idade por diminuição progressiva depois de o testículo chegar ao fundo da bolsa
da hiperreflexia cremasteriana. escrotal); e de hipospadia em 10% dos casos.

Etiopatogénese Complicações

A descida normal do testículo processa-se por São descritas as seguintes complicações: torção,
volta do 7º mês de gestação. A não descida pode malignização (na terceira década de vida), atrofia,
explicar-se por diversos factores: infertilidade (nos casos bilaterais) e psíquicas (em
• alterações hormonais relação com problemas de estética anatómica).
• disgenésia do testículo
• anomalia anatómica Diagnóstico

Na primeira fase da descida testicular assu- A presença de hidrocele (ver adiante) no recém-
mem importância o factor hormonal ILF3 (insulin- nascido e a verificação de testículo retráctil entre
like factor 3) e o receptor LGR8 (leucin-rich repeat- os 6 meses e a puberdade, dificultam a identifi-
containing G protein-coupled receptor 8). cação da posição do referido testículo.
As anomalias genéticas mais frequentemente Para o correcto diagnóstico torna-se impor-
associadas a criptorquidia são a síndroma de tante salientar determinados gestos semiológicos.
Klinefelter (47XXY ou 46XY/47XXY) e as muta- A inspecção deve começar pela verificação da
ções no gene do receptor INSL3. simetria das bolsas, bem como dos sulcos cutâ-
neos transversais das mesmas. Quanto mais atró-
Quanto mais elevada a posição do testículo, fica e aplanada for a bolsa, com os sulcos quase
maior é a probabilidade de disgenésia (anomalia inexistentes, maior é a probabilidade de se estar
de diferenciação sexual acompanhada de anoma- em presença de um testículo atrófico intrabdomi-
lia congénita) e, portanto, de infertilidade e de nal, ou mesmo de ausência testicular.
ulterior malignização. Por outro lado, uma bolsa bem desenvolvida,
CAPÍTULO 173 Alterações do conteúdo escrotal 825

com sulcos normais coexistindo com não palpação A


de testículo, deve levar a admitir a hipótese de ter
sido habitada por um testículo que entretanto
desapareceu gradualmente por um mecanismo de
torção, com a consequente isquémia e atrofia; é o
conceito de testículo evanescente.
A palpação deve ser feita em ambiente calmo,
se necessário no banho, com aquecimento prévio
das mãos e, na criança mais velha, em posição bí-
pede e com a perna cruzada. Todas estas mano-
bras têm como finalidade atenuar o reflexo cre-
masteriano e tentar diferenciar testículo não desci-
do verdadeiro de testículo retráctil. B
Se o testículo se palpar na região inguinal e
não se conseguir colocar na bolsa ou, uma vez
colocado nesta, ele subir de imediato, considera-se
não descido. Se houver dúvidas deve repetir-se o
exame noutra ocasião.
Na hipótese de o testículo não se palpar no
canal inguinal, devem ser examinados possíveis
locais de ectopia - púbis, coxas ou períneo, etc..

Exames complementares

Os estudos imagiológicos (ecografia) são pouco


úteis para o diagnóstico, excepto em crianças obe-
sas com testículos inguinais; são importantes, con- FIG. 1
tudo, para o seguimento pós-operatório (dimen- Torção testicular. A – Tumefação e edema do escroto;
sões e estrutura). B – Aspecto intra-operatório.
A ressonância magnética nuclear com injecção
de gadolinium pode ser útil nalguns casos de Há autores que preconizam HCG em peque-
ausência de identificação testicular quando se pro- nas doses em todos os casos de distopia, prece-
cede à exploração cirúrgica. dendo a intervenção cirúrgica no pressuposto de
O método mais eficaz de localização (e trata- que tal terapêutica facilita a mesma.
mento) do testículo não palpável é a laparoscopia. Pode utilizar-se igualmente o factor libertador
da hormona luteinizante (LHRH) por via intra-
Tratamento nasal durante 4 semanas.
2. Intervenção cirúrgica
O tratamento engloba duas modalidades A idade ideal para a intervenção cirúrgica
1. Hormonoterapia situa-se entre 1 e 2 anos, consistindo em orquido-
Esta modalidade é controversa. A única indi- pexia. Pode ser feita em regime ambulatório,
cação formal da terapêutica hormonal é a situação sendo as complicações raras: atrofia e retracção.
de testículo palpável bilateral retráctil alto. Os doentes devem ser seguidos anualmente
Utiliza-se gonadotrofina coriónica humana (HCG) devido às possíveis complicações, em especial
em doses baixas – geralmente 9.000 UI, divididas risco de malignização nos testículos disgenésicos
em 6 doses parciais de 1.500 UI, por via intramus- na terceira década de vida.
cular (2 vezes por semana, durante 3 semanas). A cirurgia está ainda indicada para tratamento
Em doses pequenas os efeitos virilizantes não se das criptorquidias iatrogénicas, isto é secundárias
verificam ou regridem facilmente. herniorrafia inguinal anterior.
826 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

2. TUMEFACÇÃO DO ESCROTO QUADRO 2 – Escroto agudo


E ESCROTO AGUDO
Torção do testículo
A tumefacção do escroto pode ser aguda ou cróni- No lactente ou na puberdade: testículo e cordão esper-
ca, dolorosa ou indolor. Como exemplos de tume- mático dolorosos à palpação, hiperestesia e maior
facções dolorosas citam-se: torção do testículo, dureza ao tacto; rubor do escroto; pode surgir no feto, o
torção do apêndice testicular, epididimite, lesão que conduz inevitavelmente a testículo inviável.
traumática/hematocele, hérnia inguinoscrotal
encarcerada, orquite da papeira, etc.. Torção do epidídimo
Como exemplos de tumefacções acompa- Mais frequente entre os 4 e 8 anos: edema do escroto
nhadas de desconforto ou não dolorosas são sem rubor aparente; aparentemente o pólo superior do
referidos: tumor testicular, edema escrotal no con- testículo está mais sensível à palpação, verificando-se a
texto de púrpura vascular (PHS), varicocele, este nível uma “mancha azulada” através da transilu-
hidrocele, hérnia inguinoscrotal, etc.. (ver adiante) minação.
As situações classicamente designadas por
escroto agudo abrangem um conjunto de enti- Edema idiopático do escroto
dades discriminadas no Quadro 2 as quais pres- Também mais frequente pelos 4-8 anos, acompanhando-
supõem a necessidade de intervenção urgente ou se de eritema que ultrapassa os limites do escroto; dum
emergente. No caso de torção do testículo (com modo geral não é doloroso à palpação.
confirmação diagnóstica) haverá necessidade de
intervir no período que não ultrapasse seis horas Epididimite
a fim de garantir viabilidade do mesmo. (Figura 1) Raramente surgindo antes da puberdade, o epidídimo
As manifestações clínicas do escroto agudo está mais sensível ao tacto; esta situação é por vezes
são essencialmente dor do escroto surgida de acompanhada de infecção urinária com refluxo.

modo súbito (na criança pequena poderá ser o


Hérnia inguinal irredutível
choro ou irritabilidade que alertam) e edema.
Uma nota importante para o papel indispen-
sável da ecografia-doppler no diagnóstico diferen-
cial entre epididimite e torção do testículo. Na cerca de 1-2% de RN do sexo masculino. Na maior
hipótese de tal exame complementar ser inexe- parte dos casos é “não comunicante” o que resul-
quível, a intervenção cirúrgica não deve ser diferi- ta de o processus vaginalis ter ficado obliterado
da, sendo preferível uma intervenção “branca” a durante processo de desenvolvimento. Em tais
um diagnóstico de torção não feito. casos desaparece por volta do 1 ano de idade.
Se o referido processus vaginalis continuar per-
meável, o hidrocelo persiste, sendo que as suas
3. VARICOCELE dimensões aumentam “ por enchimento” em posi-
ção bípede e diminuem em posição de decúbito.
Trata-se de varicosidades das veias testiculares, Uma das complicações do hidrocelo comuni-
mais frequentes no lado esquerdo, podendo ocor- cante é o desenvolvimento de hérnia inguinal.
rer na puberdade. O exame físico evidencia escroto distendido, não
Em casos especiais poderá estar indicada a sob tensão, e difusão da luz por transiluminação, o
obliteração cirúrgica da veia testicular, utilizando que traduz a existência de líquido. (Capítulo 314)
a via laparoscópica. Nos casos que persistem para além dos 18
meses está indicada intervenção cirúrgica.

4. HIDROCELE
5. QUISTO DO CORDÃO
O hidrocelo (ou a hidrocele) é uma acumulação de
líquido na tunica vaginalis, situação que surge em Trata-se duma tumefacção quística esferóide no
CAPÍTULO 173 Alterações do conteúdo escrotal 827

trajecto do cordão espermático mais frequente- massas indolores que não transiluminam. Em caso
mente na região inguinal. Resulta da persistência de suspeita deve proceder-se a ecografia. A alfa-
do canal peritoneovaginal, que é permeável a con- feto-proteína e a beta-gonadotrofina humana
teúdo líquido, manifestando-se clinicamente por coriónica estão elevadas respectivamente nos tera-
uma tumefacção da região inguinal, o que implica tomas, e nos coriocarcinomas e germinomas.
diagnóstico diferencial com as massas inguinais. Nos casos de malignidade está indicada a
O quisto do cordão evidencia ao exame clínico orquidectomia radical.
uma consistência relacionável com conteúdo flui-
do, móvel, não redutível; frequentemente é pos- BIBLIOGRAFIA
sível determinar os seus limites: orifício inguinal Agarwal PK, Diaz M, Elder JS. Retractile testis – Is it really a
interno, na sua porção proximal e o orifício normal variant? J Urol 2006; 175: 1469-1499
inguinal superficial, na sua porção mais distal. Ashcraft KW, Holder TM (eds). Paediatric Surgery.
Esta particularidade permite distinguir esta Philadelphia: Saunders, 2003
entidade da hérnia inguinal, em que há permea- Barthold JS. Is adjuvant hormonal therapy indicated in cryp-
bilidade do canal peritoneovaginal para conteúdo torchidism. Nat Clin Pract Urol 2005; 2: 366-367
visceral, sem limites definidos, uma vez que a hér- De Kretser DM. Differences in the prevalence of cryp-
nia pode ocupar todo o canal e ter extensão intra torchidism. Lancet 2004; 363: 1250-1252
escrotal e ser redutível. Hutson JM, Hasthorpe S. Testicular descent and cryp-
O diagnóstico diferencial faz-se com as massas torchidism in 2004. Pediatr Surg 2005; 40: 297-302
inguinais, em geral. MacMahon RA (ed). An Aid to Paediatric Surgery. Melbourne:
Embora o exame clínico cuidadoso permita Churchill Livingstone, 2001
chegar ao diagnóstico, cabe referir o papel do McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
exame ecográfico com sensibilidade e especifici- Pediatrics. Madrid: Panamericana, 2010
dade elevadas. Mouriquand P. The normal testis. Arch Dis Child 2007; 92: 3
O aumento de volume ou dor constituem indi- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
cação para intervenção cirúrgica; esta consiste na AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
laqueação alta do canal peritoneovaginal e na plastia Medical, 2011
do orifício inguinal profundo, procedimento cirúrgi- Sandlow J. Pathogenesis and treatment of varicoceles. BMJ
co que é realizado em regime de ambulatório. 2004; 328: 967-968
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cele: additional cause of ischemia of the testis. J of
O espermatocele consiste numa dilatação quística Ultrasound in Medicine 2012; 31: 2041-2043
do epidídimo devida a acumulação de secreções Wu, S, Liu G, Chen S, et al. Sonographic patterns of testicular
espermáticas; trata-se, pois, dum quisto do epidí- torsion. J of Diagnostic Medical Sonography 2011; 27: 273-
dimo. 278
Clinicamente é diagnosticado como uma tu-
mefacção elástica, associada ao epidídimo, indo-
lor e sem características inflamatórias.
A terapêutica pode ser realizada por punção
aspirativa ou excisão cirúrgica por abordagem
transcrotal.

7. TUMOR TESTICULAR

Os tumores testiculares podem aparecer em qual-


quer idade. Na maior parte dos casos constituem
PARTE XX
Endocrinologia
830 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

174
espécie humana; a fasciculada sintetiza o cortisol,
o mais potente glucocorticóide natural; e a reticu-
lar, os androgénios supra-renais.
Sob o ponto de vista genético, para o desenvolvi-
mento da SR são cruciais dois factores de transcrição
esteroidogénicos (SF-1/NR5A1 no cromossoma
DOENÇAS DA SUPRA-RENAL 9q33, e DAX1/NEOB1 no cromossoma X).
A disrupção de SF-1 resulta em agenésia SR e
– GENERALIDADES gonadal, ausência de gonadotrofinas hipofisárias
e hipodesenvolvimento do hipotálamo.
Maria de Lurdes Lopes A síntese de glucocorticóides, mineralocorticói-
des e androgénios verifica-se a partir do colesterol
através de uma via metabólica complexa (Figura
1). A existência de bloqueios enzimáticos condi-
Fisiopatologia do córtex SR ciona, não só a não produção das hormonas respe-
ctivas, como também a acumulação de metabolitos
A supra-renal é constituída por dois tecidos e a produção excessiva de outros metabolitos.
endócrinos distintos: o córtex e a medula. A síntese de cortisol é estimulada pela ACTH
O córtex da supra-renal (SR) integra 3 zonas: hipofisária, que tem também acção estimulante do
externa (glomerular), intermédia (fasciculada), e melanócito. A ACTH é, por sua vez, influenciada
interna (reticular). A zona glomerular sintetiza pela CRH hipotalâmica. O cortisol produzido irá
aldosterona, o mais potente mineralocorticóide da depois inibir a produção de ACTH e CRH (corti-

Colesterol
StAR
Enzima de clivagem
da cadeia lateral
Pregnenolona 17OH-pregnenolona DHEA

3β-HSD 17α-Hidroxilase 3β-HSD 17,20-Liase 3β-HSD

Progesterona 17OH-Progesterona Androstenediona Estrona

21-Hidroxilase
21-Hidroxilase 17α-HSD Aromatase 17α-HSD
HSD

Desoxicorticosterona 11-Desoxicortisol Testosterona Estradiol

11β-Hidroxilase 11β-Hidroxilase 5α-reductase

Corticosterona Cortisol DHT


18-Hidroxilase
(CMO I)

18OH-Corticosterona
18OH-Desidrogenase
Abreviaturas:
(CMO II) CMO I e II: Corticosterona metiloxidase I e II; DHEA: De-hidroepiandrosterona
StAR: proteína de regulação aguda da esteroidogénese
Aldosterona DHT: Di-hidrotestosterona; 3β-HSD: 3β-Hidroxisteróide desidrogenase; 17α-HSD: 17α-Hidroxisteróide desidrogenase

FIG. 1
Síntese de glucocorticóides, mineralocorticóides, androgénios e estrogénios.
CAPÍTULO 174 Doenças da supra-renal. Generalidades 831

Hipotálamo CRH
génios são necessários para a diferenciação do
folículo piloso pré-pubertário em folículo piloso

terminal e folículo sebáceo (unidade pilo-sebácea)
nas áreas cutâneas sensíveis aos androgénios.
Os sinais e sintomas das doenças da supra-
Hipófise ACTH renal devem-se à carência ou excesso das hor-
monas afectadas, e à maturação precoce da supra-
– renal; nestas duas últimas circunstâncias poderá
surgir desenvolvimento precoce dos caracteres
Supra-renal Cortisol sexuais secundários. Alguns sintomas de doença
supra-renal podem estar associados a doença de
outros órgãos, nomeadamente o ovário. Assim, as
FIG. 2
alterações da função supra-renal podem causar
Mecanismo de controlo da síntese de glucocorticóides. um grande número de situações patológicas, com
clínica, diagnóstico e terapêutica muito variados.
cotropin releasing hormone) (Figura 2); os níveis de cor-
tisol têm uma variação circadiana, com níveis máxi- Fisiopatologia da medula SR
mos de manhã e mínimos durante a noite.
O cortisol actua em todo o organismo, per- As principais hormonas segregadas pela medula
mitindo a sobrevivência em caso de estresse; tem SR são as catecolominas fisiologicamente activas:
também uma acção anti-inflamatória e sobre o dopamina, norepinefrina, e epinefrina. A síntese
metabolismo intermediário com aumento da de catecolaminas também ocorre no cérebro, nas
lipólise a nível do tecido adiposo, da proteólise terminações dos nervos simpáticos e no tecido
muscular, e da neoglucogénese hepática levando a cromafim, extramedula SR.
elevação da glicémia. Os metabolitos das catecolaminas são excreta-
A aldosterona actua no rim promovendo a rea- dos na urina, destacando-se o ácido vanilmandéli-
bsorção de sódio e a excreção de potássio na urina.
A produção de aldosterona é influenciada pelo sis- Hipovolémia e ↓ Pressão de perfusão renal
tema renina/angiotensina, pela concentração circu- ↑ [Na+] urina
lante de potássio, e pela ACTH (Figura 3).
Os androgénios supra-renais têm uma acção ↑ Renina
que pode ser importante em ambos os sexos nos
períodos fetal, neonatal, e na criança antes da Angiotensinogénio Angiotensina I


puberdade; são também importantes no sexo fe- ↑ [K+] plasma
minino durante e após a puberdade em associação Enzima de conversão ↓ [Na+] plasma
aos androgénios de origem ovárica. No sexo mas- ACTH
Angiotensina II
culino, a partir da puberdade a acção dos
androgénios supra-renais é diminuta devido à
preponderância da testosterona produzida pelo
testículo. Os androgénios supra-renais começam a ↑ Aldosterona
ser produzidos entre os 6-8 anos nas raparigas, e
entre os 7-9 anos nos rapazes. Estes períodos cor-
respondem à chamada pubarca, em que se verifi- ↑ Reabsorção urinária de Na+
ca aparecimento de pilosidade pública e/ou axi- ↓ Perdas urinárias de K+
lar. Esta deve-se à maturação da zona mais inter-
na do córtex supra-renal, a zona reticular, passan-
FIG. 3
do esta a produzir DHEA e o DHEA-S em respos-
ta à ACTH. A produção de androgénios pelo Mecanismo de regulação hidroelectrolítica e do metabolismo
ovário aumenta durante a puberdade. Os andro- da aldosterona.
832 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

175
co (VMA ou ácido 3-metoxi-4-hidroximandélico).
A detecção urinária das catecolaminas e metane-
frinas constitui meio de diagnóstico de feocro-
mocitomas da medula SR e do sistema nervoso
simpático.
Os efeitos das catecolaminas são mediados
através de receptores adrenérgicos incorporando a HIPERPLASIA GONGÉNITA
chamadas proteínas G. Quer a epinefrina, quer a
norepinefrina elevam a pressão arterial, mas DA SUPRA-RENAL
somente a epinefrina aumenta o débito cardíaco.
Relativamente ao efeito hiperglicémico, o mesmo Maria de Lurdes Lopes
é mais pronunciado no caso da epinefrina.

BIBLIOGRAFIA
(Conjunta dos capítulos 174 a 178 integrando este último) Etiopatogénese e sistematização

A hiperplasia congénita da supra-renal (HCSR) é


uma expressão que engloba um grupo de doenças
autossómicas recessivas, causadas por défices
enzimáticos da via de síntese de esteróides
(Figura 1 do capítulo 174).
A perda do retrocontrolo negativo do eixo
hipotálamo-hipófise-supra-renal e o défice de cor-
tisol levam à secreção aumentada e estimulação
permanente da ACTH, com consequente hiperpla-
sia do córtex da SR e hiperprodução de metaboli-
tos intermediários.
Em função do défice enzimático na sequência
das etapas da síntese, surgem: sinais, sintomas e
achados laboratoriais de défice ou excesso de mi-
neralocorticóides, de virilização incompleta ou de
puberdade precoce em indivíduos do sexo mas-
culino; e virilização ou infantilismo sexual nos
casos do sexo feminino afectados.
O défice mais frequente é o défice em 21-
hidroxilase, responsável por 90 a 95% dos casos;
todas as outras formas de hiperplasia são relativa-
mente raras. Assim, é dada ênfase a esta forma,
apresentando-se no Quadro 1 e de forma resumi-
da, as principais características clínicas e laborato-
riais decorrentes de outros défices enzimáticos.

HCSR por défice de 21-hidroxilase

Etiopatogénese e epidemiologia
A incidência desta doença é variável consoante a po-
pulação estudada (1/280 no Alasca, 1/23.000 em
França); considerando as formas graves do recém-
nascido e criança, a incidência é 1/14.000; se se
CAPÍTULO 175 Hiperplasia congénita da supra-renal 833

QUADRO 1 – Formas de hiperplasia congénita da supra-renal**

Défice Síndroma Ambiguidade Virilização Metabolismo Crise aguda Esteróides ↑ ≠ Esteróides ↓ Localização
(Frequência) genital pós-natal do sal PA do gene
Puberdade
Proteína Hiperplasia Marcada Não Perda de sal de Frequente Nenhum Todos 8p
StAR* lipóide (Rara) no sexo M Ausência de aparecimento PA ↓
puberdade no tardio
sexo F ↑ PRA
3βOH Clássica Marcada no Sim Perda de sal Presente DHEA, Aldosterona, 1p
- Esteróide (Rara) sexo M Alterações de ↑ PRA PA ↓ DHEA-S T, cortisol
desidrogenase Moderada puberdade 17OH
- pregnenolona
no sexo F
Não clássica Não Sim Normal Ausente DHEA, .... ?
(Frequente) Alterações de PA normal DHEA-S
puberdade 17OH
- pregnenolona

17α (Rara) Sexo M Não ↑ PRA Ausente DOC, Cortisol, T, 10q


- Hidroxilase Ausência de HTA corticosterona DHEA, Δ4A,
puberdade 17OHP, 17OH
- pregnenolona
no sexo F
11β Clássica Sexo F Sim ↑ PRA Rara 11 - Cortisol± 8q
- desoxicortisol
- Hidroxilase (1/100.000) HTA aldosterona
DOC, T, Δ4A
Não clássica Sexo F Sim
(Frequente?) Alterações da Normal Ausente 11 - 8q
desoxicortisol ±
puberdade PA normal
DOC, T, Δ4A
Corticosterona Perda de sal Não Não Perda de sal Só perda de sal 18OH Aldosterona 8q
metiloxidase II (Rara) -corticosterona

Δ4A: Δ4-androstenediona; DHEA: de-hidroepiandrosterona; DHEA-S: sulfato de de-hidroepiandrosterona; DOC: desoxicorticosterona; F: feminino; HTA: hipertensão arterial; M:masculino PRA: actividade da renina plasmática;
T: testosterona; PA: pressão arterial; * StAR é a designação da proteína de regulação aguda da esteroidogénese (Steroidogenesis Acute Regulatory protein), essencial para o transporte de colesterol do citoplasma da célula do cór-
tex suprarrenal para a mitocôndria onde ocorrem alguns dos passos da síntese hormonal; ** Excluindo o défice de 21-hidroxilase, abordado no texto.

incluirem as formas de apresentação tardia será de intra-uterina. Após o nascimento, a produção de


1/1.000 indivíduos em geral e 1/27 nos Judeus cortisol e de aldosteroana passa a ser de primor-
Ashkenazi). Nos casos identificados pelo diagnóstico dial importância para a sobrevivência.
precoce que se realiza já nalguns países é 1/11.000 Habitualmente, considera-se existirem duas
(França). formas de apresentação clínica e gravidade dife-
Os 2 genes (CYP21P e CYP21) que codificam a rentes – a forma clássica virilizante com ou sem
21-hidroxilase estão localizados no braço curto do perda de sal, e a forma não-clássica sem perda de
cromossoma 6, muito perto dos locus dos HLA e C4; sal; no entanto, esta classificação é artificial e arbi-
só um dos genes é activo, sendo o outro um pseudo- trária, sendo, por vezes, díficil a inclusão de deter-
gene; a maioria dos doentes corresponde a duplos minado caso concreto numa ou noutra forma.
heterozigotos, tendo herdado duas mutações dife-
rentes. Mais de 90% das mutações são recombi- 1. Forma clássica virilizante, com ou sem perda
nações dos 2 referidos genes. A doença tem formas de sal
de gravidade variável, reflectindo a grande varie- Manifestações clínicas
dade de mutações que podem estar associadas. Durante a gestação, a produção deficiente de cor-
A actividade das supra-renais inicia-se na vida tisol e aldosterona não produz sintomas, mas a
834 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

hiperestimulação mantida pela ACTH com pro-


dução excessiva de androgénios leva a virilização
que pode ter graus variáveis: no sexo feminino
poderá chegar à ambiguidade genital completa
com pseudo-hermafroditismo feminino (aparente
“rapaz” com criptorquidia bilateral e simile
hipospadia); no sexo masculino poderá manifes-
tar-se como macrogenitossomia e escroto hiper-
pigmentado, não chamando geralmente a atenção.
A Figura 1 mostra uma imagem de ambigui-
dade genital em criança de quatro anos.
No sexo masculino, a virilização poderá
somente ser detectada mais tarde, geralmente
entre os 3 e os 7 anos, por aceleração do cresci-
mento e maturação óssea desencadeada pelos
níveis elevados de androgénios supra-renais
(puberdade precoce periférica ou pseudopuber- FIG. 1
dade precoce). Tal situação pode mesmo desen- Ambiguidade genital no contexto de HCSR.
cadear uma puberdade precoce central após o iní-
cio da terâpeutica. Em 75% dos casos de viriliza- de botão mamário. A presença de botão mamário
ção existe perda concomitante de sal. e o aumento do volume testicular farão suspeitar
Os sintomas de perda de sal instalam-se lenta- puberdade precoce central. A hiperpigmentação é
mente desde a 2ª – 3ª semanas de vida, com má habitualmente mais marcada nas palmas das
progressão ponderal, recusa alimentar, mau esta- mãos, pregas de flexão, cicatrizes, mucosa oral,
do geral, desnutrição, vómitos, obstipação; os sin- mamilos, escroto e grandes lábios.
tomas podem ainda instalar-se de forma aguda, Nos casos de défice de 21-hidroxilase do sexo
gravíssima, com letargia, choro fraco, prostração, feminino há que fazer diagnóstico diferencial com
vómitos, diarreia, desidratação, hipotensão, acom- a síndroma de Antley-Bixler (défice de oxi-redu-
panhados de hiponatrémia, hipercaliémia, hipo- tase P450), sobretudo se houver antecedentes
glicémia e acidose metabólica. Este quadro, se não maternos de virilização. A referida síndroma evi-
for diagnosticado e tratado rapida e correcta- dencia um perfil laboratorial semelhante, sendo
mente, pode mesmo conduzir ao colapso cardio- que o espectro clínico é muito variável: em geral
circulatório e morte. Esta é a forma de apresen- acompanha-se de anomalias doutros sistemas
tação mais frequente no sexo masculino. (esqueleto, coração, rim, etc.).
O diagnóstico diferencial da crise aguda de
perda de sal faz-se com sépsis, gastrenterite e, Exames complementares
sobretudo, com a estenose hipertrófica do piloro Os exames complementares de diagnóstico
cujas manifestações clínicas são semelhantes. No que apoiam a suspeita clínica na crise aguda com
entanto, nesta última situação surge hipona- perda de sal, e a realizar em centro especializado
trémia, hipocaliémia e alcalose metabólica. são:
Nas formas com virilização tardia, o exame – Ionograma plasmático: ↓ [Na+], ↑[ K+]
objectivo mostra: estatura elevada com aceleração – pH e gases: acidose metabólica
da velocidade de crescimento (haverá que com- – Glicémia: < 40 mg/dL
parar com a curva de crescimento da criança, se – Ureia: elevada (capítulo 50)
existirem dados anteriores), pilosidade púbica e / O aumento dos níveis séricos de 17OH-proges-
ou axilar (que se quantifica pelos estádios de terona, Δ4-androstenediona, testosterona, DHEA,
Tanner), sudação com odor, e acne; no sexo mas- da actividade de renina plasmática (PRA) ou
culino: pénis bem desenvolvido, testículos peque- renina activa confirmam o diagnóstico. Nas for-
nos; no sexo feminino: clitoromegália e ausência mas graves os doseamentos basais são geralmente
CAPÍTULO 175 Hiperplasia congénita da supra-renal 835

suficientes e os únicos que é possível obter face à 50-200µg/dia, per os, em 2 tomas nas crianças
emergência clínica do tratamento. c) NaCl: 1-3 g / dia per os nos lactentes
Para confirmação de forma virilizante não As crianças maiores não necessitam de doses
completamente esclarecida, pode ser necessário tão elevadas de mineralocorticóides; após o perío-
proceder à prova de estimulação com ACTH do de lactente, os alimentos que as crianças
(Synacthen®) e determinação de 17OH-proges- recebem contêm maiores concentrações de sal e as
terona, Δ4-androstenediona, testosterona, DHEA, mesmas desenvolvem também apetência por sal,
e 3-β-desoxicortisol. pelo que não é necessário administrar já NaCl
Os níveis séricos dos vários metabolitos variam suplementar.
de acordo com a idade e sexo da criança e, tam-
bém, com os valores de referência de cada labo- 2 – Em situações de estresse agudo
ratório; por isso, devem utilizar-se para a interpre- Os doentes com hiperplasia congénita da su-
tação dos resultados as tabelas locais de referência. pra-renal deverão ter sempre consigo uma infor-
A colheita de sangue para estes doseamentos deve mação acerca da sua situação clínica, terapêutica
ser efectuada entre as 8 e as 9 horas para evitar actualizada e indicações em caso de estresse.
resultados falsamente negativos causados pela Em situações de estresse agudo, deverá
variação circadiana dos seus níveis plasmáticos. duplicar-se ou triplicar-se a dose habitual de hi-
drocortisona, de acordo com a gravidade do caso.
Tratamento Se a criança vomitar imediatamente após a admi-
1 – De substituição nistração da terapêutica, dever-se-á repetir a dose
a) Glucocorticóide algum tempo depois; se não tolerar a terapêutica
O tratamento é, ainda hoje, uma das áreas que por via oral, deverá ser rapidamente encaminhada
suscita mais discussão; tem por objectivo a admi- a um serviço de urgência.
nistração de corticóide suficiente para frenar a
produção de androgénios sem, no entanto, afectar 3 – Da crise aguda de perda de sal
o crescimento. Deve, assim, ser ajustada ao doente Deverá ser instituída terapêutica com fluidos
e alterada ao longo do tempo, de acordo com os por via endovenosa e hidrocortisona. Dever-se-á
dados clínicos (velocidade de crescimento, hiper- colher sangue para a determinação de glicémia,
pigmentação, pilosidade, genitais externos) e os ionograma, pH e gases.
níveis séricos dos metabolitos. Esta avaliação re- Se existir choque: NaCl a 0,9% a administrar ao
gular deverá ser trimestral nos 2 primeiros anos ritmo de 20 ml/kg/h.
de vida podendo, depois, passar a semestral. Se ausência de choque: NaCl a 0.9% em dex-
Nas crianças utiliza-se: hidrocortisona per os trose a 5% a administrar de acordo com os cálcu-
em doses de 10-20mg/m2/dia dividida em 3 los para a manutenção + perdas calculadas.
tomas; nos recém-nascidos e lactentes administra- Hidrocortisona:
-se 2 mg, 3 vezes por dia (papéis manipulados na 50mg EV 6/6 horas no lactente;
farmácia). Em geral, administra-se 1/4 da dose 100mg EV 6/6 horas nas crianças maiores
diária de manhã, 1/4 à tarde e 1/2 antes do deitar Não é necessário administrar mineralocor-
a fim de frenar melhor a ACTH e os androgénios ticóides, pois as doses altas de hidrocortisona
cujo “pico” ocorre durante a noite. No entanto, asseguram estas necessidades.
nas crianças muito activas ou que fazem exercício Há que manter a hidratação endovenosa en-
físico intenso, poderá ser necessário administrar a quanto necessário. Introduzir líquidos per os logo
dose maior de manhã a fim de imitar o ciclo do que possível. Passar a terapêutica oral com hidro-
cortisol. cortisona em dose tripla e fludrocortisona o mais
Nas idades pós-fase de crescimento poder-se-á brevemente possível; manter estas doses altas en-
passar a: dexametasona: 0,25-0,5 mg per os, à noite. quanto se mantiver o estresse agudo.
b) Mineralocorticóide 4 – Da ambiguidade sexual
– 9α-fludrocortisona: A atitude de proceder à intervenção cirúrgica
50-300µg/dia, per os, em 2 tomas nos lactentes; para correção do defeito, respeitando os princípios
836 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

éticos, deverá ser realizada por cirurgião pediátri- co estatural inferior à altura alvo da família; hir-
co e equipa cirúrgica com experiência nestas situa- sutismo importante; acne grave; alterações mens-
ções. Habitualmente opta-se pela feminização. truais; massas testiculares.
A terapêutica é semelhante à descrita atrás:
2. Forma não clássica sem perda de sal hidrocortisona per os em doses de 10-15mg/m2/
Manifestações clínicas dia, dividida em 3 tomas. Não é necessário pro-
Esta forma de apresentação, que não se acompanha ceder a substituição mineralocorticóide.
de perda de sal, corresponde, em geral, a formas Nos doentes em tratamento e em situação de
menos graves de défice enzimático. A hiperesti- estresse agudo dever-se-á também duplicar ou
mulação da glândula pela ACTH permite manter triplicar as doses.
níveis plasmáticos normais de cortisol, à custa do
aumento dos níveis plasmáticos dos precursores.
Manifesta-se tardiamente por pubarca precoce
(aparecimento de pilosidade púbica e / ou axilar
antes dos 8 anos no sexo feminino e 9 anos no sexo
masculino), virilização, hirsutismo peripubertá-
rio, acne quística, amenorreia ou alterações mens-
truais, e infertilidade na mulher adulta; pode
mesmo não haver quaisquer sintomas, sendo esta
forma clínica diagnosticada por investigação da
família no âmbito do diagnóstico de um caso
índice.

Exames complementares
• Radiografia do punho:
– Idade óssea avançada em relação à idade
cronológica
• Análises de sangue:
– Ionograma normal.
– Níveis plasmáticos basais de 17OH-pro-
gesterona elevados. No sexo feminino e
após a menarca, este doseamento deve ser
realizado durante a fase folicular do ciclo.
– Testosterona, Δ4-androstenediona, DHEA
e DHEA-S: valores variáveis e sobre-
poníveis a outras situações.
– PRA ou renina activa normais.
– Prova de estimulação com ACTH* (Syna-
cthen®) se os valores basais dos parâmetros
hormonais atrás referidos não forem con-
clusivos. (Capítulo 176)

Tratamento
Têm indicação para tratamento os casos em
que existe: avanço da idade óssea com prognósti-

*Recorda-se a prova de ACTH sintética: medição do incremento do cor-


tisol plasmático 30 minutos e 60 minutos após injecção IM de 0,25 mg
de β1-24-corticotrofina.
CAPÍTULO 176 Insuficiência supra-renal 837

176
progressão ponderal, infecções recorrentes, sin-
tomas gastrintestinais (náuseas, vómitos, dor
abdominal, diarreia) e hipoglicémia.
A carência em mineralocorticóides traduz-se
por hipovolémia, hipotensão postural, taquicárdia
e, por vezes, choque. Inicialmente pode apenas
INSUFICIÊNCIA SUPRA-RENAL existir sintomatologia de uma das duas linhas (em
geral da dos glucocorticóides), aparecendo depois
Maria de Lurdes Lopes os sintomas de insuficiência da outra.
Os sinais e sintomas de insuficiência supra-
renal podem instalar-se de forma lenta e progres-
siva, ou de forma aguda (1/3 dos casos). Os sin-
Definição e etiopatogénese tomas da crise aguda são: dor abdominal intensa,
febre, obnubilação, alteração do estado de cons-
A insuficiência supra-renal deve-se, como o nome ciência, desidratação desproporcionada para a
indica, às consequências da incapacidade de pro- perda de líquidos calculada, e colapso cardiocir-
dução de glucocorticóides (cortisol) e/ou, muitas culatório. A crise aguda pode ser precipitada por
vezes, de mineralocorticóides (aldosterona). vómitos, infecção intercorrente banal, trauma-
Pode ser provocada por grande número de tismo, intervenção cirúrgica, estadia em país
situações (congénitas ou adquiridas) as quais po- quente, paragem de corticoterapia prolongada ou
dem ser divididas em dois grandes grupos: não aumento da dose de substituição em situação
primárias quando a causa reside na supra-renal; e de estresse. Habitualmente a evolução é lenta (4
secundárias quando se deve a insuficiente esti- anos, em média); os seus sintomas são vagos e
mulação do córtex supra-renal pela hipófise ante- inespecíficos, o que dificulta o diagnóstico; muitas
rior (ACTH) ou hipotálamo (CRH) (Quadro 1). vezes, o défice crónico só é diagnosticado a poste-
Sob o ponto de vista etiopatogénico, a insufi- riori, se surgir descompensação aguda.
ciência supra-renal primária pode dividir-se em 3 A clínica é também diferente se se tratar de
grandes grupos: disgenésia/hipoplasia da supra- lesão da própria glândula com eixo hipotálamo-
renal que inclui as alterações dos genes SF-1, DAX- hipofisário funcionante, ou se a insuficiência for
1 e receptor de ACTH; destruição da supra-renal secundária. No primeiro caso, a elevação da
por mecanismos auto-imune, infeccioso, hemor- ACTH por falta de retrocontrolo produz hiperpig-
rágico ou adrenoleucodistrofia; alterações da mentação da pele e mucosas que é mais marcada
esteroidogénese por anomalias da síntese de coles- na palma das mãos, pregas de flexão, cicatrizes,
terol (abetalipoproteinémia e síndroma de Smith- mucosa oral, mamilos, escroto e grandes lábios.
Lemli-Opitz); ou por anomalias da síntese de No segundo caso, apenas a linha glucocorticóide
esteróides (hiperplasia congénita da supra-renal). se encontra afectada visto que a secreção de mi-
Na criança, se excluirmos a insuficiência neralocorticóide depende, sobretudo, do sistema
iatrogénica pós-corticoterapia local ou sistémica, a renina-angiotensina-aldosterona.
causa mais frequente é a hiperplasia supra-renal
congénita, já descrita. Por isso serão abordadas as Exames complementares
outras causas de insuficiência. A idade e o sexo da
criança são importantes para o diagnóstico etio- A suspeita clínica obrigará à realização de um con-
lógico (Quadro 2). junto de exames complementares em centro espe-
cializado cujos resultados são orientadores.
Manifestações clínicas
1. Exames auxiliares gerais
A carência em glucocorticóides traduz-se clinica- • Exames de sangue:
mente por: astenia (díficil de valorizar nas crian- – ↓ [Na+], ↑ [ K+], ↓ [Cl–] plasmáticos, poden-
ças), anorexia, cansaço fácil, perda de peso ou má do ser normais fora da crise aguda
838 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Causas de insuficiência supra-renal

A - Insuficiência supra-renal primária (↓ Cortisol, ↑ ACTH / CRH)


Congénita Adquirida
• Hiperplasia supra-renal congénita: • Auto-imune:
– Défice de 21-OHase e 11β-OHase – Isolada
– Défice da proteína StAR (hiperplasia lipóide) – Síndromas poliglandulares auto-imunes de tipo I
• Hipoplasia supra-renal congénita: ou APECED e tipo II
– Esporádica • Infecciosa:
– Miniatura –Tuberculose, coccidiomicose, histoplasmose
– Citomegálica (mutação do gene DAX-1) – Meningococémia (síndroma de Waterhouse-
– Ligada a deleção de genes contíguos Friderichsen)
(DAX-1, glicerol-cinase e Duchenne) • Doenças infiltrativas:
• Alteração do gene SF-1 – Hemocromatose, amiloidose, sarcoidose
• Adrenoleucodistrofia – Metástases
• Síndroma de Smith-Lemli-Opitz • Traumatismo:
• Doença de Wolman – Hemorragia neonatal
• Doença de Refsum – Cirurgia
• Ausência de resposta à ACTH: • Tumores
– Isolada • Fármacos:
– Associada a alacrimia e acalasia – Alteração da síntese de esteróides: cetoconazol
• Défice de aldosterona: – Aumento do metabolismo dos esteróides:
– Hipoaldosteronismo rifamicina, fenobarbital, fenitoína
– Pseudo-hipoaldosteronismo

B - Insuficiência supra-renal secundária (↓ Cortisol, ↓ ACTH / CRH)


Congénita Adquirida
• Défice de ACTH / CRH: • Idiopática:
- Isolado -défice isolado ou múltiplo
- Associado a outros défices hormonais • Auto-imune (hipofisite)
- Associado a defeitos anatómicos (anencefalia) • Tumores (craniofaringeoma)
- Idiopático • Fármacos (esteróides exógenos)
(Adaptado de Pombo M, et al, 1997)

QUADRO 2 – Causas de insuficiência supra-renal de acordo com idade e sexo

Sexo 0-2 anos >2-14 anos >14 anos


Masculino • Hiperplasia congénita • Adrenalite auto-imune • Adrenalite auto-imune
da supra-renal • Síndroma poliglandular auto-imune • Síndroma poliglandular auto-imune
• Hipoplasia congénita da - Tipo I - Tipo II
supra-renal (DAX-1 e deleção de • Síndroma poliglandular auto-imune
genes contíguos) - Tipo II
• Adrenoleucodistrofia
• Hipoplasia congénita da supra-renal
Feminino • Hiperplasia congénita da supra- • Adrenalite auto-imune • Adrenalite auto-imune
renal • Síndroma poli-glandular • Síndroma poliglandular auto-imune
auto-imune - Tipo I - Tipo II
• Síndroma poli-glandular
auto-imune - Tipo II
(Adaptado Ten S, et al, 2001)
CAPÍTULO 176 Insuficiência supra-renal 839

– ↑ Ureia e creatinina a resposta da hormona de crescimento (GH), im-


– Anemia normocítica moderada portante no hipopituitarismo).
– ↑ Hematócrito
– ↑ Proteínas plasmáticas 1. Insuficiência supra-renal primária
– Neutropénia com linfocitose relativa
– Eosinofilia Doença de Addison
– Hipoglicémia É o paradigma da insuficiência supra-renal primá-
– Acidose metabólica moderada ria descrita acima. Muitas vezes idiopática, deve-
– Radiografia de tórax PA: coração “pequeno” -se à destruição progressiva do córtex supra-renal
– ECG: diminuição da voltagem, QRS verti- por mecanismo auto-imune, infeccioso, infiltrati-
cal e amplo, segmento QT alterado, ondas vo, hemorrágico ou traumático. Associa-se à pre-
T aplanadas sença de auto-anticorpos e, por vezes, a doença de
• Exame de urina: outros órgãos tais como: diabetes mellitus tipo 1,
– [Na+] urina ↑ ou normal apesar de [Na+] no doenças de Hashimoto e Graves, hipogonadismo,
plasma ↓ hipoparatiroidismo, anemia perniciosa, vitíligo,
alopécia, miastenia gravis, doença celíaca. A his-
2. Exames endocrinológicos tória natural desta afecção é muito lenta, podendo
Na insuficiência supra-renal aguda só é geralmente ser diagnosticada ainda numa fase subclínica pela
possível colher uma única amostra de sangue para determinação de auto-anticorpos. (Quadro 1)
os doseamentos endocrinológicos, dada a urgência
do início da terapêutica. Síndroma poliglandular auto-imune de tipo I
(APECED)
2.1 – Determinações basais O seu acrónimo tem como significado a associação
• Cortisol plasmático (entre as 8.00 - 9.00 horas): de candidíase mucocutânea crónica, poliendo-
< 15µg/dL crinopatia (hipoparatiroidismo e insuficiência su-
• 17OH-progesterona, Δ4-androstenediona, pra-renal) e distrofia ectodérmica (Autoimmune
testosterona, 17OH-pregnenolona, DHEA, PolyEndocrinopathy, Candidiasis, Ectodermal
DHEA-S, desoxicortisol: normais Dystrophy). É uma doença esporádica, por vezes
• ACTH ↑ na insuficiência primária; ACTH familiar, com uma incidência variável, sendo par-
normal, ou pouco elevada para os níveis de ticularmente frequente na Finlândia (1/25.000
cortisol plasmático na insuficiência secun- indivíduos), no norte de Itália e na Sardenha.
dária As manifestações clínicas são múltiplas, sur-
• PRA ou renina activa normal ou ↑ gindo ao longo da vida do doente; quanto mais pre-
coce é a primeira manifestação, tanto mais com-
2.2 – Testes dinâmicos ponentes irão, provavelmente, aparecer. São mani-
• Prova de estimulação pela ACTH (Synacthen®) festações principais: candidíase mucocutânea cróni-
por via endovenosa: ca, hipoparatiroidismo, insuficiência supra-renal,
- Cortisol aos 60 minutos depois da adminis- hipogonadismo hipergonadotrófico, doença auto-
tração de ACTH: <18µg/dL ou inferior a 2 imune da tiroideia, diabetes mellitus tipo 1,
vezes o valor basal hipofisite. Outras manifestações incluem: alopécia,
- Aldosterona aos 60 minutos depois da vitíligo, ceratopatia, síndroma de Sjögren*, anemia
administração de ACTH: <80ng/dL ou infe- perniciosa, gastrite atrófica, má-absorção e / ou
rior a 3 vezes o valor basal esteatorreia, hepatite crónica activa, colelítiase, vas-
• Prova de estimulação pelo glucagom ou pela culite, asplenia, distrofia ectodérmica. A primeira
hipoglicémia insulínica para avaliação da manifestação clínica da doença é, em geral, a can-
reserva funcional da supra-renal:
- Cortisol: <18µg/dL ou subida <8µg/dL em * A síndroma de Sjögren constitui um problema inflamatório crónico
autoimune em que se verifica infiltração progressiva de linfócitos e plas-
relação ao valor basal mócitos nas glândulas salivares, lacrimais e parótida. Daí os sintomas
(Nota: esta prova permite determinar também oculares(boca e olhos “secos” /xeroftalmia, xerostomia), e parotídeos.
840 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

didíase que aparece, habitualmente, durante o Adrenoleucodistrofia


primeiro ano de vida. Trata-se de lesões da mucosa Definição e importância do problema
oral por Candida albicans, os vulgares “sapinhos” É uma doença metabólica, recessiva ligada ao cro-
dos lactentes, que se tornam crónicas ou recor- mossoma X; deve-se ao défice da enzima peroxis-
rentes; pode também existir candidíase cutânea, somal responsável pela β-oxidação dos ácidos
ungueal ou vulvovaginal. Em 3/4 dos casos, a gordos de cadeia muito longa que se acumulam
primeira doença endócrina é o hipoparatiroidismo, nos tecidos, levando a lesão desmielinizante da
a que se segue a insuficiência supra-renal; inicial- substância branca do sistema nervoso central e
mente a tetania por hipocalcémia poderá só ocorrer periférico, e a lesão do córtex supra-renal. A sua
em jejum, ou ser tão vaga que o doente parece ser só incidência é ~ 1/20.000 a 1/100.000 em indivíduos
“desajeitado”. O hipogonadismo é mais frequente do sexo masculino, sendo a causa mais frequente
no sexo feminino (60%). A distrofia ectodérmica de insuficiência supra-renal primária no rapaz.
traduz-se por hipoplasia do esmalte dentário, per- Existem duas formas da doença: a adrenoleu-
furações punctiformes das unhas e atrofia da mem- codistrofia cerebral e a adrenomieloneuropatia.
brana do tímpano. (Figura 1) A adrenoleucodistrofia cerebral tem início na
criança, adolescente, ou mesmo no adulto sendo
Síndroma poliglandular auto-imune de tipo II rapidamente progressiva e devastadora. Os seus
É mais frequente que a síndroma de tipo I descri- sintomas devem-se a um processo inflamatório in-
ta. Em 50% dos casos trata-se de uma situação tenso com desmielinização progressiva do SNC e
familiar (autossómica dominante), sendo mais fre- traduzem-se por perturbações do comportamen-
quente no sexo feminino. Está associada a deter- to, insucesso escolar, disartria, cegueira, surdez e
minados fenótipos do complexo major de histo- demência progressiva, até à morte.
compatibilidade (HLA). A adrenomieloneuropatia manifesta-se, em
Caracteriza-se pela associação de doença de Ad- geral, na idade adulta, envolve predominante-
dison ou evidência serológica de anticorpos anti- mente a medula espinhal e nervos periféricos, e a
supra-renal, doença auto-imune da tiroideia (em sua progressão pode ser lenta. As mulheres porta-
geral hipotiroidismo nas crianças), diabetes mellitus doras podem também apresentar sintomas neu-
do tipo 1 com ou sem hipogonadismo, e vitíligo. rológicos que são menos graves, tais como para-
parésia espástica. Os sintomas da insuficiência
supra-renal podem, em especial quando se iniciam
antes dos 15 anos, preceder os sintomas neurológi-
cos, coexistindo ou desenvolvendo-se após a dis-
função neurológica. Por outro lado, a insuficiência
supra-renal poderá ser assintomática, e apenas
diagnosticada pelos doseamentos hormonais.
O défice da linha mineralocorticóide é raro.
Depois da adolescência pode existir cabelo fino e,
nos homens adultos, insuficiência testicular. Na
mesma família podem coexistir formas de dife-
rente expressividade da doença, pelo que é impor-
tante proceder ao rastreio familiar quando na
mesma se diagnostica um caso.

Diagnóstico
A suspeita clínica de adrenoleucodistrofia im-
plica a realização dum conjunto de exames com-
FIG. 1 plementares.
Síndroma poliglandular auto-imune do tipo I. Hipoplasia do • Doseamento dos ácidos gordos de cadeia
esmalte dentário e pigmentação da mucosa bucal. muito longa no sangue periférico; nos hete-
CAPÍTULO 176 Insuficiência supra-renal 841

rozigotos os resultados podem ser falsa- A hipoplasia miniatura é uma doença recessi-
mente negativos. va que se acompanha, por vezes, de puberdade
• A confirmação do diagnóstico pode ser feita precoce.
por diagnóstico molecular da mutação do Doença de Wolman
gene; há 550 mutações diferentes identifi- É uma doença metabólica recessiva do metabolis-
cadas, 8 delas em famílias portuguesas. mo do colesterol que se deve ao défice da lipase
• Estudo imagiológico por RMN crânio-ence- ácida lisossómica, enzima que permite a formação
fálica: permite avaliar e seguir ao longo do de colesterol livre utilizável pelas células do
tempo as alterações da substância branca, organismo. É progressiva e fatal. A sintomatologia
existindo mesmo um sistema de quantifi- inicia-se na infância e traduz-se por sintomas de
cação ou índice de gravidade das lesões com perda de sal, de défice glucocorticóide, esteator-
implicações prognósticas. reia e hepatosplenomegália.
• O diagnóstico pré-natal pode ser feito por
doseamento dos ácidos gordos ou pela pes- Síndroma de Smith-Lemli-Opitz
quisa de mutação. Esta síndroma é caracterizada por fácies peculiar,
microcefalia, polegares de implantação externa,
Tratamento cardiopatia congénita, micropénis e fotossensi-
Está em curso um estudo para avaliar a eficá- bildade. Deve-se a alteração da enzima (Δ7-esterol
cia do chamado “óleo de Lorenzo”. redutase) que cataboliza o passo final da síntese
Outra medida que parece ter resultados nos de colesterol. Acompanha-se também de insufi-
doentes já com sintomas é a transplantação de ciência supra-renal.
medula óssea.
Hipoaldosteronismo
Hipoplasia congénita da supra-renal Existem dois tipos de défice exclusivo da linha
A hipoplasia congénita da supra-renal é clinica- mineralocorticóide: a) por défice enzimático de
mente muito semelhante à hiperplasia congénita corticosteronametiloxidase II que leva a incapaci-
da supra-renal: má progressão ponderal, perda de dade de síntese de aldosterona e, consequente-
sal e convulsões causadas por hipoglicémia. mente, com aldosterona baixa e aumento da PRA;
Distinguem-se quatro formas: esporádica, minia- b) por alteração do receptor da aldosterona (pseu-
tura, citomegálica e citomegálica associada a do-hipoaldosteronismo) que cursa com valores
deleção de genes contíguos. elevados de aldosterona. Ambos se traduzem cli-
A chamada hipoplasia citomegálica é uma nicamente por perda de sal.
doença recessiva ligada ao cromossoma X. O gene
(DAX-1), cuja mutação provoca a doença, tem Resistência familiar à ACTH ou défice familiar
uma localização próxima dos genes que codificam de glucocorticóides
o défice de glicerolcinase e a distrofia muscular de Os sinais e sintomas aparecem precocemente e ca-
Duchenne, pelo que estas patologias podem asso- racterizam-se por episódios recorrentes de con-
ciar-se à hipoplasia citomegálica. vulsões e hipoglicémia acompanhados por hiper-
A insuficiência supra-renal inicia-se, em geral, pigmentação exuberante. Existem duas formas: a)
nas primeiras semanas de vida, com má progres- défice isolado; b) défice associado a outras mani-
são ponderal e perda de sal; pode ocorrer deterio- festações da síndroma de Allgrove (a qual é abor-
ração súbita e rápida da função supra-renal, dada a seguir).
pondo em risco a vida do lactente se a perda de sal
não for reconhecida. Acompanha-se de hipogo- Síndroma de Allgrove ou Síndroma dos 3 / 4A
nadismo hipogonadotrófico, traduzido clinica- É uma doença recessiva causada pela mutação de
mente por criptorquidia e atraso pubertário. um gene localizado no cromossoma 12. É caracte-
A forma com deleção de genes contíguos tem rizada pela associação: insuficiência supra-renal,
pior prognóstico que a forma associada a deleção acalasia, alacrimia e alterações neurológicas, em
do gene DAX-1. especial do sistema nervoso autónomo [Adrenal-
842 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

177
cortical insufficiency associated with Achalasia,
Alacrima (3A), Autonomic and other neurologic
abnormalities (4A)].
Há grande variabilidade na idade e na forma
de apresentação. A insuficiência supra-renal é
progressiva e deve-se à insensibilidade à ACTH;
traduz-se por perda de sal, hipoglicémia e con- SÍNDROMA DE CUSHING
vulsões. As manifestações neurológicas são ha-
bitualmente precoces e traduzem-se por hiper- Maria de Lurdes Lopes
reflexia, diminuição da força muscular, disartria,
ataxia, défice de inteligência, diminuição da
variabilidade cardíaca, hipotensão postural,
diminuição do diâmetro e da velocidade de cons- Definição e etiopatogénese
trição pupilar, e diminuição da velocidade de
condução nervosa. Os doentes apresentam fácies A síndroma de Cushing deve-se à produção exces-
característica, hiperqueratose e também cicatriza- siva de cortisol ou outros glucocorticóides. Apesar
ção difícil. de se tratar duma situação rara na criança (é mais
frequente nas crianças com mais de 10 anos), colo-
2. Insuficiência supra-renal secundária ca algumas vezes problemas de diagnóstico dife-
rencial em casos de obesidade, os quais são cada
A insuficiência é, em geral moderada, afectando vez mais frequentes.
apenas a linha glucocorticóide; por vezes, só é As causas da síndroma de Cushing estão
demonstrável pela prova de estimulação da descritas no Quadro 1, sendo mais frequente a
supra-renal. relacionada com administração de corticóides
A insuficiênica supra-renal iatrogénica pode para tratamento de várias doenças. Nas crianças
ocorrer mesmo após a administração de pequenas com mais de 10 anos, a produção excessiva de
doses de corticóide por via cutânea ou inalatória, ACTH por microadenoma hipofisário (doença de
por exemplo com fluticasona ou budesonido, uti- Cushing) é a causa mais frequente da síndroma de
lizados no tratamento preventivo da asma. Cushing não iatrogénica. Nas crianças pequenas,
A terapêutica de substituição e da crise aguda em especial nas crianças com menos de 5 anos, os
é igual à anteriormente pormenorizada para os
casos de formas clássicas de hiperplasia congénita QUADRO 1 – Causas de síndroma de Cushing
da suprarrenal, exeptuando no que respeita à dis-
tribuição das doses de hidrocortisona (a dose 1. Dependente de ACTH
maior deve ser administrada de manhã, a fim de a) Iatrogénica
imitar o ciclo de cortisol). b) Adenoma hipofisário produtor de ACTH (doença de
Cushing)
c) Neoplasia não hipofisária secretora de ACTH
d) Secreção ectópica de CRH
2. Independente de ACTH
a) Iatrogénica
b) Adenoma da supra-renal
c) Carcinoma da supra-renal
3. De etiologia não completamente esclarecida
a) Hiperplasia micronodular da supra-renal ou doença
adrenocortical hiperpigmentada primária: variante
clássica, síndromas de Carney e McCune-Albright
b) Hiperplasia macronodular da supra-renal
CAPÍTULO 177 Síndroma de Cushing 843

tumores da supra-renal são a causa principal;


nestes casos, a doença tem um curso rapidamente
progressivo, podendo mesmo haver aceleração da
velocidade de crescimento e da maturação óssea.

Manifestações clínicas

Os sintomas mais frequentes na criança são aumen-


to de peso e obesidade, (que podem inicialmente
não ser de localização central), associados a atraso
de crescimento e da maturação óssea. (Figura 1)
Podem também existir: acne, hirsutismo / hiper-
tricose, alterações menstruais ou atraso de pro-
gressão da puberdade, cefaleias, hipertensão arterial,
hiperpigmentação, fadiga ou astenia, pele fina,
estrias purpúreas e equimoses. A diminuição das
massas musculares dos membros não é habi-
tualmente muito marcada nas crianças. Mais rara-
mente, verificam-se ainda: alterações psíquicas tais
como depressão, irritabilidade e alterações do sono,
osteopénia, acanthosis nigricans (pigmentação cutânea
das axilas e região posterior do pescoço, tendo a pele
aspecto de sujidade), cálculos renais, edema, necrose
avascular da cabeça do fémur ou deslizamento da
epífise da cabeça do fémur. Este quadro instala-se,
em geral, de forma insidiosa, decorrendo em média 3
anos desde o início dos primeiros sintomas até ao
diagnóstico; esta progressão lenta é evidente quando
existem fotografias do doente ao longo dos anos.
A hiperplasia micronodular associada ou não à
síndroma de Carney (mixomas cardíacos e cutâ-
neos, hiperactividade endócrina, lesões cutâneas FIG. 1
lentiginosas, nevus azuis da pele e mucosas) ca- Obesidade no contexto de síndroma de Cushing.
racteriza-se por um hábito externo “asténico” com
baixa estatura, grande diminuição das massas centros especializados. Assim, e face à suspeita clíni-
musculares, osteoporose e hiperprodução cíclica ca apoiada em determinados exames auxiliares, a cri-
de corticóides. Classicamente cita-se a tríade:para- ança deverá ser enviada para esclarecimento a uma
gangliomas extra-SR, tumores do estroma gastrin- consulta de Endocrinologia Pediátrica.
testinal e condroma pulmonar. Os exames laboratoriais gerais revelam, em
geral:
Exames complementares • Hemoglobina, hematócrito e eritrócitos no
limite superior do normal
O diagnóstico da síndroma, bem como da sua etio- • Leucopénia e eosinopénia
logia, pode ser muito difícil; com efeito, apesar de • [Na+] dentro dos limites dos limites normais
protocolos de diagnóstico muito elaborados, não há e ↓ [K+]
exame 100% sensível ou específico. O diagnóstico eti- • Hiperglicémia ou alteração da prova de tole-
ológico obriga a estudos endocrinológicos e de ima- rância à glucose
giologia (algoritmo da Figura 2) para esclarecimento. • Elevação do valor das lipoproteínas (VLDL,
A maioria destes exames só está disponível nalguns HDL, LDL)
844 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Determinação de ACTH
+
Prova de supressão com doses altas (80µg/kg/dia, 2 dias) de dexametasona com determinação do cortisol plasmático e urinário
antes e depois da administração
+
Prova de estimulação com CRH e determinação da ACTH e cortisol

ACTH baixa ACTH elevada ACTH elevada


+ + +
Ausência de supressão ↓ cortisol >50% valor basal Ausência de supressão
+ + +
ACTH pós CRH ↑ ACTH e ↑ cortisol pós CRH ACTH pós CRH
sem alteração (↑ >50% valor basal) sem alteração

Tumor da supra-renal Doença de Cushing Produção ectópica de ACTH

TAC / RMN das TAC / RMN cerebral TAC / RMN tórax /


supra-renais abdomén

Micro / macroadenoma
Tumor localizado

FIG. 2
Algoritmo para o diagnóstico etiológico da síndroma de Cushing

• Hipercalcémia e hipercalciúria. noma hipofisário por cirurgia transesfenoidal. Esta


As determinações endocrinológicas permitem técnica neurocirúrgica é especialmente difícil nas
demonstrar sinais de hipercortisolismo: crianças, e mesmo com neurocirurgiões experientes
• ↑ cortisol plasmático (> 20µg/dL) e do corti- pode haver 50% de recidivas que obrigam a
sol livre urinário (> 60µg/m2) radioterapia. Pelo contrário, há também o risco de a
• Perda do ritmo circadiano do cortisol [às 23 remoção originar defeitos múltiplos da secreção
horas: cortisol plasmático > 5µg/dL; ou salivar hipofisária, obrigando a terapêutica de substituição.
(mais fácil de obter em ambulatório) >1µg/dL]
• Ausência de supressão do cortisol plasmáti-
co após a administração de dexametasona
[20 µg/Kg (máximo: 1 mg)] às 23 horas da
noite anterior: cortisol > 5µg/dL.
Em caso de resultados negativos, face a forte
suspeita clínica, dever-se-ão repetir os doseamentos
pois poderá existir apenas hipercortisolismo cíclico.

Tratamento

A terapêutica é variável consoante a etiologia, de-


vendo ser individualizada consoante o doente. Na
doença de Cushing está indicada a remoção do ade-
CAPÍTULO 178 Tumores do córtex supra-renal 845

178
velocidade de crescimento. Os níveis elevados de
testosterona podem causar alterações do compor-
tamento com irritabilidade, hiperactividade, jogos
e brincadeiras violentas. Podem também manifes-
tar-se como síndroma de Cushing, cujos sinais e
sintomas podem aparecer isolados (5 a 8% dos
TUMORES DO CÓRTEX casos, consoante as séries), ou associados a virili-
zação (30% dos casos). A presença de massa
SUPRA-RENAL abdominal ou pélvica palpável pode ser o único
achado. A hipertensão arterial é frequente mesmo
Maria de Lurdes Lopes sem sintomas de síndroma de Cushing; pode ser
grave, sob a forma de crises hipertensivas com
convulsões.
Excepcionalmente, o tumor produz estrogénios
Importância do problema (tumor feminizante), manifestando-se neste caso,
como puberdade precoce periférica no sexo femi-
Os tumores do córtex supra-renal são raros, cons- nino, e ginecomastia no sexo masculino. Em cerca
tituindo menos de 0,5% dos tumores na idade pe- de 10% dos casos, não há quaisquer sintomas de
diátrica. A sua incidência é cerca de 0,3/1.000.000 hiperprodução hormonal. Por vezes a doença
crianças com menos de 15 anos; a taxa mais elevada passa imperceptível, tendo a criança um aspecto
verifica-se na região sul do Brasil (3 – 4/1.000.000 de saudável apesar dos sintomas de virilização.
crianças com menos de 15 anos). Estes tumores são Assim, qualquer criança com menos de 4 anos
mais frequentes no sexo feminino, em crianças com e pubarca precoce, ou lactente com acne, deverá
menos de 5 anos e associados às seguintes situações: ser estudado no sentido de excluir a presença de
hemi-hipertrofia isolada, síndromas de Beckwith- tumor da supra-renal.
Wiedemann, Carney, Li-Fraumeni*, neoplasias en-
docrinológicas múltiplas, defeitos congénitos das Exames complementares
vias urinárias, hamartomas, hiperplasia congénita
da supra-renal e tumores cerebrais. Os níveis das hormonas produzidas podem tam-
Têm sido encontradas mutações no gene supressor bém ser muito variados; os resultados dos dosea-
tumoral p53 (ao nível do cromossoma 17p13.1) em mentos hormonais podem situar-se no limite supe-
doentes com carcinoma adrenocortical. rior para a idade. Face à suspeita clínica, é aconse-
lhável proceder a doseamentos múltiplos e exames
Manifestações clínicas imagiológicos no sentido de esclarecer a situação:
– O aumento nítido dos níveis plasmáticos de
Os tumores do córtex da supra-renal podem pro- DHEA-S (>600µg/dL) e de 17-cetoesteróides
duzir diversas hormonas, o que condiciona for- urinários é muito sugestivo de tumor da supra-
mas de apresentação clínica muito heterogéneas. renal. No entanto, o aumento da DHEA-S pode
Na maioria dos casos existem sinais exube- não ser tão exuberante.
rantes de virilização, de aparecimento recente: voz – Aumento do cortisol urinário e plasmático,
grave, aumento de volume do clítoris ou do pénis perda do ritmo circadiano do cortisol, ↑ testosterona,
com testículos pequenos, pilosidade púbica e axi- ↑ Δ 4-androstenediona, ↑ estradiol e ↓ ACTH nos
lar, acne, odor corporal, hirsutismo explosivo, casos com sintomas de síndroma de Cushing.
aumento das massas musculares e aceleração da – Nos casos de virilização: ↑↑ testosterona
(>350ng/mL no sexo feminino), ↑ Δ 4-androstene-
* A síndroma de Li-Fraumeni integra situações de cancro familiar asso- diona e ↑ 17-hidroxiprogesterona.
ciadas a mutações no gene p53, supressor tumoral. Compreende largo – Se houver feminização: ↑↑ estrona e ↑↑ estra-
espectro de neoplasias malignas em familiares do 1º grau incluindo
cancro da mama, tumor cerebral, sarcoma dos tecidos moles, carcino-
diol.
ma adrenocortical, etc.. A não supressão do cortisol e outros metaboli-
846 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

tos como a dexametasona é constante e diagnóstica: Perheentupa J. APS-I/APECED: the clinical disease and thera-
testosterona livre >8pg/mL, DHEA-S> 70µg/dL e py. Endocrinol Metab Clin North Am 2002; 31: 295-320
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• Intervalo de tempo, entre o primeiro sintoma
da doença e o diagnóstico, inferior a 6 meses
• Tumor pequeno (<200g), completamente
ressecado (o mais importante)
• Doença localizada
• Diagnóstico histológico de adenoma
• Normalização dos níveis hormonais após a
intervenção ablativa.

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CAPÍTULO 179 Feocromocitoma 847

Manifestações clínicas

179 Em cerca de 90% dos casos, o feocromocitoma é


considerado uma situação benigna.
Os sinais e sintomas deste tumor surgem em pa-
roxismos e são resultantes do excesso de catecola-
FEOCROMOCITOMA minas: hipertensão arterial (em geral a manifestação
que se mantém constante), sudação, rubor, palpi-
João M. Videira Amaral tações, taquicárdia, cefaleias, labilidade emocional,
dores abdominais, náuseas, vómitos, obstipação,
poliúria, polidipsia, etc.. Nas situações em que a cri-
ança é submetida a anestesia poderá surgir crise de
Definição e importância do problema encefalopatia hipertensiva. Estão descritos casos em
que é identificável, pela palpação, tumor abdominal.
O feocromocitoma é um tumor secretor de cateco-
laminas, com origem em qualquer tecido com Exames complementares
células cromafins. Recorda-se, a propósito, que as
células cromafins são os elementos constituintes Segregando a medula suprarrenal epinefrina e nor-
da medula supra-renal e de outras estruturas se- epinefrina cujos metabólitos podem ser doseados,
cretoras de adrenalina: cadeia simpática abdomi- o diagnóstico de feocromocitoma baseia-se classi-
nal perto da aorta, ao nível da artéria mesentérica camente na demonstração do aumento de cateco-
inferior ou sua bifurcação, área peri-supra-renal, laminas e seus metabólitos na urina de 24 horas.
bexiga, uréteres, região torácica, cervical, etc.. Em As substâncias habitualmente doseadas na
cerca de 90% dos casos tem origem na medula SR. urina têm os seguintes valores de referência:
Os chamados paragangliomas correspondem às – catecolaminas urinárias totais (0,4-2,0 µg/
restantes situações tumorais cromafins de locali- kg/dia);
zação extra-medula SR. – epinefrina urinária (< 273nmol/24 horas ou
É raro na idade pediátrica sendo responsável <50 µg/24 horas);
por cerca de 0,5 a 2% dos casos de hipertensão – nor-epinefrina urinária (<887 nmol/24 h ou
arterial neste período da vida. Com maior <150 µg/24h); na criança predomina em rela-
incidência entre os 9 e 12 anos e predomínio no ção à epinefrina;
sexo masculino, estão descritos casos familiares. – ácido vanilmandélico (VMA) (419 ± 131
Associa-se por vezes às síndromas de neoplasias nmol/kg/24 h ou 83 ± 26 µg/kg/dia). De
endócrinas múltiplas familiares (sigla corrente em referir que os valores de VMA podem estar fal-
inglês – síndromas MEN ou multiple endocrine neo- samente aumentados se houver administração
plasia) com um tipo de hereditariedade autos- simultânea de ácido actil-salicílico, penicilina,
sómica dominante e expressividade variável; estes sulfamidas, ou alimentos com baunilha.
quadros relacionam-se com mutações do proto- – ácido homovanílico – 16,5-87,8 nmol/mg de
oncogene RET no cromossoma 10 (10q11.2). creatinina (3-16 μg/mg creatinina).
As neoplasias classicamente englobadas na No plasma pode dosear-se a metanefrina, evi-
síndroma MEN são: tumores do lobo anterior da denciando elevada sensibilidade.
hipófise, tumores dos ilhéus pancreáticos, hiper-
plasia paratiroideia, tumores neurais, e carcinoma * A doença de von Hippel-Lindau(VHL) é uma doença autossómica
da medular tiroideia; tais entidades deverão ser, dominante afectando cerca de 1/36.000 indivíduos, iniciando-se em
pois, pesquisadas em situações de feocromocito- geral após a adolescência. O gene VHL resulta duma mutação no braço
curto do cromossoma 3. A verificação de, pelo menos, um dos
ma confirmado. seguintes critérios, permite o diagnóstico: 1-mais de um heman-
O feocromocitoma pode estar igualmente asso- gioblastoma do SNC ou retina; 2 –um só hemangioblastoma da retina
ou SNC + complicações viscerais, incluindo designadamente feocro-
ciado a neurofibromatose e a doença de Von mocitoma; 3 –qualquer das manifestações referidas em 1- e 2- associa-
Hippel-Lindau*. da a história familiar.
848 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Nos casos de neuroblastoma excretam-se Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
igualmente metabólitos das catecolaminas, (sobre- Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
tudo dopamina e ácido homovanílico) mas não se Saunders, 2011
verifica hipertensão. Nordstrom-O’Brien M, Van der Luijt RB, van Rooijen E, et al.
Para a localização do tumor estão indicados Genetic analysis of von Hippel-Lindau disease. Hum Mut
diversos estudos imagiológicos a seleccionar em 2010; 31:521-537
função do contexto clínico: ecografia, tomografia Prys – Roberts C. Pheochromocytoma – recent progress in its
computadorizada com emissão de positrões management. BJ Anaesth 2000; 85: 44-57
(PET), ressonância magnética, pielografia intra- Ross JH. Pheochromocytoma: Special considerations in chil-
venosa, cintilografia com MIBG (meta-iodo-ben- dren. Urol Clin North Am 2000; 27: 393-402
zil-guanidina), etc.. Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
Diagnóstico diferencial Medical , 2011
Sperling M. Pediatric Endocrinology. Philadelphia, PA:
A hipertensão obriga a estabelecer o diagnóstico Saunders/Elsevier, 2008
diferencial com outras situações tais como: doença
renovascular, coarctação da aorta, hipertiroidis-
mo, défice de 11-β hidroxilase, de 17-α hidroxi-
lase, de desidrogenase de 11-β hidroxisteróide,
aldosteronismo primário, tumores adrenocorti-
cais, porfíria, disautonomia familiar, etc..

Tratamento

O tratamento é cirúrgico, sendo a técnica laparos-


cópica actualmente a primeira escolha; em casos
bilaterais obrigando a suprarrenalectomia bilate-
ral, deve providenciar-se, após a intervenção, o
tratamento imediato da insuficiência suprarrenal
primária.
Como actuação pré-operatória, a fim de bloquear
a libertação intra-operatória de catecolaminas, uti-
liza-se nalguns centros a fenoxibenzamina(diben-
zilina), bloqueante de alfa-adreno-receptores.
Havendo a possibilidade de recorrência do
tumor, no período pós-operatório a curto e médio
prazo torna-se obrigatório proceder à vigilância
seriada da pressão arterial e do valor das cateco-
laminas.
Os tumores malignos, embora de evolução
lenta, são resistentes à quimioterapia e à radiote-
rapia.

BIBLIOGRAFIA
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011
Edmonds S, Fein DM, Gurtman A. Pheochromocytoma.
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diatrics. Arch Dis Child Educ Pract Ed 2011;96:107-111
CAPÍTULO 180 Doenças da tiroideia 849

180
último é responsável pela transcrição de uma pro-
teína da membrana das células foliculares cuja
função é importar, simultaneamente, iodo e sódio
do meio extracelular (sangue) para o meio intra-
celular.
O iodo é um elemento fundamental para a sín-
DOENÇAS DA TIROIDEIA tese de hormonas tiroideias, sendo o sódio utiliza-
do como instrumento para as bombas de sódio
Catarina Limbert geradoras de energia, necessária para a entrada do
iodo.
Eis algumas etapas fundamentais do desen-
volvimento tiroideu: pela 8ª semana, inicia-se a
Importância do problema síntese de Tg; captação de iodo às 10 semanas; e
formação de colóide e tiroxina (T4) pela 12ª sema-
A tiroideia e as hormonas tiroideias (HT) têm um na de gestação.
papel crucial na mielinização do sistema nervoso A normal morfogénese e migração da glându-
central (SNC), na regulação do crescimento, no la tiroideia são independentes do eixo hipotála-
metabolismo e na função de múltiplos órgãos. mo-hipofisário. Este inicia a sua função, com pro-
As crianças, em especial o recém-nascido e o dução de TSH fetal pelas 12 semanas. No meio da
lactente, são extremamente vulneráveis às alte- gestação, cerca das 20 semanas, os valores de TSH
rações da função tiroideia. O diagnóstico e trata- elevam-se na circulação fetal, traduzindo matu-
mento precoces são, nestas idades, essenciais para ração e independência do eixo materno e, como
prevenir consequências irreversíveis tais como a consequência, elevação da tiroxina. No entanto,
lesão permanente do SNC e o atraso do desen- devido à elevada actividade da tiroxina – deioni-
volvimento psicomotor e neuro-sensorial. dase no SNC e fígado fetal, e placenta, durante a
As doenças da tiroideia representam, sem gravidez os níveis de T3 e T4 fetais mantêm-se
dúvida, as afecções endócrinas mais frequentes na baixos e os níveis de rT3 fetal elevados.
idade pediátrica, sendo a sua etiologia e apresen- Por outro lado, as hormonas tiroideias mater-
tação clínica muito diferentes das do adulto, o que nas são transferidas de forma maciça para o feto.
implica idealmente uma abordagem, pelo pedia- O desenvolvimento fetal normal, bem como o
tra com experiência em endocrinologia. subsequente desenvolvimento neuropsicológico
após o nascimento, dependem das hormonas
Ontogénese e fisiologia tiroideias maternas, estando aqueles comprometi-
dos em casos de hipotiroidismo materno.
O primeiro esboço embrionário da glândula tiroi- Após o nascimento, observa-se a seguinte
deia surge pelo vigésimo dia de gestação como evolução: A TSH sobe 30 minutos após o parto
um espessamento endodérmico da linha média. A (resultado do estresse e arrefecimento) até valores
partir desta fase, a glândula vai progredindo por de 60-80 mU/mL. Esta elevação de TSH é segui-
migração caudal até à sua posição final, pré-tra- da por um marcado aumento da T3 e T4, que
queal. atingem valores de hipertiroidismo às 24 horas de
Simultaneamente, enquanto a migração da vida (T4 : 15-19 mcg/dL) – “Hipertiroidismo fisio-
glandula tiroideia embrionária ocorre, as células lógico”. Como consequência, e através de meca-
foliculares e parafoliculares vão-se diferenciando. nismo de retroacção negativo, a TSH diminui ao
Para isso, é fundamental a expressão correcta dos longo da primeira semana de vida, descendo pro-
genes responsáveis pela síntese das hormonas gressivamente até valores de 8 mU/mL.
tiroideias e paratiroideias. Desses genes, os mais É, pois, fundamental ter em consideração estas
importantes são, sem dúvida, o gene da TSH, da variações hormonais perinatais na avaliação da
tiroglobulina (Tg), da tiroperoxidase (TPO) e do função tiroideia, tanto em recém-nascidos de
chamado natrium – iodine symporter – NIS. Este termo como pré-termo. Uma interpretação errada
850 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Classificação do hipotiroidismo na idade pediátrica

Hipotiroidismo congénito Hipotiroidismo adquirido


Primário Primário
Alterações da embriogénese (80%- 90%) Tiroidite autoimune (doença de Hashimoto)
(ectopia, agenésia, hemiagenésia) Défice de ingestão de iodo
Disormonogénese (10%- 20%) Disormonogénese tardia
Hipotiroidismo transitório(5%- 10%) Neoplasia tiroideia
Excesso ou défice de iodo Cromossomopatias, doenças metabólicas, doenças autoimunes
Ingestão materna de drogas antitiroideias ou Ingestão de drogas (iodo,amiodarona, glucocorticóides, dopamina)
bociogénicas Excisão cirúrgica
Anticorpos maternos Irradiação acidental
Terapêutica acidental
Secundário Sindroma da “doença não tiroideia”
Resistência periférica a HT
Secundário
Neoplasias, irradiação craniana, etc..

dos valores pode induzir falsos diagnósticos de tação de tirotrofina hipofisária ou tirostimulina
hipertiroidismo ou falha na detecção do hipo- (TSH ou thyroid stimulating hormone). Esta, ligan-
tiroidismo. Os valores de referência para as HT do-se ao receptor da TSH na glândula tiroideia,
estabelecidos de acordo com a idade e sexo, são estimula a produção e libertação de L-tiroxina (T4)
valiosos instrumentos na abordagem clínica da e em menor quantidade de tri-iodotironina (T3). O
função tiroideia da criança e adolescente. sistema de retroacção negativo regula os níveis
Neste capítulo são abordadas sucintamente as séricos de HT.
afecções tiroideias com as quais o pediatra e clíni- Por convenção, o hipotiroidismo é classificado
co geral mais frequentemente se defrontam. de acordo com a localização da lesão no eixo
hipotálamo-hipofisário (Quadro 1). Consideram-
-se as seguintes situações: primário (causa tiroi-
deia) ou secundário (causa central); congénito ou
1. HIPOTIROIDISMO adquirido; e transitório ou permanente. A resis-
tência periférica às HT é rara, sabendo-se que cor-
Definição e etiopatogénese responde, na maior parte das vezes, a mutações
nos genes dos receptores periféricos da T3. Neste
O hipotiroidismo é uma entidade clínica resul- caso o eixo está intacto (provas de TRH e TSH
tante da síntese de HT (em quantidade ou quali- estão normais), e os valores de HT estão muitas
dade) inadequada às necessidades do organismo. vezes normais.
A síntese de HT requer uma glândula tiroideia Relativamente ao hipotiroidismo congénito
com desenvolvimento normal, um eixo hipo- primário, a grande maioria corresponde a situa-
tálamo – hipofisário funcionante e uma captação ções esporádicas, exceptuando os erros da síntese
de iodo adequada. hormonal – disormonogénese – que são situações
A TRH (thyrotropin releasing hormone ou hor- de transmissão hereditária autossómica recessiva.
mona tirotrópica ou libertadora da tirotrofina) e a Recentemente demonstrou-se que alguns casos de
somatostatina* hipotalâmicas controlam a liber- disgenésia da tiroideia estão associados a muta-
ções em genes envolvidos no desenvolvimento da
tiroideia (TTF1, TTF2, PAX 8 e o gene do receptor
* A somatostatina ou SRIF – Somatotropin release inhibiting factor –
diminui a concentração plasmática da hormona do crescimento (GH)
da TSH). O modo de transmissão pode ser
ou somatotrofina, e suprime a libertação de TSH. autossómico dominante ou autossómico recessi-
CAPÍTULO 180 Doenças da tiroideia 851

vo; ou ainda tratar-se de haploinsuficiência. A sín- Manifestações clínicas


droma de Pendred (surdez congénita e bócio com
hipotiroidismo por defeito da organificação do As manifestações clínicas dependem da idade de
iodo), uma das doenças com defeito da hormono- aparecimento da disfunção glandular. A existência
génese mais estudadas, está associada a uma mu- ou não de história familiar de doença tiroideia ou
tação no gene da pendrina, codificador do trans- da hipófise é importante para o diagnóstico. Os
portador de aniões . sinais e sintomas podem ser subtis (estão descritos
O hipotiroidismo congénito secundário ou casos assintomáticos) nos primeiros 2 meses de
central pode ocorrer por défice isolado de TSH ou vida. Até aos 3 anos de vida, o hipotiroidismo
TRH. É muito raro e ocorre quase sempre associa- deixa marcas irreversíveis no desenvolvimento do
do ao défice de outras hormonas hipotálamo/ sistema nervoso central (SNC) – (quadro de “cre-
hipofisárias (prolactina, hormona do crescimento tinismo”); por isso os programas de rastreio no
e gonadotrofinas). Na base genética observam-se período neonatal são fundamentais para o dia-
mutações no gene do receptor da TRH e no gene gnóstico precoce (identificação da doença antes do
da subunidade β da TSH. As mutações do gene início de qualquer sintomatologia).
PIT1 e PROP1 levam a defeitos na organogénese Em Portugal, o diagnóstico precoce do hipo-
da hipófise. tiroidismo congénito neonatal, associado ao ras-
O hipotiroidismo adquirido primário, surge treio da fenilcetonúria e doutras doenças heredi-
mais tarde ao longo da infância e adolescência. A tárias metabólicas, é um programa de rastreio
sua etiologia é variada, sendo as causas mais realmente eficaz. Também conhecido pelo teste
importantes o défice de iodo e a tiroidite linfocíti- do “pézinho”, é realizado a partir do 3º dia de
ca autoimune ou doença de Hashimoto (Quadro vida e consiste no doseamento de TSH (análise de
1). Esta última surge habitualmente durante a sangue capilar feita no Centro de Genética
adolescência podendo, no entanto, ter início aos 6- Médica/INSA do Porto). Em muitos países ape-
9 meses de idade com sintomas mais subtis.É mais nas é doseada a T4 e, em caso de alterações, a TSH
frequente no sexo feminino e em crianças com (EUA). Na Europa e Japão avalia-se inicialmente
outras doenças autoimunes, nomeadamente dia- apenas a TSH e, em caso de dúvida ou suspeita,
betes mellitus, síndroma poliglandular autoi- doseia-se a T4. É importante referir que mesmo
mune, cromossomopatias (síndroma de Down, recém-nascidos com TSH e T4 normais, podem
síndroma de Klinefelter, síndroma de Turner) e vir a desenvolver hipotiroidismo nas primeiras
doenças metabólicas. Pode ocorrer de forma tran- semanas ou nos primeiros meses de vida. Assim,
sitória e em fase de recuperação da tirotoxicose sempre que o teste for feito antes do 3º dia de
(doença de Graves). vida, é aconselhável uma reavaliação funcional
O hipotiroidismo adquirido secundário ou da tiroideia às 2 - 6 semanas de vida; de referir
central, resulta habitualmente de tumores cranianos que cerca de 10% dos casos de hipotiroidismo
ou de irradiação, trauma, infecção ou inflamação. congénito são detectados com este teste. A inter-
pretação do resultado do rastreio deve ser feita
Aspectos epidemiológicos com especial cuidado nos seguintes casos: quan-
do a colheita ocorre antes do 3º dia de vida, nos
O hipotiroidismo congénito tem uma incidência recém-nascidos pré-termo com < 32 semanas, nos
muito variável de acordo com a área geográfica: recém nascidos em estado crítico, nos submetidos
1/3.300 na Europa; 1/5.700 no Japão; 1/4.500 em a transfusões e/ou medicados com agentes tópi-
média nas restantes áreas do globo. As causas de cos com iodo ou com fármacos com interferência
hipotiroidismo congénito neonatal são na grande na função tiroideia (dopamina, glucocorticóides
maioria primárias: disgenésia da tiroideia 1/4.000; etc.).
disormonogénese 1/30.000 e hipotiroidismo tran- No RN e lactente, os achados mais relevantes
sitório 1/40.000. Calcula-se em 1/100.000 a inci- encontram-se resumidos no Quadro 2 que integra
dência do hipotiroidismo congénito secundário um conjunto de parâmetros a que se atribui pon-
ou central. tuação parcelar conduzindo a um índice total.
852 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 2 – Indice para o diagnóstico É de notar que o atraso pubertário é acompa-


do hipotiroidismo congénito nhado por aumento da glândula mamária e, por
vezes, até de galactorreia, resultado da estimu-
Parâmetros Pontos lação das células produtoras de prolactina pela
Hernia umbilical 2 TSH em excesso. A presença de prolactina em cir-
Sexo feminino 1 culação vai inibir por retroacção negativa a LH,
Palidez, extremidades frias, hipotermia 1 mas não a gonadotrofina A ou follicle stimulating hor-
Fácies edematosa e inexpressiva 2 mone (FSH).
Macroglossia 1 No pré-termo é frequente encontrar hipotiro-
Hipotonia 1 xinémia com valores de TSH normais. Trata-se de
Icterícia prolongada 1 uma alteração transitória que desaparece aos 2
Choro rouco, pele seca 1 meses de vida.
Atraso do encerramento da fontanela posterior 1
Obstipação 1 Exames complementares
Gestação > 40 semanas 2
Peso ao nascer > 3,5 kg 1 O diagnóstico de hipotiroidismo sem bócio,
requer poucos exames auxiliares; baseia-se na
clínica e, sobretudo, na avaliação laboratorial da
Sempre que o índice for superior a 5 deve sus- função tiroideia: determinação de TSH, T3 e T4
peitar-se de hipotiroidismo. livres ou totais, e detecção de anticorpos anti-
A Figura 1 exibe fácies de lactente com quadro tiroideus.
clínico hipotiroidismo na era pré-rastreio neonatal O doseamento de Tg, a proteína da matriz hor-
no nosso país. monal tiroideia cuja síntese depende da TSH,
Na criança mais velha os sinais predominantes reflecte a síntese hormonal intratiroideia e permite
podem ser atraso do desenvolvimento psicomotor, avaliar a adequação terapêutica, bem como erros
desaceleração do crescimento, atraso na maturação de síntese hormonal.
óssea e na dentição, miopatia e hipertrofia muscu- No hipotiroidismo primário observa-se dimi-
lar, cansaço, hipotonia, pele seca e atraso pubertário. nuição da T3 e T4, com aumento de TSH.
No hipotiroidismo secundário as HT estão
igualmente diminuídas, mas a TSH encontra-se
normal ou diminuída.
Na resistência periférica às HT, todos os valo-
res, HT e TSH encontram-se normais ou elevados.
A síndroma da doença não tiroideia é uma
disfunção transitória da tiroideia que surge em
doença grave ou após intervenções cirúrgicas
complexas. O perfil laboratorial assemelha-se ao
do hipotiroidismo secundário em que a TSH está
normal ou diminuída, e a T3 diminuída; no entan-
to, a T4 está normal e a rT3 está normal ou eleva-
da.
A ecografia é um exame bastante sensível para
a localização e avaliação da glândula, mesmo em
lactentes.
A cintigrafia com I123 é importante para o dia-
gnóstico das disgenésias da tiroideia (agenésia,
hemiagenésia, ectopia) mas não deve ser utilizada
FIG. 1 como exame de rotina no hipotiroidismo congéni-
Fácies inexpressiva de lactente com hipotiroidismo congénito. to.
CAPÍTULO 180 Doenças da tiroideia 853

Tratamento idade pediátrica (contribuindo para 95% dos casos)


é o hipertiroidismo autoimune, mais conhecido
A L-tiroxina é a droga de eleição no tratamento do como doença de Graves (ou doença de von
hipotiroidismo da criança e adolescente. Basedow). (Quadro 3) (ver Glossário/Capítulo 181)
No hipotiroidismo congénito o tratamento deve A doença de Graves resulta da produção anor-
ser iniciado o mais cedo possível, antes das 2 sema- mal de autoanticorpos (IgG1) pelos plasmócitos
nas de vida com 10-15 µg/kg via oral (aprox. 50 µg que se diferenciam a partir das células B; os referi-
no RN de termo). Os valores de TSH vão descendo dos autoanticorpos – “thyroid stimulating imuno-
até aos 15 dias, sendo desejável manter os valores globulins” (TSI), ligam-se ao domínio extracelular
de T3 e T4 nos limites superiores do normal para a do receptor da TSH, estimulando a função e
idade. O comprimido, em toma única e diária, deve crescimento da célula folicular da tiroideia e a
ser dado em jejum (30 a 60 minutos antes da secreção excessiva de HT.
refeição). No dia do controlo, a toma deve ser feita Para além de anticorpos (Ac) (ou em inglês –
após a colheita de sangue. Em crianças com Ab/antibodies) estimulantes, (TRSAb/ou TSI) são
hipotiroidismo grave, é preferível iniciar a terapêu- detectáveis outros Ac no hipertiroidismo
tica com dose reduzida (25 µg) e aumentar quin- autoimune, tais como Ac bloqueantes do receptor
zenalmente até à dose desejada, pelos efeitos TSH (TBII ou TRBAb), Ac antitiroperoxidase
adversos da tiroxina na fase inicial: irritabilidade, (TPO) e antitiroglobulina.
nervosismo, falta de concentração e insónia. Em 60% dos doentes com doença de Graves
Com a idade, a dose absoluta de L-tiroxina vai- existe história familiar de doença autoimune da
-se aumentando (diminuindo, embora relativa- tiroideia. Estudos genéticos comprovaram tratar-se
mente a “por kg de peso”). de uma doença poligenética, estando a maioria dos
Nas crianças com hipotiroidismo secundário o genes em causa relacionados com a imuno-regu-
objectivo é obter menores valores de T4 do que lação. Os doentes com doença de Graves apresen-
naquelas com hipotiroidismo primário. Nos casos tam, com maior incidência, os haplótipos A1, B8 e
em que não tenha sido possível confirmar o dia- DR3 do sistema HLA (Human Leucocyte Antigen).
gnóstico e em que se tenha iniciado a terapêutica, O hipertiroidismo neonatal é também de causa
esta deve ser mantida até aos 2 anos de idade,
quando a maturação do SNC está praticamente QUADRO 3 – Causas de hipertiroidismo na
completa. A interrupção terapêutica deve ser feita criança e adolescente
4 semanas antes da avaliação da função tiroideia.
No seguimento do hipotiroidismo congénito Hipertiroidismo autoimune
são aconselháveis testes de audição e avaliação do Doença de Graves neonatal
neurodesenvolvimento. A administração de T3 Doença de Graves juvenil
tem efeitos benéficos em casos de doença não Hipertiroidismo destrutivo da tiroidite linfocítica
tiroideia grave, designadamente no que respeita à Hipertiroidismo não autoimune
função miocárdica. Hiperprodução de TSH
Adenoma hipofisário
Resistência hipofisária às HT
2. HIPERTIROIDISMO Nódulo funcionante autónomo
Adenoma tóxico
Definição e etiopatogénese Carcinoma folicular ou papilar hiperfuncionante
Síndroma de McCune Albright
O hipertiroidismo é uma doença rara na criança. Ingestão de iodo
Caracteriza-se pela aceleração do metabolismo Ingestão de HT
orgânico resultante do excesso da síntese e secreção Tumores produtores de hCG
de HT livres pela glândula tiroideia, excedendo Mola hidatiforme
grandemente as necessidades do organismo. Coriocarcinoma
A causa mais frequente de hipertiroidismo em
854 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

autoimune (doença de Graves neonatal). Surge em obviamente, só ocorrem em adolescentes ou jovens


recém-nascidos de mães com doença de Graves – em idade fértil.
uma em cada 70 mães, dá à luz uma criança clinica-
mente afectada. Consequência da passagem de Ac Aspectos epidemiológicos
tirostimulantes maternos através da placenta, o
hipertiroidismo neonatal regride habitualmente ao A incidência do hipertiroidismo na criança é muito
fim de 3 semanas a 3 meses de vida, uma vez que os inferior à do adulto; estudos recentes referem taxas
Ac maternos têm uma semi-vida de ~12 dias. Por de 1/10.000.000. A incidência vai aumentando com
vezes a doença de Graves neonatal manifesta-se tar- a idade, atingindo o pico na adolescência, sobretu-
diamente, cerca de 9 dias após o parto, resultado da do no sexo feminino. Apenas 1%-5% dos hiper-
presença de Ac maternos bloqueantes (TRBAb) e tiroidismos têm início antes dos 16 anos. É uma
estimulantes do receptor da TSH (TRSAb). Nestes doença mais frequente no sexo feminino, numa
casos a evolução é mais grave, já que o hiper- proporção de 3/1 até 5/1.
tiroidismo é mais difícil de controlar, observando-se
uma elevada percentagem de recorrências. Manifestações clínicas
O hipertiroidismo autoimune pode também
surgir numa fase inicial da tiroidite de Hashimoto. Do quadro clínico da doença de Graves, fazem
A tirotoxicose da tiroidite linfocítica autoimune parte os sinais e sintomas clássicos do hiper-
ocorre no início do processo de inflamação da tiroidismo (Quadro 4) e a oftalmopatia. A evolu-
glândula e resulta da destruição autoimune ção clínica da doença é bastante insidiosa (meses);
maciça de folículos tiroideus, levando à libertação no início, as manifestações são mínimas e ines-
de HT pré-formadas e armazenadas. pecíficas. Frequentemente, os primeiros sintomas
Outras causas de hipertiroidismo não autoi- são alterações do comportamento e diminuição do
mune são: excesso de TSH, habitualmente devido rendimento escolar, seguidos de irritabilidade,
a adenoma hipofisário ou, mais raramente, a hiperactividade e insónia. Por outro lado, pode
resistência hipofisária às HT. Surgem igualmente surgir fadiga, letargia e nictúria.
no sexo feminino e masculino. Ambos os casos A glândula está aumentada em cerca de 90%
podem ocorrer de forma esporádica ou familiar. A dos casos, de forma simétrica, apresentando-se
resistência hipofisária às HT está relacionada com indolor à palpação, com uma consistência mole e
mutações num dos genes do receptor das HT. movimentando-se com a deglutição. Por vezes
O nódulo autónomo da tiroideia funciona inde- ausculta-se um sopro relacionável com hipercircu-
pendentemente do controlo normal do eixo lação na região da tiroideia.
hipotálamo-hipofisário, levando à produção exces- A oftalmopatia surge de forma evidente em
siva de HT circulantes. Sabe-se que a sua pato-
génese tem por base mutações “com ganho de QUADRO 4 – Clínica do hipertiroidismo
função” no gene do receptor da TSH, podendo em idade pediátrica
ocorrer de forma esporádica ou familiar. Neste últi-
mo caso a transmissão é autossómica dominante. Bócio
A ingestão de iodo em excesso e de HT exóge- Taquicárdia
nas são também causas raras de hipertiroidismo Irritabilidade
não autoimune. Hipertensão arterial (HTA)
Pelo facto de a hormona gonadotrófica corióni- Apetite aumentado
ca humana ou Human Chorionic Gonadotropin (hCG Perda de peso
ou gonadotrofina) apresentar também afinidade Diarreia
para o receptor da TSH (estimulando a glândula Tremor das extremidades
tiroideia, mas com menor intensidade do que a Intolerância ao calor
TSH), em raríssimos casos de tumores produtores Protusão do globo ocular (exoftalmia) e pálpebras
de hCG, pode surgir hipertiroidismo. São exemplos francamente “abertas”
a mola hidatiforme e os tumores do trofoblasto que,
CAPÍTULO 180 Doenças da tiroideia 855

apenas 50% das crianças com doença de Graves. Os Ac TSI, TBII e TPO são detectáveis em 80%
Inclui protusão do globo ocular, retracção da dos doentes com doença de Graves, não o sendo
pálpebra e, mais raramente, quemose, visão dupla nos raros casos de hipertiroidismo não autoi-
e dor ocular. (Figura 2) mune. Não há consenso quanto ao significado da
O recém-nascido (RN) com hipertiroidismo presença e títulos de Ac tirostimulantes e blo-
congénito apresenta características específicas queantes como indicadores de prognóstico.
salientando-se: prematuridade ou baixo peso, irri- Suspeitando-se do nascimento de feto com hi-
tabilidade, má progressão ponderal ou excessiva pertiroidismo congénito, os doseamentos das HT,
perda de peso (apesar do apetite muitas vezes TSH e Ac devem ser feitos a partir de sangue do
voraz), dificuldade em adormecer ou descansar. cordão umbilical.
Existe também taquicárdia, febrícula, e hipersu- No hipertiroidismo, a ecografia revela um
dorese. O aumento de volume da glândula tiroi- aumento difuso da glândula com ecogenecidade
deia é visível, provocando muitas vezes dificul- não homogénea e sinais de perfusão aumentada
dade respiratória por compressão traqueal. Se a na modalidade de Doppler.
causa for a doença de Graves neonatal, pode exis- A cintigrafia da tiroideia deve realizar-se ape-
tir protusão ocular. Quando o diagnóstico não é nas em doentes com nódulos detectados através
feito atempadamente na primeira infância pode da ecografia, para detecção de nódulos funcio-
surgir craniossinostose prematura, situação grave nantes.
que obriga a intervenção cirúrgica correctiva.
Tratamento
Exames complementares
O tratamento da doença de Graves pode ser médi-
O diagnóstico laboratorial do hipertiroidismo é co ou cirúrgico, sendo previsíveis complicações e
feito pelo doseamento de T3 e T4 livres ou totais e efeitos secundários.
TSH séricos. Os valores das HT estão elevados O tratamento médico utiliza 3 tipos de
para a idade e sexo, observando-se no início da antiroideus em alternativa – metimazol, carbami-
doença uma subida maior da T3 em relação à T4. zol e propiltiuracilo – todos actuando a nível da
A TSH é tipicamente indoseável, exceptuando nos formação de HT, inibindo a incorporação de iodo
casos de hipertiroidismo por excesso de produção nos resíduos de tirosina e tiroglobulina. Podem
de TSH. provocar efeitos secundários - exantema, granu-
locitopénia, hepatite e artrite.
A dose do metimazol e carbimazol é 0,5 a 1
mg/kg/dia em toma única.
O propiltiuracilo requer uma dose 10 vezes
superior, dividida em 3 tomas diárias dada a sua
curta semi-vida. Este último é, no entanto, o anti-
tiroideu de eleição em duas situações: na grávida
– pois atravessa em menor escala a barreira pla-
centária – e no início do tratamento, especialmente
em casos graves, já que é a única droga que actua
também a nível periférico, inibindo a conversão
de T4 em T3.
Os beta bloqueantes – propranolol (1mg/kg/
dia), bem como a dexametasona, podem ser uti-
lizados no início da terapêutica, para alívio dos
sintomas do sistema nervoso autónomo e para
promover o bloqueio periférico da conversão de
FIG. 2 T4 em T3, enquanto os antitiroideus ainda não
Fácies de hipertiroidismo: protusão dos globos oculares. tenham originado efeito.
856 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

O tratamento médico com os fármacos referi- com a função tiroideia, inibindo a síntese de hor-
dos deve ser interrompido ao fim de 2 anos, sendo monas.
a frequência de recidivas muito elevada (cerca de Os bociogénicos mais comuns incluem os anti-
60-70% dos casos) e a possibilidade de remissão tiroideus, os iodetos e o lítio, alimentos contendo
muito reduzida. tiocianatos tais como as couves, couve-flor, couves
A cirurgia, contrariamente à terapêutica medi- de Bruxelas, mandioca e soja, etc..
camentosa, permite níveis de cura de cerca de 90%, Mais raramente, surgem a secreção hipotalâmi-
revertendo rapidamente o hipertiroidismo. Im- ca ou hipofisária aumentadas (ex. adenoma da
plica, no entanto, um processo cirúrgico extrema- hipófise ou resistência hipofisária às HT). Com fre-
mente complexo que pode resultar em hipo- quência, a estimulação da glândula tiroideia deve-
tiroidismo permanente, hipoparatiroidismo ou dis- se à presença de autoanticorpos contra o receptor
fonia devido à lesão do nervo recorrente. Está indi- da TSH (ou TSI) como é o caso da doença de
cada em doentes com complicações importantes do Graves.
tratamento médico, nódulos funcionantes, e RN O bócio por infiltração deve-se fundamental-
com hipertiroidismo congénito não familiar, grave. mente a neoplasias (adenoma ou carcinoma) ou
O tratamento com iodo radioactivo (I131) é lar- processos não neoplásicos (quistos). Na criança e
gamente utilizado nos Estados Unidos. O seu índi- adolescente, a neoplasia da tiroideia surge como
ce de cura é ~ 90%, sendo o menos dispendioso para nódulo único isolado.
o tratamento da doença de Graves. No entanto é A inflamação por agentes infecciosos (bac-
potencialmente carcinogénico, o que foi recente- térias, vírus ou fungos) pode causar tiroidite
mente confirmado após a catástrofe de Chernobyl. aguda ou subaguda bem como tiromegália. No
Por esta razão, para muitos autores está contra-indi- entanto, a infecção da glândula tiroideia é uma
cado em crianças; pode, contudo, ser considerado situação extremamente rara na criança. A causa
em jovens com bócio de grandes dimensões mas mais frequente de inflamação é a tiroidite lin-
sem oftalmopatia e com má resposta à terapêutica focítica autoimune, a variante do bócio mais co-
farmacológica. nhecida como tiroidite de Hashimoto. Esta
endocrinopatia é considerada a mais frequente
causa de bócio na criança em regiões de bócio
3. BÓCIO não endémico. O aumento de volume da tiroideia
é causado pela infiltração linfocítica que pode ser
Definição e etiopatogénese difusa ou nodular levando, neste último caso, a
dificuldades no diagnóstico diferencial com tu-
O bócio ou tiromegália define-se como o aumento mores da tiroideia.
de volume da glândula tiroideia para além dos A lesão celular tiroideia é explicada sobretudo
limites normais para a idade, independentemente por: mecanismos de citotoxicidade de mediação
da etiologia e da função tiroideia. celular; e citotoxicidade directa através de linfóci-
A elevada incidência de haplótipos do HLA tos T sensibilizados, associada à produção de cito-
DR3, DR4 e DR5 traduzem uma componente cinas tóxicas celulares.
genética da doença, mais frequente no sexo femi- Os factores etiológicos de bócio na infância são
nino (3/1). múltiplos (Quadro 5). Os bócios podem ser difusos
O aumento da glândula pode ocorrer como ou nodulares, independentemente da função. De
consequência de mecanismos de estimulação, de notar que, em regra, o bócio começa por ser difuso,
infiltração e/ou de inflamação. evoluindo posteriormente para nodular.
A estimulação é habitualmente resultado do Praticamente erradicado dos Estados Unidos e
excesso de TSH devido a um defeito da hor- da Europa, o défice de iodo é, como foi referido
monogénese (por exemplo défice de iodo, a maior antes, a maior causa de bócio a nível mundial,
causa a nível mundial). sendo as regiões montanhosas da América do Sul
Salienta-se o papel dos bociogénicos, substân- e Ásia Central, as de maior prevalência (regiões de
cias químicas, drogas ou alimentos que interferem bócio endémico).
CAPÍTULO 180 Doenças da tiroideia 857

QUADRO 5 – Factores etiológicos do bócio

Bócio difuso
Autoimune
Tirotoxicose
Doença de Graves
Adenoma produtor de TSH
Resistência hipofisária às HT
Ingestão de iodo, antitiroideus, alimentos bocigénicos
Défice de iodo
Disormonogénese familiar
Tiroidites: subaguda, supurada (vírica, bacteriana)
Bócio idiopático simples
Bócio nodular*
Tiroidite de Hashimoto
Quisto tiroideu
Doença de Plummer (bócio “tóxico” uninodular)
Tumor tiroideu
Adenoma funcionante (nódulo quente)
Adenoma não funcionante (nódulo frio)
Carcinoma
* Diagnóstico diferencial de bócio nodular com massas não FIG. 3
tiroideias (adenopatia, quisto do canal tiroglosso) Bócio observado de perfil.

Manifestações clínicas assintomático, referindo por vezes dor ou sen-


sação de preenchimento nesta região.Mais rara-
O bócio cursa habitualmente com eutiroidismo e mente, a doença manifesta-se pelo aparecimento
raramente com hipotiroidismo. Pode haver compli- de hipotiroidismo (tiroidite atrófica). Num perío-
cações quando comprime estruturas adjacentes, no- do inicial podem existir sinais e sintomas de tiro-
meadamente: as vias respiratórias, causando difi- toxicose. Esta condição surge como resultado da
culdade respiratória; o nervo recorrente levando a libertação maciça de hormonas tiroideias pré-for-
rouquidão; ou o esófago, provocando disfagia. madas, devido à inflamação e consequente des-
O bócio simples, geralmente idiopático, ocorre truição das células foliculares da tiroideia.
sobretudo em raparigas adolescentes. Estas apre- A tiroidite autoimune pode estar associada a
sentam muitas vezes um aumento difuso e assin- múltiplas endocrinopatias autoimunes generica-
tomático da tiroideia sem alterações da função. mente designadas de síndroma poliglandular
Nestas doentes não há história de ingestão de autoimune: tipo I – hipoparatiroidismo, doença de
bociogénicos ou de défice de iodo. Addison, candidíase mucocutânea; tipo II – doença
À palpação, a tiroideia está aumentada, simé- de Addison, diabetes insulinodependente; tipo III-
trica ou assimétrica, sendo móvel à deglutição. diabetes insulinodependente e anemia perniciosa.
Habitualmente não é dolorosa e apresenta uma A tiroidite de Hashimoto surge frequente-
consistência firme, lisa ou discretamente nodular, mente em crianças com síndroma de Turner e tris-
havendo formas predominantemente nodulares, somia 21.
com nódulos únicos ou múltiplos. Por vezes,
podem estar presentes gânglios linfáticos regio- Exames complementares
nais, não dolorosos. (Figura 3)
A maioria das crianças e adolescentes com O diagnóstico de bócio por carência de iodo con-
tiroidite de Hashimoto apresenta-se com bócio firma-se através da verificação de excreção
858 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

urinária de iodo inferior a 50 µg/g de creatinina. puberdade, uma vez que num número significati-
A ecografia da tiroideia revela aumento de volu- vo de casos se observa remissão completa da
me da glândula com ecogenicidade heterogénea. tiroidite de Hashimoto. De referir que cerca de
Na presença de bócio, o doseamento de Ac (TPO e 10% dos doentes com tiroidite autoimune com
Tg) para a detecção de doença autoimune da função tiroideia conservada evoluem secundaria-
tiroideia é uma regra. No bócio simples o dosea- mente para hipotiroidismo, razão pela qual anual-
mento de Ac é negativo. Cerca de 40 % a 70% dos mente se deve proceder a uma avaliação funcional
pacientes apresentam Ac antiTg positivos, cujo da tiroideia. Nestes casos a doença tem um carác-
significado não está ainda esclarecido. ter permanente e não transitório.
O diagnóstico de tiroidite linfocítica é feito pela
detecção de Ac antitiroideus circulantes, nomeada-
mente Ac antitiroglobulina (Tg) e Ac antitiroperoxi- 4. NÓDULOS ISOLADOS
dase (TPO), e pela avaliação funcional da tiroideia. DA TIROIDEIA
A ecografia revela sinais de glândula aumentada de
volume com reduzida ecogenecidade. Importância do problema

Tratamento Na criança e adolescente os nódulos isolados são


pouco frequentes. No entanto, sempre que detec-
As necessidades diárias de iodo são cerca de 150 a tados, devem ser cuidadosamente sujeitos a exa-
300 µg. O tratamento da carência iodada faz-se com mes que permitam o diagnóstico diferencial entre
suplemento de iodo: nos lactentes cerca de 100 µg nódulos do bócio, quistos, tumores benignos ou
/dia; nas crianças aproximadamente 200 µg /dia; e malignos (Quadro 5).
nos adolescentes 200-300 µg/dia. Sempre que o
volume da glândula não se reduz com o suplemen- Aspectos epidemiológicos
to em iodo, deve iniciar-se o tratamento com
L-tiroxina. Os carcinomas da tiroideia na criança são raros,
O tratamento da tiroidite autoimune depende da constituindo 1,5% de todos os tumores malignos
função tiroideia. Na maioria dos casos, crianças e em crianças com idade inferior a quinze anos, com
adolescentes encontram-se em eutiroidismo. uma frequência ligeiramente superior no sexo
Quando T3 e T4 se encontram diminuídas com TSH feminino.
elevada, deve iniciar-se L-tiroxina, em dose variável A incidência e o risco de carcinoma aumentam
(50-100 µg /dia), de modo que o valor da TSH volte com a exposição a radiações, sobretudo: antes dos
ao normal. Para muitos autores este tratamento deve cinco anos de idade; quando a exposição é loca-
ser iniciado logo que se observe elevação da TSH, lizada à cabeça e pescoço; e quando existe história
ainda que as HT circulantes se encontrem dentro dos familiar de carcinoma da tiroideia. Outros factores
valores normais. Se a tiroidite decorrer com hiper- considerados de risco são o défice marcado de
tiroidismo, não está indicada a terapêutica com anti- iodo e a TSH elevada.
tiroideus, uma vez que a glândula habitualmente Os carcinomas mais frequentes são os papila-
retorna ao estado de eutiroidismo ao fim de 1 a 2 res (85 a 90%) e os medulares (5%).Ambos são car-
meses, podendo mesmo surgir hipotiroidismo. O cinomas secretores (os papilares: tiroglobulina; e
propranolol pode aliviar os sintomas na fase de os medulares: calcitonina).
hipertiroidismo por bloqueio do sistema simpático.
Manifestações clínicas
Evolução
Os nódulos tiroideus na criança são mais facilmente
O seguimento destas crianças faz-se com dosea- palpáveis do que no adulto, apresentando uma con-
mentos de HT e TSH trimestral ou semestral- sistência variável. Na sua maioria, são assintomáti-
mente. Nos doentes em tratamento com L-tiroxi- cos e raramente malignos. De salientar que a fre-
na, alguns autores preconizam a sua suspensão na quência de malignidade é maior nas crianças do
CAPÍTULO 180 Doenças da tiroideia 859

que no adulto. O estado funcional dos nódulos em ma funcionante).Estes últimos só em cerca de


termos de produção de HT é variável sendo a maior 1,5% dos casos são malignos.
parte hipofuncionantes (nódulos frios); podem tam-
bém ser funcionantes (nódulos quentes). (Figura 4) Tratamento

Exames complementares O tratamento dos nódulos é distinto consoante se


trate de nódulo quente ou frio. Nos nódulos
Tal como foi referido, a Tg plasmática é um mar- quentes, principalmente se decorrem com hiper-
cador importante dos tumores de origem folicular tiroidismo, está indicada a excisão cirúrgica.
(carcinomas papilares e foliculares) após tiroi- Quanto aos nódulos frios, a abordagem terapêuti-
dectomia; a calcitonina, por sua vez, é um mar- ca depende da citologia. Se o resultado citológico
cador dos carcinomas medulares mesmo antes da for o de um nódulo de bócio ou o de tiroidite lin-
tiroidectomia. focítica, deve adoptar-se uma atitude de vigilância
A ecografia da tiroideia é um exame mais con- expectante. Se o resultado apontar para mali-
fiável do que o exame clínico para a detecção dos gnidade, nomeadamente carcinoma, está indicada
nódulos, não sendo nenhum deles específico para a tiroidectomia total, eventualmente seguida de
a distinção entre nódulo maligno e benigno.Por administração de I131, no caso de a neoplasia ter
outro lado, a biópsia por agulha fina (BAF) apre- origem nas células foliculares (carcinomas papi-
senta uma confiabilidade diagnóstica de 90%; por lares ou foliculares).
isso, o diagnóstico de cancro da tiroideia na infân- A sobrevivência nos casos de carcinoma dife-
cia deve ser feito através da BAF ou por excisão do renciado é superior a 90% aos 20 anos. As metás-
nódulo (ou adenopatia cervical) com exame his- tases, nomeadamente pulmonares, são mais fre-
tológico. quentes nas idades mais jovens. Contrariamente à
A cintigrafia da tiroideia com Tc99 permite dis- evolução no adulto, a cura é quase invariável com
tinguir nódulos frios de nódulos quentes (adeno- a administração de I131.

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Dum modo geral, pode afirmar-se que existem
distintamente mecanismos que regulam o início
da puberdade, e factores que afectam a idade do
seu início. Entre estes últimos destacam-se a here-
ditariedade, as influências ambientais e as condi-
ções socioeconómicas. Quanto aos mecanismos
que regulam o início da puberdade, grandes hia-
tos ainda permanecem, apesar dos progressos no-
táveis alcançados nas últimas décadas. Em
condições normais de saúde tomada no sentido
lato, pode dizer-se que a idade de início da puber-
dade é determinada sobretudo por factores
genéticos.
Dois processos independentes mas habitual-
mente associados são responsáveis pelo aumento
da secreção dos esteróides sexuais que determi-
nam as alterações físicas e biológicas que ocorrem
durante a puberdade. O primeiro, a adrenarca,
corresponde ao aumento da secreção dos andro-
génios da suprarrenal (SR), precedendo em cerca
de dois anos o segundo, a gonadarca, consequên-
cia da reactivação do eixo hipotálamo-hipófise –
gónada.
CAPÍTULO 181 Puberdade normal e patológica 861

Adrenarca – Diminuição concomitante da influência


O aumento da produção dos androgénios da SR, inibidora do ácido gama-aminobutírico
di-hidroepiandrosterona (DHEA), do seu sulfato (GABA);
(DHEAS), e da androstenediona, tem lugar em – Activação da produção de factores de cresci-
média 2 anos antes da subida das gonadotrofinas. mento de origem glial.
Tal aumento é responsável pelo crescimento do Qualquer que seja a importância relativa de
pêlo sexual. cada um destes componentes, o aumento da
O factor desencadeante deste aumento é con- secreção de GnRH, que tem lugar quando estes
troverso, postulando alguns autores a existência sinais reguladores se iniciam, determina a liber-
duma hormona hipofisária diferente da ACTH, a tação intermitente de LH (luteinizing hormone ou
CASH (cortico-adrenal stimulating hormone); para gonadotrofina) que assinala o início do processo
outros é a zona reticular do córtex a causa desse pubertário e leva ao aumento das gonadotrofinas
aumento. que caracteriza a puberdade.
A zona reticular começa a formar-se na zona O mecanismo primário responsável por estas
central do córtex pelos 3 anos de idade, a partir de modificações continua desconhecido. (Capítulo 43)
células fetais que não involuiram, e o seu desen-
volvimento como zona contínua, pelos 6 anos, Modificações físicas da puberdade
coincide com o aumento da DHEA, o qual tem
lugar no início da puberdade. As modificações físicas que têm lugar durante a
Na rapariga, DHEA e DHEAS aumentam entre puberdade acontecem duma forma sequencial,
os 6 e os 7 anos, seguidos pela androstenediona, embora com grandes variações individuais em
cerca de 1 a 2 anos depois. No rapaz a DHEA e o relação à idade. Caracterizam-se por alterações
DHEAS aumentam entre os 8 e os 9 anos, seguin- somáticas e pelo aparecimento dos caracteres
do-se também, 1 a 2 anos depois, o aumento da an- sexuais secundários.
drostenediona. As alterações somáticas compreendem 3 aspec-
A ausência de adrenarca não influencia o tos principais:
começo da gonadarca, como é patente nos jovens – O aumento da velocidade de crescimento
com doença de Addison que, apesar do compro- (VC);
misso da função SR, atingem a gonadarca na idade – O crescimento de certas regiões corporais,
normal. específicas de cada sexo, como os ombros no
Do mesmo modo, o aparecimento precoce da rapaz e a bacia na rapariga;
adrenarca não é causa de começo antecipado da – Alterações na composição corporal, devidas
gonadarca. ao aumento da quantidade de músculo e gor-
O pêlo púbico não deve, por isso, ser usado dura, também elas relacionadas com o sexo.
como marco do começo da puberdade, embora este- Os caracteres sexuais secundários são classifi-
ja temporariamente ligado ao desenvolvimento da cados por descrições objectivas do seu desenvolvi-
mama ou dos genitais na maioria dos indivíduos. mento, os designados estádios de Tanner (con-
siderando os critérios: mama, genitais e pêlo púbi-
Gonadarca co discriminados nas Figuras 1 e 2 do capítulo 43).
A reactivação do eixo hipotálamo-hipófise-gónada
depende duma série de alterações que se produzem Puberdade feminina
no cérebro e dão lugar ao aumento da amplitude Embora a aceleração da VC seja habitualmente a
dos pulsos (envio intermitente de estímulos), da primeira evidência da puberdade entre as rapari-
hormona libertadora das gonadotrofinas (GnRH ou gas, o desenvolvimento da mama (telarca) é quase
gonadotropin releasing hormone) pelo hipotálamo. sempre o primeiro sinal notado.
Este aumento parece dever-se a 3 factores prin- A idade média do começo da telarca (Tanner 2
cipais: para a mama) situa-se nos 11 anos, variando o seu
– Aceleração da transmissão de aminoácidos aparecimento entre os 8 e os 13 anos. A maturação
excitadores; completa (Tanner 5) atinge-se pelos 15 anos.
862 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

O desenvolvimento inicial da mama pode ser crescimento rápido, o começo da puberdade mas-
assimétrico, e até mesmo unilateral durante culina, inicia-se numa idade variável, entre os 10 e
alguns meses. os 14 anos, em média pelos 12 (de referir que o
O aparecimento do pêlo púbico é, regra geral, volume testicular deve ser determinado por com-
simultâneo com o desenvolvimento mamário, paração com o orquidómetro de Prader).
mas pode ser ligeiramente antecipado ou retarda- O pénis começa a aumentar de tamanho cerca
do. de 1 ano após o aumento do volume testicular,
O intervalo entre o começo da puberdade e a quando acelera a VC, a qual atinge o seu “pico”
primeira menstruação (menarca) é variável, mas pelos 14 anos (correspondendo ao estádio 4 de
demora, em média, 2 anos. Tanner para o desenvolvimento genital).
Depois da menarca a rapariga cresce entre 4 a É também, nesta idade que ocorre em geral a
6 cm, durante um período que varia de 1 a 2 anos. mudança de voz pelo aumento do comprimento
A utilização da ecografia permite observar o das cordas vocais e da espessura da laringe e car-
desenvolvimento dos órgãos internos. O útero tilagem cricóide.
passa duma posição crânio-caudal durante a O pêlo facial aparece cerca de 3 anos depois do
infância, para uma posição de anteversão no final pêlo púbico.
da puberdade; o miométrio alarga-se, passando
da forma de gota pré-púbere em que o colo e o Atraso pubertário e hipogonadismo
istmo perfazem 2/3 do seu volume, para a forma
de pêra em que o corpo é maior que o colo. O Definição e importância do problema
ovário tem em média um volume de 0,5 cm3 na Define-se atraso pubertário como a ausência de
infância e, quando ultrapassa 1 cm3, é sinal de que qualquer sinal de puberdade na idade em que
a puberdade começou. Durante a puberdade, o 97% da população de determinada área geográfi-
seu volume aumenta rapidamente para um volu- ca a inicia. Dum ponto de vista prático considera-
me médio de 4 cm3. A morfologia normal que se se que a rapariga tem atraso pubertário quando
encontra na infância e no início da puberdade é a não se tenha iniciado o desenvolvimento mamário
que se denomina multiquística: 4-10 folículos de aos 13 anos de idade; e que o rapaz o apresenta
4-10 mm de diâmetro, sem aumento do estroma. quando não se tenha alcançado um volume testi-
Na fase fértil os folículos têm uma distribuição cular de 4 cm3 aos 14 anos de idade.
periférica. O termo amenorreia primária usa-se para
A puberdade feminina está completa cerca de definir a ausência de menarca (primeira menstrua-
4 anos após o seu começo, mas a estabilidade dos ção) aos 16 anos.
períodos menstruais ( em média 28 dias, variando O atraso pubertário pode classificar-se em 2
em 90% das mulheres entre 22 e 40 dias) acontece grandes grupos relacionados respectivamente com:
apenas pelo final do 5º ano ginecológico. – hipogonadismo hipogonadotrófico (causado
por insuficiência hipotálamo/hipofisária
Puberdade masculina com secreção deficiente de gonadotrofinas);
No rapaz, o aumento do tamanho do testículo – hipogonadismo hipergonadotrófico (causado
(volume maior que 3 cm3 ou eixo maior superior a por insuficiência primária das gónadas, com
2,5 cm) constitui a primeira evidência física do secreção elevada de gonadotrofinas, por perda
começo pubertário, mas o pêlo é, regra geral, a do retrocontrolo negativo). (Quadros 1 e 2). Ver
primeira transformação notada. Glossário geral e Parte III
A idade média de aparecimento do pêlo púbi-
co no sexo masculino corresponde aos 12 anos, Manifestações clínicas
mas nalguns casos já é evidente pelos 9. A causa mais frequente de atraso pubertário é
Os testículos crescem lentamente entre os 6 e uma variante extrema da normalidade, descrita
os 10 anos, mas, a partir desta idade fazem-no por Wilkins em 1950, o chamado atraso constitu-
duma forma rápida à medida que a estimulação cional de crescimento e desenvolvimento.
das gonadotrofinas se intensifica. Esta fase de Tal situação resulta duma reactivação tardia do
CAPÍTULO 181 Puberdade normal e patológica 863

QUADRO 1 – Hipogonadismo hipogonadotrófico QUADRO 2 – Hipogonadismo hipergonadotrófico

Congénito Congénito
Défice isolado de GnRH Anomalias dos cromossomas sexuais
Idiopático – Síndroma de Klinefelter
Síndroma de Kallmann – Síndroma de Turner
Défice isolado de LH – Disgenésia gonadal mista
Défice isolado de FSH Anomalias do desenvolvimento das gónadas
Pan-hipopituitarismo – Síndroma de regressão testicular
Defeitos da linha média – Disgenésia ovárica
Associado a anomalias cromossómicas Associado a síndromas polimalformativas
Associado a síndromas polimalformativas – Síndroma de Noonan
– Síndroma de Prader-Willi – Síndroma de Robinow
– Síndroma de Laurence-Moon-Biedl – Síndroma de Cockayne
– Associação CHARGE – Síndroma de Werner
Outros – Síndroma de Rothmund-Thomson
Adquirido Anomalias da síntese e/ou da acção dos esteróides sexuais
Causas orgânicas Outros
– Tumores do sistema nervoso central Adquirido
– Histiocitose Castração cirúrgica ou traumática
– Granulomatose Pós-quimioterapia
– Pós-infeccioso Pós-radioterapia
– Pós-traumático Pós-infeccioso
– Pós-radioterapia
Causas funcionais
– Desnutrição
narca estão atrasadas, mas estes jovens irão
– Doenças crónicas (gastrintestinais, hematológicas,
alcançar de forma espontânea a sua maturação
renais, metabólicas, fibrose quística, etc.)
sexual e uma estatura adequada à estatura fami-
– Síndroma de imunodeficiência adquirida (SIDA)
liar. Parece haver hereditariedade multifactorial.
– Diabetes mal controlada
O diagnóstico diferencial do atraso pubertário
– Distúrbios hormonais (hipotiroidismo, doença de
faz-se por vezes com o hipogonadismo hipogo-
Cushing, hiperprolactinémia)
nadotrófico definitivo, e o da baixa estatura com o
– Alterações do comportamento alimentar
défice de hormona de crescimento (GH).
– Exercício físico excessivo
Embora o atraso constitucional seja considera-
– Estresse psicológico continuado
– Drogas
do uma variante do normal, por vezes os jovens
podem requerer terapêutica por curtos períodos e
em doses baixas com esteróides sexuais, quer pelo
estresse psicológico que manifestam, quer pelos
eixo, com consequente hipogonadismo hipogo- efeitos benéficos que essa terapêutica terá na
nadotrófico (transitório); é muito mais frequente aquisição de massa mineral óssea.
no rapaz que na rapariga. Dos hipogonadismos hipogonadotróficos
Caracteriza-se por: congénitos, o défice isolado de GnRH é o mais fre-
• Atraso de crescimento estatural quente; quando se associa a anosmia tem o nome
• Atraso de idade óssea (IO) de síndroma de Kallman.
• Atraso pubertário Não pode, contudo, esquecer-se que os tu-
• História familiar frequente mores ou quistos na região hipotálamo-hipofisária
podem revelar-se, quer por puberdade precoce,
O atraso de crescimento é harmónico e está de quer por atraso pubertário, alguns deles perma-
acordo com a IO. Tanto a gonadarca como a adre- necendo silenciosos por longos períodos.
864 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

O atraso pubertário aparece num vasto grupo aparição dos caracteres sexuais secundários numa
de doenças sistémicas tais como a insuficiência idade cronológica inferior em 2,5 desvios-padrão
renal crónica, doença inflamatória intestinal, (DP) em relação à média da população. A de-
fibrose quística, etc.; não só a situação de atraso finição clássica considera PP a que aparece antes
pubertário, como a paragem da puberdade já ini- dos 8 anos na rapariga e 9 anos no rapaz, com base
ciada, obrigam a investigá-las. nos estudos de Marshall e Tanner. Um estudo de
Na sua forma congénita, as entidades mais 1997 realizado nos EUA redefiniu a idade normal
importantes como causa de hipogonadismo hi- de aparecimento dos caracteres sexuais secun-
pergonadotrófico são, pela sua frequência, a sín- dários: para os 6 anos na rapariga de raça negra e
droma de Klinefelter no sexo masculino, e a sín- 7 anos para a de raça branca, mantendo os 9 anos
droma de Turner no sexo feminino. para os rapazes. No entanto, alguns consideram
Os jovens que se apresentam com atraso pu- incorrecto considerar normal o começo da puber-
bertário requerem anamnese e observação por- dade feminina entre os 6 e os 8 anos, pela possi-
menorizadas para exclusão das muitas causas físi- bilidade de conduzir à não identificação de situ-
cas e funcionais responsáveis por esta situação. ações que comportam morbilidade e têm indi-
cação terapêutica.
Exames complementares A PP é muito mais frequente na rapariga que
Os exames complementares laboratoriais e imagio- no rapaz.
lógicos iniciais devem ser orientados pelos acha- De um modo geral as situações clínicas que
dos clínicos; mas, na ausência de achados clínicos causam PP podem classificar-se: como dependen-
relevantes, há que ter em conta todas as situações tes das gonadotrofinas ou PP central (PPC); e
que podem ser causa de atraso pubertário, o que independentes das gonadotrofinas ou PP perifé-
implica elevado índice de suspeita. rica (PPP). (Quadros 3 e 4) A causa mais frequente
Assim, o exame através da ressonância ma- de PP independente da GnRH é a síndroma de
gnética nuclear (RMN) cerebral com incidência na McCune – Albright (Capítulo 180).
área hipotálamo-hipofisária, a ecografia pélvica A PPC pode ser primária (idiopática), ou
na rapariga, o cariótipo, os marcadores para as secundária (orgânica). Em cerca de 70% dos casos
doenças celíaca e inflamatória do intestino, fibrose a PPC é idiopática, sendo também esta forma a
quística, etc., devem ser tidos em consideração em mais comum na rapariga (cerca de 95% dos casos).
função de cada caso particular na avaliação dum No rapaz, pelo contrário, mais de 50% dos casos
atraso pubertário. (Capítulos 91 e 112) são secundários a um processo orgânico.

Tratamento Manisfestações clínicas


A terapêutica duma situação de hipogonadismo O diagnóstico duma PP deve ser orientado de
passa, não só pela terapêutica da patologia primária, modo a estabelecer a causa segundo a classifi-
como, na grande maioria dos casos, pela adminis- cação anterior: central ou periférica.
tração de esteróides sexuais. Embora a administração A anamnese deve ter em conta a idade de iní-
pulsátil subcutânea de GnRH tenha sido usada para cio dos sinais pubertários, o eventual suprimento
induzir a puberdade e manter a maturação sexual em hormonal exógeno, os sintomas de doenças gerais
doentes com hipogonadismo hipogonadotrófico, tal (sobretudo alterações neurológicas), a história de
actuação corresponde a uma terapêutica incómoda doenças familiares como a hiperplasia congénita
para o doente; por isso, muitos autores preferem ape- da suprarrenal (HCSR) ou a testotoxicose, e outros
nas a administração dos esteróides como nas outras casos de PP.
formas de atraso pubertário. Pelo exame objectivo, além da avaliação auxo-
lógica e da VC, deve pesquisar-se a presença de
Puberdade precoce acne, a distribuição do pêlo corporal e odor das
glândulas apócrinas, alterações da distribuição da
Definição e importância do problema gordura corporal e da pigmentação cutânea, não
A puberdade precoce (PP) define-se como a esquecendo o exame neurológico. Os caracteres
CAPÍTULO 181 Puberdade normal e patológica 865

QUADRO 3 – Puberdade precoce central tais casos de raparigas com baixa resposta de LH,
poderá demonstrar-se PP de causa central se o
Idiopática valor for superior a 50 pg/mL cerca de 20-24 horas
Esporádica após estimulação com leuprolido.
Familiar De acordo com a hipótese diagnóstica mais
Orgânica provável, outros doseamentos poderão ser incluí-
Tumores e lesões do sistema nervoso central (SNC) dos na primeira abordagem: estradiol, cortisol,
Traumatismos crânio-encefálicos TSH e 17-hidroxiprogesterona (17-OHP) basal e a
Irradiação do crânio sua resposta ao teste de ACTH (para estudo da
Associada a PPP inicial causa mais frequente de PPP – a forma não clássi-
ca de HCSR por défice de 21-hidroxilase), níveis
de hCG, CEA ou chorion embrionary antigen e α-
QUADRO 4 – Puberdade precoce periférica fetoproteína (marcador de determinados tumores
isossexual secretores), etc..
A radiografia do punho para determinação de
Rapaz IO (avançada), a lateral do crânio (que poderá
– Hiperplasia congénita da supra-renal (SR) mostrar calcificações da região supra-selar, altera-
– Tumores virilizantes ( da supra-renal ou do testículo) ções da sela turca ou aumento da radiodensidade
– Testotoxicose dos ossos da base – síndroma de Mc Cune
– Tumores produtores de hCG (gonadotrofina coriónica Albright), e o estudo pela RMN, o meio auxiliar
humana) mais sensível para diagnosticar lesões do sistema
– Síndroma de Mc Cune – Albright nervoso central, são meios auxiliares de diagnósti-
– Hipotiroidismo grave co importantes. É importante não esquecer que cer-
Rapariga tos tumores hipotalâmicos como o hamartoma
– Quistos e tumores ováricos secretores de estrogénios podem permanecer silenciosos por longos perío-
– Tumores feminizantes da SR dos.
– Síndroma de Mc Cune-Albright A ecografia pélvica na rapariga constitui, não
– Iatrogenia só um exame importante no diagnóstico de algu-
– Hipotiroidismo grave mas causas de PP, como um meio bastante útil de
controlo da terapêutica.

sexuais existentes devem ser classificados segun- Tratamento


do os critérios de Tanner. A terapêutica da PP é dirigida à sua causa, sempre
A suspeita clínica e a necessidade de exames que possível. Nalguns casos de PPC secundária, e
complementares implicam o envio do doente a nos casos de PPC idiopática, os análogos de GnRH
um centro especializado. substituiram eficazmente outros fármacos anterior-
mente utilizados. Embora existam várias fórmulas,
Exames complementares a mais utilizada é a de libertação graduada, que se
Em relação aos exames laboratoriais, os níveis de administra mensalmente por via intramuscular.
LH e FSH e, eventualmene, a sua resposta ao teste Está suficientemente demonstrada a sua eficá-
de GnRH, farão a destrinça entre PPC e PPP. cia no controlo das alterações analíticas e na
A administração IV de GnRH ou de agonista regressão dos caracteres sexuais secundários.
GnRH (leuprolido) constitui instrumento diag-
nóstico importante, particularmente nos rapazes BIBLIOGRAFIA
com sintomas recentes: verificação de elevação Bordini B, Rosenfield RL. Normal pubertal development. Part
rápida de LH (pico >5-10 UI/L) com predomínio I/Endocrine basis. Pediatr Rev 2011; 32: 223-229
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866 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

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Pitteloud N, Hayes FJ, Dwyer A. Predictors of outcome of etiopatogénese e padrão genético diversos.
long-term GnRH therapy in men with idiopathic hypogo- Trata-se duma doença crónica ligeiramente
nadotropic hypogonadism. J Clin Endocrinol Metab 2002; mais frequente que a doença neoplásica, e cerca de
87: 4128-4136 quatro vezes mais frequente que a fibrose quísti-
Pombo M (ed). Tratado de Endocrinologia Pediátrica, Madrid: ca na taxa etária 0-18 anos.
Mc Graw-Hill – Interamericana, 2002 A chamada DM1 corresponde ao tipo mais
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon comum ocorrendo em idade pediátrica (tipo 1 ou
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill insulinodependente) a qual é causada por destruição
Medical , 2011 auto-imune (mediada por células T) das células β dos
Sedlmeyer IL, Palmert MR. Delayed puberty: analysis of a ilhéus de Langerhans do pâncreas, produtoras de
large case series from an academic center. J Clin Endocrinol insulina, em indivíduos susceptíveis; tal corresponde
Metab 2002; 87: 1613 - 1620 a um processo mórbido progressivo conduzindo a
Sun SS, Schubert CM, Chumlea WC. National estimates of the défice permanente de níveis de insulina, com insufi-
timing of sexual maturation and racial differences among ciência absoluta da mesma, implicando terapêutica
US children. Pediatrics 2002; 110: 911-919 substitutiva. As manifestações clínicas tornam-se em
Teilmann G, Pedersen CB, Jensen tk, et al. Prevalence and inci- geral patentes quando cerca de 80% das referidas
dence of precocious pubertal development in Denmark: an células se encontram destruídas. A fase prodrómica
epidemiologic study based ou national registries. Pediatrics tende a ser de menor duração na criança pré-púbere.
2005; 116: 1323-1328 A DM2 (tipo 2 ou não insulinodependente),
menos frequente em idade pediátrica, embora com
incidência crescente, resulta de resistência à insulina
e está geralmente associada à obesidade; a situação é
de défice relativo de insulina podendo, em circuns-
tâncias especiais, requerer terapêutica substitutiva.
Para além da DM1 e DM2 existem outros tipos
de DM mais raros cuja abordagem sucinta é feita
na alínea 3.

1. Diabetes mellitus de tipo 1 (DM1)

Aspectos epidemiológicos
A incidência anual é muito variável consoante as
CAPÍTULO 182 Diabetes mellitus 867

diferentes áreas geográficas. Dados publicados em de macrófagos, células B e células T (CD8 e CD4).
2011 apontam para uma incidência a nível mundial A DM1 é considerada uma doença auto-imune
da ordem de 0,1 a 37,4 por 100.000, estimando-se o mediada por células T, processo que precede o iní-
número de 70.000 novos casos no grupo etário 0-14 cio dos sinais clínicos. Actualmente é considerada
anos. Na Europa foram apurados no mesmo ano os uma afecção auto-inflamatória. Não está provada
seguintes dados: 35,3/100.000 habitantes com a relação entre vacinas antivíricas e DM1.
idade inferior a 15 anos (Finlândia), 5,3/100.000 Podem ser detectados diversos tipos de anti-
habitantes (Polónia). Em Portugal, país que já conta corpos contra diversos antigénios como os das
desde 2009 com um sistema de registo de casos de células β dos ilhéus de Langerhans (ICA), anti-
diabetes aplicado ao grupo etário 0-21 anos desig- descarboxilase do ácido glutâmico (GADA), e
nado pela sigla DOCE, registou-se no referido ano auto-anticorpos anti-insulina (IAA). Contudo, a
uma incidência no grupo etário pediátrico (0-18 sua ausência não exclui DM tipo I.
anos) entre 8 e 11/100.000 conforme as regiões, e A existência de marcadores imunológicos per-
um número total de casos registados até Outubro mite que nalguns indivíduos seja possível o dia-
de 2011 de 4185 (0-21 anos). gnóstico na fase pré-clínica(diagnóstico precoce)
Na Consulta de Diabetes do Hospital Dona da doença. Estão em curso estudos prospectivos
Estefânia (Lisboa), com a maior casuística pediá- em indivíduos seleccionados entre os parentes
trica nacional, até Março de 2011 estavam regis- próximos de diabéticos insulinodependentes que
tados 265 casos. tenham em circulação anticorpos contra antigé-
De salientar que o diagnóstico no primeiro ano nios das células β (detectáveis por vezes cerca de
de vida é raro; a incidência aumenta com a idade, 10 anos antes das manifestações) e genótipos no
verificando- se um pequeno pico pelos 4-6 anos e sistema HLA, considerados predisponentes; nesta
outro, mais significativo, pelos 10-14 anos; ambos perspectiva , será possível, com certas limitações,
os sexos são igualmente afectados. prevenir ou atrasar o início das manifestações
clínicas da doença. Provou-se que quanto maior a
Etiopatogénese diversidade de anticorpos, maior o risco de DM, e
Está comprovada a predisposição genética (por que surgem manifestações clínicas quando a reserva
exemplo genes relacionados com susceptibilidade secretória de insulina é inferior a 80%.
para DM no cromossoma 6 e no cromossoma 11) A identificação de anticorpos contra outros
sendo de referir que o tipo de hereditariedade é órgãos está associada à progressão da DM; os exem-
complexo e provavelmente poligénico. A identifi- plos mais típicos dizem respeito aos seguintes tipos
cação de alelos específicos HLA –DR3 e HLA-DR4 de anticorpos: anticorpos antiperoxidase da tiroi-
está relacionada com risco aumentado de DM1; deia relacionados com a toroidite de Hashimoto,
pelo contrário, outros alelos estão associados a anticorpos anti-transglutaminase relacionados com
menor risco. a doença celíaca, e anticorpos anti 21-hidroxilase
Existem também factores ambientais implica- relacionados com a doença de Addison.
dos (que desencadeiam o processo de destruição
auto-imune das células β, com a intervenção de Critérios de diagnóstico
citocinas e formação de radicais livres) tais como: Para o diagnóstico de DM são utilizados os se-
alimentação com leite de vaca em natureza antes guintes critérios (valores plasmáticos):
dos 2 anos de idade e infecções por vírus (rubéo- • glicémia em jejum (de 8 horas antes da 1ª
la, sarampo, coxsackie B, citomegalovírus, etc.). refeição do dia) superior a 125 mg/dL
Por vezes os factores ambientais, mais do que ou – glicémia pós prandial (2 horas após
desencadeantes, são modificadores da patogé- refeição ou ingestão de: 75 g de glucose
nese, como agravantes (infecções perinatais, anidra em água, se > 18 kg; ou 1,75 g/kg se <
défice de vitamina D) ou como atenuantes 18 kg): > 200 mg/dL em duas determinações
(infecções durante o 1º ano de vida). ou HbA1c > 6,5% (ver adiante).
Surge, em consequência, um processo infla- Para o diagnóstico de intolerância à glucose,
matório dos ilhéus ou “insulite”, com infiltração estádio intermédio entre a homeostase normal da
868 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

glucose e a diabetes, são utilizados os seguintes ticas e, como tal, devem ser sempre valorizadas.
critérios: Pode não ser fácil, na criança pequena, distinguir
• glicémia em jejum entre 100 e 125 mg/dL entre polidipsia e “hábito de pedir água”, sobretudo
ou – glicémia pós- prandial (2 horas após na fase de aprendizagem da utilização do copo.
refeição): 126 mg/dL - 200 mg/dL. Dada a irregularidade do comportamento da
Considera-se hiperglicémia esporádica a que alimentação na criança pequena, a polifagia dificil-
surge no decurso de doença intercorrente, relaciona- mente poderá não ser valorizada pelos pais. Daí a
da com a situação de estresse da mesma. Se o episó- necessidade de um elevado índice de suspeita por
dio de hiperglicémia ocorrer sem aparente factor pre- parte do clínico que segue a criança, o que implica
cipitante, existe probabilidade de desenvolvimento anamnese cuidadosa durante os exames de saúde.
ulterior de diabetes em cerca de 25% dos casos. Importa, por isso, na presença de clínica su-
gestiva, confirmar de imediato o diagnóstico.
Manifestações clínicas, laboratoriais e relação Demonstrada a presença de glicosúria e de hiper-
com fisiopatologia glicémia com tiras reactivas, não são necessários ou-
O modo de apresentação clínica clássica da DM1 – tros meios para o diagnóstico. Saliente- se que requi-
em regra de modo súbito e inesperado – é constituído sitar a um laboratório determinação da glicémia e
por poliúria, polidipsia, polifagia e perda de peso. análise de urina atrasa desnecessariamente o diag-
A manifestação inicial resultante do défice de nóstico e, por isso, o início do tratamento.
insulina é a hiperglicémia pós- prandial; à medi- Outros exames diagnósticos (a realizar apenas
da que o referido défice se vai acentuando, em centros especializados de diabetologia pediá-
surgem sucessivamente as fases de hiperglicémia trica e perante situações duvidosas ou necessi-
em jejum e de formação de corpos cetónicos (beta- dade de classificação definitiva do tipo de dia-
hidroxibutirato, acetoacetato e acetona). A hiper- betes) são a determinação da insulinémia e do
glicémia e a cetogénese resultam da não supres- péptido-C em jejum*. Utilizando-se o péptido C,
são, quer da glicogenólise, quer da neoglucogé- na DM1 estabelecida os seus valores são baixos (<
nese, quer da oxidação de ácidos gordos quando o 0.6 ng/mL), não aumentando após refeição ou
défice de insulina se agrava. administração de glucose; contudo, em fases inici-
Consequentemente, os depósitos de proteínas ais tal marcador pode evidenciar valores dentro
no músculo, e de lípidos no tecido adiposo, são dos limites da normalidade. Com as limitações
metabolizados como substractos para a neogluco- atrás referidas, podem ser detectados anticorpos
génese e oxidação de ácidos gordos. ICA, GADA, e IAA.
Se a glicémia ultrapassar o valor de 180 Uma referência especial à determinação da
mg/dL, que corresponde ao limiar de reabsorção hemoglobina glicada (HbA1c) que reflecte o
tubular renal para a glucose, verifica-se glicosúria valor médio da glicémia nos 3 meses anteriores
que, por sua vez, origina diurese osmótica a qual tendo em conta a vida média dos eritrócitos e o
pode levar a desidratação; refira-se que a perda fenómeno de transferência da glucose para o
renal de água “arrasta” electrólitos tais como sódio eritrócito em função dos níveis glicémicos;por
e potássio. Para compensar as perdas de líquidos issso, está indicada a sua determinação, em geral
em excesso por via urinária, verifica-se polidipsia. 4 vezes por ano, numa perspectiva de vigilância a
O estado catabólico conduz a perda de peso
face à perda calórica relacionada com a glicosúria * Recorda-se que a biossíntese do polipéptido designado por insulina
e cetonúria. (a partir das células beta dos ilhéus de Langerhans), ocorre com a liber-
tação na corrente sanguínea de quantidades equimolares de insulina
A cetoacidose diabética (abordada no capítulo e do chamado péptido C.
183) precedida por hiperglicémia nas 2-3 semanas O péptido C constitui um bom marcador da função das células beta e,
anteriores, surge como reveladora de DM1 numa por isso, da reserva e da produção endógena de insulina; por outro
lado, o seu valor sanguíneo (normal ~1.1-5.0 ng/mL), com uma vida
proporção importante de casos. média cinco a dez vezes superior à da insulina endógena, não é influ-
A poliúria pode ser difícil de detectar no lac- enciado pela administração exógena de insulina, nem pela existência
de anticorpos anti-insulina. Em determinadas situações o valor de pép-
tente; a presença de nictúria e de enurese noctur- tido C está elevado; por ex. insuficiência renal, hipopotassémia, sín-
na constituem, porém, importantes pistas diagnós- droma de Cushing e gravidez.
CAPÍTULO 182 Diabetes mellitus 869

longo prazo. Nos casos de hemoglobinopatias inerente a um tratamento mais intensivo deve ser
não poderá ser utilizada. seriamente ponderado.
De acordo com estudos, pode estabelecer-se a 2 – As crianças com menos de 5 anos (e nalguns
seguinte relação: casos com mais de 5 anos) não têm capacidade
HbA1c e relação com glicémia: para, sozinhas, detectar nem tratar a hipoglicémia.
>10%: glicémia anterior média >240 mg/dL Por isso, a hipoglicémia ocorrendo neste grupo
8-10%: “ “ “ 180-240 mg/dL etário não pode, mesmo que ligeira, ser classifica-
6-8%: “ “ “ 120-180 mg/dL da como benigna atendendo às possíveis conse-
Considera-se não diabetes o valor laboratorial quências da neuroglicopénia: maior risco de lesão
de normalidade de HbA1c oscilando entre 4,5- do cérebro em fase de desenvolvimento neuronal.
5,7%, pré-diabetes entre 5,7 e 6,4%, e diabetes se > 3 – Embora de um modo geral se estabeleça
6,4%. De notar que HbA1c não permite a destrinça que os valores da glicemia pós-prandiais devem
entre DM1 e DM2. manter-se abaixo dos 180mg/dL e os pré-prandi-
ais entre os 90mg/dL e 120mg/dL, nas crianças
Tratamento estas metas podem ter de ser mantidas no máximo
O principal objectivo do tratamento da DM1 na destes limites e, na criança com menos de 6 anos
criança consiste em conciliar a prevenção de com- de idade, ligeiramente acima destes valores.
plicações com a promoção de um crescimento e 4 – Alguns autores preconizam como objectivo
desenvolvimento psicoafectivo normais, com- realista para a maioria destas crianças que, após o
patíveis com um estilo de vida tanto quanto pos- primeiro ano de diagnóstico, valores de hemoglobi-
sível igual ao das outras crianças. (Quadro 1) na glicada (Hb A1c) de 9% se considerem aceitáveis.
Vários factores contribuem para dificultar a 5 – A educação para a saúde incluindo de modo
obtenção de um bom controlo metabólico durante especial a motivação para a autovigilância per-
a infância, nomeadamente a influência de altera- mitem sempre melhores expectativas em termos
ções hormonais e psicossociais inerentes ao pro- de compensação e regulação do processo mórbido.
cesso de crescimento e desenvolvimento, o padrão
irregular da alimentação, do exercício e das activi- Insulinoterapia
dades escolares, a tendência para infecções fre- A insulinoterapia, a instituir imediatamente
quentes, e ainda a falta de auto-suficiência da após o diagnóstico, constitui a chave do tratamen-
criança para o seu tratamento. to da criança diabética.
Assim, a definição de objectivos de controlo • Tipos de insulina
metabólico, para ser realista, deve ser ajustada a Actualmente em Portugal todas as insulinas com-
cada grupo etário e à realidade de cada caso, o que ercializadas são obtidas por técnica recombinante,
implica atender a um conjunto de particulari- apresentando a mais baixa antigenicidade, o que as
dades: torna mais apropriadas para crianças. Utilizam-se,
1 – Apesar de actualmente tudo apontar no de modo geral, insulinas de acção intermédia e rápi-
sentido da vantagem e de um bom controlo mes- da, e associações de ambas por via subcutânea.
mo antes da puberdade, o risco de hipoglicémia Os análogos de acção ultra rápida (Lispro e
Aspart) podem ser utilizados para evitar hiper-
QUADRO 1 – Componentes fundamentais glicémia pós-prandial; o seu início de acção mais
do tratamento da DM1 rápida e a mais curta duração permitem que pos-
sam ser administrados no meio de refeição em vez
• Insulinoterapia e novas terapias de antes da mesma.
• Plano alimentar A insulina lenta Glargina é um análogo com a
• Exercício físico particularidade de não apresentar picos, podendo
• Autovigilância e controlo a sua acção prolongar-se por mais de 24 horas,
• Educação mantendo um nível basal de insulina.
• Apoio psicossocial O Quadro 2 resume o perfil de algumas insuli-
nas habitualmente usadas.
870 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 2 – Insulinas (perfil de efeitos) a hiperglicémia; 3- manter a euglicémia durante


os períodos do jejum.
Tipo de insulina Início Acção O regime mais utilizado em idade escolar con-
de acção máxima Duração siste em duas injecções por via subcutânea por dia:
• Acção ultra-rápida insulina de acção intermédia (NPH) e insulina de
– Lispro, Aspart, Glulisina 10-20’ 30-90’ 3h acção rápida (regular); a vantagem deste regime
• Acção curta reside no facto de não requerer uma injecção de
– Regular 30’-1 h 2-4 h 6-10 h insulina pelo meio-dia durante o período das
• Acção intermédia aulas. (Em regra 2/3 da dose, de manhã antes do
– NPH 1-4 h 4-12 h 16-24 h pequeno almoço, e 1/3 antes da refeição da noite).
• Acção lenta A tendência actual é utilizar doses menores e
– Detemir 2-4 h 3-9 6-24* mais frequentes de Insulina rápida. O aumento do
– Glargina 1-2 h não pico 24-36 h número diário de injecções com doses menores de
‘= minuto; h = horas; * = acção dependente da dose insulina, pode diminuir a probabilidade de
oscilação da glicémia obtendo-se insulinémias
mais adaptadas às refeições e ao exercício físico da
As pré-misturas têm a vantagem da possibili- criança pequena. Com efeito, de acordo com o
dade de administração em “caneta-seringa”. “The Diabetes Control and Complications Trial”,
Na criança pequena, dada a irregularidade do se for possível obter níveis de glicémia aproxi-
apetite e refeições, pode ser vantajoso o uso de mados dos valores normais (tanto quanto possí-
insulina de acção intermédia (NPH) e insulina vel), será possível retardar o início e a progressão
curta (regular) em proporções variáveis. das complicações, tais como retinopatia, neuropa-
Os análogos de insulina de acção rápida podem tia e nefropatia. É este o conceito actual de terapia
ser administrados imediatamente antes das refeições intensiva com insulina na diabetes mellitus.
com redução da hiperglicémia pós-prandial como As necessidades diárias de insulina variam
da hipoglicémia pós-prandial tardia e nocturna. Na na criança pré-púbere entre 0,7 e 1 Unidade por
criança pequena podem ainda ser úteis por poderem Kg de peso corporal, aumentando consideravel-
ser administradas imediatamente após as refeições mente perto da puberdade, período em que o
em situações de apetite imprevisível. aumento de GH origina resistência relativa à
Nos lactentes pode ser necessário diluir a insuli- insulina; são menores (60%) durante uma even-
na com uma solução de diluição especificamente tual fase de remissão, logo após o início da te-
fornecida pela casa comercial sempre com cuidado rapêutica (fase de”lua-de-mel”).
especial na diluição e determinação das doses. O esquema de insulinoterapia deve ser adapta-
Deve ter-se em consideração que o início, pico do individualmente e ajustado ao longo de várias
(acção máxima) e duração de acção de cada insuli- etapas da vida da criança, preferindo-se sempre o
na podem sofrer alguma variação no mesmo indi- mais simples que permita atingir as metas de con-
víduo e caso a caso. trolo metabólico estabelecidas com a menor inter-
• Esquema de tratamento com injecções ferência no quotidiano.
diárias múltiplas de insulina Para o cálculo da dose de insulina a administrar em
Procurando-se uma frequência de adminis- função do suprimento em hidratos de carbono (relação
tração que reduza as flutuação da glicémia, são insulina em unidades / hidratos de carbono em gramas)
necessárias em geral 2 a 4 injecções diárias utiliza-se a relação 1: 30 nas crianças mais pequenas e
(pelos menos duas injecções diárias). Maior fre- 1: 5 nos adolescentes.
quência será necessária em situações particulares, Para corrigir a hiperglicémia poderá aplicar-se
nomeadamente durante doença intercorrente. uma fórmula que consiste em dividir 1800 pela dose
Com a insulinoterapia tenta-se "imitar" a acção diária de insulina administrada no referido período,
da células beta cumprindo 3 objectivos funda- o que permite avaliar o decréscimo da glicémia em
mentais: 1- facilitar o metabolismo e armazena- mg/dL provocado por 1 Unidade de insulina.
mento dos alimentos consumidos; 2- normalizar São estabelecidos os seguintes objectivos quanto
CAPÍTULO 182 Diabetes mellitus 871

a glicémia a atingir, em função da idade: a) < 5 anos: Novas terapias e tecnologias


80-180 mg/dL; b) idade escolar:80-150 mg/dL; c) No que respeita à utilização de bombas de per-
adolescência: 70-150 mg/dL pressupondo normali- fusão, existe actualmente tecnologia sofisticada
dade da HbA1c. Admitindo que é ultrapassado o inteligente que “imita “a função do pâncreas agre-
nível máximo, deve administrar-se insulina extra de gando às bombas de perfusão sensores subcutâ-
acção rápida em bolus (acrescentado à base pré-esta- neos para monitorização contínua da glicémia em
belecida) segundo o critério adiante definido a pro- tempo real (RT-CGM), enviando “mensagens”
pósito da infecções intercorentes. para a bomba de perfusão; tal permite variar o
Em idade variável, dependendo do grau de débito insulínico em função da referida glicémia.
maturidade cognitiva e afectiva, a criança pode Contudo ainda não existem normas validadas
ser ensinada a auto-injectar-se. Actualmente, com cientificamente quanto a tal procedimento.
“canetas” injectoras, é possível iniciar este ensino Importará também referir que está em fase de
pelos sete ou oito anos. investigação, replicando a experiência nos adul-
A partir dos 10 anos de idade a maioria das tos, a utilização de insulina por via inalatória pré-
crianças é capaz de dar a sua injecção de insulina prandial associada à administração de insulina
desde que garantida a supervisão dos pais. glargina uma vez/24 horas, ao deitar, à noite.
A rotação dos locais de injecção deve ser enco- Sendo a DM1 um doença auto-imune mediada
rajada desde o início, tentando desmistificar cer- por células T que se inicia, em muitos casos, cerca
tos medos, nomeadamente o da injecção na pare- de 3-5 anos antes dos sinais clínicos patentes, cabe
de abdominal. A vigilância dos locais de injecção referir os estudos realizados com administração
deve ser diariamente feita pelos pais e verificada de anticorpo monoclonal contra CD3hOKT3γ1 em
em cada consulta. Deve ser ensinado que a adolescentes com doença diagnosticada há menos
injecção na parede abdominal é menos afectada de 1 ano. Verificou-se, com efeito, preservação da
pelo exercício físico, devendo ser preferida antes função residual das células β e melhoria do con-
das actividades desportivas. trolo metabólico. Trata-se duma terapêutica em
A presença de lipo-hipertrofia e técnicas incor- investigação que, aplicada precemente após o
rectas de injecção podem ser causa de oscilação diagnóstico, poderá minorar a lesão das células β.
inexplicada de glicémia e de mau controlo meta- Nalguns centros tem-se procedido a outras
bólico apesar de doses elevadas de insulina. terapêuticas que constituem avanços significa-
A injecção deve ser feita com técnica adaptada tivos como transplantação de células pancreáticas
à espessura do tecido subcutâneo e em condições β (ilhéus), células estaminais, terapêutica génica,
que tranquilizem a criança mais pequena e etc.. O objectivo é promover a proliferação de
facilitem a aceitação (ao colo, acompanhada pelo células β e a neogénese.
boneco preferido, etc.). De referir ainda dois fármacos em investigação
• Esquema de tratamento com injecção com interesse e mais experiência na diabetes do
subcutânea contínua de insulina adulto/jóvem: amilina e GLP-1. (ver adiante
Considerando válidos os princípios enunciados a DM2).
propósito do esquema de tratamento com injecções
diárias múltiplas, designadamente no que respeita a Regime alimentar
valor de glicémia, vigilância da criança ou jovem, Preconiza-se actualmente que a alimentação
refeições e respectivo horário, assim como período da criança diabética seja semelhante à das outras
nocturno, é possível utilizar actualmente bombas de crianças da mesma idade, com um suprimento
perfusão contínua implicando, contudo, monitoriza- energético e de nutrientes adequado ao crescimen-
ção da glicémia, pelo menos 4 vezes por dia:antes do to e actividade física. O próprio termo “dieta” e a
pequeno almoço, almoço, jantar e ao deitar. ideia de restrições devem ser banidos, mesmo
De acordo com estudos baseados na evidência entre os profissionais de saúde.
concluiu-se que o controlo glicémico é mais eficaz As necessidades calóricas diárias podem esti-
utilizando a perfusão contínua de insulina relativa- mar-se, de acordo com a idade, (aproximadamente
mente ao esquema de injecções múltiplas. 1000 kcal + 100kcal por cada ano de idade) deven-
872 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

do, contudo, ser adaptadas a casos particulares de ser adaptado ao grupo etário, aos horários escolares,
maior actividade física, ou risco de obesidade. actividade física e regime de insulinoterapia, respei-
Aceita-se como norma geral que 50%-65% do tando tanto quanto possível os hábitos familiares de
suprimento calórico diário seja feito através de modo a não impedir o convívio às refeições.
hidratos de carbono, 12 a 20% de proteínas, e O plano alimentar de cada criança deve ser
menos de 30% de gorduras. Relativamente às gor- elaborado pelo dietista da equipa e regularmente
duras saturadas, elas deverão comparticipar adaptado e actualizado de acordo com as fases de
menos de 10% do valor calórico total, com ratio crescimento e as circunstâncias do quotidiano.
recomendado de poli-insaturadas / saturadas de A composição das pequenas refeições intermé-
1,2 / 1,0; quanto ao suprimento de colesterol, o dias e a sua distribuição ao longo do dia requerem
mesmo não deve ultrapassar 300 mg/dia. particular atenção e adaptação de acordo com o
Em relação aos hidratos de carbono é neces- regime de insulina, o risco de hipoglicémia e os
sário ter noção do seu valor relativo, evitar os que horários escolares e da família.
provocam maiores subidas de glicémia, distribuí- A última refeição da noite pode necessitar de
los correctamente ao longo do tempo e integrá-los ser adaptada diariamente de acordo com a gli-
nas refeições. cémia ao deitar e o risco de hipoglicémia nocturna.
As fibras solúveis que se encontram nos vege- Três notas finais a realçar:
tais, legumes, cereais e frutos, podem ajudar a 1 – A educação alimentar deve ser dirigida à
diminuir a velocidade de absorção aos hidratos de criança e família, tendo em atenção que o compor-
carbono evitando subidas bruscas da glicémia. As tamento alimentar, algo mais do que a simples
fibras insolúveis das leguminosas e cereais, me- ingestão de alimentos, é influenciado por factores
lhoram o trânsito intestinal. culturais e psicossociais que devem ser respeitados.
Refira-se que o consumo de fibras deve ser 2 – Na infância, o chocolate e as guloseimas de
estimulado na criança acima dos 2 anos de idade, modo geral tendem a adquirir fortes conotações
porém de forma gradual e cautelosa de modo a afectivas e as solicitações para o seu consumo são
evitar distensão abdominal e cólicas. inúmeras e constantes. Nesta perspectiva, a
Os frutos frescos, tal como os vegetais, devem
fazer parte da alimentação diária da criança e QUADRO 3 – Plano alimentar aplicável
jovem, suprindo as necessidades em vitamina C. a crianças com idade > 5 anos
No que respeita ao consumo de gorduras, a
Associação Americana de Diabetes recomenda Recomendações
que se podem aplicar à criança com mais de 5 anos • Suprimento calórico e ingestão de hidratos de carbono
as recomendações preconizadas para o adulto. distribuídos de acordo com o regime de insulinoterapia
Nos primeiros anos de vida são necessários e o padrão de actividade física (e ajuste das doses de
regimes com maior valor energético, salientando- insulina tendo em conta o padrão alimentar, variável)
se que os ácidos gordos são indispensáveis para o • Suprimento energético adequado para garantir o
desenvolvimento do sistema nervoso central. crescimento, evitando a obesidade
O suprimento proteico, embora variando com • Distribuição diária dos nutrientes em % do valor
factores económicos e culturais, é entre nós muitas calórico total
vezes exagerado e “liberalizado” por oposição ao – Hidratos de carbono (HC): 50%-65%
limite de consumo dos hidratos de carbono Maior consumo de HC complexos, com alto teor em
(“menos batatas, mais carne...”). Para uma correcta fibras; consumo limitado de sacarose
educação alimentar é necessário ter em conta que – Gorduras: <30% ( saturadas <10%)
as necessidades proteicas diárias variam de acordo – Proteínas 12-20% (diminuindo com a idade)
com o grupo etário; são maiores na primeira infân- • Frutos e vegetais; recomendado o consumo de 5 itens
cia (1-2 g/Kg/dia diminuindo progressivamente diários
até 1 g/Kg/dia aos 10 anos e 0,8–0,9 g/Kg/dia no De acordo com as normas da ISPAD(International Society for Pediatric and Adolescent
Diabetes) 2008
final da adolescência). (Capítulos 51 e 56)
O número diário de refeições, entre 6 e 8, deve
CAPÍTULO 182 Diabetes mellitus 873

restrição de doces deve ser feita de forma cuida- vida activa. Deve ser estimulada a tendência natu-
dosa e realista e tendo em conta as necessidades ral da criança para os jogos e actividade de grupo,
psicossociais da criança, nomeadamente festas da tentando reduzir o tempo de permanência em
escola, aniversários e saídas em grupo (Quadro 3). frente do televisor e em jogos sedentários.
3 – É necessário assumir uma atitude ajustada, 5 – A importância da actividade física pode ser
mas flexível, procurando, como objectivo final, que explicada à criança mais velha, em termos sim-
a criança vá adquirindo hábitos tais que lhe permi- ples; no entanto, não deverá nunca ser encarada
tam ter as suas refeições fora de casa, na escola e como forma de “queimar” os hidratos de carbono
em ocasiões especiais, sem com isso prejudicar nem ingeridos, mas sim como oportunidade de prazer
o controlo metabólico, nem o prazer do convívio. e convívio.

Actividade física Autovigilância e controlo


O exercício físico constitui um dos factores Com o moderno equipamento portátil e práti-
determinantes do equilíbrio metabólico da dia- co, e os métodos actualmente disponíveis, a
betes; as vantagens da sua prática são relevantes autovigilância da glicémia tornou-se parte indis-
quando se integra de modo regular no quotidiano, pensável da rotina diária do tratamento.
o que na criança não é fácil (os mais pequenos cor- A frequência da sua determinação deve ser
rem, jogam, brincam quando têm oportunidade e adaptada à idade da criança, à motivação e capaci-
sempre de modo algo imprevisível). dades da criança e família, bem como às condições
Os horários escolares e as disponibilidades especiais durante a evolução da diabetes.
domésticas são dificilmente conciliáveis com Todos os dados relacionados com a autovigi-
horários fixos para a prática desportiva que, lância devem ser registados num caderno de
assim, vai muitas vezes ter lugar em períodos va- vigilância distribuído pela equipa médica à
riáveis do dia, criando algumas dificuldades ao criança/família.
ajuste do esquema de insulinoterapia e refeições. Regras práticas:
Regras práticas: 1 – Após estabilização metabólica relativa, na
1 – Uma vez que a hipoglicémia pode ocorrer maioria dos casos podem ser realizadas duas a
durante o exercício físico, imediatamente após, algu- quatro determinações diárias da glicémia, excep-
mas horas depois ou mesmo mais tarde, durante a to durante doença intercorrente,ou sempre que
noite, é necessário que a criança seja ensinada a seja necessária maior informação do perfil
ingerir uma refeição suplementar antes, após e glicémico para ajuste terapêutico, circunstâncias
durante o exercício prolongado ou não programado. em que a vigilância deverá ser mais intensiva.
2 – Como regra geral, recomenda-se ingestão Ocasionalmente, pode ser necessária a determi-
de 15 gramas de hidratos de carbono de fácil nação da glicémia às 3 horas da manhã.
digestão, por cada 40 minutos de desporto. Em 2 – A pesquisa de glicosúria com tiras
treinos mais prolongados ou exigindo maior reagentes poderá dar informação adicional, embo-
esforço, pode ser necessária a determinação da ra com limitações na criança pequena.
glicémia antes e depois, e a redução da dose de 3 – A pesquisa de cetonúria é essencial, sobre-
insulina em acção durante o exercício e nas 6 tudo nas intercorrências infecciosas, surgindo
horas a 12 horas imediatas. muitas vezes antes de outras manifestações detec-
3 – Todas as crianças diabéticas devem estar táveis de doença. A presença de cetonúria na pes-
identificadas como tal, com informação por- quisa da manhã pode alertar para hipoglicémia
menorizada ao treinador ou professor de ginásti- nocturna ou para dose insuficiente de insulina.
ca de modo a serem tomadas todas as medidas de 4 – As doses de insulina e ocorrências espe-
prevenção e eventual tratamento da hipoglicémia; ciais (episódios de hipoglicémia, dias de festa, de
a criança deve ser integrada nas classes normais actividades desportivas, doença, etc.) devem ser
para o seu grupo etário, sem restrições. registadas no caderno de vigilância pela própria
4 – Mais importante do que a prática desporti- criança. No mesmo caderno o médico relatará
va é a aquisição de hábitos que promovem uma aspectos importantes relacionados com recomen-
874 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

dações ou comentários. tal proceder a uma avaliação sistemática dos co-


5 – A discussão dos resultados deve ser feita nhecimentos e atitudes aprendidos para reacerto
em consultas periódicas, cada 4 a 6 semanas. Tal periódico do plano educativo. Uma atitude pró -
como foi antes referido, a determinação da hemo- activa e reactiva, com resposta adaptativa às
globina glicada (Hb A1c) é efectuada 4 vezes por mudanças, tornará possível dar continuidade ao
ano, ou sempre que se proceda a qualquer revisão acompanhamento do diabético na sua transição
do esquema de tratamento insulínico ou do re- para a adolescência e idade adulta.
gime alimentar. O Quadro 4 resume as etapas cronológicas fun-
damentais da aprendizagem do diabético em
Educação idade pediátrica.
Educar um diabético não é apenas transmitir
conceitos e ensinar técnicas; fundamentalmente é Apoio psicossocial
traçar objectivos realistas sem exigências inade- Viver com uma criança com doença crónica cujo
quadas, permitindo como finalidade última tratamento exige uma participação activa, adap-
”viver com a diabetes”. tação constante no dia a dia e uma co-responsabi-
A idade pediátrica é, pelas suas características, lização progressiva, mantendo um relacionamento
período de excelência para a intervenção educati- ajustado dentro da família e dentro da sociedade,
va centrada no destinatário – a criança e o adoles- pode ser para os doentes em crescimento e desen-
cente. Porém, há que atender a algumas particu- volvimento algo de verdadeiramente perturbador.
laridades para que o plano possa ter êxito, tais Iniciativas que dinamizem o convívio inter-
como avaliação da família e abordagem indivi- pares, nomeadamente a realização de campos de
dual em função da etapa do desenvolvimento férias, podem minorar sentimentos de isolamento,
(maturidade cognitiva e afectiva). facilitando a inclusão social, e, por isso, promo-
Essencialmente, educar um diabético em idade vendo o bem-estar.
pediátrica é levá-lo a percorrer o caminho que vai
da compreensão à aceitação da sua doença com a Complicações
cooperação indispensável da família (ou cuidador) Hipoglicémia
que deverá ser motivada(o) para a aceitação das Trata-se da complicação aguda mais frequente
exigências do tratamento e para a necessidade de da DM1 definida como valor de glicémia inferior
prevenção de complicações. a 55 mg/dL independentemente de haver ou não
A educação da criança muito pequena é dirigi- sinais e sintomas associados.
da fundamentalmente aos seus pais, conquistan- A hipoglicémia nos doentes com DM1 sub-
do aquela progressivamente e estimulando a sua metidos a insulinoterapia pode ocorrer numa pro-
tendência natural para a imitação. porção estimada entre 10 a 25% dos casos/ano e,
Atingida a idade pré-escolar, sendo maior a em indivíduos mesmo correctamente controla-
compreensão, com base num discurso próprio e no dos, com uma frequência de cerca de 2-3 vezes por
seu gosto pelos jogos, vai sendo possível transmitir
conceitos simples, nomeadamente a relação entre QUADRO 4 – Etapas cronológicas
insulina, açúcar, exercícios e hipoglicémia. de aprendizagem
Na fase da aquisição dos hábitos do quotidia-
no é importante desdramatizar o tratamento da • 5 anos – Reconhecimento da hipoglicémia
diabetes, envolver activamente a criança que • 7 anos – Técnicas de análise de urina e sangue
poderá começar a familiarizar-se com o material • 8-9 anos – Preparação e injecção de insulina (com
para pesquisa de glicémia e glicosúria, e com os supervisão)
respectivos registos. • 13-15 anos – Compreensão do risco de complicações
Só mais tarde será possível ensinar a auto in- tardias
jecção e, pelos 9 anos, poderá já pedir-se ao doente • > 15 anos – Perspectiva de futuro ( social, profissional
que interprete os dados dos registos diários. e familiar)
Para cumprir os objectivos torna-se fundamen-
CAPÍTULO 182 Diabetes mellitus 875

semana, sobretudo no período nocturno(1- 4horas entre outras: dose inadequada de insulina de
da madrugada). acção intermédia na noite anterior; aumento da
Este problema pode resultar de diversas circun- secreção das hormonas de contra-regulação com
stâncias: excesso relativo de insulina face à concen- hiperglicémia rebound ou fenómeno de Somogyi;
tração de glucose sérica (por exemplo por alteração aumento de secreção de hormona de crescimento
da dose ou horário de administração, variações na nas primeiras horas da manhã, na adolescência.
absorção da insulina ou da sensibilidade à mesma Os sintomas são, essencialmente: despertar,
relacionada, esta última, com o exercício físico); cefaleias, pesadelos e diaforese.
variações no suprimento de hidratos de carbono; A actuação consiste na mudança da dose de
resposta anormal do glucagom ou anomalias no insulina de acção intermediária ou mudando a
processo de libertação de adrenalina com a hora de administração.
evolução da própria DM1 ao longo dos anos, etc..
Dado que, após um primeiro episódio de hipo- Complicações vasculares e outras
glicémia, as respostas autonómicas a subsequentes Embora um controlo metabólico correcto diminua
episódios ficam reduzidas, a probabilidade de significativamente as complicações da DM1, nos
detecção dos respectivos sinais pelo próprio doente casos com evolução superior a 3-5 anos, torna-se
vai-se também reduzindo com o tempo. obrigatório realizar de modo sistemático e seriado
Os sintomas clássicos de hipoglicémia são: cefa- um conjunto de procedimentos:
leias, irritabilidade, estado confusional, alterações do – exame oftalmológico após o diagnóstico e
comportamento (por exemplo “birras”), convulsões anualmente para detecção de retinopatia e de
focais ou generalizadas, coma (em relação com neu- cataratas (Capítulo 255);
roglicopénia de grau variável), tremores, taquicárdia, – análise de urina após o diagnóstico, e anual-
diaforese, dores abdominais, e ansiedade (em relação mente para detecção de microalbuminúria, a
com libertação de catecolaminas). qual sugere disfunção renal e risco de pro-
A preocupação com as medidas de prevenção gressão para nefropatia; o tratamento com
deve ser tanto maior quanto menor a idade da inibidores da enzima de conversão da angio-
criança (sobretudo até aos 6 anos). Exceptuando tensina poderá evitar em grau variável a pro-
nos casos de cetose, suplementos de insulina de gressão da microalbuminúria;
acção rápida ao deitar devem ser evitados. – vigilância frequente, (em cada consulta ou
No caso de episódios ligeiros, a actuação inclui sempre que os sinais clínicos o indiquem ) da
administração oral de açúcares de absorção rápi- pressão arterial com metodologia apropria-
da (glucose, sacarose) seguida de refeição ligeira da, incluindo braçadeira de dimensões adap-
ou da refeição prevista no caso de o episódio ocor- tadas a cada idade;
rer antes desta (por ex. administração imediata de – análise de sangue para determinação do per-
10 a 20 gramas de glucose seguida de refeição). fil lipídico dado o risco elevado de hiperco-
Em situações mais graves que levam ao coma lesterolémia; a detecção precoce da hiperten-
ou a convulsões, a actuação de emergência inclui são arterial e da hipercolesterolémia poderão
a administração de glucagom injectável por via diminuir o risco futuro de coronariopatia;
subcutânea (implicando treino dos pais/família) – detecção de síndroma de Mauriac (hoje
na dose de 0,5-1 mg (1/2 ampola a 1 ampola, res- menos frequente pela maior utilização de
pectivamente antes e depois dos 10 anos de idade) insulinas lentas), e relacionada com doses
cujo efeito se verifica em 10-15 minutos ; tal nunca insuficientes de insulina: essencialmente, face
dispensa, no entanto, a observação médica. Este de “lua cheia” e hepatomegália relacionada
procedimento é seguido por perfusão endovenosa com infiltração de glicogénio e gordura;
de soluto de glucose a 20% em bolus (em regime – detecção doutros problemas associados à
hospitalar): 0,2g/kg de peso ou 1 mL/kg . DM1: tiroidite,doença celíaca, doença de
Addison, doença péptica ulcerosa, défice de
Hiperglicémia matinal IgA, limitação da mobilidade articular, neu-
Esta situação pode ter duas causas principais, ropatia, etc.
876 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Actuação em situações especiais ral e glicémia capilar (em regra 0,25 Unidades/
Criança diabética na escola Kg/dose para glicémia acima de 250mg/dL).
A informação aos professores e a sua colabo- Simultaneamente, devem ser fornecidas pe-
ração permitirão alcançar a adequada integração quenas refeições ricas em hidratos de carbono.
escolar da criança diabética contribuindo para No caso de apenas serem tolerados líquidos, estes
melhorar os cuidados assistenciais quotidianos. devem conter açúcar sempre que a glicémia seja
Imediatamente após o diagnóstico e o regresso inferior a 250/mg/dL de modo a prevenir hipo-
da criança à escola, deve ser fornecida ao profes- glicémia e frenar a cetogénese.
sor informação pormenorizada incluindo algumas Refira-se, a propósito, que a pesquisa sistemá-
noções sobre as características da diabetes e do tica de cetonúria pode alertar precocemente para a
seu tratamento, sinais e sintomas de hipoglicémia, presença de infecção, mesmo antes de detectada
necessidade da sua prevenção com refeições febre ou outras manifestações clínicas.
suplementares, a horas certas, e a actuação ime- O açúcar eventualmente veiculado em xaropes
diata com administração de sacarose se tal situa- ou suspensões orais não inviabiliza o controlo me-
ção surgir. tabólico desde que o regime de insulina seja ajustado.
Deve ainda ser chamada a atenção para o facto Independentemente do papel imprescindível do
de, em períodos de mais difícil compensação apoio familiar e de normas escritas elaboradas pela
metabólica, a criança poder necessitar mais fre- equipa assistencial da criança sobre actuação em
quentemente de pedir para ir à casa de banho. caso de cetose, a verificação de vómitos ou cetonúria
As crianças mais pequenas podem necessitar persistentes obrigará ao recurso a centro hospitalar
de vigilância mais rigorosa à hora das refeições, de especializado para fluidoterapia endovenosa de
modo a verificar a ingestão dos alimentos pres- modo a prevenir a desidratação e a cetoacidose.
critos na sua totalidade.
O professor de ginástica deve também receber
informação especial acerca da necessidade de pre- 2. Diabetes mellitus de tipo 2 (DM2)
venção e tratamento da hipoglicémia.
Para além destas necessidades especiais, a Etiopatogénese
criança diabética não deve ser tratada de modo Esta forma de DM, considerada doença poli-
diferente dos outros alunos. Adaptado o trata- génica comparticipada por factores ambientais,
mento da diabetes à rotina escolar e estabelecido o resulta de resistência periférica à insulina e
intercâmbio de informação com o professor, as hiperinsulinémia compensatória, com ulterior
expectativas em relação ao sucesso escolar e ao disfunção das células beta do pâncreas no que
futuro profissional deverão ser exactamente respeita à manutenção do referido nível de
iguais às das outras crianças. secreção de insulina.
Admite-se um fenómeno de programação in
Infecções intercorrentes utero (hipótese do fenótipo da poupança): o feto
Durante as infecções intercorrentes é neces- adapta-se à má nutrição, poupando os nutrientes
sário adaptar o tratamento de modo a prevenir e rendibilizando o seu armazenamento deficiente.
hiperglicémia, cetose ou hipoglicémia. Entre outras consequências verifica-se a limitação
A criança pode, em tais situações, apresentar da capacidade funcional das células beta e a
diminuição do apetite, ou mesmo recusa alimen- indução da resistência à insulina por compromis-
tar; verificando-se, por outro lado, que as mesmas so das células sensíveis à mesma (músculo, sobre-
provocam sempre um grau variável de insulino- tudo). Este fenómeno pode ser explicado por
resistência, a dose diária de insulina deve ser alterações epigenéticas.
mantida, sendo necessário, por vezes mesmo, ser Assim, o baixo peso de nascimento e a RCIU
aumentada. estão associados a risco elevado de DM2 e tal
Assim, devem ser administradas pequenas risco parece ser maior nas crianças com ganhos de
doses suplementares de insulina de acção rápi- peso mais rápidos nos primeiros meses de vida
da, cada 2 a 4 horas, de acordo com o peso corpo- por suprimento elevado de energia e proteínas.
CAPÍTULO 182 Diabetes mellitus 877

Também a obesidade, relacionada com fac- dencia valores baixos, elevando-se mais tarde.
tores etiopatogénicos nutricionais, está associada Salienta-se entretanto que se verifica resposta à
ao desenvolvimento de DM2, o que se relaciona estimulação pela administração oral de hidratos de
fundamentalmente com resistência à insulina. carbono. A HbA1c tende a ser de valor mais eleva-
Considerando a gordura visceral no contexto de do. A pesquisa de auto-anticorpos contra células β
obesidade, cabe referir que a mesma, sendo meta- é negativa (excepção para ICA512-ver atrás).
bolicamente activa, produz adipocinas que con- Os casos de obesidade, de alterações metabóli-
tribuem para a referida resistência. Nestas situa- cas associadas e de antecedentes familiares de
ções surge igualmente disfunção endotelial com DM2 comportam risco de desenvolvimento do
consequente risco cardiovascular. mesmo tipo de DM.
Nos casos de obesidade, concomitamente com a A verificação de acanthosis nigricans (manifes-
resistência à insulina, verifica-se aumento de pro- tação de dermatológica de hiperinsulinismo sob a
dução de glucose hepática que, secundariamente, forma de pigmentação com hiperqueratose
leva à diminuição da capacidade de secreção de notória na nuca e nas pregas de flexão, verificada
insulina (em condições normais induzida pela glu- em 90% dos casos), de obesidade (em 80-90% dos
cose). Ao longo do tempo verifica-se fenónemo de casos), de síndroma do ovário poliquístico na
glucotoxicidade (pela hiperglicémia crónica) e de rapariga obesa, de história familiar de DM2, e a
lipotoxicidade (pela hiperlipémia crónica) sobre as ausência de anticorpos contra os antigénios das
células β dos ilhéus, do qual resulta diminuição da células β dos ilhéus de Langerhans , apontam para
expressão do gene da insulina. a forte possibilidade de DM2 no doente em estudo.
A resistência à insulina faz parte da síndroma De salientar que a acanthosis nigricans pode ser
metabólica, típica na DM2, a qual inclui também considerada um marcador (e levar à suspeita) de
obesidade abdominal, desregulação do metabolis- resistência à insulina, de hiperinsulinémia e, even-
mo da glucose, dislipidémia e HTA. tualmente, de DM2.
Embora seja admitido que na DM2 não existe A cetoacidose, embora menos frequente que na
destruição auto-imune das células β, em certos DM1, pode ocorrer, sobretudo em situações de
casos têm sido identificados alguns marcadores estresse ou infecção intercorrente.
auto-imunes (autoanticorpos) que também surgem
na DM1, tais como GAD 65, ICA 512 e IAA. Tratamento
Descreve-se uma forma dominante de DM2 Os doentes assintomáticos (em geral com valores
devida a mutação de um receptor da sulfonilureia. de glicémia em jejum > 126 mg/dL ou ~200-250
mg/dL numa determinação ocasional) podem ser
Aspectos epidemiológicos tratados inicialmente com medidas de reeducação
e manifestações clínicas alimentar e exercício, não sendo necessário, na
A DM2, anteriormente considerada de baixa maioria dos casos, proceder a terapêutica farma-
prevalência em idade pediátrica, evidencia hoje cológica.**
prevalência crescente em relação com factores Actualmente, nos casos com diagnóstico re-
ambientais atrás descritos (por ex. sedentarismo, cente e formas não complicadas de DM2, estão
regime alimentar hipercalórico) com o incremen-
to de prevalência da obesidade; o início é muitas
* Nas crianças com RCIU e risco de resistência à insulina utiliza-se a
vezes mais insidioso que o da DM1. seguinte fórmula designada por HOMA (Homeostasis Model
Na DM2 aplicam-se idênticos critérios de dia- Assessment)para quantificar tal risco: Insulinémia (mUI/mL) x
Glicémia (mmol/L)/ 22,5 . Considera-se HOMA> 3 equivalente a
gnóstico referidos a propósito da DM1; pode ser insulinorresistência.(NB- para converter glicémia em mg/dL para
confirmada pela determinação da insulinémia e do mmol/L, divide-se aquele valor por 18)
péptido-C em jejum. Este último marcador eviden-
** Nota importante: Os doentes com qualquer forma de diabetes
cia classicamente valores normais; por vezes poderão eventualmente requerer tratamento insulínico; esta circun-
podem estar elevados, o que traduz hiperinsulinis- stância, só por si, não é condição suficiente para classificar o tipo de
DM. Em situações iniciais com destrinça pouco clara entre DM1 e
mo e resistência à insulina*. Estão descritas situa- DM2, está indicado iniciar terapêutica com insulina se glicémia > 250
ções em que, numa fase inicial o péptido C evi- mg/dL ou HbA1c > 9%.
878 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

indicados os hipoglicemiantes orais como primei- MODY). Neste subtipo, (não associado a ale-
ra linha de actuação farmacológica: agentes esti- los HLA, a obesidade, a destruição das célu-
mulantes da secreção insulínica ou promotores da las β por autoimunidade), não há resistência
sensibilidadade à insulina, ou ainda promotores à insulina, mas uma resposta secretória
de mais lenta absorção da glucose. Citam-se de insulínica insuficiente à estimulação glicémi-
modo sucinto os seguintes: biguanidas (de que a ca; tal pode implicar a necessidade de trata-
metformina – que pode originar acidose láctica – é mento com insulina.
um exemplo), inibidores da glucosidase, sulfonil- Nas formas MODY, o péptido C é baixo tal
ureia, tiazolidinedionas, etc.. Em circunstâncias como na DM1.
especiais haverá necessidade de associar tais – DM por defeitos mitocondriais; estes subti-
agentes orais à insulina. pos estão relacionados, com defeitos here-
Considerando os fármacos com efeito estimu- ditários de genes mitocondriais das células β
lante da secreção de insulina cabe referir o GLP-1 dos ilhéus.
(glucagon like peptide 1) que igualmente suprime a
resposta do glucagom. Este péptido (que pertence Defeitos genéticos repercutindo-se em acção
ao grupo das hormonas intestinais – incretinas – e anómala da insulina
cujo efeito se relaciona com a proliferação das – Trata-se de situações muito raras relacionadas
células B) é segregado em condições normais com mutações de genes do receptor da insulina:
pelas células L do íleum distal. Outro fármaco (a resistência à insulina tipo A, leprechaunismo,
amilina) é uma hormona (polipéptido) segregada síndroma de Rabson-Mendenhall e diabetes
concomitantemente com a insulina pelas células lipoatrófica. (ver Glossário Geral)
B; inibe o glucagom e atrasa o esvaziamento
gástrico. GLP-1 e amilina melhoram o controlo Doenças do pâncreas exócrino
glicémico pós-prandial e aumentam a saciedade. – São referidas como mais representativas as
Actualmente aponta-se a importância do seguintes situações: pancreatite, lesões trau-
crómio na melhoria de tolerância à glucose. máticas, status pós-pancreatectomia, neopla-
sia, fibrose quística, hemocromatose, pancre-
atopatia fibrocalculosa.
3. Outros tipos de diabetes mellitus
Endocrinopatias
De modo sucinto são discriminados outros tipos – Citam-se as seguintes: acromegalia, síndro-
específicos de DM que partilham alguns carac- ma de Cushing, glucagonoma, feocromocito-
terísticas com a DM1 imunomediada. ma, hipertiroidismo, somatostatinoma, etc..

Defeitos genéticos da função das células beta Acção de fármacos e agentes químicos
– DM monogénica secundária a situações como – Como exemplos são referidos os seguintes:
mucoviscidose, hemocromatose, fármacos (l- pentamidina, ácido nicotínico, glucocor-
asparaginase, tacrolimus, etc.). ticóides, hormona tiroideia, diazóxido, ago-
– DM dita anteriormente MODY (sigla do nistas beta-adrenérgicos, alfa-interferão, etc..
inglês- maturity onset diabetes of youth): com-
preende um grupo de formas relativamente Infecções
ligeiras de diabetes que têm em comum a – Já abordadas anteriormente, cabe salientar:
hereditariedade dominante e o início antes rubéola congénita e citomegalovírus.
dos 25 anos de idade. Descrevem-se defeitos
genéticos vários relacionados, designada- Formas raras de diabetes imunomediada
mente, com mutações de genes nos cromos- – Estas formas estão associadas à existência de
somas 7,12 e 20 com consequente disfunção anticorpos anti-receptor de insulina, e a um
das células β ou disfunção do transporte da quadro clínico designado por síndroma stiff-
glucose para as células β (6 variantes man /“homem rígido”. (ver Glossário Geral)
CAPÍTULO 182 Diabetes mellitus 879

Doenças autoimunes (CSII) versus multiple insulin injections for type I diabetes
– Citam-se: a doença celíaca e a tiroidite lin- mellitus. Evidence-Based Child Health 2010; 5: 1868 - 1869
focítica crónica (de Hashimoto) Glastras SJ, Mohsin F, Donaghue KC. Complications of dia-
betes mellitus in childhood. Pediatr Clin North Am 2005;
DM associada determinadas síndromas genéti- 52: 1735 – 1753
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– Síndromas Down, Klinefelter, Turner, Wol- Pediatr Rev 2013; 34:203- 214
fram, Prader-Willi, Laurence-Moon-Biedl, Hindmarsh PC, Peters CJ, Thompson RJ. Insulin pump thera-
Ataxia de Friedreich, Coreia de Huntigton, py. Paediatrics and Child Health 2013; 23:158-162
Porfíria, etc.. Koletzko B. Pediatric Nutrition in Practice. Basel: Karger, 2008
Konrad K, Thon A, FritschM, et al. Comparison of cystic fibro-
DM neonatal sis-related diabetes with type 1 diabetes based on a ger-
– Para além da forma clássica de DM1, a dia- man/austrian pediatric diabetes registry. Diabetes Care
betes insulinodependente inclui outras for- 2013; 36:879-886
mas clínicas: 1) a diabetes transitória do RN Long AL, Bingley PJ. The epidemiology of childhood diabetes.
sem recorrência manifestada no pós-parto Paediatrics and Child Health 2013; 23:147-151
imediato e durando 1-3 meses, salientando- Lorini R, Maghnie M, et al (eds). Congenital Endocrinopathies.
se que em cerca de 70% dos casos é devida a Basel: Karger, 2007
anomalias no cromossoma 6q24; 2) a diabetes Quinn M, Fleishman A, Rosner B, et al. Characteristics at diag-
permanente do RN relacionada com anoma- nosis of type I diabetes in children young than 6 years. J
lias pancreáticas resultantes de mutações em Pediatr 2006; 148: 366-371
KCNJ11 e ABCC8 e traduzindo-se em ano- Regan FM, Dunger DB. Use of new insulins in children. Arch
malias no processo secretório ao nível das Dis Child 2006; 91: ep 47-ep 53
células beta; 3) a diabetes transitória do RN Rodrigues MLC, Motta MEA. Mecanismos e fatores associados
com recorrência 7-20 anos mais tarde. aos sintomas gastrointestinais em pacientes com diabetes
melito. J Pediatr (Rio J) 2012; 88(1). http://dx.doi.org/
Diabetes gestacional 10.2223/JPED.2153
– Durante a gestação verifica-se intolerância Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
anormal à glucose (regredindo após o parto), AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
que comporta risco significativo de DM, em Medical , 2011
geral do tipo MODY. Shapiro AMJ, Ricordi C, Hering BJ. International trial of the
Edmonton Protocol for islet transplantation. NEJM 2006;
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diabetes mellitus. Eur J Endocrinol 2013;168:601-608
Evidence-Based Child Health Editorial Office/EBCH Summary.
Summary of “Continuous subcutaneous insulin infusion
880 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

183
A CAD é secundária a défice de insulina e
aumento das hormonas de contra-regulação.
A insulina é uma hormona polipeptídica segre-
gada pelas células β do pâncreas sob acção de estí-
mulos β-adrenérgicos e parassimpáticos. Tem
uma acção anabolizante que leva a um aumento
CETOACIDOSE DIABÉTICA da captação de glucose, sua entrada no meio
intracelular, e a um estímulo da síntese do glico-
João Estrada e Maria do Carmo Vale génio hepático e muscular. No fígado promove
inibição da neoglicógenese e da glicogenólise; no
músculo, estimula a síntese proteica e inibe a pro-
teólise; e no tecido gordo promove a captação de
Definição e importância do problema glucose e lipoproteínas, estimula a lipogénese, e
inibe a lipólise.
A cetoacidose diabética (CAD), frequentemente, a A diminuição, ou ausência persistente de insu-
forma de apresentação inicial da diabetes tipo 1 na lina condiciona a passagem de um estado anabóli-
criança, é a sua complicação aguda mais grave. co a um estado catabólico, com neoglicogénese,
Constitui igualmente uma urgência terapêutica e a glicogenólise, cetogénese e proteólise. A neoglicó-
principal causa de internamento e de mortalidade da genese passa a ser efectuada a partir do piruvato,
criança diabética, com um risco estimado de morte secundariamente à diminuição da frutose 1-6 di-
de 0,2 a 1%, essencialmente por edema cerebral. fosfato que, por sua vez, leva à activação da fru-
A cetoacidose diabética surge como conse- tose difosfatase e diminuição da fruto-
quência das alterações metabólicas e hidroelec- fosfoquinase.
trolíticas secundárias a diminuição da insulina cir- A proteólise muscular aumenta, levando à li-
culante eficaz e, como consequência, à elevação bertação de aminoácidos que serão utilizados pela
das hormonas de contra-regulação (glucagom, neoglicógenese hepática para produzir glicose o
catecolaminas, cortisol e hormona do crescimento) que, associado à inibição do efeito antilipolítico,
que, para além de contribuirem para a hiper- conduz à libertação de ácidos orgânicos como o
glicémia, estimulam a cetogénese. acetoacético e o β-hidroxibutírico para a circula-
Os critérios bioquímicos para o diagnóstico de ção, determinando o estado de cetoacidose. A aci-
CAD são hiperglicémia, (> 200 mg/dL) e acidose dose láctica, secundária à hipoperfusão / hipovo-
metabólica (pH <7.25 e/ou bicarbonato <15 lémia tecidual pode associar-se e agravar a aci-
mEq/L), cetonúria e cetonémia. dose.
A característica da acidose metabólica na CAD Por outro lado, como a utilização periférica da
é o aumento do hiato iónico (> 11), indicador indi- glicose está limitada pela falta de insulina, a gli-
recto dos níveis de corpos cetónicos. cose produzida pela neoglicogénese e/ou glico-
A terapêutica consiste na correcção das alte- genólise determina o agravamento da hipergli-
rações hidroelectrolíticas (desidratação / choque), cémia.
do equilíbrio ácido-base e da hiperglicémia, O aumento da pressão osmótica plasmática,
através da reposição hídrica e iónica, da correcção associado à hiperglicémia, condiciona a saída de
da acidose, e dos níveis de insulina. água do espaço intracelular para o intravascular,
levando a desidratação que, de início, é essencial-
Etiopatogénese mente intracelular. A hipervolémia resultante da
hiperglicémia vai condicionar intensa diurese
A poliúria causada pela diurese osmótica pode osmótica; por outro lado, o aumento da filtração
induzir desidratação com grau variável de alte- glomerular, a elevação da ureia e a glicosúria (se
rações electrolíticas, hiper ou hiponatrémia (de glicémia > 180 mg/dL) vão-se progressivamente
diluição), hipocalcémia, hipofosfatémia e hipopo- agravando, determinando um estado de desidra-
tassémia. tação hiperosmolar em geral não hipernatrémica,
CAPÍTULO 183 Cetoacidose diabética 881

intra e extracelular, que caracteriza a CAD.* a sua característica de hiperosmolaridade e pre-


O edema cerebral é a complicação mais grave domínio intracelular, com possível ausência de
da CAD, sendo mais frequente na criança do que prega cutânea nas fases iniciais, pode levar à sub-
no adulto. A sua fisiopatologia é complexa e con- valorização da apresentação clínica, que está na
troversa, admitindo-se como mecanismos envol- dependência do grau de desidratação avaliada em
vidos a isquémia/hipóxia cerebral, a produção de função da % de perda de peso (5%: mucosas secas,
mediadores inflamatórios, as alterações do trans- redução do turgor cutâneo; 10%: atraso do retorno
porte iónico nas membranas celulares e a pro- capilar superior ou igual 3 segundos; ≥ 10%:
dução de osmois idiogénicos intracelulares condi- choque, circulação periférica deficiente).
cionando, em conjunto, desequilíbrio osmótico Para além da hiperglicémia, acidose, glicosúria e
celular cerebral. A reidratação excessivamente cetonúria, é frequente existir um aumento da ureia,
rápida, a diminuição brusca da osmolaridade pela creatinina, amilase e triglicéridos, assim como leu-
utilização de solutos hipotónicos e a diminuição cocitose.
rápida da glicémia (> 100 mg/dL) são considera-
dos factores potenciadores de edema cerebral. A Monitorização
própria correcção da acidose levando a aumento
paradoxal da acidose no LCR, a diminuição da A monitorização clínica deve incidir particularmente
pressão de O2 e CO2 no LCR, a ureia elevada e a nos sinais de desidratação e no estado de consciên-
hipoxémia tecidual, têm sido igualmente impli- cia/sinais de hipertensão intracraniana (sonolên-
cadas. (Capítulo 48) cia/coma, bradicárdia e hipertensão arterial).
Como factores predisponentes de compli- Em todos os doentes deve proceder-se à moni-
cações de CAD apontam-se, entre outros: estado torização dos sinais vitais e da glicémia (hora/
protrombótico com activação do endotélio vascu- hora); da gasometria capilar (2/2 horas enquanto
lar e insuficiência vascular, acidose e hiper- pH<7,2 e de 4/4 horas, depois); da função renal,
glicémia favorecendo o crescimento de fungos, e electrólitos (incluindo Ca, P e Mg) e cetonémia
disfunção dos neutrófilos. (4/4 horas); e da cetonúria e glicosúria com perio-
dicidade dependente do contexto clínico. Deve ser
Manifestações clínicas realizado ECG na data de admissão e, depois, em
monitorização contínua para detecção de sinais de
As manifestações clínicas mais frequentes são discaliémia; igualmente avaliações laboratoriais
polidipsia e a poliúria (por diurese osmótica devi- e/ou imagiológicas orientadas para eventual
da à desidratação hiperosmolar por hiperglicémia causa infecciosa, ou outra, desencadeante.
e urémia); náuseas, vómitos e hálito cetónico (pela Considerando o pH venoso e o bicarbonato
cetose); perda de peso e confusão mental/coma (mmol/L) são considerados, respectivamente os
(escala de Glasgow), existindo uma boa relação seguintes patamares de gravidade: ligeira: 7,21-
entre as manifestações neurológicas e o grau de 7,30/ 11-15; moderada: 7,11-7,20/6-10; grave:
hiperosmolaridade sérica. <7,10/< 5.
Hiperpneia, taquipneia (respiração de Kus-
smaul) e dores abdominais são frequentes, poden- Actuação prática
do levar a dificuldades de diagnóstico diferencial
com episódios de doença respiratória ou com si- O objecto inicial do tratamento da CAD é corrigir
tuações de abodómen agudo. a acidose e manter glicémia entre 150-250 mg/dL
A desidratação é uma constante da CAD, mas durante insulinoterapia contínua IV.
As CAD moderadas e graves necessitam, pois,
sempre de insulinoterapia e reidratação endove-
* A hipernatrémia, apesar de menos frequente, pode ser observada em
presença de CAD, constituindo até, em certa medida um factor protec- nosas (em vias diferentes). Nos casos de CAD gra-
tor no desenvolvimento do edema cerebral. Por outro lado, a hipona- ve, depressão do estado de consciência (Glasgow
trémia deve ser evitada. Outrossim poderá ser aceite hipernatrémia
moderada (150-160 mEq/L) como “protectora” nos casos de glicémia >
12), vómitos persistentes e idade < 5 anos, está
600 mg/dL. (ver adiante) indicado internamento em cuidados intensivos ou
882 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

em enfermaria pediátrica especializada (Capítulo Eis algumas particularidades:


267). • Nas crianças < 5 anos ou glicémia inicial >
Crianças sem sinais de desidratação significati- 1000 mg/dL (> 55 mmol/L) é prudente iniciar
va (<3%) e sem cetoacidose toleram bem terapêu- com 0,05 U/kg/h (0,5 mL/kg/h)
tica com insulina subcutânea e reidratação oral. • Manter a perfusão até à melhoria da CAD
(pH > 7,3 e bicarbonato > 15 mmol/L)
Reidratação IV e correcção da hiperglicémia • Quando glicémia < 250 mg/dL (14 mmol/L),
Verificando-se estado de choque, procede-se a ou antes, se houver descida > 90 mg/dL/h (5
expansão vascular com soro fisiológico (SF) ou mmol/L/h), ajustar a concentração de glucose mas
lactato de Ringer – 10-20 mL/Kg em 30-60 minu- não diminuir o ritmo de administração de insulina.
tos, a repetir se necessário. → Se ao fim de 4 horas os parâmetros bio-
Após correcção do choque, programa-se o cálcu- químicos de CAD não melhorarem:
lo da reposição hídrica para 48 horas, de forma a • Reavaliar o doente
não gerar gradientes osmóticos intra-extracelulares • Rever a insulinoterapia
potenciadores de edema cerebral (não ultrapassar 4 • Considerar outras causas de má resposta à
L/m2/dia ou 10-12 mL/kg/hora na primeira hora e terapêutica (infecção!).
6 mL/kg/hora nas horas seguintes). → Após estabilização*** é habitualmente pos-
O cálculo das necessidades de fluidos pode sível iniciar insulina de acção rápida ou de acção
ser feito pela soma do défice de fluidos (% da ultra-rápida subcutânea (sc) de acordo com o
perda de peso corporal em Kg) + manutenção esquema do Quadro 1.
(idades: <1 ano, 1-5, 6-9, 10-14 e > 15 anos, neces- → Após as primeiras 24 horas pode ser possível:
sitam de volumes de manutenção: 80, 70, 60, 50 e • Interromper soluto IV;
35 mL/Kg/dia, respectivamente). • Iniciar insulina de acção intermédia sc (con-
Nos cálculos não se devem considerar os volu- sultar Quadro 2 do capítulo 182 para os tipos de
mes administrados na fase de expansão vascular, insulina); dose: 0,3 U/kg/dia em 2 injecções: antes
mas deve ter-se em atenção a contabilização de do pequeno almoço – 2/3 do total; antes do jantar –
todas as perdas, com especial atenção para as per- 1/3 do total;
das urinárias que poderão corresponder a 30-50% • Manter a insulina rápida/ultra rápida sc de 2
dos fluidos para a manutenção. em 2 horas durante as 4 horas seguintes de acordo
Tipo de solutos: com os critérios do Quadro 1.
• Nas primeiras seis horas: • Após 4 horas, e se não houver cetonúria, pas-
– Utilizar sempre soro fisiológico (NaCl a 0,9%). sar a insulina rápida antes das três refeições princi-
– Passar para glucose a 5% e soro fisiológico (2 pais (pequeno almoço, almoço, jantar).
vias com conexão em Y) quando se iniciar a • Se houver cetonúria, manter a administração
perfusão de insulina*. de insulina rápida/ultra rápida sc de 2 em 2 horas
– Poderá ser necessário administrar solutos até ao seu desaparecimento, passando, depois, para
com maiores concentrações de glucose (7,5%, antes das 3 principais refeições.
10% glucose) para evitar a hipoglicémia.
• Após as seis horas: Correcção da acidose
– Passar para NaCl a 0,45% com glucose a 5% A correcção da desidratação e da hiperglicémia é
(soro a 1/2).
* Para prevenir o declínio rápido da glicémia e a hipoglicémia deve
A perfusão de insulina é iniciada 1-2 horas após acrescentar-se glucose ao fluido IV(NaCl a 0.9%). Este objectivo pode
o início da reidratação IV ser conseguido na prática(respeitando os cálculos feitos quanto aos flui-
dos a administrar) utilizando conexão em Y com dois sistemas: um com
Não se administra insulina em bolus inicial. dextrose e outro sem dextrose. Torna-se fundamental o acerto quanto
Deve usar-se acesso EV exclusivo (conexão em Y) ao ritmo de administração.
** A solução de insulina só é estável durante 6 horas, pelo que terá de
para perfusão de insulina de acção rápida, na dose ser novamente preparada se a perfusão se mantiver mais que este
inicial de 0,1U/kg/hora (diluir 50 U de insulina tempo.
em 500 cc de SF, sendo então 1cc ◊ 0,1 Unidades)**. *** pH > 7,3; bicarbonato ≥ 18; hiato iónico 8-11; alimentação oral possível.
CAPÍTULO 183 Cetoacidose diabética 883

QUADRO 1 – Cálculo da dose de insulina na fase de estabilização

• Introduzir os líquidos per os após a melhoria franca da CAD e quando o doente manifestar o desejo de comer.
• Se houver boa tolerância oral, diminuir os soros IV (subtrair o volume ingerido ao volume calculado para administração IV)
e tentar uma pequena refeição com hidratos de carbono de absorção lenta (leite, iogurte, bolachas, pão...).
• Programar a passagem para insulina sc quando a acidose tiver regredido (pH >7.3, bicarbonato ≥ 18 mEq/L) e os alimentos
forem bem tolerados.
• O melhor momento para iniciar insulina sc é antes de uma refeição.
• Administar a 1ª dose sc de insulina de acção rápida rápida/ultra rápida de acordo com o peso, glicémia e alimentação:

< 160 mg/dL – 0 U


160 - 200mg/dL – 0,05U/kg crianças < 20 kg – 0,5 U/ equivalente de HC**
+
> 200 - 300 mg/dL – 0,1 U / kg crianças > 20 kg – 1 U/ equivalente de HC
> 300 mg/dL – 0,15 U / kg

• Parar a perfusão de insulina 15 minutos depois de administrar a 1ª dose de insulina sc.


• Manter insulina de acção rápida / ultra rápida sc de 2 em 2 horas de modo a manter glicémia ∼ 150 mg/dL.
** 1 equivalente de HC : 1/2 pão, 3 bolachas Maria, 3 água e sal, 2 iogurtes

habitualmente suficiente para a correcção da aci- intracelular. Mesmo nesta eventualidade, há que
dose. A administração de bicarbonato é cada vez referir que o potássio corporal total está diminuído.
mais contestada, não tendo sido demonstrado O sódio sérico inicial, geralmente normal ou
efeito benéfico na sua utilização; pelo contrário, baixo, explica-se pelos efeitos de diluição osmolar
pode levar a um agravamento da hiperosmolari- da hiperglicémia e da fracção lipídica elevada não
dade e potenciar a acidose do SNC e o edema cere- contendo sódio.
bral. Considera-se a administração de bicarbonato Assim, para o cálculo da correcção da natrémia
apenas quando pH < 7,0 e bicarbonato < 5, ou nos casos de glicémia > 100 mg/dL (5,6 mmol/L)
quando há necessidade de utilização de aminas utiliza-se a seguinte fórmula, considerando a
vasoactivas, e só até pH de 7,1 (1 a 2 mEq/kg em glicémia em mg/dL.
perfusão de 2 horas). [Na+] + [glucose – 100] x 1,6
100
Correcção das alterações iónicas O sódio deverá aumentar cerca de 1,6 mmol/L
Os suprimentos em sódio, cloro, fósforo e cálcio por declínio de 100 mg/dL de glicémia em con-
são os necessários ao metabolismo basal. A uti- comitância com a reposição lenta dos fluidos. Se,
lização de solutos com níveis de sódio ≥ a 50 pelo contrário a natrémia diminuir à medida que
mEq/litro (soluto a 1/3) é habitualmente sufi- se proceder à reidratação, tal poderá significar
ciente para manter o sódio em níveis adequados. acumulação de água livre e risco de edema cere-
Mesmo nas situações de CAD associada a Na+ bral.
sérico > 150 mEq/L, não utilizar soluções hipotó- Quando o fósforo for < 2,5 mg/dL (< 0,8
nicas. mmol/L), substituir 50% do KCl por fosfato
Em relação ao potássio há que considerar a sua monopotássico, até às 12 horas de tratamento.
administração logo nas 2 primeiras horas se Para a correcção doutras alterações iónicas
potassémia inicial <4,5 mEq/L (2 a 4 mEq/Kg/dia, sugere-se a consulta dos capítulos 48 e 50.
não excedendo concentrações de 40 mEq/L de Reitera-se que o início da alimentação é feito
soluto em veia periférica). logo que a tolerância oral o permita, com prefer-
Salienta-se que no momento do diagnóstico de ência por líquidos ricos em potássio (sumos),
CAD, o potássio sérico pode estar normal ou elevado iogurte e pequenas refeições. (Quadro 1) (Capítu-
porque a acidose provoca saída de potássio do meio los 49 e 50)
884 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Tratamento do edema cerebral Glaser NS, Wootton-Gorges, SL, Marcin JP, et al. Mechanism of
Embora raro (0,4 a 1% das CAD) o edema cerebral é cerebral edema in children with diabetic ketoacidosis. J
responsável por cerca de 50 a 80% de todas as Pediatr 2004; 145: 164-171
mortes por CAD; comporta mortalidade de 20 a Glaser NS, Ghetti S, Casper TC, et al. Pediatric diabetic ketoaci-
25% e morbilidade de 10 a 26% nos sobreviventes. É dosis, fluid therapy, and cerebral injury:the design of a fac-
mais frequente nas primeiras 4 a 12 horas de te- torial randomized controlled trial. Pediatr Diabetes 2013
rapêutica. São considerados sinais de alarme: cefa- Mar 13. doi: 10.1111/pedi.12027
leias, alterações do estado consciência, sinais focais, Glaser NS, Wootton-Gorges SL, Buonocore MH. Subclinical
convulsões, hipertensão arterial e bradicárdia. A sua cerebral edema in children with diabetic ketoacidosis ran-
terapêutica é emergente, exigindo recurso a cuida- domized to 2 different rehydration protocols. Pediatrics
dos intensivos e medidas específicas (elevação da 2013; 131: e73-e80
cabeceira, cabeça na linha média, sedação / analge- Gregory JM, Moore DJ, Simmons JH. Type 1 diabetes mellitus.
sia, ventilação) associados a perfusão de manitol Pediar Rev 2013; 34: 203-214
(0,5 a 1 g/kg em 20 minutos) concomitantemente Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
com redução do suprimento dos fluidos programa- Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
dos a metade, e ajuste da dose de insulina. Como 2011
alternativa pode utilizar-se na NaCl hipertónico a Pina R, Bragança G, Fonseca G, Rebelo I, Mota A, Caldeira J.
3%: 5-10 mL/kg a cada 30 minutos com manu- Tratamento da cetoacidose diabética; um protocolo utiliza-
tenção de natrémia entre 150 e 160 mEq/L. do em crianças e adolescentes. Rev Port de Pediatra 1991;
Havendo indicação de suporte ventilatório a pCO2 22: 97-106
deve ser mantida > 35 mmHg (não hiperventilar). Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
Complicações Medical, 2011

Sucintamente são referidas as seguintes compli-


cações: rabdomiólise, mucormicose, pancreatite
aguda, e outras ao nível do SNC (edema cerebral,
hemorragia subaracnoideia, trombose arterial basi-
lar, meningoencefalite, etc.).

AGRADECIMENTOS
À Dr.ª Rosa Pina, da Unidade de Endocrinologia Pediátrica do
Hospital de Dona Estefânia, pela revisão e sugestões.

BIBLIOGRAFIA
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Infants, Children, and Adolescents – A consensus statement
from the Wolfsdorf J, Glaser N, Sperling MA. Diabetes Care
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Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
Dunger DB, Sperling MA, Acerini CL, Bohn DJ, Daneman D,
Danne TP, Glaser NS, Hanas R, Hintz RL, Levitsky LL,
Savage MO, Tasker RC, Wolfsdorf JI. ESPE/LWPES con-
sensus statement on diabetic ketoacidosis in children and
adolescents. Arch Dis Child 2004; 89: 188-194
ISPAD Clinical Practice consensus Guidelines 2006-2007 –
Diabetic Ketoacidosis. Wolfsdorf J, Craig ME, Daneman D,
Dunger D, Edge J, Lee WRW, Rosenbloom A, Sperling MA,
Hanas R. Pediatric Diabetes 2007; 8: 28-43
CAPÍTULO 184 Hipoglicémia 885

184
lo. A hipoglicémia em idades ulteriores, embora
menos frequentemente, também poderá originar
sequelas de idêntica localização. (ver Parte XXXI)

Homeostase da glucose
e fisiopatologia
HIPOGLICÉMIA
No indivíduo adulto sem doença a manutenção
João M. Videira Amaral do nível normal de glucose no sangue depende
de:1) suprimento adequado de substractos exóge-
nos (alimentação) ou endógenos (gluconeogénese
a partir de aminoácidos-sobretudo alanina,
Definição e importância do problema glicerol e lactato), ou a partir de reservas de glico-
génio no fígado e músculo submetidas a glico-
A hipoglicémia em idade pediátrica constitui um genólise; 2) sistemas enzimáticos funcionando em
problema clínico associado a grande variedade de pleno, quer para a gluconeogénese, quer para a
etiologias relacionadas com problemas metabóli- glicogenólise; e 3) sistema endócrino normal que
cos e hormonais diversos. Surge mais frequente- promova integração destes processos.
mente no período de recém-nascido (primeiras 4 O adulto saudável tem capacidade para manter
semanas de vida) sobretudo nos primeiros 2-3 um nível normal de glucose no sangue quando pri-
dias após o parto(2-3/1000 ). A incidência é mais vado de qualquer suprimento energético durante
elevada (5-10%) nos casos de recém-nascidos de semanas e, no caso de obesidade, durante meses.
mães diabéticas, recém nascidos pré termo e/ou Pelo contrário, no recém-nascido e na criança
com restrição de crescimento intra-uterino. pequena, mesmo saudáveis, verifica-se uma dimi-
A hipoglicémia é definida com base biológica, nuição dos níveis de glicémia abaixo do que é con-
isto é, independentemente da verificação ou não siderado normal (hipoglicémia, anteriormente
de sintomas (respectivamente sintomática e as- definida) se forem submetidos a períodos mais cur-
sintomática): valor de glicose no sangue total infe- tos de jejum em relação ao adulto) (24-48 horas).
rior a 45 mg/dL (no RN) e < 50mg/dL (no lactente Esta maior vulnerabilidade ou maior predisposição
e criança maior) sendo que os valores determina- para a hipoglicémia na criança pequena e no recém-
dos no soro ou plasma são cerca de 10-15% mais nascido (e, neste, ainda mais se for pré-termo ou
elevados do que no sangue. tiver sofrido de má-nutrição fetal/restrição de
A regressão dos sintomas após terapêutica crescimento intra-uterino) explica-se essencial-
correctiva ou de substituição com glucose legitima mente por falência dos condicionantes atrás des-
o diagnóstico de hipoglicémia, na medida em que critos: imaturidade dos sistemas enzimáticos em
os sintomas e sinais habitualmente associados a geral e nomeadamente dos que promovem a glico-
esta anomalia podem verificar-se noutras situa- genólise e gluconeogénese, défice de substractos
ções; ou seja, os respectivos sinais e sintomas são glucogénicos ou não glucogénicos para a formação
inespecíficos. de reservas de glicogénio as quais passam a ser
Como resultado de hipoglicémia grave e pro- deficitárias; maior probabilidade de situações de
longada poderão surgir sequelas de gravidade estresse (hipotermia, hipóxia, infecção, etc.) que
variável (em cerca de 30-50% dos casos) ao nível aumentam o consumo de glucose agravando o
do sistema nervoso central (lesão neuronal de- desequilíbrio entre a “oferta e a procura”.
monstrada ao nível do córtex cerebral, cerebelo, Recorda-se que uma criança de 10 kg contém
núcleo caudado,putamen e corno de Amon), po- cerca de 20-25 gramas de glicogénio como reserva
dendo conduzir a atraso mental e convulsões para as necessidades de 4-6 mg/kg/minuto de
recorrentes, sobretudo se tal se verificar nos glucose durante 6-12 horas; após este limite de
primeiros seis meses de vida, que correspondem tempo é activada a neoglucogénese.
ao período de crescimento mais rápido do encéfa- Eis alguns exemplos paradigmáticos que aju-
886 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

dam a compreender a maior vulnerabilidade na da insulina (cujo estímulo para a secreção é de-
criança pequena: o recém-nascido pré-termo tem sencadeado quando a glicémia é > 70-90 mg/dL,
sistemas enzimáticos mais imaturos que o recém- com a comparticipação da glucocinase dos ilhéus,
nascido de termo (e se se tratar de doenças heredi- e das hormonas de contra-regulação):
tárias do metabolismo, tais sistemas poderão não Insulina
existir); menores reservas de glicogénio no músculo – no fígado: diminuição de glicogenólise e glu-
e fígado; menores reservas de aminoácidos – sobre- coneogénese hepáticas; como consequência,
tudo de alanina – por menor massa muscular, assim aumento do teor hepático em glicogénio.
como de gorduras. No caso do recém-nascido com – no tecidos periféricos: transporte de glucose
restrição de crescimento intra-uterino tem especial para o músculo; conversão da glucose em
relevância a deficiência em reservas glicogénicas glicogénio e triglicéridos; inibição da lipólise;
hepáticas em desequilíbrio com as maiores necessi- incorporação de aminoácidos nas células.
dades energéticas da massa encefálica. Epinefrina (resposta rápida em minutos à
A Figura 1 resume os passos mais significativos hipoglicémia): activação da fosforilase: aumento
do metabolismo energético no adulto saudável em da glicogenólise e da gluconeogénese; diminui-
situação de jejum como modelo de compreensão ção da secreção da insulina.
dos fenómenos que se passam na criança; é dada Glucagom (resposta rápida em minutos à hi-
ênfase às fontes energéticas de recurso em caso de poglicémia): efeito semelhante à epinefrina,
privação de glucose (mais falíveis no caso da cri- exceptuando no que se refere ao efeito catabó-
ança pequena) – triglicéridos, glicogénio, proteínas lico proteico.
e lactato, respectiva conversão hepática e utiliza- Cortisol (resposta lenta à hipoglicémia através
ção tecidual periférica. da ACTH): inibição da utilização periférica da
Cabe referir, a propósito, as principais acções glucose; aumento da gluconeogénese, da glico-

FONTE ENERGÉTICA CONVERSÃO UTILIZAÇÃO

– Tecido adiposo – Coração, rim, músculo


– Triglicéridos 120g – Encéfalo

Ciclo de Krebs
AGL/FFA 40g cetogénese – corpos cetónicos 60g
Fígado Ciclo do
Cori
glicerol 16g gluconeogénese lactato
36g
aminoácidos 75g glicogenólise +
piruvato
Fígado ↑
glucose 180g 36g glucose

(elementos do sangue)

Proteínas musculares SNC 144g

Abreviaturas: AGL/FFA – ácidos gordos livres ou free fatty acids;


SNC – sistema nervoso central; E/L – eritrócitos/leucócitos; g – gramas Adaptado de Kliegman RM, 2011

FIG. 1
Fontes energéticas de recurso na ausência de suprimento de glucose (modelo de jejum no adulto). Relação quantitativa ponderal
em gramas. Na criança de 10 kg o glicogénio hepático ◊ ~20-25 gramas (consultar texto).
CAPÍTULO 184 Hipoglicémia 887

genólise, da lipólise e do catabolismo proteico. Classificação


GH (hormona do crescimento): resposta lenta
à hipoglicémia; inibição da utilização periféri- Tendo como base os aspectos essenciais da homeos-
ca da glucose; aumento da sensibilidade das tase da glucose e da fisiopatologia, será mais com-
células β dos ilhéus à glucose, com conse- preensível a classificação das diversas entidades
quente efeito na regulação da secreção da in- clínicas que cursam com hipoglicémia. Como com-
sulina. plemento do Quadro 1 sistematizam-se as situações
A dinâmica de todo este processo, pode, ser de hiperinsulinismo e de défice de hormonas do
traduzida com os seguintes eventos: seguinte modo:
• Em situações de normalidade a diminuição 1) Hiperinsulinismo congénito (defeitos gené-
do nível de glucose no sangue conduz à supressão ticos vários a que correspondem diversas entida-
da secreção de insulina e aumento de secreção das des clínicas):
chamadas hormonas de contra-regulação (GH ou – anomalia do canal de potássio dependente
hormona de crescimento, glucagom e epinefrina). do ATP que regula a secreção de insulina
Como consequência verifica-se: a) libertação de (K/ATP, a 1ª causa mais frequente);
aminoácidos (sobretudo alanina) para a neogluco- – GDH-HI (por mutações em genes da
génese a partir do músculo; b) libertação de desidrogenase glutamato – a 2ª causa mais
triglicéridos a partir do tecido adiposo, o que se frequente);
traduz em suprimento de FFA para cetogénese – mutações de genes da glucocinase;
hepática. – SCHAD, em relação com a desidrogenase da
• Os FFA e os corpos cetónicos servem como coenzima A hidroxiacil de cadeia curta;
alternativas energéticas. Por outro, verificam-se – transportador 1 do monocarboxilato;
em simultâneo processos de glicogenólise hepáti- – defeitos da glicosilação;
ca e de gluconeogénese como fonte de glucose – síndroma de Beckwith-Wiedemann, situação
para a circulação sanguínea. clínica (caracterizada por gigantismo/ ma-
• A falência no que respeita à secreção aumen- crossomia fetal, macroglossia, onfalocele e
tada das hormonas de contra-regulação pode visceromegália). (ver abreviaturas)
levar a diminuição, em grau variável, da concen- 2) Hiperinsulinismo adquirido:
tração de glucose sanguínea. – adenoma das células beta dos ilhéus: situa-
• Outro tipo de falência neste mecanismo com- ção rara que surge em crianças maiores
plexo da homeostase da glucose diz respeito à traduzida por crescimento linear acelerado,
falência da supressão de secreção de insulina obesidade e polifagia (valores verificados de
como resposta à diminuição da concentração de insulinémia > 5µU/mL durante episódio de
glucose na circulação sanguínea, (hiperinsulinis- hipoglicémia);
mo). – situação mediada por anticorpos anti-insuli-
Esta desregulação da secreção da insulina na e anti-receptor de insulina (excluindo-se
pode ser temporária, como acontece no recém- administração de insulina exógena e verifi-
nascido de mãe diabética (Capítulo 333) e em cando-se diminuição do teor sérico de pépti-
situações de estresse perinatal/sofrimento fetal. do C;
O hiperinsulinismo pode também resultar de – administração exógena de insulina (acidental
defeitos genéticos, explicando a maioria dos ou inadvertida) (por ex. síndroma de Mun-
casos de hipoglicémia recorrente no RN. chausen por procuração); nesta situação ver-
Na criança mais velha, embora possam mani- ifica-se elevação da insulinémia (> 100µU/
festar-se situações resultantes de defeitos genéti- mL) associada a péptido C baixo ou indetec-
cos, é mais frequente o hiperinsulinismo adquiri- tável.
do relacionado sobretudo com insulinoma(tumor 3) Défices hormonais
dos ilhéus pancreáticos), acção medicamentosa, – a deficiência de GH e de cortisol constituem
(acidental ou não), e processo mediado por anti- as alterações hormonais da contra-regulação
corpos anti-insulina. mais frequentemente associadas a hipogli-
888 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Hipoglicémia em idade pediátrica

Hiperinsulinismo
Hiperinsulinémia persistente da infância (anteriormente-nesidioblastose); Recém nascido de mãe diabética; Doença
hemolítica do recém-nascido anti-D; Adenoma de células beta(insulinoma); Síndroma de Beckwith- Wiedemann;
Anticorpos anti-insulina e anti-receptor de insulina (ver texto e capítulo 358).
Défice de hormonas de contra-regulação
Défice isolado da hormona de crescimento; Pan-hipopituitarismo; Défice de ACTH; Doença de Addison; Défice de
glucagom; Défice de epinefrina.
Défice de substracto
Prematuridade; Restrição de crescimento intra-uterino; Hipoglicémia cetótica; Leucinose.
Causas relacionadas com fármacos ou intoxicações
Agentes hipoglicemiantes orais; Álcool; Salicilatos ; Propranolol; Ácido valpróico; Pentamidina; Quinino; Trimetoprim-
sulfametoxazol; Insulina.
Doenças hereditárias do metabolismo
– Defeitos da glicogenólise (glucose-6-fosfatase, amilo-1,6- glucosidase, fosforilase hepática, sintetase do glicogénio)
– Defeitos da gluconeogénese (frutose-1,6-difosfatase, piruvato-carboxilase, fosfenolpiruvato carboxicinase)
– Defeitos da oxidação de ácidos gordos (desidrogenase acil-CoA dos ácidos gordos de cadeias curta, média ou longa, car-
nitina, palmitoil-transferase da carnitina)
– Outros defeitos enzimáticos (galactosémia, intolerância hereditária à frutose,acidémia propiónica, acidémia metil-
malónica, tirosinose, acidúria glutárica). Miscelânea (disfunção hepática, síndroma de Reye,hepatite, síndroma de hiper-
viscosidade sanguínea, má-nutrição/marasmo, sépsis, choque, neoplasias malignas com secreção de IGF ou insulin-like
growth factor, insuficiência cardíaca, hipoglicémia reactiva relacionada com síndroma dumping, etc.).

cémia; as deficiências congénitas da biossín- Em função do contexto clínico, a confirmação


tese das catecolaminas são causas raras de da hipoglicémia num primeiro episódio obrigará a
hipoglicémia. colheita concomitante de amostra de urina e even-
tualmente doutras amostras de sangue para
Uma referência especial à chamada hipoglicé- esclarecimento etiológico. As determinações a
mia reactiva (surgida em geral 2-3 horas após efectuar variam, pois, com a história clínica e a ida-
refeição) associada à síndroma dumping como de da criança.
consequência de status pós cirurgia gástrica: o Nas situações mais complexas (a avaliar em
esvaziamento gástrico rápido origina elevação centro especializado) devem, com prioridade, ser
rápida da glicémia com estimulação secundária feitas as seguintes determinações em amostra de
excessiva da secreção de insulina. sangue: insulinémia, IGFBP-1 (insulin like growth
factor binding/protein-1), GH (hormona de cresci-
Manifestações clínicas e exames mento), cortisol, FFA, β-hidroxibutirato e lactato.
complementares Na urina devem ser pesquisados os corpos
cetónicos e as substâncias redutoras. A verificação
As manifestações clínicas de hipoglicémia, ines- de hipoglicémia sem cetonúria sugere hiperinsulin-
pecíficas, são explicadas, quer pela glicopénia ce- ismo ou defeito da oxidação dos ácidos gordos.
rebral (alterações do comportamento, défice de O diagnóstico de hiperinsulinismo, conforme
concentração, estado confusional, sonolência, con- foi referido, é confirmado pela verificação de con-
vulsões, fome, ataxia, olhar fixo, convulsões, di- centração sérica de insulina superior a 5µU/mL
plopia, disartria, coma, etc.), quer pela libertação durante um episódio de hipoglicémia, e de
de epinefrina (taquicárdia, perspiração, palidez, diminuição de IGFBP-1*.(nota de rodapé na pági-
tremores, episódios de apneia, ansiedade, hipoto- na seguinte)
nia, náseas, vómitos, etc.). Nas situações de hiperinsulinismo a relação
CAPÍTULO 184 Hipoglicémia 889

insulinémia (μU/ml)/glucose (mg/dl) é habitual- BIBLIOGRAFIA


mente > 0,4. Nos casos de hipoglicémia não Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
hiperinsulinémica, o valor da insulinémia é inferi- Dunger DB, Sperling MA, Acerini CL, et al. European Society
or a 5 μU/ml. for Paediatric Endocrinology/Lawson Wilkins Paediatric
A ausência de cetonémia e de cetonúria, coin- Endocrine Society Consensus statement on diabetic
cidindo com a hipoglicémia, permite distinguir as ketoacidosis in children and adolescents. Pediatrics 2004;
situações de hiperinsulinismo daquelas relacionadas 113: e133 - e140
com défice de secreção das hormonas de contra-re- Garfunkel LC, Kakzorowski J, Christy C (eds). Pediatric
gulação: neste último caso verifica-se cetonémia e Clinical Advisor. St Louis: Mosby, 2002
cetonúria, assim como elevação de FFA. Nalguns Hochberg Z. Practical Algorithms in Pediatric Endocrinology.
centros o diagnóstico de hiperinsulismo focal é feito Basel: Karger, 2007
por tomografia com emissão de positrões. Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
Tratamento de emergência 2011
Koletzko B. Pediatric Nutrition in Practice. Basel: Karger, 2008
A actuação de emergência em situações de hipo- McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
glicémia consiste na administração de glucose por Pediatrics. Madrid: Panamericana, 2010
via endovenosa (2 mL/kg de dextrose em água a Melis D, Parenti G, Della CR, et al. Brain damage in glycogen
10%). Após o bolus inicial de glucose, deve pro- storage disease type I. J Pediatr 2004; 144: 637-642
ceder-se à administração de soluto de dextrose em Otonkoski T, Nanto-Salonen K, Seppanen M, et al. Non inva-
perfusão lenta ao ritmo de 6-8 mg/kg/minuto, e sive diagnosis of focal hyperinsulinism of infancy with 18F-
de 12-15 mg/kg/minuto em caso de hiperinsulin- DOPA positron emission tomography. Diabetes 2006; 55:
ismo. 13-18
Em certas formas hiperinsulinismo poderá Randell TL. Diagnosis and management of hypoglicaemia
haver necessidade de doses superiores de glucose, beyond the neonatal period. Paediatrics and Child Health
e de administração de diazóxido oral (10- 2013; 23: 152-157
25mg/kg/dia) em 4 doses diárias, e/ou análogo Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
da somatostatina (octreotido) por via subcutânea AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
cada 6-12 horas (20-50 μg). Medical, 2011
Nos casos de insuficiência supra-renal haverá Sperling MA, Menon RK. Differential diagnosis and manage-
que acrescentar doses “de estresse” de glucocor- ment of neonatal hypoglicemia. Pediatr Clin North Am
ticóides. 2004; 51: 703-723
As situações de hipoglicémia refractária, se-
cundárias a adenomas, têm indicação cirúrgica
(pancreatectomia parcial). No contexto de dia-
betes mellitus mal controlada e crises de hipo-
glicémia acidental (<60 mg/dL) pode empregar-se
como terapêutica de emergência o glucagom:
mini-dose de 0,5 mg im (<20 kg) e 1,0 mg (>20 kg).

* No caso de comprovado estado hiperinsulinémico a administração de


50 µg/kg de glucagom IV ou IM (até máximo de 1 mg) durante a
hipoglicémia (determinação da glicémia imediatamente antes ou ime-
diatamente depois do glucagom) levará a incremento na glicémia em ~
+ 40 mg/dL no pressuposto de que as reservas glicogénicas e as enzi-
mas da glicogenólise estão intactas.
PARTE XXI
Neurologia
892 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

185
É necessário ter em conta que a dor referida à
região frontotemporal pode ter origem nasossi-
nusal, orbitária, na carótida intra ou extracraniana,
em estruturas extracranianas subcutâneas, ou
ainda na articulação temporomaxilar e em múlti-
plas patologias intracranianas supratentoriais.
CEFALEIAS A dor referida à região occipital pode estar rela-
cionada com patologia intracraniana na fossa pos-
José Pedro Vieira terior, ou ter origem na região cervical superior.
Os mecanismos pelos quais ocorre a dor
podem ser a hipertensão intracraniana, por exem-
plo, por uma lesão ocupando espaço, ou uma
Importância do problema anomalia na circulação, reabsorção ou, mais rara-
mente na produção de líquido céfalo-raquidiano
As cefaleias são um problema frequente em idade (LCR). A inflamação e distorção de artérias intra-
pediátrica com repercussões no desempenho esco- cranianas por múltiplas patologias também po-
lar, memória, personalidade, atenção e relação dem originar dor. Igualmente, inflamação ou
social em função da etiologia, frequência e intensi- obstrução à drenagem dos seios perinasais são
dade. causa de cefaleias. O esforço visual associado a
Não é claro a que se deve o sub-reconhecimen- um erro de refracção pode causar uma cefaleia
to deste facto; possivelmente (no caso dos profis- frontal, moderada em relação com um esforço
sionais de saúde) à escassez de literatura médica continuado dos músculos oculares extrínsecos; e a
sobre este tema e (no caso dos familiares da crian- uveíte e o glaucoma são causas importantes de
ça) à ideia estabelecida de que as cefaleias primá- dor retro-ocular.
rias não existem em crianças. O agravamento com a tosse ou com a mudança
As causas mais frequentes, abordadas neste de posição da cabeça (por exemplo quando a
capítulo, são a enxaqueca, factores psicogénicos criança se baixa para apanhar um objecto do chão)
ou estresse, e hipertensão intracraniana. Situações sugerem hipertensão intracraniana (HIC).
mais raras como erros de refracção, estrabsimo, A hipoventilação que acompanha o sono causa
sinusite e má-oclusão dentária também podem uma relativa retenção de CO2 e um aumento cor-
explicar o problema. (Partes XIII, XXVI, XXVII) respondente da pressão intracraniana, razão pela
qual as cefaleias que ocorrem no sono ou estão
Etiopatogénese e semiologia presentes no despertar, aliviando subsequente-
mente, são também sugestivas de HIC.
As estruturas intracranianas sensíveis à dor são: a É bem conhecido que a cefaleia de hipotensão
pele, o tecido subcutâneo, os músculos e artérias intracraniana (mais frequentemente pós-punção
extracranianas, o periósteo, os seios venosos lombar) se inicia na posição de pé e alivia em mi-
durais, (sobretudo o seio cavernoso), as meninges nutos com o decúbito.
da base do crânio, as artérias intracranianas proxi- Uma cefaleia unilateral pode dever-se a enxa-
mais e a porção intracraniana da carótida interna; queca (tópico a analisar adiante); mas a presença
os seios perinasais e estruturas do olho, do ouvi- de uma dor deste tipo com características progres-
do; e ainda os nervos óptico, oculomotores, tri- sivas ou outros sinais de HIC (presente no sono ou
gémeo, glossofaríngeo e primeiras três raízes cer- no despertar, associada a vómitos, ou a certos sin-
vicais. tomas e sinais neurológicos como diplopia e estra-
A tenda do cerebelo demarca, em termos de bismo, ataxia ou sinais focais) devem fazer sus-
enervação sensitiva, as estruturas com dor referi- peitar de uma lesão intracraniana expansiva.
da à região frontotemporal e orbitária (acima da Na criança existem dificuldades particulares
tenda), e a dor referida à região occipital (abaixo relacionadas com a informação anamnéstica tendo
da tenda). em conta o estádio de desenvolvimento cognitivo
CAPÍTULO 185 Cefaleias 893

e a sua capacidade de aquela se exprimir e de uma fase de vasodilatação e possivelmente, de


descrever os sintomas. A localização de uma uma pulsatilidade excessiva que corresponde à
cefaleia é provavelmente mais vaga, nem sempre sensação de “martelar”. Outros estudos sugerem
sendo possível localizar a dor, nem avaliar a sua que a anomalia primária é, não vascular, mas uma
intensidade e tipo com precisão. depressão da actividade cortical com início nas
regiões occipitais e progressão póstero-anterior,
1. Enxaqueca sendo as anomalias de perfusão mais provavel-
mente secundárias. De acordo com uma teoria
Aspectos da epidemiologia e genética mais recente admite-se que o nervo trigémeo tem
Embora a literatura sobre cefaleias em crianças e um conjunto de pequenas fibras não mielinizadas
adolescentes seja escassa, o consenso actual é de que enervam as artérias intracranianas, e que a
que enxaqueca constitui o tipo de cefaleia mais estimulação destas fibras liberta na parede vascu-
frequente (cerca de 75% dos casos). lar vários péptidos vasodilatadores que iniciam
Estudos epidemiológicos apontam uma uma resposta inflamatória na parede vascular.
prevalência de enxaqueca na população de 13 a Tem sido sido sugerido que este sistema trigemi-
18% na idade adulta, de 5 a 10% entre os 6 anos e novascular está num estado de excitabilidade per-
a adolescência, e de 2,5% na idade pré-escolar. Na sistente nas pessoas com enxaqueca com períodos
criança, a frequência é igual em ambos os sexos, de maior activação relacionados com influxos**
mas após a adolescência é maior no sexo feminino sensoriais ou de origem hipotalâmica.
(3/2).
Nalgumas famílias a enxaqueca segue o Manifestações clínicas
padrão mendeliano de transmissão autossómica Com as limitações relacionadas com a capacidade
dominante («enxaqueca hemiplégica familiar») de a criança descrever os sintomas e, talvez, com
com um locus genético identificado (mutações dos as características clínicas intrínsecas da enxaqueca
genes CACNA1A, ATP1A e SCN1A no cromosso- infantil, os respectivos sintomas são muito seme-
ma 19p3, entre outros, com acção sobre o fun- lhantes aos dos adultos. Trata-se de uma cefaleia
cionamento dos canais de cálcio e sódio). intermitente, não progressiva, diurna, habitual-
Com efeito, existe um componente hereditário mente frontal, frontotemporal e retro-ocular, de
nítido que se traduz pela comprovação de ante- intensidade crescente, pulsátil, precedida ou não
cedentes familiares de tal patologia em cerca de de aura* habitualmente visual (por exemplo esco-
80% das pessoas com enxaqueca. tomas ou hemianópsia), acompanhada de náuseas
e, por vezes, de vómitos, palidez e sensação sub-
Fisiopatologia jectiva de «frio». Habitualmente interrompe a
Não há uma compreensão completa dos mecanis- actividade, dura mais de uma hora (geralmente
mos que entram em acção na enxaqueca para pro- não mais de 24 horas), agrava-se com o ruído e a
duzir uma constelação de sintomas e sinais, neu- exposição à luz, e melhora com o repouso e o
rológicos (a aura)*, autonómicos (náuseas e vómi- sono. Algumas crianças reportam uma sensação
tos, palidez) e a própria cefaleia; desconhece-se de desequilíbrio.
também o mecanismo das peculiares relações que O exame neurológico é normal fora das crises.
a enxaqueca tem com o sono e os factores ambien- A cefaleia tende frequentemente a ocorrer por
tais (luz, ruído, estímulos olfactivos). «surtos» separados por intervalos livres que
Muitas pessoas com enxaqueca relatam, podem ser bastante prolongados.
mesmo fora dos períodos de crise, uma sensibili- Em geral verifica-se remissão completa até aos
dade exagerada para uma ou várias modalidades 25 anos em 20-30% dos casos.
de estimulação sensitiva ou sensorial.
As observações clínicas e vários estudos de *Recordam-se as definições de aura: conjunto de sintomas motores,
sensitivo-sensoriais, vegetativos ou psíquicos que marcam o início de
imagem suportam a noção de que há na fase ini- determinado evento. (do latim: aura = sopro); ** e de influxo: modifi-
cial de aura uma vasoconstrição das artérias cação físico-química fisiológica que se propaga ao longo de um nervo
intracranianas e hipoperfusão cerebral, seguida de sob efeito de uma excitação.
894 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Diagnóstico garantia de que a criança não apresenta uma das


Se o quadro clínico for típico (incluindo a compro- contra-indicações para o uso de propranolol (asma,
vação de antecedentes familiares) e o exame neu- diabetes, insuficiência cardíaca, bloqueio auriculo-
rológico normal, não estão indicados exames com- -ventricular ou outra disritmia).
plementares. Deve realizar-se, contudo, um exame
de imagem se a história clínica tiver características 2. Enxaqueca complicada
atípicas, incluindo a presença de aura persistente
ou de cefaleia unilateral sempre do mesmo lado, Além da aura típica de enxaqueca, podem ocorrer
ou de qualquer anomalia no exame neurológico. auras neurológicas mais complexas nas síndromas
designadas por enxaqueca complicada; a enxa-
Tratamento queca hemiplégica e a enxaqueca da artéria basi-
O tratamento da enxaqueca (que implica um lar são as mais reconhecidas neste grupo.
esclarecimento dos pais e crianças sobre o carácter A hemiparésia, geralmente associada a sin-
benigno da situação) resume-se, muitas vezes, a tomatologia sensitiva proeminente consistindo
aconselhar o repouso e, ocasionalmente, o uso de em parestesias ou hipostesia, e afectando unila-
analgésicos (paracetamol, ibuprofeno, napro- teralmente os membros e a face, segue-se a uma
xeno). cefaleia pulsátil habitualmente contralateral. Por
A terapêutica oral necessita de ser precoce para vezes a hemiparésia prolonga-se para além da
ser eficaz; tem, contudo, grandes limitações se a cefaleia, mas regride sempre completamente.
criança tiver náusea ou se vomitar. É nestes casos Esta situação, embora benigna, necessita sem-
por vezes necessário recorrer a terapêutica rectal pre duma avaliação complementar nomeada-
com analgésicos e, mais raramente, com anti-emé- mente por RMN para excluir diagnósticos alterna-
ticos (domperidona, metoclopramida). tivos como doença cardiovascular embolígena,
No adolescente põem-se problemas terapêuti- encefalopatia mitocondrial, malformação arterio-
cos por vezes mais complexos; com efeito, há que venosa ou vasculite cerebral.
considerar ocasionalmente o uso excessivo de Na enxaqueca da artéria basilar, a aura é
analgésicos como um factor de agravamento e até atribuível a disfunção neurológica no território da
de cronicidade; por outro lado, a cefaleia pode ser artéria basilar (defeitos bilaterais dos campos
mais intensa e frequente ou prolongada. Em geral visuais, vertigem, diplopia, hemi ou tetraparésia,
podem ser usados os mesmos recursos terapêuti- hemi ou tetra parestesias e ataxia). A estes sin-
cos (analgésicos, anti-eméticos). Há uma escassa tomas segue-se uma cefaleia occipital com náuse-
literatura sobre o uso de triptanos, nomeadamente as e vómitos.
sumatriptano oral ou nasal em adolescentes (um O diagnóstico diferencial inclui epilepsia occi-
agonista dos receptores da serotonina, os recep- pital, doença desmielinizante e trauma com dis-
tores 5HT). Esta terapêutica deve ser reservada secção da artéria vertebral. Raramente pode ocorrer
para casos especiais e no contexto de seguimento estado confusional. É sempre necessário neste con-
em centro especializado. texto clínico uma avaliação por RMN e estudos adi-
A terapêutica profiláctica poderá ser necessária cionais de acordo com o quadro clínico, nomeada-
quando a cefaleia é excessivamente frequente mente EEG se houver suspeita clínica de epilepsia.
(mais de 2 ou 3 episódios por mês). É muito impor- Trata-se, pois, de situações que, pela sintomatologia,
tante fazer um “diário” durante um período de, têm indicação para envio a centros especializados.
pelo menos, 1 a 2 meses para se ter uma ideia cor-
recta da frequência das cefaleias, já que é muito 3. Equivalentes de enxaqueca
subjectiva a resposta à pergunta sobre a sua fre-
quência numa primeira consulta. Os pais tendem Algumas situações mal definidas são chamadas
nitidamente a exagerar ou minimizar a frequência «equivalentes de enxaqueca»: vertigem paroxísti-
das crises. Os medicamentos profilácticos de enxa- ca benigna, vómitos cíclicos e o torcicolo paro-
queca mais frequentemente usados em Pediatria xístico benigno. São abordadas as duas primeiras
são a flunarizina e o propranolol. É necessário ter a alterações.
CAPÍTULO 185 Cefaleias 895

Vertigem paroxística benigna 4. Cefaleias de tensão


A chamada vertigem paroxística benigna é uma
situação recorrente em crianças dos 2 aos 6 anos, Definição
traduzida habitualmente pelo seguinte quadro: Considera-se cefaleia de tensão a que surge asso-
num período breve, de alguns segundos a pou- ciada a situações de conflito ou estresse emocional.
cos minutos, a criança refere subitamente dese-
quilíbrio e, quando tem capacidade verbal para Manifestações clínicas
descrever, refere uma sensação vertiginosa que A literatura mais recente reconhece que a chama-
ocorre na ausência de qualquer alteração do esta- da cefaleia de tensão, quer de tipo episódico, quer
do de consciência, podendo acompanhar-se de crónica, existe, de facto, em crianças e adoles-
sinais autonómicos como palidez ou vómitos. centes com uma frequência que não é conhecida.
Desconhece-se a etiopatogénese deste quadro Pode tratar-se de uma dor, de tipo aperto,
clínico, sendo que o exame neurológico é normal bilateral difusa, com intensidade moderada, diur-
e os episódios são habitualmente raros e final- na, vespertina, não interrompendo habitualmente
mente extinguem-se. É comum haver uma a actividade. Pode acompanhar-se de mialgia cer-
história familiar de enxaqueca e, mais tarde, vical posterior. Está em geral associada a uma per-
estas crianças terem um verdadeiro quadro de sonalidade patológica onde predominam traços
enxaqueca. ansiosos, fóbicos, obsessivos ou de tipo depressi-
Se os episódios forem frequentes, a terapêutica vo. Em mais de 50% dos doentes verifica-se a
com difenidramina pode ser eficaz. ocorrência simultânea de enxaqueca.

Vómitos cíclicos Diagnóstico


É bem conhecida em Pediatria a situação deno- A normalidade do exame neurológico e a história do
minada “vómitos cíclicos”. Crianças saudáveis, tipo de cefaleias associada às características psicopa-
por vezes com uma periodicidade de 2 a 4 sem- tológicas permitem em geral o diagnóstico; contudo,
anas, têm durante algumas horas (habitualmente não é raro que seja necessário realizar exames de
até 1 a 2 dias) vómitos incoercíveis com uma vaga imagem devido à marcada tendência para a cefaleia
dor abdominal periumbilical (embora a dor se tornar recorrente ou mesmo crónica. Excluídas,
abdominal não seja proeminente e possa mesmo com tais exames, causas orgânicas torna-se, por
estar ausente). Algumas crianças permanecem vezes, necessário estabelecer um plano terapêutico
deitadas, com alguma prostração e fotofobia; que pode passar por intervenção psiquiátrica.
outras referem também uma situação mal defini-
da de vertigem. O quadro regride espontanea- 5. Cefaleias de hipertensão
mente para se repetir algumas semanas mais intracraniana
tarde. Nos intervalos livres a criança está assin-
tomática. Não há uma psicopatologia significati- As cefaleias de hipertensão intracraniana podem
va associada. Algumas crianças tendem a evoluir ser devidas a uma multiplicidade de lesões que
mais tarde para uma situação, também recor- ocupam espaço. Na criança, a situação mais fre-
rente, sugestiva de enxaqueca no contexto de quente é a dos tumores (a neoplasia mais frequen-
história familiar com idêntico quadro. te em crianças após as leucemias). Os tumores
A situação clínica caracterizada por vómitos cerebrais nas crianças são mais frequentes na fossa
que surgem “ciclicamente” obriga a uma cuidadosa posterior que em localização supratentorial. Os
observação implicando o diagnóstico diferencial tumores da fossa posterior mais frequentes são o
com quadros clínicos específicos tais como volvo astrocitoma do cerebelo (Figura 1), o meduloblas-
gástrico, má-rotação intestinal e, raramente, doença toma, o ependimoma e o glioma da protuberância
metabólica com expressão intermitente (por exem- (Capítulo 134).
plo defeito da beta-oxidação dos ácidos gordos,
acidúria orgânica ou doença do ciclo da ureia). Manifestações clínicas
(Capítulo 103) Os tumores, independentemente do grau de mali-
896 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Diagnóstico
A suspeita de hipertensão intracraniana implica a
referência atempada da criança a um centro espe-
cializado de neurocirurgia.
O diagnóstico é facilmente acessível aos exa-
mes de imagem (TAC e RMN). Para tumores como
o meduloblastoma, com grau de malignidade
maior e tendência para disseminação meníngea, é
necessário proceder, na avaliação inicial, ao estudo
imagiológico por RMN de todo o neuroeixo (cere-
bral e medular).

Tratamento
A terapêutica destas lesões passa, em geral, por
intervenção cirúrgica inicial. A terapêutica cirúrgi-
FIG. 1
ca pode incluir, além da ressecção da lesão tu-
TAC – Astrocitoma do cerebelo: criança de 9 anos com cefaleias moral, um procedimento terapêutico para a hidro-
com algumas semanas de evolução; as cefaleias tinham um cefalia secundária (por exemplo uma drenagem
carácter progressivo e ocorriam no despertar, com vómitos ventricular externa). O prognóstico depende,
ocasionais (o nódulo mural com captação de contraste,
entre outros factores, de se ter obtido, ou não,
assinalado por uma seta, sugere este diagnóstico)
ressecção completa da lesão.

gnidade e da rapidez de crescimento, produzem 6. Hipertensão intracraniana idiopática


uma cefaleia progressiva que tende a ser diária.
Nas crianças, não estando as suturas cranianas Definição
completamente encerradas, uma situação de A hipertensão intracraniana idiopática (ou
hipertensão intracraniana pode levar a diastase benigna/pseudo-tumor cerebri) é devida a um
das referidas suturas capaz de transitoriamente desequilíbrio entre os mecanismos de formação e
aliviar os sintomas. A cefaleia tem por vezes um de reabsorção do LCR, estando provavelmente
agravamento nocturno, acorda a criança ou está implicado um defeito na reabsorção.
presente no despertar, aliviando ao longo da
manhã ou com um episódio de vómitos. Com Manifestações clínicas
efeito, como foi já referido, durante o sono a O quadro clínico típico é o de uma adolescente
hipoventilação aumenta a pressão de CO2 a qual habitualmente obesa com um quadro mais ou
conduz a vasodilatação e a aumento da volémia menos arrastado de cefaleias com características
intracraniana. Quando a criança de manhã vomi- clínicas de HIC. Muitos doentes referem que a
ta, e ou se verifica hiperventilação, há conse- cefaleia é occipital, irradia para a nuca e ouvem
quente diminuição da pressão de CO2, aliviando a um ruído intracraniano. O exame neurológico
cefaleia. Algumas crianças manifestam irritabi- pode mostrar somente estase papilar ou, adi-
lidade ou mesmo anomalias de comportamento cionalmente, paralisia do VIº par uni ou bilateral.
mais complexas. Mais tarde, poderão surgir diplo-
pia, estrabismo e ataxia do tronco ou hemiataxia. Diagnóstico diferencial
Nos casos de cefaleia occipital, o risco de tu- Só se pode afirmar o diagnóstico de HIC idiopáti-
mor é muito significativo. ca mediante a realização de punção lombar com
O exame neurológico pode mostrar, além das medição, em condições adequadas, da pressão
alterações referidas, estase papilar, um dos com- intracraniana e após a exclusão de trombose
ponentes da tríade clássica apontando para venosa intracraniana, por RM e angio RM (Figura
hipertensão intracraniana (cefaleia, vómitos e a 2). As causas secundárias, que deverão ser excluí-
referida estase papilar). das, são sintetizadas no Quadro 1.
CAPÍTULO 185 Cefaleias 897

em conta, com esta última terapêutica, a maior


probabilidade de recidiva. É necessário ter presente
que a perda de visão pode ocorrer rapidamente
numa situação de HIC crónica; por isso é conve-
niente encarar a cirurgia nos casos em que não há
uma resposta pronta às terapêuticas referidas. A
cirurgia mais recomendada actualmente é a fenes-
tração da baínha dos nervos ópticos, embora esteja
também a ser usada a derivação lomboperitoneal.
FIG. 2
AGRADECIMENTOS
Angio-RMN – Trombose séptica do seio lateral direito (na ima- À Dr.ª Leonor Bastos Gomes (Neurorradiologia – Hospital de
gem de angio-RM a seta branca assinala a ausência de visuali- Dona Estefânia) pela cedência das fotos das Figuras 1 e 2.
zação do seio lateral direito, sendo visíveis os seios longitudinal
superior e o seio lateral direito; na imagem à direita estão
BIBLIOGRAFIA
assinaladas a veia jugular com «vazio» de sinal indicativo de
Bigal ME, Lipton RB, Winner P, et al. Migraine in adolescents:
fluxo, à esquerda, e um hipersinal devido a trombose à direita).
Esta criança tinha uma mastoidite crónica e a trombose do seio association with socioeconomic status and family history.
lateral é uma complicação desta situação (trombose séptica): o Neurology 2007; 69:16-25
quadro clínico consistiu em cefaleias progressivas no decurso de Blume HK, Szperka CL. Secondary cases of headache in chil-
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898 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Aspectos semiológicos

186 A ataxia resulta duma disfunção do cerebelo ou


das suas conexões. Com efeito, o cerebelo coorde-
na os movimentos e os mecanismos de ajustamen-
to postural e da marcha.
ATAXIA Para a compreensão dos problemas clínicos
nas disfunções cerebelosas a analisar neste capítu-
José Pedro Vieira lo, será importante uma abordagem prévia de
aspectos essenciais da fisiologia e da semiologia.
As lesões cerebelosas produzem um quadro
clínico característico:
Definições e importância do problema a) incoordenação e tremor chamado intencio-
nal ou cinético; os movimentos de aproxi-
A ataxia define-se como perturbação da coorde- mação, por exemplo nas provas dedo-nariz
nação dos movimentos voluntários. Pode manifes- e calcanhar-joelho, são afectados por um
tar-se na posição de pé (estática), durante a marcha tremor (ou perturbação da amplitude dos
(locomotora), ou durante a execução de um movi- movimentos) que se torna mais amplo com
mento (cinética). Trata-se de um problema relativa- a aproximação do alvo (dismetria); os movi-
mente comum em idade pediátrica; na sua forma de mentos de perseguição ocular são afectados
manifestação aguda não é raro que necessite de uma por oscilações lentas e oscilações rápidas em
abordagem diagnóstica, pelo menos inicial, pelo vez de se realizarem de uma maneira gra-
pediatra ou pelo clínico geral no serviço de urgência. dual e uniforme impedindo a manutenção
Tratando-se dum tipo de alteração dos movi- dos olhos numa posição excêntrica (nistag-
mentos, importa, por razões didácticas, definir mo); o discurso é perturbado por uma perda
sucintamente outros tipos não abordados em capí- de nitidez na articulação e por uma en-
tulos específicos, mas integrando diversos proble- toação variável que decompoe as palavras
mas clínicos: nos seus componentes silábicos: disartria
– coreia, como situação caracterizada por movi- cerebelosa que traduz perturbação motora
mentos involuntários e irregulares, umas vezes dos órgãos de fonação;
rápidos, outras vezes lentos, acompanhada por b) desequilíbrio, sem direcção predominante;
hipotonia muscular e perturbação da coordenação o encerramento dos olhos pode agravá-lo
(por exemplo coreia de Sydenham, coreia de ligeiramente mas não se observa um ver-
Huntington); dadeiro sinal de Romberg como nas lesões
– atetose, como movimentos involuntários, vestibulares ou cordonais posteriores; a
lentos e ondulantes, predominantes nas extremi- marcha tem uma base larga e os passos são
dades; tais movimentos são amplificados por irregulares na direcção e na amplitude;
emoções ou excitações, atenuados com o repouso c) hipotonia, mais notória nas lesões agudas,
e desaparecem com o sono; estando os reflexos osteotendinosos preser-
– tremor, como sucessão de oscilações rítmicas vados; nas lesões crónicas (degenerativas ou
involuntárias que agitam uma parte do corpo ou o outras), a hipotonia é menor ou pode não se
corpo inteiro; podem ser contínuas ou intermi- verificar.
tentes, rápidas ou lentas, discretas ou acentuadas; Ou seja, a ataxia apresenta diversas expressões
– tique, como movimento anormal intermi- semiológicas tais como, disartria, dismetria, tremor
tente, súbito e involuntário, que resulta da con- intencional, nistagmo e ainda adiadococinésia (esta
tracção de um ou mais músculos; desaparece última traduzindo impossibilidade de execução
durante o sono e pode ser controlado temporaria- rápida de movimentos alternantes como pronação-
mente pela vontade; o blefarotique ou tique locali- supinação). De acentuar que as marchas peculiares
zado nas pálpebras constitui um exemplo. das miopatias, neuropatias e doenças vestibulares
CAPÍTULO 186 Ataxia 899

não constituem ataxias. Neste capítulo são consi- terísticas descritas deve determinar, após a avalia-
derados, numa perspectiva clínica, três tipos de ção inicial, um período de observação em centro
ataxia: aguda, recorrente e crónica. especializado e quase sempre (possivelmente com
a excepção da ataxia associada a varicela, em que
1. Ataxia aguda o diagnóstico é óbvio) a realização de um exame
de imagem: pela ressonância magnética podem,
A ataxia aguda pode, por vezes, constituir um por vezes, observar-se sinais de lesões cerebelosas
problema complexo de diagnóstico diferencial. hiperintensas. A literatura não é consensual sobre
Noutras circunstâncias, pelo contrário o diagnós- a necessidade de realizar, face a um quadro de
tico etiológico é obvio. São abordadas as situações cerebelite aguda, um exame do LCR (pode encon-
de ataxia aguda mais frequentes, devendo salien- trar-se neste contexto uma ligeira pleiocitose lin-
tar-se as infecções e as intoxicações. focítica, sem outras alterações). A indicação para
realizar punção lombar é essencialmente a de sus-
Ataxia aguda para ou pós-infecciosa peita de um diagnóstico alternativo, como ence-
O quadro de uma criança com uma história de falite (depressão do estado de consciência, altera-
varicela recente, provavelmente ainda com um ção de comportamento ou sinais neurológicos
exantema característico desta situação que, ao focais). (Capítulo 301)
acordar, recusa a posição de pé, manifesta um
claro desequilíbrio e tem tremor, constitui um dos Intoxicação
exemplos mais frequentes de ataxia aguda obser- É bastante frequente, entre crianças dos 1 a 5 anos,
vados pelo médico no serviço de urgência. a intoxicação acidental. Muitos casos envolvem a
A ataxia aguda pós-infecciosa por cerebelite é ingestão de fármacos com um efeito sedativo que
uma situação que parece ser devida a invasão também causam ataxia e nistagmo (tranquilizan-
directa de um agente infeccioso ou a uma respos- tes, antidepressivos, antiepilépticos, anti-histamí-
ta inflamatória mediada imunologicamente após nicos, antitússicos). A ingestão intencional (mas
uma infecção. oculta) de medicamentos deste tipo, ou das
Agentes infecciosos mais frequentemente im- chamadas drogas de uso recreativo ou de álcool,
plicados são: vírus varicela-zoster, Mycoplasma, o são uma possibilidade a considerar em adoles-
vírus de Epstein-Barr, o citomegalovírus e enterovírus. centes. Nem sempre o rastreio laboratorial é posi-
Deve ter-se em conta que em cerca de 30-50% dos tivo e, nestes casos, o diagnóstico poderá depen-
casos não é identificável uma infecção associada ao der da evolução clínica ou da exclusão de diag-
quadro de ataxia, ou antecedendo-o. O quadro nósticos alternativos. (Capítulos 39 e 44)
clínico típico é o de uma criança entre os 2 e os 7
anos, que no decurso de uma doença exantemáti- Tumores da fossa posterior
ca ou outra doença infecciosa, ou cerca de 1 a 2 Uma criança com um tumor cerebral da fossa pos-
semanas depois, acorda, verificando-se ataxia que terior pode recorrer ao serviço de urgência com
é habitualmente mais notória de início. A ataxia uma história recente de ataxia (mais prolongada,
pode ser tão marcada que não permite a posição semanas ou mesmo meses, eventualmente asso-
sentada e determina um tremor cefálico. Podem ciada a cefaleias e ou a vómitos). A ataxia não tem
também coexistir nistagmo, disartria (existem o carácter agudo descrito para a cerebelite e a
raras descrições de mutismo), tremor intencional e história terá os elementos sugestivos de hiperten-
dismetria nos 4 membros, simetricamente, com são intracraniana (cefaleias nocturnas que acor-
reflexos mantidos e com uma hipotonia ligeira dam o doente e no despertar, vómitos matinais
global. Não se verifica depressão do estado de que aliviam a cefaleia). O exame pode revelar uma
consciência, nem alteração major de comporta- ataxia de predomínio axial ou hemiataxia, even-
mento. A recuperação começa habitualmente após tualmente com sinais de compromisso de pares
1 semana e é em geral completa, embora possa ser cranianos (mais frequentemente o VIº e o VIIº
prolongada. pares); e, na fundoscopia observar-se-á estase
Uma história de ataxia aguda com as carac- papilar. Mais frequentes neste contexto são o as-
900 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

trocitoma, o meduloblastoma, o ependimoma e o


glioma da protuberância.
Os exames de imagem (TAC ou RMN) per-
mitem confirmar o diagnóstico. (Figura 1)

«Ataxia» como sintoma de conversão


Perturbação do equilíbrio e da marcha não rara-
mente podem surgir como sintomas de conversão
em adolescentes. Nestes casos a marcha não tem
uma base larga. A posição de “sentado” não causa
qualquer dificuldade, mas a “de pé” manifesta-se
por desequilíbrio, frequentemente espectacular;
não se observam outras anomalias no exame neu-
rológico.
FIG. 1
Pseudo-ataxia epiléptica Exame de imagem (TAC) – Glioma da protuberância. Uma
Raramente uma criança com epilepsia de ausên- volumosa lesão assinalada na figura causa hidrocefalia por
cias ainda não diagnosticada, ou com certos tipos obstrução do IVº ventrículo. A história incluia cefaleias,
vómitos, ataxia com um envolvimento do tronco e dos
de epilepsia parcial refractária, ou ainda com epi-
membros, e diplopia (por parésia do VIº par)
lepsia criptogénica, como a síndroma de Lennox-
-Gastaut, pode apresentar-se com um quadro
clínico de status epiléptico não convulsivo: flutu- Ataxia pós-traumática
ação do estado de consciência, períodos sem con- Em crianças, o sintoma pós-traumático mais fre-
tacto visual ou auditivo. Existe, contudo, possibi- quente é a ataxia. A ataxia pós-traumática é habi-
lidade de realizar tarefas motoras de modo tualmente só axial, determinando um desequi-
automático e, eventualmente, andar com algum líbrio. Provavelmente deve-se a uma perturbação
desequilíbrio. Poderá também haver mioclonias transitória de funcionamento do tronco cerebral, o
palpebrais e discretas clonias dos membros, mul- qual é submetido a trauma durante fenómenos de
tifocais, ou ainda episódios breves de nistagmo rotação e desaceleração contra a tenda do cerebelo.
sugerindo o diagnóstico de epilepsia. Na fase aguda, após um traumatismo, uma
O diagnóstico é confirmado pelo EEG. Estas criança com ataxia deve ser submetida a exame
situações exigem uma terapêutica antiepiléptica de imagem para excluir hemorragia na fossa
urgente, a decidir pelo neurologista pediátrico. posterior. É importante considerar também no
diagnóstico diferencial a chamada concussão
Enxaqueca da artéria basilar vestibular em que o desequilíbrio não é atáxico:
A enxaqueca da artéria basilar, uma forma chamada em geral a criança recusa-se a mobilizar a cabeça,
«complicada» de enxaqueca, frequente na ado- descreve uma sensação de vertigem e pode ter
lescência e no sexo feminino, pode incluir, como sin- vómitos.
tomas iniciais, de «aura», ataxia, nistagmo, ver-
tigem, alterações visuais, parestesias e mesmo tetra- Opsoclónus-mioclónus
parésia, que regridem já após o início de cefaleia Trata-se duma situação rara em que uma criança
occipital pulsátil. O exame neurológico é normal com ataxia aguda, em geral com um importante
após a recuperação e pode haver uma história pre- componente mioclónico, tem associada uma con-
cedente típica de enxaqueca (assim como ante- siderável irritabilidade e uma anomalia oculomo-
cedentes familiares de enxaqueca). Na abordagem tora de tipo opsoclónus (movimentos conjugados,
inicial e na ausência dos referidos dados de história, bruscos e amplos, involuntários dos olhos). Este
poderá ser necessário realizar um exame de quadro clínico de opsoclónus-mioclónus pode ser
imagem (para excluir lesão estrutural da fossa pos- pós-infeccioso ou paraneoplásico (neuroblas-
terior), e EEG para excluir epilepsia occipital. toma); dados recentes identificam-no como uma
CAPÍTULO 186 Ataxia 901

patologia auto-imune do cerebelo. Existe uma Ataxia congénita não progressiva


evolução crónica, frequentemente com flutuações; Neste grupo estão englobadas as ataxias congéni-
nos casos em que a etiopatogenia é paraneoplási- tas devidas a defeitos congénitos do sistema ner-
ca, persiste após o tratamento do tumor. Corti- voso. Existe discordância entre os achados de
coterapia, gamaglobulina endovenosa e benzodia- imagem e o quadro clínico: em geral, prevalece o
zepinas são as terapêuticas utilizadas. défice cognitivo (como sintomatologia associada a
um grave defeito de desenvolvimento do cerebe-
2. Ataxia recorrente lo) sobre os sinais clássicos de ataxia. Muitas
destas crianças são hipotónicas mantendo reflexos
A ataxia recorrente é menos frequente que a ataxia osteotendinosos; algumas têm nistagmo ou estra-
aguda, sendo o diagnóstico etiológico daquela bismo.
muito diferente do anteriormente exposto para a A situação mais caracterizada na literatura é a
ataxia aguda. síndroma de Joubert (hipoplasia congénita do
Embora enxaqueca e epilepsia sejam doenças cerebelo com agenésia vermiana associada a um
recorrentes, a ataxia como manifestação predomi- defeito de desenvolvimento do mesencéfalo, com
nante daquelas não é comum, excepto nos já re- atraso psicomotor, anormal controlo respiratório
feridos status epiléptico não convulsante e na en- central com episódios de hiperventilação, nista-
xaqueca da artéria basilar. gmo e displasia quística renal).
A intoxicação acidental pode também ser recor- A hipoplasia congénita do cerebelo pode ser
rente, importando salientar que a síndroma de uni ou bilateral. Não são conhecidas as causas de
Munchausen «por procuração» é também, em fun- hipoplasia unilateral, sendo de admitir que nal-
ção do contexto clínico e do ambiente em que vive a guns casos se trate de sequela atrófica de lesão
criança, uma causa a considerar. (Capítulo 37) pré-natal (provavelmente vascular ou infecciosa).
As ataxias recorrentes devem-se, sobretudo, a Uma hipoplasia bilateral põe outras questões
doenças metabólicas e genéticas; apenas faremos de diagnóstico diferencial com várias síndromas
referência às seguintes: genéticas e metabólicas (hipoplasia pontocerebe-
– ataxia episódica (tipo 1 e 2) losa, hipoplasia cerebelosa ligada ao cromossoma
– doença de Hartnup X), etc.. De salientar que o quadro de cerebelo
– deficiência de PDHC hipoplásico associado a defeitos de migração neu-
– leucinose (forma aguda intermitente) ronal de tipo polimicrogiria pode encontrar-se na
Recentemente foi descrita e caracterizada infecção congénita por citomegalovírus. (Capítulo
uma encefalopatia genética autossómica recessi- 193)
va (mutação no gene EIFB2a no cromossoma 3) Uma situação de ataxia com evolução subagu-
em que episódios recorrentes de alteração do da implica a procura imediata de uma causa even-
estado de consciência, frequentemente após tualmente tratável, como tumor da fossa posterior.
traumatismos cranianos minor, ou doenças fe-
bris, evoluem progressivamente para um défice Ataxia crónica progressiva
neurológico de tipo atáxico e espástico com uma Perante uma ataxia crónica progressiva é neces-
relativa preservação das funções mentais. O sário pesquisar dados de história familiar (casos
estudo imagiológico pela RMN cerebral permite semelhantes na família sugerindo uma ataxia de
identificar lesões da substância branca com a for- tipo dominante e/ou consanguinidade, e irmãos
mação de quistos relacionáveis com hipomielini- afectados sugerindo uma doença recessiva).
zação. Faz-se referência às seguintes entidades clínicas:
Abetalipoproteinémia
3. Ataxia crónica Uma história de ataxia com início na idade
pré-escolar, arreflexia, nistagmo, precedida de
No diagnóstico de ataxia crónica devem ser con- atraso estaturoponderal e de síndroma de má
sideradas separadamente: ataxia não progressiva absorção com esteatorreia, sugere abetalipoprotei-
e ataxia progressiva. némia. O diagnóstico é confirmado pelo achado
902 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

laboratorial de níveis de colesterol e triglicéridos na, no cromossoma 9. Está actualmente demostra-


baixos, anemia de causa nutricional, e pela ausên- do que a frataxina é uma proteína mitocondrial e
cia de apoliproteína B no plasma. O locus genético que as mutações envolvidas nesta doença causam
foi identificado no cromossoma 4 (gene MTTP: um défice desta proteína nas mitocôndrias e acu-
microsomal triglyceride transfer protein). mulação tóxica de ferro.
A terapêutica parentérica com vitamina E cor- O quadro neurológico é o de ataxia progressi-
rige as anomalias neurológicas na abetalipopro- va que pode ter início entre os 2 e os 16 anos. A
teinémia. disartria é frequente e precoce. São típicos arre-
Ataxia-telangiectasia flexia e pés cavus, respostas plantares extensoras e
A ataxia-telangiectasia é uma doença recessiva hipostesia postural e vibratória. A perda da mar-
determinada por gene localizado no cromossoma cha autónoma ocorre cerca de 15 anos após o iní-
11, envolvido na reparação de lesões do DNA e na cio dos sintomas.
progressão do ciclo de reprodução celular. Diabetes mellitus, cardiomiopatia hipertrófica
Os sinais clínicos precoces são as infecções e escoliose são as complicações não neurológicas
sinopulmonares recorrentes (frequentemente há mais frequentes.
défice de imunoglobulinas, mais frequentemente Não há ainda um tratamento curativo para
IgA associada a subclasses de IgG) e, por vezes, esta situação. O tratamento com antioxidantes
uma anomalia de movimento do tipo coreoatetose como vitamina E e coenzima Q10 poderá retardar a
verificável nos primeiros dois anos de vida. progressão da doença.
A ataxia surge subsequentemente e é progres- Doenças mitocondriais
siva. Na maioria dos doentes vem a desenvolver- Um grupo importante de doenças, com
se uma anomalia dos movimentos oculares expressão neurológica e sistémica que podem ma-
chamada apraxia oculomotora (incapacidade de nifestar-se por ataxia progressiva, é constituído
execução de movimentos voluntários coordena- pelas doenças mitocondriais.
dos apesar de se conservarem as funções muscu- Os tecidos que exprimem clinicamente com
lares e sensoriais). mais frequência um defeito de função mitocon-
As telangiectasias (mais frequentes nas conjun- drial são aqueles que têm um maior consumo
tivas e nos pavilhões auriculares) observam-se energético, nomeadamente o cérebro e o músculo.
após os dois anos. Na adolescência é frequente a As anomalias de função mitocondrial podem
perda da marcha autónoma pelo agravamento da ter repercussão no ADN mitocondrial ou nuclear e
ataxia e por neuropatia axonal progressiva. podem ocorrer “de novo” ou ser herdadas. Devido
Há um risco muito significativo de neoplasia, a um fenómeno chamado heteroplasmia, os vários
sobretudo linfoma e leucemia. tecidos podem ser portadores, no mesmo indiví-
Quase todos os doentes têm níveis elevados de duo, de maior ou menor número de mitocôndrias
alfafetoproteina no soro e, em cerca de 80% dos com mutante, o que condiciona variantes do
casos, verifica-se deficiência de imunoglobulinas. quadro clínico, da gravidade e da expressão nos
O tratamento é apenas paliativo, nomeada- diferentes membros de uma família.
mente das infecções broncopulmonares. Em geral deve suspeitar-se de doença mito-
«Ataxia sem telangiectasia» condrial perante um quadro clínico de doença
Um fenótipo de «ataxia sem telangiectasia e neurológica, de ataxia, demência, neuropatia,
sem imunodeficiência» foi descrito ao longo de miopatia, surdez, baixa estatura, diabetes, car-
vários anos, actualmente com 2 genes identifica- diomiopatia, independentemente dos anteceden-
dos (“ataxia-telangiectasia-like disorder” no cromos- tes familiares (Parte XXXII).
soma 11q21- e “ataxia and oculomotor apraxia” no A ataxia progressiva mais bem caracterizada
cromossoma 9p13). em doenças mitocondriais ocorre nas síndromas
Ataxia de Friedreich de Kearns-Sayre (ataxia, retinopatia pigmentar,
A ataxia de Friedreich é uma ataxia transmiti- surdez, cardiopatia com bloqueio aurículo-ven-
da de modo recessivo; é explicada por uma mu- tricular) e NARP (neuropatia, ataxia, retinopatia
tação com expansão do gene denominado frataxi- pigmentar e surdez).
CAPÍTULO 187 Epilepsia 903

187
Outras ataxias crónicas
Além das situações referidas que frequente-
mente combinam ataxia com sinais piramidais e
demência, várias outras doenças genéticas raras
necessitam de ser consideradas no diagnóstico
diferencial de uma ataxia progressiva infantil.
Citam-se a doença de Nieman-Pick, as gangliosi- EPILEPSIA
doses juvenis (incluindo a doença de Tay-Sachs), a
leucodistrofia metacromática, a doença de Krabbe Ana Isabel Dias
juvenil, a adrenoleucodistrofia ligada ao cromos-
soma X, a doença de Refsum e a xantomatose cere-
brotendinosa.
Ataxias de tipo dominante Definições e importância do problema
Faz-se referência ainda a um grupo de ataxias
com modo de transmissão dominante. O início A epilepsia, a doença neurológica mais frequente
dos sintomas é habitualmente na idade adulta; no mundo, define-se como doença neurológica
mas excepcionalmente pode ocorrer na infância estrutural ou funcional, crónica, caracterizada
ou na adolescência, por vezes com uma expressão pela ocorrência de episódios ou crises (crises epi-
clínica diferente. É o caso da doença de Machado- lépticas). Considera-se crise o distúrbio motor,
Joseph (SCA3: spinocerebellar ataxia type3) e da somato-sensitivo, sensorial, psíquico e/ou da
SCA1 (spinocerebellar ataxia type1). consciência, originado por uma descarga eléctrica
súbita, inapropriada e excessiva na substância cin-
AGRADECIMENTOS zenta cerebral. Importa referir que a crise é um sin-
À Dra. Leonor Bastos Gomes (Neurorradiologista do Hospital toma e não um processo patológico em si; com
de Dona Estefânia) pela cedência da foto da Figura 1. efeito, pode constituir a tradução clínica de
variadíssimas situações de etiologia muito diversa,
BIBLIOGRAFIA sendo a duração e a gravidade da doença determi-
Albin RL. Dominant ataxias and Friedreich ataxia: an update. nadas pela causa subjacente. Ou seja, existem
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terapia durante toda vida.
Salienta-se que, embora a epilepsia possa ser
considerada uma doença crónica extremamente
904 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

grave, interferindo grandemente com o quotidi- escolher qual a medicação mais adequada, impor-
ano, nalguns casos verifica-se remissão espon- ta confirmar se determinado acontecimento pa-
tânea, sendo actualmente tratável na grande roxístico constitui realmente um evento de na-
maioria dos doentes, o que é compatível com uma tureza epiléptica e quais as suas características;
vida praticamente sem limitações. por isso, é fundamental uma completa anamnese
A convulsão, definida como episódio de para correcta descrição do tipo de crise e diagnós-
contracções musculares involuntárias associadas tico diferencial com fenómenos paroxísticos não
ou não a perda de consciência, constitui um dos epilépticos.
exemplos de distúrbio motor atrás referido. As Assim, interessa indagar todos os pormenores,
contracções musculares podem ser mantidas (tipo como as circunstâncias em que ocorreu a crise (no
tónico), ou interrompidas por momentos de rela- sono, na vigília, durante que tipo de actividade,
xamento de duração variável (tipo clónico). Sa- existência de estímulos luminosos ou outros pos-
lienta-se que em cerca de 2/3 dos casos, tais mani- síveis factores precipitantes); sintomas iniciais
festações não são de tipo epiléptico (isto é, não (aura); sinais de focalização e lateralização, desvio
resultam de alteração estrutural ou funcional do dos olhos, movimentos predominantes de uma
SNC); efectivamente, poderão resultar de alte- parte do corpo; se foi generalizada de início ou no
rações somáticas extra-SNC, como febre, infecção, final; qual o tipo de movimentos; se havia hipo ou
síncope, traumatismo craniano, hipóxia, toxinas, hipertonia; se existiu ou não alteração da con-
arritmia cardíaca, etc.. sciência; duração; existência de um período pós-
Outros eventos como “espasmos do choro” ou crítico; se existe mais de um tipo de crises.
pausa expiratória após choro e RGE podem origi- Importa obter, se possível, a descrição do próprio
nar fenómenos motores simulando convulsões. doente mas geralmente são imprescindíveis as
informações de alguém que presenciou a crise.
Aspectos epidemiológicos É fundamental conhecer os anteceentes pes-
soais: gravidez, parto e período perinatal, existên-
A incidência anual nos países do hemisfério norte cia de traumatismos ou doenças (nomeadamente
é cerca de 50-70 casos por 100.000 habitantes e infecciosas, vasculares) podendo originar lesão do
varia grandemente com a idade; os valores mais sistema nervoso central. É importante também
elevados são encontrados na infância e adolescên- saber se existe história familiar de epilepsia ou
cia, diminuindo no adulto jovem e voltando a outras doenças neurológicas.
aumentar no idoso. Foram identificados cerca de 20 genes rela-
A frequência na população em geral é aproxi- cionados com determinadas síndromas epilépti-
madamente 1%. cas, implicados na função neuronal. São citados
Estima-se que em Portugal existam actual- alguns exemplos: o CLCN2 relacionado com o
mente cerca de 5 doentes por 1.000 habitantes. efluxo neuronal do cloro; o CHRNB2 relacionado
A morte súbita inesperada relacionável com a com um dos receptores da acetilcolina; o SCN2A
doença ocorre em cerca de 1 a 5 doentes por 1.000 com o canal do sódio, o início do influxo rápido
habitantes por ano, particularmente naqueles com do sódio e propagação do potencial de acção; o
crises não controladas. A proporção de casos KCNQ3 relacionado com o canal do potássio, etc..
refractários ao tratamento é ~10-20%. O exame objectivo contribui para caracterizar
a situação, destacando-se a importância de um
Etiopatogénese e semiologia exame neurológico completo, da medição do
perímetro cefálico, da pesquisa de organome-
Como já foi referido, para afirmar um diagnóstico gálias no caso das doenças neurometabólicas, de
de epilepsia é geralmente pressuposta a existên- manchas na pele nas doenças neurocutâneas, de
cia de duas ou mais crises; nalguns casos, no sinais dismórficos nas situações geneticamente
entanto poderá ocorrer uma única crise isolada ao determinadas.
longo da vida. Dadas as implicações terapêuticas e de pro-
Antes de se iniciar terapêutica anti-epiléptica e gnóstico, é fundamental esclarecer qual o tipo de
CAPÍTULO 187 Epilepsia 905

epilepsia, nomeadamente se se trata de uma em ausências, crises mioclónicas, tónicas, tónico-


epilepsia idiopática generalizada (sem lesões cere- clónicas e atónicas. (Quadro 1).
brais e muitas vezes familiar) ou sintomática e As crises parciais ou focais são devidas a uma
focal (i.e., com um local de início e uma causa descarga numa determinada região do córtex cere-
potencialmente identificável); por isso torna-se bral e denominam-se: simples, se a consciência estiv-
necessário por vezes recorrer a técnicas de neu- er preservada; ou complexas se houver perturbação
rofisiologia, nomeadamente ao electroencefalo- da consciência. Em ambos os tipos pode ocorrer
grama, e aos exames imagiológicos, sobretudo à propagação da descarga a outras áreas corticais, orig-
ressonância magnética encefálica. inando uma crise secundariamente generalizada.
A etiologia da epilepsia e das situações em que
se verificam crises varia muito com a idade. De QUADRO 1 – Classificação das Crises
um modo geral pode considerar-se que: Epilépticas (Liga Internacional
– No período neonatal as principais causas de contra a Epilepsia)
convulsões são os traumatismos de nascimento, a
hipóxia, as hemorragias intracranianas, a hipo- 1. Crises parciais
glicémia e os desequilíbrios iónicos, nomeada- 1.1 – Crises parciais simples
mente a hipocalcémia. 1.1.1 – Com sinais motores
- As anomalias congénitas, a esclerose tuberosa a) Parciais motoras sem marcha
e as doenças metabólicas constituem as etiologias b) Parciais motoras com marcha jacksoniana
mais frequentes nos 4 ou 5 primeiros anos de vida. c) Versivas
– As convulsões febris ocorrem predominante- d) Posturais
mente entre os 3 meses e os 5 anos. e) Fonatórias
– As infecções intracranianas (meningites, 1.1.2 – Com sintomas somatossensitivos ou sensoriais
encefalites) são proeminentes na idade escolar. a) Somatossensitivas d) Olfactivas
– As “epilepsias genéticas” iniciam-se mais fre- b) Visuais e) Gustativas
quentemente pelos 5-6 anos ou na adolescência. c) Auditivas f) Vertiginosas
– Na juventude e início da idade adulta uma 1.1.3 – Com sintomas ou sinais autonómicos
das causas mais frequentes de crises são os trau- 1.1.4 – Com sintomas psíquicos
matismos cranianos e situações relacionadas com a) Disfásicas d) Afectivas
o consumo de drogas e álcool. b) Dismnésicas e) Ilusões
– Entre a terceira e a quinta década de vida têm c) Cognitivas f) Alucinações
especial incidência os tumores cerebrais e, a partir 1.2 – Crises parciais complexas
daí, as doenças degenerativas cerebrovasculares. 1.2.1 – Com início parcial simples
1.2.2 – Com perturbação da consciência desde o início
Classificação 1.3 – Crises parciais evoluindo para generalizadas
secundariamente
1.3.1 – Crises parciais simples evoluindo para genera-
Tendo em mente a definição acima descrita, ao
lizadas
clínico cabe caracterizar o tipo de crise, pois daí
1.3.2 – Crises parciais complexas evoluindo para gene-
decorrem importantes implicações para a escolha
ralizadas
dos antiepilépticos mais adequados, a possibili-
1.3.3 – Crises parciais simples evoluindo para parciais
dade de existência de uma lesão cerebral subja-
complexas, e depois para generalizadas
cente, o prognóstico e a eventualidade de base
2 – Crises generalizadas
genética.
2.1 – Ausências 2.5 – Tónicas
De acordo com a Classificação da Liga Inter-
2.2 – Ausências atípicas 2.6 – Tónico-clónicas
nacional Contra a Epilepsia (ILAE) as crises po-
2.3 – Mioclónicas 2.7 – Atónicas
dem ser divididas em dois grupos: parciais e ge-
2.4 – Clónicas
neralizadas. Por sua vez, as crises parciais podem
3 – Crises não classificadas
ser simples, complexas ou secundariamente gene-
ralizadas. As crises generalizadas subdividem-se
906 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Os sintomas e sinais das crises parciais sim- As crises tónicas traduzem-se por hipertonia
ples dependem da região do córtex onde se origi- súbita dos músculos extensores, acompanhada de
na a descarga anómala. Se esta ocorrer na área perda da consciência.
motora, surgirão clonias contralaterais dos mem- Nas crises clónicas há contracções musculares
bros e da hemiface; se em regiões sensoriais, res- mais ou menos rítmicas, envolvendo mais fre-
ponsáveis pela memória ou emoções, poderá quentemente as extremidades superiores, o pescoço
haver, por exemplo, sensações de “déjà vu” ou de ou a face.
medo, alucinações olfactivas, visuais ou auditivas. Nas crises atónicas há perda súbita do tono mus-
De um modo genérico pode dizer-se que “tudo o cular com queda brusca para o chão (também
que o cérebro faz, a epilepsia pode fazer”. chamados “drop attacks”), o que pode originar lesões.
As crises parciais complexas podem ser prece-
didas de uma “aura” (que é, no fundo, uma crise Sindromas epilépticas
parcial simples), percebida pelo doente, seguida de
perturbação da consciência. Têm mais frequente- Além da classificação das crises epilépticas, a ILAE
mente origem nos lobos temporais, mas podem aprovou também a classificação internacional das
partir de outras regiões corticais. O doente perde o epilepsias e síndromas epilépticas (Quadro 2)
contacto com o meio, com olhar fixo ou vago e não entrando em conta com um conjunto de caracterís-
responde com lógica a perguntas ou ordens; fica ticas tais como a idade de início, história familiar de
parado ou executa movimentos sem propósito e epilepsia, tipo(s) de crise, e sinais e sintomas neu-
pode ter automatismos e alterações do tono. Existe rológicos associados. É muito importante tentar o
amnésia para o episódio e segue-se um estado pós- enquadramento da situação de um determinado
crítico de confusão ou sonolência que pode durar doente naquela classificação, o que permitirá definir
minutos ou horas e, muitas vezes, cefaleias. o prognóstico, a escolha mais acertada da terapêuti-
As crises generalizadas são a tradução, logo ca e, eventualmente, o aconselhamento genético.
de início, de um envolvimento difuso e simultâ- As epilepsias e as síndromas epilépticas po-
neo do córtex de ambos os hemisférios com perda dem ser generalizadas (i.e. com crises genera-
da consciência. Como já foi referido, podem ser lizadas) ou focais (i.e. com crises de início focal ou
ausências, crises mioclónicas, tónicas, clónicas, parcial). São consideradas sintomáticas ou secun-
tónico-clónicas e atónicas. dárias quando existir uma causa conhecida (por
As crises tónico-clónicas são muitas vezes pre- exemplo uma lesão cerebral); e idiopáticas ou
cedidas de um grito, podendo ocorrer queda mais criptogénicas se não estiver identificada etiologia.
ou menos súbita; há uma fase tónica inicial segui-
da de movimentos convulsantes, eventualmente Seleccionámos algumas destas síndromas que,
com rotação dos globos oculares, mordedura da pela sua frequência e/ou gravidade, têm maior
língua, sialorreia ou perda de controlo de esfínc- relevância na prática clínica: epilepsia rolândica
teres. A duração é variável, seguindo-se um perío- benigna, epilepsia de ausências, epilepsia mioclóni-
do pós-crítico com confusão e/ou sonolência, e ca juvenil, espasmos infantis/síndroma de West,
cefaleias. sindroma de Lennox-Gastaut, convulsões febris e
Nas ausências há interrupção abrupta da cons- estado de mal epiléptico.
ciência, geralmente breve (segundos), muitas Já existem actualmente estudos conclusivos
vezes em salvas. Tipicamente o doente fica com o acerca da origem genética de algumas destas sín-
olhar parado, interrompe a actividade que estava dromas e, cada vez mais, o conhecimento das epi-
a executar, pode ter movimentos de pestanejo ou lepsias se baseará na sua caracterização genética.
de mastigação, logo retomando a actividade sem
se aperceber do ocorrido. Epilepsia rolândica benigna
As crises mioclónicas consistem em contrac- Nesta forma de epilepsia benigna também desi-
ções musculares, súbitas e breves, isoladas ou em gnada por epilepsia benigna da infância com pon-
salvas, que podem envolver qualquer grupo mus- tas centro-temporais, existe grande incidência
cular . familiar; as crises surgem entre os 3 e os 12 anos
CAPÍTULO 187 Epilepsia 907

QUADRO 2 – Classificação Internacional das Epilepsias, Síndromas Epilépticas e Perturbações


Relacionadas (Liga Internacional contra a Epilepsia)

1 – Epilepsias parciais 2.2.4 – Epilepsia com ausências mioclónicas


1.1 – Idiopáticas 2.3 – Sintomáticas
1.1.1 – Epilepsia benigna da infância com pon- 2.3.1 – Etiologia não específica
tas centro-temporais (rolândica benigna) 2.3.1.a – Encefalopatia mioclónica precoce
1.1.2 – Epilepsia da infância com paroxismos 2.3.1.b – Encefalopatia epiléptica infantil pre-
occipitais coce com padrão de surto-supressão
1.1.3 – Epilepsia primária da leitura no EEG (Síndroma de Ohtahra)
1.2 – Sintomáticas 2.3.1.c – Outras epilepsias sintomáticas gene-
1.2.1 – Epilepsia do lobo temporal ralizadas
1.2.2 – Epilepsia do lobo frontal 2.3.2 – Síndromas específicas
1.2.3 – Epilepsia do lobo parietal 2.3.2.a – Malformações
1.2.4 – Epilepsia do lobo occipital 2.3.2.b – Doenças hereditárias do metabolismo
1.3 – Criptogénicas 3 – Epilepsias indeterminadas quanto a serem
2 – Epilepsias generalizadas parciais ou generalizadas
2.1 – Idiopáticas 3.1 – Com crises parciais e crises generalizadas
2.1.1 – Convulsões neonatais familiares beni- 3.1.1 - Crises neonatais
gnas 3.1.2 – Epilepsia mioclónica grave do lactente
2.1.2 – Convulsões neonatais benignas 3.1.3 – Epilepsia com ponta-onda contínua
2.1.3 – Epilepsia mioclónica benigna do lactente durante o sono de ondas lentas
2.1.4 – Epilepsia de ausências da criança 3.1.4 – Afasia epiléptica adquirida (síndroma
2.1.5 – Epilepsia de ausências juvenil de Landau-Kleffner)
2.1.6 – Epilepsia mioclónica juvenil 3.1.5 – Outras epilepsias indeterminadas não
2.1.7 – Epilepsia com crises tónico-clónicas definidas anteriormente
generalizadas do acordar 3.2 – Sem características inequívocas de serem par-
2.1.8 – Outras epilepsias generalizadas ciais ou generalizadas
idiopáticas, não definidas acima 4 – Síndromas especiais
2.1.9 – Epilepsias com crises caracterizadas 4.1 – Convulsões febris
por modos específicos de precipitação 4.2 – Crises isoladas ou estados de mal epiléptico
2.2 – Criptogénicas e/ou sintomáticas isolados
2.2.1 – Síndroma de West (espasmos infantis) 4.3 – Crises ocorrendo apenas quando há um acon-
2.2.2 – Síndroma de Lennox-Gastaut tecimento tóxico ou metabólico agudo
2.2.3 – Epilepsia com crises mioclónico-asiáticas

em indivíduos com capacidades cognitivas e e bem toleradas pelos doentes e seus pais, muitas
exame neurológico normais, sem lesão estrutural vezes decide-se pela não medicação. O prognóstico
subjacente. É das epilepsias mais frequentes na é excelente, com remissão pelos 13 – 16 anos.
criança. As crises ocorrem quase sempre durante o
sono, têm início focal, cursando com clonias da Epilepsia de ausências
região peribucal ou da hemiface, parestesias da Trata-se duma forma de epilepsia generalizada
língua, impossibilidade de falar, salivação, inicial- idiopática ou primária, com forte carga genética;
mente com consciência preservada, podendo ge- inicia-se entre os 4 e os 12 anos, com interrupção
neralizar-se. súbita da actividade e da consciência, durando 5-
O electroencefalograma (EEG) é característico, 20 segundos, com olhar parado, por vezes pesta-
com pontas na região centro-temporal, muito exa- nejo e/ou mastigação. Geralmente as crises ocor-
cerbadas pelo sono. As crises são geralmente fáceis rem em salvas, inúmeras vezes por dia. O EEG
de controlar com os antiepilépticos e, se forem raras tipicamente mostra breves descargas de pontas-
908 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ondas a 3 Hz. A maioria dos casos de ausências sário recorrer à terapêutica com corticóides, no-
típicas cede bem à terapêutica, havendo remissão meadamente com ACTH.
na adolescência. O prognóstico é reservado, sobretudo nas for-
mas sintomáticas: a mortalidade atinge 10-20% e,
Epilepsia mioclónica juvenil dos casos que sobrevivem, em cerca de 75% virá a
É também uma epilepsia generalizada idiopática, desenvolver-se atraso importante do desenvolvi-
com incidência familiar; começa na adolescência mento psicomotor e, em metade destes, epilepsia.
em jovens neurologicamente normais, com abalos Poderá haver igualmente evolução para síndroma
mioclónicos, repetidos ou isolados, geralmente de Lennox-Gastaut (SLG) abordada a seguir.
pouco após o acordar, sem perda de consciência.
Pode haver também ausências, crises tónico-clóni- Sindroma de Lennox-Gastaut
cas generalizadas (sobretudo ao acordar) ou fotos- A síndroma de Lennox-Gastaut (SLG) é uma das
sensibilidade. A privação de sono ou o álcool formas mais graves e de pior prognóstico – entre
podem precipitar uma crise. A terapêutica com as epilepsias da criança; caracteriza-se pela exis-
valproato de sódio é muito eficaz mas, se o trata- tência de vários tipos de crises, atraso e/ou dete-
mento for interrompido, é habitual a recaída. Daí rioração progressiva do desenvolvimento global,
a importância do diagnóstico correcto e da adesão problemas de comportamento e anomalias no
do doente a uma terapêutica para toda a vida. EEG que incluem electrogénese de base lenta e
mal diferenciada, sobrepondo-se actividade de
Espasmos infantis / Síndroma de West ponta-onda lenta anterior, a 2-2.5 Hz.
Os espasmos infantis são uma forma de epilepsia, Muitas doenças do sistema nervoso central
fundamentalmente dos lactentes; consistem em podem cursar com SLG, verificando-se geral-
crises muito breves, tónicas, tipicamente em mente um exame neurológico alterado. As crises
flexão, (podendo ser em extensão), envolvendo o são muito frequentes e refractárias à terapêutica,
tronco, o pescoço e as extremidades. Podem ocor- coexistindo ausências atípicas, crises tónico-clóni-
rer isoladamente, mas quase sempre fazem parte cas, mioclónicas, atónicas (com quedas muitas
da síndroma de West, que se define pela existência vezes violentas), tónicas (estas ocorrendo tipica-
de espasmos, regressão do desenvolvimento psi- mente durante o sono).
comotor e padrão de hipsarritmia no electroence-
falograma (electrogénese de base desorganizada a Convulsões febris
que se sobrepoem pontas-ondas amplas, difusas e Definições, etiopatogénese e importância
ondas lentas irregulares). do problema
Os espasmos iniciam-se antes do primeiro ano As chamadas convulsões febris, fortemente influ-
de vida, mais frequentemente entre os 4 e os 6 enciadas por factores genéticos, constituem um
meses, podendo ocorrer dezenas ou centenas por grupo especial dentro da classificação internacional
dia, por vezes em salvas. das epilepsias e síndromas epilépticas: convulsões
A síndroma de West pode ser idiopática, (atrás definidas) associadas a febre, geralmente du-
(quando não é conhecida a sua causa e o desen- rante a subida térmica e sem evidência de outra
volvimento prévio da criança era normal) ou ser causa precipitante (pressupondo nomeadamente,
sintomática, i.e., causada por uma situação subja- que não existe infecção do sistema nervoso central).
cente. Existem inúmeras possíveis etiologias, Por vezes é após a crise que se nota a febre.
nomeadamente anomalias do sistema nervoso Nos casos de convulsões recorrentes sem febre
central, lesão do sistema nervoso central perinatal (relacionáveis com epilepsia) há maior probabili-
ou pós natal, doenças neurometabólicas ou outras dade de a febre desencadear uma crise; neste caso
geneticamente determinadas, como por exemplo a não se trata da chamada convulsão febril, mas de
esclerose tuberosa, situação que evolui para sín- convulsão com febre.
droma de West em quase metade dos doentes. As convulsões febris surgem em cerca de 3-4%
A síndroma de West dificilmente cede aos das crianças entre 18 meses e 3 anos com um “pico”
antiepilépticos usuais, sendo muitas vezes neces- entre 14 e 18 meses.
CAPÍTULO 187 Epilepsia 909

São raras antes dos 3 meses e após os 5 anos. CONVULSÃO FEBRIL


As infecções víricas são as que mais frequente-
mente originam a febre nestas circunstâncias.
Arrefecimento, Antipirético
Outras situações habituais são as otites e as Aspiração de secreções, permeabilidade das vias aéreas,
infecções respiratórias. Pode existir história fami- Oxigenoterapia, Manobras de ressuscitação
liar de convulsões febris (15-30%) e/ou de epile- Ventilação artificial se necessário
psia (3-4%). Nalgumas famílias verificou-se
hereditariedade autossómica dominante e genes Diazepam*
associados nos cromossomas 19p e 8q 13-21. (0,2-0,5 mg/Kg por via rectal ou 0,1-0,3 mg/Kg iv – 2 mg/minuto
Alguns estudos têm revelado maior probabilidade (IV directo)
de convulsões febris nos casos de carência em
ferro (ferritina baixa). Na ausência da resposta em 5 minutos

Manifestações clínicas e diagnóstico Diazepam (idem até 3 doses)


As convulsões febris integram dois grandes
grupos: as simples e as complicadas ou com-
Na ausência da resposta: hospitalização
plexas. As convulsões simples (a maioria) são
breves (<15 minutos) e do tipo tónico-clónico, ge- Determinação da glicémia
neralizadas. (se glicémia < 45 mg/dL administrar glucose iv (0,5 g/kg) e
As convulsões complexas ou complicadas reavaliação da glicémia
duram >15 minutos, são focais ou lateralizadas,
FIG. 1
poderão repetir-se dentro de 24 horas, e/ou acom-
panhando-se de sinais focais (por ex. hemiplegia) Actuação sequencial nos casos de convulsão febril, complicada
no período pós-crise. evoluindo para status epilepticus.
Só numa em cada 3 crianças se verifica recor-
rência de convulsões febris simples. Contudo, inicial: 10 mg/kg/dia aumentado semanalmente
podem constituir a primeira manifestação de uma 5-10 mg/kg até 30-60 mg/kg/dia). Esta estratégia
epilepsia, de que a febre é apenas um factor desen- implica esclarecimento dos pais e disponibilidade
cadeante. Na verdade, cerca de 5% destas crianças do clínico e equipa assistencial responsáveis para
terão epilepsia mais tarde, sendo maior esse risco: eventual apoio à distância.
se as convulsões febris forem complicadas ou com- A actuação prática nos casos em que surge con-
plexas, se existir história familiar de epilepsia, se a vulsão febril de duração superior a cinco minutos
convulsão se repetir dentro de 24 horas e se a con- é esquematizada na Figura 1. Na hipótese de se
vulsão se desencadear com o aparecimento de tratar do primeiro episódio, reiterando-se a prio-
febre “não muito alta” (37,5-38°C). ridade do tratamento sintomático descrito, antes
do diagnóstico etiológico há, no entanto, que
Prevenção e tratamento excluir infecção do SNC (ver adiante).
A base essencial da prevenção consiste no A ausência de resposta ao cabo de quinze mi-
arrefecimento externo aquando dos primeiros nutos, legitimando o diagnóstico de convulsão
sinais de febre e na administração de antipiréticos febril complexa e a possibilidade de evolução para
(paracetamol oral: 15 mg/kg ou ibuprofeno: 8-10 estado de mal epiléptico (status epilepticus) implica
mg/kg oral). hospitalização.
Somente se houver antecedentes de crises A convulsão prolongada (associada por vezes
muito frequentes ou prolongadas se justifica tera- a hipóxia variável e implicando maior consumo
pêutica preventiva com diazepam oral (1 de glucose com risco de hipoglicémia e de seque-
mg/kg/dia enquanto durar a febre); ou, mais rara- las do SNC) obriga à determinação da glicémia
mente, com terapêutica prolongada, por exemplo
com valproato de sódio e apenas nas crianças com *O Midazolam nasal (0,5 mg/Kg) ou o Lorazepan sublingual (0,05-0,1
> 2 anos, tendo em conta a hepatotoxicidade (dose mg/kg) são alternativas.
910 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

(para além doutros exames laboratoriais) e à apli- – Os períodos de distracção, frequentemente


cação de linha endovenosa para administração de denominados de “ausências”, são facilmente inter-
glucose (0,5 g/kg se glicémia < 45 mg/dL). rompidos por um estímulo externo.
Quando surge a primeira convulsão acompa- – As síncopes ou crises vasovagais em que
nhada de febre, se a causa da febre não for evi- ocorre palidez, sudação e bradicárdia, com pertur-
dente, especialmente no primeiro ano de vida e em bação transitória da consciência e ocasionalmente
caso de convulsão complexa, não podendo excluir- precedidas de perda de visão ou de audição, estão
-se meningite ou encefalite, está indicada punção muitas vezes relacionadas com situações de ortos-
lombar para exame do LCR. tatismo prolongado ou emoções.
– As crises histéricas ou pseudocrises ocorrem
Estado de mal epiléptico muitas vezes em simultâneo no mesmo doente ou
O status epilepticus coresponde à situação em em familiares que servem como “modelo”. Rara-
que a convulsão dura mais de 30 minutos ou em mente resultam em traumatismo; não se acom-
que não se verifica recuperação do estado de cons- panham de perda de controlo de esfíncteres e são
ciência entre as crises; tal se deve, na maior parte geralmente mais aparatosas. Contudo, é por vezes
das vezes, a infecção do SNC (por ex. meningite necessário recorrer à realização de um vídeo-EEG
bacteriana ou vírica) o que, como foi dito, não cor- para permitir a distinção com as verdadeiras
responde à entidade “convulsão febril”. crises de epilepsia.
Nos casos em que o status epilepticus se segue a – No lactente pequeno o refluxo gastresofági-
episódio de convulsões associadas a febre, há que co pode originar episódios semelhantes a crises
admitir a hipótese de encefalite – capítulos 266 e 301. epilépticas, pelo que é importante confirmar o
diagnóstico.
Diagnóstico diferencial – Embora a anamnese continue a ser funda-
mental, é por vezes necessário recorrer ao vídeo-
Muitas situações podem, numa primeira abor- EEG para correcta caracterização de algumas per-
dagem, ser confundidas com crises epilépticas; turbações do sono, nomeadamente, terrores noc-
antes de se afirmar um diagnóstico de uma doença turnos, pesadelos ou sonambulismo.
potencialmente grave ou de se iniciar uma tera- – Os tiques e algumas doenças extrapiramidais
pêutica, é fundamental colocar a pergunta: é real- são outros exemplos de situações em que a epilep-
mente epilepsia? Aqui, revela-se particularmente sia pode fazer parte do diagnóstico diferencial.
importante a anamnese que, quando correcta e
completa, permite na maioria das situações esta- Exames complementares
belecer o diagnóstico; só nalguns casos será
necessário recorrer a exames complementares ou a O electroencefalograma (EEG) é o exame comple-
consultas de especialidade. mentar mais usado em epileptologia, sendo útil
São exemplos de episódios paroxísticos não para confirmar o diagnóstico e para estabelecer a
epilépticos: classificação (crises parciais ou generalizadas, sín-
– Os espasmos do choro (forma cianótica ou dromas). Contudo em cerca de 50% dos casos dos
forma pálida), que ocorrem em relação com o doentes epilépticos os EEG – padrão intercríticos
choro; são desencadeados por uma dor ou uma são normais, mesmo se for incluído registo de
contrariedade, em crianças saudáveis, entre os 6 sono. Ao invés, indivíduos saudáveis podem ter
meses e os 4-5 anos. As verdadeiras crises epilép- alterações electroencefalográficas sem nunca
ticas só excepcionalmente têm um factor precipi- virem e ter epilepsia. As técnicas de activação
tante. Após a perda de consciência pode haver (hiperpneia e estimulação luminosa intermitente),
uma breve período de hipertonia e mesmo clo- poderão ajudar a desencadear alterações epilepti-
nias, mas a recuperação é rápida e nunca existem formes no traçado.
sequelas. Na forma pálida é importante o dia- Na neurofisiologia actual são imprescindíveis
gnóstico diferencial com doença cardíaca, poten- as técnicas de monitorização prolongada (vídeo-
cialmente grave. (Capítulo 23) EEG e “Holter-EEG”) com vista a obter um registo
CAPÍTULO 187 Epilepsia 911

ictal e uma correcta caracterização de muitos dos redução do número de crises, não são dirigidas à
casos de epilepsia, nomeadamente nos doentes origem das doenças ou lesões neurológicas subja-
candidatos a cirurgia da epilepsia. centes. Contudo, constituem a pedra angular do
De mencionar a utilidade do EEG no diagnós- tratamento destes doentes, actuando como estabi-
tico do estado de mal não convulsivo e no dia- lizadores da neurotransmissão, quer inibindo a
gnóstico diferencial com pseudocrises e outros excitabilidade neuronal, quer aumentando o
fenómenos paroxísticos não epilépticos. efeito polarizante do ácido gama-amino-hidroxi-
Destaca-se a importância de os clínicos conhe- butírico (GABA) (neurotransmissor inibitório). Os
cerem as indicações e os limites do EEG e a neces- mecanismos da epileptogénese, a farmacodinâmi-
sidade de ser fornecida ao electroencefalografista ca das DAE e o seguimento de epilepsias refrac-
uma informação clínica o mais completa possível tárias estão fora do âmbito deste livro, pelo que
para uma correcta interpretação. apenas se abordam as regras gerais do tratamento
Na maioria dos casos de epilepsia é essencial a dos doentes com a patologia em análise.
realização de exames de imagem cerebral para Salienta-se desde já, aliás como em todas as
uma correcta caracterização, sobretudo nas doenças crónicas, a necessidade da estreita cola-
epilepsias parciais. Com as técnicas actualmente boração entre o especialista, neste caso o neurope-
disponíveis é possível encontrar sinais de lesão diatra, e o pediatra ou médico de família. No caso
estrutural em cerca de 50% dos doentes com crises de epilepsias estáveis (por exemplo epilepsia
de início focal. rolândica benigna, epilepsia de ausências), as con-
A ressonância magnética nuclear (RMN) sultas de neuropediatria poderão ser bastante
cerebral tem maior sensibilidade e, salvo raras espaçadas e os pequenos reajustamentos terapêu-
excepções, pode afirmar-se que em epileptologia a ticos, ou exames analíticos ser realizados pelo
tomografia axial computadorizada (TAC) só deve- médico assistente.
rá ser realizada se a RMN não estiver disponível, Só deve iniciar-se uma terapêutica com DAE
ou nos doentes em que esta última esteja contra- quando o diagnóstico de epilepsia for seguro, o
indicada. Variando com o grupo etário, são exem- que nem sempre é fácil; daí a importância da
plos de lesões detectáveis pela RMN: displasias anamnese e dos outros aspectos descritos ante-
corticais e anomalias artério-venosas nas crianças; riormente. O início do tratamento deve ser guiado
esclerose mesial, sequelas de traumatismo crani- pela epidemiologia e por factores individuais, e os
ano, tumores cerebrais, lesões vasculares no riscos e benefícios discutidos amplamente com o
jovem; acidentes vasculares, doenças degenerati- doente e/ou familiares. Como já foi referido, é
vas cerebrais, neoplasias primárias e secundárias. fundamental tentar um diagnóstico sindrómico
Embora não indicadas em avaliações de rotina, pois, considerando os diferentes mecanismos de
técnicas de neuroimagem como a RMN funcional, acção das várias DAE, sabe-se que existem
a tomografia com emissão de positrões (PET) ou a medicamentos mais eficazes e outros contra-indi-
RMN com espectroscopia têm especial interesse cados em certas circunstâncias. Por exemplo o val-
nos doentes candidatos a cirurgia da epilepsia. proato de sódio é de primeira escolha nas epile-
psias generalizadas enquanto a carbamazepina
Tratamento está indicada nas crises parciais, podendo agravar
uma epilepsia generalizada.
Atendendo a que a epilepsia é uma doença cróni- Do Quadro 3, que discrimina algumas das
ca e considerando as suas particularidades (por regras gerais da terapêutica antiepiléptica, salien-
exemplo o aparecimento inesperado das crises, o ta-se a preferência, sempre que possível, pela
estigma social, a terapêutica diária e prolongada), monoterapia e a introdução das DAE em doses
deve dar-se especial atenção ao acompanhamento crescentes. Salienta-se ainda a variabilidade indi-
psico-social e familiar destes doentes, além do vidual na eficácia e na tolerância a estes medica-
tratamento medicamentoso. mentos; daí a necessidade de medicação adaptada
Apesar de as drogas antiepilépticas (DAE) a cada doente e, no mesmo doente, ao longo do
serem parcialmente eficazes na eliminação ou tempo. Em relação aos doseamentos das DAE
912 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 3 – Regras gerais da terapêutica dos para as epilepsias de mais difícil controlo. Tal
antiepiléptica acontece também em situações de terapêuticas inva-
sivas para algumas situações mais refractárias, como
– Início se houver um diagnóstico seguro de epilepsia implantação de um estimulador do vago (medida
– Os doentes (ou os pais) devem compreender as razões paliativa) e cirurgia potencialmente curativa
do tratamento e estar motivados para os benefícios da (ressecção cortical focal, hemisferectomia, etc.) ou
terapêutica. A má adesão é causa frequente de insucesso paliativa (por ex. corpo calosotomia). Os candidatos
– Usar os antiepilépticos mais apropriados para o tipo a estas intervenções devem reunir indicações muito
de crise (caracterização clínica – EEG) precisas e ser exaustivamente estudados em centros
– Iniciar em monoterapia (sempre preferível), em doses diferenciados.
crescentes Em suma, a maioria das pessoas com epilepsia
– Aumentar as doses até ao controlo das crises ou até pode actualmente ter uma vida normal ou quase
aparecimento de efeitos secundários normal. Contudo, para aquelas em que o controlo
– Usar durante tempo suficiente para avaliar a eficácia das crises se revela mais difícil, algumas espe-
– Se for necessário, substituir gradualmente um antiepi- ranças existem face aos grandes avanços a decorrer
léptico por outro em epileptologia, quer no âmbito da fisiopatolo-
– Somente se deve passar a politerapia se se verificar gia, genética e da investigação diagnóstica (neu-
insucesso em monoterapia roimagiologia e neurofisiologia), quer ainda no
– O doente deve elaborar um “calendário de crises” âmbito da terapêutica médica e cirúrgica.
– Usar o menor número possível de tomas diárias (para
facilitar a adesão) BIBLIOGRAFIA
– Verificar a adesão Aicardi J, Arzimanoglou A, Guerrini R. Epilepsy in Children.
– Evitar outros medicamentos não indispensáveis (veri- Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004
ficar interacções) Allen JE, Ferrie CD, Livingston JH, Feltbower RG. Recovery of
– Vida “regrada”: ritmo regular de sono / vigília / álcool…
consciousness after epileptic seizures in children. Arch Dis
– Após 1 a 3 anos sem crises: suspensão gradual das DAE
Child 2007; 91: 39-41
– Os antiepilépticos têm muitos efeitos colaterais (pes-
American Academy of Pediatrics. Clinical Practice Guideline.
quisar sistematicamente).
Febrile sizures:guideline for the neurodiagnostic evalua-
Notas: tion of the child with a simple febrile seizure. Pediatricas
1 – as situações de epilepsia deverão ser seguidas em centros especializados.
2 – as terapêuticas prolongadas implicam o doseamento sérico de determinados fármacos 2011; 127: 389-394
(por exemplo fenobarbital, fenitoína, etc.) na perspectiva da eficácia e/ou da tocixidade.
Cross JH. Differential diagnosis of epileptic seizures in infan-
cy including the neonatal period. Seminars in Fetal and
disponíveis na prática clínica diária (valproato de Neonatal Medicine 2013; 18:192-195
sódio, carbamazepina, fenitoína e fenobarbital), Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011
importa referir que, estando o doente sem crises e Deonna T. Management of epilepsy. Arch Dis Child 2005; 90: 5-9
não sendo observados efeitos secundários, não French JA. First-choice drug for newly diagnosed epilepsy.
deverão ser alteradas as doses das DAE indepen- Lancet 2007; 369: 970-971
dentemente dos níveis séricos. Guerrini R. Epilepsy in children. Lancet 2006; 367: 499-524
Apesar da introdução mais ou menos recente de Hrabok M, Sherman EM, Bello-Espinosa L, et al. Memory and
novos medicamentos antiepilépticos, a maioria dos health-related quality of life in severe pediatric epilepsy.
doentes encontra-se bem controlada com as DAE já Pediatrics 2013; 131: e525-e532
estabelecidas, como o valproato de sódio, a carba- Lee JYK, Adelson PD. Neurosurgical management of pediatric
mazepina, a difenil-hidantoína, o fenobarbital, a epilepsy. Pediatr Clin North Am 2004; 51: 441-465
primidona, o clobazam, o clonazepam ou a etossu- Sidhu R, Velayudam K, Barnes G. Pediatric seizures. Pediatr
ximida. São exemplos de novos antiepilépticos, Rev 2013; 34: 333-342
quase todos usados como medicamentos de segun-
da linha e em terapia de associação: lamotrigina,
topiramato, vigabatrim, oxcarbazepina, gabapenti-
na, tiagabina, felbamato, zonizamida. Estes são usa-
CAPÍTULO 188 Acidentes vasculares cerebrais 913

188
a hemorragia secundária, tornando necessário
considerar muitas situações de trombose no dia-
gnóstico diferencial de hemorragia.
Os AVC isquémicos podem ser de origem arte-
rial ou venosa. Alguns factores etiológicos são
comuns aos vários tipos de AVC, diferindo muitas
ACIDENTES VASCULARES vezes consoante o grupo etário e o tipo de associa-
ção de vários factores de risco.
CEREBRAIS Os factores etiológicos de AVC em idade
pediátrica são numerosos e diferem grandemente
Clara Abadesso e José Pedro Vieira dos verificados nos adultos. Estão relacionados com
a idade e são frequentemente múltiplos (Quadro 1).
A verificação de AVC intra-uterino tem sido
associada a múltiplos factores etiológicos, sendo
Aspectos epidemiológicos que nalguns casos a evidência é apenas marginal:
e importância do problema trauma, pré-eclampsia, diabetes materna, uso de
drogas pela mãe (ex. cocaína), infecção fetal (em
Nas últimas duas décadas, a incidência de acidentes particular por citomegalovírus), várias doenças
vasculares cerebrais (AVC) em idade pediátrica tem fetais que causam hidropisia fetal. Admite-se tam-
aumentado, sendo referidas actualmente frequências bém que algumas trombofilias (nomeadamente
entre 3 e 8 por 100.000 crianças por ano. Essencial- relacionada com a mutação de Leiden do Factor
mente duas circunstâncias poderão explicar este V) desempenham também um papel na etiologia
aumento: a utilização dos métodos de neuroimagem de enfartes cerebrais na vida intra-uterina.
mais sensíveis e específicos – tomografia axial com- Nos recém-nascidos a etiologia do AVC na
putadorizada (TAC), ressonância magnética nuclear maioria dos casos é desconhecida. Os dados da li-
(RMN), angiorressonância (ARM) e estudos ecográfi- teratura apontam para uma prevalência de enfarte
cos cranianos – permitindo o diagnóstico de peque- arterial neonatal de cerca de 1/4.000; poderá ser
nas lesões anteriormente indetectáveis; por outro superior, dado que se presume que nem todos
lado, tratamentos mais eficazes têm permitido maior sejam sintomáticos inicialmente. É mais provável
sobrevivência de doentes em risco de complicações enfarte embólico (de origem placentar ou cardía-
vasculares, incluindo prematuridade, cardiopatia ca) do que enfarte trombótico. É possível que situ-
congénita, anemia de células falciformes e leucemia. ações de trombofilia (congénita, ou adquirida
Diferenças importantes entre os AVC de adultos como anticorpos maternos com transmissão
e crianças colocam, por vezes, dificuldade no reco- transplacentar – anticorpos antifosfolípidos)
nhecimento e tratamento desta situação. Estas dife- desempenhem papel importante. Estão ainda
renças incluem: 1) a relativa raridade desta patologia descritos como prováveis factores etiológicos:
nas crianças, aliada a apresentações clínicas subtis e trauma, sépsis e asfixia.
inespecíficas nas mais jovens 2) a multiplicidade de Deve salientar-se que um enfarte cerebral
factores de risco que muitas vezes se sobrepõem; 3) neonatal é uma importante causa de convulsões
diferenças de desenvolvimento nos sistemas neu- neonatais (12 a 17,5% segundo várias séries).
rológico, cerebrovascular e da coagulação. Estas Nalguns lactentes em que se diagnostica hemi-
diferenças limitam muitas vezes a extrapolação dos plegia verifica-se lesão cerebral vascular exibindo
resultados dos estudos de investigação em adultos padrão compatível com ocorrência na vida fetal
sobre AVC para a idade pediátrica. tardia ou pós-natal.
Nalgumas crianças (com cardiopatia estrutural
Classificação e etiopatogénese conhecida ou com anemia de células falciformes)
a causa do AVC é óbvia. Em crianças com doenças
Os AVC podem ser de tipo isquémico ou hemor- crónicas que predispõem para AVC, uma intercor-
rágico. Os AVC isquémicos dão, por vezes, origem rência aguda, como desidratação, sépsis e outras,
914 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Factores etiológicos de doença cerebrovascular na idade pediátrica

Cardiopatias congénitas Vasculites Doenças hematológicas


– Cardiopatias complexas – Meningite – Hemoglobinopatias (Hb SS, SC)
– Estenose aórtica – Lupus eritematoso sistémico – Trombocitose
– Comunicação interauricular – Poliarterite nodosa – Policitémia
– Comunicação interventricular – Angeíte granulomatosa – Leucemia e outras neoplasias
– Coarctação da aorta – Angeíte cerebral primária hematológicas
– Estenose mitral – Arterite de Takayasu – Púrpura trombocitopénica
– Prolapso da válvula mitral – Artrite reumatóide juvenil imune/trombótica
– Canal arterial patente – Dermatomiosite Coagulopatias adquiridas
Cardiopatias adquiridas – Doença de Behçet – Medicações protrombóticas
– Doença cardíaca reumática – Doença inflamatória intestinal – Gravidez / período pós-parto
– Próteses valvulares – Doença de Kawasaki – Anticorpos antifosfolípidos
– Endocardite bacteriana – Abuso de drogas (cocaína, – Anticoagulante lúpico
– Cardiomiopatia anfetaminas) – Anticorpos anticardiolipina
– Miocardite – SIDA – Anomalia das lipoproteínas
– Mixoma auricular Arteriopatias – Disfunção hepática com défice da
– Rabdomioma cardíaco – Arteriopatia cerebral transitória da coagulação
– Arritmia infância Coagulopatias congénitas
Malformações cerebrovasculares – Angiopatia pós-varicela – Défice de antitrombina III
congénitas – Displasia fibromuscular – Défice de proteína S
– Malformação arteriovenosa – Síndroma moyamoya – Défice de proteína C
– Aneurisma intracraniano – Vasculopatia pós-irradiação – Factor V de Leiden
– Malformação cavernomatosa – Doenças vasculares sistémicas – Défice de plasminogénio
– Telangiectasia hemorrágica – Aterosclerose precoce – Mutação do gene da protrombina
hereditária – Diabetes Doenças metabólicas
– Síndroma de Sturge-Weber – Hipercolesterolémia familiar – Homocistinúria
Traumatismo – HTA sistémica – Dislipoproteinémias
– Traumatismos intra-orais – Hipernatrémia – MELAS
– Dissecção arterial – Síndroma da veia cava superior – Acidúrias metilmalónica e propiónica
– Embolia gasosa ou gorda Doenças vasospásticas
– Embolia de corpo estranho – Hemiplegia alternante
Iatrogenia – Enxaqueca
– Anticoagulação – HTA
– Arteriografia – Vasospasmo secundário a
– Cateterismo cardíaco hemorragia
– Cirurgia cardíaca
– Laqueação da carótida (ex. ECMO)
– Cateter na artéria umbilical
– Terapêutica com L-asparaginase
– Pós-irradiação

podem precipitar um AVC. No entanto, em cerca primariamente vascular). Neste grupo o diagnós-
de 50% dos casos o AVC ocorre em crianças sem tico etiológico mais frequente foi dissecção arterial
doença prévia conhecida. e síndroma moya-moya.
Num estudo com documentação angiográfica Estudos recentes concentraram-se de novo no
cerca de 50% dos enfartes cerebrais em crianças papel de varicela como causador de vasculopatia
eram devidos a uma arteriopatia (a uma anomalia cerebral: num destes verificou-se que tal infecção
CAPÍTULO 188 Acidentes vasculares cerebrais 915

(no período de 12 meses antecedendo o AVC) crianças com varicela, associa-se a enfarte dos
tinha sido três vezes mais frequente que a incidên- gânglios da base e estenose da carótida interna
cia num grupo controlo. distal, artérias cerebrais anterior, média e posteri-
Para além dos factores de risco adquiridos or proximal.
(como os anticorpos antifosfolípidos) e do risco O enfarte isquémico pós-herpes zoster oftálmico
protrombótico, estão descritas várias anomalias (vários dias ou semanas após a erupção cutânea)
genéticas que podem influenciar o risco de trom- pode ocorrer por trombose no território da artéria
boembolismo (em muitos casos arterial e venoso) cerebral média ipsilateral, provavelmente resultante
associadas a factores ambientais, como trauma, da invasão da artéria através do nervo trigémio.
imobilização, septicémia, etc.. A meningite pode causar inflamação dos vasos
O papel de alguns dos factores de risco tradi- cerebrais que atravessam o espaço subaracnoideu
cionais na população adulta como dislipopro- infectado e promover oclusão venosa ou arterial.
teinémia ou hipertensão arterial pode ser também A vasculite cerebral associada a vasculites sis-
relevante em idade pediátrica. témicas ou outras doenças é uma causa relativa-
O AVC pode ainda ser a manifestação inicial mente rara de AVC em crianças (sendo o lúpus
de uma doença sistémica como lúpus eritematoso eritematoso disseminado a causa mais importante
disseminado, diabetes ou neoplasia. neste grupo).
A identificação de factores de risco de doença A dissecção das artérias carótida ou vertebral
cerebrovascular é, pois, extremamente importante pode ocorrer em associação com traumatismo cra-
dado que a recorrência e o prognóstico estão forte- niano, cervical ou intra-oral, ou espontaneamente.
mente relacionados com o número e o tipo de fac- A dissecção é diagnosticada em 9-20% de crianças
tores de risco. Por outro lado, o tratamento de um com AIA. O défice neurológico pode surgir ime-
episódio agudo e a prevenção das recorrências diatamente após a lesão ou tardiamente. As
dependem da causa subjacente. descrições iniciais referem casos de dissecção
usualmente traumática das artérias carótidas e
Manifestações clínicas vertebrais, mas provou-se que pode ocorrer tam-
bém dissecção no território vascular intracraniano.
Nesta alínea são descritos os AVC de tipo isqué- A síndroma moyamoya é uma vasculopatia
mico e hemorrágico, realçando o papel de factores cerebral da infância, progressiva e grave, que con-
de risco. siste na oclusão gradual das artérias intracrani-
anas, com subsequente desenvolvimento de uma
1. Acidente isquémico arterial (AIA) rede de pequenos vasos colaterais que dá o aspec-
A presença de vasculopatia constitui factor de to angiográfico característico (“puff of smoke”).
risco de AIA e de recorrência; daí a importância de Pode ser idiopática (maioria dos casos) ou estar
a caracterizar. relacionada a síndromas genéticas (neurofibro-
Existe um grande espectro de vasculopatias, matose, trissomia 21), ou ainda a lesões adquiri-
algumas reversíveis, outras progressivas. das das artérias cerebrais como a vasculopatia da
A chamada arteriopatia cerebral transitória radiação ou anemia de células falciformes.
monófasica da infância pode corresponder ao tipo A vasculopatia pós-irradiação apresenta-se
mais comum de arteriopatia em crianças com como uma estenose progressiva dos grandes
AIA. A etiologia desta situação não é conhecida e vasos, com acidentes isquémicos transitórios ou
o respectivo diagnóstico baseia-se apenas no qua- AVC vários meses a anos após irradiação de
dro clínico e imagiológico (incluindo a aparência gliomas do quiasma óptico ou outros tumores da
em angiografia). região selar ou supra-selar.
A angiopatia pós-varicela (uma arteriopatia A anemia de células falciformes (ACF) é a causa
transitória) que ocorre semanas a meses após mais frequente de AVC em crianças, em determi-
episódio de varicela não complicada, tem sido nadas áreas geográficas. (Figura 1) (Capítulo 143)
cada vez mais reconhecida como causa de enfarte Com a idade de 20 anos em cerca de 11% dos
isquémico. Com uma incidência de 1/15.000 doentes homozigóticos (HbSS) verifica-se o pro-
916 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

blema. Os enfartes isquémicos podem resultar dos A


episódios vasoclusivos cerebrais múltiplos, ou de
uma arteriopatia progressiva característica que
envolve predominantemente a artéria carótida
interna distal e a artéria cerebral média proximal;
pode surgir mais tarde um quadro do tipo moy-
amoya nos casos graves.
A incidência global das doenças protrombóti-
cas em crianças com AVC é referida entre 10 e
50%. As anomalias protrombóticas associadas a
AVC nas crianças podem ser congénitas ou
adquiridas e incluem: défices de proteína C, de
proteína S, de antitrombina III, de plasminogénio;
presença de resistência à proteína C activada
(Factor V de Leiden); mutação do gene 20210 da
protrombina; anticorpo anticardiolipina, anticoa-
gulante lúpico, e valores séricos elevados de
homocisteína e de lipoproteína (a) [Lp(a)]. B
A presença do anticorpo anticardiolipina é a
doença adquirida mais comum, enquanto a situa-
ção associada ao factor V de Leiden, a situação
congénita mais comum.
Vários defeitos podem ocorrer simultanea-
mente, sobretudo nos défices adquiridos. Outros
factores de risco como a desidratação e infecção
podem aumentar o risco de trombose.
Em 25% das crianças com AVC de tipo embóli-
co, as cardiopatias congénitas são a causa subja-
cente. O AVC pode ocorrer espontaneamente ou
estar associado a procedimentos cardíacos (cate-
terismo ou cirurgia). As cardiopatias cianóticas
FIG. 1
aumentam o risco de tromboembolismo devido à
policitémia. Se existir um shunt intracardíaco di- AVC e RMN; A – Múltiplas lesões isquémicas assinaladas, com
reito-esquerdo, pode ocorrer uma embolia para- localização frontal, bilaterais, num doente com 7 anos, por-
doxal (proveniente do território venoso). tador de drepanocitose homozigótica, em regime hipertrans-
fusional. B – Angio-RM revelando sinais de grave estenose da
O prolapso da válvula mitral é uma anomalia
artéria cerebral média à direita (seta).
relativamente frequente e habitualmente assin-
tomática. Não são actualmente identificáveis os
doentes em risco de AVC embólico, havendo con- quando se torna evidente hemiparésia entre os 4 e
tudo a estimativa de que 1 em 6.000 casos por ano os 8 meses de idade.
irá ter uma complicação deste tipo. Os AVC car- No recém-nascido, um AIA tipicamente mani-
dioembólicos de origem mitral podem afectar a festa-se por letargia ou convulsões focais e hemi-
circulação carotídea ou vertebrobasilar. A apresen- parésia transitória. Os sinais focais persistentes
tação inicial é mais frequentemente a de um aci- são raros.
dente isquémico transitório. Nos lactentes mais velhos e nas crianças em
A apresentação clínica depende da idade, do idade pré-escolar frequentemente verifica-se um
tipo de AVC e do mecanismo fisiopatológico da início abrupto de hemiplegia. As crianças em idade
lesão cerebral subjacente. escolar e adolescentes podem apresentar sinais mais
Um AIA pré-natal é geralmente diagnosticado subtis, como afasia, alterações visuais, cefaleia ou
CAPÍTULO 188 Acidentes vasculares cerebrais 917

défices sensitivos focais, para além da hemiparésia. em 35-45% dos casos e relacionam-se com a pre-
Na síndroma moyamoya os doentes apresen- sença de enfarte venoso. As convulsões podem
tam-se com enfarte cerebral agudo. Têm sido des- ocorrer como primeira manifestação em 70% dos
critos também acidentes isquémicos transitórios, recém-nascidos e em 48% de crianças com TSV.
hemiplegia alternante, coreia ou outras doenças
do movimento. Pode ocorrer disfunção clínica 3. Hemorragia cerebral
insidiosa, com deterioração intelectual, cefaleia As malformações vasculares (malformações e fís-
crónica ou alterações da linguagem. A frequência tulas arteriovenosas) são a principal causa de
dos acidentes isquémicos é maior nos primeiros 4 hemorragia intraparenquimatosa e subaracnoideia
anos após o início dos sintomas. Nos doentes mais não traumática em crianças.
velhos há um risco de hemorragia subaracnoideia. Os aneurismas arteriais ocorrem menos fre-
As convulsões podem acompanhar o AVC em quentemente em crianças e adolescentes que nos
cerca de 50% das crianças. adultos. As malformações cavernomatosas tam-
bém podem originar AVC hemorrágico na idade
2. Trombose sinovenosa pediátrica.
A trombose dos seios venosos (TSV) pode resultar A hemorragia cerebral pode ocorrer em situa-
de uma combinação de factores intravasculares e ções de trombocitopénia com valores inferiores a
vasculares. 20.000/mmc embora raramente; quando surge,
Os recém-nascidos são o grupo etário com está associada a trauma.
maior incidência de TSV. Os factores de risco asso- Várias coagulopatias hereditárias ou adquiri-
ciados com AVC no período neonatal são: estados das têm sido associadas a hemorragia intracrania-
de hipercoagulabilidade maternos, hematócrito na: a hemofilia A e B, outros défices congénitos de
elevado, shunt intracardíaco direito-esquerdo factores da coagulação (ex. factor VII, XIII), o
transitório, asfixia, sépsis e desidratação. défice da vitamina K em recém-nascidos (actual-
As infecções localizadas da cabeça e pescoço, mente raro devido à administração de vitamina K
como mastoidite, meningite, sinusite e otite média após o parto), a coagulopatia secundária a doença
existem em cerca de 23% das crianças com TSV, hepática ou a coagulação intravascular dissemina-
predominando no grupo etário pré-escolar. da. Embora o risco individual relativamente a
Doenças sistémicas crónicas, incluindo lúpus cada uma destas doenças não seja elevado, o seu
eritematoso sistémico, síndroma nefrótica, doença risco colectivo é considerável.
inflamatória intestinal, doenças hematológicas, Nas crianças com ACF a hemorragia é menos
doenças cardíacas e outras, são factores de risco comum que o enfarte, podendo ocorrer hemorra-
subjacentes, presentes em 60% dos casos e nas cri- gia subaracnoideia e intraparenquimatosa, parti-
anças mais velhas. cularmente em doentes mais velhos.
Os estados pró-trombóticos são factor de risco De referir a possibilidade de transformação
de trombose venosa ou arterial. hemorrágica de um enfarte isquémico, venoso ou
Nas TSV podem ocorrer enfartes do parên- arterial, o que amplia o diagnóstico diferencial das
quima cerebral (cerca de 40% dos casos). hemorragias intraparenquimatosas. O enfarte
A TSV em recém nascidos manifesta-se mais fre- hemorrágico é provavelmente mais comum após
quentemente com convulsões e letargia. Os embolia do que após trombose, sendo importante
lactentes com oclusão sinovenosa extensa podem considerar o risco de hemorragia em crianças com
apresentar dilatação das veias da cabeça, fontanela embolismo, que requerem anticoagulação.
anterior procidente e diastase das suturas cranianas. A hemorragia no interior de um tumor intrace-
Em crianças mais velhas a apresentação mais rebral é relativamente comum. É mais frequente em
frequente é a de um quadro clínico de “pseudotu- tumores de alta malignidade, como os meduloblas-
mor cerebri”, com cefaleias, papiledema e, ocasio- tomas ou os tumores neuroectodérmicos primitivos.
nalmente, parésia do VI° par uni ou bilateral. A encefalopatia hemorrágica pode constituir
Estão presentes alterações visuais em 18% dos complicação da hipernatrémia grave. Os achados
casos; hemiparésia e outros sinais focais surgem patológicos característicos são: múltiplas hemorra-
918 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

gias pericapilares ou tromboses capilares, hemor- • Hemograma com plaquetas


ragias subaracnoideia e subdural, e trombose dos • Tempo de protrombina e PTTa
seios venosos. • Electroforese de hemoglobinas
A hipertensão arterial sistémica é uma causa • Proteína S (total e livre), proteína C, anti-
rara de enfarte e hemorragia cerebral em crianças, trombina III
ao contrário do que acontece em adultos. Pode ser • Factor V de Leiden (resistência à proteína C
um factor de risco cumulativo em crianças com activada)
outra patologia, como ACF ou arterite. • Plasminogénio, factor de von Willebrand, fa-
ctor VIII, factor XII
Diagnóstico • Anticoagulante lúpico, anticorpos anticar-
diolipina
Exames imagiológicos: • Mutação 20210 do gene da protrombina
• Tomografia axial computadorizada (TAC). É • Homocisteína total, metileno-tetra-hidrofo-
geralmente o estudo inicial; de referir que a TAC lato-redutase, folato, vitamina B6 e vitamina
poderá não revelar alterações nas primeiras 24 a B12
48 horas após um acidente isquémico. • Colesterol total, das HDL, das LDL, triglicé-
• Ressonância magnética nuclear (RMN). É ridos, Lipoproteína (a), Apo A, Apo B
mais sensível que a TAC na detecção precoce e em • Anticorpos antivaricela-zoster séricos e no
enfartes pequenos, particularmente na fossa pos- líquido cefalo-raquidiano
terior. É mais sensível para detectar conversão
hemorrágica dos enfartes. Técnicas mais recentes Tratamento
em RMN (difusão, perfusão, espectroscopia) me-
lhoraram ainda a detecção precoce e a especifici- O tratamento dos AVC em crianças é dirigido pri-
dade. Nos recém-nascidos, um enfarte isquémico mariamente para os factores de risco subjacentes e
poderá somente ser detectado em imagens de para a prevenção de episódios isquémicos cere-
difusão porque a RMN tradicional é menos sen- brais recorrentes.
sível para este diagnóstico num cérebro não
mielinizado. A RMN com venografia permite o Antiagregantes plaquetares
diagnóstico de trombose dos seios venosos. (ácido acetilsalicílico – AAS)
• Angiorressonância. É um exame não invasi- Não existem estudos controlados com o uso de
vo que permite a avaliação das principais artérias AAS ou qualquer outro antiagregante plaquetar
cerebrais ao nível do polígono de Willis. No entan- em crianças. No entanto, o AAS tem sido usado
to, por vezes subestima o grau de estenose e a pre- cada vez mais na prática clínica em crianças com
sença de oclusão, não permitindo identificar ano- AVC isquémicos arteriais, como forma de pre-
malias nas artérias de médio e pequeno calibre. venir um episódio recorrente.
Também tem limitações quanto à detecção de Apesar do risco teórico de síndroma de Reye
sinais específicos de vasculite e dissecção. (ver Glossário Geral) em crianças submetidas a
• Angiografia convencional. Quando é ne- terapêutica prolongada com AAS, os dados da li-
cessário um diagnóstico vascular mais específico teratura são escassos.
realiza-se este exame. A dose diária recomendada é 3 a 5 mg/Kg/dia
• Doppler das carótidas e doppler transcrani- (dose antiagregante plaquetar).
ano. É útil para detecção de vasculopatia nos gran-
des vasos (ex. na anemia de células falciformes) Anticoagulantes
• Ecocardiograma. a) Heparina e heparina de baixo peso molecular.
Embora não existam ensaios clínicos de grande
Outros exames complementares escala utilizando heparina em crianças com AVC,
Em função do contexto clínico haverá que proce- a experiência acumulada sugere que as crianças
der a determinados exames complementares no podem ser tratadas com as mesmas linhas orien-
sangue, a seleccionar: tadoras dos adultos, com segurança razoável.
CAPÍTULO 188 Acidentes vasculares cerebrais 919

A anticoagulação é usada em crianças com dis- • Tratamento agressivo da febre e das convul-
secção arterial, trombose dos seios venosos, doenças sões (situações que aumentam as necessida-
da coagulação, trombose recorrente ou elevado des metabólicas, podendo aumentar a área
risco de embolismo (ex. coágulo intracardíaco). cerebral com isquémia).
b) Varfarina
A utilização de varfarina constitui o meio de anti- Tratamento neurocirúrgico
coagulação prolongada mais eficaz. A experiência • Drenagem nos AVC hemorrágicos
clínica sugere que pode ser usada em crianças e ado- • Descompressão cirúrgica de grandes enfar-
lescentes com razoável segurança. As crianças afec- tes – hemicraniectomia
tadas deverão evitar actividades com risco de lesão • Derivação ventriculoperitoneal
traumática tais como desportos de contacto. • Procedimentos de revascularização (ex. na
As principais indicações incluem: cardiopatia síndroma moyamoya), trombectomia, etc..
congénita ou adquirida, estados de hipercoagula-
bilidade, dissecção arterial e trombose dos seios Prognóstico
venosos.
O prognóstico difere consoante as séries. No re-
Fibrinolíticos gisto canadiano os principais dados apontam para
Os fibrinolíticos actualmente não estão indicados probabilidade de morte ~ 10% e para défice neu-
nos AVC em crianças, devido ao risco elevado de rológico em 50% dos casos. A sequela neurológica
complicações hemorrágicas e à falta de estudos de mais frequente é a hemiparésia, mas também ocor-
eficácia/segurança. rem défices residuais menos óbvios (compromisso
Em adultos, os benefícios do activador do plas- da linguagem e outros défices corticais, problemas
minogénio tecidual (r-tPA) parecem sobrepor-se na aprendizagem e comportamento, etc.).
bastante aos riscos se o mesmo for usado nas A epilepsia surge em 10 a 15% das crianças
primeiras 3 horas após o início dos sintomas de afectadas com AVC. A recorrência estimada de
AVC. Dado haver frequentemente atraso no dia- AVC isquémico é inferior a 5% em recém-nascidos,
gnóstico de AVC em crianças, esta terapêutica e 20 a 30% em lactentes e crianças mais velhas.
raramente poderá estar indicada. Nas TSV os enfartes venosos e a ocorrência de
convulsões na apresentação são factores predi-
Transfusão tivos de pior prognóstico.
Nos casos de ACF a prevenção de recorrência faz-
se com transfusões regulares (cada 4-6 semanas). BIBLIOGRAFIA
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162: 227-235 devidas a interferência /lesão /anomalia não pro-
gressiva do desenvolvimento do cérebro imaturo.”
Trata-se dum termo de conveniência, baseado
na avaliação clínica duma combinação de sinais e
sintomas englobando situações neurológicas hete-
rogéneas com múltiplas etiologias, de origem cere-
bral.
Devem ser excluídas todas as situações progres-
sivas resultando de perda de competências adquiri-
das, as doenças da medula espinhal e os casos em
que a hipotonia constitui o único sinal neurológico.
Depois do atraso mental é a causa de incapaci-
dade neurológica mais frequente na criança.
Na PC a deficiência motora é habitualmente a
mais evidente, com realce para a presença de sinais
piramidais ou extrapiramidais; contudo, é fre-
quente a ocorrência simultânea de perturbações
sensoriais sobretudo visuais e auditivas, com-
promisso da linguagem e fala, atraso cognitivo,
dificuldades na aprendizagem, epilepsia e altera-
ções comportamentais.

Aspectos epidemiológicos

Apesar da melhoria dos cuidados perinatais nos


países desenvolvidos, com uma enorme redução da
mortalidade perinatal nos últimos 30 anos, a pre-
CAPÍTULO 189 Paralisia Cerebral 921

valência de paralisia cerebral, a deficiência motora Cortex Motor


Ventrículo Lateral
mais frequente da infância, tem-se mantido, com
valores oscilando nos centros europeus entre 1,5- 3
/ 1.000 nado-vivos. Tal deve-se essencialmente à Caudado
sofisticação crescente dos cuidados intensivos Cápsula
neonatais que permitem, cada vez mais, a sobre- Interna
vivência dos recém-nascidos (RN) pré-termo e de
Putamen
muito baixo peso (<1500 gramas). Actualmente, nos
países desenvolvidos os RN pré-termo e de termo
contribuem com percentagens muito semelhantes Globus
para as casuísticas de PC. (cerca de 20-40% dos Pallidus

casos). Habitualmente existe um predomínio do


Artéria Cerebral Média
sexo masculino numa proporção de 2/1.
De acordo com a SPCE , a idade mínima para
confirmar o diagnóstico e recolher os dados deve FIG. 1
ser os 3 anos e a idade ideal os 5 anos, sendo que, Principais áreas motoras afectadas na PC. (ver Figura 2)
ao registar os dados, podem ser incluídas crianças
com quadro clínico de PC e que faleceram entre os turas cerebrais. O nascimento pré-termo e o baixo
1 e 5 anos. peso de nascimento são factores de risco de
A taxa de incidência de PC até aos 5 anos de grande importância e com tendência para aumen-
idade para crianças nascidas em Portugal entre tar, pelo que se torna essencial o investimento na
2001 e 2003 foi 1,61/1.000 nado-vivos, correspon- prevenção destas situações, melhorando os cuida-
dendo a 548 casos em números absolutos(dados dos de saúde às grávidas. Igualmente, as
do PVNPC5A-Programa de Vigilância Nacional gravidezes multigemelares têm um risco 4 vezes
de Paralisia Cerebral aos 5 anos de idade). A superior de ocorrência de PC (prematuridade,
casuística do Serviço de Neuropediatria do Hos- restrição de crescimento intra-uterino, morte dum
pital Dona Estefânia (dados de 2008) engloba 45% dos fetos in utero). A fertilização in vitro (FIV), pela
de casos com antecedentes de prematuridade sua contribuição para o aumento do número de
(22% com 32 – 36 semanas, 14% com 28 – 31 sema- gravidezes gemelares, habitualmente em mu-
nas, e 9% com menos de 28 semanas). lheres de idade superior aos 35 anos, tem-se vindo
a revelar nos últimos anos uma causa importante
Etiopatogénese de PC nos países desenvolvidos.
O tipo clínico mais frequente no RN pré-termo é
As causas de PC são múltiplas e podem ser genéti- a diplegia, devido ao mecanismo das lesões por rup-
cas ou o resultado de noxas pré, peri ou pós-natais tura dos vasos da matriz germinal e leucomalácia
(Quadro 1). Por vezes estes factores actuam em periventricular. Recém-nascidos de termo também
simultâneo, o que torna difícil determinar a etio- podem apresentar um quadro de diplegia se a lesão
logia específica e realizar uma prevenção eficaz. pré-natal tiver ocorrido no último trimestre. No
Diferentes formas clínicas de PC podem ter a entanto, a forma clínica de PC mais frequente nos
mesma patologia cerebral, enquanto etiologias RN de termo com asfixia perinatal é a tetraparésia
diferentes podem originar quadros clínicos seme- espástica. A hemiplegia, habitualmente, é conse-
lhantes. A Figura 1 mostra em esquema as princi- quência de um acidente vascular cerebral (AVC)
pais áreas motoras afectadas na PC, e a Figura 2 a ocorrido no período pré ou perinatal. (ver adiante)
relação entre vias, estruturas e tipos de PC. Actualmente o estudo imagiológico pela res-
A asfixia perinatal, (considerada no passado sonância magnética nuclear (RMN) permite carac-
uma das causas mais frequentes de PC), admite-se terizar as lesões cerebrais e precisar o momento em
hoje que em certas circunstâncias seja, sim, o que ocorreram, bem como relacioná-las com as
epifenómeno de outros problemas que, na vida manifestações clínicas e sua gravidade. Este exame
pré-natal, afectam o desenvolvimento das estru- tornou-se, assim, um instrumento indispensável na
922 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Paralisia Cerebral Espástica Paralisia Cerebral Atáxica Paralisia Cerebral Discinética

FIG. 2
Vias e estruturas atingidas nos diferentes tipos de paralisia cerebral. (Cerebelo assinalado a cor na figura do meio)

QUADRO 1 – Causas de Paralisia Cerebral

Pré-natais Perinatais Pós-natais


Infecções congénitas Complicações placentares
(Herpes, Toxoplasma, Rubéola, (abrupta, ruptura prematura das Traumatismo cranioencefálico
Citomegalovírus, Sífilis) membranas, corioamnionite)

Infecções do sistema nervoso central


Doenças genéticas Prematuridade
(meningite, encefalite)

Agentes teratogénicos
Complicações do trabalho de parto
(chumbo, mercúrio) Acidente vascular cerebral
(asfixia perinatal, trauma)
Drogas maternas ou álcool

Infecção do sistema
Vasculares
nervoso central
(hipóxia, isquémia, trombose, Convulsões neonatais
(Enterobacteriáceas, Streptococcus do
hemorragia, embolia)
grupo B, Listeria)

Perturbações do Alterações metabólicas


desenvolvimento cerebral (hipoglicémia, desequilíbrios Afogamento e asfixia
(disgenésias cerebrais) hidroelectrolíticos)

Metabólicas Hiperbilirrubinémia (Kernicterus)


(deficiência de iodo)

Incompetência cervical ou
hemorragia do 3º trimestre

Gravidez gemelar
CAPÍTULO 189 Paralisia Cerebral 923

determinação da etiologia e do prognóstico da PC. aos 20 meses e 1 com encefalite pós-vacinal).


Os padrões de lesão da RMN traduzem a vul- Estima-se que 2% das PC são devidas a causas
nerabilidade selectiva em determinadas idades genéticas. Trata-se habitualmente de formas clíni-
pré-natais de certas áreas do cérebro, de acordo cas espásticas e simétricas, tendo-se identificado
com o desenvolvimento e maturação das estru- nalgumas famílias afectadas um gene em 2q24-
turas cerebrais. É o conceito de “períodos críticos”; q25, (marcadores D2S124 e D2S148). Este gene
assim as anomalias congénitas correspondem a codifica um grupo de proteínas que são essenciais
noxas ocorrendo antes da 20ª semana de gestação; nos estádios precoces do desenvolvimento.
a lesão da substância branca periventricular entre
a 24ª e 34ª semana, e a lesão da substância cinzen- Manifestações clínicas
ta, já no cérebro mais maturo, após a 34ª semana.
Nos casos de hipóxia-isquémia grave e abrup- De acordo com o tipo de distúrbio motor predomi-
ta, são afectados, sobretudo, os núcleos da base; e, nante, são considerados os seguintes tipos clínicos:
se for prolongada, são afectadas as estruturas cor- – Tipo espástico (hemiplegia, diplegia, tetra-
tico-subcorticais. plegia)
As causas pré-natais são as que mais contribuem – Tipo atáxico
para a etiologia da PC. A RMN veio demonstrar que – Tipo discinético (atetose, coreoatetose, dis-
um terço das PC em RN de termo se deve a dis- tonia)
genésias corticais, secundárias a alterações da Na diplegia há envolvimento dos quatro mem-
migração neuronal. Alguns destes casos são cro- bros, com franco predomínio dos inferiores. Na
mossomopatias que, com frequência, se associam a hemiplegia estão afectados os membros superiores
perturbações da migração; se forem suspeitadas, e inferior do mesmo lado. Na tetraplegia os quatro
devem ser investigadas com cariótipos de bandas membros são igualmente afectados. A escala de
de alta resolução e/ou técnicas moleculares. Ashworth, com uma graduação entre 1 e 4, é a
Na PC pós-natal (< 5% total das PC) as causas mais usada para avaliar o grau de espasticidade.
mais frequentes são a infecção (50%), as lesões vas- (Figuras 3 e 4)
culares (20%) e os traumatismos cranioencefálicos Nos 100 casos portugueses do EEEPC os tipos
(18%). A casuística do Serviço de Neuropediatria do mais frequentemente identificados foram a diple-
Hospital Dona Estefânia até 2007 num total de 100 gia (31%), seguindo-se a tetraparésia em 24%, a
crianças, engloba 4 casos com etiologia pós-natal (1 discinésia em 17%, a hemiparésia em 14%, e a
com meningite pneumocócica aos 18 meses, 1 por ataxia em 6%. Os movimentos involuntários eram
paragem cárdio-respiratória ao 28º dia de vida, 1 predominantemente do tipo atetósico, sendo os
com anomalia vascular cerebral com hemorragia menos frequentes os coreoatetósicos.

Mais atingido

Menos atingido

PC espástica PC espástica PC espástica


PC discinética
tetraparética diplégica hemiplégica

FIG. 3
Envolvimento anatómico nas paralisias cerebrais espástica e discinética.
924 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Dona Estefânia (SNPHDE) incluídos no EEEPC.


Encontrou-se disartria em 41% e dificuldade de
deglutição da saliva em 36%. De facto, este fenó-
meno na PC não é devido a hipersecreção salivar.
Os problemas visuais são frequentes na PC,
sobretudo o estrabismo que aparece em cerca de
metade dos casos. A hemianópsia deve ser sempre
avaliada, sobretudo nos casos de hemiparésia. O
défice auditivo também é um problema frequente,
FIG. 4 tendo ocorrido em 6 casos do SNPHDE.
Paralisia cerebral espástica O atraso cognitivo está presente em 60 a 70%
diplégica em criança com da população com PC. No grupo das 100 crianças
antecedentes de acima mencionado, avaliadas entre os 4 – 5 anos
prematuridade (postura (Escala de Griffiths e/ou Escala de Minnesota,
dos membros inferiores
classificados de acordo com os critérios do
em “tesoura”).
“Diagnostic and Statistical Manual of Mental
Disorders” (DSM-IV) só 37% apresentava quo-
No âmbito do PNVPC5A (em 513 crianças com ciente de inteligência (QI) > 70 e 44% tinha um
PC) foram obtidos os seguintes tipos clínicos pre- atraso grave ou profundo (QI<40). De referir que
dominantes: espástico-84,2%; discinético-11,3%; são as tetraparésias que se acompanham mais fre-
atáxico-2,9%; não classificável-1,6%. quentemente de atraso grave/profundo (75%).
A classificação da PC pelo tipo e topografia da Cerca de um terço dos casos de PC acompanha-
lesão é útil em termos clínicos e epidemiológicos, -se de epilepsia, sendo mais frequente nas tetra-
mas tem muitas limitações como indicador de parésias e hemiparésias (58% e 21% respectivamente
mobilidade, o qual é contemplado em escalas de no EEEPC). Trata-se habitualmente de epilepsias
avaliação das incapacidades, que estão numa fase parciais sintomáticas, com crises parciais motoras,
de uniformização internacional*. De acordo com o frequentemente com generalização secundária. As
PVNPC5A atrás citado aplicou-se uma das escalas crises associadas às hemiparésias podem ser refrac-
mais utilizadas para avaliação da função motora tárias à terapêutica antiepiléptica, o que estabelece
global – a GMFCS ou Gross Motor Function indicação para intervenção cirúrgica.
Classification System. A utilização deste tipo de As formas mais graves de PC (tetraplegias)
escalas permitirá avaliar e comparar os resultados apresentam, ainda hoje, um atraso importante do
de diversas abordagens terapêuticas nas múltiplas crescimento estaturo-ponderal (< percentil 5 em
casuísticas. Em relação ao grau de deficiência neu- 47% da casuística atrás referida).
romotora, no grupo acima referido, 38% apresen- Segundo o PVNPC5A, para avaliação da gra-
tava défice ligeiro, 35% moderado e 27% grave. vidade global do quadro de PC foi considerada
A disfunção pseudobulbar e oromotora, com uma classificação (Índice de Gravidade) baseada
compromisso da articulação verbal e dificuldades nos 4 principais compromissos funcionais regis-
alimentares, são frequentes na PC. Problemas de tados: cognição (QI<50), função motora global
comunicação verbal foram observados em 62% dos (GMFCS), presença de epilepsia e presença de
casos do Serviço de Neuropediatria do Hospital défice visual. As crianças com menor compromis-
so funcional não apresentam nenhum destes indi-
* Actualmente o problema da deficiência em geral é encarado numa cadores; as crianças que apresentam os 4 indi-
perspectiva biopsicossocial na tentativa de valorizar de modo estru-
turado as potencialidades remanescentes, ou seja , os aspectos posi- cadores são consideradas de maior gravidade.
tivos da interação entre o indivíduo com limitações e o contexto ambi- A osteoporose é um problema comum, conse-
ental e pessoal. Assim, em diversos centros estão a ser cada vez mais
aplicados diversos instrumentos tais como:curvas de referência para a
quência da imobilização, de terapêutica crónica
funcionalidade, curvas de desenvolvimento motor específicas para a com antiepilépticos (sobretudo o valproato de
PC, escalas de medida da função de motricidade grosseira, etc. Sugere-
se, a propósito, a consulta do Glossário Geral-Termos : Funcionalidade
sódio) e de défices nutricionais; daí o risco eleva-
e Incapacidade(Disability). do de fracturas ósseas.
CAPÍTULO 189 Paralisia Cerebral 925

Segundo a experiência do PVNPC5A, em 539 QUADRO 2 – Diagnóstico diferencial


crianças nascidas no período 2001-2003, apurou-se da Paralisia Cerebral
uma taxa de inclusão pré-escolar de 73%.
Com hipotonia
Diagnóstico diferencial • Doenças neuromusculares
• Distrofia neuroaxonal
Várias doenças genéticas e metabólicas, com início • Citopatias mitocondriais
na infância e de curso lentamente progressivo, Com distonia/movimentos involuntários
podem confundir-se com PC, dado partilharem • Distonia dopa-sensível
sinais e sintomas comuns*. O diagnóstico correcto • Acidúria glutárica tipo I
e precoce destas situações é fundamental, o que • Síndroma de Lesch - Nyhan
permite instituir um tratamento quando este é • Doença de Pelizaeus - Merzbacher
possível, informar a família do prognóstico da • Deficiência de piruvato desidrogenase
situação e proceder a aconselhamento genético. • Síndroma de Rett
Em muitos casos já é possível o diagnóstico pré- • Acidúria 3 - metilglutacónica
Com diplegia/tetraplegia
natal.
• Argininémia
Uma investigação mais aprofundada numa
• Paraparésia espástica progressiva hereditária
criança com clínica sugestiva de PC justifica-se
• Leucodistrofia metacromática (forma infantil)
nas seguintes situações:
Com ataxia
– Ausência de história de lesão perinatal
• Síndroma de Angelman
– Outros casos semelhantes na família
• Ataxia telangiectasia
– Regressão no desenvolvimento
• Atrofia/hipoplasia pontocerebelosa
– Presença de anomalias oculomotoras, movi-
• Ataxia espinocerebelosa ligada ao X
mentos involuntários, ataxia, alterações da sensi-
• Doença de Niemann - Pick tipo C
bilidade.
Quadro 2 discrimina de modo prático os qua-
dros clínicos de não PC, mas com sintomatologia gada, pois uma doença neurológica (ou uma
compatível com PC. Sugere-se, a propósito, a con- doença metabólica) subjacente poderá ter con-
sulta do Glossário Geral. tribuído para maior vulnerabilidade ao processo
do parto. Se não for encontrada uma causa que
Exames complementares explique o quadro clínico sugestivo de PC, ou se
houver suspeita de perda de aquisições, a criança
Face aos conhecimentos actuais, em toda a criança deve ser obrigatoriamente orientada para uma
com clínica de PC deve proceder-se a RMN ence- consulta de Neurologia Pediátrica com o objectivo
fálica, de preferência pelos 2-3 anos de vida, para de investigação mais detalhada.
uma melhor avaliação da mielinização cerebral.
Em muitos casos este exame é feito antes, numa Tratamento
tentativa de descobrir a etiologia (sobretudo
quando está em causa um eventual insulto peri- O tratamento da PC tem por objectivo essencial
natal) e estabelecer o prognóstico. Nesta última rendibilizar as potencialidades remanescentes da
circunstância justifica-se a repetição da RMN em criança e prevenir as complicações secundárias, as
data a definir em função do contexto clínico. quais contribuem para um agravamento da inca-
Mesmo que exista história de complicações pacidade pré-existente.
perinatais, a criança deve ser igualmente investi- O diagnóstico e intervenção precoces são fun-
damentais de modo a rendibilizar também a plasti-
* Contudo, reportando-nos ao fluxograma elaborado pela SCPE (con- cidade cerebral dos primeiros anos de vida, ou seja,
sultar Bibliografia no fim do Capítulo: G Andrada et al) determinada a reorganização cerebral pós-lesional através do
situação com síndroma genética ou com anomalia cromossómica , se
evidenciar perturbação do movimento e postura de origem central,
estabelecimento de novas conexões sinápticas e cir-
hipotonia generalizada e sinais de ataxia corresponderá a PC atáxica. cuitos neuronais. Tal como é referido no capítulo
926 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

10, a recuperação da função é tanto mais eficaz Andrada MG, Virella D, Folha T, Gouveia R, Cadete A,
quanto mais precoce, intensiva e continuada for a Alvarelhão JJ, Calado E. Paralisia Cerebral aos 5 Anos de
estimulação com técnicas de neurodesenvolvimen- Idade (Crianças com PC nascidas em entre 2001 e 2003).
to realizadas por profissionais especializados, com Lisboa: APPC,UVP/SPP,SCPE, 2013
colaboração dos pais e as ajudas técnicas neces- Campagnoni AT, et al (eds). Developmental Neuroscience.
sárias. Basel: Karger, 2008
Nos últimos anos o uso da toxina botulínica Cans C, McManus V, Crowley M, Guillem P, Platt MJ, Johnson
veio diminuir significativamente o número de A, Arnaud C. Cerebral palsy of post-neonatal origin: char-
intervenções ortopédicas. No grupo do EEEPC acteristics and risk factors. Surveillance of Cerebral Palsy in
receberam toxina botulínica 41% dos casos de Europe Collaborative Group. Paediatr Perinat Epidemiol.
diplegia, 23% de tetraparésias e 13% de 2004; 18: 214-220
discinésias, num total de 20 casos, até 2006. Ainda Fairhurst C. Cerebral palsy:the whys and hows. Arch Dis Child
num número significativo de doentes é necessário Educ Practice 2012; 97:122-131
actuar cirurgicamente, quer nas regiões tendi- Hagberg H, Mallard C. Effect of inflammation on central nerv-
nosas, quer ósseas. Quando existem já contrac- ous system development and vulnerability. Curr Opin
turas, a cirurgia ortopédica aplicada criteriosa- Neurol 2005; 18: 117-123
mente será a única solução. Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
O recurso à cirurgia da cifoscoliose tem vindo AA(eds). Rudolph’_s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
a aumentar nas formas graves de PC, no sentido Medical, 2011
de melhorar a postura em doentes não ambu- Senner JE, Logemann J, Zecker S, Gaebler-Spira D. Drooling,
lantes e preservar a função respiratória. saliva production, and swallowing in cerebral palsy. Dev
A terapêutica farmacológica oral antiespásti- Med Child Neurol. 2004; 46: 801-806
ca tem a vantagem de ser de fácil administração, Vale MC. Classificação internacional de funcionalidade:con-
mas habitualmente à custa de efeitos secundários ceitos, preconceitos e paradigmas. Acta Pediatr Port 2009;
importantes. As mais usadas são o baclofeno, o 40:229-236
diazepam e o dantroleno. Zonta MB, Ramalho-Júnior, Santos LHC. Avaliação funcional
A rizotomia dorsal selectiva, que envolve a na Paralisia Cerebral. Acta Pediatr Port 2011; 42: 27-32
secção de cerca de 50% das raízes dorsais, diminui Walter SD, Raina P, Galuppi BE, Wood E. Limb distribution,
a espasticidade dos membros inferiores, melho- motor impairment, and functional classification of cerebral
rando a posição de sentado e a marcha; é uma palsy. Dev Med Child Neurol 2004; 46: 461-467
opção terapêutica, sobretudo nas diplegias espás-
ticas graves.
A perfusão contínua intratecal de baclofeno
está indicada, sobretudo nos doentes com espastici-
dade dos membros inferiores, sendo de referir que
já foram descritos benefícios quanto à espasticidade
dos membros superiores e às formas distónicas.
A gastrostomia nos casos graves de PC (como
as tetraparésias com componente pseudobulbar)
melhora significativamente o estado nutricional e
a qualidade de vida destas crianças.

BIBLIOGRAFIA
Alberman E, Peckam C. Cerebral palsy and perinatal exposure
to neurotropic viruses. BMJ 2006; 332: 63-64
Andrada MG, Loff C, Gaia T, Batalha I, Duarte J,Calado E,
Folha T, Nunes F, Ferreira C, Carvalhão. Estudo Europeu
sobre Etiologia da Paralisia Cerebral – Região de Lisboa.
Lisboa: Edição APPC, 2005
CAPÍTULO 190 Defeitos do tubo neural 927

190
as mesmas obrigam ao recurso a cuidados de saú-
de de nível terciário dada a multiplicidade, especi-
ficidade e complexidade dos problemas habitual-
mente associados.
A SB constitui o paradigma de problema com-
plexo implicando enorme consumo em recursos
DEFEITOS DO TUBO NEURAL de saúde, com múltiplas consultas, tratamentos,
internamentos e intervenções cirúrgicas não só
Eulália Calado neurológicas mas também ortopédicas e nefro-
urológicas. A possibilidade de prevenção de
muitas complicações com melhoria significativa
da qualidade de vida e redução substancial dos
Definição e importância do problema custos, passa necessariamente pelo ensino e cres-
cente corresponsabilização do doente e família na
Os defeitos do tubo neural (DTN) (ou disrafismo) prestação de cuidados.
incluem anomalias congénitas da coluna e do Os doentes com SB têm compromisso motor e
cérebro; os mais frequentes são a spina bifida (SB) sensitivo, malformações ortopédicas, ausência de
e a anencefalia (esta incompatível com a vida). controlo de esfíncteres, e complicações renais se-
A spina bifida (SB) consiste no não encerramen- cundárias à bexiga neurogénica.
to do arco posterior de algumas vértebras, com Existem também complicações da hidrocefalia
possibilidade de herniação do tecido neural. consequente, traduzidas frequentemente por difi-
(Figura 1). culdades de aprendizagem, atraso mental, pertur-
O espectro clínico dos DTN inclui ainda o bações do equilíbrio, da marcha e problemas oftal-
encefalocele, a craniorraquisquise (anencefalia mológicos. (ver adiante)
associada a raquisquise ou fissura congénita da Devido à multiplicidade e complexidade dos
coluna vertebral com exposição do tecido neural) problemas destes doentes, foi sentida a necessi-
e a iniencefalia (disrafismo na região occipital, dade de se constituirem equipas multidiscipli-
acompanhado por retroflexão acentuada do pes- nares que pudessem prestar cuidados de saúde
coço e tronco). Tais defeitos devem-se a um desen- abrangentes e coordenados. No Hospital Dona
volvimento anómalo do neuroporo durante a Estefânia funciona desde 1985 um Núcleo de
embriogénese, com disrupção do osso e das estru- Spina Bífida onde são seguidas regularmente
turas mesenquimatosas. A lesão primária neuroló- cerca de 180 crianças e adolescentes.
gica vai afectar outros sistemas além do sistema Neste capítulo é dada especial ênfase a este tipo
nervoso, o que torna os DTN as anomalias de de problema.
desenvolvimento mais complexas.
Tratando-se de multideficiências (coexistência Sistematização
de duas ou mais perturbações nas áreas motora,
sensorial e cognitiva) de baixa incidência e pre- Na prática utiliza-se o termo de spina bifida (SB) ou
valência que entram no âmbito das doenças raras, espinha bífida como sinónimo de DTN, atenden-
do a que as crianças com os outros tipos de DTN
raramente sobrevivem. Esta anomalia localiza-se
mais frequentemente na região lombo-sagrada,
embora possa aparecer ao longo de toda a coluna.
Compreende as formas fechadas e as formas aber-
tas, consoante o tecido neural se encontra ou não
FIG. 1
coberto pela pele normal.
Imagens axiais de RMN da coluna que mostram o não As formas fechadas podem incluir uma massa
encerramento posterior das vértebras e a existência de subcutânea (lipomielomeningocele, lipomeningo-
hidro-siringomielia (seta). (ver adiante) cele, mielocistocele), que faz saliência na região
928 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

to de uma ou duas vértebras na transição lombo-


sagrada (L5 e/ou S1), demonstrada nas radi-
ografias desta zona, com completa integridade da
medula e meninges; de referir que isoladamente
não tem repercussão clínica.
As formas fechadas associam-se, por vezes, a
alterações cutâneas (hipertricose, hemangiomas
capilares, fossetas) na linha média da região
lombo-sagrada (Figura 2 e 3).
Das formas abertas faz parte o meningocele
(Figura 4), em que já existe herniação das
meninges através do defeito ósseo e que implica
correcção neurocirúrgica; em geral, não se acom-
panha de qualquer sintomatologia motora. No
FIG. 2 mielomeningocele (Figura 5), a forma mais grave
RN com uma forma fechada de SB (lipomielomeningocele). de SB (e aquela que habitualmente se subentende
Nota-se tumefacção lombar, angioma cutâneo e fosseta quando se faz referência a SB), existe procidência
mediana horizontal. da medula espinhal ou das raízes nervosas atra-
vés do defeito ósseo, com lesões neurológicas
lombo-sagrada (Figura 2). As formas fechadas sem mais ou menos importantes. Usa-se frequente-
massa subcutânea compreendem o filum terminal mente o termo de SB quística para denominar o
ancorado, o lipoma intradural, o sinus dérmico ou mielomeningocele e o meningocele. Em cerca de
mesmo disrafismos mais complexos como o quisto 80% dos casos a SB (na sua forma de mielomenin-
neuroentérico, a diastematomielia ou a agenésia gocele) acompanha-se de hidrocefalia (Figura 6)
caudal. A chamada spina bifida oculta, que se encon- por malformação cerebral associada (malforma-
tra em 5% da população, diz respeito em sentido ção de Arnold Chiari II e/ou estenose do aquedu-
estrito apenas ao defeito ósseo do não encerramen- to de Sylvius).

PC discinética

Pele
Pele
LCR
Tufo de pêlos LCR Meninges

Pele

FIG. 3 FIG. 4 FIG. 5


SB oculta com um tufo de pêlos Meningocele com herniação das Mielomeningocele. A medula e as
sinalizando o encerramento incompleto meninges através do defeito ósseo. meninges herniam através da abertura
do arco posterior da vértebra. A medula Medula íntegra. óssea.
e as meninges estão intactas.
CAPÍTULO 190 Defeitos do tubo neural 929

0,1/1000 nado-vivos. Isto deve-se, em parte, às


possibilidades de diagnóstico pré-natal possibili-
tando a interrupção da gravidez nos casos mais
graves; as ecografias pré-natais de alta resolução
(ecografias morfológicas) permitem a visualização
do defeito neural entre a 16ª e a 20ª semana de ges-
tação em cerca de 99% dos casos. Reportando-nos
ao estado nutricional, cabe referir que a ingestão
de ácido fólico (4mg/dia) durante 3 meses antes
da concepção e no 1ºtrimestre de gravidez em
mulheres com antecedentes gravidez com DTN,
diminui em cerca de 70% a recorrência de DTN.
Até à década de sessenta era escasso o número de
doentes com SB que sobrevivia, pois não havia pos-
sibilidade de proceder a derivação da hidrocefalia.
Logo que tiveram início as intervenções de derivação
ventriculoperitoneal (DVP) a sobrevida foi aumen-
FIG. 6
tando e, actualmente, nos países ocidentais, cerca de
TAC evidenciando hidrocefalia com DVP em criança com 90% dos doentes atingem a idade adulta.
mielomeningocele ao nível D12, siringomielia extensa, atrofia
significativa do manto cortical, e atraso cognitivo grave. Etiopatogénese

Recordam-se, a propósito, as seguintes defini- A falência do encerramento do tubo neural ocorre


ções complementares: nos estádios embrionários precoces da gastrulação
• Hidrocefalia (ou hidrencefalia): dilatação e da neurulação (primeiras 6 semanas de gestação).
das cavidades ventriculares e dos espaços sub- O defeito básico consiste no não encerramento
aracnoideus da cavidade craniana por pressão primário do tubo neural, embora a reabertura
excessiva do LCR, (produzido pelos plexos secundária também seja considerada nalguns casos.
coroideus nos ventrículos laterais) podendo deter- A etiologia é multifactorial com um compo-
minar aumento do perímetro cefálico. nente genético e outro ambiencial; neste último é
• Malformação de Arnold-Chiari: defeito con- importante o papel desempenhado pela privação
génito que consiste na descida do cerebelo e tron- vitamínica na mãe, na data da fecundação, sobre-
co cerebral para o canal vertebral e penetração das tudo de ácido fólico. Este aspecto explica o aumen-
amígdalas cerebelosas no canal cervical com con- to de incidência da SB nas classes mais desfavore-
sequente hidrocefalia. cidas e em situações de guerra ou de catástrofe,
• Siringomielia: afecção crónica caracterizada caracterizadas por carências nutricionais.
pelo desenvolvimento progressivo, na medula cer-
vical e cérvico-dorsal, de uma cavidade na sub-
stância cinzenta, atrás do canal ependimário, por
obstrução da normal circulação de LCR ao nível do
foramen magnum. Como consequência, surge atrofia
muscular, sobretudo nos membros superiores com
FIG. 7
hipotonia, atrofia dos tegumentos e abolição da
sensibilidade dolorosa e térmica. (Figura 7) Siringomielia “septada” a nível
cérvico-dorsal (com aspecto
Aspectos epidemiológicos quístico), numa criança de três
anos com mielomeningoncele
nível S1 e Arnold-Chiari II
A prevalência da SB tem vindo a descrescer nos concomitantes.
países desenvolvidos, sendo actualmente cerca de
930 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Relativamente aos factores genéticos, eles rela- de evacuação – buracos de Magendie e Lushka) e
cionam-se essencialmente com os genes, ainda atrésia do aqueduto de Sylvius.
não completamente identificados, que regulam o A circulação do LCR depende dum gradiente
metabolismo do complexo folato-homocisteína, de pressões; em situação normal a pressão intra-
principal responsável pelo controlo dos mecanis- ventricular é ~ 180 mm H2O e a do seio longitudi-
mos celulares de encerramento do tubo neural. O nal superior ~ 90 mm H2O.
risco de uma mulher com um filho portador de SB A hidrocefalia que resulta de obstrução ao
vir a ter outro filho afectado é 20 vezes superior ao nível do sistema ventricular é chamada obstrutiva
da população geral. No Núcleo de SB do HDE, ou não comunicante; a que resulta de obliteração
houve 4 recorrências de fetos com SB em 165 mães ao nível das cisternas subaracnoideias, ou de dis-
de crianças afectadas, seguidas ao longo de 20 função das vilosidades aracnoideias é chamada
anos. O valproato de sódio e a carbamazepina, não obstrutiva ou comunicante.
medicamentos antiepilépticos, aumentam a
incidência de DTN quando tomados durante a Manifestações clínicas
gravidez, por muito provável interferência no
metabolismo do ácido fólico. Na impossibilidade Em termos de sistematização, os doentes com SB
de mudar a terapêutica, estas mulheres devem dividem-se em 3 grupos, de acordo com o nível da
obrigatoriamente receber suplementos de ácido lesão: nível superior (L2 ou acima), nível médio
fólico e, ao engravidarem, ser seguidas em consul- (L3 a L5), e nível inferior (S1 ou abaixo). Quanto
ta de alto risco, com ecografias obstétricas mor- mais elevado for o nível da lesão (Figura 8) maior
fológicas de elevada resolução. Nas 136 crianças a probabilidade de ocorrência de hidrocefalia e
actualmente seguidas no Núcleo de SB do HDE, maior o grau de incapacidade motora e de com-
duas mães tinham tomado carbamazepina e uma plicações secundárias.
valproato de sódio, durante a gravidez. Cerca de 40% dos doentes com SB desloca-se
A solução de continuidade ao nível do tubo em cadeira de rodas. A lesão medular e/ou das
neural permite a excreção de substâncias produzi- raízes nervosas é responsável pela paraplegia
das no feto (alfa-feto-proteína [AFP], acetilcoli- mais ou menos grave, pelo compromisso da sensi-
nesterase) para o líquido amniótico, servindo de bilidade com risco de úlceras de pressão e
marcadores bioquímicos do defeito em causa. Por queimaduras, pelas malformações e deformações
outro lado, o rastreio no soro materno de AFP ortopédicas, pela ausência de controlo dos esfínc-
entre as 16-18 semanas de gestação permite iden- teres vesical e anal, e pelas complicações nefro-
tificar fetos de risco. urológicas.
A hidrocefalia, que surge na grande maioria A hidrocefalia que, como foi referido, ocorre na
dos casos de DTN, explica-se fundamentalmente grande maioria dos casos de mielomeningocele, é
por 3 mecanismos gerais: a causa dos problemas cognitivos, visuais e de
1) insuficiência de reabsorção do LCR pelas equilíbrio que alguns doentes com SB apresentam.
vilosidades aracnoideias de Pacchioni, sendo o Nos doentes com SB sem hidrocefalia, a função
mesmo segregado pelos plexos coroideus nos ven- cognitiva é habitualmente sobreponível à da po-
trículos laterais (por ex. trombose dos seios pulação geral.
venosos); A epilepsia, presente num número restrito
2) hipersecreção de LCR (raramente), por destes doentes (3% – na casuística do Núcleo do
exemplo, por papiloma dos plexos coroideus; HDE), é habitualmente secundária a complicações
3) obstrução mecânica (98% dos casos) impe- da hidrocefalia.
dindo a circulação do LCR; para além de proces- Apneia, alteração de deglutição e estridor
sos inflamatórios, cabe referir fundamentalmente podem surgir nalguns doentes com SB, sobretudo
tumores e anomalias congénitas já citadas antes, lactentes, devido à malformação de Arnold-Chiari
associadas a DTN, acrescentando a anomalia de e a conflito de espaço a nível do foramen magnum,
Dandy-Walker (dilatação quística do IVº ventrícu- com disfunção dos pares cranianos inferiores.
lo por ausência congénita dos respectivos orifícios Mais de metade dos doentes com malformação
CAPÍTULO 190 Defeitos do tubo neural 931

A (medula ancorada), com o consequente estiramen-


to. Esta situação também é responsável pela deteri-
oração nefro-urológica secundária ao agravamento
da bexiga neurogénica, com pressão intravesical
elevada, o que facilita o aparecimento de refluxo
vesico-ureteral e de cicatrizes renais secundárias a
infecção. Este problema neurocirúrgico deve ser
atempadamente resolvido, logo que surjam os
primeiros sinais neurológicos “de novo” (pés cavus,
hiperreflexia, espasticidade distal com encurtamen-
to do tendão de Aquiles, diminuição de força,
atrofia dum dos membros inferiores ou síndromas
B álgicas) e/ou agravamento dos exames urodinâmi-
cos, com repercussão clínica. (Capítulo 170)
As deformações ortopédicas também são fre-
quentes e determinadas pelo nível da lesão e com-
plicações da medula ancorada. O pé equinovaro, a
luxação da anca e a cifoscoliose são as alterações que
motivam maior número de intervenções ortopédicas
nesta população. As fracturas espontâneas nos
membros inferiores ocorrem com frequência nas SB
com nível mais elevado e maior compromisso
motor; atendendo à ausência de sensibilidade nestes
doentes, o diagnóstico pode ser tardio (Figura 9).
FIG. 8
De salientar que cerca de 50% da população
A – Mielomeningocele de nível superior (D10), com exposição com SB tem hipersensibilidade ao látex.
do tecido neural. B – Criança vinda de África com um mês de
vida. Mielomeningocele íntegro e hidrocefalia sintomática Diagnóstico
(vómitos e letargia).
O diagnóstico do disrafismo espinhal pode ser
de Arnold-Chiari II apresenta siringo-hidromielia, feito a partir da 14ª semana de gestação através da
logo nos primeiros anos de vida. Localizando-se ecografia pré-natal morfológica. A hidrocefalia na
habitualmente nas regiões cervical ou dorsal, traduz-
se por compromisso das sensibilidades dolorosa e
térmica nos dermátomos correspondentes, e
diminuição de força e atrofia dos músculos da mão
ou mesmo de todo o membro superior (Figura 7).
Praticamente todos os portadores de SB têm
incontinência de esfíncteres urinário e anal, por
compromisso do sistema nervoso autónomo. São
frequentes as infecções urinárias, e cerca de um
terço evoluirá para insuficiência renal se não hou-
ver um correcto acompanhamento tendo em conta
as particularidades da bexiga neurogénica.
Com o crescimento existem sérias possibilidades
de deterioração da marcha nas formas inicialmente
FIG. 9
ambulatórias, devido à baixa terminação da medu-
la (L5-S1 em vez de L1 como nos indivíduos nor- Fractura espontânea do colo do fémur esquerdo em criança
mais), e à sua fixação às estruturas envolventes com mielomeningocele nível L1.
932 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

SB tem início, na maioria dos casos, no período realizar-se logo nas primeiras horas de vida de
pré-natal, a partir das 20 semanas de gestação. A modo a evitar a infecção e, assim, diminuir o risco
RMN fetal veio tornar possível uma melhor iden- de agravamento da lesão motora e o compromisso
tificação dos DTN; o recurso a este exame é indis- cognitivo. Quanto aos lipomeningoceles, a inter-
pensável para fundamentar a decisão relativa- venção pode ser adiada vários meses ou mesmo
mente ao prosseguimento ou interrupção duma anos, desde que não sejam muito volumosos e não
gravidez cursando com DTN. apareçam sinais associados à medula ancorada.
Após o nascimento é ainda a RMN o exame de A hidrocefalia pode estar presente desde o
escolha para uma adequada avaliação destas si- nascimento (em cerca de 15% dos mielomeningoce-
tuações; sempre que possível deve ser realizada à les) e a DVP pode realizar-se em simultâneo com o
totalidade do SNC antes do encerramento do encerramento do MM. Na maioria dos casos a
DTN, para estudo evolutivo mais apurado. hidrocefalia torna-se aparente 2 a 3 semanas depois
A inexistência de pregas radiárias perianais ou do encerramento do DTN. Daí a necessidade da
a sua escassez apontam para o quadro de intesti- derivação, colocando um tubo flexível no sistema
no neurogénico com maior probalidade de incon- ventricular cerebral (geralmente no ventrículo la-
tinência anal. teral direito) para drenar o excesso de LCR para o
Nas formas fechadas deve ser sempre realiza- peritoneu. Nos raros casos em que não existe possi-
do o estudo imagiológico por RMN da coluna, bilidade de absorção pelo peritoneu, esta derivação
sobretudo se houver a associação de 2 ou mais deverá ser feita para uma das aurículas.
sinais cutâneos. O “desancoramento” da medula melhora a
A medula ancorada é uma complicação fre- disfunção da bexiga e evita a progressão de sinais
quente das formas abertas e fechadas de disrafismo; piramidais nos membros inferiores. Uma vez estes
pode tornar-se sintomática em qualquer idade, mas instalados, já é problemática a sua regressão, em-
mais frequentemente na criança ou jovem adulto: bora se possa evitar a sua progressão.
desenvolvimento de sinais piramidais nos membros A maioria das crianças com SB necessita de
inferiores, deterioração da marcha, aumento da fre- apoios para a sua mobilidade – talas, canadianas
quência de infecções urinárias, maiores dificuldades e/ou cadeiras de rodas. A obesidade é um dos
na continência, e desenvolvimento de escoliose. problemas frequentes nesta população a qual, não
só compromete ainda mais a sua deambulação,
Tratamento como aumenta o risco de doenças cardiovasculares.
A ausência de sensibilidade favorece o apareci-
O tratamento da SB já é possível iniciar-se durante mento de escaras, feridas ou queimaduras nas
a gravidez, com a cirurgia fetal. O encerramento zonas afectadas devido à inexistência de dor. A
do mielomeningocele (MM) in utero diminui a sua cicatrização é lenta e obriga muitas vezes à
probabilidade de desenvolvimento de hidroce- imobilização prolongada e a longos internamen-
falia, mas parece não melhorar muito a funciona- tos hospitalares.
lidade dos membros inferiores. Outros factores condicionantes do prognóstico
Trata-se duma área da cirurgia fetal ainda em da SB, e causas frequentes de mortalidade, são as
investigação, restrita a alguns centros neurocirúr- complicações (obstrução, infecção) das DVP para
gicos; é, por isso, necessário avaliar mais estudos resolução da hidrocefalia. Mesmo as hidrocefalias
prospectivos comparando os resultados do encer- sem válvula necessitam de vigilância periódica,
ramento no período pré-natal com os do encerra- pois existe sempre a possibilidade da sua descom-
mento no período pós- natal. pensação, com repercussões a nível cognitivo
Após a criança nascer, o encerramento do mielo visual e motor. No Quadro 1 figuram os sinais
ou do meningocele deve realizar-se nas primeiras mais frequentes de disfunção duma DVP.
24 a 72 horas de vida num bloco operatório isento Grande parte das crianças e jovens com SB tem
de látex, medida que deverá ser sempre seguida alterações vesicais e intestinais (bexiga e intestino
em ulteriores intervenções cirúrgicas. Se houver neurogénicos), implicando necessidade de apren-
rotura da membrana envolvente, a cirurgia deverá dizagem do seu controlo e de tratamento de modo a
CAPÍTULO 190 Defeitos do tubo neural 933

QUADRO 1 – Sinais de disfunção de DVP se o que foi dito antes a propósito da importância
do suplemento oral de ácido fólico na dose de
Agudos 4mg/dia (nos casos de antecedentes de SB em
– Cefaleia,vómitos,estrabismo, letargia filho anterior), desde 1 mês antes da data planea-
Insidiosos da para a concepção e, pelo menos, ao longo do
– Dificuldade de concentração primeiro trimestre da gravidez, enquanto durar a
– Aparecimento/agravamento de dificuldades neurulação; não se verificando antecedentes de
escolares risco, em idêntico período é recomendada a dose
– Alterações do humor menor (0,4 mg).
– Cefaleia intermitente As mulheres com epilepsia e que queiram
– Sonolência engravidar devem evitar tomar o valproato de
sódio ou a carbamazepina; caso não seja possível
substituir esta medicação antiepiléptica, são
obter, sempre que possível, uma continência social. imprescindíveis os suplementos pré e periconcep-
Para evitar lesões renais, os pais e mais tarde as cionais com ácido fólico e a sua orientação para
próprias crianças (de preferência antes de entra- uma consulta de alto risco.
rem na escola primária), devem aprender a fazer
algaliações para esvaziar a bexiga de 4 em 4 horas, BIBLIOGRAFIA
com pausa nocturna de 8 horas. A cateterização Adzick NS, et al. Prenatal repair of myelomeningocele versus
intermitente deve ser instituída logo nos primei- postnatal repair. N Engl J Med 2011; 364: 993 - 1004
ros meses de vida sempre que os resíduos uriná- Aslan AR, Kogan BA. Conservative management in neurogenic
rios sejam superiores a 10% da capacidade vesical bladder dysfunction. Curr Opin Urol 2002; 12: 473-477
calculada para a idade da criança. Calado E, Loff C. The failures of spina bifida transdisciplinary
care. Eur J Pediatr Surg 2002; 12: S51-52
Prognóstico Campagnoni At, et al (eds). Developmental Neuroscience.
Basel: Karger, 2008
São necessários exames complementares de diag- Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
nóstico seriados (urinoculturas, ecografias e cinti- Dias L.Orthopedic care in spina bifida: past, present and
grafias renais, cistografias, estudos urodinâmicos, future. Dev Med Child Neurol 2004; 46: 579
RMN,TAC) e múltiplos tratamentos médicos e/ou Guggisberg D, Hadj-Rabia S, Viney C, et al. Skin markers of
cirúrgicos para prevenir e tratar as complicações occult spinal dysraphism in children. Arch Dermatol 2004;
ao longo da vida do doente com SB. A inexistência 140: 1109-1115
de equipas multidisciplinares que assegurem uma Kaufman BA. Neural tube defects. Pediatr Clin North Am.
adequada vigilância do doente com SB reflecte-se 2004; 51: 389-419
habitualmente em deterioração da qualidade de Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
vida. AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
Há menos de três décadas poucos bebés com Medical, 2011
SB sobreviviam ao seu primeiro ano de vida. Hoje, ShinSH, Im YJ, Lee YS,et al. Spina bifida occulta:not to be over-
graças a um melhor tratamento que passa, não só looked in children with nocturnal enuresis. Int J Urol 2013
por uma sofisticação das técnicas actualmente Jan 8.doi:10.1111/ju.12054
disponíveis, mas também por um forte investi- Van Dyke DC, Stumbo PJ, Berg MJ, Niebyl JR. Folic acid and
mento na prevenção das complicações secundá- prevention of birth defects. Dev Med Child Neurol 2002; 44:
rias, em 90% dos casos é atingida a idade adulta. 426-429
Walsh DS, Adzick NS. Foetal surgery for spina bifida. Semin
Prevenção Neonatol 2003; 8: 197-205

O tubo neural desenvolve-se nas primeiras 4 se-


manas da gravidez, quando a maioria das mu-
lheres ainda desconhece que está grávida. Reitera-
934 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

191
disciplinares escalonadas ao longo do tempo, adap-
tadas à evolução da criança, e tentando responder
às solicitações da família em que ela se insere.
Em qualquer intervenção (re)habilitadora há
que: respeitar e facilitar as diversas etapas do neu-
rodesenvolvimento da criança, nomeadamente a
HABILITAÇÃO PARA aquisição do controlo cefálico e do tronco, da
quadrupedia (quando possível), da verticalização,
A MARCHA E AJUDAS e da funcionalidade dos membros superiores; e,
igualmente estimular o desenvolvimento das fun-
TÉCNICAS EM CRIANÇAS ções perceptivas e cognitivas e da aquisição da lin-
guagem e da fala.
COM SPINA BIFIDA Em geral as crianças com SB são simpáticas e
sociáveis, e não levantam problemas de comuni-
Clara Loff cação nem de socialização.
Só uma equipa multi e transdisciplinar que
envolva médicos, enfermeiros, terapeutas (fisiote-
rapeutas, terapeutas ocupacionais e terapeutas da
Importância do problema fala), psicólogos, técnicos do serviço social, edu-
cadores e professores, pode dar resposta aos
Conforme é tratado no capítulo anterior, a spina bifida inúmeros desafios que coloca um doente com
(SB) é a forma mais comum de disrafismo espinhal. spina bifida. A (re)habilitação destas crianças visa
Tendo em perspectiva a habilitação para a essencialmente três objectivos: 1 – a preservação
marcha nos casos com esta anomalia, o Quadro 1 da função renal (e a obtenção de continência
discrimina os diferentes níveis de lesão medular e esfincteriana socialmente aceitável). 2 – a aqui-
suas consequências músculo-esqueléticas. sição da marcha ou, na impossibilidade desta, a
deambulação autónoma. 3 – a promoção dum
Intervenção desenvolvimento psicomotor adequado.
Neste capítulo é abordada concisamente a
A actuação envolve uma série de intervenções pluri- intervenção na área da (re)abilitação motora, que

QUADRO 1 – Diferentes níveis de lesão medular e suas consequências músculo-esqueléticas

Nível da lesão Défices musculares Alterações ortopédicas


L2 e acima Paralisia completa dos membros inferiores Ancas – Flexum e luxação
L3 Paralisia praticamente completa dos membros Ancas – Flexum e luxação
inferiores, excepto parte dos flexores e adutores Pés – Deformidades várias
das ancas
L4 Ancas – Défice dos abdutores, extensores e recto interno Ancas – Flexum e rotação externa
Joelhos – Défice do quadricípete Risco de luxação
Pés – Défice do tricípete e do tibial posterior Joelhos – Recurvatum
Pés – Talus-varus
L5 Ancas – Défice dos extensores Ancas – Flexum
Joelhos – Défice dos ísquio-tibiais Joelhos – Défice de flexão
Pés – Défice do tricípete sural Pés - Talus
S1 Ancas – Défice dos extensores Ancas – Flexum redutível
Pés –Défice do tricípete sural e dos peroneais Pés – Talus e talus-valgus
S2 Défice dos músculos intrínsecos dos pés Pés cavus e dedos em garra
CAPÍTULO 191 Habilitação para a marcha e ajudas técnicas em crianças com spina bifida 935

visa essencialmente: a) – evitar as deformidades e rem correcção cirúrgica em tempos que devem ser
alterações posturais; b) – a aquisição da deambu- discutidos entre especialistas que tratam o doente,
lação autónoma. como o ortopedista, o neurocirurgião e o fisiatra.
O tratamento preventivo dos desalinhamentos As escolioses, por serem progressivas com
segmentares dos membros inferiores em crianças graves consequências posturais e respiratórias,
com esta patologia é uma preocupação presente têm indicação cirúrgica desde que a curvatura
desde o nascimento, e mantém-se ao longo do torácica tenha angulação superior a 40 graus.
crescimento. Antes, logo que sejam detectados desvios estrutu-
Desde os primeiros dias de vida avaliam-se as rados da coluna vertebral, deve actuar-se através
alterações músculo-esqueléticas, motoras, sensiti- do uso de ortóteses do tronco (coletes). Estes não
vas e esfincterianas, estabelecendo o nível da lesão irão alterar a progressão da curvatura, mas per-
medular. Nas situações em que se detectam, ou mitem uma postura mais correcta do tronco, facili-
prevêem, alterações posturais ou contracturas tando a posição de sentar e a funcionalidade dos
musculares (que podem originar flexum, sub-lu- membros superiores (Capítulo 243).
xações, talismo ou equinismo), utilizam-se técni- Para conseguir o ortostatismo e a marcha, a
cas de fisioterapia (mobilização, estimulação e criança com SB necessita, regra geral, de algum tipo
posicionamentos) e confeccionam-se pequenas de ajuda técnica (abordada adiante). Caso não con-
ortóteses; de preferência ligaduras funcionais exe- siga uma marcha autónoma, poderá beneficiar de
cutadas com adesivo hipoalérgico, ou talas de algum meio de deambulação adaptado, como a
material termomoldável, necessariamente leves e cadeira de rodas, de propulsão manual ou eléctrica.
almofadadas para posicionamento dos joelhos, Atendendo ao carácter de multideficiência de
tíbio-társicas e pés. Um exemplo frequente de con- que a maioria das crianças com SB padece, são
tracturas precoces é o dos flexores da anca e do necessárias intervenções terapêuticas que englo-
joelho, (flexum) cuja instalação pode ser preveni- bem, quer técnicas de estimulação do neurode-
da colocando o bebé em decúbito ventral várias senvolvimento, quer fisioterapia, terapia ocupa-
vezes por dia. cional, terapia da fala e outras.
À medida que a criança cresce e se desenvolve Todas estas terapêuticas, sejam as preventivas
vai sendo necessário reavaliá-la periodicamente, e correctivas das alterações músculo-esqueléticas,
estabelecendo definitivamente o nível de lesão com os esforços na obtenção da marcha, sejam as
medular, o que nem sempre se consegue nas estimuladoras do desenvolvimento, utilizam
primeiras observações. Presta-se especial atenção algum tipo de ajudas técnicas, para compensar a
à detecção precoce de deformidades, não só nos deficiência ou incapacidade presentes.
membros inferiores, como na coluna vertebral. A As ajudas técnicas também denominadas
luxação ou subluxação das ancas, os flexa dos joe- apoios tecnológicos (AT), incluem um conjunto
lhos, as alterações posturais dos pés e as escolioses de equipamentos, produtos e serviços que têm
são frequentes e exigem intervenções terapêuticas como objectivo promover a independência das
atempadas. pessoas com deficiência e incapacidade, tendo
As luxações e subluxações das ancas têm indi- como finalidade a igualdade de oportunidades e
cação cirúrgica se forem dolorosas, caso a criança a inclusão social.
tenha potencialidades para a marcha (lesões Abrangem um vasto leque de aparelhos e
abaixo de L3); ou se forem unilaterais (provocan- mecanismos que vão de simples talas até equipa-
do assimetria da bacia e dificuldade em assumir a mentos sofisticados de controlo remoto, passando
posição de sentar). por cadeiras de rodas manuais ou motorizadas,
As alterações dos joelhos e a sua repercussão próteses para amputados, aparelhos auditivos,
funcional são habitualmente de menor importân- óculos e lentes de contacto, ventiladores mecâni-
cia. A prevenção dos seus flexa faz-se pelo posi- cos, e equipamentos de apoio às actividades de
cionamento com talas de extensão. vida diária.
As deformidades dos pés (talus, equinus, aduc- Em resumo, no conceito de AT é englobado
tus, valgus, equino-varus), quando rígidas, reque- qualquer aparelho ou mecanismo que auxilia o
936 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

doente com deficiência, promovendo a normaliza- criança é lento, não conseguindo acompanhar os
ção funcional e melhorando a sua qualidade de outros alunos. Embora a motricidade fina possa
vida. estar afectada, a maioria das crianças com SB con-
Um dos subgrupos das AT é o das ortóteses segue ter um grafismo e escrita aceitáveis, sendo o
atrás definidas. computador apenas um auxiliar e não um substi-
As AT são necessárias à maioria das crianças tuto destas funções.
com SB, não só pela necessidade de alinhamento Nos casos raros em que existem alterações da
do tronco e membros, com vista à verticalização e linguagem e da fala, recorre-se aos meios aumen-
deambulação, mas também para estimular o tativos e alternativos de comunicação que,
desenvolvimento e facilitar a sua integração na através de tecnologia informática, com software e
família, na escola e na sociedade. O seu uso deve acessos adaptados, favorecem o desenvolvimento
ser iniciado precocemente. É comum a indicação dos conceitos linguísticos e promovem a comuni-
de ligaduras funcionais e de talas posteriores cação e a socialização das crianças com estas defi-
logo no período neonatal. Também nos primeiros 3 ciências.
meses, após a estabilização clínica, se introduzem
as cunhas e os rolos para estimulação do controlo GLOSSÁRIO
cefálico e do tronco. Posteriormente serão: o banco Flexum > termo considerado por alguns especialistas como "gíria", e
triangular – que facilita o equilíbrio do tronco e a não completamente correcto, para significar rigidez articular em
função dos membros superiores; o plano inclina- flexão ou contractura articular em flexão.
do com rodas– que promove a verticalização e per- Ortóteses > aparelhagem destinada a suplementar ou corrigir a alte-
mite à criança ter uma perspectiva diferente do ração morfológica de um órgão, de um membro ou segmento de um
ambiente que a rodeia e a deambulação assistida; o membro, ou a deficiência de uma função.
standing frame – para o ortostatismo, que possibili- Prótese > aparelho ou dispositivo destinado a substituir um órgão, mem-
ta actividades numa mesa de trabalho ou de bro ou parte de um membro destruída ou gravemente afectada.
refeições; e o andarilho, na preparação da marcha.
Esta, em grande número de casos, só é possível BIBLIOGRAFIA
com o uso de ortóteses para os membros inferiores Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
e de auxiliares de marcha, que podem ser cana- Effgen S(ed). Meeting the physical needs of children.
dianas, pirâmides ou andarilhos. Philadelphia: FA Davis, 2012
Para conseguir o ortostatismo e eventual mar- Forsyth R, Newton R. Pediatric Neurology. Oxford: Oxford
cha, procede-se aos ajustes posturais e correcções University Press, 2007
de deformidades, através do uso de ortóteses do Guralnick MJ (ed). The Developmental Systems Approach to
tronco (coletes e assentos moldados) e dos mem- Early Intervention. Baltimore: Paul Brookes, 2005
bros inferiores (talas de posicionamento). Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
Todas as ortóteses devem ter protecção das Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
zonas de pressão, devido ao défice sensitivo. 2011
De salientar que é possível estabelecer uma Liptak GS, Dosa NP. Myelomeningocele. Pediatr Rev 2010;
relação entre o nível da lesão, as ortóteses neces- 31:443-450
sárias e o prognóstico de marcha. McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
Na realidade, devido a múltiplos factores Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010
(excesso de peso, deformações adquiridas, medu- Zaoutis LB, Chiang VW. Comprehensive Pediatrics Hospital
la ancorada, défice cognitivo, alterações emo- Medicine. Philadelphia: Mosby Elsevier, 2007
cionais, problemas familiares e outros) nem todas
as crianças atingem a capacidade de deambulação
prevista para um determinado nível de lesão.
Há AT ligadas às novas tecnologias que podem
aplicar-se à (re)abilitação de crianças com defi-
ciências específicas. O uso de computador na
escola justifica-se quando o ritmo de execução da
CAPÍTULO 192 Discranias 937

192
com a idade pós-concepcional e não com a idade
pós-natal.
A classificação das principais discranias con-
templa três grandes grupos: as macrocefalias, as
microcefalias e as craniossinostoses.

DISCRANIAS
1. MACROCEFALIA
João M. Videira Amaral
A macrocefalia define-se pela verificação de
perímetro cefálico acima do percentil 97 e cresci-
mento excessivo da cabeça. (ver capítulo 21).
Definição e classificação De referir que o perímetro cefálico pode ter
uma velocidade de crescimento muito rápida
Os termos discrania e alocefalia exprimem a traduzida pelo cruzamento de percentis (nomea-
existência de anomalias morfológicas bem visíveis damente nos casos de lactentes em fase de recu-
do crânio em contraposição, respectivamente a peração de crescimento ou catch up growth), sobre-
normocrania e normocefalia traduzindo a nor- tudo se houver antecedentes de prematuridade ou
malidade; dentro da normalidade há amplas de restrição de crescimento intra-uterino.
variações fisiológicas quanto à forma (mesoce- O Quadro 1 resume as principais causas de
falia, dolicocefalia, braquicefalia e hiperbraquice- macrocefalia.
falia). As situações de macrocefalia devem ser
Para valorizar objectivamente as referidas va- encaminhadas para centros especializados.
riações fisiológicas, torna-se fundamental recor-
dar a noção de índice cefálico.
O índice cefálico (IC) obtém-se dividindo o 2. MICROCEFALIA
resultado do diâmetro cefálico transversal (DCT)
pelo do diâmetro cefálico ântero-posterior (DCAP), Definição e classificação
multiplicando este quociente por 100: IC = DCT/
/DCAP x 100. A microcefalia ou diminuição acentuada do volu-
Os valores considerados normais oscilam entre me do crânio é definida pela verificação de perí-
76-80,9. metro cefálico abaixo do percentil 3 associada a
Assim, IC <76 corresponde a dolicocefalia; e IC velocidade lenta, anormal, do crescimento da
> 80,9 corresponde a braquicefalia. cabeça.
O crescimento do crânio* reflecte largamente o A microcefalia é classificada como “primária”
crescimento do encéfalo, sendo de salientar três quando resulta de aberração do desenvolvimento
noções práticas: ou de agressão em fase precoce da neurogénese; a
1) o tamanho da cabeça pode ser afectado pela consequência é a diminuição do número ou das
espessura dos ossos do crânio; 2) a importância da dimensões das células. São considerados diversos
avaliação seriada do perímetro cefálico – com ou tipos de hereditariedade (AD, AR, ligada ao X),
sem discrania – relacionando-o com outros parâ- sendo mais favorável o prognóstico nas formas
metros como o peso, idade e estatura; 3) nos casos dominantes.
de antecedentes de prematuridade e ou muito A microcefalia é considerada “secundária”
baixo peso de nascimento (inferior a 1500 gramas) quando resulta de agressões ou noxas variadas
a importância de relacionar o perímetro cefálico actuando sobre um encéfalo previamente normal,
ou no final do 3º trimestre da gravidez ou durante
o período perinatal.
*A relação anatómica entre o crânio e o seu conteúdo justifica a inclusão
Por vezes a microcefalia já é obvia na data de
do tópico na Parte dedicada à Neurologia. nascimento.
938 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

O Quadro 2 resume as principais causas de QUADRO 2 – Causas principais de microcefalia


microcefalia*.
As situações de microcefalia devem igualmente Genéticas
ser encaminhadas para centros especializados. Familiar não associada a atraso do desenvolvimento,
autossómica recessiva associada a dificuldades de
aprendizagem, associada a diversas síndromas (por ex.
3. CRANIOSSINOSTOSE Menkes, fenilcetonúria, associada a aminoacidúria,
Cornelia de Lange, Rubinstein – Taybi, Smith-Lemli-
Definição e etiopatogénese Opitz, Seckel, etc.
Cromossómicas
Craniossinostose (craniostenose ou estenocefalia) Associada a trissomias: 21- síndroma de Down, 18-sín-
é a fusão precoce de uma ou mais suturas dos droma de Edwards, 13-síndroma de Patau
ossos cranianos. De genética complexa,, as respec- Causas intra-uterinas
tivas formas major são autossómicas dominantes. Infecções do grupo TORCHS, irradiação fetal, diabetes
A calote craniana, de origem membranosa, é materna, etc.
constituída a partir da 6ª semana de gestação pela Causas perinatais
união de centros de ossificação; por sua vez, a mem- Sequelas de hipóxia-isquémia, de infecção do sistema
brana mesenquial passa a integrar dois folhetos: o nervoso central, de lesões traumáticas, de toxicidade
externo que origina o pericrânio, e o interno que bilirrubínica/kernicterus, etc.)
origina a dura-máter, com poder osteogénico.
Cerca da 23ª semana de gestação está formada Na data de nascimento os ossos estão justapos-
a calote craniana, com ossos separados por áreas tos e unidos por tecido fibroso. Relativamente às
não ossificadas: 1) fontanelas (anterior ou breg- fontanelas, no recém-nascido após gestação de
mática, posterior ou lambdóide, e ântero-laterais termo e em condições de normalidade, somente é
ou esfenoidais); e 2) suturas (sagital ou interparie- notória fontanela anterior; a posterior, de escassas
tal, coronal/transversal ou parietofrontal, metópi- dimensões, poderá ser palpada no RN pré-termo
ca ou interfrontal, lamdóide ou parieto-occipital e ou em casos associados a atraso de ossificação de
esfenoparietal); a metópica funde-se até aos 2 anos. diversas etiologias, nomeadamente hipotiroidismo.
As restantes somente são demonstráveis através
QUADRO 1 – Causas principais de macrocefalia de radiografia. (Figura 1)

Fisiológicas
Sutura Frontal (Metópica)
Lactente ex-pré-termo ou restrição de crescimento intra-
uterino, familiar constitucional, estatura elevada Fontanela Anterior
Alterações predominantemente ósseas Sutura Coronária
Raquitismo, hipofosfatasémia, acondroplasia, disostose
crânio-facial de Crouzon, mucopolissacaridoses – gar-
goilismo ou doença de Hurler, etc. Sutura Sagital
Alterações da substância nervosa
Megaencefalia, tumores cerebrais, neurofibromatose,
gigantismo cerebral ou síndroma de Sotos
Fontanela Posterior
Alterações das meninges
Derrame subdural, hematoma subdural Sutura Lambdóide
Alterações da circulação do líquido céfalo-raquidiano
Hidrocefalia congénita ou adquirida, ventriculite)

FIG. 1
Crânio: fontanelas e suturas; visão esquemática superior
* Exceptuando nos casos de craniossinostose, a microcefalia implica
sempre microencefalia, isto é, encéfalo anormalmente pequeno.
abstraindo as observadas em visão lateral (Adaptado de SBP).
CAPÍTULO 192 Discranias 939

A fontanela anterior fecha-se mais cedo, mas QUADRO 3 – Classificação das sinostoses
as suturas não se obliteram precocemente.
No respeitante à etiopatogénese da craniossi- Primárias
nostose existem em confronto diversas teorias, o – Simples (sagital, coronal uni ou bilateral, metópica,
que leva a concluir sobre o não conhecimento mista e total)
exacto do processo de encerramento precoce das – Complicadas (associadas a outras anomalias englo-
suturas. Certas formas clínicas relacionam-se com bando situações sindromáticas, por ex. síndroma de
factores genéticos, destacando-se 4 genes princi- Apert, doença de Crouzon ou disostose craniofacial,
pais associados a formas sindrómicas de cra- síndroma de Carpenter, síndroma de Pfeiffer)
niossinostose. Descrevem-se mais de 100 síndro- Secundárias
mas com craniossinostose associada. – Pós-traumatismo, etc.
Como a fusão antecipada não se opera simul-
taneamente em todas as suturas, o crânio cresce
compensatoriamente no sentido das que per- encerramento de duas ou mais suturas é cerca de
manecem abertas, adquirindo formas anormais. 15%.
Dito doutro modo: o crescimento ósseo inter- Estão descritas formas esporádicas e familiares,
rompe-se no sentido perpendicular à sutura pre- respectivamente com incidências de 1/1.700 a
maturamente ossificada (Lei de Virchow). 2.500, e 1/25.000 nado-vivos.

Classificação Manifestações clínicas

As craniossinostoses são classificadas em primá- 1. Aspectos gerais


rias e secundárias (Quadro 3)*. A craniossinostose dá origem a crânio de forma
especial, não necessariamente acompanhada de
Aspectos epidemiológicos repercussão ao nível do encéfalo ou do desen-
volvimento nas suas diversas vertentes.
A craniossinostose, quer na sua forma isolada, Refira-se, a propósito, que a microcefalia, na
quer associada a outras anomalias congénitas grande maioria resultante de hipodesenvolvimen-
integrando ou não síndromas, é detectável com to intra-uterino e pós-natal precoce do encéfalo,
uma frequência de 0,35 a 0,40 /1000 recém-nasci- muito raramente é secundária a encerramento
dos. A situação mais frequente (cerca de 55 % dos precoce das suturas cranianas.
casos) corresponde ao encerramento prematuro O perímetro cefálico pode estar aumentado,
da sutura sagital, com um predomínio no sexo diminuído, ou com valores entre os percentis 3 e
masculino de 3/1. A craniossinostose coronal 97.
surge com uma frequência aproximada de 20%, De salientar a possível associação de alterações
predominando no sexo feminino. As craniossinos- oculares tais como exoftalmia, alterações dos
toses metópica e lambdóide são mais raras. movimentos extrínsecos, edema da papila, am-
A frequência com que se verifica associação de bliopia, etc..
A verificação de défice cognitivo depende da
existência de lesões do encéfalo.
* A caracterização molecular dos genes associados a formas sindrómi-
cas de craniossinostose é importante pois permite fazer um diagnósti-
Síndromas de hiperexcitabilidade e convulsões
co mais preciso, especialmente durante o período neonatal, de forma a poderão fazer parte do quadro clínico, sobretudo
definir o tratamento e o seu possível resultado (como a eficácia duma nas situações de craniossinostose coronal unilate-
intervenção cirúrgica craniana) e calcular o risco de recorrência na
família. O painel de testes inclui 10 mutações pontuais nos 4 genes ral e nas formas complicadas ou secundárias.
principais associados a formas sindrómicas de craniossinostose: Os sinais e sintomas de hipertensão intracra-
FGFR1(Pfeiffer), FGFR2 (Apert, Crouzon e JacksonWeiss), FGFR3
(Muenke e Seathre-Chotzen) e RAB23 (Carpenter). Com este painel de niana são raros (ver adiante).
mutações é possível identificar a base molecular das formas mais fre-
quentes e graves das síndromas genéticas de craniossinostose. De
salientar que as mutações FGFR (gene do factor de crescimento dos
2. Aspectos específicos
fibroblastos) representam a maioria das formas sindrómicas. Nesta alínea são abordadas as seguintes craniossi-
940 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Pode associar-se turricefalia (A) e a sinais de


hipertensão intracraniana.
• Turricefalia – A.
A combinação mais frequente diz respeito à
craniossinostose coronal e sagital que poderá con-
A B duzir a crescimento do crânio para cima em
“torre” ou turricefalia; pode associar-se a braqui-
cefalia (B).
Esta modalidade conduz, em geral, a défice de
crescimento do encéfalo e a atraso mental, poden-
do estar associada a hipoplasia do maciço facial.
C D • Trigonocefalia ou craniossinostose metópi-
ca ou frontal
A ossificação precoce da sutura frontal origina
FIG. 2
saliência ao longo do trajecto da mesma ou
Esquema de conformações anormais do crânio. A – Turricefalia; proeminência em forma de “quilha de barco”. A
B – Braquicefalia; C – Escafocefalia; D – Plagiocefalia (Adaptado fontanela bregmática está sempre fechada; o
de SBP). crânio tem aspecto triangular com certa retracção
das porções laterais das regiões frontais.
nostoses (de que a Figura 2 salienta alguns tipos – Como a fusão ocorre em geral in utero, a crian-
A, B, C, D): ça evidencia esta anomalia ao nascer. De referir a
• Escafocefalia ou craniossinostose longitu- probabilidade de associação a outras anomalias
dinal ou sagital – C. do encéfalo, tais como holoprosencefalia. (Capí-
Resulta da ossificação precoce da sutura sagi- tulo 15)
tal, donde a forma de crânio em nave “com a qui- • Craniossinostose lambdóide
lha virada para cima”: crânio alongado no sentido Nesta situação, muito rara, por vezes confun-
ântero-posterior com proeminência dos ossos dida com posição viciosa da cabeça no berço, há
frontal e occipital; por conseguinte, verifica-se depressão na região occipital com compensação
simultaneamente dolicocefalia. do crescimento das regiões frontais.
Dum modo geral não existe modificação • Craniossinostose total ou oxicefalia
importante do perímetro cefálico nem repercussão A manifestação mais típica da ossificação de
neurológica. todas as suturas é uma protuberância ou “gibosi-
• Plagiocefalia ou craniossinostose coronal dade” na região da fontanela anterior originando
unilateral – D. a chamada oxicefalia.
Nesta situação verifica-se assimetria do crânio Uma vez que se trata de deformação pouco
e face: depressão do frontal do lado afectado com notada, em geral o diagnóstico é tardio quando
crescimento anormal, de compensação, do lado surgem por vezes manifestações como convulsões
oposto. Igualmente se verifica redução da cavi- ou sinais de hipertensão intracraniana. (Figura 3)
dade orbitária com desvio do nariz para o lado • Craniossinostoses primárias complicadas
não afectado. O índice cefálico pode estar normal, No âmbito deste tipo de craniossinostoses,
aumentado ou diminuído. cabe salientar as seguintes entidades clínicas:
• Braquicefalia (acro ou acrobraquicefalia) – Doença de Crouzon ou disostose craniofa-
ou craniossinostose coronal bilateral ou turrice- cial em que se verificam: exoftalmia, hiperteloris-
falia – B. mo, nariz curvo em “bico de papagaio” e pro-
Verifica- se, nesta modalidade de craniossinos- gnatismo consecutivo a hipoplasia do maxilar
tose, redução da distância ântero-posterior e superior. Trata-se doença hereditária com trans-
aumento látero-lateral. A fronte apresenta-se missão autossómica dominante de expressividade
achatada. A fontanela anterior, quando presente, variável
está desviada para diante. – Síndroma de Apert ou acrocefalossindactilia
CAPÍTULO 192 Discranias 941

FIG. 3 FIG. 4
Aspecto de lactente com quadro de escafocefalia associada a Aspecto radiográfico do crânio em lactente com turricefalia não
oxicefalia. (NIHDE) sendo visíveis as suturas por sinostose. (NIHDE)

em que as manifestações são similares às da doença craniossinostose em geral permite identificar


de Crouzon, acrescentando-se sindactilia das mãos ausência de uma ou mais suturas. (Figura 4)
e pés. Esta afecção tem hereditariedade dominante, A tomografia axial computadorizada (TAC)
salientando- se que, na maioria das vezes, tem confirma o diagnóstico com mais rigor permitindo
carácter esporádico relacionado com mutações. estudo tridimensional
– Síndroma de Carpenter, em que existe dis- A ressonância magnética nuclear(RMN) do
morfismo facial, acrocefalia, braquiclinossindacti- encéfalo permite o diagnóstico de anomalias ence-
lia das mãos e polissindactilia dos pés. fálicas associadas por vezes.
A transmissão hereditária é de tipo autossómi- O diagnóstico diferencial deve fazer- se com
co recessivo com expressividade variável as microcefalias ligadas a compromisso encefálico
– Síndroma de Pfeiffer caracterizada por tur- primitivo em que o atraso psicomotor não é acom-
ricefalia, anomalias faciais dismórficas, sindactilias panhado de encerramento precoce das suturas
discretas, polegares e dedos dos pés grandes. nem de hipertensão intracraniana.
A transmissão hereditária é de tipo autossómi-
co dominante com expressividade variável. Tratamento cirúrgico

Exames complementares Não cabendo no âmbito deste livro uma descrição


e diagnóstico diferencial exaustiva do tratamento das craniossinostoses, o
qual é da competência dos especialistas de neuro-
Apesar de a maioria dos casos ser diagnosticada cirurgia pediátrica para os quais as crianças de-
durante o período neonatal, muitos são detecta- verão ser encaminhadas, caberá referir de modo
dos mais cedo através de ecografia pré-natal. esquemático os tipos de intervenção a realizar em
Havendo antecedentes familiares, e na perspecti- função de cada caso: craniotomia, craniectomia,
va do diagnóstico sindrómico, poderá estar indi- osteotomia da órbita, enxerto ósseo, etc..
cado o estudo do ADN, o qual pode ser obtido a
partir das vilosidades coriónicas, líquido amnióti- BIBLIOGRAFIA
co, sangue ou fibroblastos de biópsia fetal. Bannink N, Maliepaard M, Raat H, et al. Health-related quali-
A radiografia simples do crânio em caso de ty of life in children and adolescents with syndromic cran-
942 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

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Sniderman A. Abnormal head growth. Pediatr Rev 2010; de algumas formas clínicas em que a imagiologia,
39:382-385 designadamente a RMN, tem um papel funda-
mental na respectiva identificação.

Lisencefalia

Também designada agiria, esta anomalia rara é


caracterizada por ausência de circunvoluções
cerebrais/cérebro “liso”, com fissura sílvica ves-
tigial; o aspecto macroscópico do cérebro é o de
cérebro fetal com cerca de 12-16 semanas de ges-
tação. (Figura 1 - A: imagem de RMN-CE)
Nalguns casos foi identificada deleção cro-
mossómica de 17p13.3 e do gene da lisencefalia
(LIS-1).
As manifestações clínicas mais frequentes são:
microcefalia, convulsões, atraso do desenvolvi-
CAPÍTULO 193 Alterações da migração neuronal e outras anomalias do SNC 943

mento, hipocrescimento, hipoplasia do nervo defeituosa do prosencéfalo com incidência da or-


óptico e microftalmia. dem de 1/5.000-1/16.000 e susceptível de ser dia-
gnosticada no período pré-natal a partir da 10ª
Esquizencefalia semana. Compreende três formas: alobar, semilo-
bar, e lobar.
Nesta anomalia verifica-se a presença de fendas Por vezes associada a diabetes materna, em
unilaterais ou bilaterais ou ao nível dos hemis- cerca de 50% dos casos existe associação com tris-
férios cerebrais. Nalguns casos os achados da somias 13 e 18; Estão igualmente descritas deleções
RMN permitem visualizar fenda de comunicação dos cromossomas 7q, 3p, 21q, 2p, 18p, e 13q.
entre o ventrículo e o espaço craniano extra-axial; Como manifestações clínicas são notórias as
muitas destas fendas/”comunicações”estão tape- anomalias faciais: fenda palatina, lábio leporino,
tadas por substância cinzenta anormal. Como ciclopia, cebocefalia, incisivo central único, e age-
manifestações clínicas refere-se atraso mental, con- nesia pré-maxilar. Através da RMN, a forma lobar
vulsões refractárias, microcefalia, e tetraparésia evidencia ausência de separação dos hemisférios e
espástica quando as fendas são bilaterais. Se a ventrículos laterais, substituídos por ventrículo
fenda for unilateral pode verificar-se hemiparésia. único central. (Capítulo 15)
(Figura 1 - B: imagem de RMN-CE)
Agenesia do corpo caloso
Porencefalia
A esta anomalia, clinicamente muito heterogénea
A designação genérica de porencefalia refere-se às (desde formas assintomáticas e QI normal, até sín-
situações em que existem quistos ou cavidades dromas neurológicas complexas acompanhadas
intracerebrais. Para além da etipatogénese rela- de défice mental), está associada hereditariedade
cionada com defeito do desenvolvimento (con- ligada ao X, ou autossómica dominante; pode
génita), tal quadro morfológico pode também ser igualmente estar ligada a anomalias cromossómi-
adquirido na sequência de enfarte tecidual. cas (trissomias 8 e 18).
Esta anomalia, por vezes associada a outras A síndroma de Aicardi (quadro complexo ca-
(encefalocele, microcefalia, etc.), manifesta-se fun- racterizado essencialmente por atraso mental,
damentalmente por atraso mental, hemi ou tetra- convulsões refractárias, anomalias da retina e ver-
parésia espástica, atrofia óptica e convulsões. tebrais/hemivértebras) está tipicamente associada
a agenesia do corpo caloso.
Holoprosencefalia Predominando no sexo feminino, admite-se
anomalia do cromossoma X, a que corresponde
Trata-se duma anomalia resultante de clivagem elevada letalidade no sexo masculino.

A B Agenesia dos nervos cranianos

Esta anomalia, por vezes associada a diversas


situações clínicas, compreende ausência de certos
nervos cranianos ou dos respectivos núcleos origi-
nando sinais clínicos diversos, por ex. ptose palpe-
bral congénita, fenómeno de Marcus Gunn (con-
comitância de movimentos de sucção e pestane-
jo/sincinésia, etc.). Na síndroma de Moebius ve-
rifica-se paralisia facial bilateral.
FIG. 1
AGRADECIMENTO
A – Imagem de lisencafalia; B – imagem de esquizencefalia. O autor agradece à Drª Eulália Calado a cedência das ima-
(RMN-CE) gens (Figura 1).
944 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

194
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definidas como doenças hereditárias heterogéneas
que se caracterizam por alterações do sistema ner-
voso e da pele; outros órgãos como o olho, rim e
coração, são também afectados. Por estar compro-
metida a diferenciação e o crescimento celulares
(designadamente a diferenciação da ectoderme
primitiva), a organogénese está igualmente pertur-
bada, com consequente formação de tumores, ge-
ralmente benignos.
As situações que cabem no âmbito da definição
são a neurofibromatose, a esclerose tuberosa, a sín-
droma de Sturge-Weber, a incontinentia pigmenti, a
ataxia telangiectasia, a doença de von Hippel-
Lindau, a síndroma PHACE, a hipomelanose de
Ito e a síndroma de nevus linear.

Formas clínicas

Nesta alínea são abordadas as formas mais fre-


quentes de síndromas neurocutâneas.

1. Neurofibromatose tipo 1 (NF1), ou doença


de Recklinghausen, é a síndroma neurocutânea
mais frequente, ocorrendo aproximadamente na
proporção de 1/3.000 nascimentos; o seu gene
(com mais de 300 mutações descritas) está loca-
lizado no cromossoma 17q11,2. Afecta todos os
sexos e raças, sendo a transmissão autossómica
dominante. A clínica pode ter uma expressão
muito variável, sendo o diagnóstico afirmado na
presença de determinados critérios (dois ou mais)
dos referidos no Quadro 1.
CAPÍTULO 194 Síndromas neurocutâneas 945

QUADRO 1 – Diagnóstico de neurofibromatose

Critérios de diagnóstico de neurofibromatose (presença de dois ou mais)


– 6 ou mais manchas “café com leite” (≥ 5mm abaixo dos 6 anos e ≥15 mm acima dos 6 anos)
– Áreas hiperpigmentadas (sardas), axilares e inguinais
– 2 ou mais nódulos de Lisch (hamartomas da íris)
– 2 ou mais neurofibromas ou um neurofibroma plexiforme
– Lesão óssea (escoliose/cifose, pseudartrose, displasia esfenoidal)
– Glioma óptico
– Parente em primeiro grau com a doença

As manchas de tipo “café com leite”, geral- tico deve ser feito nos primeiros anos de vida
mente presentes desde o nascimento, tendem a sendo o exame imagiológico através da ressonân-
aumentar em número e tamanho com a idade, ao cia magnética nuclear (RMN) o ideal para avalia-
mesmo tempo que vão surgindo os neurofibromas ção das lesões tumorais. Os tumores do sistema
na pré-puberdade (Figura 1). Associam-se fre- nervoso periférico são neurofibromas e schwan-
quentemente ao glioma das vias ópticas (Figura 2) nomas, localizados na maioria das vezes na zona
e a estenose do aqueduto de Sylvius. de exteriorização das fibras sensitivas no canal
Os hamartomas da íris ou nódulos de Lisch raquidiano. As alterações ósseas são também fre-
raramente se encontram nos primeiros anos de quentes, destacando-se a escoliose com ou sem
vida, surgindo durante a adolescência. Podem ser cifose, a pseudartrose, (Figura 3) a displasia facial
identificados através do exame com lâmpadas de (esfenoidal) e, menos frequentemente, a hemi-
fenda. hipertrofia facial ou generalizada.
A NF1 constitui a forma clínica que mais fre- As dificuldades escolares são muitas vezes a
quentemente se associa a tumores do sistema ner- primeira preocupação dos pais. O défice cognitivo
voso central (SNC), periférico e doutros órgãos, nestes doentes não é habitualmente acentuado,
sendo de natureza histológica muito variável. Os mas estima-se que o quociente de inteligência (QI)
gliomas da via óptica são os mais frequentes se situe entre 15 a 20 pontos abaixo do dos irmãos
(cerca de 15%) e estão presentes desde o nasci- não afectados. A epilepsia é habitualmente uma
mento na maioria dos casos (Figura 2). O diagnós- complicação menor da NF1 e geralmente de fácil

FIG. 1 FIG. 2
Neurofibromatose tipo I. Manchas tipo “café com leite”. Glioma da via óptica (TAC-CE).
946 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

primeira semana de vida (50% dos casos na data


do nascimento) surgem lesões eritematosas,
vesículas, máculas, pápulas e bolhas, com uma
distribuição linear, proximal e predomínio nas
superfícies flexoras, acompanhadas de eosinofilia
marcada. (Figura 4)
Mais tarde, estas lesões tornam-se pustulares,
queratosas, desenvolvendo-se a pigmentação,
FIG. 3
usualmente simétrica, de forma espiralada e cor
Neurofibromatose tipo I: Imagem radiológica de pseudartrose. acinzentada ou de chocolate, desaparecendo ape-
nas na segunda ou terceira décadas de vida. Na
controlo. Outras complicações descritas são a idade adulta, a presença de máculas hipomelâni-
puberdade precoce, além de perturbações endó- cas constitui a única manifestação. Quando a
crinas e a agenesia do corpo caloso. doença evidencia esta evolução típica não há
necessidade de exame histológico da pele para o
2. Neurofibromatose tipo II (NF2), com uma diagnóstico.
incidência de 1/50.000 (10% das neurofibro- As manifestações neurológicas, presentes em
matoses) comporta também o modo de transmis- 30 a 50% dos casos, como epilepsia, atraso mental,
são autossómica dominante; podem ocorrer casos paraparésia espástica, microcefalia ou ataxia,
esporádicos. O seu gene está localizado no cro- constituem as manifestações extradermatológicas
mossoma 22q1.11. As manchas “café com leite” mais importantes, na medida em que condi-
clássicas da NF1 podem estar presentes, mas são cionam o prognóstico. Outras manifestações fre-
menos frequentes e em menor número. Esta
doença, inicialmente conhecida por neurofibro-
matose acústica bilateral, caracteriza-se, como o
próprio nome indicava, pela presença de neurino-
ma do acústico bilateral e pelo desenvolvimento
doutros tumores intracranianos. O diagnóstico
obriga à presença dos seguintes critérios: massas
bilaterais do VIII° nervo craniano e história fami-
liar de NF2 com massa do VIII° nervo craniano
unilateral, ou 2 dos seguintes: neurofibroma,
meningioma, glioma, schwannoma e opacidade
do cristalino.

3. Incontinentia pigmenti, doença dominante


ligada ao cromossoma X, afecta sobretudo o sexo
feminino (morte in utero dos indivíduos do sexo
masculino). O fenótipo resulta de mosaicismo fun-
cional causado por inactivação aleatória de um
gene dominante no cromossoma X, que é letal no
sexo masculino (IKK – gama/NEMO). A semiolo-
gia, fundamentalmente de expressão dermatológi-
ica, caracteriza-se por diminuição ou ausência de
melanina nas células basais da epiderme, com
incremento da mesma na derme. As lesões da pele
FIG. 4
passam habitualmente por distintos estádios que
vão desde uma fase inflamatória a outra exclusi- Caso de incontinentia pigmenti ou doença de Bloch-
vamente pigmentada. Em 90 % dos doentes na Sulzberger. Distribuição linear das lesões cutâneas. (NIHDE)
CAPÍTULO 194 Síndromas neurocutâneas 947

quentes são as oculares (em 1/3 dos doentes: reti- afecta 70% dos doentes e a sua gravidade rela-
na displásica, pseudoglioma e estrabismo), den- ciona-se com a precocidade e gravidade da epilep-
tárias e ortopédicas (luxação da anca e hemivérte- sia. O prognóstico da síndroma de Sturge-Weber é
bras). muito variável e dependente, sobretudo, do con-
trolo das crises, bem como dos défices motor e
4. Síndroma de Sturge-Weber, rara, ocorre cognitivo. É muito frequente a evolução para
esporadicamente com uma frequência de 1/50.000. epilepsia refractária à terapêutica médica, razão
Estão descritos casos de transmissão autossómica pela qual a cirurgia da epilepsia deve ser encara-
recessiva e transmissão dominante. Atinge igual- da muito precocemente em tais situações.
mente os dois sexos e caracteriza-se por anomalias
vasculares, habitualmente num processo multi- 5. Ataxia telangiectasia, afectando cerca de
ssistémico que envolve a pele, SNC, olhos e outros 1/40.000 nado vivos, pelas as suas características
órgãos. clínicas ocupa um lugar importante dentro das
A sua forma completa associa sinais e sintomas doenças degenerativas. A transmissão é autossó-
relacionados com o angioma leptomeníngeo, o mica recessiva, com uma alta incidência de novos
angioma cutâneo e o angioma ocular. (Figura 5) casos, por mutações do respectivo gene (ATM) no
O angioma cutâneo é um angioma cutaneomu- cromossoma 11q22-23.
coso facial, cor de vinho do Porto, presente desde Cursa com ataxia cerebelosa, coreoatetose,
o nascimento, que tende a ser unilateral e a telangiectasias oculocutâneas, imunodeficiência,
envolver a metade superior da face e pálpebra. O hipersensibilidade às radiações e elevada incidên-
angioma ocular é ipsilateral, presente em 30% dos cia de neoplasias, como leucemias e linfomas. A
casos e pode estar associado a glaucoma. O ataxia cerebelosa é progressiva, com um início
angioma leptomeníngeo pode ser demonstrado precoce e presente em todos os doentes, (cerca dos
por tomografia axial computadorizada (TAC) ou 2 anos) enquanto a coreoatetose pode surgir em
ressonância magnética nuclear (RMN), com loca- menos de metade dos mesmos. As telangiectasias
lização mais frequente na região parieto-occipital. oculocutâneas evidenciam-se geralmente entre os
Da patologia associada destaca-se a epilepsia em 4-6 anos, afectam de uma forma simétrica a con-
75 a 90% dos casos, com início no primeiro ano de juntiva, formando uma rede de finas telangiec-
vida em quase metade destes doentes; a gravi- tasias. Movimentos oculares anómalos (apraxia
dade está muitas vezes relacionada com a loca- óculo-motora), presentes em todos os doentes,
lização e extensão da lesão cerebral. A hemiparé- podem preceder as telangiectasias. Posterior-
sia, (ou hemiplegia), está presente em 30 a 45% mente, aparecem as telangiectasias cutâneas (em
dos casos antes dos dois anos. O atraso mental 40% dos casos), sempre simétricas, na base do
nariz, nos pavilhões auriculares ou nas mãos.
O doseamento da alfa-fetoproteína, (elevada),
do antigénio carcinoembrionário e das imunoglo-
bulinas (diminuição de Ig A secretória, Ig G2, IgG4
e IgE) são importantes marcadores diagnósticos,
associados ao estudo cromossómico e à evolução
clínica.
O prognóstico está, sobretudo, dependente da
deterioração neurológica. Existe degenerescência
espinocerebelosa, lesão dos cornos posteriores da
medula, com perda dos reflexos tendinosos e
atrofia espinhal medular, necessitando a maioria
dos doentes de cadeira de rodas entre os 10-15
FIG. 5
anos. A imunodeficiência leva a infecções recor-
Síndroma de Sturge-Weber: angioma cutaneomucoso da rentes, por vezes graves, interferindo também de
hemiface direita e fronte. (NIHDE) uma forma importante no prognóstico.
948 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

O tratamento baseia-se essencialmente na O diagnóstico definitivo do chamado com-


administração de imunoglobulina nos casos de plexo ET faz-se em função da presença de 2 ou
infecções recorrentes, na fisioterapia e na terapia mais critérios major mais 2 minor.
ocupacional. As características major incluem: lesões cutâ-
neas, cerebrais, oculares, e tumores no coração,
6. Esclerose tuberosa (ET), ou doença de rins ou pulmões.
Bourneville-Pringle, tem uma prevalência de As características minor incluem: quistos
1/6.000 a 1/8.000, sem diferenças de sexo ou raça. ósseos, pólipos rectais, alterações do esmalte den-
Transmite-se de modo autossómico dominante tário, anomalias do SNC (alterações da migração
(penetrância variável) tendo-se demonstrado celular na substância branca), fibromas gengivais,
mutações espontâneas em 60-80% dos casos. Foram hamartomas não renais, alterações despigmen-
identificados 2 genes: o TSC1 no cromossoma 9 tares da retina, lesões cutâneas e quistos renais
(9q34) e o TSC2 no 16 (16p13). As manifestações múltiplos.
clínicas que habitualmente conduzem ao diagnósti- Na avaliação diagnóstica destes doentes é fun-
co são cutâneas, podendo existir também neuroló- damental a imagiologia cerebral (TAC ou, de
gicas, retinianas, cardíacas e renais. As manchas preferência, RMN), EEG, ecografia renal, ECG,
cutâneas hipopigmentadas (90% dos doentes), em ecocardiograma, radiografia do tórax, etc..
forma de folha ou ponta de lança, podem estar pre- O tratamento e o prognóstico são variáveis e
sentes desde o período neonatal ou infância pre- dependem, não das manifestações cutâneas, mas
coce. O angiofibroma facial ou adenoma sebáceo essencialmente do aparecimento de tumores inter-
(em 3/4 dos doentes) consiste em lesões rosadas no nos.
nariz e região malar, e surge habitualmente na A verificação de hipertensão intracraniana-
idade pré-escolar. Podem coexistir fibromas relacionável, por ex. com obstrução do buraco de
ungueais, periungueais (tumores de Koenen) e na Monro, poderá estabelecer a indicação de inter-
mucosa oral, falhas no esmalte dentário em forma venção neurocirúrgica urgente.
de fossetas, lesões de despigmentação tipo ser-
pentina ou madeixas de cabelos brancos. 7. Síndroma PHACE
As manifestações neurológicas predominantes Esta síndroma agrupa um conjunto de anomalias
são a epilepsia (80-90%), o défice cognitivo (60-70%) a que correspondem as letras da sigla PHACE, a
e as alterações do comportamento como defeito de saber: anomalias da fossa Posterior, Heman-
atenção e hiperactividade, autismo, agressividade e giomas, anomalias Arteriais, Coarctação da aorta
psicose. Os tumores benignos resultantes da proli- e outras anomalias cardíacas, e anomalias oculares
feração glial são mais frequentes no córtex cerebral, (Eye). Verifica-se predomínio desta situação no
gânglios da base e paredes dos ventrículos. Os sexo feminino. Os hemangionas da via aérea
nódulos subependimários de maiores dimensões podem originar obstrução. O interferão-alfa e o
podem condicionar hidrocefalia. propranolol têm sido utilizados para tratamento
Quanto às manifestações oculares destacam-se dos hemangiomas.
os hamartomas retinianos e as manchas hipopig-
mentadas na íris. Os rabdomiomas cardíacos (30- AGRADECIMENTOS
70% dos casos) são hamartomas que tendem a ser Os autores e editor agradecem ao Dr. Raul Silva a cedência das
múltiplos, podendo ser detectados por ecocardio- imagens das Figuras 1, 2 e 3.
grama fetal e desaparecer espontaneamente nos
primeiros anos de vida. Outras manifestações BIBLIOGRAFIA
sistémicas da ET são o angiomiolipoma (75% dos Aicardi J. Neurocutaneous diseases and syndromes, in: Aicardi
casos) ou quistos renais, a linfangiomatose pul- (ed). Diseases of the Nervous System in Childhood.
monar com formação de quistos, pólipos hamar- London: Mac Keith Press, 1998
tomatosos do recto, lesões ósseas quísticas e alte- Campagnoni AT, et al (eds). Developmental Neuroscience.
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CAPÍTULO 195 Doenças neuromusculares 949

195
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Medical, 2011 um grupo nosológico heterogéneo, tendo em
Solomon T, Ninnis J, Deming D, et al. Use of propranolol for comum o compromisso da unidade motora num
treatment of hemangiomas in PHACE syndrome. J dos seus segmentos: neurónio motor ou 2º
Perinatol 2011; 31:739-741 neurónio (tronco cerebral ou cornos anteriores da
medula), raízes nervosas, nervo periférico, junção
neuromuscular e músculo. A maioria destas
doenças é determinada geneticamente, tendo nas
duas últimas décadas ocorrido um importante
avanço na genética molecular permitindo um diag-
nóstico mais rigoroso, o aconselhamento genético e
o diagnóstico pré-natal. As alterações segmentares
tais como a paralisia cerebral (abordada no capítu-
lo 189) e, dum modo geral, as situações em que se
verifica influência do encéfalo sobre a função
muscular, tais como espasticidade, não se incluem
no conceito de doenças neuromusculares.
A classificação das DNM pode ser feita de acor-
do com a topografia, carácter congénito e adqui-
rido, agudo ou crónico, e progressivo ou estático
(Quadro 1).

Etiopatogénese e relação
com a semiologia clínica

O exame do sistema neuromuscular inclui a ava-


liação da consistência, tono e força musculares.
Este grupo de doenças é caracterizado funda-
mentalmente por hipotonia. A este propósito cabe
salientar as noções de tono activo e passivo. O
tono activo ou distensibilidade muscular corres-
ponde à resistência fisiológica ao movimento; na
prática avalia-se através do grau de alongamento
950 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Doenças neuromusculares recém- nascido com grave compromisso motor e


classificadas de acordo com a respiratório é delicada, constituindo um problema
sua topografia e etiologia ético. Consideram-se parâmetros indicadores de
mau prognóstico: índice de Apgar ≤ 5 aos 5 minu-
Neurónio Motor Periférico tos, prematuridade < 36 semanas de gestação, pre-
– Causa Genética: Atrofia Muscular Espinhal – I a III sença de artrogripose e necessidade de ventilação
– Causa Adquirida: Poliomielite mecânica por período > 4 semanas.
Raízes e Nervos Periféricos A hipotonia central é secundária a lesão do
– Causa Genética: Neuropatias Hereditárias Sensitivo- SNC (encefalopatias não progressivas – ence-
Motoras falopatia hipóxico – isquémica; cromossomopatias
– Causa Adquirida: Síndroma de Guillain-Barré, – síndromas de Down ou Prader-Willi; e erros con-
Paralisia de Bell génitos do metabolismo – doenças dos peroxisso-
Junção Neuromuscular mas, entre outras causas). São sinais mais suges-
– Causa Genética: Síndroma Miasténica Congénita tivos o predomínio axial da hipotonia, a letargia
– Causa Adquirida: Miastenia Gravis e Botulismo e/ ou convulsões, o exame neurológico com
Fibra Muscular assimetrias (sugerindo lateralização), a persistên-
– Causa Genética: Distrofia Muscular Congénita cia dos reflexos arcaicos, a hiperreflexia ósteo-
– Distrofia Muscular Progressiva, Miopatias Congénitas tendinosa, a presença de dismorfismos e, habi-
– Doença Miotónica, Miopatias Metabólicas tualmente, a preservação da força.
– Causa Adquirida: Miosites (vírica, Na hipotonia mista há compromisso central e
polidermatomiosite) periférico simultâneo, com sobreposição dos
sinais clínicos referidos. São exemplos as citopa-
tias mitocondriais e as leucodistrofias.
do músculo quando se afastam os seus pontos de A criança mais velha com doença muscular
inserção. O tono passivo ou passividade muscular apresenta-se geralmente com compromisso das
avalia-se pela amplitude dos movimentos cinturas, caracterizado por défice motor proximal
oscilantes agitando, por ex. a extremidade livre ou e atrofia dos músculos das cinturas escapular e
segmento dum membro, considerando como pélvica.
charneira determinada articulação. A perturbação da marcha, geralmente adquiri-
A hipotonia periférica ou neuromuscular da tardiamente, associa-se a quedas frequentes e à
relaciona-se com lesão da unidade motora. É dificuldade em correr ou subir escadas. O tipo de
muito menos frequente do que a hipotonia cen- alteração da marcha observado aponta para uma
tral. Quando se origina no período pré-natal, asso- doença neuromuscular específica.
cia-se a artrogripose, diminuição dos movimentos Na marcha tipo steppage (típica das neuropa-
fetais e poli-hidrâmnio (por dificuldades da de- tias) há flexão excessiva das coxas, compensadora
glutição do feto). A hipotonia é generalizada e da parésia flácida dos pés.
simétrica, associa-se a parésia, a hipomobilidade, Na marcha miopática (que sugere doença mus-
a hipo ou arreflexia osteotendinosa e dos reflexos cular ou uma das atrofias musculares espinhais)
arcaicos, e a atrofia muscular. Geralmente não há observa-se báscula alternada da bacia para com-
dismorfismos associados. pensar parésia proximal dos membros inferiores.
No lactente, devido à hipotonia fisiológica Há acentuação da lordose lombar, e sinal de
observada a partir do 2º mês de vida, o atraso nas Gower – (para se levantar, a criança inclinada
aquisições do desenvolvimento motor assume um para a frente com joelhos semiflectidos, vai
papel importante. O espectro de gravidade clínica apoiando as mãos nos membros inferiores, gra-
no recém- nascido e no lactente é grande (Quadro dualmente dos pés para os joelhos “como que
2), manifestando-se desde hipotonia com ligeiro “ajudando” com as mãos a estender os joelhos, a
atraso do desenvolvimento motor, até quadro de endireitar o tronco, e como que “estivesse a subir
dificuldade alimentar (por sucção débil) e insufi- sobre si mesma”. A positividade deste sinal, para
ciência respiratória. A abordagem terapêutica do além do 3 anos indica provável DNM.
CAPÍTULO 195 Doenças neuromusculares 951

QUADRO 2 – Doenças neuromusculares e gravidade clínica no recém-nascido e lactente com hipotonia

Doença NM Grave
– Dificuldade alimentar Atrofia Muscular Espinhal tipo 1
– Insuficiência respiratória NHSM tipo III (forma congénita)*
Distrofia Muscular Congénita (merosina negativa)
Síndroma Miasténica Congénita
Distrofia Miotónica Congénita
Miopatia Centronuclear
Miopatia Nemalínica
Miopatia Mitocondrial
Doença NM Moderada
– Atraso do desenvolvimento motor Atrofia Muscular Espinhal tipo 2
– Graus variáveis de paralisia e atrofia muscular NHSM tipo III
Distrofia Muscular Congénita (merosina positiva)
Miopatias Congénitas
Mitocondriopatias
Doença NM Ligeira
– Com uma vida quase normal Atrofia Muscular Espinhal tipo 3
Síndroma Miasténica Congénita
Miopatias Congénitas
*Neuropatias hereditárias sensitivo – motoras (NHSM)

De acordo com o tempo de evolução da doença com doença sistémica (hepática ou cardíaca) e
poderá haver retracções tendinosas (como a metabólica (como a acidose láctica), ou de uma
retracção do tendão de Aquiles) e deformidades afecção do sistema nervoso central (pela clínica e
esqueléticas (como o pé equino e varo) associadas pela imagiologia), sugerem citopatia mitocondri-
ao défice motor e à atrofia muscular. Outras mani- al. Nalguns subtipos de distrofia muscular con-
festações de doença neuromuscular são possíveis, génita e na distrofia miotónica também há
como o palato arqueado, a paralisia facial e ocular envolvimento do SNC. Na distrofia muscular pro-
(com ptose palpebral) e a luxação congénita da anca gressiva de Duchenne podem ocorrer cardiopatia
(consequência de hipomobilidade intra-uterina). e défice cognitivo ligeiro.
Um défice motor com predomínio distal, O espectro fenotípico das doenças neuromus-
atrofia muscular, hipo ou arreflexia e compromis- culares é muito amplo quanto à gravidade mas, na
so também distal da sensibilidade, sugerem o mesma família, o fenótipo tende a ser semelhante.
diagnóstico de neuropatia periférica.
O padrão evolutivo da doença pode sugerir Exames complementares
um diagnóstico específico. Refira-se a fatigabili-
dade crescente ao longo do dia, típica de miaste- A anamnese e o exame objectivo permitem a sus-
nia, ou o padrão de surtos desencadeados por peita de doença neuromuscular, assim como da
infecções, actividade física ou jejum, sugestivos de localização (segmento da unidade motora prova-
miopatias metabólicas (citopatias mitocondriais velmente afectado).
ou glicogenoses), ou paralisia periódica. Os exames complementares de diagnóstico
Na distrofia miotónica e nas miotonias con- mais úteis são a enzimologia muscular (dosea-
génitas ocorre um fenómeno de dificuldade no mento da fosfocreatinocinase – CPK), o electro-
relaxamento muscular após uma contracção vo- miograma (EMG), a biópsia de músculo, a biópsia
luntária (habitualmente mais proeminente nos de nervo, as provas terapêuticas (como a prova do
músculos distais). edrofónio), e os estudos de genética molecular.
A associação das alterações neuromusculares Refira-se ainda o estudo metabólico, os exames
952 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

imagiológicos (TAC e RMN), e a avaliação cardía- deve ser realizado se existir suspeita de doença
ca (ecocardiografia). metabólica (Capítulo 368).
O doseamento da CPK poderá ser útil na dife- A avaliação cardiológica deve ser feita na sus-
renciação entre doenças musculares primárias e peita de doença neuromuscular que se associe a
neuropatias. No recém-nascido, um aumento de cardiopatia (miocardiopatia ou disritmias), como
CPK poderá indicar distrofia muscular congénita a distrofia muscular progressiva – de Duchenne
ou distrofia miotónica congénita; no lactente e ou de Becker, algumas mitocondriopatias, glico-
criança mais velha colocam-se as hipóteses de dis- genoses, miopatia congénita e distrofia miotónica.
trofia muscular congénita, miosite, distrofia muscu- Os estudos de genética molecular, realizados
lar progressiva (mesmo em fase pré-sintomática), em centros especializados, são essenciais para a
miopatias congénitas e distrofia miotónica infantil. confirmação diagnóstica de algumas doenças neu-
Nos rapazes no 3º ano de vida com atraso na romusculares (Quadro 3) e sua classificação mais
aquisição ou alterações da marcha, o doseamento exacta. Estes estudos são particularmente úteis
de CPK é importante, e caso seja elevado (> 10.000 para distinção das diferentes formas de distrofia
UI/L) há indicação para realizar estudo genético, muscular congénita – com deleções identificadas
dispensando-se o EMG ou a biópsia muscular. em locus específicos, de distrofia muscular pro-
O EMG permite diferenciar qual o segmento gressiva, de miopatia nemalínica, de miopatias
da unidade motora afectado, sendo especialmente mitocondriais e de polineuropatia hereditária sen-
útil para o rápido diagnóstico de atrofia muscular sitivo – motora.
espinhal tipo I (AME I – doença de Werdnig-
Hoffman), de neuropatia (distinguindo a neu- Tratamento (aspectos gerais)
ropatia desmielinizante da axonal, sendo funda-
mental o registo da velocidade de condução ner- A abordagem terapêutica destas doenças consiste
vosa), e de doença da placa motora (a estimulação sobretudo em métodos paliativos, como a reabili-
repetitiva do músculo induz fatigabilidade pro- tação motora e a cirurgia ortopédica, tentando
gressiva). minorar os défices motores apresentados pelos
A biópsia de músculo (com microscopia ópti- doentes. A abordagem terapêutica do recém-
ca, electrónica ou com estudo imuno-histoquími- nascido com grave compromisso motor e respi-
co) permite o diagnóstico dos vários tipos de ratório é delicada, constituindo um problema
doenças musculares. Na distrofia muscular con- ético. Nas patologias em que pode haver compro-
génita, distrofia muscular progressiva e distrofia misso da função respiratória, esta deve ser avalia-
miotónica congénita, a microscopia óptica com- da periodicamente, iniciando, logo que se justi-
prova a distrofia, sendo necessário o estudo fique, programa de ventilação (inicialmente não
imuno-histoquímico para uma classificação mais invasiva, e intermitente, como o BIPAP nocturno);
completa (estudo da presença de merosina ou de se existirem dificuldades alimentares há que pon-
distrofina e sarcoglicanos, com recurso a técnicas derar a gastrostomia. A restante patologia associa-
de Western Blotting para análise quantitativa). da (cardiológica, oftalmológica, pedopsiquiátrica,
A biópsia do nervo confirma a hipótese de otorrinolaringológica) deverá ser avaliada pelo
neuropatia, classificando-a (por exemplo: desmie- especialista respectivo por indicação do médico
linizante ou hipomielinizante). responsável. Alguns tipos de doença neuromus-
A RMN – CE poderá ser útil nas citopatias cular têm terapêutica farmacológica específica
mitocondriais (alteração de sinal dos núcleos da (por exemplo: distrofia muscular progressiva, e
base e da substância branca), na distrofia muscu- miastenia gravis). A integração do indivíduo com
lar congénita com afecção do SNC (defeitos de doença neuromuscular no seu meio é um desafio
desenvolvimento cortical e atrofia cerebelosa) e na multidisciplinar, envolvendo diferentes parceiros
distrofia miotónica congénita (áreas de possível (assistente social, professores, entre outros), e a
gliose cerebral). obtenção de ajudas técnicas (cadeiras de rodas,
O estudo metabólico (lactato, piruvato, amó- coletes ortostáticos, computadores, etc.). (Capítulo
nia, aminoácidos, ácidos orgânicos, entre outros) 191)
CAPÍTULO 195 Doenças neuromusculares 953

QUADRO 3 – Doenças Neuromusculares e Genética Molecular

Segmento – Unidade Motora Loci/Defeito genético/proteína


Atrofia Muscular Espinhal Cornos anteriores medulares 5q11-q13, deleção homozigótica do exão 7 do
gene SMN- 1
NHSM I (CMT 1) Neuropatia 17p11; homozigotos com 4 cópias de PMP-
22
NHSM III Neuropatia 17p11.2; mutações PMP- 22, P0, e EGR-2
17p13; 10q11.2
Síndroma Miasténica Congénita Placa neuromuscular Xp21 (gene da distrofina)
Distrofia Muscular Progressiva de Doença muscular
Duchenne e de Becker 6q22-q23 (gene da merosina)
Distrofia Muscular Congénita Doença muscular
(merosina negativa) 9q31 (gene da fukutina)
Distrofia Muscular Congénita de Doença muscular
Fukuyama 9q31 ? outro locus?; POMT-1
Síndroma de Walker - Warburg Doença muscular 1p34-p33; POMGnT1
Doença Músculo- Olho- Cérebro Doença muscular 19q13.3, Tripleto CTG repetido no gene
Distrofia Miotónica Congénita Doença muscular DMPK
19q13.1; RYR-1
Miopatia Central core Doença muscular 1q22-q23(gene da tropomiosina 3); AD
Miopatia Nemalínica Doença muscular 2q22, 1q42.1 (gene da alfa-actina);
AD ou AR
2q22 (gene da nebulina); AR
19q13.4 (gene da proteína do filamento
sarcomérico fino); AR

Miopatia centronuclear Doença muscular Xq28; miotubularina


Abreviaturas: AD = Autossómica Dominante; AR = Autossómica Recessiva

Formas clínicas autossómica recessiva associada em 95% dos casos


à deleção homozigótica do exão 7 do gene SMN-1
De acordo com o segmento da unidade motora (Survival Motor Neuron, de localização telomérica),
afectado, são descritas sucintamente as doenças no braço longo do cromossoma 5 (5q11- q13). A
neuromusculares mais frequentes e/ou mais típi- gravidade do fenótipo relaciona- se com o número
cas em clínica pediátrica. de cópias existentes do gene SMN- 2 (idêntico ao
SMN-1, mas situado no centrómero); é menos
1. Doenças do corno anterior medular grave se houver muitas cópias presentes, justifi-
cando-se assim a variabilidade fenotípica.
Atrofia muscular espinhal (AME) Patologia: Existe atrofia muscular neurogénica
Importância do problema: Trata-se de uma doen- (desnervação) ou secundária.
ça degenerativa (por mecanismo apoptótico) dos Clínica e evolução: Variam de acordo com a
cornos anteriores medulares e dos núcleos moto- idade de início e a gravidade do envolvimento
res de alguns pares cranianos. motor:
Constitui a segunda doença neuromuscular 1. AME- 1 (Doença de Werdnig-Hoffmann). É a
mais frequente (a seguir à distrofia muscular de causa mais frequente de hipotonia neuromuscular
Duchenne), com uma incidência de 1/20.000 no recém- nascido e no lactente. Os sinais clínicos
recém-nascidos. têm início antes dos 6 meses de idade, não
Etiologia: A AME é uma doença genética adquirindo a criança a capacidade de se sentar
954 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

sem apoio. Os movimentos fetais são escassos. As b – polioencefalite em que se verifica compro-
manifestações iniciais são: hipotonia progressiva, misso dos centros superiores do encéfalo; podem
parésia de predomínio proximal, arreflexia e fasci- surgir convulsões e coma, para além de paralisia
culações da língua. A afecção dos músculos inter- espástica e sinais de irritação meníngea;
costais e bulbares leva a compromisso respi- c – espinhal: é esta forma que é paradigmática
ratório, com insuficiência e infecções respiratórias da afecção do corno anterior e que justifica a inclu-
graves, sendo estas a causa de mortalidade, ocor- são da poliomielite neste capítulo de doenças neuro-
rendo geralmente antes dos 2 anos de idade. musculares.
2. AME – 2 (Forma Intermédia). Inicia- se entre Para além de parestesias, fasciculações e espas-
os 6 e 12 meses de idade, com hipotonia e parésia mos, salienta-se a particularidade da paralisia flácida
(sobretudo dos membros inferiores). A criança assimétrica, sobretudo das áreas proximais do mem-
consegue sentar-se sem apoio, embora não adqui- bro inferior de um lado (um só músculo ou grupos
ra a marcha. Há um progressivo envolvimento de músculos), podendo posteriormente outro mem-
dos membros superiores e dos músculos respi- bro (superior) também ser atingido. A fase de para-
ratórios, com compromisso respiratório na segun- lisia tem duração variável com recuparação ou
da década de vida (causa de morte). sequelas, o que depende do grau de lesão neuronal.
3. AME – 3 (Doença de Kugelberg- Welander). A paralisia dos membros inferiores pode associar-se
Tem início após os 18 meses de idade, com a disfunção vesical ou dismotilidade intestinal. Se
aquisição da marcha (embora com dificuldades forem afectados os segmentos espinhais cervicais e
associadas). Há diminuição da força das cinturas torácicos, pode surgir insuficiência respiratória.
pélvica e escapular. Poderá haver perda da mar- Tratamento: o tratamento é sintomático, sendo
cha na segunda década de vida. que não existe tratamento específico antivírico. Na
Diagnóstico: É confirmado pelo EMG, biópsia fase aguda estão contraindicados procedimentos
de músculo e estudo de genética molecular. cirúrgicos e injecções intramusculares.
De referir que as estirpes de vacina viva podem
Poliomielite originar infecções fatais em crianças com agama-
Etiopatogénese e clínica: A infecção pelo polio globulinémia ou imunodeficiência combinada.
vírus tipos 1-3 (enterovírus) é hoje pouco comum
nos países desenvolvidos e designadamente em 2. Polirradiculoneuropatias
Portugal, o que se explica pelo sucesso dos pro-
gramas de imunização. Síndroma de Guillain-Barré (SGB)
O período de incubação oscila geralmente Definição e importância do problema: Trata-se de
entre 8-12 dias (com variações entre 5 e 35 dias). uma polirradiculoneuropatia desmielinizante in-
Descrevem-se as seguintes formas clínicas: flamatória aguda, levando a paralisia progressiva
1) Forma assintomática (mais de 90% dos casos). após infecção ou imunização.
2) Doença minor ou não paralítica (cerca de 5% A SGB tem uma prevalência de 1- 4/100.000,
dos casos). As manifestações clínicas são: febre, afectando, em geral, as crianças com idade supe-
mal estar, odinofagia e vómitos surgindo cerca de rior 2 anos. Ocorre insuficiência respiratória em
4 dias após exposição ao vírus; a evolução é 25% dos casos, sendo necessária ventilação artifi-
favorável com cura espontânea. cial. A mortalidade é cerca de 2-3% na criança,
3) Forma paralítica (cerca de 0,1% dos casos) sendo superior no adulto (até 15%).
ocorrendo com uma sequência de manifestações Etiopatogénese: Observa-se lesão do neurónio
idênticas às da doença minor. motor (raiz e nervo periférico) com desmieliniza-
Por sua vez, a poliomielite paralítica integra 3 ção, presença de linfócitos e de macrófagos, me-
síndromas distintas relacionadas com os territórios diada por mecanismo auto-imune (presença de
do SNC mais intensamente afectados: auto-anticorpos anti-gangliósido – GM1 e GM1b).
a – bulbar acompanhada de paralisias dos mús- Uma infecção ou imunização que leve a uma alte-
culos faciais, da mastigação, respiratórios, etc. em ração das populações de células T supressoras, e
função dos centros afectados; de linfócitos T e B que reconhecem antigénios do
CAPÍTULO 195 Doenças neuromusculares 955

sistema nervoso, poderá estar na génese do SGB. terapêutica actual baseia-se na administração de
A infecção desencadeante tem geralmente etiolo- imunoglobulina (2g/kg) por via intravenosa (dose
gia vírica (VEB, CMV, VHA, VHB, vírus da total), em 2 dias – com resultados sobreponíveis à
varicela – zoster, vírus do sarampo e da rubéola, plasmaferese.
Influenza A e B, Coxsackie e Echovirus), embora
possa ser bacteriana (Campylobacter jejuni e Neuropatias hereditárias
Mycoplasma). As vacinas anti-rábica ou anti- sensitivo-motoras (NHSM)
Influenza também se associam a SGB. Importância do problema: As neuropatias here-
Clínica e evolução: A redução gradual da força ditárias sensitivo – motoras são o grupo de
e as parestesias são as queixas iniciais. A avaliação doenças degenerativas do sistema nervoso peri-
neurológica revela uma paralisia generalizada, férico mais comuns na criança (40% das neuropa-
essencialmente simétrica, geralmente distal (em- tias crónicas).
bora possa ser proximal ou mista), com carácter Etiopatogénese: A degenerescência da baínha de
ascendente (sequencialmente: membros inferiores, mielina e/ou axónios leva a uma amiotrofia paralíti-
membros superiores, tronco, e face) e arreflexia ca distal com arreflexia, envolvendo inicialmente os
generalizada. A paralisia dos músculos respi- membros inferiores. Os avanços na genética molecu-
ratórios com necessidade de ventilação mecânica é lar contribuiram para uma melhor compreensão
uma complicação da SGB. Caso haja ataxia e oftal- destas doenças, alterando a sua classificação.
moplegia é provável tratar- se da síndroma de Existem diferentes padrões de transmissão
Miller-Fisher (SGB com afecção dos pares crani- genética (AR, AD, ligada ao X).
anos). Há sinais de disfunção dos nervos Várias mutações foram descritas com influên-
autonómicos tais como hipotensão, taquicardia, cia na alteração da função de duas proteínas rela-
hipertensão e arritmia cardíaca; pode verificar-se cionadas com o metabolismo da mielina: a PMP 22
igualmente disfunção do esfíncter vesical. Após o (perypheral myelin protein 22) – locus 17p11.2-12, e a
início dos primeiros sintomas pode haver agrava- MPZ (myelin protein 0) – locus 1q22-23.
mento no período de 10 a 30 dias. A maioria das NHSM não é típica da idade
Diagnóstico: o exame do LCR revela dissociação pediátrica. As mais frequentes neste grupo são:
albumino-citológica (hiperproteinorráquia com con- 1. NHSM I (Doença de Charcot- Marie- Tooth).
tagem celular < 10 células/ mm3). A electrofisiologia Surge na criança após os 3 anos de idade geral-
revela diminuição das velocidades de condução ner- mente por deformação osteoarticular dos pés (pé
vosa sensitiva e motora, compatível com desmieli- cavo e pé pendente), associada a alteração da mar-
nização. O diagnóstico diferencial deve ser feito com cha (steppage). Gradualmente uma atrofia de pre-
as neuropatias periféricas (tóxicas e infecciosas), a domínio distal instala-se com deformidade bila-
poliomielite (sobretudo a vacinal), mielopatia aguda teral dos pés e, mais tarde, das mãos.
por compressão medular (tumor, trauma, abcesso), 2. NHSM III (Doença de Déjerine- Sottas). Esta
esclerose múltipla, doença muscular (polimiosite, doença tem duas formas de apresentação.
miopatia mitocondrial) e doença da placa neuro- A forma congénita, rara e grave, com hipoto-
muscular (miastenia gravis). nia desde o período neonatal, pode estar associa-
Prognóstico: A recuperação é, em geral, com- da ou não a dificuldade alimentar e/ou respi-
pleta, havendo sequelas neurológicas em 5-25% ratória (com necessidade de ventilação), e a artro-
dos doentes. Pode haver recorrência de SGB em gripose. A forma clássica ou infantil inicia-se no
3% dos casos. Os factores de mau prognóstico são: 2º ano de vida, caracterizando-se por atraso no
maior gravidade do défice motor; maior período desenvolvimento motor, podendo haver perda da
desde o início da doença até ao início da recupe- marcha no início da 2ª década de vida.
ração, e EMG com sinais de desnervação. Diagnóstico: O EMG é fundamental revelando
Tratamento: A instabilidade clínica obriga a redução na velocidade de condução nervosa. A
internamento hospitalar com monitorização con- biópsia de nervo realiza-se actualmente com
tínua dos parâmetros vitais; poderá ser necessário menor frequência, tendo vindo a ser substituída
entubação para ventilação imediata. A abordagem pelos estudos de genética molecular.
956 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Paralisia de BELL levam a défices distintos (nos receptores colinérgi-


Definição e etiopatogénese: A paralisia de Bell é cos, na acetilcolinesterase, etc.). Existem diferentes
uma paralisia aguda do nervo facial, unilateral, padrões de transmissão genética (autossómica re-
não associada a outras neuropatias cranianas ou a cessiva ou autossómica dominante) e várias muta-
disfunção do tronco cerebral. ções descritas.
Surge em todas as idades abruptamente, cerca O diagnóstico de síndroma miasténica con-
de 2 semanas após uma infeção vírica, ou por génita deve ser considerado quando há hipotonia
Mycoplasma; o vírus de Epstein-Barr está implica- com choro fraco (num recém-nascido ou lactente),
do em cerca de 20 % dos casos. De tal resulta neu- fatigabilidade afectando a musculatura ocular, bul-
ropatia desmielinizante do VII° nervo craniano. bar e dos membros, existência de familiar com
Trata-se mais dum processo alérgico ou imune, quadro clínico semelhante, resposta electromiográ-
secundário à agressão infecciosa inicial, do que duma fica alterada com a estimulação repetitiva, e dosea-
infecção vírica activa. No período neonatal a paralisia mento de anticorpos anti-receptores de acetilcolina
facial pode resultar de compressão traumática do (ACh) negativo. A resposta à terapêutica com anti-
nervo facial por forceps (Capítulo 363). colinesterásicos é geralmente insuficiente.
Clínica, tratamento e prognóstico: Verifica-se no
lado afectado parésia da hemiface, sulco nasogeniano Miastenia gravis com início juvenil
menos marcado, comissura labial mais aproximada (auto-imune)
da linha média e impossibilidade de aproximação Caracteriza-se por apresentação aguda de fraque-
das pálperas (lagoftalmo por paralisia orbicular). za muscular nos membros, com fadiga crescente
Existe diminuição da sensibilidade gustativa ao longo do dia e envolvimento bulbar (dificul-
dos 2/3 anteriores da língua em cerca de 50% dos dade na mastigação, na deglutição e na fonação) e
casos. No RN a assimetria da mímica facial pode ocular (ptose palpebral bilateral e oftalmoplegia).
raramente ser causada por ausência congénita do Associa-se a outras doenças auto-imunes, sobretu-
músculo depressor angular oris. do a hipotiroidismo. A investigação deverá incluir
Por vezes verifica-se hipertensão arterial. uma prova terapêutica (com edrofónio, ou com
Como há impossibilidade de aproximação das neostigmina); o doseamento de anticorpos anti-
pálpebras do lado afectado (trata-se duma para- receptores de ACh; o EMG (com estimulação
lisia facial periférica) pode surgir conjuntivite ou repetitiva de um nervo motor, obtendo-se potenci-
ceratite secundária implicando cuidados especiais ais cada vez menos amplos, com aumento do
(protecção do globo ocular) com penso oclusivo, a tempo de latência pela fatigabilidade muscular); e
definir pelo oftalmologista. a TAC torácica (para pesquisa de timoma). A abor-
A prednisolona oral (1mg/kg/dia) durante 7 dagem terapêutica inclui anticolinesterásicos, cor-
dias, iniciada nos primeiros 3-5 dias da evolução ticoterapia, imunossupressores, gamaglobulina
poderá contribuir para processo de melhoria mais endovenosa, plasmaferese e, por vezes, a timecto-
rápida. A fisioterapia está indicada nos casos ar- mia.
rastados. Nos casos refractários tem sido utilizado o
O prognóstico é favorável com recuperação anticorpo monoclonal (rituximab).
espontânea em cerca de 90 % dos casos a qual, no
entanto, pode verificar-se em 2 – 3 meses. Miastenia gravis congénita
Trata-se duma forma transitória no recém- nasci-
3. Doenças da junção neuromuscular do filho de mãe com miastenia gravis (ocorrendo
em 15% dos casos); manifesta-se nas primeiras 48
Estas doenças, raras em Pediatria, integram três tipos: horas de vida com sinais miasténicos acentuados
Síndroma miasténica congénita (SDR, hipotonia, actividade motora diminuta,
(não auto-imune) reacção fraca ou ausente, dificuldade na deglu-
Pode manifestar-se desde o nascimento (rara- tição) que duram enquanto houver anticorpos
mente), ou durante a infância. Diferentes defeitos anormais no sangue e músculo. Não existe risco
ao nível pré-sináptico, sináptico ou pós- sináptico da miasteria grave mais tarde.
CAPÍTULO 195 Doenças neuromusculares 957

O tratamento é sintomático (assistência respi- A distrofina localiza-se nas membranas celu-


ratória, alimentação com sonda gástrica, etc.). lares dos miócitos, encontrando-se também no
SNC. Cerca de 30% dos casos devem-se a novas
4. Doenças musculares mutações. As mulheres portadoras são geralmente
assintomáticas, embora raramente possa haver
As doenças musculares constituem um conjunto manifestações ligeiras a moderadas (por lioniza-
heterogéneo de patologia afectando primaria- ção desigual, mosaicismo X0/ XX, ou cromossoma
mente o músculo, na sua maioria transmitidas X anómalo).
geneticamente. Na DMD a distrofina está ausente, e na DMB
há produção de distrofina, embora em menor
Distrofias musculares progressivas quantidade ou com menor peso molecular.
O termo distrofia significa crescimento anormal e As manifestações clínicas iniciais da DMD
deriva do Grego trophe que corresponde a alimen- têm início entre os 2- 4 anos (por vezes mais cedo),
to ou nutrição. com pseudo-hipertrofia dos gémeos, sinal de
Uma distrofia muscular distingue-se de todas Gower e marcha miopática. Aos 6-7 anos surge
as outras doenças neuromusculares por 4 critérios envolvimento da cintura escapular, e entre os 9-12
obrigatórios: miopatia; base genética; evolução anos há perda da marcha autónoma. No final da
progressiva; e degenerescência e morte das fibras segunda década de vida ou início da terceira há
musculares em diversas fases da doença. insuficiência respiratória e cardíaca, conduzindo à
As distrofias musculares progressivas heredo- morte. Na DMB os sintomas iniciam- se entre os
familiares são caracterizadas anátomo-patologica- 6-7 anos (ou mais tarde); a perda da marcha nem
mente por alteração do músculo (fibras muscu- sempre acontece.
lares necrosadas, com sinais de regeneração, Ocorre défice cognitivo em 30% dos casos de
hialinizadas, com mistura de fibras atróficas e DMD e em 10% dos casos de DMB. A cardiomio-
hipertróficas, e ainda proliferação de colagénio e patia observa-se em mais de metade dos doentes
adipócitos na zona da lesão das fibras musculares), com distrofinopatia, afectando sobretudo a parede
o que se traduz na clínica pela ocorrência de pseu- póstero-lateral do ventrículo esquerdo e levando a
do-hipertrofia dos gémeos e miocardiopatia). valvulopatias e arritmias.
Para além da distrofia muscular de Duchenne O diagnóstico baseia-se fundamentalmente na
e de Becker a que se dá enfase como formas de dis- clínica, no doseamento de CPK (geralmente >
trofia muscular progressiva, cabe referir ainda a 10.000 UI/L, sendo normal < 160), na genética
distrofia fácio – escápulo – umeral (apenas citada). molecular (diagnóstico definitivo), e na biópsia
muscular (nos 30-40% dos casos em que não se
• Distrofias musculares progressivas de encontra a mutação). É possível diagnóstico pré-
Duchenne (DMD) e de Becker (DMB). A DMD é natal.
a doença neuromuscular hereditária mais comum, O tratamento com corticóides-prednisolona ou
com padrão de transmissão recessiva ligada ao deflazacort – com início aos 5-6 anos (ainda com a
cromossoma X. Tem uma incidência aproximada massa muscular conservada), em esquema inter-
de 17 por 100.000 recém- nascidos. A DMB tem mitente, parece reduzir a velocidade da pro-
uma menor incidência (cerca de um terço), mas gressão da doença, podendo atrasar em 1 a 3 anos
igual prevalência devido à maior longevidade a utilização da cadeira de rodas, e a progressão da
nesta última. cifoscoliose. O transplante de mioblastos e a tera-
Pelo facto de a proteína implicada na etiopa- pia genética encontram-se em investigação.
togénese ser a distrofina, estas doenças também se
denominam distrofinopatias. O gene da distrofina, Distrofias musculares congénitas (DMC)
localizado no braço curto do cromossoma X A designação de DMC pode considerar-se con-
(Xp21), apresenta deleção, sendo possível demons- fusa, pois todas as DM são geneticamente deter-
trá-lo em 60- 70% dos casos na DMD, e em 90% dos minadas (transmissão AR é a regra).
casos na DMB. Estas situações correspondem a um grupo
958 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

heterogéneo de doenças degenerativas primárias frequentemente um início na primeira infância.


e progressivas do músculo esquelético, com início São relativamente frequentes, evidenciando pseu-
no período intra-uterino ou até ao primeiro ano de do-hipertrofia dos gémeos e cardiomiopatia. Algu-
vida. A incidência é cerca de 1/60.000 nascimen- mas crianças têm uma apresentação «pseudo-
tos, e a prevalência é de 1/100.000 habitantes. No metabólica» com episódios de mioglobinúria asso-
tipo mais frequente (no Japão, Alemanha, Escan- ciados com esforço ou doenças infecciosas.
dinávia e Turquia) a seguir à DMD foi identifica-
do defeito genético no locus 8q 31-33; e em certas Miopatias congénitas
formas clínicas, mutações em genes essenciais As miopatias congénitas são doenças primárias do
para a migração do neuroblasto no SNC, como o músculo, na sua maioria de transmissão genética
POMT1. É o designado por “tipo de Fukuyama”. (com vários padrões), e manifestação precoce. Na
As DMC caracterizam-se por hipotonia, para- base desta patologia estão diversos genes (mio-
lisia com predomínio proximal, arreflexia, retrac- genina, herculina, miostatina, PAX3, PAX7, etc.
ções tendinosas, frequente afecção dos músculos nos cromossomas 1, 11, 12) implicados em ano-
respiratórios e dificuldade alimentar. Nalguns malias do processo de diferenciação da célula
casos há afecção do SNC, com anomalias estrutu- mesodérmica indiferenciada.
rais encefálicas, cardiomiopatia e microcefalia. A evolução é lentamente progressiva ou estáti-
O diagnóstico baseia- se na clínica, no dosea- ca. A histopatologia revela anomalia estrutural
mento de CPK (com ligeiro/moderado aumento), muscular, com variações no tamanho e número de
na biópsia muscular e na genética molecular fibras e/ou presença de inclusões evidenciadas
(diagnóstico definitivo). por microscopia electrónica. Na sua origem
Histologicamente ocorrem alterações distrófi- haverá provavelmente uma anomalia do desen-
cas musculares (fibras com calibre variável, com volvimento e maturação das fibras musculares.
necrose e proliferação de tecido intersticial), Geneticamente estão descritos diferentes loci
podendo a imuno-histoquímica revelar a presença, implicados.
ou não, de merosina (alfa-2 laminina). Como manifestações clínicas referem-se hipo-
A evolução clínica é em geral lentamente pro- tonia, hiporreflexia, amimia facial, micrognatia e
gressiva ou estática, podendo haver compromisso palato ogival. A CPK é habitualmente normal, e o
respiratório (com envolvimento do diafragma), EMG revela potenciais motores polifásicos de
levando à morte. baixa amplitude. A biópsia muscular associada à
microscopia electrónica e a genética molecular
Outras distrofias musculares confirmam o diagnóstico.
Estão de longa data descritos na literatura neu- As miopatias congénitas mais bem caracteri-
rológica doentes ou famílias com um fenótipo zadas são:
intermédio relativamente às distrofias de Duchen- • Miopatia central core
ne e Becker, e um padrão de transmissão de doen- Pelo exame anátomo-patológico identificam-
ça recessiva ou dominante. Este grande grupo de se, nas fibras musculares tipo I, áreas centrais com
distrofias musculares foi progressivamente indi- miofibrilhas anormais. Há hipotonia neonatal e
vidualizado com base em estudos de genética deformidades- luxação congénita da anca, cifosco-
molecular. Utiliza-se habitualmente a sigla LGMD liose e contracturas dos dedos da mão em flexão.
(limb-girdle muscular distrophy). O tipo LGMD1 Estão descritos padrões de transmissão autos-
corresponde às formas dominantes que têm em sómica dominante e formas esporádicas. Este tipo
geral uma apresentação mais tardia e um curso de miopatia evidencia susceptibilidade à hiperter-
menos grave. O tipo LGMD2 designa as formas mia maligna.
recessivas. Os subtipos classificam-se com letras • Miopatia nemalínica
(exemplos LGMD2A-calpainopatia, LGMD2B- Histologicamente observam-se estruturas em
disferlinopatia, LGMD2C-alfa-sarcoglicanopatia, forma de filamento (rods), compostas por α-actini-
etc.). na e desmina (dos discos z). Há heterogeneidade
As distrofias musculares de tipo recessivo têm fenotípica, apresentando a forma mais grave hipo-
CAPÍTULO 195 Doenças neuromusculares 959

tonia neonatal e paralisia proximal, amimia, difi- miopatia miotubular). A genética molecular con-
culdade alimentar e respiratória, dismorfismos tribui para o diagnóstico, revelando a expansão da
craniofaciais e envolvimento cardíaco. Os quadros repetição do tripleto CTG na análise da mutação
menos graves têm um início mais tardio. O padrão do gene DMPK (gene da miotonina- locus
de transmissão pode ser autossómico recessivo ou 19q13.3). Nesta doença há o fenómeno de anteci-
autossómico dominante. São conhecidas várias pação que consiste numa maior precocidade no
mutações genéticas afectando uma proteína mus- início da doença, e num aumento da gravidade da
cular específica. mesma nas gerações seguintes.
• Miopatia centronuclear ou miotubular
A microscopia revela miotúbulos fetais dispos- Miosites
tos centralmente na fibra muscular, sugerindo um A inflamação do tecido muscular ou miosite (pós-
atraso na maturação do sistema sarcotubular. Há infecciosa) é uma situação aguda e transitória,
várias apresentações possíveis: na forma ligada ao possivelmente mediada imunologicamente, e de-
cromossoma X (locus Xq28) a sintomalogia clínica sencadeada por uma infecção vírica (Enterovírus,
é muito grave, com insuficiência respiratória e Echovirus, Coxsackie B, Influenza A e B, VEB, HSV,
dificuldade alimentar após o parto; as formas Varicella- zoster, entre outros). O quadro clínico con-
autossómicas (recessivas ou dominantes) são siste em mialgias intensas (geralmente nos
menos graves, com variabilidade fenotípica. A gémeos), com dor à palpação dos músculos
presença de ptose palpebral e ocasional envolvi- envolvidos, e impotência funcional. A terapêutica
mento do SNC (com convulsões e défice cogniti- é sintomática, sendo esta situação auto-limitada.
vo), sugerem o diagnóstico. As miosites de origem bacteriana ou parasitária
são muito raras nos países desenvolvidos.
Doença miotónica NOTA – Sugere-se a consulta do Glossário
(Doença de Steinert) Geral relativamente aos termos Artrogripose e
Com uma incidência de 1/30.000 na população Miotonia.
geral é a segunda distrofia muscular mais comum
nos EUA, Europa e Austrália, de transmissão AD. BIBLIOGRAFIA
Não somente a musculatura estriada está afecta- Aicardi J. Diseases of the Nervous System in Childhood.
da, mas igualmente e musculatura lisa do apare- London: Mac Keith Press, 1998
lho digestivo, útero e coração. Pode haver endo- Andrews PL. Autoimmune myastenia gravis in childhood.
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As manifestações iniciais aparecem no período Blatter JA, Finder JD. Perioperative respiratory management of
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ou neonatal com hipotonia, fácies miopática, pala- Anaesth 2013 Jun 14.doi: 10.1111/pan.12214
to ogival, dificuldade alimentar e respiratória Erazo-Torricelli R. Hipotonia neonatal. Rev Neurologia (Brasil)
(com necessidade de ventilação); a mortalidade é 2000; 31: 252- 262
elevada (25% dos doentes) por insuficiência respi- Gilden DH. Bell’s palsy. NEJM 2004; 351: 1323-1331
ratória. As crianças que sobreviveram ao 1º ano Ho C, Straatman L. A review of pediatric palliative care service
podem apresentar défice cognitivo e “fraqueza” utilization in children with a progressive neuromuscular
facial, (lábio superior em V invertido) com melho- disease who died on a palliative care program. J Chil
ria evidente da função muscular até à 2ª ou 3ª Neurol 2013; 28: 40-44
década de vida, altura em que se instala um Holland NJ, Weiner GM. Recent developments in Bell’s palsy.
quadro de miopatia progressiva com défice cogni- BMJ 2004; 329: 553-557
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A biópsia muscular sugere deficiente matu- rapy for Guillain- Barré syndrome. Report of the Quality
ração muscular (fibras pequenas, pouco diferen- Standards Subcommittee of the American Academy of
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960 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

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treatment of refractory myasthenia gravis using rituximab: moção, muitas vezes em associação a convul-
a pediatric case report. J Pediatr 2003; 143: 674-677 sões, dificuldade alimentar e défice cognitivo).
Apesar de não haver terapêutica eficaz, o dia-
gnóstico é fundamental para proporcionar à
família o prognóstico e o aconselhamento genéti-
co. Na maioria dos casos a transmissão é autos-
sómica recessiva, o que confere uma probabili-
dade de 25% de recorrência. Pode verificar-se
igualmente transmissão hereditária ligada ao
cromossoma X e, mais raramente, autossómica
dominante.
As doenças degenerativas podem ser classifi-
cadas pelo defeito subjacente (no lisossoma, no pe-
roxissoma, na mitocôndria, etc.) ou pela localização
anatómica predominante (substância branca, subs-
tância cinzenta, gânglios da base e cerebelo). O estu-
do imagiológico por ressonância magnética constitui
o exame que dá as indicações mais precisas sobre a
localização do defeito. A detecção do estado de por-
tador pode ser feita por estudo enzimático.
Perante um doente com suspeita de doença
heredodegenerativa, é fundamental uma cuida-
dosa história clínica. A anamnese permite desco-
brir casos semelhantes na família e perceber o tipo
de hereditariedade em questão. Os antecedentes
de gravidez, de parto e pós-natais podem orientar
para uma etiologia sequelar e não progressiva. No
que se refere à doença actual, pode evidenciar-se o
carácter subagudo ou crónico da doença, a idade
CAPÍTULO 196 Doenças neurodegenerativas 961

de aparecimento de sinais ou sintomas, o tipo de tendinosa indica lesão da via piramidal, o que é
doença neurológica, a regressão do desenvolvi- relacionável com doença da substância branca
mento e sinais ou sintomas de doença sistémica. (leucodistrofia).
Estas doenças devem ser acompanhadas em A ataxia manifesta-se nas doenças do cerebelo
centros especializados, embora os respectivos e das vias cerebelosas, e a discinésia (distonia e
cuidados gerais possam ser ministrados no coreoatetose) nas que afectam predominante-
âmbito dos cuidados primários. mente os gânglios da base.
A neuropatia periférica pode ser resultante de
Manifestações clínicas desmielinização do neurónio motor periférico no
estádio avançado das doenças degenerativas do
Atraso e regressão do desenvolvimento sistema nervoso central. Constitui a manifestação
Nas formas de início neonatal o atraso pode ser principal em doenças do neurónio motor periféri-
grave, não se verificando aquisições, Nas formas co (Charcot Marie Tooth) e nos casos de doenças
infantis precoces (início entre 4-18 meses) pode com envolvimento do cerebelo (degenerescências
haver alguma aquisição de competências e, nas espinocerebelosas).
infantis tardias (início entre 18 meses – 4 anos) e
juvenis (início após os 4 anos), pode haver clara- Comportamento e alterações psiquiátricas
mente um período de desenvolvimento normal. As alterações do comportamento e a doença psi-
Em crianças com atraso de desenvolvimento, quiátrica podem ser a forma de apresentação,
uma lentidão extrema no ritmo de aquisições, ou a especialmente nas formas de início juvenil e no
sua regressão constituem indicadores de doença adulto. São exemplos a doença de Wilson, a adre-
progressiva. (Capítulos 21 e 22) noleucodistrofia, a leucodistrofia metacromática,
Da mesma maneira, o aparecimento de sinais a doença de Krabbe, a doença de Nieman Pick e a
ou sintomas neurológicos, psiquiátricos ou lipofuscinose.
sistémicos, ou uma história familiar informativa,
são indicadores de doença progressiva e obrigam Alterações do perímetro cefálico
a uma investigação etiológica. A microcefalia progressiva por atrofia cerebral é
frequente nas doenças degenerativas. Mais rara-
Epilepsia mente verifica-se macrocefalia, como por exemplo
A epilepsia pode surgir em várias doenças dege- nas doenças de Tay Sachs, Alexander e Canavan.
nerativas, sugerindo o envolvimento da substân- O Quadro 2 resume, de modo integrado, as prin-
cia cinzenta. De facto, nas doenças da substância cipais alterações do exame neurológico em diver-
cinzenta a epilepsia é a manifestação clínica pre- sas afecções. (Capítulo 192)
dominante com a particularidade de ser refrac-
tária. (Quadro 1) (Capítulo 373) Alterações oculares
A avaliação oftalmológica é importante podendo
Doença motora orientar para a etiologia. (Quadro 3) (Capítulos
A espasticidade associada à hiperreflexia osteo- 254-256 e Parte XXXII)

QUADRO 1 – Doenças neurodegenerativas Visceromegália


e epilepsia A visceromegália é sugestiva de doença lisosso-
mial de armazenamento ou tesaurismose. Na
GM 1 Doença de Menkes doença de Gaucher há esplenomegália e nas mu-
Doença de Sandhoff Doença mitocondrial copolissacaridoses e oligossacaridoses há hepa-
Doença de Tay Sachs (MERRF) tosplenomegália. A função hepática também
Défice de biotinidase Sialidose II pode estar alterada. A cirrose hepática na doen-
Síndroma de Alpers D. de Unverricht-Lungborg ça de Wilson e a icterícia na doença de Nieman
Defeito de peroxissomas Doença de Lafora Pick podem ser a primeira manifestação da
doença.
962 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 2 – Alterações do exame neurológico nas doenças neurodegenerativas

Espasticidade Ataxia Discinésia Outras alterações


Leucodistrofia Disartria; deterioração
++ +
metacromática cognitiva; neuropatia

Alteração do comportamento;
Adrenoleucodistrofia ++ + +
disfagia; neuropatia

Doença de Pelizaeus Merzbacher + + + Hipotonia inicial; nistagmo

Doença de Krabbe ++ + + Irritabilidade; neuropatia

Doença de Canavan ++ Hipotonia inicial; macrocefalia

Doença de Alexander ++ + + Macrocefalia, sinais bulbares

Argininémia ++ + + Epilepsia; regressão

Doença de Refsum + Neuropatia; surdez

Doença de Tay Sachs GM2 ++ + Epilepsia; macrocefalia

GM1 + + + Miocardiopatia; epilepsia

Doença de Nieman Pick ++ + + Hepatosplenomegália; epilepsia; hiperesplenismo

Estereotipias das mãos; epilepsia;


Síndroma de Rett + + +
hiperventilação; microcefalia

Lipofuscinoses ++ + Epilepsia mioclónica; microcefalia

Défice de biotinidase + + Eczema; alopécia; epilepsia

Doença de Hallervorden
+ ++ Deterioração cognitiva
Spatz

Rigidez; tremor; disfagia; disartria; doença


Doença de Wilson ++
psiquiátrica

Disartria; epilepsia; deterioração cognitiva


Doença de Huntington + ++

Neuropatia; diabetes; disartria; miocardiopatia;


Ataxia de Friedreich + ++
pés cavus

Ataxia telangiectasia ++ + Neuropatia;apraxia óculo motora; infecções

DRPLA* + + Epilepsia; regressão

++ = alteração predominante; + = alteração associada; * = ataxia dentado rubro pálido luisiano


CAPÍTULO 196 Doenças neurodegenerativas 963

QUADRO 3 – Alterações oculares nas doenças neurodegenerativas

Atrofia óptica Doença de Krabbe Doença de Pelizaeus- Síndroma de Zellweger


Doença de Canavan Merzbacher Lipofuscinose
Leucodistrofia metacromática
Mácula cor de cereja GM2 (Tay Sachs) Doença de Nieman Pick Sialidose (tipo I e II)
GM1 Leucodistrofia metacromática Doença de Farber
Retinopatia Síndroma de Zellweger Doença de Refsum Síndroma de Kearns-Sayre
Mucopolissacaridoses Síndroma de Cockayne Lipofuscinose
CDG Doença de Hallervoden-Spatz
Nistagmo Doença de Pelizaeus Síndroma de Leigh
Merzbacher
Oftalmoplegia Síndroma Síndroma de Leigh
de Kearns-Sayre
Ectopia do cristalino Homocistinúria Défice de Sulfito – Oxidase
Opacidade da córnea Mucopolissacaridoses Oligossacaridoses Mucolipidose IV
Cataratas Síndroma de Zellweger Doença de Cockayne Galactosémia
Síndroma de Lowe
Anel de Kayser Fleischer Doença de Wilson
Telangiectasia Ataxia telangiectasia

Doença cardíaca Alterações cutâneas


A doença cardíaca (cardiomiopatia e defeitos de con- Nalguns casos, são as alterações da pele ou do
dução) está associada a várias doenças heredode- cabelo que alertam para o diagnóstico. São
generativas e pode ser a causa de morte. (Quadro 4) exemplos a síndroma de Menkes com os “pili
torti”; a dermatite seborreica do défice de bio-
Doença renal tinidase; o exantema tipo pelagra da doença de
Na doença de Fabry há insuficiência renal por acu- Hartnup; a distribuição anómala da gordura
mulação de glicosfingolípidos nos rins; na síndro- subcutânea da síndroma CDG; ou os nódulos
ma de Lowe (cérebro-óculo-renal) verifica-se dis- subcutâneos da doença de Farber. Na adrenoleu-
função tubular renal; na doença de Leish-Nyham codistrofia há hiperpigmentação secundária à
há hiperuricémia, nefrolitíase e nefropatia obstru- doença de Addison.
tiva; e, na Síndroma de Zellweger, quistos renais.

QUADRO 4 – Alterações cardíacas nas doenças neurodegenerativas

Doenças degenerativas Alterações cardíacas


GM 1 Miocardiopatia, disritmia
Glicogenose II Cardiomegália; ECG típico
Doença de Refsum Defeitos de condução, insuficiência cardíaca
Mucopolissacaridoses e Mucolipidoses Espessamento do miocárdio: disfunção valvular
Doença de Kearns-Sayre Defeitos de condução
Ataxia de Friedreich Cardiomiopatia; defeitos de condução
Doença mitocondrial de início precoce Cardiomiopatia; alteração do ritmo
Doença de Duchenne Miocardiopatia
964 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Diagnóstico atrasar o aparecimento de alterações neurológicas.


O transplante medular também já foi utilizado
O diagnóstico assenta na evidência de regressão, em casos de adrenoleucodistrofia, na doença de
nos sinais e sintomas neurológicos, e na presença Krabbe e na leucodistrofia metacromática, com
de manifestações sistémicas. algum benefício.
Doenças tratáveis do SNC como tumores,
processos inflamatórios (relacionáveis, por exem- BIBLIOGRAFIA
plo, com infecções pelo vírus da imunodeficiência Campagnoni AT, et al (eds). Developmental Neuroscience.
humana), vasculares ou hidrocefalia devem ser Basel: Karger, 2008
excluídas. Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
A epilepsia refractária pode acompanhar-se de Duffner PK, Caggana M, Orsini JJ, et al. Newborn screening for
deterioração cognitiva e regressão, num processo Krabbe disease:the New York State model . Pediatr Neurol
muito semelhante ao que se encontra nas doenças 2009; 40: 245-252
degenerativas, sendo o EEG importante nesta Escolar ML, Poe MD, Provenzale JM, et al. Transplantation of
situação. umbilical-cord blood in babies with infantile Krabbe´s dis-
O estudo imagiológico por ressonância ma- ease. NEJM 2005; 352: 2069-2080
gnética é um exame fundamental na investigação Kaye EM. Update on genetic disorders affecting white mather.
deste grupo de doenças, identificando as estru- Pediatr Neurol 2001; 24: 11-24
turas cerebrais mais afectadas. A espectroscopia Kliegman RM, Greenbaum LA, Lye PS. Practical Strategies in
permite detectar alterações do “pico” de lactato Pediatric Diagnosis and Therapy. Philadelphia: Elsevier
nas doenças mitocondriais, do N-acetil aspartato Saunders, 2004
na doença de Canavan, e da creatina nas doenças Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
por défice de creatina. Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
O electroencefalograma (EEG), o electro- 2011
miograma (EMG), a avaliação dos potenciais evo- Krit W. Allogenic stem cell transplantation for the treatment of
cados visuais e o electrorretinograma estão indica- lysosomal and peroxisomal metabolic diseases. Semin
dos em casos específicos, assim como o exame do Immunopathol 2004; 26: 119-132
líquido céfalo-raquidiano. Moser H, Dubey P, Fatemi A. Progress in X-linked
Os estudos bioquímicos e metabólicos do adrenoleukodystrophy. Curr Opin Neurol 2004; 17: 263-269
sangue e da urina devem ser realizados, mas sem- Rogers D, Schor NF. The child is father to the man: develop-
pre orientados pela clínica. mental roles for proteins of importance for neurodegener-
O diagnóstico definitivo obtém-se pela identi- ative disease. Ann Neurol 2010; 67: 151-158
ficação do defeito metabólico ou enzimático no Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
sangue ou nos fibroblastos. Nalguns casos o gene AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
já está identificado e é possível o diagnóstico Medical, 2011
através da genética molecular. Schiffmann R, van de Knaap MS. The latest on leukodystro-
phies. Curr Opin Neurol 2004;17:187-192
Tratamento Schiffman R, Brady RO. New prospects for treatment of lyso-
somal storage diseases. Drugs 2002; 62: 733-742
Não existe tratamento eficaz para a grande maio-
ria das doenças heredodegenerativas.
Em doentes assintomáticos cujo diagnóstico
foi feito pela identificação da doença num familiar
antes do aparecimento de doença neurológica ou
em fases muito precoces da doença, são tentadas
certas terapêuticas. Na adrenoleucodistrofia, a
administração de gliceril trioleato e trierucato
(óleo de Lorenzo) a rapazes assintomáticos, com
idade inferior a 6 anos e com RM normal pode
CAPÍTULO 197 Reabilitação neurológica 965

197
ronal programada (apoptose) e há um “pico” de
mielinização e biossíntese dos neurotransmissores
correspondendo ao aperfeiçoamento das funções.
A este propósito, será importante reter as
seguintes noções: 1) existem períodos chamados
sensíveis ou “críticos” a que corresponde aumento
REABILITAÇÃO NEUROLÓGICA do número de células e conexões sinápticas e
aparecimento de aquisições/funções, traduzindo a
Aldina Alves designação “crítico”, maior susceptibilidade a
determinadas noxas (noção de estrutura tran-
sitória); 2) existem estruturas específicas que
provavelmente favorecem a migração celular e a
Conceitos fundamentais formação de sinapses; 3) a morte celular e proces-
sos regressivos correspondem à especialização das
Como introdução a este tema é fundamental defi- funções; 4) é possível o chamado “rearranjo do sis-
nir alguns conceitos para a compreensão do tema”: determinadas áreas silenciosas ou supleti-
mesmo: sequência do desenvolvimento cerebral, vas podem vir a “ser chamadas” a substituir uma
plasticidade cerebral, detecção precoce e inter- função quando determinada zona cerebral é lesada.
venção precoce.
2. Plasticidade cerebral
1. Sequência do desenvolvimento cerebral Sendo o sistema nervoso central (SNC) um sis-
Os complexos circuitos neuronais existentes no tema dinâmico, a “plasticidade cerebral” corres-
cérebro em desenvolvimento são constituídos ponde à sua capacidade de reorganização após
durante um período de tempo prolongado, na lesão; esta reorganização implica modificação da
vida pré e pós natal. estrutura e da forma, através de novas conexões
No período pré-natal ocorrem sequencialmente: sinápticas de modo a preservar a competência.
– neurogénese (1º mês de gestação) - produção O desenvolvimento e a maturação cerebrais da
de neurónios na matriz germinal criança têm um ritmo muito rápido nos primeiros
– proliferação e migração neuronais (2º trimes- anos de vida, pelo que tal capacidade de reorgani-
tre). zação cerebral é seguramente maior neste período
No período pós-natal: da vida do que no adulto.
– sinaptogénese – formação axonal e desen- A recuperação da função será tanto mais eficaz
volvimento das conexões dendríticas quanto mais precoce, intensiva, continuada, moti-
– desenvolvimento da glia vadora e específica for a actuação, sobretudo se
– organização e mielinização (com inicio pré decorrer num ambiente estimulante. Depende
natal mas só finalizada vários anos após o também da extensão e localização da lesão, saben-
nascimento) do-se que existem idades sensíveis para cada
A sinaptogénese é o aspecto mais importante função. Por exemplo, no caso duma criança com
para o desenvolvimento cerebral normal. uma surdez neuro-sensorial que não foi diagnosti-
As alterações genéticas ou adquiridas em cada cada precocemente, sendo colocada a prótese de-
uma das fases anteriores podem levar a padrões pois os 6/9 meses perde-se a capacidade de recu-
distintos de patologia cerebral ou disfunção. peração da audição por falta de estimulação do
Nos 2 primeiros anos de vida há uma super- córtex auditivo. (Capítulos 21, 22 e 79)
produção de neurónios com um máximo desen- Em suma, a plasticidade cerebral constitui a
volvimento das conexões sinápticas nas várias base em que assentam os princípios da inter-
camadas do córtex simultaneamente, correspon- venção precoce (ver adiante).
dendo ao aparecimento das funções. Dos 2 aos 12
anos dá-se uma redução selectiva das sinapses 3. Detecção precoce
através do processo designado por morte neu- Algumas deficiências manifestam-se logo ao nascer
966 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ou mesmo antes; contudo, na maioria dos casos maturação do SNC, tirando partido da plastici-
poderá haver factores de risco susceptíveis de dade cerebral.
causar deficiência, tornando-se esta evidente ape- b) Quando se deve iniciar?
nas no decorrer do desenvolvimento da criança. • O mais precocemente possível, enquanto o
Tais crianças em risco de uma perturbação do sistema ainda está lábil e com capacidade de reor-
desenvolvimento deverão ser, por isso, identifi- ganização atendendo aos marcos, datas e idades
cadas antes de tal pertubação se manifestar (é a “sensíveis” para cada função ( como já atrás foi
noção de detecção precoce). referido).
Assim, para uma detecção precoce dos problemas de c) Quando poderá ser demasiado tarde?
desenvolvimento da criança é essencial que a avaliação • Quando o SNC já está organizado num
do mesmo faça parte integrante dos cuidados de vi- “mapa” cerebral de modelos e circuitos funcionais
gilância da saúde, em particular nas situações de risco estáveis.
biológico ou social; tais cuidados pressupõem o acom- d) Objectivos da intervenção precoce:
panhamento, esclarecimento e participação da família. • Assegurar que todas as crianças em situação
Por outro lado, através da avaliação do desen- de risco ou com problemas de desenvolvimento,
volvimento, poderão ser detectados sinais de bem como as suas famílias, recebam os cuidados
“alerta” nas áreas da motricidade, visão, audição, específicos de que necessitam, sendo necessária
linguagem, cognição e comportamento, bem como uma colaboração estreita dos Serviços de Saúde,
problemas do ambiente social que podem e Segurança Social e Educação;
devem ser adequadamente avaliados e acompa- • Criar condições na família, escola e
nhados através duma intervenção precoce. sociedade, de modo que a criança tenha o máximo
de autonomia e integração;
4. Intervenção precoce • Ajudar a família a ultrapassar os aspectos
Intervenção precoce é toda a forma de actividades negativos da deficiência e a criar um olhar positi-
de estimulação dirigidas à criança, e de orien- vo sobre as aptidões da criança.
tações dirigidas aos pais, levadas a cabo como É a noção de resiliência, chamando-se atenção
consequência directa e imediata da detecção do para a importância dos pontos de viragem (Touch
risco, ou da identificação dum problema de desen- points). (Capítulos 21 e 22)
volvimento. A intervenção precoce diz respeito à
criança, aos pais, à família e ao meio ambiente alargado, Problemas neurológicos, habilitação
tendo como objectivo criar condições favoráveis ao seu e reabilitação
desenvolvimento.
Inclui actividades como: estimulação do desen- Os problemas neurológicos em que mais fre-
volvimento, com ensino, e várias terapias (fisio- quentemente está indicada a respectiva reabili-
terapia, terapia ocupacional e da fala), estratégias tação através do SMFR são: sequelas de prema-
educacionais e a colaboração de diferentes serviços turidade; sequelas de asfixia perinatal; spina bífi-
funcionando em equipas transdisciplinares. da; e as doenças neuromusculares.
O apoio cobre o período entre o momento do Debruçar-nos-emos sobre a intervenção, orien-
eventual diagnóstico pré-natal e aquele em que a tações e seguimento levados a cabo pelo SMFR do
criança atinge a idade da escolaridade obrigatória. HDE incidindo sobre crianças com sequelas de
a) Qual a sua importância? prematuridade, visando os recém nascidos (RN)
• Desenvolver estratégias que promovam uma com um peso ao nascer (PN) inferior a 1.500 g; tais
adaptação plástica do cérebro aos estímulos do crianças constituem um grupo de risco susceptí-
meio (relembrando o conceito plasticidade cere- vel de alterações do desenvolvimento, e igual-
bral) uma vez que a função favorece o desenvolvi- mente um bom modelo para compreender a acção
mento das estruturas neuronais; multidisciplinar da reabilitação.
• Experiências mais enriquecedoras podem A patologia da prematuridade, neste grupo de
promover alterações neuronais que favoreçam o muito baixo peso (MBP), é frequentemente multi-
controlo da disfunção, tendo em conta as fases de ssistémica, de gravidade inversamente propor-
CAPÍTULO 197 Reabilitação neurológica 967

cional à idade gestacional, pelo que requer o meio hospitalar, especificidade das UCIN) e
envolvimento duma equipa multidisciplinar. impactes causados por uma situação inesperada
Do ponto de vista do fisiatra, a maior atenção de angústia, medo e insegurança. A envolvência
no futuro destas crianças, será dirigida a even- na relação com aquele bébé, que é seu, e que
tuais sequelas pulmonares – displasia broncopul- necessitará de alguns cuidados diferentes dos
monar (DBP), e neurológicas – motoras, cogniti- habituais dum mais “maturo,”será de primordial
vas e sensoriais (visão e audição), alterações da importância. Serão apoiados e ensinados os pais
linguagem, do comportamento e dificuldades de no seu manejo logo que existam condições clínicas
aprendizagem; por isso, é feito um seguimento para tal.
sistemático do seu desenvolvimento nas idades- Será feita uma sensibilização no sentido de
chave, para detecção precoce de eventuais proporcionar condições facilitadoras do bem
desvios/disfunções. A identificação (sinalização) estar do RN: ritmo sono/vigília, calmantes da
e intervenção iniciar-se-ão durante o internamen- dor/diminuindo o estresse, envolvendo equipa
to na unidade de cuidados intensivos neonatais médica e de enfermagem (por exemplo, redução
(UCIN). da luz, do ruído e do número de intervenções com
Neste âmbito e revisitando os conceitos de manipulação do RN).
reabilitação e habilitação, caberá dizer que no con- Alguns exemplos práticos: cobrir as incubado-
texto da prematuridade prevalecerá o conceito de ras de modo a protejer o RN da luz artificial das
habilitação, isto é: usar um conjunto de estratégias UCIN; após intervenções mais dolorosas envolver
que visem estimular e potenciar as capacidades da a criança com cobertor confortável em flexão, ou
criança de modo que o seu desenvolvimento colocá-la sobre a mãe em posição de canguru; se tal
possa decorrer da forma mais aproximada da nor- for possível, esse contacto pele com pele é muito
malidade. Ou seja, a ideia-chave do termo “habili- calmante e relaxante. Vários autores advogam
tação” associa-se a proactividade e antecipação. também o uso cuidadoso de soluto de sacarose a
Se uma criança com antecedentes de prema- 2% aplicado sobre a língua como medida de con-
turidade vier a ter um quadro de paralisia cerebral solação em casos de dor aparente.
(PC) e tiver de se submeter a uma cirurgia, por ex. Serão adoptadas estratégias que promovam
para alongamentos tendinosos, tal intervenção na um desenvolvimento psicomotor e sensorial tão
sequência do pós-operatório caberá no conceito de harmonioso quanto possível, de acordo com as
reabilitação. diferentes fases clínicas e a triagem das necessi-
Na UCIN, e de acordo com cada situação clíni- dades da criança, respeitando sempre o seu ritmo
ca, a atitude poderá ser apenas expectante e de biológico e estabilização hemodinâmica; será me-
vigilância activa de modo a detectar eventuais lhorado o conforto promovendo uma correcta
alterações neurológicas e ou perturbações do neu- postura de “descanso”, usando por ex. os “ninhos
rodesenvolvimento – detecção de eventuais com panos moles”; demonstrado e explicado o
sinais de alarme. Inicialmente, poderá ser possí- banho.
vel proceder apenas a cinesiterapia respiratória, se Será demonstrado e ensinado à mãe o manusea-
for esse o caso. Eventualmente, poderá nem haver mento do bébé como forma de estimulação táctil,
condições para qualquer intervenção que não seja proporcionando um contacto pele com pele, trans-
o falar com os pais, ouvi-los, tranquilizá-los, missor de afectos, relaxante e calmante da dor, com-
explicar-lhes, ensinando-os a interagir com “aque- provadamente impulsionador de ganho ponderal.
le ser tão pequeno” mas que “emite sinais que têm Este é um momento íntimo e privilegiado de dar e
de ter reciprocidade”. receber, de alerta para todos os sinais que o bébé
Durante este período de internamento será possa transmitir, os quais serão a base da comuni-
privilegiado o processo de vinculação: estimulada cação para que possa crescer e desenvolver-se. Mais
e reforçada a importância da interacção com a uma vez, a importância dos Pontos de viragem.
criança (relação mãe/filho), que nestes casos não Far-se-á uma estimulação sensorial melhoran-
será tão espontânea como em circunstâncias ditas do a interacção com a mãe de modo que essa seja
normais, pelo próprio contexto, (situação clínica, uma relação gratificante.
968 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Treinar-se-á a sucção chamada não nutritiva Na Consulta de MFR


(que estimula a secreção salivar, designadamente) • Avaliação da criança e da família;
como forma de preparar a futura sucção nutritiva • A avaliação do desenvolvimento psicomotor
que, conjuntamente com uma boa coordenação nas idades chave (3M; 6M; 9M; 12M; 18M;
com a deglutição, libertará a criança de formas 24M, posteriormente semestral ou anual-
mais dependentes de nutrição (parentérica, entéri- mente de acordo com as necessidades);
ca, etc.) e lhe proporcionará independência na ali- • Rastreio de alterações;
mentação oral, nesta fase. • Aplicação de testes de avaliação do desen-
Este tipo de alimentação, quer seja ao peito, quer volvimento.
por biberão, não deverá iniciar-se antes das 34 sem- (M= meses)
anas de idade pós concepcional, pois a sucção exige
um esforço demasiado para bébés muito imaturos, Plano terapêutico de Re(habilitação)
sendo que todo o processo que conduz a uma ali- • Indivudualizado;
mentação eficaz exige uma maturidade de várias • Implicando sempre os pais;
estruturas, estabilidade clínica, treino progressivo e • Adaptado às necessidades;
boa adaptação. Se, apesar de todos os anteriores • Reavaliado periodicamente;
pressupostos, não houver uma boa resposta, será
feita uma avaliação do tono e motricidade oral para A periodicidade e duração será de acordo com
detecção de patologia; e, no caso de esta existir, os objectivos propostos para:
serão usadas técnicas para a sua normalização. • o grupo etário;
Na prática são realizados os seguintes proce- • a patologia em causa;
dimentos: • a disponibilidade dos pais;
• os recursos institucionais.
Na data da alta hospitalar
• Reforçado o apoio e ensino, feita a ponde- Outros procedimentos
ração psicológica e socioafectiva de cada • Estudo de ajudas técnicas;
família; • Confecção de ortóteses - “casts”, talas-;
• Dadas eventuais orientações para as áreas de • Aplicação de toxina botulínica (nas situações
saúde respectivas de acordo com as necessi- de espasticidade);
dades; • Intervenção no planeamento de cirurgia
• Feito encaminhamento para o Serviço de (alongamentos tendinosos, osteotomias, e
Medicina Física e de Reabilitação (MFR); outras);
• Outros destinos. • Planeamento de actividades com componente
lúdico-terapêutico: hidroterapia, natação,
Após a alta hospitalar hipoterapia, outras actividades de grupo, de
Na Consulta (semanal) de Neonatologia (se- acordo com os objectivos pré estabelecidos;
guimento): • Orientação escolar (mantendo a ligação à
• Colaboração efectiva do médico reabilitador; escola com intercâmbio de informação com
• Triagem das perturbações do desenvolvi- os professores, sinalizando os problemas
mento; mais relevantes e as áreas mais afectadas de
• Orientações e encaminhamento. modo a haver um treino mais incisivo, aler-
No Serviço de MFR tar para a necessidade de eventual apoio
• Consulta de vigilância (seguimento do RN escolar suplementar – recrutamento de pro-
de MBP e RN com antecedentes de patologia fessor de apoio – Apoios Educativos Espe-
perinatal); ciais e Planos Educativos Individuais previs-
• Consulta de vigilância e plano terapêutico tos na lei e regulamentados para alunos por-
de re(habilitação); tadores de deficiência, em escolas do Ensino
• Consulta de vigilância e orientações periódi- Regular. Dec. Lei 319/91 de 23 de Agosto;
cas (grupo de apoio aos pais). • Integração no ensino regular que deverá ser
CAPÍTULO 197 Reabilitação neurológica 969

feita com deslocação da equipa à escola,


embora este processo se realize com grande
dificuldade, na dinâmica do meio hospitalar;
• Promover sempre a máxima autonomia para
que seja possível uma boa integração e socia-
lização.

BIBLIOGRAFIA
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adults with cerebral palsy and implications for treating
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AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
Medical, 2011
Zaoutis LB, Chiang VW. Comprehensive Pediatric Hospital
Medicine. Philadelphia: Mosby Elsevier, 2007
PARTE XXII
Cardiologia
972 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

198
o Professor João Videira Amaral (e, a partir de
2008, a Professora Teresa Neto) pediram-nos para
ministrar aulas teóricas e teórico-práticas de
Cardiologia Pediátrica, colaboração que aceitámos
com entusiasmo e temos cumprido de bom grado
desde 1999. Para complemento bibliográfico do
INTRODUÇÃO À CARDIOLOGIA ensino, o mesmo (editor-coordenador) deu-nos a
honra e possibilidade de compilar este tópico para
PEDIÁTRICA o Tratado de Clínica Pediátrica. Para a elaboração
deste texto utilizámos grande parte do material da
Sashicanta Kaku monografia por nós publicada e co-editada:
(Soares-Costa JTS e Kaku S (eds). Cardiopatias
Congénitas. Lisboa: Permanyer Portugal, 2005).
Foram elaborados adicionalmente, textos sobre
O diagnóstico e tratamento das doenças cardíacas cardiomiopatias, miocardite, endocardite, peri-
nas crianças, tanto nos aspectos médicos como nos cardite, febre reumática, insuficiência cardíaca e
cirúrgicos, tem sofrido grande evolução nos doença de Kawasaki.
últimos anos graças aos progressos nas áreas de De um modo sistemático são focados aspectos
imagiologia, cateterismo cardíaco, cuidados inten- fundamentais relacionados com anatomofisiolo-
sivos e cirurgia cardíaca. Estes progressos permi- gia, etiopatogénese, diagnóstico e tratamento mé-
tem a detecção e terapêutica precoces de doenças dico e cirúrgico das cardiopatias mais frequentes.
cardiovasculares com consequente diminuição da Incluímos um capítulo sobre não doença e pseudo
mortalidade/morbilidade e melhoria significativa doença devido às importantes implicações resul-
do prognóstico. tantes de qualquer suspeita de doença cardíaca a
Em Portugal a Cardiologia Pediátrica é reco- nível pessoal, familiar e social.
nhecida como especialidade independente desde
1984. O Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hos- BIBLIOGRAFIA
pital de Santa Marta, que dirigimos, foi criado em Chin AJ, Saint-Jeannet JP, Lo CW. How insights from cardio-
24/2/1987 por Fernanda Sampayo, sendo impor- vascular developmental biology have impacted the care of
tante referir sucintamente os principais antece- infants and children with congenital heart disease. Mech
dentes históricos. Dev 2012; 129:75-79
Em Outubro de 1969 Fernanda Sampayo, re- Kaku S. Cardiologia Pediátrica in Fragmentos para a História
gressada dos Estados Unidos onde obtivera o títu- da Cardiologia Portuguesa. Carlos Perdigão e Manuel
lo de pediatra pelo American Board of Pediatrics e Valente Alves (eds). Lisboa: Sociedade Portuguesa de
o de cardiologista pediatra pelo Americam Board Cardiologia Editora, 2006
of Pediatric Cardiology, iniciou a Consulta de
Cardiologia Pediátrica no Hospital de Santa
Marta, Lisboa. Em 1971 foi criada a chamada
Secção de Cardiologia Pediátrica integrada no
Serviço de Cardiologia do mesmo hospital, trans-
formada sucessivamente em Unidade de Car-
diologia Pediátrica (1978) e, nove anos mais tarde,
em Serviço, atrás citado. Fernanda Sampayo
dirigiu todas estas áreas assistenciais até à sua
aposentação em 1993. É o mais antigo do país e
tem idoneidade formativa total para a especiali-
dade, com forte tradição no ensino médico.
Com a preocupação de os alunos do 5º e 6º
anos terem uma formação completa em Pediatria,
CAPÍTULO 199 Cardiologia fetal 973

199
o risco aumenta em relação à população em geral,
variando com grau de parentesco, sexo e tipo de
cardiopatia. Síndromas polimalformativas fami-
liares também são indicação para ecocardiograma
fetal.
2. Identificar riscos ambientais potencialmente
CARDIOLOGIA FETAL teratogénicos, quer sejam infecciosos, medica-
mentosos, tóxicos, químicos ou outros. As doen-
Graça Nogueira e António J. Macedo ças maternas também devem ser identificadas, em
particular diabetes pré-concepcional, doenças do
colagénio, fenilcetonúria e hipotiroidismo.
3. Identificar riscos inerentes ao próprio feto,
Importância do problema como a translucência da nuca aumentada no pri-
meiro trimestre e outras anomalias congénitas
A Cardiologia Fetal é uma valência da Cardiologia associadas como anomalias renais, esqueléticas ou
Pediátrica; dedica-se ao estudo e tratamento das gastrintestinais. Situações mais gerais, como res-
perturbações cardíacas e circulatórias da criança trição de crescimento intra-uterino, ascite ou
no período pré-natal. Assume um carácter perina- anasarca fetais, podem igualmente associar-se a
tal quando os cuidados se estendem ao período patologia cardíaca. Este grupo requer, além da
neonatal, uma mais valia pela vantagem da conti- avaliação clínica, uma ecografia obstétrica cor-
nuidade de cuidados à criança e à família. rectamente executada e interpretada. (capítulo 324)
É possível estudar-se com acuidade a anátomo Ainda que cerca de metade das gravidezes de
– fisiologia cardíaca fetal desde a 12ª – 13ª semana crianças com cardiopatia tenham riscos identificá-
de gestação pela ecocardiografia intravaginal, veis, só cerca de um terço das grávidas é referen-
podendo-se prosseguir os estudos pelo segundo e ciado aos serviços de cardiologia pediátrica para
terceiro trimestres através da ecocardiografia rastreio. Esta circunstância explica que a grande
transabdominal. A idade gestacional ideal para a maioria das crianças com cardiopatia nasça sem
ecocardiografia fetal compreende o período entre diagnóstico pré-natal. Por outro lado, actual-
as 17 e as 20 semanas. (ver Parte XXXI) mente, quase todas as gravidezes são vigiadas e
A Cardiologia Perinatal é também uma valên- submetidas a várias ecografias, mas a grande
cia da Medicina Fetal que, no período pré-natal, maioria das cardiopatias graves não é iden-
leva a uma estreita relação com obstetras e peri- tificada. No Serviço de Cardiologia Pediátrica do
natologistas; e, no período neonatal, com pedia- Hospital de Santa Marta apenas cerca de 4% dos
tras neonatologistas, cirurgiões cardíacos e anes- recém-nascidos com cardiopatia têm diagnóstico
tesistas. A estreita colaboração entre estes pré-natal. No entanto, tem vindo a aumentar o
especialistas permite o diagnóstico precoce de pa- número de fetos que nos são enviados para eco-
tologia cardíaca (e o seu tratamento quando indi- cardiograma fetal cujo motivo principal de refe-
cado), assim como o planeamento das melhores rência é a dificuldade técnica no estudo cardíaco.
condições possíveis para o parto e cuidados Este facto denota o elevado grau de preocupação
perinatais. e de exigência por parte dos obstetras ecografistas
A eficácia dos cuidados terciários de saúde só que não se limitam a observar as imagens no plano
tem tradução se forem bem articulados com das quatro câmaras e sentem necessidade de avaliar
cuidados primários de qualidade. Na área do bem a saída dos ventrículos e as grandes artérias.
diagnóstico pré-natal das cardiopatias, as atitudes No plano das quatro câmaras identificam-se car-
a ter em termos de cuidados primários para quem diopatias como coração univentricular, coração es-
segue uma grávida, são: querdo ou coração direito hipoplásicos, e defeitos
1. Identificar as famílias em risco de terem do septo aurículo-ventricular.
filhos com cardiopatia congénita - se a mãe, o pai No plano de saída ventricular e grandes artérias
ou irmãos do feto têm uma cardiopatia congénita, identificam-se cardiopatias como tetralogia de
974 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Fallot e transposição das grandes artérias. Uma 2.1.2 – Doença do colagénio com AC
vez identificada uma anomalia cardíaca no feto, a Ro/SSA e ou La/SSB positivos
grávida deve ser orientada para uma consulta de 2.1.3 – Medicação
alto risco obstétrico. Aí será feito acompanha- 2.1.4 – Infecção materna
mento adequado e serão realizadas ecografias
morfológicas minuciosas para rastreio de outras 3. Causa fetal
anomalias. Cada caso será discutido em reuniões 3.1 – Dificuldades técnicas no estudo do cora-
conjuntas de diagnóstico pré-natal, onde serão ção fetal
programadas, com os obstetras e neonatologistas, 3.2 – Suspeita de cardiopatia na ecografia
as atitudes periparto mais adequadas. obstétrica
Em caso de falecimento do bebé, será discutido 3.3 – Patologia dos fluidos/derrames fetais
o estudo anatomopatológico com fins de aconse- 3.3.1 – Hidropisia fetal
lhamento genético. Pode estar indicada a reali- 3.3.2 – Hidrotórax
zação de cariótipo fetal, muitas vezes orientado 3.3.3 – Derrame pericárdico
pelo tipo de cardiopatia, tentando antecipar a 3.3.4 – Derrame pleural
evolução da doença. Por exemplo, nas cardio- 3.3.5 – Poli-hidrâmnio
patias do tipo conotruncal (tetralogia de Fallot, 3.4 – Anomalias fetais extracardíacas
truncus arteriosus, transposição das grandes 3.4.1 – Onfalocele
artérias) é importante fazer-se ao feto um estudo 3.4.2 – Hérnia diafragmática
cromossómico com hibridação in situ (FISH) da 3.4.3 – Atrésia esófago/duodenal
região crítica 22q11.2, para o rastreio de síndroma 3.4.4 – Fístula tráqueo-esofágica
de DiGeorge, situação que pode cursar com 3.4.5 – Higroma quístico
hipocalcémia neonatal grave e maior suscepti- 3.4.6 – Alterações esqueléticas
bilidade para infecções. Além disso, deve-se 3.4.7 – Anomalias renais
esclarecer e acalmar os pais, de preferência no 3.4.8 – Artéria umbilical única
centro de cardiologia pediátrica onde a criança irá 3.4.9 – Restrição do crescimento intra-
ser seguida e tratada. Os cardiologistas pediá- uterino
tricos e os cirurgiões cardíacos deverão explicar 3.5 – Anomalias cromossómicas, confirmadas
aos pais de modo personalizado a cardiopatia e os ou suspeitas
resultados dos tratamentos propostos. Poderão 3.6 – Translucência da nuca aumentada
também ser apresentados outros pais e familiares 3.7 – Arritmias
de crianças com cardiopatia, já tratadas, a fim de 3.8 – Outras causas
trocarem informações e testemunharem a sua 3.8.1 – Tumor muito vascularizado
vivência pessoal. A opção de prosseguir ou não 3.8.2 – Fístula arteriovenosa
com a gravidez é sempre do casal, sabendo-se que 3.8.3 – Gémeo acardíaco
é sempre uma decisão difícil. (Capítulo 3) 3.8.4 – Transfusão feto-fetal
3.8.5 – Anemia
Indicações para ecocardiograma 3.8.6 – Ausência de ductus venosus

As principais indicações para ecocardiograma Tratamento in utero


fetal são:
Arritmias fetais – Nos fetos em taquicárdia, pode
1. Causa familiar desencadear-se anasarca e morte se não forem
– História familiar de cardiopatia congénita tratados atempadamente. O tratamento é feito por
– Síndromas familiares com patologia cardíaca. via transplacentar, com antiarrítimos administra-
dos à mãe. Existem vários protocolos que come-
2. Causa ambiental çam com digoxina administrada por via intra-
2.1 – Doença materna venosa, seguindo-se depois, se necessário, flecai-
2.1.1 – Diabetes; fenilcetonúria. nida ou sotalol. A grande maioria deste bebés não
CAPÍTULO 199 Cardiologia fetal 975

tem cardiopatia, mas alguns têm síndroma de aos pais destas crianças, para programação de
Wolff-Parkinson-White. Depois do parto, deve ser gravidezes futuras. (capítulo 211)
mantida terapêutica com digitálicos durante os
primeiros 6 a 12 meses, mesmo quando as crianças BIBLIOGRAFIA
estão assintomáticas. Allan L, Hornberger L, Sharland G. Textbook of Fetal
Cardiology. London: Greenwich MML, 2000
Outros tipos de intervenção terapêutica in Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
útero – Nos anos 90 iniciaram-se tentativas de Macedo AJ, Castela E, Monterroso J, Ferreira M, Lima M.
tratamento dos obstáculos esquerdos graves que Normas para Ecocardiografia Fetal. Rev Port Cardiol 1994;
evoluem muitas vezes para hipoplasia do 13: 113-114
ventrículo esquerdo. Introduzindo um cateter no Macedo AJ, Ferreira M. O seu bebé tem uma cardiopatia.
ventrículo esquerdo por via transtorácica, era feita Lisboa: Gulbenkian, 1996
dilatação da válvula aórtica, mas os resultados Nogueira G, Macedo AJ. Cardiologia Fetal. In Soares-Costa JTS
não foram animadores. Hoje retomou-se esse e Kaku S (eds). Cardiopatias Congénitas. Lisboa:
tratamento para os obstáculos esquerdos e Permanyer Portugal, 2005; 21-26
também para os direitos, nomeadamente no caso Oster ME, Lee KA, Honein MA, et al. Temporal trends in sur-
de estenose pulmonar crítica. Os resultados vival among infants with critical congenital heart defects.
parecem mais promissores. Também têm sido Pediatrics 2013; 131: e1502-e1508
feitas tentativas de septostomia auricular in utero Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
nos casos em que há encerramento ou restrição de AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
fluxo através do foramen ovale. Medical, 2011
Sullivan ID. Prenatal diagnosis of structural heart disease:
Tratamento do recém-nascido Does it make a difference to survival? Heart 2002; 87: 405-
com cardiopatia 406
Trines J, Hornberger LK. Evolution of heart disease in utero.
Este é o concluir de todo um trabalho de acom- Pediatr Cardiol 2004; 12: 287-298
panhamento pré-natal. O paradigma desta situa- Xavier P, Matias A, Silva JT, Montenegro N, Areias JC. Prenatal
ção é a transposição completa das grandes artérias diagnosis of congenital heart disease. Critical evaluation of a
cujo diagnóstico pré-natal nem sempre é fácil. Na twelve-month experience. Rev Port Cardiol 2003; 19: 213-214
maior parte dos casos surge, logo nas primeiras
horas de vida, cianose persistente obrigando a
terapêutica imediata. Esta pode incluir adminis-
tração de prostaglandinas E1 e transporte, de
urgência, para um Serviço de Cardiologia Pediá-
trica. Dado que a administração de prostaglan-
dina E1 pode provocar apneia como acção
acessória importante, recomenda-se que o trans-
porte seja realizado em viaturas com pessoal
especializado e incubadoras com ventiladores
como as do Instituto Nacional de Emergência
Médica (INEM). No Serviço de Cardiologia Pediá-
trica é, em geral, necessário realizar septostomia
auricular de Rashkind como terapêutica de
emergência. A cirurgia de correcção anatómica
(operação de Jatène) realiza-se durante a primeira
semana e os resultados dependem muito das
condições pré-operatórias. Daqui se infere a im-
portância do diagnóstico pré-natal. Por outro
lado, é fundamental o aconselhamento genético
976 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

200
QUADRO 1 – Características gerais do sopro
inocente

Intensidade
Inferior a 3/6
Altura
NÃO DOENÇA Grave
Timbre
E PSEUDO-DOENÇA CARDÍACA Vibrações de altura e intensidade homogéneas
Local de máxima intensidade
Fátima F. Pinto e Sashicanta Kaku Específico para cada tipo
Intervalo entre o 1º ruído e o sopro
Existe
Circunscrito no precórdio
Importância do problema Sim
Modifica-se com posição ou com manobras
A maioria das crianças atendidas pela primeira Sim (posição, respiração, exercício, manobras de
vez na consulta de Cardiologia Pediátrica não tem compressão vascular, febre).
doença cardíaca. Aquelas são enviadas por sin-
tomatologia mal definida como dor torácica, “pi-
cadas e sensação de falta de ar”. O esclarecimento das cardiopatias congénitas que é 3 a 4/1000 no
destas situações é importante a fim de evitar o mesmo grupo etário (6 a 8/1000 nado – vivos). A
estigma de doença cardíaca com todas as conse- maioria dos sopros cardíacos inocentes pode ser
quências sobre o estado psicológico e qualidade identificada com base na anamnese e na obser-
de vida das crianças e das famílias. Os motivos vação. As principais características de cada tipo de
principais para o envio à consulta de Cardiologia sopro inocente estão resumidas nos Quadros 1 e 2.
Pediátrica são discriminados nas alíneas seguin- Na nossa experiência, os mais frequentes são:
tes. sopro vibratório (43%) seguido de zumbido
venoso e da associação de ambos (11% cada). O
Sopro cardíaco detectado sopro pulmonar (7%) e o ruído carotídeo (menos
em observação de rotina de 1%) são menos frequentes. Os sopros inocentes
(sopro inocente) tendem a variar de intensidade com o estado
dinâmico da circulação, e a desaparecer com a
A incidência de sopro inocente (não associado idade. O diagnóstico de sopro inocente pode ser
patologia cardiovascular) em crianças em idade confirmado pela ausência de alterações cardiovas-
escolar é ~ 75%, em contraste com a prevalência culares na radiografia do tórax e no electrocardio-

QUADRO 2 – Características específicas dos sopros inocentes

Tipo de sopro Intensidade Local Irradiação Génese


Vibratório inferior a 3/6 4º EICE Variável, mas nunca axila VE (?)
Pulmonar suave, grau 2/6 2º EICE Sem irradiação VD
Zumbido venoso inferior a 3/6 Base do pescoço Diminui ou desaparece Veias
Mais frequente à direita com decúbito e com rotação jugulares
da cabeça
Ruído carotídeo grau 2/6 2º EICE Artérias
Fossa supraclavicular
Base do pescoço
Abreviaturas: EICE = espaço intercostal esquerdo; VE = ventrículo esquerdo; dta = direita; VD = ventrículo direito; TSVD = tracto de saída do ventrículo direito; (?) = possivelmente
CAPÍTULO 200 Não doença e pseudo-doença cardíaca 977

grama. Os pais devem ser alertados para o facto pela respiração, tosse e movimentos do tórax; é
de o sopro inocente poder ser mais bem audível auto-limitada.
em situações de febre, anemia ou após esforço e A glândula mamária pode ser responsável por
quando a criança é observada por um médico dor torácica, em particular em jovens no início da
diferente do habitual. Há que evitar o desenvolvi- menarca, durante as menstruações ou durante a
mento de “neurose cardíaca” e processos de so- gravidez.
breprotecção ou complexos de culpa nos pais. Das causas pulmonares salienta-se a asma.
Nesta situação, a dor pode ser causada pelo
Sintomas ou sinais não esclarecidos esforço muscular associado à dispneia e à tosse,
(suspeita de causa cardíaca pelo ou pode ser devida à ansiedade. A inflamação da
médico assistente) pleura pode causar dor torácica que ocorre
durante a inspiração e se acompanha de atritos
1. Dor torácica durante actividade normal pleurais detectados por auscultação.
Esta é actualmente a principal causa de envio à Das causas gastrintestinais, salienta-se o
consulta de Cardiologia Pediátrica de crianças refluxo gastresofágico que muitas vezes se associa
mais velhas e adolescentes. Este facto deve-se, em à asma.
parte, à divulgação mediática da morte de despor- Outra causa é a dor psicogénica, cada vez mais
tistas jovens em pleno esforço e ao receio por parte frequente em crianças e adolescentes sujeitos a
dos pais de a dor poder corresponder a uma vários tipos de tensão emocional.
doença cardíaca grave, potencialmente letal.
Na maioria das situações trata-se da chamada 2. Queixas ou sinais inespecíficos
“dor torácica benigna do adolescente”. É mais fre- São inúmeros os motivos inespecíficos que podem
quente entre as idades de 8 e 16 anos. A dor ocorre levar os pais a suspeitar de doença cardíaca e a
em repouso, é aguda, cortante ou do tipo picada e, insistir junto do médico assistente na necessidade
raramente, do tipo opressão ou aperto. Dura do esclarecimento da mesma.
breves instantes durante os quais algumas cri- a) Cansaço – é uma das queixas mais fre-
anças sentem “o coração bater”. Ocasionalmente, quentes. O cansaço pode ter múltiplas causas não
pode ser de grande intensidade provocando cardíacas: psicológicas (carência afectiva, imitação
choro, aparecendo e desaparecendo subitamente. de familiares idosos ou doentes com quem
A observação e os exames complementares são coabitam) ou orgânicas (obesidade, falta de treino
completamente normais. Deve assegurar-se à físico, asma, alterações ortopédicas).
família a ausência de patologia e alertar para a b) Perdas de conhecimento acompanhadas ou
possibilidade de a dor poder repetir-se. não de convulsões – são situações alarmantes
A dor torácica neste grupo etário é frequente- que podem ter diversas causas. A causa cardíaca é
mente de origem músculo-esquelética. A obser- rara; por isso, estas crianças devem sempre ser
vação clínica deve ser cuidadosa e, além do estado investigadas neurologicamente antes de serem
da pele, deve-se analisar as costelas e as articu- enviadas à Cardiologia Pediátrica.
lações condrocostais. A costocondrite das articu- c) Espasmo do soluço – é muitas vezes motivo
lações costocondrais e condrosternais é frequente de referência à consulta de Cardiologia Pediátrica.
em adolescentes, decorre sem edema, localiza-se d) Alterações benignas do ritmo cardíaco –
entre a 2ª e a 5ª articulações e é auto-limitada. são muitas vezes mal interpretadas. Ao avaliar o
A síndroma de Tietze, mais rara, decorre com ritmo e a frequência cardíaca da criança é
inflamação não supurada e edema das articulações necessário ter em consideração as condições em
cartilagíneas das costelas. Pode ser recidivante e que se efectua o exame, excluindo febre, choro ou
necessitar de analgésicos e anti-inflamatórios. agitação. É frequente o envio por “arritmia respi-
Outra causa rara de dor torácica é a mialgia ou ratória ou fisiológica”, normal na criança.
pleurodínia, localizada na região abdominal supe- e) Valores elevados de TASO – tais valores
rior ou intercostal. A causa é vírica e ocorre em elevados de antiestreptolisinas apenas indicam a
geral com síndroma gripal. A dor é intensificada existência prévia de infecção por estreptococos; e,
978 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

201
na ausência de sinais ou sintomas cardiovascu-
lares, o TASO não é sinónimo de doença cardíaca
nem de febre reumática.
f) Pseudocardiomegália na radiografia do
tórax – deve-se em geral a sobreposição de
imagem do timo com a silhueta cardíaca ou a defi-
ciente técnica de execução (em expiração ou em CARDIOPATIAS CONGÉNITAS.
posição ântero-posterior).
Os sinais e sintomas inespecíficos, quando mal GRUPOS FISIOPATOLÓGICOS
esclarecidos, levantam suspeita de doença cardía-
ca. Para a sua diferenciação, é fundamental co- Anabela Paixão e Sashicanta Kaku
nhecer os limites dos valores normais na criança
e ter em consideração que a doença cardíaca na
criança apresenta sinais e sintomas bem definidos
que podem ser avaliados e identificados numa Importância do problema
observação cuidadosa.
Nalguns centros, como complemento da Tendo em consideração o número de cavidades,
observação clínica, para o rastreio de defeitos válvulas, septos e estruturas vasculares que
cardíacos no RN, tem sido utilizada a técnica de entram e saem do coração, é fácil imaginar a quan-
oximetria transcutânea. tidade de defeitos estruturais decorrentes de
anomalias do desenvolvimento do coração ma-
BIBLIOGRAFIA tematicamente possíveis: cavidades hipoplásicas
Biancaniello T. Innocent murmurs. Circulation 2005; 111: e 20 - ou inexistentes, septos incompletos, câmaras de
e 22 entrada ou saída estenosadas, válvulas malfor-
Danford DA, McNamara DG. Innocent murmurs and heart madas, vasos mal posicionados ou ainda, per-
sounds. In Garson AJr, Bricker JT, Fisher DJ, Neish SR (eds). sistência de estruturas que não tenham passado
The Science and Practice of Pediatric Cardiology Edition. pelo normal processo de involução pós-natal.
Baltimore: Williams & Wilkins 1998; 2203-2212 Embora existam numerosas combinações de
Lima M. Não doença e pseudo-doença cardíaca. In Temas de defeitos que determinam um considerável núme-
Pediatria-vol III.Cardiologia Pediátrica. Lisboa Beecham, ro de variantes anatómicas, é possível enquadrar
1994; 59-71 essas entidades clínicas em cinco grupos fisiopa-
Pinto F, Kaku S. Não-doença e pseudodoença cardíaca na cri- tológicos, de modo a tornar mais facilmente com-
ança. In Soares-Costa JTS e Kaku S (eds). Cardiopatias preensível o seu quadro clínico. Sendo a clínica
Congénitas.Lisboa: Permanyer Portugal, 2005; 21-26 determinada pelas consequências das anomalias
Powell R, Pattison HM, Bhoyar A, et al. Pulse oximetry screen- cardíacas, a sua avaliação deve ter em conta: a
ing for congenital heart defects in newborn infants: an eval- anomalia fisiológica básica e o tipo de carga que
uation of acceptability to mothers. Arch Dis Child Fetal impõe ao sistema cardiovascular em desenvolvi-
Neonatal Ed 2013; F59-F63 mento; o efeito possível sobre a dinâmica da cir-
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon culação fetal e neonatal; a influência dos fenó-
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill menos de adaptação circulatória pós-natal, (par-
Medical, 2011 ticularmente a maturação do leito vascular pul-
Sampayo F, Lima M. Adolescente e saúde. Aspectos cardio- monar) sobre as características do quadro clínico.
lógicos. Rev Port Pediatr 1981; 12 (supl 2): 37-45
Talner NS, Carboni MP. Chest pain in the adolescent and Grupos fisiopatológicos
young adult. Cardiol Rev 2000; 8: 49-56
De uma forma simplificada, as cardiopatias con-
génitas mais frequentes integram os seguintes gru-
pos fisiopatológicos:
1. Shunts esquerdo-direito
CAPÍTULO 201 Cardiopatias congénitas. Grupos fisiopatológicos 979

2. Lesões obstrutivas pulmonar obstrutiva (síndroma de Eisenmenger),


2.1 – Do coração esquerdo uma complicação devastadora e irreversível, é um
2.2 – Do coração direito risco inerente a este tipo de shunts.
3. Cardiopatias congénitas cianóticas
3.1 – Com shunts direito-esquerdo 2. Lesões obstrutivas
3.2 – Com fisiologia de transposição As anomalias das válvulas cardíacas contribuem
para a maioria das lesões obstrutivas na infância.
1. Shunts esquerdo – direito* Os casos restantes são obstáculos proximais ou
Os shunts esquerdo-direito produzem um débito distais relativamente às válvulas. Os obstáculos à
pulmonar que é superior ao sistémico, devido à entrada do coração afectam o sistema venoso,
existência de comunicações a nível: auricular, provocando ingurgitamento e edema nos órgãos
ventricular ou das grandes artérias. O seu quadro drenados pelo segmento obstruído. Os obstáculos
clínico é influenciado por: idade do doente, local- à saída provocam aumento de pressão na cavi-
ização anatómica do shunt, tamanho do defeito e dade ventricular e o desenvolvimento de meca-
resistência vascular relativa entre as duas circu- nismos de adaptação para vencer a resistência,
lações, sistémica e pulmonar. No recém-nascido designadamente, hipertrofia ventricular.
de termo, a resistência vascular pulmonar é eleva- O quadro clínico é determinado por: localiza-
da e, por isso, os sinais de insuficiência cardíaca ção anatómica e gravidade da obstrução; presença
devida a um grande shunt esquerdo-direito ape- de outras sobrecargas hemodinâmicas (lesões
nas se manifestam entre a quarta e sexta semana associadas); idade do doente; alteração da função
de vida (após o declínio fisiológico da resistência miocárdica.
vascular pulmonar). A localização anatómica do A localização anatómica da lesão determina
defeito também condiciona o quadro clínico: os obstáculo à entrada ou à saída do coração, marcan-
shunts esquerdo-direito a nível auricular (como a do desde logo as diferenças das manifestações clíni-
comunicação interauricular), decorrem de comu- cas, da história natural, do tratamento e do prognós-
nicações entre câmaras de baixa pressão e, por tico. Quanto mais grave for a obstrução, mais impor-
isso, têm pouco efeito sobre a pressão arterial pul- tante será a sua expressão clínica. A gravidade das
monar. Nestes casos, a alteração fisiológica funda- lesões valvulares obstrutivas pode ser: estimada
mental é a sobrecarga de volume do coração di- pelas características da auscultação cardíaca e pelos
reito, dependente do tamanho do defeito e da com- aspectos electrocardiográficos; e quantificada
pliance ou distensibilidade diastólica do ventrículo através do cálculo do gradiente de pressão trans-
direito, o que se traduz na hipertrofia ventricular valvular, quer indirectamente por ecocardiografia
direita. Nos shunts esquerdo – direito a nível ven- Doppler, quer directamente por cateterismo cardía-
tricular (como comunicação interventricular) ou co. A coexistência de defeitos associados, (lesões
das grandes artérias (como persistência do canal obstrutivas ou regurgitantes com outras localizações
arterial), a magnitude do shunt é determinada ou shunts esquerdo-direito), alteram a fisiopatologia
pelo tamanho do defeito e pela relação entre e a expressão clínica da lesão obstrutiva. A idade do
resistências vasculares pulmonar e sistémica. O doente é um factor importante porque existem dife-
aumento do débito pulmonar associa-se a um renças significativas nas respostas funcionais desde
aumento da pressão sistólica na artéria pulmonar. o período neonatal até à idade adulta, determinadas
A sobrecarga de volume do ventrículo esquerdo pelas diferenças inerentes à transição circulatória do
por aumento do retorno venoso pulmonar leva ao período neonatal, à reserva funcional do miocárdio e
desenvolvimento de hipertrofia ventricular à capacidade de adaptação às alterações hemodi-
esquerda. O desenvolvimento de doença vascular nâmicas determinadas pelo obstáculo. As alterações
da função miocárdica são consequência da rapidez
* Shunt: curto-circuito, congénito ou adquirido na circulação do de desenvolvimento do obstáculo: um obstáculo que
sangue, que se efectua por um orifício ou canal anormal, ou pela se desenvolva rapidamente provocará alteração
derivação anormal de um vaso, entre o “coração arterial” (ou sistema
vascular arterial) e o “coração venoso” (ou o sistema vascular venoso);
hemodinâmica aguda com deterioração rápida da
trata-se dum desvio do trajecto normal. função miocárdica, enquanto uma obstrução que se
980 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

desenvolva gradualmente permitirá uma adaptação é relativamente fácil de avaliar pelas características
do miocárdio à sobrecarga de pressão. Um dos da auscultação cardíaca e pelas alterações electro-
mecanismos de adaptação é a hipertrofia ventricular. cardiográficas relacionadas com o grau de hiper-
A sobrecarga crónica de pressão provoca alterações trofia ventricular direita que determinam.
na circulação miocárdica que se torna insuficiente
para corresponder ao aumento das necessidades 3. Cardiopatias congénitas cianóticas
metabólicas impostas pelo aumento da massa mus- As cardiopatias congénitas cianóticas provocam
cular ventricular, provocando isquémia e, conse- hipoxémia na circulação sistémica por falta de oxi-
quentemente, disfunção ventricular e insuficiência genação do sangue venoso proveniente do retorno
cardíaca. venoso sistémico. A manifestação clínica desta situ-
2.1. Obstáculos do coração esquerdo. Os ação é a cianose. Esta é atribuída à presença de mais
obstáculos esquerdos são obstruções à entrada ou de cinco gramas de hemoglobina não saturada por
à saída do coração esquerdo. A fisiopatologia e a cada 100 mL de sangue circulante. A detecção clíni-
clínica diferem com a localização anatómica do ca da cianose depende, não só da quantidade de
obstáculo. A regurgitação valvular é muito fre- hemoglobina (Hb) reduzida presente no sangue
quente e não pode ser ignorada na avaliação circulante, mas também da sua concentração total.
destas lesões. A localização anatómica à entrada Uma insaturação de 40% (ou saturação Hb-O2 de
do coração esquerdo (exemplos: estenose das veias 60%) provocará cianose num doente com hemoglo-
pulmonares, cor triatriatum, estenose supra- bina > 12,5 g/dL mas não será detectada se a hemo-
valvular mitral ou doença mitral congénita) provo- globina for inferior a 10g/dL pois nesse caso só
ca inicialmente obstáculo ao retorno venoso pul- haverá quatro gramas de hemoglobina reduzida
monar e, portanto, hipertensão venosa e edema em circulação. As lesões que determinam esta
pulmonar com consequente diminuição da compli- expressão clínica enquadram-se em dois mecanis-
ance ou distensibilidade pulmonar, provocando mos fisiopatológicos: os shunts direito-esquerdo e a
aumento do esforço respiratório. Este quadro pode fisiologia de transposição.
ser confundido com doença pulmonar. Numa fase 3.1. Com shunts direito-esquerdo. A tetralogia
posterior, desenvolve-se hipertensão arterial e de Fallot é o protótipo da fisiologia de shunt direi-
arteriolar pulmonares, com sobrecarga de pressão to-esquerdo. Consiste na associação de comuni-
do ventrículo direito. Nos obstáculos à saída do cação interventricular grande com obstáculo à
coração esquerdo (exemplos: estenose aórtica sub- saída do ventrículo direito a nível infundibular e,
valvular, valvular e supravalvular, coarctação da por vezes, também a nível valvular pulmonar. A
aorta) a principal alteração hemodinâmica é o gravidade do obstáculo direito (responsável pela
aumento da resistência à ejecção do ventrículo redução do fluxo sanguíneo na circulação pul-
esquerdo, com aumento da pressão intraventricu- monar e passagem de sangue do coração direito
lar e hipertrofia ventricular esquerda. A evolução para o esquerdo) é o factor determinante do grau
para disfunção ventricular depende da gravidade de hipoxémia sistémica. Várias cardiopatias con-
e cronicidade do obstáculo. A associação de insufi- génitas complexas partilham este tipo de fisiolo-
ciência valvular com a estenose aórtica pode deter- gia, uma vez que associam uma comunicação
minar a data da intervenção terapêutica, indepen- intracardíaca grande com um obstáculo à circu-
dentemente da gravidade do obstáculo. lação pulmonar que pode ocorrer a diversos
2.2. Obstáculos do coração direito. Os obstá- níveis, desde a válvula tricúspide à pulmonar e,
culos à entrada do coração direito (ex. obstrução também, a nível das artérias pulmonares (exem-
das veias cavas, atrésia ou estenose tricúspide), plos: atrésia da tricúspide com comunicação inter-
bem como as lesões regurgitantes da válvula auricular, ventrículo direito de dupla saída com
tricúspide, produzem quadros de congestão obstáculo pulmonar ou coração univentricular
venosa sistémica com hepatomegália e edema pe- com obstáculo pulmonar).
riférico. Os obstáculos à saída do ventrículo direito 3.2. Com fisiologia de transposição. A trans-
situam-se a nível valvular, subvalvular e, mais ra- posição das grandes artérias, a cardiopatia con-
ramente, supravalvular. A gravidade destas lesões génita cianótica mais frequente no período neona-
CAPÍTULO 202 Persistência do canal arterial 981

202
tal, representa cerca de 5% de todas as cardiopatias
congénitas. Caracteriza-se por concordância
auriculo-ventricular e discordância ventriculo-
arterial, em que a aorta emerge do ventrículo mor-
fologicamente direito e a artéria pulmonar do ven-
trículo morfologicamente esquerdo. Como conse-
quência deste arranjo anatómico, o sangue venoso, PERSISTÊNCIA DO CANAL
proveniente das veias cavas, passa da aurícula
direita para o ventrículo direito e é ejectado na ARTERIAL
aorta, sem ser oxigenado e o sangue oxigenado,
proveniente dos pulmões, entra no coração esquer- Ana Cristina Ferreira, Graça Nogueira e Sashicanta
do e sai pela artéria pulmonar novamente para os Kaku
pulmões. A situação clínica resultante deste arran-
jo anatómico (circulação em paralelo, ao contrário
da circulação normal que é em série), é a
hipoxémia grave desde as primeiras horas de vida. Importância do problema

BIBLIOGRAFIA O canal arterial é uma estrutura vascular que fun-


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congenital heart malformations. Pediatr Res 2005; 57: 169- (por contracção da camada muscular), e encerra-
176 mento anatómico pela segunda a terceira semana de
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). vida (por disrupção da íntima e formação de
Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier fibrose). A persistência de canal arterial ocorre
Saunders, 2011 como lesão isolada em 9-12% de todas as cardiopa-
Powell R, Pattison HM, Bhoyar A, et al. Pulse oximetry screen- tias congénitas. Mais frequente no sexo feminino
ing for congenital heart defects in newborn infants: an eval- (2/1), é um problema comum nos recém-nascidos
uation of acceptability to mothers. Arch Dis Child Fetal pré-termo, ocorrendo em 20-40% das crianças com
Neonatal Ed 2013; F59-F63 peso de nascimento inferior a 1.000g. (capítulo 326)
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Etiopatogénese
Medical, 2011
Schowengerdt Jr KO, Bricker J. Clinical Physiology of A principal causa é a prematuridade. A menor sen-
Obstructive and Regurgitant Lesions. In Garson Jr A, sibilidade ao oxigénio das fibras musculares ima-
Bricker JT, McNamara DG (eds). The Science and Practice turas da camada média*, a incapacidade de meta-
of Pediatric Cardiology. Philadelphia: Lea & Ferbiger, 1990
Talner NS.The Physiology of Congenital Heart Disease. In * De referir que as isoformas de miosina do músculo liso imaturo têm
menor capacidade contráctil verificando-se défice de entrada de cál-
Garson Jr A., Bricker TJ, Fisher DJ, Steven NR. (eds). The cio através dos canais do cálcio tipo L no canal imaturo, especialmente
Science and Practice of Pediatric Cardiology. Baltimore: em condições de hipóxia. Os canais de potássio que promovem o rela-
xamento do canal (ductus) sofrem modificação durante a gestação(de
Williams & Wilkins, 1998
chamados canais Kca, não regulados pela pressão de O2 para canais Kv,
que são inibidos pelo aumento da pressão de O2).
982 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

bolização das prostaglandinas pelo pulmão dade do canal arterial de grande calibre traduz-se
imaturo e a patologia pulmonar hipoxémica fre- por aumento da amplitude dos pulsos periféricos,
quente do RN pré-termo são alguns dos factores agravamento das alterações pulmonares e necessi-
que contribuem para o não encerramento do canal dade de ventilação mecânica para além do tempo
arterial. Os factores genéticos parecem estar esperado. O sopro é audível após as três semanas
envolvidos existindo um risco de recorrência de 2- de vida (por diminuição das resistências vascu-
4% em irmãos de um caso afectado, sendo que lares pulmonares), sendo habitualmente sistólico,
determinados genes têm sido associados a maior rude e mais audível no bordo esquerdo do ester-
incidência (por ex TRAF1, MYH11). Está documen- no. Está documentado aumento de incidência de
tada também a associação com a infecção pelo vírus displasia broncopulmonar, hemorragia intraven-
da rubéola no primeiro trimestre de gravidez. tricular e enterocolite necrosante. (Capítulo 333)
Com a diminuição da resistência vascular pul-
monar após o nascimento, o sangue oxigenado da Exames complementares
aorta descendente passa pelo canal arterial e mistu-
ra-se na artéria pulmonar com o sangue venoso O diagnóstico é fundamentado num conjunto de
proveniente do ventrículo direito. O aumento de exames complementares descritos a seguir:
volume de sangue através do pulmão, aurícula
esquerda, ventrículo esquerdo e novamente aorta, é Radiografia de tórax
responsável pelo aumento das dimensões das Nos casos com shunt pequeno a radiografia de tórax
câmaras cardíacas esquerdas e dilatação dos grandes não apresenta alterações. Nos casos com shunt mo-
vasos. A magnitude do shunt é determinada pela derado ou grande, observa-se proeminência dos
resistência oferecida pelo canal arterial (comprimen- arcos da artéria pulmonar e da aorta, aumento do
to, diâmetro e trajecto) quando o canal é pequeno, e índice cárdio-torácico (por dilatação da aurícula e
pela resistência vascular pulmonar quando o canal é ventrículo esquerdos) e aumento da vascularização
grande. O aumento de volume de sangue ejectado pulmonar. Com a progressão para doença vascular
pelo ventrículo esquerdo e o des-vio de sangue da obstrutiva pulmonar, as dimensões do coração nor-
aorta para a artéria pulmonar são responsáveis pela malizam, verifica-se dilatação do tronco e ramos
grande amplitude de pulso. (Capítulo 326) hilares da artéria pulmonar, e diminuição de calibre
dos seus ramos periféricos. (“árvore de inverno”).
Manifestações clínicas
Electrocardiograma
Nos casos com shunt pequeno os doentes estão as- Nos casos com shunt pequeno o exame é normal e
sintomáticos e o diagnóstico é suspeitado pela nos casos com shunt moderado ou grande há
detecção de sopro cardíaco em observação de roti- sinais de dilatação da aurícula esquerda e hiper-
na. Os casos com shunt grande manifestam-se por trofia ventricular esquerda. Se a situação evoluir
polipneia, diaforese, recusa alimentar e perda pon- com doença vascular obstrutiva pulmonar pode-
deral entre a terceira e a sexta semana de vida, por rão observar-se sinais de hipertrofia biventricular.
diminuição da resistência vascular pulmonar. A Nos pré-termo, o electrocardiograma inicialmente
onda de pulso é geralmente ampla. O impulso api- é normal, surgindo sinais de hipertrofia ventricu-
cal está desviado para esquerda. O componente lar direita seguidos de hipertrofia biventricular
pulmonar do segundo ruído cardíaco tem intensi- duas a três semanas depois. Nalguns casos podem
dade aumentada. Ausculta-se sopro contínuo que surgir sinais de isquémia do miocárdio.
se inicia pouco depois do primeiro ruído e atinge a
máxima intensidade na região do segundo ruído. É Ecocardiograma
mais audível no segundo espaço intercostal As dimensões das cavidades esquerdas fornecem
esquerdo. Por vezes ausculta-se sopro diastólico sinais indirectos sobre a magnitude do shunt e o estu-
apical devido à “estenose relativa” da válvula do com Doppler permite detectar e quantificar o shunt
mitral, por aumento de débito (rodado de débito). através do canal arterial. O ecocardiograma permite
Nos recém-nascidos pré-termo, a permeabili- também identificar eventual patologia associada.
CAPÍTULO 202 Persistência do canal arterial 983

Cateterismo cardíaco Tratamento


O cateterismo de diagnóstico está indicado apenas
nas situações de apresentação clínica pouco usual As crianças que apresentam sinais de insuficiência
e na definição de lesões associadas. cardíaca geralmente têm uma boa resposta à tera-
pêutica anticongestiva e podem ser mantidas neste
Complicações regime até à idade conveniente para encerramento
percutâneo. Nos recém-nascidos pré-termo o encer-
A insuficiência cardíaca congestiva ocorre princi- ramento espontâneo é a regra, sendo muitas vezes
palmente nos lactentes com shunt significativo. A necessário utilizar medidas terapêuticas como
endarterite bacteriana e o aneurisma do canal restrição hídrica, diuréticos, transfusão sanguínea
arterial (ocorrendo após endarterite ou cirurgia), e/ou ventilação assistida com pressão positiva.
são raros. A doença vascular obstrutiva pulmonar Nos casos em que não seja possível controlar a
pode ocorrer nos casos de canal arterial de grande insuficiência cardíaca utiliza-se a indometacina.
débito, não tratados. Este inibidor da cicloxigenase favorece o encerra-
mento do canal arterial por redução da produção
Diagnóstico diferencial de prostaglandinas. É administrada em ciclos de
três doses endovenosas, administradas com inter-
O diagnóstico diferencial faz-se com situações valos de 12 horas, na dose de 0,1 mg/Kg, 0,2
com sopro contínuo: não patológicas (como mg/kg ou 0,25 mg/Kg nos recém-nascidos com
zumbido venoso) e patológicas, (como janela menos de dois dias, entre dois e sete dias ou mais
aorto-pulmonar, fístula artério-venosa, truncus de sete dias de vida, respectivamente. O ciclo pode
arteriosus com insuficiência da válvula truncal, fís- ser repetido no caso de insucesso ou recorrência.
tula do seio de Valsava aórtico para o ventrículo As contra-indicações da utilização da indometaci-
direito, comunicação interventricular com regur- na são: hipersensibilidade conhecida, sépsis, ente-
gitação aórtica, atrésia da pulmonar com comuni- rocolite necrosante, hemorragia gastrintestinal e
cação interventricular e colaterais sistémico-pul- insuficiência renal. Como complicações possíveis
monares). da terapêutica estão descritas: hemorragia intra-
ventricular, insuficiência renal, trombocitopénia,
Lesões cardíacas associadas leucopénia e hiperbilirrubinémia (Capítulo 331).
Devido à elevada frequência de endarterite
A persistência de canal arterial pode agravar a bacteriana nos casos não tratados existe indicação
apresentação clínica de outros shunts esquerdo- de tratamento por cateterismo ou por cirurgia de
direito (por exemplo comunicação interventricu- todos os casos em que o canal arterial não tenha
lar, comunicação interauricular) e de obstáculos à encerrado após a idade de três meses. Está indica-
entrada ou saída do ventrículo esquerdo. Existem da profilaxia de endarterite bacteriana em todos
anomalias cardíacas em que a persistência de os doentes até seis meses depois da correcção.
canal arterial é necessária à sobrevivência (situa- 1. Cateterismo terapêutico – O encerramento do
ções canal-dependentes) como: os obstáculos canal arterial por via percutânea é o tratamento de
graves à saída do ventrículo direito (por exemplo eleição nas crianças acima de um ano de idade.
atrésia da pulmonar, atrésia da tricúspide) em que Utilizam-se os filamentos helicoidais de libertação
o fluxo pulmonar depende do canal arterial; e os controlável (“coils”) e os dispositivos de Amplatzer.
obstáculos graves à saída do ventrículo esquerdo As complicações potenciais são: persistência de
(por exemplo coração esquerdo hipoplásico, shunt residual (5-10%), embolização do dispositivo,
coarctação da aorta) em que o fluxo sistémico lesão vascular, hemólise e trombose das veias fe-
depende do canal arterial. Nestes casos, no perío- morais. As vantagens relativamente ao tratamento
do neonatal recorre-se à administração de prosta- cirúrgico são: menor tempo de hospitalização e de
glandina E1 ou E2 para a manutenção da perme- convalescença e a evicção de cicatriz de toracotomia.
abilidade do canal arterial enquanto se aguarda 2. Tratamento cirúrgico – As indicações para o
pelo tratamento cirúrgico. tratamento cirúrgico estão restritas aos lactentes
984 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

203
com peso inferior a 6 kg portadores de canal arte-
rial de grande calibre e insuficiência cardíaca
refractária à terapêutica médica. Nos pré-termo
recorre-se à cirurgia nos casos em que existe con-
tra-indicação, ou resistência ao uso de indometaci-
na. As complicações (lesão dos nervos laríngeos
recorrente ou frénico, lesão do canal torácico, COMUNICAÇÃO
hemorragia, atelectasia e derrame pleural) são
raras. A taxa de mortalidade é inferior a 1%. INTERAURICULAR
Nota Importante: Nos primeiros 5 dias de vida em Ana Carriço, Fátima F. Pinto e Sashicanta Kaku
RN pré-termo, a determinação sérica seriada do BNP
(péptido natriurético do tipo B) constitui um biomar-
cador útil para definir a estratégia terapêutica nas
situações de ductus arteriosus hemodinamicamente Definição e importância do problema
significativo. Determinados centros utilizam os
seguintes critérios – "picos" pelas 24-48 horas de vida: Entende-se por comunicação interauricular (CIA)
~250 pg/mL <> tratamento médico; ~2.000 pg/mL qualquer solução de continuidade entre as duas
<> laqueação cirúrgica. (Capítulo 331) aurículas, com excepção do foramen ovale cuja per-
meabilidade é fundamental durante a vida fetal.
Seguimento Após o nascimento, devido ao aumento de pres-
sões na aurícula esquerda, dá-se o seu encerra-
Na ausência de hipertensão pulmonar ou compli- mento funcional e, durante o primeiro ano de
cações cirúrgicas, os doentes com canal arterial vida, o encerramento anatómico. Em 25% a 30%
totalmente encerrado apenas necessitam de segui- dos casos o encerramento anatómico não é com-
mento durante seis meses após a terapêutica. pleto – foramen ovale patente.
A comunicação interauricular aparece fre-
BIBLIOGRAFIA quentemente isolada e classifica-se de acordo com
Alagarsamy S, Chhabra M, Gudavalli M, et al. Comparison of a posição que ocupa no septo interauricular, a sua
clinical criteria with echocardiographic findings in diagnos- embriologia e o seu tamanho (Figura 1).
ing PDA in preterm infants. J Perinat Med 2005; 33: 161-164 1. Comunicação interauricular tipo fossa
Cooke RWI. Persistent arterial duct in the preterm infant. In ovalis – erradamente designada por CIA tipo
Anderson RH, Baker EJ, Macartney FJ, Rigby ML, ostium secundum, é a forma mais frequente, repre-
Shinebourne EA, Tynan M, (eds). Paediatric Cardiology. sentando 6% a 10% das cardiopatias congénitas. É
London: Churchill Livigstone 2002; 713-720 mais frequente no sexo masculino (2/1) e ocorre
Ferreira AC, Nogueira G, Kaku S. Persistência do canal arteri- de forma esporádica, embora estejam descritos
al. In Soares-Costa JTS e Kaku S (eds). Cardiopatias casos de incidência familiar. Pela sua localização,
Congénitas.Lisboa:Permanyer Portugal, 2005; 31-36 deve fazer-se o diagnóstico diferencial com fora-
Kaku S, Pinto F, Ferreira R, Trigo C, Walsh K. Oclusão do canal men ovale patente.
arterial por via percutânea com filamentos helicoidais de 2. Comunicação interauricular tipo ostium pri-
separação controlável. Rev Port Cardiol 1996; 15: 913-916 mum – localiza-se numa posição caudal em relação
Lee C-H, Chen H-N, Tsao L-Y, et al. Oral ibuprofen versus à fossa ovalis. Embriologicamente, resulta de uma
intravenous indomethacin for closure of patent ductus alteração do desenvolvimento do septo aurículo-
artriosus in very low birth weight infants. Pediatrics and ventricular, devendo, por isso, ser classificada no
Neonatology 2012; 53: 346-353 grupo dos defeitos do septo aurículo-ventricular.
Mine K, Ohashi A, Tsuji S, et al. B-type natriuretic peptide for 3. Comunicação interauricular tipo sinus
assessment of haemodynamically PDA in premture infants. venosus – situa-se, posteriormente à fossa ovalis e
Acta Paediatrica 2013; 102: e347- e352 acompanha-se geralmente de anomalias de cone-
xão das veias pulmonares direitas.
CAPÍTULO 203 Comunicação interauricular 985

ciência cardíaca. As resistências pulmonares são


VCS AP baixas porque as artérias pulmonares vão-se dila-
tando passivamente à medida que o fluxo sanguí-
3
neo aumenta e as alterações provocadas pela
1 2
VD comunicação interauricular são, em geral, rever-
4 síveis com a correcção do defeito. No entanto,
VCI podem desenvolver-se lesões vasculares
secundárias ao aumento de débito pulmonar, as
ABREVIATURAS VCS – Veia Cava Superior quais se podem tornar irreversíveis (doença vas-
VCI – Veia Cava Inferior
VD – Ventrículo Direito cular pulmonar). A evolução destas lesões é lenta
AP – Artéria Pulmonar e varia de doente para doente, sendo rara a sua
1 – comunicação interauricular tipo fossa ovalis
2 – comunicação interauricular tipo ostium primum instalação antes da idade de 15 anos. Nos doentes
3 – comunicação interauricular tipo sinus venosus em que se desenvolva doença vascular pulmonar,
4 – comunicação interauricular tipo seio coronário
o volume do shunt esquerdo-direito diminui,
(adaptado de “Moss and Adams’ Heart Disease in Infants,
Children, and Adolescents”)
podendo mesmo haver inversão com fluxo direi-
to-esquerdo, o que se traduz pelo aparecimento de
cianose. Contrariamente às comunicações inter-
FIG. 1
ventriculares, o encerramento espontâneo das
Tipos de CIA. comunicações interauriculares é raro (cerca de 3%
dos casos), sendo ainda mais raro após os dois
4. Comunicação interauricular tipo seio coro- anos de idade.
nário – situa-se no local de abertura do seio coro-
nário e associa-se à persistência de veia cava supe- Manifestações clínicas
rior esquerda que, em tal circunstância, drena no
tecto da aurícula esquerda. As comunicações interauriculares de pequena e
média dimensão não originam sintomas durante a
Fisiopatologia infância, sendo habitualmente diagnosticadas por
auscultação de sopro cardíaco ou de desdobra-
As implicações fisiopatológicas e clínicas da pre- mento fixo do segundo ruído cardíaco. Nos
sença de uma comunicação interauricular depen- defeitos de grandes dimensões, as manifestações
dem do volume do shunt esquerdo-direito por ela clínicas podem ter início por volta das três a seis
condicionado. Nos casos com grande fluxo de semanas de vida (quando baixam as resistências
sangue através da CIA, há dilatação da aurícula e vasculares pulmonares) e traduzem-se por pro-
do ventrículo direitos. As cavidades esquerdas, gressão lenta de peso, polipneia, taquicárdia e
nos casos de comunicação interauricular isolada, hepatomegália. O aumento do fluxo através do
têm dimensões normais. O shunt entre as aurícu- ventrículo direito provoca aumento da duração da
las é condicionado pela compliance relativa dos sístole ventricular direita, responsável pelo desdo-
dois ventrículos, e não pelas dimensões da lesão. bramento fixo do segundo ruído; isto é, deixa de
O ventrículo direito tem geralmente maior compli- haver a variação fisiológica dos dois componentes
ance e pressões mais baixas, o que favorece fluxo do segundo ruído durante a respiração. Pode-se
da aurícula esquerda para a direita. Durante as auscultar sopro de expulsão de grau 2 a 3/6 no
primeiras semanas após o nascimento, a pressão segundo espaço intercostal esquerdo junto do
no ventrículo direito ainda é elevada pelo que, na bordo do esterno, como consequência do aumento
presença de uma comunicação interauricular, o do fluxo através da válvula pulmonar (estenose
shunt interauricular é pequeno. O shunt aumenta “relativa” – gradiente de débito). Nos casos com
gradualmente à medida que baixam as resistên- doença vascular pulmonar poderá haver inversão
cias pulmonares e aumenta a compliance do ven- do shunt interauricular com cianose e insuficiência
trículo direito. O aumento da “carga” é bem tole- cardíaca – reacção de Eisenmenger. Além disso,
rado pelo ventrículo direito e não provoca insufi- nos doentes que cheguem à vida adulta sem terem
986 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

sido tratados, existe o risco de aparecimento de torácica, obesidade, doentes adultos e outros)
arritmias auriculares nomeadamente flutter ou fi- pode ser necessário recorrer ao ecocardiograma
brilhação e consequente dilatação da aurícula transesofágico que permite melhor definição da
esquerda. morfologia e dimensões dos defeitos e sua relação
com estruturas adjacentes.
Exames complementares
Tratamento
Radiografia do tórax
Nos casos em que exista grande shunt interauricu- O tratamento destina-se, em geral, à prevenção da
lar poderá haver dilatação do ventrículo direito e evolução para doença vascular pulmonar e ao
do tronco da artéria pulmonar. A dilatação da aparecimento de arritmias na idade adulta. Está
aurícula direita não é, em geral, visível na radio- também indicado em todos os casos em que possa
grafia em posição póstero-anterior. A ausência da existir risco de acidentes vasculares cerebrais por
imagem da veia cava superior é um sinal pouco embolização através da comunicação interauricu-
descrito, mas frequente nos defeitos grandes. lar. Os defeitos de grandes dimensões, quando
Existe aumento da vascularização até à periferia responsáveis por sintomas e sinais de insuficiên-
dos campos pulmonares (plétora). cia cardíaca, podem necessitar de tratamento
médico com diuréticos e digitálicos. O encerra-
Electrocardiograma mento (médico ou cirúrgico) está indicado em
A maioria dos doentes apresenta-se em ritmo todos os doentes com mais de dois anos de idade
sinusal. Nalguns casos, pode haver aumento do nos quais a relação entre débitos pulmonar e
intervalo P-R, traduzindo atraso de condução sistémico (Qp/Qs) seja superior a 1,5.
aurículo-ventricular (bloqueio aurículo-ventricu- 1. Cateterismo cardíaco – não é necessário
lar de primeiro grau). O eixo do QRS no plano para o diagnóstico, mas pode estar indicado para
frontal é normal e em quase todos os casos existe terapêutica (em doentes seleccionados) através da
padrão rSR’ (com R’>r) nas derivações precordiais colocação de dispositivos por via percutânea. É
direitas traduzindo dilatação do ventrículo direi- um procedimento seguro (orientado por ecocar-
to. De notar que o padrão rSr’ existe numa per- diografia transesofágica ou intravascular), exige
centagem importante de crianças (dizemos que tempo de internamento mais curto do que a cirur-
este padrão é “normal” na criança). Não represen- gia e não necessita de circulação extracorporal
ta qualquer tipo de “bloqueio” pelo que se deve nem de toracotomia (pelo que não deixa cicatriz).
evitar o termo “padrão de bloqueio incompleto de 2. Tratamento cirúrgico – tem indicação para
ramo direito”. Para se diagnosticar dilatação ven- os casos em que esteja contra-indicado o cateteris-
tricular direita, a amplitude da onda R’ no com- mo terapêutico pela idade e peso da criança, ou
plexo rSR’ deverá ser superior a 15mm nas cri- por anatomia desfavorável. O risco de mortali-
anças com menos de um ano de idade, e superior dade e morbilidade cirúrgicas é mínimo.
a 10mm nas crianças mais velhas. 3. Profilaxia da endocardite bacteriana – ao
contrário do indicado para a maioria das lesões
Ecocardiograma cardíacas, segundo a American Heart Association,
É o exame que permite fazer o diagnóstico. O eco- a profilaxia da endocardite bacteriana não é
cardiograma modo M permite medir as dimen- necessária nas comunicações interauriculares iso-
sões das cavidades do coração e as características ladas (excepto nos defeitos de septo aurículo-ven-
do movimento do septo interventricular. O eco- tricular incompletos – ostium primum).
cardiograma (modo bidimensional) fornece dados
relativos ao número, localização e dimensões das BIBLIOGRAFIA
lesões; e o Doppler codificado em cor permite Beerman LB, Zuberbuhler JR. Atrial septal defect. In Anderson
avaliar as características do fluxo interauricular e RH, Baker EJ, Macartney FJ, Rigby ML, Shinebourne EA,
a relação entre os débitos pulmonar e sistémico. Tynan M, (eds). Paediatric Cardiology. London: Churchill
Nos doentes com “má janela” (por deformação Livigstone, 2002; 901-930
CAPÍTULO 204 Comunicação interventricular 987

204
Garson AJ. Diagnostic electrocardiography. In Anderson RH,
Baker EJ, Macartney FJ, Rigby ML, Shinebourne EA, Tynan
M, (eds). Paediatric Cardiology. London: Churchill Livi-
gstone, 2002; 295-378
Garson A Jr, Bink-boelkens M, Hesslein PS, et al. Atrial flutter
in the young: a collaborative study of 380 cases. J Am Coll
Cardiol 1985; 6: 871-878 COMUNICAÇÃO
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, INTERVENTRICULAR
2011
McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of Anabela Paixão, Ana Cristina Ferreira e Sashicanta
Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010 Kaku
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
Medical, 2011
Shiku DJ, Stijns M, Lintermans JP, et al. Influence of age on atri- Definição e importância do problema
oventricular conduction intervals in children with and
without atrial septal defects. J Electrocardiol 1982;15:9-14 A comunicação interventricular consiste numa
Swartz EN. Is transcatheter device occlusion as good as open solução de continuidade do septo interventricular
heart septal for closure of atrial septal defects? Arch Dis que estabelece uma comunicação entre o ventrícu-
Child 2004; 89: 684-688 lo esquerdo e o ventrículo direito. É a anomalia
cardíaca congénita mais frequente representando
20% de todas as cardiopatias congénitas enquanto
defeito isolado. Admite-se etiologia multifactorial.
A nomenclatura mais consensual classifica as
comunicações interventriculares em perimembra-
nosas (70%) e musculares (30%). A localização do
defeito tem implicações importantes na probabili-
dade de encerramento espontâneo, na predis-
posição para complicações e na abordagem cirúr-
gica.

Fisiopatologia

A comunicação interventricular estabelece um


shunt esquerdo-direito cuja magnitude depende
da dimensão do defeito e da resistência vascular
pulmonar. Os defeitos pequenos limitam o fluxo
sanguíneo do ventrículo esquerdo para o ven-
trículo direito, impedindo a igualdade de pressões
entre estas duas cavidades. Nas comunicações
grandes (com dimensão igual ou superior ao
diâmetro da raiz da aorta) não há restrição ao
fluxo, as pressões sistólicas dos ventrículos são
iguais e a magnitude do shunt depende da resis-
tência vascular pulmonar. Nestes casos, o shunt
esquerdo-direito tem três consequências hemodi-
nâmicas:
1. sobrecarga de volume do ventrículo esquer-
988 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

do por aumento do retorno venoso pulmonar, aumento de débito através da válvula mitral. Nos
com consequente dilatação e hipertrofia; defeitos grandes com hipertensão pulmonar grave
2. sobrecarga de pressão no leito capilar pul- desaparecem os sinais de hiperdinamismo cardía-
monar, com aumento do líquido intersticial pul- co e a sintomatologia de insuficiência cardíaca. O
monar e consequente alteração da distensibili- sopro sistólico é de curta duração e o componente
dade (compliance) pulmonar e prejuízo das trocas pulmonar do segundo ruído está aumentado de
gasosas; intensidade. Nos casos em que há inversão do
3. compromisso do débito cardíaco sistémico shunt, com passagem de sangue venoso para a cir-
devido à recirculação pulmonar através do ven- culação sistémica, surge cianose central, primeiro
trículo esquerdo, o que desencadeia mecanismos com o esforço, e posteriormente em repouso.
de manutenção de perfusão de órgãos e da pressão
arterial, como por exemplo a activação do sistema Exames complementares
nervoso simpático e do sistema renina-angiotensi-
na-aldosterona, com consequente aumento da Electrocardiograma
resistência vascular periférica e retenção de água e Nos defeitos pequenos, o electrocardiograma é
sódio. O aumento mantido da pressão capilar pul- normal. Nos defeitos moderados existem sinais de
monar produz alterações definitivas nos vasos, hipertrofia do ventrículo esquerdo e, nas comuni-
aumentando irreversivelmente a resistência vascu- cações interventriculares grandes, o electrocardio-
lar pulmonar que pode atingir níveis supras- grama apresenta hipertrofia biventricular. Nos
sistémicos, conduzindo à inversão do shunt (sín- casos de doença vascular pulmonar obstrutiva
droma de Eisenmenger). (síndroma de Eisenmenger), pode verificar–se
hipertrofia ventricular direita exclusiva.
Manifestações clínicas
Radiografia do tórax
As manifestações clínicas dependem das dimen- Nas comunicações interventriculares pequenas, a
sões do defeito e da resistência vascular pulmonar. radiografia é normal. Nos defeitos moderados, a
As crianças com comunicação interventricular silhueta cardíaca está aumentada e a vasculariza-
pequena são, em regra, assintomáticas e a forma ção pulmonar está aumentada (plétora pul-
de apresentação mais frequente é a detecção de monar). Nas comunicações grandes, são evi-
sopro cardíaco entre a segunda e a sexta semana dentes: aumento da silhueta cardíaca, dilatação da
de vida. artéria pulmonar e aumento da vascularização
Os casos com comunicações moderadas ou pulmonar, principalmente na região hilar. Nos
grandes manifestam-se no final do primeiro mês casos com insuficiência cardíaca congestiva, pode
de vida com polipneia, cansaço durante as ma- observar-se edema intersticial. Nos doentes com
madas, hipersudorese, atraso estaturo-ponderal e hipertensão pulmonar grave existe dilatação da
infecções respiratórias frequentes. artéria pulmonar e diminuição da vascularização
Nas crianças com comunicações interventricu- pulmonar na periferia dos campos pulmonares
lares pequenas ausculta-se sopro cardíaco holos- (oligoémia periférica – árvore de inverno).
sistólico, de grau III-IV/VI, mais audível ao nível
do terceiro ou quarto espaço intercostal esquerdo Ecocardiograma
com irradiação para o bordo direito do esterno. O ecocardiograma permite determinar a localização
Nos defeitos moderados ausculta-se sopro e dimensões dos defeitos, calcular a magnitude do
holossistólico de grau IV-V/VI na região paraster- shunt e sua repercussão sobre as dimensões das
nal esquerda, irradiando para a direita. cavidades cardíacas, calcular a pressão na artéria
Nas comunicações interventriculares grandes pulmonar, e identificar anomalias associadas.
o sopro cardíaco não é audível em toda a sístole. A
intensidade do componente pulmonar do segun- Cateterismo cardíaco
do ruído está aumentada e pode auscultar-se um O cateterismo cardíaco actualmente só está indica-
rodado diastólico na ponta, provocado pelo do nos casos em que a ecocardiografia não seja
CAPÍTULO 204 Comunicação interventricular 989

esclarecedora, nomeadamente sobre a definição As indicações para o encerramento cirúrgico do


anatómica, existência de lesões associadas ou defeito interventricular são:
reversibilidade da hipertensão pulmonar. O en- 1. Lactentes com idade inferior a seis meses,
cerramento dos defeitos por cateterismo está indi- com insuficiência cardíaca congestiva refractária
cado em casos seleccionados. ao tratamento médico;
2. Lactentes de seis a doze meses de idade, com
Evolução insuficiência cardíaca congestiva controlada
medicamente, mas com hipertensão pulmonar;
A história natural de um doente com comunicação 3. Crianças com mais de um ano e uma relação
interventricular é dinâmica e depende das dimen- entre o débito pulmonar e o débito sistémico supe-
sões e da localização do defeito. Os defeitos mus- rior a 2/1;
culares únicos têm maior probabilidade de encer- 4. Crianças com comunicação interventricular
ramento espontâneo (80%) do que os perimem- que desenvolvam insuficiência aórtica, obstáculo
branosos (8-35%). subaórtico ou obstáculo subpulmonar significa-
Os defeitos pequenos encerram espontanea- tivos.
mente em 35% a 40% dos casos, geralmente antes As contra-indicações para o tratamento cirúrgi-
dos dois anos de idade. Os que não encerram têm co são: relação entre resistência vascular pulmonar
uma evolução benigna, sem sintomas de insufi- e sistémica superior a 1/1 e doença vascular pul-
ciência cardíaca ou evolução para hipertensão monar obstrutiva, com shunt direito – esquerdo.
pulmonar. A mortalidade cirúrgica é inferior a 3,8%,
Os defeitos moderados encerram menos fre- sendo os resultados cirúrgicos a longo prazo,
quentemente (8% antes dos dois anos). Nos bons, na maioria dos casos.
doentes submetidos a tratamento médico no Nota: Todos os doentes com comunicação
primeiro ano de vida pode verificar-se redução do interventricular têm indicação para profilaxia da
shunt esquerdo-direito mas, apesar disso, muitos endocardite bacteriana. (Capítulo 214)
deles vêm a necessitar de tratamento cirúrgico.
Nas crianças com comunicação interventricu- BIBLIOGRAFIA
lar grande o tratamento médico pode reduzir o Freedom RM, Benson LN. Ventricular septal defect. In
shunt, mas o encerramento espontâneo é raro e Freedom RM, Benson LN, Smallhorn JF (eds). Neonatal
existe elevada probalidade de evolução para Heart Disease. London:Springer-Verlag, 1992; 571-591
hipertensão pulmonar mantida, razão pela qual Garson A Jr, Bricker JT, McNamara DG (eds). The Science and
existe indicação para encerramento cirúrgico. Practite of Pediatric Cardiology. Malvern, Pennsylvania:
Lea & Ferbiger, 1990; 1002-10222
Tratamento Glen S, Burns J, Bloomfield P. Prevalence and development of
additional cardiac abnormalities in 1448 patients with con-
O tratamento da insuficiência cardíaca congestiva genital ventricular septal defects. Heart 2004; 90: 1321-1325
tem por objectivo aliviar os sintomas, promover o Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
crescimento e minimizar a frequência e gravidade Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011
das infecções respiratórias. As crianças que se Marques C. Diagnóstico das cardiopatias congénitas mais fre-
mantiverem estáveis para além do primeiro ano de quentes. In Temas de Pediatria – vol III.Cardiologia
vida, sem sinais de insuficiência cardíaca nem pro- Pediátrica. Lisboa: Beecham, 1994; 91-105
gressão para hipertensão pulmonar, raramente McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
necessitam de tratamento. O acompanhamento Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010
médico consiste na vigilância periódica, promoção Paixão A, Ferreira AC. Comunicação interventricular. In
de uma actividade física normal e reforço da Soares-Costa JTS e Kaku S (eds). Cardiopatias Congénitas.
importância da profilaxia da endocardite bacteri- Lisboa:Permanyer Portugal, 2005; 43-48
ana. Os doentes com doença vascular obstrutiva Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
pulmonar – inoperáveis – necessitam de tratamen- AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
to sintomático à medida que a cianose progride. Medical, 2011
990 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

205
1 2 3

DEFEITOS DO SEPTO
AURÍCULO-VENTRICULAR 1 – No coração normal existem quatro válvulas, duas de entrada
(VM: válvula mitral; VT: válvula tricúspide) e duas de saída (AO:
aorta; AP: pulmonar). Os anéis das VM e VT são independentes e a
válvula AO encontra-se encravada entre os dois.
Mónica Rebelo e António J. Macedo
2 – Nos DSAV completos ou de orifício único, os aneis da VM e
VT juntam-se num só comum (AC), com uma válvula AV comum
(VC) de 5 folhetos. Há um orifício de entrada AV comum que serve
conjuntamente o ventrículo direito e o esquerdo.
Definição
3 – Nos DSAV incompletos ou de orifícios separados, também
existe um anel comum às duas válvulas AV (AC) mas dois dos
Os defeitos do septo aurículo-ventricular (DSAV) folhetos da válvula AV comum unem-se ao centro, formando dois
orifícios separados, um para o ventrículo direito (OD) e outro para
são anomalias complexas com dois componentes o esquerdo (OE). Esta união central de folhetos também se faz à
principais: defeito no meio do coração originado custa do septo interventricular, pelo que não existe CIV mas só CIA
tipo ostium primum.
pela ausência do septo aurículo-ventricular e
anomalia das válvulas mitral e tricúspide que Quer nos DSAV completos quer nos incompletos, a AO torna-se mais anterior,
com consequente alongamento do tracto de saída do ventrículo esquerdo.
deixam de ser individualizadas e passam a ter
anel e folhetos comuns, formando uma única
FIG. 1
válvula.
Tipos de DSAV. Representação esquemática.
Anatomia
Num corte comum às aurículas
(AD e AE) e aos ventrículos
No coração normal, o septo aurículo-ventricular (VD e VE, separados pelo
resulta da diferença dos níveis de inserção das septo SIV) vêem-se as
estruturas anómalas dum
válvulas aurículo-ventriculares, ficando a válvula DSAV tipo completo: uma
mitral inserida mais alta do que a válvula tricúspide. válvula AV comum (*) que
O septo aurículo-ventricular põe potencialmente em separa as aurículas dos
ventrículos, vendo-se acima
contacto o ventrículo esquerdo com a aurícula direi- dela uma CIA típica, na
ta. A porção anterior deste septo é membranosa, porção baixa do septo
interauricular. Por baixo da
constituída pela porção superior do septo membra- válvula AV vê-se uma CIV.
noso; a porção posterior, muscular, contém o feixe de
His e o nódulo aurículo-ventricular.
Anomalias comuns aos defeitos do septo –
estes defeitos, nas suas diferentes formas, têm
quatro anomalias comuns a todos eles (Figuras 1 e
FIG. 2
2):
1. Um anel comum para as válvulas mitral e DSAV. Representação anatómica.
tricúspide e folhetos comuns às duas válvulas. A
anatomia desta válvula e as suas relações com os 2. Um “buraco” no meio do coração, no local
septos é determinante na definição das diferentes onde existia o septo aurículo-ventricular. Este
formas dos defeitos. Os músculos papilares, prin- defeito cria uma comunicação aurículo-ventricu-
cipalmente os esquerdos, sofrem uma rotação e lar (do ventrículo esquerdo para a aurícula direi-
aproximam-se entre si e do tracto de saída ven- ta) e, estendendo-se aos septos interventricular e
tricular. interauricular, cria uma comunicação interventri-
CAPÍTULO 205 Defeitos do septo aurículo-ventricular 991

cular e uma comunicação interauricular. Por este Anomalias associadas


defeito passa a válvula aurículo-ventricular 1. As anomalias do componente esquerdo da
comum. válvula aurículo-ventricular são determinantes na
3. A válvula aórtica, que no coração normal é evolução e condicionam o prognóstico.
uma estrutura central encravada entre os dois anéis A comissura mediana (“fenda”) é um compo-
aurículo-ventriculares, torna-se mais anterior, o nente obrigatório e a regurgitação da válvula dá-
que tem como consequência o alongamento do se em geral por essa zona. Quando há ausência ou
tracto de saída do ventrículo esquerdo. hipoplasia de tecido valvular, em particular do
4. Devido ao rebaixamento da porção superior folheto mural, a válvula torna-se muito regurgi-
do septo interventricular e ao alongamento do tante. Pode haver duplo orifício, com músculos
tracto de saída do ventrículo esquerdo, a relação papilares suplementares. Pode existir um múscu-
entre as dimensões do tracto de entrada e do de lo papilar único de que resulta válvula em pára-
saída do ventrículo esquerdo (que no coração nor- quedas que pode ser estenótica, além de regurgi-
mal é 1/1) está aumentada. tante. As anomalias de inserção da válvula aurícu-
Tipos de defeitos – a válvula aurículo-ventri- lo-ventricular à esquerda, quando se localizam no
cular comum tem cinco folhetos, dos quais os dois tracto de saída do ventrículo esquerdo além de
centrais são comuns aos componentes esquerdo e poderem causar obstáculo subaórtico, dificultam
direito, fazendo ponte entre os dois ventrículos. a correcção cirúrgica.
Denominam-se: folheto anterior ou superior e fo- 2. A coarctação da aorta e a persistência de
lheto posterior ou inferior. A anatomia destes fo- canal arterial, devem ser investigadas.
lhetos determina o tipo de defeito: 3. Os defeitos do septo aurículo-ventricular
1. Forma completa ou de orifício aurículo-ven- podem surgir associados a tetralogia de Fallot,
tricular único - os folhetos anterior e posterior estão anomalias do retorno venoso pulmonar ou outras
separados entre si, do septo interventricular e do patologias complexas.
septo interauricular. A válvula abre-se por um orifí-
cio único para os dois ventrículos. Há uma comuni- Importância do problema
cação interventricular e outra interauricular que, em
diástole, formam uma comunicação única. A hemodinâmica é condicionada por três elemen-
2. Forma incompleta ou de orifícios separados - tos principais: comunicação interauricular baixa,
os dois folhetos (anterior e posterior) estão ligados comunicação interventricular e anatomia e função
entre si formando-se dois orifícios na válvula da válvula aurículo-ventricular. As patologias
aurículo-ventricular comum: um para o ventrículo associadas têm influência importante na hemo-
esquerdo e outro para o ventrículo direito. Estes dinâmica.
folhetos ligam-se fortemente à crista do septo inter- Nos defeitos completos: a comunicação inter-
ventricular de modo que não existe comunicação ventricular é, em geral, grande, permitindo uma
interventricular. Por cima da válvula aurículo-ven- igualdade de pressões entre os dois ventrículos.
tricular, na porção inferior do septo interauricular Quando as resistências vasculares pulmonares
(região do septum primum), há uma comunicação começam a baixar, aumenta o shunt esquerdo-di-
(ostium primum). A porção esquerda da válvula reito e, como consequência do retorno venoso pul-
aurículo-ventricular é formada por três folhetos, monar aumentado, há dilatação da aurícula e do
com três comissuras. A comissura central, impro- ventrículo esquerdos. O shunt esquerdo-direito a
priamente chamada “fenda” da mitral, faz parte da nível auricular origina sobrecarga de volume e
anatomia habitual deste tipo de defeito. dilatação do ventrículo direito. O jacto de regurgi-
3. Existe uma forma rara de defeito incomple- tação da válvula aurículo-ventricular, ao dirigir-se
to com ausência de septo interauricular – a aurícu- do ventrículo esquerdo para o tecto da aurícula
la única. esquerda, contribui para a sua dilatação e, ao diri-
4. Há ainda outras formas graves (formas não gir-se para a aurícula direita (através da comuni-
“balanceadas” e formas “intermédias”), de pior cação interauricular), dilata também esta cavidade.
prognóstico e de abordagem difícil. A regurgitação da válvula aurículo-ventricular
992 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

aumenta a pressão na aurícula esquerda e contribui ciência cardíaca: cansaço e sudorese durante as
para o aumento da pressão venosa pulmonar. mamadas, deficiente aumento ponderal e infec-
Nos defeitos incompletos: a pressão no ven- ções respiratórias de repetição. A ausência de
trículo direito está pouco aumentada. Há shunt sinais de insuficiência cardíaca pode representar
esquerdo-direito pelo ostium primum e sobrecarga hipertensão pulmonar grave. O segundo ruído
de volume do ventrículo direito. A regurgitação pulmonar deve ser cuidadosamente analisado: a
da válvula aurículo-ventricular esquerda rara- sua intensidade está sempre aumentada nos
mente é grave e faz-se preferencialmente pela defeitos completos e existe muitas vezes desdo-
comissura mediana, para a aurícula direita. bramento fixo. A comunicação interauricular e a
comunicação interventricular que em geral são
Manifestações clínicas grandes, não originam sopros podendo, no entan-
to, auscultar-se sopro sistólico suave de expulsão
Síndromas associadas pulmonar. A regurgitação da válvula aurículo-
Na trissomia 21 predominam as formas comple- ventricular gera um sopro holossistólico na ponta.
tas com boa função da válvula aurículo-ventricu-
lar e sem outras anomalias associadas a não ser, Quadro clínico dos defeitos incompletos
raramente, tetralogia de Fallot e truncus arteriosus. Os defeitos incompletos têm sinais discretos, pelo
Outras trissomias (como a trissomia 13 ou a tris- que o seu diagnóstico é mais tardio. O quadro clíni-
somia18) podem também ter, ainda que menos co é semelhante ao das comunicações inter-auricu-
frequentemente, associação com esta patologia. A lares, a não ser que a válvula aurículo-ventricular
síndroma de Ellis van Creveld associa-se a aurícu- seja muito malformada. Os casos de grande shunt
la única. As anomalias do situs, em particular o interauricular manifestam-se pela ausência da arrit-
isomerismo direito, acompanham-se frequente- mia respiratória fisiológica; por auscultação cardía-
mente de defeitos do septo aurículo-ventricular. ca verifica-se aumento de intensidade do primeiro
Os defeitos completos, quando surgem em cri- ruído, desdobramento fixo do segundo ruído com
anças não sindromáticas, apresentam maior defor- componente pulmonar aumentado de intensidade,
mação da válvula aurículo-ventricular e têm mais e sopro sistólico suave de expulsão pulmonar.
frequentemente anomalias cardíacas associadas. Ausculta-se sopro de regurgitação na ponta, e o
aumento de débito através da válvula “tricúspide”
Quadro clínico dos defeitos completos manifesta-se por rodado tricúspide no quarto
No recém-nascido o quadro clínico pode ser dis- espaço intercostal direito. (Consultar Glossário)
creto com dificuldade respiratória ligeira e hepa-
tomegalia discreta. Pode haver cianose durante o Exames complementares
choro, por inversão do “shunt” com o esforço. A
intensidade do componente pulmonar do segundo Radiografia do tórax
ruído está aumentada pela hipertensão pulmonar, A radiografia do tórax evidencia sinais de plétora
e muitas vezes não se auscultam sopros. Entre as pulmonar e cardiomegália. Existe cardiomegália
duas e três semanas de vida começam a eviden- importante nas formas completas à custa da dila-
ciar-se sinais de insuficiência cardíaca condiciona- tação dos ventrículos e das aurículas; igualmente
da por dois factores: regurgitação da válvula dilatação do arco da artéria pulmonar. Nas formas
aurículo-ventricular e diminuição das resistências incompletas a cardiomegália é rara. (Figura 3)
vasculares pulmonares. Nos casos com regurgi-
tação significativa, a insuficiência cardíaca é pre- Electrocardiograma
coce. A diminuição das resistências pulmonares, O electrocardiograma apresenta desvio esquerdo
na presença de comunicação interventricular do eixo eléctrico do QRS (devido ao desvio poste-
grande, pode ser retardada ou não se verificar; e a rior do nódulo aurículo ventricular) que é tanto
ausência dos sinais de insuficiência cardíaca pode maior quanto maior for o defeito. Os defeitos in-
levar a atraso importante do diagnóstico. completos têm o eixo de QRS entre (-40º) e
No lactente predominam os sinais de insufi- (-60º) e os completos entre (-90º) e (-120º). Nos
CAPÍTULO 205 Defeitos do septo aurículo-ventricular 993

FIG. 3
Telerradiografia do tórax de um lactente com defeito completo do septo AV. Verifica-se a existência de cardiomegália e plétora
pulmonar. Aumento da aurícula direita, dos dois ventrículos e da artéria pulmonar. No ECG de um defeito incompleto, existe
desvio esquerdo do AQRS e padrão de sobrecarga diastólica do ventrículo direito.

defeitos incompletos, nas derivações precordiais ceder-se ao estudo do cariótipo fetal, dada a fre-
direitas (V3R a V1) existe um padrão rSR’ com quente associação com trissomia 21.
onda T negativa, sugestivo de sobrecarga diastóli-
ca do ventrículo direito. Nos defeitos completos Cateterismo cardíaco
existem sinais de sobrecarga de pressão no ven- O cateterismo apenas está indicado nos casos em
trículo direito com ondas R de amplitude aumen- que o achado fornecido pelo ecocardiograma é insu-
tada, ondas T positivas em V1, sobrecarga de vol- ficiente. Permite avaliar as resistências pulmonares
ume no ventrículo esquerdo com ondas Q profun- e a possibilidade da sua reversibilidade nos casos
das, e ondas R e T de amplitude aumentada em V5 em que estejam elevadas, através de provas especí-
e V6 (Figura 3). ficas com oxigénio ou com óxido nítrico.

Ecocardiograma transtorácico Tratamento


É o método de diagnóstico por excelência. A
incidência apical de quatro câmaras permite con- O tratamento médico limita-se ao tratamento da
firmar o diagnóstico. A ausência de septo aurícu- insuficiência cardíaca congestiva. Utiliza-se, em
lo-ventricular determina que os folhetos direitos e geral, a associação de digitálico com diurético e
esquerdos fiquem “ao mesmo nível”. Nos defeitos inibidores da enzima de conversão da angiotensi-
completos identifica-se a comunicação interven- na como o captopril. A profilaxia da endocardite
tricular no septo de entrada que, nos defeitos infecciosa está indicada em todos os casos, deven-
grandes se estende até o septo de saída. A comu- do manter-se por toda a vida, mesmo depois da
nicação interauricular tipo ostium primum é, em cirurgia. Nos defeitos completos isolados, a cor-
geral, grande e bem visível. O exame permite recção cirúrgica está indicada antes dos quatro a
avaliar as dimensões das cavidades cardíacas, os cinco meses de idade para evitar o estabelecimen-
locais de inserção valvular e, com Doppler colori- to de doença vascular pulmonar irreversível.
do, a hemodinâmica das válvulas. As incidências Nos defeitos incompletos, a cirurgia poderá
subcostais dão excelentes informações no recém- ser retardada até à idade de dois ou mais anos, por
nascido e no lactente. não existir risco de hipertensão pulmonar. A cor-
A forma completa é muitas vezes diagnostica- recção cirúrgica consiste em, (sob circulação extra-
da no período pré-natal. Nestes casos deve pro- corporal), encerrar a comunicação interauricular
994 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

(ostium primum) com remendo de pericárdio autól- Situs inversus > Anomalia em que um ou mais órgãos estão localizados
ogo. A comissura mediana do componente no lado aposto ao que ocupariam normalmente. O coração normal
esquerdo da válvula aurículo-ventricular poderá aparece como imagem “em espelho” (espelho sagital). O arco aórti-
necessitar de reparação. co, a aurícula esquerda e a câmara de ar do estômago estão locali-
Nos defeitos completos é necessário encerrar zados à direita (ver adiante “situs solitus”). São descritos 2 padrões;
a comunicação interventricular e a comunicação 1) ponta cardíaca à direita correspondendo a imagem “em espelho”
interauricular, e reparar os folhetos valvulares. completa (situs inversus cardíaco ) com cerca de 3-5% de defeitos
cardíacos associados; 2) ponta cardíaca à esquerda (situs inversus
Evolução com levocárdia) registando-se em 100% dos casos defeitos cardíacos
associados. Por vezes está associado a anomalias como asplenia,
A evolução está condicionada pela existência de polisplenia ou mesentério comum.
defeitos residuais, principalmente no componente Nota importante: havendo discordância entre posição do arco aórtico e da
esquerdo da válvula aurículo-ventricular. Em câmara de ar do estômago, deve suspeitar-se de drenagem anómala da veia
geral, após a cirurgia, a criança aumenta de peso, cava inferior no sistema ázigos.
deixa de ter infecções respiratórias de repetição e Situs sagitallis > Forma de anomalia da posição do coração cuja ponta
torna-se mais activa. Quando há lesões residuais está situada no hemitórax direito (ponta para diante) devido à
significativas da válvula aurículo-ventricular a rotação de ≥ 90° para a direita dos ventrículos em volta das grandes
criança pode necessitar de terapêutica anticonges- artérias da base (aorta e artéria pulmonar), mantendo estas a sua
tiva e, nos casos mais graves, poderá ser posição normal. Sinónimo de dextro-rotação. As vísceras estão em
necessária nova reparação cirúrgica com eventual posição normal.
recurso a prótese mecânica em posição mitral. Situs solitus > Coração em posição “normal”, o que pressupõe posições
à esquerda, do arco aórtico, aurícula esquerda e câmara de ar gástri-
GLOSSÁRIO ca. O situs solitus engloba 2 padrões: 1) padrão dito normal com a
Dextrocárdia > Deslocamento do coração para o hemitórax direito [por ponta cardíca à esquerda; 2) dextroversão em que a ponta do coração
dextroposição (por HDC, ou derrame pleural esquerdo), dextro- roda (em grau variável) para a direita. Em 1) a incidência de defeitos
rotação ou por situs inversus]. cardíacos é ~1%; em 2) é 100% sendo mais frequentes a transposição
Isomerismo > Falta de assimetria visceral (afecta sobretudo aurículas, dos grandes vasos com ou sem CIV e ou estenose pulmonar.
brônquios e pulmões). Em Cardiologia, por isomerismo entende-se
que o corpo tem os dois lados iguais, isto é, são ambos de morfolo- BIBLIOGRAFIA
gia direita (isomerismo direito) ou são ambos de morfologia Al-Hay AA, Macneill SJ, Yacoub M Shore DF, Shinebourne EA.
esquerda (isomerismo esquerdo). Complete atrioventricular septal defect, Down syndrome
No isomerismo direito, os dois pulmões têm morfologia de pulmão and surgical outcome. Ann Thorac Surg 2003, 75: 412-421
direito (com três lobos e com ambos os brônquios curtos e epiarteri- Anderson RH, Baker EJ Macartney FJ, Rigby ML, Shinebourne
ais), e os dois apêndices auriculares têm morfologia direita. O baço, EA, Tynan M, (eds). Paediatric Cardiology. London:
sendo de origem esquerda, está frequentemente ausente (asplenia) Churchil Livingstone, 2002
no isomerismo direito. As veias pulmonares têm conexão anómala Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
não conectando directamente com a aurícula. Existem malfor- Dunlop KA, Mulholland HC, Casey FA, Craig B, Gladstone DJ.
mações de rotação mesentérica e o fígado é, em geral, central. A ten year review of atrioventricular septal defects. Cardiol
No isomerismo esquerdo, os dois pulmões têm morfologia de pul- Young 2004; 14: 15-23
mão esquerdo (com dois lobos e com ambos os brônquios longos e Fraisse A, Massih TA, Kreitmann B, Metras D, Vouhe P, Sidi D,
hipoarteriais), e os dois apêndices auriculares têm morfologia Bonnet D. Characteristics and management of cleft mitral
esquerda. Existe polisplenia (baços múltiplos). As veias pulmonares valve. J Am Coll Cardiol 2003, 42: 1988-1993
conectam com a aurícula, mas é frequente a ausência da porção Icardo JM, Rincon JMG, Ros MA. Malformaciones cardíacas,
supra-hepática da veia cava inferior, seguindo a drenagem venosa heterotaxia e lateralidad. Rev Esp Cardiol 2002; 55: 962-974
desta porção através das veias azygos ou hemiazygos até ao coração. Rebelo M, Macedo AJ. Defeitos do septo aurículo-ventricular. In
Situs > Palavra latina que significa posição ou situação. Soares-Costa JTS e Kaku S (eds). Cardiopatias Congénitas.
Situs incertus ou ambiguus ou heterotaxia > Situação anormal das Lisboa:Permanyer Portugal, 2005; 49-60
vísceras sem corresponder a transposição bem definida; associada a Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA(eds).
defeitos cardíacos e do baço (asplenia/polisplenia). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Medical, 2011
CAPÍTULO 206 Coarctação da aorta 995

206
tamento uniforme do arco aórtico que se inicia
habitualmente antes da origem da artéria sub-
clávia esquerda.
A coarctação da aorta pode associar-se a outras
anomalias cardíacas como: válvula aórtica bicús-
pide, comunicação interventricular, estenose aór-
COARCTAÇÃO DA AORTA tica e malformações da válvula mitral. A asso-
ciação com múltiplos obstáculos esquerdos é desi-
Hugo Vinhas, Conceição Trigo e Sashicanta Kaku gnada por síndroma de Shöne. Por vezes existe
associação com anomalias extracardíacas: como
artéria subclávia direita com origem distal à
inserção do canal arterial; e aneurismas do polí-
Definição e importância do problema gono de Willis.

O termo coarctação da aorta (CoAo) deriva do Embriologia


latim coartatio que significa estreitar; designa o
estreitamento da aorta torácica, próximo da A coarctação da aorta desenvolve-se no ponto de
inserção do canal arterial. Ocorre em cerca de 6- inserção do canal arterial, e na sua origem pode
8% dos doentes com cardiopatia congénita, encon- estar a migração de tecido muscular liso ductal
trando-se presente em 17% dos recém-nascidos para a parede da aorta onde poderá originar uma
cuja causa de morte seja atribuível a cardiopatia “membrana” responsável pelo estreitamento do
congénita. É mais frequente no sexo masculino lume. Esta hipótese é apoiada na frequente confir-
(1,7/1) e admite-se etiologia multifactorial com mação histológica de tecido ductal na zona da
determinantes genéticos, facto que é corroborado junção ducto-aórtica. A teoria hemodinâmica
pela sua elevada incidência na síndroma de atribui este defeito a alterações do fluxo sanguí-
Turner. Têm sido descritos casos com transmissão neo no arco e istmo aórticos no período embrio-
autossómica dominante. A importância dos fac- nário, e poderá explicar a associação com outras
tores ambientais pode ser evidenciada pelo anomalias intracardíacas que favoreçam redução
aumento de ocorrência no Outono e Inverno. do fluxo através da aorta e a sua redistribuição
para o sistema arterial pulmonar.
Anatomia
Fisiopatologia
A coarctação da aorta localiza-se habitualmente
(98%) entre a origem da artéria subclávia esquer- Após o nascimento, com o encerramento do canal
da e a inserção do canal arterial (justaductal); e, arterial e do foramen ovale, todo o débito sistémico
muito raramente, antes da origem do tronco arte- tem de atravessar o segmento estenosado. As alte-
rial braquiocefálico, na aorta torácica descendente rações hemodinâmicas dependerão da gravidade
ou na aorta abdominal. da obstrução e da presença de lesões associadas. A
Pode ser classificada, sob o ponto de vista mor- resistência à ejecção ventricular condiciona
fológico, em dois tipos: coarctação localizada e aumento da pressão sistólica no ventrículo
hipoplasia do istmo. esquerdo e aorta ascendente. Se a coarctação for
A coarctação localizada é mais frequente e grave ou de instalação rápida (como acontece no
caracteriza-se pela existência de uma membrana recém-nascido com o encerramento do canal arte-
focal e/ou “indentação”. rial – recordando que a CoAo é justa ou pré-duc-
De acordo com a localização da membrana em tal), desenvolve-se disfunção sistólica e diastólica
relação ao canal arterial são considerados três sub- aguda com consequente insuficiência cardíaca e
tipos: pré-ductal, para-ductal e pós-ductal (esta choque cardiogénico. Nos casos de obstrução
última mais frequente no adulto). menos significativa, a sobrecarga de pressão leva
A hipoplasia do istmo caracteriza-se por estrei- à hipertrofia do ventrículo esquerdo. No segmen-
996 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

to distal à coarctação verifica-se dilatação pós- ligeiras. As alterações que poderão ser observadas
estenótica, o qual tem parede arterial de espessura são: aumento do índice cárdio-torácico sobretudo
reduzida. As consequências a longo prazo à custa de dilatação do ventrículo direito (mais
traduzem-se na presença frequente de aneurismas frequente nas obstruções graves do recém-nascido
saculares do polígono de Willis e no desenvolvi- e do lactente); “ratamento” ou “erosão” do bordo
mento de hipertensão arterial na metade superior inferior, da quarta à oitava costelas, devido à cir-
do corpo. A hipertensão arterial pode persistir culação colateral através das artérias intercostais
mesmo após correcção da coarctação, possivel- (raras antes dos quatro anos de idade), e sinal do
mente relacionada com disfunção de barorrecep- “3”, resultante da combinação das dilatações pré e
tores e alterações irreversíveis da parede vascular. pós-estenótica separadas pela zona coarctada.

Manifestações clínicas Electrocardiograma


No recém-nascido e no lactente o electrocardio-
A apresentação clínica depende do grau e da loca- grama apresenta sinais de hipertrofia ventricular
lização da obstrução, presença de anomalias asso- direita. A hipertrofia ventricular esquerda é pouco
ciadas e idade do doente. Nos recém-nascidos e habitual nesta idade e sugere lesões associadas
lactentes com coarctação grave, a forma de apre- como estenose aórtica. Em crianças mais velhas
sentação é insuficiência cardíaca de baixo débito com existe hipertrofia ventricular esquerda, muitas
má perfusão periférica, palidez, hipersudorese, taquip- vezes com alterações da repolarização ventricular
neia e taquicárdia. As crianças mais velhas e os por sobrecarga miocárdica.
adultos são frequentemente assintomáticos,
sendo o diagnóstico suspeitado no exame de roti- Ecocardiografia
na (por auscultação de sopro, evidência de A ecocardiografia de modo bidimensional e
diminuição ou ausência de pulsos nos membros Doppler é a técnica ideal para o diagnóstico da
inferiores), ou no decurso da investigação de anatomia e da fisiologia. Além de definir a loca-
hipertensão arterial. Os sintomas são inespecífi- lização e o tipo da coarctação, permite avaliar a
cos: cefaleias, epistaxe, claudicação intermitente e sua gravidade e o diagnóstico de lesões associ-
complicações da doença hipertensiva. Qualquer adas. A ecocardiografia fetal pode permitir o
que seja a forma de apresentação, os pulsos diagnóstico pré-natal e programar o parto e a as-
femorais apresentam amplitude diminuída e sistência cardiológica atempada ao recém-nas-
estão atrasados em relação aos braquiais (poden- cido.
do estar normais se existir canal arterial de
grande calibre com shunt direito-esquerdo), Ressonância magnética
existindo gradiente tensional entre os membros supe- Permite estudo morfológico detalhado e está indi-
riores e inferiores (não significativo nos casos com cada para os casos com “má janela” ecocardiográ-
permeabilidade do canal arterial). Pela auscul- fica (nomeadamente em crianças crescidas e adul-
tação cardíaca pode verificar-se aumento de tos) e no seguimento de doentes submetidos a
intensidade do componente pulmonar do segun- cirurgia ou a dilatação por cateterismo para de-
do ruído. Pode existir sopro de expulsão no bordo tecção de eventuais complicações (distorções da
esquerdo do esterno com irradiação para a região aorta, dissecção ou aneurismas).
interescapular, e sopro contínuo na parede anteri-
or do tórax ou no dorso devido à presença de cir- Cateterismo cardíaco
culação colateral; podem auscultar-se sopros Raramente indicado para fins diagnósticos, tem
provocados por lesões associadas. indicação quando se pretende uma terapêutica
percutânea da coarctação da aorta. Mesmo quan-
Exames complementares do existam lesões associadas com indicação para
avaliação por cateterismo cardíaco, deve tratar-se
Radiografia do toráx primeiro a coarctação da aorta, e só depois avaliar
A radiografia do tórax pode ser normal nas formas a gravidade das outras lesões.
CAPÍTULO 206 Coarctação da aorta 997

Tratamento está indicada em crianças mais velhas com anato-


mia local complexa.
O tratamento da coarctação da aorta depende da 3. Aortoplastia com remendo – baseia-se na
gravidade, presença de lesões associadas e locali- realização de uma incisão longitudinal sobre a
zação da obstrução. zona da coarctação seguida de alargamento com
Na coarctação grave do recém-nascido, a estabi- um remendo losângico de Dacron ou Gore-Tex.
lização com prostaglandina E1 (PGE1) mantendo Por provocar elevado número de aneurismas
a permeabilidade do canal arterial e da circulação (38%) é pouco utilizada.
sanguínea da região distal à coarctação, permite 4. Aortoplastia com retalho da artéria sub-
obter resultados melhores do que a intervenção clávia – nesta técnica, a artéria subclávia esquerda
imediata. Nos casos em que a PGE1 seja ineficaz e é laqueada distalmente à origem da artéria verte-
nos casos de coarctação pós-ductal (rara) a cor- bral e utilizada como remendo para encerramen-
recção imediata é obrigatória. Podem ainda ser to da incisão longitudinal realizada na zona da
necessárias medidas adicionais como ventilação coarctação. Tem a vantagem de utilizar tecido
assistida e correcção de alterações metabólicas autólogo com potencial de crescimento e pode ser
(acidose, hipoglicémia ou anemia). O transporte utilizada em situações de coarctação difusa e
da criança para um centro cirúrgico deve ser ime- hipoplasia do istmo. Tem como incovenientes as
diato. possibilidades (raras) de crescimento insuficiente
Nos casos graves a cirurgia é realizada logo após do membro superior esquerdo ou o estabeleci-
a admissão e estabilização clínica. É discutível se, mento de “síndroma” de “roubo” da subclávia
na presença de lesões associadas importantes, o (em que há passagem de sangue da artéria verte-
procedimento cirúrgico deve ser feito numa ou em bral para a porção distal da artéria subclávia
duas etapas, dado que o risco operatório de um durante manobras com esforço utilizando o mem-
procedimento combinado é superior ao da bro superior, o que pode provocar tonturas ou
reparação isolada. Quando existe comunicação mesmo síncope).
interventricular grande ou comunicações inter- 5. Angioplastia com balão e colocação de
ventriculares múltiplas procede-se a banding da stents – utiliza-se sobretudo nas situações de
artéria pulmonar, com vista a evitar hipertensão recoarctação da aorta. A sua utilização na coarc-
pulmonar fixa; a par da reparação da coarctação, é tação nativa parece estar associada a elevada taxa
efectuado o encerramento do canal arterial. Nas de aneurismas pós-dilatação. Alguns autores
situações de coarctação da aorta que não justi- recomendam colocação de stents em crianças com
fiquem reparação urgente discute-se a idade ópti- mais de seis anos de idade com gradiente de
ma para a cirurgia. A cirurgia efectuada durante o pressões entre membros superiores e inferiores >
primeiro ano de vida está associada a maior taxa 30 mmHg.
de mortalidade e de recoarctação mas, por outro
lado, quanto mais tarde for efectuada a reparação, A profilaxia de endocardite infecciosa deve
maior é o risco de hipertensão arterial persistente. manter-se indefinidamente mesmo após repara-
Existem várias técnicas para a reparação da ção cirúrgica, dado que estes doentes apresentam
coarctação da aorta; a sua selecção depende da ex- elevado risco de endocardite infecciosa.
tensão da obstrução, da experiência do cirurgião e
das lesões associadas: GLOSSÁRIO
1. Ressecção com reparação topo a topo – Banding > Aplicação de fita de nastro ou banda em torno de vaso (neste
descrita em 1945, tem como principal inconve- caso, da artéria pulmonar) provocando diminuição do calibre
niente a elevada taxa de recoarctação induzida (sinónimo do termo francês “cerclage”). Destina-se a diminuir a
pela presença de linha de sutura circunferencial. quantidade de sangue que chega às artérias pulmonares e utiliza-se,
2. Interposição de enxerto ou conduta proté- em geral, em situações de grande shunt esquerdo-direito, quando
sica entre a aorta ascendente e a aorta descen- não é possível fazer a correcção total do defeito por razões anatómi-
dente – tem como inconveniente a impossibili- cas.
dade de crescimento da conduta, pelo que apenas Stent > Endoprótese vascular tubular de calibre muito pequeno que se
998 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

207
introduz por cateterismo periférico na artéria (neste caso, aorta)
após angioplastia, para impedir recidiva de CoAo.

BIBLIOGRAFIA
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Marques C, Magalhães P, Kaku S, Sampayo F, Bento R. uterinas (infecções, alterações metabólicas, etc.), cor-
Experiência de 10 anos em crianças operadas a coarctação responde a cerca de 5% das anomalias cardíacas. Até
da aorta. Rev Port Cardiol 1987; 6: 529-553 há cerca de três décadas a febre reumática era uma
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon causa que explicava as formas adquiridas.
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill São conhecidos três grandes grupos de lesões a
Medical, 2011 esse nível, de acordo com a respectiva localização:
valvular, subvalvular e supravalvular .

1.ESTENOSE AÓRTICA VALVULAR

Aspectos epidemiológicos

Esta situação, na maioria congénita, abrange cerca


de 75% dos casos de estenose aórtica e predomina no
sexo masculino (relação 4:1). A válvula aórtica pode
apresentar-se com uma, duas ou três (raramente
quatro) cúspides. Cerca de três quartos dos doentes
com estenose valvular possuem válvulas bicúspides
e, nesses casos, está descrita associação com necrose
quística da média e dissecção da aorta. Em cerca de
15 % dos doentes existe associação com outras
anomalias cardíacas (canal arterial persistente,
coarctação da aorta, comunicação interventricular).

Manifestações clínicas

A forma de apresentação clínica depende da gravi-


dade da estenose e da idade em que se manifesta.
CAPÍTULO 207 Estenose aórtica 999

A morte súbita é a manifestação clínica mais grave, válvulas espessas e pouco móveis, não se detec-
com um risco estimado em 3 casos / 1.000 / ano. ta estalido de abertura.
A forma grave do recém-nascido, reconhecida
como causa de morbilidade e mortalidade Exames complementares
intrauterina, não produz, habitualmente, manifes-
tações clínicas de insuficiência cardíaca nos Electrocardiograma
primeiros dias de vida; contudo, com o encerra- As alterações mais frequentes e mais relacionadas
mento do canal arterial pode estabelecer-se, como com a gravidade da estenose são a hipertrofia e
consequência do baixo débito cardíaco, um sobrecarga do ventrículo esquerdo: aumento da
quadro de insuficiência cardíaca global com amplitude de ondas R e evolução progressiva para
tendência para agravamento progressivo. A inten- a inversão das ondas T, com depressão dos seg-
sidade deste quadro e a sua evolução variam com mentos ST. No período neonatal e nos lactentes
a estrutura e função do ventrículo esquerdo, com formas graves existe, com frequência,
sendo as formas mais graves e de prognóstico hipertrofia ventricular direita.
mais reservado, aquelas em que o ventrículo es- O electrocardiograma dinâmico de Holter,
querdo é pequeno. sempre que indicado pela clínica, deve fazer parte
A forma moderada a grave após o primeiro do acompanhamento dos doentes, pois as arri-
mês de vida manifesta-se quando a estenose aór- tmias e as perturbações da condução ocorrem com
tica não é crítica, geralmente após o período frequência.
neonatal: cansaço, taquipneia e hipersudorese A prova de esforço poderá ser útil no segui-
durante a alimentação, associados a progressão mento das crianças com formas de estenose mo-
ponderal lenta. Na maioria dos casos a doença derada. A ocorrência de alterações da repolariza-
apenas é suspeitada pela detecção de sopro sistóli- ção, hipotensão, angor, arritmias graves ou sín-
co numa avaliação clínica ocasional. cope relaciona-se com a gravidade da estenose
A forma ligeira é geralmente assintomática, aórtica, podendo estabelecer a indicação para
com exame objectivo considerado normal. A serem adoptadas atitudes interventivas.
doença poderá, por outro lado, ser detectada pela
auscultação de sopro sistólico durante uma ava- Radiografia do tórax
liação clínica de rotina. De salientar que a pro- As crianças com insuficiência cardíaca podem
gressão da estenose é variável, podendo tornar-se apresentar um aumento da silhueta cardíaca. A
grave e sintomática. cardiomegália é, no entanto, um marcador pouco
De acordo com o que foi referido antes, os sensível da gravidade da estenose. Por vezes
achados do exame objectivo poderão variar com observa-se proeminência da aorta ascendente, por
a gravidade da estenose, sendo que aquele dilatação pós-estenótica. É rara a calcificação da
poderá ser normal. O pulso pode ser parvus e tar- válvula nas idades pediátricas.
dus e o impulso apical sustido. É frequente exis-
tir frémito suprasternal e nas carótidas. Na aus- Ecocardiografia
cultação, o primeiro ruído é normal, o segundo É actualmente o principal método de diagnóstico
ruído tem desdobramento estreito com intensi- de estenose aórtica: permite avaliar a morfologia
dade diminuída do componente aórtico. Aus- da válvula, determinar a localização da obstrução
culta-se muitas vezes terceiro ruído. Frequen- e quantificar a sua gravidade. O Doppler contínuo
temente, existe estalido de abertura da válvula permite estudar a velocidade do fluxo de sangue e
aórtica audível na ponta e bordo esquerdo do calcular o gradiente de pressões na zona estenosa-
esterno. Ausculta-se sopro sistólico de expulsão da. Valores: inferiores a 25 mmHg representam
na porção média do bordo esquerdo do esterno estenose não significativa; entre 25 mmHg e 50
com irradiação para a porção superior do bordo mmHg traduzem estenose ligeira; entre 50 mmHg
direito e pescoço. Nos casos em que o débito e 75 mmHg correspondem a estenose moderada; e
através da válvula é extremamente reduzido, não acima de 75 mmHg associam-se a estenose grave.
se detecta qualquer sopro. Nestes casos, sendo as É possível determinar a área da válvula aórtica
1000 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

que, por ser independente do débito cardíaco, re- riódica em centro especializado e feita avaliação
presenta de modo mais fidedigno a gravidade do ecocardiográfica anual. Nas estenoses ligeiras
obstáculo. Uma área efectiva inferior a 0,5 cm2/m2 (gradiente ≥25 mmHg e <50 mmHg) a avaliação
de superfície corporal traduz estenose grave. deve ser anual e os desportos de competição com
A ecocardiografia permite ainda avaliar a actividade física intensa devem ser desaconselha-
existência de regurgitação aórtica e detectar a pre- dos, podendo manter-se a actividade física recre-
sença de outras anomalias cardíacas. ativa normal. A obstrução moderada (gradiente
entre 50 e 75 mmHg) constitui uma “zona cinzen-
Cateterismo cardíaco ta” que poderá implicar tomar uma atitude inter-
Actualmente o cateterismo de diagnóstico cardía- ventiva. Estes doentes devem ser acompanhados
co apenas está indicado nos casos em que exista com maior periodicidade e a actividade física
discrepância entre a clínica e o ecocardiograma. A deve ser restringida a esforços ligeiros.
valvuloplastia por cateterismo está indicada em A valvuloplastia percutânea é realizada
casos seleccionados (válvulas com três sigmóides através da insuflação de um balão na válvula aór-
e sem insuficiência significativa). tica; a mesma comporta mortalidade média de
cerca de 2,4%, mais elevada nos lactentes com
Tratamento menos de 3 meses. Este procedimento é eficaz,
com redução de imediato do gradiente trans-
A actuação clínica nas crianças com estenose aór- valvular, mas a longo prazo é grande a taxa de
tica tem por objectivos a prevenção da disfunção recorrência. A partir da terceira década de vida e
irreversível do ventrículo esquerdo e da morte com a calcificação progressiva da válvula, a eficá-
súbita, assim como o alívio dos sintomas. O trata- cia diminui. A complicação mais frequente é o
mento consiste na eliminação ou diminuição aparecimento ou o agravamento de insuficiência
mecânica do obstáculo por cirurgia ou por valvu- aórtica. A vantagem principal da valvuloplastia
loplastia percutânea de balão. por balão é adiar a cirurgia, que continuará a ser
As indicações da valvuloplastia percutânea necessária em muitos doentes.
de balão discriminam-se a seguir: A cirurgia comporta mortalidade baixa,
1. Existência de sintomas e/ou alterações da excepto nas formas neonatais graves. Na valvulo-
repolarização de novo no electrocardiograma e o tomia aumenta-se o orifício aórtico através da se-
gradiente máximo ≥ 50 mmHg*; paração das comissuras; a mesma associa-se a
2. Doentes assintomáticos com gradiente máxi- risco de agravamento da insuficiência aórtica e a
mo > 60 mmHg; restenose a longo prazo. Por outro lado, nem
3. Doentes que pretendam praticar desporto de todas as válvulas são passíveis de valvulotomia.
competição nos quais o gradiente seja ≥ 50 mmHg. De salientar que a mortalidade na sequência de tal
Estas recomendações baseiam-se em análises intervenção, em crianças e adolescentes, é cerca
subjectivas (dado que a história natural da doença de 2%. Nos últimos anos tem sido cada vez mais
é muito variável, está ainda mal definida e não utilizada a substituição da válvula aórtica pela
existem ensaios clínicos), pelo que não devem ser válvula pulmonar do próprio doente (cirurgia de
consideradas rígidas. Ross), estando provado o potencial de crescimen-
Nas crianças em que ainda não haja indicação to do autoenxerto pulmonar.
para intervenção é fundamental manter um segui- Nas crianças em que ainda não haja indicação
mento rigoroso, tendo em conta o carácter pro- para intervenção é fundamental manter um segui-
gressivo da estenose. Nas formas discretas (gradi- mento rigoroso, tendo em conta o carácter pro-
ente <25 mmHg) deve ser realizada consulta pe- gressivo da estenose.
Todos os doentes e os portadores de válvula
*Gradiente: define-se como diferença de pressões sistólicas entre duas aórtica bicúspide devem ser submetidos a profi-
cavidades ou entre duas porções dentro da mesma cavidade ou vaso. laxia da endocardite infecciosa, independente-
Neste caso trata-se da diferença de pressões entre o ventrículo esquer-
do (VE) e a aorta (Ao). Quando mais grave for a estenose, maior será o mente da gravidade da estenose, mesmo depois
gradiente ou seja a diferença de pressões entre o VE e a Ao. de tratados.
CAPÍTULO 207 Estenose aórtica 1001

2. ESTENOSE AÓRTICA SUBVALVULAR Tratamento

Importância do problema A actuação clínica é semelhante à descrita para a


e manifestações clínicas estenose valvular. Dado que a turbulência provoca-
da pelo obstáculo subaórtico vai lesar progressiva-
Os obstáculos subaórticos podem ser provocados mente a válvula aórtica (lesões de “jacto”) a cirurgia
por grande variedade de lesões, constituindo os está indicada mesmo em casos de estenose modera-
mesmos cerca de 20 % das estenoses aórticas; da desde que haja insuficiência aórtica. A técnica
associam-se muitas vezes a comunicação inter- cirúrgica aplicada (ressecção completa do diafra-
ventricular. O diafragma subaórtico (erradamente gma e miotomia de Morrow) parece diminuir a taxa
designado por “membrana” subaórtica) é o de- de recorrência das lesões. Dado que apenas a cirur-
feito que ocorre com maior frequência. Os doentes gia permite remover o diafragma de modo a evitar
estão geralmente assintomáticos e o exame objec- as lesões de “jacto”, o cateterismo terapêutico não
tivo é semelhante ao da estenose valvular, não tem tido grande aceitação neste tipo de patologia.
havendo, no entanto, estalido sistólico nem altera-
ções do segundo ruído. O sopro sistólico é mais
intenso no bordo esquerdo do esterno e, nalguns 3. ESTENOSE AÓRTICA
casos, pode auscultar-se sopro diastólico de insu- SUPRAVALVULAR
ficiência aórtica.
Importância do problema
Exames complementares e manifestações clínicas

A radiografia do tórax habitualmente não apre- Trata-se da forma mais rara de estenose aórtica,
senta alterações. O electrocardiograma pode ser representando cerca de 2% dos respectivos casos.
normal ou apresentar sinais de hipertrofia ventri- Frequentemente associada a perturbações do
cular esquerda. A ecocardiografia é o melhor metabolismo do cálcio, faz parte das alterações
método de avaliação (Figura 1), sendo o gradiente que constituem a síndroma de Williams a qual
de pressões, através do obstáculo, o melhor índice integra, fundamentalmente, fácies característica
da gravidade da obstrução. (de duende), atraso mental, personalidade extro-
vertida e amigável, hiperacúsia, lábios grossos, e
atraso do crescimento. Podendo também ocorrer
em crianças sem alterações metabólicas, estão
descritas formas familiares. A associação a este-
nose da origem dos grandes vasos da crossa da
aorta, coronárias, artérias subclávias, renais e pul-
monares é frequente e deve ser diagnosticada
antes da cirurgia. Atribui-se a microdeleções do
gene da elastina do cromossoma 7.
Nos doentes sem síndroma de Williams os sin-
tomas são raros. A dispneia e angina ocorrem nas
fases avançadas da doença e a síncope é rara. A
hipertensão arterial sistémica é comum. Fre-
quentemente encontram-se frémitos nas carótidas,
na região suprasternal ou no bordo direito do ester-
no. Os pulsos periféricos devem ser avaliados com
atenção, sendo frequentes pulsações mais intensas
FIG. 1
na carótida direita e membro superior direito (pelo
Ecocardiograma na estenose aórtica subvalvular em posição chamado efeito Coanda provocado pelo jacto de
parasternal:visualização de diafragma subaórtico. sangue na zona pós-estenótica). Não se ausculta
1002 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

208
estalido. O sopro sistólico é mais intenso no bordo
direito do esterno, irradiando para as carótidas.

Exames complementares

As alterações electrocardiográficas são semelhantes


às da estenose valvular. As alterações evidenciadas SÍNDROMA DO CORAÇÃO
por radiografia do tórax são também semelhantes,
não existindo, no entanto, dilatação pós-estenótica ESQUERDO HIPOPLÁSICO
da aorta.
Na ecocardiografia, a visualização do obstácu- Sofia Ferreira, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku
lo é por vezes difícil, sendo no entanto possível
detectar a turbulência do fluxo na aorta ascen-
dente e quantificar o gradiente de pressões por
eco-Doppler. Definição e importância do problema
A angiografia constitui parte essencial da
avaliação, demonstrando a localização e a exten- A síndroma do coração esquerdo hipoplásico
são da estenose, e podendo detectar a presença (SCEH) integra um conjunto de anomalias carac-
doutras alterações vasculares. terizadas por hipodesenvolvimento do ventrículo
esquerdo, válvulas mitral e aórtica, e da aorta.
Tratamento Representa cerca de 1% de todas as cardiopatias
congénitas e 9% das cardiopatias do recém-nasci-
O tratamento é cirúrgico e está indicado se o gra- do. Verifica-se predomínio do sexo masculino
diente for superior a 60 mmHg. A mortalidade é (67% dos doentes) e, em mais de 10% dos doentes,
reduzida, estando descritos casos de recorrência existem anomalias extracardíacas associadas. É a
da estenose. cardiopatia com maior mortalidade durante o
primeiro mês de vida (95%) se não se proceder a
BIBLIOGRAFIA tratamento.
Anderson RH, Baker EJ Macartney FJ, Rigby ML, Shinebourne Além das anomalias já referidas, a aurícula
EA, Tynan M (eds). Paediatric Cardiology. London: esquerda na SCEH é pequena; em 15% dos casos
Churchil Livingstone, 2002 existe comunicação interauricular e em 10% o
Bonow RO, Carabello B, de León AC, et al. ACC/AHA guide- foramen ovale está permeável. Em cerca de 10% dos
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American Heart Association Task Force on Practice vo, a mortalidade é elevada, mesmo com descom-
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Cardiovasc Surg 2005; 129: 551-558 SCEH tolera bem esta grave patologia cardíaca.
CAPÍTULO 208 Síndroma do coração esquerdo hipoplásico 1003

Após o nascimento, verifica-se: a) inversão das O quadro clínico agrava-se durante a primeira
resistências vasculares (resistência sistémica > semana de vida; na ausência de terapêutica, leva à
resistência pulmonar), aumento da pressão na morte em poucos dias.
aurícula esquerda e consequente encerramento do
foramen ovale; b) encerramento do canal arterial, por Exames complementares
aumento da saturação de Hb-oxigénio e dimi-
nuição das prostaglandinas. Provoca-se, assim, Electrocardiograma
uma acentuada redução do débito cardíaco sistémi- Revela sinais de taquicárdia sinusal e hipertrofia
co e da pressão na aorta, desencadeando um qua- ventricular direita com padrão qR nas derivações
dro de choque circulatório e acidose metabólica. A precordiais direitas. Podem registar-se ondas R
manutenção de débito sistémico adequado depen- amplas nas derivações precordiais V5 e V6 as
de: da permeabilidade do canal arterial com quais recolhem potenciais do ventrículo direito
dimensões adequadas de modo a permitir ao ven- dilatado.
trículo direito ejectar sangue para a aorta; e da
existência de uma comunicação interauricular que Radiografia do tórax
possa descomprimir a aurícula esquerda. Se a Revela sinais de cardiomegália e congestão veno-
comunicação interauricular for grande, o shunt sa pulmonar.
esquerdo-direito não será restritivo e a saturação
arterial de Hb-oxigénio poderá aproximar-se de Ecocardiograma
80%. Nos casos com septo interauricular intacto ou O estudo por Doppler codificado em cor permite
com comunicação interauricular restritiva, haverá fazer o diagnóstico, avaliar a gravidade da situa-
edema pulmonar e a saturação arterial de Hb-oxi- ção e a emergência da terapêutica. Existe, fre-
génio será baixa. Sem tratamento, o recém-nascido quentemente, coarctação da aorta.
poderá morrer em pouco tempo (Capítulo 326). O cateterismo cardíaco e a angiocardiografia,
Devido ao baixo débito cardíaco, existe acidose além de terem risco elevado, não estão indicados.
metabólica e a PaCO2 está habitualmente normal
ou até diminuída. A hipoxémia é ligeira a mode- Tratamento
rada e os lactatos estão elevados.
O diagnóstico pré-natal desta cardiopatia tem O tratamento médico tem como finalidade essen-
importância fundamental, dado que nos casos cial a estabilização hemodinâmica por:
com septo interauricular restritivo, poderá fazer- • Correcção da acidose metabólica e eventual
-se septostomia ou dilatação com balão in utero ventilação mecânica e/ou suporte inotrópi-
(entre 26 e 34 semanas de idade gestacional). O co.
diagnóstico neonatal precoce destes doentes po- • Perfusão de prostaglandina E1 (dose inicial
derá permitir a descompressão da aurícula es- de 0,5 -1 µg/Kg/min) que, reabrindo o canal
querda por atriosseptostomia. arterial, poderá melhorar temporariamente o
quadro de baixo débito.
Manifestações clínicas • Atriosseptostomia de Rashkind, com balão
por via percutânea em casos com foramen
A SCEH manifesta-se logo nas primeiras horas de ovale restritivo: pode descomprimir a aurícu-
vida com dificuldade respiratória, hipoxémia, aci- la esquerda e melhorar a oxigenação.
dose, vasoconstrição das extremidades, pulsos
débeis e taquicárdia (choque). Pode não existir Existem várias opções de tratamento cirúrgico:
cianose importante, mas os sinais de insuficiência 1. Operação Norwood que se realiza em três
cardíaca como hepatomegália edema pulmonar e estádios:
ritmo de galope podem estar presentes. Na aus- • Primeiro estádio: Efectua-se no período neo-
cultação cardíaca, o segundo ruído é único e tem natal. Consiste em: a) divisão do tronco da
intensidade aumentada; habitualmente não exis- artéria pulmonar, com encerramento do topo
tem sopros. distal com um remendo e laqueação do canal
1004 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

arterial; b) criação de uma anastomose A escolha de qualquer das duas opções cirúr-
sistémico-pulmonar (shunt). c) conexão do gicas, implica taxas de sobrevivência aos cinco
topo proximal da pulmonar à aorta ascen- anos inferiores a 50%. A escolha é controversa e
dente hipoplásica e arco aórtico com um baseia-se na experiência dos diferentes centros.
homoenxerto pulmonar ou aórtico; d) exci- No entanto, a grande dificuldade no aparecimen-
são do septo interauricular de modo a per- to de dadores em tempo útil, tem levado a maio-
mitir uma mistura adequada. ria dos centros a optar pela cirurgia de Norwood.
A taxa de mortalidade imediata nos me- A atitude de prestar apenas cuidados de
lhores centros é ~ 35% e, aos 12 meses, após suporte, sem intervenção cirúrgica, tem vindo a
a cirurgia é ~ 45%, ocorrendo a maioria das ter cada vez menos adeptos.
mortes nos primeiros seis meses após a cirur-
gia. BIBLIOGRAFIA
• Segundo estádio: Consiste na realização de Allen HD, et al (eds). Moss and Adams, Heart Disease in
uma anastomose entre a veia cava superior e o Infants, Children and Adolescents including the Fetus and
ramo direito da artéria pulmonar (operação de Young Adult. Philadelphia: Williams & Wilkins, 2001
Glenn bidireccional) aos seis meses de idade, Anderson RH, Baker EJ Macartney FJ, Rigby ML, Shinebourne
com o objectivo de retirar a sobrecarga de EA, Tynan M (eds). Paediatric Cardiology. London:
volume ao ventrículo direito. A taxa de mor- Churchil Livingstone, 2002
talidade deste procedimento é cerca de 5%. Boucek RJJr, Chrisant MR. Cardiac transplantation for
• Terceiro estádio: Consiste na realização de hypoplastic left heart syndrome. Cardiol Young 2004; 14
uma anastomose entre a veia cava inferior e (Supl 1): 83-87
a artéria pulmonar, completando-se deste Bove EL, Ohye RG, Devaney EJ. Hypoplastic left heart syn-
modo a conexão bicavopulmonar (cirurgia drome: conventional surgical management. Semin Thorac
de Fontan)*. Esta cirurgia realiza-se em geral Cardiovasc Surg Pediatr Card Surg Annu 2004; 7: 3-10
por volta dos 1,5 – 2 anos de idade e a mor- Connor JA, Arons RR, Figueroa M, Gebbie KM. Clinical out-
talidade operatória é cerca de 15 a 20%. comes and secondary diagnoses for infants born with
Deste modo, a taxa de sobrevivência após a hypoplastic left heart syndrome. Pediatrics 2004; 114: 160-
cirurgia de Fontan é cerca de 50% aos quatro 165
anos. Konn AA, Ackerson L, Lo B. How pediatricians counsel par-
2. Transplante cardíaco – A sobrevivência após ents when no “best-choice” management exists: lessons to
transplantação cardíaca tem melhorado graças a be learned from hypoplastic left heart syndrome. Arch
evolução das medidas de suporte pré e pós-opera- Pediatr Adolesc Med 2004; 158: 436-441
tório, melhor compreensão do sistema imunitário Marshall AC, van der Velde ME, Tworetzky W, Gomez CA,
e novas opções de imunossupressores. Os resulta- Wilkins-Haug L, Benson CB, Jennings RW, Lock JE.
dos divulgados pela Sociedade Internacional de Creation of an atrial septal defect in utero for fetuses with
Transplante Cardíaco e Pulmonar mostram que os hypoplastic left heart syndrome and intact or highly restric-
receptores com menos de um ano de idade, que tive atrial septum. Circulation 2004; 110: 253-258
sobrevivam um ano após a transplantação, têm McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
uma taxa de sobrevivência superior a 95% aos Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010
quatro anos. As crianças submetidas à terapêutica Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
cirúrgica convencional, podem, nalguns casos, vir AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
a necessitar de transplante cardíaco por insufi- Medical, 2011
ciência cardíaca refractária à terapêutica. Theilen U, Shekerdemian L. The intensive care of infants with
hypoplastic left heart syndrome. Arch Dis Fetal Neonatal
Ed 2005; 90: F97-F102
Vlahos AP, Lock JE, McElhinney DB, van der Velde ME.
*Tal significa que se completou a anastomose entre as duas veias cavas Hypoplastic left heart syndrome with intact or highly
e a árvore pulmonar (veia cava superior e ramo direito da artéria pul-
monar no 2º estádio, e veia cava inferior e ramo direito da artéria pul-
restrictive atrial septum. Outcome after neonatal trans-
monar no 3º estádio). catheter atrial septostomy. Circulation 2004; 109: 2326-2330
CAPÍTULO 209 Estenose pulmonar 1005

Manifestações clínicas

209 A estenose pulmonar classifica-se de acordo com a


gravidade do obstáculo. Esta gravidade é estima-
da em termos de gradiente de pressão sistólica
entre o ventrículo direito e artéria pulmonar, e de
ESTENOSE PULMONAR relação entre a pressões sistólicas dos ventrículos
direito e esquerdo (pressão sistémica). Não existe
Anabela Paixão, Marisa Peres e Sashicanta Kaku unanimidade entre os autores quanto aos valores
limite das pressões e dos gradientes para quan-
tificar a gravidade. No Serviço de Cardiologia
Pediátrica do Hospital de Santa Marta – Lisboa,
Definição considera-se que a estenose é ligeira quando o
gradiente de pressão transvalvular pulmonar é
Entende-se por estenose pulmonar qualquer igual ou inferior a 30 mm Hg, e a pressão no ven-
obstrução à saída do ventrículo direito. Pode ocor- trículo direito é igual ou inferior a metade da
rer a vários níveis: valvular, subvalvular e pressão sistémica.
supravalvular. A estenose pulmonar é moderada quando o
Neste capítulo é abordada apenas a estenose gradiente transvalvular se situa entre 30 mm Hg e
pulmonar isolada, ou seja, estenose pulmonar 50 mm Hg, ou a pressão no ventrículo direito é
com septo interventricular intacto. superior a metade da pressão sistémica.
Os dois tipos anatómicos mais frequentes são: A estenose é grave quando o gradiente trans-
a) válvula pulmonar em cúpula (dome) que corres- valvular é superior a 50 mm Hg, ou a pressão do
ponde a 42% dos casos e apresenta fusão das ventrículo direito é igual ou superior à pressão
comissuras; b) válvula pulmonar displásica, pre- sistémica. Os doentes estão geralmente assinto-
sente em 19% dos casos, caracterizada por fo- máticos e a curva de crescimento é normal. Aus-
lhetos espessados e redundantes, sem fusão das culta-se sopro de expulsão (em crescendo-decres-
comissuras. Neste caso, o obstáculo é produzido cendo), audível sobre o bordo esquerdo do ester-
essencialmente pelo excesso de tecido valvular no, com irradiação para o lado direito do pescoço,
associado a uma reduzida dimensão do anel. de duração variável, sendo o pico de intensidade
tanto mais tardio quanto mais grave for a este-
Fisiopatologia nose. O sopro é antecedido por um estalido proto-
sistólico de abertura da válvula pulmonar mais
A principal consequência da estenose pulmonar audível no segundo ou terceiro espaço intercostal
é a elevação da pressão ventricular direita. Esta esquerdo; a sua intensidade varia com a respi-
elevação da pressão é proporcional à gravidade ração, aumentando na expiração. O primeiro ruí-
da estenose e destina-se a manter o débito cardía- do é normal e o segundo ruído tem desdobramen-
co. O aumento da pressão provoca hipertrofia to largo, mas variável com a respiração.
ventricular direita, também proporcional à gravi- Na estenose valvular muito grave o estalido é
dade do obstáculo. Quando é excedida a capaci- inaudível e o componente aórtico do segundo
dade de o ventrículo direito gerar a pressão ruído poderá estar englobado no sopro. Este gru-
necessária para ultrapassar o obstáculo, surge po de doentes, particularmente no período neona-
insuficiência ventricular direita, e a hipertrofia tal, pode apresentar-se com cianose devido a shunt
dá lugar à dilatação. Trata-se duma situação direito-esquerdo através do foramen ovale patente.
extrema, observada em dois grupos de doentes: Nos casos de válvula pulmonar displásica, a aus-
os recém-nascidos que têm uma reserva cardíaca cultação cardíaca é atípica, não se ouvindo estali-
muito limitada; e, mais raramente, nos casos de do de abertura, independentemente da gravidade
estenose pulmonar grave diagnosticada tardia- do obstáculo.
mente. Na estenose pulmonar subvalvular ou infun-
1006 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

dibular também não se ouve estalido de abertura, rada, as dimensões da silhueta cardíaca e a vascu-
há diminuição da intensidade do componente larização pulmonar são normais. Nos casos
pulmonar do segundo ruído e o sopro de expulsão graves, como o da estenose pulmonar crítica do
tem duração inversamente proporcional à gravi- recém-nascido, poder-se-á observar cardiome-
dade do obstáculo. gália por dilatação da aurícula direita e redução
A estenose supravalvular e a estenose dos ra- da vascularização pulmonar, tendo em conta o
mos da artéria pulmonar são raras e ocorrem asso- shunt direito-esquerdo através do foramen ovale
ciadas a síndromas como de rubéola congénita, de patente.
Noonan, Williams, Alagille, e a cardiopatias con-
génitas complexas. Nestes casos o sopro de expul- Ecocardiografia
são irradia amplamente, sendo audível também A ecocardiografia bidimensional permite a visua-
na face posterior do tórax. lização das anomalias morfológicas da válvula
pulmonar, a dilatação pós-estenótica, a hipertrofia
Exames complementares ventricular direita e outros defeitos cardíacos
eventualmente associados. Com eco-Doppler esti-
Electrocardiograma ma-se o gradiente transvalvular pulmonar que se
O electrocardiograma (ECG) é bastante confiável correlaciona bastante bem com a medição directa
para estimar a gravidade do obstáculo pulmonar. obtida por cateterismo cardíaco, o que permite
Nas estenoses ligeiras, o ECG é normal ou apre- quantificar a gravidade do obstáculo.
senta apenas ligeiro desvio direito do eixo do QRS
no plano frontal. A amplitude das ondas R nas Cateterismo cardíaco
derivações precordiais direitas é inferior a 15mm. Está indicado apenas nos doentes que vão ser sub-
Na estenose pulmonar moderada há sinais de metidos a intervenção terapêutica. Permite deter-
hipertrofia ventricular direita: desvio direito do minar a pressão no ventrículo direito (e compará-
eixo do QRS e inversão da relação R/S em V1, -la com a pressão sistémica) e o gradiente através
onde a amplitude de R é, em regra, inferior a 20 do obstáculo. A cineangiocardiografia evidencia a
mm, e a relação R/S igual ou superior a 4/1. A localização do obstáculo e a sua gravidade, de
onda T pode ser positiva em V1. forma a orientar a valvuloplastia.
Na estenose pulmonar grave observam-se
sinais de hipertrofia ventricular direita acentuada, Tratamento
com desvio direito do eixo de QRS (superior a
+150º) e padrão “qR” ou “Rs” nas derivações pre- Pela história natural, sabe-se que o obstáculo se
cordiais direitas ou onda “R pura”, de amplitude agrava com o tempo: em 4% dos doentes com gra-
superior a 20 mm. A relação R/S em V1 está dientes transvalvulares inferiores a 25 mm Hg;
invertida. Nos casos mais graves, a onda P tem em 21% dos que têm gradientes entre 25 e 50 mm
uma amplitude superior a 2,5 mm, sugestiva de Hg; e em 80% dos que têm gradientes entre 50 e
dilatação da aurícula direita, podendo surgir 80 mm Hg. A esperança média de vida dos
alterações de ST-T de isquémia, por sobrecarga de doentes com estenose pulmonar após tratamento
pressão. é sobreponível à da população geral. O tratamen-
to de eleição é a valvuloplastia pulmonar por via
Radiografia do tórax percutânea que consiste na dilatação da válvula
A procidência do arco pulmonar na silhueta com um cateter de balão apropriado. É um pro-
cardíaca, correspondente à dilatação pós-estenóti- cedimento eficaz e seguro, particularmente nos
ca do tronco da artéria pulmonar e da porção casos de válvulas pulmonares não displásicas. A
proximal do ramo esquerdo, está presente em 90% angioplastia percutânea das artérias pulmonares é
dos casos, mas não tem relação com a gravidade igualmente o tratamento de primeira escolha para
da estenose. A sua existência é rara nos recém- a estenose pulmonar supravalvular. Actualmente,
nascidos e nos doentes com válvula pulmonar dis- a cirurgia cardíaca está limitada aos casos de
plásica. Nos casos com estenose ligeira ou mode- insucesso das plastias percutâneas e à estenose
CAPÍTULO 210 Tetralogia de Fallot 1007

210
pulmonar subvalvular. Após tratamento bem
sucedido, os doentes podem ter um estilo de vida
sem restrições, incluindo actividade desportiva.
Todos os doentes têm indicação para profilaxia
da endocardite bacteriana.

BIBLIOGRAFIA TETRALOGIA DE FALLOT


Adams FH, Emmanouilides GC, Riemenschneider TA (eds).
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Garson AJr, Bricker JT, Fisher DJ, Neish SR (eds). The Science As principais anomalias que definem a tetralogia de
and Practice of Pediatric Cardiology. Baltimore: Williams & Fallot são: obstáculo da câmara de saída do ven-
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Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson infundibular) e comunicação interventricular (gran-
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, de, localizada na porção perimembranosa subaórti-
2011 ca do septo). Classicamente descrevem-se mais duas
Lima M, Kaku S, Antunes M, Cravino J, Oliveira V, Lima R, alterações – hipertrofia do ventrículo direito
Macedo M, Sampayo F. Estenose valvular pulmonar em (secundária ao obstáculo direito) e “cavalgamento
idades pediátricas. Dez anos de experiência. Rev Port aorto-septal” de grau variável (relacionado com o
Pediat 1980; 11: 640-656 grau de desvio anterior do septo infundibular).
O obstáculo da câmara de saída do ventrículo
direito é infundibular em 45% dos casos, valvular
em 10%, infundibular e valvular em 30%. Em 15%
dos casos há atrésia da válvula pulmonar, em 25% o
arco aórtico é direito, e em 5% há alterações das
artérias coronárias que condicionam a abordagem
cirúrgica. O tronco e os ramos da artéria pulmonar
são, na maioria dos casos, hipoplásicos. Em alguns
casos, um dos ramos não tem continuidade com o
tronco pulmonar, sendo irrigado pelo canal arterial
e/ou por colaterais aorto-pulmonares. Podem coex-
istir outras anomalias: comunicação interauricular,
defeitos do septo aurículo-ventricular e anomalias
de conexão venosa.
A tetralogia de Fallot é a cardiopatia congéni-
ta cianótica mais frequente após o primeiro ano
de vida, pela maior sobrevivência observada com-
parativamente às cardiopatias mais graves.

Etiopatogénese
e manifestações clínicas

A gravidade do obstáculo da câmara de saída do


ventrículo direito, que determina a direcção e
magnitude do fluxo sanguíneo através da comu-
1008 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

nicação interventricular, condiciona o quadro como nas crianças acianóticas. Constituem uma
clínico. Quando o obstáculo é ligeiro, predomina o emergência e exigem internamento hospitalar para
shunt esquerdo-direito, pelo que não há cianose. tratamento imediato. Alguns autores atribuem as
Nos obstáculos moderados, a resistência à ejecção crises à diminuição do fluxo pulmonar por espasmo
do ventrículo direito é semelhante à resistência da região infundibular. Outros admitem vários
vascular sistémica, pelo que o shunt é bidirec- mecanismos que, actuando isolados ou associados,
cional e não há cianose em repouso. Com o exercí- provocam polipneia e hiperventilação com conse-
cio, diminui a resistência vascular sistémica e pre- quente aumento das resistências vasculares pul-
domina o shunt direito-esquerdo, com a conse- monares e do shunt direito-esquerdo a nível ventri-
quente cianose. Quando o obstáculo é grave o cular. A diminuição da pressão de oxigénio (PO2)
débito pulmonar está muito reduzido e há shunt arterial, a acidose e hipercápnia resultantes, além de
direito-esquerdo, com cianose grave. desencadearem as manifestações neurológicas,
A forma com obstáculo ligeiro da câmara de facilitam o metabolismo anaeróbio e consequente
saída do ventrículo direito manifesta-se entre as agravamento da acidémia. Esta, actuando sobre o
quatro e as seis semanas de vida por taquipneia, centro respiratório, agrava a hiperpneia com conse-
recusa alimentar e má progressão ponderal, sem quente aumento da resistência vascular pulmonar e
cianose; as características são então semelhantes perpetuação do ciclo vicioso.
às de uma grande comunicação interventricular. A posição de “cócoras” (ou equivalente) é adop-
Nos casos com obstáculo moderado, os recém- tada por crianças mais velhas com a finalidade de
nascidos estão acianóticos e a doença é diagnosti- aliviar a cianose, dispneia ou lipotímia induzidas
cada no decurso da investigação de sopro sistólico pelo esforço. Admite-se que a angulação e com-
detectado nas primeiras semanas de vida. A pressão das artérias femorais provocadas por esta
cianose surge entre seis e dezoito meses de idade, manobra excluem da circulação o sangue insatu-
à medida que aumenta o obstáculo. Inicialmente rado dos membros inferiores e aumenta a resistên-
intermitente, manifestando-se apenas durante o cia vascular periférica. Deste modo, aumenta o
choro, mamadas ou outra actividade física, torna- fluxo pulmonar, diminui a hipoxémia e os doentes
se persistente e associada a cansaço e/ou lipo- sentem-se mais confortáveis.
tímia. Os recém-nascidos com obstáculo grave Dependendo da gravidade da doença pode
apresentam, logo nos primeiros dias de vida, haver cianose, atraso da progressão estaturo-pon-
cianose que se agrava com o encerramento do deral, hipocratismo digital ou taquipneia. A cianose
canal arterial. pode ser evidente apenas nas mucosas, ou estar
As crises de hipóxia e a posição de cócoras ausente (“mascarada”) pela existência de anemia. O
(squatting) são manifestações importantes da hipocratismo digital que consiste no alargamento e
gravidade da doença. aumento de espessura das extremidades dos dedos
As crises de hipóxia ou crises de cianose, mais (dedos em “baqueta de tambor”) acompanhado do
frequentes entre seis meses e dois anos de idade, aumento da convexidade das unhas (unhas em
manifestam-se por episódios de cianose intensa “vidro de relógio”) só é evidente quando há
com palidez, hiperpneia, irritabilidade e choro pro- hipoxémia significativa e mantida, sendo raro o seu
longado. Acompanham-se de hipotonia, sonolência aparecimento antes dos seis meses de idade.
ou perda da consciência e podem provocar convul- Na auscultação cardíaca o 1º ruído é normal, o
sões, acidente vascular cerebral ou mesmo morte. 2º ruído é geralmente único. Pode auscultar-se
Durante as crises diminuem a intensidade e estalido de expulsão aórtica (por dilatação da
duração do sopro de expulsão pré-existente (que aorta ascendente). Geralmente ausculta-se sopro
pode mesmo desaparecer), reaparecendo quando a de expulsão no 3º espaço intercostal junto do bor-
criança recupera. Em geral, são de curta duração do esquerdo do esterno. O sopro tem origem na
(menos de 15 minutos), ocorrem de manhã ao acor- zona de estenose infundibular e a sua intensidade
dar e podem ser precipitadas pelo esforço, ambiente e duração são inversamente proporcionais ao
quente, ou podem não ter factor desencadeante. grau de estenose. Nas formas ligeiras o sopro é
Surgem tanto nas crianças com cianose persistente intenso, nas estenoses moderadas é em crescendo-
CAPÍTULO 210 Tetralogia de Fallot 1009

decrescendo e, nas formas graves, é menos inten-


so e curto. Os sopros contínuos são audíveis na
presença de persistência do canal arterial ou cola-
terais sistémico-pulmonares.

Evolução

A evolução habitual é de agravamento do obstá-


culo de saída do ventrículo direito. Nas crianças
não tratadas a cianose aumenta e as crises de
hipoxémia tornam-se mais frequentes, mais gra-
FIG. 1
ves e mais prolongadas, podendo ser fatais. A
hipóxia crónica estimula a medula óssea a aumen- Radiografia de tórax póstero-anterior: silhueta cardíaca com
tar a produção de eritrócitos (através da libertação ponta levantada, compatível com hipertrofia ventricular
de eritropoietina renal). A policitémia compen- direita, reentrância do arco pulmonar e diminuição da
circulação pulmonar. (Tetralogia de Fallot)
satória é útil até que o hematócrito atinja valores
perto de 70%. A partir deste valor, o aumento da
viscosidade do sangue e a diminuição da capaci-
dade de extracção de O2 aumentam o risco de
tromboses arteriais (principalmente pulmonares e
cerebrais). Por outro lado, as alterações da coagu-
lação secundárias à hipóxia aumentam o risco de
acidente vascular cerebral e de abcesso cerebral,
sobretudo se associadas a anemia ferropénica.

Exames complementares
FIG. 2
Radiografia do tórax
A silhueta cardíaca é de dimensões normais, há Electrocardiografia: ritmo sinusal, eixo QRS no quadrante
concavidade do arco pulmonar, ponta levantada inferior direito e sinais de hipertrofia ventricular direita com
(coração em forma de bota) e diminuição da vas- transição brusca dos complexos ventriculares em V1-V2.
cularização pulmonar (Figura 1). Nas crianças
acianóticas a radiografia pode ser normal. Cateterismo cardíaco
O cateterismo cardíaco permite confirmar os acha-
Electrocardiograma dos ecográficos; é sobretudo útil para uma caracteri-
Os achados mais comuns são o desvio direito do zação pré-operatória detalhada da árvore pulmonar
eixo de QRS (entre +90º e +150º) e hipertrofia ven- arterial (Figura 4), das anomalias das artérias coro-
tricular direita, com ondas R dominantes em V4R nárias e das colaterais sistémico-pulmonares. Nos
e V1, transição brusca de V4R para V1 ou de V1 casos com estenose valvular pulmonar associada,
para V2 e ondas S dominantes em V6. (Figura 2) está indicada dilatação percutânea com a finalidade
de evitar a realização de anastomose sistémico-pul-
Ecocardiograma monar cirúrgica e promover o crescimento dos
O ecocardiograma bidimensional permite avaliar ramos da artéria pulmonar.
as características anatómicas (comunicação inter-
ventricular, tracto de saída do ventrículo direito, Tratamento
válvula pulmonar, tronco e ramos da artéria pul-
monar) e identificar lesões associadas. O estudo As crises de hipóxia devem ser encaradas, como
com Doppler quantifica o gradiente de pressão na foi referido, como emergências. A criança deve ser
zona do obstáculo pulmonar. (Figura 3) colocada na posição genupeitoral com a cabeça
1010 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

kg por via subcutânea, intramuscular ou endove-


nosa) é eficaz, provavelmente pela acção inotrópi-
ca negativa sobre o miocárdio infundibular e por
quebrar o ciclo de hipóxia e agitação. Deve ser
feita correcção da acidose metabólica com bicar-
bonato de sódio (1 mEq/Kg). A administração de
propranolol (0,01 mg/Kg por via intramuscular
ou endovenosa) deve ser efectuada em unidades
de cuidados intensivos. O propranolol por via oral
(0,5-1,5 mg/Kg de 6/6 h) pode ser utilizado para
profilaxia de novas crises. Os valores hematológi-
cos devem ser avaliados periodicamente e a ane-
mia ferropénica tratada. Valores normais de he-
moglobina ou hematócrito numa criança cianótica
indicam anemia. A policitémia e as crises de hipóxia
FIG. 3
são indicações para tratamento cirúrgico. Todos os
Ecocardiografia com incidência parasternal eixo longo: doentes (operados ou não operados) devem ser
comunicação interventricular grande com com cavalgamento submetidos a profilaxia da endocardite infec-
da aorta sobre o septo interventricular de 40% AE: aurícula ciosa.
esquerda; VE: ventrículo esquerdo; VD: ventrículo direito; AO:
A cirurgia paliativa tem como objectivo
aorta; CIV: comunicação interventricular.
aumentar o fluxo pulmonar e está indicada nos
casos graves de tetralogia de Fallot, com hipopla-
sia dos ramos da artéria pulmonar; constitui uma
emergência nos lactentes com crises de hipóxia
não controláveis com terapêutica médica. Utiliza-
se a anastomose de Blalock-Taussig, modificada,
entre a artéria subclávia e os ramos da artéria pul-
monar com interposição de um tubo de Gore-Tex.
A cirurgia de correcção total consiste no encer-
ramento da comunicação interventricular com
remendo de Dacron e alargamento da câmara de
saída do ventrículo direito com ressecção de ban-
das musculares; e, se necessário, alargamento do
anel pulmonar com colocação de remendo de
FIG. 4
homoenxerto com válvula pulmonar mono cusp*.
Ventriculografia direita em plano hepato-clavicular “sitting As indicações para esta cirurgia variam com a
up”: visualização simultânea da aorta e da artéria pulmonar, experiência dos centros, mas a tendência actual é
obstáculo do tracto de saída do ventrículo direito ser realizada o mais cedo possível dado que a
infundibular e valvular, com boa anatomia dos ramos da
mortalidade cirúrgica é baixa.
artéria pulmonar. (Tetralogia de Fallot)

Prognóstico
mais baixa que os membros inferiores, mantida
em ambiente pouco aquecido. Estas medidas têm As lesões residuais (obstrução da câmara de saída
como objectivo aumentar a resistência vascular do ventrículo direito e/ou regurgitação pul-
sistémica, o que diminui o shunt direito-esquerdo. monar) são de grau ligeiro e bem toleradas. Numa
Nos doentes com poucos dias de vida pode tentar-
se a reabertura do canal arterial com adminis-
*Válvula mono cusp significa qua a substituição da válvula pulmonar do
tração de prostagladina E1 ou E2. Deve ser admi- doente é feita utilizando um enxerto valvular em que existe uma cúspi-
nistrado oxigénio. O sulfato de morfina (0,1 mg/ de valvular com a finalidade de evitar insuficiência valvular.
CAPÍTULO 211 Transposição completa das grandes artérias 1011

211
pequena percentagem de doentes poderá haver
necessidade de reoperação para corrigir comuni-
cações interventriculares residuais ou de obstácu-
lo pulmonar evolutivo. As alterações do ritmo
cardíaco são frequentes após a cirurgia e, na maio-
ria das vezes, correspondem a bloqueio de ramo
direito. No entanto, embora com baixa incidência, TRANSPOSIÇÃO COMPLETA
há risco de morte súbita por bloqueio aurículo-
-ventricular completo ou por arritmia ventricular. DAS GRANDES ARTÉRIAS
A maioria dos doentes fica assintomática, sem
necessidade de terapêutica e com muito boa tole- Sashicanta Kaku e Miguel Pacheco
rância ao exercício. Na ausência de lesões resi-
duais significativas a gravidez é bem tolerada.

BIBLIOGRAFIA Definição e importância do problema


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Surg Pediatr Card Surg Annu 2005; 8: 145-156 origem e divisão das artérias coronárias são fre-
quentes, sendo o seu conhecimento importante para
a correcção cirúrgica. Cerca de metade dos doentes
com TGA não têm qualquer outra anomalia asso-
ciada excepto a manutenção da permeabilidade do
foramen ovale e/ou do canal arterial. Em cerca de
25% dos casos existe comunicação interventricular
(CIV). Raramente existem outras anomalias como
coarctação da aorta ou interrupção do arco aórtico.
Nos casos com CIV podem existir obstáculos na
câmara de saída do ventrículo esquerdo.
1012 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Manifestações clínicas

Existem dois modos de apresentação predomi-


nantes: 1) cianose acentuada precoce nos casos
com septo interventricular intacto ou quando
existe CIV associada a estenose pulmonar impor-
tante; 2) insuficiência cardíaca nos casos com
shunts importantes, sendo que a cianose pode ser
muito ligeira e detectar-se só no fim do primeiro
mês de vida.
A auscultação cardíaca evidencia aumento da
intensidade do primeiro ruído, e o segundo ruído
parece único. Podem auscultar-se sopros corres-
pondentes às lesões associadas.

FIG. 1 Exames complementares


Circulação na transposição completa das grandes artérias
(adaptado de Neches, 1998). AD– aurícula direita; VD– Gasometria
ventrículo direito; VE– ventrículo esquerdo; AP- artéria A PO2 arterial raramente excede 40 a 50 mmHg. A
pulmonar; 1- comunicação interauricular; 2– comunicação administração de oxigénio não provoca alteração
interventricular; 3- canal arterial.
da saturação da hemoglobina em O2, o que per-
mite o diagnóstico diferencial com doenças pul-
Fisiopatologia monares.

Na TGA as circulações sistémica e pulmonar estão Radiografia do tórax


em paralelo, isto é, o retorno venoso sistémico é Na radiografia do tórax em projecção póstero-
dirigido para a circulação arterial sistémica e o anterior o índice cardiotorácico e a vascularização
retorno venoso pulmonar é novamente dirigido pulmonar são normais; a largura do mediastino
para a circulação arterial pulmonar. A sobrevivên- superior está diminuída (devido à posição relativa
cia depende da existência de comunicações entre da aorta e da artéria pulmonar, e à redução das
as circulações sistémica e pulmonar (canal arterial, dimensões do timo) apresentando a imagem
foramen ovale e septos interauricular ou interven- cardíaca a forma de “ovo deitado”.
tricular).
A presença de CIV grande melhora a cianose, Electrocardiograma
mas agrava a insuficiência cardíaca congestiva à As perturbações da condução são frequentes e
medida que, nas primeiras semanas de vida, as re- existem sinais de hipertrofia ventricular direita.
sistências vasculares pulmonares diminuem. Também pode ocorrer hipertrofia ventricular
A persistência do canal arterial ou a associação esquerda se houver obstrução da câmara de saída
de coarctação da aorta podem também ser causa do ventrículo esquerdo
de insuficiência cardíaca. Como consequência de
CIV grande poderá resultar doença vascular pul- Ecocardiograma
monar. Enquanto 20% de crianças com TGA e O ecocardiograma permite estabelecer o diagnós-
septo interventricular íntegro têm hipertensão tico e planear a terapêutica.
pulmonar fixa aos 12 meses de idade, esta per-
centagem sobe para 80% nos casos com CIV asso- Cateterismo cardíaco
ciada. Por outro lado, se existir estenose pulmonar Permite-nos confirmar a anatomia intracadíaca e
(subvalvular ou valvular) grave, o fluxo pulmonar das coronárias, determinar as pressões e resistências
diminui, com agravamento da cianose e acidose vasculares pulmonares, e realizar a atriosseptosto-
metabólica. mia com balão (atriosseptostomia de Rashkind) que
CAPÍTULO 211 Transposição completa das grandes artérias 1013

pode ser necessária para a sobrevivência da criança, semanas de vida enquanto o ventrículo esquerdo
nos primeiros dias de vida. (ver adiante) mantém a capacidade de adaptação a pressões
sistémicas. Nos casos de apresentação tardia
Tratamento (idade superior a um mês), pode ser necessário
fazer banding prévio da artéria pulmonar de modo
Tratamento de suporte a provocar a hipertrofia do ventrículo esquerdo, o
Consiste na correcção da acidose metabólica e da que poderá gerar pressões sistémicas após a cor-
hipoglicemia, administração de oxigénio e de recção anatómica.
prostaglandina E1 com o objectivo de manter a Nos casos com doença vascular pulmonar irre-
permeabilidade do canal arterial. versível, opta-se por fazer a correcção anatómica
mantendo a CIV aberta (ou criando uma CIV “de
Atriosseptostomia por cateter novo”).
Descrita por Rashkind e Miller em 1966, foi o fac- Os problemas detectados no seguimento dos
tor que teve maior influência na sobrevivência das doentes operados de correcção anatómica (oclu-
crianças com TGA. Nesta técnica, a passagem são/estenose das artérias coronárias, estenose
brusca, através do septo interauricular, de um supravalvular e dos ramos das artérias pul-
cateter munido de um balão com soro, permite monares, e disfunção da válvula pulmonar em
criar uma comunicação interauricular. A manobra posição aórtica) têm vindo a diminuir de incidên-
é controlada por ecocardiograma bidimensional, cia com o aperfeiçoamento da técnica cirúrgica.
devendo ser realizada nos primeiros dias de vida,
pois raramente tem êxito após o terceiro mês. Prognóstico

Tratamento cirúrgico A mortalidade das crianças não tratadas atingia


1. Correcção “fisiológica” por via intra-auricular. 90% no primeiro ano de vida. Hoje, graças aos
Na operação de Mustard faz-se a remoção do progressos das terapêuticas médica e cirúrgica,
septo interauricular e coloca-se um “remendo” de consegue-se uma sobrevivência de mais de 90%
modo a orientar o fluxo das veias cavas para a até à idade adulta com uma boa qualidade de
válvula mitral e o fluxo das veias pulmonares vida.
para a tricúspide. Na cirurgia de Senning, a região
da aurícula direita, que contém os orifícios das BIBLIOGRAFIA
veias cavas é interiorizada na aurícula esquerda Garson AJr, Bricker JT, Fisher DJ, Neish SR (eds). The Science
(de forma a dirigir o retorno venoso sistémico and Practice of Pediatric Cardiology. Baltimore: Williams &
para a válvula mitral); faz-se também a recons- Wilkins, 1998
trução da parede entre as veias cavas de forma a Kaku S. Circulação coronária na transposição completa das
dirigir o retorno venoso pulmonar para a válvula grandes artérias – avaliação anatómica e funcional antes e
tricúspide. A mortalidade cirúrgica é inferior a depois da operação de Jatene. Dissertação de Doutora-
5%, mas o seguimento a longo prazo revelou mento. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1998
complicações importantes (alterações do ritmo Kaku S, Pacheco M. Transposição completa das grandes
cardíaco, obstrução venosa sistémica ou pulmonar artérias. In Soares-Costa JTS e Kaku S (eds). Cardiopatias
e disfunção do ventrículo direito) que levaram a Congénitas. Lisboa: Permanyer Portugal, 2005; 91-96
que estas operações sejam pouco utilizadas actual- Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
mente. Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
2. Correcção anatómica (operação de Jatene ou 2011
switch arterial). Consiste na secção da aorta e da Losay J, Hougen T J. Treatment of transposition of the great
artéria pulmonar acima do orifício valvular, sutu- arteries. Curr Opin Cardiology 1997; 12: 84-90
ra da aorta com o orifício valvular da pulmonar, e Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
da pulmonar com o orifício valvular da aorta, e AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
também transferência das artérias coronárias para Medical, 2011
a nova aorta. Deve ser realizada nas primeiras
1014 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

212
actualmente entre 3-5/100.000 no Reino Unido e
6-11/100.000 nos EUA e Canadá. É provável que
tal aumento se relacione com uma maior possi-
bilidade diagnóstica decorrente do melhor conhe-
cimento da doença, parecendo existir predis-
posição genética (nomeadamente em relação com
DOENÇA DE KAWASAKI a existência de genes determinantes dos seguintes
tipos no sistema HLA: B5, B44, Bw51, DR3 e
E DOENÇA CARDÍACA – DRB3*0301). A recorrência é rara. Estudos genéti-
cos identificaram casos com elevada susceptibili-
ABORDAGEM dade de receptores de citocinas relacionados com
genes CCL3 e CCL3L1, e portadores de variantes
MULTIDISCIPLINAR de certos genes tais como o CCR5.

Anabela Paixão e Sashicanta Kaku (Cardiologia) Etiopatogénese


Júlia Galhardo e Ana Leça (Pediatria Médica)
A etiopatogénese da DK é ainda desconhecida.
Todavia, admite-se a hipótese de comparticipação
muito provável de germes microbianos tendo em
Definição e importância do problema conta, nomeadamente: a semelhança das manifes-
tações clínicas com certas doenças infecciosas
A doença de Kawasaki (DK), também denominada como a escarlatina e a síndroma de choque tóxico,
síndroma linfomucocutânea e descrita pela a sazonalidade em muitas áreas geográficas, a
primeira vez no Japão por Tomikasu Kawasaki, em ocorrência de surtos, o risco aumentado de doen-
1967, é uma vasculite necrosante sistémica aguda ça após contacto com casos, a maior frequência
afectando (predominantemente vasos de médio entre os 6 meses e os 5 anos, e a eficácia terapêuti-
calibre), arteríolas, vénulas e capilares, e com ca da imunoglobulina. Contudo, não se conseguiu
predilecção para as artérias coronárias. Constitui a até hoje, o isolamento de qualquer microrganismo
vasculite aguda sistémica mais frequente na cri- responsável por esta entidade nosológica.
ança e a principal causa de cardiopatia adquirida Determinados estudos identificaram em casos
nos países desenvolvidos. (Capítulos 225) fatais antigénio associado à DK em corpos de
inclusão de células epiteliais ciliadas brônquicas,
Aspectos epidemiológicos admitindo-se: 1) que tais corpos de inclusão corre-
spondem a agrgados de proteínas víricas; 2) e que
Na grande maioria dos casos (cerca de 80%) a porta de entrada do “possível agente causal”
ocorre abaixo dos 5 anos de idade, sendo rara seja a via respiratória.
antes dos 6 meses e muito rara depois dos 5 anos. Noutros estudos é sugerido que as profundas ano-
A explicação provável para esta distribuição malias imunorreguladoras encontradas na DK se
assenta na imunidade passiva antes dos 6 meses devem a toxinas bacterianas (e/ou víricas) protei-
(anticorpos maternos transplacentares) e na imu- cas, capazes de se ligarem simultaneamente aos
nidade adquirida depois dos 5 anos; contudo há receptores das células T e às moléculas do MHC*
casos descritos no recém-nascido.
O sexo masculino é mais frequentemente
afectado na proporção aproximada de 2/1. * A propósito do chamado CMH (ou MHC) – sigla em português de
De acordo com estudos epidemiológicos Complexo Major de Histocompatibilidade – recorda-se que existe um locus
no braço curto do cromossoma 6 compreendendo múltiplos genes que
parece tratar-se duma doença sazonal com “pico” determinam os antigénios (glicoproteínas de superfície) de histocom-
de incidência no Inverno e Primavera. A incidên- patibilidade (HLA ou human leucocyte antigens) de diversas carac-
terísticas ou classes designadas por I, II e III os quais desempenham
cia, máxima na Ásia e, designadamente, no Japão, papel importante nas interacções entre células do sistema imunitário;
(90/100.000) tem vindo a aumentar, situando-se os antigénios de classe II são reconhecidos por células CD4.
CAPÍTULO 212 Doença de Kawasaki e doença cardíaca 1015

de classe II, em zona deslocada ou fora do habi- neoantigénios actuando no endotélio, tornam este
tual sulco peptídico de união. Desta forma, este especialmente susceptível à agressão por anticor-
“desvio”, à margem do “sistema chave-fechadu- pos citotóxicos e por células T activadas; 4) verifi-
ra”, permite que as referidas toxinas actuem de ca-se, então, edema endotelial e do músculo liso
forma inespecífica em zonas mais amplas e em vascular, do que resulta extensão do infiltrado
grande escala, sendo, por isso, designadas por inflamatório às restantes camadas da parede vas-
superantigénios. Tais super – antigénios diferem cular e área perivascular, destruição da lâmina
dos antigénios convencionais em vários aspectos elástica interna (vasculite), assim como infla-
importantes: 1) activação policlonal das células B; mação do miocárdio e do pericárdio; 5) tal vas-
2) estimulação de um número maciço de linfócitos culite aguda generalizada pode evoluir para ecta-
T circulantes capazes de se ligarem a um receptor sia ou mesmo formação de aneurisma, propician-
de superfície celular específico e; 3) produção do obstrução do fluxo sanguíneo e trombose , com
intensiva de citocinas pró-inflamatórias. possibilidade de ulterior proliferação da íntima e
Apenas um número limitado de linfócitos res- de oclusão estenótica.
ponde a um antigénio convencional (tipicamente
<1 célula em cada 10.000 linfócitos). Pelo con- Manifestações clínicas e diagnóstico
trário, os superantigénios podem activar até 20 a
30 % dos linfócitos T circulantes, com subsequente Não existindo exame laboratorial específico para
libertação de quantidades extremamente elevadas esta doença, o seu diagnóstico é baseado em crité-
de citocinas que posteriormente dão origem a rios clínicos, agrupados do seguinte modo:
uma cascata de eventos traduzindo activação imu- • Febre persistente inexplicada durante um
nológica de grau extremo, a qual pode ser tipifi- período mínimo de cinco dias, associada à
cada pela elevação sérica de todas as imunoglo- presença de, pelo menos, quatro dos cinco
bulinas. sinais clínicos seguintes (Quadro 1):
A febre alta e elevação dos reagentes de fase 1. Alterações das extremidades, que evoluem
aguda podem ser secundários ao aumento de IL- com eritema e edema das mãos e dos pés na
1, IL-6 e de TNF-α. O processo adenopático cervi- fase inicial, e posteriormente descamação em
cal pode reflectir a activação marcada das células placas, uma a três semanas após o início do
B e T. quadro febril;
A lesão vascular em geral, assim como a lesão
do endotélio das coronárias pode resultar: 1) da QUADRO 1 – Critérios de diagnóstico
activação de células endoteliais e de moléculas de de doença de Kawasaki (DK)
adesão leucocitárias; 2) da infiltração de células
CD4+ e CD8+ assim como de macrófagos; 3) da Febre inexplicada durante ≥ 5 dias (critério essencial),
resposta pró-inflamatória e pró-trombótica exage- mais 4 das seguintes manifestações:
rada produzida pelo excesso de citocinas; e 4) da 1. Conjuntivite (hiperémia conjuntival bulbar bi-
acção de neoantigénios sobre o referido endotélio lateral, não supurada) ( 80-90%)
coronário. 2. Linfadenomegália cervical anterior, aguda, não
É plausível o seguinte mecanismo fisiopa- supurada, > 1,5 cm (50-70%)
tológico: 1) determinado germe microbiano pro- 3. Exantema polimorfo generalizado, não vesicu-
dutor de superantigénios coloniza as membranas lar, principalmente no tronco (>90%)
mucosas do tracto gastrintestinal de um indivíduo 4. Alterações nos lábios e/ou mucosas (80 - 90%)
geneticamente predisposto; 2) a toxina é absorvi- 5. Alterações das extremidades ou na região
da através da mucosa inflamada, estimulando as perineal (80%).
células mononucleares locais e/ou circulantes a
Nota: Na presença de febre e de alterações cardíacas detectadas pelo
produzir citocinas pró-inflamatórias que, por sua ecocardiograma, são aceites menos de 4 dos 5 critérios descritos.
vez, provocam a febre e as restantes alterações (entre parênteses a percentagem média de aparecimento das
clínicas observadas na DK; 3) em resposta à esti- manifestações clínicas).

mulação induzida por estes mediadores químicos,


1016 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

2. Exantema polimorfo envolvendo o tronco e de 10-12%) – habitualmente em lactentes com idade


as extemidades, com aspecto variável - inferior a seis meses. Nos casos de DK incompleta
urticariforme, morbiliforme ou escarlatini- há febre associada a menos de quatro dos princi-
forme – na primeira semana de doença; pais sinais clínicos pode estabelecer o diagnóstico,
3. Hiperémia conjuntival bilateral, indolor, não desde que se evidenciem anomalias das artérias
exsudativa, afectando predominantemente a coronárias por ecocardiograma ou angiografia. É
conjuntiva bulbar e poupando a região lím- necessário um elevado índice de suspeita para o
bica; diagnóstico destes casos, pois o risco de compli-
4. Alterações dos lábios e da cavidade oral desi- cações cardíacas aumenta com o atraso do início do
gnadamente: lábios vermelhos e fissurados, tratamento. O termo de DK atípica é usado para as
língua em framboesa e hiperémia da mucosa situações preenchendo a totalidade dos critérios
orofaríngea; para o diagnóstico da doença, embora com um
5. Adenomegálias cervicais, mais frequente- dado clínico associado que não surge geralmente
mente unilaterais, duras e dolorosas e, pelo na mesma (por ex. compromisso renal).
menos, um gânglio com diâmetro >1,5 cm. As lesões cardíacas são as mais preocupantes,
(Figura 1) por constituirem o principal factor de risco de
• Outros sinais clínicos, menos frequentes, mortalidade e morbilidade. Na fase aguda, a pan-
são: vómitos, diarreia, artralgia, artrite (30% cardite pode expressar-se através de derrame peri-
dos casos), dor abdominal, hepatite e uretrite, cárdico (detectado por ecocardiografia em 30%
uveíte anterior, iridociclite, hiperémia peri- dos doentes), que regride espontaneamente, ou de
anal, hydrops vesicular por vezes traduzida miocardite que se manifesta por taquicárdia
por massa palpável no hipocôndrio direito, sinusal (excessiva relativamente ao estado febril),
hiperémia da cicatriz de BCG, etc. (Figura 2-D) ritmo de galope e, por vezes, arritmias.
As alterações electrocardiográficas são inespe-
Existem casos incompletos ou atípicos (cerca cíficas (redução da voltagem da onda R, depressão
do segmento ST com aplanamento ou inversão da
1 2 onda T, prolongamento do intervalo PQ e/ou do
intervalo QTcorrigido) .
As anomalias das artérias coronárias afectam
cerca de 15 a 25% dos doentes não tratados. São
detectadas por ecocardiografia e variam, desde
ligeira ectasia difusa ou pequeno aneurisma
único, até aneurismas gigantes, múltiplos,
afectando várias artérias. Quanto maiores forem
os aneurismas, pior será o prognóstico porque
3 4 aumenta o risco de complicações, designada-
mente trombose ou estenose coronária e enfarte
do miocárdio. Ao contrário dos aneurismas
pequenos, que regridem em 50% dos doentes nos
primeiros 18 meses de evolução, os aneurismas
gigantes persistem. (Figura 2 – A, B, C)

Evolução

A doença de Kawasaki típica evolui em três fases


FIG. 1
distintas:
Doença de Kawasaki: 1 – hiperémia conjuntival; 2 – lábios 1. Fase aguda febril (~10 dias): temperatura ele-
vermelhos e fissurados; 3 – língua em framboesa; 4 – vada, irritabilidade, conjuntivite bilateral, exan-
adenomegália cervical. (NIHDE) tema, eritema e edema palmar e plantar, orofarin-
CAPÍTULO 212 Doença de Kawasaki e doença cardíaca 1017

A B C D

FIG. 2
DK – Aspectos imagiológicos de aneurisma da artéria coronária direita (ACD): A – arteriografia; B e C – ecografia.
D – sinal ecográfico de hydrops da vesícula biliar. (ACD – artéria coronária direita; AN – aneurisma)

gite e queilite. Podem ocorrer disfunção hepática e malizam. As únicas lesões que podem persistir
complicações cardíacas (miocardite e pericardite). O nesta fase são os aneurismas das artérias coro-
quadro laboratorial evidencia situação inflamatória nárias. Nos doentes com complicações cardíacas,
aguda, com leucocitose, aumento da velocidade de podem surgir consequências tardias graves como
sedimentação eritrocitária e da proteína C reactiva. rotura de aneurismas coronários. A mortalidade
2. Fase subaguda (~2-4 semanas): persistência global é cerca de 2% na criança não tratada, e de
da irritabilidade, anorexia e conjuntivite. A febre 0,1% na que recebeu tratamento.
tende a desaparecer nesta fase mas, se persistir, Todavia, a morbilidade e a mortalidade secun-
aumenta o risco de complicações cardíacas perma- dárias a complicações cardiovasculares podem ser
nentes. Inicia-se a descamação dos dedos das mãos significativas: nesta perspectiva destaca-se que os
e dos pés (Figura 3), bem como a formação de aneurismas coronários ocorrem em 20 a 25% dos
aneurismas das artérias coronárias. É a fase de casos não tratados, o que contrasta com a taxa de
maior risco de morte súbita. O quadro laboratorial 4% nos tratados. Por consequência, o grau de
evidencia trombocitose crescente que pode atingir compromisso coronário dita a necessidade de
1.000.000/mm3. seguimento a longo prazo, sendo a revasculariza-
3. Fase de convalescença ou crónica (~ 6-12 ção miocárdica uma prioridade nos casos graves.
semanas): todos os sinais da doença desaparecem
e os marcadores laboratoriais de fase aguda nor- Exames complementares

Apesar de não existir um padrão específico de


achados de exames complementares, a conjugação
de determinados dados (laboratoriais, electrocar-
diográficos e imagiológicos ecocardiográficos e
radiológicos torácicos) pode sugerir DK. O
Quadro 2 sintetiza as alterações laboratoriais mais
frequentemente encontradas na DK. A avaliação
do péptido natriurético NT-pro-BNP, cuja ele-
vação traduz permeabilidade vascular aumenta-
da, pode ser um marcador útil para identificar
situações refractárias à administração de IGIV.(ver
FIG. 3
adiante)
Doença de Kawasaki na fase subaguda: descamação Alguns factores podem estar relacionados com
periungueal dos dedos dos pés originando o destacamento maior risco de aparecimento de aneurismas. O
da epiderme, em lâminas, como que “esfolada”. (NIHDE) Quadro 3 é elucidativo.
1018 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 2 – Alterações laboratoriais frequentes na DK

• Anemia normocrómica e normocítica ligeira • Elevação dos triglicéridos e do colesterol-LDL;


• Leucocitose com neutrofilia diminuição do colesterol-HDL
• Trombocitose reactiva • Hiponatrémia
• Elevação dos reagentes de fase aguda (VS, PCR • Piúria estéril
e α1-AT) • LCR: pleiocitose mononuclear, sem alteração da
• Elevação da ALT, AST e GGT glicorráquia ou da proteinorráquia
• Icterícia obstrutiva (hidropisia vesicular) • Resultados negativos de exames de culturas e
• Hipoalbuminémia de serologias para agentes infecciosos

QUADRO 3 – Factores de risco de aparecimento de aneurismas coronários

• Idade < 1 ou > 6 anos • Plaquetas > 1.000.000/mm3


• Sexo masculino • VS ou PCR persistentemente elevadas
• Febre com duração ≥ 14 dias • Natrémia < 135 mEq/L
• Doença com evolução ≥ 30 dias • Alterações no electrocardiograma
• Hematócrito < 35% • Persistência de febre após ciclo de
• Leucócitos >30.000/mm3 imunoglobulina

Diagnóstico diferencial Muitas destas entidades nosológicas podem


ser excluídas clinicamente, uma vez que apenas
A grande dificuldade no diagnóstico de DK reside algumas evidenciam febre que persiste durante
na ausência de achados patognomónicos que a mais de 5 dias.
identifiquem, aliada ao aparecimento sequencial de Nos casos de DK verifica-se, por outro lado,
alterações clínicas e laboratoriais e à possibilidade grande irritabilidade, o que pode ser explicado
de quadro clínico incompleto. Por outro lado, a pela presença de meningite asséptica. Contudo,
descamação periungueal, que constitui a característica esta alteração pode ser observada noutras infec-
mais facilmente reconhecida, surge apenas numa fase em ções, nomeadamente no sarampo. Outro sinal
que as complicações cardíacas já poderão ter ocorrido. clínico é a presença de eritema e endurecimento
Inúmeras situações podem englobar etiopato- no local de inoculação da BCG, provocados pela
génese com pontos comuns e evidenciar, por isso, reacção cruzada entre as proteínas de fase aguda
manifestações clínicas sobreponíveis às da DK, (heat shock proteins) e as células T. O exantema e as
nomeadamente as de tipo infeccioso e autoimune. alterações orais e periféricas observados na escar-
Destacam-se as situações a ponderar quanto a latina são por vezes similares à DK, mas naquela
diagnóstico diferencial: não existe conjuntivite. O exantema da escarlatina
– infecção estreptocócica ou estafilocócica surge habitualmente no 2º-3º dia de doença, tendo
(escarlatina, síndroma do choque tóxico, síndro- início nas regiões inguinal e axilar, com rápida
ma da pele escaldada; (Capítulo 280) extensão ao tronco e membros. A descamação
– sarampo, rubéola, exantema subitum, infecção por ocorre 7 a 10 dias mais tarde. A resposta ao trata-
vírus de Epstein Barr, citomegalovírus, enterovírus, mento com antibiótico adequado é habitualmente
influenza A e B e adenovírus; Mycoplasma pneumoni- rápida.
ae; ricketsioses e leptospirose; A síndroma do choque tóxico associa-se a
– síndroma de Stevens-Johnson, doença do soro; situações com mau estado geral, eritema das mãos
artrite crónica juvenil, poliarterite nodosa, doença e pés, exantema difuso e inespecífico da face,
de Reiter (artrite reactiva com manifestações extra- descamação do tronco e dos membros, mucosite
articulares, designadamente conjuntivite). com compromisso oral e conjuntivite não exsuda-
CAPÍTULO 212 Doença de Kawasaki e doença cardíaca 1019

tiva. Contrariamente, a apresentação inicial da DK descritas, e paralelamente à cuidadosa caracteri-


não inclui a instabilidade hemodinâmica. zação clínica, a realização de determinados exa-
A síndroma de Stevens-Johnson é caracteriza- mes complementares poderá ser equacionada em
da por um eritema multiforme associado a lesões função de cada caso específico.
erosivas mucosas, nomeadamente nas conjuntivas
e na cavidade oral. O exantema geralmente cede Tratamento
após 10 dias. Se presente, a sobreinfecção bacteria-
na pode provocar adenomegálias generalizadas. Tratamento da doença propriamente dita
A doença do soro é uma reacção de hipersen- Não sendo conhecido nenhum agente etiológico, o
sibilidade de tipo III, mediada pela deposição de tratamento da doença de Kawasaki é dirigido para
complexos imunes, com subsequente activação o controlo dos fenómenos inflamatórios, de forma
do complemento. Classicamente é provocada a evitar aparecimento de anomalias das artérias
por fármacos que, ao actuarem como haptenos, coronárias e as consequentes lesões miocárdicas.
se ligam à albumina plasmática, funcionando O plano terapêutico consiste em:
como antigénios. Destes, destacam-se: proteínas 1. Administração de imunoglobulina (IGIV),
séricas heterólogas (antitoxinas, gamaglobulina, (preferencialmente nos primeiros dez dias de
anticorpos monoclonais), antibióticos (penicili- doença), na dose única de 2g /Kg, por via
nas, cefalosporinas, sulfonamidas, ciprofloxaci- endovenosa, em perfusão de 10-12 horas. Embora
na, tetraciclinas, metronidazol), agentes biológi- o mecanismo exacto de acção seja desconhecido,
cos (estreptoquinase) e outros fármacos (capto- está comprovado o seu efeito benéfico na rapidez
pril, indometacina, fenilbutazona, procainami- de resolução da fase inflamatória e na prevenção
da, quinidina, tiouracilo, alopurinol e barbitúri- de aneurismas coronários.
cos). Aproximadamente 7 a 10 dias após a Em cerca de 15% dos casos verifica-se ausência
administração da substância (coincidindo com o de resposta à IGIV (persistência de febre ou
“pico” de complexos imunes circulantes) ocorre recrudescimento do quadro clínico após 36 horas).
febre elevada, mal-estar generalizado e cefaleias. Em tais circunstâncias está indicada a repetição da
De seguida surge exantema pruriginoso, que dose de 2g/kg.
tem início no local do inóculo ou, se a via tiver 2. Ácido acetilsalicílico em dose anti-infla-
sido oral, com difusão a partir do abdómen. Tal matória (80-100 mg/kg/dia por via oral, em qua-
como na DK, é polimorfo (urticariforme, escarla- tro tomas). Esta dose é mantida até ao 3º dia de
tiniforme, morbiliforme). Dois terços dos apirexia, sendo então reduzida para dose antia-
doentes apresentam artralgia ou artrite, com gregante plaquetária (3-5 mg/Kg/dia). Este trata-
predomínio das articulações dos joelhos, torno- mento pode ser interrompido entre a 6ª e 8ª sema-
zelos, ombros e punhos. A presença de ade- na de evolução nos casos em que não se eviden-
nomegálias coincide com o início da restante ciem anomalias das artérias coronárias por ecocar-
clínica, podendo atingir vários centímetros de diografia. Nos doentes com alterações das artérias
diâmetro. As cadeias mais afectadas correspon- coronárias, a antiagregação plaquetária deve man-
dem aos gânglios de drenagem do local de admi- ter-se indefinidamente com a finalidade de pre-
nistração do fármaco. Outras alterações clínicas venir trombose coronária.
incluem: sinais de compromisso renal (albumi- Os efeitos laterais do AAS estão bem definidos
núria, hematúria microscópica, diminuição tran- e incluem o aumento das transminases séricas, a
sitória da depuração da creatinina), edema, sin- hipoacúsia transitória e, raramente, a síndroma de
tomas gastrintestinais (náuseas, vómitos, dor Reye. Deve ser interropmpido caso se verifique
abdominal), hepatosplenomegália, derrame exposição a varicela ou influenza. Em alternativa
pericárdico e dificuldade respiratória. poderá utilizar-se clopidogrel na dose de 1
A forma sistémica da artrite idiopática juvenil mg/kg/dia, até dose máxima de 75 mg/dia.
pode apresentar-se com febre prolongada, sinais 3. Outras terapias têm sido usadas como a
sistémicos e artrite. (Capítulos 220 e 221) metilprednisolona IV, ciclofosfamida e plasmafé-
Para exclusão de algumas das situações rese em casos de resistência à IGIV.
1020 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

4. Nalguns centros, se verificada resistência à risco teórico associado de síndroma de Reye. Pelo
2ª dose de IGIV ou perante ineficácia dos corti- risco de síndroma de Reye, salienta-se ainda a
cóides, utiliza-se um inibidor do TNF, infli- importância da vacinação antigripe nas crianças
ximab. submetidas a terapêutica crónica com AAS. Na
Tratamento das complicações presença de um surto de sarampo e caso a criança
O enfarte agudo do miocárdio é a principal causa não esteja imune, a vacina deve ser administrada e
de mortalidade e, embora possa ocorrer na fase repetida 11 meses mais tarde. O restante calen-
aguda, é mais habitualmente tardio, i.e., mais de dário vacinal deverá ser cumprido em obediência
um ano após o início da doença. A experiência da ao Programa Nacional de Vacinação.
angioplastia coronária por via percutânea é muito O prognóstico a longo prazo, designadamente
limitada neste grupo de doentes, pelo que nos quanto à probabilidade de doença aterosclerótica
casos mais graves está indicada cirurgia de revas- futura, ainda não está bem estabelecido, uma vez
cularização coronária ou transplantação cardíaca. que o seguimento destes doentes está actualmente
limitado a cerca de 40 anos. Por outro lado, mesmo
Seguimento e prognóstico naqueles em que não se desenvolvem alterações
coronárias macroscópicas, nem se verificam alte-
A actuação a longo prazo deve ser adequada ao rações ecocardiográficas, são desconhecidas as
grau de envolvimento coronário. Existem critérios possíveis consequências da lesão celular endotelial.
de estratificação de risco que determinam reco- Têm sido relatados casos de adultos com enfarte
mendações relativas a terapêutica antiagregante e agudo do miocárdio ou outra patologia cardíaca e
hipocoagulante, actividade física e vigilância car- antecedentes de situação compatível com DK na
diológica. infância.
O ecocardiograma deve ser realizado precoce- É aconselhável proceder a estudo do perfil
mente na fase aguda da doença, e 6 a 8 semanas lipídico cerca de 1 ano após início da sintomatologia
após o seu início com o intuito de verificar a eficá- de DK, recomendando concomitantemente estilos
cia da terapêutica. Na presença de alterações ima- de vida saudáveis, designadamente alimentação
giológicas, a periodicidade deste exame comple- adequada, exercício físico regular e evicção de
mentar deverá ser mais estreita. No caso de recor- tabagismo.
rência (novo episódio com início 3 meses após o
inaugural e após normalização da velocidade de AGRADECIMENTOS
sedimentação), o tratamento deve ser semelhante O editor e os autores agradecem à Drª Catarina Gouveia a
ao inicial. Na presença de alterações ecocardiográ- cedência de uma imagem de ecografia referente a hidropisia
ficas, a criança deverá ser observada periodica- vesicular.
mente para detecção precoce de arritmias, mio-
cardite, regurgitação valvular e insuficiência BIBLIOGRAFIA
cardíaca. American Academy of Pediatrics. Kawasaki Disease. In:
A actividade física é limitada pelo próprio Pickering LK, Baker CJ, Long SS, McMillan JA, (eds). Red
doente no período de recuperação, podendo durar Book: 2006 Report of the Committee of Infectious Diseases.
algumas semanas. Outras restrições deverão em Elk Grove Village, IL: American Academy of Pediatrics,
ser impostas apenas nas crianças com risco 2006: 412-414
aumentado de trombose, e particularmente na Baumer JH. Guideline Review. Kawasaki disease: what to do
presença de aneurismas. with incomplete cases? Arch Dis Child Educ Pract Ed 2005;
A administração de vacinas vivas atenuadas 90: ep102 – ep104
(como a VASPR e a vacina antivaricela) deve ser Baumer JH, Love S, Gupta A, et al. Salicylate for the treatment
adiada, uma vez que os anticorpos adquiridos pas- of Kawasaki disease in children (Review). The Cochrane
sivamente através da IGIV persistem até 11 meses, Library. London: Wyley, 2009
podendo interferir na imunogenicidade. A vacina Burns JC, Mason WH, Hauger SB, et al. Infliximab treatment
antivaricela não deverá também ser administrada for refractory Kawasaki Syndrome. J Pediatr 2005; 146:662-
enquanto durar a terapêutica com salicilatos pelo 667 que veio de cima
CAPÍTULO 213 Cardite reumática 1021

213
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A incidência mundial é variável, podendo ir de 1
a 150 por cem mil crianças e jovens. Nos países
industrializados, a partir dos anos 50, verificou-
se redução drástica devido à melhoria dos cuida-
dos primários e das condições socioeconómicas.
No entanto, o registo, nesses países, de surtos
esporádicos leva a admitir outros factores como
a identificação de novas estirpes de Strepto-
coccus, responsáveis por formas graves de
cardite.
1022 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Etiopatogénese e relação não cumpre correctamente a terapêutica antibióti-


com a clínica ca oral. Nestes dois grupos existe maior risco de
febre reumática. A cultura do exsudado faríngeo,
A patogénese é multifactorial tendo como ponto se for realizada na fase aguda da amigdalite, con-
de partida uma infecção amígdalo-faríngea, cau- firma a etiologia estreptocócica. A terapêutica
sada pelo Streptococcus β hemolítico do grupo A de antibiótica, quando iniciada precocemente, reduz
Lancefield. A via de infecção cutânea (geralmente a morbilidade e o tempo de evicção escolar.
associada a lesões renais) raramente provoca febre A cardite, surgindo precocemente, abrange
reumática. As estirpes reumatogénicas induzem em graus variáveis pericárdio, miocárdio e
reacções imunológicas cruzadas entre certos com- endocárdio.
ponentes do estreptococo e do organismo humano Tendo como base a definição de insuficiência
e, num hospedeiro geneticamente susceptível, cardíca (IC), feita na alínea anterior, cabe referir
lesam tecidos alvo. que a génese da mesma se pode relacionar com a
O período de latência dura, em geral, três se- falência do coração considerado como “bomba” e
manas. Não existe vacina, pelo que a prevenção /ou com o aumento das necessidades metabólicas
primária se faz pelo diagnóstico e tratamento das dos vários órgãos.
infecções agudas da orofaringe. A identificação Recorda-se, a propósito, que o débito cardíaco
dos portadores crónicos de esptreptococo β hemo- depende de quatro factores: 1) frequência cardía-
lítico torna-se importante pelas confusões de dia- ca; 2) volume ventricular que determina o estira-
gnóstico e terapêutica que podem induzir, mas o mento das fibras miocárdicas e, por sua vez, a
risco de disseminação de doença e de os referidos força de contracção (pré- carga); 3) resistência à
portadores a contraírem parece ser baixo. ejecção durante a sístole (pós-carga) e; 4) contrac-
A prevalência de Streptococcus do grupo A na tilidade ou capacidade de as fibras miocárdicas se
orofaringe de crianças saudáveis é ~ 10 a 30%. As contraírem ou mudarem de forma – variando a
infecções estreptocócicas recorrentes constituem o força de contracção – independentemente da pré-
factor predisponente mais importante da ocorrên- carga e pós – carga. Em geral, verifica-se dis-
cia e recorrência de FR. Após uma infecção, em função de mais que uma variante, o que tem
cerca de 0,3 a 5% dos casos pode desenvolver-se, implicações na actuação terapêutica que não
pelo que o diagnóstico e tratamento correctos da incide apenas num dos referidos factores.
amigdalite estreptocóccica são fundamentais para Como resultado da disfunção a vários níveis
a prevenção primária. O diagnóstico passa pela podem surgir sinais e sintomas que são com-
valorização dos sinais clínicos e pela cultura do preensíveis se nos reportarmos ao conceito de
exsudado faríngeo. Abaixo dos três anos de idade “bomba” cardíaca – órgão que recebe sangue do
apenas 10% das amigdalites são de origem estrep- pulmão e o expulsa continuamente para outros
tocócica; refira-se que somente 0,5% dos primeiros órgãos.
surtos de febre reumática ocorrem nesta faixa Os referidos sintomas e sinais, de expressão
etária. variável conforme a idade da criança, podem ser
A amigdalite estreptocócica é mais frequente sistematizados do seguinte modo: 1) cardíacos
entre os 5 e os 15 anos de idade. Em geral é de iní- (taquicardia, cardiomegália, ruído de galope,
cio súbito com febre alta, mal estar, odinofagia, pulso paradoxal, pulso alternante, etc.); 2) respi-
cefaleias, vómitos e dor abdominal. A orofaringe ratórios (taquipneia, auscultação de fervores e
apresenta eritema, muitas vezes com exsudado, sibilos, tosse, cianose,etc.); 3) défice de perfusão
petéquias no palato mole e acompanha-se de ade- periférica traduzido por sudação abundante,
nomegálias submaxilares dolorosas. Não se asso- extremidades frias, pulsos débeis, hipotensão
cia a conjuntivite, disfonia, tosse ou coriza, que arterial, cansaço fácil (nos lactentes notório com as
são manifestações mais frequentes nos casos de mamadas), tempo de reperfusão capilar aumenta-
etiologia vírica. Uma proporção importante de do, hipocrescimento, etc.); 4) relacionados com
doentes não apresenta queixas significativas e a estase venosa (edema periférico, ingurgitamento
amigdalite não é diagnosticada; outra proporção venoso, hepatomegália, etc.).
CAPÍTULO 213 Cardite reumática 1023

Como notas gerais relativamente às particula- 5%), e nódulos subcutâneos (0 a 4%). A febre é
ridades das manifestações em função da idade muito frequente, em particular no primeiro surto.
(salientando-se que o pico de incidência da FR A poliartrite, rara antes dos cinco anos, é
corresponde à faixa 5- 15 anos e que é rara antes migratória, não supurativa, assimétrica e das
dos 5 anos), cabe salientar: a instalação da IC é grandes articulações.
tanto mais rápida quanto menor a idade da cri- Em surtos descritos mais recentemente, a
ança(mais rápida no RN do que no lactente); a avaliação clínica da cardite permite o diagnóstico
cianose é relativamente rara e, se associada a IC em 75% dos casos; a realização precoce de ecocar-
traduz gravidade, o que pode surgir nas cardiopa- diografia Doppler-cor nos casos suspeitos,
tias complexas; a hepatomegália está pratica- aumenta este valor para mais de 90%.
mente sempre presente no RN e lactente; edema A cardite pode surgir isolada ou precedida de
e fervores são mais raros na criança em compara- artrite; tem como sinal importante a taquicárdia,
ção com o adolescente e adulto. (ver adiante) em particular se registada com a criança a dormir,
sem febre e sem insuficiência cardíaca. A sua
Manifestações clínicas e exames evidência mais típica é o sopro de regurgitação
complementares mitral, suave, holossistólico, mais audível na
ponta e com irradiação para a axila. Na fase
As manifestações clínicas da FR são variáveis e o aguda, pode auscultar-se o rodado de Carey
diagnóstico baseia-se nos critérios de Duckett Coombs que é um sopro diastólico suave, curto e
Jones introduzidos em 1944 (Quadro 1). A pre- de tonalidade grave. Mais audível na ponta e
sença de dois critérios major ou de um major asso- axila, é variável e desaparece ainda na fase aguda.
ciado a dois minor, se acompanhada de evidência A insuficiência aórtica isolada é rara. A proba-
de infecção prévia por estreptococo do grupo A, bilidade de uma lesão valvular ser de origem
indica uma alta probabilidade de febre reumática. reumatismal é ~ 13% para a regurgitação aórtica
É importante referir que a presença de um título de isolada, ~ 76% para a regurgitação mitral isolada e
antiestreptolisina O (TASO) elevado, com ou sem dores ~ 97% para as duas lesões associadas. (Glossário)
articulares inespecíficas, não é suficiente para o diag- A lesão miocárdica pode levar a disfunção
nóstico de febre reumática. (NB: dor articular não é cardíaca importante, pelas alterações da contrac-
sinónimo de artrite). tilidade ventricular esquerda e pela regurgitação
As manifestações major, por ordem de frequên- valvular que se agravam nos casos de surtos
cia, são poliartrite (60 a 70% dos casos), cardite (50 repetidos.
a 60%), coreia (15 a 20%), eritema marginado (0 a A insuficiência cardíaca manifesta-se por
ortopneia, tosse, edema pulmonar, hepatomegália
QUADRO 1 – Critérios de Jones modificados e estase venosa. Nas crianças mais novas estas
manifestações podem ser subtis. A cardiomegália
Major Minor é constante, podendo ser comparticipada por der-
Cardite Clínicos: artralgia; febre rame pericárdico, frequente nos casos graves.
Artrite Laboratoriais: VS>, PCR> A propósito da IC no contexto de cardite
Coreia ECG: Intervalo P-R > reumática, cita-se a classificação funcional da New
Nódulos subcutâneos York Heart Association (NYHA) muito utilizada
Eritema marginado em adultos; baseia-se na avaliação das actividades
diárias. Por se tratar de critérios considerados
Evidência de infecção estreptocóccica: inadequados para recém-nascidos e lactentes, na
* Serologia específica positiva: TASO elevado ou a idade pediátrica utiliza-se a classificação de Ross,
aumentar (≥ 2x) que corresponde a uma adaptação da classificação
* Cultura positiva de Streptococcus na orofaringe da NYHA para a idade pediátrica. (Quadro 2)
Abreviaturas: VS=velocidade de sedimentação; PCR=proteína C reactiva;
A coreia de Sydenham indica compromisso
ECG = electrocardiograma; > = aumentado(a). do sistema nervoso central e caracteriza-se por
movimentos involuntários despropositados, exa-
1024 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 2 – Classificação funcional da insuficiência cardíaca

Grau NYHA (adolescente) Ross (RN, lactentes, crianças)


I Sem limitação da actividade física. Assintomáticos.
Assintomáticos nas actividades diárias.
II Limitação ligeira da actividade física. Polipneia, hipersudorese ligeiras durante o aleitamento
Assintomático em repouso, cansaço (RN e lactentes). Dispneia com o esforço (crianças).
com actividade física diária.
III Limitação importante da actividade física. Polipneia e hipersudorese marcadas durante as mamadas
Sintomático com actividades físicas ligeiras. (RN e lactentes). Dispneia marcada com o esforço (crianças)
IV Incapazes de exercer qualquer tipo Sintomático em repouso.
de actividade física. Sintomático em repouso.

Nota: FC considerada normal com a idade: RN: 80-100; 1 ano: 80-160; 2-3 anos:80-130; 4 -5 anos: 80-120; 6-7 anos: 75-115; 8-10 anos: 70- 110; > 10 anos: 65-110. FR considerada normal com a idade:
RN: 40-45; 1-6 meses: 30-35; 6 meses-2 anos: 25-35; >2-6 anos: 20-25; > 6-12 anos: 18-20; > 12 anos: ~18.

cerbados pelo esforço e estresse. É mais frequente mas a cultura do exsudado faríngeo é positiva ape-
no sexo feminino, tem um período de latência nas em 2/3 dos casos, razão pela qual se utiliza a
longo e, quando surge, os resultados dos exames serologia específica para se demonstrar a infecção
laboratoriais são em geral normais. estreptocócica. O doseamento do título de anti-
O eritema marginado é um exantema macular, estreptolisina O (TASO) é o método mais utilizado,
confluente, não pruriginoso, de cor rosada e bordo sendo positivo em mais de 85% dos casos. É signi-
serpiginoso, surgindo em geral no tronco e dorso, ficativa a subida dos valores dos títulos para duas
região proximal dos membros e nádegas. ou mais vezes os valores iniciais, devendo a
Os nódulos subcutâneos associam-se a cardite primeira determinação ser realizada o mais preco-
activa, são pequenos, duros e móveis; surgem na cemente possível, e as seguintes, duas a três sema-
superfície extensora das articulações, ao longo da nas depois. O TASO tem o pico entre as quatro e
coluna e na região occipital. seis semanas e começa a diminuir às oito semanas
Dos critérios minor, a febre, presente na fase de evolução. O título de antiDNAse B mantém-se
aguda, cede aos salicilatos. A velocidade de sedi- elevado durante mais tempo. A associação do
mentação, muito elevada na fase aguda, diminui TASO com o teste positivo anti-DNAse B eleva
progressivamente coincidindo com a melhoria esta percentagem para quase 100%. (Quadro 1)
clínica. Pode diminuir em presença de insuficiên-
cia cardíaca e voltar a aumentar com a melhoria Diagnóstico diferencial
da função miocárdica. Na coreia, a velocidade de
sedimentação é normal. De salientar que o valor Na fase aguda, sendo a febre reumática doença
da proteína C reactiva não sofre flutuações com a febril, inflamatória, há que fazer o diagnóstico
insuficiência cardíaca. diferencial com outras situações graves, tais como
Na telerradiografia do tórax, são frequentes os miocardite e pericardite víricas, doença de
sinais de pneumonite difusa. A presença de estase Kawasaki e endocardite infecciosa.
venosa pulmonar é a favor de insuficiência cardía- Os casos em que predomina o componente
ca importante. articular devem distinguir-se da artrite reuma-
O electrocardiograma apresenta intervalo PR tóide juvenil. O modo assimétrico e migratório
aumentado que normaliza com a melhoria clínica. das lesões das grandes articulações, e a rápida re-
As alterações inespecíficas do segmento ST e in- solução da sintomatologia com doses baixas de
versão da onda T significam, em geral, miocardite. ácido acetil salicílico, são a favor da febre reumáti-
As arritmias são raras e autolimitadas. ca. Deve fazer-se diagnóstico diferencial com ou-
A demonstração de infecção faríngea prévia tras artrites como as associadas a lúpus eritem-
por Streptococus é obrigatória para o diagnóstico; atoso sistémico, artrites infecciosas, doença do
CAPÍTULO 213 Cardite reumática 1025

soro, doença de Lyme, hemoglobinopatias e leuce- mais confiáveis. Outros achados da doença são:
mias. prolapso da válvula mitral, dilatação do anel e
Na criança, o diagnóstico etiológico duma rotura de corda tendinosa.
anomalia mitral que cursa com regurgitação, pode Na presença de coreia isolada, pode não haver
ser difícil. sinais clínicos de lesão cardíaca, pelo que está
A endocardite bacteriana que atinja uma indicada a realização do ecocardiograma. Além do
válvula mitral com anomalia congénita é uma apoio no diagnóstico, este exame é importante no
doença febril que pode simular febre reumática. A seguimento dos doentes com cardite, mediante a
presença de baço palpável, petéquias e hematúria avaliação seriada das dimensões das estruturas
microscópica, são dados a favor de endocardite. A cardíacas e da sua função.
velocidade de sedimentação está aumentada nas A ecocardiografia intra-esofágica é útil, princi-
duas situações, mas as flutuações descritas para a palmente no estudo pré-operatório da válvula
febre reumática em consequência da insuficiência mitral ou em situações de diagnóstico diferencial
cardíaca não se verificam na endocardite. As menos claro, como a demonstração de rotura de
hemoculturas positivas são a chave do diagnósti- corda tendinosa ou de vegetações.
co. A análise detalhada da morfologia e função da
válvula mitral pelo ecocardiograma é importante Prevenção primária
para o diagnóstico da febre reumática e para a
detecção de vegetações em casos de endocardite. O tratamento da infecção aguda (ou prevenção
A situação que mais dúvidas oferece é a pre- primária) amigdalite estreptocócica com penicili-
sença de apenas um critério major, geralmente a na benzatínica administrada por via intramuscu-
artrite. Nestes casos poder-se-á manter o doente lar em dose única (600.000 UI nas crianças com
em vigilância sob profilaxia antibiótica secun- peso inferior a 25 Kg e 1.200.000 UI nas crianças
dária; se se verificar recorrência da artrite, sem com peso igual ou superior a 25Kg) é mais seguro
evidência de infecção estreptocócica, fica excluída e eficaz. Nos raros casos de alergia à penicilina,
a etiologia reumatismal. utiliza-se eritromicina por via oral administrada
durante 10 dias. A azitromicina, administrada
Valor da ecocardiografia durante cinco dias, é uma alternativa válida. As
sulfamidas não têm indicação no tratamento da
Nos 20% de casos de febre reumática que se apre- infecção aguda.
sentam sem sopros e sem sinais clínicos de cardite
é possível diagnosticar lesão da válvula mitral Tratamento
com regurgitação por ecocardiografia com Dop-
pler codificado em cor. Apresentando grande sen- 1. Febre reumática propriamente dira
sibilidade e especificidade quando devidamente • Na fase precoce de diagnóstico da febre
interpretada, a ecocardiografia é um método de reumática, os anti-inflamatórios, se forem admi-
diagnóstico de primeira linha que deve ser reali- nistrados intempestivamente, podem mascarar os
zado antes da instituição da terapêutica anti- sinais de inflamação, modificar a velocidade de
inflamatória. As alterações morfológicas da fase sedimentação e os aspectos clínicos e ecocardio-
aguda relacionadas com o edema da válvula gráficos.
mitral e do aparelho tensor podem desaparecer • Após o diagnóstico de FR deve iniciar-se
rapidamente sob a acção da terapêutica com ácido ácido acetilsalicílico (100 mg/Kg/dia, repartido
acetilsalicílico. A valorização da ecogenicidade em quatro tomas, com as refeições) cuja dose de-
das estruturas cardíacas, se não existir uniformi- verá ser reduzida lentamente, à medida que for
dade de aplicação de "ganhos e brilhos", presta-se diminuindo a velocidade de sedimentação.
a grande variabilidade de interpretações. Os • A corticoterapia tem indicação nos casos de
dados morfológicos (espessamento ou lesões dos cardite e insuficiência cardíaca resistentes a outros
folhetos valvulares, encurtamento e espessamen- tratamentos. Utiliza-se a prednisolona na dose de 2
to do aparelho tensor e fusão das comissuras) são mg/Kg/dia durante duas a três semanas, reduzin-
1026 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

do-se durante as duas semanas seguintes; e, nesse SNC simpático e renina sérica. O seu uso em pe-
período, reinicia-se ácido acetilsalicílico, para evi- diatria está generalizado, apesar de haver poucos
tar recaídas. Associa-se, em geral, um protector estudos.
gástrico (ver adiante). É importante a monitorização sérica, em espe-
• Continua a ser preconizado o repouso abso- cial quando se associam a diuréticos devido ao ris-
luto no leito, como medida de redução do trabalho co de intoxicação, potenciada por eventual hipo-
cardíaco. caliémia secundária ao uso do diurético. Utiliza-se
• O apoio familiar e das educadoras de infân- a digoxina (dose total de digitalização: 25-50 μg/kg
cia (e de professores, para ensino das crianças em por via parentérica seguida de dose de manutenção
idade escolar) são importantes dado que o inter- de 5-10 μg/kg/dia por via oral dividida em duas
namento é bastante prolongado, podendo ultra- ou três tomas por dia.
passar dois meses.
• O tratamento cirúrgico, raramente necessário b. Catecolaminas
na fase aguda, está indicado nos casos com lesões Actuam por estimulação β-adrenérgica.A escolha
valvulares importantes. deve ser adaptada individualmente, no geral em
combinação. Têm como inconvenientes: aumen-
2. Insuficiência cardíaca.* tam o consumo de O2;. Comportam risco de arri-
Medidas gerais tmias: e afectam a função diastólica. Têm menor
– Nutrição -a IC aumenta o consumo de O2 e efeito na IC crónica, por diminuição dos β-recep-
provoca anorexia, vómitos e má progressão pon- tores:
deral. Por isso é fundamental assegurar uma nu- Dopamina – precursor biológico da noradre-
trição adequada com reforço calórico entérico se nalina, estimula também os receptores dopa-
necessário, com alimentação por sonda nasogás- minérgicos renais melhorando a perfusão renal
trica e/ou alimentação parentérica. quando usada com doses <5 μg/kg/minuto.
– Suprimento de fluidos – deve proceder-se a Administra-se diluída em soro dextrosado na
restrição de fluidos, em particular nos casos sub- dose de 2 a 5μg/kg/minuto (efeito dopaminérgi-
metidos a cirurgia com circulação extracorporal. co renal) ou 5 a 20 μg/kg/minuto (efeito β
– Diminuição do consumo de O2 – com sedação e, adrenérgico); ou ainda > 20 μg/kg/minuto (efeito
se necessário, ventilação. α-adrenérgico renal). Não se deve ultrapassar a
– Correcção de factores concomitantes (anemia, dose de 25 μg/kg/minuto.
sépsis, etc.). Dobutamina – com acção inotrópica e vasodi-
latadora, melhora a contractilidade sem variação
Tratamento farmacológico significativa da frequência cardíaca e da pressão
Tendo em conta a etiopatogénese da IC atrás sin- arterial. Administra-se diluída em soro dextrosa-
tetizada, com o tratamento farmacológico são do na dose de 2,5 a 15 μg/kg/minuto.
empregues fundamentalmente fármacos com três Adrenalina e noradrenalina – utilizam-se
tipos de acções: 1) diurética nas situações em que principalmente nas situações de baixo débito na
existe aumento da pré-carga; 2) inotrópica nas sequência de cirurgia cardíaca. Têm importante
situações em que existe diminuição da contractili- efeito cronotrópico e podem ser arritmogénicas.
dade; e 3) vasodilatadora nas situações em que
existe aumento da pré-carga. c. Inibidores da enzima de conversão da angio-
tensina (IECA)
a. Inotrópicos – digitálicos (digoxina) A activação do eixo renina-angiotensina-aldos-
Inibem Na-K ATPase que resulta em efeito ino- terona (RAA) está associada a maior mortalidade
trópico. Por outro lado, reduzem a activação do na IC. Os IECA reduzem a angiotensina II, que
causa vasoconstrição e hipertrofia ventricular.
Captopril e enalapril são os mais frequentemente
*Os princípios enunciados para o tratamento da IC no contexto de
cardite reumática são extrapoláveis, dum modo geral, para outras si-
utilizados. Dado que têm efeito hipotensor inicial
tuações de IC de etiopatogénese diversa. marcado, devem iniciar-se com doses baixas. Não
CAPÍTULO 213 Cardite reumática 1027

se devem administrar concomitantemente potás- pelo que poderá requerer associação com outros
sio, nem diuréticos que possam reter potássio inotrópicos.
como a espironolactona, pelo risco de hiperca- Levosimendan. É inotrópico e vasodilatador
liémia. com acção prolongada. Actua sem aumentar con-
Enalapril – administrar 0,01-0,05 mg/kg por sumo de O2. Em adultos, está demonstrada me-
dose, três a quatro vezes por dia. lhoria dos parâmetros hemodinâmicos na IC,
Captopril – iniciar com 0,15 mg/kg por dose, havendo, no entanto, dúvidas quanto ao efeito na
três vezes por dia. Aumentar com intervalos de 12 redução da mortalidade. Em Cardiologia Pediá-
a 48 horas, mas não ultrapassar 6 mg/kg/dia. trica existem escassos estudos demonstrando que
existe benefício; por isso, deve ser apenas utiliza-
d. β-Bloqueantes do em casos de IC refractária. Deve ter-se especial
Revertem os efeitos deletérios da activação cateco- atenção a arritmias secundárias ao seu uso.
laminérgica crónica. Têm também propriedades Neseritide. Trata-se do BNP sintético com
antiarrítmicas e de vasodilatação coronária. efeito diurético e de dilatação venosa, arterial e
Nos adultos com IC existe benefício bem docu- coronária, sem efeito inotrópico ou pró-arrítmico.
mentado (melhoria sintomática, diminuição da Actua por diminuição das neuro- hormonas acti-
mortalidade). Em Pediatria, alguns estudos não vadas na IC. Estudos em adultos comprovam me-
aleatórios mostram benefício do: lhoria hemodinâmica e dos sintomas. O medica-
Carvedilol, cujo uso se está a generalizar em mento é bem tolerado. Existe benefício quanto à
Cardiologia Pediátrica (dose inicial 0,03 mg/dose; diurese e perfil neuro-hormonal.
aumento de 0,03 mg/dose semanalmente com Nitroprussiato de sódio. Está indicado em
controlo da pressão arterial e da frequência cardía- situações acompanhadas de regurgitação valvu-
ca (RN e lactentes: 3 doses/ dia; crianças maiores: lar.
duas doses/dia).
Prevenção secundária
e. Diuréticos
O seu uso está generalizado na IC, aguda ou A prevenção secundária é tão importante como a
crónica apesar da ausência de estudos clínicos em prevenção primária. Na ausência de novos surtos,
idade pediátrica no contexto de IC. Têm a van- a maioria das alterações cardíacas resultantes da
tagem de diminuir a congestão pulmonar, provo- febre reumática melhoram e a função cardíaca
cando melhoria sintomática, da função ventricular pode normalizar. Por outro lado, as sequelas dos
e da tolerância ao esforço. Utilizam-se nomeada- surtos subsequentes, sempre mais graves do que
mente: as do primeiro surto, produzem lesões quase
Furosemido – actua na ansa de Henle, provo- sempre irreversíveis. Por estas razões, a prevenção
cando perda de electrólitos e água. Deve ter-se em secundária, importante no prognóstico da doença,
atenção o risco de hiponatrémia e hipocaliémia. é feita com penicilina benzatínica administrada
Administra-se na dose de 1mg/kg/dose aumen- por via intramuscular nas mesmas doses que para
tando 1mg/kg com intervalos de seis a 12 horas a prevenção primária, com intervalos de quatro
até o máximo de 6mg/kg/dose. semanas*. Nos países endémicos (como os de
Antagonistas da aldosterona como a espiro- África, América do Sul, Índia, Filipinas) o interva-
nolactona que, poupando potássio, podem ser uti- lo deve ser encurtado para três semanas. Nos
lizados em associação com furosemido. raros casos de alergia à penicilina, está indicada a
profilaxia por via oral (eritromicina ou sulfonami-
f. Outros fármacos das – sulfadiazina ou sulfisoxazol), em que a
Milrinona. Provoca inibição da fosfosdiesterase adesão e a eficácia são menores. A penicilina V
(que degrada AMPc) e aumenta o cálcio. Tem (oral) não está comercializada em Portugal.
efeito: inotrópico, lusotrópico e de diminuição da
resistência vascular sistémica sem aumentar con- *Nas populações de alto risco, alguns autores preconizam intervalo de
sumo de O2. Pode provocar hipotensão arterial, 3 semanas.
1028 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

As recomendações da Associação Americana Lima M.Febre reumática de novo. Notícias Medicas 1994; 2200: 2
de Cardiologia apontam para uma individualiza- Macedo AJ, Primo M, Kaku S, Lima M, Sampayo F.
ção do tempo de duração da profilaxia secundária, Cardiopatia reumática na criança. Estudo comparativo em
dependendo principalmente da existência de dois períodos sucessivos de nove anos. Acta Med Port
cardite reumática. Na presença de sequelas, a pro- 1989;3:127-131
filaxia deverá durar toda a vida (mesmo após Madriago E, Silberbach M. Heart failure in infants and chil-
eventual cirurgia). Nos casos sem sequelas (doença dren. Pediatr Rev 2010; 31: 4-12
valvular), nomeadamente doença valvular persis- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
tente, a profilaxia é feita até à idade adulta. Nos AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
doentes com lesões valvulares, está indicada profi- Medical, 2011
laxia da endocardite bacteriana mesmo após cirur- Sampayo F, Lima M, Kaku S, Veiga CAS, Mata-Antunes AM.
gia. Cardiopatia reumática em idades pediátricas. Estudo epi-
demiológico, acção preventiva e avaliação a longo prazo. J
GLOSSÁRIO Médico 1980; 103: 49-54
BNP (brain natriuretic peptide > Poderia traduzir-se por péptido natri-
urético cerebral mas é habitual utilizar-se a abreviatura inglesa.
Trata-se de péptidos libertados pelos miócitos ventriculares. Tal
como os ANP (atrial natriuretic peptides), péptidos natriuréticos
auriculares produzidos e armazenados em células auriculares espe-
cializadas e libertados pelo estímulo da distensão auricular, têm
efeito natriurético e diurético.
Lusotrópico > Fármaco que melhora o relaxamento miocárdico.
Pulso saltão > Pulso de grande amplitude a que corresponde subida
muito rápida da PA em sístole e descida igualmente rápida na diás-
tole. É típico da insuficiência aórtica.

BIBLIOGRAFIA
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Pediatr Rev 2011; 32: 423 - 430
CAPÍTULO 214 Endocardite infecciosa 1029

214
Olser ou esplenomegália) são mais raras em cri-
anças do que em adultos, estando virtualmente
ausentes em recém-nascidos. As alterações renais
(glomerulonefrite) podem ser secundárias a fenó-
menos auto-imunes ou embólicos. Podem registar-
se embolias para outros órgãos, nomeadamente
ENDOCARDITE INFECCIOSA sistema nervoso central onde podem provocar
aneurismas micóticos cuja ruptura pode ser cata-
Isabel Freitas, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku strófica (ver Glossário Geral).

Exames complementares

Definição e importância do problema O diagnóstico é feito pelos critérios de Duke (Quadro


1) sendo necessários: dois critérios major; um major e
A endocardite, doença infecciosa do endocárdio, dois minor; ou cinco minor. As bactérias mais fre-
válvulas e/ou estruturas relacionadas, é rara na quentemente implicadas são cocos Gram+, com
idade pediátrica, representando 0,08% dos interna- destaque para estreptococos viridans, estafilococos,
mentos. Até 1970, a endocardite estabelecia-se em enterococos e, mais raramente, bactérias Gram- do
lesões de cardite reumática prévia; actualmente, grupo HACEK (sigla dizendo respeito a germes
devido ao aumento considerável da sobrevida dos Gram negativos: Haemophilus aphrophilus, Actino-
doentes com cardiopatia congénita e à diminuição bacillus, Cardiobacterium, Eikenella e Kingella. A
de casos de febre reumática nos países desenvolvi- endocardite fúngica, habitualmente por Candida, tem
dos, a maioria dos doentes com endocardite tem sido mais frequente nas últimas décadas. Ocasional-
anomalias cardíacas congénitas, havendo em 50% mente, registam-se endocardites “estéreis”, em que
dos casos antecedentes de cirurgia cardíaca. A pro- não é possível isolar o agente. A ecocardiografia tem
porção de endocardite em doentes com permanên- uma sensibilidade elevada para o diagnóstico e pode
cia prolongada em unidades de cuidados intensivos, demonstrar, além das vegetações (típicas da endo-
associada a linhas endovenosas tem igualmente cardite), perfurações valvulares, formação de abces-
aumentado. Em cerca de 8% não são identicados fac- sos ou fístulas miocárdicas e deiscência de material
tores de risco nem anomalias cardíacas estruturais. protésico.

Manifestações clínicas QUADRO 1 – Critérios de Duke

Os agentes envolvidos nidificam no endotélio, Major


danificado em resultado de malformações cardía- – Isolamento em cultura de microrganismo típico
cas, correcções cirúrgicas (incluindo colocação de – Evidência ecocardiográfica de endocardite
material exógeno) ou por traumatismo provocado Minor
por cateteres endovenosos centrais. A apresen- – Predisposição (lesão cardíaca, cateteres endovenosos,
tação clínica é geralmente insidiosa, com febre pro- utilização de drogas endovenosas)
longada e manifestações sistémicas variadas como – Febre
consequência de: bacteriémia (ou fungémia), – Fenómenos vasculares (embolias, enfartes sépticos,
valvulite, resposta imunológica e embolias. A bac- aneurismas micóticos, hemorragias conjuntivais,
teriémia (ou fungémia) é responsável pela dissem- lesões de Janeway)
inação do agente e pela febre. As lesões valvulares – Evidência microbiológica (que não cumpra as
manifestam-se pela alteração nos achados auscul- especificidades para critério major)
tatórios e desenvolvimento de sintomas e sinais de – Achados ecocardiográficos (consistentes com
insuficiência cardíaca. As manifestações extrac- endocardite, mas que não cumpram as
ardíacas de endocardite (petéquias, hemorragias, especificidades para critério major)
manchas de Roth, lesões de Janeway, nódulos de
1030 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Profilaxia, tratamento e prognóstico tíveis de endocardite, e obedece a recomendações


internacionais (Quadros 2 e 3).
A profilaxia da endocardite bacteriana está indicada O tratamento varia de acordo com o agente
pontualmente para situações de potencial bacte- identificado e tem uma duração habitual de qua-
riémia em doentes com anomalias cardíacas suscep- tro a seis semanas. As indicações cirúrgicas são

QUADRO 2 – Profilaxia da Endocardite Bacteriana – I

Intervenções envolvendo a boca/orofaringe/aparelho respiratório superior


Esquema padrão Amoxicilina* 1 hora antes do procedimento
50mg/Kg (PO)
Alergia à Penicilina Clindamicina** 1 hora antes do procedimento
Penicilina há <7 dias 20mg/Kg (PO)
* Não exceder a dose máxima de 2g (Amplamox, Clamoxyl, Oraminax)®
** Não exceder a dose máxima de 600 mg (Dalacin)®

Intervenções envolvendo o aparelho digestivo/tracto urogenital


Esquema padrão Ampicilina 50mg/Kg*
IM ou IV
+ 30-60 minutos antes do procedimento
Gentamicina 3mg/Kg
IM ou IV
e
Ampicilina 50mg/Kg* 6 horas depois
IM ou IV
Alergia à Penicilina Vancomicina 10mg/Kg IV** 1-2 horas antes (perfusão)
+
Penicilina há <7 dias Gentamicina 3mg/Kg IV ou IM 30-60 minutos antes
* Não exceder a dose máxima de 2g
** Não exceder a dose máxima de 1g de Vancomicina

Intervenções envolvendo o tecido cutâneo infectado (abcesso/furúnculos)


Esquema padrão Flucloxacilina 50mg/Kg* 30 minutos antes
PO/IV/IM repetir 6 horas depois
Alergia à Penicilina Clindamicina 1 hora antes do procedimento
Penicilina há <7 dias 20mg/Kg (PO)
* Não exceder a dose de 2g

QUADRO 3 – Profilaxia da Endocardite Bacteriana – II

Cuidados gerais e recomendações


1. Higiene bucal cuidada b – Luxações traumáticas ou avulsões dentárias.
2. Não ter dentes cariados c – Cirurgia ORL, excepto colocação de tubos de tim-
3. Consulta periódica ao dentista panostomia
4. Tratar amigdalites, otites e todas as infecções purulen- d – Cirurgia digestiva ou urológica.
tas com antibióticos durante dez dias. e – Intervenções envolvendo tecido cutâneo infectado.
5. Alergia à penicilina: Sim Não
6. Deve ser feita profilaxia sempre que haja: Todas as precauções devem ser mantidas, mesmo que
tenha havido correcção cirúrgica da cardiopatia,
a – Intervenções estomatológicas: Extracções dentárias; excepto quando indicado.
Brocagens; Limpeza profissional; Todos os procedi-
mentos que envolvam sangramento gengival.
CAPÍTULO 215 Miocardite 1031

215
empíricas e incluem insuficiência cardíaca por dis-
função valvular, persistência de vegetações após
fenómenos embólicos (particularmente se aumen-
tarem de dimensão apesar do tratamento), embo-
lias recorrentes e extensão perivalvular da in-
fecção (formação de abcesso, fístula, deiscência
protésica). A terapêutica médica é habitualmente MIOCARDITE
ineficaz na endocardite fúngica sendo necessária
cirurgia, na maioria dos casos. José Diogo Martins e Sashicanta Kaku
A mortalidade varia entre 20% e 30%, sendo
mais elevada na endocardite fúngica e nos casos
que atingem material protésico.
Definição, etiopatogénese
BIBLIOGRAFIA e importância do problema
Ashrafian H, Bogle RG. Antimicrobial prophylaxis for endo-
carditis: emotion or science? Heart 2007; 93: 5-6 A miocardite é uma doença inflamatória do mús-
Baddour LM, Wilson WR, Bayer AS et al. Infective endocardi- culo cardíaco, caracterizada por infiltrado leuco-
tis: diagnosis, antimicrobial therapy, and management of citário associado a degenerescência e/ou necrose
complications: American Heart Association: endorsed by não isquémica dos miócitos. Sendo a miocardite
the Infectious Diseases Society of America. Circulation causa importante de morte súbita, regista-se uma
2005; 111: e394-434 diferença significativa entre a sua incidência em
Bashore TM, Cabell C, Fowler V Jr. Update on infective endo- estudos clínicos (0,01 a 0,3%) e necrópsicos (1 a
carditis. Curr Probl Cardiol 2006; 31: 274-352 4%). Sob o ponto de vista etiológico, as miocar-
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011 dites consideram-se de causa infecciosa (represen-
Durack DT, Lukes AS, Bright DK. New criteria for diagnosis of tam mais de 2/3 dos casos), auto-imune, tóxica e
infective endocarditis: utilization of specific echocardio- de causa desconhecida. Os agentes infecciosos
graphic findings. Duke Endocarditis Service. Am J Med incluem bactérias, riquétsias, parasitas, fungos e vírus
1994; 96: 200-209 Cocksackie B, adenovírus, citomegalovírus e herpes
Ellis ME, Al-Abdely H, Sandridge A, Greer W, Ventura W. vírus. Nas causas auto-imunes incluem-se febre
Fungal endocarditis: evidence in the world literature, 1965- reumática, lúpus e artrite reumatóide, entre ou-
1995. Clin Infect Dis 2001; 32: 50-62 tras. Alguns fármacos (como penicilina, adriami-
Ferrieri P, Gewitz MH, Gerber MA et al. Committee on cina e anfotericina B) e substâncias tóxicas (como
Rheumatic Fever, Endocarditis, and Kawasaki Disease of álcool e metais pesados), podem ser responsáveis
the American Heart Association Council on Cardiovascular por miocardite. Descrevem-se ainda miocardites
Disease in the Young. Unique features of infective endo- secundárias no contexto de esclerodermia e de
carditis in childhood. Circulation 2002; 105: 2115-2126 sarcoidose.
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011 Manifestações clínicas
Macedo A, Agualusa A, Kaku S, Lima M, Cabrita J, Bento R,
Sampayo F. Endocardite por Candida parapsilosis após cor- A lesão miocárdica nas miocardites víricas resulta
recção de tetralogia de Fallot. Tratamento médico-cirúrgico. da acção citotóxica do vírus, sendo também im-
Acta Méd Port 1991; 4: 301-304 portante a lesão auto-imune subsequente. A
Moreillon P, Que Ya. Infective endocarditis. Lancet 2004; 363: doença inicia-se por um pródromo “gripal” inca-
139 - 148 racterístico que antecede os sintomas e sinais de
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA(eds). insuficiência cardíaca por um período de dias a
Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Medical, 2011 semanas. A apresentação clínica pode ser insidiosa,
Wilson W, Tauberrt KA, Gewitz M, et al. Prevention of infective com queixas gástricas (secundárias a baixo débito
endocarditis. Guidelines from the American Heart Association. intestinal) e cansaço fácil ou de instalação súbita
Circulation 2007; DOI: 10.1161/circulationaha. 106. 183095 associados a outros sintomas e sinais de insufi-
1032 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ciência cardíaca (má perfusão, pulso alternante, admitidos no hospital pode atingir 80%, graças à
polipneia, edema, taquicárdia, ritmo de galope ou utilização de dispositivos externos de assistência
choque cardiogénico). A miocardite pode apresen- ventricular. A idade mais jovem e a gravidade do
tar-se ainda como arritmia ou morte súbita. quadro clínico são factores de mau prognóstico.
Estima-se que um terço dos sobreviventes venha a
Exames complementares necessitar de transplante cardíaco.

A radiografia do tórax mostra sinais de congestão GLOSSÁRIO


pulmonar e cardiomegália (que pode estar ausen- Pulso alternante > Pulso em que há alternadamente uma sístole com
te nos casos de evolução aguda). O electrocardio- onda de pulso de amplitude normal, e outra sístole com diminuição
grama revela alterações da repolarização, baixa da referida amplitude.
voltagem dos complexos QRS e extrassistolia ven-
tricular. O ecocardiograma mostra sinais de dila- BIBLIOGRAFIA
tação ventricular esquerda com má função e, por Aretz HT, Billingham ME, Edwards WD et al. Myocarditis. A
vezes, derrame pericárdico. histopathologic definition and classification. Am J
Existem várias técnicas laboratoriais de identi- Cardiovasc Pathol 1987; 1: 3-14
ficação vírica (no sangue, secreções ou músculo Bohn D, Benson L. Diagnosis and management of pediatric
cardíaco) sendo o diagnóstico definitivo de mio- myocarditis. Paediatr Drugs 2002; 4: 171-181
cardite obtido por análise histopatológica de fra- Chen RT, Lane JM. Myocarditis: the unexpected return of
gmentos miocárdicos. Se a biópsia for feita nos smallpox vaccine adverse events. Lancet 2003; 362: 1345-
dois meses após o início do quadro clínico, a 1346
percentagem de doentes com alterações histológi- Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
cas que cumprem os chamados critérios de Dallas Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
pode atingir 40%. 2011
Kuhn B, Shapiro ED, Walls TA, Friedman AH. Predictors of
Tratamento e prognóstico outcome of myocarditis. Pediatr Cardiol 2004; 25: 379-84
Levi D, Alejos J. An approach to the treatment of pediatric
O tratamento sintomático consiste em suporte myocarditis. Paediatr Drugs 2002; 4: 637-647
inotrópico endovenoso, redução da pós-carga Liu PP, Mason JW. Advances in the understanding of
(vasodilatadores), diuréticos e anticoagulação. myocarditis. Curr Opin Cardiol 2001; 16: 77-83
Recentemente, têm sido propostos vários trata- McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
mentos que visam interferir nos mecanismos Pediatrics. Madrid: Panamericana, 2010
fisiopatológicos da doença. Destaca-se a adminis-
tração endovenosa de gamaglobulina na fase
aguda (de eficácia não demonstrada), na dose de 2
g/Kg. Não existe consenso quanto à utilidade da
terapêutica imunossupressora (corticóides, ciclos-
porina), considerando-se prudente a sua não uti-
lização na fase aguda da doença (por risco de
agravamento da disseminação vírica). A utilidade
da terapêutica imunossupressora passada a fase
aguda é apoiada em vários ensaios clínicos não
controlados. A terapêutica específica antivírica
tem sido aplicada nalguns centros (aciclovir para
o VEB e pleconaril para os enterovírus). O desen-
volvimento de uma vacina anti-enterovírus e ade-
novírus poderá contribuir decisivamente para o
combate à miocardite vírica.
A sobrevida dos doentes com miocardite
CAPÍTULO 216 Pericardite 1033

216
restringe o enchimento diastólico cardíaco. A
causa mais importante continua a ser a pericardite
tuberculosa.

Manifestações clínicas

PERICARDITE A história clínica da pericardite vírica consiste


num pródromo de doença respiratória ou gas-
José Diogo Martins e Sashicanta Kaku trenterológica autolimitada, seguida de precor-
dialgia habitualmente acompanhada de febre. A
precordialgia agrava-se com a tosse e com os
movimentos. Na auscultação cardíaca destaca-se
Definição, etiopatogénese a presença de sinais de atrito pericárdico. Nos
e importância do problema casos com tamponamento cardíaco (por derrame
pericárdico significativo) verifica-se a presença
O pericárdio engloba duas membranas (visceral e de pulso paradoxal (resultante do exagero da
parietal), separadas por uma pequena quantidade variação fisiológica da amplitude dos pulsos:
de fluido. A pericardite (inflamação do pericárdio) maior na expiração e menor na inspiração). Nos
pode ser aguda ou crónica (constritiva). A peri- casos de maior gravidade, incluindo as peri-
cardite aguda é geralmente devida a causas infec- cardites constritivas, os doentes apresentam si-
ciosas. Outras causas (menos frequentes) incluem nais e sintomas de congestão a montante (edema,
doenças do colagénio, cirurgia cardíaca, drogas, hepatomegália, distensão venosa jugular) e baixo
traumatismos e insuficiência renal crónica. Cerca débito cardíaco.
de um terço dos casos de pericardite infecciosa é
de etiologia vírica, nomeadamente por vírus Exames complementares
Cocksackie e adenovírus. A infecção pelo vírus da
imunodeficiência humana provoca pericardite em Como se referiu relativamente às miocardites,
25% dos doentes afectados. As pericardites bacte- existem várias técnicas laboratoriais de identifi-
rianas ou purulentas resultam de infecções por cação vírica (no sangue, secreções ou líquido pe-
Staphylococcus aureus e Haemophilus influenza. Em ricárdico). A etiologia tuberculosa (mais frequente
10 % dos casos de febre reumática pode haver nos imunodeprimidos) deve ser cuidadosamente
envolvimento pericárdico. (Capítulo 213) investigada. Nos casos em que seja necessária a
Das doenças de colagénio, destacam-se a drenagem cirúrgica, deve ser feito estudo por ana-
artrite reumatóide juvenil e o lúpus eritematoso tomia patológica.
sistémico, nas quais a pericardite pode atingir O electrocardiograma apresenta alterações da
metade dos doentes. A pericardite pós-cirurgia repolarização (elevação do segmento ST) e, nos
cardíaca (síndroma pós-pericardiotomia) é relati- casos com derrame pericárdico significativo, com-
vamente frequente e surge, em geral, quatro a plexos de baixa voltagem e variações cíclicas da
cinco dias após a intervenção. A doença de amplitude do QRS. A radiografia do tórax, nos
Kawasaki provoca pericardite discreta em cerca casos agudos, não apresenta alterações. Nos casos
de um terço dos casos. Fármacos como anticoagu- com derrame pericárdico significativo, existe car-
lantes, hidralazina e procainamida podem tam- diomegália. (Figura 1)
bém provocar a doença. A frequência da peri- O ecocardiograma é importante para a
cardite na insuficiência renal crónica tem vindo a detecção e quantificação dos derrames pericárdi-
diminuir com a utilização generalizada da diálise. cos e para avaliação das suas consequências he-
O hipotiroidismo e a radioterapia podem ser tam- modinâmicas. Outros meios complementares de
bém causa. diagnóstico como a RMN e a TAC raramente têm
A pericartide constritiva resulta de um espes- interesse. O cateterismo cardíaco não tem indi-
samento do pericárdio que perde elasticidade e cação na avaliação da pericardite.
1034 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

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FIG. 1
Cardiomegália (por pericardite de etiologia tuberculosa)
evidenciada em radiografia do tórax. (NIHDE)

Tratamento e prognóstico

O tratamento médico das pericardites consiste no


alívio sintomático e na utilização de anti-infla-
matórios não esteróides. A corticoterapia, muito
eficaz na resolução dos processos inflamatórios
pericárdicos, deve ser utilizada com precaução
nos casos de etiologia infecciosa. Os casos de etio-
logia tuberculosa devem merecer tratamento com
fármacos anti-BK. A drenagem pericárdica (peri-
cardiocentese) tem indicação em situações de tam-
ponamento e nas pericardites purulentas. Oca-
sionalmente poderá ser necessário criar uma
janela pericárdica para facilitar a drenagem, em
especial nas pericardites constritivas.
O prognóstico é mais reservado nas peri-
cardites purulentas (mortalidade ~20%) e nas
pericardites tuberculosas constritivas (mortali-
dade ~10%). Nos outros casos, o prognóstico é
geralmente favorável.

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CAPÍTULO 217 Cardiomiopatias 1035

217
Aspectos epidemiológicos
A incidência anual é cerca de 0,58 a 0,73 por
100.000 crianças. Existem múltiplas causas identi-
ficadas, sendo a causa vírica responsável por 9% a
13% dos casos. As doenças neuromusculares, em
particular a distrofia muscular de Duchenne, re-
CARDIOMIOPATIAS presentam cerca de 12% dos casos. Os casos fami-
liares constituem cerca de 6% do total. Outras
José Diogo Martins e Sashicanta Kaku causas incluem alterações isquémicas (anomalias
das coronárias, disritmias prolongadas), doenças
hereditárias do metabolismo (mucopolissa-
caridoses, doenças de armazenamento de glico-
Definição e importância do problema génio, esfingolipidoses) (Capítulo 368), lesões por
tóxicos (destacando-se os antineoplásicos), alte-
As cardiomiopatias consistem numa anomalia do rações endócrinas (por exemplo da tiróide) ou
miocárdio associada a disfunção cardíaca, sistólica deficiências nutricionais (beribéri, kwashiorkor).
e/ou diastólica, na ausência de anomalias estrutu- Numa parcela dos 65% a 70% dos casos consider-
rais anatómicas. ados idiopáticos têm sido demonstrados defeitos
A classificação das cardiomiopatias é fun- genéticos e antecedentes de miocardite vírica por
cional, baseada no quadro fisiopatológico e inclui estudo PCR.
as formas hipertrófica, dilatada e restritiva. Con-
sidera-se ainda um quarto grupo, constituído por Manifestações clínicas
cardiomiopatias não classificáveis nos três grupos A cardiomiopatia dilatada apresenta-se como
anteriores. De acordo com o Registo Nacional de insuficiência cardíaca congestiva que, nos recém-
Cardiomiopatias dos Estados Unidos da América, nascidos e lactentes, se manifesta por cansaço
a forma dilatada é a mais frequente (58%), segui- durante a alimentação e má progressão estaturo-
da da hipertrófica (25%). As formas restritiva e as ponderal.
não classificadas representam 3% e 4%, respecti- O exame objectivo revela polipneia, má per-
vamente. fusão periférica, hepatomegália e edema. A aus-
A incidência anual é 1,1 a 1,2 por 100.000 cultação cardíaca revela taquicárdia, diminuição
crianças; os internamentos por cardiomiopatia não da intensidade dos ruídos cardíacos e ritmo de
ultrapassam 1% do total de internamentos por galope. Notam-se sinais de congestão venosa e
doença cardíaca em crianças. Trata-se duma diminuição do murmúrio vesicular nas bases pul-
doença grave, sendo que cerca de 40% das crianças monares. Os casos mais graves apresentam-se
atingidas morrem ou necessitam de transplante com falência circulatória por choque cardiogénico.
cardíaco nos primeiros dois anos após o início dos
sintomas. Exames complementares
A apresentação é mais frequente no primeiro No electrocardiograma observam-se sinais de
ano de vida, registando-se um segundo pico taquicárdia sinusal, alterações da repolarização e
durante a adolescência. Os estudos genéticos con- hipertrofia ventricular. A presença de ondas Q
firmam etiopatogénese hereditária numa percen- profundas em derivações esquerdas deve alertar
tagem elevada de casos. para a possibilidade de anomalia coronária. A
radiografia do tórax revela cardiomegália e con-
1. Cardiomiopatia dilatada gestão venosa pulmonar.
O ecocardiograma permite identificar a dila-
A cardiomiopatia dilatada é uma doença do tação ventricular, detectar anomalias, avaliar a
músculo cardíaco caracterizada por dilatação ven- função valvular e a presença de derrame pericár-
tricular com diminuição da contractilidade. (pri- dico ou de trombos.
mariamente disfunção sistólica). Os métodos de diagnóstico etiológico devem
1036 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

incluir biópsia endomiocárdica, doseamento de cundária a múltiplas doenças ou síndromas de


enzimas musculares, estudos metabólicos, genéti- que se destacam: filhos de mãe diabética, síndro-
cos, víricos PCR (Polymerase Chain Reaction) e ras- ma de Noonan, défice de carnitina e doenças de
treio familiar. armazenamento de glicogénio e da cadeia respi-
ratória.
Tratamento e prognóstico
O tratamento é sintomático. Nos casos ligeiros, o Manifestações clínicas
tratamento consiste em facilitar o débito sistémico Do ponto de vista clínico, as cardiomiopatias
através da vasodilatação periférica com inibidores hipertróficas são subdivididas em obstrutivas
da enzima de conversão da angiotensina (capto- (gradiente de saída ventricular > 30mmHg) e não
pril e outros) e β-bloqueantes (propranolol e mais obstrutivas. A presença e o grau de obstrução re-
recentemente, carvedilol). O agravamento de sin- presentam um factor com influência no quadro
tomas requer um manejo mais agressivo que clínico e no prognóstico.
inclui diuréticos e inotrópicos (digoxina, perfusão As formas não obstrutivas são geralmente as-
endovenosa de dopa e/ou dobutamina, milri- sintomáticas. Os sintomas na forma obstrutiva
nona). As arritmias devem ser controladas com (diminuição da tolerância ao esforço, angina,
medicação apropriada. Nos casos mais graves dispneia, palpitações e síncope) resultam da com-
pode ser necessário recorrer a meios de suporte binação da disfunção diastólica e do obstáculo
circulatório mecânico externo transitoriamente, dinâmico. As manifestações clínicas da cardio-
ou a transplantação cardíaca. miopatia hipertrófica primária surgem habi-
O prognóstico é reservado: com os recursos tualmente na adolescência (12-18 anos) sendo esta
actualmente disponíveis, cerca de um terço das doença a causa mais frequente de morte súbita
crianças morre ou necessita de transplante cardíaco. (por taquicárdia ventricular e/ou isquémia agu-
da) em adolescentes.
2. Cardiomiopatia hipertrófica
Exames complementares
A cardiomiopatia hipertrófica consiste em hiper- O electrocardiograma apresenta alterações como
trofia ventricular assimétrica com função sistólica hipertrofia ventricular esquerda ou biventricular,
habitualmente conservada e disfunção diastólica alterações inespecíficas da repolarização ventricu-
(primariamente disfunção diastólica). lar e, mais raramente, prolongamento do interva-
lo QT e ondas Q anómalas. A radiografia do tórax
Aspectos epidemiológicos revela cardiomegália. O ecocardiograma permite
A incidência anual é cerca de 0,32 a 0,47 casos por identificar sinais de hipertrofia ventricular assi-
100.000 crianças. A cardiomiopatia hipertrófica métrica (mais acentuada no septo interventricu-
pode ser primária ou secundária. A forma pri- lar), avaliar o grau de obstáculo da saída ventricu-
mária resulta de anomalias genéticas das proteí- lar, função miocárdica, e o grau de envolvimento
nas contrácteis do sarcómero cardíaco. Existem da válvula mitral.
cerca de 200 anomalias identificadas na base de Estes doentes devem ser seguidos com electro-
dados das mutações em cerca de 10 genes das pro- cardiograma (incluindo registos de Holter) e eco-
teínas do sarcómero da Universidade de Harvard cardiogramas seriados.
nos Estados Unidos da América, sendo as três
mais frequentes (localizadas na cadeia pesada da Tratamento e prognóstico
β- miosina, na proteína C de ligação à miosina – A terapêutica está indicada nos casos sintomáticos
respectivamente MYH7 e MYBPC3 –, e na tropo- ou quando existem factores de risco de morte
nina T) responsáveis pela maioria dos casos. súbita: história familiar de morte súbita, evidência
Apesar da evidência da importância clínica da de taquicárdia ventricular persistente e identifi-
genética, não estão ainda generalizados os méto- cação de mutação de alto risco.
dos de diagnóstico genético. A terapêutica médica inclui: evicção de es-
A cardiomiopatia hipertrófica pode ser se- forços intensos e utilização de β-bloqueantes (com
CAPÍTULO 217 Cardiomiopatias 1037

a finalidade de aliviar o obstáculo de saída do direita) resulta em aumento das pressões de enchi-
ventrículo esquerdo e melhorar a dinâmica dias- mento ventriculares (telediastólica) e hipertensão
tólica ventricular esquerda). A eficácia da utiliza- pulmonar.
ção profiláctica de β-bloqueantes em doentes ass- A maioria dos doentes apresenta sinais discretos
intomáticos, com a finalidade de alterar a pro- de compromisso cardíaco, sendo a doença detecta-
gressão da doença, não está demonstrada. Nos da em exames “de rotina”. Alguns doentes referem
casos de défice de carnitina está indicada a admi- intolerância e dispneia com o esforço e síncope. As
nistração oral deste produto. As indicações para manifestações da doença surgem habitualmente
colocação de cardioversores-desfibrilhadores entre cinco e oito anos de idade. Há uma incidência
implantáveis em crianças são controversas; justifi- elevada de fenómenos tromboembólicos sistémicos
cam-se apenas como prevenção secundária nos e de perturbações do ritmo cardíaco (taquidisri-
doentes ressuscitados de episódios de morte súbi- tmias e bloqueio aurículo-ventricular completo).
ta e como prevenção primária nos casos com
múltiplos factores de risco de morte súbita. Exames complementares
Em casos refractários está indicada a remoção O electrocardiograma apresenta sinais de
cirúrgica do obstáculo subaórtico por miectomia. dilatação biauricular. Na radiografia do tórax
O transplante cardíaco é uma opção que deve ser destacam-se cardiomegália e congestão pulmonar.
cuidadosamente avaliada depois de excluídas A ecocardiografia mostra sinais de dilatação auri-
causas extracardíacas da doença. A terapia génica cular sem alterações ventriculares evidentes. O
dá neste momento os primeiros passos de um cateterismo cardíaco revela pressões telediastóli-
futuro promissor. cas elevadas, hipertensão pulmonar e aumento da
O prognóstico é variável devido à heterogenei- resistência vascular pulmonar.
dade genética e à variabilidade das causas
secundárias. Estima-se, para a totalidade da po- Tratamento e prognóstico
pulação (crianças e adultos) um risco de morte A terapêutica médica anticongestiva (vasodilata-
súbita de 1% por ano. Nos doentes sintomáticos dores sistémicos, diuréticos, inotrópicos) não
com menos de um ano de idade o prognóstico é altera o curso desta doença, considerando-se que
particularmente adverso e a causa de morte é o único tratamento adequado é o transplante car-
habitualmente insuficiência cardíaca (90%). díaco. A utilização de vasodilatadores pulmonares
antes do transplante pode contribuir para melho-
3. Cardiomiopatia restritiva rar o pós-operatório destes doentes.
O prognóstico dos doentes não transplantados
As cardiomiopatias restritivas caracterizam-se por é reservado, com sobrevida de 20 a 30% aos 10
disfunção ventricular diastólica com função anos. O tempo médio entre o diagnóstico e o
sistólica preservada, ausência de hipertrofia ou transplante é ~ 2 a 3 anos. Como a história natural
dilatação ventricular e dilatação biauricular. da doença é heterogénea, é difícil estabelecer
(primeiramente disfunção diastólica, muitas vezes momento ideal para o transplante cardíaco. No
combinada com disfunção sistólica). entanto, a descompensação hemodinâmica condi-
ciona negativamente o prognóstico da cirurgia.
Aspectos epidemiológicos
Constituem 2,5 a 5% dos casos de cardiomiopatia. 4. Outras Cardiomiopatias
Na maioria dos casos, não é possível identificar a
causa (formas idiopáticas). Alguns casos são se- Ventrículo esquerdo não compactado
cundários a doenças infiltrativas miocárdicas,
fibrose endomiocárdica ou miopatias familiares. O ventrículo esquerdo não compactado é uma car-
diomiopatia secundária a provável paragem na
Manifestações clínicas morfogénese endomiocárdica fetal, a qual resulta
A restrição da drenagem venosa pulmonar (para a em múltiplas trabeculações ventriculares proemi-
aurícula esquerda) e sistémica (para a aurícula nentes e recessos intraventriculares profundos.
1038 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Aspectos epidemiológicos Aspectos epidemiológicos e genéticos


Embora estejam descritos apenas algumas cente- Verifica-se em geral hereditariedade autossómica
nas de casos em idade pediátrica, publicações dominante com penetrância variável. Descrita há
recentes sugerem que a doença corresponde a três décadas, tem sido progressivamente reco-
cerca de 10% do total das cardiomiopatias. nhecida como causa importante de morte súbita
Regista-se uma incidência familiar de 20 a 50% em adultos.
e uma associação com malformações cardíacas
simples, como comunicações interventriculares, Manifestações clínicas
em cerca de 40% dos casos. Estudos referentes a As arritmias ventriculares são a forma predomi-
populações adultas referem coexistência de nante de apresentação da doença, habitualmente
doenças neuromusculares em 80% dos casos. na idade adulta. A doença é rara em crianças,
estando, no entanto, descrita em adolescentes. Os
Manifestações clínicas casos avançados apresentam-se com insuficiência
A apresentação clínica é variável. Cerca de dois cardíaca direita.
terços dos doentes apresentam insuficiência
cardíaca no primeiro ano de vida; nos restantes a Exames complementares
doença é detectada em ecocardiogramas efectua- O diagnóstico resulta da combinação de dados re-
dos por sopro cardíaco ou por alterações electro- lativos à história familiar, alterações electrocardio-
cardiográficas minor. Estão descritos casos de gráficas (ondas T invertidas nas derivações pre-
embolias e arritmias ventriculares. cordiais direitas, taquicárdia ventricular com blo-
queio de ramo esquerdo, potenciais tardios, entre
Exames complementares outros), detecção de arritmias (em registos de
As alterações electrocardiográficas, presentes em Holter ou provas de esforço) e alterações macro ou
75% dos doentes, consistem em hipertrofia ven- microscópicas do ventrículo direito. A ressonância
tricular, alterações da repolarização, vias de con- magnética nuclear tem sido recentemente sugeri-
dução acessórias e extrassistolia. da como meio de diagnóstico morfológico não
O ecocardiograma identifica a anatomia carac- invasivo ideal.
terística que inclui o aspecto “espongiforme” do
ventrículo esquerdo, habitualmente no septo e Tratamento e prognóstico
parede posterior. A função ventricular sistólica O tratamento médico consiste na utilização de
está geralmente afectada. Os critérios ecocardio- antiarrítmicos, estando a utilização de cardiover-
gráficos quantitativos, propostos para doentes sores-desfibrilhadores implantáveis reservada
adultos, não são consensuais para a população para casos refractários ou com história de síncope.
pediátrica.
BIBLIOGRAFIA
Tratamento e prognóstico Ali SK, Godman MJ. The variable clinical presentation of, and
O tratamento é sintomático. A transplantação outcome for, noncompaction of the ventricular myocardi-
cardíaca é a única opção nos casos refractários. A um in infants and children, an under-diagnosed cardiomy-
evolução da doença é variável, registando-se me- opathy. Cardiol Young 2004; 14: 409-416
lhoria da função ventricular nalguns casos. A mor- Hulot JS, Jouven X, Empana JP, Frank R, Fontaine G. Natural
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PARTE XXIII
Reumatologia
1042 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

218
QUADRO 1 – Classificação das Doenças
Reumáticas Juvenis mais comuns
(cont.)

2. Síndromas auto-inflamatórias
• Hereditárias
INTRODUÇÃO À CLÍNICA Relacionadas com CIAS*; Síndroma de Muckle Wells;
Síndroma da urticária familiar ao frio; Síndroma de
DAS DOENÇAS REUMÁTICAS CINCA
Não relacionadas com CIAS: PAPA, Febre mediterrâni-
JUVENIS ca familiar; HIDS (síndroma de hiper IgD); TRAPS;
Doença de Crohn familiar; Síndroma de Blau
J. A. Melo Gomes • Não Hereditárias
PFAPA; Osteomielite multifocal crónica recorrente; AIJ
sistémica – alguns casos de forma sistémica persistente
ou recorrente
3. Espondilatropatias juvenis
Importância do problema
• Espondilite anquilosante juvenil
e sistematização
• Artrites reactivas / Síndroma de Reiter
• Artrite psoriásica
As doenças reumáticas crónicas juvenis são cons-
• Artrites associadas à doença inflamatória crónica do
tituídas por um amplo grupo de patologias da
intestino
infância e juventude que têm a característica
• Espondilartropatias indiferenciadas
comum de envolverem estruturas do aparelho lo- 4. Febre Reumática / Reumatismo Pós-estreptocócico
comotor em particular, e do tecido conjuntivo em 5. Conectivites / Vasculites Juvenis
geral. Por este motivo, estas doenças podem afec- (Doenças difusas do tecido conjuntivo)
tar não só estruturas específicas do aparelho loco- • Lupus eritematoso sistémico
motor (membrana sinovial articular, cartilagem • Doença mista do tecido conjuntivo
articular, tendões, músculos, ossos), mas também • Síndroma anti-fosfolípidos
outros órgãos e sistemas. • Esclerodermia
Surgindo numa fase da vida particular, na qual • Dermatomiosite / Polimiosite
a experimentação física individual desempenha • Vasculites necrosantes
um papel tão importante no crescimento e matu- – Púrpura de Schonlein-Henoch
ração da criança e/ou do adolescente, estas – Poliarterite nodosa
– Doença de Kawasaki
QUADRO 1 – Classificação das Doenças – Poliarterite microscópica
Reumáticas Juvenis mais comuns – Granulomatose de Wegener
– Doença de Takayasu
1. Artrites Idiopáticas Juvenis – Granulomatose de Churg-Strauss
• Sistémica 6. Síndromas associadas a imunodeficiência
• Oligoarticular persistente 7. Dores “de crescimento”
• Oligoarticular estendida 8. Sinovite transitória da anca
• Poliarticular com factores reumatóides (FR) IgM no soro 9. Manifestações osteoarticulares de doenças não
• Poliarticular sem factores reumatóides (FR)IgM no soro reumáticas da infância
10. Artrites infecciosas / Osteomielite
• Artrite psoriásica
11. Osteocondroses idiopáticas juvenis
• Artrite associada a entesite (alta probabilidade de
12. Epifisiólise proximal do fémur
espondilartropatia juvenil)
13. Doenças hereditárias do tecido conjuntivo
• Outras formas (inclassificáveis; classificáveis em mais
14. Síndroma de hipermobilidade articular benigna
de um subgrupo) (continuação)
*CIAS = cold induced autoinflammatory syndrome
CAPÍTULO 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) 1043

219
doenças podem ter profundas repercussões sobre
o desenvolvimento normal dos jovens por elas
afectadas.
Pelas suas repercussões sobre o olho, cons-
tituem também uma causa de perda de visão neste
grupo etário.
As manifestações clínicas iniciais dependerão ARTRITES IDIOPÁTICAS
sempre da doença em presença, podendo, por isso,
ser muito diversas (Capítulo 112). JUVENIS (AIJ)
No Quadro 1 indica-se uma classificação pos-
sível das doenças reumáticas crónicas juvenis. J. A. Melo Gomes
Por ausência de espaço para englobar todas
estas situações clínicas, algumas das quais serão
motivo doutros capítulos deste livro, iremos abor-
dar sucessivamente a classificação e evolução de Introdução histórica
conceitos das artrites idiopáticas juvenis (AIJ), as
várias doenças englobadas sob a designação Do ponto de vista histórico, o primeiro estudo de
comum de AIJ, as síndromas auto-inflamatórias, casos de artrite juvenil com as características do
as doenças difusas do tecido conjuntivo juvenis grupo de doenças que estamos a considerar foi
mais frequentes (incluindo as vasculites necrosan- publicado em 1864, por Cornil, numa doente de 29
tes juvenis) e a febre reumática. anos, com doença iniciada aos 12 anos de idade.
A primeira publicação de casos em idade pe-
BIBLIOGRAFIA diátrica é de 1881 por Moncorvo, autor brasileiro
(consultar Bibliografia do Capítulo 219) que fez a sua “thèse de doctorat” em Paris, sobre
uma doente de 2 anos de idade, não se sabendo se
voltou a publicar algum outro estudo sobre o mes-
mo tema.
A primeira série bem estudada foi publicada
em 1891, também como thèse de doctorat em Paris,
por Diamant-Berger, médico francês que reviu 38
casos clínicos, 4 dos quais da sua observação pes-
soal. Este autor passou o resto da sua vida clínica
como obstetra na cidade de Lyon, não se con-
hecendo nenhuma publicação posterior sua sobre
o mesmo assunto.
A primeira análise criteriosa da doença reumáti-
ca crónica da criança foi publicada por George
Frederic Still no Reino Unido 1897, tendo sido este
mesmo trabalho lido por Sir Alfred Garrod, outra
figura ímpar dos primórdios da Reumatologia
inglesa, que estabeleceu pela primeira vez a relação
entre hiperuricémia e gota.
Nesse estudo Still não só identifica e caracteri-
za bem a forma sistémica de artrite idiopática ju-
venil (AIJ), como chama a atenção para a sua
potencial gravidade (com mortalidade, nessa
altura, superior a 10% num seguimento de cerca
de 5 anos) e a distingue de outra forma de AIJ em
que a doença é predominantemente articular, che-
1044 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

gando a propor que se trataria de duas doenças mização de critérios, estabeleceu-se a designação
diferentes, quer clínica, quer patogenicamente. de artrites idiopáticas juvenis, (AIJ), através de
Seguindo a tradição dos autores que no século um grupo de trabalho de nomenclatura e classifi-
XIX publicaram sobre as AIJ, Still nunca mais cação das doenças reumáticas crónicas juvenis,
voltou a abordar este tema, apesar de uma activi- patrocinado pela ILAR (International League
dade editorial extensa, ligada à Medicina e à Against Rheumatism).
Pediatria, tendo mesmo publicado várias edições A denominação descritiva de ACJ pressupõe
de um tratado de doenças da criança, no qual que não se trata de uma doença, mas sim de um
nunca se referiu às doenças reumáticas crónicas grupo de patologias caracterizadas pela presença
juvenis. de doença inflamatória articular – Artrite – que
Já no século XX e no Reino Unido, duas figuras cursa com duração superior ou igual a 3 meses –
se destacam na história da evolução de conceitos Crónica – num grupo etário bem definido – Juvenil
relativos às artrites juvenis. São elas Eric Bywa- – tendo início antes de se completar o 16º ano de
ters, Reumatologista de mérito universalmente vida. Este diagnóstico obriga à exclusão de um
reconhecido, com trabalhos de importância fun- largo grupo de doenças da infância que podem ter
damental na histopatologia das doenças reumáti- sintomas semelhantes aos da ACJ (Quadro 1).
cas e nas doenças reumáticas crónicas juvenis, que A ACJ foi subdividida em três formas distin-
começou a trabalhar este assunto numa altura tas, classificadas de acordo com a evolução clínica
(1948, após o fim da II Guerra Mundial) em que a durante os primeiros 6 meses de doença: a forma
doença reumática juvenil mais comum em todas Sistémica, a forma Poliarticular e a forma Oligoar-
as enfermarias do Canadian Memorial Red Cross ticular, representando provavelmente doenças
Hospital, em Taplow – Inglaterra, era a febre diferentes.
reumática. Na forma Sistémica predominam as manifes-
tações extra-articulares:
Classificação e evolução de conceitos • febre alta intermitente (presente em 100%
dos casos) com picos febris vespertinos
No início dos anos 60 Barbara Margareth Ansell (≥39ºC) e apirexia ou temperaturas sub-
juntou-se à equipa médica de Taplow e ajudou febris matinais;
este centro a atingir o topo da reumatologia pediá- • exantema macular eritematoso (80% dos
trica mundial, centro de referência e formação casos), de cor rósea ou salmão, por vezes
para muitos dos que agora dirigem conceituados muito fugaz, que pode estar presente apenas
serviços e unidades de Reumatologia Pediátrica durante os picos febris e se pode associar a
em todo o Mundo. fenómeno de Koebner;
A estes autores se devem os primeiros critérios • hepatosplenomegalia (60% dos casos);
de classificação da EULAR (European League • adenomegalias generalizadas (50% dos casos);
Against Rheumatism), bem como a designação de • serosite (20% dos casos) – geralmente sob
Artrite Crónica Juvenil, que durante algumas forma de pericardite, que tem expressão
décadas foi a mais prevalente segundo reumatolo- clínica em 5% dos casos e pode ser detectada
gistas e pediatras europeus. ecocardiograficamente em cerca de 20% dos
As patologias reumáticas crónicas da infância doentes; a pleurite e a peritonite asséptica
e adolescência que originam maior número de são muito mais raras.
consultas (cerca de 60% do total das consultas As manifestações articulares, indispensáveis
externas de Reumatologia Pediátrica) encontram- para o diagnóstico, podem ser muito escassas, ou
se no grupo das doenças crónicas anteriormente estar mesmo ausentes (20% dos casos), nas
designadas por artrite crónica juvenil (ACJ), na primeiras semanas ou meses de doença. A médio-
Europa, e artrite reumatóide juvenil (ARJ) nos longo prazo cerca de 40% dos doentes com esta
Estados Unidos da América e grande parte do forma de doença vêm a sofrer de poliartrite exten-
continente Americano. sa, e muitas vezes incapacitante. A amiloidose
Recentemente, numa tentativa séria de unifor- secundária, embora rara (< 2%), é um risco a con-
CAPÍTULO 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) 1045

QUADRO 1 – Critérios de diagnóstico de antes dos 6 anos de idade, atingem predominante-


Artrite Crónica Juvenil, Formas mente o sexo feminino (6/1), e acompanham-se
de Início e Lista de Exclusões a com frequência de uveíte crónica assintomática ou
que este diagnóstico obriga*. oligossintomática (40%) e anticorpos antinuclea-
res presentes no soro (70%).
Critérios de Diagnóstico As formas oligoarticulares tardias, que se ini-
• Artrite de 1 ou mais articulações ciam habitualmente após os 10 anos de idade,
• Duração mínima de 3 meses atingem predominantemente o sexo masculino
• Início antes dos 16 anos de idade (3/1) e acompanham-se frequentemente de ente-
• Exclusão de outras causas de artrite site ou processo inflamatório na zona de inserção dos
Formas de Início tendões e ligamentos (25%) e de uveíte anterior
• Sistémica aguda (20%), sendo o antigénio de histocompati-
• Poliarticular bilidade HLA B27 detectável em cerca de 60%
• Oligoarticular destes doentes. Se o período de acompanhamento
Lista de Exclusões for suficientemente prolongado (≥10 anos), muitos
• Artropatias com características específicas destes doentes virão a evoluir de forma a poderem
– Infecciosas (bacterianas mal tratadas, tuberculose) ser classificados como sofrendo de doenças do
– Alterações imunológicas não reumatológicas (agama- grupo das espondilartropatias.
globulinemia) Outros doentes com início oligoarticular não
– Doenças hematológicas (hemofilias, leucoses) têm características específicas e, após um lapso de
– Neoplasias (neuroblastoma, etc.) tempo maior ou menor, entram em remissão sem
– Psicogénicas sequelas articulares significativas.
• Doenças distintas do sistema músculo-esquelético Nas formas Poliarticulares são atingidas 5 ou
– Polimiosite e dermatomiosite mais articulações no decurso dos primeiros 6
– Esclerodermia meses de doença, sendo nestas formas de ACJ
– Síndroma de Sjögren
mais comum a incapacidade articular se o trata-
– Doença mista do tecido conjuntivo
mento não for precoce e agressivo.
– Vasculites necrosantes (Schönlein-Henoch, etc.)
Na ACJ Poliarticular com FR IgM presentes
– Doença de Behçet
no soro a evolução clínica, laboratorial e radioló-
– Doenças não reumáticas (condromalácia, epifisites de
gica é sobreponível à da AR do adulto. Há nítido
crescimento, epifisiólises, etc.)
predomínio do sexo feminino (5/1) e, por regra, o
• Doenças específicas que podem causar problemas no
início é mais tardio (após os 10 anos de idade) que
diagnóstico
nos outros casos de ACJ poliarticular. É comum a
– Febre reumática
poliartrite periférica extensa, com envolvimento
– Lupus eritematoso sistémico
bilateral, simétrico e com carácter aditivo, das
– Artrites reactivas
pequenas articulações das mãos, punhos e pés,
* “Nomenclature et classification de l’arthrite chez l’enfant”.
EULAR Bulletin. 1977; 6:101-105.
entre outras. As erosões ósseas radiológicas são
frequentes e precoces. (Figuras 1 e 2)
Nos doentes com ACJ Poliarticular sem FR
siderar nos doentes com doença contínua por perío- IgM, reconhecem-se vários tipos diferentes de
do superior a 5 anos. evolução clínica: alguns com doença articular pro-
Nas formas Oligoarticulares, ou pauciarticu- gressiva e grave, como a AR do adulto; outros que
lares, são atingidas apenas uma a quatro articu- alguns anos depois virão a sofrer de psoríase,
lações nos primeiros 6 meses de doença; quando podendo então ser classificados como tendo
apenas uma articulação é atingida, trata-se de uma artrite psoriásica; outros que evoluem como
monoartrite, cuja investigação diagnóstica deve espondilartropatias, com entesite e envolvimento
levar em consideração a possibilidade de artrite do esqueleto axial (coluna dorso-lombar e sacro-
infecciosa. ilíacas); e ainda outros que virão a entrar em re-
As formas oligoarticulares precoces, iniciadas missão ou a evoluir com menor número de arti-
1046 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

cujo diagnóstico e classificação definitivos exigem


muitas vezes a passagem de anos, ou mesmo
décadas. Nesta classificação reconhece-se como
Artrite Reumatóide Juvenil um subgrupo de doen-
tes, com início de forma poliarticular e factores
reumatóides IgM presentes no soro, que têm clíni-
ca, laboratório, radiologia e prognóstico sobre-
poníveis aos da AR do adulto.
A designação de ARJ – Artrite Reumatóide
Juvenil, do American College of Rheumatology,
embora não seja sobreponível à de ACJ (Quadro 2)
FIG. 1
(pois a duração mínima da artrite é 6 semanas e a
ACJ poliarticular: notória tumefacção das articulações lista de exclusões é diferente, nomeadamente no
interfalângicas dos dedos das mãos. que respeita à exclusão de todas as doenças do
grupo das espondilartropatias), envolve uma po-
A pulação de doentes em grande parte sobreponível.
As designações ACJ ou ARJ não se referem a
uma doença específica, mas sim a um grupo de
patologias que surgem num determinado grupo
etário; por isso, o conceito de Artrite Reumatóide
Juvenil dos autores americanos é inaceitável por
todos os que conhecem bem a AR do adulto e com-
preendem que a maior parte das crianças que sofre
de ARJ tem uma doença distinta da AR. Acresce que,
cada vez mais, os pais e os próprios adolescentes
recorrem a enciclopédias médicas familiares e
tomam conhecimento do que pode significar sofrer
B de artrite reumatóide, sem que lhes seja informado
que a doença em questão pode ser completamente
distinta. Tal circunstância gera, assim, ansiedade e
receios muitas vezes injustificados.
Os critérios de classificação da ILAR, criados
em Santiago do Chile e revistos em Durban e
Edmonton constituem uma abordagem mais actu-
al e orientada para a definição de características
clínicas, laboratoriais e imunogenéticas que per-
mitam, no futuro, identificar doenças reumáticas
diferentes com características clínicas semelhantes
iniciadas neste grupo etário.
FIG. 2
Estas três classificações das doenças reumáti-
ACJ poliarticular. Compromisso das pequenas articulações das cas juvenis, embora com diferenças importantes
mãos (A), sendo evidentes na radiografia (B) sinais de erosão entre elas, envolvem uma população de doentes
óssea. largamente sobreponível, estando estes conceitos
em plena evolução. Enfermam do defeito comum
culações atingidas, chegando à idade adulta sem de não atribuir às doenças da infância o nome que
sequelas articulares significativas. as mesmas doenças têm quando surgem na idade
Como se torna fácil perceber, sob a classifi- adulta (apenas a classificação da ACJ em subgru-
cação de ACJ encontram-se numerosas doenças pos o faz, ainda que de forma incompleta).
reumáticas crónicas da infância e adolescência, Para obviar a diferenças regionais, entre a
CAPÍTULO 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) 1047

QUADRO 2 – Comparação das classificações de Artrite Crónica Juvenil (ACJ), Artrite Reumatóide
Juvenil (ARJ) e Artrites Idiopáticas Juvenis (AIJ)

ARJ ACJ AIJ


Idade de início < 16 anos < 16 anos < 16 anos
Duração ≥ 6 semanas ≥ 3 meses ≥ 6 semanas
Tipos de início Pauciarticular: < 5 Oligoarticular: < 5 Oligoartrite: < 5
Poliarticular: > 4 Poliarticular: > 4 Poliartrite: > 4
Sistémico: Febre+Artrite Sistémico: Febre+Artrite Sistémico: Febre+Artrite
Subgrupos Nenhum ARJ: Poliartrite e FR IgM(+) Sistémica: Febre+Artrite
de classificação Espondilite anquilosante Oligoartrite:
Artrite psoriásica Persistente
Estendida
Poliartrite FR IgM(-)
Poliartrite FR IgM(+)
Artrite psoriásica
Artrite com entesite
Outras
Não classificáveis
Classificáveis em mais
de um subgrupo
Comentários O nome é enganador, Designação descritiva, Definições de tipo de
fazendo pensar que não se confunde doença semelhantes
se trata de uma só doença com uma doença. às restantes.
Considera 3 doenças Reconhece e valoriza
distintas. heterogeneidade clínica
como podendo significar
doenças diferentes.

Europa e os Estados Unidos da América, decidiu- Exclusões:


se optar por uma designação genérica que não Psoríase ou história de psoríase, no doente ou
fosse igual a nenhuma das duas anteriormente uti- em familiares de 1º grau.
lizadas, e que indicasse sem dúvidas que se trata- Artrite iniciada após os 6 anos no sexo mas-
va de doenças da infância de causa desconhecida. culino, e associada ao HLA B27.
Daí o termo Artrites Idiopáticas Juvenis (AIJ). Espondilite anquilosante, artrite relacionada
Estes critérios de classificação das AIJ conside- com entesite, sacroileíte com doença inflamatória
ram os seguintes grupos: do intestino, síndroma de Reiter ou uveíte anterior
aguda, ou história de uma destas doenças num
Artrite sistémica familiar de 1º grau.
Caracterizada pela presença de artrite, precedida Presença de FR IgM em duas determinações
ou acompanhada de febre diária, intermitente, com o mínimo de 3 meses de intervalo.
com o mínimo de duas semanas de duração, acom-
panhada de uma ou mais das seguintes mani- Oligoartrite
festações: Artrite afectando uma a quatro articulações du-
1. Exantema eritematoso fugaz rante os primeiros 6 meses de doença. Reconheci-
2. Linfadenopatias generalizadas das duas subcategorias:
3. Hepatomegalia e/ou esplenomegalia 1. Oligoartrite persistente – não atinge mais de 4
4. Serosite articulações durante todo o curso da doença.
1048 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

2. Oligoartrite estendida – atinge 5 ou mais arti- Exclusões:


culações após os primeiros 6 meses de doença. Presença de FR IgM no soro.
Exclusões: Presença de artrite sistémica, conforme defini-
Psoríase ou história de psoríase no doente ou da acima.
familiar de 1º grau, ou doença associada ao HLA Artrite iniciada após os 6 anos no sexo mas-
B27, confirmada por médico. culino, e associada ao HLA B27.
Artrite iniciada após os 6 anos no sexo mas- História de espondilite anquilosante, artrite
culino, e associada ao HLA B27. relacionada com entesite, sacroileíte com doença
Espondilite anquilosante, artrite relacionada inflamatória do intestino, síndroma de Reiter ou
com entesite, sacroileíte com doença inflamatória uveíte anterior aguda num familiar de 1º grau.
do intestino, síndroma de Reiter ou uveíte anterior
aguda, ou história de uma destas doenças num Artrite relacionada com entesite
familiar de 1º grau. Definida como:
Presença de FR IgM em duas determinações 1. Artrite e entesite.
com o mínimo de 3 meses de intervalo. 2. Artrite ou entesite com o mínimo de 2 das
Presença de artrite sistémica, conforme defini- manifestações seguintes:
da acima. (ver glossário) (a) Dor sacroilíaca e/ou dor inflamatória da
coluna.
Poliartrite (b) Presença do HLA B27.
(factores reumatóides IgM negativos) (c) História familiar em, pelo menos um fami-
Artrite afectando 5 ou mais articulações durante liar de primeiro ou segundo grau, de doen-
os primeiros 6 meses de doença, com pesquisa de ça associada ao HLA B27, confirmada por
FR IgM persistentemente negativa. médico.
(d) Uveíte anterior aguda, associada a dor,
Exclusões: inflamação ocular e fotofobia.
Psoríase ou história de psoríase no doente ou (e) Início da artrite no sexo masculino, após os
familiar de 1º grau, ou doença associada ao HLA 8 anos de idade.
B27, confirmada por médico.
Artrite iniciada após os 6 anos no sexo mas- Exclusões:
culino, e associada ao HLA B27. História familiar de psoríase, confirmada por
Espondilite anquilosante, artrite relacionada um dermatologista em, pelo menos, um familiar
com entesite, sacroileíte com doença inflamatória de primeiro ou segundo grau.
do intestino, síndroma de Reiter ou uveíte anterior Presença de artrite sistémica, conforme defini-
aguda, ou história de uma destas doenças num da acima.
familiar de 1º grau.
Presença de artrite sistémica, conforme defini- Outras artrites
da acima. Crianças com artrite de causa desconhecida, que
persiste durante o mínimo de 6 semanas, mas que:
Artrite psoriásica 1. Não preenche critérios para nenhuma das
Definida como: restantes categorias.
1. Artrite e psoríase. 2. Preenche critérios para mais que uma das
2. Artrite associada a, pelo menos, 2 das se- restantes categorias.
guintes manifestações:
(a) Dactilite. Exclusões:
(b) Alterações ungueais (picotado ou onicólise). Doentes que preenchem critérios para apenas
(c) História familiar de psoríase, confirmada uma das outras categorias.
por um dermatologista em, pelo menos, um
familiar de 1º grau. Como pode ser facilmente avaliado, estes cri-
térios continuam a enfermar de alguns problemas
CAPÍTULO 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) 1049

relacionados com a sua filosofia de base. Nomea- 5. Os critérios não estão validados por nenhum
damente é de salientar que: estudo prospectivo.
1. Não identificam, de forma coerente, os
vários grupos da classificação como doenças, Assim sendo, é fácil compreender que as
quando tal poderia ser feito em relação aos várias tentativas de classificação atrás expostas
seguintes: não são definitivas e têm vindo a evoluir no senti-
(a) Artrite sistémica – situação que tem a desi- do de aproximar a comunidade médica interna-
gnação de doença de Still do adulto, quando se cional em torno de uma forma de classificação que
inicia após os 16 anos de idade; possa ser partilhada por todos.
(b) Poliartrite com FR IgM positivos – corres- É assim previsível que, a curto-médio prazo, a
pondendo à artrite reumatóide, deveria, por isso, designação passe a ser de Artrite Juvenil e os vários
ser classificada como Artrite Reumatóide Juvenil; subgrupos iniciais sejam considerados, sempre que
(c) Artrite relacionada com entesite – corres- possível, como doenças independentes, tais como a
ponde, quase sempre, a formas de espondilartro- doença de Still ou AIJ sistémica, a artrite reumatóide
patia juvenil; por vezes é necessário esperar juvenil (isto é, AIJ poliarticular ou oligoarticular
muitos anos, ou mesmo décadas, até à total estendida com factores reumatóides IgM presentes
eclosão do quadro clínico, o qual (tal como sucede no soro e evolução clínica sobreponível à da artrite
por vezes no adulto) pode ser bastante benigno; reumatóide do adulto), e as espondilartropatias,
(d) Oligoartrite, persistente ou estendida (com incluindo a espondilite anquilosante, a síndroma de
ANA positivos e/ou uveíte crónica); trata-se de Reiter e as espondilartropatias indiferenciadas, bem
uma forma de doença reumática crónica exclusiva- como a artrite psoriásica juvenil e as artrites asso-
mente encontrada em crianças sendo que não há ciadas à doença inflamatória crónica do intestino.
casos idênticos descritos na idade adulta; As maiores vantagens desta classificação con-
(e) Não aplicam os critérios de diagnóstico da sistem no facto de: por um lado, se poder aliviar a
AR do adulto, que permitiriam identificar casos ansiedade dos pais com a atribuição de uma desi-
de AR entre as crianças com Poliartrite e FR IgM gnação provisória nos casos, nada raros, em que
negativos; um diagnóstico definitivo não é possível, ou
(f) Apenas identificam como doença a Artrite demora meses ou anos a concretizar-se; e, por
psoriásica, com critérios de diagnóstico muito outro lado, ao atribuir-se uma designação única a
semelhantes aos publicados previamente por estas várias patologias (cada uma por si pouco
autores que redigiram os critérios da AIJ de Durban. comum), consegue-se uma massa crítica de
2. Não reconhecem explicitamente que em doentes e vontades que podem auxiliar a defender
muitos casos de AIJ o diagnóstico definitivo só estas crianças nos ambientes escolar, vocacional,
pode ser conseguido na idade adulta, por muito de apoio social e outros.
cuidadosos e competentes que sejam os Reuma- O Quadro 3 sintetiza a correspondência entre os
tologistas Pediatras. grupos de classificação das AIJ e a classificação
3. Não realçam a existência de doenças reumáti- actual das doenças reumáticas do adulto.
cas crónicas próprias da infância, para as quais se Do ponto de vista da abordagem diagnóstica
poderia propor uma designação específica. destas doenças é óbvio que só poderemos evocar
4. Parecem desconhecer o verdadeiro significa- uma suspeita de AIJ se uma criança ou adoles-
do do termo “idiopático”, recusando-se a consi- cente tiver artrite, pelo menos numa articulação,
derar como tal doenças mais bem caracterizadas, iniciada em idade inferior a 16 anos.
como por exemplo o lúpus eritematoso sistémico Ter artrite significa não apenas existir dor arti-
(LES) e a dermatomiosite juvenil (DMJ), em que cular, mas esta associar-se a tumefacção, aumento
esta designação tambem é aplicável. Obviamente da temperatura local (menos comum nas artrites
que não se propõe que o LES e a DMJ façam parte crónicas que nas agudas) e/ou limitação de movi-
deste grupo de doenças; contudo trata-se também mentos das articulações atingidas. (ver adiante)
de doenças idiopáticas e o seu início é muitas É importante salientar que muitas vezes as
vezes juvenil. crianças mais pequenas podem verbalmente negar
1050 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 3 – Correspondência entre os grupos de classificação das AIJ de Durban – Edmonton


e a classificação actual das doenças reumáticas do adulto

Classificação das AIJ – ILAR / Durban – Edmonton Grupo nosológico correspondente nos adultos
Artrite sistémica Doença de Still
Poliartrite com FR IgM presentes Artrite reumatóide
Poliartrite com FR IgM negativos Artrite reumatóide sem FR IgM (deveriam ser utililizados
na criança os critérios do ACR)
Espondilartropatias
Oligoartrite com ANA+ e/ou uveíte crónica Sem correspondência no adulto
Oligoartrite estendida com FR IgM + Artrite reumatóide
Oligoartrite tardia / HLA B27 Espondilartropatias
Artrite relacionada com entesite Espondilartropatias
Artrite psoriásica juvenil Artrite psoriásica
Outras / Inclassificáveis Diagnóstico preciso a definir na idade adulta

a existência de dor articular, sendo esta apenas QUADRO 4 – Artrites Idiopáticas Juvenis
confirmada pela observação da expressão facial
enquanto se explora a mobilidade das articulações Como suspeitar?
envolvidas. (Quadro 4) • Presença de ARTRITE (pelo menos 2 das três manifes-
O diagnóstico de AIJ pressupõe também a tações seguintes: dor articular / tumefacção articular
exclusão de várias doenças juvenis que podem / limitação da mobilidade articular) de uma ou mais
causar artrite no mesmo grupo etário. No Quadro articulações
5 estão indicadas as principais doenças que +
podem causar dificuldades no diagnóstico dife- • Duração superior ou igual a 6 semanas
rencial das AIJ. +
• Início das queixas antes dos 16 anos de idade
Aspectos epidemiológicos

Os dados publicados referentes à epidemiologia QUADRO 5 – Exclusões para o diagnóstico de AIJ


das artrites juvenis permitem-nos afirmar que não
se trata de situações raras, mas que ocorrem com • Lúpus eritematoso sistémico juvenil
grandes diferenças de prevalência nos vários paí- • Dermatomiosite juvenil
ses em que são estudadas. • Esclerodermia juvenil
Incidência e prevalência – A incidência destas • Vasculites sistémicas juvenis
doenças oscila entre 6 e 18 casos/100.000 crianças • Febre reumática
em risco/ano, mostrando, tal como os seus limites • Doenças infecciosas juvenis (tuberculose e brucelose
sugerem, grandes variações em regiões diferentes articulares, mononucleose infecciosa, osteomielite,
do globo. A prevalência mais aceite ronda os 100 hepatite B, rubéola, varicela, entre outras)
casos/100.000 jovens em risco, ou seja cerca de • Neoplasias (leucose, tumor da sinovial, sarcoma de
1/1.000, havendo locais em que este valor pode Ewing, linfoma, osteoma osteóide, entre outras)
mesmo ser superior.
Uma das razões óbvias para a disparidade de
números dos vários estudos epidemiológicos das constituição genética dessas comunidades também
artrites juvenis é a utilização de distintos critérios terá contribuído para as diferenças detectadas.
de diagnóstico das doenças e diferentes formas de Idade de Início – A definição do limite de idade
identificar os doentes atingidos nas diversas para o início de uma artrite juvenil como inferior
comunidades estudadas. Claro está que a diferente a 16 anos é totalmente arbitrária e tem a ver com a
CAPÍTULO 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) 1051

idade limite de internamento de doentes nos Algumas destas doenças têm alterações da
serviços de pediatria de países do norte da Europa imunidade humoral, incluindo presença de com-
e dos EUA, em meados do século passado. plexos imunes, vários auto-anticorpos e activação
A idade de início é diferente para as várias do complemento, por vezes com aumento dos
doenças que fazem parte do grupo das AIJ, como níveis séricos deste.
veremos abaixo, aceitando-se que o grupo total tem Por outro lado, há seguramente uma partici-
um pico de início entre os 1 e os 3 anos de idade, no pação genética múltipla, oligogénica ou poligéni-
qual existe nítida predominância do sexo feminino, ca, provavelmente responsável pelas alterações
distribuindo-se as restantes idades de início de imunológicas que causam a doença e que levam a
forma mais ou menos equilibrada até aos 16 anos. aumento da incidência familiar de algumas das
Sexo – No grupo total a relação entre sexos é doenças classificadas sob a designação de AIJ.
cerca de 2F/1M, sendo em todos os estudos publi- Face à heterogeneidade, quer dos quadros
cados o sexo feminino o mais afectado. Contudo, clínicos que são classificados como AIJ, quer da
esta diferença difere muito de acordo com o tipo de expressão clínica variável de cada uma dessas
AIJ que se considera. Assim, nas espondilartopatias doenças, será dificil ou impossível identificar um
juvenis o sexo masculino é afectado mais vezes agente etiológico, ou uma via patogénica única,
(3M/1F) que o feminino; na AIJ oligoarticular de que explique o desencadear destas doenças.
início precoce (em idade < 6 anos) com anticorpos O TNF-α e a IL-6 desempenham também um
antinucleares presentes no soro, o sexo feminino é importante papel na patogénese de muitas destas
atingido com muito maior frequência (5F/1M); e, doenças, o que tem implicações terapêuticas.
na forma sistémica, a frequência é praticamente As infecções, os traumatismos físicos e os fac-
igual nos dois sexos. tores psicológicos têm sido também implicados na
Cerca de 50-60% dos casos de AIJ têm início de patogénese, embora surjam sempre dúvidas sobre
forma oligoarticular,20-25% de forma poliarticular o seu papel.
e 15 a 20% de forma sistémica. Como noutros aspectos das AIJ, a avaliação
Influência geográfica e racial – As AIJ têm sido adequada dos factores etiológicos e patogénicos
descritas em todas as latitudes e etnias, sendo a sua só terá sucesso quando forem estudados grupos
epidemiologia bem conhecida nos países com homogéneos de doentes, que sofram de uma só
serviços de saúde mais desenvolvidos e mais bem doença.
organizados. Alguns estudos apontam para dife- Os antigénios de histocompatibilidade do grupo
renças entre populações de origem europeia e afri- HLA têm um papel em várias doenças classificadas
cana, enquanto outros detectaram números de acor- sob a designação comum de AIJ, o que explica o
do com a representação respectiva destas duas po- fenómeno de agregação familiar que se verifica no
pulações na comunidade em estudo, no mesmo país. grupo das espondilartropatias, e provavelmente
Em suma, estas doenças atingem todos os gru- também noutras situações clínicas distintas.
pos étnicos, com diferenças que ainda não são É bem conhecida a frequência aumentada dos
bem conhecidas. alelos A2, B27 e B35 dos antigénios HLA de classe I
na AIJ. O aumento da frequência do HLA B27,
Etiopatogénese detectado em vários estudos, é devido aos casos
de espondilite anquilosante juvenil e doutras
Não constituindo uma única doença, é fácil com- espondilartropatias juvenis que são incluídos em
preender que as AIJ não poderão ter todas a alguns dos vários subgrupos de AIJ. A presença
mesma etiologia e patogénese. deste antigénio constitui, pois, um marcador para
Alguns factos, porém, estão bem estabelecidos. o diagnóstico de espondilartropatia juvenil.
Por um lado, existe uma desregulação do sistema Também o HLA DR4, um antigénio HLA de
imunitário, com anomalia das células T que infil- classe II, é um marcador de pior prognóstico para
tram a membrana sinovial das articulações afec- alguns tipos de artrite, nomeadamente das formas
tadas, o que sugere o papel destas células na sistémica e poliarticular com factores reumatóides
patogénese da doença. IgM presentes no soro.
1052 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Manifestações clínicas dades escolares que as crianças têm durante as


primeiras aulas da manhã, as quais podem me-
As repercussões sobre o estado geral, nomeada- lhorar bastante ao longo do dia e gerar, por isso,
mente a anorexia, a perda de peso ou a falta de desconfiança e incompreensão dos professores
progressão do crescimento, surgem em muitas não informados desta característica da artrite.
crianças. Por vezes, a irritabilidade e a falta de A existência de dor nocturna pode contribuir
vontade de socialização (nomeadamente de brin- para um insuficiente período de sono nocturno e a
car com outras crianças ou de interagir com os consequente fadiga. Ao longo do dia, se uma
adultos) surgem quando as queixas articulares criança com artrite activa for forçada a ficar para-
impedem a mobilidade normal das crianças. da durante muito tempo (1-2 horas é por vezes
A febrícula pode surgir em várias formas da suficiente) pode ficar com rigidez articular, idênti-
doença, mas a febre alta, intermitente e com picos ca à rigidez matinal, mas habitualmente de menor
diários superiores a 39-40ºC, é própria da forma duração.
sistémica da AIJ, ou doença de Still. Quanto à tumefacção articular, ela pode ser
devida a edema dos tecidos moles periarticulares,
Artrite à presença de derrame sinovial e à hipertrofia da
A característica clínica que é comum a todas as for- membrana sinovial.
mas de AIJ é a artrite, cuja presença é indispensável O aumento local de temperatura pode detectar-
para que possa ser admitido este diagnóstico. se pela palpação. Já o rubor franco de uma grande
Um dos sintomas mais frequentes da artrite é a articulação, muito raro nas AIJ, pode evocar
dor; contudo, muitas crianças, particularmente as hipóteses diagnósticas alternativas, tais como as de
dos grupos etários mais baixos (<5 anos de idade), artrite séptica ou febre reumática.
não se queixam de dor, a qual é apenas revelada Por vezes uma articulação pode ter dimensões
quando se exploram os movimentos activos e pas- superiores às da contralateral sem que haja tume-
sivos das articulações atingidas, tal como atrás foi facção – tal acontece na doença oligoarticular em
referido. crianças de idade inferior a 5 anos, em que pode
Este facto levou a que muitos clínicos tenham haver uma maturação acelerada dos núcleos epi-
considerado que as crianças com artrite juvenil fisários adjacentes à articulação afectada cronica-
teriam menos dores que os adultos com artrite mente, com consequente crescimento assimétrico
reumatóide (AR). De facto, por um lado, a AR do do membro afectado. Uma vez curada a infla-
adulto não é a mesma doença que as AIJ e, por mação, tal alteração estrutural pode permanecer
outro, o desenvolvimento cognitivo e a maturação como sequela (e não ser sinal de persistência de
do adulto são diferentes dos da criança, o que leva inflamação), o que é particularmente frequente
a que o significado da dor seja também diferente nas formas oligoarticulares de AIJ.
neste grupo etário. Assim, na opinião do autor, Outra causa de tumefacção adjacente a uma
será abusivo inferir que as crianças com AIJ activa articulação é a presença de tendinite ou tenossi-
poderão não sofrer de dores articulares. novite – tal como a tenossinovite dos extensores
Além de dor articular que, quando isolada, se dos dedos, ao nível da face dorsal da mão e da
classifica como artralgia, para que possamos afirmar rádio-cárpica, ou a tendinite aquiliana. (Figura 3).
a presença de artrite é necessário que estejam pre- Todas as articulações do corpo podem ser
sentes outros sinais de inflamação articular, nomea- atingidas, mas nas formas oligoarticulares são
damente a tumefacção articular, a limitação de movi- atingidas predominantemente as grandes articu-
mentos e o aumento da temperatura local. O rubor é lações (sobretudo o joelho).
muito raro nas AIJ, embora possa ser visível nas Os ombros, as rádio-cárpicas, as pequenas arti-
pequenas articulações das mãos (IFP e IFD) de algu- culações das mãos (metacarpofalângicas e inter-
mas crianças mais pequenas com pele clara e poliar- falângicas proximais), as ancas, tíbio-társicas e
trite extensa (Quadro 7). Ver adiante Glossário. metatarsofalângicas são outras articulações atingi-
A rigidez matinal é uma manifestação fre- das com frequência, particularmente quando a
quente da artrite, sendo responsável pelas dificul- doença evolui de forma poliarticular extensa.
CAPÍTULO 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) 1053

prejudicar o normal crescimento da mandibula,


resultando assim o micrognatismo, que não é raro
quando a AIJ evolui para poliartrite extensa e se ini-
cia em idade inferior aos 10 anos.
O envolvimento das articulações esternoclavi-
culares e do manúbrio com o corpo do esterno
pode causar dor na face anterior do tórax, susceptív-
el de ser confundida com sinais de pericardite. A
dor à pressão local e o agravamento com os movi-
mentos respiratórios, inexistente na pericardite,
ajudam no diagnóstico diferencial entre as duas
entidades.
FIG. 3
Quando o envolvimento poliarticular é muito
Tenossinovite dos extensores dos dedos da mão. extenso, como acontece por vezes nas formas
poliarticulares e sistémica, o início se dá em idade
O envolvimento de algumas articulações deve ser baixa (geralmente inferior aos 6 anos), e a doença
salientado, pois pode provocar dificuldades no dia- é corticodependente, pode resultar uma diminui-
gnóstico diferencial com situações clínicas distintas. ção generalizada do crescimento, com baixa
Dentre estas, chamamos a atenção para o estatura. É, contudo, de referir que o mesmo fenó-
envolvimento da coluna cervical, por artrite das meno é bem mais raro em doentes com lúpus ini-
articulações interapofisárias posteriores e/ou da ciado no mesmo grupo etário, frequentemente,
atloido-odontoideia que, não sendo muito fre- sujeitos a doses mais altas de corticosteróides; por
quentes, podem ser das primeiras articulações tal motivo se admite que a própria poliartrite
atingidas em 2% dos casos, iniciando-se então a extensa desempenhará um papel relevante na
doença por um quadro de torcicolo, que pode ser génese desta alteração generalizada do crescimen-
confundido com sinais de inflamação meníngea. to. (Quadro 6)
Este tipo de envolvimento articular causa limi- A determinação do número de articulações
tação dolorosa dos movimentos da coluna cervi- afectadas é fundamental para a avaliação inicial
cal, com rigidez da nuca e perda dos movimentos da doença, sua classificação em oligoarticular ou
de extensão e rotação. A subluxação atloido-odon- poliarticular e comparação subsequente, bem
toideia é também comum, não tendo, porém, como para a avaliação da eficácia terapêutica. Por
repercussão neurológica na maior parte dos casos. esta razão é utilizada a folha representada no
As articulações têmporo-mandibulares (AT-M) Quadro 7, para registo do envolvimento articular,
são também atingidas com alguma frequência nas o qual deve ser efectuado quando a doença está
formas poliarticulares e sistémicas, havendo fre- activa em todas as consultas ou, pelo menos, 2
quentemente compromisso associado da coluna vezes por ano. Tal faz parte dos critérios de de-
cervical. Pela sua localização e por causarem dor, finição de melhoria clínica na AIJ.
por vezes intensa, localizada à face anterior do canal
auditivo externo, que se encontra muito próximo da QUADRO 6 – Alterações de crescimento nas AIJ
zona posterior da AT-M homolateral, o envolvi-
mento desta articulação pode causar problemas de Localizadas
diagnóstico diferencial com otite crónica, frequente • Braquidactilia
nos grupos etários mais baixos. Neste caso a dor é • Assimetria de crescimento (overgrowth)
desencadeada ou agravada pela abertura da boca, que • Micrognatismo
está habitualmente limitada; e a palpação da AT-M, Generalizadas
com o 5º dedo do observador no canal auditivo • Baixa estatura
externo, pressionando de trás para a frente, de- (AIJ sistémica ou poliarticular extensa / de início antes
sencadeia dor viva no local. A destruição dos dos 8 anos / corticodependente)
núcleos epifisários dos côndilos mandibulares pode
1054 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 7 – Registo das articulações atingidas com: Tumefacção (T), Dor (D) ou Movimentos
Limitados (ML)

LADO DIREITO LADO ESQUERDO


T D ML Articulações T D ML
Temporomandibular
Esternoclavicular
Acromioclavicular
Ombro
Cotovelo
Punho
MCF I
MCF II
MCF III
MCF IV
MCF V
IFP I
IFP II
IFP III
IFP IV
IFP V
IFD II
IFD III
IFD IV
IFD V
Coxofemoral
Joelho
Tibiotársica
Tarso
Astragalocalcaneana
MTF I
MTF II
MTF III
MTF IV
MTF V
IF I
IF II
IF III
IF IV
IF V

Coluna Cervical
Coluna Dorsal
Coluna Lombar
Sacroilíacas

Dolorosas Tumefactas Com Movimentos Limitados


Número total de articulações
Legenda: MCF = Metacarpofalângicas (I a V – 1º a 5º dedo das mãos); IFP = Interfalângicas proximais (I a V – 1º a 5º dedo das mãos); IFD = Interfalângicas distais (II a V – 2º a 5º dedo das
mãos); MTF = Metatarsofalângicas (I a V – 1º a 5º dedo dos pés); IF = Interfalângicas dos dedos dos pés (I a V – 1º a 5º dedo dos pés). Com uma cruz, ou preenchendo totalmente o respectivo
quadrado, indicam-se as articulações atingidas e o tipo de envolvimento detectado.
CAPÍTULO 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) 1055

Uma contagem articular cuidadosa deve ser gmentação cutânea sobre essas articulações.
registada na altura em que é efectuada. Os nódulos subcutâneos são raros, ocorrendo
A osteopenia e a osteoporose, de desuso e rela- em menos de 5% dos casos de AIJ, quase exclusi-
cionáveis com corticoterapia, são relativamente vamente nos doentes que evoluem como uma AR
comuns nos mesmos doentes com baixa estatura e do adulto (formas poliarticulares, com factores
envolvimento poliarticular muito extenso, por reumatóides IgM presentes no soro).
vezes com grandes incapacidades para a marcha. O linfedema dos membros e a vasculite
As fracturas de fragilidade, quer vertebrais, quer cutânea são muito raros.
de ossos longos, não são raras nestes doentes. A atrofia muscular é frequente, particularmente
Por estes motivos, o médico necessita de estar nos casos com poliartrite extensa ou naqueles em
particularmente alerta para esta complicação da que os posicionamentos articulares não são cuida-
doença e da respectiva terapêutica nos doentes de dosos durante as fases de inflamação mais activa.
maior risco. De realçar que, no adulto, a dose má- Podem resultar encurtamentos músculo-tendi-
xima considerada “segura” para o osso é 5mg de nosos, os quais causam contracturas em flexão,
prednisolona ou equivalente por dia, em toma por vezes de difícil resolução sem o recurso a téc-
única. nicas cirúrgicas.
O envolvimento cardíaco não é muito comum,
Manifestações extra-articulares mas deve ser reconhecido. A pericardite surge em
menos de 5% dos casos de AIJ, sendo quase exclu-
Nem só as articulações são envolvidas neste siva da forma sistémica; por estudos ecocardio-
grupo de doenças. gráficos 20% dos doentes com forma sistémica
A pele é tipicamente atingida na AIJ sistémica, terão evidência de envolvimento pericárdico. O
com um exantema macular ou máculo-papular tamponamento cardíaco por este motivo é muito
eritematoso, por vezes muito fugaz e que pode raro, mas encontra-se descrito.
surgir apenas durante os períodos de febre alta, e A miocardite e a endocardite são muito mais
estar completamente ausente nas horas do dia em raras. Esta última pode colocar dificuldade no
que a criança está apirética. Pode atingir o tronco diagnóstico diferencial com febre reumática como
e os membros, sendo raro na face. O exantema comorbilidade.
surge por vezes em zonas de atrito cutâneo (fenó- O envolvimento pleuropulmonar é bastante
meno de Kœbner) e pode ser desencadeado por mais raro. Ocasionalmente é detectável discreta
um arranhão com a unha do observador; consi- pleurite em doentes com forma sistémica e peri-
derado um dos sinais de actividade da doença. cardite clínica. O envolvimento do parênquima
Claro que as manifestações de psoríase na pele pulmonar, com fibrose intersticial grave, está
ou no couro cabeludo e/ou o picotado ungueal descrito e pode ser causa de exitus letalis.
típico podem ajudar no diagnóstico de artrite O sistema gastrintestinal pode ser envolvido na
psoriásica juvenil. Porém, é bom recordar que na AIJ, quer pela doença, como acontece nos casos
maioria das crianças com artrite psoriásica a associados a doença inflamatória crónica do
artrite precede durante meses ou anos o apareci- intestino (em que a típica diarreia, com sangue,
mento das lesões cutâneas típicas da psoríase. muco e pus, pode surgir apenas meses ou anos
Nas restantes formas de AIJ a pele pode ter após o início da artrite, só então sendo possível o
alterações devidas a toxicidade medicamentosa – diagnóstico definitivo), quer pelas terapêuticas
vários AINE, os corticosteróides e várias terapêu- utilizadas que podem causar iatrogenia a este
ticas modificadoras da doença (DMARD), como nível, (particularmente os AINE que causam
os sais de ouro, a sulfassalazina e os antipalúdi- desconforto abdominal, anorexia, e mesmo úlcera
cos, entre outros fármacos, podem provocar toxi- péptica). Quando a diarreia e sinais de má-
dermias variadas. Quando a poliartrite é extensa, absorção estão presentes desde o início, as hipóte-
envolve as pequenas articulações das mãos (IFP ses diagnósticas de mucoviscidose e de doença
e/ou IFD), e está activa por longos períodos de celíaca devem ser excluídas.
tempo, podem resultar fenómenos de hiperpi- A hepatomegalia e a esplenomegalia são
1056 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

comuns (50-60%) na AIJ sistémica, e muito menos Os ANA são positivos em cerca de 15% das
comuns nas restantes formas. crianças saudáveis, não servindo, isoladamente,
As adenomegalias generalizadas (mais de 3 para diagnosticar nenhuma doença auto-imune. A
territórios ganglionares distintos) são também sua positividade mais alta (60-70%) é atingida nas
muito frequentes na forma sistémica, detectando- crianças com AIJ monoarticular associada a uveíte
se em cerca de 50% dos casos. Vale a pena chamar crónica.
a atenção para uma forma particular de adenome- Proceder a mais exames complementares só
galia, a adenite mesentérica, que se pode observar será justificado em casos de suspeita forte de ou-
também na AIJ sistémica e causa dor e distensão tras alternativas diagnósticas; tal poderá aconte-
abdominal, levando por vezes à laparotomia com cer, mas é raro, pois o diagnóstico de AIJ é muitas
o falso diagnóstico de apendicite aguda; tal é fácil vezes relativamente fácil de se admitir.
de compreender se nos lembrarmos de que estas O exame do líquido sinovial pode ser impor-
crianças podem ter também febre alta e leucoci- tante para tentar excluir o diagnóstico de artrite
tose com neutrofilia. séptica. Contudo, os resultados das culturas são
O envolvimento renal é relativamente raro, mas a frequentemente negativos (cerca de 40% dos
iatrogenia (AINE, sais de ouro, D-penicilamina) casos) mesmo na presença de artrite séptica; por-
pode provocar alterações a este nível. Os sais de tanto este exame complementar pode confirmar,
ouro e a D-penicilamina, cuja utilização actual é mas não excluir, essa hipótese diagnóstica.
escassa ou nula nestes doentes, foram já incrimina-
dos em casos de nefrotoxicidade, por vezes com sín- Exames histopatológicos
droma nefrótica reversível. Outro tipo de envolvi-
mento renal, raro mas grave, é a amiloidose, que Na maior parte dos casos de AIJ não se justifica
deve ser suspeitada quando, numa criança com AIJ efectuar uma biópsia da sinovial, método algo
sistémica ou poliarticular, com doença continua- cruento (mesmo quando a biópsia é feita com tro-
mente activa durante mais de 5 anos, surgem edema carte de Parker & Pearson, por punção, com uma
dos membros inferiores e proteinúria, acompan- pequena incisão cutânea), pois as alterações detec-
hados ou não de hipertensão arterial. A amiloidose é tadas são inespecíficas: infiltrado linfoplasmo-
uma complicação cada vez mais rara da AIJ, suscep- citário e espessamento da membrana sinovial
tível de ser tratada se identificada a tempo. compatível com a presença de sinovite crónica.
A única excepção será nos casos de monoar-
Exames laboratoriais trite, em que a suspeita de artrite infecciosa, no-
meadamente artrite tuberculosa, deve ser excluída
Sendo o diagnóstico de AIJ clínico, não existem cuidadosamente antes de se iniciar a terapêutica
alterações laboratoriais patognomónicas destas da AIJ. Do ponto de vista clínico as duas situações
doenças que, relembramos, são um grupo hetero- podem ser indistinguíveis e a presença de granu-
géneo de entidades clínicas. lomas tuberculóides com caseificação na mem-
As determinações laboratoriais de base, a brana sinovial pode ser decisiva para o diagnósti-
realizar em todos os casos de AIJ, incluem o co e tratamento adequados.
hemograma com plaquetas, as provas de função Outros exames histológicos poderão justificar-
renal e hepática, a velocidade de sedimentação se, como é o caso das biópsias: da gordura abdo-
globular, a proteína C reactiva doseada, os anti- minal ou rectal, para pesquisa de substância
corpos antinucleares (ANA), os factores reuma- amilóide, na suspeita de amiloidose secundária;
tóides IgM séricos (FRIgM: RA teste e reacção de ou da mucosa intestinal, na suspeita de artropatia
Waaler-Rose); e, nos casos de suspeita de espondi- da doença inflamatória crónica do intestino.
lartropatia, a pesquisa de HLA B27.
Os FRIgM séricos estão presentes em cerca de Exames imagiológicos
8% dos casos de AIJ, geralmente formas de início
ou evolução poliarticular, que clinicamente em A radiologia é um meio de diagnóstico largamente
nada se distinguem da AR do adulto. acessível e a que se recorre com frequência para
CAPÍTULO 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) 1057

auxiliar no diagnóstico das doenças do aparelho As alterações radiológicas mais comuns são: a
locomotor. A radiografia clássica permite identifi- osteopenia justa-articular; a opacificação das
car apenas alterações tardias devidas às AIJ, sendo partes moles adjacentes à articulação (indicativas
habitualmente normal nas primeiras semanas ou de derrame sinovial e/ou espessamento da mem-
meses de doença. Justifica-se a realização de radio- brana sinovial e/ou edema das partes moles peri-
grafia das articulações afectadas e contralaterais: articulares); o aumento de dimensões das epífises
sempre que existe artrite de causa desconhecida e adjacentes às articulações afectadas (como acon-
ainda sem diagnóstico bem estabelecido; para ava- tece nos casos em que há crescimento assimétrico
liação basal do estado da cartilagem (avaliado atra- dos membros); a fusão precoce das cartilagens de
vés da espessura da entrelinha articular); para crescimento (causadora de braquidactilia); e as
verificação da não existência de lesões ósseas ines- erosões ósseas adjacentes às articulações afec-
peradas – como poderia ser o caso de osteoma tadas, que são mais tardias e documentam a pre-
osteóide ou outro tumor ósseo; na suspeita de sença de sinovite crónica agressiva.
monoartrite, ou para pesquisa das linhas de osteó- Nos casos mais graves, e exigindo já vários
lise paralelas às cartilagens de crescimento que se meses ou anos de evolução da doença, surgem as
podem observar nas leucoses agudas. deformações das epífises e as destruições graves
Nos estádios precoces de investigação em caso da cartilagem articular, com redução da entrelinha
de AIJ, nomeadamente se subsistirem algumas articular, o que poderá exigir próteses articulares.
dúvidas relativamente à existência ou não de Tal sucede principalmente nas formas poliarticu-
artrite, o exame complementar mais rentável é a lares com FRIgM presentes no soro (tipo AR do
ecografia articular, que pode e deve ser efectuada adulto) e nas formas sistémicas com evolução
por quem tenha experiência específica de avalia- poliarticular extensa.
ção articular e de outras estruturas do aparelho O estudo radiológico da coluna cervical, para
locomotor. Tal acontece já em vários serviços de detecção de artrite das interapofisárias posteri-
Reumatologia do nosso País. Esta abordagem dia- ores e de subluxação atloido-odontoideia, exige
gnóstica, incruenta e sem radiações ionizantes, que sejam feitas radiografias da coluna cervical
pode auxiliar na confirmação da existência de em projecção de perfil neutro e em hiperflexão –
artrite, de tenossinovite, de quistos sinoviais e suas só com a hiperflexão é possível o diagnóstico da
eventuais roturas (como pode acontecer com os subluxação atloido-odontoideia, a qual se confir-
quistos de Baker do escavado popliteu do joelho). ma quando a distância entre a face posterior do
Nos estádios mais avançados da doença, arco anterior do atlas (C1) e a face anterior da apó-
poderão justificar-se a TAC, por exemplo: para fise odontoideia do axis (C2) é superior ou igual a
avaliar adequadamente o risco de compressão 3 mm.
neurológica nos casos de subluxação atloido- A radiografia clássica da bacia não é eficaz na
odontoideia; para avaliar a gravidade do envolvi- detecção de sacro-ileítes até aos 14-15 anos, idade
mento das articulações temporomandibulares; ou a partir da qual se dá a ossificação das vertentes
ainda para diagnosticar uma sacroileíte em ado- articulares (até então formadas por cartilagem)
lescente com suspeita de espondilartropatia. destas articulações.
A RMN só não é utilizada com maior frequên- A cintigrafia articular com Tecnécio (99mTc) ,
cia devido aos elevados custos e à necessidade de na nossa opinião, é um método usado excessiva e
sedar as crianças mais pequenas; com efeito, pode abusivamente nas crianças com suspeita de AIJ,
também cumprir, às vezes com vantagem, os mes- pois uma contagem articular cuidadosa por quem
mos objectivos da ecografia. a saiba e queira fazer, consegue obter informações
Com a evolução da cronicidade das lesões sobreponíveis sobre a existência ou não de infla-
osteoarticulares estabelecem-se, nos casos mais mação articular. Embora seja um método sensível,
graves, lesões osteoarticulares que devem ser tão sensível que um traumatismo articular recente
avaliadas adequadamente através da radiografia pode resultar em hipercaptação local, a cintigrafia
(anual ou bienal) das articulações com doença é muito inespecífica, não ajudando a diferenciar as
activa. várias formas de artrite – nomeadamente não per-
1058 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

mitindo o diagnóstico diferencial com artrite sép- QUADRO 8 – Objectivos do tratamento das AIJ
tica ou outras formas de artropatia da infância.
Pode, contudo, ser útil nos casos de suspeita de Iniciais e de curto prazo
osteoma osteóide ou outros tumores do osso, ou • Controlar a inflamação
para detectar a presença de sacroileíte, numa • Aliviar a dor articular
idade em que a radiografia não o permita, pelas • Preservar a função articular
razões atrás apontadas. • Prevenir as deformações articulares
De longo prazo
Critérios de referência • Prevenir a iatrogenia
a centros especializados • Proporcionar crescimento e desenvolvimento normais
• Promover a inserção social e dar apoio vocacional ade-
A suspeita diagnóstica de AIJ, ou a simples quado
manutenção de um quadro clínico de artrite com • Corrigir eventuais deformações articulares
uma duração de seis ou mais semanas, deve levar
ao encaminhamento do doente a uma consulta de
Reumatologia Pediátrica, por parte do médico Tendo o cuidado de não atemorizar indevida-
assistente (pediatra ou médico de família), sem mente os doentes e/ou os seus familiares, estas
que estes deixem de tomar importante parte acti- fontes transmitem conhecimentos válidos sobre as
va na equipa que presta cuidados. doenças reumáticas juvenis e seus tratamentos
mais utilizados; toda a informação foi elaborada
Tratamento por reumatologistas pediátricos de toda a Europa,
incluindo Portugal, (o da PRINTO) ou só de
Aspectos gerais Portugal (o da ANDAI).
O tratamento das AIJ, embora tenha especifici- Porque a educação do doente e a partilha de
dades que são próprias de cada doença (ver capí- experiências é importante para estes e outros
tulos seguintes), tem princípios comuns que se doentes e familiares com doenças crónicas, for-
devem à necessidade de reduzir ao mínimo os mou-se em Portugal, há pouco mais de 10 anos a
efeitos de uma artrite crónica neste grupo etário. ANDAI, associação de doentes acima indicada,
Os seus objectivos gerais básicos, a curto e a longo que tem desenvolvido as suas actividades com os
prazo, encontram-se expostos no Quadro 8. objectivos de: educar os doentes e seus familiares;
Para alcançar estes objectivos é indispensável a lhes proporcionar local físico para a troca de
participação da família, tão coesa e interessada experiências e esclarecimento de dúvidas; apoiar
quanto possível, com grande importância no os doentes junto ao poder político; e proporcionar
prognóstico, independentemente da gravidade da divulgação de conhecimentos sobre as doenças
doença, tal como acontece em qualquer doença reumáticas juvenis à família alargada destas cri-
crónica juvenil. anças, que inclui necessariamente os seus profes-
A educação para a saúde é nestes casos funda- sores.
mental; além do reumatologista pediátrico e do Um plano mínimo de exercícios deve ser acon-
pediatra ou do médico de família assistentes, a selhado, o qual dependerá da doença em questão
família deve ser orientada sobre a melhor forma e do tipo de envolvimento articular de cada
de obter informação adequada, caso a pretenda criança. Muitas vezes é também necessário pro-
procurar. Actualmente há dois sítios da internet, porcionar a estas crianças um repouso adequado,
com informação cuidadosa e bem preparada para que pode exigir, nos casos de AIJ poliarticular ou
apoiar os doentes com AIJ e seus familiares. São sistémica mais graves, a necessidade de pequeno
eles o da PRINTO – Pediatric Rheumatology repouso a meio do dia (uma sesta), tantas vezes
International Trials Organization: www.printo.it/ muito difícil de concretizar.
pediatric-rheumatology e o da ANDAI – Associa- Com a duração da doença torna-se necessário
ção Nacional de Doentes com Artrites Infantis e realçar junto dos doentes a necessidade de pre-
Juvenis: www.andai.sapo.pt. venção de atitudes viciosas das articulações, que
CAPÍTULO 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) 1059

podem gerar incapacidade e limitações articu- cada vez menos prescrito com esta indicação.
lares, não só indesejáveis como susceptíveis de A indometacina é particularmente eficaz para
prevenção. o tratamento da febre da AIJ sistémica, sendo tam-
bém uma das melhores opções para as artrites das
Anti-inflamatórios não esteróides (AINE) espondilartropatias, com ou sem envolvimento
O tratamento farmacológico destina-se a alcançar axial.
os objectivos acima enunciados de controlar a O naproxeno é também um anti-inflamatório
inflamação, controlar ou eliminar a dor articular e eficaz, mais para as queixas articulares que para o
preservar a função articular, para prevenir as de- tratamento da febre; partilha com a indometacina
formações articulares. Claro que embora os anti- o facto de necessitar apenas de 2 administrações
inflamatórios não esteróides (AINE) sejam fárma- diárias, o que é altamente conveniente para cri-
cos eficazes, não conseguem alcançar todos estes anças que necessitam de manter a sua escolari-
objectivos. dade normal.
Os mais utilizados em reumatologia pediátrica O meloxicam é outro dos fármacos que tem a
e as respectivas doses encontram-se indicados no grande vantagem de poder ser administrado ape-
Quadro 9. nas uma vez por dia, tão potente como os outros.
Os doentes e familiares devem ser informados Neste momento o único AINE que está
quanto aos objectivos deste tipo de abordagem disponível em Portugal sob forma de suspensão é o
terapêutica, que não é curativa e não constituirá ibuprofeno, o que constitui um determinante para
mais que uma tentativa de alívio sintomático, na a escolha deste eficaz fármaco para o tratamento da
maioria dos casos. Contudo, é possível que alguns dor articular nas crianças mais jovens com AIJ.
doentes, com formas sistémicas monocíclicas ou
com formas oligoarticulares ligeiras, possam ter o Analgésicos
seu problema resolvido apenas com esta terapêu- O paracetamol pode ser utilizado com vantagens,
tica. no controlo da dor articular e da febre, quando os
Não está provada cientificamente superiori- AINE não conseguem alcançar isoladamente estes
dade de um AINE em relação a outros, sendo que objectivos durante as 24 horas do dia. Esta opção
a maior parte destes fármacos começou a ser uti- terapêutica deve ser utilizada apenas em SOS e
lizada sem estudos clínicos em crianças com AIJ. não como terapêutica de rotina, devendo os
O ácido acetilsalicílico é o AINE usado há mais doentes e familiares ser instruídos no sentido de
tempo, tendo sido durante largos anos o único serem evitadas mais de 3 doses diárias.
aprovado nos EUA. Devido aos seus frequentes
efeitos secundários, mais numerosos nas doses anti- Corticosteróides
inflamatórias indicadas no Quadro 9, e ao facto de Por vezes, quer a febre da forma sistémica, quer as
serem necessárias doses de 4-4 horas para manter o queixas articulares, quer ainda a uveíte crónica,
seu efeito nos casos de doença activa, o mesmo é não cedem adequadamente aos AINE, o que leva
à utilização de corticosteróides com a finalidade
QUADRO 9 – Anti-Inflamatórios não esteróides de permitir uma vida de relação normal e a
(AINE) mais utilizados no trata- assiduidade escolar que se pretende.
mento das AIJ As indicações para a utilização de corticoste-
róides estão indicadas no Quadro 10, encontran-
AINE DOSE do-se mais limitadas numa época em que os
• Ibuprofeno 30-50mg/Kg/dia agentes biológicos se revelam muito eficazes na ter-
• Indometacina 2,5mg/Kg/dia apêutica das manifestações articulares e extra-
• Naproxeno 15-20mg/Kg/dia articulares da AIJ; nas manifestações extra-articu-
• Diclofenac 2,5mg/Kg/dia lares da AIJ sistémica serve de exemplo o antago-
• Meloxicam 0,125-0,25mg/Kg/dia nista do receptor da IL1 ou anakinra e o tocilizu-
• Ácido acetilsalicílico 80-120mg/kg/dia mab; e, nas manifestações articulares das AIJ
poliarticulares, o etanercept (ver adiante).
1060 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 10 – Indicações para a utilização de peso/dia), sendo que existe uma grande variação
corticosteróides em doentes individual na gravidade da supressão do cresci-
com AIJ mento e na dose mínima necessária para que tal
aconteça; com efeito, a administração em dias al-
1) AIJ Sistémica ternados diminui muito a importância deste efeito
• Febre resistente aos AINE adverso. Infelizmente, esta forma de adminis-
• Pericardite tração é pouco eficaz para as formas de doença
• Poliartrite resistente à restante terapêutica (incluindo activa e grave em que os corticóides podem ter
AINE + MTX + etanercept, anakinra ou tocilizumab) indicação.
2) Formas Poliarticulares O tratamento do hipocrescimento (anterior-
• Poliartrite activa resistente a AINE + MTX + etaner- mente chamado nanismo “cortisónico”) com hor-
cept mona de crescimento (GH) só deve ser considera-
3) Formas Oligoarticulares e/ou Espondilartropatias do se a dose de corticóide utilizada for inferior a
• Uveíte, aguda ou crónica, resistente à terapêutica local 0,35mg/Kg de peso/dia de prednisona ou equiva-
• Doença inflamatória crónica do intestino (inflamação lente, pois com doses desta ordem ou superiores a
intestinal) GH é ineficaz.
4) Qualquer forma de AIJ, se 1 a 3 articulações origi- O deflazacort é um corticosteróide que parece
nam impotência funcional* ter menor efeito cushingóide, menor efeito glico-
* Via intra-articular (sinovectomia química com hexacetonido de triancinolona) só após
corticóide, e também menor efeito supressor do
cuidadosa exclusão de artrite infecciosa, particularmente nos casos de monoartrite.
crescimento.

Metotrexato
O que verdadeiramente limita a utilização dos Actualmente o metotrexato (MTX), devido à sua
corticosteróides não é a sua eficácia, que é boa, elevada e rápida eficácia, associada a uma boa tole-
mas sim os seus efeitos secundários, por vezes rância a longo prazo, é considerado o medicamen-
tanto ou mais graves que a própria doença que to de escolha gold standard para o tratamento da AIJ
tratam. resistente aos AINE, qualquer que seja a forma da
Podemos dizer que, quando administrados doença (dose: 0,5 – 1 mg/kg/semana PO ou SC).
durante tempo prolongado por via sistémica, não O MTX revela-se útil para o tratamento da
existe dose segura para estes fármacos: corti- maior parte dos casos de AIJ, quer para a artrite
costeróide seguro, é apenas aquele que o doente em si, cuja remissão pode induzir, quer para algu-
não tomou! mas complicações da mesma, tal como a uveíte
Os efeitos secundários dos corticosteróides, crónica resistente à terapêutica tópica.
variados e graves, são bem conhecidos de todos os Antes do início desta terapêutica deve ser
médicos e incluem, entre outros: supressão do eixo fornecida aos pais dos doentes informação verbal e
hipotálamo-hipófise-suprarrenal, restrição do escrita sobre os potenciais efeitos adversos do fár-
crescimento, sinais cushingóides, estrias cutâneas maco e forma de os prevenir; tal inclui a admi-
violáceas, osteoporose, hipertensão, a redução da nistração, por via oral, de 10 mg semanais de ácido
tolerância à glicose e diabetes, redução da defesa fólico, em toma única também, com o mínimo de
contra as infecções, ulceração péptica, cataratas, 48 h de intervalo em relação à dose semanal de MTX.
glaucoma, psicose, miopatia e necrose asséptica do Este tipo de informação é particularmente im-
osso. portante se nos lembrarmos de que este fármaco
Parte destes efeitos secundários pode ser foi inicialmente produzido para tratar leucemias,
muito reduzida ou mesmo prevenida com uma em doses 20 a 40 vezes superiores às que se uti-
adequada restrição da ingestão de hidratos de car- lizam para tratar as AIJ.
bono. Como medidas preventivas da iatrogenia,
Relativamente à restrição do crescimento, ela antes do início do MTX há que garantir que o
pode ocorrer mesmo com doses muito baixas de doente esteja vacinado contra as hepatites A e B e
prednisolona ou equivalente, (~ 0,4mg/Kg de que não sofra de tuberculose.
CAPÍTULO 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) 1061

Habitualmente os resultados terapêuticos são Na hierarquização dos tratamentos das AIJ o


obtidos nos primeiros 3 meses de administração MTX deve ser iniciado quando, com os AINE, não se
do fármaco, mas ocasionalmente este será eficaz consegue controlar adequadamente a doença, e antes de
após algum tempo mais. Após 6 meses de admi- se considerar a utilização de corticosteróides ou de
nistração do MTX nas doses acima indicadas, e agentes biológicos. A excepção a esta regra será o
após passagem da administração oral para paren- tratamento das manifestações extra-articulares da
térica, se a AIJ mantiver níveis de actividade con- AIJ sistémica, na qual os corticosteróides poderão
siderados inaceitáveis, há que considerar outras desempenhar papel, enquanto o MTX não actua.
alternativas terapêuticas, nomeadamente os
agentes biológicos (anti-TNFα, abatacept, anakin- Outras terapêuticas DMARD incluindo
ra ou tocilizumab). medicamentos imunossupressores
Mesmo na dose de 10mg/m2/semana, cerca de Muitos outros fármacos têm vindo a ser utilizados
2/3 dos doentes tratados melhoram significativa- com a finalidade de controlar a actividade da
mente, o que deixa alguma margem de manobra doença ou induzir remissão clínica nas AIJ. Al-
para aqueles casos em que, devido à toxicidade do guns serão mencionados apenas para informação
fármaco, a dose de 15mg/m2/semana deve ser histórica, pois pouco se usam actualmente.
reduzida. Entre estes estão os sais de ouro e a D-penici-
Entre as vantagens do MTX encontra-se a alta lamina, praticamente afastados do plano terapêuti-
taxa de respondentes, com doses semanais relati- co dos doentes com AIJ devido à falta de demon-
vamente baixas, da ordem dos 15mg/m2 de super- stração de eficácia e aos respectivos efeitos adver-
fície corporal/semana. Esta dose, actualmente sos na criança, potencialmente graves.
considerada a mais eficaz, pode ser administrada A hidroxicloroquina é também pouco eficaz,
por via oral e, em caso de ineficácia após 3 meses particularmente quando usada isoladamente.
de tratamento, deve ser alterada para a via paren- A ciclosporina A tem a sua aplicação potencial
térica (subcutânea ou intramuscular) que con- na AIJ, associada ao MTX (doentes seleccionados
duzirá a melhoria significativa em > 50% dos por serem resistentes ao MTX). Trata-se de um fár-
doentes resistentes à administração por via oral. maco com muitos efeitos adversos, que deve ser
Os efeitos adversos mais frequentes são a administrado na dose de 3 a 5mg/Kg/dia, repar-
mucosite (atrofia das mucosas da boca, acompa- tida em duas tomas. Está indicada na síndroma de
nhada ou não de queilose e aftas orais) e as náuse- activação macrofágica, complicação rara mas
as e/ou vómitos. Embora se trate de efeitos adver- muito grave da AIJ sistémica.
sos pouco graves, eles são comuns, atingindo perto A sulfassalazina deve ser utilizada predomi-
de 10% dos doentes. A mucosite é eficazmente pre- nantemente em casos de espondilartropatias juve-
venida com a suplementação de folatos, e as náu- nis com poliartrite periférica, de preferência em
seas poderão exigir terapêutica anti-emética. associação ao MTX. A dose máxima é 2g/dia, ou de
A toxicidade hepática, outrora muito temida, é 50mg/Kg/dia, dependendo do peso da criança,
rara em crianças, sendo o seu risco agravado prin- administrada em duas tomas diárias. A sulfassalazi-
cipalmente por ingestão de bebidas alcoólicas a na não deve ser administrada nunca a doentes com AIJ
considerar na adolescência, por hepatite vírica, sistémica por poder provocar efeitos adversos muito
por obesidade, má-nutrição e diabetes mellitus. A graves (hepatite tóxica e síndroma de activação
biópsia hepática de rotina não deve ser praticada macrofágica). Também não deve ser administrada a
nos doentes com AIJ a tomar cronicamente MTX. crianças com hipersensibilidade conhecida às sul-
A pneumonite e a fibrose intersticial foram famidas ou aos salicilatos, com compromisso da
descritas muito raramente em crianças com AIJ a função renal ou hepática, ou que sofram de porfíria
tomar MTX, o que corresponde a um efeito adver- ou carência de desidrogenase da glicose-6-fosfato.
so grave. A aceleração da “nodulose” reumatóide, A azatioprina pode ser útil no tratamento de
embora muito menos comum que na AR do adul- poliartrite extensas resistentes ao MTX, podendo
to, foi descrita em doentes com AIJ submetidos a ser administrada em associação a este.
esta terapêutica. O clorambucil, agente alquilante, nas doses de
1062 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

0,2mg/Kg/dia (1 mês de indução) e de 0,1mg/ Antes de alterações terapêuticas propriamente


/Kg/dia (como manutenção) é considerado como ditas, os agentes biológicos, pelo seu elevado custo
terapêutica eficaz para a amiloidose secundária à e efeitos secundários potenciais, vieram gerar uma
AIJ. O seu uso, contudo, é limitado a esta situação autêntica revolução (ou, no mínimo, aceleração de
clínica. uma evolução já em marcha) na forma de avaliar a
A imunoglobulina humana intravenosa em evolução da doença em jovens com AIJ.
altas doses (IGIV) foi utilizada para tratar as mani- Esta evolução gerou a necessidade de criar
festações extra-articulares da AIJ sistémica e a AIJ instrumentos objectivos de definição de melhoria
com poliartrite resistente ao MTX. O seu elevado na AIJ, através de trabalho conjunto da PRINTO –
custo e a inconsistência dos resultados levaram a Pediatric Rheumatology International Trials
que a sua utilização actual seja muito escassa. Organization (a nível Europeu) e do PRCSG –
A leflunomida é outra alternativa terapêutica Pediatric Rheumatology Collaborative Study
que pode ser utilizada se houver falência do MTX. Group (a nível do American College of Rheuma-
tology).
Agentes biológicos Mas, para que esta definição de melhoria pu-
Os agentes biológicos, usados no tratamento das desse ser aplicável de uma forma generalizada,
artrites crónicas e outras doenças em cuja pato- com incorporação da opinião dos doentes adoles-
genia desempenha um papel importante a perpe- centes, ou dos seus pais quando estes fossem mais
tuação de fenómenos inflamatórios, começaram a jovens, tornou-se indispensável a utilização de
ser utilizados em reumatologia para tratar a AR instrumentos de avaliação da capacidade funcio-
do adulto. Trata-se de produtos desenvolvidos por via nal, bem como de escalas visuais analógicas para
biotecnológica de elevada complexidade, a partir de a dor e para a avaliação global da doença pelos
conhecimentos básicos da fisiopatologia da infla- doentes ou pelos pais, uniformes em todos os
mação em geral e, das alterações que levam à sua países do Mundo. Tal veio a ser efectuado ao nível
perpetuação (ver Glossário Geral). da PRINTO em 28 línguas incluindo a portuguesa.
O único agente biológico actualmente aprova- Os consensos nacionais nos quais participaram
do para o tratamento das AIJ é o etanercept, a pro- Reumatologistas e Pediatras que se têm dedicado
teína de fusão do receptor solúvel p75 do TNFα, ao estudo e tratamento de crianças com doenças
que tem efeito terapêutico rápido e potente em reumáticas são descritos nas alíneas seguintes.
doentes com AIJ poliarticular resistentes à tera-
pêutica com doses eficazes de MTX. O etanercept Critérios da Sociedade Portuguesa de Reumato-
é administrado, por via subcutânea, na dose míni- logia (2007) para início da terapêutica biológica
ma de 0,8mg/kg uma vez por semana, na dose • Definições
máxima de 50mg/semana, devendo ser mantidas – Doença activa (5 ou mais articulações com
as terapêuticas prévias, com MTX e AINE. artrite activa) e refractária à terapêutica conven-
O infliximab e o adalimumab, com acção anti- cional
TNFα, evidenciaram eficácia semelhante ao etaner- – Definição de falência da terapêutica – doença
cept nos doentes com formas poliarticulares de AIJ, activa refractária à terapêutica convencional,
mas não têm a aprovação para uso pediátrico. considerando principal factor da definição a
Com o advento da disponibilidade dos agentes ausência de resposta a uma dose mínima de
biológicos para tratamento das AIJ, o principal MTX de 15 mg/m2/semana por via SC ou IM
objectivo da terapêutica é obter a remissão clínica durante 3 a 6 meses.
da doença e permitir uma vida normal à criança ou NB – No caso de toxicidade ou de contra-indi-
adolescente afectados. Claro que este objectivo nem cação impeditivas da utilização do MTX na dose
sempre é alcançado. A este propósito aconselha-se mínima de 15 mg/m2/semana pode considerar-
a leitura do documento “Consensos para Início e se, por opinião do especialista, a introdução de
Manutenção da Terapêutica Biológica na AIJ”, do terapêutica biológica como primeira opção, ou de
Grupo de Trabalho de Reumatologia Pediátrica da outro DMARD convencional em monoterapia ou
Sociedade Portuguesa de Reumatologia. em combinação com o MTX.
CAPÍTULO 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) 1063

• Monitorização dos doentes sob terapêutica – História recente (< 5 anos) de neoplasia
biológica – Vacinas vivas:
Os doentes devem ser avaliados com uma fre- Não devem ser administradas durante o trata-
quência mínima trimestral. Da avaliação deve mento com agentes biológicos; idealmente a
constar um conjunto de variáveis que permitam sua administração deve ser efectuada até três
determinar a eficácia do tratamento: meses antes do inicio do agente biológico
1 – Avaliação global pelo doente/pais (Escala
Visual Analógica de 0-10) • Critérios para suspensão temporária ou para
2 – Avaliação global pelo médico (Escala Visual adiamento do início da terapêutica biológica
Analógica de 0-10) – Infecção de novo
3 – Child Health Assessment Questionnaire – Cirurgia major programada
(CHAQ, utilizado na sua versão portuguesa)
4 – Número de articulações activas (articu- De salientar que, pelo seu elevado preço e po-
lações tumefactas, excluindo tumefacção óssea, ou tenciais efeitos adversos, os agentes biológicos,
com limitação da mobilidade associada a dor, embora muito eficazes, devem ser iniciados com
calor ou ambas) precaução em doentes com AIJ; a sua prescrição
5 – Número de articulações com limitação da deverá ser da responsabilidade de reumatologista
mobilidade pediátrico com particular experiência no tratamen-
6 – Velocidade de sedimentação to da AIJ, seguindo os consensos do Grupo de
Trabalho de Reumatologia Pediátrica da So-ciedade
• Critérios para manutenção da terapêutica Portuguesa de Reumatologia, acima indicados. Os
biológica doentes devem ser seguidos cuidadosamente,
Considera-se critério de resposta a melhoria de, devendo a continuidade da prescrição e o forneci-
pelo menos, 30% em 3 destas 6 variáveis, sem mento do agente biológico ser condicionados à
agravamento superior a 30% em mais do que uma adesão estrita a este plano de avaliação continuada.
das restantes variáveis, em duas avaliações sepa-
radas por 3 meses, tendo como base de compara- Transplante autólogo de medula óssea
ção a avaliação efectuada antes do início do O transplante autólogo de medula óssea foi ini-
agente biológico. ciado na era “pré agentes biológicos”, como méto-
do experimental (agressivo, caro e com muitos
• Actuação na ausência de resposta efeitos adversos) de tratar doenças auto-imunes
Se não ocorrer melhoria em 2 avaliações sucessivas, graves que não respondiam às terapêuticas
de acordo com opinião do especialista, deve sus- convencionais.
pender-se o fármaco biológico e considerar outras Uma revisão recente desta abordagem tera-
alternativas terapêuticas (doente não respondente). pêutica por Kleer IM et al, colectou todos os casos
de AIJ tratados desta forma no espaço europeu,
NB. Antes do início da terapêutica biológica deve tendo revelado que, um ano após a intervenção,
ser efectuado um rastreio de tuberculose (capítulo 53% (18/34) dos doentes estavam em remissão e
281). A terapêutica biológica pode ser iniciada 1 mês 21% (7/34) tinham evidenciado resistência à tera-
após o início da terapêutica antituberculosa nos casos pêutica. Não são resultados particularmente bri-
de tuberculose latente. lhantes, atendendo à morbilidade e ao custo desta
intervenção. A mortalidade de 15% (5/34) aos 12
• Contra-indicações absolutas da terapêutica meses é o resultado que mais levou a refrear muito
biológica o entusiasmo relativo a esta abordagem terapêutica.
– Existência de infecção activa, nomeadamente
tuberculose activa Agentes físicos e terapêutica ocupacional
– Insuficiência cardíaca
– Doenças desmielinizantes A terapêutica com agentes físicos e a terapêutica
– Gravidez ocupacional têm por objectivos contribuir para re-
1064 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

duzir a dor articular, manter ou recuperar a sinovectomia química com hexacetonido de trian-
função articular, e prevenir as deformações articu- cinolona. (Quadro 10)
lares e a incapacidade daí resultante. No adolescente ou adulto jovem, em que pode
Deve sempre ter-se em consideração que a cri- haver lesões articulares limitativas ao nível dos
ança deve ser integrada no seu ambiente (familiar, joelhos, das ancas, dos ombros ou dos cotovelos,
social, escolar) motivo pelo qual (a não ser em por exemplo, as próteses articulares constituem
casos excepcionalmente graves e pontuais) estas uma solução que pode contribuir para melhorar
técnicas devem ser ensinadas ao doente e/ou aos significativamente a qualidade de vida e a inte-
pais de forma a poderem ser efectuadas no gração social e profissional dos doentes.
domicílio, sem que contribuam para aumentar o A cirurgia oftalmológica, ao resolver os proble-
absentismo escolar. mas devidos às principais complicações da uveíte
Um período de descanso à tarde, após o re- crónica – queratite em banda, cataratas e glauco-
gresso da escola, pode ser útil. Contudo, a maior ma – pode ser de importância fundamental na
parte das crianças limitará a sua actividade física, preservação ou recuperação da acuidade visual
de acordo com a incapacidade. Exercícios físicos nas crianças ou adolescentes com AIJ oligoarticu-
regulares, tais como andar de triciclo ou de bici- lar com anticorpos antinucleares presentes no soro
cleta, devem ser encorajados. e uveíte crónica. (Partes XXV e XXVI)
Um plano de exercícios, para fazer no domi-
cílio, adequado ao tipo de compromisso articular GLOSSÁRIO
da criança, deve ser ensinado aos pais. A este pro- Oligoartrite “estendida” > Nos primeiros 6 meses de doença há ape-
pósito, a ANDAI, a Associação Nacional de Doen- nas 1 a 4 articulações atingidas e posteriormente passa a haver com-
tes com Artrites Infantis e Juvenis, tem um guia promisso de 5 ou mais articulações.
para pais que é distribuído gratuitamente aos seus Poliartrite extensa > A que atinge um número elevado de articulações.
sócios, incluindo um plano geral de exercícios que
podem ser seleccionados. BIBLIOGRAFIA
A natação, ou a hidrocinesiterapia (dependen- Ansell BM. Chronic arthritis in childhood. Ann Rheum Dis
do da gravidade da patologia articular) são activi- 1978; 37:107-110
dades a privilegiar. Bresnihan B. Effects of anakinra on clinical and radiological
Por vezes, pode ser útil a aplicação de calor ou outcomes in rheumatoid arthritis. Ann Rheum Dis 2002; 61
de frio, às articulações inflamadas; mas estas té- (Suppl 2): ii 74-77
cnicas devem interferir o menos possível com a Cornil MV. Mémoire sur les coincidences pathologiques du
rotina diária (às vezes pesada) da criança. rhumatisme articulaire chronique. CR Soc Biol (Paris),
A utilização de talas para prevenir ou corrigir 1864: 1
deformações articulares, nomeadamente ao nível Costa JT, Almeida MO, Melo Gomes JA, Pimentão J, Queiroz
das mãos e punhos, e joelhos (sobretudo quando MV. Biópsia fechada da membrana sinovial. Revisão de
a criança surge já com flexo desta articulação) conceitos e apresentação da experiência do Núcleo de
pode ser muito útil. É bom sublinhar que estas Reumatologia do Hospital de Santa Maria nos últimos três
talas devem ter um aspecto apelativo e ser con- anos. Arq Reumatologia 1985; 7:125-140
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A sinovectomia cirúrgica é cada vez menos uti- rheumatoid arthritis. N Engl J Med 2004; 350: 2572-2581
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tuída pela sinovectomia artroscópica ou pela Proposal for the development of classification criteria for
CAPÍTULO 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) 1065

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CAPÍTULO 220 Doenças reumáticas juvenis englobadas no grupo das artrites idiopáticas juvenis 1067

1. ARTRITE REUMATÓIDE JUVENIL

220 COM FR IG M PRESENTES


NO SORO

Manifestações clínicas

DOENÇAS REUMÁTICAS A AR juvenil constitui cerca de 8-10% dos casos de


AIJ.
JUVENIS ENGLOBADAS Trata-se de uma doença caracterizada pelo iní-
cio na pré-puberdade, ou mesmo já na puberdade,
NO GRUPO DAS ARTRITES de poliartrite periférica extensa, geralmente
envolvendo as pequenas articulações das mãos e
IDIOPÁTICAS JUVENIS punhos (Figura 1), entre outras, muitas vezes com
tenossinovite ao nível do dorso das mãos e pu-
J. A. Melo Gomes nhos. Ocasionalmente, embora tal seja muito raro,
pode iniciar-se antes dos 6 anos. Há nítido pre-
domínio do sexo feminino (4F/1M).
A evolução é rápida, com incapacidade pro-
Sistematização gressiva e repercussão sobre a capacidade fun-
cional articular se a terapêutica adequada não for
No conjunto de subcapítulos que se seguem são instituída precocemente. As erosões e deformações
descritas várias doenças reumáticas juvenis que ósseas e articulares estabelecer-se-ão em poucos
estão classificadas sob a designação geral de anos, como acontece na AR do adulto.
artrites idiopáticas juvenis, salientando as respec-
tivas características clínicas e laboratoriais, a Exames laboratoriais
forma de suspeitar ou confirmar o diagnóstico, e
as especificidades da terapêutica. Do ponto de vista laboratorial a doença caracteri-
Desta forma são abordadas sucessivamente a za-se pela presença de sinais de anemia moderada,
artrite reumatóide (AIJ poliarticular com factores trombocitose ligeira, velocidade de sedimentação
reumatóides Ig M presentes no soro, iniciada elevada, proteína C reactiva elevada e factores reu-
antes dos 16 anos e, por isso, juvenil), as doenças matóides Ig M (FR Ig M) presentes no soro.
juvenis do grupo das espondilartropatias Cerca de 50% destes doentes têm anticorpos
(espondilite anquilosante juvenil, artrite reacti- antinucleares no soro e o doseamento do comple-
va/síndroma de Reiter, espondilartropatias mento sérico revelará valores normais ou elevados.
indiferenciadas), a artropatia da doença infla- Os anticorpos antipéptidos citrulinados cíclicos
matória crónica do intestino, a artrite psoriásica (a estão também presentes em cerca de 60% destes
oligoartrite com anticorpos antinucleares pre- doentes, marcando um subgrupo com mais
sentes no soro e alto risco de uveíte crónica), e a tendência para a cronicidade e destruição articular.
doença de Still ou AIJ sistémica. A bibliografia Uma parte dos doentes com as características
básica deste capítulo foi já citada anteriormente, clínicas acima indicadas poderão não ter os FR
no capítulo 219. IgM presentes no soro, tal como acontece em cerca
Em seguida são abordadas as síndromas auto- de 30% dos casos de artrite reumatóide do adulto.
inflamatórias, nas quais provavelmente se inte-
grará uma parte dos doentes com doença de Still Como suspeitar?
(AIJ sistémica) com predomínio de manifestações
extra-articulares. • Poliartrite periférica extensa, com envolvimento
de várias pequenas articulações dos dedos das
mãos (MCF e IFP);
• Início na pré-puberdade ou puberdade;
1068 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

2. ESPONDILITE ANQUILOSANTE E
OUTRAS ESPONDILARTROPATIAS
JUVENIS, INCLUINDO AS ESPONDI-
LARTROPATIAS INDIFERENCIADAS

Manifestações clínicas

As espondilartropatias juvenis caracterizam-se


pelo início das queixas após os 8 anos de idade,
em crianças ou adolescentes, com predomínio do
sexo masculino (5M/1F).
A doença começa geralmente por uma oligoartrite
ou poliartrite, predominante ao nível dos membros
inferiores, com envolvimento frequente das coxo-
femorais, joelhos e tíbio-társicas, sendo relativamente
FIG. 1
frequente o envolvimento das enteses (isto é, dos
Poliartrite periférica, simétrica e aditiva, típica em jovem locais das inserções tendinosas nos ossos); os locais
adolescente: AIJ poliarticular com factores reumatóides IgM mais frequentemente atingidos são as inserções cal-
presentes no soro, classificável como a verdadeira forma de caneanas do tendão de Aquiles e da aponevrose plan-
artrite reumatóide de início juvenil pelo facto de o
tar, pelo que as talalgias posteriores e inferiores são
prognóstico articular e evolução clínica serem sobreponíveis
aos da doença iniciada em idade adulta. características nestes casos clínicos. Os dedos dos pés
“em salsicha”, (isto é, com tumefacção difusa desde a
raiz do dedo acompanhada de rubor, que se deve a
• Predomínio do sexo feminino; um extensa tenossinovite) são muito típicos.
• FR IgM presentes no soro; Cerca de 25% dos doentes têm episódios de
• Deformações articulares rápidas; uveíte anterior aguda, com dor intensa e marcada
• Erosões radiológicas precocemente; inflamação ocular, que cedem rapidamente à te-
• Tendência para continuar com doença activa na rapêutica; geralmente, não deixam sequelas se
idade adulta. tratadas precocemente.
Após períodos variáveis de doença activa,
Tratamento pode haver remissão clínica prolongada,reacti-
vando-se cerca dos 20 anos ou um pouco mais
O reconhecimento de um doente com estas carac- tarde. Quando a doença se mantém activa após a
terísticas deve orientar o reumatologista para uma adolescência há frequente envolvimento do
abordagem terapêutica agressiva, incluindo todos esqueleto axial (coluna e sacroilíacas).
os princípios gerais atrás enunciados para as AIJ, Não é rara a história familiar de espondi-
com prescrição rápida de AINE associados ao lartropatia e/ou de uveíte.
metotrexato (MTX), na dose de 15mg/m2 de su-
perfície corporal/semana, por via oral durante o Exames laboratóriais
máximo de 3 meses, devendo depois ser instituída
a via subcutânea, em caso de ineficácia. Do ponto de vista laboratorial caracterizam-se
Se a doença se mantiver activa após 6 meses de pela possibilidade de anemia ligeira, velocidade
MTX, deve ser prescrito um agente biológico em de sedimentação variável (entre normal, pouco ou
associação. Actualmente o único agente biológico muito elevada), proteína C reactiva elevada e
aprovado é o etanercept, que deve ser administra- HLA B27 presente (60% dos casos).
do semanalmente, por via subcutânea, na dose de
0,8mg/kg/semana (dose máxima de 50mg/sema- Como suspeitar?
na). Nas formas refractárias tem sido utilizado o
tocilizumab(8 mg/kg IV de 2-2 semanas). • Oligoartrite periférica, com envolvimento pre-
CAPÍTULO 220 Doenças reumáticas juvenis englobadas no grupo das artrites idiopáticas juvenis 1069

dominante de grandes articulações dos mem- Os AINE e as terapêuticas locais (sinovectomia


bros inferiores; química) são muitas vezes suficientes para permi-
• Início após os 8 anos de idade; tir uma actividade normal. Nos casos mais graves,
• Predomínio do sexo masculino; que evoluem para poliartrite, é por vezes útil o
• Presença do HLA B27; recurso ao metotrexato(MTX). Se a doença se
• Talalgias inferiores e posteriores; dedos dos pés mantiver activa após 6 meses de MTX, pode ser
“em salsicha”; prescrito um agente biológico em associação, pre-
• Ocasionalmente o quadro inicial é de síndroma ferencialmente o etanercept nas mesmas doses
de Reiter (pós-disentérica até aos 12 anos; pós- que nos outros casos acima referidos.
venérea após o início da vida sexual activa), com
diarreia ou uretrite, conjuntivite e/ou uveíte e
artrite (nestes casos o início dá-se de forma mais 3. ARTROPATIA DA DOENÇA
aguda); INFLAMATÓRIA CRÓNICA
• Sacroileíte clínica (dores glúteas) e radiológica DO INTESTINO
(Figura 2) mais comuns após a adolescência;
• Tendência para a remissão, com alguns casos Manifestações clínicas
evoluindo como espondilite anquilosante na
idade adulta. Menos frequente que as duas doenças anterior-
mente descritas, pode iniciar-se por oligoartrite
Tratamento predominante ao nível dos membros inferiores ou
poliartrite ligeira; alguns casos têm evolução de
As doenças classificadas como espondilartropatias tipo espondilítico, após a adolescência.
têm um espectro clínico muito variável, sendo na Não há predomínio de sexo nítido, excepto nos
maior parte dos casos relativamente benignas e per- casos com evolução de tipo espondilítico em que
mitindo, com algum desconforto, uma vida de domina o sexo masculino. Cerca de 10-15% das
relação praticamente normal. O exercício físico regu- crianças com doença inflamatória crónica do
lar, incluindo a natação em piscina aquecida, devem intestino sofrem de artrite.
fazer parte do plano terapêutico destes doentes. As manifestações articulares e intestinais
podem ocorrer quase simultaneamente, mas não é
raro que a artrite preceda a diarreia durante meses
ou anos. Claro que o oposto poderá acontecer
(selection bias).
Pode haver entesite como nas restantes espon-
dilartropatias; a presença de eritema nodoso, pio-
derma gangrenoso (que é raro) ou uveíte anterior
aguda constituem suspeita deste diagnóstico. A
diarreia crónica (eventualmente com sangue,
muco e pus) deve levar à realização de colonos-
copia com biópsia ou doutros exames comple-
mentares apropriados à localização intestinal da
doença. A doença de Crohn e a colite ulcerosa
são os diagnósticos associados mais comuns, mas
por vezes, apenas é possível o diagnóstico de coli-
te inespecífica. (Capítulo 112)
FIG. 2
Sinais radiológicos de sacroileíte unilateral, à esquerda, típica Exames laboratoriais
de doente com espondilartropatia; caso de 16 anos de idade
com AIJ oligoarticular iniciada aos 13 anos por artrite de 3 Do ponto de vista laboratorial a doença caracteri-
articulações dos membros inferiores.
za-se pela presença de anemia moderada (fer-
1070 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ropénica em relação com inflamação crónica), e/ou dos pés, de forma assimétrica; e haver dac-
trombocitose ligeira, velocidade de sedimentação tilite (“dedos em salsicha”) e entesite.
elevada, proteína C reactiva positiva, e presença Na maior parte dos casos (60%) a artrite precede
de HLA B27, em especial nos casos raros de a psoríase, por vezes de anos ou mesmo décadas;
evolução de tipo espondilítico. mas por vezes (10%) as duas manifestações surgem
A pesquisa de sangue oculto nas fezes é fre- simultaneamente e, nos restantes casos (30%), a
quentemente positiva. O anticorpo anticitoplasma psoríase precede o aparecimento da artrite.
dos neutrófilos de destribuição perinuclear
(ANCA-p) pode ser positivo e orientar a investi- Exames laboratoriais
gação diagnóstica.
Do ponto de vista laboratorial não existem acha-
Como suspeitar? dos específicos da artrite psoriásica juvenil: estão
geralmente presentes anemia moderada,
• Oligoartrite periférica, com ou sem entesite; trombocitose ligeira, velocidade de sedimentação
• Emagrecimento, ou falta de progressão ponderal, elevada, proteína C reactiva positiva, típicos da
desproporcionada com a gravidade da artrite; inflamação crónica. Os anticorpos antinucleares
• Eritema nodoso ou pioderma gangrenoso; são positivos em 40-50% dos casos. Um número
• Diarreia crónica ou episódios curtos e frequen- apreciável de doentes (25%) pode ter os mar-
tes de diarreia; cadores inflamatórios de fase aguda (VS e proteí-
• Uveíte anterior aguda, associada a diarreia. na C reactiva) com valores normais, o que não
deve levar à exclusão do diagnóstico clínico de
Tratamento artrite.

Geralmente há boa resposta clínica aos corticóides Como suspeitar?


em baixas doses por via oral ou por injecção intra-
articular, e à sulfassalazina. Nos casos resistentes, • Oligoartrite periférica assimétrica, com envolvi-
a adição de metotrexato, na dose de 15mg/kg de mento de pequenas articulações dos dedos das
peso/semana, pode revelar-se muito eficaz. mãos ou pés (IFP e IFD);
Em casos pontuais de doença de Crohn com • Presença de lesões ungueais típicas de psoríase
fistulização pode estar indicada a terapêutica com (picotado ungueal, distrofia ungueal, onicólise) ;
infliximab, um agente biológico (anticorpo anti- • Dactilite (dedos “em salsicha”);
TNFα) particularmente eficaz nesta complicação • História familiar de psoríase, confirmada por
da doença de Crohn. médico;
• Psoríase cutânea em doente com artrite.

4. ARTRITE PSORIÁSICA JUVENIL Tratamento

Manifestações clínicas O tratamento da artite psoriásica juvenil é, de um


modo geral, o que se indica para a artrite de que a
A artrite psoriásica juvenil constitui cerca de 2-5% criança sofre, somado ao tratamento das lesões
dos casos de AIJ. cutâneas de psoríase, quando elas estão presentes.
A doença inicia-se desde idades pré-escolares, Os AINE são administrados em associação ao
com predomínio no sexo feminino, havendo um metotrexato (MTX), na dose de 15mg/m2 de su-
segundo pico de início por volta dos 10 anos de perfície corporal/semana, por via oral durante o
idade. máximo de 3 meses, devendo depois ser instituída
Habitualmente, o quadro é de oligoartrite peri- a via subcutânea, em caso de ineficácia. A “sino-
férica com envolvimento de grandes articulações, vectomia” química com hexacetonido de trianci-
quer dos membros superiores, quer dos inferiores, nolona está indicada especialmente nos casos de
podendo ser também envolvidos dedos das mãos oligoartrite de grandes articulações.
CAPÍTULO 220 Doenças reumáticas juvenis englobadas no grupo das artrites idiopáticas juvenis 1071

Se a doença se mantiver activa após 6 meses de A B


MTX, deve ser prescrito um agente biológico em
associação, preferencialmente o etanercept admi-
nistrado semanalmente, por via subcutânea, na
dose de 0,8mg/kg/semana (dose máxima de
50mg/semana). Esta associação é muito eficaz,
tanto para a artrite como para a psoríase.
FIG. 3
Queratite em banda (A) e sinéquias posteriores (B) em
5. ARTRITE IDIOPÁTICA JUVENIL doentes com AIJ oligoarticular de início em idade inferior a 6
OLIGOARTICULAR COM anos, com anticorpos antinucleares presentes no soro e uveíte
crónica.
ANTICORPOS ANTINUCLEARES
E UVEÍTE CRÓNICA
Como suspeitar?
Manifestações clínicas
• Oligoartrite periférica iniciada antes dos 6 anos
A AIJ oligoarticular com anticorpos antinucleares de idade;
positivos e aumento do risco de uveíte crónica ini- • Anticorpos antinucleares presentes no soro;
cia-se habitualmente antes dos 6 anos de idade. • Predomínio do sexo feminino (7F/1M);
Há nítido predomínio do sexo feminino (7F/1M). • Presença de uveíte anterior crónica (assintomáti-
O quadro é dominado por mono ou oligoar- ca) ou suas sequelas, detectadas no exame oftal-
trite (até 4 articulações atingidas), sendo o joelho a mológico com lâmpada de fenda.
articulação mais frequentemente atingida.
Embora as queixas articulares sejam ligeiras de Tratamento
início, a doença deve ser cuidadosamente avalia-
da, quer pelo risco de uveíte crónica associada, O tratamento articular privilegiará as medidas
quer pelo problema de diagnóstico diferencial locais, eventualmente com “sinovectomia” quími-
constituído pelos casos de monoartrite. ca (com hexacetonido de triancinolona) das artic-
A uveíte crónica, também chamada “uveíte ulações atingidas.
branca” por não causar a inflamação ocular A prescrição de AINE é a regra, para alívio das
típica dos casos de uveíte anterior aguda, é a queixas articulares.
complicação mais temível da doença pois, pelas Nos casos de evolução para compromisso de
suas complicações possíveis (queratite em mais de 4 articulações, e/ou de existência de
banda: Figura 3 – A; sinéquias anteriores ou episódios repetidos de uveíte crónica, deve asso-
posteriores: Figura 3 – B; e glaucoma), pode ciar-se o metotrexato, na dose de 15mg/m2 de
levar a perda significativa da acuidade visual superfície corporal/semana, por via oral durante
se o acompanhamento oftalmológico não for o máximo de 3 meses, podendo depois ser instituí-
apropriado. (Capítulo 254) da a via subcutânea em caso de ineficácia.
O tratamento da uveíte crónica exige muitas
Exames laboratoriais vezes a administração de midriáticos de acção
curta, associados a corticosteróides tópicos (colírio
Do ponto de vista laboratorial a doença caracteri- ou via subconjuntival) ou sistémicos – nos casos
za-se pela presença de anticorpos antinucleares, mais graves e resistentes de uveíte crónica. A
geralmente em título baixo (inferior ou igual a ciclosporina A (3mg/kg/dia, em 2 tomas) pode
1/640). ser adjuvante nos casos de uveíte resistentes à
Pode haver também alterações inespecíficas restante terapêutica.
devidas à inflamação crónica: anemia e tromboci- A cirurgia oftalmológica pode assumir particu-
tose ligeiras, velocidade de sedimentação pouco lar importância na resolução das complicações da
elevada, proteína C reactiva positiva. uveíte crónica, acima indicadas. (Parte XXVI)
1072 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

6. DOENÇA DE STILL OU ARTRITE A


IDIOPÁTICA JUVENIL SISTÉMICA

Manifestações clínicas

A AIJ sistémica ou doença de Still constitui cerca


de 20% dos casos de AIJ, com prevalência idêntica
nos dois sexos.
Trata-se de uma doença caracterizada pelas
suas manifestações sistémicas que dominam o
quadro, pelo menos nas semanas ou meses iniciais
da doença. Nesta fase as alterações articulares B
serão mínimas, sendo a clínica dominada pelas
manifestações extra-articulares.
A febre alta intermitente pode ter um ou dois
picos diários (de 39-40ºC ou mais) e períodos de
apirexia ou temperaturas subfebris matinais. Este
tipo de febre constitui critério de classificação
obrigatório: por definição, todos os doentes têm um
período mínimo de 2 semanas com este tipo de febre. O
exantema eritematoso pálido, cor de salmão é ca-
racterístico, podendo ser muito fugaz; presente
FIG. 5
em alguns períodos do dia, e ausente noutros
(Figura 4). A febre e os locais de atrito cutâneo Adenomegalias generalizadas em criança com AIJ sistémica;
podem ser factores desencadeantes. note-se que, além de facilmente palpáveis, os gânglios linfáti-
A hepatosplenomegalia e as adenomegalias cos eram visíveis, quer na região axilar (A) quer na inguinal
(B), devido ao seu volume.
generalizadas (Figura 5), geralmente assintomáti-
cas, podem atingir 50 a 60% dos doentes. A peri-
cardite é rara (5% dos casos – Figura 6), mas estu- dos ecocardiográficos revelarão sinais de derrame
pericárdico em cerca de 20% dos casos.
Alguns casos com evolução febril policíclica e
predomínio das alterações extra-articulares são
classificados por alguns autores como formas de
síndroma auto-inflamatória; noutros casos, mais
raros, a doença poderá ter um curso monocíclico
febril após o qual o doente entra em remissão pro-
longada.
Na maior parte das situações (cerca de 60%) a
fase sistémica extingue-se em semanas ou meses,
passando a clínica a ser dominada por poliartrite
periférica extensa e incapacitante. (Figura 7)

Exames laboratariais

Do ponto de vista laboratorial a doença caracteri-


FIG. 4
za-se pela presença de anemia moderada a grave
Exantema macular eritematoso típico da forma sistémica de (valores de 5-6g/dL de hemoglobina não são
Artrite Idiopática Juvenil, observado em criança de 5 anos de excepcionais), leucocitose com neutrofilia, trom-
idade, durante pico febril. bocitose, velocidade de sedimentação elevada,
CAPÍTULO 220 Doenças reumáticas juvenis englobadas no grupo das artrites idiopáticas juvenis 1073

proteína C reactiva positiva; e o doseamento do


complemento sérico revelará valores elevados em
mais de metade dos casos.

Como suspeitar?

• Início por quadro sistémico importante, com


febre alta (>39ºC), intermitente;
• Exantema eritematoso pálido (cor de salmão),
em 80% dos casos, predominante durante os
picos febris;
• Adenomegalias generalizadas e hepatospleno-
megalia;
• Pericardite (clínica em 5%, e ecocardiográfica
em 25% dos casos);
FIG. 6
• Evolução para poliartrite extensa em cerca de
Ecocardiograma: pericardite em criança de 12 meses de idade 60% dos casos.
com AIJ sistémica. Note-se a presença de sinais de derrame
pericárdico relativamente volumoso. Tratamento

O diagnóstico de AIJ sistémica exige uma abor-


dagem terapêutica agressiva, incluindo os AINE
associados ao metotrexato (MTX), na dose de
15mg/m2 de superfície corporal/semana, por via
oral durante o máximo de 3 meses, devendo depois
ser instituída a via subcutânea em caso de ineficácia.
Se a doença se mantiver activa após 3 a 6 meses
de MTX, deve ser prescrito um agente biológico
em associação.
Quando a artrite é o quadro clínico predomi-
nante, o etanercept é o fármaco de escolha, admi-
nistrado semanalmente, por via subcutânea, na
dose de 0,8mg/kg/semana (dose máxima de
50mg/semana).
Se as manifestações sistémicas predominarem,
deve ser dada preferência ao anakinra (IL-1ra –
antagonista do receptor da interleucina 1), na dose
de 2mg/kg de peso/dia (dose máxima de
100mg/dia), em administração subcutânea diária.
O efeito do anakinra sobre as manifestações extra-
articulares é habitualmente rápido e decisivo, fa-
zendo por vezes desaparecer todos os sintomas
nos 2-3 primeiros dias do tratamento.
O tocilizumab é também muito eficaz para o
FIG. 7
tratamento das manifestações articulares e extra-
Criança com AIJ de início sistémico, que evoluiu como poliar- articulares de AIJ sistémica.
trite extensa, com deficiente posicionamento articular. Note-
se o micrognatismo devido ao compromisso grave das articu- BIBLIOGRAFIA
lações temporomandibulares.
(consultar Bibliografia do Capítulo 219)
1074 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

221
liar (FMF), síndroma Hiper-IgD (HIDS), síndro-
ma periódica associada ao receptor do TNF
(TRAPS), síndroma de urticária familiar associada
ao frio, síndroma de Muckle-Wells (MWS), síndro-
ma CINCA (crónica infantil neurológica cutânea e
articular) e síndroma PAPA (artrite piogénica, pio-
SÍNDROMAS dermite gangrenosa, acne).
Apesar de apresentarem um curso semelhante
AUTO-INFLAMATÓRIAS com episódios recorrentes de inflamação sistémi-
ca, distinguem-se entre si por variações na clínica,
Sónia Melo Gomes, Marta Conde e J. A. Melo Gomes por mutações genéticas específicas, e pelo modo
de transmissão hereditária, indicados no Quadro
1. As opções terapêuticas para cada uma destas
síndromas também são diferentes.
Sistematização O diagnóstico diferencial é feito através de um
exame clínico exaustivo, seguido da análise genéti-
As síndromas auto-inflamatórias são um conjunto ca específica considerando as hipóteses admitidas.
de patologias caracterizadas por episódios recor- No que diz respeito a outros grupos nosológicos, é
rentes de febre e inflamação localizada ou sistémi- importante excluir a patologia inflamatória crónica, neo-
ca, sem intervenção de agentes infecciosos, meca- plasia e infecção. As manifestações clínicas, alterações
nismos auto-imunes ou linfócitos T auto-reactivos. genéticas e a súmula breve da terapêutica destas
Após a classificação inicial que englobava apenas síndromas encontram-se indicadas no Quadro 2.
síndromas auto-inflamatórias de transmissão
familiar, várias outras patologias foram entretanto Febre mediterrânica familiar (FMF)
incluídas sob a mesma denominação auto-infla-
matória designadamente outras doenças de trans- A FMF é uma doença de transmissão autossómica
missão mendeliana como a síndroma de Blau, ou recessiva, frequente em populações da bacia
de transmissão complexa como a doença de Behçet. mediterrânica, nomeadamente judeus sefarditas,
Uma classificação possível é apresentada no turcos e descendentes de árabes. O gene envolvi-
Quadro 1. do, MEFV, codifica uma proteína denominada
Neste capítulo é dada ênfase a certas entidades pirina ou marenostrina.
que fazem parte das síndromas hereditárias e não Esta doença é caracterizada por episódios
hereditárias. recorrentes de febre e serosite (peritonite, pleurite
ou artrite) de início súbito e curta duração, entre 6
horas a 4 dias.
1. SÍNDROMAS As manifestações mais frequentes são dor
AUTO-INFLAMATÓRIAS abdominal, geralmente muito intensa e acompa-
HEREDITÁRIAS nhada de prostração, com ou sem sinais de peri-
tonite franca (sendo frequente a dor à descom-
As síndromas auto-inflamatórias hereditárias pressão), artralgias, artrite, e dor torácica como
compreendem um grupo de doenças caracteri- manifestação de pleurite. As alterações cutâneas
zadas por episódios recorrentes de febre e infla- são características: exantema erisipelóide nos pés
mação sistémica, na ausência de causas infec- e zona pré-tibial.
ciosas, neoplásicas ou auto-imunes; as mesmas Os resultados dos exames laboratoriais reve-
estão relacionadas com mutações de genes impli- lam leucocitose, aumento da proteíca C reactiva,
cados na resposta inflamatória e na apoptose. do fibrinogénio e da proteína amilóide A sérica.
Mutações em cinco genes diferentes dão O tratamento com colchicina é eficaz na pre-
origem a síndromas auto-inflamatórias hereditárias venção das crises, diminuindo a sua frequência e
actualmente descritas: febre mediterrânica fami- também a probabilidade de aparecimento de
CAPÍTULO 221 Síndromas auto-inflamatórias 1075

QUADRO 1 – Síndromas auto-inflamatórias (*)

Síndromas Transmissão Genes


Síndromas de febre periódica hereditárias
Febre mediterrânica familiar (FMF) AR MEFV
Síndroma periódica associada ao receptor do TNF** AD TNFRSF1A
Síndroma hiper IgD com febre periódica (HIDS) AR MVK
Síndroma auto-inflamatória familiar pelo frio (FCAS) AD CIAS1/NALP3/PAF1
Síndroma Muckle-Wells (MWS) AD CIAS1/NALP3/PAF1
Síndroma neurocutânea e articular infantil crónica*** Esporádica e AD CIAS1/NALP3/PAF1
Síndromas febris idiopáticas
Síndroma de febre periódica, aftas , faringite Não familiar __
e adenopatias (PFAPA)
Artrite idiopática juvenil – sistémica (AIJ-S) Complexa Polimorfismos IL-6, MIF
Doença de Still do adulto Não familiar __
Doenças granulomatosas
Doença de Crohn Complexa NOD2/CARD15, ABCB1 (Ala893)
Síndroma de Blau AD NOD2/CARD15
Sarcoidose de início precoce Esporádica e AD NOD2/CARD15
Doenças piogénicas
Síndroma de artrite piogénica, piodermite AD PSTPIP1
gangrenosa e acne (PAPA)
Osteomielite crónica recorrente multifocal Esporádica, AR LPIN (associado a síndroma de
Majeed); PSTPIP2(?)
Síndroma de sinovite, acne, pustulose, Não familiar __
hiperostose e osteíte (SAPHO)
Doenças com hemofagocitose
Linfo-histiocitose hemofagocítica primária AR PFR1, RAB27A
Síndroma de activação macrofágica (MAS) Não familiar Doenças reumatológicas pediátricas
Doenças do complemento
Angioedema hereditário AD C1NH
Síndromas vasculíticas
Doença de Behçet Complexa HLAB51

**TNF receptor-associated periodic syndrome (TRAPS)


***Chronic infantile neurologic cutaneous and articular syndrome (CINCA); (?) = possivelmente (*) Adaptado de Kastner DL.

amiloidose, que é a complicação mais grave e te- nante. Os dados clínicos mais úteis para distinguir
mível desta doença. O diagnóstico precoce e a esta síndroma das outras febres periódicas são o
adesão à terapêutica com colchicina são os aspec- carácter prolongado dos episódios febris que
tos fundamentais do tratamento da FMF. podem chegar a ter várias semanas de duração, a
conjuntivite, e as mialgias localizadas. Outros
TRAPS – Síndroma periódica sinais e sintomas frequentes são a dor abdominal,
associada ao receptor do TNF o exantema macular eritematoso com placas de
(TNF Receptor Associated edema e as artralgias.
Periodic Syndrome) A avaliação laboratorial na crise revela neutro-
filia, aumento da PCR e estimulação policlonal de
É causada por mutações no gene TNFRSF1A e imunoglobulinas, em especial IgA e IgD.
apresenta uma transmissão autossómica domi- O tratamento consiste na administração de
1076 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 2 – Síndromas auto-inflamatórias hereditárias – Características genéticas, clínicas e terapêuticas.

FMF TRAPS HIDS UFF SMW CINCA PAPA


Hereditariedade AR AD AR AD AD AD AD
Gene MEFV TNFRSF1A MVK CIAS1 CIAS1 CIAS1 PTSTPIP1
Cromossoma (16p13) (12p13) (12q24) (1q44) (1q44) (1q44) (15q24)
Idade de início < 20 anos Variável 1º ano vida 1º ano vida Variável Após nascimento Infância
Duração 1-4 dias Dias 3-7 dias Dias Dias Variável Variável
das crises a semanas a semanas a semanas
Características Bacia Conjuntivite Linf. cervical Factor Inflamação Meningite crónica Artrite
específicas mediterrânica Mialgias Vómitos/diarreia precipitante: ocular Artrite destrutiva piogénica
Fact desenc: frio Surdez NS Inflamação ocular Piodermite
estresse,cirurgia, Surdez NS gangrenosa
vacinações, Acne
traumatismos
Envolvimento Exantema Exantema Exantema Urticária Urticária Urticária Acne
cutâneo erisipelóide eritematoso, máculo-papular Exantema Piodermite
dos membros placas de / púrpura máculo-papular gangrenosa
inferiores edema petequial
Amiloidose ++ +/- - - + + -
Tratamento Colchicina Corticóides Corticóides/ Corticóides, AINE Corticóides
Anti-TNFα IGIV Antagonista dos receptores Anti-TNFα
colchicina/ CyA da IL-1 (IL-1ra) IL-1ra

Abreviaturas: Linf – Linfadenopatia; Fact desenc – Factores desencadeantes; NS – neuro-sensorial; IGIV – imunoglobulina humana intravenosa; CyA – ciclosporina A

corticóides em altas doses, podendo ser útil o A associação do quadro clínico característico a
etanercept. duas determinações séricas de IgD superiores a
100U/ml com um mês de intervalo é sugestiva do
Síndroma Hiper-IgD diagnóstico.
(HIDS – Hyper IgD Syndrome) Até à data não existe tratamento específico
para a HIDS. Estão descritos casos pontuais de
O gene implicado é o da mevalonatocinase, enzi- melhoria com a administração de corticóides,
ma que nestes doentes apresenta uma actividade imunoglobulina humana endovenosa em doses
de 5 a 15% do normal. O modo de transmissão é altas, colchicina e ciclosporina A. A simvastatina
autossómico recessivo. Esta doença caracteriza-se poderá diminuir a duração dos episódios febris
por episódios de febre recorrente que geralmente sem efeito na redução do número dos mesmos.
se iniciam no primeiro ano de vida, com cerca de
4-6 dias de duração, aos quais se segue uma Síndromas periódicas associadas
diminuição gradual da febre. Os episódios febris à criopirina
tendem a recorrer com intervalos de 4-6 semanas
e podem ser desencadeados por vacinação, trau- As outras 3 síndromas – urticária familiar pelo frio
matismo mínimo, cirurgia ou estresse. (UFF), síndroma de Muckle-Wells (MWS) e sín-
A clínica engloba adenopatias cervicais, dor droma CINCA – compoem o grupo das síndromas
abdominal, vómitos e diarreia. As manifestações cu- periódicas associadas à criopirina. Estas síndromas
tâneas e articulares (artralgias ou artrites de grandes resultam de várias mutações diferentes no gene
articulações, exantema máculo-papular eritematoso CIAS1 (Cold-Induced Autoinflammatory Syndrome 1)
ou púrpura petequial), quando presentes, desapare- que dão origem a anomalias na criopirina, com
cem lentamente após a resolução da crise. transmissão autossómica dominante.
CAPÍTULO 221 Síndromas auto-inflamatórias 1077

Clinicamente representam variações de espec- A B


tro da mesma doença, sendo a UFF a forma mais
ligeira, e a síndroma CINCA a mais grave.
As manifestações clínicas da UFF iniciam-se
no primeiro ano de vida, com episódios recor-
rentes de febre, exantema urticariforme não pru-
riginoso e artralgia, precipitados pela exposição
ao frio. As mialgias, cefaleias, sudação, sede inten-
sa e náuseas são outros sintomas frequentes.
Na SMW a clínica é semelhante à da UFF; no
entanto, há algumas diferenças: a existência de
factores precipitantes é menos comum; as mani-
festações articulares são mais marcadas, podendo
haver sinovite recorrente das grandes articu- C
lações. É também frequente haver compromisso
oftalmológico (conjuntivite, episclerite, iridoci-
clite), surdez neurossensorial e amiloidose.
A síndroma CINCA caracteriza-se pelo apare-
cimento dos sintomas no RN, com envolvimento
cutâneo, articular e neurológico permanentes.
FIG. 1
Geralmente a primeira manifestação da doença
é o exantema máculo-papular ou urticariforme, Doente de 6 anos de idade com história de exantema
não pruriginoso, cuja intensidade varia com o urticariforme e maculopapular eritematoso, não pruriginoso,
tempo e o grau de actividade da doença (Figura 1). iniciado durante a 1ª semana de vida, ao nível da face (A),
tronco e membros (B), que se manteve de forma
Segue-se o envolvimento ósseo e articular, que
praticamente contínua até aos 21 anos. O doente sofria
pode surgir em 2 tempos diferentes, com impli- também de períodos frequentes de febre alta (39-40ºC)
cações prognósticas importantes: intermitente, oligoartrite recorrente, predominante ao nível
• durante o primeiro ano de vida - poliartrite dos joelhos, cefaleia crónica, uveíte crónica recorrente com
simétrica afectando preferencialmente as edema intermitente da papila, e surdez neurossensorial
grandes articulações, com deterioração rápi- moderada. Laboratorialmente existiu, ao longo do tempo,
da, perda de função e deformidade articular anemia (Hb: 8-10g/dl), leucocitose (20.000 – 30.000/mm3),
resultante de um hipercrescimento ósseo nas trombocitose (500.000 – 800.000/mm3) e VS elevada (80-
100mm/1ª hora). Um estudo do líquido cefalorraquidiano, a
epífises e cartilagens de crescimento com
que foi submetido aos 9 anos de idade, revelou pleiocitose
ossificação irregular, sendo típica a defor- (C) e ligeiro aumento das proteínas.
mação esferoidal das rótulas (Figura 2); A doença foi resistente a todas as terapêuticas instituídas –
• após os 2 anos de vida (50%) – artrite não AINE, corticosteróides, MTX – tendo o doente depois sido
destrutiva ligeira. medicado apenas com analgésicos em SOS (devido às
cefaleias), com melhoria dos sinais inflamatórios articulares e
Praticamente todos os pacientes sofrem dete- oculares.
rioração neurológica progressiva em resultado de
meningite asséptica crónica (90%) (Figura 1-C). É também frequente haver inflamação ocular
Podem ainda surgir diplegia espástica e epilepsia. (panuveíte, papiledema, papilite ou atrofia óptica)
É típico verificar-se macrocrânia, bossa frontal, que pode levar à cegueira; a surdez neurossenso-
nariz em sela, mãos e pés curtos e grossos, e pal- rial é também uma complicação frequente.
mas e plantas enrugadas. Enquanto a utilização de corticóides e AINE
A RMN-CE pode evidenciar normalidade ou proporciona alguma melhoria clínica temporária,
mostrar sinais de atrofia cerebral e ventriculome- a terapêutica com o antagonista do receptor da IL1
galia, achados muitas vezes associados a atraso (anakinra) tem-se revelado uma opção muito efi-
mental (75%). caz.
1078 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

corticóides. Para os casos refractários há duas al-


ternativas terapêuticas:
• anti-TNFα, que também parece ser eficaz no
tratamento da piodermite gangrenosa;
• antagonistas do receptor da IL-1, administra-
dos de forma intermitente, apenas no trata-
mento das crises de artrite.

2. SÍNDROMAS
AUTO-INFLAMATÓRIAS
NÃO HEREDITÁRIAS

Seguidamente são descritas algumas das síndro-


mas auto-inflamatórias sem transmissão mende-
FIG. 2
liana conhecida.
Alterações típicas das rótulas, com deformação esferoidal, em
criança do sexo feminino com síndroma CINCA. Note-se a Síndroma PFAPA (febre periódica,
acentuada procidência na face anterior do joelho: na estomatite aftosa, faringite,
radiografia verifica-se ser devida a deformação da rótula,
cujos diâmetros vertical e ântero-posterior são semelhantes.
adenopatias)

Os surtos de PFAPA têm o seu início entre os 2-4


Síndroma PAPA (artrite piogénica, anos e recorrem em intervalos de 3-6 semanas.
pioderma gangrenosa, acne) Uma importante característica é a precisão do
intervalo intercrise em cada doente (a vida é pro-
A síndroma PAPA é uma afecção transmitida de gramada de acordo com o dia em que se prevê que
forma autossómica dominante, causada por mu- a criança vai ter febre). Após um pródromo de mal-
tações no gene PTSTPI1 (Proline-Serine-Threonine estar geral e anorexia, a febre inicia-se com picos
Phosphatase Interacting Protein1). de 38-41ºC, muitas vezes com calafrio, persistindo
É caracterizada por episódios recorrentes de por 3-6 dias. A febre é acompanhada por ami-
inflamação que afectam preferencialmente as gdalite e adenomegalias cervicais dolorosas e,
articulações e a pele: muitas vezes, por úlceras orais dolorosas (aftas).
• artrite piogénica estéril, de início na infância; De notar que não é obrigatório que todas as mani-
• piodermite gangrenosa; festações estejam presentes em todas as crises para
• acne quística grave, de início na adolescência se admitir o diagnóstico. Outras manifestações
e que persiste na idade adulta. associadas podem ser cefaleias, náuseas e vómitos,
Apesar de os episódios de inflamação serem dor abdominal moderada e, mais raramente, atral-
auto-limitados, a sua recorrência leva à acumu- gias. Nos períodos intercrise as crianças estão de
lação de material piogénico estéril (rico em neu- perfeita saúde com desenvolvimento cognitivo e
trófilos) nas articulações afectadas, do que resulta progressão estaturo-ponderal normais. (Quadro 3).
destruição significativa dessas mesmas articula- A etiopatogénese é desconhecida. Não é co-
ções. Os episódios recorrentes de artrite estéril nhecida qualquer forma de transmissão heredi-
ocorrem geralmente após traumatismos mínimos, tária ou predilecção étnica. Durante as crises, IL-6,
mas também podem surgir espontaneamente. TNF-α e INF-γ estão elevados.
Outras manifestações menos frequentes são a O diagnóstico é clínico. Os critérios de dia-
diabetes mellitus insulinodependente de início na gnóstico avançados por Thomas em 1999 per-
idade adulta, proteinúria e formação de abcessos mitem a inclusão de alguns doentes com HIDS e
no local de injecções. TRAPS. Assim, nos doentes com suspeita de
Alguns casos respondem à administração de PFAPA deve ser excluída, preferencialmente por
CAPÍTULO 221 Síndromas auto-inflamatórias 1079

QUADRO 3 – Critérios de diagnóstico de PFAPA A

• Febre recorrente de forma regular com início antes dos


5 anos
• Sintomas constitucionais na ausência de infecção das
vias respiratórias superiores com, pelo menos, um dos
seguintes sinais:
– Estomatite aftosa
– Linfadenite cervical
– Faringite
• Exclusão de neutropenia cíclica, HIDS, TRAPS
• Doente assintomático intercrise
• Progressão estaturo-ponderal e desenvolvimento co-
gnitivo normais

estudo genético, tal patologia, bem como FMF, em


populações com alta prevalência.
O tratamento recomendado é prednisona ou B
prednisolona: 1 mg/Kg no início da crise e na
manhã seguinte e, se necessário, 0,5 mg/Kg nas
duas manhãs seguintes. Os efeitos secundários
dos corticóides devem ser ponderados sobre o
benefício, já que as crises são auto-limitadas e não
deixam sequelas. Alguns doentes têm beneficiado
de terapêutica profiláctica com cimetidina ou com
a realização de amigdalectomia e adenoidectomia.

Osteomielite crónica multifocal


recorrente (CRMO)

A CRMO foi descrita pela primeira vez em 1972


por Giedion e colaboradores. Desde então foram
descritos mais de 260 casos na literatura com uma
predomínio do sexo feminino sobre o masculino
FIG. 3
(4/1).
A etiopatogénese é desconhecida; no entanto, Alterações cintigráficas (A) e radiográficas esqueléticas (B) de
há evidência de possível susceptibilidade genéti- doente com CRMO.
ca. Embora a maioria dos casos seja esporádica,
existe uma forma da doença de transmissão nhada ou não de febrícula. A sintomatologia local
autossómica recessiva, denominada síndroma de é de processo inflamatório com dor, tumefacção,
Majeed que se deve a mutações homozigóticas do rubor e impotência funcional. A zona metafisária
gene LPIN2. Estudos parecem apontar para a dos ossos longos, como a tíbia, é a mais frequente-
localização de mutações no gene PSTPIP2 que mente atingida; no entanto, costelas, clavícula e
partilha uma homologia sequencial significativa corpos vertebrais também podem ser afectadas.
com o PSTPIP1, responsável pelo PAPA. (Figura 3)
Clinicamente a CRMO “imita” a osteomielite Ao contrário da osteomielite bacteriana, não
infecciosa. Os sinais e sintomas são insidiosos. Os existe repercussão sobre o estado geral do doente.
doentes apresentam dor óssea multifocal acompa- A evolução da doença é habitualmente caracteriza-
1080 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

da pela apresentação periódica das crises patogénicos, de acordo com o artigo original de
dolorosas com ulterior remissão. Embora a maior- George Frederic Still. Os ANA e FR são geralmen-
ia dos doentes apresente várias lesões simultâneas, te negativos; por outro lado, não tem sido consis-
apenas uma é sintomática em cada crise. Foi tentemente demonstrada a presença de outros
descrita a associação de CRMO a outras patologias auto-anticorpos ou células T auto-reactivas. A as-
como doença inflamatória do intestino, psoríase, sociação genética a polimorfismos dos genes das
pustulose palmoplantar e síndroma de Sweet. citocinas inflamatórias IL-6, TNF-α e MIF (macro-
A suspeita do diagnóstico é clínica. A velocidade phage migration inibition factor) evidenciam de
de sedimentação está ligeiramente elevada (mas forma indirecta a possibilidade de inclusão da AIJ-
menos que na osteomielite infecciosa) e o hemogra- S nas síndromas auto-inflamatórias. Alguns des-
ma é habitualmente normal. As alterações radiográ- tes polimorfismos têm significado funcional já que
ficas dependem da fase da doença, sendo sobre- estão associados a maior expressão das citocinas
poníveis às encontradas na osteomielite: lesões oste- inflamatórias. A boa resposta ao anakinra, à seme-
olíticas no início da doença que gradualmente são lhança de outras síndromas auto-inflamatórias
rodeadas por esclerose marginal com alargamento (por exemplo síndroma CINCA), poderá bem ser
do osso afectado. A RMN e a TAC podem propor- outro dado a favor da sua natureza auto-infla-
cionar informação relativamente às articulações e matória.
tecidos moles envolventes, sendo os achados ósseos A clínica da AIJ-S, terapêutica e prognóstico
sobreponíveis aos da osteomielite infecciosa. A estão descritos nos capítulos 219 e 220.
cintigrafia óssea é útil para a detecção de outros
ossos/zonas afectadas assintomáticos. (Figura 3) BIBLIOGRAFIA
Os achados histopatológicos não são específi- Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
cos; no entanto, a biópsia óssea é necessária para Dierselhuis MP, Frenkel J. Anakinra for flares of of pyogenic
excluir processo infeccioso (associada a culturas arthritis in PAPA syndrome. Rheumatology 2005; 44: 406-
para bactérias aeróbias e anaeróbias, fungos e 408
micobacterias típicas e atípicas), bem como proces- Drenth JP, Van der Meer JW. Hereditary periodic fever. NEJM
so neoplásico. 2001; 345: 1748-1757
A terapêutica de eleição inclui os anti-infla- Gideon A, Holthusen W, Masel LF et al. Subacute and chronic
matórios em doses anti-inflamatórias adequadas, symmetrical osteomyelitis. Ann Radiol 1972; 15: 329-342
com boa resposta na grande maioria dos doentes. Goldbach-Mansky R, Dailey NJ, Canna SW, et al. Neonatal
Observações não controladas apontam também onset multisystem inflammatory disease responsive to
para o papel favorável da antibioticoterapia cróni- interleukin – 1β inhibition. NEJM 2006; 355: 581-592
ca em dose baixa. Outros tratamentos utilizados Guillén Martín S, et al. Osteomielitis crónica multifocal recur-
são os corticosteróides e o bloqueante do TNFα, rente. Annales de Pediatria 2005; 62: 573-578
infliximab, com boa resposta, à semelhança de Handrick W, Hörmann D, Voppmann A, Schille R, Reichardt P,
alguns doentes com síndroma SAPHO. Tróbs RB, et al. Chronic recurrent multifocal osteomyelitis-
report of eight patients. Pediatr Surg Int 1998; 14: 195-198
Artrite idiopática juvenil – sistémica Kallinich T, Haffner D, Niehues T, et al. Colchicine use in child-
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sus statement. Pediatrics 2007; 119: 474 e – 483
Incluir a AIJ-S nas síndromas auto-inflamatórias Kliegman RM, Stanton BF, et al.. Nelson Textbook of Pediatrics.
não é tão estranho quanto possa parecer. Clinica- Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
mente a AIJ-S é passível de confusão com as sín- Long SS. Syndrome of period fever, aphtous stomatitis,
dromas HIDS, TRAPS, e PFAPA, especialmente na pharyngitis and adenitis (PFAPA)-what it isn’t; what it is? J
sua forma cíclica e quando os sintomas sistémicos Pediatr 1999; 135: 1-5
precedem a artrite. Por outro lado, a AIJ-S pode Marshall Gs, Edwards KM, Butler J, Lawton AR. Syndrome of
ser considerada uma entidade clínica única, dife- period fever, pharyngitis and aphtous stomatitis. J Pediatr
rente mesmo das restantes AIJ na sua forma clíni- 1987; 110: 43-46
ca típica, o que sugere diferentes mecanismos etio- McDermott M, Frenkel J. Hereditary periodic fever syndromes.
CAPÍTULO 222 Lúpus eritematoso sistémico infantil e juvenil 1081

222
The Netherlands Journal of Medicine 2001; 59: 118-125
Mongil Ruiz I, Canduela Martinez V: Fiebre periodica. Annales
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fever syndrome in children. J Pediatr 1999; 135: 15-21 O lúpus eritematoso sistémico (LES) é uma
Turkish FMF Study Group. The familial mediterranean fever doença inflamatória crónica caracterizada pela
(FMF) in Turkey. Medicine 2005; 84: 1-11 formação de auto-anticorpos com consequente
Wise CA, Gillum JD, Seidman CE et al. Mutations in CD2BP1 lesão inflamatória de diversos órgãos – alvo como
disrupt binding to PTP PEST and are responsible for PAPA SNC, rins, articulações e sistema hematopoiético.
syndrome, an autoinflammatory disorder. Human Mol Gen Com manifestações clínicas e laboratoriais
2002; 11: 961-969 semelhantes às observadas na idade adulta e
evolução imprevisível, a criança evidencia habi-
tualmente uma forma de início mais grave, e com
compromisso de órgão também mais frequente e
mais grave que no adulto.
Os estudos epidemiológicos têm demonstrado
diferentes incidências da doença nas diferentes
populações, havendo uma influência étnica.
Assim, as crianças negras e índio-americanas têm
uma maior incidência da doença. A gravidade
também é diferente. As crianças negras têm uma
maior prevalência de compromisso renal, neuro-
psiquiátrico, e cardíaco.
Nos últimos anos o prognóstico da doença
melhorou. A taxa de sobrevivência é actualmente
~ 95% ao fim de 11 anos de seguimento nalgumas
séries. O diagnóstico precoce, a intervenção tera-
pêutica atempada, a utilização de novos trata-
mentos, assim como o controlo adequado das
complicações, contribuiram para a maior sobre-
vivência.
A abordagem terapêutica não inclui apenas a
lesão do órgão envolvido pelo LES; com efeito,
existem muitos outros aspectos que necessitam de
especial atenção, nomeadamente o impacte nega-
tivo uma vez que se trata de doença crónica num
organismo em desenvolvimento.
1082 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Aspectos epidemiológicos minados fármacos podem induzir lúpus: minoci-


clina, procainamida, hidralazina, isoniazida, peni-
A prevalência do LES em crianças e adolescentes (1- cilamina, interferão-alfa, metildopa, clorpromazi-
6/100.000) é inferior à dos adultos (20-70/100.000). na, etanercept, infliximab, adalimumab, etc..
Portanto, na infância e adolescência o LES é Existe associação provável com outros fárma-
raro, correspondendo a cerca de 15% dos casos em cos como amiodarona, fenitoína, betabloqueantes,
todas as idades (sendo raro antes da puberdade). estatinas, etc..
O sexo feminino é mais afectado em todos os O lúpus tem sido associado também a ano-
grupos etários; todavia, a relação feminino: mas- malias dos macrófagos quanto à fagocitose, a
culino acentua-se após a puberdade. anomalias do complemento incluindo défice de
C1q, C2, C4, e a anomalias dos receptores do
Etiopatogénese mesmo.
O parênquima pode conter corpos de hema-
O LES é uma doença de etiopatogénese desconhe- toxilina que correspondem a degenerescência dos
cida, possivelmente multifactorial, admitindo-se núcleos celulares.
predisposição genética (identificado gene de sus- A exposição a raios ultra-violeta da luz solar
ceptibilidade no cromossoma 1). Fundamental- exacerba as manifestações do lúpus através de
mente existe produção de auto-anticorpos e acti- possível lesão das células da pele com libertação
vação policlonal de linfócitos B com consequente de material dos respectivos núcleos sob a forma
elevação dos níveis de imunoglobulinas que tam- de ADN contra o qual actuam os anticorpos anti
bém contribuem para a elevação do teor em auto- ADN, formando complexos.
anticorpos. Os estudos epidemiológicos têm
demonstrado uma maior frequência da doença Manifestações clínicas
entre gémeos e familiares directos e em certos
tipos HLA como HLA-B8, HLA-DR2, e HLA-DR3. O LES em idade pediátrica tem frequentemente
A influência das hormonas sexuais também tem um início crónico, insidioso, com sintomas impre-
sido sugerida, a par de determinados estímulos cisos durante longos períodos, o que contribui
antigénicos como factores infecciosos, designada- para retardar o diagnóstico.
mente vírus, os quais originam respostas inespecí- A artrite, a febre, o eritema malar em asa de
ficas (por ex. VEB). borboleta, as aftas orais e a alopécia são as mani-
Em diversos estudos demonstrou-se que deter- festações iniciais mais frequentes. Outra forma de

QUADRO 1 – Manifestações clínicas iniciais no LES infantil e juvenil

Sintomas e sinais Série do HSM (1) Literatura (*)


Febre, fadiga, perda de peso 58% 55-90%
Artrite / artralgia 84% 60-80%
Hepatosplenomegália 18% 16-42%
Nefropatia 36% 20-80%
Eritema malar 67% 22-60%
Anemia hemolítica 9% 10%
PTI 18% 14%
Linfadenopatia 36% 13-45%
Manifestações neuropsíquicas 20% 5-30%
Manifestações cardiovasculares 22% 5-30%
Manifestações pulmonares 13% 18-40%
Manifestações gastrintestinais 14-30%

*Benseler SM&Silverman ED, 2005; (1) Hospital de Santa Maria, Lisboa


CAPÍTULO 222 Lúpus eritematoso sistémico infantil e juvenil 1083

apresentação característica do LES pediátrico é a


anemia hemolítica ou a trombocitopénia. No
Quadro 1 estão descritos os sintomas e sinais mais
característicos.
Durante o curso da doença poderão surgir
diversas manifestações descritas em seguida, e
agrupadas por compromisso de órgão (Quadro 2).

1. Sistémicas ou gerais
A febre é um sintoma frequente, quer na apresen-
tação da doença, quer durante os surtos de agudiza-
FIG. 2
ção; pode ser intermitente ou contínua, e de grau
variável. A fadiga é extremamente comum, assim Alopécia difusa em adolescente com LES.
como a perda de peso. Estes sintomas sistémicos ou
constitucionais estão geralmente associados às ou- A
tras manifestações da doença.

2. Mucocutâneas
A manifestação mucocutânea mais característica
do LES é o eritema malar em asa de borboleta.
Esta lesão cutânea eritematosa localiza-se na
região malar e dorso do nariz, poupando as pre-
gas nasolabiais. (Figura 1).
Mas outras manifestações também podem
ocorrer, como as aftas orais indolores, o enantema
do palato, a fotossensibilidade cutânea, a alopécia, B
o fenómeno de Raynaud (Figuras 2 e 3), o eritema
palmar e as lesões de vasculite dos pequenos vasos
localizadas nas polpas digitais (púrpura palpável);
ou, nas formas mais graves, as ulcerações. O lúpus
discóide observa-se mais raramente que no adulto,
assim como o lúpus cutâneo subagudo. (Quadro 5)

FIG. 3
Fenómeno de Raynaud observado nos pés de criança de 10
anos com LES.

A exposição solar pode exacerbar o eritema


malar e ainda desencadear o aparecimento de
máculas eritematosas noutras áreas expostas, ou
FIG. 1
causar exacerbação sistémica da doença.
Eritema facial “em asa de borboleta” em adolescente com 3. Músculo-esqueléticas
LES. (NIHDE) A maioria das crianças tem manifestações múscu-
1084 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 2 – Manifestações clínicas cumulativas do LES

Série do HSM (1) Literatura (*)


Sistémicas ou gerais 84%
Febre 80% 80-100%
Fadiga 69%
Emagrecimento 38%
Anorexia 36%
Mucocutâneas 98% 50-90%
Eritema malar 69% 40-80%
Aftas orais 69% 10-30%
Vasculite 42% 10-20%
Fenómeno de Raynaud 47% 10-20%
Fotossensibilidade 42% 35-50%
Alopécia 69% 20-40%
Lúpus discóide 5-10%
Músculo-esqueléticas 91%
Artralgia / Artrite 84% 60-90%
Mialgia / Miosite 24% 20-30%
Tenossinovite 18%
Necrose asséptica 2% 10%
Oculares 20-35%
Queratoconjuntivite seca
Conjuntivite
Uveíte
Episclerite
Queratite
Neurite óptica
Neuropatia óptica isquémica
Oftalmoplegia
Retinopatia
Cardíacas 29% 17-60%
Pericardite 29% 15-25%
Miocardite 2%
Valvulopatia
Coronariopatia
Anomalias “silenciosas” 16%
Pulmonares 27% 5-77%
Pleurite 22% 40-60%
Pneumonite 2% 1-4%
Hipertensão pulmonar 5-14%
Doença intersticial difusa 3-8%
Hemorragia pulmonar 2% 2%
Embolia pulmonar 30%
Síndroma do pulmão encarcerado
ou Shrinking lung syndrome Raro

*Benseler SM&Silverman ED, 2005;


(1) Hospital de Santa Maria, Lisboa
CAPÍTULO 222 Lúpus eritematoso sistémico infantil e juvenil 1085

QUADRO 2 – Manifestações clínicas cumulativas do LES (cont.)

Série do HSM (1) Literatura (*)


Renais (ver texto) 49% 29-80%
Classe I WHO 6%
Classe II WHO 23% 15-25%
Classe III WHO 18% 12-24%
Classe IV WHO 47% 44-64%
Classe V WHO 8-20%
Neuropsíquicas 62% 26-95%
Cefaleias 40% 22-95%
Convulsões 9% 10-42%
Psicose 2% 12-50%
Neuropatia periférica 7% 3-30%
Mielopatia 1-8%
Doença cerebral vascular 7% 12-30%
Distúrbios cognitivos 11% 20-57%
Distúrbios do humor 20% 28-57%
Meningite asséptica
Doença do movimento / coreia 3-15%
Hematológicas 89% 50-75%
Trombocitopénia 29% 15-45%
Leucopénia 47% 20-40%
Linfopénia 49% 30-59%
Anemia 76% 72-84%
Gastrintestinais 33% 20-40%
Dor abdominal 7%
Pancreatite
Disfunção hepática 18%
Má-absorção intestinal

lo-esqueléticas. A artrite é, na sua forma caracte- têm cardiopatia isquémica assintomática. Os fac-
rística, uma poliartrite simétrica que evolui sem tores de risco de desenvolvimento de aterosclerose
deformações ou erosões. As grandes e as peque- precoce são os descritos no Quadro 3.
nas articulações podem ser afectadas. A pericardite é a manifestação mais frequente e
A mialgia e a fraqueza muscular proximal raramente pode complicar-se por tamponamento
podem também ocorrer. A miosite, quando pre- cardíaco. No entanto, todas as estruturas cardíacas
sente, associa-se a vasculite cutânea e a lesão de podem ser afectadas; ou seja poderá surgir qual-
órgão. quer dos seguintes quadros clínicos: miocardite,
A necrose asséptica ocorre preferencialmente cardiomiopatia, endocardite verrugosa e altera-
nas articulações de carga como a coxofemoral ou o ções da condução. Alguns autores descreveram
joelho, e tem sido descrita como uma consequên- uma associação entre detecção sérica de anti-
cia do tratamento com corticosteróides ou secun- Ro/SSA e anti-La/SSB e compromisso cardíaco.
dária à doença. (ver adiante)

4. Cardíacas 5. Pulmonares
O compromisso cardíaco constitui uma importante O pulmão está afectado em percentagem variável
causa de morbilidade e mortalidade no LES; estu- (5-77%) das crianças, sendo as manifestações
dos demonstram que cerca de 16% das crianças semelhantes às observadas no adulto. A pleurite é a
1086 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 3 – Factores de risco de doença car- proteinúria e/ou hematúria microscópica persis-
diovascular precoce no LES tente. A hipertensão arterial tem sido descrita em
40% dos doentes, verificando-se, em cerca de
• Níveis séricos elevados de homocisteína metade, deterioração da função renal.
• Hiperinsulinémia Os factores associados às formas mais graves
• Hipertensão arterial de lesão renal são: níveis de proteinúria, hema-
• Proteinúria nefrótica túria, hipoalbuminémia, valor sérico elevado de
• Dislipidémia creatinina e número de fármacos usados para con-
• Vasculite arterial trolo da pressão arterial (Quadro 4).
• Anticorpos antifosfolípidos A biópsia renal é útil na orientação do
• Anticoagulante lúpico prognóstico e da terapêutica. De acordo com a
• Obesidade induzida pelos esteróides Organização Mundial de Saúde utiliza-se a
seguinte classificação histológica para a nefrite
lúpica: classe I – normal; classe II – proliferação
mais comum; todavia a pneumonite intersticial mesangial; classe III – glomerulonefrite focal seg-
aguda ou crónica, a hemorragia pulmonar, o trom- mentar; classe IV – glomerulonefrite proliferativa
boembolismo pulmonar, a disfunção diafragmática difusa; classe V – glomerulonefrite membranosa;
e a hipertensão arterial pulmonar também têm sido classe VI – glomerulosclerose.
descritas nas crianças. A tríade clássica (hemoptis- As classes III e IV traduzem as lesões histoló-
es, diminuição súbita da hemoglobina e infiltrado gicas mais frequentes, ocorrendo em cerca de 65%
pulmonar característico da hemorragia pulmonar) dos doentes, enquanto as classes I e II têm menor
não está sempre presente. frequência (25%). A classe V é mais rara na cri-
A síndroma do pulmão encarcerado é rara na ança, descrita em aproximadamente 9% dos casos.
criança, traduzindo-se pela instalação súbita de A biópsia renal fornece-nos outras informações
dispneia relacionável com restrição dos movimen- úteis para o prognóstico, nomeadamente as altera-
tos diafragmáticos. ções tubulointersticias em associação com as uti-
A alteração das provas de função respiratória lizadas na determinação do índice de actividade
tem sido descrita em crianças assintomáticas, o ou cronicidade. (capítulos 156 e 158)
que sugere a presença de doença subclínica. A
diminuição da difusão do monóxido de carbono é 7. Neuropsíquicas
a anomalia mais frequentemente detectada, O compromisso do sistema nervoso central,
descrita em cerca de 26% dos casos. A TAC de alta comum na criança com LES, comporta elevada
resolução é um método muito sensível para o taxa de morbilidade e mortalidade. A sua fre-
diagnóstico precoce de doença intersticial. quência varia entre 20% e 60% dos doentes, de
Takada e colaboradores descreveram em 2005 acordo com as diferentes séries. O seu início é pre-
o primeiro caso de BOOP no LES de início juvenil
que respondeu a doses elevadas de corticoste- QUADRO 4 – Factores de prognóstico da nefrite
róides (ver Abreviaturas). lúpica na criança

6. Renais • Sexo masculino


A nefrite lúpica é uma das principais apresentações • Raça negra
clínicas do LES na criança, determinando o • Inicio antes da puberdade
prognóstico da doença. A sua frequência é cerca de • Anemia
80%, superior à do adulto. Em 90% dos casos a • Hipertensão arterial persistente
nefropatia lúpica inicia-se nos dois primeiros anos • Insuficiência renal
de doença. As manifestações clínicas variam desde • Sindroma nefrótica
alterações no sedimento urinário assintomáticas, • Nefrite da classe IV
até sindroma nefrótica ou insuficiência renal. As • Classe histológica mais elevada (de I a VI)
manifestações iniciais são, na maioria das crianças,
CAPÍTULO 222 Lúpus eritematoso sistémico infantil e juvenil 1087

coce e, por vezes, não se acompanha doutras ma- A leucopénia e a linfopénia ocorrem em cerca
nifestações de exacerbação do LES. de metade das crianças com LES.
As convulsões são as manifestações mais fre- Os anticorpos antifosfolípidos estão presentes
quentes; todavia o espectro é vasto e inclui, em cerca de 70% dos casos e existe correlação
nomeadamente, cefaleia, psicose, depressão, neu- entre o respectivo teor e o desenvolvimento de
ropatia periférica, doença cerebrovascular, distúr- fenómenos trombóticos. (ver alínea 7)
bios cognitivos, coreia, meningite asséptica ou A síndroma de anticorpos antifosfolípidos
mielite transversa. catastrófica é uma complicação rara: caracteriza-
A cefaleia persistente e intensa não cedendo à se por fenómenos de trombose em múltiplos
terapêutica analgésica usual deverá ser considera- órgãos dando origem a um quadro de falência
da no contexto do LES. multiórgão.
Os anticorpos antifosfolípidos são identifica-
dos em cerca de 70% das crianças com manifes- 9. Gastrintestinais e hepáticas
tações neuropsiquiátricas do LES. Todavia, a asso- A dor abdominal pode resultar da inflamação da
ciação entre anticorpos antifosfolípidos e manifes- membrana serosa peritoneal, pancreatite, vas-
tações não-trombóticas do neurolúpus não tem culite mesentérica ou enterite com concomitante
sido confirmada em diversas séries. A única corre- má-absorção.
lação com significado estatístico é a descrita na A pancreatite também pode ocorrer no contex-
doença cerebrovascular. to do tratamento com corticosteróides ou azatio-
O compromisso do sistema nervoso central é prina.
por vezes difícil de diagnosticar; com efeito, muitas As alterações da função hepática são detec-
das suas manifestações são subtis e poderão dever- tadas em cerca de 25% das crianças e associadas
se a outras causas, tais como: infecção, efeitos dos por vezes a hepatomegália no contexto do proces-
corticosteróides, ou dificuldade psíquica na adap- so inflamatório. Mais raramente poderá surgir
tação à doença crónica. A punção lombar, a quadro de hepatite lúpica.
ressonância magnética nuclear e os testes neu- A esplenomegalia, assim com as adenome-
rocognitivos são úteis na orientação diagnóstica. galias, ocorrem em cerca de 25% dos casos; tam-
bém reflectem as alterações inflamatórias genera-
8. Hematológicas lizadas, características desta doença.
Os distúrbios hematológicos são comuns no LES
pediátrico. A anemia normocrómica normocítica, 10. Outras manifestações
característica de doença inflamatória crónica, é a As alterações da função tiroideia ocorrem no LES
mais frequente; quando persiste durante longos pediátrico, sendo o hipotiroidismo a alteração
períodos pode tornar-se microcítica e hipocrómi- mais frequentemente detectada. Cerca de 20% dos
ca. A hemólise é uma causa menos frequente de doentes têm anticorpos antitiroideus e, mais rara-
anemia; todavia a prova de Coombs pode ser mente, tiroidite.
positiva em 30 a 40% dos doentes. A tromboci- Atraso na puberdade e irregularidade mens-
topénia observa-se em cerca de 30% das crianças e trual são frequentes e relacionam-se com a activi-
é a forma de apresentação da doença em 15% dos dade da doença; todavia, também podem ser
casos. A síndroma de Evans poderá ocorrer no secundários ao tratamento (por exemplo, com cor-
contexto de LES, como forma de apresentação ou ticosteróides).
no decurso da doença.
A presença de púrpura trombocitopénica Exames complementares
trombótica, caracterizada por anemia hemolítica
microangiopática, distúrbios neurológicos e re- A principal marca do lúpus é a formaçção de auto-
nais, impõe a exclusão de LES. Alguns autores anticorpos contra antigénios nucleares (ADN,
sugerem que a púrpura trombocitopénica trom- ribossomas), proteínas ribonucleares citoplásmicas
bótica é mais comum no LES iniciado em idade (Ro, La) e nucleares (Sm), plaquetas, factores de
pediátrica. coagulação, Ig, eritrócitos, leucócitos, etc..
1088 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Os anticorpos antinucleares (ANA) estão pre- QUADRO 5 – Critérios de diagnóstico de LES


sentes na maioria dos casos assim como os anti-
DNA de dupla hélice. Outros anticorpos (anti- • Eritema da face em “asa de borboleta”
RNP, anti-SSA e anti-SSB) ocorrem com igual fre- • Lesão discóide(eritematodescamativa com região cen-
quência à do adulto, sendo de salientar que na tral atrófica evoluindo para cicatriz e alteração pi-
raça negra se detectam títulos mais elevados de gmentar) – Lúpus discóide
anti-DNA e anti-SSA. • Fossensibilidade
O anticorpo anti-Sm tem uma especificidade • Ulceração na mucosa oral ou nasofaringe
superior ao anti-DNA para o diagnóstico de LES. • Artrite não erosiva
Por outro lado, o factor reumatóide pode ser • Serosite (pericardite,pleurite, etc.)
observado numa pequena percentagem de doentes. • Sedimento urinário alterado:proteinúria (>0,5 g/dia
O anticorpo anti-ribonucleoproteína tem sido e/ou hematúria e/ou cilindrúria)
associado a risco elevado de fenómeno de • Sintomatologia neuropsíquica (convulsões e/ou
Raynaud e de hipertensão pulmonar. doença psicótica)
Os anticorpos antifosfolípidos (incluindo anti- • Achados hematológicos: anemia hemolítica ou leu-
cardiolipina) associam-se a risco elevado de even- copénia(<4.000/mm3)ou linfopénia(<1.500/mm3)ou
tos trombóticos venosos e arteriais. trombocitopénia (<100.000/mm3)
Os auto-anticorpos são úteis no diagnóstico e na • Presença de anticorpos antinucleares(ANA)
monitorização da doença, nomeadamente o anti- • Achados imunológicos: anti-DNA de dupla hélice
DNA. Títulos elevados ocorrem durante os perío- positivo,ou anti-antigénio Sm e/ou anticorpo antifos-
dos activos da doença, especialmente na nefrite folípido positivo, ou reacção serológica para a sífilis
lúpica. Outros parâmetros serológicos de doença falsa-positiva durante, pelo menos, 6 meses; ou anti-
activa são redução das fracções do complemento corpos anticardiolipina IgM ou IgG.

C3 e C4, e do complemento hemolítico total (CH50). Nota: A presença de 4 (quatro) ou mais critérios legitima o diagnóstico de LES; a sensibilidade e especi-
ficidade deste método é respectivamente 96% e 100%
Reitera-se a importância doutros (exames ima-
giológicos, laboratoriais, ECG, ecocardiograma,
etc.) face ao contexto clínico discriminado nas são dos mesmos. O Quadro 5 sintetiza os critérios
alíneas anteriores de 1. a 10. de diagnóstico classicamente aceites para o LES.

Diagnóstico diferencial Tratamento

O LES deve ser considerado no diagnóstico dife- O tratamento do LES iniciado em idade pediátrica
rencial com muitas situações clínicas, desde sín- é semelhante ao do adulto, todavia com algumas
droma febril indeterminada a artralgias, anemia e particularidades relativas ao grupo etário (doença
nefrite. O diagnóstico diferencial da sintomatolo- crónica que se inicia num período de desenvolvi-
gia relaciona-se com o órgão afectado; citam-se mento físico e emocional).
designadamente GN pós- estreptocócica, FR, ane- A criança e a família devem ser devidamente
mia hemolítica idiopática, PTI, leucemia, endo- informadas sobre a doença e o seu tratamento. As
cardite infecciosa. O quadro clínico inicial poderá decisões terapêuticas devem ser tomadas em con-
constar apenas de parotidite, dor abdominal, junto e sempre com o objectivo de permitir uma
mielite transversa ou vertigem. evolução física e emocional plena para que criança
Recorda-se, a propósito, que os ANA podem possa ser um adulto independente.
ser detectados noutras situações para além do LES A exposição solar deve ser evitada, usando sem-
e lúpus induzido por fármacos: AJ, dermato- pre protector solar e roupas adequadas de forma a
miosite juvenil, vasculites, esclerodermia, mono- reduzir ao mínimo a área corporal exposta.
nucleose infecciosa e hepatite crónica activa. As crianças com fenómeno de Raynaud benefi-
Deverá ter-se em conta ter-se em conta que cer- ciam de medidas protectoras para o frio, blo-
tos fármacos (ver Etiopatogénese) poderão origi- queantes dos canais de cálcio ou outros vasodi-
nar quadro simile LES, que regredirá após suspen- latadores.
CAPÍTULO 222 Lúpus eritematoso sistémico infantil e juvenil 1089

Os corticosteróides utilizados em doses va- administrados ambos por via endovenosa, foi uti-
riáveis são a base do tratamento, dependendo do lizada com sucesso nos casos de nefrite refractária
órgão afectado. Os corticosteróides têm impor- a outras terapêuticas.
tantes efeitos adversos que podem afectar negati- Nos casos de citopénias renitentes à corticote-
vamente o desenvolvimento físico e psíquico da rapia, o emprego de IGIV ou IGSC é uma alterna-
criança. Eles são responsáveis por inibição do tiva (Capítulo 223). Mais recentemente a terapêu-
crescimento linear, atraso da puberdade, fácies tica anti-CD20 com rituximab nos casos de nefrite
cushingóide, obesidade do tronco, hirsutismo, lúpica ou citopénia grave é outra opção eficaz.
acne e estrias cutâneas. Existem ainda outros O transplante autólogo de células estaminais é
efeitos adversos igualmente graves, como por também utilizado nos casos de extrema gravidade
exemplo cataratas, osteoporose, hipertensão arte- e refractários ao tratamento convencional.
rial, hiperglicémia, dislipidémia e miopatia. Na criança com LES está indicado completar o
Para reduzir estes efeitos secundários devem programa de vacinação (excepto vacinas com
usar-se os corticosteróides na menor dose eficaz e microrganismo vivo, contra-indicadas durante os
durante o mínimo de tempo necessário. Algumas períodos de imunossupressão).
medidas ajudam a reduzir ou a prevenir estas con- O LES não afecta a fertilidade; assim, os jovens
sequências tais como, dieta equilibrada com adolescentes devem ser informados sobre os
restrição de hidratos carbono e de sal, e suprimen- métodos anticonceptivos. A utilização de contra-
to adequado de cálcio e vitamina D. ceptivos com estrogéneos deve ser evitada pelo
Os AINE (e a hidroxicloroquina na dose de risco de exacerbação da doença.
5mg/Kg/dia) estão indicados no tratamento das
manifestações cutâneo-articulares do LES. A Prognóstico
administração de hidroxicloroquina tem o risco de
retinopatia, pelo que se requer uma observação O prognóstico das crianças com lúpus tem melho-
oftalmológica regular. rado nas últimas décadas, sendo a taxa de sobre-
O metotrexato é outra alternativa para o trata- vivência aos 10 anos superior a 85%. Vários fac-
mento da artrite refractária, permitindo reduzir a tores têm contribuído para esta mudança, tais
dose de corticosteróides. como: o diagnóstico precoce, a identificação de
Os imunossupressores (azatioprina e ciclofos- formas menos graves, a instituição atempada de
famida) são usados quando existe compromisso de terapêutica, e a utilização de novas terapêuticas
órgão major como o rim e o SNC. A ciclofosfamida é que permitem um melhor controlo de formas
usada em pulsos endovenosos mensais durante seis graves da doença.
meses, seguidos por periodicidade trimestral, com- Nas crianças com nefrite lúpica têm sido des-
pletando no total 24 meses. O risco de indução de critas taxas de sobrevivência de 97% e 94%, ao fim
esterilidade por toxicidade gonadal é a principal de 5 e 11 anos respectivamente (casos de nefrite
preocupação inerente ao seu uso neste grupo etário. lúpica comprovadas por biópsia renal e tratados
A falência ovárica prematura é rara na criança com azatioprina ou ciclofosfamida).
mas existe uma redução da reserva ovárica na A melhoria da esperança de vida acompanha-
criança exposta à ciclofosfamida. A dose total de se de maior morbilidade relacionada com a lesão
ciclofosfamida administrada e a idade do doente de órgão provocada pela doença, com as conse-
são os principais factores de risco. De acordo com quências dos tratamentos, ou ainda com outras
estudos efectuados noutras patologias, o uso de complicações que surgem no decurso da doença
ciclofosfamida por via oral numa dose total inferior (infecções recorrentes, aterosclerose prematura,
a 200mg/Kg/dia não provoca toxicidade gonadal. osteoporose e hipertensão).
Mais recentemente foi introduzido no trata- A avaliação da criança e adolescente com LES
mento da nefrite lúpica o micofenolato de mofetil. requer, deste modo, não só a determinação da
Há estudos que demonstram uma maior eficácia actividade da doença, como também da lesão de
deste fármaco nas formas da classe V (ver atrás). órgão e das consequências no bem estar físico e
A associação de ciclofosfamida e metotrexato, psíquico.
1090 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Os métodos actuais mais utilizados na avalia- ta o risco de osteoporose e de fracturas na idade


ção da doença e validados na criança são o adulta.
SLEDAI (Systemic Lupus Erythematosus Disease Foi demonstrada redução da densidade mine-
Activity Index) e o SLICC (Systemic Lupus Ery- ral óssea na coluna lombar e colo do fémur nos
thematosus International Collaborating Clinics) doentes com LES juvenil comparativamente aos
os quais nos permitem estimar o compromisso controlos saudáveis.
dos vários órgãos. Todavia existem outros méto- As complicações da osteoporose, designada-
dos, que também permitem analisar a repercussão mente fracturas vertebrais, são frequentes neste
da doença na qualidade de vida da criança. grupo de doentes. A redução da densidade mine-
ral óssea pode surgir no contexto da corticotera-
Co-morbilidade pia, mas também associada à inactividade e a
pouca exposição solar.
As complicações infecciosas são actualmente a O uso de bifosfonatos na criança é controverso,
principal causa de morte no doente com LES. Os pelos possíveis efeitos no crescimento ósseo ou
agentes mais frequentes são as bactérias Gram mineralização óssea. O seu uso tem sido pre-
negativas, os fungos e as infecções oportunistas conizado após uma fractura induzida pela osteo-
(Pneumocystis, citomegalovírus, e herpes vírus). porose. O alendronato na dose de 1 a 2 mg/kg/
Diversos factores são responsáveis por este maior semana suprime a reabsorção óssea induzida
risco infeccioso, nomeadamente a linfopénia, a pelos corticosteróides sem interferir no crescimen-
redução da acção fagocitária dos polimorfonu- to ósseo da criança.
cleares, a hipocomplementémia e o asplenismo
funcional. BIBLIOGRAFIA
A aterosclerose prematura é responsável pelas Benseler SM, Silverman ED. Systemic lupus erythematosus.
complicações cardiovasculares que determinam Pediatr Clin North Am 2005; 52: 443-467
maior morbilidade e mortalidade. Os factores Bogdanovic, R, Nikolic. V, Pasic S, Dimitrijevic J, Lipkovska-
envolvidos são múltiplos como foi descrito no Markovic J, Eric-Marinkovic J, Ognjanovic M, Minic A, Stajic
Quadro 3. N. Lupus nephritis in childhood: a review of 53 patients fol-
Tem sido demonstrada a relação entre activi- lowed at a single center. Pediatr Nephrol 2004; 19: 36-44
dade da doença e dislipidémia: os triglicéridos Costa MM, Canhão H, Pinto M, Costa T, Correia M, Queiroz V.
estão aumentados no início da doença e existe Síndrome de anticorpos antifosfolípidos catastrófico em
uma relação entre os seus níveis e a actividade da criança com LES. Acta Reumatológica Portuguesa 1997;
doença. Os níveis de colesterol total e de coles- XXI (supl)
terol-LDL estão também elevados no momento do Costa MM, Santos MJ, Teixeira da Costa JC, Romeu JC, Viana
diagnóstico; a sua diminuição relaciona-se com a Queiroz M. Lúpus eritematoso sistémico de início juvenil:
dose de corticóide e não com a actividade da revisão de 45 casos clínicos e comparação com a doença ini-
doença. Por outro lado, os níveis baixos de coles- ciada na idade adulta. Rev Port Reumatol 1994; 5: 999-1011
terol-HDL estão associados com a actividade da D’Cruz DP. Systemic lupus erythematosus. BMJ 2006; 332: 890-
doença, enquanto os níveis altos correlacionam-se 894
com a dose de corticóide. Edelbauer M, Jungraithmayr T, Zimmerhackl LB. Rituximab in
Em suma, o controlo da doença acompanha-se childhood sytemic lupus erythematosus refractory to con-
de melhoria do perfil lipídico; e a terapêutica com ventional immunosuppression. Pediatr Nephrol 2005; 20:
corticosteróides é também benéfica. 811-813
A massa óssea aumenta ao longo da infância e Emre S, Bilge I, Sirin A, et al. Lupus nephritis in children: prog-
adolescência, atingindo um pico no início da nostic significance of clinicopathologic findings. Nephron
idade adulta. O pico de massa óssea é genetica- 2001; 87: 118-126
mente determinado, mas outros factores também Falaschi F, Ravelli A, Martignoni A et al. Nephrotic-range pro-
o influenciam tais como factores hormonais, teinuria, the major risk factor for early atherosclerosis in
actividade física e factores nutricionais. A inca- juvenile-onset systemic lupus erythematosus. Arthritis
pacidade em atingir o pico de massa óssea aumen- Rheum 2000; 43: 1405-1409
CAPÍTULO 222 Lúpus eritematoso sistémico infantil e juvenil 1091

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1092 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Etiopatogénese

223 A causa da DMJ é desconhecida. Admite-se como


hipótese para a génese da doença a compartici-
pação de determinados factores ambientais
actuando num indivíduo imunogeneticamente
predisposto. São raros os casos familiares, mas
DERMATOMIOSITE estudos diversos demonstraram que a doença é
mais frequente em determinados indivíduos por-
E POLIMIOSITE JUVENIS tadores de certos antigénios de histocompatibili-
dade (HLA) determinados por genes no cromos-
Margarida Paula Ramos soma 6; por exemplo: HLA A1, HLA B8, HLA DR3
e HLA DQ* 0501, sendo este último antigénio mais
frequente na raça caucasiana.
Entre os factores ambientais mais implicados ci-
1. DERMATOMIOSITE JUVENIL tam-se: agentes infecciosos actuando cerca de 3
meses antes do início da doença (Coxsackievirus B,
Definição, importância do problema Parvovírus, ECHO vírus, VEB,CMV, Streptococcus, My-
e aspectos epidemiológicos coplasma, Borrelia, Toxoplasma), imunizações (rubéola,
BCG), reacções alérgicas, exposição ao sol, determi-
A dermatomiosite juvenil (DMJ) é uma doença nados fármacos, etc..
multissistémica rara, de etiologia multifactorial, Diversos estudos apontam a auto-imunidade
caracterizada fundamentalmente por inflamação, como base etiopatogénica da doença: activação de
aguda ou crónica não supurativa dos pequenos linfócitos B, T e do complemento, por determinados
vasos, principalmente do músculo esquelético, da antigénios, com deposição de IgG e IgM e imuno-
pele e do tracto digestivo. complexos, (ou seja produtos de reacção antigénio-
Trata-se duma vasculopatia sistémica origi- anticorpo associados a compostos de complemento)
nando predominantemente lesão do músculo es- nas células endoteliais dos vasos e nos músculos,
quelético; na prática clínica pediátrica correspon- originando um processo de vasculite. A favor de
de à miopatia inflamatória mais comum. Está lesão endotelial induzida por imunocomplexos está
associada a alterações cutâneas na quase totali- a demonstração de níveis plasmáticos aumentados
dade dos casos. de C3, de factor VIII e de fibrinopéptido A.
Como caracteríticas distintivas relativamente à Como resultado deste processo inicial surge
DMJ do adulto cabe referir: 1) a vasculite é fre- um conjunto de lesões anátomo-patológicas com
quente e de gravidade variável; 2) poderão ulte- expressão especialmente relevante ao nível do
riormente surgir calcinose subcutânea ou calcifi- músculo estriado, dos vasos e da pele.
cações difusas das massas musculares envolvidas. O exame histológico do músculo estriado evi-
A incidência anual da DMJ, de acordo com dencia fundamentalmente: sinais de atrofia, dege-
diversos estudos epidemiológicos, oscila entre 1 a nerescência e necrose das fibras musculares; con-
4 /1.000.000 de crianças entre 1 e 16 anos de idade, comitantemente existe processo de regeneração das
com pico de incidência entre 10-14 anos. É mais referidas fibras; com a evolução, as áreas de necrose
frequente no sexo feminino (2/1); nalguns grupos são substituídas por áreas de tecido conjuntivo e de
étnicos, como os judeus asiáticos e as crianças de tecido adiposo.
raça negra, parece existir maior probabilidade de No que respeita ao exame histológico dos vasos
aparecimento. sanguíneos verifica-se, (como consequência da
No cômputo geral das doenças do foro deposição de imunocomplexos) um processo de
reumático é menos frequente que a febre reumáti- vasculite necrosante com infiltrado perivascular
ca, a artrite idiopática juvenil e o lúpus eritema- de células mononucleadas nos capilares, arteríolas
toso sistémico. e vénulas do músculo estriado, do tracto gastrin-
CAPÍTULO 223 Dermatomiosite e polimiosite juvenis 1093

testinal, pele, e do tecido celular subcutâneo. A tema malar assemelha-se ao do lúpus eritematoso
vasculopatia sistémica conduz a coagulação in- (Figura 1);
travascular, com oclusão e enfarte consequentes. – pápulas ou sinal de Gottron: elevações aver-
Ao nível da pele, como consequência das lesões melhadas, lisas ou descamativas evoluindo para
endoteliais capilares, surge atrofia da epiderme, zonas atróficas e despigmentadas; localizam-se na
degenerescência das células basais e infiltrado lin- superfície de extensão interfalângica, metcarpo-
focitário na derme. Na fase de cicatrização verifica- falângica, região periungneal, cotovelos, joelhos,
se deposição de sais de cálcio (calcinose). coxas e tórax (Figura 2); nos casos de vasculite dis-
Em todo o trajecto do tracto gastrintestinal o seminada pode verificar-se fotossensibilidade,
epifenómeno mais marcante da vasculopatia é a livedo reticularis, etc. (Figura 3);
ulceração e perfuração. – calcinose sob a forma de placas ou nódulos
superficiais, geralmente nas extremidades, poden-
Manifestações clínicas do ulcerar e infectar secundariamente;
– eritema e/ou telangiectasia e espessamento
A DMJ tem geralmente início insidioso e pro- periungueal, edema subcutâneo, nódulos sub-
gressivo, com aparecimento de mialgias e fraque- cutâneos, púrpura, alopécia e lipodistrofia (perda
za muscular; no entanto, em cerca de 30% dos de tecido adiposo subcutâneo) localizada ou
casos pode desenvolver-se de forma aguda e com generalizada;
rápida evolução das manifestações clínicas. – na mucosa oral: enantema, gengivo-estoma-
No início da doença prevalecem os chamados tite com ulceração e odinofagia, associados a anti-
sinais e sintomas constitucionais como febre, ano- corpos anti-RNAt sintetase;
rexia, adinamia, astenia, perda de peso. Outras manifestações incluem artrite (em cerca
Na fase de doença estabelecida as principais ca- de 10-15% dos casos, em geral das pequenas arti-
racterísticas clínicas dizem respeito às manifes- culações), tenossinovite, hepatomegália, espleno-
tações cutâneas e musculares, sendo que as cutâ- megália, vómitos, diarreia, hematemeses, mele-
neas podem ou não preceder as musculares; no nas, alterações cardiovasculares (pericardite, mio-
primeiro caso, tais manifestações poderão ser inter- cardite, hipertensão arterial, fenómenos de Ray-
pretadas como “alergia ou outra dermatose”. naud), doença pulmonar restritiva associada a
Como manifestações musculares citam-se: fibrose relacionada com a presença de anticorpos,
mialgias, contracturas e atrofia muscular, fraqueza exantema inespecífico, linfadenopatia, retinopatia
muscular progressiva, principalmente proximal associada a atrofia óptica, nefropatia podendo
(cinturas escapular e pélvica, e flexores do pescoço evoluir para insuficiência renal, etc..
e dorso), com dificuldade de subir e descer
escadas, levantar-se da cadeira, levantar-se do
chão,etc.. É nítido o sinal de Gower : o doente , ao
levantar-se do chão uma vez sentado, na tentativa
de se endireitar, tem de apoiar progressivamente
as mãos sobre as pernas e coxas, de baixo para
cima, alternadamente dum lado e doutro, como
que servindo de alavanca ou suporte.
Se os músculos das vias respiratórias superio-
res e faringe forem afectados, poderá haver difi-
culdade na deglutição e voz nasalada.
As manifestações mucocutâneas, especial-
mente representativas da DMJ, são as seguintes:
– exantema heliotrópico simétrico violáceo-
eritematoso circundando as pálpebras e podendo
FIG. 1
estender-se até ao dorso do nariz, regiões mala-
res,ombros e dorso (em xaile ou manta); o exan- Exantema heliotrópico.
1094 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

A B

FIG. 3
A – Caso de dermatomiosite em criança de 3 anos. São
notórios as pápulas de Gottron no cotovelo e o livedo
reticularis do antebraço e nádegas. B – A radiografia do
braço mostra sinais de calcinose dos tecidos moles.

– biópsia muscular mostrando sinais de


necrose e inflamação crónica;
Como critérios de diagnóstico de DMJ são
considerados os seguintes parâmetros:
1) Sinais cutâneos (exantema heliotrópico ou
pápulas de Gottron ou telangiectasias ou espessa-
mento periungueais);
2) Fraqueza muscular proximal simétrica;
FIG. 2
3) Elevação dos valores das enzimas muscu-
Pápulas de Gottron. lares;
4) EMG evidenciando anomalias (padrão de
Exames complementares miopatia e de desnervação);
5) Biópsia muscular evidenciando anomalias
Face à suspeita de DMJ com base na anamnese e (necrose e inflamação);
exame objectivo, certos exames complementares Assim, o diagnóstico definitivo de DMJ implica a
estão indicados para avaliar a repercussão do observância de, pelo menos 4 critérios entre os 5
processo inflamatório em diversos territórios, descritos, de -1) a -5).
nomeadamente ao nível do músculo. Os mais úteis No entanto, desde que a clínica seja sugestiva, não
são: deverá ser excluído o diagnóstico com menor número de
– determinação de enzimas musculares, desi- critérios presentes.
gnadamente creatinofosfocinase (CK), desidroge- Para além dos exames atrás descritos, outros
nase láctica (LDH), aldolase, aminotransferases poderão ser justificados em função do tipo de ma-
(ALT, AST), etc., as quais evidenciam valores ele- nifestações, ponderados caso a caso: hemograma
vados; (geralmente normal exceptuando nos casos de
– electromiografia (EMG) evidenciando ano- anemia por perda hemorrágica); VS e PCR
malias do tipo fasciculações e descargas de alta (aumentadas somente em 50% dos casos); capi-
frequência, padrão de miopatia e de desnervação, laroscopia (realizado com capilaroscópio ou oftal-
etc.; moscópio de boa resolução) evidenciando por
CAPÍTULO 223 Dermatomiosite e polimiosite juvenis 1095

vezes sinais de dilatação capilar e de trombose; Nos casos acompanhados de sinais infla-
determinação do factor de von Willebrand que, matórios acentuados, vasculite, de valor acentua-
como marcador de lesão endotelial, poderá indi- do baixo (nº absoluto) de células CD56+ NH e de
ciar actividade da doença ou recidiva; endoscopia valor elevado das enzimas musculares, inicia-se a
digestiva; estudos imagiológicos (TAC, RMN, corticoterapia com doses mais elevadas (pulsos de
etc.). metilprednisolona IV -30 mg/kg/dia durante 3
Os indicadores da activação imunológica na dias até máximo de 1 g/dia). Com a melhoria
DMJ incluem linfopénia, diminuição de: células clínica e laboratorial reduz-se progressivamente a
circulantes memória CD8 ICAM-1, número abso- dose da metilprednisolona até 3, 2 ou 1 vez/sema-
luto de células natural killer (NT) CD56+, CD3–, na, passando depois, a administrar prednisolona
CD16+ no sangue periférico. oral em dose de 0,5 mg/kg/dia nos dias de não
pulsoterapia e após paragem da pulsoterapia.
Diagnóstico diferencial A hidroxicloroquina na dose de 4mg/kg/dia
está indicada para as formas de manifestações
Admitindo a possibilidade de formas clínicas cutâneas exuberantes, não tendo efeito na doença
raras de DMJ sem manifestações cutâneas, ou muscular.
cujas manifestações cutâneas não constituem sinal O metrotrexato PO (15-20 mg/m2/semana
precoce, o diagnóstico diferencial faz-se com acompanhado de suplemento de ácido fólico),
situações acompanhadas de fraqueza muscular outros imunossupressores (ciclosporina, ciclofos-
como miosite pós-infecções por vírus (influenza A famida ou azatioprina) ou IGIV, ou ainda agentes
e B, coxsackievirus), miopatias primárias, miosites biológicos (etanercept) estão indicados nos casos
inflamatórias associadas a doenças do tecido refractários à corticoterapia (minoria).
conectivo, polimiosite (causa importante de “bebé Nos casos de miosite e manifestações sistémi-
hipotónico”, mais rara que a DMJ),etc.. Em deter- cas mais graves, deve ser utilizada terapêutica
minados casos a biópsia muscular permitirá fazer combinada, com corticosteróides, ciclosporina A
a destrinça. (3 mg/Kg/dia) e metotrexato (15 mg/m2/se-
mana).
Tratamento Na fase aguda está indicado o repouso no leito;
entretanto, o doente deve ser hospitalizado se
As bases gerais da actuação na DMJ (salientando- houver sinais de vasculite, disfagia ou disfunção
-se que deverá ser levada a cabo em centro espe- respiratória.
cializado com o apoio de subespecialista) pres- Uma vez que os raios solares provocam exa-
supõem: cerbação dos sinais cutâneos, deverá providen-
– o facto de se tratar duma doença crónica ciar-se o uso de protector solar.
com possibilidade de remissão ao cabo de 2 a Outras medidas incluem fisioterapia, cuidados
3 anos de evolução; cutâneos, suplementos de cálcio e vitamina D,
– o facto de que não existe tratamento curativo; regime alimentar adequado e protectores gástri-
– a possibilidade de ser possível suprimir a cos (estes últimos em situações com manifestações
resposta inflamatória e, até certo ponto, pre- digestivas atrás descritas).
servar a mobilidade articular e o crescimento
e desenvolvimento adequados. Complicações
Para o tratamento da miopatia com sinais
inflamatórios mínimos estão indicados os corti- A complicação mais grave, já descrita, é a calci-
costeróides; em geral utiliza-se a prednisolona PO nose da pele e tecidos moles, a qual pode ser
na dose de 1-2mg/kg/dia; em função da resposta generalizada.
clínica e laboratorial e tendo em conta os efeitos Outra complicação descrita é a resistência à
secundários da corticoterapia de longa duração, insulina evoluindo para diabetes do tipo 2, sendo
procede-se depois à diminuição gradual da pre- de referir que o controlo de tal resistência é acom-
dnisolona para a 0,5mg/kg/dia até suspensão. panhado de melhoria da doença muscular.
1096 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Prognóstico Manifestações clínicas

A evolução da DMJ é variável: poderão surgir sur- Apesar da raridade, a PM pode ser observada na
tos de manifestações com duração de 6 a 8 meses primeira infância, constituindo uma das causas de
(na maioria dos casos), de evolução benigna e “bebé hipotónico” por hipotonia generalizada.
seguidos de remissão total, ou surtos de duração
superior a 2 anos, de evolução crónica, sem remis- Diagnóstico diferencial e exames
são, com sequelas (calcinose, atrofia muscular, complementares
contracturas, etc.) implicando corticoterapia pro-
longada. O diagnóstico diferencial da PM faz-se com outras
Com a terapêutica actualmente disponível a miopatias e com perturbações neuromusculares
mortalidade foi reduzida extraordinariamente não inflamatórias tais como:
(antes cerca de 40%, hoje cerca de 5%). As situa- – distrofia muscular congénita,
ções que comportam maior risco são: vasculopa- – distrofia muscular de Duchenne
tia que afecta o tubo digestivo, provocando – glicogenoses
hemorragias e perfuração; miosite progressiva – miopatias mitocondriais
refractária à terapêutica e levando ao apare- – miopatias por drogas ou toxinas (D-penicili-
cimento ou ao agravamento da calcinose; infec- namina, corticóides, hydroxicloroquina, etc.)
ções intercorrentes explicadas pelos efeitos da te- – miopatias inflamatórias pós-infecciosas, mais
rapêutica imunossupressora; e, ainda, fraqueza frequentes em idade pediátrica (por vírus
muscular e insuficiência respiratória com risco de influenza A e B, coxsackievírus B, Mycoplasma,
síndroma aspirativa. Salmonella, Serratia, Schistosoma, Toxoplasma,
etc.)
– miosite eosinófila.
2. POLIMIOSITE JUVENIL Tal como foi referido a propósito da DMJ, a
biópsia muscular assume a maior importância.
Definições e sistematização
Tratamento
A polimiosite juvenil (PM) é uma miopatia infla-
matória idiopática crónica muito rara, ainda menos Aplicam-se os mesmos princípios enunciados a
comum que a dermatomiosite juvenil (DMJ), sendo propósito da DMJ. Quer nesta, quer na PM, quer
que classicamente as referidas entidades clínicas se ainda nas esclerodermias, em formas clínicas
incluem no mesmo grupo; diferenciam-se apenas recorrentes ou resistentes à terapêutica conven-
pela presença ou ausência de alterações cutâneas. cional, alguns centros especializados têm aplicado
Trata-se de doenças musculares inflamatórias com êxito imunoglobulina (Ig G) por via sub-
(miosites) crónicas que se traduzem clinicamente cutânea (sc/SCIG) em alternativa à Ig G iv/IGIV,
por diminuição da força muscular. verificando-se menos efeitos adversos relativa-
Outras miopatias inflamatórias incluem as mente à esta última modalidade (IV). (ver
miosites associadas às doenças do tecido conjunti- Capítulo 224)
vo e as pós-infecciosas.
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1098 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Classificação das Esclerodermias dado que a sua história natural inclui as formas
Juvenis (*) difusa e limitada (Quadro 1).
A forma difusa é a mais agressiva e caracteri-
Esclerodermia sistémica (pele e órgãos internos) za-se clinicamente por um envolvimento precoce
• difusa (ou esclerose cutânea progressiva) cutâneo com edema e ulterior induração, surgin-
• limitada (esclerodermias localizadas e síndroma do mais tardiamente atrofia cutânea A perda de
CREST) tecido subcutâneo na face pode resultar em
Síndroma de sobreposição retracção dos lábios e comissuras, resultando no
• Esclerodermatomiosite ou outras combinações aspecto de “boca pequena, abrindo-se pouco”.
• Doença mista do tecido conectivo Outra consequência da perda de tecido subcutâ-
Doença localizada (à pele, ou morfeia) neo é a ulceração da pele nas zonas de pressão
• Morfeia em placa (por ex. cotovelos) com subsequente calcificação.
• Morfeia generalizada O envolvimento vascular explica a propensão
• Morfeia bolhosa para lesões isquémicas. Igualmente podem ocor-
• Morfeia linear rer calcificações dos tecidos moles dos joelhos,
• Morfeia profunda ombros e articulações metacarpofalângicas.
(*) de acordo com ILAR
O fenómeno de Raynaud é importante, não só
por ser habitualmente a manifestação clínica inicial,
precedendo as restantes por vários meses ou anos,
considerando a capacidade actual para gerir con- mas também por poder ser suficientemente intenso a
venientemente as complicações de órgão alvo que ponto de causar incapacidade significativa e inclusi-
podem ser causadas pela doença não controlada. ve predispor para o aparecimento de lesões isquémi-
As fases iniciais da doença caracterizam-se por cas, mais frequentes ao nível das polpas digitais. Tal
um início insidioso das manifestações clínicas e alteração é ainda possível pela própria lesão cutânea
pelo carácter episódico das crises. Frequente- que pode criar zonas de atrofia, úlcera e necrose dos
mente a doença estabelece-se, surgindo lesões per- tecidos moles sub-cutâneos. (Figuras 1 e 2)
manentes cujas consequências a longo prazo O quadro músculo-esquelético caracteriza-se
podem causar a morte. por envolvimento articular com artralgias e, por
Um elevado índice de suspeita clínica deve estar vezes, artrite geralmente das pequenas articu-
presente no pediatra e no reumatologista pediátrico lações das mãos, tornozelos e joelhos. A presença
para estabelecer o diagnóstico precocemente. de contracturas articulares, geralmente por
A presença de fenómeno de Raynaud das mãos envolvimento tendinoso e dos tecidos moles sub-
e/ou pés, edema das partes moles das mãos e/ou cutâneos periarticulares, é frequente. Igualmente
face, lesões isquémicas com ulceração e atrofia das mialgias, com ou sem miosite, atingem cerca de
polpas digitais das mãos, aparecimento de telan- 20% dos casos, situação que não cumpre, no
giectasias na face, mãos e parte superior do tronco entanto, critérios para esclerodermatomiosite.
devem levar à suspeita do diagnóstico. O compromisso gastrintestinal atinge cerca de
Outros sinais que poderão estar presentes de iní- 25% dos casos, com lesão proximal inicial (oral e
cio são artralgias, fraqueza e dor musculares, dis- esofágica), tardia (porções mais distais). A doença
pneia, disfagia, aparecimento de calcificações sub- esofágica predispoe tanto para refluxo gastresofági-
cutâneas ou contracturas dos tecidos moles. co crónico, bem como para lesões pulmonares.
A suspeita do diagnóstico de esclerodermia Do ponto de vista cardíaco pode existir fenó-
deve levar à referência rápida do/a doente a con- meno de Raynaud a nível das coronárias e dos
sulta de reumatologia pediátrica, com indicação seus ramos (doença isquémica), ou mesmo peri-
expressa desta suspeita diagnóstica. cardite constritiva, que é rara.
Com a evolução da doença outras complicações
Manifestações clínicas podem estar presentes. Classicamente o compro-
misso pulmonar e renal é responsável por compo-
A evolução da esclerodermia sistémica é variável nente importante da mortalidade e morbilidade.
CAPÍTULO 224 Esclerodermias juvenis 1099

mia, estando as alterações renais presentes em


cerca de 10% dos casos. O tratamento dos proble-
mas renais associados contribui para diminuição
da mortalidade desta doença.
A forma limitada da doença geralmente apre-
senta calcinose mais grave, fenómeno de
Raynaud mais intenso, envolvimento esofágico e
telangiectasias, bem como especial propensão
para o aparecimento de úlceras digitais isquémi-
cas, constituindo o que se denomina por síndro-
ma CREST. (sigla de Calcinose cutânea+fenó-
meno de Raynaud+compromisso Esofágico
+Sclerodermia+Telangiectasias). Tal situação é
FIG. 1
rara na idade pediátrica, não existindo, no entan-
Fenómeno de Raynaud e lesões isquémicas das polpas digitais to, dados fidedignos sobre a sua incidência ou
em jovem de 13 anos de idade com esclerodermia sistémica prevalência.
difusa iniciada cerca de 4 semanas antes. Note-se as lesões
isquémicas já presentes ao nível das polpas digitais dos 3º e 5º
dedos da mão direita e dos 2º e 3º dedos da mão esquerda, as
Tratamento
quais regrediram completamente com a terapêutica instituída.
O essencial da orientação terapêutica é encami-
nhar o doente ao reumatologista pediátrico.
FIG. 2
O tratamento da esclerodermia sistémica é pau-
Criança do sexo feminino tado pela existência de envolvimento de um ou
de 11 anos de idade com vários órgãos alvo. Tal tratamento deve ser efectua-
esclerodermia linear do em centros com experiência e apoio de equipas
localizada, iniciada aos 7
multidisciplinares, ocupando o reumatologista
anos de idade. São bem
evidentes no membro pediátrico um papel crucial. Especialmente impor-
superior esquerdo as tantes são o envolvimento renal e pulmonar, razões
lesões cutâneas de maior peso na mortalidade e morbilidade.
escleróticas, com zonas de No entanto, a medicação sintomática inicial de-
despigmentação e outras verá ser instituída pelo médico assistente. O uso de
de hiperpigmentação, bem AINE é bem tolerado e recomendado no controlo
como a contractura digital sintomático. O fenómeno de Raynaud pode apre-
devida à atrofia de partes
sentar-se de forma clinicamente muito significati-
moles da região palmar da
mão esquerda, va. Evitar a exposição ao frio, ao estresse emocio-
acompanhadas de nal ou outros factores desencadeantes, bem como o
melorreostose (atrofia do uso de nifedipina, são medidas que frequentemen-
tecido ósseo adjacente). te se acompanham de melhorias significativas.
Redução simile amputação O losartam parece ter um papel importante na
das zonas mais distais dos prevenção da vasculopatia, se iniciado precoce-
dedos.
mente. Também a terapêutica imunossupressora
nas fases iniciais do quadro clínico pode ajudar a
prevenir a afecção grave de órgãos alvo. A decisão
A lesão pulmonar paradigmática é a hiperten- terapêutica, judiciosa e cuidadosa, caberá sempre
são pulmonar. Esta pode ser secundária, quer a a reumatologista pediátrico com experiência nes-
doença vascular (geralmente forma sistémica limi- tas situações.
tada), quer a fibrose pulmonar. Sobre o eventual tratamento com imunoglobu-
Tal como noutros territórios, o rim é especial- lina G por via subcutânea (SCIG), consultar
mente vulnerável à lesão vascular da escleroder- Capítulo 223.
1100 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

2. FORMAS LOCALIZADAS remissão espontânea em 3 a 5 anos.


DE ESCLERODERMIA As formas lineares e as profundas geralmente
deixam sequelas. Deve ser instituída terapêutica
Definição e aspectos epidemiológicos se existir evidência laboratorial de actividade
inflamatória. O glicocorticóides são eficazes,
As formas localizadas ou circunscritas à pele (desi- quando utilizados na fase inicial dos sintomas. O
gnadas classicamente como morfeia significando uso de UV parece igualmente eficaz.
áreas discretas da pele, endurecidas, muitas vezes
com bordo violáceoe hipo ou hiperpigmentadas)
embora também raras, são mais frequentes em idade 3. ESCLERODERMATOMIOSITE
pediátrica que a forma sistémica; a esclerodermia lin-
ear é a mais comum. A incidência é cerca de 2,7 casos A esclerodermatomiosite é uma entidade clínica bem
por 100.000 habitantes. A morfeia linear é a única que conhecida. A sua ocorrência em idade pediátrica é
predomina em idade pediátrica (compreendendo rara e acompanha as características da doença nos
cerca de 67% dos casos). As lesões de morfeia, estão adultos. O quadro clínico é mais benigno do que
presentes em cerca de 50 por 100.000 crianças. A qualquer das entidades considerada separadamente.
idade média das formas localizadas é ~ 8 anos. É recomendado o tratamento de acordo com a
apresentação clínica predominante.
Como suspeitar?

A forma limitada é igualmente subtil na sua apre- 4. DOENÇA MISTA DO TECIDO


sentação. Eritema local ou induração com halo CONECTIVO
eritematoso são achados frequentes nas fases inici-
ais. Os sintomas sistémicos como artralgias, sinovite A doença mista do tecido conectivo foi abordada no
e contracturas articulares não são tão comuns. A capítulo 222. Convém, no entanto, relembrar que
morfeia em placas aparece no tronco e abdómen, nesta doença podem predominar aspectos clínicos
enquanto a morfeia generalizada atinge as extremi- muito próximos da esclerodermia sistémica ou
dades, peito e dorso. A forma linear atinge mais os localizada. Não existe terapêutica especificamente
membros inferiores que os superiores. As morfeias validada para esta patologia; contudo a experiência
profundas afectam igualmente os 4 membros. aponta para tratamento orientado de acordo com as
manifestações clínicas predominantes.
Manifestações clínicas
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CAPÍTULO 225 Vasculites sistémicas 1101

225
bilidade, poliangeíte microscópica, granulomatose
de Wegener e síndroma de Churg-Strauss);
5 – Imunológica
Este grupo baseia-se na presença ou ausência
de anticorpo anticitoplasma de neutrófilos
(ANCA): vasculites ANCA positivo (granulo-
VASCULITES SISTÉMICAS matose de Wegener, síndroma de Churg-Strauss e
poliangeíte microscópica), e ANCA negativo.
Margarida Paula Ramos
O diagnóstico de vasculites baseia-se:
1) na anamnese e no exame objectivo por-
menorizados (designadamente investigan-
Definição e importância do problema do eventual utilização de fármacos, pal-
pação de pulsos, e medição da pressão arte-
As vasculites constituem um grupo heterogéneo rial);
de doenças, na sua globalidade raras, de etiopa- 2) em exames complementares seleccionados
togénese não totalmente esclarecida, caracteriza- em função da história clínica, os quais
das por inflamação e necrose da parede dos vasos, poderão culminar no exame histopatológico
do que resulta grau variável de isquémia e lesão (biópsia) e no estudo de biologia molecular.
teciduais ao nível de diversos territórios.
Todo e qualquer tipo de vaso e toda e qual- Existem vários achados clínicos sugestivos de
quer estrutura do mesmo vaso podem ser afecta- vasculite (Quadro 1).
dos; salienta-se que diferentes estruturas podem O Quadro 2 integra alguns parâmetros labora-
ser afectadas de modo selectivo, o que condiciona toriais que, embora inespecíficos, sugerem a pre-
manifestações clínicas muito variáveis. sença de vasculite.
Assim, tal patologia pode classificar-se aten- A actual classificação das vasculites em idade
dendo a critérios diversos, compreendendo-se que pediátrica, validada em 2006 após período ante-
determinada entidade possa estar incluída em rior em que era feita extrapolação a partir da dos
mais do que uma categoria classificativa: adultos, consta do Quadro 3.
1 – Topográfica Seguidamente são abordadas as vasculites
Localizadas (restritas à pele) ou sistémicas
(envolvendo órgãos internos); QUADRO 1 – Achados clínicos sugestivos
2 – Etiológica de vasculite
Primárias ou secundárias (associadas princi-
palmente a infecções, a doenças reumáticas como 1. Febre prolongada de origem indeterminada
artrite idiopática juvenil, lúpus eritematoso sisté- 2. Sintomas constitucionais: perda de peso, astenia,
mico, dermatomiosite juvenil, e a neoplasias); adinamia, anorexia
3 – Histológica 3. Lesões cutâneas: exantema urticariforme, necrose,
Leucocitoclástica (púrpura de Henoch-Schön- úlceras, petéquias, nódulos subcutâneos, livedo
lein, vasculite de hipersensibilidade), necrosante reticularis
(poliarterite nodosa – PAN, doença de Kawasaki), 4. Artrite, artralgia, mialgia
granulomatosa (granulomatose de Wegener e sín- 5. Serosite
droma de Churg-Strauss), de células gigantes 6. Manifestações neurológicas: cefaleia, alterações do
(arterite de Takayasu) e outras (doença de Behçet); sistema nervoso central, neuropatia periférica
5 – Anátomo-fisiológica (calibre dos vasos) 7. Hipertensão arterial, ausência ou assimetria de
Afectando vasos grandes (arterite de Takaya- amplitude dos pulsos
su), vasos médios (doença de Kawasaki, poliar- 8. Infiltrado pulmonar, lesão do septo nasal
terite nodosa) e vasos pequenos (púrpura de 9. Hemorragia digestiva
Henoch-Schönlein, PAN, vasculite de hipersensi-
1102 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 2 – Parâmetros laboratoriais QUADRO 3 – Classificação das vasculites


possivelmente associados a na idade pediátrica
vasculite
I – Predominantemente de vasos de grande calibre
• Velocidade de sedimentação ou PCR elevadas • Arterite de Takayasu
• Anemia II – Predominantemente de vasos de médio calibre
• Leucocitose • Poliarterite nodosa da infância
• Eosinofilia • Poliarterite cutânea
• Presença de ANCA (anticorpos anticitoplasma dos • Doença de Kawasaki
neutrófilos) III – Predominantemente de vasos de pequeno
• Factor de von Willebrand elevado calibre
• Crioglobulinémia A. Granulomatosas
• Presença de imunocomplexos circulantes • Granulomatose de Wegener
• Hematúria • Síndroma de Churg-Strauss
B. Não Granulomatosas
• Poliangeíte microscópica
com maior relevância na idade pediátrica, salien- • Púrpura de Henoch- Schönlein
tando-se que a doença de Kawasaki integra o • Vasculite leucocitoclástica cutânea isolada
capítulo 212. • Vasculite urticariforme associada a diminuição
do complemento
IV – Outras vasculites
1. PÚRPURA DE HENOCH-SCHÖNLEIN • Doença de Behçet, vasculites secundárias a
infecções, vasculites associadas a doenças do
Definição, aspectos epidemiológicos colagénio, vasculite isolada do sistema nervoso
e importância do problema central, síndroma de Cogan, inclassificáveis.
Adaptado de Ozen et al, 2006

A púrpura de Henoch-Schönlein (PHS), também


designada púrpura alérgica ou anafilactóide, é
uma vasculite de pequenos vasos (capilares, do tipo 3). Com efeito, a PHS surge geralmente
arteríolas e vénulas), associada a infiltração leu- após infecção do tracto respiratório superior (em
cocitária dos tecidos, do que resulta aumento da cerca de 80% dos casos), sendo o Streptococcus
permeabilidade vascular com hemorragia, edema β-hemoliticus do grupo A o agente mais frequente-
e isquémia teciduais consequentes. mente implicado.
Trata-se da vasculite necrosante mais comum São também apontados como desencadeantes
da idade pediátrica. A incidência anual oscila entre de PHS, infecções víricas, (Parvovírus, Adenovírus)
cerca de 9 e 18/100.000 crianças e adolescentes. É ingestão de medicamentos (penicilina, ampicilina,
mais frequente no sexo masculino (1,5/ 1), sobre- eritromicina, quinino), alergénios alimentares e
tudo entre os 2 e 7 anos de idade (média de idade de picadas de insectos.
6 anos). Não existindo predilecção por raça, surge Foi comprovada reacção antigénio-anticorpo
sobretudo no Inverno e Primavera. O aparecimen- no endotélio vascular levando a alteração da mem-
to de casos familiares sugere componente genético. brana capilar e a tendência hemorrágica. O meca-
Oa alelos HLA-B34 e HLA-DRB1*01 estão associa- nismo mais provável de indução da vasculite, com
dos à nefrite de PHS. a intervenção do factor tumoral (TNF-α) e inter-
leucina 6 (IL-6), é o depósito local de imunocom-
Etiopatogénese plexos (sobretudo IgA,IgM, properdina, fibrina e
C3) nas paredes dos pequenos vasos sanguíneos
A etiopatogénese não está completamente esclare- da pele, glomérulos renais e mucosa gastrintesti-
cida; admite-se o papel importante da hipersensi- nal; o papel da activação do sistema do comple-
bilidade a bactérias ou vírus (hipersensibilidade mento é controverso. Não existe predisposição
CAPÍTULO 225 Vasculites sistémicas 1103

familiar, mas pode haver associação a deficiência A


congénita das fracções C2 e C4 b do complemento.
Como consequência deste processo verifica-se,
através do exame histológico, a presença de infil-
trados de leucócitos polimorfonucleares e mono-
nucleares. Observam-se também trombos plaque-
tários, hemorragia e edema endotelial e, eventual-
mente, evolução para necrose fibrinóide de pe-
quenos vasos sanguíneos.

Manifestações clínicas

O início da doença pode ser súbito ou gradual


com aparecimento progressivo das respectivas B
manifestações. Em cerca de 50% dos doentes surge
febre e mal estar associados a infecção das vias
aéreas superiores.

Sinais cutâneos
A pele é afectada em todos os casos (púrpura). A
hemorragia cutânea manifesta-se inicialmente
como exantema maculopapular ou urticariforme,
raramente pruriginoso, indolor, na face dorsal das
pernas junto à região maleolar dos tornozelos.
Ao cabo de 24-48 horas as lesões tornam-se
maiores, confluentes, purpúricas, não desapare-
FIG. 1
cendo à compressão digital - com áreas concomi-
tantes de petéquias confluentes e de equimoses de Púrpura de Henoch-Schönlein – Exantema maculopapular: A –
apresentação simétrica, principalmente na super- localização nas nádegas; B – localização nas coxas e ante-
fície de extensão dos membros inferiores e náde- braços. (NIHDE)
gas, menos frequentemente nos membros supe-
riores e face, e raramente no tronco.
No mesmo doente poderão ser observados
vários estádios evolutivos do exantema, sendo que
as lesões mais antigas adquirem uma tonalidade
mais escura, acastanhada, que tende a desaparecer
em 4 semanas; no entanto, tais lesões poderão per-
sistir durante meses. (Figuras 1 A e B, e 2)
Em casos graves aparecem lesões necróticas e
infecção secundária. Em cerca de 30-50% dos
FIG. 2
casos, principalmente em crianças com menos de
3 anos, ocorre edema não depressível e indolor de Púrpura de HS com localização de exantema predominante
mãos, pés, região periorbitária, coiro cabeludo e, nas pernas.
eventualmente, angioedema.
Poderá verificar-se uma ou mais recorrências Sinais articulares
(5 - 40% dos doentes) durante as primeiras 6 sema- O compromisso articular (artrite e ou artralgia) –
nas. Em casos de recorrência, as lesões tendem a que pode preceder as lesões cutâneas – constitui a
aparecer nos mesmos locais das lesões prévias. O segunda manifestação mais frequente, ocorrendo
aparecimento de cicatrizes cutâneas é raro. em 60 a 90% dos doentes. É geralmente agudo,
1104 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

migratório, oligoarticular, ao nível das grandes cia de vasculite (nas amostras obtidas por biópsia)
articulações, principalmente dos membros infe- confirmam o diagnóstico de PHS.
riores (joelhos, tornozelos), com duração de
alguns dias em cada articulação. A artrite não Sinais nefro-urológicos
deixa sequelas; porém, na fase aguda pode ser De todos os sistemas orgânicos envolvidos, o rim é
bastante dolorosa e incapacitante, de modo seme- o principal responsável pela mortalidade, morbilidade e
lhante ao compromisso articular que surge na prognóstico a longo prazo. Com efeito, o compro-
febre reumática. Poderá verificar-se raramente o misso renal está presente em 20 a 100% dos casos,
aparecimento de mialgias associadas. sendo raro o seu início antes do quadro cutâneo.
Em 80% dos pacientes esta manifestação surge nas
Sinais gastrintestinais primeiras 4 semanas de doença e, no restante con-
Em cerca de 30 a 70% dos casos ocorrem manifes- tingente, nos primeiros 2 meses, ou mais tarde.
tações gastrintestinais no primeiro mês após o iní- Verifica-se micro ou macro- hematúria em 25 a
cio da doença. Elas traduzem-se por dor abdomi- 30% dos pacientes. A proteinúria isolada é rara. A
nal periumbilical (tipo cólica de forte intensidade, combinação hematúria e proteinúria está associa-
exacerbada durante nas refeições), náuseas, vómi- da a progressão para insuficiência renal crónica em
tos, hematemese, melena ou enterorragia; e, menos 15% dos casos. Hipertensão arterial, insuficiência
frequentemente, pancreatite aguda hemorrágica, renal aguda, síndromas nefrítica ou nefrótica são
colite ulcerosa, colite pseudomembranosa, entero- alguns dos determinantes de mau prognóstico.
patia com perda de proteína, hidropisia da vesícu- A doença renal grave manifesta-se principal-
la biliar e esteatorreia. A hemorragia gastrintesti- mente em crianças com idade superior a 5 anos e
nal não ocorre na ausência de dor abdominal. ocorre em 1 a 5% de todas as crianças com PHS.
Complicações como invaginação intestinal, per- Factores como idade (crianças maiores), púrpura
furação com peritonite, enfarte da parede intestinal persistente, dor abdominal grave e recorrências,
ou estenose ileal podem aparecer no decurso da são apontados como preditivos do aparecimento
doença: as regiões mais acometidas são jejuno e íleo. e da gravidade de doença renal.
A invaginação intestinal (de localização A biópsia renal está indicada nos casos com sín-
ileoileal e ileocólica respectivamente em 65% e droma nefrítica, síndroma nefrótica, insuficiência
35% dos casos) ocorre em 1 a 5% dos pacientes, renal aguda ou crónica e proteinúria persistente.
traduzindo-se por dor abdominal intensa e súbita, Em 10 a 20% dos casos a nefrite pode progredir,
hemorragia, e massa abdominal palpável. A dor apesar da regressão das outras manifestações.
abdominal intensa e o edema escrotal podem pre- Outras manifestações do foro nefro-urológico,
ceder o quadro de púrpura em cerca de 20% dos mais raras, incluem: orquiepididimite com edema
casos levando a confusão diagnóstica e, em e dor escrotal, torção testicular, etc..
muitos casos, a intervenção cirúrgica desnecessá-
ria; salienta-se que existe um risco maior de Outras manifestações associadas
doença renal nos pacientes com hemorragia intes- Citam-se, neste contexto: febre, vasculite em sis-
tinal. Outra manifestação rara e tardia é a estenose tema nervoso central (com cefaleias, convulsões,
esofágica. parésias, neuropatia periférica, hemorragia intra-
O diagnóstico das situações que estão na base craniana, nevrite óptica, polirradiculonevrite, aci-
dos sinais gastrintestinais é realizado através de dente vascular cerebral isquémico, alterações do
estudos radiológicos, ultrassonografia, endos- comportamento ou coma), epistaxe, parotidite,
copia ou observação intra-operatória das lesões compromisso ocular (hemorragia subconjuntival),
intestinais. (Capítulo 315) hepatosplenomegalia, colecistite, tiroidite, lin-
As lesões mais encontradas na endoscopia são fadenopatia e alterações cardiopulmonares (enfar-
áreas de hemorragia, erosões gástricas e jejunais, te do miocárdio, pleurite, pericardite, tampona-
duodenite e lesões múltiplas de cólon e recto. Os mento cardíaco, doença pulmonar intersticial,
exames contrastados são contra-indicados. As edema ou hemorragia pulmonar, e diminuição da
alterações histopatológicas cutâneas com evidên- difusão pulmonar do monóxido de carbono, etc.).
CAPÍTULO 225 Vasculites sistémicas 1105

A PHS pode acompanhar outras formas de associada por vezes a mialgias, dor abdominal,
vasculite ou de doença auto-imune, como por hemorragia digestiva e hematúria microscópica
exemplo a febre mediterrânica familiar e a doença e/ou proteinúria.
inflamatória do intestino. Os crtérios utilizados na actualidade para o
diagnóstico de certeza de PHS constam do
Exames complementares Quadro 4.
No que respeita ao diagnóstico diferencial há
Os exames laboratoriais são inespecíficos. que atender aos seguintes pontos:
A anemia, quando ocorre, é devida a perdas 1 – É importante afastar infecções graves como
gastrintestinais. Leucocitose moderada com desvio meningococcémia, septicémia e coagulação intra-
à esquerda e eosinofilia são observadas nalguns vascular disseminada.
pacientes. O número de plaquetas está geralmente 2 – O exantema hemorrágico, que ocorre oca-
normal, embora possa surgir hiperplaquetose sionalmente no sarampo, na varicela e na escarlati-
relacionada com a gravidade da doença. na, faz parte do diagnóstico diferencial da PHS.
A velocidade de sedimentação (VS), a proteína 3 – A vasculite de hipersensibilidade tem
C reactiva (PCR) e o complemento (C) podem muitas semelhanças com a púrpura de Henoch-
apresentar-se normais ou discretamente elevados. Schönlein. Em geral, a vasculite de hipersensibili-
O coagulograma é normal. O antigénio rela- dade provoca mais importante compromisso
cionado com o factor de Von Willebrand encontra- orgânico (pleurite, pericardite, insuficiência car-
se aumentado na fase activa da doença, assim díaca), salientando-se que o predomínio de infil-
como o tempo de tromboplastina parcial activado trado de células mononucleares é frequentemente
(TTPa), reflectindo lesão endotelial vascular. Os encontrado no exame anátomo-patológico. A ocor-
níveis de factor XIII, também conhecido como fac- rência predominante em indivíduos maiores de 16
tor estabilizador da fibrina, podem estar diminuí- anos, característica da vasculite de hipersensibili-
dos durante a fase aguda, principalmente nos dade, também diferencia as duas entidades.
casos com compromisso gastrintestinal grave. A Outros tipos de vasculite e causas de glomerulone-
fragilidade capilar poderá ser evidenciada pela frite e de diátese hemorrágica devem ser afastados.
prova do “garrote”. 4 – A síndroma hemolítica-urémica também
O sedimento urinário está alterado nos casos de pode simular alguns sinais e sintomas da PHS. A
compromisso renal, mostrando hematúria com nefrite pós-estreptocócica pode ser diferenciada
dismorfismo eritrocitário, com ou sem proteinúria, da púrpura pela diminuição dos níveis de com-
leucocitúria, e, eventualmente, cilindros hemáticos. plemento e ausência de sinais cutâneos.
A creatinina sérica pode estar elevada nos 5 – A nefropatia por IgA apresenta as mesmas
casos de insuficiência renal. A pesquisa de sangue alterações glomerulares detectadas por imunoflu-
oculto nas fezes pode ser positiva. orescência e microscopia eletrónica, embora com
A imunoglobulina A sérica está aumentada em evolução clínica diferente da da PHS. Refira-se
50% dos casos;surge normalização ao cabo de 3 que tal entidade (nefropatia por IgA) não apresen-
meses da doença, não havendo relação com o
compromisso renal. A biópsia renal poderá evi- QUADRO 4 – Critérios de diagnóstico da
denciar deposição de imunocomplexos contendo Púrpura de Henoch Schönlein
IgA nos glomérulos renais, o que constitui factor
importante no prognóstico da nefrite. A detecção Púrpura palpável (critério obrigatório) na presença
de auto-anticorpos não tem valor na PHS. de, pelo menos, 1 dos seguintes achados:
1. Dor abdominal difusa
Diagnóstico 2. Depósito de IgA (biópsia)
3. Artrite ou artralgia aguda
O diagnóstico da PHS é essencialmente clínico 4. Compromisso renal (proteinúria ou hematúria)
sendo suspeito nas seguintes circunstâncias: (Adaptado de Ozen et al, 2006

criança de 2-8 anos, exantema, artrite migratória


1106 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ta o quadro cutâneo; por outro lado, evidencia doença renal é controverso. Nos casos de nefrite
sinais de lesão glomerular lentamente progressi- grave (síndroma nefrótica e glomerulonefrite com
va e crónica que pode levar à insuficiência renal mais de 50% de crescentes no exame histopa-
crónica independente da apresentação, ao con- tológico) recomenda-se o uso de pulsoterapia com
trário da PHS que é uma doença aguda com lesão metilprednisolona, seguida de prednisona oral,
renal associada , geralmente não progressiva. além de imunossupressores (azatioprina ou ciclo-
6 – Distúrbios da coagulação e trombocitopé- fosfamida). Com esta terapia tem-se observado
nia podem causar lesões purpúricas. redução de crescentes fibrosos e da progressão
7 – Outros diagnósticos diferenciais nas situa- para insuficiência renal crónica. (Parte XIX)
ções acompanhadas de compromisso gastrin-
testinal incluem a doença inflamatória intestinal e Complicações e prognóstico
a enterocolite por Yersinia.
8 – Os quadros de abdómen agudo aparente Geralmente a PHS regride ao cabo de 3-4 sema-
que surgem previamente às lesões cutâneas nas, havendo, no entanto, a possibilidade de re-
podem ser confundidos com apendicite, adenite corrências, como foi referido antes. A artrite tam-
mesentérica, úlcera gastroduodenal, diverticulite, bém evolui favoravelmente, sem sequelas e sem
e eventualmente levar à laparotomia exploradora. recorrências.
9 – O chamado edema hemorrágico agudo, No que respeita às manifestações do foro gas-
forma isolada de vasculite leucocitoclástica que trintestinal há que contar com a possibilidade de
afecta sobretudo crianças com < 2 anos, tem hiperperistaltismo anómalo transitório com risco
semelhanças com PHS. Verifica-se em tal situação de invaginação intestinal e complicações inerentes,
bom estado geral, com: febre, edema da face, caso não seja feito diagnóstico atempado.
escroto, mãos e pés; equimoses (maiores que na A mortalidade na fase aguda resulta de com-
PHS) na face e extremidades; e petéquias nas plicações gastrintestinais e de insuficiência renal
mucosas. O tronco é poupado. Nos casos duvi- aguda (rara).
dosos pode recorrer-se à biópsia da pele. A progressão para insuficiência renal crónica é
inferior a 1% dos casos de PHS; no entanto, haven-
Tratamento do antecedentes desta patologia na fase aguda, está
indicado o seguimento da criança para avaliação
Na maioria dos casos de PHS não existe necessi- periódica da função renal.
dade de tratamento medicamentoso, uma vez que Em suma, o prognóstico é bom, em geral.
as manifestações são geralmente autolimitadas. Todas estas eventualidades deverão, claro está,
Haverá, como medidas gerais, que providenciar a ser explicadas à família.
hidratação adequada.
Em casos acompanhados de febre, edema ou
sinais de compromisso articular está indicado o 2. POLIARTERITE NODOSA
uso de analgésicos-antipiréticos e de anti-infla-
matórios. O ácido acetilsalicílico não deve ser Definição, aspectos epidemiológicos
usado pela possibilidade de provocar alterações e importância do problema
gástricas e promover disfunção plaquetária.
Nas situações associadas a compromisso gas- A poliarterite nodosa (PAN) é uma vasculite
trintestinal, do sistema nervoso central, e hemor- sistémica segmentar de tipo necrosante, atingindo
ragia pulmonar, está indicada corticoterapia (em sobretudo as artérias musculares de pequeno e
geral utiliza-se prednisona ou prednisolona na médio calibre. O termo sinónimo é periarterite.
dose de 1 a 2 mg/Kg/dia). A ranitidina pode ser Os órgãos predominantemente afectados são:
utilizada em pacientes com sintomas gastrintesti- pele, vísceras abdominais, rins, sistema nervoso
nais, para redução da dor abdominal e da hemor- central (SNC) e músculos.
ragia digestiva. Trata-se duma doença rara na infância e na
O uso do corticosteróide na prevenção da adolescência. No grupo etário pediátrico verifica-
CAPÍTULO 225 Vasculites sistémicas 1107

se maior incidência entre os 9-11 anos, igualmente


nos dois sexos; pode, no entanto, ocorrer em
crianças muito pequenas. A sua distribuição é uni-
forme mundialmente, salientando-se maior nú-
mero de casos descritos na Turquia e no Japão.

Etiopatogénese

A etiopatogénese da PAN é desconhecida, admi-


tindo-se a hipótese de implicação de determina-
dos agentes infecciosos (Streptococcus dos grupos A
e B, Parvovírus B19, Citomegalovírus, Vírus das
hepatites B e C, etc.) e de mecanismo imune.
Não foram, até à data, identificados factores
genéticos, sendo o aparecimento de casos fami-
liares raro.
A lesão arterial pode causar dilatação aneuris-
mática (microaneurismas múltiplos de cerca de 1
mm) e nalguns vasos podem observar-se macros-
copicamente nódulos; daí o termo de “nodosa”.
Podem igualmente ocorrer trombose e enfartes
localizados. A necrose inicial é substituída poste-
riormente por tecido fibroso levando ao espessa-
mento da adventícia, o que caracteriza a doença.
FIG. 3
Através da imunofluorescência é possível demon-
strar depósitos vasculares de imunocomplexos Poliarterite nodosa em adolescente: nódulos subcutâneos e
(complemento e/ou imunoglobulinas). livedo reticularis. (NIHDE)

Manifestações clínicas e, por vezes, paniculite (inflamação do tecido adi-


poso subcutâneo);
O espectro de manifestações é muito variável,
oscilando entre formas oligossintomáticas, e gra- Sinais abdominais
ves e progressivas, por vezes fatais. – dor abdominal inespecífica relacionada com
Nas formas mais frequentes, a doença tem iní- isquémia da mesentérica ou outra artéria intra-
cio insidioso com sintomas inespecíficos como abdominal; enfartes do intestino e pâncreas, assim
febre, perda de peso, astenia, mialgia, cefaleia, etc.. como perfurações do tubo digestivo são também
As manifestações mais frequentes podem ser alterações possíveis;
assim sistematizadas: Sinais renais
– proteinúria, cilindrúria, síndroma nefrótica,
Sinais cutâneos hipertensão renovascular são alguns dos sinais
– nódulos subcutâneos (mais frequentes nos pés e de compromisso renal;
face posterior das pernas, em geral no trajecto dos
vasos sanguíneos); livedo reticularis, sinais de Sinais neurológicos
isquémia digital (edema, gangrena periférica, – cefaleias, sinais focais, convulsões, hemiparésia,
ulcerações, etc.); (Figura 3) disfunção do cerebelo, paralisia de nervos crania-
nos,neuropatia, etc.;
Sinais músculo-esqueléticos
– dor músculo- esquelética com fraqueza muscu- Sinais cardiovasculares
lar gradual; artralgia, artrite (localizada ou difusa) – regurgitação das válvulas mitral ou tricúspide;
1108 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

diminuição da ejecção sistólica do ventrículo do confirmar a presença de anomalias do sis-


esquerdo, etc.; tema vascular;
• Biópsia da pele, incluindo nódulos subcutâ-
Sinais genitais neos, ou doutros órgãos: podendo identificar
– edema e dor testiculares, nódulos testiculares sinais de compromisso vascular (por ex.
(raros); músculo, nervo, rim ou fígado: 1- inflama-
ção destruindo a parede dos vasos, sendo ca-
Sinais oftalmológicos racterístico o compromisso predominante
– episclerite. das zonas de bifurcação; 2-presença de vasos
com diversos estádios de lesão: alguns com
Exames complementares sinais de inflamação aguda com infiltrado de
neutrófilos, outros com infiltrado de mono-
Face à anamnese e exame objectivo sugerindo nucleares e, ainda outros e no mesmo ter-
vasculite com elevada probabilidade de PAN, são ritório, com sinais de necrose e trombose, ao
justificados determinados exames comple- lado de vasos sem anomalias).
mentares (a solicitar criteriosamente e em função
de cada caso particular), os quais poderão revelar Diagnóstico
as alterações expressas:
• Hemograma: anemia, leucocitose, tromboci- Para o diagnóstico de PAN têm sido adoptados
tose,etc.; diversos critérios por diversos autores e grupos de
• Velocidade de sedimentação elevada; trabalho. Recentemente, em 2006 Ozen e colabo-
• Proteína C reactiva com valores elevados; radores consideraram os que constam do Quadro 5,
• Electroforese das proteínas séricas: hiperga- adoptados em centros de Reumatologia Pediátrica.
maglobulinémia reflectindo activação poli- O quadro clínico diversificado da PAN implica
clonal das células B; o diagnóstico diferencial com um conjunto de
• Análise sumária da urina: proteinúria, he- entidades clínicas, destacando-se:
matúria; – Granulomatose de Wegener ou síndroma de
• Doseamento da creatinina e ureia no sangue:
elevação dos valores; QUADRO 5 – Critérios de diagnóstico da
• Detecção de imunocomplexos circulantes e Poliarterite Nodosa
de anticorpos anticitoplasma dos neutrófilos
(ANCA): positiva em geral; Critério obrigatório:
• Detecção de factor reumatóide e de anticor- a) Presença de vasculite necrosante de acordo com
pos antinucleares(ANA): raramente positiva; achados de biópsia de vaso de pequeno ou médio
• Detecção do antigénio do factor VIII e da – calibre; ou alterações angiográficas como aneurismas
tromboglobulina: positividade reflectindo ou oclusões; (Critério obrigatório) e,
actividade da inflamação vascular – com b) Presença de, pelo menos, dois dos seguintes:
interesse também na avaliação do resultado 1. Sinais cutâneos: livedo reticularis, nódulos subcutâneos
da terapêutica; sensíveis e outras lesões sugestivas de vasculite
• Enzimas hepáticas séricas: valores elevados 2. Mialgia ou sensibilidade muscular
sugerindo citólise por infecção; 3. Hipertensão arterial sistémica (pressão diastólica > 90
• Electrocardiograma: sinais possíveis de is- mmHg)
quémia; 4. Mononeuropatia ou polineuropatia
• Electromiograma: em caso de neuropatia 5. Alteração do sedimento urinário e/ou da função renal
periférica identifica os locais afectados; 6. Dor ou sensibilidade testicular
• Angiografia: podendo demonstrar sinais de 7. Sinais ou sintomas sugestivos de vasculite de outro
pequenos aneurismas ao nível do rim, nas ar- órgão ou sistema (gastrintestinal, cardíaco, pulmonar,
térias mesentéricas; ou sistema nervoso central).
• Ressonância magnética angiográfica: poden- Ozen et al, 2006
CAPÍTULO 225 Vasculites sistémicas 1109

Goodpasture quando há sinais de compromisso sibilidade do compromisso dos órgãos atingidos e


pulmonar; a iatrogenia, poderão agravar o prognóstico.
– Lúpus eritematoso sistémico, dermatomiosite e
esclerodermia, tendo em consideração que estas enti-
dades podem cursar com lesões cutâneas vasculíti- 3. DOENÇA DE BEHÇET
cas, sendo que as restantes manifestações clínicas
destas doenças permitem, em princípio, a destrinça;. Definição e aspectos epidemiológicos
– Doença inflamatória do intestino ou neoplasias,
tendo em consideração as manifestações do foro gas- A doença de Behçet (DB) é uma vasculite crónica
trintestinal que poderão acompanhar a PAN. sistémica e recorrente, caracterizada predominante-
mente por lesões mucocutâneas dolorosas (ulcera-
Tratamento ções recorrentes e dolorosas na boca e genitais), bol-
has e pústulas na pele (pseudo-foliculite) e lesões
O tratamento da PAN inclui fundamentalmente: inflamatórias dos olhos); estão igualmente descritas
– corticoterapia: prednisolona PO, 2mg/kg/ alterações articulares, neurológicas e gastrintestinais.
dia, em 3 doses (até máximo de 60 mg/dia);nos Mais frequente na idade adulta (sobretudo
casos graves está indicado iniciar a corticoterapia segunda década) sem predomínio de sexo, é mais
com metilprednisolona EV em pulsos de 30mg/ frequente nalgumas regiões do mundo, área medi-
kg/dia (até máximo de 1g/dia) de 24-24 horas terrânica, Japão e China (ao longo da Rota da Seda).
durante 3 dias, seguindo-se prednisolona PO com Na idade pediátrica atinge sobretudo pré-adoles-
redução progressiva em função da resposta clínica centes e adolescentes (com uma incidência de cerca de
e laboratorial do processo inflamatório; cerca de 1/20.000 indivíduos; de salientar que se des-
– imunossupressores em casos de falência da creve hoje uma forma no recém-nascido e lactente.
corticoterapia(persistência ou reactivação: ciclo-
fosfamida PO, 2mg/kg/dia ou azatioprina PO, Etiopatogénese
2mg/kg/dia; nas formas mais graves poderá estar
indicado iniciar o tratamento com pulsos EV de A causa da DB é desconhecida, mas têm sido impli-
ciclofosfamida (0,5- 1g/m2) segundo esquema que cados, como prováveis desencadeantes, certos
ultrapassa os objectivos do livro; agentes infecciosos (vírus Herpes simples tipo 1,
– plasmaferese nos casos mais graves; Parvovírus B 19, Streptococcus); tal é sugerido: pelo
– imunoglobulina EV, de utilização limitada, aparecimento de títulos elevados de anticorpos con-
apenas em situações de falência da corticoterapia tra os respectivos agentes em determinados doentes;
e antes de serem usados agentes citotóxicos; por alterações imunológicas (imunidade celular,
– profilaxia secundária de recorrência de in- activação do complemento e presença de imuno-
fecção estreptocócica com penicilina benzatínica complexos); e pela exposição a organofosforados.
cada 21 dias nos casos de antecedentes de infecção Trata-se de situações por vezes associadas a DB.
estreptocócica prévia; A distribuição geográfica, a frequência de
– fisioterapia em função da sintomatologia mús- aparecimento em familiares e a associação estatis-
culo-esquelética; ticamente significativa entre presença de antigé-
– regime alimentar adequado, com eventual nios do sistema HLA B5 , B51, e doença de Behçet,
suplemento de cálcio e vitamina D, evitando a sugerem predisposição genética.
iatrogenia do tratamento. A lesão patológica de base é vasculite das
artérias de pequeno e médio calibre, com infil-
Prognóstico tração celular e consequentes necrose fibrinóide,
estreitamento e obliteração dos lumes vasculares.
Com os recursos terapêuticos actualmente dispo-
níveis e o diagnóstico precoce, o prognóstico desta Manifestações clínicas
doença tem melhorado, considerando-se dum
modo geral bom. De referir, no entanto, que a pos- As manifestações clínicas são recorrentes com
1110 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

periodicidade muito variável. Por vezes o inter- A


valo entre o primeiro episódio e o segundo pode
ser de vários anos.
As úlceras orais são a manifestação mais fre-
quente, ocorrendo em 50% a 80% dos casos. As
úlceras são dolorosas, múltiplas, de 2 a 10 mm de
diâmetro, com centro necrótico e localizadas nos
lábios, palato, língua, amígdalas, laringe e qual-
quer local do tubo digestivo. (Figura 4A)
Sendo a estomatite aftosa muito comum na
primeira infância, as úlceras orais são consideradas
como manifestação da doença de Behçet quando
aparecem de forma recorrente (pelo menos 3 episó- B
dios por ano). Na maioria dos casos as úlceras
regridem entre 7 e 14 dias, reaparecendo após
períodos variáveis sem sequelas cicatriciais.
A presença de úlceras orais pode preceder
durante anos uma segunda manifestação da doença,
o que comporta dificuldade no diagnóstico.
As úlceras genitais, menos comuns na
primeira infância, geralmente aparecem na puber-
dade; muitos dolorosas e recorrentes, surgem no
pénis (glande e prepúcio), escroto, vulva, vagina
e região perianal com as mesmas características
que as úlceras orais; contudo, esta localização
deixa habitualmente cicatrizes.
O espectro de manifestações cutâneas é muito
variado, incluindo: foliculite, púrpura, pústulas,
vesículas, ulcerações, pápulas, furúnculos, abces-
sos, lesões simile acne, eritema multiforme e C
eritema nodoso (este último em cerca de 50% dos
casos). As referidas lesões cutâneas desaparecem
espontaneamente ao cabo de 7 a 14 dias. (Figura
4B e C)
Uma manifestação cutânea considerada típica
da doença – embora não patognomónica – é a
chamada reacção patérgica (reacção do tipo pápu-
la dura eritematosa superior a 2 mm, evoluindo
para pústula estéril e úlcera em cerca de 2-3 dias)
após picada com agulha.
As manifestações oculares, mais raras, são ge-
ralmente bilaterais caracterizando-se por altera-
ções de segmento anterior (iridociclite) ou poste-
FIG. 4
rior (coriorretinite, papilite óptica, tromboflebite
retiniana, arterite, etc.); também poderão surgir Jovem de 14 anos de idade, sexo masculino, com doença de
conjuntivite, episclerite e ceratite. O olho pode Behçet diagnosticada aos 12 anos de idade. São evidentes
apresentar-se vermelho e doloroso. Poderão sur- úlceras orais e necróticas, estas últimas dificultando a abertura
da boca (A); lesões papulopustulosas (acneiformes,
gir complicações tardias como glaucoma, catarata
pseudofoliculite) no antebraço (B) e na mão direita (C).
e perda da visão.
CAPÍTULO 225 Vasculites sistémicas 1111

As manifestações articulares, caracterizadas QUADRO 6 – Critérios de diagnóstico


por oligo ou poliartrite ou artralgia, em geral das da doença de Behçet (DB)
grandes articulações, não costumam deixar seque-
las. 1. Úlceras orais recorrentes
O compromisso vascular traduzindo-se por 2. Úlceras genitais recorrentes
trombose de veias e artérias, corresponde à única 3. Lesões oculares
vasculite que afecta os sistemas venoso e arte- 4. Lesões cutâneas
rial. As manifestações mais comuns são a trombo- 5. Patergia: reacção cutânea cerca de 24-48 horas após
se de veias profundas (safenas, ilíacas, veia cava, picada com agulha
veias dos membros superiores, supra-hepáticas O diagnóstico de DB implica a verificação obrigatória de
(síndroma de Budd Chiari) e cerebrais) e a trom- úlcera oral recorrente associada a, pelo menos, dois outros
boflebite superficial. critérios; de salientar que estes critérios têm especificidade de
O compromisso arterial inclui aneurismas arte- 96% e sensibilidade de 91%
riais na aorta ou noutros vasos (inclusivamente (Adaptado do International Study
Group for Behçet’s Disease, 1990 )
artérias retiniana e pulmonar) com possível ruptura.
A trombose arterial pulmonar constitui uma das
manifestações associadas a mortalidade elevada. e IgM encontram-se elevadas. O nível de comple-
A alteração mais grave da doença de Behçet é a mento pode estar aumentado na fase aguda;
neurológica, caracterizada principalmente por – Pesquisa de ANA e factor reumatóide: nega-
meningoencefalite asséptica, encefalomielite, hiper- tiva; de ANCA positiva é pouco comum e, quando
tensão intracraniana secundária a trombose do seio presente, pode estar associada a vasculite da retina;
dural, doença cerebelosa, hemiparésia, paralisia de – Pesquisa do antigénio de histocompatibili-
pares cranianos, neuropatia periférica e alterações dade HLA-B5: positiva em cerca de 50 a 80% dos
psiquiátricas. A cefaleia é um sintoma habitual. casos (associação frequente a compromisso ocular);
As manifestações gastrintestinais podem ser – Angiografia: importante para caracterizar as
inespecíficas (dor abdominal do tipo cólica, náuse- lesões vasculares;
as, vómitos e diarreia) ou semelhantes às verifi- – RMN:importante para avaliar os efeitos da
cadas nas doenças inflamatórias crónicas intesti- doença no sistema nervoso central.
nais. Salienta-se o aparecimento de úlceras esofá-
gicas e intestinais que causam dor e podem levar Diagnóstico diferencial
a quadros de melena e perfuração. Os quadros de
estenose são mais frequentes do que os de per- Um vez que alguns doentes poderão não preencher
furação, ao contrário do que acontece nos adultos. os critérios da doença (doença de Behçet incomple-
Por vezes existe hepato e/ou esplenomegália. ta), a avaliar pela sensibilidade e especificidade dos
O Quadro 6 sintetiza os critérios de diagnóstico critérios anteriormente descritos, doenças como
actualmente utilizados para o diagnóstico de DB. lúpus eritematoso sistémico, artrite idiopática juve-
nil do tipo sistémico, doença de Reiter, doença infla-
Exames complementares matória intestinal, eritema nodoso, estomatite
aftosa e infecções herpéticas devem ser considera-
Determinados exames complementares têm utili- das no diagnóstico diferencial.
dade para avaliar a actividade da doença, o dia- Igualmente, a doença de Behçet deve fazer parte
gnóstico diferencial e a exclusão de colagenoses. do diagnóstico diferencial doutras vasculites sis-
Eis os fundamentais: témicas, e de síndroma de Stevens Johnson, eritema
– Hemograma: pode evidenciar anemia, dis- multiforme e necrólise epidérmica tóxica (* página
creta leucocitose e, raramente, neutropenia; seguinte e Figura 5).
– Provas de actividade inflamatória como
velocidade de sedimentação, PCR e alfa 2 globuli- Tratamento
na podem evidenciar valores aumentados na fase
aguda da doença. As concentrações séricas de IgA Para além de aspectos gerais que incluem regime
1112 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

alimentar equilibrado e suplementos de cálcio e didimite e de lesões mucocutâneas e intestinais


vitamina D, em função da idade, o tratamento da com risco de perfuração; de salientar,no entanto,
DB inclui fundamentalmente: que está contra-indicada em adolescentes do sexo
– Nas úlceras orais e genitais está indicado o uso feminino pelo risco teratogénico.
do corticosteróide sistémico e, eventualmente, pro- – Nos casos graves, com compromisso grave
dutos tópicos; o esquema de corticoterapia sistémica do SNC, oftalmológico, vascular pulmonar ou de
é sobreponível ao descrito a propósito da poliar- outras artérias com formação de aneurismas, tam-
terite nodosa. Também se pode utilizar a colchicina. bém os imunossupressores como ciclosporina,
– Para a artrite estão indicados os AINE e, azatioprina e ciclofosfamida estão indicados,
eventualmente, a sulfassalazina. A colchicina é efi- geralmente em associação aos corticosteróides.
caz nos casos de artrite. – O uso de antiagregantes plaquetários está
– Casos ligeiros de expressão oftalmológica são indicado na tromboflebite.
tratados com colírios de corticosteróides e midriá- – O infliximab poderá estar indicado quando
ticos; contudo, torna-se geralmente necessário se verifica resistência às outras terapêuticas.
recorrer a corticosteróides sistémicos e a imunos- – O tratamento cirúrgico poderá ser necessário
supressores como azatioprina e ciclosporina; em nos casos de aneurismas, tromboses e nos casos de
casos graves pode ser utilizado o clorambucil sintomatologia intestinal.
associado ao metotrexato.
– A talidomida é indicada nos casos de epi- Prognóstico

Os casos fatais, raros (cerca de 3%), estão geral-


(*) São referidas, a propósito, algumas características destas últimas 3
situações, a propósito do diagnóstico diferencial:
mente associados a perfuração gastrintestinal,
1) A síndroma de Stevens Johnson doença neurológica e trombótica. Oclusões ou
integra quadro cutâneo vésico-bo- aneurismas de artérias são manifestações poten-
lhoso; inicia-se por máculas eritema-
tosas com ulterior necrose central, cialmente fatais. De salientar que as sequelas
formando-se consequentemente ve- oftalmológicas e as manifestações do sistema ner-
sículas e bolhas que originam o
aspecto de pele “desnudada” ou voso central são extremamente incapacitantes.
“descolada”, sobretudo na face, tron-
co e extremidades.
As lesões cutâneas, mais dissemi-
nadas que no eritema multiforme, 4. ERITEMA NODOSO
são acompanhadas de lesões de duas
ou mais mucosas, nomeadamente
olhos, boca, via respiratória superior Definição e importância do problema
e tracto gastrintestinal incluindo
região ano-rectal. Surge edema,
eritema da mucosa bucal, bolhas e O eritema nodoso (EN) é um processo inflama-
úlceras hemorrágicas. FIG. 5 tório do tecido adiposo subcutâneo (paniculite
A referida síndroma está associada a
infecções por Mycoplasma pneumo- Síndroma de Stevens Johnson.
septal granulomatosa perivascular), caracterizado
niae e certos fármacos como sulfona- (NIHDE) por nódulos dolorosos à palpação, eritematosos,
midas, AINE, anticonvulsantes, antibióticos, etc.. (Figura 5)
2) O eritema multiforme consta fundamentalmente de lesões cutâneas
conferindo um aspecto macio e brilhante à pele;
de aspecto variável e aparecimento abrupto: máculas eritematosas, tais nódulos localizam-se geralmente, na face an-
pápulas, vesículas, bolha ou lesões simile placas urticariformes conflu- terior de ambas as pernas (região tibial).
entes ao nível da face, tronco e membros (rebordo eritematoso em coroa
circular policíclica, centro pálido que evolui para arroxeado/necrótico). Pouco frequente abaixo dos 6 anos de idade,
Quanto às mucosas apenas a boca é por vezes afectada: rubor dos torna-se progressivamente mais comum a partir
lábios e boca. De etiopatogénese não esclarecida, está frequentemente
associado a infecção por HSV. da adolescência até à terceira década da vida; nal-
3) A necrólise epidérmica tóxica, relacionável com os mesmos factores guns estudos epidemiológicos é apontado como
etiológicos da síndroma de Stevens Johnson, é considerada por alguns
autores como uma forma mais grave de eritema multiforme. Relaciona-
mais frequente no sexo feminino.
se com apoptose dos queratinocitos que se traduz por áreas confluentes
de eritema e “descolamento” da epiderme, associadas a inflamação das
mucosas, das conjuntivas, boca e genitais (por vezes precedendo as
Etiopatogénese
lesões cutâneas). O sinal de Nikolsky é positivo: “descolamento” da
pele após pressão tangencial da mesma. Embora possa surgir como entidade “primária”
CAPÍTULO 225 Vasculites sistémicas 1113

nalguns casos, na maioria das vezes o EN está


associado a doenças inflamatórias ou infecciosas,
ou à utilização prévia de fármacos. As situações
mais habitualmente associadas ao EN são deter-
minadas infecções (estreptocócica, tuberculose,
por Yersinia, histoplasmose, coccidioidomicose,
lepra), doenças inflamatórias (doença inflamatória
do intestino, espondilartropatia, sarcoidose) e
exposição a fármacos (fenítoina, sulfonamidas,
contraceptivos orais, etc.).
Como resultado duma reacção de hipersensi-
bilidade de carácter inflamatório do tecido celular
subcutâneo profundo, pode comprovar-se, através
de exame histológico do nódulo, a existência de
infiltrado de linfócitos, neutrófilos e macrófagos
na zona dos septos do tecido adiposo subcutâneo.
Estas células são activadas por componentes víri-
cos ou bacterianos, imunocomplexos e citocinas.

Manifestações clínicas
FIG. 6
e diagnóstico diferencial
Eritema nodoso em criança com quadro de tuberculose
Os nódulos subcutâneos são geralmente averme- primária. (NIHDE)
lhados, com bordos violáceos, ligeiramente ele-
vados e muito dolorosos. São arredondados e Exames complementares
medem entre 1 e 10 centímetros de diâmetro.
Podem ser irregulares e coalescentes e têm O diagnóstico de EN é clínico. Determinados
duração variável, de semanas a meses. Lo- exames complementares, inspecíficos deverão ser
calizam-se sobretudo na região pré-tibial (bilate- fundamentados em função da anamnese e da sus-
ral e simetricamente), embora possam ser obser- peita da doença de base, para determinar a etiolo-
vados nas coxas, nádegas e membros superiores. gia e a actividade do processo inflamatório. Eis os
Durante a evolução (em cerca de 3 a 6 semanas), fundamentais:
as lesões tornam-se violáceas e acastanhadas, – Hemograma: pode evidenciar leucocitose,
assemelhando-se a hematomas, regredindo de- com ou sem neutrofilia;
pois espontaneamente (Figura 6). Refira-se que a – Provas de fase aguda (por ex. PCR,VS,alfa-1-
localização nos membros superiores sugere uma glicoproteína,etc.): estão alteradas na maior parte
etiologia hoje inexistente no nosso país em idade dos casos;
pediátrica – a lepra. – Electroforese das proteínas: a presença de
O EN pode ter carácter recorrente, com hipoalbuminémia sugere doença intestinal infla-
evolução arrastada, na circunstância de associação matória (DII);
certas a doenças crónicas, como rectocolite – TASO: de modo seriado poderá confirmar
ulcerosa e lúpus eritematoso sistémico. De salien- antecedentes de infecção estreptocócica prévia;
tar que poderá haver manifestações músculo- – Radiografia do tórax: poderá confirmar etio-
esqueléticas tais como artralgia, artrite e dor mus- logia tuberculosa;
cular) e, também, sinais inespecíficos como febre e – Prova tuberculínica (intradermorreacção de
adinamia. Mantoux): idem;
O diagnóstico diferencial faz-se fundamental- – Detecção de autoanticorpos antinúcleo (ANA):
mente com eritema induratum, tromboflebite, po- negativa, excepto nos casos de lúpus associado ou
liarterite nodosa cutânea e sarcoidose subcutânea. doutras doenças do tecido conectivo;
1114 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

– Biópsia das lesões em determinados casos; mação de granulomas atingindo o tracto respi-
– Colonoscopia e/ou trânsito intestinal: para ratório superior e inferior, e os rins (glomerulone-
esclarecimento de eventual DII nos casos de sin- frite). Pode ocorrer de forma sistémica ou limita-
tomatologia do foro digestivo, designadamente da, esta última podendo evoluir para sistémica.
acompanhada de lesões perianais (úlceras e dis- Trata-se duma patologia rara na idade pediátrica,
tensão abdominal) (Capítulo 112). sobretudo antes dos 15 anos; na maioria dos casos
surge entre a 4ª e a 6ª décadas de vida, sobretudo
Tratamento na raça caucasiana e com predomínio no sexo
feminino (~3/1). Estima-se uma prevalência entre
O tratamento do EN consiste fundamentalmente 8 a 30 casos/1.000.000/ano, respectivamente no
no alívio da dor e no controlo do processo infla- Reino Unido e nos Estados Unidos da América.
matório:
– Anti-inflamatórios não esteróides/AINE Etiopatogénese
(naproxeno: 15 a 20 mg/kg/dia, ou indometacina:
1 a 3 mg/kg/dia). A etiologia da GW é desconhecida, admitindo-se
– Corticosteróides, indicados nos casos de dor que, devido à frequência do compromisso das vias
e de processo inflamatório intensos- (prednisona aéreas, um antigénio inalado, (alergénio ou
ou prednisolona: 0,5 mg/kg/dia). agente infeccioso), possa ser desencadeante dum
– Penicilina benzatínica: 600.000 UI nas processo inflamatório de mediação imune.
crianças com peso inferior a 25 kg e 1.200.000 UI Algumas bactérias (nomeadamente Staphylococ-
naquelas com peso igual ou superior a 25 kg cada cus aureus) produzindo os chamados superanti-
3 semanas (nos casos de EN recorrente com sus- génios (antigénios com capacidade para desenca-
peita de infecção estreptocócica como factor de- dear resposta inflamatória desproporcional ao estí-
sencadeante e na perspectiva de profilaxia mulo), têm sido implicadas na iniciação do proces-
secundária) com a duração de 6-12 meses. so inflamatório ao nível dos capilares (capilarite).
– Tuberculostáticos se se comprovar infecção Foi relatado o papel de um gene (CTLA-4 ou um
tuberculosa (capítulo 281). gene próximo a este) codificando o antigénio 4 dos
– Suspensão imediata de fármaco suspeito de linfócitos T (linfócitos T citotóxicos) susceptíveis de
desencadear o processo inflamatório. maior activação no processo inflamatório.
Verificou-se que uma proteinase (PR3), em
Prognóstico condições de normalidade integrada no interior
dos grânulos – alfa dos neutrófilos, se encontra à
O prognóstico geralmente é bom; desde que tenha superfície dos neutrófilos em doentes com GW.
sido instituída a terapêutica adequada à doença de Dado que os ANCA que se ligam ao PR3 são
base, as lesões são autolimitadas e desaparecem. específicos da GW, é hoje admitido o papel etio-
O EN pode ser recorrente (vários surtos cuja patogénico da expressão anormal de PR3.
intensidade se vai esbatendo ao longo do tempo). O antigénio de histocompatibilidade HLA B8
A recorrência persistente, ao longo de anos, deve parece estar associado à GW; contudo outros ha-
evocar patologia associada, sendo a doença de plótipos têm sido identificados em casos fami-
Behçet uma das possibilidades a considerar. liares de GW associada a PAN: (HLA A2, B7,
DRw12, A31, Bw60 e DR4).

5. GRANULOMATOSE DE WEGENER
Manifestações clínicas e diagnóstico
Definição, aspectos epidemiológicos
e importância do problema A sintomatologia respiratória está presente geral-
mente desde o início do quadro, podendo ser atri-
A granulomatose de Wegener (GW) é uma vas- buída a infecções ou a alergia, principalmente
culite necrosante dos pequenos vasos com for- quando estão ausentes as manifestações sistémicas.
CAPÍTULO 225 Vasculites sistémicas 1115

A persistência e/ou o agravamento dos sintomas, QUADRO 7 – Critérios de diagnóstico da


como rino-sinusite e otite média aguda recorrente, Granulomatose de Wegener
apesar da terapêutica para a alergia ou para a
infecção, ou ainda o surgimento de complicações, Verificação obrigatória de três ou mais dos seguintes
como ulcerações da mucosa, perfuração do septo seis critérios:
nasal ou deformidades nasais, levam à suspeita do 1. Alteração da urina: hematúria ou proteinúria signi-
diagnóstico. ficativa
As manifestações otorrinolaringológicas (rinite, 2. Inflamação granulomatosa evidenciada por biópsia
otite, hipoacúsia, laringite, etc.) têm elevada pre- 3. Inflamação dos seios da face (paranasais)
valência (~70%), tanto no início do quadro clínico, 4. Estenose subglótica, traqueal ou endobrônquica
como no decurso da doença. A obstrução laríngea e 5. Radiografia convencional ou tomografia de tórax
estenose subglótica surgem em geral como compli- com alteração
cação tardia da GW. 6. Detecção positiva de PR3 ANCA ou C-ANCA
As manifestações pulmonares mais observadas
PR3= proteinase 3; ANCA= anticorpo anticitoplasma de neutrófilo; Ozen et al, 2006
são o infiltrado pulmonar e/ou nódulos, hemopti-
ses, enfisema e pleurite.
O compromisso renal, podendo culminar em QUADRO 8 – Critérios de dignóstico
insuficiência renal, surge em geral com a pro- da Síndroma de Churg-Strauss
gressão da doença e traduz-se essencialmente por
hematúria e proteinúria (na maioria dos casos), e Verificação obrigatória de, pelo menos, 4 dos 7 critérios:
pode conduzir a insuficiência renal. Hipertensão 1. Asma
arterial e hematúria macroscópica são pouco fre- 2. Eosinofilia em sangue periférico superior a 10%
quentes. 3. História de alergia
Poderão surgir ainda alterações oculares (con- 4. Mononeuropatia ou polineuropatia
juntivite, esclerite ou proptose). 5. Infiltrado pulmonar evidenciado em radiografia de
As manifestações menos específicas da GW tórax convencional
são a febre, a perda de peso, as alterações cutâneas 6. Alterações dos seios da face (rino-sinusite)
(púrpura palpável, úlceras, vesículas e nódulos 7. Biópsia evidenciando abundância de eosinófilos em
subcutâneos), as músculo-esqueléticas, e as alte- tecidos extravasculares
rações do sistema nervoso (paralisia dos nervos (sensibilidade de 85% e especificidade de 99,7%); Ozen et al, 2006
cranianos, convulsões e neuropatia periférica).
Lesões papulares e nodulares do tipo acneiforme
na face e membros superiores podem constituir a culite que pode originar rino-sinusite crónica dis-
manifestação inicial da doença em adolescentes. tingue-se fundamentalmente da GW pelos ante-
O Quadro 7, adaptado de Ozen, discrimina os cedentes de asma, eosinofilia no sangue periférico
critérios de diagnóstico da doença. circulante e vasculite; por outro lado, na síndroma
O diagnóstico deve ser suspeitado em crianças de Churg- Strauss não se verificam lesões destru-
com sinusite grave associada a padrão radiográfi- tivas na via aérea superior (Quadro 8). Noutras
co do tórax evidenciando sinais de granulomas, vasculites não se identificam os característicos
ou com quadro de glomerulonefrite. A TAC de granulomas ao nível de diversos órgãos, identifi-
alta resolução pode evidenciar outros sinais su- cados na GW por biópsia.
gestivos como imagens de compromisso intersti-
cial ou hemorragia pulmonar. Exames complementares

Diagnóstico diferencial Em cerca de 75% dos casos de GW verifica-se ane-


mia, elevação da velocidade de sedimentação, assim
Os anticorpos ANCA estão ausentes noutras como dos valores da PCR e das plaquetas.Os anti-
doenças granulomatosas como sarcoidose ou corpos da classe IgG c-ANCA dirigidos contra PR3 e
tuberculose. A síndroma de Churg-Strauss, vas- identificados por imunofluorescência são específicos
1116 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

da doença (anticorpos c-ANCA no citoplasma), o idade pediátrica), assim como as artérias pul-
que não acontece com os p-ANCA ou perinucleares. monares.
Os achados imuno-histoquímicos sugerem um
Tratamento mecanismo de resposta imune a um antigénio,
mediado por células T cujos receptores eviden-
O tratamento inicial consiste na corticoterapia oral ciam disfunção. Por outro lado, demonstrou-se
e IV. Na maioria dos casos, é necessária a associação nalguns estudos a formação de imunocomplexos,
de um imunossupressor sendo, a primeira escolha, a activação do complemento e o papel de anticor-
a ciclofosfamida por via oral ou endovenosa na pos antiendoteliais. Verifica-se elevação de IL-6 e
forma de pulsoterapia. Alguns estudos têm sido diminuição de IL-10
realizados para avaliar a eficácia do metotrexato Os achados histopatológicos evidenciam infil-
associado à corticoterapia nos casos com doença trado linfo-monocitário, alterações granulo-
menos grave, sendo os resultados considerados matosas e ulterior fibrose, que se desenvolvem da
animadores. O metotrexato ou a azatioprina tam- adventícia para a íntima.
bém poderão ser importantes na fase de remissão. No que respeita a antigénios de histocompati-
A experiência com a IGIV é escassa. bilidade, verifica-se associação da doença ao HLA
B-52 e HLA DR-2 no Japão, ao HLA B-52 e HLA
Prognóstico B-5 na Coreia, e ao HLA B-39 no México.

Sem tratamento, a GW é quase sempre letal (~ 82% Manifestações clínicas e diagnóstico


de mortalidade no primeiro ano). O tratamento
adequado e precoce permitiu melhorar o prognós- Numa fase precoce, com queixas inespecíficas de
tico. mal-estar geral, em que se palpam os pulsos, são
O prognóstico é mais reservado em situações notórios suores nocturnos, anorexia, perda de
de hemorragia pulmonar, hipoalbuminémia e ou peso, fadiga, mialgia, artrite, uveíte, seguindo-se
de insuficiência renal. por vezes hipertensão inexplicada; nesta fase (que
pode durar semanas e evidenciar-se sob a forma
de várias recorrências), pode ser auscultado por
6. ARTERITE DE TAKAYASU vezes ruído característico ao nível das artérias
carótidas ou subclávias.
Definição e importância do problema A fase subsequente, surgida após período as-
sintomático, relaciona-se com sinais e sintomas de
A arterite de Takayasu (AT), também chamada insuficiência vascular por múltiplas oclusões arte-
doença sem pulso, é uma vasculite crónica pro- riais, dependendo da localização (cerebral, visce-
gressiva obliterativa de etiologia desconhecida ral, extremidades, etc.) (inflamação vascular
que atinge os grandes vasos, levando à formação seguida de fibrose).
de estenoses, dilatações e aneurismas. Na idade pediátrica pode ser mais evidente a
Rara na idade pediátrica, afecta sobretudo o diminuição ou ausência de pulsos radiais e menos
sexo feminino (4-10 F/ 1M), com uma incidência evidente (em relação ao adulto) a claudicação da
mundial entre 2,3 a 2,6 casos /1.000.000 habi- marcha por isquémia dos membros inferiores.
tantes/ano. A taxa de mortalidade é elevada A presença do quadro descrito, englobando as
(~40% na idade pediátrica). recorrências atrás referidas a propósito das manifes-
Em casuísticas provenientes da Ásia compro- tações precoces, assim como a verificação de veloci-
vou-se associação da doença a tuberculose. dade de sedimentação elevada, obrigarão à auscul-
tação periódica das grandes artérias e à medição da
Etiopatogénese pressão arterial nos quatro membros. (Quadro 9)
A complicação mais temível da doença é a rup-
A AT atinge principalmente a aorta abdominal e tura de aneurisma.
seus ramos primários (zona de predilecção na Se o quadro clínico se desenvolver durante o
CAPÍTULO 225 Vasculites sistémicas 1117

QUADRO 9 – Critérios de classificação A


da arterite de Takayasu

Verificação de alterações angiográficas (critério


obrigatório) e de, pelo menos, um dos quatro critérios:
• Diminuição do pulso arterial periférico e/ou claudi-
cação da marcha por isquémia das extremidades
• Diferença de pressão arterial > 10 mmHg
• Sopro na aorta e/ou nos seus ramos maiores (artéria
subclávia)
• Hipertensão arterial
Ozen e col., 2006

primeiro ano de vida, a lesão arterial pode acom-


panhar-se de exantema papular, uveíte, poliartrite
simétrica e lesões granulomatosas, situação desi-
gnada por granulomatose sistémica juvenil.
Não existem exames laboratoriais específicos.
Poderá observar-se anemia, leucocitose com
neutrofilia e trombocitose; as provas de infla- B
mação da fase aguda podem evidenciar resulta-
dos positivos (elevação da velocidade de sedi-
mentação e da PCR). Poderá também verificar-se
hiperfibrinogenémia, hipoalbuminémia e hiperga-
maglobulinémia, baixos títulos de ANA, (~50%
dos casos) e factor reumatóide positivo (~10% dos
casos).
Os exames de imagem são da maior importân-
cia (ultrassonografia com Doppler, ressonância
magnética, angio-RM e arteriografia) (Figura 7). A
radiografia do tórax pode detectar cardiomegalia
ou contorno irregular do arco aórtico ou da aorta
descendente e o electrocardiograma pode eviden-
ciar sinais de hipertrofia ventricular esquerda.

Diagnóstico diferencial
FIG. 7
Um vez que a aortite e a regurgitação aórtica se
poderão desenvolver na AT, outras situações com Imagens de angio-RM em criança de 9 anos de idade, com
estes achados deverão também ser consideradas, arterite de Takayasu diagnosticada aos 7 anos. Nestas imagens
incluindo a doença de Behçet. podem ser observadas várias estenoses arteriais, designadamente
da artéria subclávia esquerda (A), da aorta abdominal e das
Há que considerar ainda os quadros de hiper-
artérias renais (B).
tensão arterial e de coarctação da aorta.
É importante também recordar ainda outras
situações como febre reumática, espondilite Tratamento
anquilosante com aortite, artrite idiopática juve-
nil, o lúpus eritematoso sistémico, sarcoidose, e Os princípios básicos do tratamento incluem a
vasculites em geral. excisão cirúrgica das lesões vasculares com es-
1118 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

tenose e ou aneurisma, e terapia imunossupressora. National Institutes of Health experience. Int J cardiol 1996;
Os corticosteróides (prednisona ou pre- S99-S102
dnisolona por via oral) são utilizados na fase acti- Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF (eds).
va da doença, com respostas eficazes (variáveis) se Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders
iniciados precocemente. Em doentes com sin- Elsevier, 2007; 995-1052
tomas sistémicos persistentes ou doença progres- Marins KS, Baptista R, Nentzinsky V, Azevedo ML, Bica BG.
siva, associa-se metotrexato ou ciclofosfamida. O Poliarterite nodosa cutânea na infância com gangrena digital
metotrexato em baixas doses permite diminuir as e possível associação com o estreptococo beta-hemolítico do
doses da corticoterapia. São também utilizados grupo A: relato de caso e revisão de literatura. Rev Bras
anti-hipertensivos, cardiotónicos, anticoagulantes Reumatol 2008; 48: 111-117
e antiagregantes plaquetários em função do con- McCulloch M, Andronikou S, Goddard E, et al. Angiographic
texto clínico de cada caso. features of 26 children with Takayasu’s arteritis. Pediatr
Nos casos de tuberculose associada, há que Radiol 2003; 33: 230-235
proceder ao respectivo tratamento antes do trata- Nadeau SE. Neurologic manifestations of systemic vasculitis.
mento específico da AT. Neurol Clin 2002; 20: 123-150
Na idade pediátrica não há experiência do tra- Ozen S, Anton J, Arisoy N, et al. Juvenile polyarteritis:results of
mentos feito no adulto com rituximab ou fárma- a multicenter survey of 110 children. J Pediatr 2004; 145:
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CAPÍTULO 226 Febre reumática 1119

Etiopatogénese

226 Está provado que a resposta auto-imune aos


antigénios estreptocócicos tem um importante
papel no desenvolvimento da FR em indivíduo
susceptível.
FEBRE REUMÁTICA Apesar de a infecção estreptocócica estar bem
definida como sendo o factor etiológico da doença,
Maria Teresa Ramos Ascensão Terreri a sua patogénese não é completamente compre-
endida. Alguns factores parecem ser, contudo, im-
portantes:
1. Predisposição genética, com uma maior fre-
Definição e importância do problema quência em algumas famílias. Estudos com dife-
rentes antigénios leucocitários humanos (HLA)
A febre reumática (FR) é uma complicação infla- mostraram uma associação entre a doença e esses
matória, não supurativa de uma infecção de oro- antigénios; entretanto diferentes estudos mostram
faringe causada pelo estreptrococo β hemolítico associações diversas e alguns resultados são con-
do grupo A de Lancefield (Streptococcus pyo- traditórios. Além disso, a FR foi associada a um
genes); afecta o coração, articulações, sistema ner- aloantigénio de linfócito B, reconhecido por um
voso central, tecido subcutâneo e pele. A doença anticorpo monoclonal D8/17, que ocorre em cerca
cardíaca reumática ainda é uma das causas mais de 90% dos pacientes e em apenas 15% da popu-
importantes de cardiopatia adquirida na infân- lação saudável. Entretanto, estudos posteriores em
cia, principalmente nos países subdesenvolvidos diferentes populações não corroboraram estes
ou em desenvolvimento. Em Portugal, a FR tem achados.
baixa prevalência, descrevendo-se casos esporá- 2. Factores relacionados com estreptococo: al-
dicos. Para a Organização Mundial de Saúde, a guns serótipos com M1, M3, M5, M6, M14, M18,
FR constitui um problema de saúde pública M19 e M24 são considerados reumatogénicos. A
mesmo em países desenvolvidos. proteína M é o antigénio da bactéria mais reuma-
O impacte económico da doença está associa- togénico.
do a custos directos e indirectos elevados tanto 3. Factores ambientais: más condições de vida,
para o doente e a família, como para a sociedade, aglomerações, acesso difícil às unidades de saúde
relacionados sobretudo com a lesão cardíaca. e regiões frias.
Em países em desenvolvimento, a incidência A reacção cruzada entre antigénios estreptocó-
da FR varia de 1,0 a 150 por 100.000 crianças em cicos e estruturas do organismo humano é bem
idade escolar. A taxa de mortalidade nos casos de conhecida. Existe um mimetismo molecular entre
doença cardíaca reumática varia de 0,5 a 8,2 por alguns tecidos do hospedeiro que têm sequências
100.000. Nem todos os indivíduos com faringo- antigénicas comuns às do estreptococo. Dados
amigdalite estreptocócica desenvolvem FR; em recentes sugerem que os linfócitos T têm um papel
situações epidémicas 3% desenvolvem a doença e importante na patogénese da cardite reumática.
em situações endémicas a taxa cai para 0,3%. Pacientes com FR aguda apresentam títulos
elevados de anticorpos contra a proteína M (que
Aspectos epidemiológicos pode agir como superantigénio), induzindo uma
resposta imune exagerada e auto-imunidade.
A maior incidência de FR é observada em crianças Os nódulos de Aschoff representam a lesão pa-
entre 5 e 15 anos de idade, sendo que a doença é tognomónica da cardite reumática, caracterizada
rara antes dos 5 anos (3 a 5% dos casos). Existe um por infiltrado de macrófagos, linfócitos e fracção C3
predomínio discreto no sexo feminino devido à do complemento.
maior frequência de coreia neste sexo. Não há pre- Em resumo, a infecção estreptocócica inicial num
disposição racial. hospedeiro geneticamente predisposto e num ambi-
1120 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ente susceptível pode levar à activação de linfócitos terizando a pancardite, a endocardite, isolada ou
T e B pelos antigénios estreptocócicos e super- não, é a manifestação mais encontrada.
antigénios, resultando na produção de citocinas e A presença de sopro cardíaco patológico, com
anticorpos dirigidos contra estruturas do hos- ou sem taquicárdia, na ausência de febre, caracte-
pedeiro. riza a cardite clínica. O sopro é geralmente sistóli-
co, apical e reflecte a insuficiência mitral. As
Manifestações clínicas válvulas mais acometidas em ordem de frequên-
cia são: mitral, aórtica, tricúspide e pulmonar. O
Na maioria dos casos, o aparecimento das mani- compromisso de válvulas cardíacas direitas iso-
festações clínicas ocorre entre a segunda e a ter- ladamente, sem envolvimento das esquerdas, é
ceira semana após a infecção estreptocócica. Por muito raro. A estenose mitral é rara na faixa etária
vezes o quadro clínico pode aparecer mais preco- pediátrica; quando presente, indica lesão cardíaca
cemente (Capítulo 213). prévia.
Nos últimos anos, têm-se descrito casos de
Artrite pacientes com cardite assintomática (subclínica)
A poliartrite é a manifestação mais frequente da que se apresentam sem sopro cardíaco, porém
FR, ocorrendo em 60% a 70% dos pacientes no com alteração ecocardiográfica.
primeiro surto. Embora muito frequente, é a mani- A cardite pode manifestar-se até à sexta se-
festação menos específica. Geralmente a artrite é mana de evolução do surto agudo, e casos com
migratória, assimétrica transitória, autolimitada, resultados de marcadores inflamatórios de fase
atingindo as grandes articulações, com dor des- aguda elevados devem ser acompanhados sema-
proporcional aos sinais inflamatórios; e apresenta nalmente durante esse período. Sopro cardíaco
uma boa resposta a doses anti-inflamatórias de durante a fase aguda não indica lesão valvular
ácido acetilsalicílico. Geralmente o processo infla- permanente, e em 60% dos casos regride.
matóro permanece por 2 ou 3 dias em cada articu- Nos casos de miocardite ou pericardite iso-
lação, e desaparece sem deixar sequelas em 2 a 3 ladas, sem envolvimento endocárdico, outros
semanas. Porém, há que salientar que nem sempre diagnósticos diferenciais devem ser considerados.
a artrite é típica; e que há casos com período de
latência mais curto, mono ou oligoartrite, com Coreia de Sydenham
compromisso de pequenas articulações e coluna Esta manifestação ocorre mais frequentemente no
cervical, com duração superior a 6 semanas e má sexo feminino. A sua frequência oscila entre 15 e
resposta aos salicilatos. 35%. Ela é caracterizada por labilidade emocional,
De referir que a chamada artrite reactiva pós- fraqueza muscular e, posteriormente, movimen-
estreptocócica se apresenta após um período de tos involuntários e incoordenados. Todos os mús-
latência mais curto (≤ 10 dias após a infecção): culos podem ser afectados; porém os movimentos
artrite prolongada ou artrite recorrente, às vezes das mãos, braços, pés e pernas, além de lábios, lín-
simétrica e com tenossinovite, e sem resposta aos gua e face, são mais evidentes. Dificuldades na
anti-inflamatórios não esteróides (AINE). Trata-se fala e na escrita podem estar presentes. Os movi-
doutra forma de artrite que, nos países onde a FR mentos coreicos são geralmente bilaterais, dimi-
é prevalente, deve ser, contudo, considerada como nuem com o repouso e desaparecem com o sono.
pertencendo ao espectro da mesma, implicando Transtornos neuropsiquiátricos ocorrem como
conduta profiláctica e terapêutica semelhante à sequela da coreia e incluem distúrbios obsessivo-
que é aplicada à artrite, antes descrita. compulsivos, depressão, tiques e dificuldade de
concentração.
Cardite Embora a coreia seja descrita como uma mani-
A cardite é a segunda manifestação mais fre- festação isolada, ela está associada à cardite ou à
quente, ocorrendo em 40 a 50% dos pacientes. artrite em metade dos casos. A coreia é uma mani-
Apesar de o endocárdio, miocárdio e pericárdio festação tardia da FR, e, por esse motivo, quando
poderem estar afectados simultaneamente, carac- se apresenta isolada, a demonstração laboratorial
CAPÍTULO 226 Febre reumática 1121

de actividade inflamatória e a detecção de infec-


ção estreptocócica recente estão ausentes.
Surtos recorrentes de FR que apresentaram
coreia no primeiro surto, costumam manifestar-se
com coreia.

Nódulos subcutâneos
Trata-se duma manifestação clínica rara, que
ocorre em cerca de 3% dos casos e geralmente está
associada à cardite. Os nódulos são arredondados,
móveis, indolores e presentes nas superfícies de
FIG. 2
extensão das articulações, principalmente em
cotovelos, joelhos e tornozelos. (Figura 1) Eritema marginado.

Eritema marginado importante torna necessário o diagnóstico diferen-


É também uma manifestação rara e associada à cial com leucemia. Tanto a velocidade de sedi-
cardite. Caracteriza-se por lesões cutâneas não mentação (VS) como a proteína C reactiva (PCR)
pruriginosas, com bordo elevado e hiperemiado, e estão alteradas desde o início do surto agudo e
palidez central, no tronco e raiz proximal dos assim permanecem até à segunda ou terceira se-
membros. (Figura 2) mana. Estes reagentes de fase aguda são influenci-
ados pelo uso de anti-inflamatórios. Valores muito
Outras manifestações mais raras são febre, elevados de VS são sugestivos de cardite. A α-1
artralgia, dor abdominal e epistaxe. glicoproteína ácida e a α-2 globulina elevam-se
mais tardiamente e permanecem alteradas duran-
Exames complementares te todo o surto agudo, sendo assim as provas mais
adequadas para a monitorização da actividade da
Embora os resultados dos exames complementa- FR. Elas não são influenciadas pelo uso de AINE.
res não sejam específicos, eles são auxiliares no O método de excelência padrão ouro para
diagnóstico da infecção estreptocócica recente, na detecção do Streptococcus pyogenes e diagnóstico
avaliação da actividade inflamatória, e no dia- da infecção estreptocócica é a cultura da oro-
gnóstico diferencial de outras causas de artrite faringe. Entretanto, na vigência da FR, a sua sen-
aguda como a leucemia e as hemoglobinopatias. sibilidade diminui para 15 a 20% devido ao perío-
O hemograma pode ser normal ou apresentar do de latência entre a infecção estreptocócica e a
anemia ligeira e ou leucocitose com neutrofilia. A doença, e também ao uso prévio de antibióticos.
presença de linfocitose persistente ou anemia Teste rápido para detecção de antigénio estrep-
tocócico através de material obtido da orofaringe
(tipo Phadirect®) também tem uma sensibilidade
baixa, além de alto custo. Por outro lado, nem as
culturas nem os testes rápidos para detecção de
antigénio estreptocócico podem distinguir entre a
infecção aguda estreptocócica e o portador de estre-
ptococo sem doença. Portanto, testes serológicos
para anticorpos estreptocócicos (antiestreptolisina
O e anti-desoxirribonuclease B) são essenciais e
devem ser realizados para todos os pacientes com
suspeita de FR.
Títulos elevados de antiestreptolisina O
FIG. 1
(TASO) ou aumentos de título em doseamentos
Nódulos subcutâneos no contexto de FR. seriados com intervalo de 15 dias comprovam a
1122 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

infecção estreptocócica recente. É importante QUADRO 1 – Critérios de Jones modificados


salientar que cerca de 20% dos pacientes não apre-
sentam elevação de valores deste anticorpo na Major Minor
fase aguda; os valores de normalidade são var- Cardite Clínicos: artralgia; febre
iáveis e dependentes da região geográfica. Artrite Laboratoriais: VS>, PCR>
O ecocardiograma tornou-se nos últimos anos, Coreia ECG: Intervalo P-R >
o exame de excelência para o diagnóstico de Nódulos subcutâneos
doença cardíaca. O ecocardiograma doppler colo- Eritema marginado
rido é útil na avaliação da função miocárdica, no
diagnóstico da doença valvular, e na pericardite. Evidência de infecção estreptocóccica:
Achados ecocardiográficos de lesões valvu- * Serologia específica positiva: TASO elevado ou a
lares na ausência de manifestações clínicas de aumentar (≥ 2x)
cardite, têm sido descritos por vários autores. Em * Cultura positiva de Streptococcus na orofaringe
estudo prospectivo e cego realizado por nós em 56
pacientes com FR, observámos uma frequência de Diagnóstico de FR: infecção estreptocócica prévia
19,6% de cardite subclínica e persistência das e ≥ 2 manifestações major, ou 1 major + 2 minor
lesões em 72% dos pacientes. Abreviaturas: VS=velocidade de sedimentação; PCR=proteína C reactiva;
É importante salientar que, de acordo com a ECG = electrocardiograma; > = aumentado(a).

Sociedade Americana de Cardiologia, a cardite


subclínica não é considerada no diagnóstico da FR.
A radiografia de tórax e o electrocardiograma cardite subclínica; a evidência da infecção estre-
evidenciam fraca sensibilidade, estando presentes ptocócica não é sempre possível, e por esta razão,
alterações em apenas 30% dos casos de cardite deveria ser considerada como uma condição
reumática. importante para o diagnóstico, mas não como um
critério adicional obrigatório.
Diagnóstico Oligo ou poliartrite na ausência de outras ma-
nifestações major da FR obrigam ao diagnóstico
Não existe nenhum sinal, sintoma ou exame labo- diferencial com outras artrites agudas. Artrite
ratorial patognomónico de FR. O diagnóstico de séptica, outras artrites reactivas, doenças do
certeza pode ser difícil devido à variabilidade das colagénio, leucemia linfóide aguda, outras neo-
manifestações clínicas. A este propósito são recor- plasias e anemia de células falciformes devem ser
dados os critérios de Jones, Quadro 1. Desde 1944 consideradas.
já ocorreram cinco revisões dos critérios e, a partir Pericardite vírica ou tuberculosa, miocardite
de 1992, estes critérios têm sido considerados ape- vírica, endocardite bacteriana, quadro clínico
nas para o primeiro surto de FR. acompanhado de sopro inocente, doença cardíaca
É importante salientar que nem todos os congénita e doenças do colagénio, como lúpus
pacientes preenchem os critérios de diagnóstico. eritematoso sistémico ou artrite idiopática juvenil,
Na presença de coreia isolada ou cardite, o dia- devem ser excluídos nos casos de cardite.
gnóstico de FR poderá ser feito sem preencher os Apesar de a coreia ser muito sugestiva de FR,
outros critérios de Jones. quando ela se apresenta como manifestação isola-
Apresentações incomuns da FR aguda com da há necessidade de excluir patologias como
manifestações clínicas muito variadas que não encefalite vírica, tiques, hiperactividade, lúpus
preenchem os critérios de Jones são responsáveis eritematoso sistémico e síndroma antifosfolípidos,
por erros e atraso no diagnóstico. Seria importante além de tumor cerebral.
mudar o conceito da “artrite reumática”, para
incluir as formas atípicas de artrite; o ecocardio- Prevenção primária
grama, se utilizado com critério, constitui método
preciso para distinguir a lesão valvular patológica O tratamento da FR consiste na eliminação do
da fisiológica e, portanto, para o diagnóstico da Streptococcus pyogenes (prevenção primária), no
CAPÍTULO 226 Febre reumática 1123

tratamento da cardite, da artrite e da coreia, e na tratamento com corticosteróides é suficiente.


prevenção secundária da infecção recorrente. Para o tratamento da coreia de Sydenham é
A prevenção primária deve ser iniciada até ao recomendado o haloperidol (dose inicial de 1 a 2
nono dia de infecção da orofaringe, para evitar o mg/dia até o máximo de 4 a 5 mg/dia), ácido val-
ataque inicial da FR. O estreptococo pode ser elimi- próico (30 a 40 mg/kg/dia) ou pimozida (1 a 6
nado com uma injeção intramuscular única de mg/dia) com redução gradual da dose durante
penicilina G benzatínica na dose de 600.000 meses após o desaparecimento dos sintomas. Deve-
Unidades para doentes com menos de 25 kg e de -se ter cuidado especial com os efeitos adversos
1.200.000 Unidades para aqueles com 25 kg ou destes medicamentos.
mais. Nos raros casos em que se verifica alergia à
penicilina, os antibióticos de escolha são a eritro- Prevenção secundária
micina (30 a 40 mg/kg/dia) dividida em 4 doses
durante 10 dias ou a azitromicina durante 5 dias. A prevenção secundária é realizada com penicili-
Antibióticos por via oral são menos eficazes, devi- na G benzatínica nas mesmas doses que para a
do à baixa adesão ao tratamento e também à varia- prevenção primária. O intervalo recomendado
ção na absorção. É importante salientar que as sul- entre as doses é 4 semanas, embora nas popu-
famidas não são eficazes na prevenção primária. lações de alto risco, a penicilina deva ser dada a
O uso de antibióticos não é necessário para cada 3 semanas.
portadores sãos do estreptococo; com efeito, os Doentes com FR sem cardite devem ser sub-
referidos portadores, não disseminam o micror- metidos a prevenção até os 18 anos de idade, ou no
ganismo para os seus contactos, havendo escasso mínimo por 5 anos após o último surto. Doentes
risco de surgir febre reumática. com cardite, porém sem sequelas, devem ser sub-
A amigdalectomia não é eficaz na redução da metidos a prevenção até os 25 anos ou, no mínimo,
incidência da FR, e não está recomendada na pre- por um período de 10 anos. Nos casos de envolvi-
venção primária da FR. Ela não altera a evolução mento da mitral e da aórtica, a referida prevenção
da doença assim como a frequência de primeiro deve ser mantida por tempo indeterminado.
surto ou recorrências. Os doentes em que estão indicados procedi-
mentos dentários e cirurgias devem receber
Tratamento adicionalmente amoxicilina.
A alergia à penicilina é uma condição rara,
A cardite é tratada com corticosteróides (1 a 2 especialmente em crianças abaixo dos 12 anos de
mg/kg/dia de prednisona, em dose fraccionada idade. Nestes casos é recomendada a sulfadiazina
na primeira semana e depois uma vez por dia. de uso diário em doses de 500mg/dia para
Essa dose deve ser mantida por 2 - 3 semanas até crianças até 25 kg e 1g/dia para aquelas com 25 kg
à melhoria clínica e normalização dos resultados ou mais; em alternativa o sulfisoxazol: 120
das provas inflamatórias, e reduzida lentamente mg/kg/dia.
nas 2 semanas seguintes. Diuréticos, inibidores da Nota: Têm sido desenvolvidas vacinas para
enzima conversora da angiotensina e digitálicos uso em indivíduos geneticamente susceptíveis. As
são usados no tratamento da insuficiência cardía- vacinas mais promissoras são as baseadas na pro-
ca. Em pacientes com cardite é recomendado o teína M. Foi desenvolvida uma nova vacina que
repouso durante, pelo menos, 4 semanas. contém péptidos N-terminal de antigénios estrep-
Para o tratamento da artrite é recomendado o tocócicos e proteína M de 26 serótipos reumato-
uso do ácido acetilsalicílico em doses de 100 génicos que não evidenciou reumatogenicidade
mg/kg/dia (máximo de 3 gramas/dia), pela sua em indivíduos voluntários. Sucesso no desen-
eficácia e baixo custo. Logo que os resultados das volvimento de vacinas poderá ser alcançado nos
provas inflamatórias normalizam, a dose deve ser próximos anos.
reduzida até completar 4 a 8 semanas de tratamen-
to. Naproxeno ou outros AINE também podem ser GLOSSÁRIO
usados. Para pacientes com cardite associada o Prevenção primária > Conjunto de meios médicos e médico-sociais……
1124 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

para salvaguardar a saúde dos indivíduos sãos e evitar a doença. the diagnosis and follow-up of rheumatic carditis in chil-
Prevenção secundária > …… para impedir o agravamento da doença. dren and adolescents: a two-year prospective study. J
Prevenção terciária > …… para evitar sequelas da doença já estabele- Rheumatol 2000; 27: 1082-1086
cida e permitir reinserção social do doente. Jones TD. The diagnosis of rheumatic fever. J Am Med Assoc.
Muitas vezes emprega-se o termo prevenção como sinónimo de profi- 1944; 126: 481-484
laxia. De acordo com os peritos da linguagem biomédica deve uti- Langlois DM, Andreae M,. Group A streptococcal infections.
lizar-se o termo “prevenção” quando se aplica a acção (por exemplo Pediatr Rev 2011; 32: 423 - 430
estilo de vida saudável); e o termo profilaxia quando se refere a sub- Maia DP, Teixeira AL, Cunningham CQ, Cardoso F. Obsessive
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CAPÍTULO 227 Dores de “crescimento” 1125

227
de exercício físico mais intenso. A sua duração é
inferior a 2 horas.
O exame físico é normal e, na maioria dos
casos, não há mesmo referência a dor articular, se
bem investigada clinicamente a situação. Trata-se
principal ou exclusivamente de algias ao nível
DORES DE “CRESCIMENTO” da superfície de extensão dos membros infe-
riores, podendo, em casos raros, ser também atin-
J. A. Melo Gomes gidos os membros superiores; não há quaisquer
limitações funcionais do aparelho locomotor. O
crescimento é normal.
Frequentemente há referência a sintomatologia
Definição e importância do problema idêntica num dos progenitores durante a infância,
o que poderá determinar a existência de uma pre-
O termo “dores de crescimento”, controverso, re- disposição familiar para a dor. A massagem suave,
presenta um mau uso da linguagem médica, pela com ou sem anti-inflamatório ou analgésico tópi-
sua imprecisão; trata-se dum diagnóstico facil- co, é habitualmente suficiente para permitir o
mente aceite pelos pais pela frequência muitas alívio das queixas e o repouso nocturno adequa-
vezes excessiva com que é utilizado. do.
Efectivamente, as dores dos membros que as Embora o prognóstico a curto e longo prazo
crianças com este diagnóstico referem (em cerca seja excelente, pode haver alguma ansiedade do
de 10-20% em idades escolar) não são causadas agregado familiar, pois, por vezes, as crianças acor-
pelo crescimento. dam durante a noite a chorar e a queixar-se das
dores. Com o evoluir do tempo estas queixas vão-
Critérios de diagnóstico se tornando progressivamente mais raras e menos
intensas, até desaparecerem completamente, inde-
Do ponto de vista clínico este diagnóstico aplica- pendentemente dos tratamentos efectuados.
se a um conjunto de dores com características bem Os resultados dos exames complementares,
definidas (Quadro 1), surgindo entre os 4 e os 12 por vezes efectuados para aliviar as preocupações
anos de idade, habitualmente apenas ao fim da familiares, são integralmente normais.
tarde ou à noite e nunca pela manhã ao acordar, e
podendo ser desencadeadas ou agravadas em dias Diagnóstico diferencial

QUADRO 1 – Dores de “Crescimento” O aspecto mais grave e preocupante deste dia-


gnóstico diz respeito às situações em que o termo
Características clínicas é empregue levianamente para classificar doenças,
• Idade de início: 4 a 12 anos. potencialmente graves, que nada têm a ver com a
• Sem predominância de sexo. situação clínica em análise que é inespecífica mas
• Dores tipicamente nocturnas ou vespertinas (nunca característica. Estão neste caso as artrites idiopáti-
de manhã ao acordar). cas juvenis e doenças neoplásicas benignas (osteo-
• Localização mais frequente na superfície de extensão ma osteóide) ou malignas (sarcomas ósseos, leu-
dos membros inferiores, acima ou abaixo do joelho, coses), cujo diagnóstico diferencial é geralmente
bilateralmente (não articulares). fácil e cuja orientação terapêutica poderá ser
• Boa resposta à analgesia simples e/ou massagem local atrasada por abordagem incorrecta e superficial.
suave.
• Exame objectivo normal. Tratamento
• Exames complementares de diagnóstico com resulta-
dos normais. O tratamento das “dores de crescimento” deve ser
efectuado com massagem suave das zonas afec-
1126 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

tadas, com ou sem a aplicação tópica de analgési-


co ou anti-inflamatório, eventualmente associado
à administração “per os” de uma dose de para-
cetamol ou de ibuprofeno, associados à educação
do agregado familiar.
Haverá que explicar aos pais, também, o carác-
ter benigno e transitório desta situação clínica.

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PARTE XXIV
Osteocondrodisplasias
1128 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

228
ser detectadas no período pré-natal e diagnosti-
cadas já no recém-nascido.
As possibilidades terapêuticas actuais são
limitadas, se bem que nalguns casos de displasias
esqueléticas as técnicas cirúrgicas que permitem o
alongamento ósseo das extremidades constituam
DISPLASIAS ESQUELÉTICAS um avanço significativo, designadamente no
grupo acondroplasia-hipocondroplasia e certas
E DOENÇAS AFINS – formas de displasia metafisária.

CONCEITOS FUNDAMENTAIS Sistematização

Ignacio Villa Elizaga e João M. Videira Amaral Actualmente as displasias predominantemente es-
queléticas e não esqueléticas são classificadas ten-
do em conta: a) critérios de ordem genética, co-
nhecidos; b) manifestações clínicas e radiográfi-
Importância do problema cas semelhantes, pressupondo etiopatogénese e
base genética comuns, no entanto desconhecidas.
A designação de osteocondrodisplasias/OCD, Assim, determinadas entidades anteriormente
displasias esqueléticas, e displasias ósseas (ou, classificadas no mesmo grupo são hoje considera-
segundo a designação clássica, doenças ósseas das separadamente uma vez que se demonstrou
constitucionais) diz respeito a um grupo hete- que os respectivos genes mutantes eram dife-
rogéneo de entidades caracterizadas por anoma- rentes.
lias do crescimento e desenvolvimento do Para fins didácticos são considerados os se-
esqueleto (osso e cartilagem em cuja composição guintes grandes grupos:
entra o tecido conectivo). O respectivo quadro
clínico é dominado por alterações esqueléticas Displasias esqueléticas
(em geral baixa estatura, deformações ósseas e 1) Osteodisplasias cujo exemplo prototípico é
repercussão funcional), realçando-se que na maior a osteogénese imperfeita que se distingue das
parte dos casos outros tecidos não esqueléticos restantes pela fragilidade óssea, associada às ca-
também podem estar afectados. racterísticas gerais atrás referidas;
Determinadas entidades em que predominam 2) Condrodisplasias, associadas a genes que
as alterações do tecido conectivo integram o são essenciais para o crescimento e desenvolvi-
grupo das chamadas displasias do tecido conecti- mento do esqueleto; as mesmas englobam dois
vo (ver adiante Sistematização). Daí algumas difi- subgrupos: 2.1) correspondente aos casos em que
culdades ao tentar estabelecer-se uma classifi- predominam membros curtos; e 2.2) correspon-
cação que seja prática e útil para o clínico. dente aos casos em que predomina tronco curto.
Tal patologia compreende mais de 370 dife- Refira-se, a propósito, que alguns casos de con-
rentes entidades, com uma prevalência calculada drodisplasias podem ser identificados pelos
em cerca de 1/4.000 nascimentos, salientando-se antecedentes pessoais e familiares, e exame físico.
que cada vez maior número de casos tem sido 3) Disostoses, ou anomalias isoladas de deter-
relacionado com defeitos de genes. minado osso ou de ossos de determinada região
As consequências de tais alterações a nível mo- anatómica cuja etiopatogénese pode ser diversa;
lecular podem ter repercussões, quer no esquele- de realçar que tais anomalias podem estar asso-
to, quer, como foi referido, noutros tecidos, var- ciadas a entidades atrás referidas em 1) e 2).
iando muito as manifestações: entre formas letais Dum modo geral a designação das displasias
in utero, a formas oligossintomáticas, por vezes esqueléticas relaciona-se com a localização anató-
subdiagnosticadas ou não identificadas. mica dos ossos afectados e/ou das anomalias his-
Nesta perspectiva, muitas das doenças podem tológicas mais frequentemente encontradas.
CAPÍTULO 228 Displasias esqueléticas e doenças afins 1129

No que se refere à etiopatogénese, as situações tualmente atingindo a coxa no seu terço superior)
referidas em 1) e 2) são resultantes de alteração estiverem ao nível da crista ilíaca ou acima desta,
intrínseca dos ossos, enquanto as referidas em 3) a desproporção torna-se evidente.
integram-se numa alteração do tecido mesen- • Importa igualmente averiguar qual a região
quimatoso ou forma jovem do tecido conectivo, o do corpo com maior encurtamento (segmento do
qual tem como elemento constitutivo essencial membro ou tronco).
fibrilhas de colagénio que actuam como elemento Se a porção proximal de um membro- respecti-
de suporte dos tecidos. vamente úmero ou fémur – constituir a parte mais
O termo de “nanismo” usado anteriormente curta, está-se perante um encurtamento chamado
como sinónimo de baixa estatura, desproporcionada rizomélico (por ex. acondroplasia). Se o encurta-
ou harmónica, está hoje abandonado pela conotação mento afectar a parte medial do membro- respecti-
pejorativa e discriminativa daquele relativamente ao vamente antebraço ou perna – o encurtamento é
doente e familiares; hoje utiliza-se genericamente o designado mesomélico. Se o encurtamento se veri-
termo de displasia, ou de hipocrescimento. ficar na parte distal do membro-respectivamente
Para além dos grandes grupos atrás referidos mãos e pés – o encurtamento é chamado acromélico.
poderá surgir ainda uma multiplicidade de situa- Se o tronco corresponder à área predominan-
ções (metabólicas, nutricionais, etc.) com expres- temente mais curta, o mesmo é acompanhado de
são esquelética, cuja etiopatogénese é extrínseca pescoço,tórax e coluna vertebral mais curtos (por
aos ossos ou ainda não está completamente ex. síndroma de Mórquio).
esclarecida. 2) Detecção de eventuais anomalias associa-
das.
Displasias do tecido conectivo 3) Exame radiográfico do esqueleto com
Estas afecções, em geral designadas por não medições dos vários segmentos dos membros,
esqueléticas, partilham características comuns tórax, coluna, etc..
com as displasias esqueléticas no que se refere à 4) Exames complementares vários a selec-
etiopatogénese (mutação de determinados genes cionar em função do contexto clínico: estudo cito-
com papel especial no referido tecido conectivo) e genético, exame da pele (histoquímico, cultura de
têm uma expressão clínica mais relevante ao fibroblastos para estudo do colagénio, etc.), bio-
nível de tecidos não esqueléticos (exceptuando químico (balanço do cálcio/fósforo, fosfatase
na síndroma de Marfan e na aracnodactilia con- alcalina, etc.), biomolecular, biópsia da cartilagem
génita). e do osso, etc..

Aspectos semiológicos Aspectos genéticos e moleculares

A abordagem dos casos sugestivos de displasia Os progressos da biologia molecular e da genética


esquelética implica uma conjunto de procedimen- permitiram concluir que diversos quadros clínicos
tos semiológicos: de displasias esqueléticas e não esqueléticas resul-
1) Somatometria rigorosa: peso, comprimento tam de mutações de genes que codificam proteí-
ou altura, perímetro cefálico, comprimento do nas colagénicas e não colagénicas que fazem parte
braço, relação segmento superior (SS) do corpo/ da matriz extracelular da cartilagem e do osso,
segmento inferior (SI) do corpo. essenciais para o crescimento e desenvolvimento
• A relação SS/SI considerada normal até à do esqueleto; são exemplo o factor de crescimen-
adolescência oscila entre 1,6 e 0,93; se tal relação to dos fibroblastos E-3, o colagénio dos tipos II e I,
no recém-nascido for superior a 1,8 está-se em este último o principal colagénio do osso.
geral perante uma situação de baixa estatura As anomalias hereditárias do tecido conjunti-
desproporcionada associada a membros curtos; se vo, esporádicas ou hereditárias, derivam de muta-
a relação for inferior 0,93, está-se em geral perante ções de um só gene, não se tendo detectado, até à
uma situação de baixa estatura com tronco curto. actualidade, anomalias cromossómicas. Admite-se
Se as extremidades dos dedos das mãos (habi- que a grande maioria das mutações (alterações do
1130 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

material genético que surgem “de novo”), associa- tária pode evidenciar um tipo de transmissão
da às anomalias hereditárias do tecido conjuntivo, dominante muito marcado. Em certos casos, a
são espontâneas na sua origem, dado que não se descendência de um indivíduo normal pode levar
identificou qualquer situação de risco epide- ao aparecimento de dois ou mais indivíduos gra-
miológico associado a agentes externos indutores. vemente afectados; este último padrão, sugestivo
Salienta-se, a propósito, que as mutações co- de transmissão de modo recessivo, pode corres-
nhecidas na actualidade são de dois tipos funda- ponder a mosaicismos germinais no progenitor.
mentais:mutações pontuais (que afectam apenas
um nucleótido) ou deleções/grandes inserções Etiopatogénese
(que afectam vários nucleótidos).
O efeito da mutação sobre a função duma pro- Em função da etiopatogénese, as entidades
teína também é muito variável: pode produzir englobadas no conceito de displasia esquelética e
diminuição, anulação ou transformação da referida não esquelética podem ser agrupadas em função
função. Em muitos destes transtornos, a detecção de determinados mecanismos conhecidos ou
de portadores da anomalia somente é possível ana- doutros critérios abaixo discriminados.
lisando os polimorfismos do ADN no indivíduo e Assim, para melhor compreensão dos Quadros
na sua família. Nas doenças com gene conhecido 1-A, B, C e 2 adiante descritos, foram considera-
podem empregar-se técnicas de diagnóstico directo dos diversos tipos de etiopatogénese designados
mediante amplificação por PCR (polymerase chain respectivamente por dígitos de tamanho pequeno
reaction ou reacção em cadeia da polimerase). entre parênteses de (1) a (6):
Actualmente investiga-se a hipótese de deter- (1) Alterações dos receptores transmem-
minado fenótipo poder corresponder a dois ou branares
mais genes. (2) Alterações do colagénio e das proteínas da
Neste tipo de patologia a transmissão heredi- matriz da cartilagem

QUADRO 1-A – Características de algumas displasias esqueléticas

Grupo/Tipo Fenótipo Gene Transmissão Alterações moleculares


/Etiopatogénese
Mutação FGFR3: Hipocrescimento micromélico, FGFR3 AD Alteração do receptor do
Displasia macrocefalia, habitualmente letal factor de crescimento de
tanatófora* fibroblastos 3(1)
Acondroplasia Hipocrescimento rizomélico, macro- FGFR3 AD Idem (1)
cefalia, fronte proeminente, ponte
nasal plana ou deprimida, mãos
curtas com dedos "em tridente"
na extensão
Hipocondroplasia Hipocrescimento, normocefalia, mãos
e pés pequenos. Forma semelhante à
acondroplasia,embora mais ligeira
Mutação COL2A1:
Acondrogénese tipo II* Hipocrescimento, extremidades COL2A1 AD Alteração da síntese do
/Hipocondrogénese curtas, normocefalia, letal procolagénio II(2)
DEE (Displasia Hipocrescimento de tronco curto, COL2A1 AD Idem (2)
espondilepifisária) con- achatamento facial, palato fendido,
génita-precoce (ou SED- miopia, degenerescência retiniana,
Spondyloepiphyseal mielopatia cervical, hipotonía
Dysplasia)
* letal no RN
CAPÍTULO 228 Displasias esqueléticas e doenças afins 1131

QUADRO 1-B – Características de algumas displasias esqueléticas (continuação de 1-A)

Grupo/Tipo Fenótipo Gene Transmissão Alterações moleculares


/Etiopatogénese
Displasia de Kniest Estatura baixa, extremidades curtas, COL2A1 AD Idem(2)
artropatia, rigidez e contracturas,
palato fendido, miopia, descolamento
da retina
Displasia de Stickler Fenda palatina, alterações orofaciais/ COL2A1 AD Idem(2)
(Osteoartro-oftalmopa- micrognatia , hipoacúsia, exoftalmo,
tia) epicanto, miopia grave, cataratas,
descolamento retiniano, pés equino-
varus, encurtamento rizomélico, atra-
so mental, hipotonia, prolapso mitral
Displasia de Strudwick Hipocrescimento, pectus carinatum, COL2A1 AD Idem(2)
escoliose, palato fendido, miopia,
degenerescência retiniana, mielopatia
cervical
SED /DEE tardia Hipocrescimento, alterações COL2A1 AD Idem(2)
articulares, doença de Perthes
Mutação DTDST:
Acondrogénese IB Hipocrescimento rizomélico neonatal DTDST AR Alteração da proteína
grave, alteração da ossificação verte- transportadora de
bral sulfato(3)
Atelosteogénese II Hipocrescimento micromélico grave, DTDST AR Idem(3)
frequentemente letal
Displasia Hipocrescimento micromélico, indi- DTDST AR Idem(3)
diastrófica* cador curto,polegar implantado mais
proximalmente, 1º metacárpico
ovóide, pé equinovaro, cifoscoliose,
anomalias dos pavilhões auriculares,
palato fendido, micrognatia
Mutação COMP:
Displasia epifisária Hipocrescimento ligeiro, artralgias, COMP AD Alteração da proteína da
múltipla (Síndroma de dedos curtos matriz oligomérica da
Fairbanks) cartilagem(2)
Pseudacondroplasia Estatura baixa, extremidades curtas, COMP AD Idem(2)
hiperlaxidão ligamentosa
Mutação COL10A1:
Displasia Hipocrescimento, extremidades cur- COL10A1 AD Alteração da síntese do
metafisária tas, crescimento anómalo da metáfise procolagénio X(2)
de Schmid (genu varum, coxa vara)
Mutação PTHrPR:
Displasia metafisária de Estatura baixa, extremidades curtas, PTHrPR AD Alteração do receptor
Jansen outras anomalias esqueléticas de peptídico relacionado
gravidade variável, hipercalcémia com a paratormona

AD: Autossómica dominante. AR: Autossómica recessiva. (*) Ocasionalmente letal no RN.
1132 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1-C – Características de algumas displasias esqueléticas (continuação de 1-B)

Grupo/Tipo Fenótipo Gene Transmissão Alterações moleculares


/Etiopatogénese
Mutação TCIRG 1:
Osteopetrose Esclerose óssea difusa(não reabsorção Alteração do gene que
* Forma recessiva grave óssea normal pelos osteoclastos), den- TCIRG 1 AR(•) codifica a actividade
precoce(•) sidade óssea aumentada,craniome- osteoclástica(cromosso-
galia, hepatosplenomegalia ma 8q)(5)
* Forma dominante/tar- (hematopoiese extramedular), anemia
dia macrocítica leucoeritroblástica, medu- ? AD(••) Alt. cromossoma 1p21(5)
(Doença de Albers- la óssea hipocelular e fibrótica,
Schonberg)(••) fracturas, paralisia dos nervos
cranianos, surdez,cegueira,atraso
psicomotor,anomalias dentárias
Mutação ?:
Picnodisostose Macrocefalia,membros curtos, ? AR Alt. do gene que codi-
mãos e pés curtos e largos,unhas fica a catepsina K; défice
displásicas actividade osteoclástica(5)
Mutação ?:
Hiposfosfatasémia Tronco curto, rosário costal, osteope- ? AR Alt.do gene que codifica
*Forma congénita (letal) nia, irregularidades das metáfises, a actividade da fosfatase
*Forma tardia ossos vormianos/ilhéus de calcifi- alcalina (FA)(5)
cação craniana, défice da calcificação
dos condrócitos, hipercalcémia,
FA diminuída (simile raquitismo)
Mutação LMX1 B:
Síndroma Displasia das unhas,ausência ou LMX1 B AD Alteração dos factores de
“nail-patella“ hipoplasia da rótula,glomerulonefrite; transcrição do DNA(4)
(disostose) espectro variável de manifestações
Mutação CBFA 1:
Displasia Baixa estatura ligeira,fronte proemi- BCFA 1 AD Alteração dos factores de
cleidocraniana nente, hipertelorismo, anomalias den- transcrição do DNA(4)
(disostose) tárias,ombros “descaídos”, ausência
de clavículas, atraso de ossificação
dos ossos cranianos com ossos
vormianos, luxações
Mutação SOX9:
Displasia Nariz achatado, micrognatia, fenda SOX9 AR Alteração dos factores
campomélica* palatina, membros curtos e curvos AD ? de transcrição do DNA(4)
(fémur e/ou tíbia e perónio encurva-
dos), defeitos cardíacos, renais, esco-
liose, etc.
Mutação COL1A1 ou A2:
Osteogénese Crânio volumoso e “mole”, fácies nor- COL1A1 AR Alteração da síntese das
imperfeita mal, tórax estreito, heterogeneidade COL1A2 duas cadeias alfa do
clínica, escoliose,membros( curtos e (grande colagénio de tipo I(2)
curvos, flexibilidade anormal, frac- diversida-
turas ósseas, crepitações e calos de de de
fracturas), hipomineralização óssea mutações)
AD: Autossómica dominante. AR: Autossómica recessiva. (*) Geralmente letal no RN.
Estão descritos casos familiares, raros, de doença de Caffey associados a mutação/linkage de COL1A1, de transmissão AR (ver adiante).
CAPÍTULO 228 Displasias esqueléticas e doenças afins 1133

(3) Alterações do sistema de transporte trans- • Mutação COL2A1


membranar do sulfato Este grupo engloba a acondrogénese tipo
(4) Alterações dos factores de transcrição do II/hipocondrogénese, a displasia espondilepifi-
ADN sisária congénita e tardia, e as displasias de
(5) Alterações da densidade óssea (excesso ou Kniest, de Stickler, e de Strudwick, cujas mani-
defeito de reabsorção óssea) festações clínicas são consequência da mutação do
(6) Anomalias de etiopatogénese (desco- gene COL2A1 que codifica a síntese do colagénio
nhecida /não completamente esclarecida) de tipo II, localizado em 12q13.11.
Os Quadros 1 A, B e C sintetizam as caracterís- Com efeito, a alteração da síntese do proco-
ticas de algumas displasias esqueléticas (incluin- lagénio de tipo II, que existe principalmente na
do osteodisplasias, condrodisplasia e disostoses), cartilagem hialina e no humor vítreo , explica que
estabelecendo-se uma relação com o Quadro 2 se verifiquem repercussões fundamentalmente
centrado sobre a alínea (6) (ver atrás). em estruturas oculares, coluna vertebral e epífises
Os Quadros 1 A, B e C, integrando diversos dos ossos longos.O modo de transmissão é, em
parâmetros que contribuem para a respectiva todas as afecções, do tipo autossómico dominante
caracterização, merecem alguns comentários . Realça-se que em todas as referidas entidades
• As denominadas condrodisplasias pressu- clínicas é característica marcante a baixa estatura,
põem anomalia na formação da cartilagem. A sua exceptuando a displasia de Stickler. Esta última,
expressão clínica habitual varia entre quadros pelo compromisso articular e ocular assemelha-se
graves, com hipocrescimento acentuado e alteração à displasia espondilepifisária (DEE). No recém-
marcada das proporções dos diversos segmentos nascido, pela micrognatia e fenda palatina,
corporais, e mais ligeiros, com discretos sinais dis- assemelha-se à anomalia de Pierre Robin.
mórficos faciais, sinais oculares ou articulares que As Figuras 1 a 7 (NIHDE) mostram aspectos
se diagnosticam apenas na idade de adulto. do fenótipo e do esqueleto das seguintes situações
• Mutação FGFR3 explanadas nos Quadros 1 e 2: displasia tanató-
Neste grupo , que engloba a displasia tanató- fora, acondroplasia, displasia diastrófica e dis-
fora, a acondroplasia e a hipocondroplasia como trofia campomélica.
consequência da mutação em causa, as alterações • Mutação DTDST
do receptor do factor de crescimento fibroblástico A família a que pertencem a acondrogénese
localizado no braço curto do cromossoma 4 do tipo IB, a atelosteogénese do tipo II e a dis-
(4p16.3) conduzem a um conjunto de manifes- plasia diastrófica associa-se à presença de mu-
tações tendo de comum hipocrescimento e trans- tações heterozigóticas do gene transportador de
missão autossómica dominante . iões sulfato (DTDST) localizado em 5q31-q34. O

FIG. 2
Displasia tanatófora. Radiografia do esqueleto evidenciando
FIG. 1 sinais de situs inversus, encurtamento e encurvamento dos
Displasia tanatófora (fenótipo). (NIHDE) ossos longos. (NIHDE)
1134 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 2 – Características de algumas displasias esqueléticas de etiopatogénese desconhecida ou


não completamente esclarecida

Grupo/Tipo Fenótipo Gene Transmissão Alterações moleculares


Mutação FGFR3:
Síndroma de Membros curtos(segmentos médio e EvC AR ?
Ellis-Van Creveld distal), polidactilia pós-axial,dente
(Displasia congénito, tórax estreito e comprido,
condro-ectodérmica)* displasia das unhas, defeitos cardía-
cos, genu valgum, ilíacos curtos e
quadrangulares, disfunção renal,
disfunção hepática, cabelos escassos,
hipocrescimento, adultos baixos
Mutação ?:
Distrofia torácica Fácies aparentemente normal; ? AR ?(6)
asfixiante características semelhantes às da
(Síndroma de Jeune)* síndroma de Ellis –Van Creveld
Mutação ?:
Síndroma polidactilia Letal no RN por insuficiência respi- ? AR ?(6)
e costelas curtas (tipos I ratória, tórax pequeno,polidactilia,
a IV) costelas curtas,outras anomalias
associadas
Mutação ?:
Hipoplasia cartilagem Membros inferiores arqueados, ? AR Alteração do ARN
–cabelo (Condrodisplasia alargamento das metáfises, perónio mitocondrial(6)
metafisária tipo mais comprido que a tíbia, hipoplasia
McKusick) do cabelo e cartilagens, neutropénia,
défice imunitário das células T, adul-
tos baixos
Mutação ?:
Displasia Tronco estreito, membros curtos, ? AR (6)

metatrópica* cifoscoliose, apêndice espinhal/cauda, ? AD


deformação das metáfises
Mutação ?:
Condrodisplacia Fenótipo semelhante a acondroplasia ? AR (6)

calcificante congénita Defeitos cardíacos, microcefalia, calci-


(Conradi) ficação punctiforme transitória nas
(Chondrodysplasia epífises e áreas de formação óssea
epyphisialis punctata)* encondral, cataratas, atrofia óptica
Mutação ?:
Displasia Tronco curto,tíbias arqueadas, ? AD (6)

espondilometafisária hipocrescimento, metáfises alargadas,


(tipo Kozlowski) adultos baixos,platispondilia,escoliose
Mutação FGFR3:
Osteocondroses juvenis Grupo heterogéneo (formas fami- ? AR (6)

(doenças de Legg-Calvé- liares e esporádicas). Alterações do


Perthes, de Osgood- crescimento ósseo originando artropa-
Schlater, de Blount, etc.) tias não inflamatórias e deformações
ósseas (necrose isquémica de cen-
tros de ossificação)
(Cont. pág 1135)
CAPÍTULO 228 Displasias esqueléticas e doenças afins 1135

QUADRO 2 – Características de algumas displasias esqueléticas de etiopatogénese desconhecida ou


não completamente esclarecida (cont.)

Grupo/Tipo Fenótipo Gene Transmissão Alterações moleculares


Mutação ?: (v. Quadro 1)
Doença de Caffey Rara, caracterizada por hiperostose casos AD (6) - (#)

(Hiperostose cortical cortical e inflamação da fascia e familiares AR


infantil) músculos contíguos. (#)

Início de sintomas < 6 meses: tume- COL1A1


facção dos tecidos moles contíguos
aos ossos, precedendo alterações
ósseas (v. adiante)
* Ocasionalmente letal no RN.

FIG. 5
Displasia diastrófica. (NIHDE)

FIG. 3
Acondroplasia. (NIHDE)

FIG. 6 FIG. 7
Displasia campomélica. Displasia campomélica.
Pormenor do encurtamento Hemissoma direito. Pormenor
FIG. 4 da coxa direita. do aspecto radiográfico do
Mão de criança com acondroplasia. (NIHDE) encurvamento do fémur direito.
1136 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

dação das fracturas e na cartilagem articular


artrósica. Esta displasia herda-se de modo autos-
sómico dominante.
Para além dos aspectos essenciais dos fenóti-
pos que foram resumidos, salientam-se, pelas ra-
zões atrás aludidas: alargamento da metáfises,
tumefacção articular mais notória no punho, e
mineralização irregular das metáfises dos ossos
longos proximais.
• Mutação PTHrPR
A displasia metafisária de Jansen é causada
por uma mutação do gene PTHrP localizado em
3p21-p22, o qual codifica o receptor peptídico
relacionado com a paratormona. O modo de trans-
missão hereditária é autossómico dominante. As
FIG. 8 manifestações clínicas mais relevantes também se
Condrodisplasia calcificante congénita (Doença de Conradi). encontram sintetizadas no Quadro 1 B.
Aspecto radiológico das epífises com calcificações punctiformes. O Quadro 2 sintetiza as displasias esqueléticas
mais importantes englobadas na etiopatogénese
modo de transmissão é autossómico recessivo em do tipo designado por (6).
todas estas afecções; para a manifestação da A Figura 8 representa aspecto radiográfico da
doença é condição fundamental a presença de doença de Conradi (doença das “epífises pon-
dois alelos mutantes, sendo que o fenótipo é teadas”) caracterizada por calcificações puncti-
determinado pela combinação de alelos mutantes. formes das epífises, enquadrando-se no grupo (6).
Salienta-se que os iões sulfato atrás referidos Como exemplo de displasia esquelética é descri-
são fundamentais para a célula cartilagínea e para ta com mais pormenor a osteogénese imperfeita,
a síntese de proteoglicanos destinados à formação entidade clínica com afinidades, pela etiopatogé-
da matriz extracelular; do défice de sulfato nos nese (anomalias do colagénio do tipo I) com a denti-
proteoglicanos da cartilagem resultam as manifes- nogénese imperfeita (capítulos 229 e 230).
tações clínicas e o fenótipo descrito. • Relativamente à doença de Caffey cabe
• Mutação COMP salientar em complemento do que é referido nos
O gene COMP, localizado em 19p12-13.1, codi- Quadros 1-C e 2 alguns aspectos das manifes-
fica a síntese da proteína da matriz oligomérica da tações clínicas, do diagnóstico diferencial e trata-
cartilagem. As suas mutações são a causa da pseu- mento: a) início súbito com irritabilidade e tume-
doacondroplasia e da displasia epifisária múltipla facção dolorosa dos tecidos moles (esta última
ou síndroma de Fairbanks cujo fenótipo e modo de nem sempre evidente) suprajacente aos ossos em
transmissão hereditária são descritos. Na síndroma que se verifica hiperostose cortical (aspecto ima-
de Fairbanks também se produzem mutações dos giológico), a qual se verifica ulteriormente à sin-
genes do colagénio do tipo IX, COL9A2 e COL9A3. tomatologia referida; b) febre e anorexia; c) os
• Mutação COL10A1 ossos mais afectados são a clavícula, maxilar infe-
Neste grupo é englobada a displasia meta- rior, rádio e cúbito; d) remissões e recaídas com
fisária de Schmid, entidade associada a alterações duração variável (~2 semanas – 3 meses); e) ele-
do gene COL10A1, localizado em 6q21-q22.3, vação da velocidade de sedimentação, da fosfa-
sendo que se descreveram até hoje mais de 25 tase alaclina e, por vezes, da PGE; f) o diagnóstico
mutações diferentes. O referido gene codifica a diferencial faz-se com intoxicação crónica com vi-
síntese do colagénio do tipo X que se encontra tamina A, infusão IV com PGE em casos de car-
unicamente nos condrócitos hipertróficos (na diopatia dependente de PDA, tumores ósseos e
região de crescimento do osso, de transformação escorbuto; g) o tratamento inclui, entre outras
da cartilagem em osso ou metáfise), na consoli- medidas, indometacina e prednisolona.
CAPÍTULO 229 Osteogénese imperfeita 1137

229
No que respeita às displasias do tecido conec-
tivo (não esqueléticas) nos capítulos 230 a 235 é
dada ênfase, sequencialmente às síndromas de
Ehlers – Danlos, Alport, epidermólise bolhosa,
síndroma de Marfan, cutis laxa, pseudoxantoma
elástico e síndroma de Williams.
OSTEOGÉNESE IMPERFEITA
GLOSSÁRIO
Platispondilia > Achatamento do corpo vertebral de várias vértebras da Ignacio Villa Elizaga
região dorsolombar que pode conduzir a cifose.

BIBLIOGRAFIA
A Bibliografia referente aos capítulos que integram a Parte XXIV é Definição e importância do problema
descrita no final do Capítulo 235.
O termo osteogénese imperfeita (OI) designa um
grupo de displasias ósseas constitucionais heredi-
tárias, heterogéneas sob os pontos de vista clínico
e genético, causadas por defeitos estruturais ou
quantitativos do colagénio de tipo I, o compo-
nente principal da matriz extracelular do osso e
pele.
Caracteriza-se por osteopénia, fragilidade
óssea, fracturas patológicas e outras anomalias do
tecido conjuntivo tais como escleróticas azuis,
dentinogénese imperfeita e surdez progressiva.
Na sua forma clássica verifica-se transmissão AD.
A incidência de OI na infância oscila entre
1/10.000 e 1/20.000

Alterações moleculares

A grande maioria dos indivíduos afectados eviden-


cia mutações dos genes COL1A1 ou COL1A2, local-
izados em 17q21.31-q22 e 7q22.1 que codificam a
síntese das duas cadeias α do colagénio de tipo I.
A heterogeneidade clínica da OI explica-se
possivelmente pela grande diversidade de muta-
ções que se têm objectivado nos genes atrás referi-
dos.
As mutações resultantes numa diminuição de
cadeias pró-α-(I) podem dar lugar a fenótipos
ligeiros de OI de tipo I, enquanto as deleções com
perda de exões ou as inserções, de que resultam
alteração da estrutura proteica,podem ser respon-
sáveis por fenótipos mais exuberantes.
Refira-se, entretanto, que ainda não se conhece
bem, nem a relação entre a mutação e o fenótipo
do doente, nem a causa da variabilidade clínica
dentro da mesma família.
1138 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Classificação dade óssea extrema. Aparece de forma esporádica,


sendo muito raramente descrita a transmissão
Actualmente descrevem-se oito tipos de OI autossómica recessiva.
(Quadro 1) A OI do tipo III evidencia osteopénia marcada
As principais características da OI do tipo I com frequentes fracturas e deformidades secun-
(forma ligeira) são: fragilidade óssea, escleróticas dárias progressivas, baixa estatura e diminuição
azuis e estatura média normal ou ligeiramente da expectativa da vida; a sua transmissão é autos-
inferior à normal; a sua transmissão é autossómi- sómica dominante ou, ocasionalmente, recessiva.
ca dominante. A OI do tipo IV é mais benigna, não se lhe
A OI do tipo II é letal no período perinatal, associando escleróticas azuis; o padrão de heredi-
sendo a sua manifestação fundamental a fragili- tariedade é do tipo autossómico dominante.

QUADRO 1 – Classificação da osteogénese imperfeita (OI)

Tipo e frequência Fracturas Escleróticas Surdez Hereditariedade Alteração molecular


I ++ Azuis ++++ AD Alelo nulo para
Ligeira Pós-neonatal Adolescência ou COL1A1
(50%) idade adulta
II ++++ Azuis Não estabelecido AD Mutações em
Letal Pré e neonatal (esporádica) COL1A1 ou COL1A2
(5%) Raramente AR resultantes em
ruptura da hélice de
colagénio
III +++ Brancas ou ++ AR Mutações em
Deformante grave Neonatal Azuis Raramente AD COL1A1 e COL1A2
(20%) claras resultantes em
ruptura da hélice
de colagénio
IV +/++ Brancas ++ AD Mutações em
Deformante Pós-neonatal COL1A1 e COL1A2
moderada Encurvamento tibial resultando em insta-
(20%) bilidade da hélice de
colagénio

V +/++ (Calos hipertró- Brancas Não Provavelmente Desconhecida


OI com formação ficos, calcificação, estabelecido AD
de calos membrana interóssea
hipertróficos -antebraço)
(<5%) Pós-neonatal
VI Semelhante a tipo V Brancas Não AD Desconhecida
OI com défice Histologia diversa da estabelecido
de mineralização dos tipos IV e V
(<5%)
VII e VIII Semelhantes a tipos II Azuis ++ AR Mutações em
e III. Rizomélia; perí- LEPRE1 ou
metro cefálico normal CRTAP (VIII)
ou diminuído. Simile
osteocondrodisplasia
AD: Autossómica dominante. AR: Autossómica recessiva.
(Modificado de Marini JD: Osteogenesis impefecta in Kliegman RM, Stanton BF, et al (eds) Textbook of Pediatrics. Philadelphia:Elsevier Saunders,2011)
CAPÍTULO 229 Osteogénese imperfeita 1139

ção subsequente, devida esta ao repouso que faz


parte da actuação. As fracturas ósseas consolidam,
no entanto, com normalidade. A verificação de
extremidades inferiores curtas na idade adulta
corresponde a sequela de fracturas diafisárias em
idade pediátrica com consequente encurvamento
das mesmas. (Figuras 1 e 2).
É muito frequente a presença de cifoscoliose,
especialmente na OI de tipo III deformante, do
que pode resultar disfunção rsepiratória restritiva.
A face pode evidenciar conformação triangu-
lar, e verifica-se crânio de fronte proeminente,
pavilhões auriculares de inserção baixa e de eixo
FIG. 1 FIG. 2
oblíquo para trás.
Osteogénese imperfeita em Osteogénese imperfeita: sinal
RN: aspecto radiológico de fractura do úmero direito. Oculares
esquelético sendo notórios o (NIHDE) A cor das escleróticas oscila entre branca e azul
encurvamento dos ossos do
nítida, admitindo-se que tal aspecto seja devido ao
membro inferior e sinal de
fractura femoral. (NIHDE) adelgaçamento da esclerótica por alteração das
respectivas fibras de colagénio, permitindo a vi-
sualização da coroideia subjacente.
Os casos de OI do tipo V e VI, com um padrão Por vezes, a esclerótica pericorneana tem cor
de hereditariedade do tipo autossómico dominante mais esbranquiçada, sinal conhecido por anel de
e, sob o ponto de vista biomolecular, ainda não com- Saturno.
pletamente caracterizados, têm manifestações Salienta-se que estão descritos casos de escle-
semelhantes às do tipo IV, embora evidenciem como róticas azuis familiares sem relação com OI.
particularidade a formação de calos ósseos hipertró-
ficos como forma de consolidação de fracturas, e a Défice auditivo
frequente calcificação da membrana interóssea. A surdez deve-se a alterações do desenvolvimen-
As formas de OI dos tipos VII e VIII eviden- to e de ossificação dos ossículos do ouvido, assim
ciam mutações nos genes que codificam dois dos como a calcificações anómalas.
componentes do colagénio no retículo endoplás- Inicialmente pode haver hipoacusia de trans-
mico (prolil 3 hidroxilase ou P3H1 ou da sua pro- missão, habitualmente para altas frequências,
teína associada) respectivamente gene LEPRE1 e surgindo mais tarde hipoacusia de percepção
CRTAP. Em cerca de 10% dos casos com carac- (componente neurossensorial).
terísticas de OI não se evidencia defeito molecular.
Dentárias
Manifestações clínicas Este tipo de manifestações é abordado a propósito
da dentinogénese imperfeita.
Faz-se uma referência especial às manifestações
esqueléticas, oculares, auditivas e dentárias. Em suma, o diagnóstico baseia-se essencialmente
nos dados clínicos sendo patognomónica a asociação
Esqueléticas de fracturas múltiplas,escleróticas azuis,dentinogé-
A fragilidade óssea e as fracturas patológicas de nese imperfeita e antecedentes familiares; de acor-
repetição condicionam um desenvolvimento anó- do com a idade em que são detectadas as manifes-
malo do esqueleto, de gravidade muito variável tações, são descritas duas formas: OI congénita, dia-
em função do tipo de OI. gnosticada na data do nascimento; e tardia, detectá-
As fracturas ósseas recidivantes agravam vel mais tarde. Estas duas formas são independentes
ainda mais a fragilidade óssea por desmineraliza- da variabilidade de sintomatologia da OI, em geral.
1140 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Exames complementares óssea tanto pode aparecer, quer em situações de


osteopénia, quer em situações de hiperostose).
No âmbito da vigilância pré-natal, cabe referir que Na adolescência, a OI deve diferençar-se da
a ecografia fetal poderá não detectar as OI dos osteoporose juvenil (entidade que parece dever-se
tipos I e IV. a diminuição da formação do colagénio I nas vér-
Em situações de história familiar com casos tebras), da homocistinúria, do hipercorticismo, da
recorrentes, a biópsia das vilosidades coriónicas displasia fibrosa e da osteomalácia resultante de
poderá ser utilizada para estudos moleculares ou síndroma da má absorção.
bioquímicos. Nos adultos, o diagnóstico de OI deve conside-
O exame radiográfico pode mostrar sinais de rar-se sempre que se verique fractura patológica,
osteopénia, tais como diminuição da espessura da osteopénia no sexo masculino ou em mulheres na
cortical dos ossos longos, deformações vertebrais, pré-menopausa, ou ainda osteopénia grave em
deformação dos ossos longos e calos de fractura mulheres pós-menopáusicas; nos adultos ainda, o
A densitometria óssea mostra, nos ossos não diagnóstico diferencial estabelece-se fundamen-
fracturados, densidade mineral óssea diminuída. talmente com a osteoporose secundária a neo-
A histopatologia óssea mostra um vasto leque plasias hematológicas, endocrinopatias e osteo-
de sinais de alterações da mineralização, aumento malácia. De salientar a probabilidade de casos
da porosidade cortical e adelgaçamento trabecu- descritos de “osteoporose familiar” constituirem,
lar, assim como alterações da distribuição e orga- de facto, variantes ligeiras de OI.
nização das fibras de colagénio I; contudo, estes
achados sendo inespecíficos, não são utilizados Tratamento
para a fundamentação diagnóstica.
Na prática, o diagnóstico é confirmado pelos O tratamento ortopédico das fracturas, assim
estudos bioquímicos do colagénio utilizando como as medidas de reabilitação incluindo fisio-
fibroblastos cultivdos a partir de biópsia da pele. terapia, são fundamentais para reduzir o impacte
Com efeito, a realização de culturas de fibroblastos da doença sobre a capacidade funcional.
demonstra diminuição da síntese das cadeias pró- Igualmente, há que instruir a família e o doente
α 1 (I) do procolagénio de tipo I, cujo papel para o sobre a necessidade de evitar traumatismos e acti-
diagnóstico não está ainda bem estabelecido. vidades violentas, assim como sobre as medidas
Por vezes, recorre-se à análise de ADN para habituais de urgência (analgesia, imobilização,
identificar a mutação associada ao quadro clínico etc.) antes de observação por especialista de orto-
e, se necessário, uma prova de PCR em membros traumatologia.
da família. As fracturas consolidam com facilidade, não se
acompanhando, em geral, de angulações significa-
Diagnóstico diferencial tivas dos topos; nos casos graves poderá ser neces-
sário tratamento cirúrgico ortopédico.
A presença de fracturas ósseas no período neona- Depois da puberdade há tendência para dimi-
tal implica estabelecer o diagnóstico diferencial nuir a probabilidade de fracturas, para voltar a
com maus tratos físicos, acondroplasia, displasia aumentar nos períodos de gravidez e na pós-me-
tanatófora, ou distrofia torácica asfixiante; a veri- nopausa.
ficação de valores de fosfatase alcalina normais ou ele- Ultimamente tem-se preconizado o uso de
vados na OI neste período permite fazer a destrinça bifosfonatos com o objectivo de aumentar a massa
com hipofosfatasémia. óssea e diminuir a taxa de fracturas; mas não exis-
Na primeira e segunda infância, em função dos tem ainda estudos controlados que permitam
antecedentes, poderá admitir-se a possibilidade de garantir a eficácia de tal medida.Estudos recentes
maus tratos físicos, escorbuto, sífilis congénita, sugerindo a utilização de pamidronato intrave-
hiperostose cortical infantil, osteopetrose, picno- noso nos casos de OI grave demonstraram dimi-
disostose e outras síndromas em que se verifica nuição da taxa de fracturas.
densidade óssea aumentada (de facto a fragilidade A transplantação de células estaminais con-
CAPÍTULO 230 Dentinogénese Imperfeita 1141

230
tendo células de estroma com capacidade de dife-
renciação em osteoblastos está a ser estudada em
crianças com OI do tipo III grave.
A hipoacusia trata-se inicialmente com próte-
ses auditivas sem dispensar, no entanto, em fase
ulterior, tratamento cirúrgico do foro otorrino-
laringológico. DENTINOGÉNESE IMPERFEITA
Complicações Ignacio Villa Elizaga

As complicações mais frequentemente descritas


são do foro cardiorrespiratório (pneumonias re-
correntes, e cor pulmonale) e neurológico (com- Definição
pressão do tronco cerebral, invaginação basilar e
hidrocefalia), entre outras. A dentinogénese imperfeita (DI) é uma alteração
hereditária da formação da dentina que pode
acompanhar por vezes casos de OI do tipo I (situa-
ção conhecida como DI do tipo I).
A DI do tipo II é uma forma autossómica do-
minante, geneticamente independente da OI;
admite-se que possa dever-se a uma mutação do
gene da fosforina, uma glicoproteína implicada na
mineralização da matriz da dentina. De salientar
que o defeito ainda não está devidamente carac-
terizado.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas relacionadas com a


deficiência em dentina incluem alteração da cor
dos dentes definitivos, exibindo aspecto amarela-
do ou castanho-azulado. Existe facilidade de
fractura dentária pelo escasso suporte denti-
nário.
Os dentes deciduais são frequentemente hipo-
tróficos e opalescentes.

Exame radiológico

O aspecto radiográfico dentário é característico,


objectivando-se estreitamento da câmaras pul-
pares, adelgaçamento do esmalte e das raízes, o
que confere um aspecto em “sino”.

Tratamento

O tratamento da DI do tipo I é sintomático, pre-


conizando-se a aplicação de selantes para reduzir
a abrasão da superfície dentária.
1142 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

231
Em situações especiais de abrasões graves
pode estar indicada a realização de implantes se o
leito ósseo o permitir.

SÍNDROMAS
DE EHLERS-DANLOS
Ignacio Villa Elizaga

Definição e importância do problema

As síndromas de Ehlers-Danlos (SED) constituem


um grupo clínica e geneticamente heterogéneo de
afecções do tecido conectivo que partilham, como
característica fundamental, alteração da integri-
dade dos tecidos de suporte do organismo, a qual
tem como consequência hiperelasticidade cutânea,
hipermobilidade articular e fragilidade das estru-
turas teciduais.
Estimando-se uma prevalência aproximada de
1/5.000 indivíduos, independente de sexo,raça ou
área geográfica, as SED são as afecções mais fre-
quentes do tecido conectivo; de referir que, pelo
amplo espectro de manifestações (desde formas
oligossintomáticas a formas exuberantes), algu-
mas formas poderão ser subdiagnosticadas.

Classificação

O Quadro 1 sintetiza as entidades clínicas actual-


mente englobadas no conceito de SED. As formas
mais comuns são as designadas, respectivamente
pelos tipos I, II e III.
As formas clássicas (tipos I-II) caracterizam-se
por hiperelasticidade e fragilidade cutâneas,
assim como hipermobilidade articular. Quase
sempre são hereditárias, com transmissão autos-
sómica dominante.
O tipo III, caracterizando-se por hipermobili-
dade articular quase exclusivamente, tem uma
fraca expressão dérmica, não se verificando fragi-
lidade tecidual.
O tipo IV ou forma vascular,de transmissão
autossómica dominante, corresponde à forma
CAPÍTULO 231 Síndromas de Ehlers-Danlos 1143

QUADRO 1 – Classificação das síndromas de Ehlers-Danlos

Grupo/Tipo Fenótipo Gene* Transmissão Alterações moleculares


/Etiopatogénese
I Hiperelasticidade cutânea +++ e arti- COL5A1, AD Defeitos nas cadeias alfa1
Clássico cular +++, fragilidade vascular ++ COL5A2 e alfa2 do colagénio V
II Hiperelasticidade cutânea ++ e articu- Idem AD Idem
Clássico ligeiro ('mitis') lar ++, fragilidade vascular +
III Hiperelasticidade cutânea + e articu- COL5A3? AD Desconhecidas
Hipermobilidade cuta- lar +++, fragilidade vascular +,
neoarticular benigna artropatia mecânica
IV Hiperelasticidade articular +, fragili- COL3A1 AD Colagénio III anómalo, ou
Vascular dade vascular ++++, rotura visceral, redução da sua
uterina e vascular síntese
V Hiperelasticidade cutânea + e articu- Desco- Ligada ao Desconhecidas
lar +, fragilidade vascular + nhecido cromossoma
X
VI Hiperelasticidade cutânea +++ e arti- PLOD1 AR Défice de lisil-
Cifoscoliótico-ocular cular +++, fragilidade vascular ++, (tipo VI A) hidroxilase
hipotonia, cifoscoliose, (tipo VI A)
fragilidade ocular, escleróticas azuis
VII A Hiperelasticidade cutânea ++ e articu- COL1A1, AD Perda do telopéptido
Artrocalázico lar ++/+++, fragilidade vascular + COL1A2 amino-terminal de cadeias
VII B idem alfa do colagénio I
VII C Hiperelasticidade articular ++/+++, ADAM- AR Défice de proteinase do
Dermatosparaxis fragilidade cutânea ++++ e vascular + TS2? procolagénio I N-terminal
(5q35) (VII C)
VIII Hiperelasticidade cutânea + e articu- Desco- AD Desconhecidas
Periodontótico lar ++, fragilidade vascular ++, nhecido
periodontite precoce
X Hiperelasticidade cutânea + e articu- Desco- AR Défice de fibronectina
Associado a disfunção lar ++, fragilidade vascular +, dis- nhecido
plaquetária função plaquetária, petéquias
XI Hiperelasticidade articular +++, Desco- AD Desconhecidas
Hipermobilidade articu- artropatia mecânica nhecido
lar familiar benigna
Progeróide Hiperelasticidade cutaneoarticular, XGALT1 Esporádica Défice de galactosil-trans-
atraso mental, baixa estatura, aspecto ferase I
progérico, periodontite
* Implicado com maior frequência
AD: Autossómica dominante. AR: Autossómica recessiva. (Adaptado de: Steinmann B, Royce PM, Superti-Furga A, 2002)

mais grave: fragilidade vascular e tecidual impor- hipotrófica (fina, frágil e translúcida), sendo que a
tantes conduzindo a ruptura espontânea de hipermobilidade articular somente afecta as
artérias e intestino, do que resulta diminuição da pequenas articulações.
esperança de vida. Nas mulheres grávidas um dos O tipo VI ou cifoscoliótico, caracteriza-se por
riscos é a ruptura uterina. hiperelasticidade cutânea, hipermobilidade arti-
Ao contrário do que acontece nas formas clás- cular, hipotonia muscular neonatal grave, cifosco-
sicas, no tipo IV a pele não é hiperelástica,mas sim liose progressiva, (hábito semelhante ao da síndro-
1144 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ma de Marfan), e osteopénia. Poderá ocorrer rup- Tal hipermobilidade pode ser objectivada
tura do globo ocular e das grandes artérias. A here- mediante a escala de Beighton, baseada em cinco
ditariedade é autossómica recessiva, distinguindo- manobras exploratórias: a) a extremidade do pri-
se dois subtipos: subtipo A (SED VI-A) associado a meiro dedo da mão pode ser colocada de modo
deficiência de colagénio lisil-hidroxilase; e o subtipo passivo sobre a face anterior do antebraço (1
B (SED VI-B), sem a citada deficiência. ponto para cada lado); b) a dorsiflexão passiva do
O tipo VII também engloba três subtipos (VII- 5º dedo da mão é inferior a 90º (1 ponto para cada
A, VII-B e VII-C); os dois primeiros, designados mão); c) o cotovelo hiperestende-se mais de 10º (1
artrocalázicos, caracterizam-se por hipermobili- ponto para cada cotovelo); d) o joelho hiperesten-
dade articular grave generalizada, luxação con- de-se mais de 10º (1 ponto para cada joelho); e) a
génita bilateral da coxofemoral, compromisso dér- flexão do tronco com os joelhos em extensão per-
mico moderado e osteopénia.Transmitem-se de mite que as palmas se estendam no solo (1 ponto).
forma autossómica dominante . Com base nestes parâmetros de avaliação, con-
O subtipo VII-C ou dermatosparaxis caracteri- sidera-se hipermobilidade nos casos com pontua-
za-se por pele frágil e redundante, hérnias de ções iguais ou superiores a 5/9.
grandes dimensões, laxidão articular e sinais dis- Os pés planos e a escoliose fazem também
mórficos; transmite-se de modo autossómico parte das manifestações articulares das SED.
recessivo. Poderá verificar-se igualmente osteopénia.
Descreveu-se uma forma progeróide de SED
caracterizada por hiperlaxidão cutaneoarticular, Outras
atraso mental, estatura baixa, aspecto simile A fragilidade das estruturas vasculares explica o
progéria e periodontite. frequente aparecimento de hematomas secundá-
Actualmente debate-se a existência indepen- rios a traumatismos mínimos, assim como o
dente doutras variedades de SED: o tipo V de aumento do tempo de hemorragia e a tendência
transmissão ligada ao sexo, a forma VIII ou peri- hemorrágiaca em intervenções cirúrgicas e
odontótica, a forma X associada a deficiência de extracções dentárias
fibronectina, e outras formas inespecíficas. Na SED I podem surgir prolapso mitral e hér-
A síndroma de Menkes, anteriormente classifi- nias viscerais.
cada como SED IX, já não se inclui hoje neste grupo. Na SED VI por vezes verifica-se o aparecimen-
to de escleróticas azuis, podendo produzir-se rup-
Manifestações clínicas tura do globo ocular com traumatismos mínimos.
Na SED IV o maior risco é a ruptura espon-
Cutâneas tânea de artérias e vísceras ocas, assim como a
A pele é fina, de aspecto atrófico e hiperelástica, ruptura uterina durante a gravidez.
excepto na SED IV. Verifica-se pregueamento exces-
sivo da pele ao deslizar-se o dedo do observador Exames complementares
sobre a mesma, voltando à posição inicial ao cessar
o estiramento,ao contrário do que acontece com a O diagnóstico baseia-se na clínica. Em casos espe-
cutis laxa em que o pregueamento se mantém. ciais recorre-se á biópsia cutânea para análise da
(Capítulo 231) ultrastrutura do colagénio mediante microscopia
Nas áreas de atrito, como cotovelos, joelhos ou electrónica, análise da produção de colagénio V
regiões pré-tibiais, a pele tem aspecto brilhante, anómalo por cultura de fibroblastos, ou detecção
por vezes hiperpigmentada, com frequentes cica- de mutações genéticas.
trizes de aspecto papiráceo ou de papel de fumar. Em função do contexto clínico e perante sus-
peita de osteopénia poderá proceder-se a absor-
Articulares e ósseas ciometria DEXA.
A hipermobilidade articular, característica da A arteriografia está contraindicada.
doença, predispõe a lesões ligamentosas e luxações Na SED IV deve proceder-se ao ecocardiograma
recidivantes que poderão conduzir a artroses. com periodicidade para excluir aneurisma aórtico.
CAPÍTULO 232 Síndroma de Alport 1145

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial faz-se com a síndroma


de Marfan, síndromas de hipermobilidade articu-
lar familiar, síndroma de Larsen, osteogénese
imperfeita e artroftalmia hereditária de Stickler,
232
entre outras entidades (Capítulo 228). SÍNDROMA DE ALPORT
Tratamento Ignacio Villa Elizaga

Não existindo tratamento específico, as medidas


exequíveis dizem respeito a tratamento de suporte
e a tratamento das complicações. Definição, importância do problema
Nesta perspectiva recomenda-se protecção e etiopatogénese
mecânica das áreas de atrito, evicção de desportos
e de actividades com risco de traumatismo, pro- A síndroma de Alport (SA) é uma doença genética
moção de exercícios de descarga (natação) para rara caracterizada por nefropatia, frequentemente
fortalecer a musculatura e melhorar a estabilidade associada a surdez neurossensorial; nalgumas
articular. famílias têm sido relatados casos de amaurose.
A reparação cirúrgica das lesões e distensões A sua incidência é estimada em 1-2/10.000
ligamentosas graves é difícil, uma vez que os li- indivíduos.
gamentos suturados cicatrizam com dificuldade o Na maioria das situações comprovou-se trans-
que obriga a reter os pontos de sutura o dobro do missão hereditária autossómica dominante ligada
tempo habitual. ao cromossoma X, sendo o respectivo quadro clíni-
Alguns autores preconizam o uso de desmo- co mais grave e de mais rápida progressão no sexo
pressina para o tratamento de hemorragias peri- masculino; numa minoria de casos, o modo de
operatórias. transmissão é recessivo, sem distinção quanto a
Nos casos de osteopénia confirmada está indi- gravidade entre sexos. (Parte XIX)
cada a administração de vitamina D. A SA é causada por mutações no gene
Haverá que informar as mulheres grávidas e COL4A5, o qual codifica a síntese da cadeia α-5 do
os médicos obstetras sobre o risco de ruptura ute- colagénio IV, específica da membrana basal.
rina nos casos de SED IV. Nas formas recessivas descreveram-se
Na actualidade estuda-se a possibilidade de mutações nos genes COL4A3 e COL4A4, respon-
terapia génica nos casos de SED de tipo VI. sáveis pela codificação das cadeias α-3 e α-4 do
colagénio de tipo IV.

Manifestações clínicas

As manifestações clínicas são variadas.


Na forma clássica autossómica dominante li-
gada ao cromossoma X é característica a aparição,
antes dos 10 anos, de micro-hematúria ou he-
matúria franca, verificando-se ulteriormente alte-
rações do sedimento urinário e insuficiência renal
progressiva que poderá atingir fase terminal entre
a adolescência e os 40 anos.
Quanto à hipoacúsia, trata-se de anomalia de
percepção afectando inicialmente as frequências
altas.
1146 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

233
Estão descritos casos raros, associados a SA, de
leiomiomas do esófago, tracto respiratório inferior
e genital feminino.

Exames complementares

A suspeita de SA é clínica. Para a confirmação tor- EPIDERMÓLISE BOLHOSA


nam-se fundamentais os dados morfológicos obti-
dos através de estudo por microscopia electrónica Ignacio Villa Elizaga
da membrana basal glomerular evidenciando
áreas de menor espessura alternando com áreas
mais espessas, e granulações densas (aspecto em
“tela de cesto”). Definição e importância do problema

Tratamento A epidermólise bolhosa (EB) engloba um grupo


heterogéneo de situações hereditárias de gravi-
Não existe tratamento específico; a diálise está dade variável caracterizadas pela formação de
indicada nos casos de insuficiência renal. Nas for- bolhas dérmicas em resposta a traumatismos mí-
mas de insuficiêcia renal irreversível a transplan- nimos. A fragilidade da pele está relacionada com
tação renal é procedimento que tem permitido mutações em genes que codificam diversas proteí-
bons resultados. nas estruturais, intra ou extracelulares, as quais
são responsáveis pela resistência mecânica do teci-
do dérmico. A incidência é cerca de 1/50.000
recém-nascidos vivos, salientando-se que ambos
os sexos e todas as raças são afectados por igual.

Manifestações clínicas

A EB compreende três subtipos fundamentais de


acordo com a expressão clínica e o local da união
dermoepidérmica onde se forma a lesão típica : a
bolha. (Figura 1)

FIG. 1
Epidermólise bolhosa em RN (URN/HDE).
CAPÍTULO 233 Epidermólise bolhosa 1147

EB simples res, na clínica, na biópsia da pele e, eventualmen-


Neste subtipo (EB de Koebner) a bolha é intra- te, na análise genética.
epidérmica, formando-se entre as células basais O diagnóstico diferencial estabelece-se com
da epiderme como consequência da citólise dos outras dermatoses vésico-bolhosas: pênfigo, der-
queratinocitos basais os quais, juntamente com as matite herpetiforme, penfigóide, varicela bolhosa,
respectivas proteínas de união, evidenciam defei- pênfigo estafilocócico, etc..
tos estruturais.
Os sinais são evidentes no período neonatal, Tratamento
mais frequentemente nas mãos, pés, cotovelos,
joelhos e coiro cabeludo. Não existe tratamento específico.Recomenda-se
O prognóstico é bom, observando-se diminui- higiene da pele, evicção de traumatismos e pro-
ção da formação de bolhas com a idade. tecção mecânica das zonas de pressão.
Este subtipo está associado a alterações nos Quando se verifica a existência de bolhas ou
genes das queratinas (5 e 14) e da plectina. feridas, deve proceder-se à limpeza da pele em
condições de antissépsia(clorexidina a 0,2%, povi-
EB da união ou EBU dona iodada e, em certos casos, unguento de
Trata-se dum subtipo muito heterogéneo pela grande antibiótico).
variabilidade de manifestações clínicas, oscilando Para minorar as deformações poderão estar
entre a variedade Herlitz, letal antes dos 2 anos de indicadas, fisioterapia e eventual cirurgia plástica
vida, e formas de progressão muito lenta, manifes- reconstrutiva.
tadas na idade escolar, com cura sem formação de
cicatrizes; a bolha forma-se na lamina lucida.
Pode haver associação a anomalias dentárias,
ungueais e a alopécia.
A EBU é explicável por alterações nos genes da
laminina 5, α 6 e β 4-integrina, e colagénio XVII.

EB distrófica ou EBD
Neste subtipo de gravidade variável, as bolhas de
conteúdo sero-hemorrágico formam-se sob a
membrana basal; são explicáveis, por anomalias
das fibrilhas do colagénio VII e doutras estruturas.
As lesões, conduzindo mais tarde a cicatrizes e
por vezes a mutilações, são mais frequentes nas
palmas das mãos e plantas dos pés.
A EBD está associada a mutações em COL7A1.

Manifestações extradérmicas
Na EB podem aparecer manifestações nos olhos,
mucosas orificiais, tracto digestivo ou génito-
urinário, e músculos.
As bolhas e cicatrizes orofaríngeas e gastre-
sofágicas podem associar-se a complicações gra-
ves e causar infecções secundárias, anemia e
desnutrição.

Diagnóstico

O diagnóstico baseia-se nos antecedentes familia-


1148 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

234
morbilidade cardiovascular, salientando-se que o
diagnóstico e terapêutica precoces melhoram a
taxa de complicações e a sobrevivência.

Manifestações clínicas

SÍNDROMA DE MARFAN E Músculo-esqueléticas


Os achados mais característicos são: altura exces-
ARACNODACTILIA CONGÉNITA siva para a idade (acima do percentil 97), peso
inferior ao percentil 50 (devido a massa muscular
Ignacio Villa Elizaga globalmente diminuída), dolicostenomelia (extre-
midades longas e delgadas) e aracnodactilia
(dedos longos e delgados). A razão entre o seg-
mento corporal superior (medido pela distância
1. SÍNDROMA DE MARFAN entre a cabeça e sínfise púbica) e o segmento cor-
poral inferior (sínfise púbica–solo) é superior a 2
Definição desvios-padrão abaixo da média para a raça e
idade, como reflexo do grande comprimento das
A síndroma de Marfan (SM) é uma afecção do teci- extremidades inferiores. (Figura 1)
do conectivo resultante de anomalia da síntese de
fibrilina-1; é caracterizada essencialmente por ano-
malias oculares, cardiovasculares e músculo-
esqueléticas.

Etiopatogénese

Salienta-se que a fibrilina – 1 é uma glicoproteína


que abunda nos tecidos elásticos e não elásticos, e
parece desempenhar um papel importante na for-
mação e estabilidade das fibras elásticas, as quais
são componentes fundamentais de artérias, estru-
turas oculares, esqueleto, pulmões e pele.
Todos os casos são heterozigóticos para
mutações no gene FBN1 localizado em 15q15-q21
que codifica a síntese da referida fibrilina – 1.
Conhecem-se cerca de 150 mutações de FBN1
em doentes com SM, sendo que cerca de 20% dos
casos correspondem a mutações “de novo”.

Importância do problema

Surge com uma frequência de 1-2/10.000 indiví-


duos, afectando ambos os sexos igualmente. Em
cerca de 75% dos casos verifica-se transmissão
autossómica dominante com uma penetrância
elevada, ainda que variável dentro de cada
família; os restantes cerca de 25% dos casos são de
FIG. 1
aparecimento esporádico.
A sua maior importância deriva, sobretudo, da Síndroma de Marfan: aspecto geral do fenótipo. (NIHDE)
CAPÍTULO 234 Síndroma de Marfan e aracnodactilia congénita 1149

O hipercrescimento metacárpico (e a hipermo- Cardiovasculares


bilidade articular) pode ser demonstrado pelo Constituem os achados mais graves e a principal causa
sinal do polegar que ultrapassa o bordo cubital da de morbimortalidade.
mão quando em oposição sobre a palma, e pelo É muito frequente o aparecimento de prolapso
sinal do pulso verificado pela sobreposição do mitral associado a arritmias, progredindo para in-
polegar e do 5º dedo quando estes dedos contor- suficiência mitral franca em cerca de 25% dos
nam o pulso. (Figura 2) casos.
As costelas são mais compridas que o normal, A dilatação dos seios de Valsalva e da raiz aór-
causando protusão condrocostal e deformidade tica pode resultar em insuficiência valvular aórti-
esternal (pectus excavatum, pectus carinatum ou ca, ruptura aórtica, enfarte do miocárdio, tampo-
combinação de ambos). namento cardíaco e morte súbita.
É habitual a presença de dolicocefalia, abóbada
palatina estreita e elevada, hipognatia e/ou retrogna- Outras
tia, malares planos e hipoplásicos que propor- Podem observar-se ainda as seguintes alterações:
cionam uma expressão lúgubre. estrias cutâneas atróficas, hipotrofia e anomalias
A coluna vertebral pode ser sede de diversas de distribuição do tecido adiposo e, na idade adul-
anomalias: escoliose (que, combinada com a ta, obesidade de tipo centrípeto, localizada sobre-
deformidade torácica atrás descrita, pode resultar tudo na região das ancas.
em síndroma restritiva torácica), espondilolistese, O pneumotórax espontâneo devido a ruptura
instabilidade da coluna cervical por laxidão liga- parenquimatosa pulmonar, com ou sem defor-
mentosa, e ectasia dural (caracterizada por adel- mação torácica, é frequente.
gaçamento das lâminas vertebrais de L4 a S2, Por fim, cabe citar a maior frequência de hér-
alargamento do canal neural e proeminência da nias em relação à população normal.
dura-máter no mesmo, assim como alargamento
dos foramen neurais). Diagnóstico e exames
Pode surgir hiperlaxidão articular e desen- complementares
volvimento de pés planos ou pés cavos com pos-
sibilidade de artrose da anca e joelho na idade O diagnóstico clínico é óbvio face à coexistência
adulta. de achados como: dolicostenomelia, aracnodacti-
lia, luxação do cristalino e dilatação aórtica, asso-
Oculares ciados em geral a antecedentes familiares.
Os globos oculares são alongados com consequen- Havendo suspeita de SM e antecedentes fami-
te miopia (a mais frequente anomalia ocular); em mais liares, torna-se fundamental proceder a exame
de metade dos casos aparece ectopia ou luxação ocular com lâmpada de fenda, ecocardiograma e
do cristalino, habitualmente bilateral, devida a ECG.
laxidão dos ligamentos suspensores. Em função do contexto clínico de cada caso con-
creto, o diagnóstico diferencial poderá ter de ser
feito com síndromas de Klinefelter, de Stickler, de
Ehlers-Danlos e outras fibrilinopatias (ver adiante).
Raramente se recorre a técnicas de análise
molecular; tais técnicas detectam as mutações do
gene FBN1 com uma sensibilidade de 90%.

Tratamento

O objectivo fundamental é prevenir ou retardar o


aparecimento de dissecção ou ruptura aórtica;
FIG. 2
nesta perspectiva, alguns autores sugerem o uso
Síndroma de Marfan: Sinais do pulso e do polegar. (NIHDE) sistemático de betabloqueantes como prevenção.
1150 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

235
Em determinados casos está indicado o trata-
mento cirúrgico da dilatação aórtica para evitar
dissecção ou insuficiência mitral.
As técnicas de tratamento médico-cirúrgico
permitiram duplicar a expectativa de vida , ele-
vando-se a 65 anos.
Sempre que sejam detectadas anomalias CUTIS LAXA, PSEUDOXAN-
valvulares ou da raiz aórtica é recomendada a
profilaxia antibiótica da endocardite. TOMA ELÁSTICO E SÍNDROMA
A luxação do cristalino também pode requerer
cirurgia. DE WILLIAMS
A escoliose requer fisioterapia e, por vezes,
tratamento cirúrgico. Ignacio Villa Elizaga
As deformações torácicas também poderão
requerer tratamento cirúrgico.
As actividades que levem a descompressões
bruscas, pelo risco de pneumotórax, devem ser 1. CUTIS LAXA
desaconselhadas (subida em ascensores muito
rápidos, viagens em aviões não pressurizados, etc.). Definição

O termo cutis laxa engloba um grupo heterogéneo


2. ARACNODACTILIA CONGÉNITA de situações clínicas secundárias a alterações ge-
néticas da síntese da elastina originando síndro-
A aracnodactilia congénita, entidade semelhante à mas com expressão dérmica e/ou vascular. Pela
SM, mas com contracturas e manifestações pre- presença de pele flácida e não elástica verifica-se
dominantemente esqueléticas, é causada por diminuição, fragmentação e distensão das fibras
mutações no gene FBN2 que codifica a síntese da elásticas dérmicas e, ocasionalmente, viscerais.
fibrilina-2.
Relativamente aos exames complementares Manifestações clínicas
tem cabimento nesta situação (aracnodactilia con-
génita) o que foi referido a propósito da SM. A manifestação fundamental é o desenvolvimento
de grandes pregas cutâneas laxas. (Figura 1)
A alteração da forma e da função de proteínas Descrevem-se duas formas congénitas:
da família das fibrilinas está na base da génese 1) A mais frequente, mais grave e de início pre-
doutras situações semelhantes à SM, tais como o coce transmite-se de modo autossómico recessivo,
prolapso familiar da válvula mitral, o fenótipo englobando por sua vez 2 subtipos em relação
MASS (prolapso mitral, miopia, dilatação aórti- respectivamente com mutação dos genes FBLN5 (e
ca,estrias cutâneas e alterações esqueléticas), a a chamada fibulina 5) e ATP6VOA2. Como sinais
dilatação e/ou dissecção aórtica familiar, a ectopia mais típicos destacam-se grandes pregas dérmicas
lentis familiar, a estatura elevada familiar e a sín- laxas, aspecto de envelhecimento prematuro, voz
droma de Shprintzen-Goldberg (quadro congéni- de baixa tonalidade e disfonia devidas a alteração
to raro em que predominam alterações músculo- da elasticidade das cordas vocais. Os sinais viscerais
esqueléticas e dilatação aórtica associadas a cra- incluem hérnias (Figura 2), divertículos, prolapso
niossinostose). vaginal ou rectal, enfisema pulmonar, aneurismas
Alguns autores propuseram as designações de aórticos e/ou estenose da artéria pulmonar. Outros
microfibrilopatias ou fibrilinopatias para as achados englobam: antecedentes de restrição de
afecções atrás mencionadas. crescimento intrauterino, baixa estatura, alterações
esqueléticas e cárie dentária grave. Os doentes fale-
cem habitualmente na idade adulta jovem.
CAPÍTULO 235 Cutis laxa, pseudoxantoma e síndroma de Williams 1151

FIG. 1
Cutis laxa em lactente: pregueamento da pele mantido ao cessar o estiramento.

a eritema ou dermatite generalizada, e a urticária


associada a picada de aranha.

Diagnóstico diferencial

O diagnóstico diferencial, por vezes difícil, faz-se


com o pseudoxantoma elástico e com síndromas
de Ehlers-Danlos.

Tratamento

Não existe tratamento específico; em casos selec-


cionados pode estar indicada a cirurgia plástica
com resultados variáveis, existindo a probabili-
dade de recidiva local.

FIG. 2
2. PSEUDOXANTOMA ELÁSTICO
Aspecto de fenótipo da cutis laxa congénita em adolescente;
são notórias hérnias inguniais. (NIHDE) Definição

2) A forma menos frequente, com o modo de O pseudoxantoma elástico, alteração da síntese da


transmissão autossómico dominante, em relação elastina, é uma afecção hereditária heterogénea
com genes ELN (e elastina) e FBLN5 (e fibulina 5). caracterizada por calcificação das estruturas elás-
É mais benigna, podendo manifestar-se em qual- ticas dérmicas e vasculares.
quer idade. Associa-se ao aparecimento de enfise- Com uma frequência de cerca de 1/100.000 nado-
ma pulmonar precocemente. vivos, está associada a um defeito génico no braço
A forma adquirida pode manifestar-se na curto do cromossoma 16 (16p13.1), transmitindo-se,
infância ou no adulto, sendo em geral, secundária na sua maioria, de forma autossómica recessiva.
1152 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Manifestações clínicas cémia, atraso mental e dismorfia, sendo a frequên-


cia cerca de 1/20.000 indivíduos.
As manifestações iniciam-se na infância ou adoles- A maioria dos casos deve-se a alterações de
cência: aparecimento de lesões cutâneas xantoma- novo do gene da elastina e de genes adjacentes,
tosas nas áreas de flexão e nas mucosas, estrias sendo habitual uma deleção do braço longo do
angióides oculares por ruptura da membrana elásti- cromossoma (7q11.23).
ca de Bruch, hemorragias, degenerescência macular
e neovascularização retiniana; salienta-se ainda Manifestações clínicas
compromisso valvular e arteriopatia oclusiva dos
grandes vasos com hipertensão secundária. Como manifestações fundamentais são descritas:
A esperança de vida está diminuída por com- fácies típica de “duende” (crânio com depressão
plicações vasculares, sendo que as alterações do bitemporal, hipoplasia facial média, hiperteloris-
globo ocular poderão conduzir à amaurose. mo, nariz arredondado, má oclusão dentária e
dentes hipolásicos, baixa estatura, défice ponde-
Diagnóstico ral, e atraso mental moderado (ainda que com
grande sociabilidade e capacidade auditiva- musi-
O diagnóstico realiza-se mediante biópsia dérmi- cal muito notória).
ca a qual evidencia sinais de depósitos cálcicos em Outras manifestações incluem: arteriopatia
fibras elásticas fragmentadas, degeneradas e dis- (estenose pulmonar, estenose aórtica supravalvu-
torcidas. lar), hiperlaxidão, contracturas articulares, nefro-
O diagnóstico diferencial estabelece-se funda- calcinose, hipotonia, etc..
mentalmente com o líquen escleroatrófico e a
esclerodermia. Tratamento

Tratamento Não existe tratamento específico; as medidas a


aplicar incluem tratamento sintomático e reabili-
Não existe tratamento curativo, podendo, no tação com o objectivo de integração social.
entanto, ser combatidos os factores de risco car-
diovascular, assim como proceder-se ao tratamen- BIBLIOGRAFIA (ParteXXIV)
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PARTE XXV
Ortopedia
1156 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

236
Devido às particularidades anátomo-fisiológi-
cas do esqueleto da criança e adolescentes que os
tornam distintos do adulto, adquire nessas idades
o estatuto de sector especializado – a Ortopedia
Pediátrica – com diferenciação e individualidade
próprias dentro da actividade ortopédica geral,
INTRODUÇÃO À ORTOPEDIA constituindo o objectivo temático da presente
Parte deste Tratado.
PEDIÁTRICA Entre as referidas particularidades, a mais
importante e típica destas idades será o cresci-
J. de Salis Amaral mento, como capacidade intrínseca e única do
esqueleto infantil, desde a origem, para aumentar
as suas dimensões e modelar a sua morfologia até
assumir por completo, no final da adolescência, as
Conceitos fundamentais características do esqueleto do adulto.
Este crescimento, apesar das variações de
Etimologicamente e tal como foi escrito pela velocidade com que se efectua, dependentes, entre
primeira vez por Nicolas Andry em meados do outras circunstâncias, da idade cronológica da
século XVIII, no título de um tratado que escreveu criança e da região anatómica considerada, reali-
sobre a correcção das deformidades na criança, za-se de forma permanente, desde o aparecimento
Ortopedia significa: “arte de corrigir, nas crianças, do esboço ósteo-articular primitivo, cerca da oita-
as deformidades do corpo”. Rapidamente, porém, va semana da gestação, até à completa maturi-
estendeu-se este termo ao estudo e tratamento de dade esquelética; por isso, o crescimento repre-
outros tipos de patologia com repercussão domi- senta um factor condicionante básico de toda a
nante sobre o esqueleto, sem distinção da idade patologia ortopédica na idade pediátrica.
do doente, e generalizou-se a partir do final do Assim, face a determinada situação patológica
século XIX a toda a patologia do aparelho loco- ortopédica, tratando-se de um organismo em cres-
motor. Na actualidade, embora a denominação cimento e desenvolvimento, às alterações primá-
deste ramo da Medicina se tenha mantido inalte- rias decorrentes da própria lesão músculo-
rada, traduz um âmbito muito mais amplo, esquelética, há que associar sempre uma avaliação
podendo-se definir, de forma abreviada, e de acor- do potencial de crescimento remanescente no se-
do com a Academia Americana de Cirurgia gmento anatómico afectado, porque dele depende
Ortopédica, como “a especialidade que com- a magnitude e o tipo das alterações secundárias
preende o diagnóstico, tratamento, reabilitação e resultantes da referida lesão. Este potencial tanto
prevenção das lesões e doenças do sistema mus- pode actuar em desfavor como em benefício do
culo-esquelético”. doente, o que significa a possibilidade de originar
Este sistema músculo-esquelético desempenha e agravar deformidades, ou de as prevenir e corri-
basicamente três tipos de funções primordiais: a gir se, pelo contrário, for bem aproveitado e con-
de depósito e reserva de elementos indispensáveis duzido.
à vida do organismo, de suporte e protecção de A ambivalência deste factor dá relevância a
estruturas nobres importantes, e a de protagonista uma outra característica importante e bem visível
na postura e na mobilidade dos diferentes seg- da Ortopedia Pediátrica, na sua vertente terapêu-
mentos anatómicos em que habitualmente dividi- tica; referimo-nos à prevenção das alterações ou
mos o corpo humano. deformidades do crescimento. Como é evidente,
Em virtude desta sua última função, cumpre um esta prevenção (que, em determinadas circunstân-
papel fundamental na locomoção e, através dela, na cias poderá ser possível na fase pré-natal), será
vida de relação do indivíduo de qualquer idade, sempre muito mais fácil de executar e com resul-
contribuindo na criança, de forma secundária mas tados mais gratificantes do que a correcção das
determinante, para o seu desenvolvimento. deformidades, uma vez estabelecidas.
CAPÍTULO 236 Introdução à Ortopedia Pediátrica 1157

Ainda no que se refere ao tratamento destas mente com as cartilagens de crescimento, para o
situações, seja ele preventivo ou curativo, será aumento gradual das dimensões e forma da peça
conveniente salientar a necessidade de o equa- óssea correspondente. Nos ossos longos, protago-
cionar sempre também numa perspectiva de nistas do crescimento do esqueleto na sua dimen-
longo prazo, para a eventualidade de futuras são mais aparente, ou seja, em comprimento, entre
exigências terapêuticas adicionais na idade adulta as distintas cartilagens de crescimento existentes,
que podem ficar comprometidas se ignorarmos ou as mais importantes do ponto de vista fisiopa-
minimizarmos esta condição. tológico e clínico, são as chamadas cartilagens de
Na presente Parte optou-se por uma abor- conjugação. Trata-se de estruturas com alto nível
dagem sucinta das situações mais comuns que de diferenciação histológica e funcional, respon-
afectam o sistema músculo-esquelético, dividin- sáveis pelo crescimento longitudinal do osso,
do-a em dois sectores. No primeiro faremos algu- localizadas nas respectivas metáfises e interpostas
mas considerações sumárias sobre factores de no tecido ósseo; aquelas constituem, pela sua
ordem geral, relativos às características do es- natureza cartilagínea, um segmento de menor
queleto da criança e à sintomatologia habitual da resistência mecânica, susceptível de se fracturar
sua patologia, para, no segundo sector, subdividi- ou descolar do tecido ósseo subjacente, dando
do em duas secções, nos referirmos à patologia assim origem a transtornos do crescimento, de
não traumática e traumática deste grupo etário. gravidade variável. Se, como dissémos, as pode-
Na impossibilidade evidente de nos alongarmos mos considerar estruturas frágeis do ponto de
nestas considerações, tivémos como objectivos vista mecânico, por outro lado, ao estarem inter-
essenciais transmitir os aspectos práticos que per- postas no tecido ósseo desta zona anatómica dos
mitam chegar ao diagnóstico correcto da situação ossos longos, servem habitualmente de barreira à
e a uma avaliação das suas consequências, pro- expansão de lesões de natureza infecciosa ou
porcionar a informação básica relativa à terapêuti- tumoral localizadas na sua vizinhança.
ca adequada, e prover orientações para o enca- As referidas características do esqueleto infan-
minhamento atempado dos doentes para o espe- til, cujo potencial é máximo à nascença, vão-se
cialista. atenuando gradualmente com a idade, acabando
por desaparecer no final da adolescência, quando
Considerações gerais sobre semiologia o indivíduo atinge a idade adulta.
Passando agora à abordagem dos aspectos
O esqueleto na idade pediátrica distingue-se do semiológicos revelados por um exame clínico ade-
esqueleto do adulto, conforme já dissémos, por quado, importa considerar que, se a qualidade
apresentar um determinado número de caracterís- deste exame é fundamental na prática clínica de
ticas que o individualizam no seu comportamento qualquer especialidade, na Ortopedia tem uma
não só fisiológico, habitual, como também na importância capital porque, com frequência, dá-
forma como responde às agressões que o atingem. nos de imediato o diagnóstico, ou para ele nos
As mais importantes são: a sua maior elasticidade, orienta, conseguindo-se chegar a uma conclusão
uma grande capacidade de remodelação, a pre- acertada mediante o recurso a poucos e simples
sença de um periósteo espesso e a existência das exames complementares. Na Ortopedia Pediátri-
cartilagens de crescimento, nomeadamente das ca, embora esta característica se mantenha, ao
chamadas cartilagens fisárias, de conjugação ou abranger doentes numa faixa etária em que se pro-
simplesmente fises. duzem profundas transformações orgânicas e
Se as primeiras lhe permitem ter uma maior comportamentais, esse exame assume aspectos
plasticidade, adaptando-se melhor às forças a que particulares e impõe condicionalismos a que de-
se encontra sujeito, mantendo ou readquirindo a vemos atender.
configuração que lhe é própria, a espessura do Assim, na observação clínica de uma criança
periósteo, além de constituir um invólucro robus- pequena, quase sempre irrequieta ou amedronta-
to do tecido ósseo subjacente, contribui, pela sua da, não é possível aplicar a metodologia habitual,
grande capacidade de regeneração óssea, junta- longa e exaustiva, utilizada no exame do adulto.
1158 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Requerem-se por isso, da parte do médico, imagi- velha e no adolescente, já será possível e obri-
nação e experiência para saber seleccionar rapida- gatório investigar a localização exacta da dor e sua
mente, a partir da história, o conjunto de manobras eventual irradiação.
exploratórias, de execução simples e breve, ade- A sua duração e natureza, bem como as cir-
quadas à detecção da causa das queixas actuais. cunstâncias que determinaram o seu aparecimen-
Por outro lado, é preciso saber que a sintoma- to e as que a aliviam ou a agravam, interferindo
tologia de determinadas situações patológicas ou não com o sono (esclarecendo-nos sobre a sua
nem sempre se revela de forma constante no intensidade e permanência), são outros tantos
decurso das várias etapas do crescimento; por aspectos que interessa averiguar, por serem orien-
exemplo, as infecções dos discos intervertebrais tadores de um possível diagnóstico. Assim, por
(discites) na criança pequena podem manifestar- exemplo, uma dor persistente, sem causa apa-
se inicialmente por uma incapacidade para a mar- rente, não muito intensa, localizada na zona
cha; mais tarde, apenas por alterações do estado metafisária e prolongando-se ao longo de sema-
geral; e, na adolescência, por dor local na coluna nas, pode ser sugestiva de lesão tumoral. A dor
vertebral. Portanto, o exame clínico deverá ser aguda, intensa, pulsátil, justa-epifisária ou arti-
realizado tendo sempre em conta, não só a suspei- cular faz suspeitar de lesão inflamatória ou infec-
ta da patologia em causa, como também a idade ciosa.
do doente. Quanto à deformidade, tomada no sentido
Reportando-nos agora apenas aos sinais e sin- lato de alteração da forma ou da aparência habi-
tomas locais das afecções ortopédicas, e abstrain- tual, tanto dos membros como do tronco (ou de
do dos sintomas gerais eventualmente associados, qualquer um dos seus segmentos anatómicos), é
são três os achados semiológicos principais, bási- necessário sublinhar que a criança se adapta facil-
cos, habitualmente presentes neste tipo de situa- mente à mesma, contrariamente ao que se passa
ções: dor, deformidade e impotência funcional. É no adulto, não lhe causando em geral grande limi-
porém evidente que em Pediatria, a comprovação tação funcional.
exacta do predomínio relativo de qualquer um Os pais são os primeiros a detectá-la e a for-
deles será muito variável, dependendo não só do necerem toda a informação desejada, mas é im-
tipo da doença e sua fase de evolução, como tam- portante caracterizar bem o que, neste âmbito, se
bém até da capacidade de avaliação e comuni- entende por patológico, principalmente no caso
cação das queixas por parte do próprio doente, o de este tipo de queixas surgir isolado. Com gran-
que estará em relação directa com a idade e de frequência os pais recorrem ao médico porque
respectivo desenvolvimento neuropsíquico. Será, descobriram no filho o que, no seu entender, con-
por isso, muito diferente a maneira como uma cri- sideram ser deformidades, esperando daquele a
ança pequena, outra em idade escolar, e um ado- confirmação da anomalia e exigindo a imediata
lescente, manifestam a presença e intensidade de actuação terapêutica. Acontece, porém, que na
sintomas, competindo ao médico a responsabili- maioria dos casos, os invocados problemas não
dade e o engenho necessários à sua adequada car- passam de situações sem qualquer significado
acterização. patológico, traduzindo variantes da normalidade
A dor é um sintoma importante a valorizar que se corrigem muitas vezes espontaneamente
devidamente porque em Ortopedia Pediátrica e, durante o desenvolvimento subsequente da cri-
contrariamente ao que se passa no adulto, tem ança.
uma causa orgânica em mais de 80% dos casos. Haverá, por isso, que investigar e interpretar
Porém, na criança pequena, incapaz de se expri- correctamente certas alterações, enquadrando-as
mir de forma adequada, este sintoma manifesta-se no conjunto da restante sintomatologia, e inqui-
muitas vezes apenas pelo choro mais ou menos rindo especialmente sobre a sua localização,
contínuo ou intenso, aumentando com a tentativa natureza e duração (quando e como começou; se
de mobilização da parte afectada, e na recusa em tem sido progressiva, e rapidez dessa progressão).
mobilizar ou utilizar o segmento anatómico do A impotência ou incapacidade funcional é
membro atingido pela lesão. Na criança mais outro dos sintomas dominantes na patologia orto-
CAPÍTULO 236 Introdução à Ortopedia Pediátrica 1159

pédica; trata-se do achado relacionado com a dor e actuais, para terminar na área anatómica exacta
a deformidade, e no grupo etário mais baixo pode das referidas queixas.
constituir o único aparente. É mais evidente quan- O pormenor com que se procederá a estas dis-
do se estabelece de forma aguda e relacionado com tintas etapas dependerá do tipo de patologia e das
um episódio recente, por exemplo, de natureza circunstâncias particulares do doente, aspectos
traumática ou inflamatória. Outras vezes instala-se estes primariamente esclarecidos pela anamnese,
de forma insidiosa e gradual, tornando-se menos com a qual, porém, todos os achados do exame
perceptível, devido aos mecanismos de compensa- objectivo devem ser permanentemente confronta-
ção funcional que a criança facilmente encontra e dos e testados, como única forma de se chegar a
aos quais se adapta. Todos estes aspectos deverão, uma interpretação fidedigna de toda a informação
por isso, ser convenientemente investigados e recolhida e, daí, a um diagnóstico correcto.
valorizados na colheita da história clínica. Sublinha-se que um exame objectivo adequa-
Os três sintomas/sinais principais que acabá- do exige a colaboração do doente e familiares, o
mos de mencionar estão sempre relacionados que neste grupo etário, principalmente na criança
entre si, podendo haver predomínio de um ou pequena, não é fácil de conseguir. Irá depender da
outro consoante a patologia presente e as circun- sua idade, desenvolvimento, comportamento,
stâncias próprias do doente. No entanto, como educação e relacionamento com os familiares di-
princípio orientador, será importante não esque- rectos (que, por vezes dificultam mais do que aju-
cer o conhecido aforismo: “a criança que se quei- dam) e da paciência, capacidade de improvisação
xa tem quase sempre razão até prova em con- e experiência do médico que o atende. Sem estes
trário”. atributos onde prevalece o chamado bom senso
Isto significa que, nestas idades, a grande clínico, arriscamo-nos a transformar este exame
maioria dos doentes com sintomatologia evidente numa cena de luta inglória com a criança e os
do tipo referido, tem uma causa orgânica subja- familiares, com total impossibilidade de se chegar
cente que a explica e que importa investigar. No a conclusões válidas.
adolescente, tal não é tão evidente, aproximando- Por isso, a estratégia acima referida, é apresen-
se do que se passa nos adultos: muitas vezes as tada apenas como orientação genérica, devendo
queixas deste foro podem ter um componente ser adaptada a cada caso concreto, segundo as
emocional ou psíquico que as potencia ou deter- suas características peculiares, não hesitando o
mina, com o que será necessário contar para uma clínico em passar imediatamente à última fase, a
interpretação correcta das mesmas. do exame local se for julgado conveniente, em vez
Considerando-se os sintomas/sinais descritos de esgotar a débil capacidade de atenção e colabo-
como os mais frequentes e notórios colhidos na ração da criança em manobras exploratórias sem
anamnese e exame objectivo de doentes desta utilidade prática imediata na elaboração do dia-
faixa etária com patologia ortopédica, torna-se gnóstico.
depois necessário proceder à sua caracterização e Nunca será demais repetir que o exame objec-
interpretação com rigor. tivo deve ser realizado nas melhores condições
Como na maioria das situações ortopédicas – possíveis no que diz respeito às instalações, com o
incluindo muitas das doenças sistémicas com doente despido e na presença dos pais ou fami-
repercussão músculo-esquelética – as lesões têm liares. A sua execução, independentemente da
carácter predominantemente regional ou local; é, citada estratégia, custuma obedecer a uma siste-
por isso, conveniente adoptar uma estratégia matização que compreende as três etapas clássicas
definida na execução do referido exame objectivo. de inspecção, palpação e mobilização. Se é pre-
Embora cada observador possa seguir a que mais ferível e didacticamente mais correcto que estas
lhe convier, julgamos aconselhável sistematizar etapas se processem de acordo com a referida
essa abordagem clínica, sugerindo, por exemplo, ordem, nada impede que a experiência do clínico
começar-se pela observação global do doente, pas- e o tipo de patologia presente determinem a modi-
sando depois à observação regional (membros e ficação do esquema indicado, permitindo realizá-
tronco), particularmente na zona das queixas las em simultâneo.
1160 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Na Ortopedia Pediátrica, tal como acontece diagnóstico clínico sem que se tenha de recorrer a
noutra áreas da Medicina, para a confirmação do provas mais complicadas e caras.
diagnóstico não são necessários habitualmente
múltiplos e dispendiosos exames complementares; Sistematização
na maioria das vezes os referidos exames comple-
mentares de diagnóstico resumem-se aos exames Nesta Parte serão abordadas de forma necessaria-
laboratoriais clássicos para avaliação global da mente sucinta e genérica, algumas das situações
situação, a que se acrescentam os específicos em mais correntes do foro ortopédico que afluem às
função da área da patologia infecciosa e infla- consultas de Pediatria e para as quais os ortope-
matória, e aos exames imagiológicos; salientam-se distas são muitas vezes solicitados a dar parecer.
a radiologia simples do esqueleto, a tomografia Procuraremos dar uma noção da sua frequência,
axial computadorizada (TAC), a ressonância ma- importância do ponto de vista clínico e orientação
gnética nuclear (RMN), a ecografia e a cintigrafia. terapêutica. O Quadro 1 sistematiza os tópicos a
Com este leque de possibilidades no âmbito referi- abordar nos capítulos seguintes.
do é quase sempre possível confirmar ou excluir o
BIBLIOGRAFIA
QUADRO 1 – Sistematização ortopédica A bibliografia dos capítulos referentes à Ortopedia é incluída a
pediátrica seguir ao capítulo 244.
Os capítulos 245 e 246 referem-se a aspectos da reabilitação
Patologia não traumática motivada por problemas ortopédicos, cuja bibliografia se
• Patologia geral: segue ao último. (consultar Capítulo 10).
– Infecções
– Tumores
– Desvios axiais dos membros
• Patologia regional específica:
– Membro superior
– Membro inferior:
a. Coxofemoral:
– Anca dolorosa (sinovite transitória; epifisiólise
femoral proximal, doença de Legg-Calvé-
Perthes)
– Alterações da mobilidade (anca instável – dis-
plasia de desenvolvimento da anca; anca blo-
queada)
– Deformidade
b. Joelho
– Dor (gonalgia)
– Alterações da mobilidade
– Deformidade (osteocondroses; genu varum;
valgum; flexum e recurvatum)
b. Pé
– Dor
– Deformidade (pé valgo e pé cavo; pé boto)
– Tronco
– Dor (cervicalgia, dorsalgia e lombalgia)
– Deformidade (torcicolo; escolioses; cifoses;
espondilólise e espondilolistese)
Patologia traumática. Noções gerais
CAPÍTULO 237 Osteomielite 1161

237
frequente abaixo dos 5 anos, nalguns centros com
maior incidência que o S aureus), Streptococcus do
grupo A, Salmonella (sobretudo em casos de drepa-
nocitose), espécies Candida e bactérias Gram-negati-
vas (sobretudo em infecções nosocomiais), Strepto-
coccus do grupo B e Treponema pallidum (sobretudo
OSTEOMIELITE em recém-nascidos). Haemophilus influenzae do tipo b
é hoje menos frequentemente implicado devido à
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo imunização realizada a partir da idade dos 2 meses.
Os microrganismos atingem o osso essencial-
mente de duas formas: 1) disseminação hematogé-
nica a partir de foco infeccioso vizinho; ou à dis-
Definição e importância do problema tância (pele, amígdala, ouvido médio, etc.) que
corresponde à forma mais frequente em crianças e
A osteomielite é uma infecção óssea frequentemente lactentes; 2) inoculação directa na sequência, por
causada pela colonização e proliferação de germes exemplo, de acto cirúrgico, procedimento invasi-
bacterianos, e mais raramente fungos e vírus, vo ou lesão traumática.
atingindo todos os elementos constituintes do osso. O microrganismo, atingindo o tecido ósseo,
De acordo com a evolução clínica distinguem-se as localiza-se habitualmente ao nível das metáfises
formas aguda e crónica; nas crianças é típica da dos ossos longos. Esta localização explica-se pelas
primeira a chamada osteomielite hematogénica; na características regionais da própria rede vascular
forma crónica distinguem-se dois tipos: a intra óssea, derivada da artéria nutritiva do osso;
osteomielite crónica ab initio, sem fase aguda prévia tal rede é constituída por ansas longas, dilatadas,
– denominada abcesso de Brodie; e a crónica, como de paredes muito finas, responsável pela dimi-
evolução de uma forma aguda precedente. nuição da velocidade circulatória, o que favorece a
A osteomielite aguda surge com uma incidên- implantação e multiplicação dos germes com for-
cia de cerca de 1/5.000 crianças com idade inferi- mação de um microabcesso. Com a antibioticote-
or a 13 anos; metade desta relação verifica-se em rapia precoce e em dose correcta, a situação não
idades inferiores a 5 anos (cerca de um terço com ultrapassa normalmente esta fase; se tal não acon-
idades inferiores a 2 anos). Predomina no sexo tecer, a lesão evolui e o material purulento difunde-
masculino na razão de 2,5/1. se rapidamente através dos canais de Havers, pro-
Neste capítulo é dada ênfase à osteomielite gredindo para a cortical (abcesso subperióstico) e
aguda hematogénica. para o canal medular, com necrose isquémica do
tecido ósseo perifocal e a possibilidade de for-
Etiopatogénese mação de sequestros (fragmentos de osso necrosa-
do) (Figura 1). Numa fase ainda mais avançada do
Maioritariamente provocada por Staphylococcus processo infeccioso, o abcesso subperióstico pode
aureus (sensível ou resistente à meticilina), afecta perfurar os tecidos moles interpostos e fistulizar,
recém-nascidos, crianças e adolescentes, sendo cerca com drenagem espontânea de pus para o exterior.
de duas vezes mais frequente do que a artrite séptica. Se a metáfise onde ocorrem estas transfor-
Certas estirpes de S. aureus (que produzem uma toxi- mações é intra-articular, ou seja, se faz parte da
na: leucocidina de Panton e Valentine ou LPV), estão extremidade óssea articular cuja respectiva cápsula
associadas a formas graves de osteomielite e artrite. se insere abaixo das cartilagem de conjugação,
Tais estirpes são geralmente sensíveis à meticilina. como acontece a nível da extremidade superior do
Nas infecções adquiridas na comunidade existe fémur e da extremidade proximal do rádio, a per-
maior probabilidade de se verificar a comparticipação furação do abcesso subperióstico faz-se para dentro
de estirpes de S. aureus sensível à meticilina. da articulação, dando origem a uma artrite séptica.
Outros germes poderão estar implicados como No caso do chamado abcesso de Brodie ou
Kingella kingae (bacilo Gram-negativo cada vez mais osteomielite crónica ab initio, a situação não evolui
1162 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Diagnóstico diferencial
A B C
O diagnóstico diferencial da situação clínica com
os sinais atrás descritos, em função de determi-
nadas localizações, deve fazer-se, essencialmente,
com artrite infecciosa, enfarte ósseo (no contexto
da drepanocitose), celulite, fascite, discite, artrite
reuma-tóide, e neoplasia maligna óssea. Relativa-
mente a esta última, cabe realçar, sobretudo nas
crianças a partir dos cinco anos, o sarcoma de
A – Formação metafisária de microabcesso com pus e osteólise focal;
B – Progressão do pus para a periferia, rotura do periósteo (abcesso Ewing que, nas fases iniciais, tem um comporta-
subperióstico) e reacção periostal em “casca de cebola”; mento clínico e imagiológico muito semelhante.
C – Ossificação periostal, osteólise irregular, necrose óssea e
formação do sequestro.
Exames complementares
FIG. 1 O hemograma pode revelar leucocitose com neu-
Representação esquemática da evolução de um foco de trofilia, por vezes acompanhada de aparecimento
osteomielite aguda. de neutrófilos imaturos no sangue periférico. A
proteína C reactiva (PCR) e a velocidade de sedi-
com a exuberância acima referida; por aumento mentação com valores elevados revelam, em geral,
da resistência do hospedeiro e/ou virulência mo- sensibilidade para o diagnóstico e baixa especifici-
derada do germe, o organismo consegue delimitar dade; refira-se, no entanto, a importância da sua
o processo, conferindo-lhe características de croni- determinação seriada, a ponderar caso a caso para
cidade, sendo escassos ou moderados os sinais valorizar a situação; a descida dos valores da PCR
clínicos e imagiológicos. constitui um dos critérios de evolução favorável
uma vez iniciado o tratamento antimicrobiano.
Manifestações clínicas Nas formas causadas por S. aureus LPV é fre-
quente leucopénia inicial.
O quadro clínico, que pode variar com a idade, A hemocultura é positiva em cerca de 30% a
é caracterizado habitualmente pelo início brus- 60% dos casos.
co, com dor intensa, metafisária, exacerbada à Nas fases iniciais do processo infeccioso, o
mínima pressão local, acompanhando-se de fe- estudo radiográfico simples não revela alterações;
bre elevada e alteração do estado geral. Com a em geral, somente a partir de duas a três semanas
difusão da infecção verifica-se edema do se- de evolução, são detectados os primeiros sinais
gmento do membro afectado e marcha claudi- anómalos – descolamento/elevação inicial e, ulte-
cante no caso de localização. Nos recém-nasci- riormente, espessamento do mesmo periósteo (em
dos podem surgir sinais sistémicos e quadro de estratos sobrepostos e concêntricos, corresponden-
pseudoparalisia ou imobilidade do membro, do à descrição clássica da imagem em casca de cebo-
explicável pela dor. la), associado a zonas de osteocondensação e
Nas formas provocadas por S. aureus LPV o qua- osteólise metafisárias, com padrão desigual.
dro clínico integra formas invasivas, sistémicas Mais tarde, no caso de a infecção prosseguir
com choque e possibilidade de fascite e miosite sem tratamento ou com tratamento inadequado,
necrosantes e ainda trombose séptica profunda intensificam-se as imagens descritas a que se asso-
e pneumonia. ciam sinais de necrose/osteólise irregular. Como
Os ossos mais frequentemente afectados são o resultado da necrose, nas situações de processo
úmero, a tíbia e o fémur (70% a 75% dos casos). As crónico, formam-se os chamados sequestros ou
infecções dos pequenos ossos das mãos e dos fragmentos de osso esclerosado, não vasculariza-
ossos achatados, no conjunto, surgem em 25 a 30% do que se traduz na radiografia simples por uma
dos casos. imagem de condensação cálcica, irregular, separa-
CAPÍTULO 237 Osteomielite 1163

da do osso adjacente. (Figura 2) ceftriaxona, com actividade anti- Salmonella.


O diagnóstico inicial é essencialmente clínico Após isolamento do agente (antibioticote-
mas, a partir das primeiras 48h de evolução, há a pos- rapia dirigida), com esquema ponderado em
sibilidade de ser necessário o recurso à cintigrafia função do contexto clínico de cada caso :
óssea simples ou com leucócitos marcados com – se S. aureus meticilino-sensível está indicado o
Gálio, para indicar ou excluir a etiologia infecciosa. seguinte esquema: flucloxacilina ou amoxicili-
na/ácido clavulânico, ou clindamicina;
Tratamento – se S. aureus meticilino-resistente: vancomicina +
rifampicina;
A osteomielite deve ser reconhecida e tratada ade- – no caso de Kingella kingae: amoxicilina ou
quada e precocemente, pois só assim se podem cefotaxima;
evitar (ou atenuar) as suas graves complicações. – se Streptococcus A: amoxicilina ou cefotaxima
Para além das medidas gerais de imobilização ou ceftriaxona;
do membro e repouso em função da idade da – se Streptococcus pneumoniae: amoxicilina ou
criança, a escolha da antibioticoterapia inicial cefotaxima ou ceftriaxona;
(empírica) antes do isolamento do agente deve – se S. aureus LPV: cefuroxima ou amoxicili-
basear-se na probabilidade do germe possivel- na/ácido clavulânico + aminoglicosídeo + clin-
mente em causa tendo em conta o contexto clínico damicina ou rifampicina
(por ex. infecção adquirida na comunidade ou hos-
pitalar), doenças associadas e a idade da criança. A duração do tratamento deve oscilar entre 4 a
Relativamente ao tratamento antimicrobiano 6 semanas; de acordo com a evolução e a idade, a
por via IV existem diversos esquemas: terapêutica por via endovenosa pode ser continua-
– no recém-nascido e lactente: antibiótico anti- da por via oral desde que a mesma seja exequível.
estafilocócico (flucloxacilina ou vancomicina) asso- Em geral verifica-se resposta favorável (clínica e
ciado a aminoglicosídeo ou cefalosporina de largo laboratorial) à antibioticoterapia endovenosa ao
espectro de modo a abranger os germes gram-neg- cabo de 48-72 horas; se tal não acontecer estará indi-
ativos; após isolamento do germe, deve(m) ser cada a drenagem cirúrgica/descompressão que,
escolhido(s) o(s) antibiótico(s) mais adequado(s). nesta fase inicial e na maioria dos casos, consiste
As doses (por via IV) devem ser iguais às utilizadas numa intervenção simples, com perfurações múlti-
para o tratamento da septicémia e da meningite. plas com broca fina, da zona metafisária atingida.
– noutras idades: flucloxacilina ou clindamici- A drenagem cirúrgica está também indicada
na; nos doentes com drepanocitose a antibioti- nos casos de compromisso da articulação da anca
coterapia inicial deverá incluir a cefotaxima ou a ou de compressão vertebral da espinhal medula.
NB – A situação clínica poderá acompanhar-se
de choque e ou sépsis, aplicando-se os procedi-
mentos descritos nos capítulos 268 e 269.

Prognóstico

Nas situações de osteomielite submetidas a trata-


mento precoce e adequado o prognóstico é
favorável; o mesmo é mais reservado em recém-
nascidos e lactentes com compromisso da anca e
ombro. Poderá surgir recorrência em cerca de 5%
FIG. 2 dos casos, considerados todos os grupos etários.
Radiografia dos ossos do antebraço de uma criança com Como complicações referem-se as relacionadas
osteomielite crónica – reacção perióstica já ossificada, com com a perda do tecido ósseo e as deformidades
consequente dismorfia e aumento do volume dos ossos, mais ou menos acentuadas, resultantes do com-
englobando sequestro bem visível no seu interior. promisso do crescimento ósseo local.
1164 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

238
Os germes bacterianos implicados na artrite sép-
tica são os mesmos que provocam a osteomielite,
salientando-se os seguintes agentes: S. aureus sen-
sível ou resistente à meticilina, S. aureus produtor ou
não de LPV e Kingella kingae. Refira-se que a doença
de Lyme (ver Capítulo 293) pode incluir no seu
ARTRITE SÉPTICA quadro clínico – forma tardia – a manifestação de
artrite, e que a etiologia relacionável com o
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo Haemophilus influenzae do tipo b e o S. pneumoniae
tem diminuído com a aplicação das respectivas
vacinas a número cada vez maior de crianças.
Por outro lado, conforme o “terreno” clínico, o
Definição e importância do problema tipo de agente microbiano pode divergir dos mais
frequentes. Assim, por exemplo, em situações de
A artrite séptica ou supurada é uma infecção do drepanocitose, haverá alta probabilidade de estar
espaço articular que (na criança) resulta, na maio- em causa o S. pneumoniae; em casos de síndroma
ria das vezes, de disseminação hematogénica bac- de imunossupressão serão os Gram-negativos os
teriana. agentes mais prováveis; nas feridas penetrantes
Este tipo de patologia tem especial importância do pé ou de artrite de inoculação, serão, respecti-
por duas razões essenciais: a gravidade clínica sus- vamente, Pseudomonas ou S. aureus e Gram-nega-
ceptível de interferir com o prognóstico funcional tivos e anaeróbios; e nos adolescentes sexual-
e por vezes vital do indivíduo afectado; e a signi- mente activos a N. Gonorrhoeae (doença gonocóci-
ficativa incidência anual, sendo de referir que em ca). Esta última situação, hoje mais rara, é acom-
países ditos desenvolvidos são atingidas 10 crian- panhada, na sua fase precoce, de exantema febril e
ças/ano em cada 100.000, números que incluem compromisso poliarticular simétrico, designando-
todas as articulações. Esta proporção aumenta em se este conjunto de sinais por síndroma artrite-
regiões quentes e húmidas e em populações com dermatite (artite com líquido sinovial estéril ape-
condições socioeconómicas precárias. sar de bacteriémia comprovada). Na fase tardia
Podendo surgir em qualquer idade, cerca de surge compromisso monoarticular com isolamen-
30% dos casos ocorre antes dos 2 anos e 50% antes to frequente do germe microbiano em causa.
dos 3 anos. O joelho é a articulação mais fre- A presença de bactérias (ou dos seus metaboli-
quentemente atingida depois dos 2 anos, e a anca tos) no interior da articulação tem as seguintes
antes dessa idade, nomeadamente no recém- repercussões:
nascido. As artrites do joelho e da anca correspon- – Consequências histoquímicas:
dem a cerca de 85% de todos os casos de artrite em • Condrólise (por aumento local das enzimas
idade pediátrica. de origem bacteriana);
• Inibição da regeneração cartilagínea (pela
Etiopatogénese redução da produção de líquido sinovial,
pela redução da síntese dos proteoglicanos e
Várias são as vias pelas quais os agentes infec- pela imobilização da própria articulação).
ciosos podem atingir uma articulação: – Consequências mecânicas:
• Via hematogénica (é a mais frequente, verifi- • Compressão vascular;
cando-se em mais de 80 % dos casos); • Luxação articular ou epifisiólise, nos casos
• Disseminação de osteomielite na proximi- particularmente graves.
dade;
• Infecção periarticular; Manifestações clínicas
• Procedimentos diagnósticos ou terapêuticos
invasivos (iatrogenia); Após a realização da anamnese, tendo o cuidado
• Feridas perfurantes. de averiguar as circunstâncias em que surgiu a sin-
CAPÍTULO 238 Artrite séptica 1165

tomatologia presente, quando se observa uma cri- articulação profunda como a coxofemoral), au-
ança com suspeita de artrite séptica, há que ter em mento do espaço articular (indicativo de presença
conta um conjunto de sinais gerais e locais. de derrame intra- articular) e rarefação óssea epi-
– Sinais gerais: hipertermia; anorexia; irritabi- fisária e metafisária.
lidade; prostração; no conjunto, estes sinais Nas fases tardias da artrite surgem já sinais
indicam um estado geral comprometido, com evidentes da natureza destrutiva do processo
franca aparência de criança em “estado de infeccioso, como a diminuição e irregularidade
doença”. Nos recém-nascidos, deve-se dar parti- marcadas da interlinha articular, deformidades
cular atenção a manifestações clínicas mais discre- das epífises e metáfises correspondentes, altera-
tas, ou incaracterísticas como a pseudoparalisia de ções imagiológicas do respectivo tecido ósseo
um membro que, por vezes, constitui o único (osteorrarefacção e osteocondensação) e perda
achado positivo nestas situações de artrite. mais ou menos completa do contacto entre as
– Sinais locais: perda dos contornos ósseos da superfícies articulares (subluxação ou luxação).
articulação; aumento da temperatura local e rubor; Quanto aos restantes exames imagiológicos, a
derrame articular com onda de choque positiva (no ecografia tem interesse para a detecção e avaliação
caso do joelho, pode haver acumulação de líquido do derrame articular (particularmente na coxo-
até 200 cc); limitação dolorosa da mobilidade. femoral – articulação de difícil acesso à exploração
De acordo com o período evolutivo, a artrite clínica pelo volume considerável de tecidos moles
séptica pode classificar-se em aguda (1ª semana), envolventes); a cintigrafia permite excluir a osteo-
subaguda (2ª-4ª semana) e crónica (mais de 4 se- mielite (através da marcação de leucócitos); a
manas de evolução). tomografia axial computadorizada (TAC) é ideal
para avaliar as alterações do tecido ósseo (exten-
Exames complementares são do processo destrutivo e a presença de seques-
tros), e a ressonância magnética nuclear (RMN),
As análises de sangue (hemograma, velocidade de exame elucidativo na detecção de alterações dos
sedimentação e doseamento da proteína C reacti- tecidos moles, permitindo avaliar o grau de des-
va) revelam, em geral, leucocitose e elevação dos truição da cartilagem e distinguir a artrite do
restantes parâmetros. No entanto, a punção arti- abcesso profundo e da celulite.
cular (artrocentese), com aspiração e/ou lavagem
articular, seguida de análise do líquido articular, Diagnóstico diferencial
constituem os procedimentos de eleição para o
diagnóstico da artrite séptica, que deverão ser Os parâmetros clínicos, laboratoriais e imagiológi-
efectuados em ambiente estéril (bloco operatório) cos que acabámos de enunciar não são exclusivos
e por quem tenha experiência. da artrite séptica, para o diagnóstico da qual se
A hemocultura e o exame cultural do líquido exige o isolamento do germe no líquido articular.
articular são positivos em cerca de 50-60% dos No Quadro 1 é indicado um conjunto de situações
casos. No entanto, devido ao efeito bacteriostático clínicas que importa considerar no diagnóstico
do líquido sinovial, o referido exame cultural do diferencial da artrite séptica.
aspirado articular poderá ser negativo, mesmo no
caso de ser purulento. Tratamento
Na adolescência, o esclarecimento etiológico
da artrite implica a exploração da existência de N. O tratamento antimicrobiano inicial da artrite sép-
gonorrhoeae (exame directo e cultural) em vários tica baseia-se na idade, considerando a probabili-
locais do organismo, como faringe, recto, uretra e dade do germe provavelmente envolvido, e o
colo do útero. resultado da coloração Gram do líquido articular
O exame radiológico convencional nas fases aspirado. Refira-se que antes do início deste trata-
iniciais do processo pode evidenciar alterações: mento, deverá ser feita a tentativa de isolamento
acentuação da opacidade correspondente aos teci- do germe em causa, o que é viável apenas em cen-
dos moles periarticulares (nomeadamente numa tro especializado.
1166 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

QUADRO 1 – Diagnóstico diferencial da artrite clínico-laboratorial e do tempo decorrido entre o


séptica início dos sintomas e o diagnóstico. No caso do S.
aureus o tratamento deve durar, pelo menos, três
– Sinovite transitória semanas. Dependendo da idade do doente e da
– Osteomielite aguda evolução clínica da situação, poderá passar-se a
– Bursite supurada tratamento por via oral.
– Celulite periarticular A imobilização, com ou sem tracção, depen-
– Miosite dendo neste caso da articulação atingida, deverá
– Traumatismo fazer-se na fase inicial na posição de maior
– Artrite reumatóide capacidade articular, tendo como objectivos, não
– Fascite só o repouso do segmento articular (facilitando a
– Artrite não supurada resposta anti-inflamatória dos tecidos), como tam-
– Febre reumática bém a diminuição da dor e do espasmo muscular.
– Doença de Lyme Na evolução mais tardia, e dependendo da res-
– Abcesso do psoas posta ao tratamento médico instituído, estas
– Doença autoimune medidas inserem-se num programa de reabilitção
– Doenças acompanhadas de compromisso articular geral da articulação, contrariando as posições
(por ex. Púrpura de Henoch-Schönlein, Doença de viciosas e a recuperação útil da mobilidade articu-
Crohn, Doença de Kawasaki) lar.
Não havendo resposta clínica favorável num
relativo curto espaço de tempo (não mais de 48h),
Conhecendo o germe, estará indicado o esque- a criança deverá ser encaminhada para centro
ma de administração de antibióticos por via endo- especializado, a fim de ser reavaliada e se proce-
venosa que se descreve a seguir, sugerindo-se a der ao tratamento cirúrgico adequado.
consulta do Capítulo 237 – exemplos práticos de
esquemas antibioticoterapia, também aplicáveis Prognóstico
nas artrites.
No recém-nascido e lactente com menos de 2 Pode considerar-se bom quanto à vida e favorável
meses: quanto à função articular se o diagnóstico for pre-
• Streptococcus do grupo B: ampicilina + ami- coce e o tratamento também precocemente inicia-
noglicosídeo do e adequado. Nos recém-nascidos e lactentes,
• S. aureus: oxacilina, flucloxacilina ou van- particularmente se se verificar osteomielite con-
comicina comitante, já o prognóstico será mais reservado,
• Bacilos Gram-negativos aeróbios (Klebsiella não sendo possível de imediato avaliar o grau de
pneumoniae, E. coli): cefotaxima ou ceftria- compromisso do crescimento que irá resultar.
xona + aminoglicosídeo ou amoxicilina
Em crianças maiores:
• S. aureus: mesmo esquema
• S. pneumoniae: penicilina G ou cefotaxima ou
ceftriaxona ou vancomicina (conforme a
respectiva sensibilidade)
• Streptococcus do grupo A: penicilina G ou
amoxicilina ou cefotaxima ou ceftriaxona
• Neisseria gonorrhoeae: ceftriaxona
• Hemophilus influenza do tipo b: cefuroxima ou
cefotaxima ou ceftriaxona
• Kingella kingae: amoxicilina ou cefotaxima

A duração do tratamento depende da evolução


CAPÍTULO 239 Tumores ósseos 1167

239
prognóstico completamente diferentes, sendo os
primeiros muito mais frequentes do que os segun-
dos, e mostrando estes uma prevalência que ronda
os 10 por milhão de habitantes com < 18 anos/ano.
A classificação usualmente adoptada é a his-
tológica, dividindo-os em grupos de acordo com a
TUMORES ÓSSEOS natureza e grau de diferenciação das células origi-
nárias predominantes do tumor; assim, pode con-
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo siderar-se que tumores, tanto benignos como
malignos, podem ser provenientes do tecido
ósseo, cartilagíneo, fibroso, da medula óssea, dos
vasos, ou do mesênquima.
Importância do problema Os tumores benignos caracterizam-se por serem
capsulados, terem um crescimento gradual e não
Considerando os diversos tipos de tumores do sis- invasivo das estruturas vizinhas, não recidivarem
tema músculo-esquelético apenas será feita uma quando correctamente tratados, nem metastizarem,
referência sucinta aos tumores primitivos dos não mostrarem alterações citológicas de malig-
ossos, omitindo os secundários ou metastáticos nidade no exame anátomo-patológico do tecido
(Capítulos 127, 132, 180). tumoral, e terem habitualmente bom prognóstico.
Os tumores primitivos dos ossos ocorrem pre- Pelo contrário, os tumores malignos têm cres-
dominantemente nas idades jovens (crianças, adoles- cimento rápido, invasivo e destrutivo, com limites
centes e adultos jovens), correspondendo a cerca de muito mal definidos, infiltram os tecidos vizinhos,
20% do total de tumores registados nestas idades. e o respectivo exame anátomo-patológico revela
A sua localização é variável, dependendo do atipias celulares evidentes; por outro lado, recidi-
tipo e natureza do tumor; contudo mostram uma vam e metastizam sempre, aparecendo as metás-
certa preferência pelos ossos longos, e nestes, pela região tases muito precocemente, donde se depreende
epifisiometafisária das chamadas epífises “férteis” dos que o prognóstico é sempre mau.
membros. Denominam-se assim aquelas epífises
que contribuem mais para o crescimento longitu- Manifestações clínicas
dinal dos membros, considerando-se que no mem-
bro superior correspondem às da região proximal As manifestações clínicas dependem do tipo e
do braço e distal do antebraço e, no membro infe- natureza do tumor. Dum modo geral, a anamnese
rior, às da região distal da coxa e proximal da e a observação do doente, associadas à interpre-
perna. Isto significa que estas lesões, no membro tação correcta dos exames imagiológicos adequa-
superior, mostram predilecção pela região do dos, são suficientes para se chegar a um diagnós-
ombro e do punho, e no membro inferior pela tico provisório muito próximo do definitivo. Este
região do joelho. exigirá ainda a identificação histológica do tumor
O osteossarcoma é o tumor maligno primário a partir do material de biópsia, o que nem sempre
mais comum em idade pediátrica (> 10 anos), é fácil pelas dificuldades de interpretação que
seguindo-se em frequência o sarcoma de Ewing. muitas vezes se levantam.
Este último ultrapassa o primeiro em frequência Ainda como elementos orientadores do dia-
abaixo dos 10 anos, sendo que ambos surgem gnóstico, e no que se refere ao exame clínico,
sobretudo na 2ª década de vida com relação seme- podemos considerar a idade do doente (as lesões
lhante quanto ao sexo(M/F) cerca de 1,5/1. neoplásicas são raras antes dos cinco anos de
vida), a sintomatologia geral (repercussão sobre o
Classificação e características estado geral) e a local, destacando nesta a dor, a
impotência funcional e a tumefacção.
Os tumores primitivos dividem-se em dois grandes A dor é o sintoma mais importante; sempre
grupos, benignos e malignos, com características e presente nos tumores malignos, mas não con-
1168 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

stante nos benignos, pode apresentar-se de forma


peculiar, como a conhecida predominância noc-
turna no caso do osteoma osteóide, ou como frac-
tura patológica num tumor que evolui silenciosa-
mente até essa ocorrência. Importa ainda ca-
racterizar, na dor, a sua natureza, se é espontânea
ou provocada, a sua localização, evolução e condi-
ções que a exacerbam ou atenuam.
A impotência funcional está habitualmente
associada à dor e constitui um sinal de defesa por-
que o movimento ou a contracção da musculatura
regional a agrava; o seu significado patológico
corresponde à compressão ou a infiltração e inva-
são dos tecidos vizinhos pela massa tumoral.
A tumefacção é geralmente um sinal mais tar-
FIG. 1
dio e a sua evidência depende da localização do
tumor. Importa determinar a data do seu apareci- Radiografia de tumor benigno da metáfise proximal da tíbia
mento e respectiva evolução, bem como os sinais – cortical íntegra e regular, osteólise uniforme, sem reacção
associados (calor, rede vascular, repercussão arti- perióstica.
cular, mobilidade anormal traduzindo a presença
de fractura patológica, etc.).
Como nota orientadora para o médico que
observa a criança em primeiro lugar, importa
salientar o elevado nível de suspeição que deverá
ter face a um quadro clínico com a sintomatologia
referida, exigindo o encaminhamento atempado
para centro especializado porque o êxito do trata-
mento e, consequentemente, o prognóstico, depen-
dem sempre de um diagnóstico correcto e precoce.

Exames imagiológicos

Quanto aos exames imagiológicos a prioridade


será dada à radiologia convencional cujos acha-
dos, na imensa maioria dos casos, permitem fazer
a distinção entre lesões benignas e malignas.
FIG. 2
Assim, são indicadores de benignidade a integridade
da cortical óssea, os limites nítidos da lesão, a Radiografia de tumor maligno do 1/3 distal do fémur –
ausência de reacção perióstica e o crescimento aumento regional do volume do osso, rotura irregular da
lento verificado nos exames sequenciais (Figura cortical, zona de osteólise e osteocondensação irregulares, e
reacção perióstica a nível da zona de implantação da massa
1). Pelo contrário, no caso de a lesão ser maligna há
tumoral.
interrupção irregular da cortical, bordos e con-
tornos muito mal definidos, descolamento e/ou to o segundo é mais útil na identificação dos teci-
reacção perióstica, estrutura óssea anormal com dos moles, permitindo ambos caracterizar a lesão
destruição e/ou ossificação aberrante. (Figura 2) e avaliar o estádio evolutivo, ou seja, o grau de
Os exames subsequentes são a TAC e a RMN, extensão da doença.
pela ordem que se achar mais conveniente face à A cintigrafia terá interesse para detectar a
situação clínica concreta, não esquecendo que no localização de lesões de pequenas dimensões e a
primeiro se visualiza mais o tecido ósseo, enquan- possibilidade de disseminação da doença.
CAPÍTULO 240 Desvios axiais dos membros 1169

Prognóstico

O prognóstico quanto à vida e função nos tumores


benignos é geralmente bom; há porém a referir a
possibilidade (rara) de recidiva local em determi-
nadas situações, mesmo quando correctamente
240
tratadas, e os casos muito mais raros de dege- DESVIOS AXIAIS
nerescência maligna ocorrida nos doentes já adul-
tos, portadores de lesões previamente benignas, DOS MEMBROS
como as descritas na osteocondromatose múltipla
(também denominada exostose múltipla here- J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo
ditária).
Nos tumores malignos o prognóstico quanto à
vida e função é reservado ou mau. Porém, nos
últimos quinze anos, a introdução de novos proto- Importância do problema
colos terapêuticos em doentes com esta patologia,
têm resultado numa melhoria significativa das Os desvios axiais dos membros em idade pediátri-
taxas de sobrevida, aos cinco anos. Tal facto, asso- ca, embora verificáveis tanto nos membros supe-
ciado às novas técnicas de cirurgia conservadora riores como nos inferiores, constituem nestes últi-
do membro, tem conduzido a diminuição drástica mos uma situação frequentíssima e notória, pre-
da percentagem de doentes amputados. (Parte ocupando os pais e os médicos assistentes; trata-se
XVII) duma das causas mais frequentes de consulta em
Considerando o osteossarcoma e os tumores Ortopedia Pediátrica.
da “família” Ewing, na ausência de metástases, é Os desvios axiais são menos aparentes e não
obtida cura da ordem de 60-70%. Nos casos com têm um efeito estético tão marcado nos membros
metástases (mais frequentemente pulmonares) a superiores, devido ao facto de estes não susten-
sobrevivência é < 20 % no primeiro caso e ~20- tarem o peso corporal e terem maior amplitude de
30% no segundo caso. movimentos, o que lhes permite assumir posturas
compensatórias com maior facilidade. Além disso,
contrariamente ao que acontece no membro infe-
rior, os desvios axiais no membro superior
considerados como patológicos, são quase sempre
resultado de lesões prévias, particularmente de
natureza traumática
Por estas razões apenas serão abordados os
desvios axiais ao nível dos membros inferiores,
começando por alertar para o facto de as modifi-
cações do alinhamento com esta localização e
durante os primeiros seis anos de vida, serem na sua
grande maioria fisiológicas, pelo que são escassos os
casos que necessitam de tratamento ortopédico.
Em primeiro lugar será conveniente distinguir
as deformações dos joelhos em valgo /genu val-
gum (os joelhos aproximam-se da linha média e as
pernas ficam divergentes, com um exagerado
afastamento dos tornozelos), das deformações em
varo/genu varum (joelhos afastados com os
tornozelos em contacto) (Figura 1). Seguidamente,
em função da idade da criança, da gravidade da
1170 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

A B Trata-se duma situação habitualmente pro-


gressiva, que não regride espontaneamente e que
pode requerer tratamento cirúrgico.
Secundário: mais frequente dos 3 aos 10 anos,
habitualmente associado a doenças como raquitis-
Anca Anca mo, artrite reumatóide, displasias ósseas, síndro-
ma de Down, sindroma de Marfan, neurofibro-
matose, sequelas de fracturas, etc..
Joelho
Joelho
Joelho varo
Podem ser considerados também dois tipos:
Idiopático: trata-se de joelho varo persistente
após o 2º ano de vida, com angulação significati-
va, mas que regride espontaneamente após 1-2
anos de evolução, mantendo-se as epífises sem
FIG. 1
alterações morfológicas (imagiologia normal).
Representação esquemática do desvio dos joelhos em valgo Existe ainda uma outra situação de joelho varo, a
(A) e em varo (B). chamada doença de Blount (ou tíbia vara
idiopática) que importa referir porque, apesar de
deformidade, dos antecedentes pessoais e fami- rara, constitui uma deformidade progressiva, de
liares, e da existência ou não de patologia sistémi- causa desconhecida, caracterizada por crescimen-
ca relacionada, será tomada uma eventual decisão to deficiente e anormal da porção interna e poste-
terapêutica. rior da epífise proximal da tíbia (prato tibial inter-
no), com tradução imagiológica evidente. Pode
Etiopatogénese surgir em qualquer idade (da infância à ado-
lescência), dando origem a deformidades do joe-
Os mecanismos que conduzem a desvios axiais lho em varo, de grau variável, mas habitualmente
dos membros inferiores no plano frontal são dife- grave e de difícil correcção.
rentes consoante o tipo de deformidade em valgo Secundário: é mais frequente dos 3 aos 10
ou em varo, distinguindo-se os seguintes: anos, e com causas semelhantes às do joelho valgo
Fisiológico – mais frequente em ambos os casos secundário, mas com alterações biomecânicas que
de varo e valgo; como referido, o varo é observável afectam predominantemente o compartimento
entre o 1º e 2º ano de vida e o valgo entre o 2º e 6º interno do joelho.
ano de vida. Trata-se duma situação geralmente
assintomática, simétrica, benigna, de resolução Avaliação clínica
espontânea, que não precisa de tratamento.
Não fisiológico – resulta de alterações bio- O pediatra ou o clínico geral são habitualmente os
mecânicas mantidas e progressivamente agrava- primeiros médicos a observar o doente com este
das que conduzem a um desequilíbrio de forças tipo de situação, competindo-lhes avaliá-la correc-
exercidas a nível do joelho com sobrecarga, seja do tamente antes de encaminharem aquele para o
compartimento externo (valgo) ou interno (varo). ortopedista. Esta avaliação implicará proceder a
história clínica completa (anamnese e observa-
Joelho valgo ção), inquirindo essencialmente sobre os seguintes
Distinguem-se dois tipos: pontos: início das alterações e circunstâncias do
Idiopático: é mais frequente em adolescentes; coex- seu aparecimento, sua progressão, antecedentes
iste geralmente com gonalgia anterior e interna, pessoais e familiares, queixas dolorosas locais
com circumduction gait (marcha com necessidade de associadas, índice de massa corporal, deformi-
um joelho "contornar" o outro) e, por vezes, com dade localizada/generalizada, hiperlaxidão liga-
instabilidade patelo-femoral. mentar (deformidade que aumenta com a carga),
CAPÍTULO 240 Desvios axiais dos membros 1171

joelhos que “roçam na marcha” (marcha em cir- Acessoriamente e a decidir pelo ortopedista,
cundução), estabilidade e excursão da rótula, poderão ser pedidos outros exames:
avaliação de eventuais desalinhamentos rota- • Radiografias das coxofemorais, ântero-pos-
cionais do membro (anteversão e/ou torção terior e perfis (se a radiografia extralonga
femoral; rotação/torção da tíbia), etc.. detectar anomalias da fise femoral proxi-
Será ainda conveniente quantificar a importân- mal);
cia do desvio, o que se faz executando-se algumas • Radiografia do punho esquerdo para deter-
medições simples (diferentes consoante o desvio); minação da idade óssea;
por norma, com o doente em posição de pé (tam- • Estudo por tomografia axial computadoriza-
bém denominada “em carga” ou “ortostatismo”) e da” (TAC) e por ressonância magnética
com os pés paralelos entre si e perpendiculares ao nuclear (RMN).
plano frontal:
Joelho valgo: neste caso, a avaliação é feita Exames laboratoriais
medindo a distância intermaleolar (DIM), na
posição referida e com os joelhos em contacto pela Em função do contexto clínico (por ex. síndromas
sua face interna (côndilos femorais internos). plurimalformativas) estarão indicados exames
Consideram-se normais valores até aos 2 cm; ultra- laboratorias diversos, como os relacionados com o
passando esta medida distinguem-se três graus de metabolismo fosfo-cálcico. Salienta-se que o tipo
valgismo – ligeiro (DIM entre 2-5cm), moderado de situações referidas poderá requer o apoio mul-
(DIM entre > 5-9cm) e grave (DIM > 9cm). De tidisciplinar, nomeadamente da Endocrinologia e
salientar que esta medição poderá não ser correcta, da Genética Médica.
e a deformidade vir a ser sobreavaliada nos indiví-
duos obesos com coxas volumosas, devido à difi- Orientações para o clínico
culdade em se conseguir o contacto da saliência
dos côndilos femorais (face interna dos joelhos), Apesar de o joelho valgo constituir uma patologia
devendo recorrer-se então à medição radiológica. muito frequente e habitualmente benigna, deverá
Joelho varo: neste caso a avaliação do desvio ser solicitada a observação do ortopedista sempre
faz-se medindo a distância entre a face interna de que se verificar a sua associação a alguma das
ambos os joelhos, com o doente na posição acima seguintes condições:
descrita mas com os pés juntos (maléolos internos • Deformidades múltiplas associadas;
em contacto). O padrão considerado normal do • Valgismo moderado-grave dos joelhos (DIM
varismo altera-se, como já foi referido, ao longo ou distância intermaleolar > 5cm);
dos dois anos primeiros anos de vida, atenuando- • Sintomatologia dolorosa local;
se progressivamente até desaparecer por comple- • Valgismo dos joelhos que não regrediu espon-
to na fase adulta (o joelho adulto tem um discreto taneamente, em crianças de idade superior
valgo, mais acentuado no sexo feminino). aos 6-7 anos.
No caso do joelho varo, sempre que persista
Exames imagiológicos para além dos dois anos de idade, há que encami-
nhar a criança à consulta de Ortopedia.
Os exames imagiológicos destinados a caracteri-
zar os desvios suspeitos como patológicos, podem
ser solicitados pelo pediatra, até para facilitar uma
eventual primeira observação pelo ortopedista.
Eis os recomendados:
• Radiografia extralonga, “em carga” (ortosta-
tismo) dos membros inferiores;
• Radiografias em dois planos, ântero-posterior
e perfil, dos joelhos (para definição de even-
tuais alterações locais).
1172 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

241
tece quando os pais ou educadores levantam ou
suspendem a criança pela mão; ou seja, o membro
superior é submetido a um esticão brusco.
A sintomatologia resume-se a dor intensa e
impotência funcional imediata, com o cotovelo
bloqueado em extensão e pronação. O diagnóstico
PATOLOGIA REGIONAL é fácil e a terapêutica também, embora seja acon-
selhável ser executada por especialista. A mano-
ESPECÍFICA DO MEMBRO bra de redução dessa subluxação consta da mani-
pulação imediata, suave, do cotovelo, reproduzin-
SUPERIOR do o movimento contrário ao que esteve na
origem da lesão; ou seja, realizar simultaneamente
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo a compressão da cúpula radial contra o côndilo
umeral, a supinação e a flexão do cotovelo, man-
tendo este em repouso transitório (“braço ao
peito” com o cotovelo em flexão a 90° e supinação
Importância do problema completa).
O prognóstico costuma ser excelente, pelo que
Excluindo as doenças com compromisso geral do a sua importância não corresponde à intensidade
esqueleto e as situações localizadas ou regionais de das queixas nem ao sentimento de culpa do adul-
natureza congénita, habitualmente raras (si- to, causador involuntário da situação.
nostose radiocubital com bloqueio da prono-su-
pinação, luxação completa ou parcial da cabeça Osteocondroses
radial com proeminência posterior desta e res-
trição da mobilidade do cotovelo, as “mãos botas”, Sob esta designação costuma considerar-se um
etc.), infecciosa e tumoral, pode dizer-se que a conjunto de doenças caracterizadas pelo apareci-
patologia deste segmento anatómico é dominada mento de alterações necrótico-degenerativas, de
pelas situações de origem traumática e suas seque- natureza provavelmente isquémica, mais ou
las, as quais não serão abordadas por ultrapas- menos extensas e localizadas nos núcleos de ossi-
sarem o âmbito do livro. ficação de algumas epífises ou apófises; a causa é
Neste capítulo apenas será feita referência: 1) à desconhecida embora pareça relacionada com
chamada pronação dolorosa de Ombredanne ou traumatismos repetidos. A doença evolui espon-
simplesmente pronação dolorosa, por ser uma taneamente para a cura com revascularização da
situação comum causando alguma perplexidade zona necrótica e reconstituição do tecido ósseo
ao clínico menos habituado a lidar com patologia normal em tempo variável, mas habitualmente
do esqueleto infantil; 2) e às osteocondroses. longo (meses ou até anos), dependendo da sua
localização anatómica.
Pronação dolorosa As mais importantes do ponto de vista clínico
situam-se no membro inferior, pelo que as abor-
Verifica-se nas crianças pequenas (até cerca dos 4- daremos com mais pormenor no capítulo 242. No
5 anos), ainda com grande elasticidade cápsulo- entanto, podem também aparecer no membro
ligamentar e musculatura débil. Consiste numa superior, mas só muito raramente, localizando-se
subluxação da cabeça radial por distensão ou a nível do cotovelo e carpo e recebendo denomi-
ruptura parcial do ligamento anular do rádio que nação diferente consoante o segmento ósseo
se desloca sobre a cabeça deste, interpondo-se às atingido (doença de Panner – côndilo umeral;
superfícies articulares da cúpula cefálica radial e doença de Kienbock – no semilunar; doença de
do côndilo umeral, bloqueando os movimentos. O Burns – cabeça do cúbito).
mecanismo da lesão deve-se à tracção do membro, A sintomatologia, dependendo da localização
em extensão do cotovelo e pronação, como acon- e do estádio de evolução da doença, é dominada
CAPÍTULO 242 Patologia regional específica do membro inferior 1173

242
pela dor, habitualmente moderada, e pela inca-
pacidade funcional, mais ou menos intensa que
lhe está associada. O diagnóstico baseia-se na
clínica e na imagiologia, sendo suficiente o exame
radiológico convencional, em dois planos perpen-
diculares. A imagem visualizada na radiografia
simples corresponde ao estádio de evolução do PATOLOGIA REGIONAL
processo patológico: de início, condensação óssea
(atrofia e hipercalcificação ⁄ necrose), fragmen- ESPECÍFICA DO MEMBRO
tação dessa imagem (revascularização ⁄ início da
reossificação); ulteriormente, normalização das INFERIOR
características radiográficas da zona afectada, com
ou sem alteração da sua morfologia (cura do J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo
processo, com ou sem deformidade residual).
O tratamento é sintomático (antiálgicos e/ou
anti-inflamatórios), a que se associa o repouso ou
descarga da zona afectada, nomeadamente em Relativamente ao grupo nosológico em epígrafe,
período de agudização das queixas dolorosas. O adoptou-se critério de abordagem sucinta, de
prognóstico é, em geral, excelente. acordo com a região anatómica e, dentro desta,
com a sintomatologia mais frequente. (Quadro 1
do capítulo 236).

Anca dolorosa

A dor com origem na articulação coxofemoral


localiza-se habitualmente a nível da virilha, po-
dendo irradiar para a face anterior da coxa. Por
vezes, surge apenas com esta última localização
ou até só na face interna do joelho e terço distal da
face interna da coxa. Neste caso trata-se de uma
dor referida, em virtude de a enervação cutânea
desta zona depender do nervo obturador, do qual
também depende a maior parte da enervação da
articulação coxofemoral.
Como sinal isolado, a dor não é muito fre-
quente a não ser nas fases iniciais da patologia
subjacente, a qual determina também a variabili-
dade da sua natureza e evolução. A outra sin-
tomatologia que rapidamente se lhe associa é a
alteração da mobilidade, geralmente manifestada
como limitação do arco normal do movimento
articular, podendo acompanhar-se também de
impotência funcional ou incapacidade para mobi-
lizar e apoiar o respectivo membro.
A idade constitui um dado importante para a
orientação do diagnóstico da patologia responsá-
vel pela dor. Assim, na criança pequena que ainda
não sabe dizer o que sente, a relativa imobilidade
do membro e as reacções de defesa (choro, agi-
1174 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

tação, etc.) à tentativa de mobilização deste, são coxofemoral, de aparecimento mais tardio mas que
manifestações objectivas de dor e deverão sempre se manifesta também por dor intensa. Surge no iní-
levantar a suspeitar de artrite séptica em fase ini- cio da adolescência, entre os onze e os dezasseis
cial, exigindo as medidas já descritas para a sua anos de idade, e está relacionada com as alterações
detecção e tratamento. hormonais dessa fase do desenvolvimento e sua
repercussão sobre as cartilagens de crescimento. É
Sinovite transitória da anca habitual estar associada a traumatismos de intensi-
Na criança já em fase da marcha e até ao final da dade variável, predominando no sexo masculino,
idade escolar (3-8 anos), a causa mais frequente de nomeadamente em indivíduos com um morfotipo
dor na coxofemoral é a chamada sinovite tran- particular, (adiposogenital ou longilíneo).
sitória da anca. Consiste numa situação infla- Consiste numa falência das propriedades
matória da articulação de natureza reactiva, em mecânicas da cartilagem de conjugação ou fise,
geral a um traumatismo, mas também a infla- situada entre a cabeça e o colo femoral, permitin-
mações prévias ou coincidentes noutros locais do do que a epífise, sob a acção das forças que sus-
organismo. Acompanha-se de derrame intra-arti- tenta, e devido à configuração morfológica dessa
cular de volume variável, mantendo-se a sin- extremidade do fémur, vá escorregando sobre o
tomatologia, em regra, cerca de uma semana. topo do colo femoral, no sentido posterior e infe-
A existência de um derrame de dimensões rior, acabando nos casos extremos por ficar
apreciáveis pode originar uma atitude da articu- implantada na porção inferior da face posterior do
lação em semi-flexão, ligeira abdução e rotação referido colo. (Figura 1)
externa; tal corresponde à posição de maior Dependendo do grau de deslocamento, do
capacidade da cavidade articular, espontanea- tempo decorrido desde o início da sintomatologia,
mente adoptada para acondicionar melhor e com e da incapacidade funcional com que se apresenta,
menor tensão esse derrame, numa tentativa in- assim existem outras tantas classificações, numa
consciente de defesa com consequente diminuição tentativa de orientação terapêutica e prognóstica.
da dor. Concomitantemente, e com o mesmo si- A mais recente, e talvez mais determinante neste
gnificado, pode haver incapacidade funcional e aspecto, é a que considera duas formas clínicas: as
limitação da mobilidade, sendo a rotação interna e epifisiólises estáveis e as instáveis.
a adução os primeiros movimentos alterados. Nas primeiras (estáveis) o doente, apesar das
Os exames laboratoriais para avaliação do esta- queixas, consegue fazer marcha sem recorrer às
do geral e da repercussão da doença são inconclu- canadianas e o tratamento adequado é bem sucedi-
sivos. do em cerca de 95% dos casos, sendo o prognóstico
Quanto aos exames imagiológicos, o radiogra- quanto à função bom ou razoável.
ma simples não revela alterações, mas tem inte-
resse para detectar outro tipo de patologia; a
ecografia permite confirmar a presença do der-
rame e respectivo volume.
O tratamento limita-se ao repouso e à adminis-
tração de anti-inflamatórios, evoluindo o episódio
para a cura espontânea, sem deixar sequelas; note-
-se, porém, que não é rara a evolução por crises
repetidas com as mesmas características ao longo
do referido intervalo de idades. Estas crianças
podem vir a desenvolver, mais tarde, uma osteo-
condrose da cabeça femoral, a chamada doença de
FIG. 1
Legg-Calvé-Perthes.
Representação esquemática do deslizamento do núcleo
Epifisiólise femoral proximal cefálico do fémur sobre o respectivo colo: epifisiólise femoral
Trata-se doutra patologia localizada à articulação proximal (EFP).
CAPÍTULO 242 Patologia regional específica do membro inferior 1175

Nas segundas (instáveis), o apoio do membro e


a marcha são impossíveis sem canadianas, o escor-
regamento costuma ser considerável, e o tratamen-
to apenas resulta em menos de 50% dos casos; a
percentagem de complicações, nomeadamente a
necrose avascular da cabeça femoral, é muito ele-
vada.
A sintomatologia é local e dominada pela dor,
com a distribuição característica da sua origem na
articulação coxofemoral (virilha, face anterior da
raiz da coxa, e referida à face interna do terço distal
da coxa). Está sempre presente, embora com inten-
sidade variável, podendo ser mais acentuada nas
fases agudas da doença (primeiras três semanas) e
FIG. 2
manter-se assim ou atenuar-se depois, evoluindo
para a cronicidade. Com a progressão do desloca- Radiografia anteroposterior da pelve de um doente com EFP
mento da epífise e posicionamento relativo do colo esquerda.
femoral, o membro vai assumindo uma rotação
externa que acabará por se fixar, limitando ou até
perdendo a rotação interna. Simultaneamente,
perde também comprimento (cerca de 2 a 3 cm),
diminuindo o braço de alavanca dos músculos glú-
teos e, consequentemente, a sua eficácia mecânica,
traduzida pelo sinal de Trendelenburg que estes
doentes sempre apresentam. A marcha, se possível,
é claudicante não só pela insuficiência dos referidos
músculos, como também pela dor, fazendo-se em
rotação externa do membro.
O diagnóstico baseia-se na clínica e nos exa-
mes imagiológicos, sendo a radiologia conven-
cional suficiente para o estabelecer. Para isso, será
indispensável obter dois radiogramas da bacia,
FIG. 3
um com os membros inferiores em posição neutra,
e outro com a coxa flectida a 90º e abdução de Radiografia da coxofemoral esquerda do mesmo doente;
cerca de 60º; será fácil visualizar o perfil do colo nota-se desvio considerável do núcleo cefálico femoral.
femoral e assim detectar qualquer tipo de desvio
da posição relativa da epífise femoral (Figuras 2 e
3). cações essas que sempre comprometem, em grau
Os restantes exames (RMN e TAC) só têm variável, a funcionalidade da articulação.
interesse para uma melhor definição da orien-
tação terapêutica. Doença de Legg-Calvé-Perthes
O tratamento é sempre cirúrgico e deverá ser Esta doença, que será abordada com mais por-
considerado urgente; consiste na fixação da ca- menor adiante, pode evoluir com sintomatologia
beça femoral ao colo, com ou sem reconstituição dolorosa da anca, embora esta não seja a manifes-
prévia da sua normal posição anatómica. Não é tação clínica predominante. Neste caso a dor é
isento de taxa elevada de complicações (necrose habitualmente moderada, localizada à virilha ou
avascular ou condrólise ⁄ rigidez articular ⁄ artrose referida à face ântero-interna do terço distal da
precoce), dependente da magnitude do desvio e coxa e está relacionada com o movimento. De
das manobras cirúrgicas empreendidas, compli- salientar, porém, que pode inclusivamente nem
1176 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

existir, passando a doença despercebida aos pais e resume-se à instabilidade articular, detectável por
evidenciando-se só mais tarde, já na sua fase final, manobras de exploração clínica (de Barlow e
por encurtamento do membro e restrição dos Ortolani) habitualmente utilizadas.
movimentos (rotação interna e abdução). A manobra de Barlow uma vez realizada,
“provoca a saída” da cabeça femoral do acetábulo.
Alterações da mobilidade da anca Para realizar esta manobra, as ancas e os joelhos
devem estar flectidos a 90°. As mãos do obser-
Anca instável vador seguram o membro inferior do recém-
Sendo a coxofemoral uma enartrose (articulação -nascido colocando o polegar na face interna da
constituída por superfície articular de forma prati- coxa e os restantes dedos na face externa. Aplica-
camente esférica), possui, não só uma mobilidade se pressão no joelho em direcção posterior en-
em todos os planos do espaço, como também uma quanto se faz adução do fémur (Figura 4). Se a
estabilidade considerável, acrescida pelas manobra for positiva sente-se um ressalto em
resistentes estruturas cápsulo-ligamentosas que a “clique” que corresponde à luxação da cabeça
integram. Assim, para que a instabilidade se evi- femoral e à sua passagem sobre o rebordo do
dencie, será necessário que os componentes ós- acetábulo.
seos percam a sua morfologia ou as suas relações A manobra de Ortolani é um “sinal de recolo-
anatómicas normais, a qual é intensificada pela cação” da cabeça femoral dentro do acetábulo. A
distensão ou fragilidade das referidas estruturas posição de colocação das mãos é idêntica à da
de contenção. manobra de Barlow. No entanto, o observador
Estas circunstâncias podem ser congénitas, executa uma manobra de abdução enquanto pres-
como no caso da chamada displasia de desen- siona o grande trocânter em sentido anterior e
volvimento da anca, manifestando-se a instabili- interno (Figura 5). Se a manobra for positiva
dade logo à nascença, ou surgir mais tarde, como sente-se igualmente um ressalto e um “clique”
resultado de situações patológicas prévias, princi- que corresponde à redução da cabeça femoral
palmente de natureza traumática ou infecciosa dentro do acetábulo e à sua passagem sobre o
(artrite séptica). rebordo posterior do acetábulo.
Nesta alínea é apenas considerada a displasia No RN com a anca luxada verifica-se retracção
de desenvolvimento da anca (DDA), denomi- dos músculos adutores. Assim, depois de idades
nação que deve substituir a impropriamente superiores a um/três meses, já não é possível
chamada luxação congénita da anca porque, de reduzir a anca com a manobra de Ortolani.
facto, as crianças não nascem com a anca luxada. A obrigatoriedade do diagnóstico precoce,
Como o nome indica, consiste numa alteração feito imediatamente após o nascimento, permite
dos componentes articulares que, embora pre- instituir uma actuação que é relativamente sim-
sentes e completamente formados quando do ples e de êxito assegurado na maioria dos doentes,
nascimento, mantêm uma morfologia e orientação melhorando significativamente o prognóstico.
ainda fetais, consideradas anómalas para uma Esta evidência levou à aplicação em todos os paí-
criança nascitura. Este atraso do desenvolvimento ses, a partir da década de setenta do século vinte,
da articulação, se não for detectado e correcta- de um programa de rastreio clínico desta situação
mente tratado à nascença, persiste; e, nos meses que faz parte obrigatória do primeiro exame clíni-
subsequentes até à idade da marcha, induz as co do recém-nascido. Os casos duvidosos são
condições mecânicas favoráveis à progressiva encaminhados para o especialista para esclareci-
perda de contacto entre as superfícies articulares, mento e eventual tratamento, conseguindo-se com
ou seja, à luxação da coxofemoral. Assim, a luxa- esta estratégia diminuir de forma drástica o
ção é tardia e só ocorre se o diagnóstico passar número de doentes que aparecem já em fase de
despercebido e não der lugar ao tratamento atem- luxação, muito mais difíceis de tratar e de resulta-
pado e adequado. do sempre problemático. (Capítulo 327)
A sintomatologia, como a criança ainda não Os restantes sinais clínicos habitualmente des-
sabe queixar-se e a DDA não se traduz por dor, critos nesta doença, para além da discreta assime-
CAPÍTULO 242 Patologia regional específica do membro inferior 1177

não a estabilizam, descaindo para o lado contrário


à lesão em vez de se manter na horizontal, com
evidente desnível das cristas ilíacas e das corre-
spondentes pregas glúteas.
Nos casos de bilateralidade há ainda a referir a
hiperlordose lombar, por báscula dianteira da
bacia, e a “marcha de pato”, também denominada
de Duchene, resultante da falta de apoio acetabu-
lar da cabeça femoral e consequente alteração da
eficácia dos músculos glúteos.
Os exames complementares de diagnóstico
FIG. 4
são do foro imagiológico. A ecografia é o exame
Manobra de Barlow – colocação dos dedos da mão do obser- de eleição nas quatro primeiras semanas de vida,
vador com a anca em abdução média e pressão exercida pelo período em que o núcleo cefálico não está ossifi-
polegar na face ântero-interna da raiz da coxa, a fim de cado, impossibilitando uma leitura correcta do
testar a estabilidade da articulação.
radiograma simples. Tal exame exige, porém,
equipamento adequado e experiência por parte de
quem a executa e interpreta, para que os resulta-
dos possam ser credíveis.
A partir das quatro semanas de vida a radio-
logia convencional é suficiente para acompanhar
a evolução da morfologia articular.
O tratamento na fase inicial é simples e con-
siste em manter a coxofemoral em flexão de 90°,
abdução de cerca de 30 a 40º e rotação neutra;
existem diversos dispositivos para manter esta
posição favorável à progressão do crescimento
adequado, com normalização da anatomia e
funcionalidade articulares. Entre o quarto e o
FIG. 5
sexto mês de vida, se esta medida não resultar,
Manobra de Ortolani – posição das mãos do observador que, será sempre possível tentar a redução incruenta
partindo da adução completa das ancas, induz a sua abdução sob anestesia geral seguida de imobilização
passiva até ao extremo do movimento. rígida; se houver dúvida quanto ao benefício
desta orientação, ou após os seis meses de
tria da abdução (diminuída do lado afectado), idade, deverá optar-se pelo tratamento cirúrgi-
nem sempre têm significado patológico, ou se o co adequado.
têm, só se tornam aparentes mais tarde, já depois Qualquer tipo de tratamento está sempre
se dar a luxação da cabeça femoral. Entre eles con- sujeito a complicações, com maior frequência na
tam-se a assimetria das pregas, o encurtamento do modalidade cirúrgica, das quais a mais impor-
membro, a diminuição franca da abdução, o tante é a necrose avascular do núcleo cefálico,
alargamento assimétrico do períneo, a marcha dando lugar a deformidade mais ou menos mar-
claudicante e o sinal de Trendelenburg. Estes dois cada da cabeça e colo femorais, limitação fun-
últimos sinais traduzem a insuficiência dos mús- cional da articulação, e artrose precoce.
culos glúteos devido ao encurtamento do braço de
alavanca e perda do seu ponto de aplicação fixo Anca bloqueada
(cabeça femoral contida no acetábulo), resultantes As alterações da mobilidade da anca estão quase
da luxação. Por essa razão, quando a pelve está sempre presentes na maioria das situações pato-
sustentada apenas pelo membro inferior sede da lógicas da anca dadas as características anatómi-
lesão (apoio num só pé-monopodálico), os glúteos cas da articulação (esfericidade das superfícies
1178 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

articulares, extenso e íntimo contacto das mes- Sob o ponto de vista fisiopatológico, as referi-
mas). A manifestação clínica de tais alterações é das alterações produzem uma atrofia relativa e
variável, consoante a gravidade da situação: perda de consistência do núcleo de ossificação
desde a restrição ligeira dos movimentos até ao cefálico do fémur, deixando sem suporte adequa-
bloqueio completo ou anquilose da articulação. do a cartilagem articular suprajacente que cola-
Devido aos condicionalismos anátomo-fun- psa, perdendo-se a esfericidade da cabeça femo-
cionais articulares, o primeiro movimento a ficar ral, indispensável à manutenção da mobilidade
limitado é a rotação interna, seguindo-se-lhe a normal da articulação (Figura 6). O referido cola-
abdução e, só depois, os restantes movimentos. pso e consequente deformidade da cabeça femoral
Dependendo da patologia de base e da sua evolu- vão depender da extensão e da localização dessas
ção, esta restrição não progride necessariamente lesões, estando descritas formas clínicas diversas
até à anquilose, que se faz habitualmente com a com elas relacionadas.
anca em posição viciosa de rotação externa, Ao evoluir para a cura, ou seja, para a reossifi-
adução e semi-flexão. Por isso, o que se verifica na cação do núcleo, o resultado final dependerá da
maioria das vezes é a sua estabilização num dos extensão da doença, deformidade já existente,
estádios intermédios, com ou sem regressão ulte- idade da criança e tratamento executado. Em
rior. regra, é possível verificar-se alguma deformidade
A limitação da mobilidade, como sintoma iso- residual, mais ou menos importante que, nos
lado, é rara, acompanhando-se habitualmente de casos piores termina na chamada “coxa magna”;
dor simultânea ou prévia, conforme já foi referido, esta corresponde a uma alteração da forma da
e, por vezes também, de impotência funcional, extremidade superior do fémur, caracterizada por
embora neste caso costume aparecer só mais tarde. cabeça volumosa, mais ou menos aplanada, com
As situações patológicas mais frequentes que colo femoral curto e espesso, e encurtamento do
podem manifestar-se apenas por esta limitação membro respectivo.
são o derrame articular discreto, por exemplo, de As manifestações clínicas iniciais, mais evi-
natureza traumática ou inflamatória, e a doença dentes e importantes, são a limitação da mobili-
de Legg-Calvé-Perthes (ou mais simplesmente dade, concretamente da rotação interna, seguida
doença de Perthes). da abdução. Pode acompanhar-se de dor rela-
A doença de Legg-Calvé-Perthes pertence ao cionada com o movimento, mais ou menos inten-
grupo das denominadas osteocondroses que, con- sa, mas na maioria das vezes discreta ou nula.
forme já referimos, constituem um conjunto de Localiza-se, como dissemos, na virilha e face ante-
afecções de etiologia desconhecida, caracterizadas
pelo aparecimento de alterações necrótico-dege-
nerativas, de natureza isquémica com extensão
variável, e localizadas nos núcleos de ossificação
de algumas epífises ou apófises. Evoluem de
forma espontânea, mas muito lentamente, para a
cura, dependendo a sua gravidade do segmento
ósseo atingido. No caso particular da doença de
Perthes, ao afectar a epífise proximal do fémur,
componente essencial da articulação mais volu-
mosa do corpo humano, a sua importância é con-
siderável, pelas consequências funcionais nocivas
que dela podem resultar.
Aparece nas crianças dos três anos até ao fim da
idade escolar (10-11 anos), com um pico de incidên-
FIG. 6
cia dos três aos oito anos; é mais frequente no sexo
masculino (5/1) e pode ser bilateral em cerca de Doença de Legg-Calvé-Perthes (DLCP): representação
1/5 dos casos (incidência ~1/1.200 crianças). esquemática da evolução da doença (consultar texto).
CAPÍTULO 242 Patologia regional específica do membro inferior 1179

rior da raiz da coxa, sendo porém frequente a pre-


sença apenas de dor referida à face ântero-interna
do terço distal da coxa, a qual pode ser interpreta-
da erroneamente como manifestação de patologia
do joelho. Na fase terminal da doença a sintoma-
tologia dolorosa, se existiu, desaparece, manten-
do-se apenas o défice da mobilidade e a possível
atitude viciosa do membro, em ligeira rotação
externa e adução com encurtamento.
O diagnóstico, nas fases iniciais da doença, é
fundamentalmente clínico, mas pode vir a ser ape-
nas de presunção, com base na exclusão de outras
entidades mais evidentes do ponto de vista da sin-
tomatologia e das alterações precocemente detec-
FIG. 7
táveis pelos exames complementares, laboratori-
ais ou imagiológicos. O diagnóstico definitivo só é Radiografia ântero-posterior da bacia de um doente com
possível em presença das alterações visíveis DLCP à esquerda em fase de necrose; ancas em posição
nestes últimos exames. A radiologia convencional anatómica.
(radiogramas ântero-posteriores da bacia, com os
membros inferiores em posição neutra e em
abdução e rotação externa) é, em geral, suficiente
para caracterizar o estádio e a evolução da doença,
mas tem o inconveniente de só revelar alterações
ao fim de três a quatro semanas de evolução da
doença.
A tradução radiográfica destas lesões tem
aspectos diferentes consoante a fase de evolução,
correspondendo a necrose a uma imagem de con-
densação cálcica do núcleo, de dimensões inferio-
res ao normal, com desaparecimento da estrutura
trabecular regular que habitualmente se observa.
FIG. 8
(Figuras 7 e 8)
A ressonância magnética nuclear (RMN), pode Radiografia ântero-posterior da bacia de um doente com
ter alguma utilidade nas fases precoces da doença DLCP à esquerda em fase de necrose; ancas em abdução e
pelas indicações que fornece sobre a integridade rotação externa (para visualização do perfil do colo femoral).
vascular do núcleo de ossificação cefálico, mas a
falta de correlação dos dados fornecidos com o prevenir a deformação da cabeça do fémur, con-
resultado à distância, não permite ainda retirar seguindo que a transmissão das forças a que se
ilações sobre o prognóstico e a necessidade de te- encontra sujeita a cabeça femoral se faça de modo
rapêutica activa uniforme em toda a sua extensão e não haja sobre-
O tratamento, que deve ser orientado pelo carga de umas zonas em relação a outras, dando
especialista, não é electivo porque, não se sabendo origem ao referido colapso da cartilagem articular.
a causa da doença, não se consegue dominar efi- Para tal, há que manter a cabeça femoral bem cen-
cazmente a sua evolução natural que é sempre trada no acetábulo e perfeitamente coberta por
lenta (cerca de dois anos). De facto, a actuação este, enquanto o núcleo cefálico passa pelas suces-
limita-se a medidas terapêuticas secundárias, cru- sivas fases de necrose e fragmentação (com a con-
entas ou não, de modo a minorar as suas sequelas. sequente perda de consistência e aumento da sua
Assim, seja qual for a modalidade de trata- plasticidade, até à fase final de reconstituição e
mento utilizada, o seu objectivo primordial será remodelação ósseas).
1180 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Na fase de sequelas, o tratamento é sempre


cirúrgico e tendente a conservar ou melhorar a
congruência articular, prevenindo a artrose
secundária precoce.
O prognóstico é muito variável e depende, não
só do padrão das lesões, como também da idade e
do sexo dos doentes; é mais favorável no sexo
masculino e quanto mais nova for a criança, devi-
do a maior capacidade de reconstrução e remode-
lação ósseas.

Deformidade coxofemoral

Em virtude das particularidades anatómicas da


articulação coxofemoral, nem sempre é possível
detectar uma deformidade, principalmente nas
suas fases iniciais. Localizada profundamente e
envolvida por massas musculares volumosas, o
que dificulta o acesso directo à sua exploração
clínica, a anca pode deformar-se de modo insi-
dioso, sem se notar de imediato, a não ser que se
manifeste por interferência rápida na mobilidade
FIG. 9
articular e na atitude do membro.
A deformidade pode ser temporária, por con- Teste de Thomas positivo à direita.
tractura reactiva da musculatura periarticular a
um processo inflamatório, com derrame, assumin- Realiza-se este teste com o doente em decúbito
do o membro a postura já descrita (semi-flexão, dorsal, mandando-o fazer a flexão máxima da
rotação externa e ligeira abdução); tal corresponde coxa contrária e verificando o que acontece à
à posição de maior capacidade da cavidade arti- posição da anca suspeita; se a respectiva coxa se
cular, retomando a posição neutra, normal, uma mantém assente no plano do leito, o teste de
vez resolvida a situação. Thomas será negativo, traduzindo ausência de
A deformidade pode também ser permanente, contractura em flexão; se fica elevada em relação
com alteração da anatomia normal ósteo-articular, ao plano do leito, o teste de Thomas diz-se positi-
ou seja, dos componentes osteocartilaginosos vo, o que significa a existência dessa contractura.
e/ou capsulofibrosos da articulação. Para além da clínica, a caracterização da na-
As manifestações clínicas nos estádios mais tureza da deformidade faz-se recorrendo à radio-
avançados da deformidade traduzem-se por logia convencional, com radiogramas obtidos
encurtamento do membro, associado a défice da numa ou mais posições dos membros inferiores.
mobilidade, ou até bloqueio desta, com alteração
mais ou menos marcada da posição do referido Joelho doloroso (gonalgia)
membro, que perde definitivamente a capacidade
espontânea de atingir a posição anatómica normal. Constitui uma queixa que motiva frequentemente
A citada posição viciosa é muito variável, con- consulta de Ortopedia Pediátrica; a origem pode
soante a patologia de base que a determina, mas ser atribuível a situações patológicas de importân-
assume quase sempre uma flexão fixa (que se cia muito diversa. Assim, tanto pode representar
detecta pelo chamado teste de Thomas) (Figura uma queixa incaracterística, fugaz e recorrente,
9), à qual podem estar associados outros compo- sem repercussões funcionais evidentes, como cor-
nentes, habitualmente de adução, com ou sem responder a uma manifestação clínica de proces-
rotação externa. sos patológicos relevantes, localizados no próprio
CAPÍTULO 242 Patologia regional específica do membro inferior 1181

joelho ou até à distância, como já referimos no consideráveis, torna-se notório o aumento de volu-
caso da dor referida proveniente da anca. me do joelho, assumindo este, espontaneamente,
No âmbito da patologia do joelho sobressaem: uma posição viciosa de semi-flexão, correspon-
a de natureza traumática, os processos infeccio- dente à posição de maior capacidade articular. Por
sos e inflamatórios, as osteocondroses, os tumo- isso mesmo, também se denomina posição de defe-
res, as síndromas de hiperpressão circunscrita sa anti-álgica porque, ao permitir uma maior acu-
articular, as displasias, etc.. mulação de líquido, diminui a pressão exercida
A dor tem características muito variáveis por este nas estruturas cápsulo-ligamentosas,
(intensidade, localização, relação com factores que responsável pelo desencadear do estímulo do-
a aliviam, duração, etc.) de acordo com sua loroso.
origem. Pode associar-se a uma série de outros Por vezes, essa limitação da mobilidade apa-
sinais e sintomas, como: dificuldade em subir rece bruscamente, no decurso da exploração do
escadas, em se manter sentado muito tempo ou movimento, como uma resistência elástica mas
em passar da posição sentada à de pé; bloqueio real que não é possível vencer e a que chamamos
articular; aumento de volume do joelho por der- bloqueio da articulação. Este é normalmente rela-
rame articular; e limitação da mobilidade. cionado com alterações da regularidade das
A localização da dor, embora seja por vezes superfícies articulares que, interpondo-se, dificul-
difícil de precisar por parte dos doentes, se asso- tam ou impedem a progressão do movimento; tal
ciada a algumas das queixas anteriormente referi- acontece, por exemplo, no caso de lesões osteo-
das, pode indiciar a sua origem. Assim, quando é condrais ou dos meniscos, de origem traumática,
anterior e acompanhada de dificuldade em per- ou de condromatose, ou ainda, em casos raros, da
manecer muito tempo sentado ou em subir chamada osteocondrite dissecante.
escadas, sugere patologia da articulação patelo-
femoral; dor na face externa ou interna do joelho, A osteocondrite dissecante do joelho é uma
associada a bloqueio sugere patologia meniscal; doença característica da segunda década de vida,
instabilidade no plano frontal acompanhada de embora possa surgir com menor frequência na cri-
dor pode significar rotura do ligamento lateral ança mais velha e no adulto jovem. Caracteriza-se
respectivo, etc.. por necrose óssea circunscrita, subcondral, mais
ou menos extensa, constituindo um fragmento
Alterações da mobilidade do joelho osteocartilaginoso que se destaca habitualmente
em grau variável do respectivo leito ósseo, poden-
Num joelho previamente são, estas alterações do vir a destacar-se por completo, transformando-
manifestam-se de duas maneiras extremas: limi- se num corpo livre intra-articular. Localiza-se com
tação da mobilidade ou exagero da mesma, tendo maior frequência na porção média, da vertente
como referência os limites normais do movimento. externa do côndilo interno, mas pode aparecer
noutras zonas do joelho, como na porção posterior
Limitação da mobilidade do côndilo externo, na tróclea femoral ou na su-
A limitação da mobilidade pode ter expressões perfície articular da rótula. Admite-se que a sua
diversas consoante a sua origem, costumando origem esteja relacionada com traumatismos
estar associada a dor e/ou derrame intra-articular. repetidos e isquémia em doentes com “esqueleto
Tal derrame, habitualmente relacionado com trau- imaturo”, pelo que é frequente encontrar-se em
matismos ou processos inflamatórios e infeccio- praticantes de desporto intensivo.
sos, traduz sempre um sofrimento articular. Se for As manifestações clínicas traduzem-se por:
de volume suficiente, é detectável pelo chamado dor espontânea ou relacionada com o esforço, bem
sinal de “choque da rótula”, restringindo a mobili- como desencadeada ou agravada pela pressão da
dade nos extremos do arco de movimento normal zona lesada; derrame ou até hemartrose; atrofia
da articulação, ou seja, dificultando ou impedindo da musculatura da coxa; e dificuldade na mobi-
a execução “dos últimos graus” da extensão e da lização da articulação com eventuais episódios de
flexão máximas. No caso de atingir proporções bloqueio transitório.
1182 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

O diagnóstico é clínico e imagiológico (radio- ao que acontece na anca por se tratar de uma arti-
logia convencional) necessitando, por vezes, de culação superficial, coberta por tegumentos de
projecções especiais para melhor visualização da pouca espessura) são fácil e rapidamente detec-
lesão. táveis pela observação clínica. Para efeitos de sis-
O tratamento deverá ser conduzido por espe- tematização, estas deformidades, a que já nos refe-
cialista e depende das características da lesão rimos, podem descrever-se no plano frontal (joelho
(localização, extensão, e fase de evolução da doen- varo e joelho valgo /genu varum e genu valgum), no
ça) assim como do grau de maturidade esquelética plano sagital (joelho flexo e joelho recurvado/genu
do doente: pode variar entre a modalidade incru- flexum e genu recurvatum), ou serem mistas, assu-
enta e a cruenta ou cirúrgica, feita habitualmente mindo formas complexas nos diferentes planos do
por via artroscópica. espaço. A sua origem está em relação com
transtornos intrínsecos da articulação (alterações
Exagero da mobilidade morfológicas das superfíciees articulares e do
O exagero da mobilidade pode considerar-se de aparelho cápsulo-ligamentar) ou extrínsecos (pa-
dois tipos: tologia neuromuscular ou óssea, justa-articular –
– hipermobilidade – se o movimento se faz tumores, sequelas de trauma, etc.).
para além dos limites normais; Estas transformações da configuração normal
– instabilidade – se existe défice de solidez da do joelho, não considerando as situações genera-
articulação, mesmo quando em repouso, por lizadas mas apenas aquelas localizadas a esta
incapacidade de contenção das suas estru- articulação, podem ter origem congénita, e mani-
turas cápsulo-ligamentares. festar-se logo ao nascer, como no caso da luxação
Ambas as modalidades, quando ligeiras ou congénita dos joelhos, ou ser adquiridas. Neste
moderadas, podem ser consideradas normais nas caso estabelecem-se mais tarde, podendo a sua
crianças muito jovens (até aos três/quatro anos), causa inserir-se, como sempre, num dos grandes
devido à hiperelasticidade da cápsula e dos liga- capítulos da patologia geral; ou seja, pode ser
mentos de reforço, bem como a uma certa hipo- idiopática, traumática, inflamatória, tumoral,
tonicidade da musculatura protectora dessas neurológica ou vascular.
estruturas. A elas se deve, nessas idades, o apareci- No âmbito das deformidades adquiridas, já
mento de um desvio mais ou menos acentuado do nos referimos aos desvios patológicos dos eixos de
alinhamento dos joelhos no plano frontal (joelho causa idiopática, susceptíveis de tratamento, do
varo e valgo/genu varum e valgum) ou no plano foro do especialista.
sagital (joelho em hiperextensão/genu recurvatum), As deformidades de origem traumática, tam-
detectáveis nas seguintes circunstâncias: quando o bém importantes, podem dar lugar a defeitos con-
doente assume a bipedestação; ou, estando este em sideráveis, dependendo do tipo de lesão das carti-
decúbito dorsal, se testa a solidez látero-medial da lagens de crescimento fisárias da extremidade dis-
articulação, ou se explora e força a extensão do tal do fémur e proximal da tíbia.
joelho para além dos limites normais. O mesmo acontece com as deformidades de
A existência de hipermobilidade ou instabili- origem inflamatória, particularmente com as
dade anormais para a idade do doente exige a infecções, quer sejam do tipo purulento (artrites
investigação da sua causa; esta poderá residir sépticas), como granulomatoso (tuberculose).
numa deficiência do aparelho cápsulo-ligamentar Seja qual for a causa destes defeitos, o seu dia-
ou na alteração da morfologia normal das superfí- gnóstico não põe habitualmente grandes problemas
cies articulares, hipóteses que a clínica e os exames pela acessibilidade da articulação, não só à explo-
complementares de diagnóstico, particularmente ração clínica, como à investigação complementar,
a imagiologia, permitem esclarecer devidamente. quer imagiológica ou até invasiva (biópsia articular).
O tratamento depende da lesão e é da com-
Deformidade do joelho petência do especialista.
Nesta região anatómica e dentro das deformi-
As deformidades a nível do joelho (contrariamente dades, convém fazer uma referência à doença de
CAPÍTULO 242 Patologia regional específica do membro inferior 1183

Osgood-Schlatter por ser muito frequente e resul- repercutem-se a este nível, o que determina a
tar em deformação visível do contorno do joelho, intensidade de toda a sintomatologia dolorosa. A
a nível da tuberosidade anterior da tíbia. sua localização é fácil de esclarecer pela acessibi-
Pertence ao grupo já referido das osteocon- lidade à exploração clínica, permitindo caracteri-
droses, neste caso da epífise proximal da tíbia; está zar melhor essa dor, identificando com alguma
relacionada com o esforço de tracção exercido precisão a estrutura anatómica lesada.
pelo tendão rotuliano no ponto da sua inserção Quanto às anomalias congénitas que pro-
óssea. Aparece no final da idade escolar e princí- duzem dor, como única ou primeira manifestação
pio da adolescência, e manifesta-se de início por clínica, há que considerar os diferentes tipos de
dor ao esforço em extensão do joelho (correr, subir sinostose (barras ósseas) dos ossos do tarso; é
escadas, etc.) e à palpação da região referida. mais comum e sintomática, a sinostose astragalo-
Segue-se, em fase mais tardia, o aumento de volu- calcaneana (ponte óssea ligando os dois ossos); o
me visível, com proeminência da tuberosidade diagnóstico é imagiológico e pode exigir a
anterior da tíbia. ressecção cirúrgica.
A evolução é arrastada com tendência para a Entre as osteocondroses que aparecem habi-
cura; contudo, em casos raros pode dar lugar à tualmente no pé, há a referir a doença de Köhler
paragem de crescimento da porção anterior da e a doença de Sever. Em ambas a dor é a queixa
epífise tibial respectiva (epifisiodese), originando principal, habitualmente incómoda apenas na
deformação da extremidade proximal da tíbia, marcha , no apoio, ou à palpação local; no primei-
com inclinação anterior do prato tibial e joelho ro caso, situa-se no escafóide társico e no segundo,
recurvado/genu recurvatum. a nível do núcleo de ossificação da apófise poste-
O diagnóstico é clínico e imagiológico (radio- rior do calcâneo. O radiograma simples é sufi-
logia convencional), visualizando-se nos radio- ciente para fazer o diagnóstico, sendo a imagem
gramas simples deste segmento do osso os aspec- da estrutura óssea afectada idêntica, nas dife-
tos já descritos, correspondentes ao respectivo rentes fases da evolução da doença à das osteo-
estádio da doença (fragmentação, necrose, reab- condroses com outras localizações. A doença
sorção e reossificação). segue o curso natural até à cura, sendo o objectivo
O tratamento é quase sempre incruento terapêutico minorar o esforço a que o respectivo
(repouso, antiálgico e anti-inflamatório) exigindo, segmento ósseo está sujeito, até à sua reconsti-
nalguns casos, o recurso a infiltrações locais de tuição espontânea e consequente normalização da
corticosteróides e/ou de soluto de dextrose hiper- sua capacidade de resistência.
osmolar (a 12,5%). Nos defeitos posturais que vulgarmente se
observam no pé, a dor pode ser difusa, irradiando
Pé doloroso a todo o pé, ou localizar-se apenas numa região
deste (antepé ou retropé) de acordo com o tipo de
Na idade pediátrica (excluídas as situações trau- desequilíbrio verificado; está relacionada, não só
máticas, inflamatórias e tumorais), a causa mais com o peso da criança, como também com a bipe-
frequente de dor no pé reside nas calosidades destação. É importante verificar, mediante a
plantares, habitualmente associadas a eventuais observação clínica, se estes pés mantêm a flexibi-
alterações da morfologia ou funcionalidade deste lidade própria das idades jovens ou se, pelo con-
segmento anatómico; estas queixas dolorosas po- trário, existe rigidez à manipulação, com ou sem
dem ainda surgir associadas a anomalias congéni- contractura reactiva da musculatura regional.
tas, a situações de osteocondrose, (também exis- Nesta última circunstância, há que investigar a
tentes a este nível) e a defeitos posturais, resultan- presença de anomalia congénita do tipo da sinos-
do, neste caso, da distensão e fadiga dos complex- tose, ou de situação do foro neurológico.
os sistemas cápsulo-ligamentosos do pé.
Sendo o pé a estrutura mais distal de suporte Deformidades do pé
do organismo, e a bipedestação a atitude normal-
mente assumida, o peso do corpo e os esforços As deformidades do pé, dada a sua constituição
1184 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

anatómica complexa, podem ser difíceis de definir


pela sua multiplicidade e interdependência mútua.
Nesta perspectiva, faremos uma abordagem
dos aspectos essenciais com aplicações práticas na A B
clínica, apenas das três situações mais simples e
evidentes: o pé valgo, o pé cavo e o pé boto.
Outras deformidades, como os metatarsus
adductus (ante-pé desviado para dentro) ou o pé
talo valgo (pé em dorsiflexão exagerada, com
FIG. 10
região dorsal tocando a face anterior da perna) são
menos frequentes e importantes, pelo que nos Representação esquemática de deformidades do pé: A – Pé
limitamos a mencioná-las; geralmente relaciona- plano; B – Pé cavo.
das com má-posição intra-uterina, são evidentes
no recém-nascido, temporárias, verificando-se na No entanto, a persistência desta deformidade
maioria das vezes correcção espontânea, embora no final da infância e na adolescência já não se
possam necessitar de terapêutica, em regra incru- admite como normal, embora possa constituir
enta. uma característica orgânica individual, transmiti-
Convém ainda salientar que todas estas defor- da hereditariamente, permanecendo quase sem-
midades implicam o parecer e orientação do orto- pre assintomática e flexível ao longo da vida.
pedista. Nos pés mais rígidos será aconselhável investi-
gar a sua causa que pode ser um defeito congéni-
Pé valgo e pé cavo to do próprio pé (ex. sinostose astrágalo-cal-
O pé plano valgo, também denominado pé plano, caneana; ou calcâneo-escafoideia), ou consequên-
é a mais frequente de todas as alterações da forma cia de situações neurológicas em geral evidentes
do pé; consiste num pé com ausência da arcada (ex. paralisia cerebral, spina bífida, mielodisplasia,
longitudinal interna, ou seja, o seu bordo interno sequela de poliomielite, etc).
assenta por completo no solo (Figura 10A). As consequências deste tipo de defeito depen-
Com significado patológico pouco definido, dem da respectiva causa; contudo, nos pés planos
na maioria das vezes trata-se de uma situação irrele- flexíveis, não são habitualmente importantes. Para
vante, podendo constituir até um estádio mais ou além da aparência inestética, da deformação e do
menos evidente do desenvolvimento normal da desgaste do calçado, os pés planos flexíveis são
criança. Assim, nas crianças pequenas, desde o assintomáticos, permanecendo indolores por
início da marcha até cerca dos três anos de idade, muito tempo.
este tipo de pé é observado com muita frequência, O pé cavo é um pé com curvatura plantar
podendo considerar-se normal nesta fase da vida. exagerada, sobretudo à custa da arcada longitudi-
O pé mantém sua elasticidade e se o observamos nal interna, mas também da arcada longitudinal
com a criança suspensa, ou seja sem estar em externa nos casos mais graves. Como consequên-
carga, desaparece e adquire a configuração habit- cia, há encurtamento do comprimento do pé,
ual, com reaparecimento das respectivas arcadas. proeminência da sua região dorsal, retracção da
O mesmo se verifica se pedimos ao doente para fascia plantar e dedos em garra. O apoio plantar
fazer marcha em “bicos dos pés”, o que traduz passa então a fazer-se numa área mais restrita do
uma maior eficácia da musculatura actuante no que o normal (apenas no antepé e retropé) (Figura
pé. 10B), provocando o rápido e persistente apareci-
No entanto, esta configuração de pé pode mento de calosidades e dores, deformação do
prolongar-se para além da idade referida e consti- calçado e dificuldades na marcha.
tuir o resultado de desvios axiais do respectivo O seu aparecimento e evolução são, em geral
membro, localizados a outros níveis, como por insidiosos, chamando-se a atenção para a necessi-
exemplo, anteversão exagerada do colo femoral, dade de avaliação clínica precoce. Com efeito, não
e/ou valgismo do joelho. obstante existirem formas idiopáticas, geralmente
CAPÍTULO 242 Patologia regional específica do membro inferior 1185

pouco acentuadas, o pé cavo deve ser sempre consi-


derado patológico até prova em contrário, tornando-se
imperioso investigar a sua causa, pela elevada
probabilidade de constituir um sinal precoce de
patologia neurológica evolutiva.

Pé boto
Também conhecido como pé torto na linguagem
popular ou, na forma erudita, como pé equino-
varo-aduto congénito, representa a mais fre-
quente anomalia congénita do pé, sendo bilateral
em 50% dos casos (com ou sem assimetria de
gravidade). A sua etiopatogénese é desconhecida,
FIG. 11
mas admite-se que possa ser multifactorial (here-
ditária, postural intra-útero, neuromuscular, etc.). Pés botos.
Embora de magnitude variável, é sempre uma
deformidade complexa, com um componente de pesquisa. A radiologia convencional, ao permitir
equino-varo do retropé (posição relativa do calcâ- avaliar a posição relativa dos ossos do tarso, pode
neo), supinação do médio-pé (planta do pé volta- ser útil para controlar a evolução do tratamento e a
da para dentro), e aduto do ante-pé (eixo do ante- necessidade de o modificar, recorrendo à cirurgia.
pé fazendo com o eixo do retropé um ângulo aber- A terapêutica, de início sempre incruenta,
to para dentro) (Figura 11). deve ser iniciada precocemente, logo após o nasci-
A posição anormal do pé, particularmente do mento e executada pelo especialista. Consiste em
tarso, leva a alterações dos correspondentes teci- sessões periódicas de manipulação do pé,
dos moles, espessamento dos ligamentos, retrac- seguidas de imobilização no máximo da correcção
ções capsulares, atrofias musculares que, manten- conseguida em cada sessão, até se obter pé plantí-
do-se, impedem o normal desenvolvimento do grado. Eventualmente, poderá ser necessário
esqueleto respectivo, com fixação e agravamento recorrer à cirurgia, não só dos tecidos moles
das deformidades. (tendões, fáscias) como também óssea, embora
As manifestações clínicas nos primeiros esta só em fase final do crescimento. O resultado
meses de vida resumem-se ao aspecto do pé e à final depende, não só da precocidade do diagnós-
escassa mobilidade dos seus segmentos; mais tico e da instituição imediata do tratamento ade-
tarde, na idade da marcha, esta torna-se difícil, quado, como também do grau de deformidade e
com o aparecimento de calosidades nas zonas de da flexibilidade do pé.
apoio, e dores. Importa ainda voltar a referir a associação
O diagnóstico é fácil, requerendo apenas um desta deformidade com outras anomalias con-
simples e sumário exame objectivo da criança; génitas, nomeadamente com a displasia de desen-
mais difícil e importante será determinar a gravi- volvimento da anca, o que exige proceder sempre
dade da situação, relacionada com a magnitude a exame cuidadoso doutras articulações em todos
dos diferentes componentes da deformidade, e o os casos de pé boto.
grau de rigidez, sendo ambos os aspectos deter- (Consultar Glossário Geral)
minantes do sucesso do tratamento.
Os exames complementares não têm grande
utilidade; apenas a ecografia tem interesse para o
diagnóstico pré-natal, sendo possível detectar o pé
boto a partir da 16ª semana de gestação. A
importância deste diagnóstico deve-se ao facto de a
deformidade poder estar associada a outras ano-
malias congénitas, alertando o clínico para a sua
1186 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

243
diagnóstico, podemos classificá-la em dois grupos
principais – traumático ou atraumático, con-
soante existe ou não episódio traumático prévio.
Entre as características do esqueleto infantil que
condicionam a forma como este reage ao trauma e
suas consequências, destacam-se a maior elastici-
PATOLOGIA REGIONAL dade óssea e do aparelho cápsulo-ligamentoso.
Assim, no caso da coluna e antes da adolescência,
ESPECÍFICA DO TRONCO prevalecem as lesões articulares (luxações e sub-
luxações) sobre as fracturas puras. Isto verifica-se
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo particularmente nas regiões mais móveis da colu-
na, nomeadamente na coluna cervical e na junção
occipitocervical.
Mais tarde, as lesões traumáticas assumem
Tronco doloroso padrões que se aproximam daqueles observados e
descritos nos adultos.
Cervicalgia, dorsalgia e lombalgia No processo de elaboração do diagnóstico os
A dor é sempre um sintoma essencial, seja qual for dados clínicos são, como sempre, fundamentais
a circunstância em que ocorre; mas, se localizada para estabelecermos as hipóteses possíveis; torna--
no tronco e na fase de crescimento, atinge uma se, por isso, obrigatória a avaliação do estado neu-
particular relevância porque é muito rara, con- rológico do doente pelos riscos que a patologia da
trariamente ao que acontece no adulto. coluna pode implicar neste domínio. Esses dados
Na idade pediátrica é habitualmente de natu- são também importantes porque nos orientam para
reza orgânica e, excluindo a causa traumática, a os exames complementares a realizar, correspon-
sua origem está frequentemente relacionada com dendo à imagiologia um papel determinante a
situações infecciosas ou tumorais. Constitui, por desempenhar (radiologia simples, TAC ou RMN).
isso, um sintoma suspeito de situação clínica A terapêutica depende da etiologia provável
potencialmente grave que deve ser objecto de da dor, mas terá sempre como objectivo primor-
exploração cuidada, diagnóstico devidamente dial a preservação da função neurológica, impli-
confirmado, e consequente terapêutica adequada. cando os cuidados necessários para evitar o seu
Consoante a zona da coluna em que está locali- compromisso ou agravamento. Daí a importância
zada assim se denomina cervicalgia, dorsalgia ou do repouso e imobilização da coluna enquanto
lombalgia, assumindo na prática, em todas estas não se chegar a um diagnóstico definitivo que ori-
localizações, os mesmos atributos. Dependendo da ente a evolução do tratamento.
sua causa efectiva, acompanha-se habitualmente
de rigidez ou espasmo muscular defensivo da Deformidades do tronco
respectiva região da coluna, a qual pode assumir
posturas anómalas ou mover-se em bloco, com Torcicolo
limitação da amplitude global dos movimentos do Designa-se por torcicolo a deformidade caracteri-
tronco. Esta característica é mais evidente nas zada pelo desvio rotatório, mais ou menos fixo, da
zonas da coluna com maior mobilidade (coluna cabeça, com inclinação contralateral desta, a que
cervical – torcicolo; coluna lombar – escoliose se associa cervicalgia de intensidade variável, des-
antiálgica). À sintomatologia referida pode asso- pertada ou agravada pelo movimento.
ciar-se uma série de manifestações (alteração da É clássico considerar dois grupos de torcicolos
força muscular, dos reflexos osteotendinosos, da – congénito e adquirido – conforme a deformidade
sensibilidade, clono, etc.) relacionadas com possí- está presente na data do nascimento ou aparece
vel compromisso medular e/ou radicular prove- mais tarde.
niente, por sua vez, da causa da dor. No primeiro caso, e de acordo com a sua etio-
Quanto à etiologia da dor e para efeitos de logia, pode ainda subdividir-se em:
CAPÍTULO 243 Patologia regional específica do tronco 1187

• Torcicolo congénito miogénico, se resul- vertebral no plano frontal. Tal curvatura pode não
tante de um encurtamento do músculo ester- ter importância alguma e constituir postura cor-
nocleidomastoideu, por metaplasia fibrosa poral voluntariamente assumida ou, pelo con-
retráctil do feixe esternal e/ou clavicular; trário, corresponder a deformidade que progride
• Torcicolo congénito ósseo se devido a mal- até se tornar esteticamente inaceitável, compro-
formação das vértebras cervicais (hemivérte- metendo o funcionamento de outros órgãos e apa-
bra, sinostose parcial, etc.). relhos. (Figura 1 A, B)
Quanto ao torcicolo adquirido, consideram-se As escolioses classificam-se em dois grandes
também dois grupos principais: grupos, com manifestações clínicas e prognóstico
• Torcicolo adquirido osteoarticular quando diferentes: as escolioses não estruturais e as estru-
provocado por lesões localizadas na coluna, turais.
por exemplo, de natureza traumática, situa- Nas primeiras – escolioses não estruturais – as
ções inflamatórias agudas ou crónicas da co- curvaturas não coincidem com alterações da mor-
luna cervical, reumatismos, discopatias, in- fologia normal das vértebras e nunca progridem.
fecções ósseas, etc.. Estas escolioses podem representar apenas uma
• Torcicolo adquirido sintomático se a causa é postura temporária e voluntária, habitualmente
extrínseca à coluna, levando ao aparecimen- adoptada por qualquer indivíduo, ou ser sin-
to da deformidade por contractura assimé- tomáticas, isto é, como reacção a patologia subja-
trica, reactiva, da musculatura do pescoço cente que, uma vez resolvida, possibilita à coluna
(astigmatismo, diplopia, distúrbios labirínti- reassumir espontaneamente a sua configuração
cos, abcessos orofaríngeos, etc.). normal, rectilínea (no plano anatómico frontal),
As manifestações clínicas resumem-se à posi- com desaparecimento da curvatura neste plano. O
ção viciosa da cabeça com rigidez mais ou menos prognóstico é habitualmente bom do ponto de
acentuada dependendo da etiologia, e dor incons- vista da curvatura, mas em relação ao doente
tante podendo, quando presente, ser despertada dependerá da patologia de base.
ou agravada pela tentativa de movimento. Como exemplos de escolioses não estruturais
O diagnóstico é orientado fundamentalmente incluem-se as escolioses posturais, as compen-
pelos dados da anamnese, conjugados com os da satórias (por dismetrias dos membros inferiores) e
observação clínica, na qual é obrigatório incluir as antiálgicas, por situação inflamatória, traumáti-
um exame neurológico completo a fim de avaliar ca ou tumoral (osteoarticular ou neurológica).
a integridade medular e/ou radicular.
Os exames complementares devem adequar- A B
se às hipóteses de diagnóstico formuladas, mas
são dominados pela imagiologia, com prioridade
para a radiologia convencional, por vezes difícil
de interpretar devido à posição da cabeça; neste
caso, é conveniente recorrer à TAC e/ou RMN
para completo esclarecimento da situação, parti-
cularmente se existirem antecedentes de natureza
traumática.
O tratamento depende da etiologia. Como
medidas imediatas deverá prescrever-se repouso
e imobilização da coluna cervical (ortótese de
suporte cervical), a que se associa medicação
(analgésicos, AINE e relaxantes musculares), de
acordo com o contexto clínico de cada caso.
FIG. 1
Escoliose A – Doente com escoliose idiopática. B – Radiografia
Chama-se escoliose a toda a curvatura da coluna póstero-anterior do mesmo doente, em ortostatismo.
1188 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

No segundo grupo – escolioses estruturais – caudo-cranial, em bipedestação e depois de flectir


as vértebras estão deformadas (em forma de a coluna, mantendo-se nessa posição, com os
cunha no plano frontal e rodadas no plano hori- membros superiores pendentes. Nas escolioses
zontal) (Figura 2 A, B), as curvas progridem sem- não estruturais não se observam alterações do
pre embora com velocidade variável conforme a contorno posterior do tronco enquanto nas estru-
sua etiologia e a idade dos doentes, pelo que o turais há assimetria, mais ou menos marcada
prognóstico deve ser, em princípio, reservado. desse contorno, de acordo com a gravidade e a
Este grupo é dominado pelas chamadas escolioses localização da curvatura (Figuras 3 A, B e 4 A, B).
idiopáticas cuja causa não se conhece, represen- O exame radiológico convencional permite
tando cerca de 70% dos casos de escolioses estru- também fazer a distinção dos dois grupos, mas
turais. Podem aparecer em qualquer idade; são com o inconveniente de termos de submeter o
muito mais frequentes na adolescência e no sexo doente à radiação. Exige dois radiogramas ântero-
feminino, estando sujeitas a agravamento na fase posteriores da zona da curvatura, com o doente
de crescimento rápido do tronco verificada nesse em decúbito, e a coluna sucessivamente em flexão
período. Ainda dentro deste grupo das escolioses
estruturais, embora menos frequentes, existem as A B
escolioses congénitas (por anomalias congénitas
das vértebras), as escolioses neurogénicas (por
situações do foro neurológico – paralisia cerebral,
doenças degenerativas do sistema nervoso, ano-
malias congénitas da medula e raízes, etc.), esco-
lioses miopáticas (resultantes de doenças muscu-
lares), e por alterações do tecido conjuntivo (neu-
rofibromatose, síndroma de Marfan).
As manifestações clínicas resumem-se à
deformidade, a qual permite distinguir os dois
FIG. 3
referidos grupos de acordo com a sua flexibili-
dade e a existência ou não, de alterações do con- A – Escoliose não estrutural, teste de Adams negativo;
torno do tronco. Essa distinção faz-se pela clínica, simetria do contorno posterior do tronco; B – Escoliose
mediante o teste de Adams, e pela radiologia con- estrutural, teste de Adams positivo; assimetria do contorno
posterior do tronco.
vencional.
O teste de Adams consiste na observação do
dorso do doente, no sentido – crânio-caudal e A B

A B

FIG. 4
Escoliose estrutural – deformidade das vértebras; A – Repre-
sentação esquemática da alteração do contorno do tronco
FIG. 2 resultante das deformidades referidas, com o doente em
ortostatismo; B – Acentuação desta alteração do contorno
Escoliose estrutural – deformidade das vértebras; A – no plano
do tronco quando o doente flecte a coluna (Teste de Adams).
frontal; B – no plano horizontal.
CAPÍTULO 243 Patologia regional específica do tronco 1189

lateral direita e esquerda; quando a escoliose não da medula ou das raízes, quando são mais acen-
é estrutural, a curvatura rectifica-se na flexão late- tuadas ou incluem um pequeno número de vérte-
ral feita para a convexidade da curvatura; tal não bras (denominadas cifoses angulares). (Figura 5)
sucede nas escolioses estruturais, cuja curvatura Quanto à etiopatogénese, as cifoses classifi-
pode atenuar-se um pouco dependendo da sua cam-se em posturais, congénitas, traumáticas,
flexibilidade, mas não desaparece, evidenciando- idiopáticas (doença de Scheurmann – osteocon-
se a dismorfia dos respectivos corpos vertebrais. drose dos “pratos” ou apófises polares das vérte-
Não é frequente, em idade pediátrica, o apare- bras) e infecciosas (resultando na destruição do
cimento doutro tipo de sintomatologia; haverá, disco e colapso anterior das vértebras).
porém, interesse em avaliar a flexibilidade da As manifestações clínicas restringem-se à de-
curva associada ou não à existência de dores, as formidade, mais ou menos acentuada, com menor
quais constituem sintomas importantes de suspei- ou maior flexibilidade, e às dores que, contraria-
ta da presença de lesões inflamatórias ou tumorais mente ao que acontece nas escolioses, surgem aqui
na génese da escoliose. mais cedo e com muito maior frequência; é habi-
Queixas do foro neurológico também não são tual que a elas se fique a dever a descoberta da
habituais, mas podem existir nalguns casos raros, própria deformidade. Pode também haver sinais
por exemplo, de escolioses congénitas com com- de compromisso medular e/ou radicular progres-
ponente cifótico. Constituem um sinal de alarme sivo consoante a localização e as características da
que poderá agravar-se com a inevitável pro- deformidade (ex. as já referidas cifoses angulares).
gressão destas escolioses. Este facto obriga sempre O diagnóstico é clínico e imagiológico, sendo
ao exame neurológico (sumário, mas atento) em obrigatório realizar a todos estes doentes um
todos os casos de curvatura anómala. exame neurológico cuidado.
O diagnóstico é fundamentalmente clínico, O tratamento deverá ser conduzido pelo espe-
mas deverá ser confirmado pela radiologia con- cialista e depende da etiologia da deformidade.
vencional, aconselhando-se fazer dois radiogra- Nas cifoses posturais, bem como nas idiopáticas
mas da coluna inteira, frente e perfil, os quais per- que são as mais comuns, é habitualmente incruen-
mitem colher informação útil para correcta avalia- to (medicação antiálgica, cinesiterapia, utilização
ção.
Na prática, o problema é habitualmente desco- A B
berto pelos familiares ou pelos professores de
ginástica que enviam o doente ao clínico geral ou
ao pediatra. Estes, perante dados clínicos suges-
tivos, deverão encaminhar o caso para o especia-
lista a quem compete decidir sobre a oportu-
nidade e modalidade do tratamento a executar,
seja ele, incruento (cinesiterapia, uso de ortóteses,
etc.) ou cruento (correcção da curvatura mediante
instrumentação e artrodese)*.

Cifose
Define-se cifose como a curvatura da coluna, no
plano sagital, de convexidade posterior. De salien-
tar que existem cifoses fisiológicas a nível torácico
FIG. 5
e sacrococcígeo, as quais passam a ser consi-
deradas deformidades se ultrapassam determina- A – Representação esquemática de uma cifose angular;
da magnitude ou se têm uma localização diferente B – Doente com cifose angular de etiologia traumática.
da referida. A sua importância reside no risco neu-
rológico que envolvem, ao poderem vir a dar (*) Artrodese – intervenção cirúrgica que consiste em bloquear defini-
tivamente uma articulação.
origem muito rapidamente a compressão anterior
1190 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

de ortóteses específicas); nas restantes poderá ser parte proximal da vértebra (correspondente ao
necessário recorrer à cirurgia. corpo, pedículos e apófises articulares superiores)
sobre a distal (englobando o resto do arco neural e
Espondilólise e espondilolistese as apófises articulares inferiores). (Figura 7)
A espondilólise é uma solução de continuidade Esta evolução é sempre gradual e classifica-se
do arco posterior da vértebra, habitualmente bila- de acordo com a extensão do percurso do se-
teral, devido a um defeito de ossificação do gmento proximal sobre o distal; observam-se des-
chamado istmo, ou seja, da zona de confluência da locamentos de grau variável, desde os insignifi-
lâmina, do pedículo e das respectivas apófises cantes até ao extremo da “queda” de L5 na pelve,
articulares dessa vértebra (Figura 6). Localiza-se com localização do corpo desta vértebra à frente
habitualmente a nível de L4 e L5, e está relaciona- do corpo de S1, situação que se denomina espon-
da com a carga a que estas vértebras estão sujeitas diloptose.
pela bipedestação. As manifestações clínicas da espondilolistese
Trata-se duma anomalia relativamente fre- são variáveis , podendo ter alguma relação com o
quente que, por via de regra, se mantém assin- grau de deslizamento anteriormente explicado.
tomática até à idade adulta. Constitui em geral Manifesta-se por crises de dor lombar relaciona-
um achado radiográfico na sequência de episódio das com o esforço, podendo associar-se-lhe sinais
de lombalgia com a qual poderá nem sequer ter de compromisso radicular, encurtamento do tron-
qualquer relação. co, horizontalização da pelve e retracção ou encur-
A fim de se poder visualizar melhor o defeito tamento mais ou menos acentuado dos músculos
ósseo, os exames radiográficos da coluna lom- isquiotibiais. Este encurtamento pesquisa-se com
bossagrada devem ser realizados nos dois planos o doente em decúbito dorsal e revela-se pela di-
clássicos (ântero-posterior e perfil) e também em minuição da amplitude da elevação do membro
posição oblíqua (direita e esquerda), sendo nestas inferior a partir do plano da cama, mantendo o
últimas projecções que melhor se costuma identi- joelho em extensão.
ficar o defeito vertebral. O diagnóstico é imagiológico podendo exigir,
A espondilólise não carece de tratamento nem para além da radiologia convencional, TAC ou
é impeditiva de uma vida normal, sendo porém RMN, em função das queixas neurológicas pre-
conveniente proteger a coluna, cuidando a cor- sentes.
recção da postura, e a tonificação e o reequilíbrio O tratamento está subordinado à evolução do
da musculatura do tronco. deslocamento e à sintomatologia presente, in-
A sua importância reside na possibilidade de cluindo medicação (antiálgicos e AINE), cinesite-
evoluir para espondilolistese que consiste no rapia e cirurgia.
deslizamento ou migração anterior (listesis) da

FIG. 6 FIG. 7
Representação esquemática de espondilólise. Representação esquemática de espondilolistese.
CAPÍTULO 244 Patologia traumática 1191

244
de algumas regiões anatómicas ao trauma, e com a
probabilidade acrescida da ocorrência de determina-
dos mecanismos lesionais em certas idades.
Assim, são situações mais frequentes:
• no recém-nascido: fractura da clavícula, tor-
cicolo, fractura do fémur;
PATOLOGIA TRAUMÁTICA • nos primeiros 2-4 anos de vida: pronação
dolorosa;
J. de Salis Aamral e J. Lameiras Campagnolo • entre os 5-8 anos: fractura supracondiliana
do úmero;
• na infância tardia/adolescência: fracturas dos
ossos do antebraço (e outros ossos longos),
Importância do problema lesões de sobreuso/osteocondroses (calcâneo,
tuberosidade anterior da tíbia ou pólo inferior
As lesões ósteo-articulares de causa traumática, da rótula, navicular, etc.), lesões das fises em
muito frequentes em idade pediátrica, constituem fase de encerramento, para além de lesões
cerca de 10% a 15% de todas as lesões traumáticas com padrão já semelhante ao dos adultos.
que acorrem ao serviço de urgência. Nas crianças Esta lista sumária não exclui a multiplicidade e
mais pequenas são consequência da sua actividade simultaneidade doutras lesões que se poderão
lúdica característica e, nas mais velhas, incluindo encontrar numa criança, nomeadamente no caso
adolescentes, são devidas essencialmente à activi- de traumatismos violentos, como acontece nos
dade desportiva e a acidentes rodoviários. Nesta acidentes de viação ou quedas de grande altura.
última circunstância, as lesões são dum modo (Capítulo 38)
geral, muito mais graves, exigindo medidas te- Vem a propósito lembrar aqui a síndroma da cri-
rapêuticas mais complexas. ança maltratada, para a qual os profissionais de
Atendendo a que as lesões em causa atingem saúde devem estar particularmente atentos, englo-
um organismo em fase de crescimento, as conse- bando lesões traumáticas com diversas localizações,
quências podem ser agravadas pelo compromisso incluindo as osteoarticulares. (Capítulo 37)
das cartilagens de crescimento, particularmente Por último, recorda-se que as fracturas nas cri-
nas situadas nas regiões epifisiometafisárias dos anças têm algumas particularidades no que toca à
ossos longos, com repercussão variável no cresci- sua consolidação:
mento dos respectivos ossos • Rapidez do processo (tanto maior quanto
mais nova for a criança);
Etiopatogénese • Quase ausência de algumas complicações
observáveis no adulto, tais como as pseudar-
O esqueleto em fase de crescimento tem particu- troses;
laridades que o distinguem do adulto, o que con- • Risco de hipercrescimento a nível segmento
diciona a sua resposta às lesões traumáticas ósseo fracturado, verificado até aos 18-24
encontradas neste escalão etário. Com efeito, para meses pós-fractura, o qual é geralmente mais
além da já referida presença das cartilagens de marcado após cirurgia de reparação óssea
crescimento, há que salientar a presença de pe- (osteossíntese);
riósteo espesso e resistente, de uma relação • Remodelação óssea que corrige maioritaria-
matriz/osso superior à do adulto (o que condi- mente defeitos de alinhamento axial (mas
ciona uma maior elasticidade óssea) e uma veloci- não rotacional) das fracturas; esta capaci-
dade elevada de renovação e remodelação ósseas dade de remodelação é tanto mais impor-
(responsáveis por uma maior capacidade de tante quanto mais jovem for a criança;
reparação). • Risco de atraso de crescimento (por vezes irre-
A distribuição das lesões em função do escalão versível) simétrico ou assimétrico, consoante o
etário está relacionada com a maior susceptibilidade tipo de lesão das cartilagens de crescimento.
1192 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Semiologia clínica afectam os ossos longos, em dois grupos princi-


pais:
A semiologia é relativamente monótona em 1. Quanto à localização do traço, em fracturas
função da variedade de situações clínicas, salien- diafisárias, metafisárias e epifisárias. Estas duas
tando-se a dor e a impotência funcional, às quais últimas são as mais importantes porque podem
se podem associar a deformidade e sinais infla- atingir as cartilagens de conjugação, dando origem
matórios locais. Não é, porém, isenta de dificul- a deformidades patentes, ou atingir até a carti-
dades, destacando-se, contrariamente ao que lagem epifisária, articular, alterando as superfícies
acontece no adulto, a habitual má colaboração do articulares, com o consequente compromisso da
doente na anamnese (em função da idade) e na função. As diafisárias não levantam habitualmente
localização exacta da dor, e a eventual existência o mesmo tipo de problemas porque o próprio osso
de dor referida a áreas anatómicas diversas das (devido às características do esqueleto infantil e ao
afectadas (por ex. joelho vs. anca), podendo crescimento subsequente), compensa ou autocor-
falsear o diagnóstico da lesão verdadeira. Ainda, rige muitos dos desvios que se verificam.
nas crianças mais jovens o único sinal de uma 2. Quanto à extensão do traço, em completas
lesão do aparelho músculo-esquelético poderá ser se o traço atinge ambas as corticais, com desvio
uma pseudoparalisia de todo um membro, o que mais ou menos acentuado dos topos ósseos; e
implica um exame clínico particularmente atento. incompletas se o traço inclui apenas uma cortical,
e os topos se mantêm em contacto, sem desvios
Exames complementares apreciáveis.
Reitera-se qua a importância das fracturas
O diagnóstico clínico de fractura ou a simples sus- metafisárias e episárias reside na lesão associada,
peita exige sempre o estudo radiográfico simples praticamente constante, das cartilagens de conju-
da área suspeita, feito obrigatoriamente em dois gação. Estas estruturas moles, interpostas no se-
planos perpendiculares (com visualização das gmento ósseo rígido, são menos resistentes do
duas articulações contíguas no caso dos ossos lon- ponto de vista biomecânico, rompendo-se segun-
gos). Nas crianças mais jovens com lesões de áreas do padrões que importa conhecer pelas impli-
ainda cartilagíneas, será conveniente realizar estu- cações práticas que têm, tanto de ordem tera-
do ecográfico, efectuado por profissionais expe- pêutica como prognóstica. Estes padrões encon-
rientes neste tipo de situações. Também a cinti- tram-se descritos em diversas classificações
grafia é um precioso exame de segunda linha para realçando-se a de Salter-Harris, na qual se
detectar algumas lesões sem evidência radiológica definem cinco graus de acordo com a direcção e a
(lesões de sobreuso ou de regiões de difícil carac- localização do traço de fractura, conforme se
terização radiológica tais como a coluna). esquematiza (Figura 1).
Finalmente, em casos seleccionados, a TAC ou a Destes cinco graus, os três últimos são os mais
RMN podem ser necessárias. importantes por deixarem sequelas mais ou
menos graves, derivadas do encerramento parcial
Classificação das lesões traumáticas da cartilagem de conjugação e consequente defor-
osteoarticulares midade regional (dismetria e/ou desalinhamento
axial do membro).
Existem diversas classificações genéricas das frac- Quanto às restantes lesões traumáticas osteo-
turas e outras lesões osteoarticulares, bem como articulares da criança em crescimento, as luxações
das específicas de cada osso/articulação; o inte- ou deslocamentos anormais das extermidades
resse reside na respectiva orientação terapêutica e ósseas de uma articulação são muito menos fre-
prognóstica, do foro do especialista. quentes do que no adulto, designadamente
Em termos gerais e do ponto de vista do clíni- porque o local de menor resistência justarticular é,
co geral e do pediatra, apenas nos referiremos às como já referimos, a cartilagem de conjugação.
fracturas por serem as lesões mais importantes. As entorses (definidas como lesões traumáti-
Podemos classificá-las, particularmente quando cas articulares, com alongamento, arrancamento
CAPÍTULO 244 Patologia traumática 1193

Grau I Grau II Grau III

Grau IV Grau V
FIG. 2
FIG. 1 Radiografias, em dois planos, da extremidade inferior do
Classificação de Salter-Harris relativa às lesões traumáticas fémur onde se nota a existência de lesão traumática da
envolvendo a cartilagem de conjugação. As lesões de Grau I e respectiva cartilagem de conjugação (Grau I da classificação de
II serão as de melhor prognóstico. Salter-Harris), mais evidente na radiografia de perfil (setas).
Grau I – Separação através da fise; Grau II – Fractura através
duma porção da fise, mas englobando também a metáfise;
Grau III – Fractura através duma porção da fise, mas atingin-
do a epífise e a articulação; Grau IV – Fractura atingindo a
metáfise, fise e epífise; Grau V – Fractura originando com-
pressão e lesão por esmagamento da fise.

ou rotura de um ou mais ligamentos) são fre-


quentes mas, habitualmente, de pouca gravidade,
sendo imprescindível verificar se estão associadas
a fracturas de difícil detecção.
As Figuras 2 a 6 mostram exemplos radiográfi-
cos de fracturas de ossos longos estabelecendo cor-
respondência com a classificação de Salter-Harris.

Diagnóstico diferencial

É habitualmente fácil estabelecer pela anamnese o


início das queixas em relação com o traumatismo.
Em casos raros, e consoante a idade do doente, há
que excluir as situações de artrite infecciosa ou
inflamatória, de epifisiólise femoral proximal (por
vezes também de origem macrotraumática), de
doença de Perthes ou de lesão tumoral ou pseudo-
tumoral (presença de quisto ósseo, por exemplo).
Nesta última circunstância a fractura pode coexis-
tir e ser a sua primeira manifestação clínica,
FIG. 3
através da qual é feito o diagnóstico do quisto.
Radiografias, em dois planos, da extremidade inferior dos
Complicações ossos da perna onde se nota a existência de lesão traumática
com fractura em “ramo verde” do perónio, e lesão da
cartilagem de conjugação distal da tíbia (Grau II da
As fracturas podem dar origem a uma série de
classificação de Salter-Harris).
complicações, precoces ou tardias; no âmbito do
1194 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

capítulo interessa apenas referir as precoces e, den-


tro destas, destacando as lesões cutâneas, vascu-
lares, nervosas e as síndromas compartimentais.
As lesões cutâneas são importantes porque
podem determinar a comunicação do foco de frac-
tura com o exterior e, consequentemente, a conta-
minação e possibilidade de infecção (osteomielite
pós-fracturária).
As lesões vasculares e dos nervos periféricos
geralmente estão associadas a fracturas justepi-
fisárias e dependem das características anatómi-
cas da região afectada (proximidade destas estru-
FIG. 4
turas e do osso). Dão-se sobretudo a nível do coto-
Radiografias, ântero-posterior e perfil, do fémur esquerdo de velo/úmero distal e joelho (extremidade inferior
uma criança de dois anos, após imobilização gessada, onde se do fémur e proximal da tíbia e perónio).
nota fractura complexa dos dois terços distais do mesmo osso, As síndromas compartimentais devem-se ao
com provável lesão da respectiva cartilagem de conjugação
aumento de pressão no compartimento osteo-
(Grau V da classificação de Salter-Harris).
aponevrótico do osso fracturado, desencadeado pela
hemorragia no foco de fractura. O aumento inicial
dessa pressão conduz ao compromisso da circulação
periférica das massas musculares, edema desses
músculos e acréscimo gradual dessa pressão num
compartimento que é inextensível. O resultado será
a necrose e retracção das massas musculares desse
compartimento com perda da funcionalidade e
deformidade das articulações distais. Estas síndro-
mas são mais frequentes no antebraço (isquémia de
Volkmann), por fractura supracondiliana do úmero
e, na perna, por fractura dos respectivos ossos.
As suas manifestações clínicas são dor persis-
tente e progressiva, agravada pela tentativa de mobi-
FIG. 5
lização (activa e até passiva) dos dedos da mão ou do
Radiografias, ântero-posterior e perfil, do fémur esquerdo do pé, edema dos mesmos e parestesias. De salientar
mesmo doente da fig. 4, cinco meses depois, com a fractura já que esta sintomatologia pode surgir mesmo depois
consolidada, mas com sequelas de lesão prévia da cartilagem de a fractura estar imobilizada (tala ou gesso), pelo
de conjugação distal do osso (Grau V da classificação de Salter-
que será muito importante alertar os pais para esta
Harris); deformidade evidente da epífise correspondente.
eventualidade. A síndroma, uma vez instalada, é irre-
versível e constitui uma emergência, exigindo o
FIG. 6
recurso imediato ao serviço de urgência para ava-
Radiografia, ântero-posterior, “em liação da situação e eventual tratamento cirúrgico
carga”, da pelvis, fémures e joelhos, (descompressão do ou dos compartimentos).
do mesmo doente da fig. 4, seis anos
depois; nota-se a evolução das
sequelas de lesão prévia da cartilagem
Tratamento
de conjugação distal do fémur
esquerdo (Grau V da classificação de Medidas básicas iniciais
Salter-Harris) – encurtamento Na grande maioria dos casos, as lesões osteoarti-
considerável do fémur e deformidade culares da criança são susceptíveis de um trata-
evidente da epífise distal do mesmo mento relativamente simples que deverá ser diri-
osso. Báscula da bacia. gido pelo especialista.
CAPÍTULO 244 Patologia traumática 1195

No entanto, habitualmente compete ao clínico No caso das fracturas com desvios nos planos
geral ou ao pediatra, os primeiros a observar o frontal e sagital (e sem lesão da cartilagem de
doente, a realização de uma série de procedimen- crescimento), como já foi referido, poderá não
tos terapêuticos básicos, antes de o encaminharem haver necessidade de redução da fractura, desde
para o especialista. que o desvio não exceda cerca de 20° (variável
Entre esses procedimentos destacam-se os consoante a idade); no entanto, desvios rota-
seguintes: cionais no foco de fractura implicam a sua correc-
• Penso estéril local – na ferida do foco de ta redução e imobilização.
fractura, caso a fractura seja exposta, no sen- No que se refere às lesões articulares, particu-
tido de impedir a contaminação adicional; larmente se atingirem a cartilagem de conjugação,
• Imobilização provisória – com ligadura, e como princípio básico, todas as fracturas deve-
contenção elástica ou contenção rígida (con- rão ser reduzidas anatomicamente e assim manti-
soante a gravidade) que, no caso de suspei- das, por meios incruentos ou cruentos, sob pena
ta de fractura, deverá incluir as articulações de darem origem a sequelas importantes.
adjacentes (proximal e distal) ao segmento Ainda em relação às lesões das cartilagens de
ósseo suspeito; crescimento e aos grupos da citada classificação
• Descarga do membro afectado que, no mem- de Salter-Harris, poderá considerar-se que as
bro inferior, implica o uso de 2 canadianas lesões do grupo I e II não costumam dar origem a
para as crianças colaborantes, e o repouso no complicações, sendo susceptíveis de tratamento
leito, com ou sem tracção desse membro; incruento, embora as do grupo II requeiram habi-
• Elevação do membro afectado durante a tualmente tratamento cirúrgico; as do grupo III e
fase de edema e dor; IV, atingindo a interlinha articular, exigem sempre
• Crioterapia local (cerca de 15 minutos, de tratamento cirúrgico e dão origem a sequelas com
duas em duas horas, durante 2-3 dias); grande frequência; as do grupo V são em geral
• Terapêutica analgésica e/ou anti-inflama- reconhecidas, apenas retrospectivamente, pela
tória adequada. deformidade resultante do encerramento pre-
Nas situações com risco vital, naquelas em que maturo, de grau variável, da cartilagem de cresci-
há deformidades major (com ou sem exposição mento.
óssea), ou nos casos em que há um quadro álgico As sequelas destas lesões, com importância
significativo (mesmo em repouso), os doentes variável mas quase sempre relevante, são as situa-
deverão ser rapidamente encaminhados para um ções que colocam os maiores problemas a resolver
serviço de urgência (com ortopedista disponível, no campo da traumatologia do grupo etário
de preferência). pediátrico. O seu tratamento implica, necessaria-
mente, diferentes tipos de estratégias cirúrgicas
Perspectiva terapêutica do ortopedista (realinhamentos, alongamentos, desepifisioide-
Na idade pediátrica, as lesões osteoarticulares ses*, encurtamentos contralaterais, etc.) para mino-
atingem preferencialmente o osso e a cartilagem de rar as repercussões na vida da criança afectada.
crescimento, sendo raras as lesões ligamentosas.
Actualmente, as fracturas dos ossos longos BIBLIOGRAFIA (capítulos 236 a 244)
têm tido um aumento relativo das suas indicações Basu PS, Elsebaie H, Noordeen MH. Congenital spinal defor-
cirúrgicas, fruto de três ordens de factores: alta mity: a comprehensive assessment at presentation. Spine
energia de alguns acidentes (rodoviários e 2002; 27: 225-2259
desportivos), advento de técnicas cirúrgicas com Beaty JH, Kasser JR, (eds). Rockwood and Wilkins’ Fractures in
muito boa relação custo-benefício (tal como o Children. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins,
encavilhamento elástico dos ossos), e progressiva 2001
redução dos tempos de internamento/imobiliza-
ção do doente. No entanto, e apesar deste facto, a
* Epifisioidese consiste na separação das cartilagens de conjugação de
grande maioria das fracturas consolida rapida- um osso longo por um implante a fim de travar o crescimento.
mente e sem sequelas valorizáveis. Desepifisioidese é um procedimento com objectivo inverso.
1196 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

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anomalias do membro superior são unilaterais e
mais frequentes no lado direito.
Muitos dos defeitos congénitos menores da
mão têm resolução cirúrgica, sendo que nem sem-
pre a reconstrução cirúrgica é possível ou a
mesma é apenas estética, não melhorando a
função. No entanto, em algumas deles o trata-
mento conservador tem bons resultados quando
realizado precocemente, evitando a cirurgia. São
CAPÍTULO 245 Reabilitação de anomalias congénitas da mão – Noções gerais 1197

exemplo destes, a camptodactilia, o polegar aduto


e as anomalias de tendões (polegar em gatilho),
cuja abordagem é feita nas alíneas seguintes.

Camptodactilia

Consiste numa deformação em flexão da articu-


lação interfalângica proximal (IFP) de um ou mais
dedos como consequência de fenómenos de
retracção das partes moles periarticulares. O 5º
dedo é o mais frequentemente afectado (Figura 1)
e geralmente de forma bilateral, embora com grau
FIG. 2
de deformação assimétrica. Esta anomalia está fre-
quentemente associada a síndromas de Holt- Ortótese para camptodactilia do 5º dedo
Oram, Poland ou Marfan. A existência de casos
familiares com camptodactia deve ser pesquisada Muitas vezes há recidivas quando os pais inter-
(transmissão autossómica dominante). rompem o uso das ortóteses à noite. Nestes casos o
O diagnóstico diferencial é feito com dedo em tratamento deverá ser recomeçado e os pais alerta-
gatilho (palpa-se nódulo na face palmar) ou com a dos para a possível necessidade do uso de ortótese
ausência congénita dos extensores. Está indicado o nocturna até à puberdade. Com o cumprimento
tratamento conservador com a colocação de uma desta regra habitualmente não há recidivas nem
ortótese para posicionar a articulação na extensão consequente necessidade de cirurgia.
máxima possível (Figura 2). Semanalmente faz-se Entre 2000 e 2007, no SMFR do Hospital Dona
uma revisão desta até se obter a extensão total. Estefânia, 90% das crianças com camptodactilias
Num bebé pequeno, até se obter a extensão tratadas de forma conservadora desde o 1º ano de
máxima, as ortóteses podem manter-se 24h/dia, vida, não necessitaram de cirurgia. Os 10% que de
sendo retiradas apenas para higiene. Quando a tal necessitaram dizem respeito a crianças cujos
extensão máxima é obtida, passa a colocar-se só pais não estavam muito preocupados e não colo-
durante o sono. cavam regularmente as ortóteses aos filhos.
No 1º ano de vida, se a patologia for bilateral,
podem ser colocadas as duas ortóteses nocturnas. Polegar aduto
Se a criança for mais velha, deverá ser ponderado
o uso simultâneo, dependendo, por um lado, de A designação de polegar aduto corresponde a
como a criança reage à colocação das ortóteses e, defeito congénito do polegar por ausência con-
por outro, da gravidade da patologia. génita do longo extensor do polegar e /ou apla-
sia/hipoplasia dos extensores do polegar com
acentuada flexão da metacarpofalângica (MCF) e
adução do 1º dedo na face palmar.
Frequentemente bilateral, é também mais fre-
quente no sexo masculino. Em 1/3 dos casos há
incidência familiar.
O polegar aduto engloba quatro formas clíni-
cas. (Quadro 1 e Figuras 3 e 4)
O grupo I é o mais frequente, seguido do II e
do III . O grupo IV é raríssimo.
O diagnóstico diferencial é feito sobretudo
com o polegar em gatilho. É também importante
FIG. 1
excluir a existência de situação neurológica como
Camptodactilia do 5º dedo paralisia cerebral. Um polegar em adução também
1198 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

FIG. 3 FIG. 4 FIG. 5 FIG. 6


Polegar aduto do grupo I antes do tratamento conservador Posicionamento do polegar em abdução com extensão
através de ligadura.
QUADRO 1 – Classificação do polegar aduto
Se ao 3º mês com o tratamento conservador não
Grupo I houver qualquer movimento activo em extensão/
Défice de extensão apenas abdução, poderá tratar-se de hipoplasia não fun-
Grupo II cional ou de ausência do curto extensor do polegar.
Défice de extensão associado a contractura dos flexores Nestes casos, deve ser continuada a imobilização
Grupo III em extensão/abdução até à intervenção cirúrgica
Hipoplasia do polegar (incluindo tendões e défice dos (transferência tendinosa). A imobilização, enquan-
músculos do dedo) to se aguarda cirurgia, permite evitar que se insta-
Grupo IV lem contracturas musculares e retracções cutâneas,
Todas as situações não incluídas nos grupos anteriores as quais complicam a intervenção cirúrgica.
Nos casos do grupo II (Figura 7) a imobilização
em extensão/abdução é util no período pré-ope-
pode ser encontrado na artrogripose, nas mãos ratório. Os casos do grupo III e IV têm indicação
com dedos em rajada de vento (dedos com desvio cirúrgica. Independentemente das formas clínicas,
cubital congénito) e na displasia craniocarpotarsal a criança deverá ficar sob vigilância, com orien-
(síndroma da face em assobio). tação aos pais sobre actividades lúdicas mais ade-
O tratamento conservador é o tratamento de quadas, ou submetida a terapia ocupacional ten-
escolha para o polegar aduto do grupo I. tando rendibilizar a função da mão de acordo com
A colocação do polegar em abdução com o desenvolvimento psicomotor.
extensão, o mais cedo possível e durante 24h/dia,
costuma resolver estes casos. A opção pela imobi- Polegar em gatilho
lização apenas durante o sono não é aconselhável.
O posicionamento pode ser mantido através de O chamado polegar em gatilho é a patologia mais
uma ligadura ou de ortóteses em material termo- frequente no grupo de anomalias congénitas dos
moldável. No SMFR do Hospital Dona Estefânia tendões.
utiliza-se a colocação de ligaduras (Figuras 5 e 6). O polegar encontra-se posicionado com flexão
Informam-se os pais sobre a actuação a seguir, e da interfalângica (Figura 8). Inicialmente é possí-
no 1º mês de vida é realizada revisão semanal para vel a extensão, podendo verificar-se um ressalto
verificar se está a ser conseguida a postura correc- durante a extensão.
ta do dedo. Em geral a imobilização é feita até ao A patologia do polegar em gatilho envolve a
3º mês de vida. poleia A1* e o tendão do longo flexor do polegar
Se depois do 3º mês o polegar continuar com ao nível da 1ª metacarpofalângica (MCF). Este
tendência à flexão/adução embora com movi- tendão apresenta uma formação nodular (nódulo
mentos activos em extensão/abdução, deve con- de Notta) que “encrava, fica preso” na poleia
tinuar-se a imobilização até aos 6 meses. quando se tenta a extensão da interfalângica.
CAPÍTULO 245 Reabilitação de anomalias congénitas da mão – Noções gerais 1199

FIG. 7 FIG. 8
B
Polegar aduto do grupo II Polegar em gatilho
bilateral – a contractura dos
flexores impede a abdução /
extensão passiva dos
polegares.

O polegar em gatilho é geralmente uma situa-


ção esporádica; estão descritos familiares e asso-
ciação a trissomia 13. Pode ocorrer unilateral ou
bilateralmente.
Nos primeiros meses de vida a situação passa
despercebida; depois, são os pais habitualmente
FIG. 9
os primeiros a detectar e a alertar o médico.
O tratamento conservador pode ter bons resul- Ortótese para polegar em gatilho: A – visão palmar; B – visão
tados nas situações em que a extensão é possível. dorsal.
O mesmo consiste na colocação de ortótese com o
polegar em extensão/abdução durante 24h/dia bloqueio em flexão não for rígido, não precisa de
no 1º mês de vida (só se retirando para higiene). cirurgia.
No 2º mês, começa a retirar-se 1 a 2 horas 2x/dia,
deixando a criança brincar e utilizar o dedo. Se BIBLIOGRAFIA
não for detectado ressalto devem ser incrementa- Benson MK, Macnicol MF, Parsch K (eds). Children’s
dos semanalmente os períodos de pausa da Orthopedics and Fractures. Philadelphia: Churchill
ortótese. Finalmente fica colocada só de noite, Livingstone 2002; 293-298
durante 2 a 3 meses. Se durante este período de Chan O, Hughes T. Hand. BMJ 2005; 330: 1073-1075
uso nocturno for detectado novo ressalto, deve Cramer KE, Scherl SA. Pediatrics, Orthopaedic Surgery
recomeçar-se o tratamento como de início. Este Essentials. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins,
tipo de tratamento conservador requer cola- 2004
boração dos pais. (Figura 9) Kliegman RM, Stanton BT, et al (eds). Nelson Textbook of
Em suma, quanto mais precocemente se imo- Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011
bilizar o polegar em extensão/abdução modera- Kozin SH. Upper-extremity congenital anomalies. J Bone Surg
da, melhor o prognóstico. De acordo com a expe- Am 2011
riência do SMFR do Hospital Dona Estefânia, a McAdams TR, Moneim MS, Omerge Jr. Long term follow-up of
maioria das crianças com menos de 3 anos, se o surgical release of the A (1) pulley in childhood trigger
thumb. J Pediatr Orthop 2002; 22: 41-43
* Poleia é um neologismo empregue por fisiatras e cirurgiões da mão
(do francês poulie), significando “roldana”, com o sentido de “trans- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
missão do movimento”. Trata-se de bandas fibróticas transversais ou AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
oblíquas que reforçam, na região anterior, os canais digitais por onde
Medical, 2011
passam os tendões flexores. Há 5 poleias (arciformes) denominadas A1
a A5, e 3 poleias em forma de cruz denominadas de C1 a C3.
1200 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

246
(tala) fabricada de forma simples e de fácil cor-
recção que irá ajustar-se ao membro, apenas para
igualar o comprimento dos membros inferiores.
Por volta dos 8 meses aplica-se uma prótese
com pé, muito rudimentar e relativamente estéti-
ca, que será fabricada de forma a igualar também
REABILITAÇÃO o comprimento dos membros; tal permitirá a
aquisição da posição sentada e a simetria da
DE ANOMALIAS CONGÉNITAS actividade motora utilizando as extremidades.
Salienta-se que a prescrição da prótese deve ser
E ADQUIRIDAS DOS MEMBROS orientada para a maior funcionalidade da marcha,
e que a mesma deverá ser adaptada às fases do
INFERIORES – NOÇÕES GERAIS desenvolvimento psicomotor.
Quando a anomalia do membro prejudica a
M. Madalena de Quinhones Levy aplicação de prótese é preferível que se proponha
a correcção cirúrgica, mas só depois de se atingir o
crescimento máximo do membro afectado.
Quando há necessidade de aplicar uma pró-
Importância do problema tese com joelho, a mesma é colocada após os 3
anos; com efeito, só nesta altura a criança con-
A frequência das anomalias congénitas major dos segue fazer o controlo do joelho utilizando a
membros inferiores, incluindo amputação congénita flexão-extensão. Com o uso diário da sua prótese,
é cerca de 10 a 15 casos por 100.000 nascimentos. a criança pode atingir o seu total controlo por
Dum modo geral, a etiopatogénese relaciona-se com volta dos 5 anos.
noxas ocorridas entre a 4ª e 6ª semana de gestação. São referidos alguns exemplos.
No conjunto geral das amputações dos mem-
bros inferiores em idade pediátrica, cerca de 50- Deficiência congénita transversal de fémur
60% são de origem congénita, e 40-50% adquiridas; Como exemplo de actuação no âmbito das anoma-
considerando estas últimas, cerca de 1/3 relaciona- lias congénitas dos membros inferiores cita-se a
se com neoplasias e 2/3 com lesões traumáticas. deficiência congénita transversal do fémur por
amputação. Esta anomalia é descrita referindo o
Aspectos gerais da actuação nível de amputação.
É utilizada uma prótese convencional constan-
As anomalias congénitas major dos membros do de perna (ou perna e coxa), plástica, joelho
(inferiores e superiores) encontram-se entre os livre e pé.
problemas difíceis de solucionar. As próteses em geral vão sendo ajustadas
A intervenção da equipa de reabilitação deverá durante o crescimento da criança. (Figura 1)
ser realizada o mais precocemente possível de
forma a impedir repercussões sobre o desenvolvi- Deficiência congénita longitudinal do fémur
mento psicomotor da criança. Outro exemplo diz respeito à chamada deficiência
Para a aquisição da marcha podem ser uti- congénita longitudinal do fémur.
lizadas ajudas técnicas e próteses. Distinguem-se dois grupos:
Recordando, a propósito do tópico em análise: • Fémur curto congénito em que existe uma
ortótese é definida como um aparelho colocado no simples hipoplasia global do fémur sem alte-
membro permitindo corrigir uma atitude, tornan- ração da anca.
do o membro novamente funcional; e prótese é um • Fémur curto congénito com desenvolvi-
aparelho que substitui o membro ausente. mento de coxa vara.
Nos casos de um membro inferior amputado, Na adolescência, quando o crescimento do
antes dos 8 meses de idade é aplicada ortótese membro leva ao uso de ortótese e/ou prótese que,
CAPÍTULO 246 Reabilitação de anomalias congénitas e adquiridas dos membros inferiores 1201

FIG. 2
Deficiência congénita longitudinal do fémur. Método
cirúrgico: amputação do pé com ulterior aplicação de prótese.

FIG. 1
Exemplo de prótese aplicada em ambos os membros
inferiores por amputação congénita de ambas as coxas a
níveis diferentes.

pelo seu comprimento, prejudica as actividades


de vida diária (sentar-se em cadeira, utilização de
transportes públicos, etc.), propõe-se a amputação
do pé e a artrodese do joelho de modo a alongar o
coto que ficará estabilizado, facilitando a apli-
caçção da prótese. A decisão de amputação
envolve sempre um acordo expresso dos pais e do
doente. (Figura 2)

Outras anomalias
Diveras anomalias do fémur, da tíbia ou do
perónio traduzindo-se, em geral, por encurtamen-
FIG. 3
to do membro implicam soluções mais complexas
como a cirurgia associada a aplicação de próteses Defeito da tíbia e perónio implicando encurtamento do
e ortóteses. (Figura 3) membro inferior direito em criança de 14 meses. Aplicação de
Tais situações ultrapassam o âmbito do capítu- ortótese e calçado ortopédico, aguardando intervenção
cirúrgica.
lo, pelo que não são pormenorizadas.
1202 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

BIBLIOGRAFIA
Benson MK, Macnicol MF, Parsch (eds). Children’s Ortho-
pedics and Fractures Philadelphia: Churchill Livingstone,
2002
Cramer KE, Scherl SA. Pediatrics Orthopaedic Surgery
Essentials. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins,
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Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
2011
McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
Pediatrics. Madrid: Panamericana, 2010
O’Young BJ. Physical Medicine and Rehabilitation Secrets.
Phildelphia: Saunders Elsevier, 2007
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
Medical, 2011
PARTE XXVI
Oftalmologia
1204 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

247 coróide

esclera
músculo
recto medial

ponto cego (saída


câmara
posterior
do olho

íris
Retina

humor aquoso

INTRODUÇÃO À do nervo óptico)


lente
(cristalino)
córnea
câmara anterior
nervo fóvea
do olho Coróide
OFTALMOLOGIA PEDIÁTRICA óptico central

corpo vítero
íris
corpo ciliar
Esclera

esclera cone
João Goyri O’Neill retina, com células tendão do músculo bastonete
fotossensíeveis recto lateral
pigmentadas
e nervosas

Bases anatomofisiológicas
FIG. 1
com implicações clínicas
Esquema do globo ocular.
Para melhor compreensão dos vários problemas
clínicos que afectam o sistema ocular, são recorda- 2. Túnica intermédia vascular pigmentada: úvea.
dos sucintamente alguns aspectos da respectiva Compreende a coroideia (coróide ou corióide), o
anátomo-fisiologia. corpo ciliar e a íris. A coroideia, situada abaixo da
Os globos oculares estão localizados nas cavi- esclerótica, está impregnada por pigmentos que
dades ósseas denominadas órbitas, compostas de absorvem a luz que chega à retina, evitando sua
porções dos ossos frontal, maxilar superior, malar, reflexão; é intensamente vascularizada, com a
esfenóide, etmóide, lacrimal e palatino. função de nutrir a retina.
Ao globo ocular encontram-se associadas estru- Possui uma estrutura muscular de cor variável
turas acessórias adiante discriminadas (anexos): – a íris, a qual é dotada de um orifício central
pálpebras, cílios (pestanas), supracílios (sobrance- (pupila) cujo diâmetro varia de acordo com a ilu-
lhas), conjuntiva, músculos extrínsecos e aparelho minação do ambiente.
lacrimal. A túnica coroideia une-se na parte anterior do
O diâmetro do globo ocular no recém-nascido olho ao corpo ciliar, estrutura formada por mus-
corresponde a cerca de 65% do do adulto (respec- culatura lisa que envolve o cristalino, modifican-
tivamente ~17 mm e 24 mm). O olho aumenta do sua forma.
rapidamente de tamanho durante os primeiros 2
anos da vida, salientando-se que o respectivo 3. Túnica interna: retina
crescimento é mais lento, depois, até à puberdade. A retina é a camada mais interna do globo ocular.
Cada globo ocular compõe-se, respectiva- Nela se encontram células nervosas especializadas
mente, de três túnicas, de quatro meios transpa- em captar os estímulos luminosos, (fotorrecepto-
rentes, e dos já referidos anexos. (Figura 1) res) designadamente as denominadas por cones e
bastonetes.
Túnicas Os cones encontram-se principalmente na reti-
1. Túnica fibrosa externa ou esclerótica (“zona na central, região da mácula (fovea central ou mácu-
branca” do olho). Trata-se duma túnica resistente la lutea/amarela).
de tecido fibroso e elástico que envolve externa- Os referidos cones permitem uma visão de alta
mente o globo ocular. A maior parte da esclerótica resolução e cromática, mas somente em presença
é opaca e chama-se esclera; nesta, estão inseridos os de forte luminosidade (visão diurna ou fotópica).
músculos extraoculares que movem os globos ocu- Os bastonetes, ausentes na mácula, encontram-
lares. A parte anterior da esclerótica, transparente, se principalmente na retina periférica, transmitin-
chama-se córnea e actua como lente convergente. do informação directamente para as células gan-
CAPÍTULO 247 Introdução à Oftalmologia Pediátrica 1205

glionares e permitem visão não cromática com la e orienta a passagem da luz até à retina. Divide
fraca luminosidade (mesópica ou crepuscular) e o interior do olho em dois compartimentos con-
visão nocturna (ou escotópica). tendo fluidos ligeiramente diferentes: a) a câmara
No fundo da retina localiza-se o ponto cego anterior, preenchida pelo humor aquoso como foi
(mancha cega ou papila), insensível à luz, ao nível referido antes; b) a câmara posterior, preenchida
do qual não há cones nem bastonetes; corres- pelo humor vítreo.
ponde à emergência de vasos sanguíneos da reti- O cristalino pode variar a sua forma ficando
na e do nervo óptico, nervo que conduz os impul- mais achatado ou mais globoso, uma vez que está
sos nervosos para o centro da visão, no cérebro. suspenso pelo músculo ciliar; tais modificações
Na retina encontra-se também a já citada man- de forma ocorrem para fazer convergir os raios
cha amarela (macula lutea ou fovea central), assim luminosos na direcção da mancha amarela. Com
chamada por evidenciar pigmento de cor amare- efeito, o cristalino fica mais globoso para a visão
lada. O centro desta zona não contém vasos, próxima, e mais aplanado para a visão à distância,
sendo constituído unicamente por cones retini- permitindo que os olhos ajustem o foco para dife-
anos; é a este nível que as impressões visuais têm rentes distâncias.
o máximo de precisão e nitidez. A essa propriedade do cristalino dá-se o nome de
No ambiente escuro é muito difícil, e às vezes até acomodação. Com o envelhecimento, o cristalino
mesmo impossível, a visão.Com efeito, é a luz que perde progressivamente a transparência normal, tor-
estimula o tecido nervoso dos olhos e permite dis- nando-se opaco; a tal situação chama-se catarata.
tinguir a forma, o tamanho, a cor, o movimento, etc.. Com a idade, à medida que comprimento
Em ambientes mal iluminados, por acção do axial do olho aumenta, o cristalino aplana-se.
sistema nervoso simpático, o diâmetro da pupila 4. Humor vítreo
aumenta, o que permite a entrada de maior quan- O humor vítreo é um fluido mais viscoso e
tidade de luz. Ao invés, em locais muito ilumina- gelatinoso que o humor aquoso ocupando o
dos, a acção do sistema nervoso parassimpático espaço entre o cristalino e a retina, isto é, a câmara
leva à diminuição do diâmetro da pupila e, conse- posterior do olho. A sua pressão mantém o globo
quentemente à entrada de luz. Tal mecanismo ocular esférico.
evita o ofuscamento e impede que a luz em exces-
so lese as células fotossensíveis da retina. Anexos
1. A conjuntiva é uma mucosa transparente,
Meios transparentes lisa, que reveste a face interna das pálpebras (con-
1. Córnea juntiva palpebral) e a face anterior do globo ocu-
Trata-se da porção transparente da túnica lar até à córnea (conjuntiva bulbar); une o fundo
externa (esclerótica); é circular no seu contorno e das pálpebras ao globo ocular, permitindo o seu
de espessura uniforme. A sua superfície é nutrida deslizamento.
pela lágrima, segregada pelas glândulas lacrimais 2. As pálpebras são duas porções de pele
e drenada para a cavidade nasal através de um revestidas internamente pela conjuntiva palpe-
orifício existente no canto interno do olho. bral. Servem para proteger os olhos e distribuir
O diâmetro corneano médio é ~ 9,5 a 10,5 mm sobre eles a secreção líquida designada lágrima.
nos recém-nascidos e ~12 mm nos adultos. Quanto 3. Os cílios ou pestanas impedem a entrada de
ao respectivo raio da curvatura: 6,6 – 7,4 mm nos poeira e de excesso de luz nos olhos.
recém-nascidos e ~7,4 a 8,4 mm nos adultos. 4. As sobrancelhas ou supracílios têm a função
2. Humor aquoso primordial de proteger o globo ocular da sudação
É o liquido aquoso que se situa entre a córnea da fronte.
e o cristalino, preenchendo o espaço designado 5. As glândulas lacrimais produzem lágrimas
por câmara anterior do olho. continuamente. Tal líquido é distribuído pelos
3. Cristalino movimentos das pálpebras, limpando e lubrifi-
Tem o formato de lente biconvexa coberta por cando o olho. As lágrimas são drenadas através do
uma cápsula transparente. Situa-se atrás da pupi- canal lacrimal que desemboca nas fossas nasais.
1206 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

6. Os músculos extrínsecos oculares. Estes e pela visão. A normal utilização das funções
músculos são em número de seis (6), com a desi- visuais é, por isso, de extrema importância para
gnação respectiva de rectos, em número de quatro um desenvolvimento harmonioso e saudável do
(4) , e de oblíquos, em número de dois (2). ser em crescimento e desenvolvimento – criança e
Os músculos rectos têm todos uma inserção adolescente. Refira- se, a propósito, que o período
comum pelo tendão de Zinn na porção média da crítico de desenvolvimento e maturação da visão
fenda esfenoidal. se processa até aos 4 anos, sendo os primeiros seis
O músculo recto superior tem uma acção de meses cruciais.
elevação, intorção (ou rotação em torno do eixo Está demonstrado que o recém-nascido (RN) é
principal, para dentro), e adução. O músculo recto capaz de ver quando estimulado, por exemplo,
inferior tem uma acção de abaixamento, extorção por mudanças de intensidade luminosa (res-
(ou rotação em torno do eixo principal, para fora), saltando-se que o rosto da mãe constitui um estí-
e adução. O músculo recto interno ou medial tem mulo visual da maior importância); realça-se
uma acção de adução. O músculo recto externo ainda que a maioria das funções sensoriais e
ou lateral tem uma acção de abdução. motoras ligadas ao sistema da visual se desen-
O músculo grande oblíquo (superior) tem volve sobretudo no período pós-natal.
uma acção de abaixamento, intorção e abdução. O Com efeito, o desenvolvimento da visão no
músculo pequeno oblíquo (inferior) tem uma primeiro ano de vida depende essencialmente da
acção de elevação, extorção e abdução. (Figura 2) maturação da retina (cones e bastonetes), da
mielinização dos nervos ópticos e outras vias ner-
Desenvolvimento do sistema visual vosas, assim como do desenvolvimento das sina-
e sua importância pses ao nível do córtex visual. Fácil se torna dedu-
zir, então, a extraordinária vulnerabilidade de tais
Considerando a globalidade dos órgãos dos senti- estruturas a noxas que possam surgir nos primei-
dos, na espécie humana a visão constitui o mais ros meses incluindo período pré-natal, das quais
importante meio de comunicação com o mundo poderão resultar sequelas graves.
exterior. De toda a informação que recolhemos, No que respeita a particularidades anatómicas
mais de 70% passa em primeiro lugar pelos olhos é importante salientar que o olho de um RN de
termo tem um diâmetro cerca de 70% do do adul-
2
to, e cerca de 95% pelos 3-4 anos de vida. Quanto
1 ao diâmetro da córnea, também em relação ao
3 adulto, tais valores percentuais são, respectiva-
4
5
mente, 80% no RN e 95% pelos 1-2 anos. Relativa-
mente à velocidade de crescimento, o globo ocular
atinge o acme durante o primeiro ano de vida, com
desaceleração a partir do 3º ano, e em velocidade
mais lenta até à puberdade. (Capítulo 255)
7
Os RN e pequenos lactentes mantêm as pálpe-
6 bras encerradas durante a maior parte do tempo;
quanto à sua acuidade visual (adiante abordada
1 – Tróclea de reflexão do 4 – Músculo recto superior com mais pormenor, e já aqui definida resumida-
músculo grande oblíquo 5 – Músculo recto externo
mente como a capacidade para distinguir dois
2 – Músculo levantador da 6 – Músculo pequeno
pálpebra superior oblíquo pontos distintos a uma determinada distância),
3 – Músculo grande oblíquo 7 – Músculo recto inferior numa escala de 0-400 (escala de Snellen) é cerca de
20/400, atingindo a acuidade semelhante à do
adulto pelos 2-3 anos de idade .
FIG. 2
No respeitante à acomodação (fenómeno pelo
Figura 4 – Músculos extrínsecos do olho e levantador da qual se torna possível visualizar objectos próxi-
pálpebra superior. mos em função da contracção do músculo ciliar e
CAPÍTULO 247 Introdução à Oftalmologia Pediátrica 1207

à elasticidade da cápsula do cristalino), o acme do Os rastreios oftalmológicos sistemáticos da


seu desenvolvimente ocorre entre os 7 e 10 anos, criança em “períodos chave” do desenvolvimento
diminuindo após a adolescência. são um imperativo, apelando à colaboração entre
O reflexo fotomotor pode ser obtido já no o médico de família, o pediatra e o oftalmologista.
recém-nascido, inclusivamente a partir de idades Nos capítulos seguintes são abordados tópicos
gestacionais de 30 semanas; no período neonatal, fundamentais de Oftalmologia Pediátrica destina-
pode ainda ser demonstrada a capacidade de fixa- dos a propiciar ao estudante de medicina, clínico
ção em determinado objecto, embora por períodos geral e pediatra geral noções gerais no âmbito da
curtos, sendo que tal capacidade, em termos de referida subespecialidade, com a finalidade de
duração ou de “concentração”, já está desenvolvi- apoio na actuação no ambulatório, e na decisão de
da pelos 2 meses; tal permite, pelos 3 meses, seguir encaminhamento atempado para centros especia-
com os olhos determinado objecto desde que não lizados de situações específicas que ultrapassam
ultrapasse o campo visual (consultar glossário). as respectivas competências.
Quanto à capacidade para discriminar cores e A BIBLIOGRAFIA do presente capítulo é
diversas intensidades de luz, o recém-nascido tem referida em conjunto com a do seguinte (Capítulo
estas capacidades, embora ainda pouco desen- 248).
volvidas.
Quanto à secreção lacrimal desencadeada pelo Nota: As ilustrações inseridas na Parte XXVI
choro, até cerca dos 2 –3 meses, é escassa. No res- foram executadas no Departamento de Anatomia
peitante à cor da íris poderá verificar-se pigmen- da FCM/UNL.
tação e consequente modificação da mesma até
cerca dos 6-8 meses; a partir de então, a chamada
“cor dos olhos” poderá considerar-se definitiva.
Por fim, é importante salientar que alterações
no processo de desenvolvimento da motricidade
infantil e da coordenação olho-mão estão fre-
quentemente relacionadas com problemas visuais.
Na idade escolar, depois dos 6 anos, uma grande
parte dos problemas sensoriais ligados ao desen-
volvimento da visão é dificilmente tratável, e a
recuperação total não é muitas vezes conseguida.
O pediatra e o clínico geral , que acompanham
a criança desde o nascimento, devem estar alerta
para a vigilância da maturação das funções
visuais, considerando a sua posição privilegiada
para detectar os problemas e encaminhar precoce-
mente a criança para uma observação em centro
especializado de oftalmologia.
No âmbito dos chamados exames de saúde,
para além da anamnese rigorosa, determinados
procedimentos simples relacionados com a anato-
mofisiologia do sistema ocular abordados adiante
devem fazer parte daqueles: movimentos ocu-
lares, inspecção do globo ocular, e estruturas adja-
centes, pesquisa do reflexo vermelho, simetria e
reactividade da pupila, detecção de opacidades,
etc.. Nesta perspectiva é desejável que se proceda
ao exame do fundo ocular entre os 3 e 5 anos de
idade (Capítulos 248 e 251).
1208 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

248
da gravidez e do parto, o peso de nascimento,
idade gestacional, eventuais traumatismos rela-
cionados com o parto, designdamente com reper-
cussão no globo ocular, a necessidade de oxige-
noterapia, são aspectos fundamentais que devem
ser inquiridos. A evolução do subsequente desen-
EXAME OFTALMOLÓGICO volvimento da criança deverá ser cuidadosamente
avaliada, sendo útil a análise de fotografias em
NA IDADE PEDIÁTRICA idades diferentes para observar o alinhamento
dos olhos e a posição da cabeça em relação ao
João Goyri O’Neill pescoço e tronco. A informação sobre o comporta-
mento diário da criança quando utiliza a visão, na
escola, junto à televisão, e nas actividades lúdicas,
é também importante.
Metodologia geral O inquérito sobre as doenças que afectaram a
criança e os tratamentos a que esteve submetida
A avaliação oftalmológica da criança inicia-se constitui um elemento igualmente de relevo para
desde o momento da sua entrada na sala de con- a anamnese, tendo em conta a possibilidade de
sulta. Deve ser atentamente analisada a posição desencadeamento de certo tipo de patologia oftal-
da cabeça, a movimentação dos olhos e a forma mológica associada a determinados eventos.
como se desloca, servindo-se da orientação visual.
O Quadro 1 resume os dez passos fundamen- Exame objectivo e testes específicos
tais da avaliação oftalmológica.A acuidade visual
é definida como a capacidade do olho para distin- 1 – No exame geral, numa abordagem sumária,
guir entre dois pontos próximos, a qual depende deve ser analisada a configuração facial, a implan-
de diversos factores, em especial do espaçamento tação dos globos oculares e os seus movimentos,
dos foto-receptores na retina e da precisão da re- nomeadamente para a fixação do olhar desperta-
fracção do olho. do por fontes luminosas e pelos sons; igualmente,
a eventual existência de fotofobia, as pálpebras e o
Anamnese pestanejo, a localização e orientação das pestanas,
bem como a coordenação olho-mão. A verificação
Na anamnese devem ser pesquisados anteceden- de posição anómala da cabeça em relação ao pes-
tes familiares e hereditários (cegueira na família, coço e ao tronco merece uma menção especial:
estrabismo, cataratas em crianças, defeitos da quer a retroflexão, quer a rotação ou a inclinação
refracção, nomeadamente miopia, etc.). A história da cabeça, poderão corresponder a posições
viciosas para que a criança tenha melhor acuidade
QUADRO 1 – Avaliação oftalmológica visual, ou para compensar uma diplopia. Muitas
vezes a posição viciosa permite o alinhamento
1. Anamnese ocular.
2. Exame geral Com uma fonte de luz (lanterna) observam-se
3. Fixação, alinhamento e motilidade oculares os fundos de saco conjuntivais e os pontos lacri-
4. Acuidade visual mais, que devem estar patentes; avalia-se a colo-
5. Visão cromática ração da esclera, os vasos conjuntivais, a trans-
6. Visão binocular parência e o diâmetro das córneas, a profundi-
7. Campo visual dade da câmara anterior, a íris e a área pupilar.
8. Reflexos pupilares As pupilas devem ter diâmetros semelhantes
9. Fundoscopia (isocória), salientando-se que a presença de aniso-
10. Outros exames cória implica estudos mais detalhados. Devem ser
regularmente redondas, excluindo-se assim a exis-
CAPÍTULO 248 Exame oftalmológico na idade pediátrica 1209

tência de colobomas, de aderências devidas a si-


néquias, ou ainda a persistência de restos da mem-
brana pupilar. Devem transmitir um reflexo normal
(“vermelho”) do fundo ocular, eliminando-se a pre-
Reflexo luminoso
sença de uma leucocória (pupila branca), que alerta
projectando fonte luminosa
para a existência de situações ambliogénicas, como
sobre a córnea
a catarata, ou ainda de alterações do segmento pos- (Teste de Hirschberg)
terior do globo ocular (retinopatia da prematuri-
dade, vítreo hiperplástico, retinoblastoma, etc.), por • Cada milímetro de desvio do reflexo corresponde a
vezes de prognóstico muito grave (caso do retino- cerca de 7º de desvio ocular.
• Um reflexo junto do bordo pupilar, com o outro
blastoma), com elevado risco para a vida da criança. centrado, corresponde a um ângulo de desvio ocular de
Com a lanterna pode aproveitar-se a ocasião 15º.
para avaliar também os reflexos pupilares fotomo- • Um reflexo no limbo corneano, com o outro centrado,
tores, directo e consensual. corresponde aproximadamente a um ângulo de desvio
ocular de 45º.

2 – No que respeita à fixação e motilidade ocu-


FIG. 1
lares, cabe referir que a capacidade de manter a
fixação monocular num objecto se atinge pelo 2º Teste de Hirschberg. Estando os olhos alinhados, em
ou 3º mês de vida; com esta idade a criança deverá situação de normalidade, o reflexo luminoso coincide
ser capaz de seguir com os olhos um objecto fami- com o centro da pupila
liar, como a face da mãe, embora a visão binocular
ainda seja muito incipiente. Pelo 4º mês, a capaci- perseguição do estímulo visual é igualmente im-
dade de convergência está estabelecida, devendo portante e relaciona-se com: a acuidade visual, a
pelo 6º mês haver já um correcto alinhamento dos fixação, a motilidade ocular e o desenvolvimento
olhos com visão binocular do campo visual.
Para avaliar a fixação e a motilidade oculares Para o desenvolvimento de uma acuidade vi-
pode utilizar-se uma caneta/lanterna ou um pe- sual normal é essencial que o olho tenha as condi-
queno objecto (brinquedo) que desperte a atenção ções refractivas necessárias para que o foco de
e a fixação visual da criança, tentando verificar o uma imagem incida sobre a retina e sobre a fóvea.
paralelismo na motilidade binocular. A avaliação da acuidade visual é, portanto,
Para verificar o alinhamento utiliza-se o teste essencial no exame oftalmológico da criança em
de Hirschberg ou teste dos reflexos corneanos qualquer idade, devendo contudo tal prova estar
(Figura 1): projectando uma fonte luminosa sobre a adaptada à idade e colaboração da mesma.
córnea obtém-se um reflexo luminoso punctiforme Podem ser utilizados: métodos qualitativos e
que, em condições de normalidade (olhos ali- quantitativos; e técnicas que fazem apelo a res-
nhados, em posição simétrica), coincide com o cen- postas objectivas ou subjectivas, estas mais próxi-
tro da pupila), simetricamente nos dois olhos, mas das situações reais quotidianas e dos métodos
sendo que a assimetria é, em geral sinal de estra- utilizados habitualmente para o adulto. Em qual-
bismo (consultar glossário incluído neste capítulo). quer circunstância requere-se a colaboração que,
por sua vez, implica interesse pela prova a
3 – Na data do nascimento a acuidade visual realizar, e atenção.
da criança é muito baixa (numa escala de 1 em 10:
cerca de 1/10), aumentando rapidamente nas • Métodos qualitativos
primeiras semanas de vida. Os primeiros 3 meses No recém–nascido uma avaliação grosseira da
de vida são particularmente importantes para o capacidade visual pode ser feita pelo reflexo foto-
desenvolvimento da acuidade visual da criança e motor directo.
o estabelecimento da fixação. Aos três anos é pro- Entre os 2 e 6 meses de vida, além do reflexo
vável existir já uma acuidade visual de 8/10, e de fotomotor, deve ser avaliada a capacidade de
10/10 pelos 5 anos de idade. A capacidade de manter a fixação e seguir um estímulo visual apro-
1210 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

priado (face humana aos três meses, uma fonte de branco e outro com riscos ou barras pretas e bran-
luz depois, e um brinquedo aos 6 meses). O movi- cas de larguras variadas.A criança é atraída pelo
mento com perseguição do estímulo visual padrão com barras, (desde que exista capacidade
adquire-se primeiramente na horizontal e, só de discriminação acima do limiar de acuidade
depois, na vertical, pelas 4 a 8 semanas. visual) sendo a acuidade visual deduzida pela me-
A prova de reacção à oclusão constitui tam- nor largura das barras que atrai o olhar e chama a
bém um método simples de avaliação da acuidade atenção da mesma.
visual, podendo ser realizado pelos próprios pais, As bolas rolantes STYCAR, (um conjunto de
desde que devidamente elucidados. 10 bolas brancas com diâmetros progressivamente
Na prática, procede-se à oclusão de um dos menores, que se fazem deslocar num tapete negro,
olhos estando a criança a fixar determinado objec- observando-se a fixação e perseguição da criança
to que lhe desperte a atenção. Com este procedi- ao estímulo visual), constituem outro método de
mento é possível obter três tipos de respostas: 1) avaliação da acuidade visual, passível de aplicar
se a criança reagir apenas à oclusão de um olho, pelos 6 meses de idade. Também aqui, como no
poderá tratar-se de défice grave no olho que não olhar preferencial, não é possível estabelecer uma
reagiu à oclusão, o que implica observação por equivalência com a acuidade determinada por
oftalmologista; 2) se a criança não reagir à oclusão optótipos. (Figura 2)
de qualquer dos olhos, tal indicará, em princípio, Outro método é a utilização de optótipos (fi-
acuidade visual normal nos dois olhos; 3) a guras, letras ou caracteres de tamanhos diferentes,
criança poderá não reagir também por razões rela- apresentados sob a forma de quadros em série).
cionadas com comportamento (por ex. apatia), ou Em geral, após os 3 anos de idade já é possível
por alterações do sistema nervoso central. avaliar a acuidade visual utilizando um destes
métodos de optótipos: habitualmente, para os
• Métodos quantitativos* mais pequenos, apenas em símbolos isolados e,
A pesquisa do nistagmo optocinético, uma depois dos 4 anos, em tabelas com conjuntos de
resposta involuntária com movimento pendular letras. A prática do examinador e, sobretudo, o
dos olhos, (movimento alternado dos olhos em grau de desenvolvimento da criança ditarão qual
direcções opostas, repetitivo) desencadeada pela a melhor técnica a utilizar. Os símbolos, quando
apresentação rítmica de um estímulo visual – por isolados, dão em regra uma melhor a acuidade
exemplo faixas ou tiras alternadamente negras e bran-
cas aplicadas num tambor rotativo – pode também Nistagmo optocinético
servir para a determinação da acuidade visual.
Diminuindo progressivamente a largura dessas
faixas colocadas de modo sucessivo na face lateral
do tambor, é possível avaliar a acuidade visual
máxima relacionando-a com a faixa de menor
largura capaz de desencadear o movimento
reflexo. (Figura 2)
Os chamados testes do olhar preferencial,
como os que empregam cartões de Teller, podem
ser utilizados como técnica de avaliação da
A B
acuidade visual, após os 4-5 meses, em crianças
pré-verbais. Os referidos cartões têm um lado
FIG. 2
Avaliação da acuidade visual utilizando o métodos do nista-
*Notas importantes: gmo optocinético (A) observando o comportamento da criança
a – Não é possível estabelecer uma equivalência entre os resultados
obtidos pelos diversos métodos quantitativos. atrás dum biombo com orifício (permitindo que a mesma não
b – A determinação da acuidade visual deve ser feita separadamente veja o observador) (B). Esta estratégia é aplicada, também para
para longe e para perto, em monocularidade e em binocularidade, sem o olhar preferencial, e para as bolas rolantes STYCAR.
correcção óptica e utilizando-a, quando existir.
CAPÍTULO 248 Exame oftalmológico na idade pediátrica 1211

visual do que quando estão incluídos numa série, As discromatopsias adquiridas devem-se a
em tabelas. (Figura 3) patologia coriorretiniana ou do nervo óptico e são
Não existe consenso sobre o melhor método em geral evolutivas e frequentemente unilaterais
e/ou tabelas de optótipos a utilizar para a deter- ou assimétricas, acompanhadas doutros sinais e
minação da acuidade visual em crianças pequenas sintomas.
e até à idade escolar. Diversos métodos têm sido É bom relembrar que a criança em idade pré-
propostos e utilizados: tabelas de letras e de escolar poderá distinguir as cores primárias (ver-
desenhos figurativos, como as representadas na melho, verde e azul), mas não ser ainda capaz de
Figura 3, E de Snellen (com a letra E em várias as identificar pelo nome.
posições) etc.. Os testes comparativos, como a utilização de
A técnica dos potenciais eléctricos atingindo o pares de canetas de formato igual e com as três cores
córtex occipital, desencadeados por um estímulo primárias, são úteis para a avaliação da visão
visual [os chamados potenciais evocados visuais cromática na criança pequena. Nas mais crescidas
(PEV)] é uma forma mais objectiva de avaliar a podem ser utilizados os livros de tábuas
capacidade visual; tal técnica não dá, contudo, pseudoisocromáticos, como o de Ishiara, com a iden-
informação sobre o processamento neurológico tificação dos números; ou, se a criança ainda não os
mais diferenciado. reconhecer, recorrendo ao “jogo” dos labirintos, que
em geral já consegue executar aos 4 - 5 anos.
4 – Embora não se realize muitas vezes como Os testes dicotómicos de Farnsworth, mais
exame de rotina na avaliação da criança, o estudo informativos, mas também mais complexos, reque-
da visão cromática está indicado, sobretudo em rem melhor colaboração, sendo por isso mais difí-
situações com suspeita de discromatopsia (per- ceis de aplicar numa criança.
turbação na percepção das cores, de que é exem-
plo o daltonismo); trata-se, efectivamente, dum 5 – No estudo da visão binocular há que ter
problema importante (congénito hereditário ou em conta os elementos já recolhidos na observação
adquirido), sobretudo se for desconhecido, por da fixação, no estudo da motilidade ocular, e na
poder interferir no desenvolvimento global da avaliação da acuidade visual.
criança e no seu rendimento escolar. As acro- Dum modo geral, pode afirmar-se que a ava-
matopsias totais são muito raras. liação da bisão binocular se baseia na noção da
As discromatopsias congénitas são heredi- capacidade de fusão das imagens recebidas por
tárias, bilaterais e não evolutivas. Têm maior cada olho.
incidência no sexo masculino aparecendo, segun- Uma correcta binocularidade só é possível com
do alguns autores, em 8% dos rapazes e apenas movimentos oculares normais e com visão equili-
0,5% das raparigas, embora com graus diversos. brada nos dois olhos.
De referir que o exame da motilidade ocular
extrínseca é levado a cabo inicialmente em binocu-
laridade (terminologia de “versões”) avaliando a
simetria da rotação dos dois olhos; verificando-se
assimetria, a avaliação deve passar a fazer-se pro-
cedendo à oclusão alternada de cada olho (mono-
cularidade com a terminologia de “duções”).
É igualmente importante determinar se algum
dos seis músculos extrínsecos que movimentam o
olho está hiper ou hipofuncionante, o que poderá
determinar desequilíbrio em determinada posição
do olhar.
As posições de olhar (ou posições cardinais)
FIG. 3
são as seguintes: para baixo e para a direita, para
Símbolos e tabelas para determinação da acuidade visual. cima e para a direita, para a direita na linha média,
1212 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

para a esquerda e para cima, para a esquerda na No caso de se verificar um desvio fixo na
linha média, e para baixo e para a esquerda. Deve direcção medial (convergente), diz-se que há
igualmente analisar-se o olhar para cima e para esotropia; a situação de desvio fixo para fora
baixo, assim como a posição primária do olhar. (divergente), designa-se exotropia.
Aos 6 meses a criança já deverá ter a visão Se o movimento for vertical para cima, haverá
binocular estabelecida (teste de Hirschberg), hipotropia ou hipoforia; se para baixo, hiper-
existindo condições ideais (intrínsecas e extrínse- tropia ou hiperforia (consultar adiante glossário).
cas de desenvolvimento) tais como ausência de Nas heteroforias (desvios latentes) é apenas o
anomalias congénitas e estimulação com interac- olho ocluído que executa um movimento por
tividade. detrás do oclusor (quando lhe é retirado o estímu-
O chamado cover-test baseando-se no estudo lo de fixação) sendo que, ao destapar-se, readquire
da motilidade ocular extrínseca, é um exame a fixação sem que haja movimento simultâneo do
essencial no estudo da visão binocular, permitin- olho que esteve a fixar. (Figura 4)
do um diagnóstico dos desvios latentes e cons- Os testes de estereopsia dão uma indicação
tantes, assim como da sua alternância ou unilate- útil sobre o funcionamento sensorial da visão
ralidade binocular e, quando normais, mostram a existên-
Para a execução do cover-test não é necessário cia de percepção simultânea e de uma boa capaci-
equipamento especial, apenas um objecto de fixa- dade de fusão das imagens recolhidas pelos dois
ção (optótipo correspondente à melhor acuidade olhos.
visual conseguida pela criança) e um oclusor; Um dos testes mais utilizados é o estereoteste
todavia, importa haver experiência e treino por polarizado de Wirt-Titmus, baseado numa disso-
quem o executa para se obter a colaboração da cri- ciação da imagem que é apresentada aos dois
ança, nomeadamente quanto à observação dos olhos. A dissociação é feita colocando óculos com
movimentos dos olhos. O teste deverá ser realiza- filtros que polarizam a luz segundo direcções
do com fixação para longe (6 metros) e para perto opostas; desta forma, cada olho vê uma imagem
(30 cm); se a criança usar óculos deverá ainda ser algo diferente, com ligeiro deslocamento lateral
executado com a correcção óptica. em relação à imagem do outro olho. (Figura 5)
Na prática , procede-se do seguinte modo: na Na prática são apresentados vários círculos e
modalidade de “cover” para perto (30 cm) deve desenhos de dimensões diferentes fabricados em
ocluir-se um olho enquanto o paciente fixa o material polarizado. Da fusão das duas imagens
objecto com o outro; remove-se depois a oclusão,
observando o movimento do olho ocluído. Cover-test
OD OE OD OE
Na condição ideal para a binocularidade, a orto-
foria (correcto alinhamento dos dois olhos, sem desvios
latentes ou manifestos), não há qualquer movimento
dos olhos, atrás do oclusor ou ao destapar, pois
ambos se mantêm alinhados com o objecto de fix-
ação, pese embora a oclusão de um deles. Ortoforia Exoforia de OD
OD OE OD OE
Na heterotropia (não alinhamento ocular mani-
festo ou estrabismo) a oclusão do olho que fixa obri-
ga o outro olho que estava desviado a movimentar-
se para alinhar o ponto de fixação da retina (a fóvea
se houver uma fixação central) com o objecto.
Se o movimento do olho após remoção da Esotropia alternante Esotropia de OE
oclusão se verificar em direcção à linha média
(convergente), diz-se que há esoforia; caso tal não
FIG. 4
se verifique (divergente) diz-se que há exoforia.
Em ambas as situações os dois olhos fixam o Covert Test: alguns resultados obtidos (consultar texto e
objecto quando estão descobertos. glossário).
CAPÍTULO 248 Exame oftalmológico na idade pediátrica 1213

recebidas resulta a noção tridimensional de estereo-


psia; ou seja, as imagens parecem ter relevo.
Para as crianças mais pequenas apenas é possí-
vel a colaboração com o teste da mosca: havendo
visão estereoscópica, a criança reage com uma
reacção de espanto, ou até de medo. Pedindo-lhe
para agarrar as asas da mosca com o polegar e indi-
cador, fá-lo num plano superior ao do cartão-teste.
Crianças de 4 anos colaboram já na avaliação
utilizando as filas de animais, o que permite uma
melhor quantificação da estereopsia.Pergunta-se
qual deles, em cada fila, está em relevo. Os círcu-
Aos 3 meses o campo visual da criança tem cerca de
los estereoscópicos são ainda mais discrimina- 60º de amplitude. Tal como a amplitude, a
tivos, mas apenas utilizáveis em idades mais profundidade do campo visual também aumenta
avançadas. progressivamente com a idade

6 – O campo visual da criança, (definido como


FIG. 6
a área de visão que o olho alcança pressupondo
que o olhar se dirige para um ponto fixo) é inicial- Evolução do campo visual na criança em esquema figurativo.
mente muito limitado, seja em profundidade, seja
em amplitude; de salientar que o mesmo evolui chamadas bolas montadas (testes de Sheridan /
progressivamente com o crescimento e a matu- STYCAR). Ambos são métodos que permitem
ração. (Figura 6) apenas uma avaliação grosseira.
Outro termo utilizado é campo do olhar que No teste de confrontação o examinador, senta-
corresponde à área de visão alcançada com o do em frente da criança a cerca de 60 cm e com os
somatório das várias posições do olhar, no pressu- olhos de ambos à mesma altura, mantém o olhar
posto de que a cabeça está fixa. da criança a fixar o seu nariz. Depois introduz de
Os exames de avaliação do campo visual ou de fora para dentro do campo visual, a meia distân-
campimetria utilizando o perímetro manual de Gol- cia entre ambos, um objecto ou os dedos, que a cri-
dman e perímetros automáticos só são geralmente ança assinala assim que os vê, permitindo a com-
exequíveis após os 6 anos por requererem colabora- paração da amplitude do seu campo visual com a
ção, com permanente atenção durante longo período. do examinador. A avaliação deve ser feita em
Em crianças mais pequenas poderá ser feita a ambos os lados e nos diversos quadrantes, tendo
avaliação dos campos visuais utilizando o método especial atenção para que o examinado fixe con-
de confrontação ou ainda, pelos 2 anos, com as tinuamente o nariz do examinador. Pode ser feita
em monocularidade (utilizando um penso oclu-
sor) e em binocularidade. (Figura 7)
Utilizando o método de Sheridan, um exami-
nador, colocado atrás da criança, introduz sucessi-
vamente no campo visual uma bola montada
numa haste (o teste original utiliza as bolas com
diâmetros entre 13 mm e 3 mm). Uma outra pes-
soa, colocada à distância em frente da criança,
(Figura 2-B) mantém-lhe a fixação do olhar num
alvo e observa a reacção assim que a bola é perce-
bida. (Figura 8)
7 – Os reflexos pupilares que se manifestam
FIG. 5
por movimentos da pupila relacionam-se com a
Estereoteste polarizado de Wirt – Titmus. motilidade intrínseca. Descrevem-se dois tipos de
1214 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

avalia-se o movimento de convergência binocular, a


amplitude de acomodação e o reflexo da miose que a
acompanha.

8 – O exame do fundo ocular – fundoscopia -


constitui rotina no exame da criança, em Oftal-
mologia. As características da papila do nervo
óptico devem ser avaliadas: coloração, contornos,
características da escavação e dos vasos na papila.
Igualmente o restante fundo ocular deve ser ana-
lisado, nomeadamente a coloração e homogenei-
dade, as características dos vasos retinianos, sua
FIG. 7
coloração, trajecto e relações, bem como a área
Avaliação do campo visual por confrontação. macular e foveolar. (Figura 9)
Frequentemente, em crianças de pouca idade,
reflexos pupilares: os fotomotores e o de acomo- é difícil realizar tal observação com pormenor, so-
dação. bretudo pela escassa colaboração, pela diminuição
Há dois tipos de reflexos fotomotores: do diâmetro pupilar, e pela dificuldade em manter
a) directo , traduzido por verificação de miose a fixação do olhar, o que dificulta a focagem da
como resultado do estímulo com fonte luminosa; retina. Estas circunstâncias podem levar à necessi-
b) consensual, traduzido por idêntica resposta dade de dilatação prévia da pupila com paralisia
pupilar verificável no olho não estimulado pela da acomodação, utilizando colírio cicloplégico,
fonte luminosa (por ex. atropina), atitude que deverá ser ponde-
O reflexo de acomodação obtém-se quando o rada pelo médico oftalmologista. Nalguns casos,
olho fixa um objecto próximo: a resposta é miose para que a observação seja viável, poderá ser
associada a convergência dos olhos . Ou seja, pela mesmo necessário o recurso à anestesia.
aproximação de um objecto seguindo a linha média Na impossibilidade duma observação fun-
ântero-posterior em direcção ao nariz da criança, doscópica, torna-se fundamental a observação do
chamado “reflexo alaranjado” (com um oftal-

2
1
4

1 – Mácula
2 – Papila óptica
3 – Ramo temporal superior da artéria central da retina
4 – Ramo temporal inferior da veia central da retina
FIG. 8
Avaliação do campo visual pelo método de Sheridan com bolas FIG. 9
montadas. Fundoscopia normal.
CAPÍTULO 248 Exame oftalmológico na idade pediátrica 1215

moscópio colocado a certa distância do globo ocu- BIBLIOGRAFIA


lar é observada, em condições de normalidade, a Campagnoni AT, et al (eds). Developmental Neuroscience.
luz de cor alaranjada reflectida pela retina).A Basel: Karger, 2008
observação pode ser facilitada procedendo à Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
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ciais do campo visual, exames de ortóptica, exa- AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
mes de neuroftalmologia, exames electrofisiológi- Medical, 2011
cos (electrorretinograma/ERG, potenciais evoca-
dos visuais/PEV, etc.) cujo âmbito ultrapassa os
objectivos deste livro.
Para melhor compreensão da terminologia, em
geral do domínio do oftalmologista, é apresentado
um glossário no pressuposto de utilidade para o
médico de família e pediatra.

GLOSSÁRIO
Acomodação > fenómeno pelo qual se consegue visualizar os objectos
próximos, o que é possível graças à contracção do músculo ciliar e à
elasticidade da cápsula do cristalino.
Acuidade visual > capacidade de distinguir dois pontos distintos a
determinada distância;este parâmetro mede a actividade macular
(visão central).
Campimetria > exploração e determinação do campo visual periférico
e central.
Catarata > opacidade do cristalino.
Estereopsia > Capacidade de percepção de imagens com noção de rele-
vo ou de 3 dimensões.
Estrabismo > não alinhamento ocular.
Hifema > colecção de sangue na câmara anterior.
Hipopion > colecção de pus na câmara anterior.
Leucocória > pupila branca (em vez de negra, normal).
Nistagmo > oscilações rítmicas dos globos oculares, independentes dos
movimentos oculares normais.
Ortóptica > Conjunto de processos de reeducação do olho destinados à
correção das pertubações da visão binocular (designadamente estra-
bismo) e da motibilidade ocular.
Prefixo “exo” > divergente.
Prefixo “eso”ou “endo” > convergente.
Sufixo “foria” > latente.
Sufixo “tropia” > manifesto.
1216 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

249
e pré-escolares;no recém-nascido surge com uma
prevalência entre 1% e 25%, correspondendo os
valores mais elevados aos recém-nascidos (RN)
pré-termo portadores de retinopatia da prema-
turidade. Na faixa etária entre 11 e 13 anos a
prevalência também é mais elevada.
ANOMALIAS DE REFRACÇÃO A hipermetropia é o erro de refracção mais
comum na idade pediátrica, sendo que a maioria
(AMETROPIA) dos recém-nascidos é hipermétrope.

João Goyri O’Neill Manifestações clínicas

As manifestações clínicas de ametropia são: 1)


diminuição da acuidade visual; 2) um conjunto de
Definições sinais e sintomas que constituem epifenómeno da
contracção contínua do músculo ciliar durante o
O termo ametropia designa as perturbações da processo de acomodação para garantir a focagem
refracção ocular devidas a má convergência (“não nítida das imagens na retina (cefaleia, cansaço
focagem”) dos raios luminosos na retina; conse- visual, “sensação de peso na vista”, olhos verme-
quentemente, a imagem dum objecto colocado no lhos) sendo de salientar que as crianças, ao con-
infinito não se forma no plano da retina. trário dos adultos, evidenciam grande amplitude
Tais perturbações conduzem a que um indiví- de acomodação.
duo, para visualizar melhor um objecto, faça, ou
um esforço de acomodação (situação de hiperme- Miopia
tropia ou astigamtismo), ou se aproxime do objec- Na maior parte das vezes a miopia não corres-
to (situação de miopia). A ametropia inclui situa- ponde a qualquer alteração patológica do olho,
ções clínicas em geral hereditárias. sendo referida como simples ou fisiológica; num
Na miopia o foco de imagem ocorre em plano grupo menor de casos pode ser patológica, associ-
adiante da retina fazendo com que o indivíduo ada a situações como retinopatia da prematuri-
evidencie dificuldade de identificar objectos dis- dade, glaucoma, catarata, uveíte, determinadas
tantes, vendo bem objectos de perto; a miopia doenças do foro genético como síndroma de
pode resultar do aumento do diâmetro ântero- Down, síndroma de Marfan, homocistinúria, etc..
posterior do globo ocular. Quanto à intensidade pode ser classificada em:
Na hipermetropia o foco de imagem ocorre em baixa [erro de refracção <- 4 dioptrias (D)]; inter-
plano atrás da retina, o que é explicável pela dimi- média (entre- 4 e -9 D); e elevada (> -9 D).
nuição do diâmetro ântero-posterior do globo ocu-
lar; consequentemente existe baixa acuidade vi- Hipermetropia
sual para objectos próximos. Nos RN e lactentes o erro de refracção ronda +2,32
O astigmatismo resulta duma alteração da cur- D. Salienta-se que a hipermetropia aumenta
vatura dum dos meridianos da córnea; consequen- durante os primeiros 7 anos de vida, em média
temente, o indivíduo apresenta o foco da imagem em +0,23D/ano; após os 7 anos começa a decrescer
duas linhas distintas, em vez de num ponto único. gradualmente.
O termo emetropia significa, precisamente,
estado normal do poder de refracção do olho que Astigmatismo
viabiliza formação de imagem no plano da retina. O astigmatismo pode apresentar-se isolado ou
associado às duas alterações anteriores. Como este
Importância do problema erro de refracção depende, sobretudo, da curvatu-
ra da córnea e esta não se modifica em geral a par-
A miopia não é um achado frequente em lactentes tir dos 5 anos, a sua intensidade não se modifica
CAPÍTULO 250 Estrabismo 1217

250
com a idade; no entanto, no que se refere à acuida-
de visual, os sinais e sintomas são mais evidentes
do que nos outros erros de refracção.

Tratamento

Salientando-se que somente o oftalmologista tem ESTRABISMO


competência para decidir quanto a opções correc-
tivas ou outras medidas, são resumidos, como Ana Xavier
orientação, os princípios gerais de tais opções.
Nos casos de miopia de intensidade até – 2D,
em crianças pequenas , não haverá necessidade de
correcção com lentes, embora esteja indicado o Definição e importância do problema
acompanhamento periódico por oftalmologista.
Graus ligeiros de hipermetropia não necessi- O estrabismo é uma situação clínica a que já se fez
tam, em geral, de correcção com lentes devido à alusão a propósito do exame oflamológico: ausên-
elevada capacidade de acomodação da criança. cia de alinhamento dos eixos dos globos oculares.
No astigmatismo está indicada a correcção Trata-se dum dos problemas clínicos mais fre-
com lentes cilíndricas. quentes em idade pediátrica (frequência de cerca
A aplicação eventual de raios laser em situa- de 3 a 5%), atingindo valores cerca de dez vezes
ções específicas poderá ser uma opção em certos superiores nos casos de doença motora cerebral.
defeitos de refração. Deve salientar-se a importância do diagnóstico
precoce com o objectivo principal de evitar alte-
GLOSSÁRIO ração da acuidade visual (Capítulo 247).
Dioptria (d ou D) > Unidade de potência dos sistemas ópticos: olho, Correspondendo a uma síndroma motora e
lentes, etc. As lentes côncavas para óculos para miopia são desig- sensorial, poderá constituir um epifenómeno de
nadas por sinal (-); as lentes convexas para hipermetropia são des- doenças mais graves, como tumores do sistema
ignadas por sinal (+); uma lente cujo foco esteja a 1 metro de dis- nervoso central ou do próprio globo ocular.
tância tem 1 dioptria de potência.
Etiopatogénese e classificação
BIBLIOGRAFIA
Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics. Philadel- A falta de alinhamento em paralelo dos eixos dos
phia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004 globos oculares determina que as imagens que
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson chegam ao sistema nervoso central (SNC) “não se
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, fundindo”, originem visão dupla (diplopia) que é
2011 compensada pelo SNC através dum mecanismo
Kuo A, Sinatra RB, Donahhue SP. Distribution of refractive de supressão da visão do olho desalinhado que,
error in healthy infants. JAAPOS 2003; 7: 174-177 não sendo estimulado, conduz a défice visual.
McInerny T (ed). Tratado de Pediatria /American Academy of Por outro lado, nos desalinhamentos adquiri-
Pediatrics. Madrid: Panamericana, 2010 dos nem sempre surge tal supressão de estímulo
Mills MD. The eye in childhood. Am Fam Physician 1999; 60: no olho desviado pelo facto de a criança adoptar
907-916 determinada posição da cabeça (flexão lateral do
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon pescoço e/ou rotação da cabeça) na “tentativa de
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill evitar” visão dupla.
Medical, 2011 O estrabismo pode classificar-se de acordo
Sakimoto T, Rosenblatt MI, Azar DT. Laser eye surgery for com diversos critérios: idade de aparecimento
refractive errors. Lancet 2006; 369: 1432-1447 (congénito se antes dos 6 meses, ou adquirido se
Ton Y, Wysenbeak YS, Spierer A. A refractive error in prema- depois desta idade); compromisso de um ou dois
ture infants. JAAPOS 2004; 8: 534-538 olhos (respectivamente monocular ou binocular,
1218 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

sendo que este último evidencia melhor prognós- Tratamento


tico indiciando, em princípio, visão conservada
nos dois olhos e menor probabilidade de desen- Para além da correcção estética a proporcionar ao
volvimento de ambliopia); duração da anomalia doente, a base racional do tratamento é prevenir a
(constante, intermitente, ou ainda cíclico se se baixa acuidade visual ou a ambliopia, propician-
manifestar por períodos com intervalos assin- do visão binocular normal.
tomáticos); direcção do desvio ocular (esotrópico Na prática, tal desiderato a cargo do especia-
ou convergente, exotrópico ou divergente, lista, pode ser obtido através de correcção óptica
hipotrópico ou para baixo, e hipertrópico ou para e/ou de intervenção cirúrgica.
cima). Lembra-se, a propósito do que foi referido
no glossário do capítulo 248 que, em situações BIBLIOGRAFIA
consideradas latentes no sentido lato, ou seja, não American Academy of Ophtalmology(AAO). Pediatric ophtal-
constantes, o prefixo dos termos será “… fórico” mology and strabismus. Section 6. Burlington/Vermont:
em vez de “… trópico”. AAO, 2004
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
Diagnóstico Hunter DG, Kelly JB, Buffen AN, et al. Long term outcome of
uncomplicated infantile exotropia. JAAPOS 2001; 5: 352-
A verificação, pelo clínico geral ou pediatra, de 356
desvio ocular mantido pelos 4-5 meses, ou a partir Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
desta idade, implica a realização de história clíni- Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
ca e referência atempada ao oftalmologista acom- 2011
panhada de relatório sucinto para diagnóstico Mills MD. The eye in childhood. Am Fam Physician 1999; 60:
etiológico e actuação adequada em função do tipo 907-916
e magnitude do referido desvio. Trata-se, efectiva- Mohney BG, Huffaker RK. Common forms of childhood
mente, duma situação cujo tratamento ultrapassa exotrofia. Ophthalmology 2003; 110: 2093-2096
o âmbito dos clínicos generalistas (pediatras ou Nelson LB, Olitsky SE (eds). Harley’s Pediatric Ophthalmolo-
não). gy. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2005; 143-
No relatório a enviar ao especialista importa 192
salientar os dados anamnésticos investigados: Prieto-Diaz J, Souza-Dias C. Estrabismo. Barcelona: Roca/
antecedentes da gravidez, desenvolvimento co- Editorial JIMS, 2000
gnitivo, defeitos congénitos associados, fotofobia, Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
doença motora cerebral não evolutiva, anteceden- AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
tes de traumatismo cranioencefálico, torcicolo, Medical, 2011
fotofobia, diplopia, idade e modo de início do
desvio ocular, etc..
Idealmente, o relatório deverá incluir igual-
mente achados do exame físico que foi descrito no
capítulo “Exame oftalmológico”, salientando-se
que um exame objectivo cuidadoso poderá identi-
ficar quadros semelhantes ao estrabismo (pseu-
dostrabismo) como os relacionados, por exemplo,
com epicanto, hipertelorismo e assimetria cranio-
facial.
Uma noção importante a reter é: quanto mais
precoce o desvio e mais tardio o início do trata-
mento, tanto mais reservado o prognóstico. Ou
seja, o papel do médico generalista quanto à iden-
tificação precoce da situação é de primordial
importância.
CAPÍTULO 251 Ambliopia 1219

Etiopatogénese e classificação

251 O cérebro, recebendo imagens diferentes dos dois


olhos e não conseguindo “fundi-las” numa só,
suprime a imagem de um dos olhos para não se
verificar diplopia. Consequentemente, o córtex ce-
AMBLIOPIA rebral, desenvolvendo-se sem “adquirir experiên-
cia” na recepção do estímulo visual bilateral, pas-
João Goyri O’Neill e J. L. Dória sará futuramente a não reconhecer a imagem que
é gerada pelo olho não estimulado.
Por outras palavras, caso não haja condições
para o estabelecimento de uma visão binocular
Definição e importância do problema adequada, o olho “desviado” é funcionalmente
suprimido, porque fornece uma imagem de má
O termo ambliopia, derivado da língua grega – qualidade sem possibilidade de se fundir com a
“olho preguiçoso”, significa genericamente situa- imagem recolhida pelo outro olho. No olho com
ção de acuidade visual baixa. Trata-se, portanto, boa direcção visual a imagem do objecto-alvo da
duma designação com base sintomatológica, a visão incide correctamente na fóvea, enquanto a
qual engloba diferentes factores etiológicos fun- imagem do olho desviado se projecta numa zona
cionais ou orgânicos implicando actuações tera- retiniana extrafoveal e, por isso, incapaz de
pêuticas diversas. fornecer uma boa acuidade visual.
Entre os factores etiológicos ditos funcionais Quanto maior for o ângulo do desvio, tanto
citam-se os erros de refracção, opacidade ocular pior será a imagem captada pela retina do olho
ou disfunção dos músculos do olho. Quanto aos desviado, e tanto mais rapidamente se estabele-
factores de tipo orgânico citam-se fundamental- cerá a supressão funcional desse olho e, conse-
mente as anomalias congénitas do globo ocular, quentemente a ambliopia. Por sua vez, um estra-
do SNC e vias ópticas. bismo monocular e sem alternância é também
Embora as alterações da retina central e das vias mais ambliogénico, como o são os estrabismos de
ópticas sejam de facto causas de ambliopia, é mais instalação mais precoce, em relação aos de apare-
frequente reservar o termo apenas para os casos em cimento em idades mais tardias.
que não se verifica lesão orgânica patente nem com- De acordo com o que foi referido atrás a
promisso da visão periférica e do campo visual. propósito de factores funcionais e orgânicos, pode
A ambliopia pode ser unilateral ou bilateral. afirmar-se, em síntese que a imagem não formada
Estima-se que a prevalência da ambliopia oscile pode resultar de:
entre 2 a 4% na população geral, sendo mais fre- a) desvio do olho (ambliopia estrábica); neste
quente a modalidade unilateral. Trata-se dum pro- caso o olho desviado não é estimulado, razão pela
blema oftalmológico cuja frequência nos países qual se desenvolve nele menos a visão;
desenvolvidos é superior ao conjunto de todas as b) necessidade desigual de correcção da visão
outras situações implicadas na redução da visão entre os olhos (ambliopia anisometrópica);
infantil. c) erro de refracção de forte intensidade em
De reiterar as seguintes noções práticas: a) o estra- ambos os olhos (ambliopia ametrópica);
bismo é a causa mais comum de ambliopia na criança d) opacidade no eixo visual (ambliopia de pri-
sendo a esotropia (estrabismo convergente) a forma vação).
mais frequentemente implicada; b) o atraso no dia- Como regra geral pode afirmar-se que situa-
gnóstico e no tratamento poderá deixar sequelas per- ções decorrentes de disfunção oculomotora, erro
manentes; pelo contrário, quanto mais precoce o de refracção ou opacidade ocular são potencial-
diagnóstico etiológico, maiores as probablidades de mente reversíveis se a criança for estimulada
recuperação c) quanto mais jovem a criança, maior o durante o desenvolvimento visual.
risco de desenvolvimento de ambliopia. Pelo contrário, nos casos em que se verificam
1220 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

anomalias estruturais do globo ocular, anomalias Na ambliopia por privação procura-se a


das vias ópticas ou do sistema nervoso central não remoção da causa (por ex. tratamento cirúrgico de
se verifica melhoria com a estimulação sensorial. catarata ou correcção de ptose palpebral). Na
Como exemplos representativos de ambliopia catarata congénita a regressão da ambliopia é, em
orgânica em idade pediátrica citam-se, entre regra, menos eficaz e depende, não só da precoci-
outras, a retinopatia associada à prematuridade (a dade do tratamento cirúrgico, mas também do
abordar no capítulo 255), a displasia da retina e êxito conseguido com a subsequente correcção
outras anomalias congénitas (como o coloboma óptica.
macular, o albinismo, a atrofia óptica), ou adquiri- Nas ambliopias anisométrica e ametrópica,
das (traumáticas, tóxicas, metabólicas, infecciosas, entre outras medidas, são utilizadas lentes correc-
inflamatórias, etc.). toras. Por vezes, são ainda necessárias medidas
complementares de estimulação.
Diagnóstico
BIBLIOGRAFIA
A ambliopia é em geral assintomática; a sua detec- Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 20114
ção deve ser precoce, e pode ser levada a cabo Holmes JM, Clarke MP. Amblyopia. Lancet 2006; 367: 1343-
através dum programa de rastreio da visão em 1351
todas as crianças em idade pré-escolar. Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
No âmbito dos exames de saúde realizados Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
pelo clínico geral ou pediatra em idades – chave, 2011
de acordo com o plano nacional de vigilância em McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
saúde infantil, são exequíveis: o “teste da oclusão” Pediatrics. Madrid: Panamericana, 2010
descrito a propósito do exame oftalmológico desde Nelson LB, Olitsky SE (eds). Harley´s Ophthalmology.
os primeiros meses de vida; o teste dos reflexos Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2005; 194-196
luminosos na córnea; e o cover-test, realizado de Pediatric Eye Disease Investigator Group. Randomized trial of
modo seriado antes da idade escolar. Qualquer treatment amblyopia in children aged 7 to 17 years. Arch
anomalia ou suspeita de anomalia detectada deve Ophthalmol 2005; 123: 437-447
ser encaminhada para especialista de oftalmologia; Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
com efeito, reitera-se que o êxito da recuperação AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
nos casos de ambliopia depende grandemente da Medical, 2011
precocidade no início do tratamento. Simons K. Amblyopia characterization, treatment, and pro-
phylaxis. Surv Ophthalmol 2005; 50: 123-166
Tratamento

Nas situações de ambliopia o objectivo principal


do tratamento é estimular o olho com baixa visão.
No caso do estrabismo, o passo inicial é, exacta-
mente, a recuperação da acuidade visual do olho
desviado, equilibrando-a tanto quanto possível
com a do outro olho; uma das medidas básicas é,
precisamente, ocluir o olho considerado saudável
para estimular a visão do contralateral, sendo que
este procedimento é da competência do oftalmo-
logista.
A avaliação da acuidade visual monocular per-
mitirá desde logo ter uma ideia da diferença re-
fractiva entre os dois olhos. A atempada correcção
óptica dos defeitos refractivos subjacentes é deter-
minante para evitar a instalação de ambliopia.
CAPÍTULO 252 Obstrução do aparelho lacrimal 1221

252
pel importante na nutrição da córnea, na sua
lubrificação, na protecção do olho contra os
agentes infecciosos e os poluentes externos, e na
refracção. A sua composição, produção e estabili-
dade são, por isso, importantes.
A fina camada lipídica, a mais externa, é pro-
OBSTRUÇÃO DO APARELHO duzida pelas células intertarsais das glândulas de
Meibomius, pelas células glandulares sebáceas de
LACRIMAL Zeiss e pelas células sudoríparas de Moll.
A camada aquosa, intermédia e a mais espessa,
João Goyri O’Neill e J.L. Dória resulta das células secretoras de Krause e de
Wolfring, também designadas por glândulas
lacrimais acessórias.
A camada mucinosa, mais interna, é produzida
Bases anatomofisiológicas pelas células caliciformes, pelas células glandu-
e definições lares de Manz e pelas criptas de Henle. (Figura 2)
O movimento das pálpebras promove a circu-
Em condições basais a produção da lágrima lação da lágrima encaminhando-a para o canto
depende das várias células glandulares que se dis- interno da fenda palpebral – carúncula. A sua
tribuem pelas pálpebras e conjuntiva. Destacando- drenagem faz-se pelas vias lacrimais que se ini-
se a glândula lacrimal, esta localiza-se na porção ciam nos pontos lacrimais, pequenos orifícios, um
súpero-externa e anterior da órbita; compreende superior e outro inferior, no topo dos tubérculos
duas porções: orbital e palpebral. (Figura 1) lacrimais. Seguem-se os canalículos lacrimais que
A mesma cresce até aos 4 anos , sendo que a se abrem no saco lacrimal, e este continua-se pelo
produção reflexa da sua secreção – a lágrima – é, canal lacrimonasal, cuja abertura inferior se loca-
em geral, ínfima até ao 6º mês de vida. liza na meato inferior das fossas nasais.
O filme lacrimal com as suas três camadas - Embriologicamente as vias lacrimais resultam
lipídica, aquosa e mucinosa, desempenha um pa- de um cordão celular ectodérmico cujas células

8
7
1
8
7
2

3
4 1 – Pele
2 – Tecido celular subcutâneo 9
3 – Músculo orbicular
5 das pálpebras (estriado) 5
2 1 4 – Camada celular
6 submuscular 4
5 – Tarso
6 – Glândulas de Meibomius 3
1 – Carúncula lacrimal 5 – Sulco pálpebro-geniano
2 – Prega semilunar 6 – Sulco órbito-palpebral inferior 7 – Músculo superior do
3 – Comissura interna 7 – Sulco órbito-palpebral superior tarso ou de Müller (liso)
das pálpebras 8 – Pálpebra superior (porção 8 – Conjuntiva palpebral 6
4 – Comissura externa orbitária) 9 – Conjuntiva bulbar
das pálpebras

FIG. 1
Globo ocular direito em esquema: relação com pálpebra e FIG. 2
carúncula lacrimal. Constituição anatómica da pálpebra (corte sagital).
1222 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

centrais desaparecem depois, para dar lugar ao transborda o rebordo palpebral, correndo pela face.
lume tubular. À nascença, segundo alguns estu- As chamadas “lágrimas de crocodilo” na desi-
dos, mais de 35% dos bébés não têm ainda a tota- gnação popular correspondem à situação em que
lidade do sistema de drenagem patente, e em há lacrimejo durante a sucção e mastigação; tal se
cerca de 5% das crianças nascidas de termo per- explica por enervação aberrante entre o 5º par cra-
sistem ainda alguns restos celulares até cerca do niano (o qual enerva a glândula lacrimal) e as
sexto mês de vida, ocluindo a parte inferior do fibras gustativas do 7º par.
canal lacrimonasal. (Figura 3)
As Figuras 1 e 3 esquematisando, respectiva- Importância do problema
mente a relação entre glândula lacrimal e carún-
cula, e o trajecto das vias lacrimais, facilitam a Em cerca de 5 a 7 % dos recém-nascidos e lactentes,
compreensão dos processos em que existe dificul- não estando os canalículos e ductos lacrimais com-
dade de drenagem da secreção lacrimal. pletamente desenvolvidos, existe possibilidade de
Diz- se que há lacrimejo quando se verifica obstrução lacrimal em idade muito precoce.
excesso de produção de lágrimas, como acontece, Por outro lado, poderão estar em causa defeitos
por exemplo, nos casos de estimulação retiniana congénitos de canalização duma ou mais daquelas
com luz brilhante), psíquica (por ex. o choro e o estruturas, também com consequente obstrução la-
riso) ou física (por ex. corpos estranhos, poluentes, crimal; salienta-se que a causa mais frequente de
ambiente seco). Igualmente, as conjuntivites, os epífora no lactente é, de facto, a obstrução con-
corpos estranhos superficiais na córnea e na con- génita da via lacrimal.
juntiva, e a triquíase (desvio congénito ou adqui-
rido das pestanas para dentro, contra o globo ocu- Manifestações clínicas
lar, enquanto a pálpebra conserva a sua posição
normal), podem actuar como irritantes, desen- A obstrução das vias lacrimais é a causa mais
cadeando o lacrimejo. comum de epífora na criança recém-nascida, que
O termo epífora reserva-se para as situações de se acompanha por vezes de uma secreção mucosa
deficiente drenagem através da vias lacrimais. Em ou mucopurulenta junto dos pontos lacrimais. As
ambos os casos, (lacrimejo e epífora), a lágrima vias lacrimais impermeáveis, com secreção retida
funcionando como um meio de cultura e de
2 3
desenvolvimento microbiano facilitam, por sua
vez, a ocorrência de conjuntivites repetidas, com
epífora e lacrimejo.
A epífora e o lacrimejo a que atrás nos referi-
mos, como epifenómenos de obstrução da via
lacrimal, levam a conjuntivite recorrente explicá-
vel pela estase lacrimal; recordando o trajecto das
1
vias lacrimais (Figura 3) pode compreender-se
4 que a compressão do dorso do nariz pode originar
refluxo da secreção para o espaço conjuntival.
(Capítulo 254)
5
A dacriocistite (ou infecção do saco naso-
1 – Pontos lacrimais lacrimal) é uma complicação frequente, sendo de
2 – Canalículos lacrimais
referir que o germe bacteriano mais frequente-
3 – Saco lacrimal
4 – Canal lacrimonasal mente implicado é o Staphylococcus aureus; traduz-
5 – Fossas nasais se por rubor e dor ao nível da comissura interna
palpebral e do dorso do nariz, epífora e refluxo de
secreção mucosa ou mucopurulenta pelos canalí-
FIG. 3
culos lacrimais.
Vias lacrimais em esquema: olho direito. O diagnóstico de obstrução das vias lacrimais
CAPÍTULO 252 Obstrução do aparelho lacrimal 1223

pode ser facilmente feito com a instilação de uma génito, a massagem digital cuidadosa poderá ser
gota de fluoresceína a 2% no fundo de saco con- suficiente para resolver a situação; noutros casos
juntival inferior, verificando-se depois, com luz haverá necessidade de sondagem cautelosa ou de
ultra-violeta, o aparecimento do corante, ou não manobras cirúrgicas mais complexas.
(no caso de obstrução), nas fossas nasais ou na
faringe. BIBLIOGRAFIA
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
Diagnóstico diferencial Honovar SG, Prakash VE, Rao GN. Outcome of probing for
congenital nasolacrimal duct obstruction in older children.
Nas síndromas de obstrução das vias lacrimais Am J Ophthalmol 2000; 130: 42-48
haverá que ponderar duas situações específicas: 1) Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
atrésia dos pontos lacrimais (em geral, trata-se Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
duma fina membrana epitelial que oclui o orífi- 2011
cio); 2) dacriocistocele (mucocele) congénito, Mac Ewen CJ, Young JD. Epiphora during the first year of life.
pouco frequente, resultando duma obstrução a Eye 1991; 5: 596-600
montante (canalículos lacrimais) e a jusante (canal Pepose JS, Holland GN, Wilhelmus KR. Ocular Infection &
lacrimonasal) do saco lacrimal, levando à sua Immunity. St Louis: Mosby, 2004
dilatação, habitualmente com infecção, que ocorre Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
nas primeiras semanas de vida. AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
Medical, 2011
Tratamento Taylor D (ed). Pediatric Ophtalmology. Oxford: Blackwell
Science, 2004
A massagem digital, ou com uma “cotonete”,
repetida várias vezes ao dia na zona do saco
lacrimal e do canal lacrimonasal é muitas vezes
suficiente para resolver a situação: esvaziando-se
com tal manobra o saco lacrimal, evita-se assim o
crescimento bacteriano; por outro lado, a pressão
hidrostática produzida contribui para a expulsão
dos” restos” de secreções mais ou menos viscosas
que ainda entopem o canal lacrimonasal. À mas-
sagem pode associar-se a instilação de uma gota
de colírio antibiótico, se houver conjuntivites de
repetição.
Quando a situação não se soluciona com as
massagens persistentes até aos 6 meses, poderá
estar indicada a sondagem das vias lacrimais, ati-
tude que deverá ser ponderada e realizada, sem-
pre pelo médico oftalmologista. A título de infor-
mação apenas, são descritos alguns procedimen-
tos que ultrapassam o âmbito do pediatra e do
clínico geral.
Se a dificuldade de drenagem das lágrimas for
explicada por atrésia dos pontos lacrimais, bastará
realizar a sua perfuração, seguida de dilatação.
Nalguns casos menos frequentes a oclusão pro-
longa-se pelo canalículo lacrimal, implicando uma
atitude cirúrgica mais elaborada.
Nos casos de dacriocistocele (mucocele) con-
1224 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

253
cularização do nervo óptico levando à perda de
função progressiva das fibras nervosas de que se
compõe, com consequente perda de campo visual.
A imaturidade do colagénio da córnea e escle-
rótica na infância confere elasticidade ao globo ocu-
lar. Na criança, o excesso de PIO pode ainda originar
GLAUCOMA aumento de volume do globo ocular (buftalmo) e da
córnea (megalocórnea); o estiramento desta estrutu-
Cristina Brito ra assim como a ruptura das camadas mais poste-
riores da mesma favorecem a entrada de humor
aquoso na sua espessura, do que resulta edema e
consequente perda da habitual transparência.
Definição Da etiopatogénese decorre um dos modos de
classificar o glaucoma, podendo considerar-se dois
O termo glaucoma designa um conjunto de grandes grupos:
doenças que se caracterizam por lesão do nervo 1) os glaucomas resultantes de qualquer per-
óptico e perda de campo visual, habitualmente turbação do sistema de circulação e de drenagem
associadas a, ou provocadas por, aumento da do humor aquoso, relacionável com anomalia iso-
pressão intra-ocular (PIO) avaliada por tonometria. lada do ângulo iridocorneano (disgenesia da
malha trabecular) e alterações secundárias do de-
Importância do problema senvolvimento da íris e corpo ciliar – são os glau-
comas primários; (Figura 1)
Trata-se duma situação relativamente prevalente 2) os glaucomas resultantes de doenças ocu-
na população geral (3%), sendo bastante mais fre- lares congénitas ou adquiridas várias (por exem-
quente na população idosa, e muito rara na popu-
lação infantil ou juvenil. Embora constitua menos 5 12
11
8 17
de 0,07% das doenças do foro oftalmológico, de 9
acordo com diversos estudos epidemiológicos 10
13
pode resultar em amaurose em cerca de 3% a 12%
4
dos casos. Nas formas congénitas têm sido apu- 6
radas incidências da ordem de 1/10.000 a 1/
7
20.000 recém-nascidos.
15
Etiopatogénese e classificação 3
2
14 16
O humor aquoso produzido pelo corpo ciliar pas- 1
sa da câmara posterior, através do orifício pupilar,
para a câmara anterior, sendo drenado através da 1 – Processos ciliares 9 – Cápsula de Tenon
2 – Fibras circulares do mús- 10 – Episclerótica
malha trabecular do ângulo iridocorneano e do culo ciliar ou de Brucke 11 – Córnea
canal de Schlemm para a circulação geral pelas 3 – Fibras radiais do músculo 12 – Esclerótica
chamadas veias aquosas. (Figura 1) ciliar 13 – Trabécula esclero-
A pressão intra-ocular (PIO) – com um valor 4 – Fibras longitudinais do corneana
músculo ciliar 14 – Íris
médio de 7 mmHg na data do nascimento, aumen- 5 – Canal de Schlemm 15 – Câmara anterior
tando cerca de 1 mmHg cada 2 anos até aos 12 6 – Linha de Schwalbe 16 – Câmara posterior
anos – resulta do equilíbrio entre a produção de 7 – Membrana de Descemet 17 – Limbo esclerocorneano
8 – Conjuntiva
humor aquoso e a respectiva drenagem. Se houver
excesso de produção ou obstáculo à drenagem
FIG. 1
verifica-se acumulação de líquido no interior do
globo ocular. O excesso de PIO compromete a vas- Ângulo iridocorneano
CAPÍTULO 253 Glaucoma 1225

plo outro tipo de disgenesias como do segmento segmento anterior, a criança pode evidenciar miopia
anterior do globo ocular, do segmento posterior ou progressiva, estrabismo ou percepção de perda de
de todo o globo), doenças inflamatórias ou infec- campo visual; nestas situações a sintomatologia rela-
ciosas do globo ocular (por ex. uveíte), doenças ciona-se essencialmente com a perda visual.
metabólicas (por ex. mucopolissacaridoses), O diagnóstico diferencial deve estabelecer-se
doenças do tecido conjuntivo, tumores oculares com a megalocórnea,inflamações, traumatismos
(por ex. retinoblastoma), bloqueio da pupila por de nascimento, obstrução das vias nasolacrimais,
sinéquias posteriores da íris ao cristalino, sublu- e ceratoconjuntivites, entre outras situações.
xação do cristalino (por ex. na homocistinúria e Seguidamente é dada ênfase a duas formas
síndroma de Marfan), artrite crónica juvenil (por clínicas de glaucoma primário.
sinéquias inflamatórias – goniossinéquias), neu-
rofibromatoses, anomalias craniofaciais sindro- Glaucoma primário congénito
máticas, cromossomopatias, lesões resultantes de É a forma mais frequente de glaucoma no recém-
traumatismos, lesões iatrogénicas (como as que nascido e lactente.
resultam de intervenções cirúrgicas por catarata, e Na maioria dos casos trata-se de formas espo-
do uso prolongado de corticosteróides locais ou rádicas, demonstrando-se em cerca de 10-40% dos
sistémicos etc.) – são os glaucomas secundários. casos antecedentes familiares e hereditariedade
Existem outras classificações relacionadas, autossómica recessiva com penetrância variável.
nomeadamente com: o modo de aparecimento Conhecem-se pelo menos três loci cromossómicos
(agudo ou crónico), idade de aparecimento, idade responsáveis pela hereditariedade do glaucoma
de manifestação manifestação (no período neona- congénito primário. O gene CYP1B1 foi identifica-
tal ou ulteriormente). do num desses três loci.
O risco de ocorrência em irmãos de uma
Manifestações clínicas e diagnóstico criança afectada, sem consanguinidade dos pais, é
muito baixo (3% para o sexo masculino e 0% para
O glaucoma primário (correspondendo a cerca de uma criança do sexo feminino). Apesar de a pro-
60-70% dos casos pediátricos, em regra congénito, babilidade ser baixa, recomenda-se o exame de
pelo facto de a PIO ter início geralmente no perío- irmãos e descendentes de doentes com glaucoma con-
do pré-natal), evidencia sintomatologia antes dos génito primário, especialmente nos primeiros 6
3 anos de idade, enquanto o que é gerado após o meses de vida.
nascimento (em regra secundário, também cha-
mado adquirido ou juvenil) evidencia sintoma- Glaucoma primário juvenil
tologia entre os 3 e 30 anos. Associa-se a miopia e história familiar de glaucoma,
As manifestações dependem muito da magni- de início entre os 5 e 20 anos. Parece haver associa-
tude da elevação da PIO e da idade de início. Os ção com o gene GLC1A do cromossoma 1q21-q31.
achados mais frequentes são: lacrimejo, fotofo-
bia, blefarospasmo, megalocórnea, buftalmo e Exames complementares
opacidade corneana.
Uma PIO elevada muito precoce, evidenciada Para além da tonometria e doutros exames espe-
logo na data do nascimento, pode provocar opaci- cializados que ultrapassam o âmbito do livro, o
ficação, procidência e aumento de dimensões da especialista recorre em geral a exames imagio-
córnea. Nos casos de aumento mais gradual da lógicos, destacando-se a ecografia para avaliação
PIO poderá verificar-se, não opacidade corneana, do comprimento axial do globo ocular, com
mas apenas buftalmo ou buftalmia. relevância na fase de opção terapêutica e no estu-
A ocorrência simultânea de lacrimejo, fotofo- do evolutivo.
bia e blefarospasmo, no recém-nascido ou lacten-
te, associados a edema corneano, é muito sugesti- Tratamento
va de hipertensão ocular.
Após os 3 anos, como diminui a elasticidade do A abordagem terapêutica médica ou cirúrgica (a
1226 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

cargo do especialista de oftalmologia) é variável EA (eds). Duane’s Clinical Ophthalmology. Philadelphia:


consoante o tipo de glaucoma, sendo objectivo Lippincott Williams & Wilkins, 2005
regular a PIO e preservar a acuidade visual. Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
Importa, por isso, que o clínico geral e o pediatra Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
estejam sensibilizados para os sinais descritos Saunders, 2011
tendo em vista a referência atempada para o oftal- McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
mologista. Pediatrics. Madrid: Panamericana, 2010
Salienta-se que o glaucoma congénito deve Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
ser sempre considerado uma emergência médica. AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
Existem vários colírios antiglaucomatosos com Medical, 2011
mecanismos de acção diferentes, utilizados em Taylor D, Hoyt CS. Pediatric Ophthalmology and Strabismus.
geral a título temporário. Frequentemente, o me- Philadelphia: Elsevier Saunders, 2005
dicamento que se usa em primeira linha na
criança é um beta-bloqueante, o que exige algu-
mas precauções uma vez que se verifica sempre
absorção sistémica do medicamento. Inibidores da
anidrase carbónica, antagonistas das prostaglan-
dinas e parassimpaticomiméticos são outros me-
dicamentos que podem ser empregues.
O tratamento do glaucoma relacionado com
anomalias do desenvolvimento é essencialmente
cirúrgico (por vezes numerosas intervenções ao
longo da vida, mesmo quando os resultados ime-
diatos são bons). O recurso a medicação antiglau-
comatosa habitualmente é temporário.

Prognóstico

Dum modo geral pode afirmar-se que o prognós-


tico do glaucoma congénito é mau; com efeito, em
mais de 50% das crianças a acuidade visual fica
reduzida a cerca de 1/10, embora, face às medidas
levadas a cabo, com PIO normalizada na maioria
dos casos.
O prognóstico relaciona-se, mais com o atraso
no diagnóstico e com a gravidade da doença, do
que com a técnica cirúrgica utilizada.

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CAPÍTULO 254 Síndroma do “olho vermelho” 1227

254
• a associação a prurido intenso indica, em
geral, a presença de conjuntivite alérgica;
• a dor “em pontada”, de início agudo e localiza-
da sugere a presença de corpo estranho;
• a dor mais insidiosa, profunda, de carácter
difuso, e por vezes mal definida, pode acom-
SÍNDROMA DO “OLHO panhar um quadro de uveíte ou de neurite
óptica;
VERMELHO” • a “sensação de corpo estranho”, de queima-
dura ou de desconforto, mais ou menos inten-
José Nepomuceno sa, pode indiciar alteração local nas pálpebras,
conjuntiva, córnea, esclerótica ou episclera.
A fotofobia tem uma importância limitada como
possível indicador da localização da doença que
Definição cursa com “olho vermelho”: apesar de estar frequen-
temente associada a doença intra-ocular (uveíte,
A designação de “olho vermelho”, traduzindo um glaucoma), pode tambem surgir em processos
conceito semiológico, diz respeito a um conjunto de patológicos extra-oculares (conjuntivite, ceratite).
situações frequentes em Oftalmologia Pediátrica Seguidamente são abordadas as principais si-
em que predomina, entre outros sinais ou sintomas, tuações clínicas que cursam com “olho verme-
o rubor ou hiperémia do globo ocular. lho”, salientando-se que, na maioria das mesmas,
está indicado o encaminhamento para o oftalmo-
Etiopatogénese e semiologia logista.

A hiperémia do globo ocular pode surgir nas se- Quadros clínicos


guintes situações:
a) hiperémia dos vasos conjuntivais exibindo Na perspectiva de sistematização anátomo-fisio-
grande ramificação (ou injecção conjuntival, com lógica (das pálpebras ao sistema ocular propria-
aspecto de vermelho vivo), sendo de salientar que mente dito) são abordados os quadros clínicos
em tal circunstância a hiperémia é progressiva- clássicos, com especial realce para a conjuntivite.
mente menos acentuada à medida que se aproxi-
ma da zona de transição da córnea com a escleróti- 1. Hordéolo interno e calázio
ca (aspecto de halo branco pericorneano); b) O hordéolo interno é um pequeno tumor hipere-
hiperémia ou injecção ciliar traduzindo-se por co- miado ou inflamação nodular, indolor (embora
loração vermelha-azulada mais intensa, precisa- doloroso à compressão), duro, aderente à carti-
mente junto ao bordo corneano; c) combinação das lagem do tarso, no bordo das pálpebras, proci-
situações descritas em a) e b); d) hiperémia dos dente para dentro, devido a inflamação das glân-
vasos corneanos superficiais bem visíveis em con- dulas de Zeiss ou de Moll. Trata-se de foliculite.
tinuidade com os vasos da conjuntiva, também Quando se verifica inflamação crónica da
hiperemiados; e) hiperémia dos vasos corneanos glândula de Meibomius, o processo inflamatório
profundos em escova ou do próprio parênquima designa-se por calázio; a tumefacção é indolor e
corneano, independentes estes dos vasos conjunti- mais dura. (Figura 1)
vais superficiais; f) sufusão hemorrágica subcon- O agente etiológico mais frequente é o Staphy-
juntival ou hiposfagma, sem compromisso visual, lococcus aureus; no entanto, o exsudado pode ser
e indolor. estéril.
Em função de determinados sintomas e sinais Tal quadro clínico deve ser inicialmente trata-
associados é, em certa medida, possível admitir do com aplicação local de compressas quentes
as entidades clínicas subjacentes à hiperémia associadas à utilização tópica de pomadas (ou colí-
ocular: rios); o antibiótico tópico de escolha é a flucloxa-
1228 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Está indicada a aplicação de calor seco local


duas a quatro vezes por dia.
Somente se deve recorrer à antibioticoterapia
sistémica (com flucloxacilina nos casos identifica-
dos de etiologia estafilocócica) se surgir abcesso
da pálpebra.

4. Dacriocistite
A dacriocistite é uma infecção do saco lacrimal,
geralmente obstruído; os agentes etiológicos mais
frequentes são: S. aureus, S. coagulase negativo, S.
pneumoniae, Streptococcus pyogenes (grupo A), etc..
FIG. 1 FIG. 2
Exercendo pressão sobre o saco nasolacrimal veri-
Calázio. (NIHDE) Hordéolo externo. (NIHDE) fica-se a saída de exsudado purulento.
O antibiótico de primeira escolha é a flucloxa-
cilina ou, em alternativa, o ácido fusídico, canami- cilina; em alternativa: amoxicilina-clavulanato,
cina, gentamicina ou cloranfenicol (de 4-4 horas e cefalosporinas de segunda ou terceira geração, ou
5 vezes por dia), entre outros. clindamicina.
Se a lesão resistir ao tratamento médico pode, A duração do tratamento é 7-10 dias, sendo
após o desaparecimento da inflamação aguda e que poderá estar indicado o exame cultural do
adequada delimitação capsular, ser removida exsudado com coloração de Gram; havendo sinais
cirurgicamente, por via cutânea ou conjuntival. de pus colectado, o oftalmologista procede a
A antibioticoterapia sistémica somente está drenagem cirúrgica. (Figura 3)
indicada se se verificar celulite difusa ou adenite
pré-auricular. 5. Conjuntivite aguda
Definição e importância do problema
2. Hordéolo externo A conjuntivite aguda, constituindo, seguramente,
Esta situação (sinónima de terçol e, na designação a principal causa de “olho vermelho” na idade
popular, de terçolho) é um processo inflamatório pediátrica, define-se como inflamação da conjun-
agudo supurado, em forma de ”grão de cevada” tiva provocada por infecção bacteriana ou vírica,
que se desenvolve no bordo da pálpebra, proci- estado alérgico ou irritação mecânica (corpos
dente para fora, ao nível de uma das glândulas estranhos, líquidos, etc.). As conjuntivites em
sebáceas (glândulas de Zeiss), acompanhado de geral podem evoluir de modo agudo ou crónico.
dor. (Figura 2)
Na prática, a actuação é semelhante à já referi-
da a propósito do calázio e hordéolo interno.

3. Blefarite
Trata-se duma inflamação (aguda ou crónica) do
bordo da pálpebra. Originando sensação de “irri-
tação” e prurido, são descritas as formas estafilo-
cócica e seborreica. A pediculose das pálpebras pode
originar um quadro de blefarite. A etiologia mais fre-
quente é estafilocócica.
Na prática é suficiente a aplicação tópica
empírica de unguento (pomada) oftálmico com
antibiótico de 4-4 horas (5 vezes por dia): ácido
FIG. 3
fusídico, polimixina, cloranfenicol, gentamicina, ou
canamicina. Dacriocistite: tumefacação do saco lacrimal.
CAPÍTULO 254 Síndroma do “olho vermelho” 1229

Anatomia patológica de 24 horas após início do tratamento adequado.


Para além da dilatação vascular difusa, exsudação No âmbito das conjuntivites agudas de causa
e quemose(ou infiltração edematosa da conjuntiva vírica (a que corresponde, em geral, o quadro
ocular, na maior parte das vezes de origem infla- anatomopatológico de conjuntivite folicular),
matória, dando origem a um rebordo saliente, cabe uma referência especial ao Adenovirus,
avermelhado, em volta da córnea), existem cinco provavelmente o agente mais frequente, excluin-
tipos de resposta morfológica da conjuntiva: papi- do o período neonatal. Salienta-se a sua elevada
lar, folicular, membranosa/pseudomembranosa, contagiosidade e a possibilidade de compromisso
cicatricial e granulomatosa. concomitante da córnea. (Figura 5)
Sob o ponto de vista biomicroscópico, a carac- Em termos de manifestações clínicas, duas asso-
terização dos aglomerados inflamatórios na con- ciações possíveis são: o aparecimento de secreção
juntiva tarsal reveste-se de particular importância muco-sanguinolenta (tal como nas infecções por H
para estabelecer a destrinça entre conjuntivite víri- influenzae) e o achado de adenomegália pré-auricu-
ca (na qual se verifica a existência de aglomerados lar.
inflamatórios com vascularização interlesional, O período de contagiosidade das conjuntivites
designados por folículos), e a conjuntivite bacteri-
ana ou alérgica (caracterizadas pela evidência de
aglomerados com um pedículo vascular central,
designados por papilas).

Manifestações clínicas
As conjuntivites agudas, para além da hiperémia
conjuntival, sensação de “areia ou de corpo estra-
nho” no olho, evidenciam-se por prurido, ardor e
aparecimento de lacrimejo e secreção aquosa,
mucosa ou purulenta; havendo compromisso da
conjuntiva palpebral, surgirá edema palpebral.
Em geral não evoluem com dor, excepto se existir
concomitante compromisso da córnea. Os reflexos
pupilares são normais.
A presença de secreção purulenta com encerra-
mento palpebral matinal sugere infecção bacteriana.
FIG. 4
Nas conjuntivites bacterianas (estando em
causa, sobretudo, Streptococcus pneumoniae, Mora- Conjuntivite papilar com exsudado purulento.
xella, Haemophilus influenzae e Chlamydia trachoma-
tis, do que resulta o quadro anátomo-patológico
de conjuntivite papilar), a secreção varia entre
mucosa e mucopurulenta, em função da virulên-
cia do germe. (Figura 4)
No caso do H. influenzae é habitual haver secre-
ção simultaneamente sanguinolenta, a qual não
deverá ser confundida com hemorragia subcon-
juntival ou hiposfagma; é autolimitada e, por isso,
de evolução favorável.
Nas situações de etiologia por C. trachomatis é
habitual a concomitância de sintomatologia do
foro respiratório.
FIG. 5
O período de contagiosidade das conjuntivites
bacterianas agudas, dum modo geral, termina cerca Conjuntivite vírica.
1230 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

víricas agudas, dum modo geral, termina cerca de conjuntival de modo sistemático tendo em conta
7 dias após início dos sinais e sintomas. que a conjuntivite bacteriana responde a grande
A chamada oftalmia neonatal corresponde a número de antimicrobianos tópicos aplicados
uma forma de conjuntivite que ocorre nos segundo critério empírico;por outro lado, estando
primeiras quatro semanas de vida (período neo- em causa infecção conjuntival aguda provavel-
natal) com uma frequência oscilando entre 1% e mente vírica, a aplicação de antimicrobianos tópi-
12%; trata-se da doença ocular mais frequente no cos não comporta efeitos colaterias significativos.
recém-nascido. No entanto, no periodo neonatal, perante sus-
Em função da idade de manifestação inicial peita de conjuntivite gonocócica,deverá proceder-
são considerados vários agentes etiológicos pos- se a coloração pelo método de Gram e a exame
síveis. cultural do exsudado.
Se surgir entre 1-3 dias após o parto, sendo
notória secreção purulenta espessa e abundante, a Tratamento
causa será a Neisseria gonorrhoeae (com maior pro- I) Recém-nascido
babilidade) ou Herpes simplex. Salienta-se a probabi- A antibioticoterapia a aplicar depende do agente
lidade de a infecção por gonococo ou por vírus her- etiológico de que há suspeita; poderá haver indi-
pes simples se poder estender à córnea; por isso, esta cação de internamento (utilizando antibioticotera-
situação constitui uma emergência oftalmológica. pia por via sistémica/endovenosa) sendo indis-
Se as manifestações surgirem entre os 5 e 10 pensável o apoio do oftalmologista.
dias, os agentes etiológicos prováveis serão a – N. gonorrhoeae
Chlamydia trachomatis ou cocos gram-positivos O antibiótico de primeira escolha é a ceftriaxona
(Staphylococcus aureus, Streptococcus pneumoniae, na dose de 25-50 mg/kg (dose máxima: 125 mg) por
Streptococcus do grupo B, etc.). via intravenosa ou intramuscular em dose única;
Nas conjuntivites surgidas após os 7 dias de este esquema é igualmente aplicável a recém-nasci-
vida está em causa geralmente o vírus Herpes sim- dos de mães com gonorreia, não tratadas. Pode
plex, sendo que a respectiva infecção, como foi empregar-se cefotaxima por via endovenosa
referido antes, poderá manifestar-se já antes. Pode durante 10-14 dias (50 mg/kg/dia divididos por
ser uni ou bilateral; habitualmente verifica-se duas doses).
secreção serosa ou mucopurulenta. Como tratamento tópico está indicada lava-
No período neonatal poderá surgir uma forma gem com soro fisiológico e aplicação de compres-
de conjuntivite de causa química (conjuntivite sas esterilizadas aquecidas, sobre a pálpebra
química), de evolução autolimitada (24-48 horas) encerrada.
a qual se relaciona, curiosamente, com a utiliza- A detecção desta infecção no recém-nascido
ção de nitrato de prata a 1% na profilaxia da implica igualmente o tratamento dos progenitores.
oftalmia gonocócica levada a efeito já na sala de – Chlamydia trachomatis
parto (método Credé); os sinais surgem, em geral, Os antibióticos de eleição são macrólidos:
entre as 6 e 12 horas após o parto: exsudado mais eritromicina (40 mg/kg/dia em 4 doses) ou clari-
frequentemente aquoso, podendo evoluir para tromicina (15 mg/kg/dia em duas doses) durante
purulento. 14 dias.
Refira-se, no entanto, que tal medida con- Torna-se também indispensável o tratamento
tribuiu, de facto, para a diminuição da incidência dos progenitores.
da conjuntivite gonocócica. – Outros germes: S. aureus, S. pneumoniae, H.
A conjuntivite alérgica aguda deve-se a uma influenzae
reacção mediada pela IgE (tipo 1) a qual é estimu- Nestes casos está indicada a aplicação de un-
lada por alergénios como pó da casa, pêlo de ani- guentos (pomadas) oftálmicos de 4-4 horas – cinco
mais, pólen,etc.. vezes por dia, ou gotas oftálmicas (colírio) de 3-3
horas-seis vezes por dia, à base de ácido fusídico,
Diagnóstico laboratorial cloranfenicol, oxitetraciclina, polimixina, etc.
Não se procede a exames culturais do exsudado durante 7-10 dias. (Capítulos 359 a 362)
CAPÍTULO 254 Síndroma do “olho vermelho” 1231

II) Outras idades ceratoconjuntivite primaveril associada a história


Não se tratando do recém-nascido, não está pro- familiar de atopia; 4) ceratoconjuntivite atópica
vada a eficácia da terapêutica antibiótica sistémica. associada a dermatite atópica; 5) e a ceratoconjun-
Para o tratamento das conjuntivites bacteria- tivite papilar gigante ou vernal que corresponde a
nas agudas por germes tais como H. influenzae,S. uma alteração imunológica da conjuntiva superior
pneumoniae, S. aureus, Streptococcus pyogenes (grupo tarsal, possivelmente desencadeada por uma va-
A) são empregues colírios ou unguentos à base de riedade de corpos estranhos incluindo lentes de
cloranfenicol, polimixina, gentamicina, tetracicli- contacto; traduz-se pela presença de papilas
na, ou fluroquinolonas de quarta geração (por ex: gigantes (diâmetro entre 0,5 e 1 mm); através do
gatifloxacina), etc. durante 7 a 10 dias. biomicroscópico utilizado pelo oftalmologista, é
possível estabelecer correspondência anátomo-
6. Conjuntivite crónica patológica com os chamados nódulos de Horner-
Esta entidade tem como características essenciais Trantas (aglomerados justalímbicos de eosinófilos
a ausência de dor e a evolução arrastada. As ma- e células epiteliais degeneradas). Estas alterações
nifestações clínicas gerais incluem sensação de podem causar neovascularização e úlcera da cór-
corpo estranho, prurido, injecção conjuntival, nea. Tal forma de ceratoconjuntivite, iniciando-se
secreção mínima e perda de cílios. Compreende antes dos 10 anos de idade regride dum modo
duas formas: infecciosa e alérgica. geral durante a puberdade. (Figura 6)
A forma infecciosa é em geral secundária a Entre os sinais biomicroscópicos salientam-se
blefarite, já abordada anteriormente; pode tam- as papilas tarsais (com diâmetro maior que 1 mm).
bém ter origem vírica (por Papilomavirus, Mollusco A actuação geral, que compreende fundamen-
contagiosum, etc.) sendo característica a recorrên- talmente a aplicação de compressas frias e de
cia de manifestações. colírio sucedâneo das lágrimas artificiais, é geral-
A conjuntivite alérgica constitui a causa mais mente pouco eficaz nas crianças.
frequente da doença crónica ocular. Os doentes No âmbito da actuação do oftalmologista, a
afectados evidenciam com frequência anteceden- aplicação tópica de anti-histamínicos e estabiliza-
tes de doença atópica, como asma, eczema ou dores dos mastócitos (olopatadina, cromoglicato)
rinite, sendo os picos de incidência verificados na contribui para o alívio dos sintomas . A utilização
adolescência ou em adultos jovens; com efeito, tópica de corticosteróides (dexametasona, pre-
cerca de 30% das crianças com manifestações dnisolona), apenas aplicável a casos especiais
diversas de doença alérgica evidenciam manifes- deve ser evitada.
tações oculares, nomeadamente conjuntivite. Con- A chamada conjuntivite papilar gigante é uma
tudo, apesar da elevada prevalência, a conjun-
tivite alérgica raramente origina sequelas no sis-
tema ocular.
Os sinais e sintomas são bilaterais incluindo
prurido, lacrimejo, secreção mucosa, hiperémia
conjuntival, edema palpebral e quemose; estão
geralmente associados a manifestações nasais ou
faríngeas.
As conjuntivites alérgicas crónicas apresen-
tam-se sob cinco formas clínicas principais: 1) a
sazonal (mais frequente, correspondendo a cerca
de 80% dos casos de conjuntivite alérgica) mani-
festando-se durante certas épocas do ano em que
circulam no ar determinados alergénios específi-
cos como pólens de plantas; 2) a perene,variante da
FIG. 6
primeira, persistindo durante todo o ano, mais
frequentemente associada a rinite perene; 3) a Conjuntivite alérgica.
1232 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

255
forma associada aos portadores de lentes de con-
tacto, habitual em adolescentes.

7. Outras situações cursando com “olho ver-


melho”
Citam-se de modo genérico nesta alínea situações
já abordadas noutros capítulos como a uveíte ante- DOENÇAS DA RETINA
rior aguda, o glaucoma agudo e a lesão aguda da córnea
(ceratite ou queratite). Cristina Brito
Relativamente à lesão da córnea,cabe referir
que qualquer lesão corneana infecciosa, displásica
ou traumática, se pode acompanhar de hiperémia
conjuntival. Bases anatomofisiológicas
e desenvolvimento
AGRADECIMENTO
O editor e autor agradecem muito reconhecidamente aos A retina, considerada um prolongamento do SNC,
colegas Drs. Jorge Palmares e Augusto Magalhães a é a camada mais interna das três que constituem a
cedência das fotografias das Figuras 3 e 5 do Arquivo da parede de globo ocular.
Secção de Oftalmologia Pediátrica/Serviço de Oftalmolo- A coroideia, um dos três constituintes da úvea,
gia do Hospital de São João, Porto. é uma estrutura vascular responsável por uma par-
cela importante do suprimento sanguíneo e nutri-
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Taylor D, Hoyt CS. (eds) Pediatric Ophthalmology and Strabis- definitiva, a partir da papila óptica, atinge a pe-
mus. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2005 riferia temporal no nono mês de gestação. Numa
gestação de termo, a retina já se encontra bem
diferenciada, havendo completa maturação celu-
CAPÍTULO 255 Doenças da retina 1233

diagnóstico de doença retiniana. Eis algumas


manifestações a realçar:
1 • Diminuição da acuidade visual – Quando a
2 criança não sabe exprimir a perda de acuidade ou
3 não valoriza o sintoma por ser muito precoce, o
4 comportamento pode ser sugestivo: desinteresse
5 por objectos distantes, não reconhecimento de
6 faces conhecidas a partir de certa distância, sinal
7 oculodigital de Franceschetti (procura de estímu-
8 lo visual pela compressão dos globos oculares),
dificuldade ou atraso na marcha.
9 • Alteração da qualidade visual – Traduz-se
por sinais variados que podem apontar para pro-
blemas clínicos específicos:
1 – Camada de células pigmentares – Discromatopsia – Alteração da visão das cores,
2 – Camada de cones e bastonetes por anomalia dos cones ou neuropatia óptica.
3 – Membrana limitante externa Pode ser congénita e não evolutiva como o dal-
4 – Camada granulosa externa
5 – Camada plexiforme externa
tonismo, ou adquirida e frequentemente evoluti-
6 – Camada granulosa interna va, devendo-se a patologia coriorretiniana ou
7 – Camada plexiforme interna iatrogenia medicamentosa.
8 – Camada das células multipolares ou ganglionares – Hemeralopia ou cegueira diurna – Diminuição
9 – Camada das fibras do nervo óptico
da acuidade visual em condições de luz forte. Tal
alteração sugere doença degenerativa da retina
FIG. 1
(cones), podendo também dever-se a opacidade
Camadas da retina: representação esquemática. da córnea ou cristalino.
– Nictalopia ou cegueira nocturna – Dificuldade
lar com excepção da mácula, centrada pela fóvea. visual em condições de baixa luminosidade. O
Esta zona da retina, responsável pela visão central medo extremo do escuro e a dificuldade na orien-
de alta resolução, continua a desenvolver-se tação em ambientes escurecidos podem ser os
atingindo a configuração adulta por volta dos 4 sinais reveladores. Este problema surge nas
anos. O desenvolvimento da fóvea coincide com o degenerescências pigmentares da retina.
crescimento dendrítico cortical e formação de – Fotopsia – Sensações luminosas (por ex.
sinapses. ~”faíscas”) produzidas por estímulos não ópticos
As funções da retina são transformar a ima- nem luminosos, como a excitação mecânica
gem óptica em sinais eléctricos, (o que é executa- induzida pela pressão digital no globo ocular ou a
do pelos fotorreceptores), e processar as carac- tracção do vítreo.
terísticas do mundo visual, transmitindo os sinais – Miodesopsia – Percepção de manchas escuras
captados pelos fotorreceptores até ao córtex visual (~”moscas volantes”) no campo visual que pare-
através do nervo óptico. (Capítulo 247) cem flutuar com os movimentos dos olhos. Podem
dever-se à presença de exsudado inflamatório ou
Manifestações clínicas a sangue no vítreo (hemovítreo), assim como ao
descolamento retiniano, situações que projectam
As doenças da retina habitualmente manifestam- sombras sobre a retina.
se por perturbações da visão, baixa da acuidade – Metamorfopsia – Percepção de imagem distor-
ou alteração da qualidade visual. Se na criança cida, aumentada ou diminuída. Deve-se a doença
que já se sabe exprimir o aparecimento dos sin- macular, associando-se habitualmente a baixa da
tomas pode ser verbalizado, na criança mais pe- acuidade visual.
quena são os sinais ou as complicações de deter- • Alterações campimétricas – Perda de campo
minada situação patológica que podem sugerir o visual que pode assumir várias formas, tais como:
1234 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ser localizada a uma área (escotoma), generaliza- conhecimento com testes de optótipos e acuidade
da, etc., consoante a quantidade e localização de de leitura), determinação da sensibilidade ao con-
fibras nervosas afectadas. traste (capacidade de ver detalhes em níveis baixos
• Leucocória – Trata-se de “pupila de cor bran- de contraste), registo dos campos visuais e avalia-
ca” a qual pode ter várias causas; relaciona-se com ção da visão cromática. Completa-se pela visualiza-
opacidade da córnea, do cristalino (catarata), com ção directa da retina (oftalmoscopia directa e indi-
patologia do segmento posterior do globo ocular recta), habitualmente com a pupila dilatada farma-
(retinoblastoma, descolamento da retina de causa cologicamente. Frequentemente é necessário recor-
inflamatória, infecciosa, degenerativa, traumática, rer a outros exames complementares com a retino-
etc.), patologia vítreo-retiniana ou defeito congénito. grafia, a angiografia fluoresceínica, a ecografia ocu-
• Estrabismo – O estrabismo pode ser a única lar, a tomografia de coerência óptica e a electrofisio-
manifestação de doença retiniana; assim, qualquer logia (electrorretinograma, electroculograma e
criança estrábica deve ser sempre avaliada e sujei- potenciais evocados visuais). (Capítulo 248)
ta a fundoscopia. A baixa de visão traduz-se em São referidos a seguir problemas clínicos de
dificuldade na fixação e consequente desvio do etiopatogénese diversa associados a doença retini-
olho. ana, chamando-se especial atenção para a retino-
• Nistagmo – A sucessão de movimentos rít- patia da prematuridade e para o retinoblastoma.
micos, involuntários e conjugados dos globos ocu-
lares, com alternância de oscilações lentas e rápi- 1. Anomalias congénitas
das pode ser uni ou bilateral. Define-se conven- As anomalias congénitas da retina e nervo óptico
cionalmente pelo sentido da oscilação rápida e podem implicar um compromisso funcional va-
pela sua direcção: horizontal, vertical, rotatório, riável, salientando-se que algumas delas poderão
multidireccional ou misto. Constitui sinal de indiciar a existência defeitos com outra localização.
lesões do aparelho vestibular ou das vias nervosas Surgem com uma incidência ~1,6/1.000 em RN.
centrais ou periféricas; pode ser provocado por São exemplos a displasia vítreo-retiniana, a
certas posições. Quando de origem retiniana persistência do vítreo primário hiperplásico,
ocorre por incapacidade de fixação associada a anomalias vasculares e o coloboma (qualquer
patologia macular. anomalia congénita do desenvolvimento que
poderá surgir em qualquer das seguintes estru-
Principais doenças retinianas turas: pálpebras, íris, cristalino, coroideia, retina
ou nervo óptico).
Em termos semiológicos as doenças retinianas O coloboma é um dos constituintes da associa-
podem dividir-se em dois grupos: as doenças macu- ção CHARGE, razão pela qual a sua verificação
lares e as doenças da periferia retiniana. Recorda-se obriga à detecção doutros defeitos (síndromas mal-
que a mácula é a região da retina que contribui pri- formativas, cromossomopatias, etc.). (Capítulo 18)
mordialmente para a visão central, fotópica e de alta
resolução. 2. Albinismo
As doenças maculares caracterizam-se por O albinismo corresponde a um grupo heterogéneo
diminuição da acuidade visual, metamorfopsia, de doenças, quer sob o ponto de vista genético,
fotofobia, hemeralopia e alterações campimétricas quer clínico; caracteriza-se por hipopigmentação
centrais (escotoma central). A periferia retiniana é da pele, cabelo e olhos, explicável por deficiência
responsável pela visão periférica, escotópica e de da produção de melanina. São descritas duas for-
orientação espacial, pelo que as afecções periféri- mas de albinismo: oculocutâneo e ocular. As sín-
cas se associam à perturbação da referida visão. dromas de Hermansky-Pudlak e Chediak-Higashi
A avaliação objectiva das doenças retinianas associam-se a albinismo oculocutâneo.
compreende a medição da acuidade visual (acuida-
de de detecção medida com pequenos objectos, 3. Doenças hereditárias do metabolismo
acuidade de padrões pelo olhar preferencial ou pela Existem mais de 400 doenças hereditárias com
resolução de linhas de orientação, acuidade de re- envolvimento significativo da retina, mácula ou
CAPÍTULO 255 Doenças da retina 1235

coróide, com quadros clínicos diversos de dege- uma cor esbranquiçada rodeando a zona da fóvea.
nerescência retiniana, conforme as áreas inicial- (Quadro 2 e Figura 2)
mente atingidas e progressão verificada. A patolo-
gia metabólica pode originar alterações retinianas 4. Diabetes mellitus
com aspectos particulares, nomeadamente as No que se refere a diabetes mellitus (tipos 1 e 2)
degenerativas (retinopatia pigmentar, atrofia gira- cabe referir que as manifestações oculares mais
ta, alteração do epitélio pigmentar e alteração da frequentes ocorrem na retina e no cristalino. A
mácula em mancha cor de cereja), bem como retinopatia diabética raramente surge antes de 3-5
quadros de hemorragia retiniana e neuropatia anos de doença, e antes da puberdade. O tempo
óptica. (Quadro 1) de evolução e o grau de descompensação metabó-
Nas alterações degenerativas da mácula o lica da doença são factores relevantes no desen-
aspecto em mancha cor de cereja é de uma forma volvimento e na gravidade das complicações ocu-
geral relacionado com etiologia metabólica, sendo lares. Surge microangiopatia progressiva que leva
fundamental o diagnóstico diferencial das doen- à lesão e oclusão dos pequenos vasos retinianos.
ças de sobrecarga lisossomal. Tal padrão do fundo Em fases inicias da retinopatia (chamada de fundo)
ocular é devido à acumulação de lípidos comple- à fundoscopia observam-se microaneurismas (di-
xos nas células ganglionares da retina, originando latação capilar), tortuosidade vascular, hemorra-
gias e edema. Pode haver défice da aquidade vi-
QUADRO 1 – Degenerescência retiniana
e doenças hereditárias
do metabolismo

Doença retiniana associada a outras doenças


• Defeito do metabolismo lipídico
– Abetalipoproteinémia
– Doença peroxissomal: alteração da biogénese do pe-
roxissoma (Síndroma Zellwegwer)
– Defeito isolado da β-oxidação
– Doença de Refsum
– Defeito da β-oxidação mitocondrial dos ácidos gor-
dos: deficiência LCHAD*
– Síndroma de Sjogren-Larsson
• Defeito lisossómico FIG. 2
– Ceroidolipofuscinoses Fundoscopia: Mancha cor de cereja.
– Mucopolissacaridoses: todas excepto doença de Mór-
quio (MPS IV)
QUADRO 2 – Degenerescência macular
– Mucolipidose IV em “mancha cor de cereja”
– Doença de Krabbe
• Defeito mitocondrial Doença “Mancha de cereja”
– Síndroma de Kearn-Sayre Sialidoses tipo I Constante
– Outros defeitos Sialidoses tipo II Constante
• Defeitos congénitos da glicosilação (CDG) Galactossialidose Frequente
• Defeitos do metabolismo do cobre: Doença de Menkes Gangliosidose GM2
• Outros: alteração do metabolismo da cobalamina C – Doença de Tay-Sachs (infantil) Constante
Doença retiniana isolada – Doença de Sandhoff (infantil) Constante
• Atrofia girata Gangliosidose GM1 (infantil) Frequente
* LCHAD – Hidroxiacil-CoA desidrogenase dos ácidos gordos de cadeia Doença de Niemann-Pick tipo A Frequente
longa Doença de Gaucher tipo 2 Ocasional
1236 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

sual se o edema atingir a mácula. proliferativa quando a isquémia é mantida. A


Com o tempo, a oclusão microvascular pro- retinopatia drepanocítica proliferativa (rara em
gressiva leva à isquémia e à formação de neovasos idade pediátrica) deve-se à oclusão arteriolar e
(retinopatia proliferativa), com edema e hemorragia neovascularização; define-se pela presença de
mais acentuados, (hemorragias retinianas e do ví- tufos vasculares de aspecto típico e pode levar a
treo), maculopatia e risco mais elevado de descola- complicações irreversíveis.
mento retiniano. A retinopatia é lentamente pro- A aplicação do método de laser pode estar
gressiva, sabendo-se que, após 10 anos de doença, indicada como medida preventiva.
70 a 90% dos diabéticos do tipo 1 evidenciam graus A vigilância oftalmológica deve iniciar-se por
diversos de retinopatia, sendo tanto mais grave volta dos 10 anos de idade e repetir-se semestral-
quanto pior o controlo metabólico. mente.
O compromisso associado do cristalino, evi-
denciado pela sua opacificação (catarata) depende 6. Inflamação e infecção
também muito da qualidade e estabilidade da A inflamação da retina habitualmente não ocorre
compensação metabólica. A presença de catarata de forma isolada, associando-se, pelo menos, ao
diminui a acuidade visual. compromisso da coroideia. Daí que os processos
A intervenção cirúrgica está indicada no trata- inflamatórios destas duas estruturas sejam habi-
mento da catarata, do hemovítreo ou do descola- tualmente considerados em simultâneo, mesmo
mento retiniano. O método de tratamento com quando um processo é predominantemente retini-
raios laser é utilizado como profilaxia destas últi- ano.
mas complicações e no tratamento de certas for- O termo uveíte significa inflamação da úvea
mas de maculopatia. (estrutura composta pela íris, corpo ciliar e coroi-
O acompanhamento oftalmológico da criança deia). Se todas as referidas estruturas estiverem
e do adolescente diabético deve ser ajustado à atingidas, diz-se que há panuveíte.
idade e à gravidade da diabetes. Em geral, deve Segundo o critério topográfico, são considera-
fazer-se a avaliação uma vez feito o diagnóstico, dos três tipos de uveíte:
com a finalidade de esclarecimento da crian- a) anterior, compreendendo a irite e a iridoci-
ça/família e exclusão de outra patologia. A clite;
detecção e vigilância da retinopatia deve iniciar-se b) intermédia, compreendendo a ciclite e a
3 anos após o início do período da puberdade chamada pars planite;
quando a evolução metabólica tenha sido favorá- c) posterior, compreendendo a coroidite (ou a
vel, ou antes, pelos 9 anos de idade, no caso de coroidorretinite quando se verifica compromisso
não ser conseguido tal objectivo. (Capítulo 182). retiniano); ou seja, a uveíte posterior atinge predo-
Posteriormente, a vigilância oftalmológica deve minantemente o segmento posterior do globo ocu-
ser, pelo menos, semestral. lar.
Quanto à etiologia, as situações inflamatórias
5. Doenças hematológicas distribuem-se essencialmente por três grupos:
A retinopatia verificada nos casos de anemia de origem infecciosa, auto-imune, idiopática, e as
células falciformes relaciona-se com a hipervis- chamadas “síndromas mascaradas”. Estas últimas
cosidade sanguínea e consequente hipóxia, salien- compreendem situações clínicas diversas que cur-
tando- se que as manifestações oculares são mais sam com uveíte: por ex. linfoma, retinoblastoma,
frequentes quando há associação a outra hemo- leucemia, metástases de tumor distante, descola-
globinopatia. (Capítulo 143) mento, degenerescência retiniana e presença de
As lesões encontram-se na periferia, podendo corpo estranho intra-ocular.
configurar uma forma não proliferativa, de fundo, A uveíte intermédia é, em geral , uma situação
caracterizada por envolvimento arteriolar com em- crónica e idiopática
bainhamento, tortuosidade e hemorragias (man- Na idade pediátrica cerca de 40 % das uveítes
chas-salmão, intrarretinianas, e aglomerados pi- afectam o segmento posterior, sendo a etiologia infec-
gmentares cicatriciais), ou evoluir para uma forma ciosa (congénita ou adquirida) a mais importante:
CAPÍTULO 255 Doenças da retina 1237

por Toxoplasma gondii, Citomegalovírus, Mycobacterim çadas) em maior ou menor extensão. Um aspecto
tuberculosis, Candida albicans, Toxocara canis, etc.. frequente nalgumas infecções congénitas (rubéo-
Como noutras doenças retinianas, a presença la, sarampo) é o quadro designado classicamente
de uveíte posterior pode revelar-se quando a por “retinopatia pigmentada em sal e pimenta” em
criança é capaz de expressar queixas, nomeada- que se observa a dispersão pigmentar em toda a
mente de miodesopsia, de alteração da acuidade retina ou parte dela.
ou qualidade visual, ou através de sinais que reve- A doença ocular em crianças infectadas pelo
lam diminuição da acuidade visual. Frequente- VIH e Citomegalovírus é muito menos frequente do
mente trata-se de situações que se associam a que nos adultos.
outras manifestações oculares, inflamatórias ou a • Coroidorretinites bacterianas e fúngicas –
anomalias congénitas. Trata-se de situações mais raras, habitualmente
O atraso no diagnóstico devido à não verbali- ocorrendo associadas a outras manifestações ocu-
zação das queixas e as consequências sobre o sis- lares e não oculares. A sífilis congénita pode dar
tema visual, ainda em desenvolvimento, podem origem a retinopatia em sal e pimenta semelhante à
agravar o prognóstico na criança mais pequena. da rubéola. O envolvimento retiniano é ainda pos-
Refira-se, no entanto, que por vezes o diagnós- sível na doença de Lyme, na tuberculose e na
tico de uveíte posterior é um achado ocasional no doença do arranhão do gato. Em todas estas
âmbito de observação oftalmológica realizada por doenças as manifestações clínicas são muito va-
motivos diversos. riáveis, não havendo um padrão típico de apre-
São descritos a seguir alguns quadros clínicos sentação. (Capítulos 285 e 295).
que tipificam processos de inflamação e infecção A retinopatia surgindo no contexto de septi-
de expressão retiniana. cémia ou bacteriémia é muito rara; em geral deve-
• Toxocarose – Deve-se à presença da larva se a um êmbolo séptico decorrente de endocardite
enquistada na retina. Em geral existe compromis- bacteriana.
so uniocular. O aspecto mais típico é o de granu- O exame oftalmológico especializado permite
loma localizado no pólo posterior do olho ou na identificar sinais de hemorragia centrada por uma
periferia; no entanto, o processo inflamatório área branca (mancha de Roth), como manifestação
pode ser mais difuso. Ao cicatrizar, pode originar do êmbolo formado.
o descolamento da retina. As manifestações clíni- As infecções por fungos (por ex. Candida albi-
cas incluem diminuição de visão, estrabismo ou cans) também podem originar endoftalmite por
leucocória, impondo por vezes, o diagnóstico di- embolia.
ferencial com retinoblastoma. • Coroidorretinite por Toxoplasma gondii
• Retinites víricas – Vários agentes víricos (Toxoplasmose) – A toxoplasmose (congénita ou
(por ex. vírus da imunodeficiência humana/VIH, adquirida) é a causa mais importante de uveíte poste-
Herpes simplex, Herpes zoster, Citomegalovírus e rior em todos os grupos etários; em idade pediátrica
vírus da rubéola) podem infectar a retina da cri- é responsável por cerca de 50% dos casos de uveí-
ança, desde a fase de vida intra-uterina, podendo te posterior (coroidite ou coroidorretinite).
as respectivas repercussões ser mais ou menos de- Uma vez instalado na célula retiniana, há pro-
vastadoras. liferação do protozoário causando reacção de hi-
Para além da infecção da retina, outras estru- persensibilidade e inflamação nos tecidos e vasos
turas oculares podem estar envolvidas, como a adjacentes, vítreo e coroideia, sendo de realçar que
córnea, o cristalino, a íris, o corpo ciliar, o nervo poderá surgir reactivação em zona adjacente a
óptico, etc.. cicatriz coroidorretiniana antiga.
O exame fundoscópico permite observar focos As manifestações de toxoplasmose congénita
activos de coriorretinite (áreas de edema retiniano variam muito, entre cicatriz retiniana periférica e
que se podem associar a fenómenos de vasculite e coroidorretinite activa.
hemorragias) ou cicatrizes de infecção coroidorre- • Uveítes não infecciosas – Estas afecções são
tiniana (áreas de hiperpigmentação alternando muito raras em idade pediátrica salientando-se, a
com áreas menos pigmentadas ou esbranqui- este propósito, que alguns casos de uveíte posterior
1238 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

podem associar-se a sarcoidose, a nefrite tubuloin- As manifestações ulteriores incluem movi-


tersticial (TINU) e a doença de Behçet (Capítulo 163). mentos erráticos dos globos oculares ou nistagmo,
deficiente reflexo fotomotor pupilar e o já citado
6. Distrofias coroidorretinianas sinal oculodigital de Franceschetti (como resulta-
Abrangem um conjunto de situações de natureza do da deficiente estimulação visual pela luz, a
genética relativamente às quais cada vez são co- criança exerce pressão sobre os globos oculares
nhecidos mais genes; geralmente só se manifestam para estimular mecanicamente a retina, conse-
no adolescente ou adulto. Para o estabelecimento do guindo asssim obter sensação visual); com o
diagnóstico e prognóstico destas doenças a elec- tempo, a pressão repetida pode levar a atrofia da
trofisiologia ocular é fundamental. Outros meios gordura orbitária e afundamento do globo ocular
auxiliares de diagnóstico importantes são o estudo – enoftalmia – e a catarata.
da visão cromática e a angiografia fluoresceínica.
São salientadas,entre outras, as seguintes distrofias: 7. Descolamento da retina
Entende-se por descolamento retiniano a sepa-
• Retinopatia pigmentada (retinose pigmen- ração entre a retina neurossensorial e o epitélio
tar) – É caracterizada por disfunção progressiva pigmentado subjacente por mecanismos diversos.
dos fotorreceptores e atrofia de várias camadas da Como consequência, a retina pode sofrer atrofia
retina, verificando-se perda progressiva de basto- por insuficiência de suprimento sanguíneo e de
netes e, posteriormente, também de cones. nutrientes.
Manifesta-se essencialmente por nictalopia e As manifestações clínicas essenciais variam
diminuição progressiva dos campos visuais. Por consoante a causa do descolamento e a sua exten-
fundoscopia são identificadas alterações pi- são: fotopsias, miodesopsias, perda de campo ou
gmentares retinianas típicas (espiculadas), ate- acuidade visual, e leucocória. Como em qualquer
nuação vascular e palidez óptica. situação que decorre com perda de acuidade visual,
Na maioria dos casos, o modo de transmissão o estrabismo adquirido pode ser um sinal revelador.
é autossómico recessivo, tendo sido comprovada
hereditariedade ligada ao cromossoma X em cerca 8. Retinopatia da prematuridade
de 15% dos casos. Definição – Entende-se, por retinopatia da pre-
• Distrofia de cones-bastonetes – Nesta forma maturidade (RP) a doença vascular retiniana con-
os fotorreceptores são afectados de forma genera- sequente à proliferação fibrovascular anómala
lizada, sendo maior a perda de função do cone do numa retina em desenvolvimento, com vasculari-
que a do bastonete. zação incompleta. A prematuridade, pelas reper-
A hereditariedade é autossómica (recessiva ou cussões na maturação do globo ocular e das estru-
dominante), ou ligada ao cromossoma X. A maio- turas do sistema nervoso central, pode ter impli-
ria revela-se entre o final da segunda década de cações no desenvolvimento da visão. Neste con-
vida e o início da idade adulta. Manifesta-se es- texto, as principais alterações oftalmológicas com
sencialmente por perda de visão central, discro- as quais o clínico depara são, a chamada retinopa-
matopsia e fotofobia, instalando-se progressiva- tia da prematuridade na fase aguda, e suas seque-
mente nictalopia e perda de visão periférica. las: os defeitos refractivos e o estrabismo.
Por fundoscopia observam-se alterações seme- Aspectos epidemiológicos e importância do
lhantes às da retinopatia pigmentada. problema – A RP é uma doença cuja incidência e
• Amaurose congénita de Leber – Trata-se gravidade são inversamente proporcionais ao peso
duma distrofia cone-bastonete identificável desde de nascimento e à idade gestacional. De acordo
a data do nascimento ou nos primeiros meses de com o CRYO-ROP Group, a frequência é ~ 47% em
vida por défice de visão e nistagmo. Em geral, a RN com idade gestacional > 31 semanas e peso
transmissão é autossómica recessiva, podendo entre 1.000 e 1.250 gramas; e ~90% nos casos com
também ocorrer a forma autossómica dominante. < 28 semanas e < 750 gramas. Estudos mais
Constitui a causa mais frequente de deficiência visual recentes apontam para uma diminuição da
infantil de natureza hereditária. incidência de retinopatia (10 a 40%) e redução da
CAPÍTULO 255 Doenças da retina 1239

probabilidade de ocorrência de retinopatia limiar de vitamina E, transfusões de sangue, RCIU, hiper-


(3%); no entanto, em absoluto, os casos gra-ves são cápnia, anemia, hemorragia intraventricular, etc..
cada vez mais frequentes, dado o aumento de Dá-se grande importância ao papel dos factores de
sobrevivência de RN com peso de nascimento infe- crescimento na génese da RP, designadamente
rior a 750 gramas em virtude dos progressos real- IGF-1 e VEGF ou vascular endothelial growth factor).
izados em terapia intensiva. O défice de síntese de IGF-1 no pré-termo seria
Etiopatogénese – A angiogénese dos vasos da responsável pela paragem do crescimento vascular
retina inicia-se pelas 16 semanas de gestação, pro- retiniano.
longando-se até cerca das 40 semanas. Tem a sua A hipoxémia retiniana consecutiva à hipoper-
origem no pólo posterior do globo ocular, ao nível fusão origina síntese predominante de VEGF que
da papila óptica, evoluindo anteriormente até se acumula no vítreo, sem efeito sobre o cresci-
atingir a ora serrata, o limite anterior da retina. Por mento vascular. Uma vez retomada a secreção de
outras palavras: a vascularização da retina do feto IGF-I, associada à quantidade acumulada de
faz-se da papila óptica para a periferia; a mesma VEGF, verifica-se intensa proliferação vascular
completa-se primeiramente na retina lado nasal retiniana. Quanto mais baixo o peso de nascimen-
pelo facto de esta ser mais curta. Por isso, é mais to e menor a idade gestacional, maior a probabili-
frequente o compromisso da retina (RP) no lado dade de, no recém-nascido pré-termo, se desen-
temporal cujo desenvolvimento se completa pelas volver retinopatia, em concomitância com ele-
40 semanas (gestação de termo). vadas probabilidades de complicações cardiovas-
Quando a criança nasce após gravidez muito culares e respiratórias.
encurtada em tempo (recém-nascido pré-termo), Em suma, a RP parece, pois, ter uma relação
o processo de angiogénese não se encontra com- directa com o grau de imaturidade vascular reti-
pleto. niana, acção do oxigénio sobre os vasos imaturos
A RP progride em duas fases. Numa primeira e factores que intervêm na oxigenação tecidual.
fase (hiperóxica), o contacto com meio ambiente Por outro lado, existem factores considerados
extra-uterino, mais rico em oxigénio que o meio protectores relativamente à mesma RP; entre eles
intra-uterino, cria vasoconstrição que, se prolon- contam-se a administração de esteróides no pe-
gada, se torna irreversível, tendo em conta a ele- ríodo pré-natal, e de surfactante ao recém-nascido
vada susceptibilidade dos vasos retinianos a ele- (RN).
vada pressão parcial de oxigénio*. Classificação – O sistema classificativo de gra-
Numa segunda fase (isquémica) – que surge à vidade actualmente utilizado foi estabelecido pelo
medida que o RN pré-termo cresce (entre as 30 e chamado CRYO-ROP Group, criado nos Estados
as 34 semanas de idade gestacional) a hipóxia Unidos da América do Norte. Como meio de estu-
tecidual, resultante do não desenvolvimento nor- do foi estabelecida a classificação, ainda em vigor.
mal da vascularização retiniana, necessária para o Como meio de estudo foi estabelecida a classifi-
metabolismo da retina, conduz à produção de fac- cação, ainda em vigor. Muito do que se sabe hoje
tores angiogénicos com consequente processo de sobre a evolução da retinopatia e sua terapêutica
neovascularização. Esta poderá evoluir no sentido deve-se aos estudos que este grupo tem efectuado,
de proliferação fibrovascular anómala levando a embora não seja de menosprezar o contributo
tracção dos tecidos, descolamento da retina ou doutros autores noutros países.
cegueira. A classificação baseia-se fundamentalmente na
Vários factores de risco de RP têm sido aponta- extensão e localização da doença, assim como na
dos: baixo peso de nascimento, baixa idade gesta- sua gravidade. Classicamente são considerados os
cional, terapia com oxigénio, (factor relevante, parâmetros que se seguem (Figura 3):
embora não constitua um pré-requisito) carência Zona – Determina até que ponto progrediu o
desenvolvimento da vascularização e onde resi-
dem as anomalias. Centrada no nervo óptico
* No sangue fetal a saturação em O2 da Hb é ~70%, enquanto no RN de
termo respirando ar é ~100% (correspondendo respectivamente a PaO2
(papila ou disco óptico), a zona I compreende uma
de 30 mmHg e de 60-100 mmHg). área circunferencial de raio duas vezes superior à
1240 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

ficada em olhos que se encontram em estádio 3,


12h 12h
conjugada como a sua extensão, pode sugerir a
III III
evolução iminente para um estádio de doença
II II grave e irreversível, se não tratada.
I I
9h 3h 9h 3h A designação de doença rush denomina situa-
• •
Má ções extremas em que há agravamento muito rápi-
a
cu pil do, notório de dia para dia.
la Pa
o
Nota: Cada caso é classificado em função do está-
Ol rd
ho 6h 6h
que dio mais avançado, da zona mais posterior e da pre-
dir es
eit ho sença de doença plus. Em regra, nos casos de RP ligeira
o Ol
até estádio 2, sem doença plus (+), verifica-se resolução
completa.
FIG. 3 Retinopatia limiar – Esta designação refere-se a
Representação esquemática das lesões da RP: localização e estádio de evolução de retinopatia em que o risco
extensão. de descolamento é ~ 50%; corresponde a uma
retinopatia em estádio 3 atingindo a zona I ou II,
distância papila-mácula lútea. É a porção mais numa extensão de 5 horas contínuas ou 8 horas
posterior e a mais importante em termos de qua- descontínuas.
lidade visual. A zona II é a área circunferencial Retinopatia pré-limiar – Esta designação traduz um
distal à zona I, limitada anteriormente pela ora ser- padrão requerendo acompanhamento mais rigoroso
rata nasal. A zona III corresponde ao crescente face ao risco de evolução para retinopatia limiar.
temporal remanescente Diagnóstico – O diagnóstico de RP baseia-se
Estádio – Indica a gravidade do processo, nos achados obtidos por oftalmoscopia binocular
definindo-se pelo aspecto das alterações encon- indirecta, da competência do oftalmologista.
tradas: Rastreio oftalmológico – Havendo anteceden-
1 – A linha de demarcação separa a retina avas- tes de prematuridade e factores de risco, torna-se
cular da vascularizada. obrigatório proceder ao rastreio da retinopatia
2 – A linha de demarcação adquire volume, aguda; tal rastreio deve começar ainda quando a
formando uma prega. criança está hospitalizada em unidades de cuida-
3 – Estendendo-se a partir da prega, observa- dos intensivos neonatais.
-se tecido proliferativo fibrovascular extrar- De acordo com as normas de 2006 da Aca-
retiniano que se estende para o vítreo. demia Americana de Pediatria e da Associação
4 – Descolamento subtotal da retina; resulta da Americana de Oftalmologia Pediátrica e Estra-
contracção do tecido proliferativo, que se- bismo, são considerados lactentes em risco, por
para a retina da coroideia subjacente. conseguinte com indicação para rastreio, todos
5 – Descolamento total da retina (corresponde aqueles com antecedentes de peso de nascimento
à antiga designação fibroplasia retrolen- (PN) inferior a 1500g e de idade gestacional (IG)
ticular). igual ou inferior a 32 semanas (ou com PN entre
Extensão – Designa a área circunferencial den- 1.500 e 2.000 gramas ou IG superior a 32 semanas
tro da qual se observam alterações, expressas em havendo concomitantemente factores de risco,
sectores circulares de 30º (ou em “horas”); tem designadamente instabilidade clínica e necessi-
interesse apenas em estádios mais avançados: por dade de suporte ventilatório).
ex. se a RP se estende entre 12 horas e 3 horas, terá O primeiro exame deve ser efectuado em
extensão de 90º. função da IG ao nascer e da idade cronológica em
Doença plus (+) – Designa a existência de sinais semanas (Quadro 3).
de incompetência vascular. Traduz-se por dila- A partir do primeiro exame, o oftalmologista
tação e tortuosidade vascular progressivas que adapta o seguimento às particularidades de cada
podem também atingir outras estruturas, como a caso, designadamente as relacionadas com a
íris. A presença de doença plus habitualmente veri- gravidade.
CAPÍTULO 255 Doenças da retina 1241

QUADRO 3 – Primeiro exame oftalmológico ao tecido proliferativo, pretende-se diminuir a pro-


dução local de factores angiogénicos e deter o
Idade Gestacional ao nascer Idade pós-natal processo. A ablação é feita pela crioterapia ou pelo
(semanas) (semanas) método laser (árgon verde ou díodo vermelho).
22 9 Pelas suas características menos agressivas o méto-
23 8 do laser ultimamente tem substituído a crioterapia.
24 7 Na presença de descolamento de retina (está-
25 6 dios 4 ou 5) a ablação retiniana pode ser coadju-
26 5 vada por vitrectomia e indentação escleral. No
27 - 32 4 entanto, nesta fase o prognóstico é mau.
Nalguns centros tem sido empregue o agente
antiangiogénico (inibidor do VEGF) intra-vítreo
No âmbito do rastreio da RP chama-se a (bevacizumab/Avastin®). Admite-se que no futuro
atenção para uma aparelhagem moderna (câmara tenham papel importante o tratamento com célu-
de fibras ópticas designada por RetCam adaptada las estaminais e com IGF-1
para fundoscopia e que permite visualizar ima- Prognóstico – O período de tempo que medeia
gens digitalizadas do fundo do olho com assistên- entre as 32 e as 42 semanas de gestação é crucial
cia por computador); é aplicável à telemedicina e no que respeita à evolução da retinopatia. Pode
pode ser utilizada por neonatologista treinado ocorrer a sua regressão ou, pelo contrário, a
com o apoio de oftalmologia. Tal como para o mé- evolução para formas graves. Na maioria dos
todo convencional, há necessidades de dilatação casos ela regride, observando-se que o seu início
pupilar > 8 mm, o que se consegue com tropicami- ocorre por volta das 37 semanas de idade gesta-
da a 0,5% (30-45 minutos antes da observação). cional (entre as 34 e 46 semanas) e dura em média
Em termos de custo-benefício há que referir o 15 semanas. A regressão com resolução completa é
custo de 100.000 dólares USA, confrontado com o a regra nos casos de RP ligeira – estádio 1 ou 2,
custo dos cuidados assistenciais relacionados com como foi referido antes.
a cegueira por RP: 1-5 milhões de dólares USA. No outro extremo de gravidade encontra-se a
Após alta hospitalar devem ser feitos exames RP que atinge a zona I, situação associada a 90%
periódicos, regra geral entre os 6 e os 12 meses de de risco de progressão para descolamento da reti-
idade pós-natal, entre os 2 e 2 anos e meio, entre na, se não tratada. Mesmo quando tratados, 50%
os 3 e meio e 4 anos; e, depois, bianualmente. de tais casos evoluem desfavoravelmente; por esta
Prevenção e tratamento – Na fase actual dos razão, mais recentemente tende a intervir-se mais
conhecimentos não existe qualquer fármaco para precocemente nas crianças com RP na zona I ou na
prevenir ou tratar a RP. Salienta-se, no entanto, zona II.
como medida prioritária a prevenção do parto Após a regressão espontânea ou induzida pelo
pré-termo, a necessidade de vigilância rigorosa da tratamento, poderão manter-se alterações retinia-
oxigenoterapia administrada ao RN pré-termo e nas residuais de gravidade variável: em geral são
da monitorização rigorosa da pressão arterial de tanto mais frequentes e mais graves quanto mais
O2 e de CO2 evitando a ultrapassagem de níveis evoluído o estádio atingido.
críticos. (Parte XXXI) Como consequência destas sequelas, são de
O objectivo do tratamento, da competência do destacar: o astigmatismo por distorção retiniana, a
oftalmologista, é deter a evolução para alterações maculopatia cicatricial e o descolamento retiniano
estruturais graves (descolamento da retina), ten- tardio do jovem ou adulto.
tando evitar a perda visual, tendo em conta os Os defeitos refractivos são mais frequentes nas
efeitos iatrogénicos de própria terapêutica. Está crianças com antecedentes de prematuridade
indicado quando a retinopatia atinge o estádio extrema (PN<1000 gramas). Mesmo não se tendo
limiar, ou pré-limiar com risco de descolamento verificado evolução para RP grave, é mais fre-
de retina. quente a ocorrência de miopia, astigmatismo e ani-
Através da ablação da retina isquémica, periférica sometropia (diferença significativa da capacidade
1242 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

refractiva entre os dois olhos). Este último defeito rando a capacidade de irrigação sanguínea, surge
refractivo pode ser uma causa de ambliopia. um processo de necrose e de calcificação. Enquan-
As perturbações da motilidade ocular (estrabis- to as células tumorais com origem nas camadas
mo e nistagmo) poderão tornar-se manifestas pos- mais internas da retina crescem em direcção ao
teriormente, relacionando-se, quer com sequelas cristalino invadindo outras zonas da retina, as que
oculares (retinopatia e defeitos refractivos), quer se originam nas camadas mais externas podem
com lesões do sistema nervoso central associadas. levar ao descolamento da mesma. O retinoblas-
Devido a erros refractivos significativos ou a toma, através da invasão do nervo óptico ou da
estrabismo, a criança com antecedentes de prema- coroideia, pode invadir a órbita, salientando-se
turidade tem maior probabilidade de vir a ser que a disseminação à distância, por via linfática
amblíope. (Capítulos 249-251) ou sanguínea, surge raramente.
No respeitante ao tipo histológico em causa, cabe
9. Retinoblastoma salientar que o sarcoma osteogénico é o mais fre-
Aspectos epidemiológicos e importância do pro- quente. Outros tipos tumorais possíveis são: neuro-
blema – O retinoblastoma, desenvolvendo-se a blastoma, condrossarcoma, rabdomiossarcoma, etc..
partir de células retinianas nucleadas imaturas, é o Nos casos de retinoblastoma hereditário existe ele-
tumor maligno ocular mais frequente na criança. A vada probabilidade de aparecimento de pinealoblas-
célula estaminal ou primordial do retinoblastoma toma, altamente invasivo e letal, habitualmente
parece ser neuronal. ocorrendo nos primeiros quatro anos de vida.
A sua incidência mundial oscila, de acordo Manifestações clínicas e diagnóstico – As
com diversas estatísticas, entre 1 para 14.000 a principais formas de apresentação do retinoblas-
1/34.000 recém-nascidos. Em 90 % dos casos toma são estrabismo (em geral o primeiro sinal) e
surge antes dos 3 anos, sendo 30% bilateral. diminuição da visão ou leucocória. A propósito de
Numa minoria (10%) há antecedentes familiares. leucocória, cabe referir a ausência do reflexo ver-
A sua importância deriva essencialmente do melho da pupila da criança quando o foco lumi-
facto de ser letal quando não tratado; inversa- noso forte atravessa a pupila. (Figura 4)
mente, quando diagnosticado e tratado de forma Mais raramente e/ou com a progressão do
oportuna, a percentagem de cura aumenta signi- tumor, este pode manifestar-se por hifema espontâ-
ficativamente. (Capítulo 125) neo (presença de sangue entre a íris e a córnea),
Etiopatogénese – O retinoblastoma representa glaucoma secundário, anisocória (midríase do olho
a expressão fenotípica da ausência de um gene afectado), heterocromia iridiana (diferente colo-
supressor tumoral, designado por gene do ração das íris), nistagmo ou inflamação crónica. Em
retinoblastoma ou RB1, que se localiza no braço fases muito avançadas de proliferação ultrapassan-
longo, banda 14, do cromossoma 13 (13q14). Trata- do os limites do globo, poderá sugerir o diagnósti-
-se do primeiro gene supressor tumoral humano co de celulite orbitária.
que foi completamente caracterizado. A sua função De acordo com a classificação internacional
é suprimir o crescimento celular. Duas cópias nor- (2007) são considerados cinco grupos de A a E em
mais do gene estão presentes na maioria das célu- função da extensão: A (≤ 3 mm) ou small; B (big-
las humanas, sendo a sua função limitar o cresci-
mento da célula; de referir que apenas uma cópia
normal basta para cumprir a sua função. Antes de
se conhecer a existência deste gene, o retinoblas-
toma era classificado como esporádico ou here-
ditário. Clínica e histologicamente, ambas as for-
mas são indistinguíveis. A variedade hereditária,
associando-se a tumores múltiplos e a compromisso
binocular, pode ocorrer sob as formas autossómica
FIG. 4
dominante (mais frequente), ou recessiva.
Como resultado do crescimento celular supe- Leucocória do globo ocular esquerdo.
CAPÍTULO 255 Doenças da retina 1243

ger); C (contained); D (diffuse); E (extensive). mação do diagnóstico e avaliação dos estádios


O diagnóstico diferencial faz-se, fundamental- evolutivos da doença.
mente, com a catarata, uveíte ganulomatosa anterior, Tratamento – O tratamento, da competência
toxocarose, toxoplasmose, retinite vírica, displasia do oftalmologista, pode ser: a) conservador (nos
da retina, retinosquise juvenil ligada ao X, etc., sendo casos de tumores de pequenas dimensões e intra-
que a anamnese e o exame objectivo geral se tornam oculares por ex. fotocoagulação, laser, termotera-
fundamentais para orientar a destrinça. pia por laser díodo, quimiorredução, crioterapia,
O exame do fundo do olho sob dilatação pupi- braquiterapia, radioterapia, etc.); b) radical (nos
lar, realizado por oftalmologista é fundamental; o casos de grandes dimensões e associados à inva-
aspecto é variável consoante o tipo de crescimento são do nervo óptico-enucleação). Salienta-se que a
tumoral e a extensão e número de focos tumorais. quimioterapia está indicada em associação às
(Figura 5) modalidades atrás referidas – a) e b).
A presença de calcificações retinianas em cri- Em centros especializados estão a ser usados
anças com menos de 2 anos de idade é considera- novos tratamentos, alguns em fase experimental:
da sinal patognomónico de retinoblastoma, o que vírus oncolíticos, genes “suicidas” tendo como
não acontece após os 2 anos. (Figura 6) vector adenovírus com gene de timidina de her-
Após fundoscopia, habitualmente repetida sob pes simplex seguido de administração de ganci-
anestesia geral, o exame completa-se através da clovir, esterovírus angiostáticos, factor anti-VEGF,
ecografia ocular realizada em ambos os olhos, e do carboplatina de libertação lenta, etc..
estudo imagiológico (TAC, RMN) para confir- Prognóstico – O factor de prognóstico mais
importante é relacionável com o compromisso do
nervo óptico; se forem detectadas células tumorais
na margem do nervo óptico ou no espaço sub-
aracnoideu, o prognóstico é mais reservado.
Nos casos de tumores unilaterais e intra-ocu-
lares a taxa de cura é cerca de 90%.
O retinoblastoma bilateral associa-se a elevado
risco de desenvolvimento doutras neoplasias
primárias ao longo da vida, o que pode ainda ser
potenciado pela radioterapia. O tempo médio de
latência é cerca de 13 anos.
Nos casos de mutação genética germinal o
risco de recorrência é elevado.
Aconselhamento genético – O risco de retino-
FIG. 5
blastoma na descendência de um indivíduo com
Retinoblastoma: aspecto da fundoscopia. retinoblastoma só existe quando o doente tem uma
mutação germinal. A avaliação do risco determina-se
pela história familiar e pelo grau de compromisso
tumoral, uni ou bilateral (ou multifocal). Os pais e
irmãos de doentes afectados por retinoblastoma de-
verão também ser submetidos a exame fundoscópi-
co. A penetrância do RB1 é cerca de 90%, o que cor-
responde a risco de passagem à descendência ~45%.

AGRADECIMENTO
FIG. 6
As Figuras 4, 5 e 6 foram gentilmente cedidas pelos colegas
Retinoblastoma – Drs. Maria Araújo e Augusto Magalhães da Secção de
imagem de Oftalmologia Pediátrica de Serviço de Oftalmologia do
calcificação (TAC). Hospital de São João, Porto, e a Figura 2 pelo Prof. João
1244 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

256
Goyri O´Neill da FCM/UNL e Serviço Universitário de
Oftalmologia do Hospital Egas Moniz, Lisboa, a quem o
editor e autora muito agradecem.

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107-111 infecções fetais (cerca de 40% dos casos), doenças
metabólicas (cerca de 10%). Salienta-se que em
CAPÍTULO 256 Catarata 1245

cerca de 1/3 dos casos nenhum factor etiológico é, Tratamento


na fase actual dos conhecimentos, identificável
(formas ditas idiopáticas). (Quadro 1) O tratamento, da competência do oftalmologista,
consiste na remoção do cristalino e ulterior cor-
Manifestações clínicas reção do erro de refracção com óculos ou, em casos
especiais, aplicação de lentes de contacto ou de
A manifestação clínica clássica da catarata é a leu- implantação. Na actuação está implícita a necessi-
cocória(sinal de pupila “branca” ou do reflexo dade de correção da ambliopia e de processo de
pupilar “branco”); refira-se, no entanto, que as reabilitação. Refira-se a importância do diagnósti-
manifestações podem variar, essencialmente em co precoce, factor determinante do prognóstico.
função da localização e intensidade da opacidade. Importa salientar que a reabilitação – que pode
Outros sinais são: nistagmo, fotofobia, estrabismo, ser processo moroso – a cargo de uma equipa mul-
sensação de alheamento ou de contacto social, já tidisciplinar (incluindo, designadamente pedia-
por volta dos 2-3 meses, fase em que a criança tra/clínico geral, oftalmologista, fisiatra e técnico
nascida de termo começa em condições normais, a de oftalmologia) constitui uma vertente funda-
seguir objectos. mental da actuação tendo em vista a tentativa de
A ausência do “reflexo vermelho” pode ser recuperação.
evidenciada por oftalmoscopia directa a qual de-
verá ser realizada no âmbito dos exames de saúde Prognóstico
durante o primeiro ano de vida pelo clínico geral
ou pediatra. O prognóstico depende dum conjunto de factores.
Tendo em consideração que determinados São considerados agravantes: baixa idade da cri-
casos de localização posterior são detectáveis ança, baixa idade de detecção, anterior ao com-
somente por biomicroscópio com lâmpada de pleto desenvolvimento visual, intensidade da
fenda pelo oftalmologista, qualquer suspeita face opacidade, unilateralidade implicando maior difi-
à verificação de antecedentes familiares ou culdade na recuperação funcional, duração e
doutros sinais atrás descritos, implica o encamin- gravidade da ambliopia, associação a doença ocu-
hamento atempado para a consulta de Oftal- lar ou sistémica, etc..
mologia. A precocidade do diagnóstico e da intervenção
(remoção do cristalino afectado), constituem, dum
modo geral, factores de bom prognóstico.

QUADRO 1 – Cataratas em idade pediátrica GLOSSÁRIO


e patologia associada Sendo a catarata uma anomalia do cristalino, importa definir outras
anomalias do mesmo.
• Doenças metabólicas (galactosémia, doença de Ectopia > Deslocação congénita do cristalino da posição normal; sinó-
Niemann-Pick, doença de Wilson, abetalipopro- nimo em latim: ectopia lentis.
teinémia, homocistinémia, etc.) Lenticone > Defeito congénito do cristalino que consiste na verificação
• Infecções fetais (grupo TORCHS-toxoplamose, de saliência central (~cone, daí o nome) anterior ou posterior. Pode
rubéola, citomegalovírus, herpes, sífilis, outros) estar associado a catarata.
• Doenças endócrinas (diabetes mellitus, hipopara- Microsferofaquia > Conformação esferóide do cristalino cujas dimen-
tiroidismo, etc.) sões são reduzidas (~microsfera). Trata-se de defeito por vezes asso-
• Doenças genéticas (síndromas com trissomia, sín- ciados a diversas síndromas (Marfan, Klinefelter, etc.).
droma de Alport, Crouzon, Conradi, Marfan, etc.)
• Associadas a outras doenças oculares (coloboma, BIBLIOGRAFIA
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Os traumatismos óculo-orbitários constituem uma


das principais causas não congénitas de cegueira
monocular na idade pediátrica. Com efeito, pela
sua frequência, gravidade, dificuldade de diagnós-
tico e de terapêutica, as suas consequências podem
ser dramáticas, salientando-se entre estas a
ambliopia. De referir que tal patologia pode surgir
desde fase muito precoce da vida, já durante o
parto, com manifestações imediatas.
As lesões traumáticas em análise podem afec-
tar isoladamente ou em conjunto:
a) as pálpebras e vias lacrimais (equimoses e
lacerações palpebrais);
b) o globo ocular (traumatismos fechados,
abertos e por agentes físicos e químicos);
c) a órbita e seu conteúdo (traumatismos direc-
tos e indirectos)
Na maioria das situações há indicação de
encaminhamento urgente para o oftalmologista
sendo desejável o contacto prévio perante qual-
quer dúvida; efectivamente, o tratamento correcto
duma determinada lesão inicial permitirá, em
princípio, evitar futuras sequelas funcionais.
Trata-se situações com indicação de assistência
hospitalar no serviço de urgência.
Neste capítulo são também abordadas as
lesões traumáticas óculo-orbitárias no contexto de
síndroma da criança maltratada (Capítulo 37).

Actuação prática

Salientando-se que a maioria das situações a tratar


CAPÍTULO 257 Traumatismos óculo-orbitários 1247

é confinável à Oftalmologia, importa conhecer os 1. Traumatismos oculares fechados


princípios gerais da actuação: Nestas situações não há solução de continuidade
1) Anamnese pormenorizada inquirindo sobre das paredes do globo ocular. Para fins didácticos de
as condições do acidente; sistematização são considerados, respectivamente,
2) Exame objectivo implicando descrição rigo- traumatismos do segmento anterior e do segmento
rosa das lesões (designadamente estado das feri- posterior.
das, sua profundidade, presença ou não de corpos • Traumatismos do segmento anterior
estranhos, medição da acuidade visual, avaliação A hemorragia subconjuntival em idade pediá-
da musculatura extrínseca e intrínseca, e presença trica, ao contrário do que acontece no adulto, rara-
ou ausência de enfisema subcutâneo; mente é espontânea; em regra a origem é traumáti-
3) Exame neurorradiológico o qual deve incluir ca. (Figura 2)
exames de imagem por radiografia simples con- A erosão da córnea ou perda de substância
vencional, TAC e/ou RMN. superficial do epitélio corneano tem como conse-
quência a exposição da camada basal e dos nervos
Traumatismos palpebrais corneanos superficiais. De tal tipo de lesão no con-
texto de história de traumatismo, resulta dor, olho
As equimoses palpebrais são infiltrações hemáti- vermelho, lacrimejo e, por vezes, baixa de acuidade
cas das pálpebras, muito frequentes nos trauma- visual de aparecimento brusco. A aplicação de gotas
tismos oculares, podendo estar associadas a frac- de colírio anestésico e fluoresceína permite fazer o
turas da órbita. Por vezes é necessário o recurso a diagnóstico e orientar a terapêutica.
exames complementares imagiológicos para um O corpo estranho intracorneano causa fre-
diagnóstico correcto. quentemente dor ocular, olho vermelho e baixa de
As lacerações palpebrais são lesões resultantes acuidade visual, principalmente quando se trata
de rasgamento da pele até ao tecido subcutâneo das de corpos estranhos metálicos de localização cen-
mesmas (Figura 1). A detecção de tais lesões impli- tral extraídos tardiamente.
ca a inspecção cuidadosa dos canalículos lacrimais, A corectopia ou deslocação da íris pode acom-
da profundidade da ferida, a pesquisa de eventuais panhar-se doutras lesões traumáticas; na forma
corpos estranhos e a verificação do funcionamento congénita é rara.
do músculo levantador da pálpebra superior. Por O hifema (hemorragia da câmara anterior) é
vezes há que recorrer a anestesia geral. uma das complicações mais frequentes que surge
no contexto de compressão violenta sem solução
Traumatismos oculares propriamente de continuidade (contusão) do globo ocular. O
ditos

No âmbito deste tópico são considerados, respec-


tivamente, traumatismos fechados, abertos, e
lesões por agentes físicos e químicos.

FIG. 1 FIG. 2
Laceração palpebral. Hemorragia subconjuntival.
1248 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

hifema espontâneo pode ser uma manifestação O edema retiniano, geralmente transitório,
doutras doenças (retinoblastoma, alterações da resulta de traumatismo directo do globo ocular. A
coagulação, leucemia, xantogranuloma juvenil visão pode estar afectada se a localização for ma-
etc.); quando abundante, não permite fazer o exa- cular.
me dos fundos oculares. Nestes casos deve pro- A rotura da coroideia resulta, em geral, de
ceder-se à avaliação ecográfica do cristalino, do traumatismo directo anteroposterior. Pode ser
vítreo e da retina. Geralmente verifica-se reabsor- compatível com boa acuidade visual se a mácula
ção em poucos dias. não estiver afectada.
A catarata traumática pode aparecer horas, O chamado buraco macular pode ser observa-
dias, ou meses depois do traumatismo. Perante do a seguir a um traumatismo (logo, ou semanas
uma situação de catarata monocular, principal- mais tarde) como complicação de edema retini-
mente na segunda infância, deve efectivamente ano, hemorragia sub-retiniana ou rotura da
inquirir-se sobre a eventualidade de episódio trau- coroideia.
mático anterior. O tratamento das cataratas trau- A retinopatia de Purtscher, também conhecida
máticas é cirúrgico. por angiopatia retiniana traumática, geralmente
A luxação ou subluxação do cristalino consti- bilateral, é secundária a traumatismo craniano e
tui outro exemplo de lesão traumática do segmen- torácico graves, com hiperpressão no território da
to anterior; a sua verificação na circunstância de veia cava superior. Manifesta-se por hemorragias
traumatismo mínimo implica o diagnóstico dife- retinianas e pré-retinianas abundantes, exsudados
rencial com outro tipo de patologia de base (por algodonosos retinianos e peripapilares, e por ede-
ex. síndroma de Weill-Marchesani, de Marfan, ma da mácula.
homocistinémia ou miopia grave). O descolamento da retina em idade pediátrica
À forma congénita de deslocação do cristalino tem como primeira causa o traumatismo. A
dá-se o nome de ectopia do cristalino (ectopia lentis). solução terapêutica é cirúrgica.
A luxação anterior do cristalino é mal tolerada, A neuropatia óptica pós-traumática resulta de
acompanhando-se de dores e de diminuição da compressão, ou mesmo secção anatómica, do ner-
acuidade visual. A solução é cirúrgica. vo óptico. A consequência é a amaurose ou a
A luxação posterior do cristalino é mais tole- diminuição muito acentuada da visão.
rada, mas provoca sempre uma baixa de acuidade
visual que deve ser corrigida com brevidade para 2. Traumatismos oculares abertos
evitar a ambliopia. A solução,como regra geral, é Nestas situações há solução de continuidade das
cirúrgica. paredes do globo ocular. Como exemplos paradig-
A subluxação do cristalino requer apenas vigi- máticos consideram-se as feridas do globo ocular
lância e correcção da acuidade visual quando é e os corpos estranhos.
pouco acentuada. Se for muito pronunciada e com As feridas do globo ocular, de acordo com a
grave repercussão na acuidade visual, a solução é respectiva localização, podem ser corneanas,
também cirúrgica. esclerais e córneo-esclerais. Requerem reparação
• Traumatismos do segmento posterior cirúrgica urgente, acompanhada de tratamento
A hemorragia do vítreo (sangue na câmara anti-inflamatório e anti-infeccioso.
vítrea) é uma complicação frequente dos trauma- Os corpos estranhos intra-oculares requerem
tismos do segmento posterior. Se pouco abun- um estudo pormenorizado para se proceder à cor-
dante, e permitir a observação dos fundos ocu- recta localização e à extracção.
lares, requer apenas vigilância. Se for muito abun-
dante e não permitir fundoscopia, o seguimento é 3. Lesões por agentes químicos e físicos
feito também com estudo ecográfico para avaliar o As lesões por agentes físicos são pouco frequentes
estado da retina ou a existência de possível corpo na criança. O tratamento por radiações ionizantes
estranho. Na presença de lesões retinianas ou da em certos casos de tumor (retinoblastoma) podem
não reabsorção da hemorragia, é necessário inter- provocar cataratas ou lesões isquémicas da retina.
vir cirurgicamente. O traumatismo solar por fixação do sol, quando se
CAPÍTULO 257 Traumatismos óculo-orbitários 1249

observa um eclipse, provoca lesões maculares fo- Na ausência de anamnese, o diagnóstico é feito
veais. com base nos sinais neurorradiológicos (hemato-
As lesões por agentes químicos são mais fre- ma subdural, por vezes bilateral e edema cerebral)
quentes provocando queimaduras, principalmen- e oftalmológicos (hemorragias retinianas, pré-
te corneanas e conjuntivais. A gravidade depende retinianas e vítreas graves).
do tipo de agente, da sua quantidade e do tempo Se a criança sobreviver, o prognóstico é grave
de permanência no fundo de saco conjuntival. pelas lesões retinianas, do nervo óptico e cerebrais
provocadas pelo traumatismo.
Traumatismos da órbita Nas crianças maiores é frequente encontrar
hemorragias retinianas, lesões do couro cabeludo,
Nesta alínea são considerados traumatismos corpo, hematomas ou edema periorbtário, cica-
directos e traumatismos indirectos trizes corneanas, hifema, desinserção da íris, luxa-
Os traumatismos directos são responsáveis por ção do cristalino, cataratas, e descolamento de
fracturas do rebordo orbitário, podendo atingir os retina, por vezes bilateral.
ossos contíguos, incluindo as paredes da órbita. Nestes casos, a criança deve ser hospitalizada
Podem fazer parte de um quadro traumático mais em serviço de pediatria para estudo clínico e ima-
grave, com compromisso concomitante das pálpe- giológico pormenorizado e tratada por uma
bras, vias lacrimais, globo ocular e crânio. equipa multidisciplinar.
Os traumatismos indirectos atingem o conteú-
do orbitário sem atingir o rebordo. No momento BIBLIOGRAFIA
do traumatismo, o conteúdo da órbita não com- Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
pressível transmite a onda de choque às paredes, Forbes BJ, Christian CW, Judkins AR, et al. Inflicted childhood
sendo que as zonas de menor resistência podem neurotrauma (shaken baby syndrome): ophthalmic find-
sofrer fracturas (fracturas por estalido). ings. J Pediatr Ophthalmol Strabismus 2004; 41: 80-88
Os traumatismos que mais frequentemente são Khaw PT, Shah P, Elkington AR. Injury to the eye. BMJ 2004;
observados em oftalmologia são os que atingem o 328: 36-38
pavimento, a parede interna e tecto da órbita; menos Kivlin JD, Simons KB, Lazoritz S, et al. Shaken baby Syndrome.
frequentes são os que atingem a parede externa e o Ophthalmology 2000; 107: 1246-1254
vértice. Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
Traumatismos óculo-orbitários 2011
na criança maltratada Nelson LB, Olitsky SE. Harley’s Ophthalmology. Philadelphia:
Lippincott Williams & Wilkins, 2005; 296-298
A prática de maus tratos é, infelizmente, um acon- Van Heuven WAJ, Zwaan JT. Decision making in Ophtalmo-
tecimento frequente, por vezes mortal e sempre logy. An algorithmic approach. St Louis: Mosby, 2000
com sequelas físicas e psíquicas importantes.
Os sinais oftalmológicos traumáticos no con-
texto referido são diferentes conforme se trata de
um lactente ou de uma criança com mais idade.
No lactente descreve-se uma síndroma especial-
mente grave, a síndroma da criança sacudida. Nesta
síndroma a escassez de sinais traumáticos externos
contrasta com a gravidade do caso (coma e crises
convulsivas): a criança, chorando continuamente, é
sacudida varias vezes e com violência pelo agres-
sor. Sendo a cabeça nesta idade “suportada” com
dificuldade (certa instabilidade cefálica compatível
com a idade do lactente), a mesma “é projectada a
cada sacudidela”.
PARTE XXVII
Estomatologia
1252 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Crescimento, desenvolvimento,

258 harmonia e desarmonia maxilo-facial

O crescimento e o desenvolvimento crânio-maxi-


lo-facial traduzem uma relação dinâmica, com-
plexa, de interacções entre segmentos que se in-
CRESCIMENTO fluenciam em sequência ou cascata. O crescimen-
to facial tem paralelismo com o do resto do corpo,
E DESENVOLVIMENTO considerando-se que se completa na população
caucasiana pelos 15 anos no sexo feminino, e pelos
MAXILO-FACIAL 16 no sexo masculino.
A face começa por ter pequena dimensão ver-
Rosário Malheiro tical no recém-nascido de termo, pelas suas
arcadas sem dentes, com a altura das órbitas prati-
camente sobreponível ao somatório das alturas do
maxilar superior e mandíbula. O crânio grande e
Importância do problema o pescoço curto são tipicamente desarmónicos,
com bochechas salientes de gordura subcutânea.
A Estomatologia Pediátrica tem desafios Pelos 2 anos, no entanto, é já acessível o conjunto
próprios. Debruçando-se sobre estruturas em das relações crânio-faciais que tenderão a manter-
mudança permanente – as orais e maxilo-faciais se ao longo da vida.
– uma comunicação entre estomatologistas, pe-
diatras e clínicos gerais é desejável. Terço médio da face
De um modo geral, os problemas dos
primeiros meses de vida raras vezes implicam Durante a infância, assiste-se ao crescimento do
observação pelo estomatologista, exceptuando terço médio da face, para baixo e para a frente,
as situações acompanhadas de defeitos congéni- bem como à pneumatização dos seios maxilares e
tos. etmoidal. O maxilar superior cresce sobretudo
Por outro lado, as alterações do alinhamento como resultado do crescimento real dos ossos cra-
dos primeiros dentes, dúvidas sobre a profundi- nianos em que se apoia (crescimento passivo);
dade adequada do palato ou sobre um pro- mas, depois de encerradas as sincondroses, o
gnatismo em evolução, as anomalias da mucosa crescimento passivo é cada vez menos importante.
oral, os traumatismos alvéolo-dentários e as A partir dos 7 anos, verifica-se o aumento dimen-
tumefacções faciais constituem motivo crescente sional ântero-posterior (crescimento activo) influ-
de referenciação. enciado pelo desenvolvimento das apófises alveo-
Tem assim vindo a delinear-se na prática hos- lares e erupção dos dentes definitivos.
pitalar um outro espectro de necessidades que se O crescimento transversal do maxilar superior,
vai modificando e alinhando, também sob a dependendo sobretudo da sutura médio-palatina,
influência de pais mais informados. Mais sofre aceleração durante a puberdade. O aumento
responsabilidades vão sendo atribuídas ao pe- dimensional na extremidade posterior da sutura
diatra encarregado de, em tempo útil, triar e ronda 3 vezes o que se verifica na sua porção ante-
reconhecer a necessidade de cuidados tecnica- rior, permitindo que, na fase final os molares
mente fora da sua alçada e outrora não dispo- superiores se encontrem na posição mais para fora
níveis. e mais para a frente do que no início.
As considerações que se seguem limitam-se a O crescimento vertical do maxilar superior com-
aspectos considerados basilares e de utilidade porta também aspectos passivos e aspectos activos.
no desempenho de médicos prestando cuidados Enquanto as apófises alveolares crescem, assiste-se
a jovens e crianças. Sugere-se ao leitor a consul- a reabsorção óssea significativa do pavimento nasal
ta do glossário incluído antes da bibliografia. que vai adquirindo uma posição cada vez mais para
CAPÍTULO 258 Crescimento e desenvolvimento maxilo-facial 1253

baixo, acabando por minimizar o crescimento al-


veolar real; esta reabsorção é mais anterior que pos-
terior, guiando a tendência de progresso ântero-
inferior do maxilar superior. (Figura 1)

Terço inferior da face

A mandíbula, cujo desenvolvimento decorre por


FIG. 3
influência primordialmente genética, aumenta o
seu comprimento quase só por crescimento pós- Padrões de crescimento da mandíbula.
tero-superior do côndilo e do ramo. É tradicional
designar por horário ou anti-horário o crescimen- Biótipo e padrões
to sagital da mandíbula. (Figura 2)
No plano sagital, a mandíbula cresce para a O crescimento maxilo-facial é idealmente harmóni-
frente, mas pode crescer para a frente e para baixo co e simétrico, mas passível de influência externa,
(sentido horário) ou para a frente e para cima (sen- desejável ou indesejável. É exemplo típico de
tido anti-horário). (Figura 3) Tentar alterar a infor- influência desejável a intervenção terapêutica no
mação genética que determina o crescimento num âmbito da ortodôncia e da ortopedia dento-facial.
ou noutro sentido, através de “aparelhos” não A inspecção, idealmente registada por foto-
induz nenhum tipo de correcção. Quer a altura do grafia, desde logo sugere o maior ou menor
ramo, quer o comprimento do corpo, podem “incumprimento” da regra dos três terços, como ori-
aumentar 1,5 mm por ano. entadora de harmonia vertical, bem como – no
Se considerarmos a mandíbula como um V plano transversal – regra da simetria. (Figura 4)
horizontal, de vértice anterior, a base do V repre- O sentido da harmonia (determinada genetica-
senta o diâmetro intercondiliano posterior que, mente) tem a ver com proporções, dimensões, e
assim, fica indirectamente aumentado, traduzindo também com relações de posição, quantificadas
o crescimento transversal. em estudos cefalométricos, elaborados sobre foto-

FIG. 1
Crescimento do maxilar superior.

FIG. 2 FIG. 4
Crescimento do maxilar inferior. Crescimento maxilo-facial.
1254 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

grafias e radiografias craniofaciais, de frente e de


perfil, segundo normas antropométricas, defini-
das por sexo, grupo etário, etnia, etc..
A direcção predominante do crescimento
determina os biótipos faciais, nas suas vertentes
esquelética, muscular e oclusal. O reconhecimento
de um dos biótipos constitui alerta para a detecção
de anomalias mais frequentemente associadas.
Classe III Classe I Classe II
1 - O Mesofacial tem mais provável equilíbrio, (perfil côncavo) (perfil recto) (perfil convexo)
isto é, boa relação maxilo-mandibular, com perfil
cutâneo harmónico e plano com arcadas dentárias
FIG. 5
de forma e dimensões compatíveis.
2 - O Dolicofacial tende à face longa e perfil Biótipos faciais. Oclusão e relação molar.
convexo, crescimento vertical predominante. Tem
por paradigma a face dita adenoideia, do respi- • Polpa dentária – tecido conjuntivo laxo, aver-
rador bucal de lábios que encerram sob tensão, melhado, bem vascularizado, com feixes nervosos,
com contractura intensa dos músculos do mento. situado na cavidade central de um dente. Confere
3 - O Braquifacial tem face larga, com man- a sensibilidade a estes e assegura as trocas nutriti-
díbula quadrada e músculos potentes; as arcadas vas. Está envolvida por uma substância dura
dentárias são amplas, muitas vezes com impor- (dentina ou marfim), coberta por cimento ao nível
tantes diastemas (espaços interdentários). da raíz, e por esmalte ao nível da coroa. Polpite ou
Utilizando terminologia de Angle (con- pulpite é a inflamação da referida polpa.
siderando as chamadas classes esqueléticas I, II e • Alvéolo dentário – cavidade situada em
III), pode estabelecer-se a seguinte correspondên- cada um dos maxilares, na qual se encontra
cia com base nos padrões esqueléticos de relação implantado o dente fixado pelo periodonto (liga-
maxilo-mandibular: mento periodontal ou alvéolo-dentário). Alveolite
– Classe I esquelética traduzindo harmonia
com biótipo mesofacial;
– Classe II esquelética traduzindo “avanço”
relativo do maxilar superior com biótipo dolicofa-
cial;
– Classe III esquelética traduzindo “avanço”
relativo da mandíbula com biótipo braquifacial.
(Figura 5)
Estas noções básicas anatomofisiológicas têm
implicações clínicas importantes, designdamente
tendo em consideração eventual actuação correcti-
va ou cirúrgica reconstrutiva.

Anatomia dentária fundamental

Para melhor compreensão dos problemas pato-


lógicos relacionados com o dente e as estruturas
maxilares em que está implantado, a Figura 6
resume os respectivos componentes básicos com
especial interesse na abordagem das chamadas
infecções odontogénicas (Capítulo 263).
FIG. 6
A este propósito cabe recordar as seguintes
noções: Anatomia do dente e estruturas envolventes (consultar texto).
CAPÍTULO 258 Crescimento e desenvolvimento maxilo-facial 1255

dentária é a inflamação, geralmente complicada nos planos vertical e transversal, no total de 8 inci-
por necrose, da parede de um alvéolo dentário. sivos, 4 caninos e 8 molares.
• Coroa dentária – parte do dente que se apre- Os dentes definitivos são 32: oito por qua-
senta saliente no bordo alveolar. Está ligada à raiz, drante, com as mesmas características de distri-
inserida no alvéolo pelo colo. buição, no total de 8 incisivos, 4 caninos, 8 pré-
• Raiz dentária ou apex – parte do dente pela molares e 12 molares. Só a dentição definitiva pos-
qual está implantado (não visível). sui pré-molares que substituem os molares de leite,
pois os molares definitivos surgem de novo, ime-
Erupção dentária e terminologia diatamente atrás dos últimos molares decíduos.
Se é lícito designá-los segundo critérios ana-
A erupção de um dente inicia-se quando, comple- tómicos, por exemplo “incisivo decíduo central
tada a coroa, a raiz atingiu aproximadamente 3/4 superior esquerdo” “segundo molar definitivo
do seu todo. Esta dimensão parece ser mais rele- inferior direito”, é preferível a designação numéri-
vante que a idade cronológica ou esquelética, a ca, internacional e mais simples (Figura 7).
velocidade de crescimento ou a maturidade psico- Considera-se, em sentido horário, na dentição
motora. definitiva, a arcada dentária superior dividida em
A erupção dos primeiros dentes, decíduos, é hemiarcada 1 (hemimaxilar direito) e hemiarcada
habitualmente simétrica, iniciando-se pelos inci- 2 (hemimaxilar esquerdo) e a arcada dentária infe-
sivos centrais inferiores, seguidos pelos oponentes rior dividida em hemiarcada 3 (hemimandíbula
do maxilar superior e assim alternadamente, no esquerda) e hemiarcada 4 (hemimandíbula direi-
sentido ântero-posterior (apesar de a erupção do ta); assim, fala-se de 1º, 2º, 3º ou 4º quadrantes,
primeiro molar surgir antes do canino), entre os 6 constituindo estes os algarismos da esquerda, con-
e os 24 meses meses de idade, com variações que forme o diagrama. Seguem-se-lhes, separados por
podem atingir 1 ano. É mais desejável a simetria do um ponto, o número de ordem na hemiarcada,
que qualquer calendário previsto. A regularidade contados a partir das linhas médias ou interincisi-
desta sequência sugere que a mesma decorre sob vas. O mesmo se diz na dentição decídua, mas,
determinação genética. neste caso, as hemiarcadas designam-se por 5, 6, 7
Pode acompanhar-se de tumefacção e rubor e 8.
das zonas implicadas, de desconforto ou dor, Se é mais correcto dizer-se, por exemplo de 1.1,
sialorreia, rubor facial ou exantema e diarreia.
Raras vezes se assiste a obstruções eruptivas,
na ausência de patologia maxilar significativa ou
dismorfia franca, dada a inexistência de predeces-
sores ocupando espaços indevidos nas arcadas.
Não pode o mesmo afirmar-se relativamente à
dentição definitiva. Exceptuam-se os dentes surgi-
dos no feto/recém-nascido, de “calendário inédi-
to” e merecedores de melhor avaliação pelo espe-
cialista (Capítulo 327).
O saco de tecido conjuntivo ou folículo, dentro
do qual o germe dentário se desenvolve, pode não
sofrer rotura espontânea, avolumando-se na arcada 1.8 1.7 1.6 1.5 1.4 1.3 1.2 1.1 2.1 2.2 2.3 2.4 2.5 2.6 2.7 2.8
como verdadeiro quisto folicular ou dentígero. É ou ou
5.5 5.4 5.3 5.2 5.1 6.1 6.2 6.3 6.4 6.5
habitualmente designado por quisto de erupção ou 8.5 8.4 83 8.2 8.1 7.1 7.2 7.3 7.4 7.5
ou ou
por hematoma de erupção, em função do conteúdo e, 4.8 4.7 4.6 4.5 4.4 4.3 4.2 4.1 3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 3.6 3.7 3.8
salvo quadro infeccioso ou dimensão exagerada,
raras vezes merece correcção cirúrgica.
FIG. 7
Os dentes decíduos são em número de 20:
cinco por quadrante, simetricamente distribuídos, Diagrama dentário.
1256 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

“um ponto um”, a verdade é que, na gíria, dize- “rompe”. Como o dente de leite vai seguindo o
mos “onze”. Ainda mais comum é referir os espaço que “lhe dão” as raízes do dente de leite,
dentes pela sua ordem na arcada, como quando não se “desorienta” na direcção da erupção,
comentamos, por exemplo “os 6os deviam ter sido acompanhando a posição e direcção do dente
selados”. definitivo.

Cronologia BIBLIOGRAFIA
da Parte XXVII
As tabelas de cronologia eruptiva divulgadas Incluída no fim do Capítulo 263
diferem umas das outras, sendo importante
explicá-las aos pais. (Quadro 1)
Torna-se evidente que decorrem 4 anos sem
erupções, entre a dos últimos molares decíduos e
a dos primeiros dentes definitivos, apesar da
importância dos fenómenos que se vão verifican-
do dentro dos maxilares.
No entanto, neste período vão-se desenvolven-
do concomitantemente os germes dos dentes
definitivos, por baixo ou atrás dos dentes de leite,
enquanto estes sofrem progressiva reabsorção
radicular (rizálise).
Com efeito, as raízes dos dentes de leite vão
sendo reabsorvidas, “desaparecendo”, sendo o
espaço que deixam sempre ocupado pelo dente
definitivo em desenvolvimento que se vai apro-
ximando cada vez mais da superfície. Quando o
dente de leite já não tem raiz, “cai” e o definitivo

QUADRO 1 – Cronologia eruptiva

Erupção da Dentição Decídua (mês)


Incisivos Centrais 6–9
Incisivos Laterais 7 – 10
Caninos 16 – 20
Primeiro Molar 12 - 16
Segundo Molar 20 - 30

Erupção da Dentição Definitiva (ano)


Maxilar Superior Maxilar Inferior
1.1 e 2.1 7 -8 3.1 e 4.1 6-7
1.2 e 2.2 8-9 3.2 e 4.2 7-8
1.3 e 2.3 11 - 12 3.3 e 4.3 9 - 11
1.4 e 2.4 10 - 11 3.4 e 4.4 10 - 12
1.5 e 2.5 10 - 12 3.5 e 4.5 11 - 12
1.6 e 2.6 6-7 3.6 e 4.6 6-7
1.7 e 2.7 12 - 13 3.7 e 4.7 11 - 13
1.8 e 2.8 17 - 25 3.8 e 4.8 17 - 25
CAPÍTULO 259 Oclusão e aspectos da relação molar e da relação incisiva 1257

259
mento da carinha de anjo, para alguns incorrecta-
mente face de querubim, de mento exíguo e tão
conotadamente infantil.
É frequente o desagrado dos pais relativa-
mente aos diastemas. Cabe explicar que se trata
de fenómeno natural e desejável, numa “casa que
OCLUSÃO E ASPECTOS se prepara para novas visitas”, os dentes defini-
tivos anteriores, de muito maiores diâmetros
DA RELAÇÃO MOLAR transversos.
Tais diastemas beneficiam de facto, os blocos
E DA RELAÇÃO INCISIVA incisivos e, destes, particularmente o superior,
pois o somatório dos diâmetros transversos de
Rosário Malheiro 5.1+5.2+6.1+6.2 ronda 23,4 mm, menos 8,2 mm
que o somatório dos diâmetros transversos de
1.1+1.2+2.1+2.2; por outro lado, o somatório dos
diâmetros transversos de 7.1+7.2+8.1+8.2 ronda
Oclusão dentária e suas implicações 17,4 mm, menos 5,6 mm que o somatório dos
diâmetros transversos de 3.1+3.2+4.1+4.2.
O conceito de oclusão em Estomatologia refere-se Entre caninos decíduos e vindouros primeiros
à situação de contacto entre os dentes dos maxi- molares definitivos, os constrangimentos de
lares superiores e inferiores quando os mesmos se espaço não são tão importantes como entre cani-
aproximam. Má-oclusão ou disoclusão é a relação nos. Os segmentos posteriores das arcadas têm,
defeituosa ou irregular da oclusão dentária. até, lucro de espaço, na substituição dos segundos
A “perda” de um dente relacionável com situa- molares decíduos pelos segundos pré-molares, de
ções como esfoliação precoce relativamente à diâmetros mesio-distais aproximadamente 2 mm
rizogénese do definitivo sucedâneo, avulsão inferiores.
traumática, extracção ou grande diminuição de De referir, no entanto, que não deixa de ser
diâmetro por cárie, acarreta a não preservação do relevante o espaço disponível intra-arcadas, ou
respectivo espaço na arcada. O espaço disponibi- melhor, a discrepância entre espaço disponível e
lizado, se não for alvo de “manutenção” terapêu- espaço necessário para o alinhamento dentário
tica, será progressivamente ocupado, sobretudo desejável.
pelo avanço real ou pela inclinação anterior dos Torna-se, assim, óbvio que a ausência de dias-
dentes imediatamente posteriores. temas, na dentição decídua, torne mais provável
Mais importantes ainda, nos 4 anos que decor- uma dentição definitiva dita “apinhada”; tal como
rem sem erupções dentárias, são o crescimento pro- uma dentição decídua apinhada quase certamente
gressivo dos perímetros ósseos das arcadas, com anunciará um apinhamento dos definitivos, caso
aumento de dimensão dos espaços interdentários não se intervenha na criança.
ou diastemas, e o crescimento da mandíbula. Cabe ao pediatra conhecer e compreender as
A mandíbula vai assumindo uma posição rela- fases do crescimento e desenvolvimento maxilo-fa-
tivamente mais anterior, justificando que, pelos 5 ciais e dentários, para atempado encaminhamento
anos, os bordos dos incisivos se relacionem topo- ao estomatologia, prevenindo o mais comum dos
a-topo, numa relação de oclusão completamente efeitos de oclusão, o chamado apinhamento (dentes
distinta da dos incisivos definitivos, cujo trespasse desalinhados e amontoados).
horizontal e vertical é conhecido. (ver Glossário)
A dimensão vertical vai diminuindo, dado o Aspectos da relação molar
uso dos decíduos, de forma mais ou menos pre-
coce, exista ou não bruxismo (ou bricomania). A Bem observadas no plano transversal, as cúspides
maior dimensão e o melhor posicionamento man- palatinas dos primeiros molares superiores defini-
dibulares permitem compreender o desapareci- tivos (“6ºs superiores”) e as cúspides vestibulares dos
1258 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Normal “Mordida “Mordida


cruzada” em tesoura”

FIG. 1
Relação molar (plano transversal).
Overjet e overbite Perspectiva vertical

FIG. 3
Relação incisiva (overjet e overbite) e perspectiva vertical.

associado às Classes II, que a população escolar


prefere designar por dentes de coelho, constitui fre-
quente motivo de consulta. Mais preocupante é o
grande aumento de incidência dos traumatismos
Classe I Classe II Classe III alvéolo-dentários, dado o bloco incisivo superior
ser o 2º pára-choques da face.
As anomalias verticais, do extremo da mordi-
FIG. 2
da aberta ao da mordida profunda, são menos fre-
Relação molar (plano sagital). quentes e parecem sensibilizar menos os pais.

primeiros molares inferiores definitivos (“6ºs infe- Relação incisiva – Overbite


riores”) ocluem nas fossas centrais dos oponentes.
As variantes mordida cruzada e a mordida em
tesoura, unilaterais ou bilaterais, isto é simétricas
ou assimétricas, paradigmas de má-oclusão
(plano transversal) e bem sugestivas de desarmo-
nia esquelética, estão representadas na Figura 1
em comparação com a relação normal.
Classe I Classe II-1 Classe II-2
Há que lembrar que, no plano sagital, a distân- (Ideal) Mordida profunda
cia entre a face distal do 6º superior e a do 6º infe-
rior, medida no plano oclusal, tipifica a chamada
relação molar (de Angle): -3 mm na Classe I, maior Relação incisiva – Overjet
que 0 mm na Classe II e menor que –6 mm na
Classe III (Figura 2).

Aspectos da relação incisiva

Os incisivos relacionam-se de tal forma que os


bordos incisais dos inferiores contactam as super-
fícies palatinas dos superiores, segundo um tres- Topo-a-topo Cruzamento Mordida Aberta
passe horizontal (overjet) de aproximadamente 2,5
mm, e um trespasse vertical (overbite) de igual
FIG. 4
valor (Figura 3) (Capítulo 260).
O grande aumento do overjet, tantas vezes Relação incisiva (tipos de anomalias verticais).
CAPÍTULO 260 Traumatologia alvéolo-dentária 1259

260
A B

TRAUMATOLOGIA
Má posição da mandíbula Contracção do mento e
ALVÉOLO-DENTÁRIA
e dos músculos periorais projecção anterior da língua
Rosário Malheiro
FIG. 5
Repercussão do “dedo na boca” e da projecção anterior da
língua na relação incisiva. Importância do problema

A mordida aberta contribui para arrastar até Os traumatismos alvéolo-dentários não se encon-
fase muito tardia o vício de sucção, associada a pro- tram geralmente ligados ao risco de vida. Excep-
tracção/interposição labial da língua. (Figura 4) tuam-se a entrada de corpo estranho na via aérea,
Pode exemplificar-se com a sucção do polegar, a “queda posterior”da língua em fractura man-
em tempo precoce da vida, ou da chupeta com base dibular com recuo muito acentuado, e eventual
nos diagramas de Moyers. (Figura 5A) lesão de pedículo vascular major.
Compreende-se que a inclinação labial dos Trata-se de problemas muito frequentes,
incisivos superiores será tanto maior quanto mais salientando-se que a precocidade de tratamento
profunda, no palato, for a colocação do dedo e tem implicação no prognóstico; adiar opções,
quanto durante mais tempo a força se exercer; e transferindo-as para decisão dita tecnicamente
que a inclinação lingual dos incisivos inferiores especializada, se tardia, não retira a responsabili-
tenderá, também, a ser proporcional ao tempo dade profissional.
durante o qual a pressão lhes é transmitida. A divulgação de informação básica junto das
A continuidade da pressão do polegar, no pala- escolas poderia melhorar a triagem dos casos a
to, pode tornar-se igualmente indesejável para a encaminhar para o estomatologista, e diminuir o
reabsorção do osso do pavimento nasal (Capítulo tempo que decorre até aos primeiros socorros
258 – Figura 4), contribuindo para o aumento da alvéolo-dentários, com resultados muito positivos
profundidade do palato, por compromisso do em Saúde Pública, como aconteceu nos países
crescimento vertical. Outra consequência é a pro- nórdicos.
tracção da língua, na deglutição, alongando o Uma população pouco informada e uma rede
tempo de deglutição infantil. Surge, então, uma de cuidados não contemplando a urgência de
sequência de repercussões (disfunção, má oclusão estomatologia, mais responsabilidade acarreta ao
e dismorfia) que só melhora com a cessação do pediatra e clínico geral, os quais primeiramente
hábito. (Figura 5B) observam a criança após o traumatismo.
Parece, assim, justificar-se maior atenção a
conhecimentos que rendibilizem tão escassos
recursos. Um maior rigor terminológico entre
médicos e outros profissionais de saúde permi-
tiria, por exemplo, uma consultadoria telefónica
ou audiovisual efectiva, com elevados benefícios e
óbvios ganhos de eficiência.
1260 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Aspectos epidemiológicos 2 – Lesões periodontais


3 – Lesões ósseas
No grupo etário entre os 12 e 14 anos estima-se que 4 – Lesões da gengiva e lesões da mucosa oral
aproximadamente 30% das crianças sofrem lesões O Quadro 1, adoptado na Unidade de Esto-
traumáticas em grau variável da dentição decídua, matologia do Hospital de Dona Estefânia – Lisboa,
e 22% da dentição definitiva. Um primeiro pico de discrimina de modo pormenorizado tais lesões.
incidência ocorre entre os 2 e os 4 anos de idade, e
um segundo entre os 8 e os 10 anos. Lesões dos dentes e lesões da polpa dentária
As fracturas dentárias englobam dois grupos: não
Classificação complicadas (se não houver compromisso pul-
par); ou as fracturas dentárias complicadas (se
Na perspectiva do problema em análise torna-se, houver compromisso pulpar, o que só acontece se
pois, imprescindível: utilizar a classificação/ter- existir lesão simultânea do esmalte e/ou do
minologia da Organização Mundial de Saúde cimento e da dentina).
(Application of the International Classification of Em função das estruturas duras atingidas –
Diseases and Stomatology, IDC-Da); e proceder ao pela relevância da respectiva tradução clínica e
mais rigoroso exame objectivo permitindo maior radiológica, e pela cascata terapêutica que im-
rigor diagnóstico. põem, classificam-se em
De acordo com o ICD-9-CM (International Fracturas coronárias
Classification of Disease – 9th revision – Clinical • Infracção do esmalte – fractura incompleta do
Modification), são considerados quatro tipos fun- esmalte (fissura), tipo ramo verde, se não
damentais de lesões traumáticas: houver perda de substância.
1 – Lesões dos dentes e lesões da polpa den- • Fractura do esmalte (A) – fractura completa do
tária esmalte, se houver solução de continuidade

QUADRO 1 – Traumatologia alvéolo-dentária – Tipos de lesões

Lesões dos dentes e da polpa dentária


Fracturas coronárias Fracturas corono-radiculares Fracturas radiculares
Infracção do esmalte Não complicadas
Fractura do esmalte Complicadas
Fractura do esmalte e dentina
ou fractura não complicada
Fractura complicada
Lesões periodontais
Sem deslocamento Com deslocamento
Concussão Intrusão/ luxação intrusa/ deslocamento central
Subluxação Extrusão/ luxação extrusa/ deslocamento periférico
Luxação lateral
Avulsão/ Exarticulação
Lesões ósseas
Osso alveolar Osso basal
Fragmentação alveolar
Fractura da parede alveolar (ou tábua)
Fractura do processo alveolar
Lesões da gengiva e da mucosa oral
Laceração
Contusão
Abrasão
CAPÍTULO 260 Traumatologia alvéolo-dentária 1261

por perda de substância. (Figura 1) deslocamento, associada a sensibilidade ao


• Fractura do esmalte e da dentina ou fractura toque e hiperestesia à percussão, quer verti-
coronária não complicada (B) – fractura impli- cal, quer horizontal. (Figura 3)
cando esmalte e dentina, mas sem compro- • Subluxação (H) – lesão com discreta mobili-
misso da polpa. (Figura 1) dade horizontal, sem deslocamento, mas
• Fractura coronária complicada (C) – fractura com dor óbvia ao toque e ao contacto com os
implicando esmalte e dentina, com exposição dentes oponentes (impedindo oclusão), e
da polpa. (Figura 1) hiperestesia à percussão, quer vertical quer
Fracturas corono-radiculares horizontal. (Figura 3)
• Fractura corono-radicular não complicada (D) – Com deslocamento
fractura implicando esmalte, dentina e ci- • Intrusão (luxação intrusa ou deslocamento cen-
mento, sem compromisso da polpa (Figura 1) tral) (I) – lesão com deslocamento em
• Fractura corono-radicular complicada (E) – frac- direcção ao extremo apical do alvéolo, quase
tura implicando esmalte, dentina e cimento, inevitavelmente com fractura do mesmo; a
com exposição da polpa. (Figura 1) deslocação centrípeta implica provável imo-
Fracturas radiculares bilidade e associa-se a ausência de dor à per-
• Fractura radicular (F) – fractura implicando cussão. O deslocamento faz-se tendencial-
dentina, cimento e polpa, seja transversal (do mente segundo o eixo alveolar na dentição
terço apical, do terço médio, do terço coro- definitiva, mas associa-se a provável desvio
nário ou cervical), seja longitudinal. (Figura 2) de eixo na dentição decídua. (Figura 3)
• Extrusão (luxação extrusa, deslocamento periférico
Lesões periodontais ou exarticulação parcial) (J) – lesão com desloca-
São consideradas sem deslocamento (se for pre- mento em direcção ao extremo cervical do
servada a relação dente/alvéolo) ou com desloca- alvéolo, por definição segundo o respectivo
mento (se não for preservada a relação dente/ eixo; qualquer pequeno desvio implica a clas-
alvéolo, sendo que o deslocamento pode verificar- sificação de luxação lateral. (Figura 3)
se ou não segundo o eixo alveolar). • Luxação lateral (luxação palatina / luxação labial
Sem deslocamento ou vestibular) (L1 e L2) – lesão com desloca-
• Concussão (G) – lesão sem mobilidade, nem mento em direcção ao palato (a mais fre-

A B C D E G H I J L1 L2

FIG. 1 FIG. 3
Fracturas coronárias e fracturas corono-radiculares. Lesões periodontais (exceptuando avulsão).

F M

FIG. 2 FIG. 4
Fractura radicular (do terço médio). Lesão periodontal (avulsão).
1262 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

quente, nos traumatismos directos) ou ao essencial compreender que a gengiva é um tecido


vestíbulo (e lábios); o aprisionamento den- com características de adesão, comportamento e
tário, intra-alveolar, pode associar-se a se- funções absolutamente distintas as restante
miologia muito próxima da da intrusão, mucosa, (dos chamados “tecidos moles”). São
sendo de referir que grandes deslocamentos consideradas:
implicam fractura de tábuas. (Figura 3) Laceração – ferida, superficial ou profunda,
• Avulsão (exarticulação) (M) – lesão com deslo- com desinserção/descolamento, geralmente pro-
camento completo do dente, para fora do duzida por objecto afiado.
alvéolo; é mais frequente entre os 7 e os 9 Contusão – equimose, habitualmente associa-
anos, dada a grande resiliência do osso al- da a hemorragia apenas submucosa, sem solução
veolar e a imaturidade ligamentar dente/ de continuidade e geralmente produzida por
alvéolo. (Figura 4) objecto rombo.
Lesões ósseas Abrasão – ferida superficial produzida por
Podem estar associadas aos subtipos já apontados, atrito, de que resulta uma superfície cruenta e
localizando-se no osso alveolar (alvéolo e parede hemorrágica.
alveolar – tábua externa ou tábua interna – e
processo alveolar), ou no osso basal (maxila ou Etiopatogénese
mandíbula).
Osso alveolar As lesões traumáticas alvéolo-dentárias entre os 2
• Fragmentação alveolar – compressão ou “esma- e os 14 anos, sobretudo por queda, relacionam-se
gamento” das paredes, como é frequente na com a falta de coordenação do início da marcha e
luxação intrusa e possível nas luxações la- da corrida, justificando algum paralelismo nos
terais dois sexos. Mais tarde, sobretudo por queda ou
• Fractura de parede alveolar (ou tábua) (L2) – colisão, coincidem com o início da vida escolar e
fractura confinada à parede vestibular ou desportiva, penalizando os mais irrequietos ou
lingual de alvéolo. (Figura 3) agressivos e os que preferem os desportos de con-
• Fractura do processo alveolar (N e O) – fractura tacto ou velocidade (karaté, bicicleta), o que pode
do processo que pode ou não implicar o explicar uma relação de 1/2 entre o sexo feminino
alvéolo. (Figura 5) e o masculino. (Capítulo 38)
Osso basal Antes dos 2 anos, os traumatismos são espo-
• Fractura da maxila ou da mandíbula (P e Q) – rádicos e relacionam-se, sobretudo, com quedas
fractura(s) que implica(m) o osso basal e que do colo ou dos carrinhos. Depois dos 14 anos,
pode(m) ou não atingir o alvéolo; a sua abor- exceptuando os acidentes de viação, predominam
dagem ultrapassa o âmbito deste capítulo. os acidentes desportivos, as agressões em rixas,
(Figura 5) estas às vezes já conotadas com o consumo de
álcool ou estupefacientes, e os assaltos. Em qual-
Lesões da gengiva e lesões da mucosa oral quer dos grupos, porém, interessa identificar a
Tal como as lesões ósseas, associam-se aos trau- “criança e o jovem com tendência para acidentes”;
matismos dentários e periodontais descritos. É com efeito, a repetição de traumatismos pode
originar compromisso maxilo-facial que, nalgu-
mas estatísticas, atinge os 50%.
Nos traumatismos da dentição decídua pre-
dominam as lesões periodontais e ósseas, dada a
grande resiliência dessas estruturas, enquanto na
N O P Q dentição definitiva predominam as lesões dos
dentes e da polpa.
Numa visão tradicional da face, considera-se
FIG. 5
que a pirâmide nasal constitui como que o primei-
Lesões ósseas. ro “pára-choques”, o bloco incisivo superior o
CAPÍTULO 260 Traumatologia alvéolo-dentária 1263

segundo, e o mento o terceiro; de facto, trata-se de A eventualidade de traumatismo craniano


estruturas protectoras – nos impactes directos – de impõe a respectiva abordagem, sem contudo justi-
estruturas ditas nobres, a saber as órbitas, a região ficar atrasos de consequências irreversíveis. A
frontal e, genericamente, o crânio. Esta hierarquia necessidade de avaliação neurológica especializa-
de maior saliência no perfil, coaduna-se aliás, com da é geralmente compatível com os primeiros
a ordenação de prevalência dos traumatismos cuidados cirúrgicos, se não houver necessidade de
maxilo-faciais. sedação/anestesia.
Compreende-se, então, que no âmbito estrito
dos traumatismos alvéolo-dentários, a área dos Anamnese
incisivos centrais superiores seja a mais sacrifica- Relativamente aos dados a colher na anamnese
da, seguida da dos incisivos laterais superiores e importa especificar os tópicos clássicos: quem;
da dos incisivos centrais inferiores. Melhor se quando; como e onde.
compreende que um overjet aumentado, constitua O quem distingue a criança saudável da que
risco acrescido de lesão. (Capítulo 259) tem território patológico e/ou de risco acrescido
O lábio superior, se for incompetente ou insufi- (discrasia hemorrágica, valvulopatia, disfunção
ciente, constitui factor agravante, uma vez que não neurológica, surdez, ambliopia); a sua idade, sexo,
funciona enquanto almofada amortecedora como área de residência, aproximam-nos do território
protecção. Em contrapartida, interpondo-se no de probabilidades descrito e sugerem-nos a envol-
impacte, distribuirá as forças por mais extensa vente social, o risco de repetição ou falta de apoio
área, diminuindo a pressão e favorecendo as lesões para posterior vigilância ou medicação.
periodontais, em desfavor das dos dentes e polpa. O quando permite determinar o tempo decorri-
Nem todos os traumatismos se estabelecem do e impõe a ultrapassagem de esperas, pela
por impactes directos, sendo importante, nos indi- relevância no sucesso de reimplante de dente
rectos, compreender a razão de ser de múltiplas, definitivo e da redução das luxações e fracturas.
possíveis associações. O como caracterizará as forças em causa e, por-
Os traumatismos podem processar-se de modo tanto, o tipo de traumatismo. É importante a pista
crónico pela continuidade do estímulo, às vezes de eventual objecto na boca, envolvido no aci-
apenas revelados à distância no tempo. É o que dente: aparelho ortodôntico, lápis, pauzinho de
acontece, por exemplo, no recém-nascido com gelado, como fontes de lesões acessórias.
entubação oro-traqueal por tempo prolongado. O onde informa da conspurcação das feridas
Com o tempo, a pressão do tubo no rebordo maxi- (coice de cavalo) e esclarece a necessidade de profi-
lar pode implicar alterações dos germes dentários laxia antitetânica, alerta para eventual presença de
em desenvolvimento que, após erupção, revelam corpos estranhos (acidente de viação em estrada de
defeitos estruturais do esmalte. gravilha fina), explica a lógica do desaparecimento
São também iatrogénicos os traumatismos de dentes (mergulho com impacte na beira da pisci-
devidos ao uso intempestivo do laringoscópio, na), ou sugere a possibilidade de intrusão.
quando brandido em alavanca, sobre o bloco inci-
sivo superior, forçando a abertura da boca. Exame objectivo
Os gestos semiológicos assentam fundamental-
Semiologia clínica mente em inspecção, palpação e mobilização.
O diagnóstico dos problemas de traumatologia
Não havendo hemorragia importante, dificuldade da face ou seus segmentos decorre essencialmente
respiratória ou alterações da consciência impondo do exame objectivo, sendo a sua insuficiência (tal
abordagem prioritária, a história clínica contribuirá como a do seu registo) a fonte de trágicos erros.
para o esclarecimento da situação na perspectiva Serão abordados aspectos essenciais do exame
de uma actuação adequada e idealmente não diferi- objectivos a levar a cada pelo pediatra geral ou
da; de salientar que a procura de assistência em pelo médico de família, na maioria dos casos
momento especialmente tardio de caso aparatoso é quem se confronta com as situações traumáticas
mais frequente na criança agredida. deste foro.
1264 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Nas situações de politraumatizado há que con- Na fractura de processo alveolar, a mobiliza-


siderar a vertente oro-maxilo-facial, sendo neces- ção de um dente desencadeia a mobilização soli-
sário distinguir o traumatismo facial do crânio- dária dos outros dentes do mesmo fragmento,
facial. porque desloca a respectiva “base de residência”.
A área alvéolo-dentária pode ser mais chama- Na fractura de parede alveolar, a mobilização de
tiva, mas há que procurar eventuais lesões menos um dente poderá desencadear a mobilização
evidentes. Uma fractura de processo alveolar, com simultânea da tábua fracturada. As luxações acar-
luxações laterais e hemorragia franca, associando retarão mobilidade individual, se não tiver havido
lábio superior contuso e hematoma geniano baixo, “encarceramento”.
por espectaculares que sejam, poderão descurar A percussão permite, ao ouvido habituado, o
uma fractura subcondiliana. Não é, porém, raro reconhecimento instantâneo do “som anquilótico”
tal acontecer. da intrusão; associada à palpação, distingue a con-
O primeiro contacto, com voz ciciada, se indu- cussão da subluxação, esta com maior compro-
tor de sossego, pode permitir que a inspecção misso do aparelho ligamentar alvéolo-dentário.
decorra simultaneamente com a palpação afável Realizados a anamnese e o exame objectivo,
dos contornos esqueléticos: rebordo orbitário, importa estabelecer classificação da lesão.
arcada zigomática, canal auditivo externo, mas-
tóide e mandíbula. Actuação geral prioritária
Os dedos (utilizando luvas esterilizadas) de-
vem também percorrer os contornos ósseos endo- Os fragmentos de tecidos ou dentes devem ser
rais, enquanto se pesquisam soluções de con- colocados em soro fisiológico (ou leite), melho-
tinuidade da mucosa ou hematomas submucosos, rando a viabilidade celular, especialmente a peri-
sugestivos de fractura maxilar ou mandibular, e odontal; de imediato, o doente deve ser enviado a
soluções de continuidade; detectam, com facili- centro de urgência médico-cirúrgica especializado,
dade, um abaulamento da tábua externa da zona com aviso prévio, e relatório sucinto e rigoroso.
incisiva, subsequente a uma intrusão; reconhecem Deve proceder-se, com carácter de urgência em
uma luxação extrusa extrema ou exarticulação caso de avulsão, a reposicionamento do dente no
camuflada, aproveitando instantaneamente para alvéolo, procedimento indispensável se precoce. A
agarrar um dente “solto” dado o risco de originar celeridade de reposicionamento condiciona o
aspiração e asfixia. sucesso biológico efectivo no reimplante de dente
É essencial detectar eventual mobilidade de definitivo, mesmo que a posição obtida não seja a
dentes ou de segmentos ósseos ou ósteo-den- ideal. (ver adiante)
tários; de salientar que a própria criança poderá Pode, entretanto, haver necessidade de exercer
saber dizer “se os dentes batem uns nos outros compressão local para garantir reposicionamento
como é costume”. do dente, parar a hemorragia, ou controlar mobili-
Se o registo fotográfico, complemento da dade patológica.
inspecção, estiver disponível, resumirá a deformi- Deve retirar-se corpo estranho endoral ou
dade, a distribuição extra-oral e endoral de induzir o vómito, para evitar obstrução da via
sufusões e feridas, as alterações posicionais de aérea, esta última sugerida por tosse arrastada.
segmentos ósseos (basais, alveolares) e dentes, É indispensável ter no local luz dirigida intensa
acrescentando valor médico-legal. e necessária para a remoção – com compressa
É também essencial pesquisar a mobilidade e húmida – de fragmentos e de coágulos, quando
proceder a eventual percussão dos dentes (pode possível seguida de aspiração cirúrgica continuada
usar-se a espátula de inspecção da orofaringe). A de saliva e sangue. Os meios tradicionais de obser-
mobilização bidigital dos dentes permite distin- vação, em geral disponíveis na área de triagem do
guir a fractura de processo alveolar da fractura de serviço de urgência médica, são suficientes para
parede, e ainda de luxação; a diferença é relevante um rastreio eficaz.
quanto aos critérios para envio a centro especiali- Está indicada antibioticoterapia com beta-lac-
zado e consequências. tâmicos (ver adiante).
CAPÍTULO 260 Traumatologia alvéolo-dentária 1265

O exame radiológico simples da face, clássico,


utilizando as incidências: face superior, face infe-
rior, Waters e Hirtz, pode ser indispensável se o
exame objectivo deixar em dúvida uma fractura
FIG. 6
de osso basal.
Na área alvéolo-dentária, são os radiogramas Relação anatómica entre a raiz do dente
endorais, em múltiplos ângulos, especialmente decíduo e o germe do dente definitivo.
oclusais, que permitem respostas cabais a algu-
mas dúvidas levantadas pelo exame objectivo. defeitos de cor e de estrutura, mas também mor-
É importante referir que a radiografia pano- fológicos e mais ou menos bizarros e espectacu-
râmica (ortopantomografia) é um excelente meio lares, da coroa – dilaceração coronária ou da raiz –
complementar de diagnóstico nas fracturas da dilaceração radicular, com alterações subse-
mandíbula, embora de menor útilidade nos com- quentes da erupção. É de salientar que, quanto
promissos maxilares, e praticamente inútil nos mais jovem for a criança, mais graves os efeitos.
compromissos dos segmentos anteriores. Não São exemplo frequente de compromissos su-
deverá ser solicitada indiscriminadamente. perficiais de germe as “manchas brancas”, opacas,
De salientar, no entanto, que nenhum estudo do esmalte do incisivo definitivo, constituindo
radiológico substitui qualquer dos tempos da marcador anatómico dum acidente pregresso; tais
actuação descritos atrás. Admitindo, por outro, manchas são semelhantes às das fases iniciais da
lado que na actuação prioritária o pediatra ou cárie e às da hipoplasia do esmalte, por fluorose.
clínico geral pode ter papel importante, tal impli- Os múltiplos arranjos destes defeitos funcionam
ca o apoio do radiologista nos casos em que está como “marcadores arqueológicos”, com data de
indicado estudo imagiológico. verificação bastante rigorosa, a ponto de serem
utilizados na perspectiva médico-legal, para efei-
Actuação em situações específicas tos de indemnização.
Se houver acesso a métodos radiológicos, uma
1. Lesões traumáticas da dentição decídua incidência de perfil focada na espinha nasal pode
Na dentição decídua, a anamnese orientada e o revelar se a deslocação foi feita em direcção ao
exame sumário permitem ao médico uma refe- germe ou não. Se foi, justifica-se extracção pelo
rência adequada para o especialista de estoma- estomatologista, na tentativa de reduzir ao míni-
tologia. mo as sequelas.
Basicamente, a actuação geral nos casos de Na hipótese de não se ter realizado extração,
traumatismos alvéolo-dentários da dentição decí- poderá verificar-se “reerupção” passiva do dente
dua tem por objectivo o controlo da dor e da intruso, com lento regresso à arcada, o que faz
hemorragia evitando consequências para a den- advogar por alguns especialistas uma espera de 2-
tição definitiva. 3 meses, na expectativa de auto-resolução.
Seguidamente são descritos aspectos da actua-
ção em situações específicas. • Luxações não intrusas, avulsões e lesões
ósseas
• Intrusão Um pequeno deslocamento, sem interferência
O diagrama da Figura 6 aponta a estreita oclusal significativa (oclusão como “contacto den-
relação anatómica entre o terço apical da raiz do tário interarcadas, no encerramento”), poderá
dente decíduo e o germe do dente definitivo. (ver merecer, apenas uma segunda observação, a médio
Erupção – Capítulo 258) prazo, se houver complicações: alteração da cor,
Uma luxação intrusa mais provavelmente dor à pressão, abcesso alveolar agudo ou fístula.
deslocará um incisivo em direcção à tábua externa Por não ser rara uma pequena mordida aberta
por se tratar de trajecto de menor resistência, mas anterior (ver Aspectos da relação incisiva), luxa-
poderá implicar “invasão directa” do folículo. ções com pequenos deslocamentos são muitas
Deste traumatismo interno podem resultar vezes oclusalmente irrelevantes, dispensando
1266 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

maior investigação ou terapêutica, tal como acon- “total”, enquanto as radiculares - com traço de
tece com as concussões e subluxações. fractura do terço médio ou cervical - carecem ape-
Nas luxações extrusas, a raiz ter-se-á desloca- nas de extracção do fragmento coronário. As frac-
do para fora do alvéolo, segundo o respectivo turas do terço apical são muitas vezes compatíveis
eixo, poupando o folículo do dente definitivo; o com a permanência dos dentes, sem complicações.
reposicionamento é possível, “num instante”, mas
não justificará que se recorra a meios especiais, na 2. Lesões traumáticas da dentição definitiva
criança não colaborante, nem que de tal opção Nos casos de lesões traumáticas da dentição defi-
resulte lesão iatrogénica no germe. Em contra- nitiva os objectivos terapêuticos passam pela
partida, a sua redução pode impor o recurso a preservação dos próprios dentes, impondo recur-
contenção (splinting). sos e diferenciação técnica. São analisadas neste
As fracturas dos processos alveolares impli- âmbito, as seguintes situações.
cam imobilização rígida durante aproximada-
mente 2 meses. • Lesões periodontais
As lesões periodontais impoem métodos de
• Lesões periodontais contenção e/ou imobilização exigindo algum
Nos traumatismos verificados imediatamente treino, mesmo que idealmente conduzidos com
antes de momento de esfoliação, salvo questão major, materiais simples; as luxações obrigam a redução
há duas opções possíveis: abstenção ou extracção. precoce, com reposicionamentos adequados e
A partir das 24 horas, na maioria dos casos a contidos, nas primeiras 6 horas. O tempo decorri-
redução é impossível e, pelas 12 horas, insatis- do entre o traumatismo e o seu tratamento, ou os
fatória, o que é explicável pela progressiva organi- primeiros cuidados que merecem, é relevante no
zação dos coágulos. sucesso biológico e na onerosidade global da
As lesões periodontais justificam a adminis- reabilitação.
tração de analgésicos, como paracetamol; excep-
tuando a concussão e a subluxação, é norma o • Fracturas coronárias complicadas e corono-
recurso ao ibuprofeno, bem como à cobertura -radiculares
antibiótica, com beta-lactâmicos. As fracturas coronárias complicadas, bem
Pode haver necessidade de alongar no tempo a como as corono-radiculares, e mesmo algumas ra-
dieta mole, mas a criança é geralmente capaz, a diculares, não são situações urgentes, embora seja
curto prazo, de se defender de zona dolorosa, con- aconselhável a observação por estomatologita
duzindo os alimentos para zona não dolorosa da dentro de 24 horas. Apesar dos quadros dolorosos
boca. e da necessidade de abstenção alimentar, são
lesões menores, sem risco acrescido.
• Lesões dos dentes e da polpa
As fracturas coronárias não complicadas, na • Avulsão
criança colaborante, justificam reabilitação por A avulsão representa, talvez, a situação mais
parte do estomatologista, não cabendo no âmbito desafiante, pela necessidade de decisões imedia-
da urgência. tas. A sua abordagem tem variado muito, nos últi-
Nas fracturas coronárias complicadas, na mos anos e continua a não ser consensual: discute-
criança não colaborante, a resolução é a extracção se a responsabilização médico-legal por atraso de
dentária; a criança colaborante, porém, pode justi- reimplante, e a ética de se proceder a reimplante
ficar tratamento endodôncico, em função da idade com elevada probabilidade de insucesso, apenas
e circunstância. (Capítulo 262) em nome da expectativa dos pais.
As fracturas corono-radiculares e as fracturas O factor primordial é o tempo extra-alveolar,
radiculares são facilmente diagnosticáveis pela sobretudo o tempo extra-alveolar em meio seco,
observação dos fragmentos disponíveis e dos não pela necrose da polpa, mas pela morte do li-
alvéolos, não estando indicado exame radiológico. gamento periodontal, considerada inevitável a
Nas corono-radiculares está indicada extracção partir dos 60 minutos. Um tempo extra-alveolar
CAPÍTULO 260 Traumatologia alvéolo-dentária 1267

rondando os 20 minutos associa-se a sucesso Se o dente estiver em meio seco, como geral-
biológico satisfatório, razão para se entender, mente acontece, deve ser transferido para salino
aliás, que o reimplante ideal é o que é imediata- ou leite, manipulado pela coroa, nunca pela raiz
mente conduzido pelo próprio, ou por socorrista evitando lesão acrescida das células periodontais.
presente (o professor, a mãe). (ver atrás – Reforçando o que foi dito antes, na ausência de
Actuação prioritária) acesso rápido a estomatologista, deve ser reimplan-
São dois os tipos de evolução periodontal mais tado imediatamente, se a menos de 20 minutos do
frequentes, após um reimplante. acidente. Se o ápex estiver aberto, justifica-se um
Um constitui a chamada reabsorção externa banho prévio, de 5 minutos, num soluto de 1 grama
inflamatória com desaparecimento progressivo da de doxiciclina para 20 ml de água destilada.
raiz, de origem osteoclástica, com subsequente Se o tempo extra-alveolar for superior a 1 hora, é
perda dentária. desejável submeter a raiz ao ácido cítrico e a um fluore-
Outro é a reabsorção de substituição – vulgo, to, minorando os riscos de reabsorção externa infla-
anquilose – traduzindo-se no desaparecimento matória e reimplantar, mesmo que o reposicionamento
progressivo do próprio ligamento periodontal, conseguido não seja o ideal.
com fusão entre dente e osso que acaba por tomar, A dificuldade na adaptação ao alvéolo pode
substituir, o próprio dente. Tal implica, na criança resolver-se através de irrigação com seringa de
em crescimento, paragem do crescimento da apó- soro (remoção de coágulos), ou suavemente em-
fise alveolar, conduzindo a sequela importante*. purrando, com instrumento cirúrgico, as tábuas
A opção de reimplantar começa assim, pela fracturadas. Não deve exercer-se pressão impor-
necessidadede avaliar a probabilidade de cada um tante com o dente.
destes tipos de evolução, pois que a cura do peri- Na indisponibilidade de um método ortopé-
odonto, com restitutio ad integrum, parece ser uma dico de contenção, a pressão dos lábios, ajudada
raridade e a reabsorção superficial pouco fre- por um dedo ou pela interposição de um objecto,
quente. Há que verificar também: 1) se a extremi- podem ser de grande utilidade.
dade da raiz se encontra já completamente forma- Apesar da necessidade de boa gestão do
da ou não, definindo-se a probabilidade de sobre- tempo, a tendência internacional é obter-se consen-
vivência da polpa ou a necessidade de indução do timento informado, seja para reimplantar, seja para
encerramento radicular, no futuro, pelo recurso ao não reimplantar.
Ca (HO)2 e consequente aumento da probabili-
dade de fractura radicular e insucesso; 2) igual-
mente se se trata de dente são, a reimplantar em
alvéolo são e arcada não apinhada; 3) há que ter
em conta ainda a acessibilidade geográfica e
social, e a possibilidade de deslocação, por exem-
plo, a centro onde possa ser feito o seguimento
adequado.
Reitera-se a antibioticoterapia profiláctica,
idealmente com beta-lactâmicos, nas doses habi-
tuais; a antibioticoterapia é facto relevante no
sucesso e deve ser promovida no serviço de
urgência. (ver atrás – Actuação prioritária)

* Com efeito, existe como que uma frente osteoclástica que se encarrega
da reabsorção/desaparecimento do dente, imediatamente seguida por
uma fronteira osteoblástica em que os tecidos dentários são substituí-
dos por osso (daí reabsorção de substituição). Num momento intermé-
dio no processo, é impossível dizer, com base na radiologia, onde acaba
dente e começa osso. Esse neo-osso tem, porém, comportamento dis-
tinto do osso são e não cresce. Daí a possibilidade de ulterior deformi-
dade.
1268 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

261
Conceptualmente, em suma, trata-se de uma
doença, quase-infecciosa, de origem bacteriana, que
atinge inicialmente os tecidos duros do dente e que,
na sua evolução natural, dá origem a uma cavidade.

Etiopatogénese
CÁRIE DENTÁRIA
Admite-se desde 1892 com W. D. Miller (teoria
Rosário Malheiro químico-parasitária ou acidogénica), que a cárie se
deve sobretudo à desmineralização dos tecidos
inorgânicos do dente por ácidos (láctico, acético,
pirúvico) elaborados por flora bacteriana específi-
Definição e importância do problema ca (acidogénica), a partir de glicólise do substrato
dietético (hidratos de carbono).
O termo genérico cárie significa degradação do Assim, considera-se um modelo etiopatogéni-
tecido ósseo, com amolecimento e destruição. co ainda adequado o da conjugação simultânea de
Cárie dentária é a destruição localizada e progres- três factores: microflora patogénica ou factor
siva dos dentes. agente; substrato (regime alimentar) ou factor
A cárie dentária atinge primeiramente o ambiente; e dente susceptível ou factor hospe-
esmalte (1º grau), em seguida a dentina (ou mar- deiro (Figura 1).
fim) que é atacada pelas bactérias (2º grau), As bactérias começam por fixar-se na película
podendo chegar-se ao 3º grau que corresponde à exógena, adquirida, de proteínas salivares, pro-
necrose da polpa dentária. O resultado final é a duzindo polissacáridos extracelulares que incor-
formação de cavidades. poram; estrutura-se, assim, uma camada, placa ou
A cárie dentária continua a ser a doença mais “biofilme” de bactérias capazes de colonizar as
frequente do globo. A sua incidência tem vindo a superfícies dentárias.
reduzir-se nos países industrializados que – desde A cárie dentária traduz, pois, a desmineraliza-
meados dos anos 50 – puseram em prática a fluo- ção ácida dos tecidos calcificados dos dentes
retação da água, leite e/ou sal das cozinhas, a (fracção apatítica), induzida pelos ácidos orgâni-
suplementação de flúor, em gotas ou comprimi- cos resultantes da fermentação dos açúcares do
dos, e a intensificação da higiene oral. O paradi- regime alimentar, produzida pelos agentes da
gma é constituído pelos escandinavos. placa bacteriana.
O índice CPO de um indivíduo constitui o No âmbito da etiopatogénese são abordados
somatório do seu número de dentes Cariados (C), com mais pormenor aspectos específicos em
número de dentes Perdidos por cárie (P) e número
de dentes Obturados (O). Corresponde ao inglês
DMFT (Decayed, Missing, Filled Teeth). Tal índice, DENTE MICROFLORA
todavia, continua a aumentar nos países de menor
nível socioeconómico, de acordo com a
Organização Mundial de Saúde. Esta tinha con-
siderado desejável um índice inferior a 3 aos 12
anos no ano 2000, e deseja atingir um índice infe-
rior a 1,5 no ano 2015. Consideradas as Regiões de
Saúde de Portugal e o ano de 2000, o Índice CPO, CÁRIE
SUBSTRATO
aos 12 anos, era 2,9 e 4,7 aos 15 anos.
De acordo com um Estudo Nacional de Saúde
Oral em 2005, a percentagem de indivíduos sem
FIG. 1
cárie era: aos 6 anos → 50,9: aos 12 → 43,8 e aos
15 → 28,1. Relação dente, microflora, substrato e cárie.
CAPÍTULO 261 Cárie dentária 1269

relação com o modelo anteriormente esboçado, o


que permite compreender melhor a intervenção
profiláctica e terapêutica.
De salientar que durante o período de matu-
ração dentária verifica-se incorporação do flúor
(F) em duas fases, uma pré-eruptiva e outra pós-
eruptiva.
Na fase pré-eruptiva a incorporação de F na
estrutura mineral do dente realiza-se por dois meca-
nismos: 1) por precipitação de fluorapatite sobre a
matriz dentária, substituindo a hidroxiapatite,
sendo a referida incorporação de fluorapatite res-
ponsável pela sua presença no esmalte dentário; 2)
por reacção da hidroxiapatite do esmalte já formado
com iões de F presentes em líquidos internos, “ban-
hando” a superfície dentária e formando uma
camada superficial de fluor-hidroxiapatite.

Esmalte e junção esmalte-dentina


Na prática, a maioria dos aspectos relacionados
com a cárie é abordada com respeito à cárie do
esmalte, pois é a este nível que a atitude profilác-
tica é exequível.
Vale a pena lembrar que, em peso, 96% do
esmalte é constituido por fosfato de cálcio, sob a
FIG. 2
forma de cristais de hidroxiapatite, estrutural-
mente organizados em prismas; só 3% da sua Imagem de cárie da superfície lisa e da fissura.
estrutura é água e apenas 1% corresponde a matriz
proteica. Em caso de lesão, não sofre restitutio ad Muitas vezes, pela deterioração progressiva e
integrum, por não possuir células reparadoras. silenciosa da dentina, sob esmalte aparentemente
O esmalte une-se à dentina, na chamada íntegro, se assiste a perda de estrutura suficiente
junção amelo-dentinária, e ao cimento radicular para o esmalte não suportado se fracturar, poden-
nos colos dentários. do ficar exposta uma cavidade de grandes dimen-
A cárie do esmalte é um processo dinâmico, sões. Ou seja, a deterioração da dentina pode pre-
não vital, de desmineralização / remineralização, ceder durante certo tempo a fractura do esmalte
na fase inicial. A sua extensão à dentina decorre de até aí intacto.
forma macroscopicamente distinta, nas superfí- De referir que as lesões do esmalte são assin-
cies lisas e nas fissuras. tomáticas.
Nas superfícies lisas, a lesão tende a evoluir
segundo a forma de um cone de vértice interno, Complexo dentino-pulpar
situado na junção amelo-dentinária; nas fissuras, o A dentina e a polpa dentária formam um com-
cone mantém o vértice externo enquanto se vai plexo biológico indissociável, vital; é este com-
alargando a base, na zona de junção. (Figuras 2 e 3) plexo que constitui a interface entre doença den-
É, assim, possível explicar que uma cárie tária, ponto de partida de doença sistémica, e zona
aparentemente pequena – ou mesmo punctiforme – de recepção de estímulos. (Figura 4).
de uma superfície oclusal (superfície de masti- A polpa é uma “ilha” de tecido conjuntivo
gação), se revele de notória profundidade no laxo, rodeada de dentina – uma loca inextensível –
esmalte, e de grande extensão na dentina, conforme ocupando o centro do dente. É nutrida por um sis-
se caminha do vértice externo, para a base interna. tema arterial do tipo terminal, isto é, por uma
1270 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

sionais induzidas pelo calor e pelo frio no líquido


intersticial (teoria hidrodinâmica de Brannstrom).
ESMALTE
Estas fibras são destituídas de capacidade pro-
DENTINA
prioceptiva; apenas então preparadas para a sen-
sibilidade dolorosa, sendo os estímulos habituais
o frio e o doce.
Superfície Fissura
Lisa
As variações dimensionais descritas podem
também ser desencadeadas pelos solutos hiperos-
molares, como os açúcares e alguns ácidos, que
FIG. 3
induzem movimento do líquido intersticial “para
Progressão da cárie: lesão do esmalte e extensão à dentina. fora”, tentando restabelecer a isotonia.

Microflora
Está provado que o grupo dos microrganismos
Streptococcus mutans e S. sobrinus é essencial para o
início da cárie, especialmente a das superfícies
lisas dos dentes.
FIG. 4
Com efeito, tais bactérias têm a capacidade de
Complexo dentino-pulpar. aderir ao esmalte, produzir compostos ácidos e de
sobreviver em meio de pH baixo. Contudo, as
diferentes espécies não são idênticas na capaci-
dade de fermentação ácida dos açúcares (glicólise),
nem na diminuição do pH que induzem, pelo que
não apresentam o mesmo potencial cariogénico.
O agente bacteriano S. mutans tem também
uma capacidade de recolonização rápida e possui
especial virulência, quer pela aptidão colonizado-
ra (adesinas), quer pelas características de per-
FIG. 5
sistência (agressinas, toxinas, impedinas, etc.),
Odontoblastos e túbulos dentinários. quer ainda pela eficácia de destruição celular
(actividade proteásica e pró-inflamatória). Assim,
pequena e única artéria que a atinge através da as respectivas taxas de colonização na cavidade
extremidade da raiz (ou ápex), subdividindo-se oral possuem valor preditivo e permitem recon-
no seu espaço central. (Capítulo 258) hecimento diagnóstico da população de alto risco.
Estando enclausurada em paredes rígidas, a A estagnação de restos alimentares é impor-
polpa é incapaz de aumentar de volume, durante tante no desenvolvimento da placa bacteriana e
um processo inflamatório. respectiva cariogenicidade. A placa torna-se visí-
O tecido conjuntivo pulpar distingue-se de vel ao fim de 12-24 horas de se deixar de proceder
outros tecidos conjuntivos laxos por, à sua perife- a escovagem, sendo facilmente demonstrável
ria, se alinharem os odontoblastos, células tróficas pelos “corantes de placa”, como os solutos de
produtoras de dentina. Os seus corpos celulares eritrosina, disponíveis em quase todas as marcas
alongam-se nos processos odontoblásticos, no de produtos de higiene dentária.
interior dos canalículos dentinários preenchidos Os corantes também permitem a verificação
por um fluido intersticial (Figura 5). pedagógica e simples de que o atrito da masti-
Tudo se passa como se os odontoblastos e seus gação não é suficiente para a respectiva remoção,
prolongamentos tivessem conexões com fibras só eficazmente obtida por escovagem.
nervosas simples, do tipo C; essas fibras são
estimuladas com o alongar e encurtar dos pro- Colonização oral
longamentos, com origem nas variações dimen- A criança recém-nascida tem a boca isenta de bac-
CAPÍTULO 261 Cárie dentária 1271

térias. A colonização estabelecer-se-á por contami- A lactose e a galactose têm cariogenicidade


nação a partir da saliva do cuidador, a mãe geral- mais baixa; os polióis (xilitol, sorbitol, manitol),
mente; mães com níveis salivares altos de S. tal como outros edulcorantes (sacarina, aspar-
mutans tendem a ter crianças também com níveis tame, ciclamato), não são cariogénicos.
altos deste agente microbiano.
S. mutans não é detectável antes da erupção Saliva
dentária; sabe-se da sua pouca apetência para os É o meio ambiente dos dentes e placa bacteriana.
epitélios nessa fase da vida e que os picos repro- A importância do fluxo é grande, pois que per-
dutivos são largamente compensados no bébé mite a diluição volumétrica dos alimentos, no-
pela grande frequência de deglutição. Pode, con- meadamente dos açúcares, e a sua evacuação, bem
tudo, colonizar dispositivos ortodônticos, (acríli- como a da placa bacteriana.
cos com superfícies duras, não descamativas). O seu poder tampão depende do sistema ácido
As colónias aumentam com a idade e a infecção carbónico/bicarbonatos, e do sistema dos fosfatos;
ocorre, preferencialmente, com a erupção dos pri- os bicarbonatos participam no controlo do pH da
meiros molares decíduos; o seu número é tanto mais placa bacteriana e a sua quantidade aumenta para-
elevado quanto maior a susceptibilidade à cárie, lelamente ao aumento do débito. Por outro lado, a
como acontece nas cáries precoces da infância. saliva contém F, estimando-se um teor de 0,02 ppm.
Os componentes orgânicos, também têm papel
Substrato e regime alimentar importante.
A sucrose (ou sacarose), um dissacárido, é o mais ca- Das proteínas não imunoglobulínicas, quer a
riogénico dos açúcares e o mais utilizado, no regime lisozima, quer a lactoferrina, revelam alguma
alimentar; a glucose e a frutose, monossacáridos, capacidade de inibição das bactérias cariogénicas;
têm, também, potenciais relativamente elevados. o sistema peróxido (enzimas, tiocianato e peróxi-
O seu efeito é meramente local, dependendo do de hidrogénio) é também antibacteriano para
da respectiva fermentação pelas bactérias da além de antimutagénico e anticarcinogénico; as
placa, geradoras de ácidos orgânicos que induzem mucinas modificam a adesão das bactérias à
a descida do pH abaixo do ponto crítico de 5.7, o superfície dentária.
qual é suficiente para a dissolução dos cristais de Das imunoglobulinas, a IgAs revela alguma
hidroapatite do esmalte. capacidade de neutralização, inibição ou antiaglu-
Um regime rico em sucrose, fornecido por sonda tinação bacteriana.
nasogástrica, não induz cárie no animal susceptível. A insuficiência do efeito de depuração e
Saliente-se que a sucrose favorece – de forma alcalinização, (associada à escassa eficiência anti-
especial – a produção dos polissacáridos insolú- bacteriana dos componentes orgânicos) permite-
veis, de características adesivas, na placa bacteri- nos entender o aumento de incidência da cárie nas
ana; sabe-se que facilita a colonização por S. circunstâncias de xerostomia e de hipossialia: da
mutans e que a sua cariogenicidade aumenta com diabetes à anorexia nervosa, do efeito dos antide-
a frequência de ingestão, mais do que com a quan- pressivos à irradiação terapêutica da área da
tidade total ingerida. cabeça e pescoço.
Um veículo pegajoso (caramelo, bolacha), ader- Ao papel do F será dada ênfase adiante.
ente às superfícies dos dentes, com libertação pro-
longada de sucrose, será mais deletério que a Cárie precoce da infância
ingestão de sucrose numa bebida. Enquanto os
açúcares da fruta, dos legumes e das bebidas, são Na dentição decídua, os incisivos inferiores são os
eliminados da boca em aproximadamente 5 minu- dentes menos susceptíveis à cárie. A sequência na-
tos, os veiculados pelas pastilhas-elásticas, rebuça- tural parece ser: molares inferiores, molares supe-
dos e bombons subsistem entre 20 e 40 minutos. riores, incisivos e caninos superiores, caninos infe-
O efeito desmineralizante torna-se especial- riores. As superfícies labiais (ou vestibulares) e as
mente significativo quando o consumo é feito fora linguais (ou palatinas) raras vezes são atingidas.
das refeições. As cáries precoces da infância, contudo, afas-
1272 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

tam-se desta norma. Rapidamente destrutivas e destruição completa do esmalte da superfície


pouco diagnosticadas em tempo útil, atingem – na palatina dos incisivos centrais e laterais superio-
criança muito pequena – não os dentes ou as res, progressivamente para labial, desenhando e
superfícies dentárias naturalmente mais suscep- “roubando” uma meia-lua de esmalte e dentina
tíveis, mas as mais expostas ao substrato. dos bordos incisais. A sua detecção precoce só é
Assumem três distribuições sugestivas e são, possível pela observação endoral cuidadosa das
muitas vezes, na gíria, designadas pelo nome superfícies palatinas
inglês: honey-dummy ou de chupeta, nursing bottle
ou do biberão e at will ou dos comilões. Profilaxia
As cáries da chupeta são desencadeadas pelas
chupetas impregnadas de substâncias açucaradas; A profilaxia pode ser levada a cabo através de
iniciam-se pelas superfícies labiais dos incisivos métodos químicos e físicos (mecânicos).
superiores, atingindo progressivamente todas as
superfícies de todos os dentes com erupção já com- O papel do flúor
pleta. Correspondem às mais vastas destruições Julgava-se que o efeito cariostático do ião flúor
dentárias que são observadas na idade pediátrica. residia na sua capacidade de se incorporar na
Há que detectá-las em fase precoce, nomeada- porção mineral do dente, isto é, de substituir o ião
mente quando se apresentam na fase de mancha, em hidroxilo na hidroxiapatite dos cristais de esmalte,
pequena meia-lua, branco opaco, justa-gengivais, em período pré-eruptivo, transformando-a em
alertando para a necessidade de correcção do hábito. fluorapatite, mais resistente à desmineralização.
É, pois, indispensável que a inspecção da boca, no Reconhece-se hoje que o seu efeito é tópico. É
exame objectivo sumário, as detecte. a sua presença na fase líquida do meio dentário
As cáries do biberão não se relacionam com o (saliva, líquido da placa e espaços intercristais),
consumo de açúcares acrescentados, mas com por fornecimento continuado, que permite a
uma frequência muito elevada de ingestão de inibição da dissolução ácida do esmalte e do
leite, por biberão e, também, com a sobre- cimento.
exposição que constitui o adormecer com o Em verdade, a sua integração no esmalte
biberão na boca. Pela relação posicional e pelo durante o desenvolvimento não parece inibir a
deslizar para trás do leite, compreende-se que as respectiva desmineralização ácida, o que, porém,
lesões prefiram as superfícies linguais dos inci- se verifica quando apenas envolve a superfície
sivos superiores e oclusais dos molares superio- dos cristais.
res, mesmo que também possam atingir os cani- O flúor não se limita a inibir a desmineraliza-
nos superiores. Contrariamente às cáries da chu- ção do esmalte; potencia também a sua remi-
peta, salvo casos extremos, poupam os incisivos neralização quando adsorvido pela superfície dos
inferiores, protegidos pela projecção anterior da cristais submetidos à acção de ácido, para os quais
língua. Esta projecção favorece a aproximação das atrai os iões cálcio e fosfato. Tem, por outro lado
carúnculas dos canais de Wharton, relativamente efeito de inibição da actividade bacteriana, mo-
às superfícies linguais, favorecendo a depuração e desta actividade inibitória sobre os polissacáridos
o tamponamento dos ácidos da placa bacteriana. da placa, diminuindo a respectiva adesão e inter-
As cáries dos comilões dizem respeito às cri- fere no metabolismo da enolase, comprometendo
anças alimentadas ao peito, com refeições muito a glicólise em condições de pH mais baixo.
frequentes, todas as que querem, e que, quase
invariavelmente, dormem com as mães. Flúor sistémico
Dado o menor comprimento do mamilo, relati- Mais de 275 milhões de pessoas consomem água
vamente à média das tetinas e a sua menor defor- fluoretada (3% da população mundial e 56% popu-
mação succional, os molares tendem a não ser lação do Estados Unidos da América). Na Europa,
atingidos, sendo as superfícies labiais superiores só a Irlanda optou por esta relevante medida de
dos incisivos menos destruídas. Saúde Pública, tal como algumas cidades na
As lesões são patognomónicas. Constam da Europa (Sevilha – Espanha, Basileia – Suíça).
CAPÍTULO 261 Cárie dentária 1273

Numerosos estudos demonstram que a pre- Caries in Children, a seguinte recomendação: a


sença de flúor na água potável, à razão de 1 parte administração de suplemento de F em gotas ou
por milhão (1ppm) (ou 1 mg de flúor por 1 litro de comprimidos* só é recomendada (a partir dos 6
água pura), reduz em 50% a cárie dentária, na meses de idade) quando o teor de fluoretos na água
população pediátrica. Em Portugal Continental, de abastecimento público for inferior a 0,3 partes
os valores são em geral baixos, e as águas não por milhão (ppm) e:
estão sujeitas a fluorização artificial. • a criança (ou quem cuida da criança) não
A suplementação do leite com flúor, também escova os dentes com um dentífrico fluoretado
disponível, é uma alternativa de controlo mais duas vezes por dia; ou
complexa. O sal de mesa – fluoretado a 250 • a criança (ou quem cuida da criança) escova
mg/Kg – é utilizado na Suíça, na Hungria e em os dentes com um dentífrico fluoretado duas
França, bem como na Colômbia e no México. vezes por dia, mas verifica-se situação de alto
A utilização de medicamentos contendo fluore- risco de cárie dentária.
tos, na forma de gotas orais e comprimidos, foi até Os suplementos deverão ser: idealmente con-
há pouco recomendada pelos profissionais de saúde sumidos ao deitar.
(pediatras, médicos de família, clínicos gerais, Transcreve-se, do Programa atrás referido, um
médicos estomatologistas, médicos dentistas) dos 6 quadro orientador dos critérios de risco a ponderar
meses até aos 16 anos. A compreensão actual do (Quadro 1), sugerindo-se a consulta do Capítulo
mecanismo de acção dos fluoretos na prevenção da 51 – Quadro 9.
cárie dentária e a demonstração do risco de fluorose
relacionado com suprimento mais elevado de fluo- * À luz dos conhecimentos actuais, tendo em conta o papel efectivo do
F tópico, a administração de suplementos por via oral(gotas ou com-
reto em áreas geográficas com teor mais elevado em primidos) não deve ser considerada medida de 1ª linha. Por outro lado,
F na água de consumo legitimaram, de acordo com não existe consenso, quer quanto ao teor mínimo de F na água de con-
sumo que legitima a suplementação (< 0,3 ppm ou 0,3-0,6 ppm), quer
o Programa de Promoção de Saúde Oral/DGS e a quanto à dose padrão: 0,25 mg/dia, ou superior : 0,25-1 mg/dia. Aliás,
Canadian Consensus Conference on the Appropriate use no nosso País não há dados generalizados sobre o teor em F das águas
de consumo público, pelo que é sugerido que, em cada região, o clíni-
of Fluoride Supplements for the Prevention of Dental co obtenha informação rigorosa sobre o assunto junto das autarquias.

QUADRO 1 – Programa Nacional de Promoção da Saúde Oral

Factores de Risco Baixo Risco Alto Risco


Evidência clínica de doença Sem lesões de cárie. Lesões activas de cárie.
Nenhum dente perdido devido a cárie. Extracções devidas a cárie.
Poucas ou nenhumas obturações. Duas ou mais obturações.
Aparelho fixo de ortodôncia.
Análise dos hábitos alimentares Ingestão pouco frequente de alimentos Ingestão frequente de alimentos
açucarados. açucarados, em particular entre as
refeições.
Utilização de fluoretos Uso regular de dentífrico fluoretado. Não utilização regular de qualquer
dentífrico fluoretado.
Controlo da placa bacteriana Escovagem dos dentes duas ou mais Não escovagem dos dentes ou uma
vezes por dia. escovagem pouco eficaz.
Nível socioeconómico da família Médio ou alto. Baixo.
História clínica da criança Sem problemas de saúde. Portador de deficiência física ou mental.
Ausência de medicação crónica. Ingestão prolongada de medicamentos
cariogénicos.
Doenças crónicas.
Xerostomia (secura da boca por défice de
secreção salivar)
1274 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

Flúor tópico O Quadro 2 especifica as recomendações técni-


A auto-aplicação, através do recurso aos den- co - normativas relacionadas com escovagem, den-
tífricos fluoretados, justifica a redução da cárie tífrico e eventual suplemento de fluor. (PPSOCA)
nos países industrializados que não levaram a
cabo programas colectivos. Os compostos mais Fluorose
utilizados são os de NaF, MFP (Na2PO3) e SnF2. A fluorose clínica constitui o marcador biológico
A regulamentação europeia preconiza um da intoxicação crónica pelos fluoreto, patente na
limite máximo de 1,5 mg F/g de dentífrico, seja perturbação pré-eruptiva da formação do esmalte.
1500 ppm, considerando cosméticos os preparados Atinge aproximadamente 3,9% das crianças
com essas concentrações. Apesar da comercializa- francesas, dos 6 aos 15 anos; nos Estados Unidos
ção de pastas com concentrações diferentes, para da América atinge 20%: ~16% de forma muito
várias idades, 1000-1500 ppm parecem univer- ligeira, 4% de forma ligeira e apenas 0,3% de forma
salmente adequadas, desde a erupção do primeiro grave.
dente, se a quantidade utilizada nas duas esco- Trata-se duma hipoplasia do esmalte, histo-
vagens diárias não ultrapassar o tamanho da unha logicamente caracterizada por hipomineralização
do 5º dedo da criança. A partir dos 6 anos, pre- da subsuperfície, associada a hipermineralização
sume-se que a deglutição do dentrífico será per- da superfície, e hidrólise da matriz proteica.
feitamente esporádica, utilizando-se aproximada- O seu risco máximo decorre entre os 18 meses
mente 1 cm de dentífrico tendo em conta certa e os 3 anos de idade. É muito menos frequente na
uniformização do tamanho das bisnagas. dentição decídua que na definitiva.
No meio escolar prefere-se geralmente o recurso Fora das zonas endémicas, a sua forma de
aos bochechos com soluções fluoretadas, em geral apresentação mais frequente é a de muito discreta
com NaF a 0,05% para uso diário ou, ainda mais alteração estética do esmalte, por pequenas man-
simples, a 0,2% para uso semanal ou quinzenal. chas ou linhas brancas, opacas, semelhantes à fase
O recurso às pastilhas-elásticas fluoretadas inicial, dita em mancha, da cárie dentária. Os
parece especialmente útil em situações de hipossialia defeitos estruturais, contudo, podem ser mais
(débito inferior a 0,7ml/min), pois a mastigação penalizantes.
aumenta o fluxo e, paralelamente, o pH salivar. Na dentição decídua, no entanto, pode ser
Existe uma grande variedade de compostos especialmente difícil distinguir à inspecção de-
para uso profissional (soluções aquosas, pastas, gel feitos estruturais resultantes da fluorose, de outros
ou vernizes) cuja indicação deve ser personalizada. com etiopatogénese diversa.

QUADRO 2 – Recomendações técnico-normativas do Programa de Promoção da Saúde Oral nas


Crianças e Adolescentes (PPSOCA)

Anos Frequência Material Realização Dentífrico Suplemento


da escovagem utilizado da escovagem fluoretado sistémico (fluoretos)
0-3 2/dia Gaze Pais 1000-1500 ppm Não recomendado
anos Uma antes de deitar Dedeira (tamanho da unha
Escova macia do 5º desdo)
3-6 2/dia Escova macia Pais e/ou Criança 1000-1500 ppm Não recomendado
anos Uma antes de deitar (tamanho da unha Excepção
do 5º desdo) alto risco de cárie
dentária: 0,25 mg diário
> de 2/dia Escova macia Criança e/ou Pais 1000-1500 ppm Não recomendado
6 anos Uma antes de deitar ou média (quantidade Excepção
aproximada de alto risco de cárie
1 centímetro) dentária: 0,25 mg diário
CAPÍTULO 261 Cárie dentária 1275

Advoga-se o não recurso a dentífricos de sabor muito úteis nas crianças e jovens com aparelhos
a guloseimas, para não estimular a criança ao seu de ortodôncia ou próteses.
consumo dissimulado. Outros métodos, paralelos e mais ou menos
Como regra de segurança, ao longo do período diferenciados, estão fora do âmbito deste livro que
de prevenção não deve ser ultrapassada a dose de não pretende relevar a importância do apoio
120 mg (total). profissionalizado. No que diz respeito às crianças
O risco de intoxicação aguda (doses > 5 com necessidades especiais, convida-se o leitor a
mg/Kg) deve, porém, fazer com que a inacessibi- consultar o Manual de Boas Práticas em Saúde
lidade das embalagens de dentífricos e afins obe- Oral, disponível no sítio electrónico da Direcção
deça às mesmas regras de segurança e protecção Geral da Saúde (www.dgsaude.pt).
dos medicamentos.
Selantes de fissuras
Escovagem Os sulcos e fissuras são elementos anatómicos im-
Compreende-se, assim, que o controlo da placa portantes dos molares e pré-molares, apesar de não
bacteriana passa pela higienização pós-alimentar serem exclusivos destes. Constituem zonas anfrac-
de todos os dentes, desde a sua erupção, a pro- tuosas, morfologicamente vulneráveis (defeitos de
mover desde os primeiros meses de vida com coalescência do esmalte) e de difícil acesso aos
compressa húmida ou dedeira espiculada, de bor- pêlos da escova (Figura 6).
racha ou pequena escova macia, idealmente já Se a fluorização reduziu a prevalência da cárie
com pequena porção de dentífrico fluoretado, das superfícies lisas dos dentes, não tem influen-
entre 1000 e 1500 ppm. ciado significativamente a respectiva incidência
A escovagem, que se deve executar desde o ao nível dos sulcos e fissuras.
aparecimento do primeiro dente, estabelece o atri- Os sulcos e fissuras representam apenas 12%
to que permite desalojar a placa bacteriana e os da superfície total do esmalte exposto, mas estão
seus ácidos, sendo especialmente útil após as na origem de 50% das situações de cárie em idade
refeições e ao deitar, dada a diminuição do efeito escolar, podendo representar até 80% das lesões
tampão e de depuração salivares, próprios da diagnosticáveis aos 12 anos.
hipossialia nocturna. A ausência de escovagem Sabe-se, no entanto, que a maioria das cáries de
nocturna é, pois, muito penalizante. fissura se inicia logo durante a fase de erupção dos
A maioria das pastas com fluoreto apresenta-se pré-molares, relativamente rápida (1-2 meses), em
com algum tipo de abrasivo, compatível com aque- comparação com a dos molares, que ronda 1 ano e
le; outros componentes químicos – como é o caso meio. Assim poderá haver já cárie com maior pro-
da clorexidina a 0,2%, um antisséptico de elevada babilidade após erupção completa dos molares Os
eficácia antiplaca bacteriana, e do triclosan– são de primeiros molares definitivos, sextos dentes ou
utilização menos generalizada em pediatria. dentes dos 6 anos são especialmente atingidos.
A escovagem, também relevante no controlo da
doença periodontal, deve decorrer na presença de
adulto e justificar o apuramento técnico, “mãos na
escova”, por parte deste, pelo menos até aos 6 anos
de idade ou quando houver condições de autonomia
a qual carece, ainda assim, de controlo esporádico.
O convite à escovagem simultânea, em família,
pode ser interessante, nalguns grupos ou circuns-
tâncias. Uma das escovagens diárias deve ser feita
FIG. 6
na escola, uma vez que na vida de muitas crianças
essa pode ser a única oportunidade de informação Sulcos e fissuras.
adequadamente veiculada e controlada.
Os hidropulsores, com um ou vários jactos, já * O termo selagem em estomatologia e ortopedia significa no sentido
genérico, “fixação de material”.
relativamente vulgarizados, são complementos
1276 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

262
Os sulcos e fissuras são eficazmente protegi-
dos pelos chamados selantes, se adequadamente
aplicados; o método que se resume constitui, ape-
nas, um exemplo*.
O esmalte é pré-tratado pelo ácido fosfórico a
37%, durante 20 segundos, sofrendo uma desmi-
neralização em superfície e lavado com água, a PRINCIPAIS SÍNDROMAS
seguir, durante aproximadamente 30 segundos.
Depois de seco, é-lhe aplicada uma resina tipo Bis- AVÉOLO-DENTÁRIAS
GMA que se projectará nas micro-retenções
induzidas pelo ataque ácido, mas que deverá Rosário Malheiro
estender-se um pouco em superfície, para pro-
tecção completa.
Os selantes são esteticamente excelentes ou
mesmo “invisíveis”, mas dependem muito – em Síndroma dentinária
efectividade – do rigor técnico da sua aplicação. O
isolamento da saliva é fundamental. O frio e os doces, actuando na dentina exposta,
Não está provada a sua utilidade nos sulcos (seja por cárie, seja por traumatismo), desen-
dos molares decíduos. cadeiam dor.
O esmalte é pré-tratado pelo ácido fosfórico a Assim, a chamada síndroma dentinária é
37%, durante 20 segundos, sofrendo uma desmi- definida pelo aparecimento de um quadro cons-
neralização em superfície e lavado com água, a tando de dor desencadeada pelo frio, doces/áci-
seguir, durante aproximadamente 30 segundos. dos e contacto (menos intensa pelo calor e masti-
Depois de seco, é-lhe aplicada uma resina tipo Bis- gação) cessando instantaneamente uma vez reti-
GMA que se projectará nas micro-retenções rado o estímulo e desaparecendo com a protecção
induzidas pelo ataque ácido, mas que deverá directa da dentina exposta, por material dentário.
estender-se um pouco em superfície, para pro- Na observação do doente, para comprovação
tecção completa. diagnóstica, estimula-se uma zona dentária sus-
Os selantes são esteticamente excelentes ou peita com o ar frio da seringa de ar e/ou com bola
mesmo “invisíveis”, mas dependem muito – em de algodão impregnada de cloreto de etilo.
efectividade – do rigor técnico da sua aplicação. O O espaço volumétrico, intratubular, vai dimi-
isolamento da saliva é fundamental. nuindo ao longo da vida, conforme vai aumentan-
Não está provada a sua utilidade nos sulcos do a espessura da dentina que constitui a própria
dos molares decíduos. parede tubular, até à sua obliteração completa.
De facto, logo após a erupção dentária, os odon-
toblastos deixam de elaborar a dentina primária,
estruturalmente ideal para ser elaborada dentina
secundária, em resposta aos estímulos. Sem capaci-
dade mitótica quando sofrem necrose por agressão,
são substituídos por odontoblast like cells, produzi-
das pelas células mesenquimatosas indiferencia-
das, mas produtoras de dentina atípica, atubular.
Este cariz atubular da dentina esclerótica ou
terciária do dente agredido, (ou também senil ou
senescente), permite compreender a subida do
limiar de estimulação dolorosa, ao longo da vida;
também ao longo da vida, pela deposição periféri-
ca da dentina secundária produzida, o espaço da
polpa se vai-se tornando cada vez mais reduzido.
CAPÍTULO 262 Principais síndromas avéolo-dentárias 1277

Síndroma pulpar Síndroma periodontal

À agressão da polpa, seja infecciosa, física ou Na cárie, a polpa está apenas sujeita a estímulos
química, sucedem-se as pulpites, processos infla- indirectos até sofrer invasão bacteriana. A partir
matórios diversos do tecido conjuntivo, os quais de então, o processo inflamatório torna-se pró-
apenas se distinguem pelas particularidades necrótico, estendendo-se à totalidade da mesma e,
anatómicas do dente e pela função trófica dos para além dela, através do foramen apical e acessó-
odontoblastos. rios, para o periodonto, mais propriamente para o
O grande sinal da pulpite aguda é a dor inter- espaço ligamentar periapical (peri-apex), já extra-
mitente que pode limitar-se à “consciência de um dentário.
dente”, mas que se revela tipicamente intensa, Na síndroma periodontal, a dor intermitente é
durando de segundos a horas, com início e fim substituída por dor contínua, aliviada pelo calor,
abruptos, e muitas vezes espontâneos. Manifesta- especialmente intensa à pressão e à percussão,
-se uma ou duas vezes por dia, com horário repeti- alongando-se muito para além do término do
do (ciclalgias), muitas vezes vespertino. Pode ter estímulo. Em situação extrema, mas não rara, o
localização óbvia, mas pode irradiar, no território contacto do dente com os seus oponentes pode ser
homolateral do trigémio, para dentes contíguos excruciante: o doente baba-se, na atitude de evitar
(agonistas ou antagonistas) e para áreas vizinhas, o encerramento da boca e recusa alimentar-se, na
de que são exemplo o nariz, olho, orelha, região expectativa de repetição de dor intensa; foge do
geniana e mento. contacto com qualquer instrumento que apoie o
Quando a pulpite decorre com exposição exame clínico, e protege a face.
dentinária simultânea, associa-se-lhe a síndroma A síndroma periodontal responde de forma
dentinária descrita. insuficiente aos análgésicos correntes.
A dor – desencadeada pelo frio e calor, doces e O Quadro 1 resume os aspectos relevantes da
ácidos – alonga-se para além da cessação dos estí- relação dor/estímulo que permite distinguir as
mulos, tipificando a síndroma pulpar. três síndromas descritas.
A síndroma pulpar revela satisfatória resposta Assim, um breve interrogatório permitirá dis-
aos análgésicos correntes (paracetamol, ibupro- tinguir a síndroma dentinária da síndroma pulpar
feno). Pode, quando intensa, fazer-se acompanhar e da síndroma periodontal, mesmo que seja relati-
de alterações cutâneas vasomotoras e secretórias, vamente frequente um estádio evolutivo misto,
ptialismo, lacrimejo e paralisia facial reflexa. pulpoperiodontal, resumindo as características
A pulpite crónica pode ser subclínica ou dos dois últimos.
mesmo assintomática. A estimulação pelo frio (ar frio, cloreto de
A partir de um determinado momento da evo- etilo), pelo calor (gutta-percha aquecida), e pela
lução, a pulpite torna-se irreversível, conduzindo percussão, clarificam as circunstâncias. Dados
inexoravelmente à necrose. São seus sinais clínicos radiológicos podem complementar e coadjuvar a
a dor espontânea e a dor à percussão, assinalando história clínica.
a junção e/ou passagem à síndroma periodontal. Sabe-se que, em circunstância de dor que se

QUADRO 1 – Relação dor/estímulo

Dor espontânea Estímulo


^
Intermitente Contínua F+ C+ Aç+Ác C m p P Cessa Não cessa
Síndroma dentinária + + + + ± ++
Síndroma pulpar + + + + + Ex ± ± ++
Síndroma periodontal + + + + + ++

^
Abreviaturas: F – frio • C- calor • Aç+Ác - acúcares e ácidos • C–contacto • m – mastigação • p – pressão • P – percussão
Cessa/ Não Cessa - cessa ou não cessa com a interrupção dos estímulos • EX – exposição pulpar
1278 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

263
tornou espontânea e/ou que passou a manifestar-
se ou a agravar-se à percussão, há evolução para
necrose, estando indicada remoção do tecido pul-
par ou dos seus restos necróticos – pulpectomia –
desbridamento canalar, por metodologia endo-
dôntica. São actos técnicos popularmente designa-
dos pelo amplo título de desvitalização, obvia- INFECÇÕES ODONTOGÉNICAS
mente da competência do estomatologista.
Da desvitalização resulta que o espaço inicial- Rosário Malheiro
mente ocupado pela polpa é substituído por mate-
riais que, idealmente deverão permanecer estan-
ques, impedindo qualquer vida microbiana intra-
dentária. Etiopatogénese e quadros clínicos
Se o tratamento endodôntico não for exequível,
só a extracção dentária será resolutiva. Entende-se por infecção odontogénica aquela que
Em suma, no que respeita à terapêutica, a provém de um dente ou dos tecidos que o envol-
actuação não é sobreponível, tratando-se de den- vem.
tição decídua ou de dentição definitiva. Nas alíneas seguintes são abordados os qua-
No capítulo seguinte (263) são descritos os dros clínicos mais frequentes englobados no con-
principais quadros clínicos infecciosos com ponto ceito atrás expresso, estabelecendo uma relação
de partida no complexo dentinopulpar. integrada entre a etiopatogénese e sintomatologia.

Periodontite aguda e abcesso


A periodontite aguda, ou infeção aguda dos teci-
dos peridentários tende a estender-se a partir do
apex e culminar no abcesso alveolar agudo. À sen-
sação de (“o meu dente cresceu”) pode associar-se
mobilidade relativa e dor lancinante e pulsátil.
O abcesso alveolar agudo pode drenar pelo
estabelecimento de fístula. A supuração pode
seguir o caminho de menor resistência – o espaço
ligamentar – esvaziando-se por pequeno orifício,
no sulco gengival; é a fístula periodontal, mais fre-
quente na mandíbula. (Figura 1A).
Pode, em contrapartida, a partir do osso es-
ponjoso, perfurar a cortical, drenando ainda para

A B

Fístula periodontal Fístula gengival

FIG. 1
Evolução da periodontite.
CAPÍTULO 263 Infecções odontogénicas 1279

o sulco, mas poupando a zona periodontal; é a fís- já uma forma de compromisso da medular, isto é,
tula gengival. (Figura 1B) representa uma forma localizada de osteomielite;
O abcesso alveolar agudo pode, assim, surgir a sua extensão significativa – em superfície e vo-
na evolução natural da periodontite aguda. lume – pode originar osteomielite supurada.
Mas é mais frequente o referido abcesso enxer- Trata-se dum quadro de maior morbilidade
tar-se numa inflamação ou infecção crónica, (granu- que implica necessidade de vigilância rigorosa e
loma periapical), do seguinte modo: pulpite in- medidas adiante discriminadas.
duzindo periodontite (inflamação ligamentar)
seguida de necrose do osso alveolar e colonização Celulite
por microrganismos. As celulites odontogénicas decorrem habitual-
Salienta-se que a infecção de um dente decí- mente com alterações significativas da função
duo poderá comprometer o desenvolvimento do fagocitária e deficiência da imunidade celular e
dente definitivo sucessor. humoral.
Por outro lado, há que admitir a possibilidade O quadro de celulite resulta da disseminação
(rara) de sépsis. da infecção odontogénica estendendo-se, directa
ou indirectamente, ao tecido célulo-adiposo maxi-
Granuloma e quisto periapicais lofacial e/ou cervicofacial.
O chamado granuloma periapical corresponde a um A sua flora é, porém, sobreponível à que carac-
foco de tecido de granulação circundado por uma teriza outras infecções odontogénicas de menor rele-
cápsula de tecido conjuntivo fibroso; é constituído vo, como o abcesso alveolar agudo. É geralmente
por fibroblastos e células inflamatórias, sobretudo mista, predominando a associação de Streptococcus
macrófagos, linfócitos e plasmócitos. A maioria dos (viridans, milleri, sanguis), com Prevotella, Peptostrepto-
linfócitos é do tipo T admitindo-se que estes tenham coccus e fusobactérias. O seu reconhecimento através
papel na produção do factor activador dos osteo- de exame cultural é fundamental.
clastos, os quais são responsáveis pela reabsorção, A celulite odontogénica mais frequente, no
quer óssea, quer radicular que se lhes associa. entanto, não se desenvolve segundo o modelo que
É a mais frequente sequela das pulpites e assi- tem vindo a ser descrito, isto é, a partir da necrose
nala uma competente barreira imunológica; pelo pulpar, por cárie. Efectivamente ela deriva da
seu desenvolvimento - tantas vezes subclínico - infecção tecidual pericoroa dentária (pericorona-
pode constituir um mero achado radiológico, rite) ao nível da mucosa do bordo alveolar, e
quando já possui volume bastante. Tende a apre- atinge, sobretudo, os molares inferiores. Na sua
sentar, então, como sinal, uma hipertransparência evolução típica há difusão da lesão endo-óssea
periapical óbvia, redonda ou ovalada, apensa à para a submucosa, variando as manifestações
extremidade de uma raiz, de limites bem defi- clínicas em função dos limites anatómicos das
nidos, ou mesmo limitada por linha osteoscleróti- locas e espaços das fascias, assim como da relação
ca (marcadora de lento crescimento). das raízes dos dentes, quer com as tábuas
Apresenta semelhanças evidentes com o quisto mandibulares, (dentes inferiores), quer com o
periodontal apical; o quisto, porém, por definição, maxilar superior. Seguidamente são exemplifi-
tem parede com revestimento epitelial e conteúdo cadas diversas vias de difusão.
líquido. Ambos assinalam a necrose pulpar. Os incisivos, caninos e primeiros pré-molares
(e molares decíduos) tenderão a exteriorizar as
Osteomielite suas infecções para a superfície vestibular; os
O processo séptico – quer se trate de circunstância segundos pré-molares e os primeiros molares de-
aguda ab initio, quer se trate de agudização de lesão finitivos exteriorizarão, indiferente ou simultane-
crónica – na maioria das vezes decorre sem grande amente, para as superfícies vestibular e lingual; os
compromisso sistémico, apesar de se lhe poder segundos molares definitivos e os terceiros mo-
associar síndroma febril e linfadenopatia regional. lares (sisos) “preferirão” a tábua interna.
Tendo em conta que as raízes dentárias são Em contrapartida, no plano vertical, a drena-
intra-ósseas, o abcesso alveolar agudo representa gem será sobretudo supra-milo-hioideia, até ao
1280 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

quinto dente; o sexto constitui um dente de tran-


sição, podendo o seu apex encontrar-se acima ou
abaixo da inserção do músculo, mas o apex do
sétimo e o do oitavo dentes são, em geral, infra-
milo-hiodeus. De referir que difusão pode aparen-
tar grandes variações. (Figura 2)
Celulite Celulite Celulite
Se forem consideradas as características e a
geniana baixa sublingual submandibular
topografia dos sextos dentes inferiores, aqui toma-
dos como modelo de raciocínio, facilmente se com-
FIG. 3
preende que eles podem originar, quer a tradi-
cional celulite geniana baixa, quer uma celulite Tipos de celulite a partir de dentes do maxilar inferior.
sublingual, quer uma celulite submandibular, quer
ainda uma associação destas. (Figuras 3 e 3A)
Na celulite geniana baixa, a assimetria facial
será óbvia pela tumefacção geniana, que pode
estender-se até à região submandibular; a pal-
pação bimanual, endo/exoral, reconhecerá a
deformação do vestíbulo, (espaço entre as arcadas
dentárias e os lábios e bochechas) parcialmente
ocupado, por oposição ao pavimento bucal e à
tábua interna, incólumes.
Na celulite sublingual ou supra-milo-hioideia,
a língua é empurrada para o lado oposto, pela
FIG. 3A
tumefacção da área da tábua interna e poderá
parecer “não caber na boca”; a glândula sublin- Celulite submandibular.
gual pode estar envolvida, e a fala e a deglutição
comprometidas. dentes superiores – também excelentes modelos –
Na celulite submandibular ou infra-milo- são diferentes, mas verificam-se as mesmas
hioideia, a palpação bimanual revela que a tume- condições de drenagem, com colecção aquém ou
facção se liga, quer ao bordo basilar, quer à tábua além bucinador ou, simplesmente, subperióstica
interna, se acessível, pois que o trismo pode ser a (celulites geniana alta, vestibular e abcesso palati-
característica mais limitante. A tendência será de no). (Figuras 4 e 4A)
precoce fistulização à pele. (Figura 3) Em qualquer das variedades anatomoclínicas,
As circunstâncias topográficas dos sextos porém, o período de estado poderá implicar –
para além da tumefacção e de possível lin-
fadenopatia regional – alterações do estado geral,
com febre e prostração, ou dificuldade alimentar,
bem como adinamia e desidratação.
Temperatura axilar superior a 38 ºC, leucoci-
tose, proteína C reactiva elevada, trismo, dificul-
dade respiratória, compromisso sub-milo-hioideu,
ou cervical, ou orbitário, constituem factores de
alerta para a indicação de internamento. Antibio-
Difusão supra ticoterapia prévia sem resposta satisfatória, ou
Difusão vestíbulo-lingual
infra-milo-hioideia
recidiva, constituem indicações absolutas de inter-
namento.
FIG. 2
A importância da disseminação dos agentes
Relação das raízes dos dentes inferiores com as tábuas infecciosos pode impor a urgência de TAC, esclare-
mandibulares: influência na evolução da celulite. cendo a eventual difusão para o espaço dos masti-
CAPÍTULO 263 Infecções odontogénicas 1281

(microflora da cavidade bucal e Streptococcus viri-


dans) os antibióticos de primeira linha são a amo-
xicilina (associada ou não ao clavulanato); como
alternativa poderão ser utilizados macrólidos
(eritromicina, claritromicina ou azitromicina).
A duração do tratamento é 7 a 10 dias (3 a 5
Celulite Celulite Abcesso
dias para a azitromicina).
geniana alta vestibular palatino
Salientando-se o apoio indispensável do esto-
matologista, poderão estar indicadas incisão e dre-
FIG. 4
nagem.
Tipos de celulite a partir de dentes do maxilar superior.
Celulite
1 3 Sendo implicados mais provavelmente Hemophilus
influenzae do tipo B (mais raro nos vacinados anti-
Hib), Staphylococcus aureus e Streptococcus pyogenes,
a primeira escolha deverá ser: cefuroxima ou amo-
xicilina/clavulanato; como alternativa: cefalospori-
na de terceira geração. Se for identificado o agente,
2 deverá utilizar-se penicilina para S. pyogenes; ou
flucloxacilina para S. aureus. Como alternativas po-
dem ser utilizados: cefalosporina de 1ª geração; ou
clindamicina para os casos de S. aureus ou S. pyo-
genes; ou cefalosporina de 3ª geração para os casos
de H. influenzae.
FIG. 4A
A duração do tratamento (eventualmente em
Infecções odontogénicas do maxilar superior. regime de internamento hospitalar) é 7-10 dias.
1 – Abcesso vestibular; 2 – Celulite vestibular;
3 – Celulite geniana alta Osteomielite
Em lactentes e crianças até aos 5 anos de idade os
gadores, espaço parafaríngeo e espaço retrofarín- agente patogénicos são, em geral sobreponíveis
geo, locas parotídea, submandibular e sublingual. aos da celulite.
Após os cinco anos praticamente estão geral-
Evolução mente implicados os Gram-positivos. De um
modo geral poderão ser utilizados os critérios
É sobejamente conhecida a possível evolução des- referidos para a celulite.
favorável das infecções odontogénicas que podem
disseminar-se fascia a fascia, espaço a espaço, GLOSSÁRIO
acarretando risco de vida. São, exemplos a fascite Apinhamento > Má-posição dentária provocada pela falta de espaço
necrosante cervical, com ou sem mediastinite para acomodação dos dentes nas arcadas ósseas (desalinhados e
subsequente, a trombose do seio cavernoso, e o “amontoados”).
abcesso cerebral. Arcada > Conjunto formado pela estrutura das(s) dentição (ões) natu-
ral (ais) e do bordo ósseo alveolar. É o arranjo em forma de “u” dos
Tratamento antimicrobiano dentes superiores e inferiores.
Avulsão > Acção de extracção ou arrancamento.
Descreve-se, a seguir a actuação prática empírica Bloco incisivo superior ou inferior > Conjunto dos incisivos centrais e
em três situações – tipo. incisivos laterais da arcada superior ou inferior.
Bordo Incisal > Bordo cortante, existente na extremidade da coroa dos
Periodontite aguda e abcesso alveolar agudo dentes anteriores.
Tendo em consideração a etiologia mais provável Cúspide > Elevação piramidal da superfície oclusal ou mastigatória dos
1282 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA

molares e pré-molares. Saliência, ponta ou convexidade BIBLIOGRAFIA (Parte XXVII)


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WHO. Guidelines for drinking-water quality conference
(Berlin, 2007). Geneva: WHO, 2007
2ª Edição

VERSÃO ACTUALIZADA

Tratado de Clínica Pediátrica


João M. Videira Amaral
Esta obra, de cariz prático, pretende apresentar de forma concisa dados actuais sobre
tópicos fundamentais da clínica pediátrica de complexidade variável, quer no âmbito
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cada capítulo ou parte, contribuirá para esclarecimento complementar do leitor inter-
essado.

O coordenador-editor espera que o conteúdo, escrito em espírito de missão por todos


os autores, seja útil aos leitores, quer no âmbito da formação pré/pós-graduada e
contínua, quer no âmbito do desempenho profissional. O objectivo último é contribuir
para a saúde e bem-estar da criança e adolescente, e da comunidade em geral. João M. Videira Amaral
VERSÃO ACTUALIZADA
João M. Videira Amaral
O coordenador-editor (João M. Videira Amaral) é médico-pediatra e professor catedrático jubilado da
Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa. Até Outubro de 2007 foi director da
Clínica Universitária de Pediatria no Hospital de Dona Estefânia, Lisboa e regente das disciplinas de
Pediatria e de Clínica Pediátrica da mesma Universidade. É autor ou co-autor de cerca de 260 artigos em
revistas científicas e em livros de texto, sobretudo na área da Pediatria Neonatal e da Educação Médica.
Foi Presidente da Sociedade Portuguesa de Pediatria (1989-92) e actualmente é Director da Acta
Pediátrica Portuguesa, revista científica da referida Sociedade.

Volume 1
Com o apoio de: Abbott Laboratórios, Lda.
2ª Edição

Volume
1

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