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VERSÃO ACTUALIZADA
Volume 2
Com o apoio de: Abbott Laboratórios, Lda.
2ª Edição
Volume
TRATADO
DE CLÍNICA
PEDIÁTRICA
Tratado de Clínica Pediátrica
IIº Volume
2ª Edição
VERSÃO ACTUALIZADA
Produção Gráfica
IDG – Imagem Digital Gráfica
Exemplares
5 000 ex.
2ª Edição não comercial em DVD, apoiada e distribuída por ABBOTT Laboratórios, 2013
Depósito Legal
280864/08
ISBN
978-989-96091-3-6
ADVERTÊNCIA
1. Não é permitida a reprodução total ou parcial desta edição por meio electrónico, mecânico, fotocópia ou outros sem
prévia autorização escrita dos autores e editor.
2. Sendo a Medicina uma área do conhecimento em constante e rápida evolução, nomeadamente no que respeita a fár-
macos, e embora tenha sido feito todo o esforço por parte de editor e autores quanto ao rigor no registo das respectivas
doses e formas de apresentação, salientamos que a responsabilidade final da prescrição é do médico que a institui.
3. Sendo consensual que na prática clínica existem diferentes modos de actuação, nem os autores, nem o editor poderão
ser responsabilizados por erros ou pelas consequências que advenham de informação aqui contida. Os produtos
mencionados no livro devem ser utilizados conforme a informação veiculada pelos fabricantes.
Autores (por ordenação de capítulos) – II Volume
142 Anemias hemolíticas por defeitos 163 Alterações tubulares renais . . . . . . . . . . . 778
enzimáticos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 679 Isabel Castro
Liza Aguiar, Faisana Amod e Lígia Braga 164 Infecção urinária . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 785
143 Anemias hemolíticas por defeitos Arlete Neto
da hemoglobina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 684 165 Anomalias congénitas do rim . . . . . . . . . 795
Lígia Braga, João M. Videira Amaral João M. Videira Amaral
144 Hemoglobinúria paroxística nocturna . . . 700 166 Refluxo vésico-ureteral . . . . . . . . . . . . . . . 797
João M. Videira Amaral Rui Alves
145 Anemias hemolíticas de causa 167 Uropatia obstrutiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . 801
extrínseca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 701 Rui Alves
João M. Videira Amaral 168 Diagnóstico pré-natal das uropatias
146 Policitémia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 704 malformativas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 807
João M. Videira Amaral João M. Videira Amaral
147 Neutropénia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 705 169 Insuficiência renal aguda . . . . . . . . . . . . . 809
Ema Leal e A. Bessa Almeida Isabel Castro
148 Trombocitopénia e trombocitose . . . . . 711 170 Insuficiência renal crónica . . . . . . . . . . . . 812
Júlia Galhardo e A. Bessa Almeida Isabel Castro
149 Anomalias funcionais das plaquetas . . . 717 171 Alterações da bexiga . . . . . . . . . . . . . . . . . 815
João M. Videira Amaral Rui Alves
150 Aplasia medular . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 718 172 Alterações do pénis e uretra . . . . . . . . . . . 818
João M. Videira Amaral Rui Alves
151 Hemofilias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 722 173 Alterações do conteúdo escrotal . . . . . . . 823
Andreia Teixeira e A. Bessa Almeida Rui Alves e João M. Videira Amaral
152 Doença de von Willebrand . . . . . . . . . . . 729
João M. Videira Amaral PARTE XX Endocrinologia 829
153 Hipercoagulabilidade 174 Doenças da supra-renal.
e doença trombótica . . . . . . . . . . . . . . . . . . 731 Generalidades . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 830
João M. Videira Amaral Maria de Lurdes Lopes
154 Coagulação intravascular 175 Hiperplasia congénita da supra-renal . . . . 832
disseminada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 734 Maria de Lurdes Lopes
Deolinda Barata e Sofia Sarafana 176 Insuficiência supra-renal . . . . . . . . . . . . . 837
155 Terapêutica transfusional . . . . . . . . . . . . . 742 Maria de Lurdes Lopes
Deonilde Espírito Santo 177 Síndroma de Cushing . . . . . . . . . . . . . . . . 842
Maria de Lurdes Lopes
PARTE XIX Nefro-Urologia 753 178 Tumores do córtex supra-renal . . . . . . . . 845
156 Introdução à Nefro-Urologia . . . . . . . . . . 754 Maria de Lurdes Lopes
Judite Batista 179 Feocromocitoma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 847
157 Glomerulonefrite aguda . . . . . . . . . . . . . . 755 João M. Videira Amaral
Ana Paula Serrão e Gisela Neto 180 Doenças da tiroideia . . . . . . . . . . . . . . . . . 849
158 Glomerulonefrite crónica . . . . . . . . . . . . . 758 Catarina Limbert
Ana Paula Serrão e Gisela Neto 181 Puberdade normal e patológica . . . . . . . 860
159 Síndroma nefrótica idiopática . . . . . . . . . 764 Guilhermina Romão
Judite Batista 182 Diabetes mellitus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 866
160 Síndroma hemolítica urémica . . . . . . . . . 769 Rosa Pina
Ana Paula Serrão 183 Cetoacidose diabética . . . . . . . . . . . . . . . . 880
161 Trombose da veia renal . . . . . . . . . . . . . . . 771 João Estrada e Maria do Carmo Vale
João M. Videira Amaral 184 Hipoglicémia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 885
162 Hipertensão arterial e doença renal . . . . 772 João M. Videira Amaral
Margarida Abranches
XIV TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Anexos 2085
Como referi no Prefácio da 1ª edição desta obra, divulgada em 2008, há muito que se
sentia em Portugal a falta de um tratado dedicado à prática clínica pediátrica.
Felizmente, o Prof. João Videira Amaral chamou a si esta hercúlea tarefa e, volvidos
quatro anos, surge a segunda edição do Tratado de Clínica Pediátrica, também em três
volumes, na versão de DVD. Como se poderá verificar pelo índice, este Tratado toca
todos os pontos da Pediatria.
Para colaborar na sua edição, o Prof. João Videira Amaral convidou alguns dos
maiores nomes da Medicina de Portugal, Espanha e Brasil; a maioria dos autores integra
colegas seus colaboradores, dado que, com o decorrer dos anos, o mesmo formou uma
esplêndida equipa.
Este tratado deve ser dedicado, não só aos alunos e aos internos de Pediatria, mas
também aos médicos de Clínica Geral, já que na grande maioria dos centros as crianças
são observadas por Médicos de Família. Também deve ser enviado para os diversos
países de língua portuguesa, especialmente Cabo Verde, Angola, Moçambique e Brasil.
Afirmei anteriormente que coordenar uma obra desta envergadura constitui um tra-
balho hercúleo. Mas, conhecendo as qualidades do Prof. João Videira Amaral, a sua per-
sistência, o seu perfeccionismo, a sua honestidade e o seu saber, acho que foi a pessoa
indicada. Além deste imenso trabalho de coordenação, o mesmo ainda intervém como
autor na publicação de numerosos capítulos do livro.
Como um dos decanos da Pediatria portuguesa, julgo que em seu nome posso
agradecer ao coordenador-editor João Videira Amaral o seu esforço. Mas quem está ver-
dadeiramente de parabéns são as crianças do nosso País. Muito e muito obrigado.
O presente livro sempre figurou na lista dos meus projectos, essencialmente por duas
ordens de razões: – a necessidade de um livro de texto, manifestada por estudantes meus
alunos e estagiários da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa
/UNL, por internos de Pediatria e de Medicina Geral e Familiar realizando estágios no
Hospital de Dona Estefânia em Lisboa, onde sempre trabalhei, e por colegas; – e o enten-
dimento da missão do professor universitário como agente disponível e facilitador de
informação científica com vista ao ensino – aprendizagem, considerando como valor incal-
culável a experiência vivida de Colaboradores e de Colegas Docentes de diversas institui-
ções com quem mais convive ou a quem esteja mais ligado.
Da abrangência com que, intencionalmente, este livro foi concebido (agora em segun-
da edição revista, actualizada e ampliada), resultou o título. O mesmo está dividido em
3 Volumes, desdobrados em grandes tópicos ou Partes, integrando na totalidade 376
Capítulos. Manteve-se nesta edição a filosofia de apresentar os tópicos fundamentais da
clínica pediátrica hospitalar e extra-hospitalar, de complexidade e frequência diversos,
de forma simples e de modo prático (clássico), estruturando-os, por razões didácticas,
em alíneas tais como, definições, importância do problema, aspectos epidemiológicos,
etiopatogénese, manifestações clínicas, diagnóstico, tratamento, prevenção e prognósti-
co.
Dado que a Medicina não é considerada uma ciência exacta, a controvérsia subsistirá
nalguns pontos e a dúvida poderá surgir noutros, pois existem variantes quanto a ati-
tudes e procedimentos. Contudo, a bibliografia seleccionada que encerra cada Capítulo
ou Parte do livro contribuirá para que o leitor interessado forme a sua opinião.
De salientar que para tornar o texto mais compreensivo tentando evitar, quer repeti-
ções, quer omissões, o editor, simultaneamente coordenador e autor ou co-autor, esfor-
çou-se por uniformizar o estilo linguístico. Sobre o assunto polémico do Novo Acordo
Ortográfico, na sequência de pareceres de filólogos de renome que consultei, a opção foi
não o adoptar.
Considerando este livro aberto à crítica e à apreciação por parte dos seus leitores,
espero vivamente que o espírito de missão com que todos os Autores o materializaram
contribua para a saúde e bem-estar da criança, adolescente, e da comunidade em geral,
e se traduza em instrumento de utilidade para os principais destinatários: alunos e esta-
giários universitários, internos de Pediatria e de Medicina Geral e Familiar, Pediatras,
Médicos de Família, e Profissionais ligados às Ciências da Saúde.
DEDICATÓRIA E MEMÓRIA
Dedico este livro a todas as Crianças e Jovens de Portugal que são o nosso futuro.
Considero incluídos os meus onze netos, todos em idade pediátrica: Lourenço, Constança,
Gonçalo, Francisco, Mafalda, Carlota, Sebastião, João Manuel, Madalena, Carolina e Leonor.
E à minha Família, especialmente à minha Mulher, Zana, a quem roubei as horas de conví-
vio devotadas ao livro.
Na minha memória tenho o exemplo do meu Pai (João José de Amaral) que era médico no
Fundão e nos deixou prematuramente; com ele muito aprendi, incutindo-me desde a minha
entrada na Universidade, o gosto pela clínica exercida com rigor e humanismo tendo como base
indispensável o estudo perseverante e a actualização permanente.
Agradecimentos
Ao Professor Doutor Nuno Cordeiro Ferreira, meu Mestre, que me honrou com o
Prefácio desta obra.
Aos Colegas e Amigos (citados por ordem alfabética do primeiro nome) pelo con-
tributo inestimável em ideias, sugestões e críticas desde o início:
À memória da Drª Maria de Jesus Feijoó que desde o início aderiu com dedicação
inexcedível a este projecto e nos deixou recentemente. O testemunho de muita mágoa e
de enorme gratidão.
Aos Drs. Lídia Gama e João Falcão Estrada, Amigos e Colegas responsáveis pelo
Núcleo Iconográfico do Hospital de Dona Estefânia, pelo trabalho minucioso e dedica-
do de selecção de imagens solicitadas, e identificadas pela sigla NIHDE. Toda a docu-
mentação fotográfica não identificada como tal é pertença e fruto da experiência de
autores, editor ou colegas devidamente assinalados que gentilmente colaboraram.
Ao Colega e Amigo Dr. Aguinaldo Cabral, pediatra de prestígio e especialista no
campo das doenças metabólicas, o testemunho de enorme reconhecimento pela orien-
tação temática e revisão dos manuscritos que integram a Parte XXXII.
Ao Dr. Francico George, Director Geral da Saúde, e à Nestlé Nutrition, por terem
autorizado a reprodução de tabelas e quadros.
Ao Dr. Marcos Gil da Veiga, pelo apoio inestimável que me propiciou no âmbito da
revisão das provas tipográficas.
À IDG – Imagem Digital Gráfica na pessoa do Sr. Carlos Didelet, seu Director, pelo
eficiente trabalho de tipografia com a colaboração empenhada dos Srs. Bruno Ribeiro e
Pedro Alves.
Glossário Geral
Na eventualidade de o texto, figuras ou quadros consultados conterem expressões e termos não sufi-
cientemente explicitados, é divulgado este glossário para facilitar a compreensõo do leitor. Determinados
capítulos integram igualmente glossários parcelares relacionados com temáticas específicas.
Aborto > Expulsão ou extracção completa (espontânea ou provocada) Alimento > Substância que, introduzida no organismo, contribui para
do corpo da mãe de embrião ou feto (idade gestacional inferior a 20- a nutrição.
22 semanas ou 140-154 dias completos) com ou sem sinais de vida. Anteversão > Considerando o plano frontal anatómico, aumento de an-
Acrocefalia > Palavra derivada do grego significando “cabeça alta”; es- gulação da cabeça e colo femoral relativamente à articulação do joe-
pecificamente trata-se de anomalia congénita craniana resultante de lho.
“fusão” precoce das suturas sagital e coronal e englobando outras Apraxia > Incapacidade de executar movimentos voluntários coorde-
alterações como turricefalia, oxicefalia, entre outras. nados, apesar de se conservarem as funções musculares e sensoriais.
Acufeno > Sensação auditiva que não tem origem em som exterior; sinó- Artrodese > Bloqueio cirúrgico da articulação.
nimo de zumbido. Artrogripose > Termo descritivo, não diagnóstico, que inclui um grupo
Adolescente ou jovem > Pessoa entre 12 e 18 anos. de quadros clínicos específicos, todos eles com contracturas congé-
Afasia > Alteração ou perda da capacidade de falar ou de compreender nitas e fraqueza muscular, e antecedentes de diminuição dos movi-
a linguagem falada ou escrita, o que é explicável por lesão cerebral, mentos fetais. Na maioria dos casos (> 300 factores etiológicos des-
sem alteração dos órgãos de fonação. critos, por ex distrofia miotónica, má-posição intrauterina, etc.) exis-
Afasia visual > O mesmo que alexia. te amioplasia, salientando-se a variabilidade das manifestações clí-
Agentes biológicos > Produtos desenvolvidos por via tecnológica, com nicas. Na forma neuropática existe défice do desenvolvimento das
indicações precisas em doenças mediadas por imunidade. São consi- células do corno anterior medular levando a hipodesenvolvimento
derados 4 tipos: anticitocinas (por ex. infliximab e etanercept); anti- muscular. As articulações das extremidades evidenciam hipomobi-
células B (rituximab, epratuzumab); inibidores da co-estimulação lidade pela fraqueza muscular e fibrose articular. A forma clássica,
(abatacept); e antimoléculas de adesão (natalizumab, efalizumab). típica, não é geneticamente transmitida e a função cognitiva está pre-
Agnosia > Impossibilidade de reconhecer objectos através das suas ca- servada.
racterísticas: forma, cor, peso, temperatura, etc., apesar de as funções Artroplastia > Reconstrução cirúrgica de determinada articulação.
sensoriais elementares (visão, olfacto, gosto, audição, sensibilidade Artrotomia > Incisão cirúrgica para abordagem directa de determina-
superficial ou profunda) estarem intactas. da articulação.
Agrafia > Incapacidade de escrever por afecção dos centros nervosos da Barreira, produtos > Tópicos cutâneos que previnem a penetração
escrita. É uma forma de apraxia. transcutânea e ou absorção de substâncias químicas potencialmen-
Água de limpeza > Produto em geral fabricado com água termal in- te irritantes, sensibilizantes ou tóxicas através da pele.
corporando detergentes, humidificantes e amaciadores, aplicados Bebé ou lactente > Criança até 1 ano de idade.
em algodão para remover loções de limpeza ou zona de fraldas. Bezoar > Termo derivado da língua árabe “bazahr” (significando, se-
Alexia > Defeito de compreensão da escrita devido a lesão cerebral sem gundo a tradição e crenças ancestrais contra – veneno ou antídoto),
qualquer afecção da acuidade visual. no sentido lato significa concreções calculosas ou “massas” de di-
Alfa 1-antitripsina (A1-AT) > É o principal inibidor sérico de enzimas versas substâncias nas vias digestivas de humanos ou certos ani-
proteolíticas tais como a elastase dos neutrófilos. O seu défice consti- mais. Na gíria médica significa diversidade de substâncias ou cor-
tui causa importante de doença hepática na idade pediátrica. Os pos estranhos amalgamados no tubo digestivo susceptíveis de ori-
doentes com deficiência na forma homozigótica (fenótipo ZZ inibi- ginarem obstrução do tubo digestivo (por ex. cabelos ingeridos).
dor, ou PiZZ) têm baixa actividade sérica de A1-AT, ~10-15% dos va- Biofilme > Termo usado em microbiologia para significar agregados de
lores normais. Raramente poderá originar, na sua forma homozigó- diferentes tipos de microrganismos (bactérias, protozoários, fungos,
tica doença pulmonar crónica, com relevância para o enfisema. microalgas, etc.) que se ligam a superfícies sólidas ou uns aos outros,
Alfa-fetoproteína (AFP) ou fetuína > Glicoproteína segregada pelo fí- estabelecendo interacções metabólicas, mantendo-se encerrados nu-
gado do feto e RN, presente também no líquido amniótico e que de- ma matriz polisacarídica e formando emaranhado de fibras ou del-
saparece quase completamente do organismo alguns meses depois gados invólucros. Tal fenómeno, que é descrito no âmbito da etio-
do nascimento. Pode reaparecer em certos casos de cancro e hepa- patogénese das otites médias com derrame, torna os agentes micro-
topatia. bianos mais resistentes aos antimicrobianos.
Alimentação > Acção de introdução de alimento no organismo. BNP > ver Péptidos natriuréticos.
XXVIII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Calcaneus > Posição de dorsiflexão do retro-pé. Disartria > Dificuldade da fala por perturbações motoras dos órgãos da
Camptodactilia > Anomalia que consiste em flexão permanente e irre- fonação: língua, lábios, véu do paladar, etc., associada a afecções bul-
dutível de um ou mais dedos. bares e cerebelosas.
Cavo (ou cavus) > Arcada plantar longitudinal do pé alta (muito afasta- Dislexia > Perturbação da capacidade de leitura que se traduz por er-
da do plano horizontal), geralmente com ante-pé plantar em flexão. ros, omissões, inversão de letras, de sílabas, ou de números, nas
Cegueira verbal > O mesmo que alexia. crianças em idade de aprender a ler, pressupondo ausência doutro
Cintigrafia (ou cintilografia ou gamagrafia) > Procedimento em que tipo de problema susceptível de explicar tal situação (visão, audi-
se injecta por via IV um produto radioactivo com afinidade selecti- ção, capacidades intelectuais normais).
va para determinado órgão o qual passará a emitir radiação gama Dispraxia > Dificuldade em executar movimentos voluntários coorde-
identificada por sistema detector/cintilador. A imagem pontilhada nados (movimentos “desajeitados”), associados a atraso psicoafec-
esquemática do órgão designa-se cintigrama, podendo detectar-se, tivo. Não existe relação com parésia ou ataxia.
por ex. nódulos, zonas necróticas, etc. No caso do rim pode empre- Doença de Kikuchi-Fujimoto > Afecção de causa desconhecida, consi-
gar-se como radionúclido (radiofármaco) o ácido dimercaptosuccí- derada benigna e auto-limitada (evolução entre 1-4 meses) cujas ca-
nico-Tc 99 (DMSA). racterísticas principais incluem febre e linfadenopatia cervical dolo-
Clinodactilia > Deformação em valgo do 5º dedo, por vezes hereditária rosa, salientando-se que a linfadenopatia pode ser generalizada; po-
e bilateral. de haver hepatosplenomegália. Os dados histopatológicos ganglio-
Comedão > Também designado por ponto negro, traduz a obliteração do nares evidenciam aspecto compatível com linfadenite necrotizante:
orifício excretor de um folículo pilossebáceo por uma espécie de rolhão, imunoblastos, monócitos plasmocitóides, pequenos linfócitos cir-
acastanhado a negro, constituído por aglomerado de células córneas e cundando áreas de necrose fibrinóide e ausência de granulócitos; ob-
sebo. A cor escura é devida à melanina presente. Pode ser aberto ou fe- servam-se igualmente filamentos extracelulares relacionados com
chado conforme existe ou não a permeação do canal infundibular. apoptose. O diagnóstico diferencial faz-se com doenças linfoproli-
Comensalismo > Este tipo de simbiose implica uma proximidade espa- ferativas, linfomas Hodgkin e não Hodgkin, doença de Kawasaki,
cial, permitindo que o comensal se alimente de nutrientes ingeridos infecções por vírus, bactérias ou protozoários (por ex. VEB, CMV,
pelo hospedeiro. Os dois intervenientes podem sobreviver inde- HSV, Yersinia, Bartonella, Toxoplasma, etc.) e doenças autoimunes.
pendentemente. Têm sido descritos casos tratados com êxito com hidroxicloroquina
Contractura congénita > Limitação do movimento de determinada área isoladamente, ou com AINE, ou ainda com corticóides.
do corpo por anomalia músculo-esquelética. Podem ser isoladas ou Doença de Lafora > Forma de epilepsia mioclónica progressiva acom-
múltiplas; o pé boto é um exemplo de contractura isolada, uni ou bi- panhada de demência e relacionada com mutações genéticas rela-
lateral. cionadas com laforina (EPM2A) e malina (EPM2B). Pode haver fo-
Creme > Forma de emulsão O/A (ver adiante) mais fluida, menos oleo- to- sensibilidade. Inicia-se na segunda infância ou, mais frequente-
sa e menos oclusiva. mente, na adolescência. Através da biopsia muscular ou da pele po-
Creme gordo > Forma de emulsão A/O mais gordurosa, mais emoliente dem ser identificadas as chamadas inclusões ou corpos de Lafora,
e mais oclusiva. PAS positivas.
Criança > Pessoa entre 0 e 11 anos. Doença de Palizaeus-Merzbacher > Doença recessiva ligada ao X, ca-
Criança andante > Criança com idade entre 1 ano e 3 anos. racterizada essencialmente por nistagmo e anomalias da mielina. É
Criança em idade pré-escolar > Criança com idade entre 4 e 5 anos. causada por mutação no gene da proteína PLP1 no cromossoma
Criança em idade escolar > criança com idade de 6 ou mais anos. Xq22, essencial para a formação da mielina e formação e diferencia-
Deformação de Sprengel > Defeito uni ou bilateral da omoplata por ção dos oligodendrócitos.
défice de abaixamento da mesma em fase precoce da embriogénese, Doença de Unvericht Lundborg > Forma de epilepsia mioclónica pro-
do nível de C4 para o de C7. O mesmo compromete a mobilidade es- gressiva acompanhada de demência e relacionada com mutação e
capulo-torácica. cistatina B. Tipicamente inicia-se na adolescência.
Dengue > A dengue é uma doença infecciosa provocada por arbovírus Doença de von Hippel-Lindau > Afecção que, afectando diversos
da família flavivirus transmitida por vectores (mosquitos, sendo o órgãos (cerebelo, espinhal medula, retina, rins, pâncreas, epidídimo)
principal o A aegypti) vivendo em locais com água estagnada e hi- resulta de mutação dum gene supressor tumoral (VHL). São mani-
giene precária. Pode surgir em epidemias de instalação súbita. As festações características os hemangioblastomas cerebelosos e os an-
manifestaçõs clínicas são essencialmente febre, artralgias, mialgias, giomas retinianos; existem frequentemente associados à doença o
cefaleias, mialgias e fadiga acentuada que se mantém na convales- feocromocitoma e lesões quísticas dos rins, pâncreas, fígado e epidí-
cença. Por vezes há exantema do tipo escarlatiniforme ("febre ver- dimo. O carcinoma renal é a causa de morte mais frequente.
melha"). Podem surgir hemorragias e complicações sistémicas. O Doenças neoplásicas e proliferativas > De acordo com a taxonomia ac-
tratamento é sintomático. tual, incluem: dermatofibroma, mastocitose e histiocitose.
Dentisteria (ou Medicina Dentária ou Odonto-Estomatologia) > Emoliente > Produto que “amolece e amacia”; na sua composição en-
Estudo e prática médico-cirúrgica de tudo o que se refere aos dentes tram lípidos que restauram a elasticidade da pele evitando a perda
e, por extensão, à boca e aos maxilares. transepidérmica de água, atraem a água para a pele, e com acção
Dermatofibroma (ou histiocitoma fibroso) > Designação que corres- oclusiva (impedem que a água se evapore). Diversas substâncias tais
ponde a pequenos nódulos vermelho acastanhados (com mm a 2 cm como emulsões, cremes, leites, pomadas, loções, soluções, sus-
de diâmetro), em geral, benignos, com tendência para se manterem. pensões ou óleos poderão ter tais características.
Diabetes lipoatrófica > Designação para várias formas de lipodistrofia Emulsão > Produto constituído por dois ou mais componentes não
associadas a resistência à insulina e diabetes. miscíveis – um aquoso, e outro oleoso ou gordo – em proporções em
Glossário geral XXIX
que pode predominar um ou outro (óleo em água → O/A; ou água Idade gestacional > Duração da gestação contada a partir do 1º dia do
em óleo → A/O). último período menstrual exprimindo-se em semanas ou dias com-
Entese > Local de inserção tendinosa no osso. pletos (40ª semana corresponde ao período entre o 280º dia e 286º dia).
Epidemiologia > Termo que tem origem no grego: epi (entre), logy (es- Incapacidade (Disability) > Termo genérico utilizado para deficiência,
tudo), demos (pessoas) e significa: no sentido estrito, estudo das limitação da actividade e restrição na participação. Corresponde a
doenças epidémicas (infecciosas); no sentido lato, estudo das doen- aspectos negativos da interacção entre um indivíduo (com determi-
ças e dos diferentes fenómenos biológicos ou sociais do ponto de vis- nada condição de saúde) no contexto de factores ambientais e pes-
ta da sua frequência, da sua distribuição e dos factores susceptíveis soais (ver Funcionalidade).
de os influenciar. Constitui a ciência básica da Saúde Pública, im- Incidência > Número ou percentagem de novos casos numa determi-
plicando multidisciplinaridade e envolvendo métodos próprios nada população e num determinado intervalo de tempo. Avalia o
(medições, comparações, etc.). risco de aparecimento de doença.
Epigenética > Termo que traduz a interface entre a genética e os factores Índice Sintético de Fecundidade (ISF) > Número médio de filhos por
ambientais. Com base em dados experimentais, determinados genes mulher. Em Inglês <> Fertility.
(epialelos) sensíveis a influências ambientais (por ex. dieta), sofrem Infibulação > Forma mais radical de mutilação genital feminina: remo-
alterações moleculares (por ex. metilação do ADN sem alterar a res- ção total ou parcial dos genitais externos seguida de sutura dos pe-
pectiva sequência nucleotídica) mantendo-se estáveis em sucessivas quenos lábios com linha, espinhos ou outros materiais com o objec-
gerações, levando a repercussão funcional daqueles (por ex. afec- tivo de estreitamento da entrada vaginal.
tando a actividade de transcrição). Janeway (lesões de) > Pequenas lesões hemorrágicas ou eritematosas
Equinus > Posição de flexão plantar do ante-pé, retro-pé ou de todo o subungueais, indolores.
pé. Lactante > Mulher (idealmente a mãe) que amamenta.
Expectativa de vida ao nascer > Número de anos que um recém-nas- Lactente > Sinónimo de bebé.
cido viveria estando sujeito aos riscos de morte prevalentes para a Leprechaunismo > Situação clínica integrando: RCIU, hipoglicemia em
amostra de população no momento do seu nascimento. jejum, hiperglicemia pós-prandial e resistência à insulina; a concen-
Flora > Ver adiante «Microbiota». Este termo deveria ser abandonado tração sérica desta última pode atingir valores 100 vezes superiores
uma vez que se refere às plantas. Esta taxonomia deriva de Lineu. aos normais.
Fómite > Objecto inanimado ou substância capaz de absorver, reter e Lesões de Janeway > ver Janeway.
transportar microrganismos e parasitas. Letalidade > Risco que uma doença apresenta de ser mortal.
Forese > Significa transporte. Em geral, trata-se dum organismo pe- Loção > Forma de emulsão O/A mais fluida e menos oleosa.
queno transportado mecanicamente por um hospedeiro, em geral de Loção de limpeza > Forma de emulsão O/A com baixa viscosidade, mas
maiores dimensões (ex. fixação de protozoários sedentários ao cor- boa capacidade emulsionante, por conter agentes tensioactivos.
po de animais aquáticos). Luxação > Perda completa (subluxação se incompleta) do contacto entre
Funcionalidade > Termo genérico utilizado para as funções e estrutu- duas superfícies articulares.
ras do corpo, actividades e participação. Corresponde aos aspectos Manchas de Roth > ver Roth.
positivos da interacção entre um indivíduo (com uma condição de Mastocitose > Grupo de doenças em que se verifica infiltração dos te-
saúde) no contexto de factores ambientais e pessoais (ver Incapa- cidos e órgãos, especialmente a pele (nódulos, placas e pápulas), por
cidade). mastócitos. A urticária pigmentosa é a forma mais comum.
Gasping > Termo da língua inglesa empregue frequentemente na gíria Melatonina > Hormona segregada pela glândula pineal ou epífise (lo-
médica, significando “movimentos respiratórios de amplitude e rit- calizada no centro do encéfalo), com regularidade e em ritmo circa-
mo irregulares, e ineficazes”. diano a partir dos 3 meses de idade. Salienta-se o papel da "escu-
Hipofosfatasia > Defeito AR salientando-se membros inferiores ar- ridão da noite ou ausência de luminosidade " como estímulo natu-
queados com rarefação metafisária/mineralização irregular, denti- ral desencadeante da secreção a partir do núcleo supra-quiasmáti-
na e cimento dos dentes deficiente com tendência para queda pre- co; assim, os níveis mais elevados atingem-se entre as zero e as oito
coce dos caducos, encerramento tardio das fontanelas com ou sem horas (horário do sono). A luz (sobretudo entre 460 e 480 nm) inibe
craniossinostose, deficiência de fosfatase alcalina (sérica e tecidual); este mecanismo. Como principais acções citam-se o relaxamento da
as formas homozigóticas têm manifestações mais acentuadas. musculatura lisa gastrintestinal e a indução do sono, comprovando-
Histiocitoses > Conjunto de afecções de etiopatogénese desconhecida se que o leite materno contém níveis substanciais da referida hor-
cuja característica comum é a proliferação e infiltração dos tecidos mona, com implicações práticas na redução das cólicas infantis.
por histiócitos (um dos tipos de células diferenciadas a partir da me- Actualmente têm sido estudados os efeitos da melatonina noutras
dula óssea, recebendo, tal como outras, designações diversas confor- situações, como perturbações do sono, PHDA, mucopolissacari-
me a morfologia e função – monócitos, células dendríticas, macró- doses tipo III, autismo, RGE, cólicas infantis, etc..
fagos, etc.) fazendo parte do sistema histiocitário – macrofágico. Microbiota ou Microbioma > Conjunto de microrganismos que se en-
Existem dois grupos de histiocitoses: de células de Langerhans e não contram geralmente associados a tecidos (pele, mucosas/boca,sis-
Langerhans. Estas últimas células, que se localizam entre as células tema digestivo, conjuntivas, vagina, etc.). Os microrganismos (>
do estrato espinhoso de Malpighi, têm papel importante como apre- 10.000 espécies incluindo triliões de bactérias e fungos, por sua vez
sentadoras de antigénios. A histiocitose de células de Langerhans transportando vírus) constituídos em colónias à superfície ou no in-
(anteriormente chamada histiocitose X) considerava três entidades terior do organismo sem produzir doença compõem a microbiota
a que correspondem termos hoje obsoletos: doença de Letterer-Siwe, normal; a microbiota transitória é composta por agentes infecciosos
doença de Hand –Schuller-Christian e granuloma eosinófilo. presentes por períodos variáveis.
XXX TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Miotonia > Contracção muscular lenta, seguida de relaxamento lento, Pasta protectora > Pasta mais gorda e oclusiva, e mais difícil de apli-
que se produz durante movimentos musculares voluntários por ex- car e retirar; por exemplo, pasta de Lassar ou mistura em partes
citabilidade e contractilidade musculares anómalas. iguais de talco de Veneza, amido, lanolina e vaselina.
Mortalidade materna > Morte de mulheres durante a gravidez ou den- Pediatria > Medicina integral de um grupo etário desde a concepção ao
tro de 42 dias completos após término da gravidez devido a causa fim da adolescência.
relacionada com a gravidez ou agravada pela mesma; excluem-se as Pediatria Social > Ramo da Medicina que diz respeito à criança saudá-
causas acidentais ou incidentais. vel e doente em função do grupo humano de que faz parte e do meio
Morte fetal > É o óbito de um produto de concepção (feto-morto) antes no qual se desenvolve. Desde que se exerça uma acção colectiva, na-
da expulsão ou extracção completa do corpo da mãe, independen- cional ou internacional, a Pediatria torna-se social.
temente da duração da gravidez. Um vez separado do corpo da mãe, Período neonatal > Período que se inicia na data de nascimento e termi-
o produto de concepção não evidencia movimentos respiratórios na após 28 dias completos de idade pós-natal. É subdividido em: pre-
nem outros sinais de vida como batimentos cardíacos, pulsação do coce (primeiros sete dias completos ou 168 horas completas) e tardio
cordão umbilical ou movimentos efectivos dos músculos de contrac- (após sétimo dia ou 168 horas completas, até 28 dias completos ou 672
ção voluntária (nado-morto). horas completas). A criança neste período é designada recém-nascido.
Morte neonatal > É o óbito ocorrido no período neonatal; considerando as Péptidos natriuréticos > Grupo de péptidos segregados pelos mióci-
subdivisões do período neonatal (precoce e tardio), as mortes neonatais tos do miocárdio, principalmente nos ventrículos, em resposta a so-
podem ser subdivididas, respectivamente, em precoces e tardias. brecarga de pressão ou volume nas cavidades cardíacas, regulando
(Nota: A data de morte ocorrida durante o primeiro dia de vida (dia ze- o volume extracelular e a pressão arterial. Salientam-se: o BNP
ro) deve ser registada em minutos completos ou horas completas de vi- (Brain-type natriuretic peptide) ou chamado péptido natriurético
da. A partir do segundo dia de vida (dia 1) e até menos de 28 dias com- B/activo; e o N-terminal-pro-BNP ou NT-proBNP/inactivo, com
pletos de vida (672 horas), a idade de morte deve ser registada em dias. maior estabilidade in vitro e com vida média mais longa. Derivam,
Mutualismo > Associação entre dois indivíduos em que cada um deles por clivagem, do Pro-BNP. Antagonistas do sistema renina-angio-
depende fisiologicamente do outro. tensina-aldosterona, provocam aumento da diurese, natriurese e va-
Mutilação genital feminina > a) Percentagem de mulheres entre 15 e sodilatação. Trata-se de marcadores biológicos com interesse na
49 anos de idade que foram submetidas a manobras cruentas de res- avaliação de diversas formas de disfunção cárdio-respiratória (por
secção de órgãos genitais externos por razões sociais; b) Percentagem ex. PDA, taquipneia transitória, hipertrofia ventricular, HDC, HPP
de mulheres com, pelo menos, uma filha genitalmente mutilada (cli- no RN, doença de Kawasaki, etc.).
toridectomia, extirpação total ou parcial do clítoris e pequenos lá- Percentagem > Proporção apresentada como parte de um todo (100%).
bios, e infibulação). No texto devem ser sempre apresentados o numerador e o deno-
Nascimento vivo (nado vivo) > Expulsão ou extracção completa do cor- minador para qualquer percentagem.
po da mãe, independentemente da duração da gravidez, de um pro- PIB per capita > Produto Interno Bruto por cabeça correspondendo à
duto de concepção que, depois da separação, respire ou apresente quantidade de bens e serviços produzidos dentro das fronteiras dum
sinais de vida tais como batimentos cardíacos, pulsação do cordão país (por nacionais e estrangeiros) dividida pela sua população.
umbilical, ou movimentos efectivos dos músculos de contracção vo- Tipifica a riqueza média dum país e os níveis relativos de desenvol-
luntária, quer o cordão umbilical tenha sido ou não cortado, quer a vimento económico. NB- Não inclui rendimentos provenientes do
placenta tenha sido ou não retirada. O produto de um nascimento exterior (por ex. remessas de emigrantes).
ocorrido nestas circunstâncias é denominado nado-vivo. PNB > Produto Nacional Bruto correspondendo à produção de bens e
Natalidade > Número de nascimentos vivos por 1.000 habitantes. serviços pelos agentes económicos nacionais. NB- Inclui remessas de
Nódulos de Osler > ver Osler. emigrantes.
Nutrição > Conjunto de processos de assimilação e desassimilação dos ali- Polidactilia > Anomalia congénita caracterizada pela presença de dedos
mentos no organismo implicando trocas entre o organismo vivo e o supranumerários nas mãos ou nos pés.
meio ambiente. Ciência que trata da alimentação e dos alimentos sob Pomada ou unguento > Forma de emulsão A/O mais gordurosa,mais
todos os seus aspectos: utilização e transformação dos alimentos no or- emoliente e mais oclusiva.
ganismo, má-nutrição, problemas de comportamento relacionados com Pós > Agentes secos, micronizados em partículas finas, com proprie-
a alimentação, produção e distribuição dos géneros alimentares, etc.. dades higroscópicas (atraindo água); por ex. talco (salicilato de ma-
Nutriente > Substância alimentar que pode ser assimilada sem sofrer gnésio), argila, amido, caolino, óxido de zinco.
transformação digestiva. Prevalência > Número ou percentagem de casos existentes numa de-
Ortótese > Aparelho ou dispositivo destinado a suplementar ou corri- terminada população e num determinado momento temporal.
gir a alteração morfológica de um órgão, de um membro ou seg- Avalia a carga que a doença representa na referida população.
mento de membro, ou a deficiência de uma função. Prevenção > Conjunto de meios médicos, médico-sociais e ambientais
Osler (nódulos de) > Nódulos intradérmicos moles nas polpas dos de- para salvaguardar a saúde dos indivíduos sãos, evitando doença
dos das mãos e pés. (prevenção 1ª), impedindo um agravamento (prevenção 2ª), ou evi-
Osteotomia > Secção cirúrgica do osso. tando sequelas tardias (prevenção 3ª) de modo a propiciar, tanto
Parasitismo > Relacionamento simbiótico entre dois organismos: o pa- quanto possível, vida próxima do normal. Trata-se dum conceito
rasita, em geral de menores dimensões (ex. verme intestinal), e o hos- mais lato que o de profilaxia.
pedeiro, do qual depende o primeiro. Produtos-barreira > Tópicos cutâneos que previnem a penetração e ou
Pasta > Forma de emulsão (pomada) onde se suspendeu pó para ab- absorção de substâncias químicas potencialmente irritantes, sensi-
sorver exsudado. bilizantes ou tóxicas através da pele.
Glossário geral XXXI
Profilaxia > Método de prevenção ou protecção dirigido contra uma tremo baixo peso) > Criança nascida com peso inferior a 1000 gra-
doença através do emprego de substância (por ex. fármacos, vaci- mas (999 ou menos) independentemente da idade gestacional.
nas, imunoglobulinas, etc.). Trata-se dum conceito mais restrito que Rendimento per capita > Soma do valor da contribuição de todos os
o de prevenção. produtores nacionais acrescido de todos os impostos(menos subsí-
Progéria > Alopécia, atrofia da gordura subcutânea, hipoplasia e dis- dios) que não são incluídos na avaliação da produção, a que são
plasia do esqueleto, atraso da dentição caduca, aterosclerose pre- acrescentadas as receitas líquidas (pagamento de assalariados e ren-
matura. das de propriedades) provenientes de fontes externas.
Proporção > Tipo específico de razão em que o numerador é parte do Renograma isotópico > Curva traduzindo, em função do tempo, a eli-
denominador, sendo que o tempo não constitui factor. Vai de 0 a 1.No minação renal dum produto com radionúclidos, injectado por via IV,
texto deve ser sempre apresentado o numerador e o denominador que emite radiação gama. Esta eliminação provoca radioactividade
de qualquer proporção. transitória dos dois rins a qual pode ser detectada por sonda de cin-
Prótese > Aparelho ou dispositivo destinado a substituir um órgão, um tilação/cintilador ao nível de cada região lombar. O gráfico tradu-
membro ou parte de um membro destruída ou gravemente afecta- zindo a eliminação permite avaliar a função de cada rim. Os ra-
da. diofármacos habitualmente utilizados são: mercaptoacetilglicina-
Rabdomiólise > Ruptura e/ou necrose das células musculares estriadas Tc99 (MAG3) depurada por secreção tubular, e o ácido dietileno tria-
por factores mecânicos ou miopatias primárias com consequente li- mino pentacético (DTPA-Tc99), filtrado pelo glomérulo.
bertação para o sangue de enzimas, electrólitos e mioglobina. O do- Resistência à insulina tipo A > Situação clínica associada a mutações
seamento da enzima cretinaquinase (CK ou CPK)permite avaliar o no gene do receptor da insulina, verificando-se concomitantemente
grau de lesão celular/necrose. hirsutismo, masculinização, ovários quísticos no sexo feminino e,
Razão (fracção) > Numerador e denominador não têm relação especí- por vezes, acanthosis nigricans não acompanhada de obesidade. Duas
fica (ex: rapazes/raparigas 1/4; risco de 1/1.000, etc.). (ver mutações específicas no gene referido originam formas graves inte-
Proporção) grando os quadros designados por leprechaunismo (ver atrás) e sín-
Recém-nascido pré-termo > Criança nascida com menos de 37 sema- droma de Rabson – Mendenhall (ver adiante).
nas completas (menos de 259 dias) de idade gestacional. Roth (manchas de) > Lesões hemorrágicas lineares subungueais.
Recém-nascido de termo > Criança nascida com idade gestacional com- Saúde > Estado de bem estar físico, mental e social ,e não apenas au-
preendida entre 37 semanas completas e 41 semanas e 6 dias (259 a sência de doença.
293 dias). Selagem > Em Dentisteria e em Ortopedia, processo de fixação dum ma-
Recém-nascido pós-termo > Criança nascida com idade gestacional terial protector do dente (Selante), ou de material de prótese ou de
igual ou superior a 42 semanas completas (294 dias ou mais). osteossíntese.
Recém-nascido leve ou pequeno para a idade gestacional (LIG) > (na Simbionte > Organismo que vive algum tempo ou toda a sua vida inti-
prática, quase sempre sinónimo de RN com restrição de crescimen- mamente ligado a outro de espécie diferente; tal relacionamento de-
to intra-uterino) – Recém-nascido (RN) com peso inferior ao que cor- signa-se por simbiose.
responde ao percentil 3 ou a dois desvios padrão abaixo da média Simbiose > Ver atrás- Simbionte. Consideram-se quatro categorias de
para a respectiva idade de gestação e género, isto é, leve para a ida- simbiose: comensalismo, forese, parasitismo e mutualismo.
de de gestação (LIG) numa curva representativa da população. Sincinésia > Tendência para executar involuntária e simultaneamente
Outros autores preferem utilizar o termo pequeno para a idade ges- um movimento similar e simétrico, numa tentativa para executar um
tacional (PIG). movimento voluntário do lado oposto, observada em certas parali-
Recém-nascido com peso adequado para a idade gestacional para a sias unilaterais.
idade gestacional (AIG) > Recém-nascido (RN) com peso entre o Sindactilia > Anomalia congénita caracterizada pela junção de dois ou
percentil 3 ou dois desvios padrão abaixo da média para a respecti- mais dedos das mãos ou dos pés; tal junção pode ser superficial
va idade de gestação e género, e o percentil 97 ou dois desvios-pa- (membranosa), muscular ou óssea.
drão acima da média para a respectiva idade de gestação e género Síndroma de Apert > Craniossinostose (coronal>lambdóide>sagital),
numa curva representativa da população. braquicefalia, acrocefalia, hipertelorismo, proptose, estrabismo, hi-
Recém-nascido grande ou pesado para a idade gestacional (GIG) > poplasia maxilar, palato estreito/ogival, sindactilia invariável(cutâ-
Considera-se que um RN teve um crescimento intrauterino excessi- nea e óssea).
vo (ou hipercrescimento) quando o peso de nascimento é superior Síndroma de Angelman > Entidade clínica explicada por deleção no
ao percentil 97 ou dois desvios padrão acima da média para a idade cromossoma 15 de origem materna estando implicado o gene activo
de gestação e género numa curva representativa da população; tal E3A (UBE3A), envolvido na degradação de proteínas cerebrais.
RN é designado grande (G) ou pesado (P) para a idade de gestação: Traduz-se essencialmente por convulsões, atraso do desenvolvi-
(GIG) ou (PIG). mento e marcha atáxica. (ver Síndroma de Prader Willi).
Recém-nascido de baixo peso de nascimento(RNBP) > Criança nasci- Síndroma de Carpenter > Acrocefalia, polidactilia e sindactilia dos pés,
da com peso inferior a 2500 gramas (2499 ou menos) independente- atraso mental, braquissindactilia das mãos com clinodactilia, obesi-
mente da idade gestacional. dade, cardiopatia congénita, hipogenitalismo, etc..
Recém-nascido de muito baixo peso de nascimento (RNMBP) > Síndroma de Cockayne > Quadro clínico de transmissão AR, descre-
Criança nascida com peso inferior a 1500 gramas (1499 ou menos) vendo-se 3 tipos: I (em relação com gene CSA), II (em relação com ge-
independentemente da idade gestacional. ne CSB); e III (em relação com gene XP-CS). Caracteriza-se por alte-
Recém-nascido de muito muito baixo peso de nascimento ou com rações do tipo senil iniciando-se pelo 1º ano de vida, degenerescên-
imaturidade extrema (RNMMBP), sinónimo de RN de EBP (ex- cia retiniana, défice auditivo, hipocrescimento e hipogonadismo com
XXXII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
criptorquidia, fotossensibilidade (aparecimento de eritema facial em cida, actualmente o diagnóstico é clínico e baseado nas principais ca-
“asa de borboleta” por acção de raios ultra-violeta). Distingue-se da racterísticas: défice cognitivo grave, epilepsia por vezes refractária,
progéria pelas anomalias oculares e pela fotossensibilidade. baixa estatura, microcefalia, dismorfia facial peculiar, deformidades
Síndroma de Cornelia de Lange > Quadro esporádico ou AD, caracte- ósseas mais notórias nas mãos e pés, e cabelo escasso.
riza-se essencialmente por restrição do crescimento fetal e pós-na- Síndroma de Noonan > Simile síndroma de Turner sem cromossomo-
tal, sinofris, lábios delgados com uma pequena “saliência” na linha patia sendo que em ~ 60% dos casos resulta de mutação em
média do lábio superior e correspondente “chanfradura”no lábio in- PTPN1/cromossoma 12q24.1. Principais características: baixa esta-
ferior, comissura bucal dirigida para baixo, micromélia, insuficiên- tura, inserção baixa posterior do cabelo, pescoço curto e ou pteri-
cia cognitiva, etc.. gium colli, hipogonadismo, criptorquidia. Afecta ambos os sexos, ao
Síndroma de Cowden > É considerado o protótipo das síndromas tu- contrário da síndroma de Turner, com padrão diverso de cardiopa-
morais PTEN (ver adiante) em que se verifica elevada susceptibili- tia congénita (estenose pulmonar, defeitos septais).
dade para cancro do endométrio, mama, e tiróide. Síndroma de Pfeiffer > De hereditariedade AD por mutação genética
Síndroma de Crouzon > De transmissão AD, integra como característi- (FGFR1 ou FGFR2), integra craniossinostose (coronal> sagital>
cas mais frequentes: craniossinostose (coronal > lambdóide > sagi- lambdóide) associada a outros defeitos como acrocefalia, hipertelo-
tal), hipertelorismo, proptose, estrabismo e hipoplasia maxilar. rismo, proptose, hipoplasia maxilar, 1ºs dedos alargados com des-
Síndroma de Hallermann-Streiff > De hereditariedade esporádica, in- vio radial. São descritos os tipos I, II e III.
tegra como mais relevantes as seguintes anomalias: dentes neona- Síndroma de Poland > Situação clínica integrando deformidades (unila-
tais, baixa estatura, cabelo escasso, cataratas, microftalmia e extre- terais) da parede torácica tais como pectus excavatum e ausência da glân-
midade nasal estreita. dula mamária, hipoplasia dos músculos grande e pequeno peitoral,
Síndroma de Holt – Oram > De transmissão AD em relação com muta- anomalias dos dedos da mão do mesmo lado (por ex. sindactilia).
ção no gene TBX5, integra anomalias do membro superior e ao ní- Síndroma de Prader-Willi > Entidade clínica explicada por deleção no
vel da cintura escapular, associadas a defeitos cardíacos tais como cromossoma 15 de origem paterna estando implicado o gene activo
dos septos ventricular e auricular, e alterações na condução auricu- E3A(UBE3A), envolvido na degradação de proteínas cerebrais.
loventricular. Traduz-se essencialmente por hipotonia neonatal acentuada, obesi-
Síndroma de Kabuki > Anomalias congénitas múltiplas com identifi- dade, mãos e pés pequenos e alteração do comportamento com atra-
cação de base molecular, salientando-se: características faciais típi- so mental. (ver Síndroma de Angelman).
cas (fendas palpebrais alongadas com eversão do terço externo da Síndroma de Rabson-Mendenhall > Entidade clínica com manifesta-
pálpebra inferior, sobrancelhas arqueadas,etc.), pavilhões auricu- ções aparentadas com leprechaunismo: resistência à insulina, ano-
lares grandes e proeminentes, défice cognitivo, hipocrescimento, malias dos dentes e unhas, e hiperplasia pineal.
susceptibilidade para doenças autoimunes, entre outros defeitos. Síndroma de Rapunzel > Situação clínica em que os cabelos deglutidos
Síndroma de Kearns – Sayre > Oftalmoplegia, retinopatia pigmentar, formam um chamado tricobezoar (ver atrás “bezoar”) de compri-
cardiomiopatia. mento considerável, desde o estômago ao intestino delgado, como
Síndroma de Landau-Kleffner > Forma grave de epilepsia associada a que uma “cauda de animal”, originando síndroma oclusiva intesti-
agnosia auditiva, disartria e afasia. nal de grau variável.
Síndroma de Larsen > Luxação articular múltipla, fácies plana, unhas Síndroma de Rett > Entidade clínica resultante de mutações no gene
dos dedos das mãos curtas, polegares em espátula, etc.. MECP2 localizado em Xq28: alterações do neurodesenvolvimento,
Síndroma de Laurence – Moon – Biedl > Como principais característi- com défice cognitivo grave, predominantemente no sexo feminino
cas há a registar: obesidade, polidactilia, retinite pigmentar, defi- (prevalência ~1/10.000 raparigas aos 12 anos).
ciência mental, diabetes insípida e baixa estatura. Admite-se here- Síndroma de Reye > Situação hoje rara, é caracterizada por encefalo-
ditariedade AR. patia aguda e disfunção hepática comportando elevada mortalida-
Síndroma de Loeffler > Condensação pulmonar fugaz detectada por de (30-40%) por edema cerebral. Em geral precedida por infecção ví-
radiografia, associada a eosinofilia, e de etiologia diversa; mais fre- rica (sobretudo varicela e influenza) 3-5 dias antes, verifica-se forte
quentemente relacionada com parasitoses, sobretudo Ascaris lum- associação com o uso de ácido acetilsalicílico.
bricoides. O substrato anatomopatológico pulmonar inclui infiltra- Síndroma de Robinow > Inclui, entre outros defeitos: hipogonadismo,
dos de eosinófilos e plasmócitos. antebraços curtos, braquidactilia, bossas frontais, hipertelorismo,
Síndroma de Mallory – Weiss > Situação clínica traduzida por hemor- longo philtrum, mento pequeno, cariótipo normal.
ragia digestiva alta resultante de vómito com esforço levando a Síndroma de Rothmund-Thomson (ou poiquilodermia congénita) >
lesão/solução de continuidade por efeito de estiramento ao nível da Quadro clínico de transmissão AR relacionado com mutações no ge-
junção gastresofágica. ne RECQL4 na maioria dos casos. Surgindo as manifestações pelos
Síndroma de McCune Albright > Hereditariamente esporádica, inclui 3 anos de idade, há a destacar: placas de eritema com ulterior hi-
determinados sintomas e sinais com frequência variável: manchas perpigmentação, atrofia, telangiectasias e alopécia. Hipogonadismo
cor de “café com leite”, hiperfunção de vários órgãos endócrinos,, e risco de cancro.
bócio multinodular, hipertiroidismo, displasia óssea poliostótica e Síndroma de Rubinstein-Taybi > Baixa estatura, polegares e dedos dos
puberdade precoce (independente de GnRH). A gonarca precoce re- pés largos, fendas palpebrais antimongolóides , hipoplasia do maxi-
sulta de hiperfunção ovárica e, por vezes, da formação de quistos le- lar com palato estreito, etc..
vando à secreção de estrogénios. Resulta de mutações da subunida- Síndroma de Seckel > De hereditariedade AR, com restrição do cresci-
de da proteína G. mento pré e pós-natal, microcefalia com sinostose prematura, insu-
Síndroma de Nicolaides-Baraitser > de base genética ainda não conhe- ficiência cognitiva, nariz proeminente, etc..
Glossário geral XXXIII
Síndroma de Smith-Lemli-Opitz > Escafocefalia, narinas em ante- Taxa de mortalidade de menores de 5 anos (TMM5) > Número de óbi-
versão, e ou ptose palpebral, sindactilia do 2º e 3º dedos do pé, hi- tos entre o nascimento e a data em que são completados os 5 anos
pospadia, criptorquidia no sexo masculino, etc.. de idade por mil (1.000) nado-vivos.
Síndroma de Sotos (Gigantismo cerebral) > Macrossomia evidente ao Taxa de mortalidade materna > Número anual de mortes de mulheres
nascer, mãos e pés grandes, maturação óssea avançada, etc.. devidas a complicações decorrentes da gravidez por 100.000 partos
Síndroma de Werner > Envelhecimento precoce símile progéria, (ma- de crianças nascidas vivas.
nifestando-se mais tarde do que esta), salientando-se esclerose vas- Taxa de mortalidade fetal tardia > Esta taxa é calculada segundo a fór-
cular e cardiomiopatia. Hereditariedade autossómica recessiva em mula:
relação com os genes WRN e LMNA. Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas
Síndroma de Wolff-Parkinson – White > Situação também designada ———————————————————— x 1000
por pré-excitação ou ante-sistolia, em que o ECG evidencia alarga- Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas + Nº de nado-vivos com >= 1.000 gramas
mento do complexo QRS e encurtamento P-R; habitualmente acom- Taxa de mortalidade neonatal (bruta) > Esta taxa é definida pela re-
panhada por crises de taquicardia paroxística, o seu prognóstico de- lação:
pende da eventualidade de cardiopatia associada. Número total de óbitos de RN ocorrendo até 28 dias completos (672 ho-
Síndroma de Wolfram > Inclui diabetes mellitus não autoimune, atrofia óp- ras) / 1.000 nado vivos (qualquer que seja o peso).
tica, diabetes insípida, surdez neurossensorial e anomalias do aparelho Esta taxa é subdividida em:
urinário e neurológicas, com prognóstico muito reservado e baixa espe- a) precoce: nº de óbitos até aos primeiros sete dias completos (ou 168 ho-
rança de vida. Mutações em dois genes relacionados com proteínas do ras completas) /1.000 nado-vivos;
retículo endoplásmico, neurónios e vasopressina, a qual é deficiente. b) tardia: nº de óbitos após sete dias completos (168 horas) e até 28 dias
Síndroma de Zollinger-Ellison > Situação rara caracterizada por doen- completos (672 horas) /1.000 nado-vivos;
ça péptica ulcerada grave e refractária ao tratamento causada por hi- Notas: a) As taxas de mortalidade total, precoce e tardia (não bruta)
persecreção de gastrina relacionada com gastrinoma (tumor neu- consideram apenas RNs com peso de nascimento igual ou superior
roendócrino). Em > 90% dos doentes são verificados níveis elevados a 1.000 gramas, quer no numerador, quer no denominador;
de gastrina em jejum. O tratamento de eleição inclui inibidores da b) Não sendo conhecido o peso, considera-se habitualmente que idade
bomba de protões e antagonistas dos receptores H2. gestacional de 28 semanas e /ou comprimento de 35 cm correspon-
Síndroma stiff-man ou do “homem rígido” > Situação clínica do SNC, dem a 1.000 gramas;
rara e autoimune, caracterizada por rigidez progressiva e espasmos
axiais e acompanhada de títulos muito elevados de anticorpos GAD- Taxa de mortalidade perinatal por 1.000 (fetos mortos+nado-vivos)
65. Em cerca de 30% dos doentes surge DM1. > Esta taxa é calculada segundo a fórmula:
Síndromas tumorais PTEN > conjunto de situações com elevada varia- Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas
bilidade na expressão clínica - incluindo diversas patologias genéti- + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 1.000 gramas)
cas - e pleiotropismo, relacionadas com disfunção do gene supres- ————————————————————————— x 1000
sor tumoral PTEN. (ver síndroma de Cowden) Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas + total de nado-vivos com >= 1.000 gramas
Sinofris > Convergência/junção das sobrancelhas na linha média ao ní-
vel da raiz nasal. Taxa de mortalidade perinatal por 1.000 (nado-vivos) > Esta taxa é
Solução > Mistura líquida homogénea duma substância sólida, líquida calculada segundo a fórmula:
ou gasosa, considerando-se, no sentido correcto do termo, soluto a Nº de nado-mortos com >= 1.000 gramas
substância dissolvida, e solvente o líquido (geralmente em quanti- + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 1.000 gramas)
dade elevada). ————————————————————————— x 1000
Suspensão > Preparado farmacêutico constituído pela dispersão duma Nº de nado-vivos com >= 1.000 gramas
fase sólida insolúvel numa fase líquida (ou seja, líquido no qual se
encontram partículas insolúveis finamente dispersas). Taxa de mortalidade perinatal total por 1.000 (fetos mortos+nado-
Syndet > Detergente sintético (sabão “sem sabão”) com pH neutro, fa- vivos) > Esta taxa é calculada segundo a fórmula:
zendo espuma escassa; a forma sólida designa-se por “pain”. Nº de nado-mortos com >= 500 gramas
Taxa > Tipo específico de razão em que o numerador e o denominador + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 500 gramas)
estão relacionados, constituindo o tempo uma parte intrínseca do ———————————————————————— x 1000
denominador. Nota: Segundo os epidemiologistas a designação, por Nº de nado-mortos com >= 500 gramas + Nº de nado-vivos com >= 500 gramas
ex. de taxa de mortalidade, não é correcta.
Taxa de alfabetização de adultos > Percentagem de pessoas com 15 Taxa de mortalidade perinatal total por 1.000 (nado-vivos) > Esta
anos ou mais que sabem ler e escrever. taxa é calculada segundo a fórmula:
Taxa bruta de mortalidade > Número de óbitos anuais por 1.000 pes- Nº de nado-mortos com >= 500 gramas
soas. + óbitos neonatais (com <168 horas e >= 500 gramas)
Taxa bruta de natalidade > Número anual de nascimentos por 1.000 ———————————————————————— x 1000
pessoas. Nº de nado-vivos com >= 500 gramas
Taxa de letalidade > Relação entre o número de mortes por determi-
nada doença e o número total dos seus casos numa dada população. Taxa de nado-mortalidade > Número de nado-mortos com peso de nas-
Taxa de mortalidade infantil (TMI) > Número de óbitos no primeiro cimento >1000 gramas /1.000 nascimentos totais (nado-mortos + na-
ano de vida por cada 1.000 nado vivos. do-vivos pesando > 1.000 gramas) durante determinado período.
XXXIV TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Taxa total de fertilidade > Número de crianças que nasceriam por mulher,
se esta vivesse até ao fim dos seus anos férteis e tivesse filhos em cada
etapa, de acordo com as taxas prevalentes para cada grupo etário.
Trabalho infantil > Percentagem de crianças entre 5 e 14 anos de idade
recrutadas para tarefas próprias para adultos.
Valgo (ou valgus) > membro ou segmento desviado para fora.
Valores de referência em antropometria > Valores que descrevem co-
mo as crianças efectivamente crescem na realidade.
Valores – padrão em antropometria > Valores que pretendem repre-
sentar o crescimento ideal.
Varo (ou varus) > membro ou segmento desviado para dentro.
Vigilância pré-natal > Percentagem de mulheres entre 15 e 49 anos as-
sistidas pelo menos uma vez durante a gestação por profissional de
saúde treinado (médicos, enfermeiros ou parteiros); em Portugal
considera-se, pelo menos,a ocorrência de 3 consultas médicas.
Xenobióticos > São compostos estranhos ao organismo que poderão es-
tar presentes na alimentação, incluindo leite materno. Distinguem-
se 3 grandes grupos: 1] contaminantes naturais (por ex. glicoal-
calóides presentes em batatas e tomates,etc.); 2] contaminantes do
meio ambiente pela actividade humana/antropogénicos (por ex. ni-
tritos, pesticidas, metais pesados, etc.); 3] tóxicos formados durante
o processamento culinário (por ex. hidrocarbonetos policíclicos
aromáticos).
Xeroftalmia > Secura e retracção das conjuntivas bulbar e palpebral, que
se tornam esbranquiçadas e perdem o brilho. Esta situação pode ser
secundária a défice de vitamina A ou a tracoma.
Xerose > Secura da conjuntiva, muitas vezes a primeira fase da xerof-
talmia.
BIBLIOGRAFIA
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Médecine. Paris: Maloine, 2004
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Clássica Editora, 1995
Uvarov EB, Chapman DR, Isaacs A. Dicionário de Ciência (tradução por-
tuguesa). Lisboa: Europa América Editora, 1964
Abreviaturas
BEI – iodo extraído (removido) pelo butanol (Butanol Extractable Iodine) CIA – comunicação interauricular
BERA – Brainstem evoked response audiometry CIAS – cold induced autoinflammatory syndrome ou síndroma auto-
BHCG – Gonadotrofina coriónica humana beta (ou GCHB) inflamatória induzida pelo frio
BHE – barreira hematencefálica CIAV – comunicação interauriculoventricular
Bi – bismuto CID – classificação internacional de doenças, lesões e causas de óbitos
BIPAP – bilevel positive airway pressure (OMS/WHO); ou coagulação intravascular disseminada
BK – bacilo de Koch CIM – concentração inibitória mínima
BN – bulimia nervosa CINCA – chronic infantile neurologic cutaneous and articular syndrome
BNP – B-type natriuretic peptide; ver NT- proBNP CIV – comunicação interventricular
BO – bronquiolite obliterante CK – creatinaquinase/creatinacinase
BOOP – BO com pneumonia organizativa (organizing pneumonia) CL – compliance pulmonar/distensibilidade pulmonar
BP – baixo peso (<2500 gramas) ou binding protein (factor de ligação) Cl – símbolo do cloro
BPE – baixo peso extremo(<1000 gramas) cl – centilitro
BPM ou bpm – batimentos por minuto CM – concentração máxima
Br – bromo cm – centímetro/cm2 - centímetro quadrado; cm3 - centímetro cúbico
BR – biópsia renal ou cc
BRB – bilirrubina CMH ou MHC – Complexo major de histocompatibilidade (locus no
BRD – bloqueio do ramo direito cromossoma 6 com genes que codam antigénios (glicoproteínas de
BRE – bloqueio do ramo esquerdo superfície) de histocompatibilidade (vidé adiante MHC)
BSE – bovine spongiform encephalopathy ou encefalopatia espongiforme CMO – corticosterona metil oxidase
bovina/doença das vacas “loucas” CMV – citomegalovírus ou vírus citomegálico/de inclusões
BSP – bromossulftaleína citomegálicas ou corpos multivesiculares (surfactante)
BT – bilirrubina total (B ou BRB) CO – monóxido de carbono
BUN – blood urea nitrogen ou azoto ureico do sangue CO2 – dióxido, anidrido ou gás carbónico
Co – cobalto
C CoA – coenzima A
C – Celsius, carbono Cox – cicloxigenase
Ca – cálcio, carcinoma CPAP – continuous positive airways pressure ou pressão positiva
CaBP – calcium binding protein ou proteína fixadora do cálcio contínua no final da expiração ou pressão de distensão contínua
CAD – cetoacidose diabética CPK – creatine phospho kinase ou creatina fosfo quinase (ou cinase)
Cal – kcal (quilocaloria) CPK-MB – idem – isoenzima MB (cérebro,musculo) da CPK
Cal – caloria CPRE – colangiopancreatografia retrógrada endoscópica
CAMP – adenosinamonofosfato cíclico CPT – capacidade pulmonar total
CAO (índice de cárie) – C- dentes cariados; A-ausentes; O-obturados CPV – canal peritoneovaginal
CASH – cortico adrenal stimulating hormone (hormona estimulante Cr – crómio
córtico- suprarrenal diferente da ACTH) CR – cicatriz renal
CAV – canal atrioventricular comum CREST – sigla de calcinose cutânea, fenómeno de Raynaud,
cc – centímetro cúbico (ou cm3) compromisso esofágico, esclerodermia, telangiectásias
CCI – comissão de controlo de infecção CRF – capacidade residual funcional ou corticotropin releasing factor
CCMH – concentração corpuscular média em hemoglobina (=CGMH) (factor libertador da corticotrofina)
CCU – cancro do colo do útero CRH – corticotropin releasing hormone (hormona libertadora da
Cd – cádmio corticotrofina)
CDC – Centers of Disease Control, em Atlanta, EUA CRMO – chronic recurrent multifocal osteomielitis
CDG – carbohydrate deficient glycoprotein CRP – C Reactive Protein ou PCR
CDPN – Centro de Diagnóstico Pré-natal CS – craniossinostose
CEA – corionic embrionary antigen ou antigénio embrionário coriónico 17-CS – 17 cetosteróide
CEC – circulação extracorporal CSP – cuidados de saúde primários
CERAC – Centro de Estudos e Registo de Anomalias Congénitas CTCIG – Comissão Técnica de Certificação de Interrupção da
CFRD – cystic fibrosis related diabetes Gravidez
CFTR – cystic fibrosis transmembrane conductance regulator CTG – cardiotocografia ou cardiotocograma
CGMH – concentração globular média em hemoglobina (= CCMH) Cu – cobre
CH – concentração de hemoglobina CUM – cistouretrografia miccional
CHARGE – Associação de anomalias (sigla de coloboma, heart disease, CV – capacidade vital, campo visual, coluna vertebral
atrésia dos coanos, retarded growth and development associado a CVEDT – Centro de Vigilância Epidemiológica de Doenças
anomalias do SNC, ear anomalies) Transmissíveis
CHC – carcinoma hepatocelular
CI – capacidade inspiratória D
Ci – Curiecentímetro cúbico D – dalton, densidade
Abreviaturas XXXVII
D – dia de vida (por ex. D5 ou 5º dia) ou nível de vértebra dorsal (por DTPA – dietileno-tetra-pentacético
ex. D8) DV – dador vivo
DA – dermatite atópica DVP – derivação ventriculoperitoneal
DAG – diacilglicerol
DAR – dor abdominal recorrente E
DB – decibel ou Doença de Behçet EAEC – enteroaggregative E. coli
DBP – displasia broncopulmonar EACA – ácido épsilon-aminocapróico
DC – débito cardíaco EB – epidermólise bolhosa
DCE – doença crónica do enxerto EBP – extremo baixo peso (recém-nascido de )
DD – diagnóstico diferencial EBV – Epstein-Barr virus ou vírus de Epstein-Barr
DDA – displasia de desenvolvimento da anca ECG – electrocardiograma
DDAVP – 1-deamino-8-d-arginino-vasopressina ECHO virus – ou vírus ECHO (enteric cytopathic human orphan)
DDO – doenças de declaração obrigatória ECMO – extracorporal membrane oxygenation ou oxigenação com
DDT – dicloro-difenil-tricloroetano membrana através de circulação extracorporal
DEXA – dual X ray absorptiometry ECN – enterocolite necrosante
DGPI – diagnóstico genético de pré-implantação EcoCG – ecocardiograma
DGS – Direcção Geral da Saúde EDTA – ácido edético ou etileno-diamima-tetra-acetato
DH – doença de Hirschsprung EEC – espaço ou compartimento extracelular, contendo LEC
DHA – docosahexanoic acid ou ácido docosa-hexanóico EEEPC – estudo europeu sobre a etiologia da paralisia cerebral
DHABO – doença hemolítica por incompatibilidade ABO EEG – electroencefalograma
DHEA – di-hidro-epi-andosterona EEI – esfíncter esofágico inferior
DHEAS ou DHEA-S – sulfato de di-hidro-epi-andosterona EH – esferocitose hereditária
DHPNRh – doença hemolítica perinatal por incompatibilidade Rh EHEC – enterohemorrhagic E. Coli
DHRN – doença hemolítica do recém- nascido EHI – encefalopatia hipóxico-isquémica
DHT – di-hidro-testosterona EHP – estenose hipertrófica do piloro
DI, DII, DIII – derivações bipolares electrocardiográficas EIC – espaço intracelular, contendo LIC
DI – dentinogénese imperfeita EID – espaço intercostal direito
DID – diabetes insulinodependente EIE – espaço intercostal esquerdo
DII – doença intestinal inflamatória EIEC – enteroinvasive E. Coli
DIT – diiodotirosina ELISA – enzyme-linked immunosorbent assay
DIU – dispositivo intrauterino EMG- electromiografia / electromiograma
DK – doença de Kawasaki EMLA – eutectic mixture local anesthetics
DMARD – disease modifying agents in rheumatic disease EN – eritema nodoso
DMG – diabetes mellitus gestacional EOG – electro-oculograma
DM2 – diabetes mellitus do tipo 2 EPEC – enteropathogenic E. Coli
DMJ – dermatomiosite juvenil EPI – enfisema pulmonar intersticial
DMG – diabetes mellitus gestacional EPO – eritropoietina
DMO – doença metabólica óssea ERA – Evoked response audiometry
DMSA – ácido dimercapto-succínico ERG – electrorretinograma
DNA ou ADN – ácido desoxirribonucleico ESPGHAN – European Society for Gastroenterology Hepatology and
DNM – doença neuromuscular Nutrition
DOCA – acetato de desoxicorticosterona ET – exsanguinotransfusão
DOPA – Di-hidroxi-fenilalanina ETCO – end tidal carbon monoxide
DP – desvio-padrão ou diálise peritoneal ETEC – enterotoxigenic E. Coli
DPC – doença pulmonar crónica ETP – exsanguinotransfusão parcial
DPG – diabetes pré-gestacional EUA – Estados Unidos da América do Norte
2,3 - DPG – 2,3 difosfoglicerato e.v./EV – endovenoso (ou intravenoso - IV)
DPI – doença pulmonar intersticial ex/ex: – por exemplo
DPN – diagnóstico pré-natal
DPOC – doença pulmonar obstrutiva crónica F
DPPC – dipalmitoilfosfatidilcolina FA – fosfatase alcalina
DSM-III, DSM IV – Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders FAO – Food and Agricultural Organization
III , IV FC – frequência cardíaca
DRGE – doença do refluxo gastro-esofágico FCAS – familial cold autoinflammatory syndrome ou síndroma familiar
DST – doença sexualmente transmissível auto-inflamatória
DT (vacina) – antidifteria e antitétano FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia
DTN – defeito do tubo neural FDA – Food and Drug Administration
DTP (vacina) – antidifteria, antitétano e antipertussis Fe – Ferro
XXXVIII TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
mcg (ug) – micrograma NIH – National Institute of Health ou Instituto Nacional de Saúde
MCV – mean corpuscular volume ou volume globular médio NIHDE – Núcleo Iconográfico do Hospital de Dona Estefânia
ME – meningoencefalite NIPS – Neonatal Infant Pain Scale
MELAS – mitochondrial myopathy encephalopaty lactic acidosis and stroke NIV – Nutrient Intake Values
like episodes nm – namómetro
MENDS – MElatonin in children with Neurodevelopmental Disorders NNN – meio de cultura de Novy, McNeal e Nicolle
and impaired Sleep NO – óxido nítrico
mEq/L – milequivalente por litro NOC – norma de orientação clínica
MERRF – mitochondrial encephalomyopathy with ragged red fibers; NP – nutrição parentérica (ou parenteral)
epilepsia mioclónica (associação a doenças hereditárias do NPT – nutrição parentérica total(ou exclusiva)
metabolism) NR – nefropatia do refluxo
Met Hb – metemoglobina NS – não significativo
MFR – Medicina Física e Reabilitação NT-proBNP – N terminal –proBNP (ver Glossário geral: péptidos
Mg – símbolo químico do magnésio natriuréticos)
mg – miligrama NV – nado vivo
MHC ou CMH – (ver atrás) NYHA – New York Heart Association
MHz – mega hertz
min – minuto O
ml – mililitro O – oxigénio
MM – mielomeningocelo OD – olho direito
MMBP – muito muito baixo peso (sinónimo de EBP), recém-nascido OE – olho esquerdo
de mmc/mmc ou por mmc ou /mm3 (= µL) OEA – oto-emissões acústicas
Mn – símbolo químico do manganês OGE – órgãos genitais externos
MNI – mononucleose infecciosa OGI – órgãos genitais internos
Mo – símbolo químico do molibdénio OI – osteogénese imperfeita
mol – mole OMA – otite média aguda ou opsoclónus, mioclónus, ataxia
mmol – milimole OMS – Organização Mundial de Saúde
mOsm – miliosmole (mOsm/kg de H2O <>mmol/L) ONSA – Observatório Nacional da Saúde
mR – mili-roentgen ORL – Otorrinolaringologia
MR – meticilina- resistente ORS – oral rehydration solute, ou SRO
mrad – mili-rad OSM – otite seromucosa
MRCP – magnetic resonance cholangiopancreatography
mRNA – RNA mensageiro (ou ARNm) P
MS – meticilina sensível P – fósforo ou Pressão ou peso
MSH – melanocyte stimulating hormone ou hormona melanotrópica ou p – pressão
melanotropina P50 – pressão à qual a Hb se encontra saturada a 50% de O2
MTD – mãe toxicodependente Pa – Pascal
MTF – metatarso-falângica PA – pressão arterial ou pancreatite aguda
MTX – metotrexato PAB ou PABA – ácido para-amino-benzóico
MV/mV/uV – mega/mili/micro Volt PAF – Platelet Activating Factor ou factor de activação plaquetária
MW/mW/uW – mega/mili/micro Watt PAH – ácido para-amino-hipúrico
MWS – Muckle-Wells syndrome PAM – pressão arterial média
PAN – poliaterite nodosa
N PANDAS – sigla de Pediatric Autoimmune Neuropsychiatric Disorders
Na – sódio Associated with Streptococcal infections
NAD, NADH- nicotinamida-adenina dinucleotidofosfato (oxidado ou Pa O2 – pressão parcial arterial de O2
reduzido) PA O2 – pressão alveolar de O2
NASPGAN – North America Society for Pediatric Gastroenterology and PAO – pressão arterial ocular
Nutrition PAP – proteína associada à pancreatite
NB – note bem PAPA – sindroma englobando artrite piogénica, piodermite
NCI – National Cancer Institute gangrenosa, e acne
NEC – necrotizing enterocolitis (ou ECN-enterocolite necrosante) PAPP-A – sigla do inglês de pregnancy-associated plasma protein A
NFCS – Neonatal Facial Coding Scale PAR – pressão arterial retiniana
ng – nanograma (1 nanograma<> 1 milionésimo de mg) PAS – pressão arterial sistólica ou ácido para-amino-salicílico
NHCS – National Center for Health Statistics Paw – pressure airway ou pressão media na via aérea (ou MAP)
NIDCAP – Newborn Individualized Developmental Care Assessment Pb – chumbo
Program (Programa Individualizado de Avaliação do PB – prega bicipital
Desenvolvimento do RN) PBI – Protein Binding Iodine ou iodo ligado às proteínas
Abreviaturas XLI
135
(leucócitos) e plaquetas, só produzindo glóbulos
vermelhos (eritrócitos) pelas 28-30 semanas. Deduz-
-se que no recém-nascido muito imaturo se verifica
hematopoiese extramedular, salientando-se que o
fígado constitui o órgão hematopoiético predomi-
nante entre as 20 e 24 semanas de gestação.
HEMATOPOIESE No recém-nascido de termo (> 37 semanas), a
medula óssea (suporte estrutural e microambiente
Ema Leal e A. Bessa Almeida para a hematopoiese) da quase totalidade dos
ossos, constitui o principal local de produção de
eritrócitos.
Com o crescimento, apenas a medula óssea do
Introdução esqueleto axial – vértebras, costelas, crânio, ossos
da bacia e fémur proximal – mantém actividade
A hematopoiese (termo sinónimo de hemopoiese hematopoiética (medula vermelha). Após a pu-
ou hemocitopoiese) é o processo pelo qual são berdade, a hematopoiese fica praticamente restri-
produzidos os elementos figurados do sangue. Tal ta ao esqueleto axial. Nos outros ossos, embora
processo de desenvolvimento envolve uma série com espaço medular preenchido predominante-
de etapas que se iniciam numa célula com poten- mente por tecido adiposo (medula amarela), é
cialidades de diferenciação – a chamada célula mantida a capacidade hematopoiética.
hematopoiética pluripotencial ou estaminal; com Na vida adulta, a hematopoiese medular é sufi-
efeito, as células estaminais, diferenciando-se, ciente para cobrir as necessidades em condições de
constituem os primórdios de todos os elementos normalidade. Em caso de doença da medula óssea
celulares sanguíneos (eritrócitos, vários tipos de com insuficiência funcional (por exemplo infecção
granulócitos, monócitos, plaquetas) e de células ou neoplasia), a actividade hematopoiética extra-
do sistema imunitário. medular pode desenvolver-se novamente (desi-
À luz dos conhecimentos actuais, existem es- gnadamente no fígado e baço).
sencialmente duas ordens de factores que deter-
minam a diferenciação no sentido de determinada Etapas de hematopoiese
linhagem celular: factores moleculares intracelu-
lares (intrínsecos) e factores externos ou extrínse- As células estaminais pluripotenciais encontram-
cos (factores de crescimento hematopoiético en- -se nos locais de hematopoiese numa proporção
globando interleucinas, eritroproietina, trombo- de uma célula estaminal para 104 células medu-
poietina e factores de crescimento de colónias de lares, podendo ser encontradas em pequena pro-
macrófagos e de granulócitos). porção no sangue periférico.
Neste capítulo são descritos aspectos funda- As referidas células pluripotenciais, dividin-
mentais da hematopoiese para melhor compreen- do-se, dão origem a células com uma linhagem de
são dos problemas clínicos que integram os capí- crescimento restrita.
tulos seguintes. Dois tipos principais de células derivam da cé-
lula estaminal pluripotencial: a célula progenitora
Locais de hematopoiese linfóide que dá origem aos diferentes tipos de lin-
fócitos; e a célula mielóide ou progenitora de gra-
Durante o desenvolvimento embrionário, o local nulócitos, eritrócitos, monócitos e megacariócitos,
onde ocorre a hematopoiese varia ao longo do tem- que dá origem aos restantes elementos celulares
po, sendo que os respectivos locais mais precoces sanguíneos. Estas células perdem a capacidade de
são o saco vitelino, com início aos 10 a 14 dias de auto – renovação e originam uma linhagem celu-
gestação e, posteriormente, o fígado pelas 6 a 8 lar específica. (Quadro 1)
semanas. Pelas 22-24 semanas de gestação, a medu- As células hematopoiéticas crescem e adqui-
la óssea fetal começa a produzir glóbulos brancos rem estádios de maturação numa rede de células
CAPÍTULO 135 Hematopoíese 649
do estroma não hematopoiéticas que incluem adi- eritrócitos e regulando a produção dos mesmos;
pócitos, células endoteliais, fibroblastos e macró- – factor da célula estaminal que,originada na
fagos. Com a comparticipação de factores de cres- matriz medular, promove a proliferação das célu-
cimento é, assim, criado um microambiente favo- las progenitoras de determinada linhagem;
rável à hematopoiese. – interleucinas (IL), numeradas de 1 a 23, que
A capacidade de determinada célula progenito- estimulam a diferenciação de vários tipos celu-
ra se diferenciar no sentido de determinada li- lares;
nhagem depende da aquisição de resposta a certos – trombopoietina (TPO) que estimula o cresci-
factores de crescimento, sendo que o microambiente mento e diferenciação dos progenitores plaque-
particular, no qual a célula progenitora se incorpo- tários.
ra, contribui para a regulação de tal diferenciação. Estes factores são biologicamente activos, mesmo
em concentrações muito baixas.
Factores de crescimento Os CSFs (citocinas produzidas no microam-
hematopoiéticos biente da medula óssea por macrófagos, células
endoteliais e fibroblastos reticulares) actuam por
Foram identificados vários factores de crescimen- etapas, induzindo a maturação adequada.
to hematopoiéticos: A IL – 3 actua precocemente, ao nível da célula
– factor estimulador de colónia multilinhagem pluripotencial, para induzir a formação dos eritró-
(multi – CSF/colony stimulating factor ou IL-3/inter- citos, monócitos, granulócitos (neutrófilos, eosinó-
leucina – 3); filos, basófilos) e megacariócitos.
– factor estimulador de colónia de granulócitos O GM – CSF actua num estádio ulterior e os M-
e macrófagos (GM-CSF/granulocyte-macrophage – CSF e G – CSF, ainda mais tarde.
colony stimulating factor); De referir que a diferenciação de uma célula
– factor estimulador de colónia de macrófagos progenitora verifica-se paralelamente ao processo
(M – CSF /macrophage-colony stimulating factor); de expressão progressiva de receptores de mem-
– factor estimulador de colónia de granulócitos brana celular que são específicos para determina-
(G – CSF/granulocyte-colony stimulating factor); das citocinas.
– eritropoietina (EPO) que induz o desenvolvi-
mento da chamada EC-FU/erythroid colony-form- Eritrocitopoiese
ing unit ou unidade formadora de colónia eritrói-
de, conduzindo sequencialmente à formação dos A eritrocitopoiese (ou eritropoiese) corresponde à
650 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
produção e desenvolvimento de glóbulos verme- eritrócitos fetais são diferentes dos eritrócitos das
lhos maduros (eritrócitos). Inicia-se, tal como todas crianças maiores quanto a teor em enzimas (menor)
as outras células, com a célula estaminal pluripo- e quanto a deformabilidade (menor) da respectiva
tencial. membrana.
A primeira célula que é reconhecida e pré- O tempo de vida médio do eritrócito em circu-
-determinada para conduzir especificamente ao de- lação no adulto e crianças mais velhas é 100 a 120
senvolvimento de eritrócitos, é o proeritroblasto (ci- dias; na criança mais pequena tal período é inferi-
toplasma basófilo, cromatina laxa e nucléolos). Com or; no recém – nascido de termo, 60 a 90 dias, e no
o desenvolvimento, o respectivo núcleo torna-se pré – termo, 35 a 50 dias. Estas diferenças ocorrem
mais pequeno e o citoplasma mais basófilo devido à por imaturidade metabólica. No final deste perío-
presença de ribossomas. Nesta fase a célula, dimi- do a célula é removida para o baço e submetida a
nuindo progressivamente de dimensões, é designa- fagocitose.
da por eritroblasto basófilo. Posteriormente, o cito- Todo este processo é, como foi referido, regula-
plasma capta coloração básica e eosina, pelo que a do pela eritropoietina, hormona (glicoproteína)
mes-ma se passa a chamar eritroblasto policromató- produzida no rim como resposta à hipóxia dos
filo (maior condensação cromatínica, citoplasma de tecidos; no feto, o valor elevado de hemoglobina
tonalidade intermédia entre a basófila e a acidófila). resulta da produção de eritropoietina (no fígado,
O citoplasma torna-se, entretanto, mais eosinofílico neste caso), como resposta ao valor baixo da
e a célula passa a chamar-se eritroblasto ortocro- pressão do oxigénio (PO2) durante a vida intra-
mático (máxima condensação cromatínica, citoplas- uterina.
ma acidófilo); perdendo o seu núcleo, entra na cir- Durante os primeiros meses da vida pós-natal
culação como reticulócito, sendo que o citoplasma o crescimento rápido, a vida média encurtada dos
se mantém acidófilo. eritrócitos e o processo de menor actividade da
A designação de reticulócito é explicada pelo eritropoiese, originam um declínio progressivo
aspecto de redes de polirribossomas que exibe; de dos níveis de hemoglobina, atingindo-se os valo-
referir que tal precursor altamente especializado do res mais baixos por volta das 8-10 semanas; é o
eritrócito tem papel fundamental na formação de chamado nadir fisiológico, o qual é mais precoce e
cadeias de globina, de heme e de enzimas glicolíti- mais acentuado se o parto tiver ocorrido prematu-
cas; o ferro acoplado à transferrina, ligando-se aos ramente (gravidez encurtada).
receptores desta no mesmo reticulócito, é incorpo- Como resposta à diminuição da hemoglobina e
rado no heme que, por sua vez, se combina com a ao consequente défice de oxigenação tecidual, ve-
globina (com 4 cadeias de polipéptidos designadas rifica-se uma “retoma” da eritropoiese por estimu-
por letras do alfabeto grego: alfa, beta, delta, gama, lação da eritropoietina; tal “retoma” é traduzida
ou α, β, δ, γ) para formar a hemoglobina. pelo aumento do número de reticulócitos circu-
Perdendo os ribossomas, o reticulócito torna- lantes, aumentando, entretanto, de modo gradual
-se glóbulo vermelho maduro (eritrócito). o nível de hemoglobina com incremento de pro-
Durante a vida embrionária e fetal os genes da dução de Hb A (que compreende o tipo A1 e o tipo
globina são sequencialmente activados e inactiva- A2). Pelos seis meses de idade, nas crianças sau-
dos. A hemoglobina (Hb), produzida durante o pe- dáveis a síntese de cadeias gama (γ) (que faz parte
ríodo de eritropoiese operada no saco vitelino, é da Hb F) é vestigial. (ver adiante)
mais tarde substituída pela hemoglobina fetal (he- Em resumo, em situações de normalidade a
moglobina F- com cadeias de globinas; 2 alfa e 2 proporção das várias hemoglobinas, numa pers-
gama) na fase de eritropoiese hepática. Durante o pectiva cronológica, é a seguinte: no recém-nasci-
terceiro trimestre da gestação, diminuindo a pro- do: Hb F 50-88% e Hb A1 20-40%; neste momento
dução de cadeias gama, estas são substituídas por é excepcional a presença de Hb A2. Por volta dos
cadeias beta, do que resulta a hemoglobina A, com 5 meses encontra-se 3-15% de Hb F, no segundo
2 cadeias alfa (α) e 2 cadeias beta (β). Nos casos de semestre cerca de 2,9%, no segundo ano 1,8% , no
gravidez decorrendo com diabetes materna poderá terceiro ano 1%, e, no quarto ano 0,8%. À medida
verificar-se atraso na produção de cadeias beta. Os que a Hb desce, verifica-se aumento progressivo
CAPÍTULO 135 Hematopoíese 651
de Hb A1 em cada eritrócito. Por volta do quarto Salienta-se que somente os bastonetes e os neu-
ano, a composição hemoglobínica do indivíduo é trófilos maduros têm capacidade funcional plena
a seguinte: Hb A1 – 96 a 98%; Hb A2 – 1 a 3%; Hb com respeito à fagocitose, quimiotaxia e destruição
F – vestigial. bacteriana.
Recorde-se também a designação das cadeias Quando se verifica aumento do número de
de globinas nas várias hemoglobinas normais bastonetes diz-se que há “desvio à esquerda”.
segundo o critério cronológico atrás definido:
todas as Hb normais têm 2 cadeias alfa; Hb A1: α2 Monocitopoiese
e β2 – (fórmula: α2 β2); a Hb F possui 2 cadeias α
e 2 γ – (fórmula: α2 γ2); a Hb A2 possui duas A primeira célula identificável “destinada” ao
cadeias α e duas cadeias δ – (fórmula: α2 δ2). desenvolvimento de monócitos é o monoblasto.
Este evolui para promonócito e, posteriormente,
Linfocitopoiese para monócito maduro. O monócito maduro pou-
co depois de ser formado, entra em circulação,
A primeira célula morfologicamente reconhecível onde permanece três dias. Posteriormente migra
como pertencente à linhagem linfóide é o linfo- para os tecidos, não voltando à corrente sanguínea.
blasto. Este divide-se 2 a 3 vezes para formar o
promielócito. O promielócito diferencia-se em lin- Trombocitopoiese
fócito B ou T maduro.
A diferenciação do progenitor B até ao estádio A primeira célula identificável que dá origem às
de linfócito maduro completa-se na medula óssea plaquetas é o megacarioblasto. Este duplica o seu
com migração ulterior para órgãos linfáticos (gân- núcleo e citoplasma até 7 vezes, sem que ocorra
glios linfáticos, baço e amígdalas). Somente ocorre divisão celular. Forma, assim, o megacariócito.
diferenciação em plasmócito ou célula B de me- O megacariócito é uma célula gigante, a qual
mória após exposição antigénica. se identifica como célula maior num aspirado de
A diferenciação do progenitor T até ao estádio medula; é multinucleada, sendo o seu conteúdo
de linfócito T precursor também ocorre na medula em DNA superior, cerca de 15 a 30 vezes, ao con-
óssea. Esta célula desloca-se mais tarde para o timo teúdo de DNA numa célula em geral.
onde prossegue a sua diferenciação. As plaquetas derivam dos megacariócitos, for-
mando-se por invaginação da respectiva mem-
Granulocitopoiese brana celular com ulterior fragmentação do cito-
plasma do qual se destacam.
A granulocitopoiese corresponde ao processo de Tal como os reticulócitos, não têm núcleo, sendo
desenvolvimento dos glóbulos brancos granulóci- o tempo de vida médio em circulação, também, de
tos – neutrófilos, eosinófilos e basófilos. sete a dez dias.
O primeiro precursor identificável ou elemento As plaquetas aderem ao endotélio e superfície
diferenciado no sentido da granulocitopoiese é o subendotelial lesados com o concurso de receptores,
mieloblasto. Seguem-se os estádios de promie- factor de von Willebrand e fibrinogénio; para o
lócito, mielócito, metamielócito e bastonete (núcleo processo de adesão e agregação também concorrem
em crescente ou em U). grânulos específicos libertados pelas mesmas pla-
A maturação dos neutrófilos dura aproxi- quetas.
madamente sete a oito dias. As células maduras
permanecem na medula durante cinco dias, sendo Apoptose
posteriormente libertadas para a circulação san-
guínea. Após circularem durante cerca de seis A hematopoiese é um processo contínuo ao longo
horas, migram para os tecidos periféricos onde da vida. A produção de células sanguíneas ma-
sobrevivem dois a cinco dias (nesta fase maturati- duras é equivalente à sua perda. Este processo é
va verifica-se segmentação do núcleo: polisseg- regulado por mecanismos complexos. A divisão
mentos ou lobos); é o granulócito segmentado. e diferenciação celulares durante a hematopoiese
652 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
136
equilibra-se com o processo da chamada apoptose
(morte celular programada), para garantir a nor-
malidade funcional do organismo. Durante a apo-
ptose há diminuição do volume celular, alteração
do citosqueleto com mudança na conformação da
membrana, condensação da cromatina, degrada-
ção do DNA, aparecimento de corpos apoptóticos SÍNDROMAS HEMATOLÓGICAS
e fagocitose rápida dos mesmos para evitar a in-
flamação. Quando a apoptose falha desenvolve-se EM IDADE PEDIÁTRICA
um estádio leucémico. (Parte XVII)
João M. Videira Amaral
Volume sanguíneo (Volémia)
Valores de referência de hemoglobina (Hb), hematócrito (Ht), volume globular médio (VGM) em fentolitros (fL), concentração média de hemoglobina globular (CHGM) em % ou g/dl, e reti-
culócitos (Rt) em diferentes idades.
(Adaptado de Rudolph CD et al, 2011)
XII
Pré-
aPTT Calicreína PT
XIIa
VII Factor Tecidual
IX (Tromboplastina)
XI XIa
X
VIII IXa
Trombina
(IIa) VIIIa VIIIa
Ca2+ Ca2+
Xa
Ca2+
V Va XIII
Trombina Ca2+
(IIa)
XIIIa
II IIa
Protrombina Trombina
PT& a PTT
Fibrinogénio (I) Fibrina (Ia)
FIG. 2
Hemostase secundária (Consultar texto e Quadro 2): participação fundamental dos factores de coagulação.
as chamadas púrpuras vasculares (vasculopatias) destas situações é feita nas Partes sobre Reuma-
e púrpuras plaquetares. Ambas traduzem ano- tologia e Osteocondrodisplasias.
malias da hemostase primária. A designação de Como exemplos de púrpuras de causa hema-
“púrpura” deriva da cor verificada ao nível da tológica citam-se as situações de trombocitopénia,
pele. primárias ou secundárias, abordadas em capítulo
As púrpuras vásculo-plaquetárias manifes- especial.
tam-se por alterações na coloração da pele ou mu- O défice congénito ou adquirido de determi-
cosas, secundárias ao extravasamento de eritróci- nada proteína procoagulante, originando também
tos nesses locais. Consideram-se petéquias as doença hemorrágica, integra as chamadas coagu-
lesões hemorrágicas minúsculas, menores que 2 lopatias ou anomalias da coagulação, traduzindo
mm, ao nível da derme; e equimoses as maiores alteração da hemostase secundária; manifestam-
que 2 mm, ao nível da hipoderme. -se predominantemente ao nível de grandes
Poderão surgir igualmente epistaxes, gengivor- vasos. Como tradução clínica, surgem os chama-
ragias, hematúria, hematemeses, melenas, etc.. dos hematomas (derrames sanguíneos no tecido
As púrpuras de causa vascular (não hema- celular subcutâno e massas musculares), sufusões
tológica) traduzem-se por petéquias predominan- (derrames sanguíneos em larga superfície do teci-
temente nos membros inferiores, (muitas vezes do celular subcutâneo), hemartroses (hemorragias
agravadas pela posição ortostática) e ou exantema na cavidade articular) e/ou hemorragias viscerais
eritemato-papuloso com sede preferente na super- e intracavitárias.
fície de extensão dos membros inferiores (mas Como exemplos citam-se as coagulopatias pri-
sem poupar outras regiões), de distribuição simé- márias (hemofilia,défice de função plaquetária e
trica nalgumas formas clínicas. doença de von Willebrand) e as secundárias (coag-
Como exemplos de púrpuras de causa vascu- ulação intravascular disseminada, ingestão de fár-
lar-não hematológica citam-se a vasculite de causa macos anticoagulantes, anticonvulsantes maternos,
imunoalérgica (por ex. púrpura de Schonlein- insuficiência hepática, insuficiência renal, doença
Henoch), a associada a lesões traumáticas (por hemorrágica do recém-nascido por défice de vita-
exemplo síndroma da criança maltratada), a asso- mina K, etc.).
ciada a síndroma de Ehlers-Danlos, e a telangiecta- De salientar que nas doenças adquiridas da
sia, angiodisplasia, varizes, etc.. A abordagem hemostase há frequentemente problemas múlti-
(#) O PT é a prova de coagulação utilizada para avaliar a anticoagulação com varfarina. De acordo com recomendações actuais, deve utilizar-se o chamado INR (International Normalized Ratio)
que permite a comparação do PT utilizando larga variedade de reagentes ou instrumentos, e de determinações laboratoriais. No âmbito do tratamento padronizado da doença trombótica o valor
a obter para o INR é 2,0-3,0; nos casos de forma homozigótica do défice de proteína C, ou de doentes com próteses valvulares o valor a atingir para o INR é 3,0-4,0. (ver Capítulo
Hipercoagulabilidade e doença trombótica).
> = aumentado; < = diminuído; N = normal
Nota: 1) PT e PTT são siglas em inglês, correspondentes às abreviaturas em português, respectivamente TP e TTP. 2) Para a compreensão dos parâmetros a avaliar sugere-se a revisão da Figura 2
(relação entre parâmetros a medir e factores implicados).
658 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
137
plos associados. No caso de infecção sistémica
com choque e acidose concomitantes verifica-se
activação da coagulação e da fibrinólise com im-
possibilidade de garantir a função hemostática
normal. No caso de septicémia grave verifica-se
consumo de factores procoagulantes e de antico-
agulantes com consequente desequilíbrio da he- Anemias – Generalidades
mostase pendendo, ou para hemorragia excessiva,
ou para coagulação excessiva. João M. Videira Amaral
O défice congénito ou adquirido de anticoagu-
lante predispoe a trombose ou doença trombóti-
ca, entidade que é abordada no capítulo 153.
O Quadro 5 resume os exames complementares Definição
fundamentais para a avaliação do processo de
hemostase com menção, respectivamente, das A anemia (não uma doença em si, mas manifes-
funções avaliadas e dos valores de referência. (con- tação de vários processos mórbidos) define-se (sob
sultar Figura 2) o ponto de vista quantitativo) como o valor de Hb
inferior ao percentil 5 ou a 2 desvios- padrão (DP)
BIBLIOGRAFIA em relação ao valor médio normal da população
Bain BJ. Diagnosis from the blood smear. NEJM 2005; 353: 498- da mesma idade e do mesmo sexo.
507 Reportando-nos ao capítulo anterior e respec-
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011 tivo Quadro 2, cabe referir que o valor normal de
Christensen RD (ed). Hematological Problems of the Neonate. Hb na data de nascimento é cerca de 17 g/dL,
Philadelphia: Saunders, 2000 diminuindo depois até atingir o valor mínimo de
Figueira F, Alves JGB, Bacelar CH. Manual de Diagnóstico 11 g/dL, aumentando depois até cerca da idade de
Diferencial em Pediatria. Rio de Janeiro: Guanabara 1 ano, atingindo ~12 g/dL; depois, o valor vai
Koogan AS, 2005 aumentando até à puberdade, sendo que na ado-
Freeman HR, Ramanan AV. Review of haemophagocytic lescência os valores de Hb são mais elevados no
limphohistiocytosis. Arch Dis Child 2011; 96:688-693 sexo masculino do que no feminino devido à
Galdó A, Cruz M. Exploracion Clinica en Pediatria. Barcelona: acção dos androgénios.
Editorial Jims,1999 Sob o ponto de vista funcional é importante re-
Hann IM, Gibson BES, Letsky EA. Fetal and Neonatal ferir que pode haver situações de anemia com valo-
Haematology. London : Baillere Tindall, 2001 res de Hb dentro dos limites da normalidade: é o
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson caso das cardiopatias cianóticas ou de doenças pul-
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, monares crónicas em que a Hb tem elevada afini-
2011 dade para o oxigénio, isto é, menor capacidade de
McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of libertação de oxigénio ao nível dos tecidos; de
Pediatrics. Madrid: Panamericana,2010 facto,a causa do défice de oxigenação tecidual (cri-
Rudolph CD, Rudolph AM, et al (eds). Rudolph´s Pediatrics. tério funcional) nos últimos exemplos citados, é
New York: McGraw Hill Medical, 2011 diversa da que resulta das situações associadas a
Hb deficitária (critério de definição quantitativa).
Na prática, de acordo com a Organização Mun-
dial de Saúde, e excluído o recém-nascido (ver
Parte XXXI) são estabelecidos os seguintes critérios
de definição de anemia:
– Entre 7 meses e 5 anos: Hb < 11 g/dL
– Entre 6 e 9 anos: Hb < 11,5 g/dL
– Adolescentes: Hb < 12 g/dL (sexo feminino)
e Hb < 12,5 g/dL (sexo masculino)
CAPÍTULO 137 Anemias – Generalidades 659
IPR <2
a) Microcítica, hipocrómica
Anemia ferropénica,Talassémia, Doença inflamatória crónica, Carência em cobre,
Intoxicação pelo chumbo, Intoxicação pelo alumínio, Anemia sideroblástica, Hemoglobina CC, Piropoiquilocitose here-
ditária, etc..
b) Normocítica, normocrómica
Doença infiltrativa maligna da medula óssea, Aplasia/hipoplasia da medula, Infecção por vírus da imunodeficiência
humana (VIH), Síndroma hemofagocitária, Hemorragia recente,Doença renal crónica, Doença inflamatória crónica
(conectivites, doença inflamatória intestinal), Eritroblastopénia transitória , etc..
c) Macrocítica
Carência em ácido fólico (hemólise crónica, má-nutrição, má absorção,antimetabolitos, fenitoína, trimetoprim-sulfame-
toxazol), Carência em vitamina B12 (regimes vegetarianos, anemia perniciosa, ressecção do íleo, transporte intestinal anó-
malo, défice congénito de factor intrínseco, etc.), Hipotiroidismo, Acidúria orótica, Doença crónica hepática, Síndroma de
Lesch-Nyhan, Síndroma de Down, Insuficiência medular (mielodisplasia, anemia de Fanconi, anemia aplástica, etc.),
Fármacos (álcool, zidovudina, etc.).
IPR >3
a) Hemorragia
b) Doença hemolítica
Hemoglobinopatia (Hb SS,S-C, S-β talassémia), Enzimopatia (défice da desidrogenase da glucose 6- fosfato/G6PD, défice
da cinase do piruvato/PK), Membranopatia (esferocitose hereditária, eliptocitose, ovalocitose), Anemia hemolítica de
causa imune (autoimune, isoimune, provocada por fármacos), Outras causas (síndroma hemolítica urémica, púrpura
trombocitopénica trombótica, coagulação intravascular disseminada), Abetalipoproteinémia, Doença de Wilson, Carência
em vitamina E, Queimaduras.
660 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Metabolismo do ferro
quente, independentemente da existência de defi- O Fe-não heme está presente nos alimentos de
ciência sistémica; origem vegetal, nos ovos e nos suplementos me-
2 – a depleção dos depósitos; quando tal se dicinais, sendo que, na passagem pelo estômago,
verifica, existe capacidade de aumentar 2 a 3 vezes a diminuição do pH reduz a forma férrica a fer-
a taxa de absorção; admite-se, efectivamente, que rosa, mais eficazmente absorvida. Assim, compos-
a saturação da transferrina interfira com os locais tos como o ácido ascórbico, o ácido cítrico e os
de ligação do ferro nos enterócitos duodenais em aminoácidos da alimentação facilitam a absorção.
desenvolvimento; Inversamente, os fitatos (cereais integrais e legu-
3 – a eritropoiese; nas situações em que esta é minosas), os fosfatos (leite de vaca em natureza),
ineficaz (por exemplo, na talassémia ou na anemia os oxalatos (espinafres e beterraba), os taninos
sideroblástica), e através de mecanismo ainda não (chá, café e chocolate) e os polifenóis (certos legu-
esclarecido, a absorção é altamente incrementada, mes) dificultam a absorção; igualmente, o cálcio, o
mesmo na presença de excesso de ferro no orga- cobalto, o chumbo, o manganês, o estrôncio e o
nismo; no entanto, tal não acontece nos casos de zinco, catiões bivalentes próximos do ferro, ao
destruição periférica, como é o caso das anemias competirem com este pelos mesmos receptores
autoimune ou falciforme. celulares, limitam a sua absorção.
4 e 5 – a hipóxia e a inflamação; a travessia do
Fe pela barreira celular depende ainda da integri- Distribuição
dade da mucosa do intestino delgado superior Aproximadamente 0,1% do ferro corporal total
relacionável com hipóxia e inflamação. circula no plasma ligado a uma beta-2 globulina –
O processo de regulação antes referido[de 2 a a transferrina (ou siderofilina). Esta proteína tem
5] parece fazer-se através duma molécula efectora uma capacidade normal de fixação de 350 mg de
(péptido/hormona) chamada hepcidina ou regu- Fe por 100 ml de soro, variando tal capacidade em
lador negativo da absorção de Fe e da libertação função de determinados estados patológicos (ca-
de Fe dos macrófagos, sendo a expressão desta pacidade aumentada nas anemias ferropénicas,
dependente do estado de repleção ou esgotamen- capacidade normal ou reduzida nas anemias asso-
to dos depósitos de Fe: repleção ou sobrecarga das ciadas a processos inflamatórios). (ver adiente)
reservas em Fe resultam em aumento da A transferrina aumenta a solubilidade do Fe,
expressão da hepcidina; em situações de carência previne a formação de radicais livres nefastos e
ocorre o contrário. amplifica o suprimento celular do mesmo Fe. To-
Por sua vez, o aumento da expressão da hep- davia, a sua grande afinidade para o Fe diminui a
cidina resulta em sequestração celular do Fe, e em eficácia dos quelantes (desferroxamina) utilizados
diminuição do Fe sérico. Na prática prática, a ele- em situações de toxicidade.
vação do nível sérico da hepcidina traduz-se em
diminuição do Fe sérico. Transporte e armazenamento
No que respeita ao mecanismo de absorção, Os complexos Fe-transferrina são captados por
existem dois tipos de ferro, heme e não-heme, os receptores de transferrina localizados nas mem-
quais utilizam receptores e vias de passagem dis- branas celulares de todas as células nucleadas. Na
tintos (Ferro ligado ou não ao composto heme). fase seguinte, os referidos complexos Fe- transfer-
O Fe-heme, presente na carne e no peixe, cons- rina ligam-se a organelos celulares (ligandos, com
titui 5 a 10% do ferro ingerido diariamente nos país- porção intracelular e porção extracelular, mais
es desenvolvidos. De elevada biodisponibilidade (2 abundantes na medula óssea, fígado e baço, e
a 3 vezes superior à do não-heme), é absorvido tanto mais quanto maior a carência daquele).
independentemente do pH local e do ciclo da trans- Ocorrida a ligação, inicia-se um processo de inva-
ferrina (ver adiante), sendo pouco influenciado ginação com formação de vesículas de endocitose
pelas reservas reticuloendoteliais. O cálcio constitui para incorporação do Fe na célula. Quando o pH é
o único factor com interferência negativa. Depois de inferior a 6, a transferrina desliga-se do Fe, fixan-
retirado do complexo pela heme- oxigenase, o ferro do-se avidamente ao respectivo receptor antes de
elementar é libertado no plasma. retornar à circulação.
CAPÍTULO 138 Anemia ferropénica 663
Refira-se que também a porção extracelular reservas, a qual é traduzida pela diminuição pro-
destes ligandos é libertada no plasma pelos reti- gressiva do valor da ferritina sérica e da hemossi-
culócitos em maturação, pelo que o seu dosea- derina nos macrófagos da medula óssea.
mento sérico pode ser correlacionado com a taxa 2 – Numa segunda fase mais tardia e de carên-
de eritropoiese. cia mais acentuada, quando a ferritina atinge valor
Cerca de 70 a 90% do metal contido nos endosso- < 12 μg/L (ou < 12 ng/mL), ocorre a situação de
mas corresponde a uma forma activa (Fe2+), maiori- défice de ferro sérico; esta fase traduz-se por
tariamente para ser incorporado na hemoglobina. O diminuição do Fe sérico (quanto maior a carência
restante é armazenado de modo inactivo (Fe3+) no sis- em Fe, mais este é veiculado para a eritropoiese e
tema reticuloendotelial [células de Kupfer do fígado reservas), diminuição da saturação da transferrina
e macrófagos da medula óssea], incorporado em pro- com aumento consequente da capacidade total de
teínas – a ferritina (lábil e rapidamente acessível) ou fixação do ferro aos receptores da mesma transfer-
a hemossiderina (estável e insolúvel). rina, e aumento da protoporfirina eritrocitária livre.
A ferritina reflecte as reservas de Fe no fígado, Refira-se, a propósito, que normalmente a taxa
baço e medula óssea; apenas é identificável por de transferrina alcança cerca de 0,27g/dL, e aproxi-
microscópio electrónico. [ 1 ng/mL de ferritina <> 8 madamente 1/3 encontra-se saturada com o
mg de Fe das reservas ou depósitos]. A hemosside- chamado ferro sérico (22-184 μg/dL). Costuma
rina pode ser identificada por microscopia óptica denominar-se transferrina não saturada, ou sim-
pela coloração dos eritrócitos (siderócitos) do esfre- plesmente transferrina, a fracção correspondente
gaço obtido por aspiração da medula com “azul da aos restantes 2/3 da proteína sérica. A máxima
Prússia” (reacção de Perls, detectando grânulos na capacidade de transporte ou capacidade total de
periferia dos referidos siderócitos). fixação do ferro (CTFF) corresponde, de facto, à
transferrina total (soma das duas fracções).
Reciclagem O aumento da protoporfirina eritrocitária livre
Por último, os eritrócitos senescentes sofrem um traduz acumulação no sangue de precursores do
processo de destruição (lise) plasmática ou de re- heme, o seu não aproveitamento, e diminuição ou
tenção nos macrófagos esplénicos (hemocaterese). impossibilidade de síntese de Hb.
A hemoglobina e grupos heme livres ligam-se, 3 – Numa terceira fase, de carência extrema de Fe,
respectivamente, à haptoglobina e hemopexina, a que corresponde suprimento deste à medula óssea,
sendo posteriormente transportados até ao fígado. mínimo ou nulo, verifica-se diminuição do VGM e
Após processamento, o complexo Fe2+ – transferrina do conteúdo eritrocitário em Hb (CHGM), atingindo-
é reposto em circulação, para ulterior reutilização. se o estádio caracterizado por produção de eritrócitos
Apesar de muitos dos mecanismos ainda não hipocrómicos e microcíticos, ou seja, de anemia fer-
estarem suficientemente esclarecidos, a captação ropénica. Concomitantemente, diminui também a
de ferro, a produção de globina e a biossíntese do síntese de outras metaloenzimas essenciais.
heme ocorrem, em circunstâncias fisiológicas, de
maneira coordenada. Vias reguladoras subjacen- Ferro no organismo fetal
tes permitem aos precursores eritróides rendibi- Um feto pesando cerca de 1 kg contém cerca de 65
lizar a formação de hemoglobina, sem que para mg de Fe, calculando-se que são incorporados nos
isso sobrevenha um excesso de proteína, iões fér- tecidos fetais cumulativamente ao longo da gravi-
ricos livres ou compostos intermediários deriva- dez, cerca de 65-70 mg/kg. Este elemento provém
dos da protoporfirina, que são tóxicos. exclusivamente da placenta, que o remove da circu-
lação materna independentemente da existência de
Fisiopatologia défice. Necessidades crescentes promovem, não só o
aumento do número de receptores de transferrina
Aspectos gerais neste órgão, mas também uma maior absorção intes-
A carência em ferro no organismo processa- se em tinal na grávida. Parece existir, assim, um sistema
3 fases sucessivas, de gravidade crescente: regulador subjacente à unidade feto-placenta-en-
1 – Numa fase inicial verifica-se a depleção das terócitos, que favorece o ser em desenvolvimento.
664 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Desta forma, a anemia neonatal decorrente de fer- QUADRO 1 – Causas de anemia ferropénica
ropénia materna é pouco frequente, sendo observa- em idade pediátrica
da apenas nos raros casos de carência extrema.
Contudo, estes revestem-se de marcada gravidade Aumento das necessidades fisiológicas
face à imaturidade do tracto gastrintestinal, com Crescimento rápido
passagem ineficaz de nutrientes. Gravidez
O recém-nascido de termo (com > 37 semanas Perdas hemorrágicas
completas) possui reservas de ferro suficientes • Menstrual
para os primeiros 4 a 6 meses. Durante este perío- • Gastrintestinal
do, em virtude do acelerado crescimento e da ex- • Pulmonar
pansão do volume sanguíneo, a sua taxa de uti- • Perinatal
lização é consideravelmente elevada, diminuindo • Urinária
o armazenamento para 50%. Ingestão inadequada
A prematuridade, a restrição do crescimento Prolongamento do aleitamento materno exclusivo
intrauterino e a gemelaridade constituem situa- Diminuição da quantidade e/ou biodisponibilidade
ções de menor acumulação de Fe, com precária Má-absorção
formação de depósitos ou reservas. Por outro lado, Cirurgia gastrintestinal extensa
sendo a velocidade de crescimento pós-natal mais Doença celíaca
acentuada, tais reservas esgotam-se, mais rapida- Infecção parasitária
mente, em cerca 2 a 3 meses. Doença de Crohn
A anemia observada nos primeiros 60 a 90 dias Defeitos congénitos
de uma criança de termo (ou nos primeiros 30 a 60 Atransferrinémia
dias de uma pré-termo) decorre da destruição Transferrina disfuncional
eritrocitária fisiológica e não da deficiência de Hiper-hepcidinémia
ferro. Pelo contrário, este é armazenado e gradual- Adaptado de Rudolph CD, et al, 2011
mente reutilizado.
medular permitindo identificar ausência de colo- rência, após esgotamento dos depósitos; por outro
ração dos eritrócitos pelo azul da Prússia. O exame lado, sofre uma variação diurna cíclica (valores 30%
da medula óssea evidencia hipercelularidade, com mais elevados de manhã em relação à tarde) e a
hiperplasia eritróide. Porém, pelo seu carácter inva- influência de inúmeros factores (regime alimentar,
sivo não pode ser empregue por rotina, havendo a inflamação, infecção); assim o seu valor poderá não
necessidade de recorrer a exames indirectos. Desta traduzir com fidelidade o estádio de armazenamen-
forma, são utilizados vários parâmetros hema- to. Na prática, e tendo em conta tais limitações que
tológicos e bioquímicos. (Quadro 2) deverão ser ponderados caso a caso, considera-se
O hemograma evidenciará diminuição do carência se o ferro sérico for < 30 μg/dL.
número de eritrócitos assim como do valor de Hb A capacidade total de fixação do ferro (CTFF)
abaixo do valor esperado para cada faixa etária, mede a disponibilidade dos locais de captação
de acordo com os valores especificados anterior- deste elemento existentes nas moléculas circulantes
mente. (Capítulo 136) de transferrina sendo, por conseguinte, um valor
O volume globular médio eritrocitário (VGM) indirecto dos níveis séricos da proteína de trans-
e a concentração de hemoglobina globular média porte (transferrina). O Quadro 2 elucida sobre os
(CHGM) encontram-se diminuídos (microcitose respectivos valores de referência, concluindo-se
ou VGM < 75 fl) e hipocromia ou CHGM < 25%), que os mesmos vão aumentando à medida que a
enquanto o índice de dispersão globular) (RDW) carência se vai acentuando e se considera anemia
está aumentado (anisocitose ou RDW > 14%). ferropénica se os respectivos valores forem > 410
O número relativo de reticulócitos é normal ou μg/dL. (Nas situações inflamatórias, no entanto, a
discretamente elevado, mas a sua contagem abso- CTFF diminui atingindo valores < 200 μg/dL).
luta apresenta-se reduzida, indicando resposta in- Por outro lado, (e de acordo com o referido na
suficiente à anemia. A diminuição da concentra- Fisiopatologia) a saturação da transferrina (Tsat
ção de hemoglobina reticulocitária (CHr) (< 29 ou razão – em % – entre a concentração de ferro
pg) constitui um indicador precoce de deficiência sérico e a CTFF), indica a proporção de locais de
de ferro, superando a Hb, VGM, RDW, o ferro ligação do ferro à transferrina. Consultando os
sérico e a saturação de transferrina. valores de referência do Quadro 2, (valor normal
O número de leucócitos habitualmente é nor- de 35±15 %), salienta- se que em situação, já de
mal, sendo, por outro lado, frequente a tromboci- depleção de depósitos ou reservas, a saturação
tose (valor de plaquetas entre 500000-700000/μL) ainda é muito próxima do normal, o que constitui
secundária à estimulação megacariocítica pela eri- uma limitação. Quando se atingem valores mais
tropoietina. Todavia, nos casos muito graves pode baixos (<10%) atingiu-se já a fase de anemia.
existir trombocitopénia. Com a deficiência tecidual de ferro ocorre um
A ferritina é o indicador mais precoce de carência aumento paralelo na quantidade de receptores de
de ferro, reflectindo os depósitos do mesmo no fíga- transferrina. Assim, a medição da porção sérica
do, baço e medula óssea. Em geral valores < 10 μg/L destes ligandos (sTR) em nmol/L é útil, não só
(ou < 10 ng/mL) estão associados à referida carência, como marcador precoce de deficiência em ferro,
devendo ter-se em consideração a ampla variabili- mas também na distinção entre esta situação e a
dade fisiológica interindivíduos e a circunstância de anemia das doenças com hipoproliferação eritroci-
o respectivo valor sérico estar aumentado em deter- tária medular.
minadas situações tais como processos inflamató- Sendo o valor normal de sTR < 35 nmol/L, o
rios, doença hepática, infecção, neoplasia, pois se critério para o diagnóstico, quer de estado de
trata de um reagente da fase aguda. depleção de reservas, quer de carência de ferro
Valores baixos de ferritina também poderão sérico, quer de anemia ferropénica, é a verificação
verificar-se em casos de défice de vitamina C e de de sTR = > 35 nmol/L. Salienta-se que nos estados
hipotiroidismo. de hipoproliperação eritrocitária medular o valor
O nível do ferro sérico não é suficientemente de sTR é inferior a 35 nmol/L.
fidedigno para o diagnóstico, pois somente se veri- Nas situações de sideropénia há quantidade
ficam valores baixos em estádios avançados de ca- insuficiente de ferro para se combinar com a pro-
CAPÍTULO 138 Anemia ferropénica 667
toporfirina e formar o grupo heme da hemoglobi- de microcitose resistente ao tratamento com ferro.
na; consequentemente, verifica-se acumulação de No caso do traço β-talassémico os estudos elec-
protoporfirina nos eritrócitos (protoporfirina eri- troforéticos evidenciam um pico de HbA2.
trocitária livre ou PEL). Valores superiores a 70
μg/dL são considerados indicativos de carência Doença crónica
em ferro. De acordo com o Quadro 2 pode veri- A anemia no contexto de doença crónica (também
ficar-se que o valor normal é <40 μg/dL, e que chamada da inflamação crónica) é classicamente
este valor se mantém ainda na fase de depleção de normocítica/normocrómica. No entanto, cerca de
reservas. 20 a 30% evolui para microcítica/hipocrómica
A protoporfirina eritrocitária está também ele- devido ao encurtamento da sobrevida eritroci-
vada nas situações de carência de vitamina C, tária, à dificuldade na mobilização do ferro exis-
infecção/inflamação e intoxicação crónica pelo tente nos macrófagos (com consequente prejuízo
chumbo. na sua reutilização) e à diminuição da absorção
deste nutriente.
Diagnóstico diferencial Em tais circunstâncias o RDW e o sTR são nor-
mais, a CTFF diminui, e a ferritina sérica aumenta.
O diagnóstico diferencial de anemia ferropénica
inclui situações hematológicas caracterizadas por QUADRO 3 – Diagnóstico diferencial
microcitose e hipocromia. (Quadro 3) de anemia ferropénica
As doenças crónicas sem componente infla- gnóstico e terapêutico. Assim, 3 a 4 dias depois
matório não produzem geralmente este tipo de observa-se reticulocitose periférica seguida de
anemia. melhoria clínica e aumento progressivo da hemo-
globina (1-2 g/dL em 4 semanas). Em geral, a
Tratamento reposição das reservas ocorre entre 30 e 90 dias.
O tratamento deve ser prolongado até 3 meses
A pedra basilar do tratamento da anemia ferro- após normalização dos valores de hemoglobina.
pénica assenta na correcção da(s) causa(s) subja- A deficiente adesão à terapêutica, dose desajus-
cente(s) e na reposição das reservas corporais de tada, absorção insuficiente, perdas sanguíneas per-
ferro. sistentes e erro diagnóstico podem estar na origem
Na administração oral de sais de ferro deve ser de resposta inadequada ao tratamento substitutivo.
dada preferência ao sulfato ferroso pela sua maior A transfusão de concentrado eritrocitário tem
biodisponibilidade e baixo custo. Este composto lugar apenas quando a anemia desencadeia grave
contém 20% de ferro elementar pelo que, para ren- compromisso cardiovascular (insuficiência cardía-
dibilizar a resposta, é necessária uma dose diária de ca), ou está associada a valores de Hb < 5 g/dL.
6mg/Kg de Fe elementar dividida em 2 a 3 tomas Relativamente ao tratamento (futuro) da anemia
administradas sem leite e no intervalo das refeições. na inflamação crónica, cabe referir a investigação
Os efeitos laterais são dose-dependentes, sendo os actualmente em curso no âmbito da hepcidina.
mais frequentes do foro gastrintestinal (manchas Estudos recentes demonstraram, em doentes
dentárias, náuseas, cólicas abdominais, obstipação e febris, valores séricos elevados de hepcidina, fer-
diarreia). Habitualmente, a redução da dose, ou a ritina e de ratio ferritina/ferro, associados a
sua administração com alimentos, diminui estas siderémia baixa.
complicações.
O ferro administrado por via parentérica, Prevenção
actualmente com indicação excepcional, utiliza-se
quando os compostos administrados por via oral Apesar da baixa sensibilidade e baixa especifici-
são mal tolerados ou mal absorvidos. dade, o inquérito nutricional pode ter utilidade
A dose pode ser calculada através da seguinte para identificar situações de carência: <5 refeições
fórmula: semanais de carne, cereais, legumes e fruta;
Ferro (mg) a administrar = Défice de Hb >500mL/ dia de leite de vaca; ingestão diária de
(g/dL) x Peso corporal (Kg) x 0.22 snacks, doces e refrigerantes, etc..
Nota: não ultrapassar 7mg/Kg em cada adminis- Os profissionais de saúde exercendo no âmbito
tração. dos cuidados primários de saúde têm um papel
A injecção intramuscular de ferro é bastante do- fundamental na prevenção da carência de ferro e
lorosa, podendo provocar coloração cutânea perma- das suas complicações, promovendo, como norma
nente, necrose muscular e abcessos estéreis, pelo que geral, a alimentação com cereais e alimentos ricos
foi abandonada. O ferro-dextrano intravenoso em ferro a partir dos 4-6meses.
poderá originar anafilaxia, pelo que deve ser sempre A Academia Americana de Pediatria recomen-
realizada uma prova de tolerância (10 mg perfundi- da o rastreio universal (Hb e hematócrito):
dos durante 30 minutos) em local com possibilidade – Entre os 9 e os 12 meses de vida, e nova-
de reanimação. As preparações de ferro-sacarose e mente 6 meses mais tarde, em comunidades com
ferro-gluconato de sódio estão aparentemente elevada prevalência de anemia ferropénica
menos associadas a este tipo de complicações. Ou- – Na restante população, tal rastreio deverá ser
tros efeitos laterais da administração parentérica realizado nas mesmas idades, mas dirigido aos
englobam náuseas, vómitos, cólicas abdominais, grupos de risco (recém-nascidos com anteceden-
rubor facial, cefaleias, mal-estar, mialgias, artralgias, tes de prematuridade, restrição de crescimento
urticária, linfadenopatia e derrame pleural. intra-uterino e/ou baixo peso de nascimento, ali-
O aparecimento de resposta hematológica e mentados com fórmulas não enriquecidas, crian-
bioquímica constitui um importante factor dia- ças com mais de 6 meses alimentadas com leite
CAPÍTULO 138 Anemia ferropénica 669
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670 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
139
e de ácido fólico conduz a diminuição da metio-
nina, de homocisteína, de tetra-hidro-folato, de ti-
midina trifosfato, e a síntese deficitária de ADN.
Para a absorção da vitamina B12 torna-se fun-
damental a sua combinação com o factor intrín-
seco (FI) formando um complexo que é absorvido
ANEMIA MEGALOBLÁSTICA no íleo terminal.
Considerando embora a raridade, a situação
João M. Videira Amaral mais frequente de carência de vitamina B12 rela-
ciona-se com anomalias da absorção, congénitas ou
adquiridas. Como exemplos citam-se: ausência ou
défice de FI (respectivamente anemia perniciosa
Definição e importância do problema congénita e anemia perniciosa juvenil de causa
autoimune); síndroma de Imerslund-Grasbeck em
A chamada anemia megaloblástica engloba um que existe um defeito congénito selectivo ao nível
conjunto de situações caracterizadas por anomalia do íleo terminal comprometendo a absorção de vit-
da síntese de ácido desoxirribonucleico (ADN) amina B12, não susceptível de correcção com FI.
com consequente aumento do volume dos precur- Outra situação rara, congénita, (autossómica
sores das três séries hematopoiéticas, apoptose recessiva) é explicável por deficiência do principal
intramedular e hematopoiese ineficaz. transportador fisiológico da vitamina B12, a trans-
A verificação de macrocitose associa-se a três cobalamina II (TC-II) do que resulta defeito da
grupos de factores: falência medular, diminuição absorção.
da produção de eritropoietina e anomalia do pro- O papel da TC-II para a vitamina B12 é seme-
cesso de maturação medular. lhante ao da transferrina para o ferro, sendo que
A anemia megaloblástica, rara em idade pediá- em células necessitando de Fe e vitamina B12 exis-
trica, tem manifestações multissistémicas. Salienta- tem receptores específicos para TC-II e transferrina.
-se a importância do diagnóstico e tratamento de Outras causas de má-absorção de vitamina B12
certas formas deste tipo de anemia pela possibili- incluem infecção por Helicobacter pylori, síndro-
dade de lesões neurológicas irreversíveis caso tal mas em que se tenha verificado ressecção do íleo
não se verifique. terminal ou exista disfunção do mesmo (por
exemplo, síndroma de ansa cega, síndroma de
Etiopatogénese intestino curto, doença de Crohn, pancreatite,
etc.). A administração de fármacos como a colesti-
Existem dois nutrientes com vias metabólicas ramina compromete igualmente a absorção de
comuns, essenciais para a síntese de ADN: a vita- vitamina B12 por bloqueio metabólico.
mina B12 (cobalamina) e o ácido fólico, interagin- O défice de ingestão, designadamente em ve-
do, cuja carência é determinante para a génese da getarianos e em crianças amamentadas por mães
anemia megaloblástica. portadoras de estados carenciais também contribui
À vitamina B12 é uma coenzima do 5- metil- para a carência daquela.
tetra-hidro-folato ligando-se ao respectivo grupo A carência de ácido fólico, mais frequentemente
metil formando-se tetra-hidro-folato; de tal li- associada a baixa ingestão é, em geral, acom-
gação resulta a metilcobalamina que interfere (tal panhada de carência proteica e de outros nutrientes.
como o ácido fólico) na conversão da homocisteí- O paradigma é a anemia pluricarencial no contexto
na em metionina. de má-nutrição.
O tetra-hidro-folato é fundamental para a for- Para além do défice de ingestão, tal carência
mação de diversos cofactores que intervêm na sín- pode ser devida a: absorção inadequada (ano-
tese da timidina-trifosfato, essencial para a síntese malia ao nível do terço superior do intestino del-
de ADN. gado), bloqueio metabólico (medicação com feno-
Consequentemente, a carência de vitamina B12 barbital e difenil-hidantoína), alimentação exclusi-
CAPÍTULO 139 Anemia megaloblástica 671
vitamina B12 radioactiva; se se verificar absorção para garantir a sua utilização e rendibilizar o
normal poderá concluir-se que a anomalia não transporte, as doses referidas devem ser aumen-
reside na falta de FI, mas possivelmente na ausência tadas (via parentérica duas vezes por semana,
de receptores ileais ou noutras causas intestinais. durante toda a vida).
Em condições normais, a medição da radioac- No que respeita ao regime alimentar há que
tividade da urina mostra que mais de 10-15% da vit- privilegiar as fontes naturais mais ricas no nu-
amina B12 radioactiva injectada é eliminada na urina; triente (vitamina B12) tais como carnes bovina e
se a taxa de eliminação for inferior, tal significa que suína, ovos, leite e produtos lácteos.
a vitamina B12 radioactiva não foi absorvida. Além da correcção das carências específicas, o
tratamento inclui igualmente outras medidas para
Tratamento correcção de problemas eventualmente associados
tais como trombocitopénia, hemorragias, neu-
Tendo em conta que nos casos de carência de vita- tropénia, infecções, outras carências nutricionais
mina B12 a administração de ácido fólico poderá associadas, etc..
agravar o respectivo quadro neurológico, o início da
terapêutica como objectivo de corrigir as carências Profilaxia
de vitamina B12 e de ácido fólico somente deverá ter
lugar após comprovação laboratorial das mesmas. Como medidas gerais apontam-se, essencialmente:
Na carência de ácido fólico está indicada a – detecção dos grupos de risco (indivíduos em
administração de folato na dose de 0,5 a 1 mg/dia que são identificados factores etiopatogénicos
durante 2 a 4 meses, tempo necessário para a atrás discriminados);
reposição das reservas no organismo; em síndro- – regime alimentar incluindo designadamente
mas de má- absorção poderá estar indicado trata- frutas e vegetais crus;
mento continuado (0,25 a 1 mg/dia). – determinação dos níveis séricos de vitamina
No que respeita a regime alimentar, recorda-se B12 e ácido fólico em vegetarianos estritos;
que as frutas, vegetais frescos crus e carnes são – evicção do leite de cabra (não habitual no
fontes importantes de folatos. nosso país, mas mencionado apenas por razões
Na carência de vitamina B12 o tratamento é le- didácticas e históricas).
vado a cabo com a forma activa de vitamina B12 - a
hidroxicobalamina – por via intramuscular, BIBLIOGRAFIA
podendo ser utilizados diversos esquemas; em Carmel R, Green R, Rosenblatt DS, et al. Update on cobalamin,
regra, aplica-se a dose de 25- 100 μg/dia durante folate and homocysteine. Hematology Am Soc Educ
uma semana, tempo em geral suficiente para pro- Program 2003; 62-81
mover a regressão de sinais e sintomas e para Crocetti M, Barone MA. Oski´s Essential Pediatrics.
reposição das reservas. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004
A dose de manutenção é 200-1000 μg / semana Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon,2011
por via intramuscular durante 5 semanas até se Hoffman R, Benz EJ, Shattil SJ, et al. Hematology: Basic
verificar normalização dos parâmetros hema- Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier Churchill
tológicos (iniciada com reticulocitose após 5-8 dias Livingstone, 2007
de tratamento). Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
Nos casos acompanhados de sinais neurológi- Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011
cos preconiza-se 1000 μg/mês ou quinzena, apro- Koletzko B. Pediatric Nutrition in Practice. Basel: Karger, 2008
ximadamente durante 6 meses, em função da McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
resposta terapêutica. Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010
Nas síndromas de má absorção não susceptí- Nathan G, Orkin SH, Ginsburg O, Look At. Nathan and Oski’s
vel de correcção está indicado o tratamento con- Hematology of Infancy and Childhood. Philadelphia:
tinuado na dose de 200-1000 μg/mês. Saunders, 2003
Nos defeitos congénitos de TC-II, tendo em Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA(eds).
conta a necessidade de níveis altos de cobalamina Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Medical, 2011
CAPÍTULO 140 Anemias hemolíticas – Generalidades 673
140
QUADRO 1 – Anemias hemolíticas de causa
intrínseca (intraglobular)
Hereditárias
– Defeitos da membrana
Anomalias morfológicas específicas da membrana
ANEMIAS HEMOLÍTICAS – • Esferocitose hereditária
• Eliptocitose hereditária
GENERALIDADES • Estomatocitose hereditária
• Anemia hemolítica congénita com eritrocitos
Lígia Braga desidratados
Alteração da composição dos fosfolípidos (aumento da lecitina)
Defeitos secundários da membrana
• Abetalipoproteinémia
Definições e etiopatogénese
– Defeitos enzimáticos
Anemia hemolítica é definida como a anemia Défice da desidrogenase da glucose –6-fosfato
resultante de destruição excessiva de eritrócitos. Défice de piruvatoquinase
Este grupo de doenças hematológicas partilha Défice de hexoquinase
uma característica comum: o encurtamento da Défice de fosfofrutoquinase
vida média do eritrócito a qual, em condições de Défice de triosefosfatoisomerase
normalidade, é cerca de 120 dias. Défice de fosfogliceratoquinase
Quando se verifica diminuição do tempo de
– Defeitos da hemoglobina
vida média, o sistema hematopoiético incrementa
Heme
a actividade, não surgindo anemia até que tal
• Porfíria congénita eritropoiética
capacidade compensadora seja ultrapassada.
Globina
Quando, em circunstâncias de hemólise, os
• Qualitativos: hemoglobinopatias de estrutura/
valores de hemoglobina (Hb) e de eritrócitos (E) se
síndromas falciformes
mantêm dentro dos limites da normalidade, uti-
• Quantitativos: hemoglobinopatias de síntese/
liza-se o termo de hemólise compensada; por
síndromas talassémicas
outro lado, quando tais valores diminuem, utiliza-
-se o termo de anemia hemolítica.
Não hereditárias
Existem dois tipos de hemólise: extravascular
– Hemoglobinúria paroxística nocturna
e intravascular; o primeiro consiste num aumento
(patológico) do processo natural ou fisiológico e
crónico de destruição eritrocitária nos macrófagos Classificação
do fígado e baço (SRE) e acompanha-se de esple-
nomegália; o segundo corresponde a um fenó- O Quadro 1 discrimina as principais entidades
meno patológico, em geral agudo, cursando com clínicas que fazem parte do grupo “causa intrínse-
hemoglobinúria. ca realçando-se que, na sua grande maioria, se
trata de situações hereditárias.
Recordam-se os principais mecanismos res- As anemias hemolíticas de causa extrínseca
ponsáveis pela hemólise: causa intrínseca ou (acção de agentes externos actuando sobre eritró-
anomalia intraglobular (alterações da membrana citos estruturalmente normais) são doenças adqui-
eritrocitária, da hemoglobina, das enzimas eritro- ridas, independentemente de se manifestarem no
citárias), e causa extrínseca ou por mecanismo recém-nascido (congénitas, embora adquiridas in
extraglobular. utero).
Destes mecanismos decorre a classificação, É difícil elaborar uma classificação totalmente
abordada na alínea seguinte. satisfatória dos pontos de vista etiopatogénico e
674 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
141
QUADRO 2 – Anemias hemolíticas de causa
extrínseca (extraglobular)
Etiopatogénese
glicoforina
bicamada lipídica
banda 3
4.2
anquirina 2.1
4.1
actina
β – espectrina α – espectrina
FIG. 1
Estrutura molecular da membrana dos eritrócitos focando aspectos fundamentais.
perfície externa da referida dupla camada lipídica, da membrana fazem com que a mesma sofra rup-
quer na sua superfície interna. Entre as extremi- tura ou perda durante a passagem dos eritrócitos
dades internas da banda 3, glicoforina, e a espec- pelo baço com consequente remoção pelos macró-
trina existem proteínas intercalares designadas fagos; tal é facilitado pela diminuição da veloci-
por 4.2, 4.1, anquirina 2.1. Esta estrutura no seu dade circulatória dos mesmos.
conjunto é a principal determinante da forma e Os esferócitos afectados são excessivamente
flexibilidade dos eritrócitos. (Figura 1) permeáveis ao sódio com consequente hiperac-
Estas proteínas e outras (não mencionadas por tividade da bomba Na-K que expulsa este ião do
razões de simplificação) são codificadas por cinco interior do eritrócito por contragradiente osmóti-
genes localizados nos cromossomas 6 e 12. co. A referida bomba requer energia (ATP) que
Especificamente, na EH as anomalias ao nível provém da glicólise.
da membrana eritrocitária envolvem alteração dos Acontece também que no baço o baixo teor de
componentes lipídicos, défice quantitativo ou dis- glicose necessária para o funcionamento da referi-
função das referidas proteínas por mutações di- da bomba contribui para a claudicação desta por
versas dos genes da anquirina, da alfa e beta es- défice de energia, o que também favorece a he-
pectrina (mais frequente), e da banda 3. mólise.
A diversidade de mutações possíveis traduz-se
As anomalias estruturais de base molecular em variabilidade de manifestações clínicas embo-
alteram a flexibilidade dos eritrócitos que, de dis- ra se verifique heterogeneidade das mesmas entre
cos bicôncavos e deformáveis, se tornam esféricos indivíduos com idêntica mutação.
e pouco deformáveis – os denominados esferóci- Por outro lado, há certas associações genó-
tos que se observam no sangue periférico em tipo/fenótipo. Referem-se os seguintes exemplos:
quantidades variáveis – evidenciando fluxo mais – a mutação no gene da banda 3 (AE1) contribui
difícil na microcirculação, designadamente ao para que cerca de 20% da EH apresente um
nível do baço onde o pH mais ácido e o mais baixo quadro clínico de hemólise ligeira compensada; –
teor em oxigénio favorecem a alteração da forma. mutações no gene da α-espectrina (SPTA1), em
A instabilidade funcional e maior fragilidade doentes heterozigóticos e homozigóticos resultam
676 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
em EH grave com níveis baixos de espectrina; – 50% dos doentes no lactente, sendo mais frequen-
mutações no gene da β-espectrina (SPTB) são te nas idades pré-escolar e escolar. De salientar
responsáveis por EH dominante ligeira a modera- que a esferocitose hereditária deve ser considera-
da; – mutações no da proteína 4.2 (EPB42) são da hipótese em todos casos cursando com anemia,
muito frequentes nos japoneses. especialmente se houver história familiar de
O défice da banda 3 e proteína 4.2 (forma do- esplenomegália.
minante), ou só da proteína 4.2 (forma recessiva), Nas formas moderadas o diagnóstico é feito
corresponde a uma minoria de casos. mais tarde, (na idade adulta) e na sequência da
O défice de anquirina verifica-se na maior avaliação de outra patologia não relacionada.
parte dos doentes com EH na forma dominante, Os doentes com EH, tal como os portadores
sendo que também corresponde à anomalia mais doutras anemias hemolíticas crónicas, têm fre-
frequente. quentemente episódios de dores abdominais di-
Microscopicamente, os esferócitos mostram fusas, náuseas, vómitos acompanhando crises de
pouca espectrina nas ligações complexas entre a hemólise (traduzidas por agravamento da ane-
espectrina, anquirina e proteína 4,1 mas com con- mia, icterícia, esplenomegália e reticulocitose).
servação da arquitectura global da membrana,
excepto nas formas graves da doença. Exames complementares
37ºC, a sensibilidade da prova aumenta para cerca diagnóstico é duvidoso (nos esfregaços atípicos,
de 100%. formas ligeiras da doença e ausência de antece-
De salientar que, perante comprovação de es- dentes familiares, designadamente).
ferócitos no sangue periférico, a prova não per- Há provas específicas, apenas viáveis em cen-
mite obviamente distinguir a EH doutras situa- tros especializados, tais como: ectacitometria de
ções clínicas em que se verifica igualmente a exis- gradiente osmótico que mede a deformabilidade
tência de esferócitos (certas formas de anemia eritrocitária; provas de crio-hemólise e auto-
autoimune, isoimunização ABO no RN, etc.). hemólise que avaliam a Hb livre; citometria de
A prova de resistência globular tem limitações fluxo para estudar a proteína da membrana; técni-
quando realizada no recém-nascido pelo facto de cas específicas de electroforese para quantificar as
os respectivos eritrócitos serem mais resistentes à proteínas em défice; e o estudo molecular através
lise osmótica pelo elevado teor em hemoglobina de DNA para rastreio das mutações.
fetal (Hb F). Os achados de determinados exames comple-
Entre os dados bioquímicos, para além da hi- mentares obtidos em conjunto permitem determi-
perbilirrubinémia não conjugada, pode verificar- nar a gravidade da EH: o Quadro 1 é elucidativo.
-se hipersiderémia e hipercolesterolémia nalguns
doentes. Complicações
No que respeita a achados radiológicos cabe
referir sinais ósseos de hiperplasia eritropoiética Nas formas graves existe maior probabilidade de
(alargamento da medular dos ossos longos e adel- complicações as quais podem ser sistematizadas
gaçamento da cortical, crânio em “escova”, etc., do seguinte modo:
em relação com a gravidade do quadro hema- 1) atraso de crescimento e/ou do desenvolvi-
tológico). mento sexual;
A prova da lise pelo glicerol é uma prova sim- 2) crises aplásticas com duração de 10 a 14 dias
ples que confirma o diagnóstico nas formas secundárias, designadamente a infecção por
ligeiras ou nas heterozigotias, não sendo influen- parvovírus B19, sendo que podem também ser
ciada pela esplenectomia. a primeira manifestação da doença; precedidas
Outros exames complementares poderão estar por febre, dor abdominal, vómitos e sinais
indicados numa minoria de doentes em que o intensificados de anemia, coincidem com
Fragilidade osmótica*
Sangue fresco Normal ou Normal ou Muito Muito Muito
ligeiramente ligeiramente aumentada aumentada aumentada
aumentada aumentada
Sangue incubado Aumentada Muito Muito Muito Muito
aumentada aumentada aumentada aumentada
* Exame gold standard
678 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
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metabolizada através duas vias:
– via das pentoses-fosfato (PP) para a protec-
ção antioxidante (10%);
– via de Embden-Meyerhof (glicólise) para a
produção de ATP (90%).
Na via de Embden-Meyerhof cada molécula de
glicose é metabolizada em duas moléculas de lacta-
to, sendo libertadas duas moléculas de adenosina
trifosfato (ATP). A adenosina monofosfato (NAD) é
uma coenzima essencial para a produção de ener-
gia no eritrócito e para a formação do lactato.
O ATP é necessário para: a manutenção da
forma e deformabilidade; fosforilação dos fos-
folípidos; transporte activo de várias moléculas;
síntese parcial de nucleotídeos de purina e pirimi-
dina; e síntese de glutatião reduzido (GSH).
Devido ao facto de o eritrócito depender uni-
camente da glicólise anaeróbia para a produção de
ATP, deficiências das enzimas envolvidas neste
processo podem ter efeitos significativos na vida
média do eritrócito.
Este tipo de anemias hemolíticas, também de-
signado por enzimopatias eritrocitárias, compre-
ende dois grandes grupos, correspondentes a
anomalias das vias metabólicas previamente
descritas: 1) défice de desidrogenase da glucose –
6 – fosfato (do inglês, vulgo, glucose-6-fosfato
desidrogenase ou G-6PD) e outras alterações rela-
cionadas com a via das pentoses; 2) défice de piru-
vatoquinase (PK) e outras alterações relacionadas
com a via da glicólise.
Neste capítulo é dada ênfase às enzimopatias
680 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
mais frequentes tendo em atenção a sua relativa mente importante: cataliza a oxidação da glicose-
raridade. 6-fosfato em 6-fosfoglicerato, reduzindo concomi-
tantemente a nicotinamida adenina dinucleotídeo
fosfato (NADP) em NADPH.
1. DÉFICE DE DESIDROGENASE A NADPH, cofactor utilizado em muitas
DA GLUCOSE-6-FOSFATO reacções biossintéticas, mantém o glutatião na sua
forma reduzida (GSH).
Importância do problema Assim, o glutatião reduzido nos eritrócitos,
e hereditariedade actuando na neutralização de agentes que poten-
cialmente oxidam a hemoglobina (Hb) ou os com-
O défice de G-6PD é o defeito enzimático mais fre- ponentes da membrana eritrocitária, tem acção
quente do eritrócito, do que resulta maior suscep- preventiva contra lesões resultante de oxidação,
tibilidade aos oxidantes, relacionável com perda sendo que os eritrócitos estão frequentemente su-
total ou parcial da capacidade redutora da referi- jeitos a estresse oxidante.
da enzima. Estima-se que mais de 400 milhões de Se não se formar o glutatião reduzido, a Hb
pessoas em todo o mundo estejam afectadas, precipita formando-se os chamados corpúsculos
sendo na sua maioria assintomáticas. de Heinz; a membrana eritrocitária é lesada, com
Esta doença, também conhecida por “favismo” consequente diminuição da vida média do eritróc-
tem uma distribuição universal com maior ito predispondo a destruição prematura ou
prevalência nas regiões tropicais e subtropicais do hemólise.
Oriente, entre negros africanos Bantús, países da Uma noção importante a reter é a seguinte: a
bacia oriental do Mediterrâneo e Médio Oriente tendência para a hemólise e a gravidade da doença
(valores médios entre 8 e 30%). Portugal é consi- dependem do grau do defeito enzimático; por outro
derado um país de baixa prevalência (cerca de lado, há que atender ao facto de existirem muitas
0,5%) sendo mais elevada nos distritos de Castelo variantes genéticas (mais de 400) de G-6PD a que
Branco, Setúbal, Faro e Lisboa. correspondem actividades enzimáticas variáveis e
A hereditariedade é de tipo recessivo, ligada espectro de manifestações clínicas também variáveis
ao cromossoma X; assim, os indivíduos afectados (desde exuberantes até mínimas ou irrelevantes).
são geralmente do sexo masculino. Contudo, em A forma normal da enzima corresponde à va-
populações com prevalência muito elevada é fre- riante B.
quente encontrar homozigotia com manifestações Entre mais de 400 variantes anormais identifi-
clínicas no sexo feminino. cadas, as mais comuns são as chamadas variantes
Em regra, no sexo feminino a heterozigotia A(-), A(+), e B(-) ou mediterrânicas.
corresponde a formas assintomáticas;de referir A forma mediterrânica B(-), com genótipo de-
que nesta circunstância se verifica resistência à signado por Gd Med/(B-), é mais comum em indi-
malária (Plasmodium falciparum). víduos originários de Portugal, da bacia do
O défice de G-6PD, que se intensifica com o Mediterrâneo (sobretudo Grécia e Itália, Médio
envelhecimento dos eritrócitos, resulta de muta- Oriente), do Irão, Índia e Paquistão. Nesta forma a
ções dum gene localizado no cromossoma X, actividade enzimática de indivíduos do sexo femi-
banda Xq28, gene que possui 18 kb distribuídos ao nino homozigóticos e do sexo masculino hemizi-
longo de 13 exões. Cada mutação produz substitu- góticos é inferior a 5%; os indivíduos do sexo
ições de aminoácidos na enzima com consequente feminino heterozigóticos evidenciam uma taxa de
redução da sua actividade. actividade enzimática entre 30-50%.
A forma A(-), com genótipo designado por Gd
Etiopatogénese (A-), é mais frequente nos indivíduos originários
de África os quais evidenciam actividade enzimá-
No eritrócito, célula anucleada sem mitocôndrias tica entre 8-20%.
nem outros organelos, a G-6PD (aliás presente em De acordo com a Organização Mundial de
todas as células) assume um papel particular- Saúde (OMS), a relação entre o grau de actividade
CAPÍTULO 142 Anemias hemolíticas por defeitos enzimáticos 681
semanas; com efeito, com a regeneração eritro- A anemia normocrómica associada a reticuloci-
citária pós- crise reticulocitária atrás mencionada, tose acentuada é variável, não se observando alte-
verifica-se, como atrás foi referido, que a activi- rações da morfologia dos eritrócitos.
dade da G-6PD é mais elevada nos eritrócitos
mais jovens. Exames complementares
143
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constituída por quatro cadeias de polipéptidos
(tetrâmero).
Existem três hemoglobinas normais a saber:
Hb F predominante a partir da 9ª semana da vida
intrauterina e no recém-nascido, a Hb A1 habitual
no adulto, e a Hb A2 que apenas surge em peque-
nas quantidades. Entre as 4 e 14 semanas de ges-
tação são sintetizadas as Hb Gower 1, Gower 2 e
Portland.
À nascença, segundo diversos estudos são
obtidos os seguintes valores médios: Hb F entre
50-88%, Hb A1 entre 20-40% e Hb A2 entre 0,2-
0,8%. Por volta dos 5 meses encontra- se 3-15% de
Hb F, no segundo semestre 2,9%, no segundo ano
1,8%, no terceiro ano 1%, e no quarto ano 0,8%. A
composição hemoglobínica do indivíduo a partir
do 4º ou 5º ano de vida é a seguinte: Hb A1:
96-98%; Hb A2: 1-3%; Hb F – vestigial.
De referir que a transição do espectro hemoglo-
bínico fetal para o do adulto em cada eritrócito se
faz lentamente com aumento progressivo da A1 e
diminuição igualmente progressiva da F, sendo
que se encontram eritrócitos no decurso de tal
evolução com proporções diferentes das várias Hb.
Na Hb A1 existem duas cadeias designadas
por alfa (α) e outras duas designadas por beta (β)
pelo que a fórmula da globina A1 se representa
por alfa 2 beta 2 (α2 β2).
Todas as Hb normais contêm cadeias α (alfa); a
F possui cadeias γ (gama) em vez de β (beta),
CAPÍTULO 143 Anemias hemolíticas por defeitos da hemoglobina 685
sendo a sua fórmula globínica α2 γ2 (alfa2 cadas conforme o tipo de cadeia globínica afecta-
gama2); a A2 contém δ (delta) em vez de β (beta) da (α, β, γ ou δ), ou a designação da hemoglobina
pelo que a sua fórmula é α2 δ2 (alfa2 delta2). As anormal produzida.
cadeias α (alfa) contêm 141 aminoácidos enquan- É importante salientar que nas hemoglo-
to as β (beta), γ (gama) e δ (delta) compreendem binopatias de estrutura cada variante estrutural é
146 aminoácidos. o resultado de uma mutação específica de gene de
No respeita às Hb embrionárias, a composição um único aminoácido na cadeia da β-globina; por
quanto a cadeias é a seguinte: outro lado, nas talassémias verifica-se uma diver-
Gower 1 → ζ (zeta) 2 ε (epsilon) 2 sidade de mutações (mais de 150) nos genes das
Gower 2 → α2 ε2 cadeias α e β-globina.
Portland → ζ2 γ2 Nalguns países procede-se ao rastreio neonatal
Estas diferentes composições globínicas con- das hemoglobinopatias.
ferem características físico-químicas diferentes às
respectivas hemoglobinas.
Os genes que regulam a síntese das cadeias 1. PORFÍRIA CONGÉNITA
descritas segundo um mecanismo complexo ERITROPOIÉTICA
encontram-se na extremidade do braço curto dos
cromossomas 16 e 11, cada um com uma chamada Importância do problema
zona de agrupamento de genes (cluster).
No cromossoma 16 a referida zona engloba 3 A síntese do heme tem como ponto de partida a
genes responsáveis pela formação de uma cadeia glicina e a succinil-coenzima A com uma sequên-
zeta e duas cadeias alfa (1+2 genes respectiva- cia metabólica e interferência, em vários pontos da
mente). mesma, de determinadas enzimas. As principais
No cromossoma 11 a referida zona de agrupa- porfírias hereditárias correspondem a diversos
mento de genes engloba 5 genes responsáveis pela défices enzimáticos na referida sequência.
formação 1 cadeia ε, 1 cadeia δ, 1 cadeia β e 2 A porfíria congénita eritropoiética ou doença
cadeias γ (1+1+1+2 genes respectivamente) de Gunther é uma doença hereditária rara por
As porfírias congénitas representam as ano- défice de isomerase; transmite-se de modo autos-
malias do heme, enquanto as hemoglobinopatias sómico recessivo.
e as síndromas talassémicas, representam anoma-
lias da globina (respectivamente qualitativas e Manifestações clínicas e laboratoriais
quantitativas).
No que respeita aos problemas relacionados As manifestações, surgindo em geral nas pri-
com a patologia da hemoglobina alguns livros de meiras semanas ou meses de vida, são o apareci-
texto, consideram o conceito “defeitos da hemoglo- mento de urina de cor vermelha e episódios de
bina” como sinónimo de “hemoglobinopatias”. fotossensibilização evidenciados por eritema e
Segundo outros, é estabelecida a seguinte sistemati- bolhas (hydroa estival) podendo conduzir a muti-
zação: lações e cicatrizes nas regiões do corpo descober-
– hemoglobinopatias propriamente ditas ou tas. Outros sinais incluem anemia hemolítica,
de estrutura (referentes a mutação genética deter- esplenomegália e lesões oculares.
minando substituição de um aminoácido numa O diagnóstico é confirmado pela demonstra-
das cadeias polipeptídicas, sendo que as hemo- ção, na urina, de taxa elevada de uroporfirina I e
globinas anormais comuns – S, C, D, E provêm de de coproporfirina I.
substituições nas cadeias β; são exemplos as diver-
sas formas de doença falciforme); e Diagnóstico diferencial
– hemoglobinopatias de síntese (devidas a
défice de síntese das cadeias de globina, originan- O diagnóstico diferencial faz-se com a protoporfíria
do-se uma produção desequilibrada das mesmas; eritropoiética hereditária, a coproporfíria eritro-
são exemplos as síndromas talassémicas classifi- poiética hereditária, porfíria hepática hereditária e
686 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
a porfíria secundária de causa tóxica (chumbo, sul- tação de ambos os genes da β-globina no cromos-
famidas, barbitúricos, hexaclorobenzeno, etc.). soma 11 em ambos os progenitores, varia entre
0,2% nos negros americanos e 6% em certas regiões
Tratamento e prevenção de África; a heterozigotia, que corresponde a
mutação de apenas 1 gene da β-globina de um dos
Os princípios básicos do tratamento baseiam-se progenitores, apenas afecta cerca de 12% dos
na supressão da eritropoiese através de trans- negros americanos e cerca de 40% da população
fusões de sangue e de administração de hidroxi- em certas regiões de África.
ureia para elevar o valor da Hb. No que respeita a Portugal a prevalência dos
O carvão por via oral diminui a absorção de portadores do gene βs na população autóctone
porfirinas. Nos casos graves pode estar indicada portuguesa é ~0,32% (Norte: 0,19%; Sul 1,5%,
transplantação de medula óssea ou de células esta- salientando-se regiões – Coruche, Alcácer do Sal e
minais. A prevenção primária passa pelo aconse- Pias – com valores ~5% onde a malária foi endé-
lhamento genético. A protecção da luz solar e a mica até meados do séc. XX). Tal prevalência
administração de beta-carotenos são medidas pre- explica-se, sobretudo, pela imigração de escravos
ventivas secundárias. africanos no séc. XV para o nosso país.
Nalgumas partes do mundo onde coexistem os
dois tipos de hemoglobinopatia com elevada fre-
2. DOENÇA de CÉLULAS quência, um doente pode herdar genes de dife-
FALCIFORMES e TRAÇO FALCIFORME rentes variantes, o que contribui para a grande he-
terogeneidade e complexidade clínica, com subse-
Sistematização e aspectos quentes problemas de diagnóstico.
epidemiológicos A anemia de células falciformes (ACF), tam-
bém chamada drepanocitose, é a forma mais
Doença de células falciformes é o nome dado a um grave da doença falciforme, e a hemoglobinopatia
conjunto de defeitos da Hb em que se verifica a pre- mais frequente, com maior distribuição geográfi-
sença de HbS. De acordo com o Quadro 1 pode ca. De transmissão autossómica recessiva, tais
deduzir-se que tal nosologia integra diversos genó- entidades, com diversidade de apresentação clíni-
tipos a que corresponde sintomatologia variada, ca, evidenciam morbilidade e mortalidade muito
desde a forma homozigótica – Hb SS (ver adiante) significativas, partilhando com as síndromas
ao chamado traço falciforme – HbAS, este último talassémicas muitas características.
assintomático ou com manifestações benignas. Com efeito, em relação à respectiva distri-
A homozigotia HbSS, que corresponde a mu- buição, ambas apresentam uma elevada frequên-
cia nos países do Mediterrâneo, Médio Oriente,
QUADRO 1 – Doença de células falciformes Índia e África Oriental e Equatorial, nos quais
e traço falciforme constituem um problema de saúde pública.
Afectando fundamentalmente a raça negra, a sua
Anemia de células falciformes (ACF) distribuição na Europa e Américas incluindo
(Homozigotia SS) Caraíbas, explica-se pelo fluxo migratório desde
• Hb S + Hb S há mais de cinco séculos, o que tem implicações
Heterozigotias duplas de ordem genética.
• Hb S + Hb C Ambas coincidem com as regiões onde a ma-
• Hb S + Hb D lária pelo Plasmodium falciparum foi endémica, o
• Hb S + β talassémia (Hb S β° ou HbS β+)* que confere uma selecção natural responsável pela
• Hb S + Hb F manutenção e perpetuação dos genes.
Traço falciforme Calcula-se que cerca de 250 milhões de pessoas
• Hb S + Hb A (cerca de 4,5% da população mundial) sejam por-
* β° significa gene talassémico com ausência de síntese da cadeia β
β+ significa gene talassémico com diminuição de síntese da cadeia β
tadoras de um defeito da hemoglobina. Em cada
ano nascem 300.000 pessoas homozigóticas com
CAPÍTULO 143 Anemias hemolíticas por defeitos da hemoglobina 687
uma distribuição semelhante entre os referidos doença de células falciformes são variáveis consti-
dois grandes grupos de hemoglobinopatias. tuindo o epifenómeno de anemia hemolítica
crónica e de diversos episódios de hemólise
Etiopatogénese aguda. Em geral, não surgem antes dos 3 meses; a
forma de começo pode ser insidiosa com palidez,
A base molecular da anemia de células falciformes icterícia, colúria e esplenomegália, ou aguda (adi-
(ACF), a forma mais grave das síndromas falci- ante especificada).
formes, é a substituição de um único aminoácido Nos extremos deste espectro clínico (fenótipo) a
na cadeia da β-globina (valina por ácido glutâmico que correspondem, com se viu, diversos genótipos
na sexta posição originando a HbS ou α2 βs2); tal (Quadro 1), estão o traço falciforme e a anemia de
acarreta modificação da forma do eritrócito, per- células falciformes, que pormenorizamos a seguir.
dendo a forma bicôncava e adquirindo a forma em
foice (falciforme) donde deriva o nome da doença. Traço falciforme
A HbS (α2 βs2) tem a propriedade única e própria Esta forma clínica, por vezes assintomática, carac-
da variante β6 Glu-Val de se polimerizar quando desoxi- teriza-se por manifestações ligeiras e benignas: ane-
genada, processo central da vasoclusão e causa mia ligeira, dores articulares (por vezes confundi-
primária de certas manifestações clínicas. Na das com certas formas de reumatismo), hematúria,
polimerização poderão interferir factores agravantes disfunção renal (hipostenúria, compromisso da
(como a hipóxia e acidose, desidratação, elevação da capacidade de acidificação urinária-pH urinário
temperatura, factores genéticos, etc.), ou atenuantes alcalino) (predomínio de Hb A sobre Hb S).
como por exemplo a percentagem de hemoglobina Em ambiente de grande altitude (> 3000 me-
fetal (Hb F), a qual constitui o inibidor mais potente tros) a diminuição da fracção de oxigénio no ar
da despolimerização da desoxi-hemoglobina. inspirado/Fi O2 (<21 %), pode levar a enfartes
Os referidos eritrócitos falciformes têm fragili- pulmonares e esplénicos.
dade excessiva, menor deformabilidade (eritrócitos
mais rígidos), vida média muito encurtada (cerca Anemia de células falciformes ou drepanocitose
de 20 dias), circulando com dificuldade na micro- As manifestações têm, em geral, início após os 3
circulação por hiperviscosidade, aderindo à parede meses de idade, coincidindo com diminuição da
do endotélio e lesando-a (vasculopatia secundária). HbF e aumento da HbA, sendo que quanto maior o
Na vasculopatia, a hipóxia, componente funda- teor de Hb F como foi referido, menor o risco de fal-
mental da fisiopatologia da ACF, leva à diminuição ciformação eritrocitária. Para além das manifes-
da produção de óxido nítrico (NO), o qual é impor- tações que surgem nas formas mais benignas (desig-
tante regulador do tono vascular, de adesão celular nadas por “traço”), estão classicamente presentes
e da formação de trombose. outras descritas a seguir.
As consequências são estase, vasoclusão, hipó- É importante salientar que todos os órgãos e
xia tecidual, trombose, enfarte e fibrose, entre outras sistemas podem ser afectados, com maior relevân-
alterações crónicas ao nível de vários órgãos. No cia o respiratório, o circulatório e o renal.
baço, tal processo de fibrose conduz a redução de As chamadas crises vasoclusivas agudas a que
dimensões e a uma depressão funcional do órgão, o se aludiu a propósito da etiopatogénese, manifes-
que corresponde a verdadeira “autosplenectomia”. tam-se por sinais e sintomas que dependem da
Os enfartes teciduais traduzem-se na clínica por localização específica: sistema respiratório (por ex.
dor, por vezes intensa, com localização variável. pneumopatia, enfartes pulmonares), osteoarticu-
O processo de falciformação é muitas vezes ini- lar (tumefacção simétrica e dolorosa denominada
ciado e/ou agravado pela diminuição da pressão síndroma “mão-pé” ou dactilite drepanocítica,
parcial de oxigénio e pela acidémia. (Figura 1) (Figura 2) dores nos ossos longos), sistema diges-
tivo (dor abdominal intensa relacionável com
Manifestações clínicas enfartes em órgãos abdominais), sistema nervoso
central (acidente vascular cerebral na formas de
As manifestações clínicas das diversas formas de enfarte, sobretudo nos territórios das artérias
688 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Expressão do
factor tecidual
Activação da cascata
da coagulação
Activação de Activação de
leucócitos endotélio
Formação de trombina
Adesão de eritrócitos
ao endotélio Activação plaquetária
Libertação
Libertação do factor
de trombospondina*
de von Willebrand
Obstrução vascular
Fraca deformabilidade
dos eritrócitos
Diminuição do fluxo
sanguíneo
* Glicoproteína interagindo com factores coagulantes e
anticoagulantes com acções várias (adesão celular, agregação
plaquetária, proliferação celular, angiogénese, etc.)
FIG. 1
Vasoclusão na anemia de células falciformes. Adaptado de Embury et al, 1994.
carótida interna, cerebral média e anterior). -se por um conjunto sintomático designado por
O acidente vascular cerebral (AVC) pode síndroma torácica aguda, mais frequente em cri-
assumir também a forma isquémica; globalmente, anças do que em adultos e uma causa importante
considerando todas as formas etiopatogénicas de de internamento. Como sintomatologia destacam-
AVC mais ou menos graves, segundo a experiên- se: dificuldade respiratória, dor torácica aguda,
cia da autora a sua frequência é cerca de 6 –10% febre, hipoxémia e prostração.Na idade pediátrica
entre os 6 e 18 anos. (Figura 3) os principais factores desencadeantes são as
Os chamados enfartes silenciosos (com sintoma- infecções por S. pneumoniae, Mycoplasma pneumo-
tologia discreta) podem contribuir para comprome- niae, Chlamydia e micobactérias. (Figura 4)
ter o desenvolvimento cognitivo de modo paulatino. As denominadas crises de sequestração, fre-
A repercussão no sistema respiratório traduz- quentes entre os 6 meses e 3 anos, constituem
CAPÍTULO 143 Anemias hemolíticas por defeitos da hemoglobina 689
A B
FIG. 4
ACF: Padrão radiográfico compatível com síndroma torácica
aguda. A – Radiografia convencional (infiltrado no hemitórax FIG. 5
direito); B – TAC evidenciando alterações fibróticas residuais Quadro radiológico de osteomielite do úmero no contexto da
num adolescente. ACF. (NIHDE)
690 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
geral com valor de Hb entre 7 e 9 g/dL e número de rastreio, nomeadamente o doseamento de alfa-1 e
reticulócitos muito aumentado (entre 5 e 15%). beta-2 microglobulina (Capítulo 163 e Anexos).
Pelo estudo do esfregaço do sangue periférico
nem sempre são detectadas células falciformes, as Tratamento
quais poderão ser evidenciadas pela prova de fal-
ciformação; no entanto tal prova não permite dis- A actuação nos casos de doença das células falci-
tinguir o estado homozigótico SS do estado de formes é dirigida no sentido de evitar as compli-
portador heterozigótico ou doutras hemoglo- cações, uma vez que não existe tratamento especí-
binopatias; o esfregaço permite ainda identificar fico; as medidas gerais dizem respeito essencial-
eritrócitos nucleados e corpos de Howell-Jolly. mente a: nutrição, prevenção da desidratação e
As provas de rastreio baseadas na insolubili- reidratação, prevenção de infecções, imunizações
dade da Hb evidenciam unicamente Hb S e Hb F, (designadamente anti Meningococcus, anti-Hemo-
sendo de referir que as Hb não patogénicas D e G philus influenzae tipo B, anti-S. pneumoniae), trata-
(correspondendo ao conceito de hemoglobinose) mento de infecções, prevenção e tratamento das
migram juntamente com a Hb S em meio alcalino; crises dolorosas, tratamento da anemia e suporte
por esta razão a destrinça implica a realização de psicológico.
electroforese complementar em meio ácido. As principais indicações do internamento hos-
A proporção de Hb F nas hemoglobinopatias S pitalar em doentes com síndroma falciforme são:
varia entre 1 e 20%; por sua vez a relação per- hipertermia (> 40ºC), mau estado geral (choque e
centual entre Hb S, Hb A1, Hb A2 pode ser desidratação), sinais imagiológicos de infiltrado
traduzida do seguinte modo: pulmonar, hiperleucocitose ou leucopénia, respec-
Hemoglobinopatia AS ◊ Hb S: 30-40%; Hb A1: tivamente > 30.000/mmc e < 5.000/mmc), plaque-
60-70%; Hb A2: 2-4%; tas < 100.000/mmc, Hb< 5g/dL, e antecedentes de
Hemoglobinopatia SS ◊ Hb S: 75-95%; Hb A1: septicémia por S. pneumoniae.
0%; Hb A2: 2-5%. As crises vasoclusivas, traduzindo-se por dor
Em situações especiais poderá estar indicado o intensa em qualquer local do organismo (sendo os
estudo molecular. ossos os territórios mais frequentemente acometi-
As formas heterozigóticas em associação com dos), implicam a instituição de analgésicos pro-
β-talassémia podem evidenciar diminuição do movendo concomitantemente a correcta hidrata-
volume globular médio (VGM) e da concentração ção endovenosa (solução salina diluída a 1/2 em
de hemoglobina globular média (CHGM). glicose a 5% em água).
O exame da medula óssea mostra sinais de Os analgésicos mais frequemente empregues
hiperplasia eritróide. são:
As radiografias do crânio e da coluna verte- – nas formas mais ligeiras, o paracetamol (10 a
bral evidenciam córtex estreitado, alargamento do 15 mg/kg/dose cada 4-6 horas ou o ibuprofeno
espaço medular; ao nível do crânio é típico o pa- (5-10 mg/kg/dose cada 6-8 horas) por via oral;
drão de “crânio em escova”, igualmente observá- – nas formas de dor moderada a grave, a mor-
vel nas síndromas talassémicas (ver adiante). fina por via endovenosa (0,10-0,15 mg/kg/dose
A verificação de hemoglobina anormal implica cada 3-4 horas, não ultrapassando a dose de 10
a realização de estudo familiar para investigar mg), ou a meperidina por via endovenosa (0,75 a
idêntica patologia. 1,5 mg/kg/dose cada 2-4 horas, não ultrapassan-
O estudo imagiológico por Doppler transcrani- do 100 mg).
ano permite identificar precocemente lesões A profilaxia com penicilina (penicilina benzatí-
estenóticas nas artérias carótida interna distal, nica cada 21 dias) deve ser mantida até aos 5 anos
cerebral média proximal e cerebral anterior. nas seguintes doses: crianças com < 10 kg: 300.000
Tendo em conta a probabilidade de compro- U; 10-25 kg: 600.000 U; > 25 kg: 1.200.000 U.
misso renal atrás referido, justifica-se em todos os No que respeita a aspectos nutricionais está
casos de doença das células falciformes a avali- indicada a administração de ácido fólico (1
ação anual da microalbuminúria como forma de mg/dia) durante toda a vida, tendo em conta a
CAPÍTULO 143 Anemias hemolíticas por defeitos da hemoglobina 691
actividade eritropoiética aumentada secundária a alternativa com sucesso nos doentes com a forma
hemólise crónica, a qual pode levar a deficiência homozigótica após os 2 anos de idade; promoven-
do referido nutriente. do o aumento da Hb F, melhora o quadro clínico
A anemia crónica é bem tolerada na maior e, designadamente, o número de episódios vaso-
parte dos doentes, uma vez que a Hb S tem menor clusivos, da síndroma torácica aguda, a duração
afinidade para o oxigénio, o que facilita a sua li- do internamento, e a necessidade de transfusões.
bertação ao nível dos tecidos. A dose é 15-20 mg/kg/dia com incrementos
As transfusões de concentrado eritrocitário de 2,5-5 mg/kg cada 8 semanas até máximo do 35
têm o objectivo de melhorar a capacidade de mg/kg/dia.
transporte de oxigénio e diluir as células falci- Actualmente, para uma pequena percentagem
formes em circulação para melhorar a perfusão de doentes com homozigotia, a transplantação de
microvascular; consegue-se, assim, baixar os células progenitoras/estaminais ou stem cells de
níveis da Hb S para valores ≤ 30% da Hb total, ou familiares HLA compatíveis tem permtido resul-
aumentar a Hb para cerca de 10g/dL (Capítulo tados considerados bons.
255). A transplantação de medula óssea somente
As transfusões têm indicações precisas: Hb está indicada em doentes com quadro clínico
< 5g/dL; nas crises aplástica ou hipoplástica; nas grave, necessitando de regime transfusional inten-
sequestrações esplénicas e hepática; nos acidentes sivo e desde que exista dador HLA idêntico.
vasculares cerebrais e na sua prevenção, quer pri- A terapêutica génica constitui uma medida
mária, quer secundária; nas síndromas torácicas promissora de “cura”.
agudas isoladas ou de repetição; nas situações de O óxido nítrico (NO) tem sido alvo igualmen-
lesão multiorgânica; e no pré-operatório de inter- te de investigação para a terapêutica.
venções cirúrgicas com anestesia geral. No que respeita à terapêutica preventiva clás-
A esplenectomia está indicada apenas quando sica nos casos de microalbuminúria significativa
as necessidades transfusionais anuais ultrapas- utilizam-se os inibidores da enzima de conversão
sam os 200 ou 250 ml/kg, devendo ser protelada da angiotensina (IECA).
até cerca dos cinco anos e seguida de profilaxia
antibiótica. Prognóstico e prevenção
A terapêutica transfusional intensiva com risco
de hemossiderose obrigará a terapêutica quelante* A sobrevivência destes doentes melhorou drasti-
com a desferroxamina b (por via endovenosa ou camente devido à melhoria das condições sócio-
subcutânea) que implica vigilância rigorosa face económicas, ao melhor conhecimento da fisiopa-
aos efeitos tóxicos adversos; a forma mais eficaz, tologia, à possiblidade de diagnóstico precoce e de
por via subcutânea, implica a utilização de bomba prevenção, e ao tratamento das complicações.
de perfusão. A dose mínima efectiva é 10 Face à necessidade de diagnóstico precoce
mg/kg/dia em doentes com menos de 10 anos; de tendo em vista medidas profilácticas, o aconselha-
11-15 anos pode alcançar-se a dose até 60 mento genético e orientação familiar para os por-
mg/kg/dia; e de 80 mg/kg/dia depois dos 16 tadores do gene da Hb S, o diagnóstico pré-natal e
anos (5 a 6 vezes por semana em perfusões de 8 o rastreio no recém-nascido nas áreas do globo
horas cada). com maior prevalência são estratégias de extrema
Actualmente preconiza-se a terapêutica que- importância para a melhoria do prognóstico.
lante dupla associando a desferroxamina (2 dias) à A prevenção primária do AVC tem sido levada
deferiprona em suspensão oral (75-100 mg/Kg/ a cabo nalguns centros pela técnica do Doppler
dia) em 3 doses diárias em 5 dias. transcraniano medindo a velocidade sanguínea na
A hidroxiureia (HU) constitui uma terapêutica porção terminal da carótida interna, e na porção
proximal da artéria cerebral média. Em 30% dos
*A terapêutica quelente está indicada quando os doentes dependentes casos evidenciando dados anómalos (lesões
de transfusões tenham recebido 10-12 transfusões, ou a ferritina tenha
atingido valores constantes superiores a 1.000 mcg/L. Existe risco de estenóticas), existe probabilidade de AVC is-
toxicidade quando o valor é inferior a 1.000 mcg/L. quémico dentro do período de 4 anos.
692 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
globina oscila entre 20% e 30%, a que corresponde mada), em presença de pressão arterial de O2 (Pa
clinicamente cianose com PaO2 normal. O2) normal ou elevada, são: taquipneia, taquicár-
Ao contrário do que acontece com a metemoglo- dia, acidose metabólica, disritmias, convulsões,
binémia por défice enzimático, existe diminuição da coma; e, em situações com teor superior a 70%,
afinidade da Hb para o O2 verificando-se, portanto, morte.
desvio da curva da Hb-O2 para a direita permitindo O tratamento (de urgência) da metemoglo-
maior distribuição de O2 aos tecidos e explicando, binémia tóxica (adquirida) consiste na admi-
designadamente, que não se verifiquem sintomas nistração por via endovenosa de azul de metileno
respiratórios. (solução a 1%) na dose de 1-2 mg/kg de peso
A característica clínica mais chamativa é a durante 5 minutos; a dose pode ser repetida em
cianose verificável a partir dos 4-6 meses de idade; intervalos de 4 horas até máximo de 7 mg/kg. [O
nas variantes de Hb M Saskatoon e Hyde Park azul de metileno está contraindicado nos casos de défice
(hemoglobinas instáveis) pode verificar-se anemia de G – 6PD]. Em alternativa: ácido ascórbico na
hemolítica crónica. dose de 200-500 mg/dia (efeito mais lento).
A electroforese das Hb e o estudo espectrofo- Nos casos em que não se verifica resposta está
tométrico contribuem para o esclarecimento diag- indicada exsanguinotransfusão ou oxigenação hi-
nóstico. perbárica. [O azul de metileno e o ácido ascórbico
Nas formas sintomáticas a abordagem é seme- são ineficazes em casos de metemoglobinémia
lhante à descrita para as formas adquiridas. associada a Hb M].
γ α β
Exces
so
α2γ2 Desnaturação
Degradação
HbF
Sobrevivência selectiva
dos precursores contendo
HbF Hemólise Destruição dos precursores
dos eritrócitos
↓L al
ibe
rta cidu
te
çã
od xia
eO ipó
H
2
Eritropoietina Transfusão
Expansão medular
↑ Ab
sorçã
o de Deposição de Fe
Fe
Deformidades ósseas
↑ Metabolismo basal
Caquexia
Deficiência de folato
Gota Disfunção endócrina
Cirrose
Insuficiência cardíaca
FIG. 6
Etiopatogénese da β-talassémia. Adaptado de Weatherall DJ, 1998.
1/20 (em condições normais é 1/30). Outras complicações são: pericardite aguda
A avaliação da cinética do ferro mostra um inespecífica benigna, fracturas ósseas recorrentes
padrão de eritropoiese ineficaz. explicáveis pela etiopatogénese descrita, hipocres-
cimento e hipodesenvolvimento, designadamente
Complicações em relação com o desenvolvimento pubertário.
Existe maior susceptibilidade para infecções, A hemólise crónica pode originar litíase biliar
mesmo antes da esplenectomia; a este propósito e colecistite, sobretudo na adolescência.
cabe referir que se verifica: diminuição dos linfó- As complicações de maior relevância relacio-
citos T; aumento da actividade das células NK nam-se, sobretudo, com a deposição tecidual de
(natural killer) e de imunocomplexos, estes últimos Fe secundária à absorção excessiva de ferro, quer
com eventual papel na génese da cirrose que, por por via digestiva, quer através de múltiplas trans-
vezes, afecta estes doentes. fusões. Este aspecto pode, até certo ponto, ser
CAPÍTULO 143 Anemias hemolíticas por defeitos da hemoglobina 697
Tratamento
O tratamento inclui transfusões de concentrado
eritrocitário, utilização de quelantes do ferro,
administração de ácido fólico, esplenectomia e
transplantação de medula óssea.
O regime de hipertransfusões de concentrado
eritrocitário deverá ser planeado de modo a man-
ter níveis de Hb > 9,5 g/dL, o que implica, em
geral, volumes transfusionais de 15 ml/kg cada 4-
B 5 semanas; com esta estratégia é possível diminuir
a absorção intestinal de ferro (que, como se re-
feriu, está aumentada), contribuindo para uma
maior eficácia da eritropoiese.
A indicação da esplenectomia é dada pelas di-
mensões do baço, em princípio directamente pro-
porcionais ao grau de hiperesplenismo e à neces-
sidade de transfusões. Como foi referido noutro
capítulo, deverá ser protelada até aos 5 anos, sem-
pre que possível.
Têm igualmente cabimento, quer as medidas
profilácticas e terapêuticas anti-infecciosas, quer as
FIG. 7
medidas nutricionais (administração de ácido fóli-
Radiografia do crânio: A – Crânio em escova; B – Sinais de co) descritas a propósito das síndromas falciformes.
hiperplasia medular. (NIHDE) A transplantação medular constitui uma opção
terapêutica sempre que se disponha de dador
HLA idêntico.
Por fim, uma referência à terapêutica génica
ainda em fase experimental, mas seguramente a ter-
apêutica definitiva no futuro, de cariz mais etiológico
do que as actualmente disponíveis: introdução de
genes da globina veiculados por células estaminais
pluripotenciais por meio de um vector retrovírico.
4.2.1. Hidropisia fetal por Hb Bart Paediatrics and Child Health 2011; 21:353-356
Claster S, Vichinsky EP. Managing sickle cell disease. BMJ
Este quadro, em que se verifica deleção de 4 genes 2003; 327: 1151-1555
[genótipo (– –/– –) mais frequente na Ásia], Cunningham MJ. Update on thalassemia: Clinical care and
corresponde à situação homozigótica (αº) em que, complications. Pediatr Clin North Am 2008; 55: 447-460
por não haver síntese de cadeias, não há HbA nem Driscoll MN, Hurlet A, Styles L, et al. Stroke risk in siblings
HbF: os achados electroforéticos detectam unica- with sickle cell anemia. Blood 2003; 101: 2401-2404
mente Hb Bart e pequenas quantidades de HbH e Kelly MJ, Pennarola BW, Rodday AM, et al. Health-related
Hb Portland. quality of life (HRQL) in children with sickle cell disease
As consequências são hydrops fetalis (hepatos- and thalassemia following hematopoietic stem cell trans-
plenomegália e anasarca tal como acontece na plant (HSCT). Pediatr Blood Cancer 2012; 59:725-731
doença hemolítica do feto-recém-nascido por Kizito M, Mworozi E, Ndugwa C, et al. Bacteraemia in
incomptatibilidade sanguínea feto-materna) com homozygous sickle cell disease in Africa: Is pneumococcal
elevado risco de morte fetal e neonatal. prophylaxis justified? Arch Dis Child 2007; 92: 21-23
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
4.2.2. Doença por Hb H Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
Saunders, 2011
Nesta afecção apenas um dos quatro genes está Platt OS, Dover GJ. Sickle cell disease. In Nathan DG, Oskin
ctivo (– –/– α). Existe, portanto, deleção de 3 genes. SH, Ginsburg D, Look AT (eds): Hematology of Infancy and
Na vida adulta predomina a HbA com 5-30% Childhood. Philadelphia: Saunders, 2003; 709-822
de Hb H; no período neonatal predomina a HbF Rehman HU. Methemoglobinemia. West J Med 2001; 175: 193-
com 10-20% de Hb Bart, sendo vestigial o teor de 196
Hb H. Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
O quadro clínico é semelhante ao da talas- AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
sémia major ou da intermédia. Medical , 2011
Rund D, Rachmilewitz E. β-Thalassemia. NEJM 2005; 353:
4.2.3. Traço α-talassémico 1135-1146
Telfer PT. Management of sickle cell disease: outpatient and
Esta forma integra o genótipo (– α/– α ou – –/α α) community aspects. Paediatrics and Child Health 2011;
a que corresponde deleção de 2 genes. 21:357-362
Não se verificam manifestações clínicas, iden- Wonke B. Clinical management of beta-thalassemia major.
tificando-se apenas no esfregaço do sangue pe- Semin Hematol 2001; 38: 350-359
riférico microcitos hipocrómicos.
No período neonatal identifica- se Hb Bart na
percentagem de 5-10%.
BIBLIOGRAFIA
Cataldo F. Immigration and changes in the epidemiology of
hemoglobin disorders in Italy: an emerging public health
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Chiruka S, Darbyshire P. Management of thalassaemia.
700 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
144
Nos episódios hemolíticos agudos pode estar
indicada corticoterapia. A possibilidade de fenó-
menos trombóticos, a complicação mais frequente
e temível, pode estabelecer a indicação de terapia
anticoagulante prolongada.
Actualmente utiliza-se o anticorpo monoclonal
HEMOGLOBINÚRIA eculizumab que, actuando contra a fracção C5 do
complemento, estabiliza os níveis de Hb e reduz a
PAROXÍSTICA NOCTURNA necessidade de transfusões.
145
férico e de esferócitos, permitem confirmar o dia-
gnóstico.
Este tópico (anemia hemolítica isoimune/
doença hemolítica perinatal) é retomado, com
mais pormenor, na Parte XXXI.
ANEMIAS HEMOLÍTICAS
2. ANEMIA HEMOLÍTICA AUTOIMUNE
DE CAUSA EXTRÍNSECA
Etiopatogénese
João M. Videira Amaral
Na anemia hemolítica autoimune os anticorpos do
doente são dirigidos contra os eritrócitos do
mesmo. Os anticorpos são, na maioria, quer do
1. ANEMIA HEMOLÍTICA ISOIMUNE tipo IgM (anticorpos “frios”), quer do tipo IgG
(anticorpos “quentes” ou “incompletos”).
Etiopatogénese Na base desta patologia está provavelmente
um processo de modificação de antigenicidade
A hemólise de causa isoimune (admitindo como dos eritrócitos associado a lesão da membrana
paradigma a incompatibilidade sanguínea mater- celular por infecção ou por agente químico (fár-
no-fetal) é provocada por imunização materna maco, por ex.); poderá também estar em causa o
activa contra antigénios fetais não existentes nos aparecimento de um novo antigénio (neoantigé-
eritrócitos maternos. São exemplos os anticorpos nio) formado pela combinação do agente infec-
contra os antigénios A, B, D e outros dos sistemas cioso com o eritrócito.
Rh Kell, Duffy etc.. Na prática, as situações frequentemente asso-
A hemólise anti-A e anti-B é provocada pela pas- ciadas a tal anomalia são:
sagem transplacentar mãe → feto de aglutininas – infecções por Mycoplasma, vírus de Epstein-
(anticorpos naturais) da mãe do grupo O (com aglu- Barr, outros vírus (nestas situações o paradigma é
tininas alfa e beta) as quais poderão provocar hemó- o aparecimento de aglutininas chamadas “frias”,
lise em RN dos grupos A ou B respectivamente. isto é, actuando a temperaturas inferiores a 37ºC);
Tendo escolhido a anemia hemolítica isoimune – doenças crónicas autoimunes (lúpus eritema-
do recém-nascido como paradigma, cabe referir que toso sistémico, doenças linfoproliferativas, doença
nas reacções hemolíticas transfusionais decorrentes de Hodgkin, tiroidite de Hashimoto, leucemia lin-
de transfusão de sangue incompatível a etio- fóide crónica, síndromas de imunodeficiência,
patogénese é sobreponível à de incompatibilidade de etc.); em geral, estas afecções estão associadas ao
grupo sanguíneo, não mãe-filho, mas dador-receptor. aparecimento de anticorpos IgG (“quentes”) por
terem a máxima actividade, sem necessidade do
Manifestações clínicas e laboratoriais complemento, entre 37-40°C;
– hemoglobinúria paroxística desencadeada
As manifestações resultantes da hemólise (que no pela exposição ao frio (resultante de episódios de
sistema Rh pode ocorrer já no feto) são anemia no hemólise intravascular mediada pela hemolisina
feto/recém-nascido, possível hydrops fetalis, hiper- de Donath-Landsteiner ou autoanticorpo IgG
bilirrubinémia, hepatosplenomegália, etc.. reactivo ao frio, fixando complemento a tempe-
As provas de Coombs positivas (directa – reali- ratura abaixo de 37ºC, provocando aglutinação e
zada no recém-nascido, permitindo detectar anti- hemólise quando a temperatura se eleva); em
corpos fixados sobre os eritrócitos, e indirecta- geral, o processo está associado a infecções víricas
realizada na mãe, permitindo evidenciar anticor- e a sífilis congénita ou adquirida;
pos no respectivo soro), a presença de precursores – fármacos formando um hapteno ao nível da
eritróides imaturos (eritroblastos) no sangue peri- membrana (por ex. penicilina) ou complexos imu-
702 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
por anticorpos. Seguidamente são referidos al- acontece em doentes com insuficiência renal
guns dos mecanismos, relacionando-os com situa- crónica.
ções clínicas.
3. Carência de vitamina E
Lesão mecânica da membrana Nestas situações de carência verifica- se sensibili-
eritrocitária dade anormal dos lípidos da membrana ao
estresse oxidante; como exemplos desta carência
1. Microangiopatia trombótica citam-se: a que surge em recém-nascidos com an-
A membrana dos eritrócitos pode ser lesada meca- tecedentes de prematuridade não suplementados
nicamente sempre que se verifique um processo com a referida vitamina, sendo que tal carência
obstrutivo de microangiopatia trombótica. Tal pode ser agravada pela administração de ferro
pode surgir na coagulação intravascular dissemi- (agente oxidante); má-nutrição; síndromas de má-
nada (CID), púrpura trombocitopénica trombótica absorção (incluindo a fibrose quística); regime
(PTT), síndroma hemolítica urémica (SHU), reac- transfusional intensivo traduzindo-se por supri-
ção de hospedeiro contra-enxerto, hipertensão mento elevado em ferro.
maligna, etc.(Capítulos 148, 154, 160).
4. Infecções e parasitoses
2. Outros exemplos são constituídos: pelas próte- Numerosas infecções bacterianas originam hemó-
ses valvulares pós-cirurgia cardíaca em que os lise por libertação de hemolisinas eritrocitárias, do
eritrócitos contactam com superfície não endote- que resulta hemoglobinémia e hemoglobinúria.
lial; e pelo fluxo sanguíneo elevado em heman- Nos casos de anemias por protozoários (por
giomas gigantes (síndroma de Kasabach-Merritt). ex. malária) verifica-se destruição directa dos eri-
O estudo morfológico do sangue periférico trócitos pelos plasmódios que os parasitam.
evidencia eritrócitos fragmentados, microsferoci-
tos, policromasia e eritrócitos em forma de lágri- 5. Agentes físicos
ma. Sendo discutível a acção das radiações ionizan-
tes,é aceite a acção da hipertermia ou das queima-
Lesão da membrana eritrocitária por duras; com efeito, temperaturas da ordem dos
mecanismos diversos 50ºC originam eritrócitos esferocíticos e fragmen-
tados, com diminuição da resistência osmótica.
1. Dislipoproteinémias
As dislipoproteinémias, sobretudo a hipercoles- BIBLIOGRAFIA
terolémia, provocam alterações da membrana eri- Gehrs BC, Friedberg RC. Autoimmune hemolytic anemia. Am
trocitária (aumento do conteúdo em colesterol e J Hematol 2002; 69: 258-271
alteração da relação colesterol/fosfolípidos) dimi- Henry K, Harris CR. Deadly ingestions. Pediatr Clin North Am
nuindo a sua deformabilidade, o que predispõe à 2006; 53: 293-315
hemólise. Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
No sangue periférico são identificados eritró- Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
citos “com esporões”, também observados na abe- Saunders, 2011
talipoproteinémia e em certas hepatopatias acom- Lopez LM, Villa Am (eds). Hematologia y Oncologia Pedia-
panhadas de dislipoproteinémia. tricas. Madrid: Ediciones Ergon, 2004
Petz L. Treatment of autoimmune hemolytic anemias. Curr
2. Toxinas Opin Hematol 2001; 8: 411-416
Determinadas toxinas (como as produzidas por Ramanathan S, Koutts J, Hertzberg MS. Two cases of refracto-
répteis venenosos) e certos metais pesados (cobre ry warm autoimmune hemolytic anemia treated with ritu-
e arsénico), provocam hemólise através da respec- ximab. Am J Hematol 2005; 78: 123-126
tiva ligação ao grupo sulfidrilo da membrana. Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
No sangue periférico podem ser observados AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
eritrócitos com “espículas” irregulares, tal como Medical , 201
704 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
146
crónica, hipoventilação de causa central, etc. Pode
associar-se igualmente a tumores produtores de
eritropoietina (por ex. tumor de Wilms).
As causas neonatais são discutidas no capítulo
355.
147
estas medidas não são efectivas, têm sido empre-
gues interferão-alfa e hidroxiureia.
BIBLIOGRAFIA
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cation, diagnosis,clinical presentation, and treatment. Ann
Hematol 2005; 84: 137-145 NEUTROPÉNIA
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Kralovics R, Strunck E, Temprinac S, et al. A gain of function Considera-se leucopénia o número absoluto de
mutation of JAK2 in myeloproliferative disorders. NEJM leucócitos circulantes <4.000/µL ou / mmc., tendo
2005; 352: 1779-1790 como referência os limites de normalidade: 4500-
Pappas A, Delaney-black V. Differential diagnosis and man- 13500/µL. (7-12 anos) (Capítulo 136 – Quadro 3).
agement of polycythemia. Pediatr Clin North Am 2004; 51: Neutropénia é a designação que corresponde
1063-1086 ao número absoluto de neutrófilos no sangue peri-
férico < 1.500/µL (entre 1 mês e 10 anos, con-
siderando limites de normalidade os valores 1500
e 8000 células/µL); < 1.800/uL em adultos de
ambos os sexos; e < 1.200 /µL em adultos de raça
negra.
Importância do problema
e manifestações clínicas
Neste contexto, as manifestações clínicas mais Montanhas Rochosas, erliquiose, etc.) são também
frequentemente relacionáveis com neutropénia causas de neutropénia.
são febre, exantema, celulite, abcessos cutâneos,
furunculose, pneumonia, septicémia, otite média, Fármacos
infecções perianais e da cavidade oral. Os fármacos como analgésicos / anti-inflamatórios
Os agentes infecciosos isolados mais frequen- (acetaminofeno, ibuprofeno), antibióticos (cloran-
temente nos doentes neutropénicos são Staphylo- fenicol, penicilinas), sulfonamidas, anti – convulsan-
coccus aureus e bactérias gram negativas; salienta- tes (carbamazepina) e citostáticos, etc. são outras
-se, no entanto, que não se verifica susceptibili- causas. Nestas circunstâncias, a neutropénia inicia-
dade aumentada para infecções víricas, fúngicas, se de forma súbita 7 a 14 dias após a primeira expo-
parasitárias ou meningite bacteriana. sição ou imediatamente a seguir à reexposição. A
neutropénia induzida por fármacos, resultante de
Classificação, etiopatogénese mecanismos tóxicos, imunológicos ou de hipersensi-
e relação com a clínica bilidade, é grave, comportando taxas de mortali-
dade elevadas. A intervenção terapêutica mais eficaz
Quanto à duração, a neutropénia classifica-se em: consiste em retirar os fármacos não essenciais,
aguda, se for de alguns dias e; em crónica, se evo- podendo ser necessária a administração de factor de
luir durante meses a anos. crescimento de colónias de granulócitos (G-CSF).
Quanto a factores etiológicos, a neutropénia
pode ter na sua base: Causa imunológica
1. Factores extrínsecos às células mielóides – A neutropénia isoimune está associada à presença
mais frequente. de anticorpos antineutrófilo circulantes que provo-
2. Alterações adquiridas das células estaminais cam a destruição de neutrófilos mediada pelo com-
e mielóides – menos frequente. plemento, ou a fagocitose esplénica dos neutrófilos
3. Defeito intrínseco que afecta a proliferação e opsonizados.
maturação das células estaminais e mielóides – rara. Ocorre por sensibilização pré-natal a antigé-
nios específicos dos neutrófilos herdados do pai
1. Secundária a factores extrínsecos (não presentes nos neutrófilos maternos) com
às células mielóides ulterior passagem transplacentar de anticorpos Ig
G maternos contra antigénios dos neutrófilos do
Infecções feto (processo semelhante ao que se passa na ane-
A causa mais frequente de neutropénia na infância mia e trombocitopénia isoimunes).
(transitória) é a infecção vírica (vírus respiratório Como manifestações clínicas mais típicas há a
sincicial, influenza A e B, varicela, rubéola e salientar: “queda” tardia do cordão umbilical,
sarampo). A neutropénia instala-se nos primeiros infecções cutâneas leves, febre e infecções respira-
2 dias da doença e pode persistir 3 a 8 dias, o que tórias incluindo pneumonia.
corresponde a um período de virémia aguda. A neutropénia verifica-se durante o tempo em
Ocorre redistribuição dos neutrófilos (do “conjun- que circulam os anticorpos maternos transferidos
to” circulante para o “conjunto” marginado ou via placenta, o que geralmente acontece entre as 7
aderente ao endotélio vascular), sequestro das semanas e os 6 meses após o parto.
células por lesão tecidual e diminuição da pro- O tratamento, de suporte, inclui antibioticotera-
dução de neutrófilos induzida pelo vírus. pia adequada na fase de neutropénia. A adminis-
Outras infecções víricas (vírus de Epstein- tração de IGIV (imunoglobulina intravenosa) po-
Barr/VEB, vírus citomegálico/CMV, vírus da derá diminuir a duração da neutropénia.
imunodeficiência humana/VIH),etc.), bacterianas A neutropénia autoimune surge por mecanis-
(septicémia, tosse convulsa, febre tifóide e para- mo semelhante ao da trombocitopénia ou da ane-
tifóide, tuberculose disseminada, brucelose, etc.), mia hemolítica autoimunes.
fúngicas (histoplasmose disseminada); protozoá- Distingue-se doutras formas de neutropénia
rios (malária, leishmaníase) e riquétsias (febre das apenas pela demonstração de anticorpos antineu-
CAPÍTULO 147 Neutropénia 707
trófilo (de salientar que, por vezes se obtêm resul- Na prática clínica tal processo pode ocorrer
tados negativos-falsos), sendo a medula óssea nas seguintes circunstâncias: leucemia mielocítica
normo ou hipercelular. Ocorre frequentemente em ou linfocítica aguda, mielodisplasia, hemoglo-
crianças com formas congénitas ou adquiridas de binúria paroxística nocturna, anemia aplástica,
imunodeficiência, incluindo disgamaglobulinémia. deficiência em vitamina B12 ou ácido fólico, pre-
A neutropénia autoimune da infância é tipica- maturidade, terapêutica com trimetoprim – sulfa-
mente diagnosticada em crianças entre os 5 e os 15 metoxazol ou fenitoína, má-nutrição energético-
meses, com discreto predomínio no sexo femini- proteica, anorexia nervosa e alimentação parenté-
no. Não coexiste com outras doenças autoimunes. rica prolongada.
As manifestações clínicas incluem: infecções
ligeiras como otite, gengivite, infecções respira- 3. Defeito intrínseco que afecta
tórias, gastrenterite e celulite. Na grande maioria a proliferação e maturação das
dos casos não está associada a risco aumentado de células estaminais e mielóides
infecções recorrentes, mesmo com neutropénia
grave. Em cerca de 95% dos doentes verifica-se Trata-se de situações congénitas raras que cursam com
remissão espontânea em 7 a 24 meses. neutropénia grave. Como exemplos citam-se: imun-
O tratamento é sintomático, estando indicada odeficiências combinadas graves, síndroma de hiper
a antibioticoterapia na maioria dos doentes; IgM, imunodeficiência comum variável, glicogenose
poderá haver necessidade de recorrer ao G-CSF. do tipo Ib, neutropénia cíclica, neutropénia congéni-
A neutropénia autoimune da infância em ta grave, mielocatexe, síndroma de Shwachman –
geral desenvolve-se entre os 5 e 24 meses, per- Diamond, disceratose congénita, síndroma de
sistindo muitas vezes durante períodos prolonga- Chediak-Higashi, e neutropénia congénita benigna,
dos. Trata-se da causa mais comum de neutropé- síndroma hiper-IgM e síndroma de Barth.
nia crónica da infância (incidência anual de Seguidamente são abordadas as entidades
aproximadamente 1/100.000). mais frequentes deste grupo:
Nesta situação são identificados autoanticor-
pos IgM, IgG, IgA ou combinação destes. Neutropénia cíclica
Em geral, a doença regride em período variá- A neutropénia cíclica é uma doença rara que pode
vel (6 meses a 4 anos), não havendo tendência de ter transmissão autossómica dominante ou reces-
evolução para doença autoimune sistémica. siva, ou ser esporádica (gene ELA2)
Poderá verificar-se ao nível da medula óssea: Caracteriza-se por episódios regulares de neu-
hiperplasia mielóide (se associação a lúpus erite- tropénia grave (valores < 200 /µL ) durante 3 a 6
matoso disseminado); ou hipoplasia mielóide se dias, surgindo aproximadamente de 3 em 3 sema-
os anticorpos forem antiprecursores mielóides. O nas, acompanhada de monocitose e, por vezes, de
prognóstico é bom. eosinofilia. (Recorde-se que a vida média dos neu-
No recém-nascido a neutropénia autoimune trófilos é 6-7 horas, em comparação com a das pla-
pode surgir em casos de asfixia, sépsis, hiperten- quetas – 10 dias, e a dos eritrócitos-120 dias)
são materna e eclâmpsia, sendo relacionável com Esta doença é frequentemente designada por
esgotamento das reservas de precursores medu- hematopoiese cíclica, por ocorrer alteração simul-
lares por acção dos autoanticorpos. tânea de outras células – reticulócitos, plaquetas e
Embora anteriormente se tenha utilizado IGIV monócitos.
(imunoglobulina intravenosa) e corticóides, na maior Como manifestações clínicas coincidentes com
parte dos doentes comprova-se resposta ao G-CSF. os períodos de neutropénia, cabe salientar: mal
estar, febre, úlceras da mucosa oral, estomatite,
2. Alterações adquiridas das células gengivite, periodontite, faringite e infecções cutâ-
estaminais e mielóides neas com adenomegálias.
Nos períodos de normalização dos valores dos
Estas alterações são responsáveis por mielopoiese neutrófilos os doentes não evidenciam sinais ou
ineficaz da qual decorre neutropénia. sintomas.
708 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
A gravidade das infecções relaciona-se com a rem eosinofilia, monocitose, trombocitose e ane-
gravidade da neutropénia, embora nem todos os mia ligeiras.
doentes sejam afectados por infecções. Apesar de Apesar de os níveis endógenos de G-CSF esta-
ser considerada benigna, uma proporção de cerca rem elevados, a administração de G-CSF exógeno
de 10% dos doentes morre com infecções compli- leva a elevação do número de neutrófilos.
cadas (pneumonia e peritonite com sépsis por Com efeito, antes da era do tratamento com G-
Clostridium perfringens). Não existe risco aumenta- CSF, a maioria dos doentes morria de infecções
do de desenvolvimento de leucemia mielóide. fatais antes da adolescência. De salientar que a
Para se estabelecer o diagnóstico, torna-se mutação no receptor do G-CSF (CSF3R), condi-
obrigatória a contagem de neutrófilos, pelo menos ciona má resposta à terapêutica e surge mais fre-
2 vezes por semana, durante 6 a 8 semanas. O quentemente em doentes que evoluem para
diagnóstico é confirmado com estudos genéticos mielodisplasia ou leucemia mielóide aguda (cerca
moleculares, que demonstram mutação no gene de 10% dos casos).
da elastase (ELA2). Apenas os doentes que não respondem ao G-
O tratamento inclui identificação e tratamento CSF são candidatos a transplante de células esta-
das infecções, higiene oral correcta e, em casos minais de um irmão HLA compatível. Este é tam-
seleccionados, o factor recombinante estimulador bém o único tratamento curativo para os doentes
do crescimento de granulocitos (G-CSF), o qual com neutropénia congénita grave que evoluem
modifica a evolução da doença, diminuindo o nú- para mielodisplasia ou leucemia mielóide aguda.
mero de dias de neutropénia e a intensidade dos
sintomas, aumentando o número de neutrófilos. Mielocatexe
A mielocatexe é uma doença rara de transmissão
Síndroma de Kostmann autossómica dominante. Caracteriza-se por infec-
A síndroma de Kostmann, forma de neutropénia ções bacterianas recorrentes, neutropénia modera-
congénita grave, é uma doença rara, autossómica da a grave e alterações degenerativas dos gra-
recessiva, que se caracteriza por uma paragem na nulócitos. É explicável por uma mutação no rece-
maturação mielóide na medula óssea na fase de ptor de citocinas CXCR4.
promielócito. Deste facto resulta número absoluto Como manifestações clínicas salientam-se
de neutrófilos inferior a 200 células/µL, o que se infecções respiratórias benignas de repetição após
pode verificar desde o nascimento ou na primeira as quais se verifica subida do número de neutrófi-
infância; em geral existe monocitose associada. los. O mielograma revela sinais de medula hi-
Em mais de 80% dos casos existe associação a percelular com neutrófilos maduros e hiperse-
mutações no gene ELA2 o qual codifica a elastase gmentados. A mobilidade dos neutrófilos também
da glicoproteína do neutrófilo. O mecanismo alterada, associando-se a hipogamaglobulinémia,
fisiopatológico não está totalmente esclarecido, verrugas cutâneas (warts), infecção no contexto de
mas admite-se que a mutação condiciona uma neutropénia, integra a síndroma WHIM.
acumulação excessiva de elastase no neutrófilo
com consequente apoptose precoce. Síndroma de Shwachman – Diamond
Como manifestações clínicas mais frequentes A síndroma de Scwachman-Diamond é uma
há a citar: úlceras orais, gengivite, otite média, doença de transmissão autossómica recessiva,
infecções respiratórias graves, celulite e abcessos multissistémica, caracterizada por citopénia
dos tecidos moles. sobretudo à custa de neutropénia, insuficiência
Os agentes infecciosos predominantes são o pancreática exócrina, alterações esqueléticas (dis-
Staphyloccocus aureus e Streptoccocus. O diagnóstico ostose metafisária, hipocrescimento) e infecções
faz-se pela demonstração de número absoluto de recorrentes. Estando na sua base disfunção do
neutrófilos inferior a 200/µL em três ocasiões se- ribossoma, ocorre por um defeito na célula esta-
paradas num período de um mês. O mielograma minal que afecta as linhagens mielóide e linfóide
revela sinais de paragem de maturação celular no (gene SBDS). Os granulócitos têm alterações na
estádio de promielócito; concomitantemente ocor- migração, mobilidade e quimiotaxia. A neutropé-
CAPÍTULO 147 Neutropénia 709
148
Em circunstâncias normais, o baço alberga um
terço do número total de plaquetas, funcionando
como um reservatório. Na presença de hemorra-
gia profusa, a libertação de adrenalina provoca
contracção esplénica, com aumento temporário
das células sanguíneas circulantes, sendo que o
TROMBOCITOPÉNIA número de plaquetas armazenadas é directamente
proporcional ao tamanho do baço.
E TROMBOCITOSE Na sua génese encontram-se múltiplas etiolo-
gias congénitas e adquiridas, por vezes coexis-
Júlia Galhardo e A. Bessa Almeida tentes, considerando-se três mecanismos princi-
pais: 1) diminuição da produção medular associa-
da a hipoplasia e a processos infiltrativos ou
lesivos; 2) aumento da destruição por fenómenos
1. TROMBOCITOPÉNIA imunológicos ou mecânicos angiopáticos; 3)
sequestro decorrente da esplenomegália congesti-
Definição e importância do problema va ou infiltrativa.
No Quadro 1 encontram-se enumeradas as
A trombocitopénia, independentemente da idade, é principais etiologias subjacentes, excluindo as
definida como diminuição da concentração plaque- verificadas no recém-nascido, abordadas no capí-
tária superior a dois desvios-padrão relativamente tulo 356.
à média populacional, ou seja <150.000/µL (ou <
150 x 109/L). Manifestações clínicas
As plaquetas, essenciais à hemostase primária,
são responsáveis pela formação de microtrombos Como resultado da diminuição do número de pla-
nas áreas vasculares com lesões, provocando quetas (< 50.000/µL) surge discrasia hemorrágica
ainda vasoconstrição local através da libertação de com expressão típica na pele e mucosas. As mani-
serotonina e histamina. Assim, a deficiência quali- festações mais frequentes incluem petéquias,
tativa e/ou quantitativa destes corpúsculos origi- equimoses superficiais, epistaxe e gengivorragia.
na risco hemorrágico acrescido. As hemorragias das mucosas associam-se a
Na sua grande maioria (mais de 95% dos valores mais baixos de plaquetas. Com défices
casos) a trombocitopénia faz parte da entidade progressivos, sobrevêm perdas de gravidade cres-
clínica designada por púrpura trombocitopénica cente, nomeadamente gastrintestinais, hematúria,
idiopática (PTI) com uma incidência mundial de menorragia e hemorragia intracraniana, esta últi-
aproximadamente 4 a 6 em cada 100.000 crianças. ma surgindo em < 1% dos casos. (Quadro 2)
Na trombocitopénia as equimoses observadas
Etiopatogénese são múltiplas e com distribuição preferencial em
locais de contacto, especialmente nos membros
As plaquetas são fragmentos celulares anucleados, superiores e na região pré-tibial.
com cerca de 1 a 2,5µ de diâmetro e 7 a 9fL de volu-
me, resultantes da diferenciação dos megacarióci- Exames complementares
tos existentes na medula óssea, por acção da trom-
bopoietina. Este factor de crescimento apresenta Nas situações em que a clínica suscita dúvidas
relação inversa relativamente ao número de trom- quanto à existência de verdadeira diminuição do
bócitos circulantes, permitindo a sua manutenção número de plaquetas, é importante confirmar se
dentro de parâmetros fisiológicos definidos. Após os valores observados traduzem uma verdadeira
um período de aproximadamente 7 a 14 dias, as depleção. Entre as possíveis causas de pseudo-
plaquetas sofrem destruição pelos macrófagos do trombocitopénia incluem-se a presença de aglu-
sistema reticuloendotelial. tininas frias ou de anticorpos dependentes do
712 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
imune, bem como a determinação da serologia dução em cerca de 1/25.000 crianças, nas 6 sema-
para o vírus da imunodeficiência humana nas seguintes à inoculação. Nestas situações deve
(VIH). ser avaliada a serologia e, no caso de ausência de
Por último, na presença de sinais clássicos de imunidade, recomenda-se uma segunda dose da
trombocitopénia e de valores normais é obrigatório vacina.
o estudo da função plaquetária. Actualmente, o O aparecimento súbito de exantema petequial
tempo de hemorragia é considerado obsoleto, pelo generalizado e púrpura na idade pré-escolar sem
que se recomendam, entre outros, os testes de agre- outras alterações clínicas, constitui a apresentação
gação. clássica da PTI. Ocasionalmente, podem ser obser-
O aspirado e a biópsia medular têm utilidade vadas linfadenopatia e/ou hepatosplenomegália
na distinção entre hipoprodução e aumento da ligeiras, habitualmente secundárias à infecção
destruição, devendo ser ponderados os resultados vírica. Todavia, a sua presença deverá dirigir a
na presença de neutropénia, anemia ou outros atenção para o restante exame objectivo e para o
sinais sugestivos de patologia medular. hemograma.
Através de exames laboratoriais verifica-se trom-
Diagnóstico diferencial bocitopénia isolada, frequentemente < 20.000/µL. A
tentativa de rápida reposição destes corpúsculos
Para o diagnóstico diferencial das situações clíni- provoca um aumento do seu volume para 10 a
cas acompanhadas de trombocitopénia, torna-se 15fL.
fundamental ter em conta, para além da idade da Os níveis de trombopoietina não estão fre-
criança e do seu estado geral (bom ou aparente- quentemente aumentados apesar da destruição
mente saudável, ou mau ou aparentando doença periférica das plaquetas.
de grau variável) um conjunto de manifestações Habitualmente, a hemoglobina e o volume glo-
clínicas e achados de exames complementares. bular médio eritrocitário apresentam valores ade-
Discriminam-se, a seguir, alguns quadros clíni- quados à idade mas, na presença de hemorragia
cos abordando, a propósito, aspectos particulares moderada a grave, podem estar diminuídos. A
da respectiva etiopatogénese, sendo dada ênfase à prova de Coombs deverá ser efectuada na anemia
situação mais frequente – a púrpura tromboci- inexplicada, ou com o intuito de excluir a síndroma
topénica idiopática. de Evans (quadro de icterícia com anemia hemo-
lítica e trombocitopénia de origem autoimune).
1. Púrpura trombocitopénica idiopática aguda Os valores das contagens total e diferencial de
A sua origem assenta na síntese de um auto-anti- leucócitos, o estudo da coagulação e as provas de
corpo (não específico da PTI) que, ao ligar-se à função plaquetária também se encontram dentro
superfície destas células, amplifica a fagocitose de parâmetros normais. Através da observação do
macrofágica reticuloendotelial mediada por um esfregaço sanguíneo comprova- se apenas escas-
receptor Fc. Os anticorpos produzidos podem sez de trombócitos.
também interferir com a trombopoiese. A presença do anticorpo antinuclear (ANA) é
Pelo menos 50% dos casos surge entre 1 e 4 mais frequente no adolescente, podendo indicar
semanas após uma infecção vírica inespecífica ou, uma maior predisposição para a evolução para a
menos frequentemente, por VEB, varicela-zoster cronicidade. Por outro lado, a detecção do anticor-
ou VIH. A asso-ciação com a varicela necessita de po agressor é desprovida de validade diagnóstica
particular atenção, uma vez que, por vezes, se for- e, por conseguinte, sem qualquer utilidade.
mam concomitantemente anticorpos dirigidos às Finalmente, nas crianças estáveis e com as altera-
proteínas S e/ou C, daí resultando alterações da ções clínico-laboratoriais referidas anteriormente
hemostase mais complexas. Também as imuniza- é dispensável a biópsia de medula óssea. Pelo con-
ções podem provocar reacção cruzada, com for- trário, recomenda-se a sua realização na presença
mação de imunoglobulinas antiplaquetárias. de situações atípicas, antes da instituição de corti-
Estima-se que a vacina anti-sarampo-parotidite- coterapia e na ausência de resposta à terapêutica.
rubéola (VASPR) seja responsável pela sua pro- A PTI é um diagnóstico de exclusão, devendo
714 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
trado que a hospitalização não reduz o risco de (> 20.000/µL ao 3ºdia; > 50.000/µL entre o 5º e o 7º
hemorragia intracraniana. dias). Contudo, é um derivado sanguíneo caro, de
Para além das orientações a dar aos pais/fami- administração intravenosa, que frequentemente
liares ou responsáveis pelos cuidados à criança, provoca cefaleias intensas, náuseas e vómitos.
haverá que evitar injecções por via intramuscular e Como manifestações mais raras incluem-se as
a utilização de fármacos que interfiram na função reacções alérgicas, a insuficiência renal e a menin-
das plaquetas tais como ácido acetilsalicílico, cer- gite asséptica.
tos anti-histamínicos e anti-inflamatórios. Por último, a imunoglobulina anti-D pode ser
utilizada em indivíduos Rh+ (50-75mg/Kg), pro-
1. Púrpura trombocitopénica idiopática aguda duzindo um aumento plaquetário sobreponível à
Nos casos ligeiros a moderados, a abordagem IVIG. A principal desvantagem consiste na possi-
geral consiste numa atitude expectante, com vigi- bilidade de desencadear anemia hemolítica tran-
lância laboratorial periódica. O hemograma deve- sitória.
rá ser repetido 10 dias mais tarde, no intuito de A transfusão plaquetária tem como única indi-
assegurar a ausência de alteração medular primá- cação a hemorragia intracraniana ou outra perda
ria em curso. Ulteriormente, excepto se surgirem sanguínea com risco de vida. Simultaneamente,
dados clínicos inesperados, não há qualquer deve ser iniciada terapêutica imunomoduladora
necessidade de monitorização laboratorial perió- intravenosa com corticóides (metilprednisolona)
dica até que a resolução clínica sugira o início da em alta dose e IGIV. (Capítulo 155)
remissão. Os pais devem ser esclarecidos quanto à
benignidade da situação e alertados para os sinais 2. Púrpura trombocitopénica idiopática crónica
de alarme. A frequência escolar pode ser mantida, Na maioria dos casos (com valores plaquetários
sendo de primordial importância a evicção de evidenciando valores >20.000/µL, e podendo sur-
actividades com risco acrescido de traumatismo. gir em cerca de 20% dos doentes remissão espon-
Também o uso de anti-inflamatórios não-esterói- tânea que pode atingir 4 anos), não haverá neces-
des deverá ser evitado. sidade de tratamento específico, excepto na pre-
A decisão de instituir farmacoterapia é basea- sença de traumatismo grave, cirurgia, extracção
da na gravidade clínica e não apenas no défice dentária ou cataménio abundante. Nestas situa-
plaquetário, uma vez que nenhum tratamento ções, mais uma vez o uso de prednisolona, IVIG e
conhecido altera o curso natural da doença, pre- imunoglobulina anti-D, poderão contribuir para a
venindo a sua progressão para a cronicidade ou elevação do número de plaquetas.
acelerando o catabolismo do anticorpo em ques- A maioria dos doentes melhora progressiva-
tão. Com vista ao aumento temporário do número mente, com aumento gradual da concentração pla-
de plaquetas são habitualmente utilizados três fár- quetária e resolução clínica. Desta forma, a es-
macos. Todos têm efeitos laterais significativos, plenectomia está apenas indicada nas emergências
devendo ser empregues apenas nas crianças que hemorrágicas e nos doentes com PTI grave, persis-
apresentem hemorragia moderada a grave. tente (> 12 a 24 meses), com diminição significativa
A prednisolona oral (1-2mg/Kg/dia durante 2 da qualidade de vida. O risco de ulterior infecção
semanas, ou 4mg/Kg/dia durante 4 dias) é pouco por microrganismos capsulados não pode ser des-
dispendiosa, permitindo elevar o número plaque- curado, pelo que se recomenda, sempre que pos-
tário mais rapidamente do que na ausência de tra- sível, a sua realização após os 4 anos de idade,
tamento. Todavia, à medida que a dose é diminuí- devendo ser precedida de imunização para o pneu-
da, regride também o número de plaquetas. mococo, e seguida de quimioprofilaxia com peni-
A IGIV, actuando por bloqueio dos receptotres cilina durante 3 anos. Cabe referir, a propósito, que
Fc, opondo-se à destruição das plaquetas no SRE, em cerca de 25% das situações, esta intervenção é
deve ser reservada às emergências hemorrágicas e ineficaz, não sendo conhecidos factores preditivos
à profilaxia pré-cirúrgica, na dose única de 0,8- para esta ausência de resposta. Como medida últi-
1g/Kg. Com uma eficácia que ronda 80%, permite ma de recurso poderão ser utilizados imunossu-
um incremento plaquetário muito mais acelerado pressores (ciclofosfamida, azatioprina, ciclosporina
716 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
149
As plaquetas, em número normal têm volume
normal e o tempo de hemorragia é prolongado.
As manifestações descritas (mais graves na doen-
ça do tipo I) são, essencialmente: epistaxe, hemorra-
gia digestiva, gengivorragia, menometrorragia, etc..
A verificação de petéquias e equimoses no
ANOMALIAS FUNCIONAIS mesmo doente aponta no sentido de alteração da
função das plaquetas.
DAS PLAQUETAS O tratamento é substitutivo com adminis-
tração de concentrado de plaquetas, salientando-
João M. Videira Amaral se o risco de formação de isoanticorpos contra
proteínas exógenas.
Síndroma de Bernard-Soulier
Importância do problema Nesta síndroma, transmitida de modo autossómico
recessivo, o defeito básico é a ausência de receptores
Para além das situações caracterizadas pela dimi- (glicoproteínas ou GP): Ib ou receptor do FvW, V e
nuição do número de plaquetas, cabe uma refe- IX, levando a defeito de adesão plaquetária.
rência breve às anomalias funcionais destes com- As manifestações clínicas traduzem-se funda-
ponentes sanguíneos. Trata-se de situações raras mentalmente por hemorragias gengivais espon-
(congénitas ou adquiridas) cuja base etiopato- tâneas; concomitantemente, existe risco aumenta-
génica ultraestrutral assenta, em geral, em defei- do de hemorragias relacionáveis com lesões trau-
tos de proteínas de membrana, de receptores e de máticas e com intervenções cirúrgicas ou mano-
grânulos plaquetários. bras invasivas.
Com o desenvolvimento da tecnologia é hoje Como achados laoratoriais ressalta-se: trom-
possível identificar a disfunção plaquetária – bocitopénia discreta, plaquetas de volume aumen-
fazendo parte de determinadas entidades clínicas tado e tempo de hemorragia > 20 minutos.
– através de estudos de biologia molecular. O tratamento consiste em transfusão de con-
centrado plaquetário nas situações de hemorragia
Anomalias funcionais congénitas grave com risco vital, dado o risco de formação de
isoanticorpos contra proteínas exógenas.
Dum modo geral as anomalias funcionais plaque-
tárias congénitas relacionam-se com defeitos do Anomalias dos grânulos plaquetários
receptor do FvW (complexo de glicoproteína Neste âmbito inclui-se um grupo heterogéneo de
GPIb) ou do receptor do fibrinogénio (GP-IIb-IIIa) defeitos ao nível do funcionamento dos chamados
É dada ênfase às seguintes entidades: grânulos-delta das plaquetas, os quais se associam
a determinadas síndromas como a síndroma de
Trombastenia de Glanzmann Chediak-Higashi.
Na base desta doença, transmitida de modo autos- A base etiopatogénica é a ausência de secreção
sómico recessivo, está um defeito molecular (muta- ou de libertação de serotonina ou adenosinas
ção de genes que codificam o receptor do fibrino- (ADP e ATP).
génio (designado por GP IIb-IIIa) fundamental para As manifestações hemorrágicas são benignas.
a agregação plaquetária; estão descritas duas formas A agregação plaquetária é normal com risto-
clínicas: tipo I (em que há ausência total da GP) e tipo cetina, e reduzida com colagénio.
II (em que há défice parcial variável – 5% a 25%).
Como, consequência do defeito, em resposta Anomalias funcionais adquiridas
aos agonistas habituais (trombina, ácido araqui-
dónico, colagénio, ADP, ristocetina, etc.), não se Na prática clínica poderão surgir situações diver-
verifica agregação plaquetária, ou esta é anómala. sas originando secundariamente anomalias fun-
718 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
150
cionais das plaquetas tais como: insuficiência
renal, hepatopatias diversas, coagulação intravas-
cular disseminada (CID), etc..
A administração de fármacos como antibióti-
cos em doses elevadas (penicilina, cefalosporinas,
carbenicilina), certos anestésicos, anti-histamíni-
cos, psicotrópicos, ácido acetilsalicílico e anti- APLASIA MEDULAR
inflamatórios não esteróides poderá conduzir
igualmente às referidas anomalias. João M. Videira Amaral
Em cerca de 60% dos casos existem anomalias resposta imune e, consequentemente, inefectiva.
congénitas associadas; os achados mais típicos e Pode ser de causa genética ou secundária a infec-
frequentes são: baixa estatura, defeitos dos pole- ções (designadamente por VEB, CMV), doenças
gares (por ex. agenésia, dedo supranumerário – malignas, situações auto-inflamatórias ou meta-
ou com 3 falanges – Figura 1), máculas de hipo- bólicas. Verifica-se hipercrescimento de histiócitos
pigmentação, máculas do tipo “café com leite”, com consequente fagocitose histiocitária das célu-
anomalias renais (por ex. rim em ferradura), dis- las sanguíneas nos gânglios linfáticos, medula
morfismo facial (hipoplasia facial, micrognatismo óssea, fígado e baço.
e base nasal alargada). As manifestações mais típicas são: pancitopé-
Os doentes com anemia de Fanconi, numa fase nia, hepatosplenomegália, hipertrigliceridémia e
inicial, poderão evidenciar citopénia isolada (por pleiocitose evidenciada no líquido cefalorraquidi-
ex. trombocitopénia ou leucopénia isoladas). ano.
O diagnóstico baseia-se na demonstração, pelo
estudo citogenético, de fracturas cromossómicas 4. Hemoglobinúria paroxística nocturna
espontâneas e induzidas por agentes que provo- Esta doença, rara na infância, manifesta-se em
cam lesão do ADN (por ex. mitomicina e DEB ou geral depois dos 5 anos de vida. Caracteriza-se por
dietil-epoxi-butano). hemólise intravascular moderada a grave mediada
pelo complemento, seguida por anemia aplástica,
2. Disceratose congénita trombose e carência de ferro. Em cerca de 30% dos
Trata-se de uma forma de displasia ectodérmica casos comprova-se quadro de hipoplasia medular.
transmitida de modo recessivo ligado ao cromos- (Capítulo 144)
soma X. As manifestações típicas incluem a tríade:
pigmentação cutânea anormal, distrofia das unhas Diagnóstico diferencial
e leucoplasia mucosa. A anemia aplástica surge
em cerca de 50% dos casos, em média por volta O diagnóstico diferencial da aplasia medular em
dos 10 anos de idade. geral faz-se com:
1) situações em que existe doença infiltrativa
3. Linfo-histiocitose hemofagocitária ou fibrose da medula óssea (tumores sólidos,
Esta síndroma (hemofagocitária) consiste num especialmente neuroblastoma, leucemia, doenças
quadro de hiperinflamação com desregulação da de armazenamento/tesaurismoses, osteopetrose e
mielofibrose) acompanhada de pancitopénia cuja
etiopatogénese é diversa da descrita atrás;
2) situações de carência de vitamina B12 e
ácido fólico em que se verifica destruição intra-
medular de elementos hematopoiéticos;
3) situações em que se verifica destruição peri-
férica aumentada (ao nível do baço, fígado ou
outros territórios do sistema reticuloendotelial) de
células sanguíneas maduras; o hiperesplenismo
associado a quadros clínicos diversos tais como
hipertensão portal, hipertrofia esplénica associada
a talassémia, histiocitose, malária, tesaurismoses
(já mencionadas como exemplo de mecanismo
diferente), pode contribuir para tal destruição pe-
riférica. Os sinais que apontam no sentido de des-
truição periférica aumentada são: reticulocitose,
elementos eritróides ou mielóides imaturos evi-
FIG. 1
denciados no esfregaço do sangue periférico, pla-
Anemia de Fanconi. Defeito do polegar (com 3 falanges). (NIHDE) quetas de grandes dimensões, elevação do nível
CAPÍTULO 150 Aplasia medular 721
151
repetidas, e dos problemas relacionados com os
tratamentos com derivados sanguíneos.
Aspectos epidemiológicos
Hemofilia moderada (A e B)
Nesta forma, menos exuberante, raramente se ve-
rificam hemorragias espontâneas; contudo, sem
tratamento poderá haver hemorragias prolon-
FIG. 1
gadas após lesões traumáticas ligeiras, com uma
A – Hematoma do coiro cabeludo. (NIHDE) frequência muito variável.
FIG. 2 FIG. 4
A – Hemartrose do joelho. (NIHDE) A – Hematoma da base da língua. (NIHDE)
724 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
clínica e o exame objectivo são elementos essen- não acarreta um risco acrescido de produção de
ciais na abordagem inicial. A localização das anticorpos inibidores. Os inconvenientes destes
hemorragias (superficiais/profundas) é impor- produtos estão, sim, relacionados com o preço e
tante na diferenciação entre alterações da hemos- com a sua disponibilidade.
tase primária e secundária. O diagnóstico diferencial Além disso, na produção de factor VIII recom-
entre hemofilia ligeira e doença de von Willebrand pode binante é utilizada albumina humana, não elimi-
ser difícil. A história familiar com um padrão de nando assim o risco (até agora apenas teórico) de
hereditariedade autossómica dominante pode ser transmissão de priões humanos. Os novos produ-
indicativa deste último diagnóstico. tos, chamados de segunda geração, são menos
De referir que o estado de portador de hemo- sensíveis à degradação proteolítica, não existindo
filia A ou B no sexo feminino pode, por vezes, cor- albumina na sua formulação final.
responder a sintomatologia ligeira. O factor IX recombinante não necessita de
qualquer proteína humana ou animal na sua for-
Tratamento mulação ou preparação.
O Quadro 3 descreve, com mais pormenor, as compressão e fisioterapia;estas medidas devem ser
normas de actuação quanto a tratamento substitu- iniciadas o mais precocemente possível. Não devem
tivo em função do problema específico ser usados o ácido acetilsalicílico ou derivados.
(antes de a criança começar a sofrer de hemar- praticar desporto compatível (pois a tonificação
trose ou após a primeira hemorragia articular). Tal muscular é essencial na estabilização das articu-
medida possibilita uma redução drástica do nú- lações); obviamente, há que evitar os desportos de
mero de episódios hemorrágicos, preservando as contacto físico como o futebol, artes marciais,
articulações; os inconvenientes são a necessidade desportos radicais, etc..
de via central de acesso venoso permanente e o Finalmente, recorda-se que a abordagem destas
elevado custo do factor. crianças deve ser feita por uma equipa multidisci-
– Profilaxia secundária plinar que inclua, designadamente, hematologista,
Considera-se esta modalidade se o tratamento pediatra/médico assistente/médico de família,
regular contínuo tiver sido iniciado após os 2 anos estomatologista, enfermeira, assistente social, fisia-
de idade, ou após duas ou mais hemorragias numa tra e ortopedista, entre outros profissionais.
articulação-alvo.
De salientar, no entanto, que o esquema pro- BIBLIOGRAFIA
filáctico deve ser individualizado tendo em conta Bolton-Maggs PH, Stobart K, Smyth RL. Evidence-Based
a frequência dos episódios hemorrágicos, a adesão Treatment of Haemophilia 2004; 10 (suppl 4): 20-24
da família e a disponibilidade de acessos venosos. Chalmers EA. Haemophilia and the newborn. Blood Rev 2004,
Após um período inicial de adaptação da 18: 85-92
família, a mesma deve ser motivada para a cola- Dunn Al, Abshire TC. Recent advances in the management of
boração na administração do factor no domicílio, the child who has hemophilia. Hematol Oncol Clin North
o que contribui para diminuir a dependência as- Am 2004; 18: 1249-1276
sistencial da instituição de saúde. Giangrande PLF. Management of haemophilia. Paediatrics and
Child Health 2011; 21:344-347
Aconselhamento genético Gouw SC, Van der Bom Jg, Ljung R, et al. Factor VIII products
e educação para a saúde and inhibitor development in severe hemophilia A. N Engl
J Med 2013; 368:231-239
Realça-se a importância do estudo molecular, não Hoffman R, Benz EJ, Shattil SJ, et al. (eds). Hematology: Basic
só para a confirmação diagnóstica como comple- Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier Churchill
mento do doseamento sérico dos factores, mas Livingstone, 2007
também para o estudo familiar e aconselhamento Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
genético. Outra vantagem prende-se com o seu Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
valor preditivo quanto ao fenótipo clínico prová- 2011
vel e ao risco de desenvolvimento de inibidores. Lopes LM, Villa AM. Hematologia y Oncologia Pediatricas.
Assim, após detecção de uma mutação no caso Madrid: Ediciones Ergon, 2004
index está indicado proceder ao estudo genético Manco-Johnson M. Hemophilia management: optimizing
da família, uma vez que em 70% dos casos a mãe treatment based on patients needs. Curr Opin Pediatr 2005;
é portadora da mutação genética. 17: 3-6
No que respeita a recomendações gerais à família McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
(e ao próprio doente em função da idade) cabe acen- Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010
tuar que todas as vacinas do PNV podem ser admi- Oldenburg J, Ananyeva NM, Saenko EL. Molecular basis of
nistradas às crianças hemofílicas assim como a vaci- haemophilia A. Haemophilia 2004; 10 (suppl 4): 133-139
na anti-hepatite A. As vacinas podem ser admi- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
nistradas por injecção subcutânea sem necessidade AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
de profilaxia específica, devendo o local de punção Medical, 2011
ser comprimido durante, pelo menos, 10 minutos. Zimmerman B, Valentino LA. Hemophilia: in review. Pediatr
O doente hemofílico deve ser alertado para a Rev 2013; 34: 289 - 294
importância de uma higiene dentária cuidadosa
com avaliação regular e periódica pelo estomato-
logista.
A criança hemofílica deve ser estimulada a
CAPÍTULO 152 Doença de Von Willebrand 729
152
Além da forma congénita, existe também a for-
ma adquirida, relacionável com situações tais
como linfoma não-Hodgkin,doenças mieloproli-
ferativas, tumor de Wilms, administração de fár-
macos (ciprofloxacina,ácido valpróico, griseoful-
vina), leucemia linfocítica crónica, hipotiroidismo,
DOENÇA DE VON WILLEBRAND etc..
menorragias e melenas; em muitos casos, com a às plaquetas e a agregação destas (agregação pla-
comprovação das anomalias bioquímicas, não se quetária induzida pela ristocetina (APIR ou sigla
verifica qualquer sintomatologia hemorrágica. Na RIPA em inglês)
história familiar identificam-se casos com tendên- Nos tipos 1 e 3 verifica-se redução da agluti-
cia hemorrágica excessiva. nação proporcional aos níveis de Ag FvW.
Nas formas graves associadas a défice do com- No tipo 2 não se verifica tal proporção, sendo
ponente procoagulante da molécula do factor VIII que a actividade funcional é menor que a presença
(ou factor VIII:C) as manifestações são seme- antigénica do FvW.
lhantes às da hemofilia A, realçando-se a he- • Estudos de genética molecular
martrose. Estão descritas situações em que se
demonstrou a presença de um factor inibidor. Tratamento
153
FvW derivado do plasma (que também contém
factor VIII). De salientar que 1 U/kg aumenta o
respectivo nível plasmático cerca de 1,5%. A vida
média do FvW é ~8-10 horas; o concentrado puro
de FvW recombinante, sem factor VIII não está
ainda disponível no mercado. O esquema prático
de administração do FvW é o seguinte: 20 a 30 HIPERCOAGULABILIDADE
U/kg em 20 minutos de 8/8 ou 12/12h para man-
ter níveis superiores a 50%. A administração con- E DOENÇA TROMBÓTICA
comitante de 20 a 30 U do cofactor da ristocetina
aumenta a concentração plasmática para 50 a João M. Videira Amaral
100% ou aproximadamente 0,7 U/ml.
No tipo 3 poderá haver necessidade de maior
nível reposição de FvW (82 a 100%); se a hemorra-
gia não for dominada com as doses referidas Importância do problema
poderá ser necessário transfusão de plaquetas.
Não se deverá empregar o crioprecipitado pelo As anomalias da coagulação caracterizadas por
facto de o mesmo não ser viralmente atenuado. hipercoagulabilidade predispõem a trombose ou
Duas notas importantes devem ser realçadas: fenómenos tromboembólicos venosos ou arteriais
vacina anti-hepatite B antes de o doente ser trata- (trombofilia). Tais anomalias, que podem ser con-
do com derivados do plasma, e evicção de ácido génitas /hereditárias ou adquiridas, comportam
acetilsalicílico, o qual tem acção antiagregante pla- risco elevado de morbilidade e mortalidade.
quetária. Os eventos tromboembólicos são raros em
crianças saudáveis; a sua incidência é maior em
BIBLIOGRAFIA RN em estado crítico e nos casos de doenças cróni-
Choudhuri S, Bolton-Maggs. Von Willebrand disorder. cas. Estatísticas hospitalares dos EUA apontam
Paediatrics and Child Health 2011; 21:348-352 para taxas médias de alterações adquiridas da
Favoloro EJ, Lillicrap D, Lazzari MA, et al. Von Willebrand dis- ordem de 10/100.000, com variações em função da
ease: laboratory aspects of diagnosis and treatment. idade (maiores picos em lactentes e adolescentes).
Haemophilia 2004; 10: 164-168 De referir que, independentemente de factores
Gill JC. Diagnosis and treatment of von Willebrand disease. predisponentes, a tendência para trombose dimi-
Hematol Oncol Clin North Am 2004; 18: 1277-1299 nui significativamente após o período neonatal;
Hann IM, Gibson BES, Letsky EA. Fetal and Neonatal por outro lado, quanto menor a idade gestacional,
Haematology. London: Baillere Tindall, 2001 maior a deficiência, quer em proteínas anticoagu-
Hoffman R, Benz EJ, Shattil SJ, et al. (eds). Hematology: Basic lantes, quer em factores procoagulantes.
Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier Churchill
Livingstone, 2007 Etiopatogénese e manifestações
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson clínicas
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
2011 O Quadro 1 sintetiza as situações mais frequentes
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon que predispoem a trombose. Na base da sistemati-
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New Yor : McGraw-Hill zação do mesmo quadro, importa referir os
Medical, 2011 mecanismos (um ou mais ) que levam à trombose
ou trombose seguida de embolia: lesão vascular,
anomalia do processo de adesão/agregação das
plaquetas, activação do mecanismo da coagu-
lação, deficiência ou disfunção do sistema de anti-
coagulação, disfunção do mecanismo de fibri-
nólise, e diminuição da velocidade circulatória. A
732 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
154
QUADRO 1 – Principais factores etiológicos
de CID
CID aguda
Sépsis grave
– Gram negativos (endotoxinas)
COAGULAÇÃO INTRAVASCULAR – Gram positivos (mucopolissacáridos)
– Vírus
DISSEMINADA
Traumatismo grave
Deolinda Barata e Sofia Sarafana – Lesão tecidual grave (por ex: queimados)
– Traumatismo craniano
– Embolia gorda
DOENÇA SUBJACENTE
Citocinas pró-inflamatórias
Endotélio e plaquetas
Libertação de
FT-VIIa
IAP-1
Esgotamento de factores de
coagulação e plaquetas
FIG. 1
Fisiopatologia da coagulação intravascular disseminada.
degradação pela elastase libertada por neutrófilos tuem marcadores de doença em progressão e su-
activados, diminuição da síntese hepática e ex- gerem mau prognóstico.
travasamento através de capilares permeáveis. Os
baixos níveis de AT-III na CID estão associados a Interacção entre a coagulação e a inflamação
um aumento da mortalidade em doentes com sép- A activação da coagulação produz proteases, as
sis. quais induzem mediadores pró-inflamatórios com
efeitos procoagulantes e amplificam a cascata que
Disfunção da fibrinólise leva a CID.
Na CID as células endoteliais e as plaquetas acti-
vadas libertam inibidor tipo I do activador do Manifestações clínicas
plasminogénio (IAP-1). Em estudos clínicos, os
elevados níveis de IAP-1 e os níveis baixos do Dum modo geral, as manifestações clínicas tra-
complexo alfa 2 antiplasmina-plasmina consti- duzindo situação de aparência geral grave rela-
CAPÍTULO 154 Coagulação intravascular disseminada 737
FIG. 3
Quadro de CID aguda/diátese hemorrágica grave.
FIG. 2 (doente da Unidade de Cuidados Intensivos Pediátricos do
Cascata da coagulação e via fisiológica da anticoagulação. Hospital Dona Estefânia, Lisboa).
cionável com as da entidade subjacente (por exem- arritmia), insuficiência suprarrenal aguda (ne-
plo, infecção, neoplasia, traumatismo grave, diver- crose suprarrenal), púrpura fulminante e trom-
sas entidades obstétricas, transfusão de sangue bose venosa hepática.
incompatível, golpe de calor, afogamento em água Os achados na autópsia em doentes com CID
doce,etc.), somam-se às devidas a trombose e crónica ou subaguda mostram sinais de hemorra-
hemorragia. De salientar que a CID duplica aproxi- gia difusa em diversos locais, de necrose hemor-
madamente o risco de morte em doentes com sép- rágica dos tecidos, e de trombose em pequenos e
sis ou lesão traumática grave. grandes vasos.
A hemorragia é a manifestação clínica mais dra-
mática da CID aguda, associada a uma formação Exames complementares
excessiva de plasmina: equimoses em locais de ve-
nopunção e feridas, hematomas, hematúria, assim A anamnese e o exame objectivo, conduzindo à
como petéquias no palato mole e pele (Figura 3). suspeita de CID, obrigam à realização de exames
Nas formas graves podem surgir hemorragias complementares, sendo de referir que nenhum
maciças com localizações diversas:génito-uriná- exame laboratorial isoladamente permite diagnos-
ria, pulmonar, gastrintestinal, sistema nervoso ticar ou excluir CID.
central, etc..
Ocorre febre e hipotensão em 50% dos casos, e Aspectos gerais
anemia hemolítica microangiopática em cerca de As anomalias observadas nos resultados de diver-
15%. sos exames biológicos podem variar em função da
A CID subaguda ou crónica associada a neo- fase em que se encontra o doente, gravidade e tipo
plasias, doenças do tecido conjuntivo ou doença de doença subjacente, e eventual suporte hemo-
renal crónica, manifesta-se habitualmente como terapêutico já levado a cabo anteriormente.
entidade pró-trombótica e não como doença Na prática, em caso de CID observa-se:
hemorrágica. Menos óbvia clinicamente é a – diminuição rápida do número de plaquetas
microtrombose vascular causada pela deposição ou número < 100.000 por mm3 ;
de fibrina em diversos territórios, levando à falên- – aumento dos tempos de coagulação, tempo
cia de órgãos. de protrombina (TP), tempo de tromboplastina
As manifestações trombóticas habitualmente parcial activada (TTPa);
observadas são: insuficiência renal aguda (necrose – verificação e aumento de produtos de degra-
cortical bilateral, necrose tubular aguda), acidente dação da fibrina no plasma (PDF) e de dímeros D,
vascular cerebral, isquémia do miocárdio (enfarte, estes últimos o indicador biológico mais sensível;
738 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
– baixos níveis de inibidores da coagulação me relativamente inespecifico, uma vez que várias
(como antitrombina III). outras entidades (por ex. lesão traumática, infla-
De acordo com o que anteriormente foi referi- mação ou tromboembolismo venoso) podem
do, a síndroma de CID não pode ser excluída se os aumentar os níveis de PDF.
resultados dos exames referidos estiverem dentro Provas mais específicas que detectam os produ-
do intervalo de normalidade; com efeito, a respos- tos resultantes da degradação de fibrina pela plas-
ta de fase aguda leva à diminuição do tempo de mina (os dímeros-D) são mais úteis, uma vez que
tromboplastina parcial activada e ao aumento da indicam que ocorreu coagulação e fibrinólise. Os
concentração de fibrinogénio. dímeros-D estão aumentados em 95% dos doentes.
Segundo as normas da Sociedade de Trombose • Marcadores de formação de trombina.
e Hemostase, o Quadro 2 sintetiza os achados prin- Níveis plasmáticos elevados de trombina
cipais como critérios auxiliares de diagnóstico. podem reflectir-se em aumento dos níveis de: frag-
mento F1 (F1+2) de activação da protrombina,
Aspectos específicos complexo trombina-antitrombina (TAT) e fibrino-
Tendo como base os conceitos da fisiopatologia péptido A. A conversão de protrombina em trom-
antes descritos, são referidos mais em pormenor bina leva a libertação de fragmento inactivo F1+2
os seguintes exames: e de um elemento intermédio, pré-trombina 2, que
• Provas para detectar a formação intravascular de mais tarde forma trombina. A trombina pode de-
fibrina e produtos de degradação da fibrina/fibrinogénio. gradar o fibrinogénio por proteólise e libertar fi-
Uma vez que o principal factor desencadeante brinopéptido A. Em alternativa, pode formar-se
da fisiopatologia da CID é um aumento da for- um complexo estável, inactivo com antitrombina, o
mação de fibrina, a comprovação da existência de complexo TAT. Níveis aumentados de F 1+2, TAT e
fibrina no plasma seria essencial no diagnóstico fibrinopéptido A são indicadores sensíveis de CID
de CID. O aumento do nível de fibrina solúvel tem quando as manifestações são subclínicas. Contudo,
uma elevada sensibilidade (90-100%), como prova a sua utilidade é limitada pela necessidade de
diagnóstica. Contudo, este exame não está dispo- manuseamento cuidadoso da amostra e pela falta
nível nos laboratórios de rotina. de especificidade. Estes exames não estão dispo-
Os produtos de degradação da fibrina (PDF) níveis na maioria dos laboratórios comuns.
formam-se quando há degradação de fibrina e/ou • Contagem de plaquetas.
de fibrinogénio. Os níveis de PDF estão aumenta- A agregação de plaquetas induzida por trom-
dos em 80-100% dos doentes com CID e podem bina contribui significativamente para o consumo
ser detectados através de métodos ELISA ou de de plaquetas na CID. Contudo, podem ocorrer
aglutinação de látex. Contudo, trata-se dum exa- alterações na produção de plaquetas em doentes
1. Avaliação do risco
O doente tem alguma doença subjacente associada a manifestações de CID?
Se sim continuar; se não não utilizar este algoritmo
4. Calcular valor
Pontuação total
6. Se < 5: sugestivo de CID sem manifestações; repetir nos próximos 1-2 dias
740 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
em doentes com sépsis ou choque séptico tratados patients. Sem Thromb Hemost 2001; 27: 585–592
com concentrados de antitrombina III, não se tem Hardaway RM, Williams CH, Vasquez Y. Disseminated
verificado redução significativa na mortalidade. intravascular coagulation in sepsis. Sem Thromb Hemost
A proteína C, uma serina-protease dependente 2001; 27: 577–583
da vitamina K, inibe os factores activados V e VII Helfaer MA, Nichols DG (eds).Roger's Handbook of Pediatric
prevenindo, assim, a produção de trombina. Intensive Care. Philadelphia: Lippincott Williams &
A proteína C humana recombinante activada Wilkins, 2009
(PCAhc) na dose de 24 mg/kg/h em infusão con- Hoffman R, Benz EJ, Shattil SJ, et al (eds). Hematology: Basic
tínua ao longo de 96 horas reduz a mortalidade, Principles and Practice. Philadelphia: Elsevier Churchill
melhora o perfil de coagulação, evidenciando Livingstone, 2007
também propriedades anti-inflamatórias media- Johnson LH., Gittelman M. Management of bleeding diathesis:
das pela modulação do factor kappa-B. A case-base approach. Clin Ped Emerg Med 2005; 6: 149-155
Contudo, devem tomar-se precauções quando Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
se administra PCArh em doentes com tromboci- Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
topénia (número plaquetário < 50 x 109/L) dada a 2011
maior probabilidade de hemorragia intracraniana, Levi M, Schultz M. Coagulopathy and platelet disorders in
o que implica , em tal circunstância, proceder a critically ill patients. Minerva Anestesiol 2010; 76:851-859
transfusão de plaquetas previamente. Levi M. Current understanding of disseminated intravascular
coagulation. Br J Haematol 2004; 124: 567–576
GLOSSÁRIO Levi M. Disseminated intravascular coagulation in cancer.
ADP > Adenosina difosfato. Haemostasis 2002; 31(suppl 1): 47–48
TTPa > Tempo de tromboplastina parcial activada. Levi M, de Jonge E, Meijers J. The diagnosis of disseminated
AT III > Antitrombina III. intravascular coagulation. Blood Rev 2002; 16: 217–223
CID > Coagulação intravascular disseminada. Morley SL.Management of acquired coagulopathy in acute
ELISA > Imunoensaio enzimático. paediatrics. Arch Dis Child Educ Pract Ed 2011; 96:49-60
F 1+2 > Fragmentos 1 e 2 de activação de protrombina. Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
HELLP > Síndroma de hemólise, aumento das enzimas hepáticas e dimi- AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
nuição das plaquetas. Medical, 2011
IL > Interleucina. Taylor Jr FB, Toh CH, Hoots WK, Wada H, Levi M. Scientific
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PAP > Complexo plasmina antiplasmina. (DIC) of the International Society on Thrombosis and
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Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011
Gando S. Disseminated intravascular coagulation in trauma
742 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
155
ficativa de sintetizar imunoglobulinas; ou seja, até
esta idade, praticamente todos os anticorpos são
adquiridos a partir da mãe, por transferência pla-
centária.
Consequentemente, até cerca dos 3- 4 meses de
idade, as provas pré-transfusionais têm limitações,
TERAPÊUTICA TRANSFUSIONAL sendo que a pesquisa de anticorpos pode, em
princípio, ser efectuada no soro da mãe.
Deonilde Espírito Santo Numa perspectiva didáctica, para a realização
da transfusão em idade pediátrica são considera-
dos dois períodos:
– neonatal e pós-neonatal, desde o nascimento
Importância do problema até aos 4 meses de vida;
– pediátrico, dizendo respeito à criança com
A terapêutica transfusional é determinante em mais de 4 meses e à adolescência.
pediatria, nomeadamente na correcção de situa- Estes dois períodos, por terem características
ções do foro hemato-oncológico e envolvendo tão distintas são abordados separadamente.
procedimentos cirúrgicos. Embora se trate duma No fim do capítulo, faz-se alusão às principais
terapêutica indispensável na medicina moderna, a reacções transfusionais e é apresentado um glossário.
mesma comporta certos riscos.
No Hospital de Dona Estefânia (HDE), numa Transfusão na idade
tentativa de diminuir tais riscos, em complemento dos 0 aos 4 meses
das medidas clássicas de segurança levadas a cabo
nacional e internacionalmente, existe uma comis- Anemia da prematuridade
são que emite recomendações e elabora normas. Durante as primeiras semanas de vida verifica-se
Nesta perspectiva, utiliza-se uma estratégia que, um declínio do teor da hemoglobina (Hb). Tal
na sua essência, consiste em reduzir o número de declínio fisiológico da hemoglobina (que pode
dadores por doente submetido a transfusão; pre- atingir 9 g/dL e o nadir por volta das 10 – 12 sema-
tende-se, efectivamente, que antes da prescrição nas), é bem tolerado no RN de termo. Esta situa-
de qualquer componente sanguíneo sejam sempre ção corresponde à chamada anemia fisiológica do
ponderados riscos e benefícios associados a esta lactente.
terapêutica, alternativas terapêuticas existentes e, Na criança nascida prematuramente (antes das
sempre que a resolução prioritára da situação 37 semanas de gestação), este declínio ocorre mais
clínica o permita, a obtenção do consentimento cedo (4 – 6 semanas), é mais pronunciado e habi-
esclarecido do doente e ou da família. tualmente é exacerbado pelas múltiplas flebotomias
Neste capítulo, para melhor compreensão da necessárias para a realização de estudos analíticos.
problemática da terapêutica transfusional, alguns Pode, assim verificar-se, anemia sintomática (por
aspectos dos procedimentos e das atitudes a tomar exemplo, episódios de apneia, taquicárdia, taqui-
são relacionados com a respectiva fundamentação pneia, défice ou ausência de progressão ponderal),
fisiopatológica (ver adiante Glossário). podendo implicar terapêutica transfusional (Capí-
tulos 333 e 354).
Particularidades na idade pediátrica
Sangue total
Na criança a terapêutica transfusional comporta as- A utilização do sangue total pode estar indicada
pectos muito específicos, considerando a evolução nos doentes que necessitam de exsanguinotrans-
fisiológica que faz parte do crescimento e desen- fusão ou nos casos que requerem reposição de vo-
volvimento do feto, do recém-nascido (RN) e da cri- lume superior à volémia (volémia na criança: ~85
ança. De referir que somente a partir dos 3-4 meses mL/kg de peso) em menos de 24 horas (trans-
de idade o organismo adquire a capacidade signi- fusão maciça), por hemorragia mantida e intensa.
CAPÍTULO 155 Terapêutica transfusional 743
uma forma geral, aquelas suportam níveis de hemo- Nos doentes com hemoglobinopatias devem
globina mais baixos do que os adultos, pelo que as ser seguidos protocolos transfusionais específicos.
indicações de transfusão se estabelecem para níveis A alguns destes doentes são administradas trans-
mais baixos de hemoglobina e de hematócrito. fusões, não só para combater a hipóxia, mas tam-
Nas intervenções cirúrgicas programadas, as bém para suprimir a eritropoiese.
necessidades em sangue são habitualmente deter-
minadas com base nas perdas habituais em deter- Concentrado plaquetário
minado procedimento cirúrgico; contudo, em No grupo etário em análise, tal como no recém-
cirurgia pode fazer-se a previsão das necessidades nascido, considera-se trombocitopénia o valor de
numa base individual, tendo em consideração o plaquetas inferior a 150.000/µL. (Capítulo 148)
quadro clínico específico de cada doente. As indicações para a transfusão de plaquetas,
Para cada doente pode calcular-se a perda má- bem como a dose recomendada para a criança e
xima de sangue (PMS) antes de se admitir a neces- adolescente, são idênticas às do adulto.
sidade de transfusão, entrando em conta com o Considera-se que um doente com um número
hematócrito mínimo (Ht min) que o doente pode de plaquetas entre 10.000 e 20.000/µL tem trombo-
tolerar, a volémia (V), o hematócrito inicial (Ht i) e citopénia grave e está em risco de hemorragia
o hematócrito médio (Ht m), através da seguinte grave. Se apresentar um valor de 50.000/µL existe
fórmula: risco hemorrágico nos casos de procedimentos
PMS = Vx (Ht i – Ht min)/Ht m invasivos. Os doentes com valores entre 100.000/µL
e 50.000 /µL geralmente estão assintomáticos.
Na anemia crónica, os efeitos metabólicos reper- A administração profiláctica de concentrados
cutem-se na afinidade da hemoglobina para o plaquetários deve ser bem ponderada devido ao
oxigénio (curva de dissociação da Hb/O2) favore- risco de aloimunização e de eventual ausência de
cendo a sua libertação aos tecidos periféricos. Em resposta a ulteriores administrações.
tais circunstâncias, as crianças podem estar assin- Alguns centros recomendam a transfusão pro-
tomáticas com níveis muito baixos de hemoglobina. filáctica de plaquetas a crianças com falência me-
Como regra geral, a transfusão está indicada dular e valores inferiores a 20.000/µL, consideran-
para minorar a sintomatologia e sempre que a tera- do que o risco de hemorragia espontânea aumen-
pêutica médica correctamente instituída tenha sido ta marcadamente quando este nível é atingido,
ineficaz. A transfusão deve ser efectuada unidade a particularmente se houver infecções, anemia, dis-
unidade, com reavaliação do doente após cada função hepática, renal ou pulmonar.
transfusão. Outros consideram que não há indicação para
As indicações da transfusão têm em conta, não a transfusão de plaquetas se se verificar estabili-
apenas o valor da hemoglobina, mas também a dade clínica sem discrasia para valores de plaque-
presença de: tas entre 5.000 – 10.000/µL .
– sinais e sintomas de anemia e a capacidade A decisão de transfundir plaquetas é, pois,
funcional do doente; controversa e depende da causa da hemorragia, da
– presença ou ausência de doença cardio-respi- situação clínica do doente, do número e da função
ratória e do sistema nervoso central; das plaquetas circulantes. Demonstrando-se
– etiologia da doença de base e ineficácia da alterações qualitativas das plaquetas (hereditárias
terapêutica médica anterior; ou adquiridas), justifica-se a transfusão indepen-
– terapêuticas alternativas, por exemplo ferro e dentemente do número, se houver hemorragia.
eritropoietina. A administração de concentrados plaquetários
deve ser ABO/Rh compatível com o receptor,
No doente cardíaco o compromisso na libertação consistindo habitualmente em pools de 2 a 10
de oxigénio aos órgãos críticos pode ocorrer antes de unidades; nesta circunstância, de facto, verifica- se
haver compensação fisiológica. Nestes doentes, com exposição a múltiplos dadores o que aumenta o
limitada reserva fisiológica, pode ser necessário risco de não resposta ulterior e de aloimunização.
manter o nível de hemoglobina mais elevado. Na presença de aloimunização podem ser uti-
CAPÍTULO 155 Terapêutica transfusional 747
coagulação após 24 horas de conservação. A sua maior aplicação diz volume de 40-70 mL de plasma. Só podem ser conservadas durante
respeito à preparação de outros componentes sanguíneos. cinco dias.
Concentrado eritrocitário > É o componente obtido por remoção par- Concentrado unitário de plaquetas > É obtido de um único dador uti-
cial do plasma de uma unidade de sangue total. Consoante o tipo de lizando um separador automático de células. Dependendo do tipo
processamento efectuado é possível obter concentrados eritroci- de processamento e do equipamento utilizado, pode obter-se um
tários com maior ou menor contaminação de glóbulos brancos, pla- número de plaquetas que oscila entre 200-800x109.
quetas e plasma. Plasma fresco congelado > É a porção aquosa e acelular do sangue total,
Concentrado eritrocitário sem “buffy coat”, em solução aditiva, e contendo proteínas, colóides, nutrientes, cristalóides, hormonas e vita-
desleucocitado > Este tipo de concentrado eritrocitário apresenta minas. A albumina é a proteína mais abundante, mas também contém
menor contaminação de glóbulos brancos, plaquetas e plasma do outras como: fracções do complemento, enzimas, imunoglobulinas e
que o anteriormente referido, porque no método de produção, além factores da coagulação, nomeadamente, fibrinogénio, factor II, VII, IX,
de ser removido o plasma, é também retirada a camada leucopla- X, XIII, VIII. Pode ser obtido a partir do sangue total ou por aférese.
quetária, sendo subsequentemente adicionada às células uma Deve ser congelado num período de tempo e a uma temperatura que
solução nutritiva apropriada. Em seguida é desleucocitado, antes permita manter adequadamente, em estado funcional, os factores da
do armazenamento. Em média este componente tem um volume de coagulação. Contém um volume aproximado de 180-300 mL.
250 ml ± 10%. Tem um hematócrito que oscila entre 50-70% e um Crioprecipitado > É um preparado que contém a fracção crioglobulíni-
mínimo de 45g de hemoglobina por unidade. ca do plasma, obtido através da descongelação do PFC a 4ºC e
Concentrado plaquetário > É um componente obtido a partir de uma removendo o sobrenadante. É rico em fibrinogénio, factor VIII,
unidade de sangue total, devendo conter a maioria das plaquetas da vários multímeros de factor de Von Willebrand, fibronectina e factor
unidade original. Dependendo do método de preparação, o número XIII. Segundo o Conselho da Europa deve ter um volume entre 30 –
médio de plaquetas numa unidade deve ser 70x109 suspensa num 40 ml.
CAPÍTULO 155 Terapêutica transfusional 751
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PARTE XIX
Nefro-Urologia
754 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
156
QUADRO 1 – Doenças glomerulares
157
As lesões glomerulares originam-se, quer pela
formação de imunocomplexos antigénio-anticor-
po (ICAg-Ac) in situ, quer pela deposição de
imunocomplexos circulantes (ICC). Embora diver-
sos antigénios estreptocócicos tenham sido identi-
ficados nos depósitos glomerulares de origem
GLOMERULONEFRITE AGUDA imune, são referidas duas proteínas de particular
interesse designadas por Spe B (exotoxina B cisti-
Ana Paula Serrão e Gisela Neto na proteinase) e NAPIR (receptor plasmático asso-
ciado a nefrite).
A via alterna do complemento está primaria-
mente envolvida e é activada pela presença destes IC
Definição nos glomérulos. A activação do C3 leva ao recruta-
mento de monócitos e neutrófilos que, através da li-
A GNA é um processo inflamatório agudo bertação de citocinas, originam as lesões inflama-
glomerular, secundário a alterações imunológicas; tórias e proliferativas ao nível dos capilares glomeru-
manifesta-se na clínica por uma síndroma nefríti- lares, levando ao padrão histológico de GN endo-
ca. A forma de apresentação típica é caracterizada capilar proliferativa. Podem surgir igualmente, em
pelo aparecimento súbito de hematúria, edema, certas formas, fenómenos de auto-imunidade com
hipertensão arterial (HTA), oligoanúria e insufi- formação de anticorpos anti-IgG, anti-C1q, anti-
ciência renal de graus variáveis. Mas, muitas ADN e ANCA. Estas alterações inflamatórias tra-
vezes, manifesta-se por associações incompletas. duzem-se, na clínica, pelo aparecimento de hema-
Trata-se duma entidade nosológica à qual túria, proteinúria, diminuição do filtrado glomerular
estão subjacentes diferentes etiologias assim como com retenção hidrossalina, levando a uma sobrecar-
diversas alterações histológicas glomerulares. ga hídrica que se manifesta por edema e HTA. A
Estas não são específicas da entidades clínica; isto hipertensão arterial (HTA) resulta de hipervolémia e
é, uma doença pode apresentar-se com diferentes da estimulação do sistema renina-angiotensina.
padrões histológicos e um dado padrão histológi- A GNAPE habitualmente surge 3 a 6 semanas
co pode ser encontrado em doenças distintas. após uma infecção cutânea e 7 a 14 dias após uma
infecção das vias respiratórias superiores (farin-
Etiopatogénese gite, amigdalite) causadas por estirpes nefritogéni-
cas (com antigénios/proteínas M designados,
Na idade pediátrica a causa mais frequente de sin- respectivamente, M 47, 49, 55,57 e M 1, 2, 4, 12.
droma nefrítica é a GNA pós-infecciosa, estando im- Existem outros antigénios nefritogénicos como
plicados os seguintes germes: Estreptococo, Estafilo- NAPlr e SPEB.
coco, Pneumococo, Salmonella typhi, Mycoplasma, A GNAPE atinge sobretudo o grupo etário dos
Virus-Herpes (VEB), vírus ECHO, Coxsackie, etc.; ou- 5 aos 15 anos, com predomínio do sexo masculino
tras etiologias devem, no entanto, ser consideradas. (2:1). Pode ocorrer esporadicamente ou em epi-
Uma vez que a GNA pós-infecciosa é, na crian- demia, neste último caso sobretudo nos países em
ça, a etiologia mais frequente da GNA, e a GNA vias de desenvolvimento.
pós-estreptocócica (GNAPE), o seu exemplo par-
adigmático, será abordada com mais pormenor Manifestações clínicas
esta última.
A patogénese da GNAPE não está ainda com- Na síndroma nefrítica a hematúria macroscópica
pletamente esclarecida, mas admite-se ser neces- (urina cor de coca-cola/vermelha acastanhada,
sária a conjugação de factores dependentes do excluindo factores susceptíveis de alterarem a cor da
hospedeiro e do agressor (estreptococo beta urina como a ingestão de fármacos, tóxicos,
hemolítico do grupo A de Lancefield) para se dar beterrabas, amoras, corantes, traumatismo lombo-
início às alterações imunológicas. sagrado, etc) é frequentemente o primeiro sinal de
756 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
HTA
↓ C3
Proteinúria
Hematúria microscópica
Proteinúria intermitente
Meses Dados de Consulta de Nefrologia Pediátrica do Hospital Dona Estefânia, Lisboa (2005)
diárias), cefalosporina de primeira geração por longo prazo. Em geral atinge-se rapidamente a
ex. cefradina, 25-100 mg / kg/dia (3-4 doses remissão clínica, podendo, no entanto, persistir
diárias), ou clindamicina, 15-40 mg/kg/dia (3- algumas alterações ao longo do tempo (Quadro 1
4 doses diárias), durante 10 dias. que se refere a 100 casos ao longo de 15 anos).
2 – Controlo dos contactos: Atendendo à história natural da GNAPE, raras
* Exsudado nasofaríngeo – se se confirmar a são as situações com indicação para biópsia renal
presença da bactéria, administração de peni- (BR). A BR visa o esclarecimento do diagnóstico, a
cilina e vigilância de hematúria e HTA, nos selecção de uma terapêutica adequada e a avali-
30 dias após o contacto infeccioso. ação do prognóstico. Constituem indicação para
3 – Terapêutica de suporte: BR na GNA:
a) Medidas gerais – peso diário, balanço hídri- * Hematúria macroscópica, insuficiência renal
co, dieta – restrição hídrica (em função da e HTA persistentes, em associação ou iso-
diurese e perdas insensíveis) e salina; res- ladamente, para além de 3 semanas;
trição de proteínas, potássio e fósforo (estas * C3 persistentemente baixo às 6-8 semanas;
últimas dependendo do controlo analítico e * Serologia compatível com LES (↓C4; positivi-
em situação de insuficiência renal). dade de ANCA, ANA, anti-DNA dh);
b) Terapêutica da sobrecarga hídrica – diuréti- * Serologia positiva para vírus da Hepatite B
co (furosemido), mas com atenção à possí- ou outros;
vel iatrogenia. * Micro-hematúria e/ou proteinúria significa-
c) Terapêutica da HTA (ver capítulo 162). tiva (nefrótica ou não) para além dos 6 meses;
d) Terapêutica das complicações: * Hematúria microscópica persistindo mais de
– insuficiência renal aguda 18 meses;
– edema agudo do pulmão * Idade <4 anos e >15 anos.
– encefalopatia hipertensiva. Em regra, todo o doente com síndroma nefríti-
ca tem indicação para ser hospitalizado.
Prognóstico Os doentes com GNAPE adquirem imunidade
definitiva em relação a novos episódios devido à
A maioria das situações de GNAPE evolui de forma intensa resposta imunológica induzida pelas estir-
benigna, autolimitada, com excelente prognóstico a pes de estreptococo hemolítico do grupo A.
758 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
158
BR é realizada após o diagnóstico da hematúria.
No Japão, cerca de dois terços dos casos são diag-
nosticados apenas com hematúria microscópica,
com ou sem proteinúria, devido ao rastreio sis-
temático em todas as crianças com mais de 6 anos.
Ana Paula Serrão e Gisela Neto Considerada uma doença de IC, parece ser causa-
da por anomalias do sistema imune IgA.
Os mecanismos patogénicos podem dividir-se
em duas etapas:
Importância do problema I – Da formação de IgA circulante até ao seu depósi-
to no mesângio:
O termo glomerulonefrite crónica (GNC) englo- O principal subtipo de IgA circulante, o qual se
ba as situações acompanhadas de lesão glo- deposita no mesângio, é a IgA1. Esta tem origem
merular que se perpetua, com o consequente iní- medular, é polimérica e com excesso de cadeias λ.
cio de destruição celular e de evolução para insu- Em 50% dos casos esta produção exagerada de IgA
ficiência renal crónica terminal (IRCT). Embora se acompanha-se de ICC. A associação de episódios
admita a comparticipação de mediadores imuno- de hematúria macroscópica com infecções das vias
lógicos, a etiologia da maioria destas doenças respiratórias superiores sugere que esta resposta
glomerulares é desconhecida. No caso da síndro- imune seja induzida por antigénios microbianos.
ma nefrótica congénita (SNC) e da síndroma Fora das fases agudas, verifica-se um aumento da
Alport foi encontrada uma base genética após a permeabilidade intestinal responsável por uma
identificação dos genes responsáveis. ruptura do fenómeno de “tolerância da mucosa”
que se associa a uma baixa da produção de IgA
pelas mucosas. Os mecanismos reguladores são
1. NEFROPATIA IgA (NIgA) ainda desconhecidos. Está presente um defeito de
galactosilação da região charneira das IgA1.
Aspectos epidemiológicos Trata-se de um défice funcional ou de uma
anomalia estrutural de uma enzima dos linfócitos
Trata-se da glomerulopatia primária mais fre- B produtores de IgA. Estas IgA1 hipogalactosi-
quente em todo o mundo, também conhecida na ladas são menos captadas pelos receptores hepáti-
forma primária como nefropatia de Berger. cos e a sua degradação está, assim, diminuída.
Descrita em 1968 por Berger e Hinglais, foi inicial- Associam-se às IgG e depositam-se no mesângio.
mente considerada uma doença renal benigna. No Nesta fase intervém ainda uma regulação negati-
entanto, sabe-se que é responsável pela evolução va do receptor para o fragmento Fc das IgA
para IRCT em 20 a 50% dos adultos e em 2,5 a 9% (CD89) que apresenta um defeito de sialisação,
das crianças. Surgindo em todas as idades, mas diminuindo a expressão do receptor à superfície
principalmente na segunda e terceira décadas, das células monocitárias.
predomina no sexo masculino (M:F de 2:1 a 6:1), II – Mecanismos efectores das lesões glomerulares:
raramente ocorrendo na raça negra. Poucos casos Embora não específicos, estes mecanismos en-
familiares foram descritos. A incidência geográfica volvem factores hemodinâmicos e vasculares como
é diversa (18-40% no Japão e 2-10% no Canadá, o sistema endotélio-monóxido de azoto, citocinas e
Estados Unidos e Grã-Bretanha). Este facto é os factores de crescimento como a interleucina 6 e o
provavelmente influenciado por factores raciais e factor de crescimento das plaquetas, entre outros.
ambientais, assim como pela diferença no rastreio Apesar dos progressos científicos continua
de hematúria em crianças aparentemente saudá- ainda por se compreender, na totalidade, a etiolo-
veis, e pela facilidade e/ou prontidão com que a gia e patogenia e, consequentemente, quais as
CAPÍTULO 158 Glomerulonefrite crónica 759
melhores atitudes adoptar, preventivas e terapêu- A maior dificuldade reside em saber qual a
ticas. melhor atitude terapêutica perante doentes assin-
tomáticos e/ou com alterações mínimas (hema-
Manifestações clínicas e laboratoriais túria microscópica isolada e relação pro-
teinúria/creatininúria em mg/mg < 0,6 no sexo
A forma de aparecimento mais comum é a masculino e < 0,8 no sexo feminino).
hematúria macroscópica (70-80%), geralmente
precipitada por uma infecção das vias respira- Prognóstico
tórias superiores de etiologia vírica. Outras for-
mas de apresentação são: hematúria microscópica É ainda imprevisível o prognóstico de todos os
com ou sem proteinúria, assintomáticas (20%); doentes cujo diagnóstico foi efectuado na idade
sindroma nefrítica; e sindroma nefrótica (< 10%). pediátrica, sendo necessários mais estudos. No
O intervalo entre o início da infecção e as mani- entanto, com base na bibliografia, a NIgA corres-
festações clínicas é 1 a 2 dias. A maioria tem episó- ponde a 1,5% de todos os casos de IRCT na
dios recorrentes de hematúria macroscópica com Europa. Aos 24 anos, em 17% dos doentes com
hematúria microscópica persistente intercrise. IRCT tinha sido iniciada diálise e, aos 35 anos esse
Raramente a NIgA evolui para glomerulonefrite valor aumentou para 40%. Apesar de se conside-
rapidamente progressiva (GNRP). rar que o prognóstico é melhor na criança que no
Em menos de 20% a IgA sérica pode estar ele- adulto, a sua evolução é variável. São indicadores
vada, sugerindo o diagnóstico. Uma vez que, iso- de pior prognóstico na criança, proteinúria de
ladamente, os achados clínicos não são diagnósti- magnitude semelhante à da síndroma nefrótica na
cos, é importante dosear C3, TASO, e factores anti- data do diagnóstico, HTA, diminuição da taxa de
nucleares para excluir outras causas, já que os filtração glomerular (TFG) e alterações histológi-
valores destes parâmetros são normais na NIgA. cas como: proliferação difusa extracapilar com
uma percentagem de glomérulos com crescentes
Diagnóstico diferencial superior a 50%, fibrose intersticial, lesões seg-
mentares e focais atingindo mais de 30% dos glo-
O diagnóstico é feito por biópsia renal que revela mérulos. A sobrevida renal é ~ 99% aos 7 anos, não
a existência de depósitos de IgA como imunoglo- existindo proteinúria nefrótica nem insuficiência
bulina, predominante no mesângio glomerular. renal inicial; passa, contudo, para 21% quando
A NIgA pode ser primária (doença de Berger) estes dois parâmetros coexistem. Verificou-se tam-
ou secundária, a púrpura de Henoch-Schönlein bém que existe uma boa correlação entre os acha-
(PHS), a cirrose hepática ou a síndroma de dos histológicos e o prognóstico.
Goodpasture. Embora o transplante renal não esteja contra-
indicado, é importante saber que em 50% dos rins
Tratamento transplantados pode existir recorrência dos depó-
sitos de IgA; trata-se duma situação geralmente
O tratamento primário diz respeito à vigilância e assintomática, raramente ocorrendo rejeição do
tratamento da HTA. Está indicada a utilização de enxerto.
IECA (inibidores da enzima de conversão da
angiotensina) e de bloqueantes dos receptores da
angiotensina. Estes levam a redução na excreção de 2. SÍNDROMA DE ALPORT
proteína com preservação da função renal; mas deve-
rão provavelmente ser reservados para as crianças Definição e importância do problema
que apresentam proteinúria significativa e evidên-
cia de lesão glomerular crónica. Outras terapêuticas A síndroma de Alport é uma doença glomerular
incluem prednisolona, dipiridamol, azatioprina, hereditária, de grande heterogeneidade genética,
heparina-varfarina, óleo de peixe (com ácidos gor- causada por mutações nos genes que codificam o
dos ómega-3, com acção anti-inflamatória). colagénio de tipo IV, componente importante da
760 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
membrana basal. Em cerca de 85% dos casos ocorre A alteração ocular mais frequente (e em 30-
uma forma clínica ligada ao cromossoma X (mu- 40% dos casos ligados ao X), é a lenticone anterior,
tação no gene COL4A5). geralmente associada a deterioração da visão e a
A forma autossómica dominante ligada aos genes miopia axial. Trata-se duma extrusão da porção
COL4A3 -COL4A4 corresponde a cerca de 5% dos central do cristalino para a câmara anterior.
casos. Ausente na data do nascimento, surge na segunda
ou terceira década de vida; é também mais
Manifestações clínicas comum no homem, tendo uma incidência de 15 a
30%. Tal alteração ocular, apesar de não ser pato-
Habitualmente apresenta-se de início com hema- gnomónica, é extremamente sugestiva de síndro-
túria microscópica persistente, como primeiro ma de Alport. Alterações maculares e perimacu-
episódio de hematúria macroscópica; pode tam- lares podem ser observadas nalguns casos e são
bém ser diagnosticada no decurso de rastreio geralmente bilaterais. Nalgumas crianças, o
familiar de síndroma de Alport. Se o episódio de desaparecimento do reflexo da fóvea pode ser um
hematúria macroscópica coincidir com uma achado precoce. (Capítulo 256)
infecção das vias respiratórias superiores, há que
fazer o diagnóstico diferencial com NIgA e com Diagnóstico
GNAPE. De salientar que cerca de 30-50% das cri-
anças com hematúria persistente têm alteração heredi- O diagnóstico é feito com base na história familiar,
tária da membrana basal glomerular. presença de surdez neurossensorial, lenticone, estu-
A doença é mais grave nos indivíduos do sexo do molecular e nas características alterações ultra-
masculino. Nestes, a hematúria pode ser detecta- estruturais da membrana basal glomerular (MBG)
da no 1º ano de vida ou mesmo no período neona- observadas por microscopia electrónica. No entan-
tal. Embora a hematúria microscópica possa estar to, o diagnóstico pode ser difícil, principalmente em
presente no sexo feminino, somente tal ocorre em doentes do sexo feminino; neste caso a biópsia
10-15% dos casos. Com a progressão da doença, a cutânea pode ser um precioso auxiliar no rastreio.
proteinúria surge no rapaz no final da primeira
infância ou início da adolescência, podendo ser de Tratamento
tipo nefrótico. A HTA e/ou insuficiência renal
poderão eventualmente surgir nos homens afecta- Não existe tratamento específico. A doença geral-
dos, mas a taxa de progressão para IRCT é variá- mente progride para insuficiência renal terminal
vel. Nalgumas famílias, a IRC pode instalar-se necessitando de diálise e de transplante. Nalguns
apenas na terceira ou quarta décadas de vida, doentes (até 10%), podem surgir autoanticorpos
enquanto em outras ocorre na primeira década. contra a MBG após receberem transplante renal de
Nas mulheres afectadas geralmente não se desen- dador são. Este facto não é, no entanto, considera-
volve IRC, embora haja excepções. do contra-indicação para o transplante.
Fazem parte do quadro clínico de síndroma de
Alport a surdez e defeitos oculares.
O défice de audição é bilateral e do tipo neu-
rossensorial. Geralmente não detectável na data
3. GLOMERULONEFRITE MESANGIAL
do nascimento, desenvolve-se nos primeiros 10
PROLIFERATIVA (GNMP)
anos de vida. O diagnóstico precoce pode ser feito
apenas por audiometria embora, com a progres- Importância do problema
são da doença, as frequências afectadas envolvam
a zona da linguagem relacionada com a conver- A GNMP é a causa mais comum de GNC em crian-
sação e se torne muito acentuada. Tal como a ças mais velhas e adultos jovens. De etiologia
doença renal, também o défice auditivo é mais desconhecida, foi descrita como entidade clínico-
grave no sexo masculino e não melhora após o patológica distinta em 1965. É desconhecida qual a
transplante renal. exacta prevalência. Afecta primariamente crianças
CAPÍTULO 158 Glomerulonefrite crónica 761
mais velhas e em 6-13% apresenta-se como síndro- de C1q e C4 e a presença de ICC podem ser obser-
ma nefrótica idiopática (SNI). No entanto, pode vados na GNMP tipo I, mas não nos tipos II e III.
manter-se assintomática por longos períodos de Uma vez que, quer a GNMP, quer a GNAPE se
tempo, tornando-se evidente após detecção de manifesta com hematúria macroscópica, C3 baixo
hematúria microscópica ou proteinúria em análise e, concomitantemente, níveis aumentados de
sumária de urina. A probabilidade de evolução para TASO, somente a evolução clínica permitirá fazer
IRC é elevada, podendo verificar-se recorrência o diagnóstico diferencial. Enquanto a GNAPE
após o transplante renal. Com base nos achados de melhora significativamente em 2 meses, na
microscopia electrónica, são descritos 3 tipos de GNMP as manifestações clínicas persistem, obri-
GNMP: O tipo I (o mais comum), II e III. Tal des- gando à realização de BR.
trinça não é possível pela microscopia óptica.
Tratamento
Manifestações clinicas
Embora existam casos descritos de remissão com-
A maioria dos doentes tem idade superior a 6 pleta ou temporária desta doença crónica, tal não
anos. O momento exacto do início das alterações é a regra. As múltiplas variáveis que influenciam,
é, na maior parte dos casos, difícil de precisar. Não quer o modo de apresentação, quer a evolução,
há predomínio de sexo e a doença parece ser rara dificultam a existência de um tratamento consi-
na raça negra. derado óptimo. Vários fármacos têm sido experi-
No início a GNMP pode apresentar-se com um mentados, quer isoladamente quer em associação
largo espectro de manifestações, desde hematúria (corticosteróides orais, pulsos de metilpredniso-
assintomática à glomerulonefrite rapidamente pro- lona endovenosa, ciclofosfamida, dipiridamol e
gressiva (GNRP). Aproximadamente em 25-30% outros antiagregantes plaquetários).
dos casos há micro-hematúria e proteinúria assin-
tomáticas; 30% têm um início com síndroma nefríti- Prognóstico
ca aguda e em cerca de 40-45% surge síndroma
nefrótica. No entanto, não é raro apresentar-se como A GNMP apresenta recorrência frequentemente
síndroma nefrítica/nefrótica. O facto de 25 a 45% após transplante renal. A taxa de recorrência para
dos casos ter história de infecção das vias respi- o tipo I é ~ 30% e para o tipo II ~ 90%. Não
ratórias superiores precedendo o quadro, pode con- obstante, aquele não está contra-indicado, deven-
duzir a diagnósticos como nefropatia IgA (NIgA) ou do ser ponderado caso a caso.
glomerulonefrite pós-estreptocócica (GNAPE). A
HTA é um achado frequente; pode ser grave,
surgindo especialmente nos doentes cuja manifes-
tação inicial corresponde a síndroma nefrítica.
4. NEFRITE ASSOCIADA A LÚPUS
ERITEMATOSO SISTÉMICO
Exames laboratoriais
Definição e importância do problema
A análise sumária da urina mostra os achados típi-
cos de doença glomerular (hematúria, proteinúria, O lupus eritematoso sistémico (LES) é uma doen-
cilindros). Os restantes achados laboratoriais de- ça autoimune, multissistémica, de etiologia des-
pendem do modo de apresentação: evidências de conhecida, com formação de imunocomplexos
síndroma nefrótica, função renal normal ou alte- provocando lesão tecidual do rim. A maior parte
rações em grau variável desta. Nalguns casos a dos depósitos contém IgG e C3; por vezes, tam-
alteração da função renal pode ser tão grave que bém IgM ou IgA. Atinge sobretudo as mulheres
simula uma GNRP. Em cerca de 60% dos casos os jovens e somente 10 a 17% dos casos são diagnos-
níveis de C3 estão diminuídos no momento do ticados antes dos 16 anos.
diagnóstico. Porém, o facto de este valor ser nor- Os critérios de diagnóstico do LES são descritos
mal não exclui a hipótese de GNMP. Níveis baixos no capítulo 222.
762 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
GLOSSÁRIO
Cariorrexia > Durante a necrose de uma célula, fragmentação do núcleo
celular, cuja massa de cromatina se dissemina no citoplasma.
764 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Etiopatogénese
B12) estão associados a incidência mais elevada de edema periorbitário à anasarca. Nalguns doentes
SN*. (30%) há referência a infecções víricas ou bacteria-
A alteração das cargas negativas na membrana nas recentes antecedendo o aparecimento do
basal glomerular resulta na fusão dos podócitos, edema; o mesmo se verifica em 70% das recaídas.
na perda dos diafragmas dos poros, e na passa- Concomitantemente com a instalação do edema
gem de albumina através da membrana basal há redução da diurese. Macroscopicamente a
glomerular. Esta perda de albumina pela urina urina tem aspecto de espuma e uma cor concen-
leva à hipoalbuminémia, e esta à diminuição da trada (alaranjada). A existência de hematúria
pressão oncótica intravascular com passagem macroscópica não é habitual na SNI, alertando
transcapilar de água e solutos para os tecidos, com para a eventualidade de trombose da veia renal ou
formação de edema. A perda de proteínas incluin- de glomerulopatia crónica. A hematúria micros-
do Ig e inibidores da coagulação/fibrinolíticos cópica ocorre em 15% dos casos de lesões mínimas
(AT III, proteínas C e S) predispõe respectiva- (LM). A pressão arterial é, em regra, normal;
mente a infecção e a trombose (ver adiante). Para somente cerca de 15% dos doentes registam uma
o risco de trombose concorrem ainda a síntese hipertensão moderada. A existência de hiperten-
hepática aumentada de factores pró-coagulantes são grave não é compatível com SNI de LM. Pode
como o fibrinogénio. haver compromisso da função renal de carácter
Em consequência das alterações hemodinâmi- transitório, relacionado com a hipovolémia.
cas que se registam, há contracção do volume Outras manifestações relacionadas com o
intravascular e activação do sistema renina- edema incluem: hepatomegália, diarreia (entero-
angiotensina-aldosterona com patia exsudativa), dificuldade respiratória, risco
retenção de sódio e água, e perpetuação do infeccioso e hipercoagulabilidade.
edema. Igualmente, a contracção do volume A dor abdominal na criança com SNI é um sin-
intravascular estimula a HAD com consequente toma de importância vital; as causas podem rela-
incremento da reabsorção de água nos tubos co- cionar-se com peritonite primária por Strepto-
lectores. Por sua vez, a hipoalbuminémia estimula coccus pneumoniae, ou E. coli; com isquémia do ter-
a síntese hepática de colesterol – LDL e de ritório da mesentérica por hipovolémia grave; ou
triglicéridos, explicando a hiperlipémia. com trombose vascular.
A SN congénita/hereditária resulta da Existe igualmente risco de trombose, abordado
mutação em 4 genes: NPHS1, NPHS2 (tipo fin- anteriormente.
landês), WT1 e LAMB2). No episódio inaugural, o doente deve ser hos-
De referir, no entanto, que os mecanismos des- pitalizado para estabelecer o diagnóstico sindró-
critos não se aplicam a todos os casos de SN, pois mico e etiológico, avaliar a resposta à terapêutica,
há situações que cursam com hipervolémia e dimi- e instruir a família acerca da cronicidade da
nuição do nível sérico de renina e de aldosterona. doença e das medidas de vigilância e controlo.
Nalguns centros tem-se procedido ao rastreio
genético de SN corticorresistente na adolescência. Exames complementares
Na urina, para além da análise sumária, há que 3) Proteínúria tubular, caracterizada por pre-
proceder ao doseamento das proteínas e da crea- domínio excretório de proteínas de baixo peso
tinina no período de 12 horas (relação na urina de molecular, está associada tipicamente a situações
proteínas/creatinina ou UPr/Cr). Uma relação como necrose tubular aguda, pielonefrite, nefro-
UPr/Cr>2,0 numa primeira amostra matinal de patias estruturais, doença renal poliquística, e to-
urina, só por si, excluindo proteinúria ortostática, xicidade por antibióticos e agentes quimioter-
é sugestiva de estar relacionada com SN-ver atrás. apêuticos (Capítulo 163 e Anexos). A combinação
Valores entre 0,2 e 2,0 traduzem proteinúria ligeira de proteinúria tubular com glicosúria e perda
a moderada, mas não de tipo nefrótico. tubular de electrólitos integra a síndroma de
De salientar que o Ca total está baixo, sendo Fanconi;
normal a fracção ionizada. No que respeita ao pro- 4) Proteinúria glomerular, muitas vezes tradu-
teinograma: alfa-2 elevada, diminuição de gama zindo doença glomerular (hematúria, eritroci-
(IgA e IgG). Quanto aos factores de coagulação: túria, HTA, insuficiência renal), caracteriza-se por
AT III e plasminogénio diminuídos; e, factores I, proteinúria de peso molecular variável e grau va-
II, V,VII VIII, X, XIII aumentados. riável de proteinúria; constituem exemplos a
A creatinina sérica está geralmente normal; SHU, a GNAPE e a SN de LM (ver atrás).
pode estar aumentada em situações de hipoper-
fusão renal resultante de contracção do volume Por outro lado, a verificação de critérios de
intravascular. Os valores séricos de colesterol e diagnóstico de SN obrigará a admitir a hipótese
triglicéridos estão elevados e os de C3 e C4 nor- de o referido quadro ser secundário, reportando o
mais. Na maior parte dos casos não é requerida a leitor à alínea Etiopatogénese, onde são discrimi-
biópsia renal (BR); está indicada se houver nadas as respectivas causas.
hipertensão arterial grave, hematúria macroscópi- O diagnóstico diferencial da situação acompan-
ca, insuficiência renal mantida, C3 baixo e, nos hada de edema marcado inclui insuficiência hep-
casos corticorresistentes, depois de tentada a ciclo- ática, ICC, GNA ou crónica, e má nutrição proteica.
fosfamida (ver adiante).
Está também indicada a radiografia do tórax e Tratamento e medidas preventivas
prova de Mantoux para esclarecimento etiológico,
e antes de admitir o diagnóstico de SNI. No episódio inaugural, o doente deve ser hospi-
Nos doentes tratados com corticóides torna-se talizado para estabelecer o diagnóstico sindrómi-
fundamental vigiar a densidade e idade ósseas. co e etiológico, avaliar a resposta à terapêutica, e
(Parte IV). instruir a família acerca da cronicidade da doença
e das medidas gerais de vigilância e controlo, tais
Diagnóstico diferencial como limitação da actividade física, dieta hipos-
salina e suspensão de vacinações..
A verificação de proteinúria , devendo ser devida-
mente enquadrada nos dados da anamnese e 1. Corticóides
exame objectivo, sob o ponto de vista etiopatogé- Os corticóides são os fármacos de eleição (sem
nico obrigará fundamentalmente ao diagnóstico biópsia renal prévia) para induzir a remissão nos
diferencial com quatro situações. casos de SN não complicada entre os 1-8 anos pela
1) Proteinúria transitória que se pode observar probabilidade de se tratar de forma clínica asso-
após exercício físico, febre, desidratação, convul- ciada a padrão de LM. Nas crianças em que é
sões e terapêutica com agonistas adrenérgicos. menos provável a SN com LM (< 1 ano e > 8 anos,
Não indicativa de doença renal, é ligeira (UPr/Cr hematúria, HTA, hipocomplementémia e insufi-
< 1) e de natureza glomerular; ciência renal) deverá ser considerada a biópsia
2) Proteinúria postural (ortostática), situação renal antes do início do tratamento (ver atrás).
benigna definida por excreção normal de proteí-
nas quando em posição de decúbito, e elevada • SN supostamente associada a LM
quando há mobilização corporal e posição bípede; Após confirmação de prova tuberculínica nega-
CAPÍTULO 159 Síndroma nefrótica idiopática 767
proceder à monitorização das frequências respi- graves de hiperlipidémia, para além da dieta,
ratória e cardíaca, e da pressão arterial. estão indicadas as estatinas.
4. Diuréticos Prognóstico
Os diuréticos só estão indicados em caso de
edema grave e depois da correcção da hipo- O prognóstico da SNI é, dum modo geral, bom. As
volémia; devem ser usados com precaução pelos recaídas nos casos que respondem aos corticóides
riscos de agravamento da depleção do volume (SN corticossensíveis) têm tendência a diminuir
intravascular, de tromboembolismo, de insuficiên- com o decorrer do tempo. O prognóstico é melhor
cia renal aguda e de alterações graves do balanço nos casos com resposta rápida aos corticóides em
hidro-electrolítico. que não são verificadas recaídas nos 6 meses após
o diagnóstico.
5. Regime alimentar Nos casos de terapêutica prolongada com ciclo-
Quanto ao regime alimentar, durante a corticote- fosfamida torna-se indispensável esclarecer a
rapia, deve ter-se em atenção particularmente o sal, família sobre a possibilidade de infertilidade futura.
os hidratos de carbono e os produtos lácteos. Na O prognóstico é reservado em cerca de 10%
fase aguda, a restrição de sal, já referida, está indi- dos casos (padrão histológico de glomeruloscle-
cada na prevenção e tratamento do edema grave. rose focal segmentar).
160
semelhante à produzida por Shigella/toxina
Shiga - like.
A SHU atípica ou não associada a antecedentes
de diarreia compreende situações como: 1) indução
por drogas (tacrolimus, cisplatina, valaciclovir,
quinino, etc.; 2) doenças autoimunes (síndroma
SÍNDROMA HEMOLÍTICA antifosfolípido, LED, défice de anti ADAMTS13,
anticorpos anti-factor H, etc); 3) desregulação here-
URÉMICA ditária do complemento (défice de factores H, B, I,
etc.); 4) défice de ADAMTS13 geralmente associado
Ana Paula Serrão a púrpura trombocitopénica trombótica; 5) ano-
malias do metabolismo da vitamina B12; 6) indução
por infecções como por S. pneumoniae, VIH, S. beta
hemolítico do grupo A,etc.; 7) Miscelânea: carcino-
Definição e importância do problema ma disseminado, HTA maligna, etc..
No que respeita à infecção por S. pneumoniae
A tríade anemia hemolítica microangiopática, (geralmente pneumonia e ou meningite) admite-
insuficiência renal e trombocitopénia, caracteri- se que tal agente, produtor de neuraminidase,
za a situação clínica designada por síndroma através do antigénio chamado de Thomsen-
hemolítica urémica (SHU). Descrita pela primeira Friedenreich, origine lesão endotelial e hemólise.
vez por Gasser e colaboradores em 1955, constitui
a principal causa de insuficiência renal aguda Aspectos epidemiológicos
intrínseca na primeira infância.
Trata-se duma situação que partilha característi- A incidência anual de infecção pela VTEC varia de
cas com a púrpura trombocitopénica trombótica, a acordo com as regiões geográficas e de ano para
qual ocorre sobretudo em adultos jovens do sexo ano. Estima-se que seja de 1 a 30 casos por 100.000
feminino e é acompanhada de compromisso do SNC. habitantes nos países industrializados, sendo mais
elevada na primeira infância e nos meses de Verão.
Etiopatogénese Nos surtos de infecção por VTEC pensa-se que
5 a 15% dos doentes evoluem para SHU (13% nas
O evento primário na patogénese da SHU é uma crianças com menos de 5 anos, 6 % entre os 5 e 10
lesão celular endotelial, neste caso ao nível dos anos e 8% com mais de 10 anos) .
capilares e arteríolas do rim, conduzindo a coagu- Entre os sobreviventes pode desenvolver-se pro-
lação localizada; os referidos vasos com parede teinúria e diminuição progressiva da função renal
alterada permitem a passagem de eritrócitos para em percentagem variável que pode atingir 5-20%.
o tecido circundante, lesando-os. A SHU associada a S. pneumoniae corre-
A trombocitopénia é provocada por lesão das sponde a cerca de 5-15% de todos os casos de
plaquetas ou agregação das mesmas ao nível da SHU.
parede vascular alterada com consequente oclusão
e diminuição da taxa de filtração glomerular. Manifestações clínicas
A lesão endotelial inicial está associada a e exames complementares
diminuição de C3 por desregulação ou activação,
secundariamente àquela. A SHU atinge, sobretudo, crianças previamente
A SHU típica é precedida por gastrenterite saudáveis. Caracteriza-se, como foi referido, pelo
aguda, secundária a infecção por E. coli produtora início súbito de anemia hemolítica microangio-
de verocitotoxina, geralmente correspondendo ao pática, trombocitopénia e insuficiência renal, geral-
serótipo 0157:H7 (VTEC). De referir que outros mente após um período prodrómico de gas-
serótipos podem estar implicados como os rela- trenterite aguda com diarreia, muitas vezes san-
cionados com estirpes produtoras de toxina guinolenta. O quadro gastrintestinal pode ser grave,
770 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
com colite hemorrágica, megacólon tóxico, prolapso trinça entre SHU e trombose da veia renal (TVR).
rectal e necrose intestinal. Com efeito, ambas as situações são precedidas por
Nas formas associadas a S. pneumoniae, a síndro- doença gastrintestinal com desidratação, palidez e
ma é precedida, como foi referido, por pneumo- evidência da anemia hemolítica microangiopática,
nia, com ou sem derrame e ou meningite, pode trombocitopénia e IRA.
existir também: compromisso hepático com Os dados que apontam no sentido de TVR são:
hepatomegália e aumento dos valores das nefromegália e ausência de fluxo venoso renal
transaminases; e pancreático (em menos 10 % dos detectado por ecografia-Doppler renal.
casos), manifestado por intolerância à glicose e
pelo aparecimento de diabetes mellitus. Esta últi- Prevenção
ma pode ser transitória ou permanente.
A hematúria microscópica e a proteinúria são No estado actual dos conhecimentos a melhor
uma constante. maneira de prevenir a infecção por E. coli produto-
O valor da Hb pode atingir 5-9 g/dL; os valores ra de toxina semelhante à da Shigella (Shiga-toxina
de Hb plasmática estão aumentados e os de hapta- -like é a cozedura da carne, fervura ou pasteuriza-
globina, diminuídos. O esfregaço do sangue pe- ção de leite e lavagem correcta de frutos e vegetais,
riférico revela alterações morfológicas dos eritróci- para além da lavagem das mãos. No que respeita à
tos (fragmentação, forma de “capacete”, etc.). A con- prevenção da infecção por S. pneumoniae, acon-
tagem de reticulócitos revela valores ligeiramente selha-se a consulta dos capítulos 274 e 278.
aumentados e a prova de Coombs é negativa; veri-
fica-se em geral leucocitose (> 30.000/mm3) e trom- Tratamento
bocitopénia (20.000 – 100.000/mm3) em mais de
90% dos casos. Com a evolução da doença, os va- A instituição precoce de medidas tais como as
lores normalizam. O prolongamento do tempo de transfusões de sangue e ou plasma, a correcção
coagulação está em relação, sobretudo, com défice das alterações hidroelectrolíticas, o suprimento
de vitamina K, e não com CID. nutricional, a terapêutica anti-hipertensiva, o con-
A oligoanúria ocorre em cerca de 50 % dos trolo das complicações extra-renais (edema cere-
doentes, e 40 a 75% destes vão necessitar de tera- bral, enfarte do miocárdio, diabetes) e a diálise,
pêutica dialítica (diálise peritoneal, hemodiálise), reduziram a mortalidade de 40 % nos anos 50 a
com maior probabilidade nas formas atípicas. 60, para cerca de 8 % na actualidade.
Secundariamente à oligoanúria instala-se quadro de A transfusão de plaquetas deve ser feita apenas
sobrecarga hídrica que se manifesta por edema, nas situações associadas a diátese hemorrágica ou
hipertensão arterial e insuficiência cardíaca. A hi- perante a necessidade de intervenção cirúrgica em
pertensão arterial pode também contribuir para dis- crianças com trombocitopénia grave (por exemplo,
função do sistema nervoso central, a qual pode sur- colocação de cateter central ou de diálise peritoneal).
gir em cerca de 30% dos casos. Tal disfunção com- Actualmente diversos estudos comprovaram a
porta um prognóstico reservado e manifesta-se por eficácia de anticorpos monoclonais nas formas
irritabilidade, alterações do comportamento, ataxia, atípicas: eculizumab ou anticorpo anti-C5 e ritux-
tonturas, tremores, apatia e convulsões. A proteinúria imab ou anticorpo anti-CD20.
e diminuição da taxa de filtração glomerular (< 80 Nas situações de insuficiência renal terminal,
mL/min/1.73m2) surgem em cerca de 25% dos casos. a transplantação renal é a opção terapêutica. Po-
De salientar que a expressão clínica desta sín- derá verificar-se recorrência da SHU nos casos de
droma pode ser muito heterogénea e, por vezes, rim tansplantado (menos de 10%). Outro pro-
mesmo subtil, o que implica elevado índice de blema que poderá surgir, e com maior incidência,
suspeição. diz respeito à rejeição aguda após transplantação.
161
dois rins (de modo agudo) traduzindo-se por:
massa renal palpável e/ou hematúria macro ou
microscópica, em mais de 50% dos casos; e outros
sinais e sintomas associados ao aumento do volu-
me renal e à hematúria, tais como distensão abdo-
minal, choque, febre, taquipneia, oligo-anúria. A
TROMBOSE DA VEIA RENAL hipertensão arterial é pouco frequente.
O diagnóstico diferencial faz-se, essencialmente,
João M. Videira Amaral com situações acompanhadas de aumento de vo-
lume do rim e de hematúria (por exemplo, síndroma
hemolítica urémica, hematoma peri-renal, doença
renal quística, hidronefrose, tumor renal, etc.).
Etiopatogénese e importância
do problema Exames complementares
Esta situação clínica, unilateral ou bilateral (esta A história clínica e a situação de base determi-
última, menos frequente) surge sobretudo no narão a realização de determinados exames com-
lactente, podendo ter a sua génese in utero. plementares na perspectiva do diagnóstico sin-
Observa-se quando existem determinados fac- drómico e do diagnóstico etiológico.
tores predisponentes ou de risco tais como: cho- Uma vez que em mais de 50% dos casos de
que, gastrenterite com desidratação hiperosmolar, trombose da veia renal (TVR) surgem alterações
septicémia, hipóxia perinatal, diabetes materna, hematológicas, e que, por outro lado, se deve
anomalias congénitas renais, síndroma nefrótica, admitir sempre a hipótese de trombofilia, sobretu-
pielonefrite, cardiopatia congénita cianótica,etc.. do na ausência de factores de risco clássicos atrás
Pode ser classificada em: primária (se a lesão vas- mencionados, faz-se referência especial a determi-
cular renal tem como ponto de partida o próprio rim); nados achados hematológicos habitualmente pre-
e em secundária (se o processo trombótico tem origem sentes: anemia hemolítica micro-angiopática com
na veia cava inferior com extensão para o rim). fragmentação de eritrócitos; baixos níveis de fi-
Os denominadores comuns patogénicos deste brinogénio, de factor V e de plasminogénio;
problema clínico são, essencialmente, hipovolémia, aumento dos produtos de degradação da fibrina;
hemoconcentração, hiperviscosidade sanguínea e trombocitopénia; alteração de outros factores da
hiperosmolaridade. coagulação atrás mencionados.
Nos casos em que não são identificados os fac- A análise sumária de urina torna-se obri-
tores de risco mencionados, haverá que admitir a gatória por razões óbvias.
possibilidade de trombofilia (estado de hipercoa- Determinadas análises bioquímicas (creatini-
gulabilidade) relacionável, com predisposição na, azotémia) contribuem para a avaliação da dis-
hereditária para trombose por: défice de proteínas função renal, não esquecendo, em função do con-
anticoagulantes (proteínas C ou S, antitrombina III, texto clínico, a determinação do perfil lipídico
ou plasminogénio); anomalia de proteína procoa- (incluindo lipoproteína (a) – cujo valor aumenta-
gulante tornando-a resistente à proteólise pelo do está associado a maior risco de trombose e a
respectivo inibidor (factor V de Leiden); mutação hiper – homocisteinémia).
originando níveis elevados de proteína procoagu- Relativamente a exames de imagem ressaltam-
lante; anticorpos antifosfolípidos; hiper – homocis- se: ecografia renal com Doppler e renograma
teinémia originando lesão endotelial. isotópico, evidenciando ausência de fluxo na veia
renal e nefromegália. (Capítulo 159)
Manifestações clínicas
e diagnóstico diferencial Tratamento
Os sinais clínicos clássicos são: aumento de um ou O tratamento da TVR (a realizar em centros espe-
772 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
162
cializados), tal como o de outras situações trom-
bóticas, depende da situação de base.
Os fármacos habitualmente utilizados são:
– heparina por via endovenosa (dose inicial:50
Unidades/kg seguidas por 100 Unidades/kg de
4-4 horas com o objectivo de obter tempo de coa-
gulação de cerca de 20 minutos); HIPERTENSÃO ARTERIAL
– agentes fibrinolíticos (rTPA ou activador
recombinante do plasminogénio tecidual); E DOENÇA RENAL
– terapêutica de substituição (que pode consti-
tuir terapêutica de emergência no recém-nascido Margarida Abranches
em situações de défices hereditários comprovados
(com plasma, concentrados de antitrombina – III,
concentrados de proteína C, etc.).
Em casos especiais de comprovada predis- Importância do problema
posição hereditária para trombose é empregue a
varfarina (anticoagulação de longa duração). No adulto, a hipertensão arterial (HTA), constitui
um dos principais factores de risco cardiovascular,
BIBLIOGRAFIA (capítulos 160-161) cerebrovascular e renal. A HTA detectada em
Bonnardeaux A, Pichette V. Complement dysregulation in idade pediátrica também não é benigna, sabendo-
haemolytic uraemic syndrome. Lancet 2003; 362: 1514-1516 se que muitos factores de risco cardiovascular do
Dakes RS, Siegler RL, McReynolds MA, et al. Predictors of fa- adulto têm a sua génese na idade pediátrica (ver
tality in post-diarrheal hemolytic uremic syndrome capítulo 46).
Pediatrics 2006; 117: 1656-1662. Na diminuição do risco cardiovascular, o con-
Joseph C, Gattineni J. Complement disorders and hemolytic trolo terapêutico da pressão arterial (PA) tem
uremic syndrome. Curr Opin Pediatr 2013; 25;209-215 maior impacte do que qualquer outra medida.
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson Neste contexto, é imperativa a acção dos médicos
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, de família, pediatras, cardiologistas e dos nefrolo-
2011 gistas pediátricos, em conjunto.
Nester CM, Brophy PD. Eculizumab in the treatment of atypi-
cal haemolytic uraemic syndrome and other complement- Cronobiologia e monitorização
mediated renal diseases. Curr Opin Pediatr 2013; 25: 225- ambulatória da pressão arterial
231
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA O ritmo circadiano é um ciclo intrínseco de 24
(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill horas que diz respeito a numerosas funções
Medical , 2011 biológicas. O tono vascular, as resistências vascu-
Spinale JM, Ruebner RL, Kaplan BS, et al. Update on lares periféricas, a frequência cardíaca e a PA
Streptococcus pneumoniae associated hemolytic uremic aumentam nas primeiras horas da manhã nos
syndrome. Curr Opin Pediatr 2013; 25: 203-208 indivíduos normotensos e nos hipertensos. Este
aumento corresponde a um aumento da activi-
dade da renina plasmática, com diminuição da
secreção das catecolaminas. A PA atinge um
“pico” cerca das 9 horas da manhã e cai para um
valor mínimo cerca das 3 horas da manhã. Na
altura do despertar ocorre um aumento significa-
tivo da “resposta PA” devido à activação do sis-
tema neuroendócrino e dos seus receptores.
Embora os factores ambientais, principalmente
os ciclos dia-noite, tenham uma influência na va-
CAPÍTULO 162 Hipertensão arterial e doença renal 773
riação circadiana da PA, alguns aspectos parecem izado numa população pediátrica utilizando
ser determinados geneticamente. monitorização de PA ambulatória (mmHg).
QUADRO 2 – Principais etiologias de HTA HTA primária e o risco aumenta três vezes se
relacionadas com a idade existir obesidade.
• Sinais clínicos. Os sinais clínicos associados
Idade Etiologia à HTA incluem sucintamente: vómitos, pro-
Recém-nascido Trombose da artéria renal teinúria, cefaleias, retinopatia e convulsões.
(cateterismo umbilical) Nos lactentes são típicos o hipocrescimento e
Trombose da veia renal a insuficiência cardíaca. O feocromocitoma
Malformação congénita renal pode originar palpitações paroxísticas e
Coarctação da aorta sudação exagerada.
Estenose da artéria renal • Gravidade da HTA. Existem guias de orien-
Displasia broncopulmonar tação por idade, sexo e altura, que auxiliam a
1 mês – 6 anos Doença parenquimatosa renal estabelecer a gravidade da HTA (Quadro 1).
Estenose da artéria renal Quando a HTA é ligeira ou moderada pode
Coarctação da aorta prosseguir-se a investigação diagnóstica
Fármacos (corticóides, albuterol, antes de iniciar terapêutica. Se a HTA é gra-
pseudoefredina) ve, pode ser emergente iniciar a terapêutica
Causas endócrinas anti-hipertensiva e reduzir os níveis de PA
6-10 anos Doença parenquimatosa renal antes de começar a investigação diagnóstica.
Estenose da artéria renal Convém não esquecer que alguns procedi-
HTA essencial mentos diagnósticos podem ser alterados
Causas endócrinas pelos fármacos, nomeadamente os níveis
Adolescência HTA essencial de renina plasmática, sendo conveniente
HTA da “bata branca” (estresse realizar uma colheita de sangue antes do iní-
do impacte com o médico)
cio da terapêutica. Na HTA grave é essencial
Doença parenquimatosa renal
pesquisar lesões de órgãos alvo que podem
Toxicodependência (cocaína, anfe-
já estar presentes na altura da apresentação
taminas, metanfetaminas, fencicli-
(por exemplo retinopatia).
na, metilfenidato, cafeínas)
• Hipertensão arterial ocasional, transitória
Causas endócrinas
ou mantida. Na HTA ocasional, devem ser
Adaptado de Brewer ED, 2004 excluídas causas reactivas de HTA: ansiedade,
dor, choro, agitação. São causas de HTA tran-
sitória, situações em que existe uma elevação
temporária da PA que raramente evolui para
Por sua vez, a angiotensina II é um potente HTA permanente. A situação clínica mais fre-
vasoconstritor que leva à retenção de água e sal. quente é a glomerulonefrite aguda, mas tam-
No caso das endocrinopatias (da tiroideia, bém pode ocorrer nos casos de síndroma de
paratiroideia e suprarrenal) a HTA relaciona-se Guillain-Barré, hipercalcémia, administração
essencialmente com secreção aumentada de mine- de corticóides, de pseudoefedrina, de fenile-
ralocorticóides. frina, e após a administração de sangue, plas-
ma, albumina ou soluções salinas. Na ado-
Avaliação da criança com HTA lescência é importante inquirir sobre a utiliza-
ção de drogas ilícitas, bebidas com cafeína ou
Na criança, a avaliação da HTA deve incidir nos guaraná. A HTA mantida ou permanente está
seguintes parâmetros: geralmente associada a uma causa renal ou
• Idade. As principais etiologias da HTA va- renovascular e, na apresentação, pode haver
riam consoante o grupo etário (Quadro 2). sinais de lesão de órgãos alvo: cardiomegália,
Existe uma maior probabilidade de a HTA retinopatia e encefalopatia.
ser secundária e permanente nas crianças • Doença renal ou renovascular. As doenças
mais jovens. Nos adolescentes predomina a parenquimatosas renais e renovasculares
CAPÍTULO 162 Hipertensão arterial e doença renal 775
Adaptado de Vogt BA, Davis ID. Treatment of hypertension. In: Avner ED, Harmon WE, Niaudet P, eds. Pediatric Nephrology. Philadelphia: Williams & Wilkins, 2004: 1199-1220
aprovada na idade pediátrica. Deve ser utilizado receptores da AII é recente. Actuam por bloqueio
com cuidado porque está associado a hipotensão da ligação da AII ao subtipo AT-1 dos receptores
prolongada e insuficiência renal aguda oligúrica, da AII nos vasos sanguíneos e noutros tecidos.
principalmente no recém-nascido. Em relação aos Este bloqueio reduz a PA por inibição dos efeitos
novos IECA existentes no mercado (benazepril, vasoconstritores da AII e da libertação da aldos-
lisinopril, ramipril, entre outros) e às formulações terona. Losartan foi o primeiro antagonista dos
combinadas com diuréticos e bloqueantes dos receptores da AII aprovado para utilização no
canais de cálcio, estão em curso estudos farma- adulto e começa agora a ser utilizado na popu-
cocinéticos e farmacodinâmicos e perspectivam-se lação pediátrica. Estão em curso estudos farma-
futuras recomendações para a idade pediátrica. cocinéticos e farmacodinâmicos para determinar
A utilização dos IECA está contra-indicada na posologias pediátricas.
gravidez pelo risco de oligo-hidrâmnio, hipotensão
fetal grave, insuficiência renal neonatal reversível e Bloqueantes dos canais de cálcio (BCC)
irreversível, e morte neonatal. Os IECA também Os bloqueantes dos canais de cálcio são agentes
estão contra-indicados na estenose da artéria renal anti-hipertensivos muito utilizados em pediatria.
bilateral, na estenose da artéria renal em rim único São vasodilatadores directos que inibem a con-
e na insuficiência renal aguda. Devem ser utiliza- tracção do músculo liso das paredes vasculares
dos com cuidado na insuficiência renal crónica, interferindo com o influxo de cálcio celular. A
pela dificuldade em monitorizar o potássio. eficácia terapêutica e o perfil de efeitos secundá-
Os IECA são agentes terapêuticos de eleição na rios dos diversos BCC são determinados pela
HTA crónica pelas suas propriedades protectoras afinidade relativa para certos tecidos musculares
renais e cardíacas. As propriedades de protecção (parede vascular, miocárdio). Há três classes de
renal devem-se à redução da AII que está implica- BCCs: as di-hidropiridinas (amlodipina, nifedi-
da na progressão da doença crónica renal. Por pina e nicardipina), as fenilalquilaminas (vera-
outro lado, nos adultos com doença cardiovascu- pamil) e as benzotialzepinas (diltiazem). Pela
lar, reduzem de modo significativo a morbilidade selectividade para o músculo liso arteriolar, as di-
e mortalidade cardiovascular. Pelos efeitos benéfi- hidropirinas são as mais utilizadas em pediatria.
cos referidos, são agentes terapêuticos anti- Uma das maiores vantagens dos BCC é a
hipertensivos de primeira linha. disponibilidade de preparações com duração pro-
longada que permite a administração uma ou duas
Antagonistas dos receptores da angiotensina II vezes ao dia. Os comprimidos de amlodipina
A utilização pediátrica dos antagonistas dos podem ser reduzidos a pó, o que facilita a admi-
CAPÍTULO 162 Hipertensão arterial e doença renal 777
IECA, inibidor da enzima de conversão da angiotensina; BCC, bloqueante dos canais de cálcio.
*Apenas com as tiazidas.
Adaptado de Avner ED, et al, 2004
778 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
163
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Tullus K, Roebuck DJ, McLaren CA, et al. Imaging in the eval- mando o filtrado glomerular (de composição
uation of renovascular disease. Pediatr Nephrol 2010; 25: semelhante à do plasma) em urina.
1049-1056 A homeostase do organismo é mantida através
Webb N, Postlethwaite R (eds). Clinical Pediatric Nephrology. da reabsorção (passagem no sentido do lume
Oxford: Oxford University Press, 2003 tubular → célula tubular → sangue) e da secreção
(passagem no sentido do sangue → célula tubular
→ lume) tubulares de água e sais. A disfunção
tubular, congénita ou adquirida, pode originar
profundas alterações hidroelectrolíticas.
O túbulo proximal é responsável pela maioria
da reabsorção de água e solutos incluindo sódio,
potássio, bicarbonato, fosfato, aminoácidos e pro-
teínas de baixo peso molecular (designadamente
alfa-1 microglobulina e beta-2 microglobulina)-
consultar Anexos.
O túbulo distal é responsável pela composição
final da urina, regulando a reabsorção de sódio e
potássio, e excreção de hidrogenião.
Os principais mecanismos hormonais com
influência no balanço do sódio incluem o “eixo” reni-
na – angiotensina – aldosterona, o factor natriurético
auricular, e a nor-epinefrina. A angiotensina II e a
aldosterona aumentam a reabsorção de sódio nos
túbulos proximal e distal, respectivamente. A nor-
epinefrina, libertada como resposta à depleção de vo-
lume, não actua directamente sobre os mecanismos
de transporte tubular, embora influencie o balanço de
sódio através da diminuição do débito sanguíneo
renal com consequentes diminuição da carga de
sódio filtrada e estimulação da libertação de renina.
CAPÍTULO 163 Alterações tubulares renais 779
Havendo depleção de volume muito acentua- vo com especial atenção para a somatometria, pres-
da, verifica-se igualmente libertação da HAD. são arterial e presença de sinais de raquitismo; e à
Recorda-se que a excreção de sódio é promovi- realização de exames laboratoriais (ureia, creatini-
da pelo factor natriurético auricular e pela na, ionograma, glicose, cálcio, fósforo e magnésio
supressão da renina. (Capítulo 48) em amostra de sangue e de urina, e gasometria capi-
A acidose tubular renal (ATR) é uma situação lar), e imagiológicos (ecografia renal e vesical e,
clínica caracterizada por acidose metabólica com pelo menos, radiografia do punhos).
anião gap/hiato iónico normal*, resultante, quer de Deve, pois, suspeitar-se de defeito tubular renal
alteração da reabsorção do bicarbonato, quer da perante:
falência da excreção do hidrogenião. Fundamen- • Má progressão ponderal – associada ou não
talmente o compromisso da acidificação da urina a anorexia, irritabilidade, mau humor, dor
resulta de disfunção de uma ou mais proteínas ou abdominal, hipotonia ou outras alterações
transportadores envolvidos em tal processo (H+ neurológicas;
ATP-ase), troca de aniões HCO3-/Cl-, ou compo- • Poliúria/polidipsia – é importante avaliar a
nentes da via da aldosterona. Existem formas idade de início do problema, não esquecen-
hereditárias e adquiridas, primárias e secun- do detalhes da gestação como polidrâmnio;
dárias. As 3 formas principais são a ATR tipo I • Microalbuminúria definida como taxa de
(distal), tipo II (proximal), e hipercaliémica (tipo excreção urinária de albumina da ordem de
IV). Existem formas mistas (I+II) designadas por 20-200 mcg/minuto ou 30-300 mg/24 horas;
tipo III por alguns autores (deficiência hereditária • Episódios frequentes ou de difícil controlo –
da anidrase carbónica). Os referidos tipos de ATR de vómitos, desidratação, febre ou convul-
(formas hereditárias) têm na sua base outras tan- sões;
tas mutações em diferentes genes: I- SLC12A1; II- • Raquitismo resistente às doses habituais de
ROMK1; III- CLCNKB; IV- CLCNKA. vitamina D;
Neste capítulo procede-se a uma abordagem • Acidose ou alcalose metabólicas – na ausên-
sucinta de algumas formas clínicas mais represen- cia de insuficiência renal;
tativas de disfunção tubular renal com etiopatogé- • Nefrocalcinose (detectada por ecografia renal).
nese diversa. O fluxograma que integra a Figura 1 resume os
passos fundamentais a seguir perante suspeita de
Manifestações clínicas e diagnóstico disfunção tubular ditada por situação de défice
estaturo-ponderal acompanhado de anorexia,
Na sua maioria, os defeitos da função tubular vómitos, poliúria e polidipsia em que se detecta
apresentam-se nos primeiros anos de vida, fre- inicialmente, ou alcalose metabólica, ou acidose
quentemente através de sinais e sintomas inespe- metabólica.
cíficos como anorexia, vómitos e hipocrescimento.
A poliúria e polidpsia são importantes indica- Formas clínicas e actuação
dores de disfunção tubular, mas, na prática, não
são habitualmente valorizadas pelos pais; a Os Quadros 1 e 2 abordam de modo conciso os
evidência de tal disfunção decorre, pois, da obser- aspectos gerais (clínicos, laboratoriais e terapêuti-
vação cuidadosa do balanço hídrico. Apesar disso, cos) da acidose tubular renal (tipos I, II , I+II, e IV)
frequentemente as crianças que “bebem muito” e da síndroma de Bartter, incluindo sua variante
não têm qualquer disfunção tubular, mas simples- síndroma de Gitelman.
mente criaram o hábito de elevada ingestão de Nas alíneas seguintes 1., 2. e 3. faz-se uma referência
líquidos (por ex. sumos, coca-cola, etc.). especial respectivamente à síndroma de Fanconi, aos
Perante suspeita de tubulopatia, após anamnese chamados raquitismos de causa renal (primários), à dia-
cuidadosa, é necessário proceder: a exame objecti- betes insípida nefrogénica e à nefrite tubulointersticial.
VÓMITOS / ANOREXIA
POLIÚRIA / POLIDIPSIA
pH capilar
HCO3 capilar
Hipocaliémia
Hipoclorémia
Hipo / Normo natrémia
Raquitismo
Síndroma de Fanconi Hipocaliémia
Hipercaliémia
Normocaliémia
Nefronoptise
(se creatinina ↑ e alterações ecográficas)
FIG. 1
Fluxograma exemplificando os passos essenciais da marcha diagnóstica em caso de suspeita clínica de disfunção tubular.
síndroma de Fanconi, situação em que se verifica Para além das formas consideradas idiopáti-
também perda de urinária excessiva de aminoáci- cas, e esporádicas ou transitórias, descrevem-se
dos, proteínas de baixo peso molecular, glucose, as hereditárias (sendo as mais comuns: doença de
fosfatos, bicarbonato, sódio, cálcio, potássio e Wilson, intolerância à frutose, tirosinémia, galac-
uratos. Como seus sinais cardinais citam-se: tosémia, cistinose, glicogenoses, doença de Dent /
poliúria e polidipsia, desidratação, acidose me- nefrolitíase ligada ao X, síndroma de Lowe ou dis-
tabólica hiperclorémica, raquitismo, osteoporose e trofia óculo – cerebral – renal) e as secundárias
hipocrescimento. (em relação com drogas e toxinas, intoxicação com
CAPÍTULO 163 Alterações tubulares renais 781
Notas importantes 1) Bicarbonato de sódio a 8,4% (Molar): 1 ml ◊ 1 mEq de bicarbonato + 1 mEq de sódio; 2) citrato de sódio e potássio a 10% – este sal é metabolizado pelo organismo fornecen-
do, por cada 1 mL: 2 mEq de bicarbonato + 1 mEq de sódio + 1 mEq de potássio
• Situações autossómicas recessivas em que se verifica alteração na absorção do cloro no ramo ascendente da ansa de
Henle; geralmente manifestam-se na 1ª infância por atraso de crescimento, poliúria e polidipsia.
• Na forma neonatal, mais rara e mais grave, há polidrâmnio, prematuridade e nefrocalcinose patente ao nascer; difícil
balanço hidroelectrólítico.
• Na forma típica a síndroma de Bartter apresenta: alcalose metabólica hipoclorémica com hipocaliémia, hiponatrémia e
elevada excreção urinária de cloro.
• Há hiperreninémia (hiperplasia do aparelho justa glomerular) sem hipertensão arterial, e com hiperaldosteronismo.
• O magnésio plasmático é normal; na síndroma de Gitelman (variante Bartter) encontra-se diminuído.
• O cálcio urinário é geralmente elevado; na síndroma de Gitelman está diminuído.
• O tratamento consiste na administração de indometacina ( 1 – 4 mg/kg/d) para promover a reabsorção de sódio e
potássio pelo túbulo proximal.
• Por vezes é necessária a suplementação com cloro, potássio, sódio e magnésio .
metais pesados, doenças hematológicas, autoi- meadamente nos punhos). Verifica-se diminuição
munes, hiperparatiroidismo, etc.). de consistência dos ossos com consequentes de-
formações.
2. Raquitismos de causa renal Tal como foi referido no (Capítulo 59), e recor-
As síndromas de raquitismo caracterizam-se por dando o metabolismo da vitamina D, o metabólito
falência do ritmo normal de mineralização óssea hidroxilado em posição 25 no fígado (25-OH-cole-
devida a inadequadas concentrações de iões cálcio calciferol ou calcidiol) é submetido a nova hidro-
e de fosfato mono-hidrogeniónico com conse- xilação no rim em posição 1 por acção da enzima 1-
quente acumulação de osteóide não mineralizado, alfa hidroxilase, do que resulta o metabolito activo
mais notório nas metáfises dos ossos longos (no- 1,25 - OH - colecalciferol ou calcitriol.
782 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Absorção
Tipo Ca P FA PTH 25 (OH) 1,25 (OH)2 TRF • intestinal
D3 D3 Ca P
Raquitismo
hipofosfatémico N ↓↓ ↑↑ N N N ↓ ↓ ↓
hereditário
Raquitismo
vitamino ↓ ↓/N ↑↑ ↑ N ↓ ↓ ↓ ↑
dependente tipo I
Raquitismo
vitamino ↓ ↓ ↑↑ ↑ N ↑↑ ↓ ↓ ↑
dependente tipo II
Deficiência de 25-hidroxilase ↓ ↓ ↑↑ ↑ N ↑↑ ↓ ↓ ↑
•
Taxa de reabsorção do fósforo: 1 - (Fósforo na urina fresca x Creatinina sérica) x 100
(valor de referência > 85%)
(Fósforo sérico x Creatinina na urina fresca)
lando a reabsorção de água ao nível do túbulo work tool for clinical and genetic diagnosis of primary
proximal; 3) nos casos sem resposta aos diuréticos tubulopathies. Eur J Pediatr 2013; 172: 775-780
pode empregar-se a indometacina (2mg/kg/dia) Nicoletta JA, Schwartz GJ. Distal renal tubular acidosis. Curr
com efeito na redução da excreção de água. Opin Pediatr 2004; 16: 194-198
Paul E, Van Why S, Carpenter TO. Hyperthyroidism: a novel
4. Nefrite tubulointersticial (ou intersticial) feature of the tubulointerstitial nephritis and uveitis syn-
Trata-se dum termo aplicado a situações agudas drome. Pediatrics 1999; 104: 314 - 317
ou crónicas em que se verifica inflamação e lesão Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA
tubulares, poupando relativamente os glomérulos (eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
e vasos. Contudo, a nefrite intersticial pode asso- Medical , 2011
ciar-se a doença glomerular primária e a doenças Selvan C, Thukral A, Chakraborthy PP, et al. Refractory rickets
sistémicas afectando o rim. (Capítulo 158) due to Fanconi's syndrome secondary to Wilson's disease.
A etiopatogénese não está completamente Indian J Endocr Metab 2012; 16:399-401
esclarecida, admitindo-se mecanismo imune Webb N & Postlethwaite R (eds). Clinical Paediatric
mediado por células T. Como factores etiológicos Nephrology. New York: Oxford University Press, 2003; 79-91
têm sido implicados certos fármacos (antimicro- http://www.renaltube.com (acesso em Agosto de 2013)
bianos, anticonvulsantes, analgésicos), infecções e
doenças sistémicas como LED.
Entre as formas crónicas descreve-se um
quadro clínico raro autoimune associado a uveíte,
com maior prevalência na adolescência e por
vezes associado a doença renal progressiva (sigla
do inglês: TINU ou tubulointerstitial nephritis with
uveitis). Tal quadro não é abordado no âmbito das
alterações tubulares renais por alguns autores.
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164
Murphy renal positivo, aumento da velocidade de
sedimentação (VS) ou da proteína C reactiva (PCR),
leucocitose com neutrofilia e diminuição da densi-
dade urinária. O diagnóstico definitivo é dado pela
cintigrafia renal com DMSA (ver adiante).
– Cistite – IU em que o processo inflamatório
INFECÇÃO URINÁRIA está confinado ao epitélio da bexiga, estando rara-
mente associada a complicações.
Arlete Neto – Uretrite – IU em que o processo inflamatório
se estende ao longo da uretra.
– Bacteriúria assintomática – Isolamento de bac-
térias na urina sem sintomas ou sinais de doença.
Definições e importância do problema – Contaminação – Situação sugerida pela pre-
sença de bacteriúria sem leucocitúria (excepto nos
A infecção urinária (IU) é uma das causas mais fre- imunodeprimidos), ou pelo isolamento de mais
quentes de doença aguda na idade pediátrica com do que um microrganismo.
uma prevalência aproximada de 5%, em crianças – Infecção urinária simples – IU causada por
febris e, neste grupo, a segunda causa de interna- um agente microbiano usual, num tracto urinário
mento hospitalar, por doença infecciosa. A IU na anatómica e funcionalmente normal, num hos-
criança assume particular relevância não só pela pedeiro saudável.
morbilidade que encerra, mas também pela varia- – Infecção urinária complicada – IU que ocorre
bilidade de abordagem diagnóstica e terapêutica num sistema urinário com anomalias estruturais
de que é ainda alvo.O refluxo vesico-ureteral, asso- e/ou funcionais, numa criança imunodeprimida
ciado ou não a defeitos anatómicos, é a anomalia ou causada por um agente microbiano de grande
funcional mais frequentemente associada (18 a virulência (ex: Staphylococcus aureus). Os factores
50%). A morbilidade não está limitada ao episódio considerados de risco são: litíase, refluxo vesico-
agudo de doença, mas estende-se às complicações ureteral, divertículos vesicais, obstrução do sis-
renais que dela podem advir, nomeadamente tema excretor, bexiga neurogénica, diabetes melli-
hipertensão arterial (HTA) e diminuição da função tus, imunosupressão, antibioticoterapia recente,
renal com eventual evolução para doença renal cateterismo vesical prolongado, instrumentação
crónica. É, por isso, essencial um diagnóstico cor- do tracto urinário e infecção nosocomial.
recto, a instituição precoce da terapêutica e a orien- – Recorrência de IU – Duas ou mais IU em seis
tação das crianças com esta patologia para uma meses, ou três ou mais num ano; esta situação
investigação adequada. implica a erradicação da bactéria pela terapêutica
A IU corresponde à inflamação do epitélio da e, após um período de tempo variável, a rein-
bexiga e/ou do rim, geralmente secundária à fecção por outro agente.
invasão e multiplicação de microrganismos, na sua A Associação Europeia de Urologia – subclas-
maioria de etiologia bacteriana, mas também víri- sifica a IU recorrente em 2 tipos:
ca ou fúngica. No entanto, uma vez que o isola- 1) IU não resolvida – causada pela prescrição
mento de microrganismo na urina não significa obriga- de doses subterapêuticas, deficiente adesão
toriamente IU, há que definir conceitos, com impli- à terapêutica ou presença de bactéria resis-
cações importantes em clínica pediátrica: tente à terapêutica instituída.
– Infecção urinária (IU) – Crescimento bacteri- 2) Resistência bacteriana – causada por situa-
ano no tracto urinário acompanhado de sinais ção patológica que condiciona a perpetua-
clínicos. ção da IU, como por exemplo a litíase renal
– Pielonefrite aguda – Infecção localizada aos (Outubro 2008).
ureteres, bacinete e parênquima renal. A presunção – Recaída de IU – IU nas duas semanas se-
do diagnóstico é feita pela presença de sinais indi- guintes após término da antibioticoterapia, causa-
rectos de compromisso renal: febre, sinal de da pelo mesmo agente; traduz falência da ter-
786 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
apêutica. O refluxo vesico-ureteral (RVU), coex- por bacilos Gram negativos, sendo o principal
istindo ou não com defeitos anatómicos, é a anom- agente encontrado nas IU adquiridas na comu-
alia funcional mais frequentemente associada (18- nidade Escherichia coli (80%), seguida por
50%) (Capítulo 166). Enterococcus faecalis, Klebsiella sp, Staphylococcus
coagulase negativos, Staphylococcus epidermidis e
Aspectos epidemiológicos Proteus mirabilis.
Menos frequentes são as IU causadas por Serratia
A verdadeira prevalência da IU é desconhecida. A marcercens, Acinobacter, Pseudomonas e Staphylococcus
sua determinação está dependente dos meios dia- aureus que surgem em doentes de risco.
gnósticos utilizados, em particular da técnica de Existe uma grande variabilidade internacional
colheita de urina. Sabe-se que 7% das crianças do e regional relativamente à epidemiologia e aos
sexo feminino e 2% do sexo masculino têm a pri- padrões de resistência dos microrganismos cau-
meira infecção antes dos 6 anos de idade; em 50% sadores de IU. É, por isso, fundamental, conhecer
dos casos verifica-se recorrência no período de um com precisão os principais agentes etiológicos de
ano. Antes dos 2 anos é a causa de 5% dos episó- cada país e mesmo de cada instituição hospitalar,
dios febris sem foco, estando os dois sexos igual- por forma a optimizar as opções terapêuticas.
mente envolvidos, aumentando a partir desta A patogénese da IU é complexa, envolvendo a
idade a relação sexo feminino/sexo masculino; a interacção de vários factores presentes no hos-
frequência é mais elevada nos rapazes não circun- pedeiro e no agente infectante. A via de infecção
cidados (4 a 20 vezes maior do que nos circuncida- pode ser hematogénica, mais frequente no
dos em que a taxa ronda apenas 0,2 a 0,4%). recém–nascido, ou ascendente, desde o orifício ure-
A prevalência da IU em crianças febris é tanto tral até à bexiga e, posteriormente, ao bacinete e rim.
maior quanto mais baixo o grupo etário: A virulência do microrganismo invasor e a sus-
– Criança de 1 a 28 dias com febre tem risco ceptibilidade do hospedeiro são fundamentais para
elevado de infecção bacteriana; a instalação da IU. O factor determinante da vir-
– Criança com menos de 1 ano de idade, com ulência microbiana está dependente da sua capaci-
febre sem foco identificado, deve ser considerada dade de adesão à mucosa urogenital, da existência
com risco de IU; de endotoxina e de antigénios da parede celular.
– Rapariga com mais de 1 ano e menos de 2 No caso da E. coli cabe referir o papel das pili
anos de idade, com febre sem foco identificado, ou fimbrae (fímbrias ou estruturas “franjadas” da
deve ser considerada com risco de IU. parede celular, saliências).
A presença de foco infeccioso reduz a proba- Existem fímbrias de 2 tipos: 1) tipo I, encontradas
bilidade de IU em 50%. na maior parte das estirpes de E. coli, que se ligam a
Toda a criança com IU deve ser investigada, receptores de determinadas células alvo. Ora as fím-
pois a probabilidade de anomalia estrutural do brias de tipo I são bloqueadas pela D-manose e não
aparelho urinário é grande (10 a 50%). têm papel na pielonefrite; 2) tipo II (não inibidas pela
D-manose ou manose resistentes), ligam-se a recep-
Etiopatogénese tores (glicosfingolípidos) presentes em certas células
uro-epiteliais e eritrócitos. As referidas fímbrias,
Em condições normais o tracto urinário é estéril, aglutinando os eritrócitos com os respectivos recep-
ao contrário do que acontece com outros sistemas tores (eritrócitos do grupo P), são conhecidas como
do nosso organismo em contacto com o exterior. A fímbrias P, com papel importante na génese da
contaminação com microrganismos da flora pielonefrite; cerca de 75-95% das estirpes pielo-
comensal dos sistemas gastrintestinal ou genital, nefritogénicas têm fímbrias P.
que colonizam a região perineal, pode desen- A bexiga com normal funcionamento tem a
cadear um processo infeccioso no tracto urinário capacidade de depuração das bactérias em 24-72
se o microrganismo envolvido for suficientemente horas, quer através da renovação da urina com
virulento e/ou se o hospedeiro estiver imunode- total esvaziamento, quer pela presença de sub-
primido. As IU são mais frequentemente causadas stâncias bacteriostáticas que inibem o crescimento
CAPÍTULO 164 Infecção urinária 787
Alterada Normal®
RECORRÊNCIA
Sim
DE INFECÇÃO
Sexo feminino –
GAMACISTO ISOTÓPICA 2ª IU com febre
masculino –
CISTOURETROGRAFIA
Não
6 Meses após IU
Normal Alterada
® Crianças com infecção urinária febril, com idade ≥ 3 anos, cuja cintigrafia renal com DMSA é normal (realizada após IU), deve terminar-se a investigação.
FIG. 1
IU e exames imagiológicos.
rotina, tendo indicação nesta fase de doença, se urinário que levassem, por um lado ao aumento da
houver dúvida no diagnóstico e/ou não resposta recorrência de IU e, por outro, lado à lesão do
à terapêutica correctamente instituída numa cri- parênquima renal, com formação de cicatrizes.
ança gravemente doente. Como o RVU é a anomalia mais frequentemente
associada, a cisto-uretrografia era o exame obri-
Avaliação sequencial gatóriamente efectuado 2 a 6 semanas após a
Cisto-uretrografia miccional e pós-miccional primeira IU, em todas as crianças, sendo mantidas
Nas últimas quatro décadas a estratégia para pro- sob terapêutica antibiótica profiláctica, se o refluxo
tecção renal, após a primeira infecção urinária na fosse comprovado e até à sua resolução. Sabe-se
criança, consistia em detectar anomalias do tracto hoje que numa grande percentagem de crianças se
CAPÍTULO 164 Infecção urinária 791
desenvolve pielonefrite sem refluxo. Foi baseada lizado um antibiótico bactericida, com espectro de
nesta evidência científica, bem como na análise acção selectivo, com boa concentração urinária, com
custo/benefício para os doentes, que a Associação mínimo de efeitos secundários e com baixa capaci-
Americana de Pediatria recomenda a realização dade de induzir o aparecimento de estirpes
deste exame radiológico nas seguintes situações: resistentes. Igualmente importante é a posologia, a
1. Após a 1ª IU com febre, se a ecografia reve- tolerância e aceitabilidade dos preparados exis-
lar hidronefrose, cicatriz ou outras alterações su- tentes no mercado, sobretudo quando a terapêutica
gestivas, quer de alto grau de refluxo, quer de é instituída em ambulatório. Os antibióticos com
uropatia obstrutiva, bem como noutras circun- eliminação renal, mas que não atinjam concen-
stâncias clínicas atípicas ou complexas. trações terapêuticas na corrente sanguínea, tal como
2. Após a 2ª IU com febre (Figura 1). a nitrofurantoína, não devem ser utilizados para o
A cistografia isotópica (gamacistografia) só tratamento da IU com febre, pois a sua concentração
tem indicação nas raparigas acima dos três anos e a nível do parênquima renal pode ser insuficiente
sem disfunção vesical. Em todos os outros casos para tratar uma pielonefrite ou uro-sépsis.
há que realizar sempre a cistografia radiológica A terapêutica oral ou parentérica tem a mesma
(Figura 1). eficácia.
A duração do tratamento nunca deverá ser
Cintigrafia renal com DMSA inferior a sete dias ou superior a 14 dias, não
Está preconizada após a infecção urinária, para havendo dados que identifiquem o benefício de
rastreio de cicatriz renal (CR) – no mínimo 6 prolongar o tratamento por mais de sete dias na
meses após a infecção. Não deve ser feita com criança sem factores de risco.
periodicidade. Só se justifica a repetição, mesmo Seguidamente é descrito o esquema de trata-
se alterada, caso haja posteriores pielonefrites e mento nas situações de pielonefrite aguda e de cis-
factores de risco que possam condicionar o tite em diversas idades, de acordo com as normas
aparecimento de novas CR (probabilidade de sur- aceites pela Sociedade Portuguesa de Infeccio-
girem em ~15% dos casos de pielonefrite aguda). logia e aplicadas na Unidade de Nefrologia do
Hospital de Dona Estefânia; de referir que existem
Tratamento variantes de actuação de acordo com a literatura
consultada (Quadros 3 e 4).
Deve ser iniciado o mais precocemente possível,
após colheita de urina para urinocultura. Pielonefrite aguda
A antibioticoterapia é inicialmente instituída 1º Fluidoterapia
de forma empírica e, logo que possível, ajustada 2º Antibioticoterapia inicial (empírica)
de acordo com o resultado do teste de sensibili- • Recém-nascido
dade aos antibióticos (TSA). Na instituição de – Idade ≤ 1 semana: ampicilina + gentamicina;
uma terapêutica empírica, há que ter em conta fac- – Idade > 1 semana: ampicilina + ceftriaxona
tores que se relacionam com o agente infectante, (14 dias de terapêutica parentérica);
com o hospedeiro e com a farmacocinética dos • Lactente (< 3 M) e criança mais velha com
antibióticos. É igualmente importante ter o conhe- factor de risco – 10 dias de terapêutica - cefuroxi-
cimento, em cada área comunitária, das bactérias ma + gentamicina*;
mais frequentes, bem como do seu padrão de sen- • Lactente (> 3 M) e criança mais velha sem
sibilidade. factor de risco – 7 a 10 dias de terapêutica -
Relativamente ao hospedeiro importa consi- cefuroxima*.
derar a idade, os agentes infectantes mais fre- 3º Antibioticoterapia oral
quentes de acordo com o grupo etário, a gravi- – Lactente > 28 dias ≤ 3 M (na sequência da te-
dade da situação clínica, a existência ou não de rapêutica parentérica) de acordo com o TSA, ou
patologia nefro-urológica ou outra, bem como as
* Via parentérica até apirexia de 24 – 48h e tolerância oral
terapêuticas antibióticas previamente instituídas. Nota importante: Logo que possível passar a monoterapia de acordo
No que diz respeito aos fármacos, deve ser uti- com clínica e TSA.
792 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
*ajustar dose de amoxicilina de acordo com o valor do filtrado glomerular; D = dia de tratamento; cp= comprimido
– Detecção e correção da disfunção vesical relevo ao quadro clínico e não preconizam a qui-
– Correcção de fimose e coalescência dos pe- mioprofilaxia, tendo em conta os dados anterior-
quenos lábios. mente referidos. Contudo, até termos, num futuro
Quimioprofilaxia que se espera próximo (há vários estudos multi-
Nos últimos anos, vários estudos aleatorizados cêntricos em curso) mais dados sobre o genoma
e com valor científico comprovado, demon- do hospedeiro e da bactéria infectante do tracto
straram que um número significativo de crianças urinário, o que vai definir com maior precisão os
com idade a 2 anos, desenvolvem pielonefrite sem factores de risco de lesão renal, a quimioprofilaxia
RVU e que a profilaxia antibiótica contínua, tem fará sentido ser iniciada em todas as crianças com
pouco significado ou nenhum na prevenção das episódio anterior de pielonefrite comprovada até
recorrências de IU (Quadro 5). caracterização morfológica e funcional do seu
Assim, as últimas recomendações da Associa- aparelho urinário, o que irá determinar ou não a
ção Americana de Pediatria acerca da infecção continuação desta terapêutica. São considerados
urinária febril < 2 anos de idade, dão um grande como factores de risco: refluxo grau V, com pielo-
794 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 5 – Recorrência de IU febris/ Pielonefrite e grau de RVU em Crianças 2-24 meses de idade
com e sem profilaxia antibacteriana®
165
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Drugs 2005; 7: 339-346 os tubos colectores, o rim fetal é constituído por
Simão C, Ribeiro M, Neto A. Antibioterapia empírica na cerca de 30% de nefrónios. A nefrogénese continua
infecção urinária da criança – Guidelines. Acta Med Port a ritmo exponencial de crescimento de modo que,
2002; 2: 129-130 por volta da 36ª semana se completa, sendo que
Smellie J, Rigden S. Pitfalls in the investigation of children cerca de 16 factores regulam tal processo.
witch urinary tract infection. Arch Dis Child 1995; 72: 251- As anomalias verificadas no processo dinâmico
258 de multiplicação e diferenciação celulares podem
Stapleton FB. Imaging studies for childhood urinary infections. conduzir fundamentalmente a três situações; 1)
N Engl J Med; 2003: 251-251 não formação do rim (agenésia); 2) diferenciação
Thomas B. Newman.The New American Academy of Pedia- anormal (disgenésia); 3) formação de quistos.
trics Urinary Tract Infection Guideline. Pediatrics 2011; 572- Na prática considera-se que disgenésia inclui
575 aplasia ou agenésia, displasia, hipoplasia, e doença
Verrier JK. Time to review the value of imaging after urinary quística.
tract infection in infants. Arch Dis Child 2004; 90: 663-664 Disgenésia define-se como defeito de desen-
Webb N, Postlethwaite R. Clinical Pediatric Nephrology. volvimento do rim que pode estar alterado em
Oxford: Oxford University Press, 2003 forma, tamanho ou estrutura.
Wennerstrom M, Hansson S, Jodal U, Rune S, Stokland E. O termo displasia corresponde a um diagnóstico
Renal damage one year after first urinary tract infection in histológico; caracteriza-se pela presença de estru-
childhood. J Pediatr 2000;136: 30-34 turas primitivas ductais agrupadas de vários modos
Yamaçake KGR, Nguyen HT. Current management of antena- (focal, segmentar, difuso) como resultado de dife-
tal hydronephrosis. Pediatr Nephrol 2013; 28: 237-243 renciação metanéfrica anormal. A causa é multifac-
torial. Foram identificados cerca de 30 genes rela-
cionados com formas sindrómicas incluindo de-
feitos renais – por ex. síndroma de Fraser (agenésia,
displasia) associada a gene FRAS1 (ver Capítulo 18
– Anomalias congénitas).
A incidência de anomalias renais está aumen-
tada em situação de artéria umbilical única ou car-
diopatia congénita. Outras anomalias estão fre-
quentemente associadas: do pavilhão auricular,
ânus imperfurado, escoliose, etc.. Tais anomalias
poderão obrigar, em função do contexto clínico, a
796 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
166
til. Como particularidades há a destacar: quistos
glomerulares e tubulares, assim como associação a
quistos hepáticos (em cerca de 30% dos casos),
pancreáticos, esplénicos, ováricos e a aneurismas
cerebrais.
Os estudos imagiológicos mais utilizados são
a ecografia e o renograma isotópico. REFLUXO VÉSICO-URETERAL
Quanto ao tratamento, podem ser adoptadas
medidas conservadoras, diálise ou transplantação Rui Alves
renal em função do contexto clínico de cada caso.
Indicação cirúrgica
e terapêutica operatória
te: ou por trajecto ureteral transvesical excessiva- Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
mente longo e de trajecto anómalo. Drzewiecki BA, Thomas JC, Pope JC 4th, et al. Observation of
patients with vesicoureteral reflux off prophylaxis: physi-
Seguimento cian bias on patient selection and risk factors for recurrent
febrile urinary tract infection. J Urol 2012; 188: 480-484
O seguimento desta situação implica a manuten- Elder JS. Imaging for vesicoureteral reflux – Is there a better
ção do esquema de profilaxia antimicrobiana até way? J Urol 2005; 74: 7-8
ao sexto mês pós-operatório, data em que deverá Fanos V, Cataldi L. Antibiotics or Surgery for vesicoureteric
ser realizada uma cistografia de controlo com o reflux in children. Lancet 2004; 364: 1720-1722
objectivo de excluir a persistência de RVU. (capí- Ismaili K, Hall M, Piepez A, et al. Primary vesicoureteral
tulo 164) refleux detached in neonates with a hystory of fetal renal
No caso da síndroma do megauréter (RVU pelvis dilation – A prospective clinical and imaging study. J
secundário) há a salientar que as imagens ecográ- Pediatr 2006; 148: 222-227
ficas de dilatação ureteral se mantêm no seu tra- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
jecto lombar e pélvico, apesar do sucesso da tera- AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
pêutica cirúrgica. Medical, 2011
Thompson M, Simon SD, Sharma V, et al. Timing of follow-up
Prognóstico cystourethrogram in children with primary vesicoureteral
reflux. Development and application of a clinical algo-
O prognóstico global desta patologia depende do rithm. Pediatrics 2005; 115: 426-434
status inicial da função renal e da presença de cica- Venhola M, Huttunen MP, Uhari M. Meta-analysis of vesi-
trizes renais pré-operatórias. O sucesso da tera- coureteral reflux and uriniary tract infection in children.
pêutica cirúrgica anti-refluxo permite evitar o Scand J Urol Nephrol 2006; 40: 98-102
agravamento da função renal por prevenção da
nefropatia motivada pelas cicatrizes renais pro-
gressivas. Assim, o prognóstico é bom, descreven-
do-se desaparecimento de RVU em cerca de 95% a
97% dos casos.
O prognóstico nos casos de síndroma do
megauréter com RVU secundário depende da
natureza etiológica do megauréter.
A síndroma de Mitchel consiste na presença
de megauréter devido a válvulas da uretra poste-
rior (VUP), coexistindo com displasia renal bilat-
eral, devido à presença de RVU exuberante pré-
natal. O prognóstico nestes casos não é favorável,
devido a insuficiência renal progressiva.
Pelo contrário, a correcção cirúrgica de RVU,
não relacionada com obstrução ao drenado vesical
ou sem cicatrizes renais graves, é favorável com a
resolução cirúrgica em cerca de 80% dos casos.
BIBLIOGRAFIA
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reflux? J Urol 2005; 174: 1587-1589
CAPÍTULO 167 Uropatia obstrutiva 801
167
mais graves, por compressão do parênquima
renal com alterações da diferenciação córtico-me-
dular e parênquimo-sinusal.
Este defeito tem uma incidência de 1/2.000
nascimentos, sendo mais frequente no sexo mas-
culino e no lado esquerdo. A anomalia pode ser
UROPATIA OBSTRUTIVA bilateral em 20% dos casos.
pelos aparelhos de leitura. Actualmente, o uso de crobiana iniciada, uma vez estabelecido o dia-
renograma com MAG3 pode encurtar o intervalo gnóstico da situação. (Capítulo 164)
de estudo para a 2ª semana de vida. O renograma
isotópico permite avaliar a função renal diferen- Prognóstico
cial e a taxa de filtração glomerular.
A utilização de contraste iodado convencional Na ausência de complicações cirúrgicas, nomea-
na urografia endovenosa (de eliminação) está re- damente urinoma pós- operatório ou estenose da
servada apenas para casos particulares para anastomose pielo-ureteral, o prognóstico é em
delimitação anatómica (por imagem) do excretor geral bom, tendo a cirurgia correctiva sucesso em
alto. mais de 95% dos casos.
pelo encravamento distal de cálculos constitui vencional mesmo após cirurgia de reimplantação
uma urgência em urologia, tendo indicação para com sucesso, uma vez que a dilatação ureteral no
descompressão imediata. seu trajecto lombar e pélvico não é alterada com a
Como exames complementares de diagnóstico, intervenção cirúrgica. Este aspecto é muito impor-
a ecografia renal, vesical e ureteral fornecem uma tante de notar e não deve alarmar o médico assis-
imagem de uréter-hidronefrose volumosa, muitas tente, salvo nos casos de manutenção do quadro
vezes associada a alterações da diferenciação cór- de infecção urinária ou de dor lombar por disten-
tico-medular e parênquimo-sinusal renal. A cis- são da árvore excretora.
tografia com tempo miccional deverá ser realizada Esta situação patológica implica acompa-
para exclusão da etiologia refluxiva do megau- nhamento assíduo por equipa multidisciplinar
réter. O renograma isotópico com DTPA ou MAG3 (pediatra, imagiologista, etc.) pelo risco de degra-
confirma a natureza obstrutiva da lesão e permite dação progressiva da função renal.
avaliar a função renal diferencial. A cintigrafia O seguimento imagiológico pós-operatório é
renal com DMSA faculta a imagem da perfusão do realizado por meio de ecografia renal ao terceiro
parênquima e a possível presença de cicatrizes mês, e por renograma isotópico ao sexto mês. Pos-
renais pós-infecciosas. A urografia endovenosa teriormente, é necessário realizar um renograma
permite realizar a definição anatómica da porção isotópico com uma periodicidade anual em simul-
final do uréter e da sua relação com a junção tâneo com estudo de parâmetros laboratoriais da
uréter-vesical, ou da sua inserção ectópica. função renal.
É de salientar que as imagens de dilatação do uré- Actualmente cerca de 60% dos casos de ureteroce-
ter se mantêm na ecografia e na radiologia con- le têm diagnóstico pré-natal. A clínica é muito
804 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
pouco característica e manifesta-se fundamental- ressecção do pielão superior renal, com excisão do
mento por infecção urinária. No sexo feminino megauréter; e, por incisão vesical, a excisão do
pode manifestar-se por incontinência urinária ureterocele, e reimplantação eutópica do uréter
primária permanente. originário do pielão inferior no trígono vesical
O diagnóstico é feito, na maior parte dos casos, homolateral.
por meio ecográfico, no âmbito da investigação de
um quadro de infecção urinária. A ecografia Complicações pós-operatórias
fornece imagens características compatíveis com a
presença de uma massa quística intravesical, com A complicação pós-operatória mais frequente é o
uréter pélvico visível. O exame ecográfico permite estabelecimento de RVU secundário, quer ao pro-
também diagnosticar a presença de sistemas du- cedimento endoscópico, quer à terapêutica cirúr-
plos de drenagem renal. A urografia de eliminação gica. Ambas as situações obrigam a correcção ulte-
permite delinear a anatomia do sistema excretor, a rior por cirurgia anti-refluxiva. Por vezes, poderá
ectopia da relação distal do uréter, e a típica ima- haver lesões iatrogénicas do colo vesical secun-
gem translúcida de subtracção intravesical que é dárias à ressecção de ureteroceles gigantes interes-
patognomónica. A cistouretrografia com tempo sando a região do colo, com consequente pertur-
miccional permite diagnosticar a presença de bação dos mecanismos de continência do colo.
refluxo para o pielão inferior, nos sistemas duplos
(50% dos casos) e para o uréter contralateral (25 % Seguimento
dos casos).
O seguimento deve ser rigoroso e estar focado no
Indicação operatória controlo e preservação da função renal bilateral,
e terapêutica cirúrgica assim como na manutenção dos mecanismos de
continência urinária.
O ureterocele tem sempre indicação cirúrgica, Estes doentes necessitam: de controlo ecográfi-
porque está associado a alterações anatómicas e co na terceira semana pós-operatória, para certifi-
funcionais da relação distal do uréter, e cursa fre- cação do sucesso cirúrgico da ressecção do urete-
quentemente com um quadro de infecção urinária rocele; da realização de cistografia miccional para
recorrente. rastrear o estabelecimento de RVU pós-procedi-
O objectivo do tratamento do ureterocele é o mento; e de controlo isotópico anual para contro-
controlo da infecção urinária, a preservação da lo da função renal total e diferencial.
função renal, a protecção funcional das unidades
de drenagem renal normal homolaterais ou con- Prognóstico
tralaterais, e a manutenção da continência
urinária. O prognóstico global depende da função renal
Nos ureteroceles pequenos, eutópicos e não residual. A terapêutica cirúrgica é correctiva em
associados a dilatação ureteral de grande dimen- mais de 90% dos casos.
são, o tratamento cirúrgico pode ser realizado por
via endoscópica transuretral com ressecção do
mesmo. Este tipo de tratamento tem sucesso clíni-
co em cerca de 85% dos casos; a descompressão do
4. VÁLVULAS DA URETRA
ureterocele está especialmente indicada no recém-
POSTERIOR
-nascido. Se houver RVU secundário ao procedi-
mento, a reimplantação secundária é necessária. Importância do problema
Porém, nos casos de ureteroceles de grande
dimensão, associados a duplicidade da árvore ex- As válvulas da uretra posterior (VUP) são peque-
cretora renal ou ectópicos, a terapêutica cirúrgica nas pregas mucosas da uretra masculina, que se
convencional é a mais indicada. Nesta abordagem constituem como obstáculo ao fluxo anterógrado e
cirúrgica, por incisão lombar, deverá ser feita a normal de urina. Estão localizadas na crista ure-
CAPÍTULO 167 Uropatia obstrutiva 805
tral, na proximidade do veru montanum. Tal ano- O diagnóstico da situação é, por conseguinte,
malia já existe por volta da 12ª semana gesta- feito com a concordância da clínica e dos exames
cional, quando começa a formar-se urina. complementares.
Considerando a globalidade dos processos O exame ecográfico pós-natal pode oferecer
obstrutivos infravesicais, as VUP constituem as imagem de uma bexiga de capacidade aumenta-
situações de maior relevância, uma vez que o grau da, sinais de parede espessada por hipertrofia
e duração da obstrução poderão conduzir a lesão muscular, trabeculação da mucosa, divertículo da
renal irreversível na ausência de tratamento. bexiga e dilatação do tracto excretor por refluxo
Quanto à localização, estas anomalias são clas- vésico-ureteral de grau elevado; pode verificar-se
sificadas do seguinte modo: tipo I (as mais fre- também a presença de hidronefrose do excretor
quentes e mais distais ao veru montanum); tipo II alto. Dependendo do compromisso do desen-
(muito raras, entre o colo da bexiga e o veru mon- volvimento do parênquima renal, poderão ser evi-
tanum) e tipo III (sobre o veru montanum). dentes imagens de displasia renal bilateral.
Actualmente as VUP integram-se na síndroma O exame de excelência ou gold-standard para o
denominada síndroma válvula-bexiga à qual está diagnóstico de VUP é a cistografia miccional. Este
ligada um conceito funcional: a persistência de exame permite, na fase de enchimento vesical,
obstrução uretral origina disfunção vesical grave quantificar a capacidade da bexiga, delimitar o
(bexiga permanecendo com baixa capacidade em contorno mucoso da mesma (presença de trabecu-
repouso e elevadas pressões sob enchimento) e lações), detectar a presença de divertículos e de
ulterior desenvolvimento de uréter-hidronefrose refluxo vésico-ureteral; e, na fase miccional, apre-
ascendente com repercussão funcional renal. sentar as alterações típicas da uretra posterior na
presença de válvulas da uretra: alongamento e
Manifestações clínicas e diagnóstico alargamento da uretra prostática e hipertrofia do
colo da bexiga.
As manifestações clínicas deverão ser considera- O exame que permite a definição anatómica de
das dentro de um espectro de gravidade variável. VUP é a uretrocistoscopia. Com esta técnica é
As formas mais graves manifestam-se já no possível obter a imagem em tempo real do tipo
recém-nascido. Por outro lado, existem casos de específico de VUP, assim como a sua localização
obstrução discreta, assintomáticos durante um em relação ao veru montanum. Por outro lado, com
período longo de tempo. a mesma, é possível a terapêutica das VUP por
Simultaneamente, existem formas de apresen- ablação endoscópica. Esta manobra cirúrgica po-
tação de extrema gravidade, de expressão ecográ- de ser realizada no período neonatal.
fica pré-natal com oligoâmnio, sinais de dilatação Nos casos de incapacidade técnica de ablação
do aparelho excretor alto e alterações do desen- endoscópica, poderá ser necessário construir uma
volvimento do parênquima renal bilateral. vesicostomia temporária para derivar o tracto
As manifestações clássicas, já detectáveis no urinário pré-uretral.
recém-nascido, são caracterizadas por jacto uri-
nário fraco ou gotejante, sinais de retenção vesi- Prognóstico
cal (saliência hipogástrica dura e não depressível
relacionada com bexiga de parede espessada e As VUP são uma situação clínica cujo prognóstico
com hipertrofia muscular da mesma), massa decorre do espectro de apresentação e da precoci-
abdominal-lombar compatível com mega-uréteres dade da ablação cirúrgica.
refluxivos, e hidronefrose marcada do excretor Com efeito, o tratamento endoscópico precoce
alto. Por vezes, por perfuração do tracto excretor, evita o agravamento progressivo da disfunção
pode surgir ascite urinária volumosa. vesical e do refluxo vésico-ureteral de grau eleva-
A infecção urinária, resultante da retenção do, o que contribui para o não agravamento do
grave, pode ser complicada de sépsis urinária. As status funcional renal. O estádio mais grave é ca-
VUP podem igualmente ser causa de hipertensão racterizado por displasia renal bilateral, com
arterial no recém-nascido. episódios de hipertensão e insuficiência renal de
806 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
instalação progressiva (a qual poderá surgir com Mitchell M, Close C. Early valve ablation for posterior urethral
frequências oscilando entre 25 e 50%). valves. Semin Ped Surg 1996; 5: 66-69
Inversamente, a evicção do obstáculo ao esva- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
ziamento vesical promove o crescimento harmó- AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
nico e cíclico da bexiga, contribuindo para uma Medical , 2011
capacidade normal, com pressões de enchimento Shcraft KW (ed). Pediatric Urology. Philadelphia: Saunders,
e de esvazimento também normais. De igual 2005
modo, a inexistência de refluxo vésico-ureteral e
de uretér-hidronefrose volumosa, evita a degrada-
ção renal progressiva, promovendo o desenvolvi-
mento e diferenciação do rim do recém-nascido.
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CAPÍTULO 168 Diagnóstico pré-natal das uropatias malformativas 807
168
válvulas da uretra posterior (1-5%), ureterocele (1-
3%), situações mais raras (quistos renais, ectopia
do uréter, síndroma prune-belly, rim poliquístico,
etc.) (<1%).
hidronefrose fetal confirmou-se uropatia em 44% e 72 horas ou entre as 2 e 4 semanas de acordo com
dos casos. o grau de dilatação do bacinete/DAPB. Em função
Num estudo multicêntrico nacional no âmbito do quadro clínico, poderá ser repetida ulterior-
das Secções de Nefrologia, e Neonatologia da SPP, mente (Anexos).
e da Sociedade de Cirurgia Pediátrica (SN, NN/ Cisto-uretrografia
SPP, SCP) realizado em 2012, foram divulgados os *A cisto-uretrografia miccional seriada (CUMS)
dados ecográficos pré-natais /3º trimestre, os quais quando indicada, permitirá detectar a presença e
constam do Quadro 1. De acordo com o referido es- grau de refluxo vésico-ureteral (RVU), avaliar a
tudo, cabe salientar que em 81% das crianças evi- bexiga para detecção de divertículos e ureteroce-
denciando no período pré-natal sinais de ectasia les, e avaliar igualmente a uretra para detecção de
piélica ou ureteral não obstrutiva (das quais 80% válvulas da uretra posterior. Um limitação deste
com DAPB < 15 mm) verificou-se evolução para a exame, gerando por vezes controvérsia, relaciona-
normalidade, ou para melhoria do grau de hidrone- se com o facto de somente permitir a detecção de
frose nos dois anos de seguimento pós-natal. RVU em 12-21% dos casos (ver fluxograma).
*A cisto-uretrografia radio-isotópica/gamacis-
Actuação pós-natal tografia, não contemplada no fluxograma, é reali-
zada com radiofármacos (DTPA-Tc99) não ab-
Perante antecedentes pré-natais de anomalia evi- sorvidos pela mucosa vesical (ver adiante). Tal
denciada pela ecografia, designadamente no 3º procedimento expõe 100 vezes menos o paciente à
trimestre, para além do exame físico do RN, estão radiação relativamente à CUMS.
indicados determinados procedimentos e exames Exames com radiofármacos: cintigrafia
pós-natais em função de determinados critérios, e renograma
enquadrados nos fluxogramas que integram as *Trata-se de exames considerados comple-
Figuras 1 e 2 (ver Anexos). As opções iniciais de- mentares da ecografia , indicados para avaliação do
pendem dos valores do DAPB evidenciados na grau de compromisso do parênquima renal, função
ecografia pré-natal, considerando-se dois grandes renal diferencial e caracterizar o grau de obstrução
grupos: dilatação pré-natal grave (= ou > 15 mm) e (Consultar Anexos com fluxograma e Glossário
dilatação pré-natal ligeira ou moderada (7-14 mm). geral relativamente às indicações e cronologia da
respectiva realização). Como regra geral, a cinti-
Exames pós-natais grafia realiza-se após as 6 semanas de idade tendo
Ecografia renal e vesical pós-natal em conta o processo de maturação renal.
São analisados os mesmos parâmetros já avali- *Para a realização de cintigrafia e de renogra-
ados aquando da ecografia pré-natal, exceptuan- ma são utilizados essencialmente três radiofár-
do, claro, o parâmetro “líquido amniótico”. A macos: DTPA-Tc99 (ácido dietileno triamino pen-
primeira ecografia poderá ser realizada entre as 48 tacético, filtrado pelos glomérulos); MAG3-Tc99
(mercaptoacetiltriglicina, depurado por secreção
QUADRO 1 – Resultados de ecográfias tubular, possuindo alta fracção de extracção pelos
pré-natais no 3º trimestre rins); DMSA-Tc99 (ácido dimercapto-succínico,
ligando-se principalmente às células dos túbulos
(n= 736)* Hidronefrose 620 proximais). Utiliza-se o estímulo diurético da
Displasia multiquística 37 furosemida (1 mg/kg) quando for visualizada a
Agenesia 8 máxima distensão do bacinete. De referir que os
Megauréter 7 bacinetes demasiado distendidos e sem obstrução
Duplicidade pielo-ureteral 3 servem como “reservatório”, não se verificando
Rim pélvico 1 eliminação do mesmo após o estímulo diurético.
Rim em ferradura 1 No fluxograma foram considerados apenas MAG3
* excluídos 59 casos por DAPB não quantificado; nos casos de patologia bilateral, foi con-
e DMSA (consultar Glossário Geral e Anexos).
siderado o bacinete com maior DAP.
(Estudo multicêntrico nacional- SN, NN/SPP, SCP) atrás citado.
Ressonância Magnética Nuclear Urográfica
Apesar de proporcionar melhor informação
CAPÍTULO 169 Insuficiência renal aguda 809
169
morfofuncional que outros exames imagiológicos,
tem maiores custos e exige sedação, pelo que não
é contemplada no fluxograma.
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nitude of fetal renal pelvic dilatation can identify obstruc- pela redução brusca e mantida da filtração
tive postnatal hydronephrosis, and direct postnatal evalua- glomerular (FGR) com consequente elevação da
tion and management. J Urol 2006; 176:724. concentração sanguínea de ureia, creatinina, fosfa-
Corteville J, Gray D, Crane J. Congenital hydronephrosis: cor- to e incapacidade do rim para regular o balanço
relation of fetal ultrasonographic findings with infant out- hidroelectrolítico e a homeostasia do organismo.
come. Am J Obstet Gynecol 1991;165:384-388. Em Pediatria a IRA é frequentemente oligúri-
Nguyen HT, Herndon CD, Cooper C, et al. The Society for Fetal ca: diurese < 0,5 – 1 ml/kg/hora, podendo, por
Urology consensus statement on the evaluation and man- vezes, ser poliúrica: diurese > 3 – 5 ml/kg/hora
agement of antenatal hydronephrosis. J Pediatr Urol 2010; (como acontece nas formas de IRA por nefrotóxi-
6:212-231. cos, por exemplo).
Passerotti CC, Kalish LA, Chow J, et al. Thr predictive value of Surge em cerca de 2-3% das crianças admitidas
the first postnatal ultrasound in children with antenatal hy- para centros especializados; no período neonatal a
dronephrosis. J Pediatr Urol 2011; 7: 128-136 frequência coresponde a cerca de 8% dos casos
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon internados em UCIN. (Capítulo 341)
AA(eds). Rudolph´s Pediatrics. New York : McGraw -Hill
Medical , 2011 Etiopatogénese
Secção de Nefrologia Pediátrica/SPP, Matos P, Afonso AC,
Abranches M, Pinto H, Gomes C, Mimoso G, Esteves J, A IRA é um processo multifactorial, em cuja pato-
Monteiro C. Protocolo de estudo e vigilância das crianças génese se destacam alterações hemodinâmicas,
com diagnóstico pré-natal de malformações nefro-urológi- como vasoconstrição (factor dominante) e congestão
cas, 2012. www.spp.pt/publicacoes/cursos na zona medular, o que leva a hipóxia da região
Yamaçake KJR, Nguyen HT. Current management of antenatal medular, e a lesão tubular com reacções metabólicas
hydronephrosis. Pediatr Nephrol 2013; 28:237 – 243 e inflamatórias celulares. Daqui resulta fenómeno
obstrutivo que leva a diminuição da FGR.
Agradecimento muito cordial às colegas Drªs Margarida Habitualmente classifica-se a IRA em: pré-renal
Abranches e Judite Batista pelas opiniões apresentadas. – se causada por redução do fluxo sanguíneo renal;
renal ou intrínseca – se a causa reside no próprio
parênquima renal; e pós-renal – se devida a
obstrução ao fluxo de urina.
São causas possíveis de IRA pré-renal:
• Hipovolémia, gastrenterite/desidratação,
hemorragia, queimaduras, hipoproteinémia,
cetoacidose diabética, perdas para o 3º
espaço;
810 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Pré-renal Renal
Criança Recém-nascido Criança Recém-nascido
Na+ na urina (mmol/L) < 20 < 40 > 50 > 40
Osmolaridade urinária > 500 > 400 < 300 < 400
(mOsm/kg H2O)
Fracção excretada de sódio <1 <2 >1 >3
% ( FENa)*
* ( FENa) = sódio urinário x creatinina plasmática x 100 ⇒ avalia a quantidade de sódio filtrada pelo
sódio plasmático x creatinina urinária glomérulo que, não sendo reabsorvida
pelo túbulo, é excretada na urina.
CAPÍTULO 169 Insuficiência renal aguda 811
Desvio do potássio do espaço Salbutamol Aerossol – 2,5mg se < 25kg
extracelular para o intracelular – 5 mg se > 25 kg
EV - 4µg / kg - em 10 min.
Bicarbonato de sódio a 8,4% 1 – 2 ml / kg – EV
Glicose 0,5 – 1 g/kg/h
Insulina 0,2 U por cada grama de glicose
Remoção de potássio do organismo Resina permutadora de iões 1 g / kg – via oral / rectal se
Diálise hipercaliémia elevada/persistente
hídrico e valores séricos de ureia, creatinina, iono- Restrição de fluidos + diurético (furosemido
grama, cálcio e gasometria. 2mg/kg EV).
Nalguns centros utiliza-se um biomarcador Hipotensores: nifedipina 0,5 – 1 mg/kg – sub-
urinário de lesão e falência renal precoces em lingual.
diversas situações (por ex. sépsis); trata-se da Hemodiálise/hemofiltração: se há oligúria e
NGAL (neutrophil-gelatinase-associated lipocalin). risco de encefalopatia.
5) Hipo ou hipernatrémia – mais vulgarmente
Tratamento (bases fundamentais) hiponatrémia:
Restrição de fluidos – porque frequentemente
A correcção da IRA baseia-se na evicção da causa é devida ao respectivo excesso;
desencadeante e na correcção das alterações exis- Soro salino hipertónico – se natrémia <120
tentes. mEq/L – geralmente devida a poliúria (Capítulo 50).
Frequentemente a IRA pode constituir uma 6) Hipocalcémia – geralmente assintomática,
emergência com necessidade de correção imedia- por vezes devida à correcção da acidose ou da
ta de determinados eventos. (Quadro 2) hipercaliémia com bicarbonato. Administrar glu-
1) Hipercaliémia (especialmente se associada a conato de cálcio a 10% - 0,1 mmol/kg/hora ~ (0,5
alterações do ECG) (Quadro 2). (Capítulos ml/kg/h) se espasmos musculares, convulsões
48-50) e/ou diminuição do cálcio ionizado.
2) Acidose metabólica por incapacidade de o Regra geral, o prognóstico da IRA depende do
rim excretar hidrogeniões, e por aumento da controlo e correção atempada da causa subjacente.
sua produção.
Se pH sérico < 7,2: bicarbonato de sódio a 8,4% BIBLIOGRAFIA
- 1-2 ml/kg; (ou conforme cálculo: nº de mEq de Andreoli SP. Acute renal failure in the newborn. Semin
bicarbonato a administrar = 0,3 x défice de base x Perinatol 2004; 28: 112-123
peso em kg), sendo que 1 mL de bicarbonato de Avner E D, Harman W E, Niaudet P (eds). Pediatric
sódio a 8,4% ◊ 1 mEq de bicarbonato. Nephrology. Philadelphia: Lippincott & Wilkins, 2004
Nota: a hipernatrémia comporta risco de HTA. Du Y. Urinary biomarkers to detect acute kidney injury in the
3) Choque – por hipovolémia: pediatric emergence center. Pediatr Nephrol 2011; 26: 267-274
Soro fisiológico ou albumina a 5% ou lactato Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
de Ringer – 20 ml/kg/h – EV. Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011
Sangue total – se hemorragia aguda. Lamiere N, Van Biesen W, Vanholder R. Acute renal failure.
4) HTA/Insuficiência cardíaca congestiva – Lancet 2005; 365: 417-430
devidas a sobrecarga de fluidos e/ou alterações Singri N, Ahya SN, Levin ML. Acute renal failure. JAMA 2003;
vasculares ou parenquimatosas renais: 289: 747-751
812 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
170
etiologia mais prevalente é a glomerulopatia
crónica, primária ou secundária a doença sistémi-
ca, nomeadamente lúpus (LED), púrpura de
Schönlein-Henoch (PSH), síndroma hemolítica
urémica (SHU), seguidas da nefrite intersticial e
pielonefrite crónica (esta última ainda com eleva-
INSUFICIÊNCIA RENAL CRÓNICA da prevalência entre nós); e, mais raramente, a
doença vascular renal.
Isabel Castro No Quadro 2 comparam-se as diferentes etio-
logias da IRC abaixo dos 18 anos de idade, regis-
tadas no Reino Unido, EUA, Suécia e na Unidade
de Nefrologia do Hospital de Dona Estefânia
Definição e importância do problema (Lisboa).
As manifestações clínicas da IRC resultam de
Define-se insuficiência renal crónica (IRC) como diversos factores: 1) incapacidade de manutenção do
perda irreversível da função renal, cuja gravidade equilíbrio hidroelectrolítico, salientando-se a retenção
é proporcional à redução da massa renal funcio- de fosfatos (toxinas vasculares) por diminuição da
nante. (Quadro 1) FGR; 2) acumulação de metabólitos tóxicos (toxinas
Calcula-se uma prevalência de cerca de 18/1 mi- urémicas); 3) perda de hormonas renais como a
lhão na população pediátrica. Trata-se duma eritropoietina, e da forma activa da vitamina D; 4)
situação clínica cujo prognóstico melhorou muito hiperparatiroidismo secundário levando a desmi-
desde há 40 anos pelos progressos realizados neralização óssea e risco de deformações e fracturas;
quanto a suporte nutricional, diálise, tratamento 5) alterações da resposta dos órgãos alvo às hormonas
empregando eritropoietina, hormona de cresci- endógenas (hormona de crescimento).
mento, e transplantação renal. De salientar que a elevação dos valores séricos
de fosfato (P) na insuficiência renal avançada, jun-
Etiopatogénese tamente com a desregulação dos valores de cálcio,
paratormona e vitamina D contribuem para uma
São várias as causas de IRC, variáveis com a entidade clínica designada por complexo doença
idade. Nos primeiros seis anos de vida (e funda- renal crónica-doença mineral óssea (sigla em
mentalmente nos 2 primeiros) predominam as inglês: CKD-MBD). Outro aspecto a relevar rela-
anomalias congénitas (uropatia obstrutiva, cionado com P elevado e demonstrado in vitro diz
hipoplasia/displasia renal e rins poliquísticos), respeito ao desenvolvimento de apoptose das
susceptíveis de diagnóstico ecográfico pré-natal células da parede arterial e de calcificação das
em mais de 50% dos casos. A partir dessa idade a mesmas contribuindo para rigidez e calcificação,
IRC moderada 25 – 15 50 – 25 Alterações metabólicas
Alterações do crescimento
Alterações do equilíbrio ácido-base
IRC grave 15 – 5 25 – 10 Deterioração progressiva da função renal
IRC terminal <5 <10 Necessidade de terapêutica
de substituição da função renal
(transplante ou diálise)
CAPÍTULO 170 Insufuciência renal crónica 813
designadamente nas coronárias, o que correspon- • Massa abdominal / bexiga palpável – por
de a risco cardiovascular. uropatia obstrutiva (malformação, bexiga
Nas situações de IRC demonstrou-se também disfuncional, tumor, etc.).
valor aumentado do FGF23 (um factor de cresci- • Infecção do aparelho urinário – que pode
mento dos fibroblastos, produzido pelos osteóci- resultar de anomalia grave ou de refluxo
tos) com papel regulador na homeostase do fosfa- vésico-ureteral (grande responsável por
to e actuando ao nível do rim. pielonefrite crónica).
• Enurese – principalmente se for secundária e
Manifestações clínicas / ou com antecedentes de poliúria.
• Osteodistrofia renal – relacionada com
A sintomatologia das crianças com IRC pode ser retenção de fosfato devida a baixa FGR (< 50-
muito variada e relacionada com a doença renal 70 mL / min / 1,73 m2) e diminuição de 1,25
primária e/ou com as consequências da alteração (OH) D3, traduzida por desmineralização
da função renal. O início da IRC pode ser “silen- óssea com risco de deformações e fracturas.
cioso” e a sua progressão insidiosa, com apareci- • Atraso de crescimento – devido à urémia
mento da sintomatologia só tardiamente. crónica responsável por anorexia e vómitos,
Assim, o modo de apresentação da IRC pode principalmente nos lactentes e primeira
ser sugerido por: infância; baixa estatura.
• Ecografia pré-natal – através da detecção de • Atraso pubertário e dificuldades de apren-
anomalias do aparelho urinário (uropatia dizagem.
obstrutiva / válvulas da uretra posterior; • Letargia e palidez – por anemia normocítica
rins poliquísticos; aplasia / displasia renal) – normocrómica resultante da urémia; surgem
susceptíveis de originar IRC pós natal. tardiamente na evolução da IRC, mas oca-
814 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
sionalmente são o ponto de partida para o fosfatase alcalina, PTHi, proteínas totais,
seu diagnóstico. albumina, siderémia,ferritina e gasometria
• Síndroma nefrítica/nefrótica; síndroma ne- no sangue; cálcio, fósforo, proteínas e creati-
frótica corticorresistente e sindroma nefróti- nina na urina).
ca congénita – são situações que comportam • Radiografia de punhos e mãos – para ava-
risco elevado de lesão grave e progressiva da liação da idade óssea e detecção de osteodis-
massa renal, originando ou revelando IRC. trofia renal. Radiografia de tórax.
• Hipertensão arterial (HTA) – geralmente sin- • ECG / Ecocardiograma
tomática, pode ser a forma de apresentação
da IRC resultante de pielonefrite crónica Tratamento
habitualmente secundária a refluxo vésico-
ureteral (nefropatia de refluxo). O tratamento da IRC (que implica a intervenção de
• Insuficiência cardíaca congestiva – resultante uma equipa em centro especializado integrando
de HTA não controlada e/ou sobrecarga nefrologista pediátrico, enfermeiro, dietista, assis-
hidro-salina; pode surgir tardiamente na IRC, tente social e psicólogo) é variável, dependente do
sendo por vezes a forma de apresentação. grau de disfunção e da existência de complicações
• Convulsões – secundárias a HTA ou a alte- (HTA, osteodistrofia, baixa estatura, etc.).
rações hidroelectrolíticas, particularmente Os objectivos da tal tratamento são:
hipocalcémia; podem também ser revelado- • reversão da sintomatologia urémica – náu-
ras da IRC. sea, vómito, anorexia, astenia, adinamia, etc.;
• Incapacidade de recuperação de insuficiência • manutenção do equílibrio hidroelectrólitico,
renal aguda (IRA) – surge ocasionalmente, fósfo-cálcico e ácido-base;
devida a glomerulonefrite rapidamente pro- • promoção do crescimento normal;
gressiva, responsável por declínio irreversível • prevenção de complicações e/ou tratamento
e progresssivo da função renal, traduzindo-se das existentes;
frequentemente por persistência / agrava- • redução / interrupção da progressão da IRC;
mento da proteinúria e/ou HTA. • preparação da criança e família para a IRC
Nota importante sobre rastreio familiar – indi- terminal e eventual necesssidade de diálise
cado nos irmãos de crianças com IRC geneticamen- (peritoneal / hemodiálise) e/ou transplanta-
te determinada, (nefronoptise; síndroma de Alport; ção renal.
doença poliquística ou nefropatia de refluxo), pode Assim, é importante no doente com IRC vigiar:
eventualmente detectar situações de IRC ligeira / • Nutrição
assintomática. – suprimento enérgético adequado;
– suprimento proteico adequado;
Exames complementares – restrição de fósforo e potássio (e por vezes
sódio);
Para elucidação da etiologia da IRC, estão indica- – suplementação com vitaminas e minerais;
dos em função do contexto clínico: • Equilíbrio hidroelectrolítico – com especial
• Ecografia renal e vesical atenção:
• Cistouretrografia miccional e pós miccional – Hipo / hipernatrémia;
• Estudo isotópico: DMSA; MAG3 ou DTPA – Hipercaliémia – dieta, antagonistas do
• Urografia de eliminação potássio (resinas permutadoras, salbuta-
• Análise de urina (sumária, cultura, NGAL, etc.) mol, etc.);
• Doseamento de C3; C4; ANA; anti-DNA; anti- – Edema / hipertensão – restrição de líqui-
GBM (membrana basal do glomérulo) e ANCA dos e sódio; e eventualmente diurético
• Biópsia renal e/ou anti-hipertensor);
Para avaliar a gravidade e duração da IRC: – É importante manter o fósforo sérico normal
• Hemograma e outros exames (ureia, creati- – dieta e quelantes do fósforo (carbonato de
nina, ácido úrico, ionograma, cálcio, fósforo, cálcio, e raramente hidróxido de alumínio);
CAPÍTULO 171 Alterações da bexiga 815
171
– Suplementação com 1,25 (OH) D3 se, ape-
sar da redução de fósforo, ainda houver
sinais de hiperparatiroidismo.
• Equilíbrio ácido–base – fundamental nos lac-
tentes e crianças pequenas, sendo impres-
cíndivel evitar a acidose metabólica (que res-
tringe o crescimento e contribui para a degra- ALTERAÇÕES DA BEXIGA
dação muscular, desmineralização óssea e
hipercaliémia). Tal desiderato obtém-se para Rui Alves
além de medidas dietéticas especiais, com a
administração de bicarbonato de sódio oral;
• Anemia – por défice de produção renal de
eritropoietina. Deve ser corrigida com ferro Sistematização
oral (6mg/kg/d), ácido fólico , vitamina C e,
se necessário, administração de eritopoietina Neste capítulo são abordadas de modo sucinto as
por via subcutânea ou EV, de acordo com os alterações anátomo-funcionais da bexiga, sinteti-
valores da Hb, Hct e ferritina sérica. zadas no Quadro 1.
• Crescimento – é o indicador mais sensível da
eficácia do tratamento da IRC. Quando, não
obstante todas as medidas anteriores, o 1. EXTROFIA DA BEXIGA
crescimento continua deficiente (velocidade
de crescimento < 2DP) está indicado a tera- Definição, etiopatogénese
pêutica com hormona de crescimento em e importância do problema
colaboração com a equipa de endocrinologia.
A extrofia da bexiga (sinónimo de extroversão) é uma
BIBLIOGRAFIA anomalia em que se verifica ausência das paredes
Avner E D, Harman W E, Niaudet P (eds). Pediatric anteriores do abdómen e da bexiga, do que resulta
Nephrology. Philadelphia: Lippincot & Wilkins, 2004 exteriorização e saliência da mucosa vesical, (assim
Bonewald LF, Wacker MJ. FGF23 production by osteocytes. como dos ostia ureterais) ao nível do hipogastro, e
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816 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Prognóstico
5. ENURESE NOCTURNA
Hoje em dia, não só devido à melhoria das técni-
cas cirúrgicas, mas fundamentalmente pelo me- Como complemento do que foi referido na Parte V
lhor acompanhamento multidisciplinar propicia- do livro sobre Desenvolvimento e Comportamento,
do, poderá evitar-se a ocorrência de dois factores cabe referir o papel de factores genéticos: genes
818 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
172
relacionados com a enurese, localizados nos cro-
mossomas 12q e 13q.
Manifestações clínicas
2. PARAFIMOSE 4. HIPOSPADIA
FIG. 2 FIG. 3
Parafimose. Pénis escondido ou “sepulto”.
CAPÍTULO 172 Anomalias do pénis e uretra 821
Escrotal
Manifestações clínicas e classificação Vulviforme
perineal
Na maior parte dos casos, o diagnóstico da hipos-
padia é obtido no exame do recém-nascido (RN),
no período pós-parto.
FIG. 4
De acordo com a localização ectópica do meato,
no sentido ântero-posterior é estabelecida a seguinte Localização ectópica do meato urinário (Hipospadia).
classificação anatómica e descritiva (Figura 4):
(1) Glanular. obrigatória a realização de ecografia renal e vesi-
(2) Coronal. cal para detecção de anomalias anatómicas asso-
(3) Peniano anterior / médio / posterior. ciadas do aparelho urinário; tal associação pode
(4) Peno-escrotal. surgir em cerca de 10% dos casos de hipospádia ,
(5) Escrotal. com maior probabilidade nas hipospadias de
(6) Vulviforme/perineal. localização mais posterior.
A presença da curvatura ventral do pénis (corda), As anomalias do aparelho urinário mais fre-
aspecto fundamental a ter em conta na descrição da quentemente associadas são: displasia renal uni
hipospadia, deriva da confluência de quatro factores: ou bilateral, duplicidade ureteral, dilatação pielo-
(1) Aderência da pele ventral à uretra. calicial por obstrução da junção pielo-ureteral e
(2) Aderência da placa uretral aos corpos ca- refluxo vésico-ureteral.
vernosos.
(3) Atrésia do corpo esponjoso a jusante do Tratamento cirúrgico
meato urinário.
(4) Assimetria dos corpos cavernosos. A hipospadia tem sempre indicação operatória.
A classificação correcta da hipospadia, que Os objectivos da correcção cirúrgica são:
deverá incluir a localizazção do meato e a existên- (1) Colocação do meato urinário em posição
cia ou não de curvatura ventral, tem interesse não glanular anatómica.
só para a planificação do acto cirúrgico, como (2) Criação de um meato urinário fisiológico
também para o estabelecimento do prognóstico. em fenda vertical.
As Figuras 5 e 6 mostram aspectos de hipospa- (3) Correcção da curvatura ventral do pénis.
dia anterior. (4) Correcção do defeito ventral prepucial.
(5) Criação de uma boa relação estética entre a
Anomalias associadas bolsa escrotal e a emergência peniana.
Na terapêutica cirúrgica da hipospadia (geral-
Em todos os RN com diagnóstico de hipospadia, é mente a iniciar antes dos dois anos de idade)
822 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Seguimento
173
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Urology. Philadelphia: Elsevier, 2008 Sistematização
1. TESTÍCULO ECTÓPICO
Definições
lizado em algum ponto do seu trajecto normal de Com efeito, como resultado da localização
descida); pode estar localizado no interior da cavi- anómala, tornam-se evidentes alterações histoló-
dade abdominal, ou no canal inguinal (na maioria gicas durante o segundo ano, as quais se caracteri-
das vezes). Com uma incidência de cerca de 2% a zam por insuficiência na transformação dos
6% nos recém-nascidos de termo e cerca de 30% gonócitos em espermatogónias diferenciadas, com
nos pré-termo, a criptorquidia é unilateral em 80- oligospermia, atrofia das células de Leydig e
90% dos casos. Pode estar associada a anomalias anomalias nas células de Sertoli. Têm sido
diversas. descritas anomalias de desenvolvimento das célu-
2 – Testículo ectópico propriamente dito (raro) las germinais no testículo contralateral nos casos
que corresponde à situação de testículo fora do tra- unilaterais, o que sugere a possibilidade de um
jecto normal de descida, geralmente na coxa ou no defeito de desenvolvimento global ou endócrino;
períneo, região suprapúbica ou bolsa escrotal con- tal é igualmente corroborado pela presença fre-
tralateral. Também unilateral em 80-90% dos casos. quente de defeitos do epidídimo.
3 – Testículo retráctil que corresponde à cha- Quando se verifica criptorquidia isolada na
mada situação de testículo "em ascensor"; há data do nascimento, o testículo pode descer em
mobilidade do testículo no trajecto do canal 1/3 dos casos nos primeiros 6 meses de vida; e, se
inguinal, entre a bolsa escrotal e o anel inguinal tal não acontecer até ao final do primeiro ano de
superficial. Uma vez "agarrado" pelos dedos do vida, já não se verificará o processo de descida. De
observador é levado facilmente à bolsa escrotal, aí referir que o testículo pode estar localizado na
permanecendo sem grande tensão. Na maior bolsa na data do nascimento e subir depois.
parte dos casos é bilateral, explicando-se a "subida A não descida do testículo é acompanhada de:
como um ascensor" pela hiperactividade do mús- hérnia inguinal em 90% dos casos (o que se torna
culo cremasteriano. Esta tendência deixa de ser lógico, pois o canal peritoneovaginal só se encerra
notória com a idade por diminuição progressiva depois de o testículo chegar ao fundo da bolsa
da hiperreflexia cremasteriana. escrotal); e de hipospadia em 10% dos casos.
Etiopatogénese Complicações
A descida normal do testículo processa-se por São descritas as seguintes complicações: torção,
volta do 7º mês de gestação. A não descida pode malignização (na terceira década de vida), atrofia,
explicar-se por diversos factores: infertilidade (nos casos bilaterais) e psíquicas (em
• alterações hormonais relação com problemas de estética anatómica).
• disgenésia do testículo
• anomalia anatómica Diagnóstico
Na primeira fase da descida testicular assu- A presença de hidrocele (ver adiante) no recém-
mem importância o factor hormonal ILF3 (insulin- nascido e a verificação de testículo retráctil entre
like factor 3) e o receptor LGR8 (leucin-rich repeat- os 6 meses e a puberdade, dificultam a identifi-
containing G protein-coupled receptor 8). cação da posição do referido testículo.
As anomalias genéticas mais frequentemente Para o correcto diagnóstico torna-se impor-
associadas a criptorquidia são a síndroma de tante salientar determinados gestos semiológicos.
Klinefelter (47XXY ou 46XY/47XXY) e as muta- A inspecção deve começar pela verificação da
ções no gene do receptor INSL3. simetria das bolsas, bem como dos sulcos cutâ-
neos transversais das mesmas. Quanto mais atró-
Quanto mais elevada a posição do testículo, fica e aplanada for a bolsa, com os sulcos quase
maior é a probabilidade de disgenésia (anomalia inexistentes, maior é a probabilidade de se estar
de diferenciação sexual acompanhada de anoma- em presença de um testículo atrófico intrabdomi-
lia congénita) e, portanto, de infertilidade e de nal, ou mesmo de ausência testicular.
ulterior malignização. Por outro lado, uma bolsa bem desenvolvida,
CAPÍTULO 173 Alterações do conteúdo escrotal 825
Exames complementares
4. HIDROCELE
5. QUISTO DO CORDÃO
O hidrocelo (ou a hidrocele) é uma acumulação de
líquido na tunica vaginalis, situação que surge em Trata-se duma tumefacção quística esferóide no
CAPÍTULO 173 Alterações do conteúdo escrotal 827
trajecto do cordão espermático mais frequente- massas indolores que não transiluminam. Em caso
mente na região inguinal. Resulta da persistência de suspeita deve proceder-se a ecografia. A alfa-
do canal peritoneovaginal, que é permeável a con- feto-proteína e a beta-gonadotrofina humana
teúdo líquido, manifestando-se clinicamente por coriónica estão elevadas respectivamente nos tera-
uma tumefacção da região inguinal, o que implica tomas, e nos coriocarcinomas e germinomas.
diagnóstico diferencial com as massas inguinais. Nos casos de malignidade está indicada a
O quisto do cordão evidencia ao exame clínico orquidectomia radical.
uma consistência relacionável com conteúdo flui-
do, móvel, não redutível; frequentemente é pos- BIBLIOGRAFIA
sível determinar os seus limites: orifício inguinal Agarwal PK, Diaz M, Elder JS. Retractile testis – Is it really a
interno, na sua porção proximal e o orifício normal variant? J Urol 2006; 175: 1469-1499
inguinal superficial, na sua porção mais distal. Ashcraft KW, Holder TM (eds). Paediatric Surgery.
Esta particularidade permite distinguir esta Philadelphia: Saunders, 2003
entidade da hérnia inguinal, em que há permea- Barthold JS. Is adjuvant hormonal therapy indicated in cryp-
bilidade do canal peritoneovaginal para conteúdo torchidism. Nat Clin Pract Urol 2005; 2: 366-367
visceral, sem limites definidos, uma vez que a hér- De Kretser DM. Differences in the prevalence of cryp-
nia pode ocupar todo o canal e ter extensão intra torchidism. Lancet 2004; 363: 1250-1252
escrotal e ser redutível. Hutson JM, Hasthorpe S. Testicular descent and cryp-
O diagnóstico diferencial faz-se com as massas torchidism in 2004. Pediatr Surg 2005; 40: 297-302
inguinais, em geral. MacMahon RA (ed). An Aid to Paediatric Surgery. Melbourne:
Embora o exame clínico cuidadoso permita Churchill Livingstone, 2001
chegar ao diagnóstico, cabe referir o papel do McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
exame ecográfico com sensibilidade e especifici- Pediatrics. Madrid: Panamericana, 2010
dade elevadas. Mouriquand P. The normal testis. Arch Dis Child 2007; 92: 3
O aumento de volume ou dor constituem indi- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
cação para intervenção cirúrgica; esta consiste na AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
laqueação alta do canal peritoneovaginal e na plastia Medical, 2011
do orifício inguinal profundo, procedimento cirúrgi- Sandlow J. Pathogenesis and treatment of varicoceles. BMJ
co que é realizado em regime de ambulatório. 2004; 328: 967-968
Vijayaraghavan SB. Sonographic differential diagnosis of acute
scrotum. J of Ultrasound in Medicine 2006: 25: 563-574
6. ESPERMATOCELE Wright LA, Gerscovich EO, Corwin MT, et al. Tension hydro-
cele: additional cause of ischemia of the testis. J of
O espermatocele consiste numa dilatação quística Ultrasound in Medicine 2012; 31: 2041-2043
do epidídimo devida a acumulação de secreções Wu, S, Liu G, Chen S, et al. Sonographic patterns of testicular
espermáticas; trata-se, pois, dum quisto do epidí- torsion. J of Diagnostic Medical Sonography 2011; 27: 273-
dimo. 278
Clinicamente é diagnosticado como uma tu-
mefacção elástica, associada ao epidídimo, indo-
lor e sem características inflamatórias.
A terapêutica pode ser realizada por punção
aspirativa ou excisão cirúrgica por abordagem
transcrotal.
7. TUMOR TESTICULAR
174
espécie humana; a fasciculada sintetiza o cortisol,
o mais potente glucocorticóide natural; e a reticu-
lar, os androgénios supra-renais.
Sob o ponto de vista genético, para o desenvolvi-
mento da SR são cruciais dois factores de transcrição
esteroidogénicos (SF-1/NR5A1 no cromossoma
DOENÇAS DA SUPRA-RENAL 9q33, e DAX1/NEOB1 no cromossoma X).
A disrupção de SF-1 resulta em agenésia SR e
– GENERALIDADES gonadal, ausência de gonadotrofinas hipofisárias
e hipodesenvolvimento do hipotálamo.
Maria de Lurdes Lopes A síntese de glucocorticóides, mineralocorticói-
des e androgénios verifica-se a partir do colesterol
através de uma via metabólica complexa (Figura
1). A existência de bloqueios enzimáticos condi-
Fisiopatologia do córtex SR ciona, não só a não produção das hormonas respe-
ctivas, como também a acumulação de metabolitos
A supra-renal é constituída por dois tecidos e a produção excessiva de outros metabolitos.
endócrinos distintos: o córtex e a medula. A síntese de cortisol é estimulada pela ACTH
O córtex da supra-renal (SR) integra 3 zonas: hipofisária, que tem também acção estimulante do
externa (glomerular), intermédia (fasciculada), e melanócito. A ACTH é, por sua vez, influenciada
interna (reticular). A zona glomerular sintetiza pela CRH hipotalâmica. O cortisol produzido irá
aldosterona, o mais potente mineralocorticóide da depois inibir a produção de ACTH e CRH (corti-
Colesterol
StAR
Enzima de clivagem
da cadeia lateral
Pregnenolona 17OH-pregnenolona DHEA
21-Hidroxilase
21-Hidroxilase 17α-HSD Aromatase 17α-HSD
HSD
18OH-Corticosterona
18OH-Desidrogenase
Abreviaturas:
(CMO II) CMO I e II: Corticosterona metiloxidase I e II; DHEA: De-hidroepiandrosterona
StAR: proteína de regulação aguda da esteroidogénese
Aldosterona DHT: Di-hidrotestosterona; 3β-HSD: 3β-Hidroxisteróide desidrogenase; 17α-HSD: 17α-Hidroxisteróide desidrogenase
FIG. 1
Síntese de glucocorticóides, mineralocorticóides, androgénios e estrogénios.
CAPÍTULO 174 Doenças da supra-renal. Generalidades 831
Hipotálamo CRH
génios são necessários para a diferenciação do
folículo piloso pré-pubertário em folículo piloso
–
terminal e folículo sebáceo (unidade pilo-sebácea)
nas áreas cutâneas sensíveis aos androgénios.
Os sinais e sintomas das doenças da supra-
Hipófise ACTH renal devem-se à carência ou excesso das hor-
monas afectadas, e à maturação precoce da supra-
– renal; nestas duas últimas circunstâncias poderá
surgir desenvolvimento precoce dos caracteres
Supra-renal Cortisol sexuais secundários. Alguns sintomas de doença
supra-renal podem estar associados a doença de
outros órgãos, nomeadamente o ovário. Assim, as
FIG. 2
alterações da função supra-renal podem causar
Mecanismo de controlo da síntese de glucocorticóides. um grande número de situações patológicas, com
clínica, diagnóstico e terapêutica muito variados.
cotropin releasing hormone) (Figura 2); os níveis de cor-
tisol têm uma variação circadiana, com níveis máxi- Fisiopatologia da medula SR
mos de manhã e mínimos durante a noite.
O cortisol actua em todo o organismo, per- As principais hormonas segregadas pela medula
mitindo a sobrevivência em caso de estresse; tem SR são as catecolominas fisiologicamente activas:
também uma acção anti-inflamatória e sobre o dopamina, norepinefrina, e epinefrina. A síntese
metabolismo intermediário com aumento da de catecolaminas também ocorre no cérebro, nas
lipólise a nível do tecido adiposo, da proteólise terminações dos nervos simpáticos e no tecido
muscular, e da neoglucogénese hepática levando a cromafim, extramedula SR.
elevação da glicémia. Os metabolitos das catecolaminas são excreta-
A aldosterona actua no rim promovendo a rea- dos na urina, destacando-se o ácido vanilmandéli-
bsorção de sódio e a excreção de potássio na urina.
A produção de aldosterona é influenciada pelo sis- Hipovolémia e ↓ Pressão de perfusão renal
tema renina/angiotensina, pela concentração circu- ↑ [Na+] urina
lante de potássio, e pela ACTH (Figura 3).
Os androgénios supra-renais têm uma acção ↑ Renina
que pode ser importante em ambos os sexos nos
períodos fetal, neonatal, e na criança antes da Angiotensinogénio Angiotensina I
puberdade; são também importantes no sexo fe- ↑ [K+] plasma
minino durante e após a puberdade em associação Enzima de conversão ↓ [Na+] plasma
aos androgénios de origem ovárica. No sexo mas- ACTH
Angiotensina II
culino, a partir da puberdade a acção dos
androgénios supra-renais é diminuta devido à
preponderância da testosterona produzida pelo
testículo. Os androgénios supra-renais começam a ↑ Aldosterona
ser produzidos entre os 6-8 anos nas raparigas, e
entre os 7-9 anos nos rapazes. Estes períodos cor-
respondem à chamada pubarca, em que se verifi- ↑ Reabsorção urinária de Na+
ca aparecimento de pilosidade pública e/ou axi- ↓ Perdas urinárias de K+
lar. Esta deve-se à maturação da zona mais inter-
na do córtex supra-renal, a zona reticular, passan-
FIG. 3
do esta a produzir DHEA e o DHEA-S em respos-
ta à ACTH. A produção de androgénios pelo Mecanismo de regulação hidroelectrolítica e do metabolismo
ovário aumenta durante a puberdade. Os andro- da aldosterona.
832 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
175
co (VMA ou ácido 3-metoxi-4-hidroximandélico).
A detecção urinária das catecolaminas e metane-
frinas constitui meio de diagnóstico de feocro-
mocitomas da medula SR e do sistema nervoso
simpático.
Os efeitos das catecolaminas são mediados
através de receptores adrenérgicos incorporando a HIPERPLASIA GONGÉNITA
chamadas proteínas G. Quer a epinefrina, quer a
norepinefrina elevam a pressão arterial, mas DA SUPRA-RENAL
somente a epinefrina aumenta o débito cardíaco.
Relativamente ao efeito hiperglicémico, o mesmo Maria de Lurdes Lopes
é mais pronunciado no caso da epinefrina.
BIBLIOGRAFIA
(Conjunta dos capítulos 174 a 178 integrando este último) Etiopatogénese e sistematização
Etiopatogénese e epidemiologia
A incidência desta doença é variável consoante a po-
pulação estudada (1/280 no Alasca, 1/23.000 em
França); considerando as formas graves do recém-
nascido e criança, a incidência é 1/14.000; se se
CAPÍTULO 175 Hiperplasia congénita da supra-renal 833
Défice Síndroma Ambiguidade Virilização Metabolismo Crise aguda Esteróides ↑ ≠ Esteróides ↓ Localização
(Frequência) genital pós-natal do sal PA do gene
Puberdade
Proteína Hiperplasia Marcada Não Perda de sal de Frequente Nenhum Todos 8p
StAR* lipóide (Rara) no sexo M Ausência de aparecimento PA ↓
puberdade no tardio
sexo F ↑ PRA
3βOH Clássica Marcada no Sim Perda de sal Presente DHEA, Aldosterona, 1p
- Esteróide (Rara) sexo M Alterações de ↑ PRA PA ↓ DHEA-S T, cortisol
desidrogenase Moderada puberdade 17OH
- pregnenolona
no sexo F
Não clássica Não Sim Normal Ausente DHEA, .... ?
(Frequente) Alterações de PA normal DHEA-S
puberdade 17OH
- pregnenolona
Δ4A: Δ4-androstenediona; DHEA: de-hidroepiandrosterona; DHEA-S: sulfato de de-hidroepiandrosterona; DOC: desoxicorticosterona; F: feminino; HTA: hipertensão arterial; M:masculino PRA: actividade da renina plasmática;
T: testosterona; PA: pressão arterial; * StAR é a designação da proteína de regulação aguda da esteroidogénese (Steroidogenesis Acute Regulatory protein), essencial para o transporte de colesterol do citoplasma da célula do cór-
tex suprarrenal para a mitocôndria onde ocorrem alguns dos passos da síntese hormonal; ** Excluindo o défice de 21-hidroxilase, abordado no texto.
suficientes e os únicos que é possível obter face à 50-200µg/dia, per os, em 2 tomas nas crianças
emergência clínica do tratamento. c) NaCl: 1-3 g / dia per os nos lactentes
Para confirmação de forma virilizante não As crianças maiores não necessitam de doses
completamente esclarecida, pode ser necessário tão elevadas de mineralocorticóides; após o perío-
proceder à prova de estimulação com ACTH do de lactente, os alimentos que as crianças
(Synacthen®) e determinação de 17OH-proges- recebem contêm maiores concentrações de sal e as
terona, Δ4-androstenediona, testosterona, DHEA, mesmas desenvolvem também apetência por sal,
e 3-β-desoxicortisol. pelo que não é necessário administrar já NaCl
Os níveis séricos dos vários metabolitos variam suplementar.
de acordo com a idade e sexo da criança e, tam-
bém, com os valores de referência de cada labo- 2 – Em situações de estresse agudo
ratório; por isso, devem utilizar-se para a interpre- Os doentes com hiperplasia congénita da su-
tação dos resultados as tabelas locais de referência. pra-renal deverão ter sempre consigo uma infor-
A colheita de sangue para estes doseamentos deve mação acerca da sua situação clínica, terapêutica
ser efectuada entre as 8 e as 9 horas para evitar actualizada e indicações em caso de estresse.
resultados falsamente negativos causados pela Em situações de estresse agudo, deverá
variação circadiana dos seus níveis plasmáticos. duplicar-se ou triplicar-se a dose habitual de hi-
drocortisona, de acordo com a gravidade do caso.
Tratamento Se a criança vomitar imediatamente após a admi-
1 – De substituição nistração da terapêutica, dever-se-á repetir a dose
a) Glucocorticóide algum tempo depois; se não tolerar a terapêutica
O tratamento é, ainda hoje, uma das áreas que por via oral, deverá ser rapidamente encaminhada
suscita mais discussão; tem por objectivo a admi- a um serviço de urgência.
nistração de corticóide suficiente para frenar a
produção de androgénios sem, no entanto, afectar 3 – Da crise aguda de perda de sal
o crescimento. Deve, assim, ser ajustada ao doente Deverá ser instituída terapêutica com fluidos
e alterada ao longo do tempo, de acordo com os por via endovenosa e hidrocortisona. Dever-se-á
dados clínicos (velocidade de crescimento, hiper- colher sangue para a determinação de glicémia,
pigmentação, pilosidade, genitais externos) e os ionograma, pH e gases.
níveis séricos dos metabolitos. Esta avaliação re- Se existir choque: NaCl a 0,9% a administrar ao
gular deverá ser trimestral nos 2 primeiros anos ritmo de 20 ml/kg/h.
de vida podendo, depois, passar a semestral. Se ausência de choque: NaCl a 0.9% em dex-
Nas crianças utiliza-se: hidrocortisona per os trose a 5% a administrar de acordo com os cálcu-
em doses de 10-20mg/m2/dia dividida em 3 los para a manutenção + perdas calculadas.
tomas; nos recém-nascidos e lactentes administra- Hidrocortisona:
-se 2 mg, 3 vezes por dia (papéis manipulados na 50mg EV 6/6 horas no lactente;
farmácia). Em geral, administra-se 1/4 da dose 100mg EV 6/6 horas nas crianças maiores
diária de manhã, 1/4 à tarde e 1/2 antes do deitar Não é necessário administrar mineralocor-
a fim de frenar melhor a ACTH e os androgénios ticóides, pois as doses altas de hidrocortisona
cujo “pico” ocorre durante a noite. No entanto, asseguram estas necessidades.
nas crianças muito activas ou que fazem exercício Há que manter a hidratação endovenosa en-
físico intenso, poderá ser necessário administrar a quanto necessário. Introduzir líquidos per os logo
dose maior de manhã a fim de imitar o ciclo do que possível. Passar a terapêutica oral com hidro-
cortisol. cortisona em dose tripla e fludrocortisona o mais
Nas idades pós-fase de crescimento poder-se-á brevemente possível; manter estas doses altas en-
passar a: dexametasona: 0,25-0,5 mg per os, à noite. quanto se mantiver o estresse agudo.
b) Mineralocorticóide 4 – Da ambiguidade sexual
– 9α-fludrocortisona: A atitude de proceder à intervenção cirúrgica
50-300µg/dia, per os, em 2 tomas nos lactentes; para correção do defeito, respeitando os princípios
836 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
éticos, deverá ser realizada por cirurgião pediátri- co estatural inferior à altura alvo da família; hir-
co e equipa cirúrgica com experiência nestas situa- sutismo importante; acne grave; alterações mens-
ções. Habitualmente opta-se pela feminização. truais; massas testiculares.
A terapêutica é semelhante à descrita atrás:
2. Forma não clássica sem perda de sal hidrocortisona per os em doses de 10-15mg/m2/
Manifestações clínicas dia, dividida em 3 tomas. Não é necessário pro-
Esta forma de apresentação, que não se acompanha ceder a substituição mineralocorticóide.
de perda de sal, corresponde, em geral, a formas Nos doentes em tratamento e em situação de
menos graves de défice enzimático. A hiperesti- estresse agudo dever-se-á também duplicar ou
mulação da glândula pela ACTH permite manter triplicar as doses.
níveis plasmáticos normais de cortisol, à custa do
aumento dos níveis plasmáticos dos precursores.
Manifesta-se tardiamente por pubarca precoce
(aparecimento de pilosidade púbica e / ou axilar
antes dos 8 anos no sexo feminino e 9 anos no sexo
masculino), virilização, hirsutismo peripubertá-
rio, acne quística, amenorreia ou alterações mens-
truais, e infertilidade na mulher adulta; pode
mesmo não haver quaisquer sintomas, sendo esta
forma clínica diagnosticada por investigação da
família no âmbito do diagnóstico de um caso
índice.
Exames complementares
• Radiografia do punho:
– Idade óssea avançada em relação à idade
cronológica
• Análises de sangue:
– Ionograma normal.
– Níveis plasmáticos basais de 17OH-pro-
gesterona elevados. No sexo feminino e
após a menarca, este doseamento deve ser
realizado durante a fase folicular do ciclo.
– Testosterona, Δ4-androstenediona, DHEA
e DHEA-S: valores variáveis e sobre-
poníveis a outras situações.
– PRA ou renina activa normais.
– Prova de estimulação com ACTH* (Syna-
cthen®) se os valores basais dos parâmetros
hormonais atrás referidos não forem con-
clusivos. (Capítulo 176)
Tratamento
Têm indicação para tratamento os casos em
que existe: avanço da idade óssea com prognósti-
176
progressão ponderal, infecções recorrentes, sin-
tomas gastrintestinais (náuseas, vómitos, dor
abdominal, diarreia) e hipoglicémia.
A carência em mineralocorticóides traduz-se
por hipovolémia, hipotensão postural, taquicárdia
e, por vezes, choque. Inicialmente pode apenas
INSUFICIÊNCIA SUPRA-RENAL existir sintomatologia de uma das duas linhas (em
geral da dos glucocorticóides), aparecendo depois
Maria de Lurdes Lopes os sintomas de insuficiência da outra.
Os sinais e sintomas de insuficiência supra-
renal podem instalar-se de forma lenta e progres-
siva, ou de forma aguda (1/3 dos casos). Os sin-
Definição e etiopatogénese tomas da crise aguda são: dor abdominal intensa,
febre, obnubilação, alteração do estado de cons-
A insuficiência supra-renal deve-se, como o nome ciência, desidratação desproporcionada para a
indica, às consequências da incapacidade de pro- perda de líquidos calculada, e colapso cardiocir-
dução de glucocorticóides (cortisol) e/ou, muitas culatório. A crise aguda pode ser precipitada por
vezes, de mineralocorticóides (aldosterona). vómitos, infecção intercorrente banal, trauma-
Pode ser provocada por grande número de tismo, intervenção cirúrgica, estadia em país
situações (congénitas ou adquiridas) as quais po- quente, paragem de corticoterapia prolongada ou
dem ser divididas em dois grandes grupos: não aumento da dose de substituição em situação
primárias quando a causa reside na supra-renal; e de estresse. Habitualmente a evolução é lenta (4
secundárias quando se deve a insuficiente esti- anos, em média); os seus sintomas são vagos e
mulação do córtex supra-renal pela hipófise ante- inespecíficos, o que dificulta o diagnóstico; muitas
rior (ACTH) ou hipotálamo (CRH) (Quadro 1). vezes, o défice crónico só é diagnosticado a poste-
Sob o ponto de vista etiopatogénico, a insufi- riori, se surgir descompensação aguda.
ciência supra-renal primária pode dividir-se em 3 A clínica é também diferente se se tratar de
grandes grupos: disgenésia/hipoplasia da supra- lesão da própria glândula com eixo hipotálamo-
renal que inclui as alterações dos genes SF-1, DAX- hipofisário funcionante, ou se a insuficiência for
1 e receptor de ACTH; destruição da supra-renal secundária. No primeiro caso, a elevação da
por mecanismos auto-imune, infeccioso, hemor- ACTH por falta de retrocontrolo produz hiperpig-
rágico ou adrenoleucodistrofia; alterações da mentação da pele e mucosas que é mais marcada
esteroidogénese por anomalias da síntese de coles- na palma das mãos, pregas de flexão, cicatrizes,
terol (abetalipoproteinémia e síndroma de Smith- mucosa oral, mamilos, escroto e grandes lábios.
Lemli-Opitz); ou por anomalias da síntese de No segundo caso, apenas a linha glucocorticóide
esteróides (hiperplasia congénita da supra-renal). se encontra afectada visto que a secreção de mi-
Na criança, se excluirmos a insuficiência neralocorticóide depende, sobretudo, do sistema
iatrogénica pós-corticoterapia local ou sistémica, a renina-angiotensina-aldosterona.
causa mais frequente é a hiperplasia supra-renal
congénita, já descrita. Por isso serão abordadas as Exames complementares
outras causas de insuficiência. A idade e o sexo da
criança são importantes para o diagnóstico etio- A suspeita clínica obrigará à realização de um con-
lógico (Quadro 2). junto de exames complementares em centro espe-
cializado cujos resultados são orientadores.
Manifestações clínicas
1. Exames auxiliares gerais
A carência em glucocorticóides traduz-se clinica- • Exames de sangue:
mente por: astenia (díficil de valorizar nas crian- – ↓ [Na+], ↑ [ K+], ↓ [Cl–] plasmáticos, poden-
ças), anorexia, cansaço fácil, perda de peso ou má do ser normais fora da crise aguda
838 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Diagnóstico
A suspeita clínica de adrenoleucodistrofia im-
plica a realização dum conjunto de exames com-
FIG. 1 plementares.
Síndroma poliglandular auto-imune do tipo I. Hipoplasia do • Doseamento dos ácidos gordos de cadeia
esmalte dentário e pigmentação da mucosa bucal. muito longa no sangue periférico; nos hete-
CAPÍTULO 176 Insuficiência supra-renal 841
rozigotos os resultados podem ser falsa- A hipoplasia miniatura é uma doença recessi-
mente negativos. va que se acompanha, por vezes, de puberdade
• A confirmação do diagnóstico pode ser feita precoce.
por diagnóstico molecular da mutação do Doença de Wolman
gene; há 550 mutações diferentes identifi- É uma doença metabólica recessiva do metabolis-
cadas, 8 delas em famílias portuguesas. mo do colesterol que se deve ao défice da lipase
• Estudo imagiológico por RMN crânio-ence- ácida lisossómica, enzima que permite a formação
fálica: permite avaliar e seguir ao longo do de colesterol livre utilizável pelas células do
tempo as alterações da substância branca, organismo. É progressiva e fatal. A sintomatologia
existindo mesmo um sistema de quantifi- inicia-se na infância e traduz-se por sintomas de
cação ou índice de gravidade das lesões com perda de sal, de défice glucocorticóide, esteator-
implicações prognósticas. reia e hepatosplenomegália.
• O diagnóstico pré-natal pode ser feito por
doseamento dos ácidos gordos ou pela pes- Síndroma de Smith-Lemli-Opitz
quisa de mutação. Esta síndroma é caracterizada por fácies peculiar,
microcefalia, polegares de implantação externa,
Tratamento cardiopatia congénita, micropénis e fotossensi-
Está em curso um estudo para avaliar a eficá- bildade. Deve-se a alteração da enzima (Δ7-esterol
cia do chamado “óleo de Lorenzo”. redutase) que cataboliza o passo final da síntese
Outra medida que parece ter resultados nos de colesterol. Acompanha-se também de insufi-
doentes já com sintomas é a transplantação de ciência supra-renal.
medula óssea.
Hipoaldosteronismo
Hipoplasia congénita da supra-renal Existem dois tipos de défice exclusivo da linha
A hipoplasia congénita da supra-renal é clinica- mineralocorticóide: a) por défice enzimático de
mente muito semelhante à hiperplasia congénita corticosteronametiloxidase II que leva a incapaci-
da supra-renal: má progressão ponderal, perda de dade de síntese de aldosterona e, consequente-
sal e convulsões causadas por hipoglicémia. mente, com aldosterona baixa e aumento da PRA;
Distinguem-se quatro formas: esporádica, minia- b) por alteração do receptor da aldosterona (pseu-
tura, citomegálica e citomegálica associada a do-hipoaldosteronismo) que cursa com valores
deleção de genes contíguos. elevados de aldosterona. Ambos se traduzem cli-
A chamada hipoplasia citomegálica é uma nicamente por perda de sal.
doença recessiva ligada ao cromossoma X. O gene
(DAX-1), cuja mutação provoca a doença, tem Resistência familiar à ACTH ou défice familiar
uma localização próxima dos genes que codificam de glucocorticóides
o défice de glicerolcinase e a distrofia muscular de Os sinais e sintomas aparecem precocemente e ca-
Duchenne, pelo que estas patologias podem asso- racterizam-se por episódios recorrentes de con-
ciar-se à hipoplasia citomegálica. vulsões e hipoglicémia acompanhados por hiper-
A insuficiência supra-renal inicia-se, em geral, pigmentação exuberante. Existem duas formas: a)
nas primeiras semanas de vida, com má progres- défice isolado; b) défice associado a outras mani-
são ponderal e perda de sal; pode ocorrer deterio- festações da síndroma de Allgrove (a qual é abor-
ração súbita e rápida da função supra-renal, dada a seguir).
pondo em risco a vida do lactente se a perda de sal
não for reconhecida. Acompanha-se de hipogo- Síndroma de Allgrove ou Síndroma dos 3 / 4A
nadismo hipogonadotrófico, traduzido clinica- É uma doença recessiva causada pela mutação de
mente por criptorquidia e atraso pubertário. um gene localizado no cromossoma 12. É caracte-
A forma com deleção de genes contíguos tem rizada pela associação: insuficiência supra-renal,
pior prognóstico que a forma associada a deleção acalasia, alacrimia e alterações neurológicas, em
do gene DAX-1. especial do sistema nervoso autónomo [Adrenal-
842 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
177
cortical insufficiency associated with Achalasia,
Alacrima (3A), Autonomic and other neurologic
abnormalities (4A)].
Há grande variabilidade na idade e na forma
de apresentação. A insuficiência supra-renal é
progressiva e deve-se à insensibilidade à ACTH;
traduz-se por perda de sal, hipoglicémia e con- SÍNDROMA DE CUSHING
vulsões. As manifestações neurológicas são ha-
bitualmente precoces e traduzem-se por hiper- Maria de Lurdes Lopes
reflexia, diminuição da força muscular, disartria,
ataxia, défice de inteligência, diminuição da
variabilidade cardíaca, hipotensão postural,
diminuição do diâmetro e da velocidade de cons- Definição e etiopatogénese
trição pupilar, e diminuição da velocidade de
condução nervosa. Os doentes apresentam fácies A síndroma de Cushing deve-se à produção exces-
característica, hiperqueratose e também cicatriza- siva de cortisol ou outros glucocorticóides. Apesar
ção difícil. de se tratar duma situação rara na criança (é mais
frequente nas crianças com mais de 10 anos), colo-
2. Insuficiência supra-renal secundária ca algumas vezes problemas de diagnóstico dife-
rencial em casos de obesidade, os quais são cada
A insuficiência é, em geral moderada, afectando vez mais frequentes.
apenas a linha glucocorticóide; por vezes, só é As causas da síndroma de Cushing estão
demonstrável pela prova de estimulação da descritas no Quadro 1, sendo mais frequente a
supra-renal. relacionada com administração de corticóides
A insuficiênica supra-renal iatrogénica pode para tratamento de várias doenças. Nas crianças
ocorrer mesmo após a administração de pequenas com mais de 10 anos, a produção excessiva de
doses de corticóide por via cutânea ou inalatória, ACTH por microadenoma hipofisário (doença de
por exemplo com fluticasona ou budesonido, uti- Cushing) é a causa mais frequente da síndroma de
lizados no tratamento preventivo da asma. Cushing não iatrogénica. Nas crianças pequenas,
A terapêutica de substituição e da crise aguda em especial nas crianças com menos de 5 anos, os
é igual à anteriormente pormenorizada para os
casos de formas clássicas de hiperplasia congénita QUADRO 1 – Causas de síndroma de Cushing
da suprarrenal, exeptuando no que respeita à dis-
tribuição das doses de hidrocortisona (a dose 1. Dependente de ACTH
maior deve ser administrada de manhã, a fim de a) Iatrogénica
imitar o ciclo de cortisol). b) Adenoma hipofisário produtor de ACTH (doença de
Cushing)
c) Neoplasia não hipofisária secretora de ACTH
d) Secreção ectópica de CRH
2. Independente de ACTH
a) Iatrogénica
b) Adenoma da supra-renal
c) Carcinoma da supra-renal
3. De etiologia não completamente esclarecida
a) Hiperplasia micronodular da supra-renal ou doença
adrenocortical hiperpigmentada primária: variante
clássica, síndromas de Carney e McCune-Albright
b) Hiperplasia macronodular da supra-renal
CAPÍTULO 177 Síndroma de Cushing 843
Manifestações clínicas
Determinação de ACTH
+
Prova de supressão com doses altas (80µg/kg/dia, 2 dias) de dexametasona com determinação do cortisol plasmático e urinário
antes e depois da administração
+
Prova de estimulação com CRH e determinação da ACTH e cortisol
Micro / macroadenoma
Tumor localizado
FIG. 2
Algoritmo para o diagnóstico etiológico da síndroma de Cushing
Tratamento
178
velocidade de crescimento. Os níveis elevados de
testosterona podem causar alterações do compor-
tamento com irritabilidade, hiperactividade, jogos
e brincadeiras violentas. Podem também manifes-
tar-se como síndroma de Cushing, cujos sinais e
sintomas podem aparecer isolados (5 a 8% dos
TUMORES DO CÓRTEX casos, consoante as séries), ou associados a virili-
zação (30% dos casos). A presença de massa
SUPRA-RENAL abdominal ou pélvica palpável pode ser o único
achado. A hipertensão arterial é frequente mesmo
Maria de Lurdes Lopes sem sintomas de síndroma de Cushing; pode ser
grave, sob a forma de crises hipertensivas com
convulsões.
Excepcionalmente, o tumor produz estrogénios
Importância do problema (tumor feminizante), manifestando-se neste caso,
como puberdade precoce periférica no sexo femi-
Os tumores do córtex supra-renal são raros, cons- nino, e ginecomastia no sexo masculino. Em cerca
tituindo menos de 0,5% dos tumores na idade pe- de 10% dos casos, não há quaisquer sintomas de
diátrica. A sua incidência é cerca de 0,3/1.000.000 hiperprodução hormonal. Por vezes a doença
crianças com menos de 15 anos; a taxa mais elevada passa imperceptível, tendo a criança um aspecto
verifica-se na região sul do Brasil (3 – 4/1.000.000 de saudável apesar dos sintomas de virilização.
crianças com menos de 15 anos). Estes tumores são Assim, qualquer criança com menos de 4 anos
mais frequentes no sexo feminino, em crianças com e pubarca precoce, ou lactente com acne, deverá
menos de 5 anos e associados às seguintes situações: ser estudado no sentido de excluir a presença de
hemi-hipertrofia isolada, síndromas de Beckwith- tumor da supra-renal.
Wiedemann, Carney, Li-Fraumeni*, neoplasias en-
docrinológicas múltiplas, defeitos congénitos das Exames complementares
vias urinárias, hamartomas, hiperplasia congénita
da supra-renal e tumores cerebrais. Os níveis das hormonas produzidas podem tam-
Têm sido encontradas mutações no gene supressor bém ser muito variados; os resultados dos dosea-
tumoral p53 (ao nível do cromossoma 17p13.1) em mentos hormonais podem situar-se no limite supe-
doentes com carcinoma adrenocortical. rior para a idade. Face à suspeita clínica, é aconse-
lhável proceder a doseamentos múltiplos e exames
Manifestações clínicas imagiológicos no sentido de esclarecer a situação:
– O aumento nítido dos níveis plasmáticos de
Os tumores do córtex da supra-renal podem pro- DHEA-S (>600µg/dL) e de 17-cetoesteróides
duzir diversas hormonas, o que condiciona for- urinários é muito sugestivo de tumor da supra-
mas de apresentação clínica muito heterogéneas. renal. No entanto, o aumento da DHEA-S pode
Na maioria dos casos existem sinais exube- não ser tão exuberante.
rantes de virilização, de aparecimento recente: voz – Aumento do cortisol urinário e plasmático,
grave, aumento de volume do clítoris ou do pénis perda do ritmo circadiano do cortisol, ↑ testosterona,
com testículos pequenos, pilosidade púbica e axi- ↑ Δ 4-androstenediona, ↑ estradiol e ↓ ACTH nos
lar, acne, odor corporal, hirsutismo explosivo, casos com sintomas de síndroma de Cushing.
aumento das massas musculares e aceleração da – Nos casos de virilização: ↑↑ testosterona
(>350ng/mL no sexo feminino), ↑ Δ 4-androstene-
* A síndroma de Li-Fraumeni integra situações de cancro familiar asso- diona e ↑ 17-hidroxiprogesterona.
ciadas a mutações no gene p53, supressor tumoral. Compreende largo – Se houver feminização: ↑↑ estrona e ↑↑ estra-
espectro de neoplasias malignas em familiares do 1º grau incluindo
cancro da mama, tumor cerebral, sarcoma dos tecidos moles, carcino-
diol.
ma adrenocortical, etc.. A não supressão do cortisol e outros metaboli-
846 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
tos como a dexametasona é constante e diagnóstica: Perheentupa J. APS-I/APECED: the clinical disease and thera-
testosterona livre >8pg/mL, DHEA-S> 70µg/dL e py. Endocrinol Metab Clin North Am 2002; 31: 295-320
cortisol >3µg/dL. Pescovitz OH, Eugster EA. Pediatric Endocrinology: Mecha-
– Avanço da idade óssea em relação à idade nisms, Manifestations, and Management. Philadelphia:
cronológica. Lippincott Williams & Wilkins, 2004
Os exames de imagem (TAC / RMN abdomi- Pombo MA. Tratado de Endocrinologia Pediatrica. Madrid:
nal, ecografia) permitem a confirmação da loca- Ediciones Diaz de Santos, 1997.
lização do tumor. Ribeiro RC, Figueiredo B. Childhood adrenocortical tumours.
Para caracterizar o estádio de evolução há que Eur J Cancer 2004; 40: 1117-1126
proceder a radiografia do tórax, TAC torácica e Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
cintigrafia óssea. (Capítulo 128) AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
Medical , 2011
Tratamento Sanches SA, Wiegers TA, Otten TA, et al. Physical,social and
societal functioning of children with congenital adrenal
O tratamento é cirúrgico: ablação seguida even- hyperplasia(CAH) and their parents, in a Dutch popula-
tualmente de quimioterapia. tion. International Journal of Pediatric Endocrinology 2012;
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Prognóstico Speiser PW, White PC. Congenital adrenal hyperplasia. NEJM
2003; 349: 776-788
São factores de bom prognóstico: Sperling M. Pediatric Endocrinology. Philadelphia, PA:
• Sinais isolados de virilização Saunders/Elsevier, 2008
• Idade inferior a 3 anos e meio Ten S, New M, Maclaren N. Addison‘s disease 2001. J Clin
• Pressão arterial normal Endocrinol Metab 2001; 86: 2909-2922
• Intervalo de tempo, entre o primeiro sintoma
da doença e o diagnóstico, inferior a 6 meses
• Tumor pequeno (<200g), completamente
ressecado (o mais importante)
• Doença localizada
• Diagnóstico histológico de adenoma
• Normalização dos níveis hormonais após a
intervenção ablativa.
Manifestações clínicas
Nos casos de neuroblastoma excretam-se Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
igualmente metabólitos das catecolaminas, (sobre- Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier
tudo dopamina e ácido homovanílico) mas não se Saunders, 2011
verifica hipertensão. Nordstrom-O’Brien M, Van der Luijt RB, van Rooijen E, et al.
Para a localização do tumor estão indicados Genetic analysis of von Hippel-Lindau disease. Hum Mut
diversos estudos imagiológicos a seleccionar em 2010; 31:521-537
função do contexto clínico: ecografia, tomografia Prys – Roberts C. Pheochromocytoma – recent progress in its
computadorizada com emissão de positrões management. BJ Anaesth 2000; 85: 44-57
(PET), ressonância magnética, pielografia intra- Ross JH. Pheochromocytoma: Special considerations in chil-
venosa, cintilografia com MIBG (meta-iodo-ben- dren. Urol Clin North Am 2000; 27: 393-402
zil-guanidina), etc.. Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
Diagnóstico diferencial Medical , 2011
Sperling M. Pediatric Endocrinology. Philadelphia, PA:
A hipertensão obriga a estabelecer o diagnóstico Saunders/Elsevier, 2008
diferencial com outras situações tais como: doença
renovascular, coarctação da aorta, hipertiroidis-
mo, défice de 11-β hidroxilase, de 17-α hidroxi-
lase, de desidrogenase de 11-β hidroxisteróide,
aldosteronismo primário, tumores adrenocorti-
cais, porfíria, disautonomia familiar, etc..
Tratamento
BIBLIOGRAFIA
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CAPÍTULO 180 Doenças da tiroideia 849
180
último é responsável pela transcrição de uma pro-
teína da membrana das células foliculares cuja
função é importar, simultaneamente, iodo e sódio
do meio extracelular (sangue) para o meio intra-
celular.
O iodo é um elemento fundamental para a sín-
DOENÇAS DA TIROIDEIA tese de hormonas tiroideias, sendo o sódio utiliza-
do como instrumento para as bombas de sódio
Catarina Limbert geradoras de energia, necessária para a entrada do
iodo.
Eis algumas etapas fundamentais do desen-
volvimento tiroideu: pela 8ª semana, inicia-se a
Importância do problema síntese de Tg; captação de iodo às 10 semanas; e
formação de colóide e tiroxina (T4) pela 12ª sema-
A tiroideia e as hormonas tiroideias (HT) têm um na de gestação.
papel crucial na mielinização do sistema nervoso A normal morfogénese e migração da glându-
central (SNC), na regulação do crescimento, no la tiroideia são independentes do eixo hipotála-
metabolismo e na função de múltiplos órgãos. mo-hipofisário. Este inicia a sua função, com pro-
As crianças, em especial o recém-nascido e o dução de TSH fetal pelas 12 semanas. No meio da
lactente, são extremamente vulneráveis às alte- gestação, cerca das 20 semanas, os valores de TSH
rações da função tiroideia. O diagnóstico e trata- elevam-se na circulação fetal, traduzindo matu-
mento precoces são, nestas idades, essenciais para ração e independência do eixo materno e, como
prevenir consequências irreversíveis tais como a consequência, elevação da tiroxina. No entanto,
lesão permanente do SNC e o atraso do desen- devido à elevada actividade da tiroxina – deioni-
volvimento psicomotor e neuro-sensorial. dase no SNC e fígado fetal, e placenta, durante a
As doenças da tiroideia representam, sem gravidez os níveis de T3 e T4 fetais mantêm-se
dúvida, as afecções endócrinas mais frequentes na baixos e os níveis de rT3 fetal elevados.
idade pediátrica, sendo a sua etiologia e apresen- Por outro lado, as hormonas tiroideias mater-
tação clínica muito diferentes das do adulto, o que nas são transferidas de forma maciça para o feto.
implica idealmente uma abordagem, pelo pedia- O desenvolvimento fetal normal, bem como o
tra com experiência em endocrinologia. subsequente desenvolvimento neuropsicológico
após o nascimento, dependem das hormonas
Ontogénese e fisiologia tiroideias maternas, estando aqueles comprometi-
dos em casos de hipotiroidismo materno.
O primeiro esboço embrionário da glândula tiroi- Após o nascimento, observa-se a seguinte
deia surge pelo vigésimo dia de gestação como evolução: A TSH sobe 30 minutos após o parto
um espessamento endodérmico da linha média. A (resultado do estresse e arrefecimento) até valores
partir desta fase, a glândula vai progredindo por de 60-80 mU/mL. Esta elevação de TSH é segui-
migração caudal até à sua posição final, pré-tra- da por um marcado aumento da T3 e T4, que
queal. atingem valores de hipertiroidismo às 24 horas de
Simultaneamente, enquanto a migração da vida (T4 : 15-19 mcg/dL) – “Hipertiroidismo fisio-
glandula tiroideia embrionária ocorre, as células lógico”. Como consequência, e através de meca-
foliculares e parafoliculares vão-se diferenciando. nismo de retroacção negativo, a TSH diminui ao
Para isso, é fundamental a expressão correcta dos longo da primeira semana de vida, descendo pro-
genes responsáveis pela síntese das hormonas gressivamente até valores de 8 mU/mL.
tiroideias e paratiroideias. Desses genes, os mais É, pois, fundamental ter em consideração estas
importantes são, sem dúvida, o gene da TSH, da variações hormonais perinatais na avaliação da
tiroglobulina (Tg), da tiroperoxidase (TPO) e do função tiroideia, tanto em recém-nascidos de
chamado natrium – iodine symporter – NIS. Este termo como pré-termo. Uma interpretação errada
850 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
dos valores pode induzir falsos diagnósticos de tação de tirotrofina hipofisária ou tirostimulina
hipertiroidismo ou falha na detecção do hipo- (TSH ou thyroid stimulating hormone). Esta, ligan-
tiroidismo. Os valores de referência para as HT do-se ao receptor da TSH na glândula tiroideia,
estabelecidos de acordo com a idade e sexo, são estimula a produção e libertação de L-tiroxina (T4)
valiosos instrumentos na abordagem clínica da e em menor quantidade de tri-iodotironina (T3). O
função tiroideia da criança e adolescente. sistema de retroacção negativo regula os níveis
Neste capítulo são abordadas sucintamente as séricos de HT.
afecções tiroideias com as quais o pediatra e clíni- Por convenção, o hipotiroidismo é classificado
co geral mais frequentemente se defrontam. de acordo com a localização da lesão no eixo
hipotálamo-hipofisário (Quadro 1). Consideram-
-se as seguintes situações: primário (causa tiroi-
deia) ou secundário (causa central); congénito ou
1. HIPOTIROIDISMO adquirido; e transitório ou permanente. A resis-
tência periférica às HT é rara, sabendo-se que cor-
Definição e etiopatogénese responde, na maior parte das vezes, a mutações
nos genes dos receptores periféricos da T3. Neste
O hipotiroidismo é uma entidade clínica resul- caso o eixo está intacto (provas de TRH e TSH
tante da síntese de HT (em quantidade ou quali- estão normais), e os valores de HT estão muitas
dade) inadequada às necessidades do organismo. vezes normais.
A síntese de HT requer uma glândula tiroideia Relativamente ao hipotiroidismo congénito
com desenvolvimento normal, um eixo hipo- primário, a grande maioria corresponde a situa-
tálamo – hipofisário funcionante e uma captação ções esporádicas, exceptuando os erros da síntese
de iodo adequada. hormonal – disormonogénese – que são situações
A TRH (thyrotropin releasing hormone ou hor- de transmissão hereditária autossómica recessiva.
mona tirotrópica ou libertadora da tirotrofina) e a Recentemente demonstrou-se que alguns casos de
somatostatina* hipotalâmicas controlam a liber- disgenésia da tiroideia estão associados a muta-
ções em genes envolvidos no desenvolvimento da
tiroideia (TTF1, TTF2, PAX 8 e o gene do receptor
* A somatostatina ou SRIF – Somatotropin release inhibiting factor –
diminui a concentração plasmática da hormona do crescimento (GH)
da TSH). O modo de transmissão pode ser
ou somatotrofina, e suprime a libertação de TSH. autossómico dominante ou autossómico recessi-
CAPÍTULO 180 Doenças da tiroideia 851
apenas 50% das crianças com doença de Graves. Os Ac TSI, TBII e TPO são detectáveis em 80%
Inclui protusão do globo ocular, retracção da dos doentes com doença de Graves, não o sendo
pálpebra e, mais raramente, quemose, visão dupla nos raros casos de hipertiroidismo não autoi-
e dor ocular. (Figura 2) mune. Não há consenso quanto ao significado da
O recém-nascido (RN) com hipertiroidismo presença e títulos de Ac tirostimulantes e blo-
congénito apresenta características específicas queantes como indicadores de prognóstico.
salientando-se: prematuridade ou baixo peso, irri- Suspeitando-se do nascimento de feto com hi-
tabilidade, má progressão ponderal ou excessiva pertiroidismo congénito, os doseamentos das HT,
perda de peso (apesar do apetite muitas vezes TSH e Ac devem ser feitos a partir de sangue do
voraz), dificuldade em adormecer ou descansar. cordão umbilical.
Existe também taquicárdia, febrícula, e hipersu- No hipertiroidismo, a ecografia revela um
dorese. O aumento de volume da glândula tiroi- aumento difuso da glândula com ecogenecidade
deia é visível, provocando muitas vezes dificul- não homogénea e sinais de perfusão aumentada
dade respiratória por compressão traqueal. Se a na modalidade de Doppler.
causa for a doença de Graves neonatal, pode exis- A cintigrafia da tiroideia deve realizar-se ape-
tir protusão ocular. Quando o diagnóstico não é nas em doentes com nódulos detectados através
feito atempadamente na primeira infância pode da ecografia, para detecção de nódulos funcio-
surgir craniossinostose prematura, situação grave nantes.
que obriga a intervenção cirúrgica correctiva.
Tratamento
Exames complementares
O tratamento da doença de Graves pode ser médi-
O diagnóstico laboratorial do hipertiroidismo é co ou cirúrgico, sendo previsíveis complicações e
feito pelo doseamento de T3 e T4 livres ou totais e efeitos secundários.
TSH séricos. Os valores das HT estão elevados O tratamento médico utiliza 3 tipos de
para a idade e sexo, observando-se no início da antiroideus em alternativa – metimazol, carbami-
doença uma subida maior da T3 em relação à T4. zol e propiltiuracilo – todos actuando a nível da
A TSH é tipicamente indoseável, exceptuando nos formação de HT, inibindo a incorporação de iodo
casos de hipertiroidismo por excesso de produção nos resíduos de tirosina e tiroglobulina. Podem
de TSH. provocar efeitos secundários - exantema, granu-
locitopénia, hepatite e artrite.
A dose do metimazol e carbimazol é 0,5 a 1
mg/kg/dia em toma única.
O propiltiuracilo requer uma dose 10 vezes
superior, dividida em 3 tomas diárias dada a sua
curta semi-vida. Este último é, no entanto, o anti-
tiroideu de eleição em duas situações: na grávida
– pois atravessa em menor escala a barreira pla-
centária – e no início do tratamento, especialmente
em casos graves, já que é a única droga que actua
também a nível periférico, inibindo a conversão
de T4 em T3.
Os beta bloqueantes – propranolol (1mg/kg/
dia), bem como a dexametasona, podem ser uti-
lizados no início da terapêutica, para alívio dos
sintomas do sistema nervoso autónomo e para
promover o bloqueio periférico da conversão de
FIG. 2 T4 em T3, enquanto os antitiroideus ainda não
Fácies de hipertiroidismo: protusão dos globos oculares. tenham originado efeito.
856 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
O tratamento médico com os fármacos referi- com a função tiroideia, inibindo a síntese de hor-
dos deve ser interrompido ao fim de 2 anos, sendo monas.
a frequência de recidivas muito elevada (cerca de Os bociogénicos mais comuns incluem os anti-
60-70% dos casos) e a possibilidade de remissão tiroideus, os iodetos e o lítio, alimentos contendo
muito reduzida. tiocianatos tais como as couves, couve-flor, couves
A cirurgia, contrariamente à terapêutica medi- de Bruxelas, mandioca e soja, etc..
camentosa, permite níveis de cura de cerca de 90%, Mais raramente, surgem a secreção hipotalâmi-
revertendo rapidamente o hipertiroidismo. Im- ca ou hipofisária aumentadas (ex. adenoma da
plica, no entanto, um processo cirúrgico extrema- hipófise ou resistência hipofisária às HT). Com fre-
mente complexo que pode resultar em hipo- quência, a estimulação da glândula tiroideia deve-
tiroidismo permanente, hipoparatiroidismo ou dis- se à presença de autoanticorpos contra o receptor
fonia devido à lesão do nervo recorrente. Está indi- da TSH (ou TSI) como é o caso da doença de
cada em doentes com complicações importantes do Graves.
tratamento médico, nódulos funcionantes, e RN O bócio por infiltração deve-se fundamental-
com hipertiroidismo congénito não familiar, grave. mente a neoplasias (adenoma ou carcinoma) ou
O tratamento com iodo radioactivo (I131) é lar- processos não neoplásicos (quistos). Na criança e
gamente utilizado nos Estados Unidos. O seu índi- adolescente, a neoplasia da tiroideia surge como
ce de cura é ~ 90%, sendo o menos dispendioso para nódulo único isolado.
o tratamento da doença de Graves. No entanto é A inflamação por agentes infecciosos (bac-
potencialmente carcinogénico, o que foi recente- térias, vírus ou fungos) pode causar tiroidite
mente confirmado após a catástrofe de Chernobyl. aguda ou subaguda bem como tiromegália. No
Por esta razão, para muitos autores está contra-indi- entanto, a infecção da glândula tiroideia é uma
cado em crianças; pode, contudo, ser considerado situação extremamente rara na criança. A causa
em jovens com bócio de grandes dimensões mas mais frequente de inflamação é a tiroidite lin-
sem oftalmopatia e com má resposta à terapêutica focítica autoimune, a variante do bócio mais co-
farmacológica. nhecida como tiroidite de Hashimoto. Esta
endocrinopatia é considerada a mais frequente
causa de bócio na criança em regiões de bócio
3. BÓCIO não endémico. O aumento de volume da tiroideia
é causado pela infiltração linfocítica que pode ser
Definição e etiopatogénese difusa ou nodular levando, neste último caso, a
dificuldades no diagnóstico diferencial com tu-
O bócio ou tiromegália define-se como o aumento mores da tiroideia.
de volume da glândula tiroideia para além dos A lesão celular tiroideia é explicada sobretudo
limites normais para a idade, independentemente por: mecanismos de citotoxicidade de mediação
da etiologia e da função tiroideia. celular; e citotoxicidade directa através de linfóci-
A elevada incidência de haplótipos do HLA tos T sensibilizados, associada à produção de cito-
DR3, DR4 e DR5 traduzem uma componente cinas tóxicas celulares.
genética da doença, mais frequente no sexo femi- Os factores etiológicos de bócio na infância são
nino (3/1). múltiplos (Quadro 5). Os bócios podem ser difusos
O aumento da glândula pode ocorrer como ou nodulares, independentemente da função. De
consequência de mecanismos de estimulação, de notar que, em regra, o bócio começa por ser difuso,
infiltração e/ou de inflamação. evoluindo posteriormente para nodular.
A estimulação é habitualmente resultado do Praticamente erradicado dos Estados Unidos e
excesso de TSH devido a um defeito da hor- da Europa, o défice de iodo é, como foi referido
monogénese (por exemplo défice de iodo, a maior antes, a maior causa de bócio a nível mundial,
causa a nível mundial). sendo as regiões montanhosas da América do Sul
Salienta-se o papel dos bociogénicos, substân- e Ásia Central, as de maior prevalência (regiões de
cias químicas, drogas ou alimentos que interferem bócio endémico).
CAPÍTULO 180 Doenças da tiroideia 857
Bócio difuso
Autoimune
Tirotoxicose
Doença de Graves
Adenoma produtor de TSH
Resistência hipofisária às HT
Ingestão de iodo, antitiroideus, alimentos bocigénicos
Défice de iodo
Disormonogénese familiar
Tiroidites: subaguda, supurada (vírica, bacteriana)
Bócio idiopático simples
Bócio nodular*
Tiroidite de Hashimoto
Quisto tiroideu
Doença de Plummer (bócio “tóxico” uninodular)
Tumor tiroideu
Adenoma funcionante (nódulo quente)
Adenoma não funcionante (nódulo frio)
Carcinoma
* Diagnóstico diferencial de bócio nodular com massas não FIG. 3
tiroideias (adenopatia, quisto do canal tiroglosso) Bócio observado de perfil.
urinária de iodo inferior a 50 µg/g de creatinina. puberdade, uma vez que num número significati-
A ecografia da tiroideia revela aumento de volu- vo de casos se observa remissão completa da
me da glândula com ecogenicidade heterogénea. tiroidite de Hashimoto. De referir que cerca de
Na presença de bócio, o doseamento de Ac (TPO e 10% dos doentes com tiroidite autoimune com
Tg) para a detecção de doença autoimune da função tiroideia conservada evoluem secundaria-
tiroideia é uma regra. No bócio simples o dosea- mente para hipotiroidismo, razão pela qual anual-
mento de Ac é negativo. Cerca de 40 % a 70% dos mente se deve proceder a uma avaliação funcional
pacientes apresentam Ac antiTg positivos, cujo da tiroideia. Nestes casos a doença tem um carác-
significado não está ainda esclarecido. ter permanente e não transitório.
O diagnóstico de tiroidite linfocítica é feito pela
detecção de Ac antitiroideus circulantes, nomeada-
mente Ac antitiroglobulina (Tg) e Ac antitiroperoxi- 4. NÓDULOS ISOLADOS
dase (TPO), e pela avaliação funcional da tiroideia. DA TIROIDEIA
A ecografia revela sinais de glândula aumentada de
volume com reduzida ecogenecidade. Importância do problema
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Medical , 2011 Puberdade é a fase do desenvolvimento físico du-
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comes in congenital hypothyroidism: comparison of initial secundários e os indivíduos se tornam fisiologica-
T4 dose and time to reach target T4 and TSH. J Pediatr 2005; mente capazes de se reproduzir, ou seja, sexual-
147: 775-780 mente maduros.
Van Vliet G, Polak M (eds). Thyroid Gland Development and A idade de início da puberdade tem grande
Function. Basel: Karger, 2007 variabilidade, quer entre indivíduos de grupos
Vaz Osório R, Vilarinho L. Programa Nacional de Diagnóstico étnicos diferentes, quer entre indivíduos do
Precoce. Relatório 2011. Lisboa: INSA, 2012 mesmo grupo.
Dum modo geral, pode afirmar-se que existem
distintamente mecanismos que regulam o início
da puberdade, e factores que afectam a idade do
seu início. Entre estes últimos destacam-se a here-
ditariedade, as influências ambientais e as condi-
ções socioeconómicas. Quanto aos mecanismos
que regulam o início da puberdade, grandes hia-
tos ainda permanecem, apesar dos progressos no-
táveis alcançados nas últimas décadas. Em
condições normais de saúde tomada no sentido
lato, pode dizer-se que a idade de início da puber-
dade é determinada sobretudo por factores
genéticos.
Dois processos independentes mas habitual-
mente associados são responsáveis pelo aumento
da secreção dos esteróides sexuais que determi-
nam as alterações físicas e biológicas que ocorrem
durante a puberdade. O primeiro, a adrenarca,
corresponde ao aumento da secreção dos andro-
génios da suprarrenal (SR), precedendo em cerca
de dois anos o segundo, a gonadarca, consequên-
cia da reactivação do eixo hipotálamo-hipófise –
gónada.
CAPÍTULO 181 Puberdade normal e patológica 861
O desenvolvimento inicial da mama pode ser crescimento rápido, o começo da puberdade mas-
assimétrico, e até mesmo unilateral durante culina, inicia-se numa idade variável, entre os 10 e
alguns meses. os 14 anos, em média pelos 12 (de referir que o
O aparecimento do pêlo púbico é, regra geral, volume testicular deve ser determinado por com-
simultâneo com o desenvolvimento mamário, paração com o orquidómetro de Prader).
mas pode ser ligeiramente antecipado ou retarda- O pénis começa a aumentar de tamanho cerca
do. de 1 ano após o aumento do volume testicular,
O intervalo entre o começo da puberdade e a quando acelera a VC, a qual atinge o seu “pico”
primeira menstruação (menarca) é variável, mas pelos 14 anos (correspondendo ao estádio 4 de
demora, em média, 2 anos. Tanner para o desenvolvimento genital).
Depois da menarca a rapariga cresce entre 4 a É também, nesta idade que ocorre em geral a
6 cm, durante um período que varia de 1 a 2 anos. mudança de voz pelo aumento do comprimento
A utilização da ecografia permite observar o das cordas vocais e da espessura da laringe e car-
desenvolvimento dos órgãos internos. O útero tilagem cricóide.
passa duma posição crânio-caudal durante a O pêlo facial aparece cerca de 3 anos depois do
infância, para uma posição de anteversão no final pêlo púbico.
da puberdade; o miométrio alarga-se, passando
da forma de gota pré-púbere em que o colo e o Atraso pubertário e hipogonadismo
istmo perfazem 2/3 do seu volume, para a forma
de pêra em que o corpo é maior que o colo. O Definição e importância do problema
ovário tem em média um volume de 0,5 cm3 na Define-se atraso pubertário como a ausência de
infância e, quando ultrapassa 1 cm3, é sinal de que qualquer sinal de puberdade na idade em que
a puberdade começou. Durante a puberdade, o 97% da população de determinada área geográfi-
seu volume aumenta rapidamente para um volu- ca a inicia. Dum ponto de vista prático considera-
me médio de 4 cm3. A morfologia normal que se se que a rapariga tem atraso pubertário quando
encontra na infância e no início da puberdade é a não se tenha iniciado o desenvolvimento mamário
que se denomina multiquística: 4-10 folículos de aos 13 anos de idade; e que o rapaz o apresenta
4-10 mm de diâmetro, sem aumento do estroma. quando não se tenha alcançado um volume testi-
Na fase fértil os folículos têm uma distribuição cular de 4 cm3 aos 14 anos de idade.
periférica. O termo amenorreia primária usa-se para
A puberdade feminina está completa cerca de definir a ausência de menarca (primeira menstrua-
4 anos após o seu começo, mas a estabilidade dos ção) aos 16 anos.
períodos menstruais ( em média 28 dias, variando O atraso pubertário pode classificar-se em 2
em 90% das mulheres entre 22 e 40 dias) acontece grandes grupos relacionados respectivamente com:
apenas pelo final do 5º ano ginecológico. – hipogonadismo hipogonadotrófico (causado
por insuficiência hipotálamo/hipofisária
Puberdade masculina com secreção deficiente de gonadotrofinas);
No rapaz, o aumento do tamanho do testículo – hipogonadismo hipergonadotrófico (causado
(volume maior que 3 cm3 ou eixo maior superior a por insuficiência primária das gónadas, com
2,5 cm) constitui a primeira evidência física do secreção elevada de gonadotrofinas, por perda
começo pubertário, mas o pêlo é, regra geral, a do retrocontrolo negativo). (Quadros 1 e 2). Ver
primeira transformação notada. Glossário geral e Parte III
A idade média de aparecimento do pêlo púbi-
co no sexo masculino corresponde aos 12 anos, Manifestações clínicas
mas nalguns casos já é evidente pelos 9. A causa mais frequente de atraso pubertário é
Os testículos crescem lentamente entre os 6 e uma variante extrema da normalidade, descrita
os 10 anos, mas, a partir desta idade fazem-no por Wilkins em 1950, o chamado atraso constitu-
duma forma rápida à medida que a estimulação cional de crescimento e desenvolvimento.
das gonadotrofinas se intensifica. Esta fase de Tal situação resulta duma reactivação tardia do
CAPÍTULO 181 Puberdade normal e patológica 863
Congénito Congénito
Défice isolado de GnRH Anomalias dos cromossomas sexuais
Idiopático – Síndroma de Klinefelter
Síndroma de Kallmann – Síndroma de Turner
Défice isolado de LH – Disgenésia gonadal mista
Défice isolado de FSH Anomalias do desenvolvimento das gónadas
Pan-hipopituitarismo – Síndroma de regressão testicular
Defeitos da linha média – Disgenésia ovárica
Associado a anomalias cromossómicas Associado a síndromas polimalformativas
Associado a síndromas polimalformativas – Síndroma de Noonan
– Síndroma de Prader-Willi – Síndroma de Robinow
– Síndroma de Laurence-Moon-Biedl – Síndroma de Cockayne
– Associação CHARGE – Síndroma de Werner
Outros – Síndroma de Rothmund-Thomson
Adquirido Anomalias da síntese e/ou da acção dos esteróides sexuais
Causas orgânicas Outros
– Tumores do sistema nervoso central Adquirido
– Histiocitose Castração cirúrgica ou traumática
– Granulomatose Pós-quimioterapia
– Pós-infeccioso Pós-radioterapia
– Pós-traumático Pós-infeccioso
– Pós-radioterapia
Causas funcionais
– Desnutrição
narca estão atrasadas, mas estes jovens irão
– Doenças crónicas (gastrintestinais, hematológicas,
alcançar de forma espontânea a sua maturação
renais, metabólicas, fibrose quística, etc.)
sexual e uma estatura adequada à estatura fami-
– Síndroma de imunodeficiência adquirida (SIDA)
liar. Parece haver hereditariedade multifactorial.
– Diabetes mal controlada
O diagnóstico diferencial do atraso pubertário
– Distúrbios hormonais (hipotiroidismo, doença de
faz-se por vezes com o hipogonadismo hipogo-
Cushing, hiperprolactinémia)
nadotrófico definitivo, e o da baixa estatura com o
– Alterações do comportamento alimentar
défice de hormona de crescimento (GH).
– Exercício físico excessivo
Embora o atraso constitucional seja considera-
– Estresse psicológico continuado
– Drogas
do uma variante do normal, por vezes os jovens
podem requerer terapêutica por curtos períodos e
em doses baixas com esteróides sexuais, quer pelo
estresse psicológico que manifestam, quer pelos
eixo, com consequente hipogonadismo hipogo- efeitos benéficos que essa terapêutica terá na
nadotrófico (transitório); é muito mais frequente aquisição de massa mineral óssea.
no rapaz que na rapariga. Dos hipogonadismos hipogonadotróficos
Caracteriza-se por: congénitos, o défice isolado de GnRH é o mais fre-
• Atraso de crescimento estatural quente; quando se associa a anosmia tem o nome
• Atraso de idade óssea (IO) de síndroma de Kallman.
• Atraso pubertário Não pode, contudo, esquecer-se que os tu-
• História familiar frequente mores ou quistos na região hipotálamo-hipofisária
podem revelar-se, quer por puberdade precoce,
O atraso de crescimento é harmónico e está de quer por atraso pubertário, alguns deles perma-
acordo com a IO. Tanto a gonadarca como a adre- necendo silenciosos por longos períodos.
864 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
O atraso pubertário aparece num vasto grupo aparição dos caracteres sexuais secundários numa
de doenças sistémicas tais como a insuficiência idade cronológica inferior em 2,5 desvios-padrão
renal crónica, doença inflamatória intestinal, (DP) em relação à média da população. A de-
fibrose quística, etc.; não só a situação de atraso finição clássica considera PP a que aparece antes
pubertário, como a paragem da puberdade já ini- dos 8 anos na rapariga e 9 anos no rapaz, com base
ciada, obrigam a investigá-las. nos estudos de Marshall e Tanner. Um estudo de
Na sua forma congénita, as entidades mais 1997 realizado nos EUA redefiniu a idade normal
importantes como causa de hipogonadismo hi- de aparecimento dos caracteres sexuais secun-
pergonadotrófico são, pela sua frequência, a sín- dários: para os 6 anos na rapariga de raça negra e
droma de Klinefelter no sexo masculino, e a sín- 7 anos para a de raça branca, mantendo os 9 anos
droma de Turner no sexo feminino. para os rapazes. No entanto, alguns consideram
Os jovens que se apresentam com atraso pu- incorrecto considerar normal o começo da puber-
bertário requerem anamnese e observação por- dade feminina entre os 6 e os 8 anos, pela possi-
menorizadas para exclusão das muitas causas físi- bilidade de conduzir à não identificação de situ-
cas e funcionais responsáveis por esta situação. ações que comportam morbilidade e têm indi-
cação terapêutica.
Exames complementares A PP é muito mais frequente na rapariga que
Os exames complementares laboratoriais e imagio- no rapaz.
lógicos iniciais devem ser orientados pelos acha- De um modo geral as situações clínicas que
dos clínicos; mas, na ausência de achados clínicos causam PP podem classificar-se: como dependen-
relevantes, há que ter em conta todas as situações tes das gonadotrofinas ou PP central (PPC); e
que podem ser causa de atraso pubertário, o que independentes das gonadotrofinas ou PP perifé-
implica elevado índice de suspeita. rica (PPP). (Quadros 3 e 4) A causa mais frequente
Assim, o exame através da ressonância ma- de PP independente da GnRH é a síndroma de
gnética nuclear (RMN) cerebral com incidência na McCune – Albright (Capítulo 180).
área hipotálamo-hipofisária, a ecografia pélvica A PPC pode ser primária (idiopática), ou
na rapariga, o cariótipo, os marcadores para as secundária (orgânica). Em cerca de 70% dos casos
doenças celíaca e inflamatória do intestino, fibrose a PPC é idiopática, sendo também esta forma a
quística, etc., devem ser tidos em consideração em mais comum na rapariga (cerca de 95% dos casos).
função de cada caso particular na avaliação dum No rapaz, pelo contrário, mais de 50% dos casos
atraso pubertário. (Capítulos 91 e 112) são secundários a um processo orgânico.
QUADRO 3 – Puberdade precoce central tais casos de raparigas com baixa resposta de LH,
poderá demonstrar-se PP de causa central se o
Idiopática valor for superior a 50 pg/mL cerca de 20-24 horas
Esporádica após estimulação com leuprolido.
Familiar De acordo com a hipótese diagnóstica mais
Orgânica provável, outros doseamentos poderão ser incluí-
Tumores e lesões do sistema nervoso central (SNC) dos na primeira abordagem: estradiol, cortisol,
Traumatismos crânio-encefálicos TSH e 17-hidroxiprogesterona (17-OHP) basal e a
Irradiação do crânio sua resposta ao teste de ACTH (para estudo da
Associada a PPP inicial causa mais frequente de PPP – a forma não clássi-
ca de HCSR por défice de 21-hidroxilase), níveis
de hCG, CEA ou chorion embrionary antigen e α-
QUADRO 4 – Puberdade precoce periférica fetoproteína (marcador de determinados tumores
isossexual secretores), etc..
A radiografia do punho para determinação de
Rapaz IO (avançada), a lateral do crânio (que poderá
– Hiperplasia congénita da supra-renal (SR) mostrar calcificações da região supra-selar, altera-
– Tumores virilizantes ( da supra-renal ou do testículo) ções da sela turca ou aumento da radiodensidade
– Testotoxicose dos ossos da base – síndroma de Mc Cune
– Tumores produtores de hCG (gonadotrofina coriónica Albright), e o estudo pela RMN, o meio auxiliar
humana) mais sensível para diagnosticar lesões do sistema
– Síndroma de Mc Cune – Albright nervoso central, são meios auxiliares de diagnósti-
– Hipotiroidismo grave co importantes. É importante não esquecer que cer-
Rapariga tos tumores hipotalâmicos como o hamartoma
– Quistos e tumores ováricos secretores de estrogénios podem permanecer silenciosos por longos perío-
– Tumores feminizantes da SR dos.
– Síndroma de Mc Cune-Albright A ecografia pélvica na rapariga constitui, não
– Iatrogenia só um exame importante no diagnóstico de algu-
– Hipotiroidismo grave mas causas de PP, como um meio bastante útil de
controlo da terapêutica.
182
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long-term GnRH therapy in men with idiopathic hypogo- Trata-se duma doença crónica ligeiramente
nadotropic hypogonadism. J Clin Endocrinol Metab 2002; mais frequente que a doença neoplásica, e cerca de
87: 4128-4136 quatro vezes mais frequente que a fibrose quísti-
Pombo M (ed). Tratado de Endocrinologia Pediátrica, Madrid: ca na taxa etária 0-18 anos.
Mc Graw-Hill – Interamericana, 2002 A chamada DM1 corresponde ao tipo mais
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon comum ocorrendo em idade pediátrica (tipo 1 ou
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill insulinodependente) a qual é causada por destruição
Medical , 2011 auto-imune (mediada por células T) das células β dos
Sedlmeyer IL, Palmert MR. Delayed puberty: analysis of a ilhéus de Langerhans do pâncreas, produtoras de
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Sun SS, Schubert CM, Chumlea WC. National estimates of the défice permanente de níveis de insulina, com insufi-
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US children. Pediatrics 2002; 110: 911-919 substitutiva. As manifestações clínicas tornam-se em
Teilmann G, Pedersen CB, Jensen tk, et al. Prevalence and inci- geral patentes quando cerca de 80% das referidas
dence of precocious pubertal development in Denmark: an células se encontram destruídas. A fase prodrómica
epidemiologic study based ou national registries. Pediatrics tende a ser de menor duração na criança pré-púbere.
2005; 116: 1323-1328 A DM2 (tipo 2 ou não insulinodependente),
menos frequente em idade pediátrica, embora com
incidência crescente, resulta de resistência à insulina
e está geralmente associada à obesidade; a situação é
de défice relativo de insulina podendo, em circuns-
tâncias especiais, requerer terapêutica substitutiva.
Para além da DM1 e DM2 existem outros tipos
de DM mais raros cuja abordagem sucinta é feita
na alínea 3.
Aspectos epidemiológicos
A incidência anual é muito variável consoante as
CAPÍTULO 182 Diabetes mellitus 867
diferentes áreas geográficas. Dados publicados em de macrófagos, células B e células T (CD8 e CD4).
2011 apontam para uma incidência a nível mundial A DM1 é considerada uma doença auto-imune
da ordem de 0,1 a 37,4 por 100.000, estimando-se o mediada por células T, processo que precede o iní-
número de 70.000 novos casos no grupo etário 0-14 cio dos sinais clínicos. Actualmente é considerada
anos. Na Europa foram apurados no mesmo ano os uma afecção auto-inflamatória. Não está provada
seguintes dados: 35,3/100.000 habitantes com a relação entre vacinas antivíricas e DM1.
idade inferior a 15 anos (Finlândia), 5,3/100.000 Podem ser detectados diversos tipos de anti-
habitantes (Polónia). Em Portugal, país que já conta corpos contra diversos antigénios como os das
desde 2009 com um sistema de registo de casos de células β dos ilhéus de Langerhans (ICA), anti-
diabetes aplicado ao grupo etário 0-21 anos desig- descarboxilase do ácido glutâmico (GADA), e
nado pela sigla DOCE, registou-se no referido ano auto-anticorpos anti-insulina (IAA). Contudo, a
uma incidência no grupo etário pediátrico (0-18 sua ausência não exclui DM tipo I.
anos) entre 8 e 11/100.000 conforme as regiões, e A existência de marcadores imunológicos per-
um número total de casos registados até Outubro mite que nalguns indivíduos seja possível o dia-
de 2011 de 4185 (0-21 anos). gnóstico na fase pré-clínica(diagnóstico precoce)
Na Consulta de Diabetes do Hospital Dona da doença. Estão em curso estudos prospectivos
Estefânia (Lisboa), com a maior casuística pediá- em indivíduos seleccionados entre os parentes
trica nacional, até Março de 2011 estavam regis- próximos de diabéticos insulinodependentes que
tados 265 casos. tenham em circulação anticorpos contra antigé-
De salientar que o diagnóstico no primeiro ano nios das células β (detectáveis por vezes cerca de
de vida é raro; a incidência aumenta com a idade, 10 anos antes das manifestações) e genótipos no
verificando- se um pequeno pico pelos 4-6 anos e sistema HLA, considerados predisponentes; nesta
outro, mais significativo, pelos 10-14 anos; ambos perspectiva , será possível, com certas limitações,
os sexos são igualmente afectados. prevenir ou atrasar o início das manifestações
clínicas da doença. Provou-se que quanto maior a
Etiopatogénese diversidade de anticorpos, maior o risco de DM, e
Está comprovada a predisposição genética (por que surgem manifestações clínicas quando a reserva
exemplo genes relacionados com susceptibilidade secretória de insulina é inferior a 80%.
para DM no cromossoma 6 e no cromossoma 11) A identificação de anticorpos contra outros
sendo de referir que o tipo de hereditariedade é órgãos está associada à progressão da DM; os exem-
complexo e provavelmente poligénico. A identifi- plos mais típicos dizem respeito aos seguintes tipos
cação de alelos específicos HLA –DR3 e HLA-DR4 de anticorpos: anticorpos antiperoxidase da tiroi-
está relacionada com risco aumentado de DM1; deia relacionados com a toroidite de Hashimoto,
pelo contrário, outros alelos estão associados a anticorpos anti-transglutaminase relacionados com
menor risco. a doença celíaca, e anticorpos anti 21-hidroxilase
Existem também factores ambientais implica- relacionados com a doença de Addison.
dos (que desencadeiam o processo de destruição
auto-imune das células β, com a intervenção de Critérios de diagnóstico
citocinas e formação de radicais livres) tais como: Para o diagnóstico de DM são utilizados os se-
alimentação com leite de vaca em natureza antes guintes critérios (valores plasmáticos):
dos 2 anos de idade e infecções por vírus (rubéo- • glicémia em jejum (de 8 horas antes da 1ª
la, sarampo, coxsackie B, citomegalovírus, etc.). refeição do dia) superior a 125 mg/dL
Por vezes os factores ambientais, mais do que ou – glicémia pós prandial (2 horas após
desencadeantes, são modificadores da patogé- refeição ou ingestão de: 75 g de glucose
nese, como agravantes (infecções perinatais, anidra em água, se > 18 kg; ou 1,75 g/kg se <
défice de vitamina D) ou como atenuantes 18 kg): > 200 mg/dL em duas determinações
(infecções durante o 1º ano de vida). ou HbA1c > 6,5% (ver adiante).
Surge, em consequência, um processo infla- Para o diagnóstico de intolerância à glucose,
matório dos ilhéus ou “insulite”, com infiltração estádio intermédio entre a homeostase normal da
868 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
glucose e a diabetes, são utilizados os seguintes ticas e, como tal, devem ser sempre valorizadas.
critérios: Pode não ser fácil, na criança pequena, distinguir
• glicémia em jejum entre 100 e 125 mg/dL entre polidipsia e “hábito de pedir água”, sobretudo
ou – glicémia pós- prandial (2 horas após na fase de aprendizagem da utilização do copo.
refeição): 126 mg/dL - 200 mg/dL. Dada a irregularidade do comportamento da
Considera-se hiperglicémia esporádica a que alimentação na criança pequena, a polifagia dificil-
surge no decurso de doença intercorrente, relaciona- mente poderá não ser valorizada pelos pais. Daí a
da com a situação de estresse da mesma. Se o episó- necessidade de um elevado índice de suspeita por
dio de hiperglicémia ocorrer sem aparente factor pre- parte do clínico que segue a criança, o que implica
cipitante, existe probabilidade de desenvolvimento anamnese cuidadosa durante os exames de saúde.
ulterior de diabetes em cerca de 25% dos casos. Importa, por isso, na presença de clínica su-
gestiva, confirmar de imediato o diagnóstico.
Manifestações clínicas, laboratoriais e relação Demonstrada a presença de glicosúria e de hiper-
com fisiopatologia glicémia com tiras reactivas, não são necessários ou-
O modo de apresentação clínica clássica da DM1 – tros meios para o diagnóstico. Saliente- se que requi-
em regra de modo súbito e inesperado – é constituído sitar a um laboratório determinação da glicémia e
por poliúria, polidipsia, polifagia e perda de peso. análise de urina atrasa desnecessariamente o diag-
A manifestação inicial resultante do défice de nóstico e, por isso, o início do tratamento.
insulina é a hiperglicémia pós- prandial; à medi- Outros exames diagnósticos (a realizar apenas
da que o referido défice se vai acentuando, em centros especializados de diabetologia pediá-
surgem sucessivamente as fases de hiperglicémia trica e perante situações duvidosas ou necessi-
em jejum e de formação de corpos cetónicos (beta- dade de classificação definitiva do tipo de dia-
hidroxibutirato, acetoacetato e acetona). A hiper- betes) são a determinação da insulinémia e do
glicémia e a cetogénese resultam da não supres- péptido-C em jejum*. Utilizando-se o péptido C,
são, quer da glicogenólise, quer da neoglucogé- na DM1 estabelecida os seus valores são baixos (<
nese, quer da oxidação de ácidos gordos quando o 0.6 ng/mL), não aumentando após refeição ou
défice de insulina se agrava. administração de glucose; contudo, em fases inici-
Consequentemente, os depósitos de proteínas ais tal marcador pode evidenciar valores dentro
no músculo, e de lípidos no tecido adiposo, são dos limites da normalidade. Com as limitações
metabolizados como substractos para a neogluco- atrás referidas, podem ser detectados anticorpos
génese e oxidação de ácidos gordos. ICA, GADA, e IAA.
Se a glicémia ultrapassar o valor de 180 Uma referência especial à determinação da
mg/dL, que corresponde ao limiar de reabsorção hemoglobina glicada (HbA1c) que reflecte o
tubular renal para a glucose, verifica-se glicosúria valor médio da glicémia nos 3 meses anteriores
que, por sua vez, origina diurese osmótica a qual tendo em conta a vida média dos eritrócitos e o
pode levar a desidratação; refira-se que a perda fenómeno de transferência da glucose para o
renal de água “arrasta” electrólitos tais como sódio eritrócito em função dos níveis glicémicos;por
e potássio. Para compensar as perdas de líquidos issso, está indicada a sua determinação, em geral
em excesso por via urinária, verifica-se polidipsia. 4 vezes por ano, numa perspectiva de vigilância a
O estado catabólico conduz a perda de peso
face à perda calórica relacionada com a glicosúria * Recorda-se que a biossíntese do polipéptido designado por insulina
e cetonúria. (a partir das células beta dos ilhéus de Langerhans), ocorre com a liber-
tação na corrente sanguínea de quantidades equimolares de insulina
A cetoacidose diabética (abordada no capítulo e do chamado péptido C.
183) precedida por hiperglicémia nas 2-3 semanas O péptido C constitui um bom marcador da função das células beta e,
anteriores, surge como reveladora de DM1 numa por isso, da reserva e da produção endógena de insulina; por outro
lado, o seu valor sanguíneo (normal ~1.1-5.0 ng/mL), com uma vida
proporção importante de casos. média cinco a dez vezes superior à da insulina endógena, não é influ-
A poliúria pode ser difícil de detectar no lac- enciado pela administração exógena de insulina, nem pela existência
de anticorpos anti-insulina. Em determinadas situações o valor de pép-
tente; a presença de nictúria e de enurese noctur- tido C está elevado; por ex. insuficiência renal, hipopotassémia, sín-
na constituem, porém, importantes pistas diagnós- droma de Cushing e gravidez.
CAPÍTULO 182 Diabetes mellitus 869
longo prazo. Nos casos de hemoglobinopatias inerente a um tratamento mais intensivo deve ser
não poderá ser utilizada. seriamente ponderado.
De acordo com estudos, pode estabelecer-se a 2 – As crianças com menos de 5 anos (e nalguns
seguinte relação: casos com mais de 5 anos) não têm capacidade
HbA1c e relação com glicémia: para, sozinhas, detectar nem tratar a hipoglicémia.
>10%: glicémia anterior média >240 mg/dL Por isso, a hipoglicémia ocorrendo neste grupo
8-10%: “ “ “ 180-240 mg/dL etário não pode, mesmo que ligeira, ser classifica-
6-8%: “ “ “ 120-180 mg/dL da como benigna atendendo às possíveis conse-
Considera-se não diabetes o valor laboratorial quências da neuroglicopénia: maior risco de lesão
de normalidade de HbA1c oscilando entre 4,5- do cérebro em fase de desenvolvimento neuronal.
5,7%, pré-diabetes entre 5,7 e 6,4%, e diabetes se > 3 – Embora de um modo geral se estabeleça
6,4%. De notar que HbA1c não permite a destrinça que os valores da glicemia pós-prandiais devem
entre DM1 e DM2. manter-se abaixo dos 180mg/dL e os pré-prandi-
ais entre os 90mg/dL e 120mg/dL, nas crianças
Tratamento estas metas podem ter de ser mantidas no máximo
O principal objectivo do tratamento da DM1 na destes limites e, na criança com menos de 6 anos
criança consiste em conciliar a prevenção de com- de idade, ligeiramente acima destes valores.
plicações com a promoção de um crescimento e 4 – Alguns autores preconizam como objectivo
desenvolvimento psicoafectivo normais, com- realista para a maioria destas crianças que, após o
patíveis com um estilo de vida tanto quanto pos- primeiro ano de diagnóstico, valores de hemoglobi-
sível igual ao das outras crianças. (Quadro 1) na glicada (Hb A1c) de 9% se considerem aceitáveis.
Vários factores contribuem para dificultar a 5 – A educação para a saúde incluindo de modo
obtenção de um bom controlo metabólico durante especial a motivação para a autovigilância per-
a infância, nomeadamente a influência de altera- mitem sempre melhores expectativas em termos
ções hormonais e psicossociais inerentes ao pro- de compensação e regulação do processo mórbido.
cesso de crescimento e desenvolvimento, o padrão
irregular da alimentação, do exercício e das activi- Insulinoterapia
dades escolares, a tendência para infecções fre- A insulinoterapia, a instituir imediatamente
quentes, e ainda a falta de auto-suficiência da após o diagnóstico, constitui a chave do tratamen-
criança para o seu tratamento. to da criança diabética.
Assim, a definição de objectivos de controlo • Tipos de insulina
metabólico, para ser realista, deve ser ajustada a Actualmente em Portugal todas as insulinas com-
cada grupo etário e à realidade de cada caso, o que ercializadas são obtidas por técnica recombinante,
implica atender a um conjunto de particulari- apresentando a mais baixa antigenicidade, o que as
dades: torna mais apropriadas para crianças. Utilizam-se,
1 – Apesar de actualmente tudo apontar no de modo geral, insulinas de acção intermédia e rápi-
sentido da vantagem e de um bom controlo mes- da, e associações de ambas por via subcutânea.
mo antes da puberdade, o risco de hipoglicémia Os análogos de acção ultra rápida (Lispro e
Aspart) podem ser utilizados para evitar hiper-
QUADRO 1 – Componentes fundamentais glicémia pós-prandial; o seu início de acção mais
do tratamento da DM1 rápida e a mais curta duração permitem que pos-
sam ser administrados no meio de refeição em vez
• Insulinoterapia e novas terapias de antes da mesma.
• Plano alimentar A insulina lenta Glargina é um análogo com a
• Exercício físico particularidade de não apresentar picos, podendo
• Autovigilância e controlo a sua acção prolongar-se por mais de 24 horas,
• Educação mantendo um nível basal de insulina.
• Apoio psicossocial O Quadro 2 resume o perfil de algumas insuli-
nas habitualmente usadas.
870 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
do, contudo, ser adaptadas a casos particulares de ser adaptado ao grupo etário, aos horários escolares,
maior actividade física, ou risco de obesidade. actividade física e regime de insulinoterapia, respei-
Aceita-se como norma geral que 50%-65% do tando tanto quanto possível os hábitos familiares de
suprimento calórico diário seja feito através de modo a não impedir o convívio às refeições.
hidratos de carbono, 12 a 20% de proteínas, e O plano alimentar de cada criança deve ser
menos de 30% de gorduras. Relativamente às gor- elaborado pelo dietista da equipa e regularmente
duras saturadas, elas deverão comparticipar adaptado e actualizado de acordo com as fases de
menos de 10% do valor calórico total, com ratio crescimento e as circunstâncias do quotidiano.
recomendado de poli-insaturadas / saturadas de A composição das pequenas refeições intermé-
1,2 / 1,0; quanto ao suprimento de colesterol, o dias e a sua distribuição ao longo do dia requerem
mesmo não deve ultrapassar 300 mg/dia. particular atenção e adaptação de acordo com o
Em relação aos hidratos de carbono é neces- regime de insulina, o risco de hipoglicémia e os
sário ter noção do seu valor relativo, evitar os que horários escolares e da família.
provocam maiores subidas de glicémia, distribuí- A última refeição da noite pode necessitar de
los correctamente ao longo do tempo e integrá-los ser adaptada diariamente de acordo com a gli-
nas refeições. cémia ao deitar e o risco de hipoglicémia nocturna.
As fibras solúveis que se encontram nos vege- Três notas finais a realçar:
tais, legumes, cereais e frutos, podem ajudar a 1 – A educação alimentar deve ser dirigida à
diminuir a velocidade de absorção aos hidratos de criança e família, tendo em atenção que o compor-
carbono evitando subidas bruscas da glicémia. As tamento alimentar, algo mais do que a simples
fibras insolúveis das leguminosas e cereais, me- ingestão de alimentos, é influenciado por factores
lhoram o trânsito intestinal. culturais e psicossociais que devem ser respeitados.
Refira-se que o consumo de fibras deve ser 2 – Na infância, o chocolate e as guloseimas de
estimulado na criança acima dos 2 anos de idade, modo geral tendem a adquirir fortes conotações
porém de forma gradual e cautelosa de modo a afectivas e as solicitações para o seu consumo são
evitar distensão abdominal e cólicas. inúmeras e constantes. Nesta perspectiva, a
Os frutos frescos, tal como os vegetais, devem
fazer parte da alimentação diária da criança e QUADRO 3 – Plano alimentar aplicável
jovem, suprindo as necessidades em vitamina C. a crianças com idade > 5 anos
No que respeita ao consumo de gorduras, a
Associação Americana de Diabetes recomenda Recomendações
que se podem aplicar à criança com mais de 5 anos • Suprimento calórico e ingestão de hidratos de carbono
as recomendações preconizadas para o adulto. distribuídos de acordo com o regime de insulinoterapia
Nos primeiros anos de vida são necessários e o padrão de actividade física (e ajuste das doses de
regimes com maior valor energético, salientando- insulina tendo em conta o padrão alimentar, variável)
se que os ácidos gordos são indispensáveis para o • Suprimento energético adequado para garantir o
desenvolvimento do sistema nervoso central. crescimento, evitando a obesidade
O suprimento proteico, embora variando com • Distribuição diária dos nutrientes em % do valor
factores económicos e culturais, é entre nós muitas calórico total
vezes exagerado e “liberalizado” por oposição ao – Hidratos de carbono (HC): 50%-65%
limite de consumo dos hidratos de carbono Maior consumo de HC complexos, com alto teor em
(“menos batatas, mais carne...”). Para uma correcta fibras; consumo limitado de sacarose
educação alimentar é necessário ter em conta que – Gorduras: <30% ( saturadas <10%)
as necessidades proteicas diárias variam de acordo – Proteínas 12-20% (diminuindo com a idade)
com o grupo etário; são maiores na primeira infân- • Frutos e vegetais; recomendado o consumo de 5 itens
cia (1-2 g/Kg/dia diminuindo progressivamente diários
até 1 g/Kg/dia aos 10 anos e 0,8–0,9 g/Kg/dia no De acordo com as normas da ISPAD(International Society for Pediatric and Adolescent
Diabetes) 2008
final da adolescência). (Capítulos 51 e 56)
O número diário de refeições, entre 6 e 8, deve
CAPÍTULO 182 Diabetes mellitus 873
restrição de doces deve ser feita de forma cuida- vida activa. Deve ser estimulada a tendência natu-
dosa e realista e tendo em conta as necessidades ral da criança para os jogos e actividade de grupo,
psicossociais da criança, nomeadamente festas da tentando reduzir o tempo de permanência em
escola, aniversários e saídas em grupo (Quadro 3). frente do televisor e em jogos sedentários.
3 – É necessário assumir uma atitude ajustada, 5 – A importância da actividade física pode ser
mas flexível, procurando, como objectivo final, que explicada à criança mais velha, em termos sim-
a criança vá adquirindo hábitos tais que lhe permi- ples; no entanto, não deverá nunca ser encarada
tam ter as suas refeições fora de casa, na escola e como forma de “queimar” os hidratos de carbono
em ocasiões especiais, sem com isso prejudicar nem ingeridos, mas sim como oportunidade de prazer
o controlo metabólico, nem o prazer do convívio. e convívio.
semana, sobretudo no período nocturno(1- 4horas entre outras: dose inadequada de insulina de
da madrugada). acção intermédia na noite anterior; aumento da
Este problema pode resultar de diversas circun- secreção das hormonas de contra-regulação com
stâncias: excesso relativo de insulina face à concen- hiperglicémia rebound ou fenómeno de Somogyi;
tração de glucose sérica (por exemplo por alteração aumento de secreção de hormona de crescimento
da dose ou horário de administração, variações na nas primeiras horas da manhã, na adolescência.
absorção da insulina ou da sensibilidade à mesma Os sintomas são, essencialmente: despertar,
relacionada, esta última, com o exercício físico); cefaleias, pesadelos e diaforese.
variações no suprimento de hidratos de carbono; A actuação consiste na mudança da dose de
resposta anormal do glucagom ou anomalias no insulina de acção intermediária ou mudando a
processo de libertação de adrenalina com a hora de administração.
evolução da própria DM1 ao longo dos anos, etc..
Dado que, após um primeiro episódio de hipo- Complicações vasculares e outras
glicémia, as respostas autonómicas a subsequentes Embora um controlo metabólico correcto diminua
episódios ficam reduzidas, a probabilidade de significativamente as complicações da DM1, nos
detecção dos respectivos sinais pelo próprio doente casos com evolução superior a 3-5 anos, torna-se
vai-se também reduzindo com o tempo. obrigatório realizar de modo sistemático e seriado
Os sintomas clássicos de hipoglicémia são: cefa- um conjunto de procedimentos:
leias, irritabilidade, estado confusional, alterações do – exame oftalmológico após o diagnóstico e
comportamento (por exemplo “birras”), convulsões anualmente para detecção de retinopatia e de
focais ou generalizadas, coma (em relação com neu- cataratas (Capítulo 255);
roglicopénia de grau variável), tremores, taquicárdia, – análise de urina após o diagnóstico, e anual-
diaforese, dores abdominais, e ansiedade (em relação mente para detecção de microalbuminúria, a
com libertação de catecolaminas). qual sugere disfunção renal e risco de pro-
A preocupação com as medidas de prevenção gressão para nefropatia; o tratamento com
deve ser tanto maior quanto menor a idade da inibidores da enzima de conversão da angio-
criança (sobretudo até aos 6 anos). Exceptuando tensina poderá evitar em grau variável a pro-
nos casos de cetose, suplementos de insulina de gressão da microalbuminúria;
acção rápida ao deitar devem ser evitados. – vigilância frequente, (em cada consulta ou
No caso de episódios ligeiros, a actuação inclui sempre que os sinais clínicos o indiquem ) da
administração oral de açúcares de absorção rápi- pressão arterial com metodologia apropria-
da (glucose, sacarose) seguida de refeição ligeira da, incluindo braçadeira de dimensões adap-
ou da refeição prevista no caso de o episódio ocor- tadas a cada idade;
rer antes desta (por ex. administração imediata de – análise de sangue para determinação do per-
10 a 20 gramas de glucose seguida de refeição). fil lipídico dado o risco elevado de hiperco-
Em situações mais graves que levam ao coma lesterolémia; a detecção precoce da hiperten-
ou a convulsões, a actuação de emergência inclui são arterial e da hipercolesterolémia poderão
a administração de glucagom injectável por via diminuir o risco futuro de coronariopatia;
subcutânea (implicando treino dos pais/família) – detecção de síndroma de Mauriac (hoje
na dose de 0,5-1 mg (1/2 ampola a 1 ampola, res- menos frequente pela maior utilização de
pectivamente antes e depois dos 10 anos de idade) insulinas lentas), e relacionada com doses
cujo efeito se verifica em 10-15 minutos ; tal nunca insuficientes de insulina: essencialmente, face
dispensa, no entanto, a observação médica. Este de “lua cheia” e hepatomegália relacionada
procedimento é seguido por perfusão endovenosa com infiltração de glicogénio e gordura;
de soluto de glucose a 20% em bolus (em regime – detecção doutros problemas associados à
hospitalar): 0,2g/kg de peso ou 1 mL/kg . DM1: tiroidite,doença celíaca, doença de
Addison, doença péptica ulcerosa, défice de
Hiperglicémia matinal IgA, limitação da mobilidade articular, neu-
Esta situação pode ter duas causas principais, ropatia, etc.
876 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Actuação em situações especiais ral e glicémia capilar (em regra 0,25 Unidades/
Criança diabética na escola Kg/dose para glicémia acima de 250mg/dL).
A informação aos professores e a sua colabo- Simultaneamente, devem ser fornecidas pe-
ração permitirão alcançar a adequada integração quenas refeições ricas em hidratos de carbono.
escolar da criança diabética contribuindo para No caso de apenas serem tolerados líquidos, estes
melhorar os cuidados assistenciais quotidianos. devem conter açúcar sempre que a glicémia seja
Imediatamente após o diagnóstico e o regresso inferior a 250/mg/dL de modo a prevenir hipo-
da criança à escola, deve ser fornecida ao profes- glicémia e frenar a cetogénese.
sor informação pormenorizada incluindo algumas Refira-se, a propósito, que a pesquisa sistemá-
noções sobre as características da diabetes e do tica de cetonúria pode alertar precocemente para a
seu tratamento, sinais e sintomas de hipoglicémia, presença de infecção, mesmo antes de detectada
necessidade da sua prevenção com refeições febre ou outras manifestações clínicas.
suplementares, a horas certas, e a actuação ime- O açúcar eventualmente veiculado em xaropes
diata com administração de sacarose se tal situa- ou suspensões orais não inviabiliza o controlo me-
ção surgir. tabólico desde que o regime de insulina seja ajustado.
Deve ainda ser chamada a atenção para o facto Independentemente do papel imprescindível do
de, em períodos de mais difícil compensação apoio familiar e de normas escritas elaboradas pela
metabólica, a criança poder necessitar mais fre- equipa assistencial da criança sobre actuação em
quentemente de pedir para ir à casa de banho. caso de cetose, a verificação de vómitos ou cetonúria
As crianças mais pequenas podem necessitar persistentes obrigará ao recurso a centro hospitalar
de vigilância mais rigorosa à hora das refeições, de especializado para fluidoterapia endovenosa de
modo a verificar a ingestão dos alimentos pres- modo a prevenir a desidratação e a cetoacidose.
critos na sua totalidade.
O professor de ginástica deve também receber
informação especial acerca da necessidade de pre- 2. Diabetes mellitus de tipo 2 (DM2)
venção e tratamento da hipoglicémia.
Para além destas necessidades especiais, a Etiopatogénese
criança diabética não deve ser tratada de modo Esta forma de DM, considerada doença poli-
diferente dos outros alunos. Adaptado o trata- génica comparticipada por factores ambientais,
mento da diabetes à rotina escolar e estabelecido o resulta de resistência periférica à insulina e
intercâmbio de informação com o professor, as hiperinsulinémia compensatória, com ulterior
expectativas em relação ao sucesso escolar e ao disfunção das células beta do pâncreas no que
futuro profissional deverão ser exactamente respeita à manutenção do referido nível de
iguais às das outras crianças. secreção de insulina.
Admite-se um fenómeno de programação in
Infecções intercorrentes utero (hipótese do fenótipo da poupança): o feto
Durante as infecções intercorrentes é neces- adapta-se à má nutrição, poupando os nutrientes
sário adaptar o tratamento de modo a prevenir e rendibilizando o seu armazenamento deficiente.
hiperglicémia, cetose ou hipoglicémia. Entre outras consequências verifica-se a limitação
A criança pode, em tais situações, apresentar da capacidade funcional das células beta e a
diminuição do apetite, ou mesmo recusa alimen- indução da resistência à insulina por compromis-
tar; verificando-se, por outro lado, que as mesmas so das células sensíveis à mesma (músculo, sobre-
provocam sempre um grau variável de insulino- tudo). Este fenómeno pode ser explicado por
resistência, a dose diária de insulina deve ser alterações epigenéticas.
mantida, sendo necessário, por vezes mesmo, ser Assim, o baixo peso de nascimento e a RCIU
aumentada. estão associados a risco elevado de DM2 e tal
Assim, devem ser administradas pequenas risco parece ser maior nas crianças com ganhos de
doses suplementares de insulina de acção rápi- peso mais rápidos nos primeiros meses de vida
da, cada 2 a 4 horas, de acordo com o peso corpo- por suprimento elevado de energia e proteínas.
CAPÍTULO 182 Diabetes mellitus 877
Também a obesidade, relacionada com fac- dencia valores baixos, elevando-se mais tarde.
tores etiopatogénicos nutricionais, está associada Salienta-se entretanto que se verifica resposta à
ao desenvolvimento de DM2, o que se relaciona estimulação pela administração oral de hidratos de
fundamentalmente com resistência à insulina. carbono. A HbA1c tende a ser de valor mais eleva-
Considerando a gordura visceral no contexto de do. A pesquisa de auto-anticorpos contra células β
obesidade, cabe referir que a mesma, sendo meta- é negativa (excepção para ICA512-ver atrás).
bolicamente activa, produz adipocinas que con- Os casos de obesidade, de alterações metabóli-
tribuem para a referida resistência. Nestas situa- cas associadas e de antecedentes familiares de
ções surge igualmente disfunção endotelial com DM2 comportam risco de desenvolvimento do
consequente risco cardiovascular. mesmo tipo de DM.
Nos casos de obesidade, concomitamente com a A verificação de acanthosis nigricans (manifes-
resistência à insulina, verifica-se aumento de pro- tação de dermatológica de hiperinsulinismo sob a
dução de glucose hepática que, secundariamente, forma de pigmentação com hiperqueratose
leva à diminuição da capacidade de secreção de notória na nuca e nas pregas de flexão, verificada
insulina (em condições normais induzida pela glu- em 90% dos casos), de obesidade (em 80-90% dos
cose). Ao longo do tempo verifica-se fenónemo de casos), de síndroma do ovário poliquístico na
glucotoxicidade (pela hiperglicémia crónica) e de rapariga obesa, de história familiar de DM2, e a
lipotoxicidade (pela hiperlipémia crónica) sobre as ausência de anticorpos contra os antigénios das
células β dos ilhéus, do qual resulta diminuição da células β dos ilhéus de Langerhans , apontam para
expressão do gene da insulina. a forte possibilidade de DM2 no doente em estudo.
A resistência à insulina faz parte da síndroma De salientar que a acanthosis nigricans pode ser
metabólica, típica na DM2, a qual inclui também considerada um marcador (e levar à suspeita) de
obesidade abdominal, desregulação do metabolis- resistência à insulina, de hiperinsulinémia e, even-
mo da glucose, dislipidémia e HTA. tualmente, de DM2.
Embora seja admitido que na DM2 não existe A cetoacidose, embora menos frequente que na
destruição auto-imune das células β, em certos DM1, pode ocorrer, sobretudo em situações de
casos têm sido identificados alguns marcadores estresse ou infecção intercorrente.
auto-imunes (autoanticorpos) que também surgem
na DM1, tais como GAD 65, ICA 512 e IAA. Tratamento
Descreve-se uma forma dominante de DM2 Os doentes assintomáticos (em geral com valores
devida a mutação de um receptor da sulfonilureia. de glicémia em jejum > 126 mg/dL ou ~200-250
mg/dL numa determinação ocasional) podem ser
Aspectos epidemiológicos tratados inicialmente com medidas de reeducação
e manifestações clínicas alimentar e exercício, não sendo necessário, na
A DM2, anteriormente considerada de baixa maioria dos casos, proceder a terapêutica farma-
prevalência em idade pediátrica, evidencia hoje cológica.**
prevalência crescente em relação com factores Actualmente, nos casos com diagnóstico re-
ambientais atrás descritos (por ex. sedentarismo, cente e formas não complicadas de DM2, estão
regime alimentar hipercalórico) com o incremen-
to de prevalência da obesidade; o início é muitas
* Nas crianças com RCIU e risco de resistência à insulina utiliza-se a
vezes mais insidioso que o da DM1. seguinte fórmula designada por HOMA (Homeostasis Model
Na DM2 aplicam-se idênticos critérios de dia- Assessment)para quantificar tal risco: Insulinémia (mUI/mL) x
Glicémia (mmol/L)/ 22,5 . Considera-se HOMA> 3 equivalente a
gnóstico referidos a propósito da DM1; pode ser insulinorresistência.(NB- para converter glicémia em mg/dL para
confirmada pela determinação da insulinémia e do mmol/L, divide-se aquele valor por 18)
péptido-C em jejum. Este último marcador eviden-
** Nota importante: Os doentes com qualquer forma de diabetes
cia classicamente valores normais; por vezes poderão eventualmente requerer tratamento insulínico; esta circun-
podem estar elevados, o que traduz hiperinsulinis- stância, só por si, não é condição suficiente para classificar o tipo de
DM. Em situações iniciais com destrinça pouco clara entre DM1 e
mo e resistência à insulina*. Estão descritas situa- DM2, está indicado iniciar terapêutica com insulina se glicémia > 250
ções em que, numa fase inicial o péptido C evi- mg/dL ou HbA1c > 9%.
878 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
indicados os hipoglicemiantes orais como primei- MODY). Neste subtipo, (não associado a ale-
ra linha de actuação farmacológica: agentes esti- los HLA, a obesidade, a destruição das célu-
mulantes da secreção insulínica ou promotores da las β por autoimunidade), não há resistência
sensibilidadade à insulina, ou ainda promotores à insulina, mas uma resposta secretória
de mais lenta absorção da glucose. Citam-se de insulínica insuficiente à estimulação glicémi-
modo sucinto os seguintes: biguanidas (de que a ca; tal pode implicar a necessidade de trata-
metformina – que pode originar acidose láctica – é mento com insulina.
um exemplo), inibidores da glucosidase, sulfonil- Nas formas MODY, o péptido C é baixo tal
ureia, tiazolidinedionas, etc.. Em circunstâncias como na DM1.
especiais haverá necessidade de associar tais – DM por defeitos mitocondriais; estes subti-
agentes orais à insulina. pos estão relacionados, com defeitos here-
Considerando os fármacos com efeito estimu- ditários de genes mitocondriais das células β
lante da secreção de insulina cabe referir o GLP-1 dos ilhéus.
(glucagon like peptide 1) que igualmente suprime a
resposta do glucagom. Este péptido (que pertence Defeitos genéticos repercutindo-se em acção
ao grupo das hormonas intestinais – incretinas – e anómala da insulina
cujo efeito se relaciona com a proliferação das – Trata-se de situações muito raras relacionadas
células B) é segregado em condições normais com mutações de genes do receptor da insulina:
pelas células L do íleum distal. Outro fármaco (a resistência à insulina tipo A, leprechaunismo,
amilina) é uma hormona (polipéptido) segregada síndroma de Rabson-Mendenhall e diabetes
concomitantemente com a insulina pelas células lipoatrófica. (ver Glossário Geral)
B; inibe o glucagom e atrasa o esvaziamento
gástrico. GLP-1 e amilina melhoram o controlo Doenças do pâncreas exócrino
glicémico pós-prandial e aumentam a saciedade. – São referidas como mais representativas as
Actualmente aponta-se a importância do seguintes situações: pancreatite, lesões trau-
crómio na melhoria de tolerância à glucose. máticas, status pós-pancreatectomia, neopla-
sia, fibrose quística, hemocromatose, pancre-
atopatia fibrocalculosa.
3. Outros tipos de diabetes mellitus
Endocrinopatias
De modo sucinto são discriminados outros tipos – Citam-se as seguintes: acromegalia, síndro-
específicos de DM que partilham alguns carac- ma de Cushing, glucagonoma, feocromocito-
terísticas com a DM1 imunomediada. ma, hipertiroidismo, somatostatinoma, etc..
Defeitos genéticos da função das células beta Acção de fármacos e agentes químicos
– DM monogénica secundária a situações como – Como exemplos são referidos os seguintes:
mucoviscidose, hemocromatose, fármacos (l- pentamidina, ácido nicotínico, glucocor-
asparaginase, tacrolimus, etc.). ticóides, hormona tiroideia, diazóxido, ago-
– DM dita anteriormente MODY (sigla do nistas beta-adrenérgicos, alfa-interferão, etc..
inglês- maturity onset diabetes of youth): com-
preende um grupo de formas relativamente Infecções
ligeiras de diabetes que têm em comum a – Já abordadas anteriormente, cabe salientar:
hereditariedade dominante e o início antes rubéola congénita e citomegalovírus.
dos 25 anos de idade. Descrevem-se defeitos
genéticos vários relacionados, designada- Formas raras de diabetes imunomediada
mente, com mutações de genes nos cromos- – Estas formas estão associadas à existência de
somas 7,12 e 20 com consequente disfunção anticorpos anti-receptor de insulina, e a um
das células β ou disfunção do transporte da quadro clínico designado por síndroma stiff-
glucose para as células β (6 variantes man /“homem rígido”. (ver Glossário Geral)
CAPÍTULO 182 Diabetes mellitus 879
Doenças autoimunes (CSII) versus multiple insulin injections for type I diabetes
– Citam-se: a doença celíaca e a tiroidite lin- mellitus. Evidence-Based Child Health 2010; 5: 1868 - 1869
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880 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
183
A CAD é secundária a défice de insulina e
aumento das hormonas de contra-regulação.
A insulina é uma hormona polipeptídica segre-
gada pelas células β do pâncreas sob acção de estí-
mulos β-adrenérgicos e parassimpáticos. Tem
uma acção anabolizante que leva a um aumento
CETOACIDOSE DIABÉTICA da captação de glucose, sua entrada no meio
intracelular, e a um estímulo da síntese do glico-
João Estrada e Maria do Carmo Vale génio hepático e muscular. No fígado promove
inibição da neoglicógenese e da glicogenólise; no
músculo, estimula a síntese proteica e inibe a pro-
teólise; e no tecido gordo promove a captação de
Definição e importância do problema glucose e lipoproteínas, estimula a lipogénese, e
inibe a lipólise.
A cetoacidose diabética (CAD), frequentemente, a A diminuição, ou ausência persistente de insu-
forma de apresentação inicial da diabetes tipo 1 na lina condiciona a passagem de um estado anabóli-
criança, é a sua complicação aguda mais grave. co a um estado catabólico, com neoglicogénese,
Constitui igualmente uma urgência terapêutica e a glicogenólise, cetogénese e proteólise. A neoglicó-
principal causa de internamento e de mortalidade da genese passa a ser efectuada a partir do piruvato,
criança diabética, com um risco estimado de morte secundariamente à diminuição da frutose 1-6 di-
de 0,2 a 1%, essencialmente por edema cerebral. fosfato que, por sua vez, leva à activação da fru-
A cetoacidose diabética surge como conse- tose difosfatase e diminuição da fruto-
quência das alterações metabólicas e hidroelec- fosfoquinase.
trolíticas secundárias a diminuição da insulina cir- A proteólise muscular aumenta, levando à li-
culante eficaz e, como consequência, à elevação bertação de aminoácidos que serão utilizados pela
das hormonas de contra-regulação (glucagom, neoglicógenese hepática para produzir glicose o
catecolaminas, cortisol e hormona do crescimento) que, associado à inibição do efeito antilipolítico,
que, para além de contribuirem para a hiper- conduz à libertação de ácidos orgânicos como o
glicémia, estimulam a cetogénese. acetoacético e o β-hidroxibutírico para a circula-
Os critérios bioquímicos para o diagnóstico de ção, determinando o estado de cetoacidose. A aci-
CAD são hiperglicémia, (> 200 mg/dL) e acidose dose láctica, secundária à hipoperfusão / hipovo-
metabólica (pH <7.25 e/ou bicarbonato <15 lémia tecidual pode associar-se e agravar a aci-
mEq/L), cetonúria e cetonémia. dose.
A característica da acidose metabólica na CAD Por outro lado, como a utilização periférica da
é o aumento do hiato iónico (> 11), indicador indi- glicose está limitada pela falta de insulina, a gli-
recto dos níveis de corpos cetónicos. cose produzida pela neoglicogénese e/ou glico-
A terapêutica consiste na correcção das alte- genólise determina o agravamento da hipergli-
rações hidroelectrolíticas (desidratação / choque), cémia.
do equilíbrio ácido-base e da hiperglicémia, O aumento da pressão osmótica plasmática,
através da reposição hídrica e iónica, da correcção associado à hiperglicémia, condiciona a saída de
da acidose, e dos níveis de insulina. água do espaço intracelular para o intravascular,
levando a desidratação que, de início, é essencial-
Etiopatogénese mente intracelular. A hipervolémia resultante da
hiperglicémia vai condicionar intensa diurese
A poliúria causada pela diurese osmótica pode osmótica; por outro lado, o aumento da filtração
induzir desidratação com grau variável de alte- glomerular, a elevação da ureia e a glicosúria (se
rações electrolíticas, hiper ou hiponatrémia (de glicémia > 180 mg/dL) vão-se progressivamente
diluição), hipocalcémia, hipofosfatémia e hipopo- agravando, determinando um estado de desidra-
tassémia. tação hiperosmolar em geral não hipernatrémica,
CAPÍTULO 183 Cetoacidose diabética 881
• Introduzir os líquidos per os após a melhoria franca da CAD e quando o doente manifestar o desejo de comer.
• Se houver boa tolerância oral, diminuir os soros IV (subtrair o volume ingerido ao volume calculado para administração IV)
e tentar uma pequena refeição com hidratos de carbono de absorção lenta (leite, iogurte, bolachas, pão...).
• Programar a passagem para insulina sc quando a acidose tiver regredido (pH >7.3, bicarbonato ≥ 18 mEq/L) e os alimentos
forem bem tolerados.
• O melhor momento para iniciar insulina sc é antes de uma refeição.
• Administar a 1ª dose sc de insulina de acção rápida rápida/ultra rápida de acordo com o peso, glicémia e alimentação:
habitualmente suficiente para a correcção da aci- intracelular. Mesmo nesta eventualidade, há que
dose. A administração de bicarbonato é cada vez referir que o potássio corporal total está diminuído.
mais contestada, não tendo sido demonstrado O sódio sérico inicial, geralmente normal ou
efeito benéfico na sua utilização; pelo contrário, baixo, explica-se pelos efeitos de diluição osmolar
pode levar a um agravamento da hiperosmolari- da hiperglicémia e da fracção lipídica elevada não
dade e potenciar a acidose do SNC e o edema cere- contendo sódio.
bral. Considera-se a administração de bicarbonato Assim, para o cálculo da correcção da natrémia
apenas quando pH < 7,0 e bicarbonato < 5, ou nos casos de glicémia > 100 mg/dL (5,6 mmol/L)
quando há necessidade de utilização de aminas utiliza-se a seguinte fórmula, considerando a
vasoactivas, e só até pH de 7,1 (1 a 2 mEq/kg em glicémia em mg/dL.
perfusão de 2 horas). [Na+] + [glucose – 100] x 1,6
100
Correcção das alterações iónicas O sódio deverá aumentar cerca de 1,6 mmol/L
Os suprimentos em sódio, cloro, fósforo e cálcio por declínio de 100 mg/dL de glicémia em con-
são os necessários ao metabolismo basal. A uti- comitância com a reposição lenta dos fluidos. Se,
lização de solutos com níveis de sódio ≥ a 50 pelo contrário a natrémia diminuir à medida que
mEq/litro (soluto a 1/3) é habitualmente sufi- se proceder à reidratação, tal poderá significar
ciente para manter o sódio em níveis adequados. acumulação de água livre e risco de edema cere-
Mesmo nas situações de CAD associada a Na+ bral.
sérico > 150 mEq/L, não utilizar soluções hipotó- Quando o fósforo for < 2,5 mg/dL (< 0,8
nicas. mmol/L), substituir 50% do KCl por fosfato
Em relação ao potássio há que considerar a sua monopotássico, até às 12 horas de tratamento.
administração logo nas 2 primeiras horas se Para a correcção doutras alterações iónicas
potassémia inicial <4,5 mEq/L (2 a 4 mEq/Kg/dia, sugere-se a consulta dos capítulos 48 e 50.
não excedendo concentrações de 40 mEq/L de Reitera-se que o início da alimentação é feito
soluto em veia periférica). logo que a tolerância oral o permita, com prefer-
Salienta-se que no momento do diagnóstico de ência por líquidos ricos em potássio (sumos),
CAD, o potássio sérico pode estar normal ou elevado iogurte e pequenas refeições. (Quadro 1) (Capítu-
porque a acidose provoca saída de potássio do meio los 49 e 50)
884 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Tratamento do edema cerebral Glaser NS, Wootton-Gorges, SL, Marcin JP, et al. Mechanism of
Embora raro (0,4 a 1% das CAD) o edema cerebral é cerebral edema in children with diabetic ketoacidosis. J
responsável por cerca de 50 a 80% de todas as Pediatr 2004; 145: 164-171
mortes por CAD; comporta mortalidade de 20 a Glaser NS, Ghetti S, Casper TC, et al. Pediatric diabetic ketoaci-
25% e morbilidade de 10 a 26% nos sobreviventes. É dosis, fluid therapy, and cerebral injury:the design of a fac-
mais frequente nas primeiras 4 a 12 horas de te- torial randomized controlled trial. Pediatr Diabetes 2013
rapêutica. São considerados sinais de alarme: cefa- Mar 13. doi: 10.1111/pedi.12027
leias, alterações do estado consciência, sinais focais, Glaser NS, Wootton-Gorges SL, Buonocore MH. Subclinical
convulsões, hipertensão arterial e bradicárdia. A sua cerebral edema in children with diabetic ketoacidosis ran-
terapêutica é emergente, exigindo recurso a cuida- domized to 2 different rehydration protocols. Pediatrics
dos intensivos e medidas específicas (elevação da 2013; 131: e73-e80
cabeceira, cabeça na linha média, sedação / analge- Gregory JM, Moore DJ, Simmons JH. Type 1 diabetes mellitus.
sia, ventilação) associados a perfusão de manitol Pediar Rev 2013; 34: 203-214
(0,5 a 1 g/kg em 20 minutos) concomitantemente Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
com redução do suprimento dos fluidos programa- Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
dos a metade, e ajuste da dose de insulina. Como 2011
alternativa pode utilizar-se na NaCl hipertónico a Pina R, Bragança G, Fonseca G, Rebelo I, Mota A, Caldeira J.
3%: 5-10 mL/kg a cada 30 minutos com manu- Tratamento da cetoacidose diabética; um protocolo utiliza-
tenção de natrémia entre 150 e 160 mEq/L. do em crianças e adolescentes. Rev Port de Pediatra 1991;
Havendo indicação de suporte ventilatório a pCO2 22: 97-106
deve ser mantida > 35 mmHg (não hiperventilar). Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
Complicações Medical, 2011
AGRADECIMENTOS
À Dr.ª Rosa Pina, da Unidade de Endocrinologia Pediátrica do
Hospital de Dona Estefânia, pela revisão e sugestões.
BIBLIOGRAFIA
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Infants, Children, and Adolescents – A consensus statement
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Dunger D, Edge J, Lee WRW, Rosenbloom A, Sperling MA,
Hanas R. Pediatric Diabetes 2007; 8: 28-43
CAPÍTULO 184 Hipoglicémia 885
184
lo. A hipoglicémia em idades ulteriores, embora
menos frequentemente, também poderá originar
sequelas de idêntica localização. (ver Parte XXXI)
Homeostase da glucose
e fisiopatologia
HIPOGLICÉMIA
No indivíduo adulto sem doença a manutenção
João M. Videira Amaral do nível normal de glucose no sangue depende
de:1) suprimento adequado de substractos exóge-
nos (alimentação) ou endógenos (gluconeogénese
a partir de aminoácidos-sobretudo alanina,
Definição e importância do problema glicerol e lactato), ou a partir de reservas de glico-
génio no fígado e músculo submetidas a glico-
A hipoglicémia em idade pediátrica constitui um genólise; 2) sistemas enzimáticos funcionando em
problema clínico associado a grande variedade de pleno, quer para a gluconeogénese, quer para a
etiologias relacionadas com problemas metabóli- glicogenólise; e 3) sistema endócrino normal que
cos e hormonais diversos. Surge mais frequente- promova integração destes processos.
mente no período de recém-nascido (primeiras 4 O adulto saudável tem capacidade para manter
semanas de vida) sobretudo nos primeiros 2-3 um nível normal de glucose no sangue quando pri-
dias após o parto(2-3/1000 ). A incidência é mais vado de qualquer suprimento energético durante
elevada (5-10%) nos casos de recém-nascidos de semanas e, no caso de obesidade, durante meses.
mães diabéticas, recém nascidos pré termo e/ou Pelo contrário, no recém-nascido e na criança
com restrição de crescimento intra-uterino. pequena, mesmo saudáveis, verifica-se uma dimi-
A hipoglicémia é definida com base biológica, nuição dos níveis de glicémia abaixo do que é con-
isto é, independentemente da verificação ou não siderado normal (hipoglicémia, anteriormente
de sintomas (respectivamente sintomática e as- definida) se forem submetidos a períodos mais cur-
sintomática): valor de glicose no sangue total infe- tos de jejum em relação ao adulto) (24-48 horas).
rior a 45 mg/dL (no RN) e < 50mg/dL (no lactente Esta maior vulnerabilidade ou maior predisposição
e criança maior) sendo que os valores determina- para a hipoglicémia na criança pequena e no recém-
dos no soro ou plasma são cerca de 10-15% mais nascido (e, neste, ainda mais se for pré-termo ou
elevados do que no sangue. tiver sofrido de má-nutrição fetal/restrição de
A regressão dos sintomas após terapêutica crescimento intra-uterino) explica-se essencial-
correctiva ou de substituição com glucose legitima mente por falência dos condicionantes atrás des-
o diagnóstico de hipoglicémia, na medida em que critos: imaturidade dos sistemas enzimáticos em
os sintomas e sinais habitualmente associados a geral e nomeadamente dos que promovem a glico-
esta anomalia podem verificar-se noutras situa- genólise e gluconeogénese, défice de substractos
ções; ou seja, os respectivos sinais e sintomas são glucogénicos ou não glucogénicos para a formação
inespecíficos. de reservas de glicogénio as quais passam a ser
Como resultado de hipoglicémia grave e pro- deficitárias; maior probabilidade de situações de
longada poderão surgir sequelas de gravidade estresse (hipotermia, hipóxia, infecção, etc.) que
variável (em cerca de 30-50% dos casos) ao nível aumentam o consumo de glucose agravando o
do sistema nervoso central (lesão neuronal de- desequilíbrio entre a “oferta e a procura”.
monstrada ao nível do córtex cerebral, cerebelo, Recorda-se que uma criança de 10 kg contém
núcleo caudado,putamen e corno de Amon), po- cerca de 20-25 gramas de glicogénio como reserva
dendo conduzir a atraso mental e convulsões para as necessidades de 4-6 mg/kg/minuto de
recorrentes, sobretudo se tal se verificar nos glucose durante 6-12 horas; após este limite de
primeiros seis meses de vida, que correspondem tempo é activada a neoglucogénese.
ao período de crescimento mais rápido do encéfa- Eis alguns exemplos paradigmáticos que aju-
886 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
dam a compreender a maior vulnerabilidade na da insulina (cujo estímulo para a secreção é de-
criança pequena: o recém-nascido pré-termo tem sencadeado quando a glicémia é > 70-90 mg/dL,
sistemas enzimáticos mais imaturos que o recém- com a comparticipação da glucocinase dos ilhéus,
nascido de termo (e se se tratar de doenças heredi- e das hormonas de contra-regulação):
tárias do metabolismo, tais sistemas poderão não Insulina
existir); menores reservas de glicogénio no músculo – no fígado: diminuição de glicogenólise e glu-
e fígado; menores reservas de aminoácidos – sobre- coneogénese hepáticas; como consequência,
tudo de alanina – por menor massa muscular, assim aumento do teor hepático em glicogénio.
como de gorduras. No caso do recém-nascido com – no tecidos periféricos: transporte de glucose
restrição de crescimento intra-uterino tem especial para o músculo; conversão da glucose em
relevância a deficiência em reservas glicogénicas glicogénio e triglicéridos; inibição da lipólise;
hepáticas em desequilíbrio com as maiores necessi- incorporação de aminoácidos nas células.
dades energéticas da massa encefálica. Epinefrina (resposta rápida em minutos à
A Figura 1 resume os passos mais significativos hipoglicémia): activação da fosforilase: aumento
do metabolismo energético no adulto saudável em da glicogenólise e da gluconeogénese; diminui-
situação de jejum como modelo de compreensão ção da secreção da insulina.
dos fenómenos que se passam na criança; é dada Glucagom (resposta rápida em minutos à hi-
ênfase às fontes energéticas de recurso em caso de poglicémia): efeito semelhante à epinefrina,
privação de glucose (mais falíveis no caso da cri- exceptuando no que se refere ao efeito catabó-
ança pequena) – triglicéridos, glicogénio, proteínas lico proteico.
e lactato, respectiva conversão hepática e utiliza- Cortisol (resposta lenta à hipoglicémia através
ção tecidual periférica. da ACTH): inibição da utilização periférica da
Cabe referir, a propósito, as principais acções glucose; aumento da gluconeogénese, da glico-
Ciclo de Krebs
AGL/FFA 40g cetogénese – corpos cetónicos 60g
Fígado Ciclo do
Cori
glicerol 16g gluconeogénese lactato
36g
aminoácidos 75g glicogenólise +
piruvato
Fígado ↑
glucose 180g 36g glucose
(elementos do sangue)
FIG. 1
Fontes energéticas de recurso na ausência de suprimento de glucose (modelo de jejum no adulto). Relação quantitativa ponderal
em gramas. Na criança de 10 kg o glicogénio hepático ◊ ~20-25 gramas (consultar texto).
CAPÍTULO 184 Hipoglicémia 887
Hiperinsulinismo
Hiperinsulinémia persistente da infância (anteriormente-nesidioblastose); Recém nascido de mãe diabética; Doença
hemolítica do recém-nascido anti-D; Adenoma de células beta(insulinoma); Síndroma de Beckwith- Wiedemann;
Anticorpos anti-insulina e anti-receptor de insulina (ver texto e capítulo 358).
Défice de hormonas de contra-regulação
Défice isolado da hormona de crescimento; Pan-hipopituitarismo; Défice de ACTH; Doença de Addison; Défice de
glucagom; Défice de epinefrina.
Défice de substracto
Prematuridade; Restrição de crescimento intra-uterino; Hipoglicémia cetótica; Leucinose.
Causas relacionadas com fármacos ou intoxicações
Agentes hipoglicemiantes orais; Álcool; Salicilatos ; Propranolol; Ácido valpróico; Pentamidina; Quinino; Trimetoprim-
sulfametoxazol; Insulina.
Doenças hereditárias do metabolismo
– Defeitos da glicogenólise (glucose-6-fosfatase, amilo-1,6- glucosidase, fosforilase hepática, sintetase do glicogénio)
– Defeitos da gluconeogénese (frutose-1,6-difosfatase, piruvato-carboxilase, fosfenolpiruvato carboxicinase)
– Defeitos da oxidação de ácidos gordos (desidrogenase acil-CoA dos ácidos gordos de cadeias curta, média ou longa, car-
nitina, palmitoil-transferase da carnitina)
– Outros defeitos enzimáticos (galactosémia, intolerância hereditária à frutose,acidémia propiónica, acidémia metil-
malónica, tirosinose, acidúria glutárica). Miscelânea (disfunção hepática, síndroma de Reye,hepatite, síndroma de hiper-
viscosidade sanguínea, má-nutrição/marasmo, sépsis, choque, neoplasias malignas com secreção de IGF ou insulin-like
growth factor, insuficiência cardíaca, hipoglicémia reactiva relacionada com síndroma dumping, etc.).
185
É necessário ter em conta que a dor referida à
região frontotemporal pode ter origem nasossi-
nusal, orbitária, na carótida intra ou extracraniana,
em estruturas extracranianas subcutâneas, ou
ainda na articulação temporomaxilar e em múlti-
plas patologias intracranianas supratentoriais.
CEFALEIAS A dor referida à região occipital pode estar rela-
cionada com patologia intracraniana na fossa pos-
José Pedro Vieira terior, ou ter origem na região cervical superior.
Os mecanismos pelos quais ocorre a dor
podem ser a hipertensão intracraniana, por exem-
plo, por uma lesão ocupando espaço, ou uma
Importância do problema anomalia na circulação, reabsorção ou, mais rara-
mente na produção de líquido céfalo-raquidiano
As cefaleias são um problema frequente em idade (LCR). A inflamação e distorção de artérias intra-
pediátrica com repercussões no desempenho esco- cranianas por múltiplas patologias também po-
lar, memória, personalidade, atenção e relação dem originar dor. Igualmente, inflamação ou
social em função da etiologia, frequência e intensi- obstrução à drenagem dos seios perinasais são
dade. causa de cefaleias. O esforço visual associado a
Não é claro a que se deve o sub-reconhecimen- um erro de refracção pode causar uma cefaleia
to deste facto; possivelmente (no caso dos profis- frontal, moderada em relação com um esforço
sionais de saúde) à escassez de literatura médica continuado dos músculos oculares extrínsecos; e a
sobre este tema e (no caso dos familiares da crian- uveíte e o glaucoma são causas importantes de
ça) à ideia estabelecida de que as cefaleias primá- dor retro-ocular.
rias não existem em crianças. O agravamento com a tosse ou com a mudança
As causas mais frequentes, abordadas neste de posição da cabeça (por exemplo quando a
capítulo, são a enxaqueca, factores psicogénicos criança se baixa para apanhar um objecto do chão)
ou estresse, e hipertensão intracraniana. Situações sugerem hipertensão intracraniana (HIC).
mais raras como erros de refracção, estrabsimo, A hipoventilação que acompanha o sono causa
sinusite e má-oclusão dentária também podem uma relativa retenção de CO2 e um aumento cor-
explicar o problema. (Partes XIII, XXVI, XXVII) respondente da pressão intracraniana, razão pela
qual as cefaleias que ocorrem no sono ou estão
Etiopatogénese e semiologia presentes no despertar, aliviando subsequente-
mente, são também sugestivas de HIC.
As estruturas intracranianas sensíveis à dor são: a É bem conhecido que a cefaleia de hipotensão
pele, o tecido subcutâneo, os músculos e artérias intracraniana (mais frequentemente pós-punção
extracranianas, o periósteo, os seios venosos lombar) se inicia na posição de pé e alivia em mi-
durais, (sobretudo o seio cavernoso), as meninges nutos com o decúbito.
da base do crânio, as artérias intracranianas proxi- Uma cefaleia unilateral pode dever-se a enxa-
mais e a porção intracraniana da carótida interna; queca (tópico a analisar adiante); mas a presença
os seios perinasais e estruturas do olho, do ouvi- de uma dor deste tipo com características progres-
do; e ainda os nervos óptico, oculomotores, tri- sivas ou outros sinais de HIC (presente no sono ou
gémeo, glossofaríngeo e primeiras três raízes cer- no despertar, associada a vómitos, ou a certos sin-
vicais. tomas e sinais neurológicos como diplopia e estra-
A tenda do cerebelo demarca, em termos de bismo, ataxia ou sinais focais) devem fazer sus-
enervação sensitiva, as estruturas com dor referi- peitar de uma lesão intracraniana expansiva.
da à região frontotemporal e orbitária (acima da Na criança existem dificuldades particulares
tenda), e a dor referida à região occipital (abaixo relacionadas com a informação anamnéstica tendo
da tenda). em conta o estádio de desenvolvimento cognitivo
CAPÍTULO 185 Cefaleias 893
Diagnóstico
A suspeita de hipertensão intracraniana implica a
referência atempada da criança a um centro espe-
cializado de neurocirurgia.
O diagnóstico é facilmente acessível aos exa-
mes de imagem (TAC e RMN). Para tumores como
o meduloblastoma, com grau de malignidade
maior e tendência para disseminação meníngea, é
necessário proceder, na avaliação inicial, ao estudo
imagiológico por RMN de todo o neuroeixo (cere-
bral e medular).
Tratamento
A terapêutica destas lesões passa, em geral, por
intervenção cirúrgica inicial. A terapêutica cirúrgi-
FIG. 1
ca pode incluir, além da ressecção da lesão tu-
TAC – Astrocitoma do cerebelo: criança de 9 anos com cefaleias moral, um procedimento terapêutico para a hidro-
com algumas semanas de evolução; as cefaleias tinham um cefalia secundária (por exemplo uma drenagem
carácter progressivo e ocorriam no despertar, com vómitos ventricular externa). O prognóstico depende,
ocasionais (o nódulo mural com captação de contraste,
entre outros factores, de se ter obtido, ou não,
assinalado por uma seta, sugere este diagnóstico)
ressecção completa da lesão.
Aspectos semiológicos
não constituem ataxias. Neste capítulo são consi- terísticas descritas deve determinar, após a avalia-
derados, numa perspectiva clínica, três tipos de ção inicial, um período de observação em centro
ataxia: aguda, recorrente e crónica. especializado e quase sempre (possivelmente com
a excepção da ataxia associada a varicela, em que
1. Ataxia aguda o diagnóstico é óbvio) a realização de um exame
de imagem: pela ressonância magnética podem,
A ataxia aguda pode, por vezes, constituir um por vezes, observar-se sinais de lesões cerebelosas
problema complexo de diagnóstico diferencial. hiperintensas. A literatura não é consensual sobre
Noutras circunstâncias, pelo contrário o diagnós- a necessidade de realizar, face a um quadro de
tico etiológico é obvio. São abordadas as situações cerebelite aguda, um exame do LCR (pode encon-
de ataxia aguda mais frequentes, devendo salien- trar-se neste contexto uma ligeira pleiocitose lin-
tar-se as infecções e as intoxicações. focítica, sem outras alterações). A indicação para
realizar punção lombar é essencialmente a de sus-
Ataxia aguda para ou pós-infecciosa peita de um diagnóstico alternativo, como ence-
O quadro de uma criança com uma história de falite (depressão do estado de consciência, altera-
varicela recente, provavelmente ainda com um ção de comportamento ou sinais neurológicos
exantema característico desta situação que, ao focais). (Capítulo 301)
acordar, recusa a posição de pé, manifesta um
claro desequilíbrio e tem tremor, constitui um dos Intoxicação
exemplos mais frequentes de ataxia aguda obser- É bastante frequente, entre crianças dos 1 a 5 anos,
vados pelo médico no serviço de urgência. a intoxicação acidental. Muitos casos envolvem a
A ataxia aguda pós-infecciosa por cerebelite é ingestão de fármacos com um efeito sedativo que
uma situação que parece ser devida a invasão também causam ataxia e nistagmo (tranquilizan-
directa de um agente infeccioso ou a uma respos- tes, antidepressivos, antiepilépticos, anti-histamí-
ta inflamatória mediada imunologicamente após nicos, antitússicos). A ingestão intencional (mas
uma infecção. oculta) de medicamentos deste tipo, ou das
Agentes infecciosos mais frequentemente im- chamadas drogas de uso recreativo ou de álcool,
plicados são: vírus varicela-zoster, Mycoplasma, o são uma possibilidade a considerar em adoles-
vírus de Epstein-Barr, o citomegalovírus e enterovírus. centes. Nem sempre o rastreio laboratorial é posi-
Deve ter-se em conta que em cerca de 30-50% dos tivo e, nestes casos, o diagnóstico poderá depen-
casos não é identificável uma infecção associada ao der da evolução clínica ou da exclusão de diag-
quadro de ataxia, ou antecedendo-o. O quadro nósticos alternativos. (Capítulos 39 e 44)
clínico típico é o de uma criança entre os 2 e os 7
anos, que no decurso de uma doença exantemáti- Tumores da fossa posterior
ca ou outra doença infecciosa, ou cerca de 1 a 2 Uma criança com um tumor cerebral da fossa pos-
semanas depois, acorda, verificando-se ataxia que terior pode recorrer ao serviço de urgência com
é habitualmente mais notória de início. A ataxia uma história recente de ataxia (mais prolongada,
pode ser tão marcada que não permite a posição semanas ou mesmo meses, eventualmente asso-
sentada e determina um tremor cefálico. Podem ciada a cefaleias e ou a vómitos). A ataxia não tem
também coexistir nistagmo, disartria (existem o carácter agudo descrito para a cerebelite e a
raras descrições de mutismo), tremor intencional e história terá os elementos sugestivos de hiperten-
dismetria nos 4 membros, simetricamente, com são intracraniana (cefaleias nocturnas que acor-
reflexos mantidos e com uma hipotonia ligeira dam o doente e no despertar, vómitos matinais
global. Não se verifica depressão do estado de que aliviam a cefaleia). O exame pode revelar uma
consciência, nem alteração major de comporta- ataxia de predomínio axial ou hemiataxia, even-
mento. A recuperação começa habitualmente após tualmente com sinais de compromisso de pares
1 semana e é em geral completa, embora possa ser cranianos (mais frequentemente o VIº e o VIIº
prolongada. pares); e, na fundoscopia observar-se-á estase
Uma história de ataxia aguda com as carac- papilar. Mais frequentes neste contexto são o as-
900 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
187
Outras ataxias crónicas
Além das situações referidas que frequente-
mente combinam ataxia com sinais piramidais e
demência, várias outras doenças genéticas raras
necessitam de ser consideradas no diagnóstico
diferencial de uma ataxia progressiva infantil.
Citam-se a doença de Nieman-Pick, as gangliosi- EPILEPSIA
doses juvenis (incluindo a doença de Tay-Sachs), a
leucodistrofia metacromática, a doença de Krabbe Ana Isabel Dias
juvenil, a adrenoleucodistrofia ligada ao cromos-
soma X, a doença de Refsum e a xantomatose cere-
brotendinosa.
Ataxias de tipo dominante Definições e importância do problema
Faz-se referência ainda a um grupo de ataxias
com modo de transmissão dominante. O início A epilepsia, a doença neurológica mais frequente
dos sintomas é habitualmente na idade adulta; no mundo, define-se como doença neurológica
mas excepcionalmente pode ocorrer na infância estrutural ou funcional, crónica, caracterizada
ou na adolescência, por vezes com uma expressão pela ocorrência de episódios ou crises (crises epi-
clínica diferente. É o caso da doença de Machado- lépticas). Considera-se crise o distúrbio motor,
Joseph (SCA3: spinocerebellar ataxia type3) e da somato-sensitivo, sensorial, psíquico e/ou da
SCA1 (spinocerebellar ataxia type1). consciência, originado por uma descarga eléctrica
súbita, inapropriada e excessiva na substância cin-
AGRADECIMENTOS zenta cerebral. Importa referir que a crise é um sin-
À Dra. Leonor Bastos Gomes (Neurorradiologista do Hospital toma e não um processo patológico em si; com
de Dona Estefânia) pela cedência da foto da Figura 1. efeito, pode constituir a tradução clínica de
variadíssimas situações de etiologia muito diversa,
BIBLIOGRAFIA sendo a duração e a gravidade da doença determi-
Albin RL. Dominant ataxias and Friedreich ataxia: an update. nadas pela causa subjacente. Ou seja, existem
Curr Opin Neurol 2003; 16: 507-514 crises epilépticas e não epilépticas (ver adiante).
Ashley CN, Hoang KD, Lynch DR, et al. Childhood ataxia. Em muitas culturas, ao longo dos séculos, foi-
Clinical features,pathogenesis, key unanswered questions, lhe dada uma interpretação demoníaca ou de
and future directions. J Child Neurol 2012; 27: 1095-1120 feitiçaria, devido às características peculiares das
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011 suas manifestações clínicas. Só no séc. XIX as crises
Fenichel GM. Clinical Pediatric Neurology. Philadelphia: foram reconhecidas como tendo origem numa
Saunders, 2001 anomalia eléctrica cerebral.
Jarman PR, Wood NW. Genetics of movement disorders and Nas últimas décadas ocorreram grandes pro-
ataxia. J Neurol Neurosurg Psychiatry 2002; 73: 22-25 gressos no conhecimento da fisiopatologia da
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson epileptogénese, na caracterização clínica e classifi-
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, cação das crises e das síndromas epilépticas, e
2011 igualmente no âmbito da imagiologia cerebral, da
Ryan MM, Engle EC. Acute ataxia in childhood. J Child Neurol neurofisiologia e de novos medicamentos anti-
2003; 18: 309-316 epilépticos.
Salman MS. The cerebellum: it’s about time! But timing is not Mais recentemente abriu-se o capítulo da
everything- new insights into the role of the cerebellum in tim- cirurgia da epilepsia, com indicação nalguns casos
ing motor and cognitive tasks. J Child Neurol 2002; 17: 1-9 refractários. Trata-se duma modalidade terapêuti-
Tarsy D, Simon DK. Dystonia. NEJM 2006; 355: 818-829 ca mais eficaz e menos dispendiosa do que poli-
terapia durante toda vida.
Salienta-se que, embora a epilepsia possa ser
considerada uma doença crónica extremamente
904 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
grave, interferindo grandemente com o quotidi- escolher qual a medicação mais adequada, impor-
ano, nalguns casos verifica-se remissão espon- ta confirmar se determinado acontecimento pa-
tânea, sendo actualmente tratável na grande roxístico constitui realmente um evento de na-
maioria dos doentes, o que é compatível com uma tureza epiléptica e quais as suas características;
vida praticamente sem limitações. por isso, é fundamental uma completa anamnese
A convulsão, definida como episódio de para correcta descrição do tipo de crise e diagnós-
contracções musculares involuntárias associadas tico diferencial com fenómenos paroxísticos não
ou não a perda de consciência, constitui um dos epilépticos.
exemplos de distúrbio motor atrás referido. As Assim, interessa indagar todos os pormenores,
contracções musculares podem ser mantidas (tipo como as circunstâncias em que ocorreu a crise (no
tónico), ou interrompidas por momentos de rela- sono, na vigília, durante que tipo de actividade,
xamento de duração variável (tipo clónico). Sa- existência de estímulos luminosos ou outros pos-
lienta-se que em cerca de 2/3 dos casos, tais mani- síveis factores precipitantes); sintomas iniciais
festações não são de tipo epiléptico (isto é, não (aura); sinais de focalização e lateralização, desvio
resultam de alteração estrutural ou funcional do dos olhos, movimentos predominantes de uma
SNC); efectivamente, poderão resultar de alte- parte do corpo; se foi generalizada de início ou no
rações somáticas extra-SNC, como febre, infecção, final; qual o tipo de movimentos; se havia hipo ou
síncope, traumatismo craniano, hipóxia, toxinas, hipertonia; se existiu ou não alteração da con-
arritmia cardíaca, etc.. sciência; duração; existência de um período pós-
Outros eventos como “espasmos do choro” ou crítico; se existe mais de um tipo de crises.
pausa expiratória após choro e RGE podem origi- Importa obter, se possível, a descrição do próprio
nar fenómenos motores simulando convulsões. doente mas geralmente são imprescindíveis as
informações de alguém que presenciou a crise.
Aspectos epidemiológicos É fundamental conhecer os anteceentes pes-
soais: gravidez, parto e período perinatal, existên-
A incidência anual nos países do hemisfério norte cia de traumatismos ou doenças (nomeadamente
é cerca de 50-70 casos por 100.000 habitantes e infecciosas, vasculares) podendo originar lesão do
varia grandemente com a idade; os valores mais sistema nervoso central. É importante também
elevados são encontrados na infância e adolescên- saber se existe história familiar de epilepsia ou
cia, diminuindo no adulto jovem e voltando a outras doenças neurológicas.
aumentar no idoso. Foram identificados cerca de 20 genes rela-
A frequência na população em geral é aproxi- cionados com determinadas síndromas epilépti-
madamente 1%. cas, implicados na função neuronal. São citados
Estima-se que em Portugal existam actual- alguns exemplos: o CLCN2 relacionado com o
mente cerca de 5 doentes por 1.000 habitantes. efluxo neuronal do cloro; o CHRNB2 relacionado
A morte súbita inesperada relacionável com a com um dos receptores da acetilcolina; o SCN2A
doença ocorre em cerca de 1 a 5 doentes por 1.000 com o canal do sódio, o início do influxo rápido
habitantes por ano, particularmente naqueles com do sódio e propagação do potencial de acção; o
crises não controladas. A proporção de casos KCNQ3 relacionado com o canal do potássio, etc..
refractários ao tratamento é ~10-20%. O exame objectivo contribui para caracterizar
a situação, destacando-se a importância de um
Etiopatogénese e semiologia exame neurológico completo, da medição do
perímetro cefálico, da pesquisa de organome-
Como já foi referido, para afirmar um diagnóstico gálias no caso das doenças neurometabólicas, de
de epilepsia é geralmente pressuposta a existên- manchas na pele nas doenças neurocutâneas, de
cia de duas ou mais crises; nalguns casos, no sinais dismórficos nas situações geneticamente
entanto poderá ocorrer uma única crise isolada ao determinadas.
longo da vida. Dadas as implicações terapêuticas e de pro-
Antes de se iniciar terapêutica anti-epiléptica e gnóstico, é fundamental esclarecer qual o tipo de
CAPÍTULO 187 Epilepsia 905
Os sintomas e sinais das crises parciais sim- As crises tónicas traduzem-se por hipertonia
ples dependem da região do córtex onde se origi- súbita dos músculos extensores, acompanhada de
na a descarga anómala. Se esta ocorrer na área perda da consciência.
motora, surgirão clonias contralaterais dos mem- Nas crises clónicas há contracções musculares
bros e da hemiface; se em regiões sensoriais, res- mais ou menos rítmicas, envolvendo mais fre-
ponsáveis pela memória ou emoções, poderá quentemente as extremidades superiores, o pescoço
haver, por exemplo, sensações de “déjà vu” ou de ou a face.
medo, alucinações olfactivas, visuais ou auditivas. Nas crises atónicas há perda súbita do tono mus-
De um modo genérico pode dizer-se que “tudo o cular com queda brusca para o chão (também
que o cérebro faz, a epilepsia pode fazer”. chamados “drop attacks”), o que pode originar lesões.
As crises parciais complexas podem ser prece-
didas de uma “aura” (que é, no fundo, uma crise Sindromas epilépticas
parcial simples), percebida pelo doente, seguida de
perturbação da consciência. Têm mais frequente- Além da classificação das crises epilépticas, a ILAE
mente origem nos lobos temporais, mas podem aprovou também a classificação internacional das
partir de outras regiões corticais. O doente perde o epilepsias e síndromas epilépticas (Quadro 2)
contacto com o meio, com olhar fixo ou vago e não entrando em conta com um conjunto de caracterís-
responde com lógica a perguntas ou ordens; fica ticas tais como a idade de início, história familiar de
parado ou executa movimentos sem propósito e epilepsia, tipo(s) de crise, e sinais e sintomas neu-
pode ter automatismos e alterações do tono. Existe rológicos associados. É muito importante tentar o
amnésia para o episódio e segue-se um estado pós- enquadramento da situação de um determinado
crítico de confusão ou sonolência que pode durar doente naquela classificação, o que permitirá definir
minutos ou horas e, muitas vezes, cefaleias. o prognóstico, a escolha mais acertada da terapêuti-
As crises generalizadas são a tradução, logo ca e, eventualmente, o aconselhamento genético.
de início, de um envolvimento difuso e simultâ- As epilepsias e as síndromas epilépticas po-
neo do córtex de ambos os hemisférios com perda dem ser generalizadas (i.e. com crises genera-
da consciência. Como já foi referido, podem ser lizadas) ou focais (i.e. com crises de início focal ou
ausências, crises mioclónicas, tónicas, clónicas, parcial). São consideradas sintomáticas ou secun-
tónico-clónicas e atónicas. dárias quando existir uma causa conhecida (por
As crises tónico-clónicas são muitas vezes pre- exemplo uma lesão cerebral); e idiopáticas ou
cedidas de um grito, podendo ocorrer queda mais criptogénicas se não estiver identificada etiologia.
ou menos súbita; há uma fase tónica inicial segui-
da de movimentos convulsantes, eventualmente Seleccionámos algumas destas síndromas que,
com rotação dos globos oculares, mordedura da pela sua frequência e/ou gravidade, têm maior
língua, sialorreia ou perda de controlo de esfínc- relevância na prática clínica: epilepsia rolândica
teres. A duração é variável, seguindo-se um perío- benigna, epilepsia de ausências, epilepsia mioclóni-
do pós-crítico com confusão e/ou sonolência, e ca juvenil, espasmos infantis/síndroma de West,
cefaleias. sindroma de Lennox-Gastaut, convulsões febris e
Nas ausências há interrupção abrupta da cons- estado de mal epiléptico.
ciência, geralmente breve (segundos), muitas Já existem actualmente estudos conclusivos
vezes em salvas. Tipicamente o doente fica com o acerca da origem genética de algumas destas sín-
olhar parado, interrompe a actividade que estava dromas e, cada vez mais, o conhecimento das epi-
a executar, pode ter movimentos de pestanejo ou lepsias se baseará na sua caracterização genética.
de mastigação, logo retomando a actividade sem
se aperceber do ocorrido. Epilepsia rolândica benigna
As crises mioclónicas consistem em contrac- Nesta forma de epilepsia benigna também desi-
ções musculares, súbitas e breves, isoladas ou em gnada por epilepsia benigna da infância com pon-
salvas, que podem envolver qualquer grupo mus- tas centro-temporais, existe grande incidência
cular . familiar; as crises surgem entre os 3 e os 12 anos
CAPÍTULO 187 Epilepsia 907
em indivíduos com capacidades cognitivas e e bem toleradas pelos doentes e seus pais, muitas
exame neurológico normais, sem lesão estrutural vezes decide-se pela não medicação. O prognóstico
subjacente. É das epilepsias mais frequentes na é excelente, com remissão pelos 13 – 16 anos.
criança. As crises ocorrem quase sempre durante o
sono, têm início focal, cursando com clonias da Epilepsia de ausências
região peribucal ou da hemiface, parestesias da Trata-se duma forma de epilepsia generalizada
língua, impossibilidade de falar, salivação, inicial- idiopática ou primária, com forte carga genética;
mente com consciência preservada, podendo ge- inicia-se entre os 4 e os 12 anos, com interrupção
neralizar-se. súbita da actividade e da consciência, durando 5-
O electroencefalograma (EEG) é característico, 20 segundos, com olhar parado, por vezes pesta-
com pontas na região centro-temporal, muito exa- nejo e/ou mastigação. Geralmente as crises ocor-
cerbadas pelo sono. As crises são geralmente fáceis rem em salvas, inúmeras vezes por dia. O EEG
de controlar com os antiepilépticos e, se forem raras tipicamente mostra breves descargas de pontas-
908 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
ondas a 3 Hz. A maioria dos casos de ausências sário recorrer à terapêutica com corticóides, no-
típicas cede bem à terapêutica, havendo remissão meadamente com ACTH.
na adolescência. O prognóstico é reservado, sobretudo nas for-
mas sintomáticas: a mortalidade atinge 10-20% e,
Epilepsia mioclónica juvenil dos casos que sobrevivem, em cerca de 75% virá a
É também uma epilepsia generalizada idiopática, desenvolver-se atraso importante do desenvolvi-
com incidência familiar; começa na adolescência mento psicomotor e, em metade destes, epilepsia.
em jovens neurologicamente normais, com abalos Poderá haver igualmente evolução para síndroma
mioclónicos, repetidos ou isolados, geralmente de Lennox-Gastaut (SLG) abordada a seguir.
pouco após o acordar, sem perda de consciência.
Pode haver também ausências, crises tónico-clóni- Sindroma de Lennox-Gastaut
cas generalizadas (sobretudo ao acordar) ou fotos- A síndroma de Lennox-Gastaut (SLG) é uma das
sensibilidade. A privação de sono ou o álcool formas mais graves e de pior prognóstico – entre
podem precipitar uma crise. A terapêutica com as epilepsias da criança; caracteriza-se pela exis-
valproato de sódio é muito eficaz mas, se o trata- tência de vários tipos de crises, atraso e/ou dete-
mento for interrompido, é habitual a recaída. Daí rioração progressiva do desenvolvimento global,
a importância do diagnóstico correcto e da adesão problemas de comportamento e anomalias no
do doente a uma terapêutica para toda a vida. EEG que incluem electrogénese de base lenta e
mal diferenciada, sobrepondo-se actividade de
Espasmos infantis / Síndroma de West ponta-onda lenta anterior, a 2-2.5 Hz.
Os espasmos infantis são uma forma de epilepsia, Muitas doenças do sistema nervoso central
fundamentalmente dos lactentes; consistem em podem cursar com SLG, verificando-se geral-
crises muito breves, tónicas, tipicamente em mente um exame neurológico alterado. As crises
flexão, (podendo ser em extensão), envolvendo o são muito frequentes e refractárias à terapêutica,
tronco, o pescoço e as extremidades. Podem ocor- coexistindo ausências atípicas, crises tónico-clóni-
rer isoladamente, mas quase sempre fazem parte cas, mioclónicas, atónicas (com quedas muitas
da síndroma de West, que se define pela existência vezes violentas), tónicas (estas ocorrendo tipica-
de espasmos, regressão do desenvolvimento psi- mente durante o sono).
comotor e padrão de hipsarritmia no electroence-
falograma (electrogénese de base desorganizada a Convulsões febris
que se sobrepoem pontas-ondas amplas, difusas e Definições, etiopatogénese e importância
ondas lentas irregulares). do problema
Os espasmos iniciam-se antes do primeiro ano As chamadas convulsões febris, fortemente influ-
de vida, mais frequentemente entre os 4 e os 6 enciadas por factores genéticos, constituem um
meses, podendo ocorrer dezenas ou centenas por grupo especial dentro da classificação internacional
dia, por vezes em salvas. das epilepsias e síndromas epilépticas: convulsões
A síndroma de West pode ser idiopática, (atrás definidas) associadas a febre, geralmente du-
(quando não é conhecida a sua causa e o desen- rante a subida térmica e sem evidência de outra
volvimento prévio da criança era normal) ou ser causa precipitante (pressupondo nomeadamente,
sintomática, i.e., causada por uma situação subja- que não existe infecção do sistema nervoso central).
cente. Existem inúmeras possíveis etiologias, Por vezes é após a crise que se nota a febre.
nomeadamente anomalias do sistema nervoso Nos casos de convulsões recorrentes sem febre
central, lesão do sistema nervoso central perinatal (relacionáveis com epilepsia) há maior probabili-
ou pós natal, doenças neurometabólicas ou outras dade de a febre desencadear uma crise; neste caso
geneticamente determinadas, como por exemplo a não se trata da chamada convulsão febril, mas de
esclerose tuberosa, situação que evolui para sín- convulsão com febre.
droma de West em quase metade dos doentes. As convulsões febris surgem em cerca de 3-4%
A síndroma de West dificilmente cede aos das crianças entre 18 meses e 3 anos com um “pico”
antiepilépticos usuais, sendo muitas vezes neces- entre 14 e 18 meses.
CAPÍTULO 187 Epilepsia 909
ictal e uma correcta caracterização de muitos dos redução do número de crises, não são dirigidas à
casos de epilepsia, nomeadamente nos doentes origem das doenças ou lesões neurológicas subja-
candidatos a cirurgia da epilepsia. centes. Contudo, constituem a pedra angular do
De mencionar a utilidade do EEG no diagnós- tratamento destes doentes, actuando como estabi-
tico do estado de mal não convulsivo e no dia- lizadores da neurotransmissão, quer inibindo a
gnóstico diferencial com pseudocrises e outros excitabilidade neuronal, quer aumentando o
fenómenos paroxísticos não epilépticos. efeito polarizante do ácido gama-amino-hidroxi-
Destaca-se a importância de os clínicos conhe- butírico (GABA) (neurotransmissor inibitório). Os
cerem as indicações e os limites do EEG e a neces- mecanismos da epileptogénese, a farmacodinâmi-
sidade de ser fornecida ao electroencefalografista ca das DAE e o seguimento de epilepsias refrac-
uma informação clínica o mais completa possível tárias estão fora do âmbito deste livro, pelo que
para uma correcta interpretação. apenas se abordam as regras gerais do tratamento
Na maioria dos casos de epilepsia é essencial a dos doentes com a patologia em análise.
realização de exames de imagem cerebral para Salienta-se desde já, aliás como em todas as
uma correcta caracterização, sobretudo nas doenças crónicas, a necessidade da estreita cola-
epilepsias parciais. Com as técnicas actualmente boração entre o especialista, neste caso o neurope-
disponíveis é possível encontrar sinais de lesão diatra, e o pediatra ou médico de família. No caso
estrutural em cerca de 50% dos doentes com crises de epilepsias estáveis (por exemplo epilepsia
de início focal. rolândica benigna, epilepsia de ausências), as con-
A ressonância magnética nuclear (RMN) sultas de neuropediatria poderão ser bastante
cerebral tem maior sensibilidade e, salvo raras espaçadas e os pequenos reajustamentos terapêu-
excepções, pode afirmar-se que em epileptologia a ticos, ou exames analíticos ser realizados pelo
tomografia axial computadorizada (TAC) só deve- médico assistente.
rá ser realizada se a RMN não estiver disponível, Só deve iniciar-se uma terapêutica com DAE
ou nos doentes em que esta última esteja contra- quando o diagnóstico de epilepsia for seguro, o
indicada. Variando com o grupo etário, são exem- que nem sempre é fácil; daí a importância da
plos de lesões detectáveis pela RMN: displasias anamnese e dos outros aspectos descritos ante-
corticais e anomalias artério-venosas nas crianças; riormente. O início do tratamento deve ser guiado
esclerose mesial, sequelas de traumatismo crani- pela epidemiologia e por factores individuais, e os
ano, tumores cerebrais, lesões vasculares no riscos e benefícios discutidos amplamente com o
jovem; acidentes vasculares, doenças degenerati- doente e/ou familiares. Como já foi referido, é
vas cerebrais, neoplasias primárias e secundárias. fundamental tentar um diagnóstico sindrómico
Embora não indicadas em avaliações de rotina, pois, considerando os diferentes mecanismos de
técnicas de neuroimagem como a RMN funcional, acção das várias DAE, sabe-se que existem
a tomografia com emissão de positrões (PET) ou a medicamentos mais eficazes e outros contra-indi-
RMN com espectroscopia têm especial interesse cados em certas circunstâncias. Por exemplo o val-
nos doentes candidatos a cirurgia da epilepsia. proato de sódio é de primeira escolha nas epile-
psias generalizadas enquanto a carbamazepina
Tratamento está indicada nas crises parciais, podendo agravar
uma epilepsia generalizada.
Atendendo a que a epilepsia é uma doença cróni- Do Quadro 3, que discrimina algumas das
ca e considerando as suas particularidades (por regras gerais da terapêutica antiepiléptica, salien-
exemplo o aparecimento inesperado das crises, o ta-se a preferência, sempre que possível, pela
estigma social, a terapêutica diária e prolongada), monoterapia e a introdução das DAE em doses
deve dar-se especial atenção ao acompanhamento crescentes. Salienta-se ainda a variabilidade indi-
psico-social e familiar destes doentes, além do vidual na eficácia e na tolerância a estes medica-
tratamento medicamentoso. mentos; daí a necessidade de medicação adaptada
Apesar de as drogas antiepilépticas (DAE) a cada doente e, no mesmo doente, ao longo do
serem parcialmente eficazes na eliminação ou tempo. Em relação aos doseamentos das DAE
912 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 3 – Regras gerais da terapêutica dos para as epilepsias de mais difícil controlo. Tal
antiepiléptica acontece também em situações de terapêuticas inva-
sivas para algumas situações mais refractárias, como
– Início se houver um diagnóstico seguro de epilepsia implantação de um estimulador do vago (medida
– Os doentes (ou os pais) devem compreender as razões paliativa) e cirurgia potencialmente curativa
do tratamento e estar motivados para os benefícios da (ressecção cortical focal, hemisferectomia, etc.) ou
terapêutica. A má adesão é causa frequente de insucesso paliativa (por ex. corpo calosotomia). Os candidatos
– Usar os antiepilépticos mais apropriados para o tipo a estas intervenções devem reunir indicações muito
de crise (caracterização clínica – EEG) precisas e ser exaustivamente estudados em centros
– Iniciar em monoterapia (sempre preferível), em doses diferenciados.
crescentes Em suma, a maioria das pessoas com epilepsia
– Aumentar as doses até ao controlo das crises ou até pode actualmente ter uma vida normal ou quase
aparecimento de efeitos secundários normal. Contudo, para aquelas em que o controlo
– Usar durante tempo suficiente para avaliar a eficácia das crises se revela mais difícil, algumas espe-
– Se for necessário, substituir gradualmente um antiepi- ranças existem face aos grandes avanços a decorrer
léptico por outro em epileptologia, quer no âmbito da fisiopatolo-
– Somente se deve passar a politerapia se se verificar gia, genética e da investigação diagnóstica (neu-
insucesso em monoterapia roimagiologia e neurofisiologia), quer ainda no
– O doente deve elaborar um “calendário de crises” âmbito da terapêutica médica e cirúrgica.
– Usar o menor número possível de tomas diárias (para
facilitar a adesão) BIBLIOGRAFIA
– Verificar a adesão Aicardi J, Arzimanoglou A, Guerrini R. Epilepsy in Children.
– Evitar outros medicamentos não indispensáveis (veri- Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins, 2004
ficar interacções) Allen JE, Ferrie CD, Livingston JH, Feltbower RG. Recovery of
– Vida “regrada”: ritmo regular de sono / vigília / álcool…
consciousness after epileptic seizures in children. Arch Dis
– Após 1 a 3 anos sem crises: suspensão gradual das DAE
Child 2007; 91: 39-41
– Os antiepilépticos têm muitos efeitos colaterais (pes-
American Academy of Pediatrics. Clinical Practice Guideline.
quisar sistematicamente).
Febrile sizures:guideline for the neurodiagnostic evalua-
Notas: tion of the child with a simple febrile seizure. Pediatricas
1 – as situações de epilepsia deverão ser seguidas em centros especializados.
2 – as terapêuticas prolongadas implicam o doseamento sérico de determinados fármacos 2011; 127: 389-394
(por exemplo fenobarbital, fenitoína, etc.) na perspectiva da eficácia e/ou da tocixidade.
Cross JH. Differential diagnosis of epileptic seizures in infan-
cy including the neonatal period. Seminars in Fetal and
disponíveis na prática clínica diária (valproato de Neonatal Medicine 2013; 18:192-195
sódio, carbamazepina, fenitoína e fenobarbital), Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona:Ergon,2011
importa referir que, estando o doente sem crises e Deonna T. Management of epilepsy. Arch Dis Child 2005; 90: 5-9
não sendo observados efeitos secundários, não French JA. First-choice drug for newly diagnosed epilepsy.
deverão ser alteradas as doses das DAE indepen- Lancet 2007; 369: 970-971
dentemente dos níveis séricos. Guerrini R. Epilepsy in children. Lancet 2006; 367: 499-524
Apesar da introdução mais ou menos recente de Hrabok M, Sherman EM, Bello-Espinosa L, et al. Memory and
novos medicamentos antiepilépticos, a maioria dos health-related quality of life in severe pediatric epilepsy.
doentes encontra-se bem controlada com as DAE já Pediatrics 2013; 131: e525-e532
estabelecidas, como o valproato de sódio, a carba- Lee JYK, Adelson PD. Neurosurgical management of pediatric
mazepina, a difenil-hidantoína, o fenobarbital, a epilepsy. Pediatr Clin North Am 2004; 51: 441-465
primidona, o clobazam, o clonazepam ou a etossu- Sidhu R, Velayudam K, Barnes G. Pediatric seizures. Pediatr
ximida. São exemplos de novos antiepilépticos, Rev 2013; 34: 333-342
quase todos usados como medicamentos de segun-
da linha e em terapia de associação: lamotrigina,
topiramato, vigabatrim, oxcarbazepina, gabapenti-
na, tiagabina, felbamato, zonizamida. Estes são usa-
CAPÍTULO 188 Acidentes vasculares cerebrais 913
188
a hemorragia secundária, tornando necessário
considerar muitas situações de trombose no dia-
gnóstico diferencial de hemorragia.
Os AVC isquémicos podem ser de origem arte-
rial ou venosa. Alguns factores etiológicos são
comuns aos vários tipos de AVC, diferindo muitas
ACIDENTES VASCULARES vezes consoante o grupo etário e o tipo de associa-
ção de vários factores de risco.
CEREBRAIS Os factores etiológicos de AVC em idade
pediátrica são numerosos e diferem grandemente
Clara Abadesso e José Pedro Vieira dos verificados nos adultos. Estão relacionados com
a idade e são frequentemente múltiplos (Quadro 1).
A verificação de AVC intra-uterino tem sido
associada a múltiplos factores etiológicos, sendo
Aspectos epidemiológicos que nalguns casos a evidência é apenas marginal:
e importância do problema trauma, pré-eclampsia, diabetes materna, uso de
drogas pela mãe (ex. cocaína), infecção fetal (em
Nas últimas duas décadas, a incidência de acidentes particular por citomegalovírus), várias doenças
vasculares cerebrais (AVC) em idade pediátrica tem fetais que causam hidropisia fetal. Admite-se tam-
aumentado, sendo referidas actualmente frequências bém que algumas trombofilias (nomeadamente
entre 3 e 8 por 100.000 crianças por ano. Essencial- relacionada com a mutação de Leiden do Factor
mente duas circunstâncias poderão explicar este V) desempenham também um papel na etiologia
aumento: a utilização dos métodos de neuroimagem de enfartes cerebrais na vida intra-uterina.
mais sensíveis e específicos – tomografia axial com- Nos recém-nascidos a etiologia do AVC na
putadorizada (TAC), ressonância magnética nuclear maioria dos casos é desconhecida. Os dados da li-
(RMN), angiorressonância (ARM) e estudos ecográfi- teratura apontam para uma prevalência de enfarte
cos cranianos – permitindo o diagnóstico de peque- arterial neonatal de cerca de 1/4.000; poderá ser
nas lesões anteriormente indetectáveis; por outro superior, dado que se presume que nem todos
lado, tratamentos mais eficazes têm permitido maior sejam sintomáticos inicialmente. É mais provável
sobrevivência de doentes em risco de complicações enfarte embólico (de origem placentar ou cardía-
vasculares, incluindo prematuridade, cardiopatia ca) do que enfarte trombótico. É possível que situ-
congénita, anemia de células falciformes e leucemia. ações de trombofilia (congénita, ou adquirida
Diferenças importantes entre os AVC de adultos como anticorpos maternos com transmissão
e crianças colocam, por vezes, dificuldade no reco- transplacentar – anticorpos antifosfolípidos)
nhecimento e tratamento desta situação. Estas dife- desempenhem papel importante. Estão ainda
renças incluem: 1) a relativa raridade desta patologia descritos como prováveis factores etiológicos:
nas crianças, aliada a apresentações clínicas subtis e trauma, sépsis e asfixia.
inespecíficas nas mais jovens 2) a multiplicidade de Deve salientar-se que um enfarte cerebral
factores de risco que muitas vezes se sobrepõem; 3) neonatal é uma importante causa de convulsões
diferenças de desenvolvimento nos sistemas neu- neonatais (12 a 17,5% segundo várias séries).
rológico, cerebrovascular e da coagulação. Estas Nalguns lactentes em que se diagnostica hemi-
diferenças limitam muitas vezes a extrapolação dos plegia verifica-se lesão cerebral vascular exibindo
resultados dos estudos de investigação em adultos padrão compatível com ocorrência na vida fetal
sobre AVC para a idade pediátrica. tardia ou pós-natal.
Nalgumas crianças (com cardiopatia estrutural
Classificação e etiopatogénese conhecida ou com anemia de células falciformes)
a causa do AVC é óbvia. Em crianças com doenças
Os AVC podem ser de tipo isquémico ou hemor- crónicas que predispõem para AVC, uma intercor-
rágico. Os AVC isquémicos dão, por vezes, origem rência aguda, como desidratação, sépsis e outras,
914 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
podem precipitar um AVC. No entanto, em cerca primariamente vascular). Neste grupo o diagnós-
de 50% dos casos o AVC ocorre em crianças sem tico etiológico mais frequente foi dissecção arterial
doença prévia conhecida. e síndroma moya-moya.
Num estudo com documentação angiográfica Estudos recentes concentraram-se de novo no
cerca de 50% dos enfartes cerebrais em crianças papel de varicela como causador de vasculopatia
eram devidos a uma arteriopatia (a uma anomalia cerebral: num destes verificou-se que tal infecção
CAPÍTULO 188 Acidentes vasculares cerebrais 915
(no período de 12 meses antecedendo o AVC) crianças com varicela, associa-se a enfarte dos
tinha sido três vezes mais frequente que a incidên- gânglios da base e estenose da carótida interna
cia num grupo controlo. distal, artérias cerebrais anterior, média e posteri-
Para além dos factores de risco adquiridos or proximal.
(como os anticorpos antifosfolípidos) e do risco O enfarte isquémico pós-herpes zoster oftálmico
protrombótico, estão descritas várias anomalias (vários dias ou semanas após a erupção cutânea)
genéticas que podem influenciar o risco de trom- pode ocorrer por trombose no território da artéria
boembolismo (em muitos casos arterial e venoso) cerebral média ipsilateral, provavelmente resultante
associadas a factores ambientais, como trauma, da invasão da artéria através do nervo trigémio.
imobilização, septicémia, etc.. A meningite pode causar inflamação dos vasos
O papel de alguns dos factores de risco tradi- cerebrais que atravessam o espaço subaracnoideu
cionais na população adulta como dislipopro- infectado e promover oclusão venosa ou arterial.
teinémia ou hipertensão arterial pode ser também A vasculite cerebral associada a vasculites sis-
relevante em idade pediátrica. témicas ou outras doenças é uma causa relativa-
O AVC pode ainda ser a manifestação inicial mente rara de AVC em crianças (sendo o lúpus
de uma doença sistémica como lúpus eritematoso eritematoso disseminado a causa mais importante
disseminado, diabetes ou neoplasia. neste grupo).
A identificação de factores de risco de doença A dissecção das artérias carótida ou vertebral
cerebrovascular é, pois, extremamente importante pode ocorrer em associação com traumatismo cra-
dado que a recorrência e o prognóstico estão forte- niano, cervical ou intra-oral, ou espontaneamente.
mente relacionados com o número e o tipo de fac- A dissecção é diagnosticada em 9-20% de crianças
tores de risco. Por outro lado, o tratamento de um com AIA. O défice neurológico pode surgir ime-
episódio agudo e a prevenção das recorrências diatamente após a lesão ou tardiamente. As
dependem da causa subjacente. descrições iniciais referem casos de dissecção
usualmente traumática das artérias carótidas e
Manifestações clínicas vertebrais, mas provou-se que pode ocorrer tam-
bém dissecção no território vascular intracraniano.
Nesta alínea são descritos os AVC de tipo isqué- A síndroma moyamoya é uma vasculopatia
mico e hemorrágico, realçando o papel de factores cerebral da infância, progressiva e grave, que con-
de risco. siste na oclusão gradual das artérias intracrani-
anas, com subsequente desenvolvimento de uma
1. Acidente isquémico arterial (AIA) rede de pequenos vasos colaterais que dá o aspec-
A presença de vasculopatia constitui factor de to angiográfico característico (“puff of smoke”).
risco de AIA e de recorrência; daí a importância de Pode ser idiopática (maioria dos casos) ou estar
a caracterizar. relacionada a síndromas genéticas (neurofibro-
Existe um grande espectro de vasculopatias, matose, trissomia 21), ou ainda a lesões adquiri-
algumas reversíveis, outras progressivas. das das artérias cerebrais como a vasculopatia da
A chamada arteriopatia cerebral transitória radiação ou anemia de células falciformes.
monófasica da infância pode corresponder ao tipo A vasculopatia pós-irradiação apresenta-se
mais comum de arteriopatia em crianças com como uma estenose progressiva dos grandes
AIA. A etiologia desta situação não é conhecida e vasos, com acidentes isquémicos transitórios ou
o respectivo diagnóstico baseia-se apenas no qua- AVC vários meses a anos após irradiação de
dro clínico e imagiológico (incluindo a aparência gliomas do quiasma óptico ou outros tumores da
em angiografia). região selar ou supra-selar.
A angiopatia pós-varicela (uma arteriopatia A anemia de células falciformes (ACF) é a causa
transitória) que ocorre semanas a meses após mais frequente de AVC em crianças, em determi-
episódio de varicela não complicada, tem sido nadas áreas geográficas. (Figura 1) (Capítulo 143)
cada vez mais reconhecida como causa de enfarte Com a idade de 20 anos em cerca de 11% dos
isquémico. Com uma incidência de 1/15.000 doentes homozigóticos (HbSS) verifica-se o pro-
916 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
défices sensitivos focais, para além da hemiparésia. em 35-45% dos casos e relacionam-se com a pre-
Na síndroma moyamoya os doentes apresen- sença de enfarte venoso. As convulsões podem
tam-se com enfarte cerebral agudo. Têm sido des- ocorrer como primeira manifestação em 70% dos
critos também acidentes isquémicos transitórios, recém-nascidos e em 48% de crianças com TSV.
hemiplegia alternante, coreia ou outras doenças
do movimento. Pode ocorrer disfunção clínica 3. Hemorragia cerebral
insidiosa, com deterioração intelectual, cefaleia As malformações vasculares (malformações e fís-
crónica ou alterações da linguagem. A frequência tulas arteriovenosas) são a principal causa de
dos acidentes isquémicos é maior nos primeiros 4 hemorragia intraparenquimatosa e subaracnoideia
anos após o início dos sintomas. Nos doentes mais não traumática em crianças.
velhos há um risco de hemorragia subaracnoideia. Os aneurismas arteriais ocorrem menos fre-
As convulsões podem acompanhar o AVC em quentemente em crianças e adolescentes que nos
cerca de 50% das crianças. adultos. As malformações cavernomatosas tam-
bém podem originar AVC hemorrágico na idade
2. Trombose sinovenosa pediátrica.
A trombose dos seios venosos (TSV) pode resultar A hemorragia cerebral pode ocorrer em situa-
de uma combinação de factores intravasculares e ções de trombocitopénia com valores inferiores a
vasculares. 20.000/mmc embora raramente; quando surge,
Os recém-nascidos são o grupo etário com está associada a trauma.
maior incidência de TSV. Os factores de risco asso- Várias coagulopatias hereditárias ou adquiri-
ciados com AVC no período neonatal são: estados das têm sido associadas a hemorragia intracrania-
de hipercoagulabilidade maternos, hematócrito na: a hemofilia A e B, outros défices congénitos de
elevado, shunt intracardíaco direito-esquerdo factores da coagulação (ex. factor VII, XIII), o
transitório, asfixia, sépsis e desidratação. défice da vitamina K em recém-nascidos (actual-
As infecções localizadas da cabeça e pescoço, mente raro devido à administração de vitamina K
como mastoidite, meningite, sinusite e otite média após o parto), a coagulopatia secundária a doença
existem em cerca de 23% das crianças com TSV, hepática ou a coagulação intravascular dissemina-
predominando no grupo etário pré-escolar. da. Embora o risco individual relativamente a
Doenças sistémicas crónicas, incluindo lúpus cada uma destas doenças não seja elevado, o seu
eritematoso sistémico, síndroma nefrótica, doença risco colectivo é considerável.
inflamatória intestinal, doenças hematológicas, Nas crianças com ACF a hemorragia é menos
doenças cardíacas e outras, são factores de risco comum que o enfarte, podendo ocorrer hemorra-
subjacentes, presentes em 60% dos casos e nas cri- gia subaracnoideia e intraparenquimatosa, parti-
anças mais velhas. cularmente em doentes mais velhos.
Os estados pró-trombóticos são factor de risco De referir a possibilidade de transformação
de trombose venosa ou arterial. hemorrágica de um enfarte isquémico, venoso ou
Nas TSV podem ocorrer enfartes do parên- arterial, o que amplia o diagnóstico diferencial das
quima cerebral (cerca de 40% dos casos). hemorragias intraparenquimatosas. O enfarte
A TSV em recém nascidos manifesta-se mais fre- hemorrágico é provavelmente mais comum após
quentemente com convulsões e letargia. Os embolia do que após trombose, sendo importante
lactentes com oclusão sinovenosa extensa podem considerar o risco de hemorragia em crianças com
apresentar dilatação das veias da cabeça, fontanela embolismo, que requerem anticoagulação.
anterior procidente e diastase das suturas cranianas. A hemorragia no interior de um tumor intrace-
Em crianças mais velhas a apresentação mais rebral é relativamente comum. É mais frequente em
frequente é a de um quadro clínico de “pseudotu- tumores de alta malignidade, como os meduloblas-
mor cerebri”, com cefaleias, papiledema e, ocasio- tomas ou os tumores neuroectodérmicos primitivos.
nalmente, parésia do VI° par uni ou bilateral. A encefalopatia hemorrágica pode constituir
Estão presentes alterações visuais em 18% dos complicação da hipernatrémia grave. Os achados
casos; hemiparésia e outros sinais focais surgem patológicos característicos são: múltiplas hemorra-
918 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
A anticoagulação é usada em crianças com dis- • Tratamento agressivo da febre e das convul-
secção arterial, trombose dos seios venosos, doenças sões (situações que aumentam as necessida-
da coagulação, trombose recorrente ou elevado des metabólicas, podendo aumentar a área
risco de embolismo (ex. coágulo intracardíaco). cerebral com isquémia).
b) Varfarina
A utilização de varfarina constitui o meio de anti- Tratamento neurocirúrgico
coagulação prolongada mais eficaz. A experiência • Drenagem nos AVC hemorrágicos
clínica sugere que pode ser usada em crianças e ado- • Descompressão cirúrgica de grandes enfar-
lescentes com razoável segurança. As crianças afec- tes – hemicraniectomia
tadas deverão evitar actividades com risco de lesão • Derivação ventriculoperitoneal
traumática tais como desportos de contacto. • Procedimentos de revascularização (ex. na
As principais indicações incluem: cardiopatia síndroma moyamoya), trombectomia, etc..
congénita ou adquirida, estados de hipercoagula-
bilidade, dissecção arterial e trombose dos seios Prognóstico
venosos.
O prognóstico difere consoante as séries. No re-
Fibrinolíticos gisto canadiano os principais dados apontam para
Os fibrinolíticos actualmente não estão indicados probabilidade de morte ~ 10% e para défice neu-
nos AVC em crianças, devido ao risco elevado de rológico em 50% dos casos. A sequela neurológica
complicações hemorrágicas e à falta de estudos de mais frequente é a hemiparésia, mas também ocor-
eficácia/segurança. rem défices residuais menos óbvios (compromisso
Em adultos, os benefícios do activador do plas- da linguagem e outros défices corticais, problemas
minogénio tecidual (r-tPA) parecem sobrepor-se na aprendizagem e comportamento, etc.).
bastante aos riscos se o mesmo for usado nas A epilepsia surge em 10 a 15% das crianças
primeiras 3 horas após o início dos sintomas de afectadas com AVC. A recorrência estimada de
AVC. Dado haver frequentemente atraso no dia- AVC isquémico é inferior a 5% em recém-nascidos,
gnóstico de AVC em crianças, esta terapêutica e 20 a 30% em lactentes e crianças mais velhas.
raramente poderá estar indicada. Nas TSV os enfartes venosos e a ocorrência de
convulsões na apresentação são factores predi-
Transfusão tivos de pior prognóstico.
Nos casos de ACF a prevenção de recorrência faz-
se com transfusões regulares (cada 4-6 semanas). BIBLIOGRAFIA
O estudo por ecodoppler transcraniano per- Askalan R, Laughlin S, Mayank S, Chan A, Macgregor D,
mite identificar crianças em risco que devem ser Andrew M, Curtis R, Meaney B, deVeber G. Chickenpox
submetidas a um tratamento hipertransfusional and stroke in childhood: a study of frequency and causa-
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crónica de ferro, com toxicidade cardíaca e endó- Chabrier S, Husson B, Lasjaunias P, Landrieu P, Tardieu M.
crina) têm levado a considerar alternativas tera- Stroke in childhood: outcome and recurrence risk by mech-
pêuticas como a perfusão de hidroxiureia (que anism in 59 patients. J Child Neurol 2000; 15: 290-294
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acute management and areas of research. J Pediatr 2013; do movimento e ou postura e da função motora e
162: 227-235 devidas a interferência /lesão /anomalia não pro-
gressiva do desenvolvimento do cérebro imaturo.”
Trata-se dum termo de conveniência, baseado
na avaliação clínica duma combinação de sinais e
sintomas englobando situações neurológicas hete-
rogéneas com múltiplas etiologias, de origem cere-
bral.
Devem ser excluídas todas as situações progres-
sivas resultando de perda de competências adquiri-
das, as doenças da medula espinhal e os casos em
que a hipotonia constitui o único sinal neurológico.
Depois do atraso mental é a causa de incapaci-
dade neurológica mais frequente na criança.
Na PC a deficiência motora é habitualmente a
mais evidente, com realce para a presença de sinais
piramidais ou extrapiramidais; contudo, é fre-
quente a ocorrência simultânea de perturbações
sensoriais sobretudo visuais e auditivas, com-
promisso da linguagem e fala, atraso cognitivo,
dificuldades na aprendizagem, epilepsia e altera-
ções comportamentais.
Aspectos epidemiológicos
FIG. 2
Vias e estruturas atingidas nos diferentes tipos de paralisia cerebral. (Cerebelo assinalado a cor na figura do meio)
Agentes teratogénicos
Complicações do trabalho de parto
(chumbo, mercúrio) Acidente vascular cerebral
(asfixia perinatal, trauma)
Drogas maternas ou álcool
Infecção do sistema
Vasculares
nervoso central
(hipóxia, isquémia, trombose, Convulsões neonatais
(Enterobacteriáceas, Streptococcus do
hemorragia, embolia)
grupo B, Listeria)
Incompetência cervical ou
hemorragia do 3º trimestre
Gravidez gemelar
CAPÍTULO 189 Paralisia Cerebral 923
Mais atingido
Menos atingido
FIG. 3
Envolvimento anatómico nas paralisias cerebrais espástica e discinética.
924 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
10, a recuperação da função é tanto mais eficaz Andrada MG, Virella D, Folha T, Gouveia R, Cadete A,
quanto mais precoce, intensiva e continuada for a Alvarelhão JJ, Calado E. Paralisia Cerebral aos 5 Anos de
estimulação com técnicas de neurodesenvolvimen- Idade (Crianças com PC nascidas em entre 2001 e 2003).
to realizadas por profissionais especializados, com Lisboa: APPC,UVP/SPP,SCPE, 2013
colaboração dos pais e as ajudas técnicas neces- Campagnoni AT, et al (eds). Developmental Neuroscience.
sárias. Basel: Karger, 2008
Nos últimos anos o uso da toxina botulínica Cans C, McManus V, Crowley M, Guillem P, Platt MJ, Johnson
veio diminuir significativamente o número de A, Arnaud C. Cerebral palsy of post-neonatal origin: char-
intervenções ortopédicas. No grupo do EEEPC acteristics and risk factors. Surveillance of Cerebral Palsy in
receberam toxina botulínica 41% dos casos de Europe Collaborative Group. Paediatr Perinat Epidemiol.
diplegia, 23% de tetraparésias e 13% de 2004; 18: 214-220
discinésias, num total de 20 casos, até 2006. Ainda Fairhurst C. Cerebral palsy:the whys and hows. Arch Dis Child
num número significativo de doentes é necessário Educ Practice 2012; 97:122-131
actuar cirurgicamente, quer nas regiões tendi- Hagberg H, Mallard C. Effect of inflammation on central nerv-
nosas, quer ósseas. Quando existem já contrac- ous system development and vulnerability. Curr Opin
turas, a cirurgia ortopédica aplicada criteriosa- Neurol 2005; 18: 117-123
mente será a única solução. Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
O recurso à cirurgia da cifoscoliose tem vindo AA(eds). Rudolph’_s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
a aumentar nas formas graves de PC, no sentido Medical, 2011
de melhorar a postura em doentes não ambu- Senner JE, Logemann J, Zecker S, Gaebler-Spira D. Drooling,
lantes e preservar a função respiratória. saliva production, and swallowing in cerebral palsy. Dev
A terapêutica farmacológica oral antiespásti- Med Child Neurol. 2004; 46: 801-806
ca tem a vantagem de ser de fácil administração, Vale MC. Classificação internacional de funcionalidade:con-
mas habitualmente à custa de efeitos secundários ceitos, preconceitos e paradigmas. Acta Pediatr Port 2009;
importantes. As mais usadas são o baclofeno, o 40:229-236
diazepam e o dantroleno. Zonta MB, Ramalho-Júnior, Santos LHC. Avaliação funcional
A rizotomia dorsal selectiva, que envolve a na Paralisia Cerebral. Acta Pediatr Port 2011; 42: 27-32
secção de cerca de 50% das raízes dorsais, diminui Walter SD, Raina P, Galuppi BE, Wood E. Limb distribution,
a espasticidade dos membros inferiores, melho- motor impairment, and functional classification of cerebral
rando a posição de sentado e a marcha; é uma palsy. Dev Med Child Neurol 2004; 46: 461-467
opção terapêutica, sobretudo nas diplegias espás-
ticas graves.
A perfusão contínua intratecal de baclofeno
está indicada, sobretudo nos doentes com espastici-
dade dos membros inferiores, sendo de referir que
já foram descritos benefícios quanto à espasticidade
dos membros superiores e às formas distónicas.
A gastrostomia nos casos graves de PC (como
as tetraparésias com componente pseudobulbar)
melhora significativamente o estado nutricional e
a qualidade de vida destas crianças.
BIBLIOGRAFIA
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Lisboa: Edição APPC, 2005
CAPÍTULO 190 Defeitos do tubo neural 927
190
as mesmas obrigam ao recurso a cuidados de saú-
de de nível terciário dada a multiplicidade, especi-
ficidade e complexidade dos problemas habitual-
mente associados.
A SB constitui o paradigma de problema com-
plexo implicando enorme consumo em recursos
DEFEITOS DO TUBO NEURAL de saúde, com múltiplas consultas, tratamentos,
internamentos e intervenções cirúrgicas não só
Eulália Calado neurológicas mas também ortopédicas e nefro-
urológicas. A possibilidade de prevenção de
muitas complicações com melhoria significativa
da qualidade de vida e redução substancial dos
Definição e importância do problema custos, passa necessariamente pelo ensino e cres-
cente corresponsabilização do doente e família na
Os defeitos do tubo neural (DTN) (ou disrafismo) prestação de cuidados.
incluem anomalias congénitas da coluna e do Os doentes com SB têm compromisso motor e
cérebro; os mais frequentes são a spina bifida (SB) sensitivo, malformações ortopédicas, ausência de
e a anencefalia (esta incompatível com a vida). controlo de esfíncteres, e complicações renais se-
A spina bifida (SB) consiste no não encerramen- cundárias à bexiga neurogénica.
to do arco posterior de algumas vértebras, com Existem também complicações da hidrocefalia
possibilidade de herniação do tecido neural. consequente, traduzidas frequentemente por difi-
(Figura 1). culdades de aprendizagem, atraso mental, pertur-
O espectro clínico dos DTN inclui ainda o bações do equilíbrio, da marcha e problemas oftal-
encefalocele, a craniorraquisquise (anencefalia mológicos. (ver adiante)
associada a raquisquise ou fissura congénita da Devido à multiplicidade e complexidade dos
coluna vertebral com exposição do tecido neural) problemas destes doentes, foi sentida a necessi-
e a iniencefalia (disrafismo na região occipital, dade de se constituirem equipas multidiscipli-
acompanhado por retroflexão acentuada do pes- nares que pudessem prestar cuidados de saúde
coço e tronco). Tais defeitos devem-se a um desen- abrangentes e coordenados. No Hospital Dona
volvimento anómalo do neuroporo durante a Estefânia funciona desde 1985 um Núcleo de
embriogénese, com disrupção do osso e das estru- Spina Bífida onde são seguidas regularmente
turas mesenquimatosas. A lesão primária neuroló- cerca de 180 crianças e adolescentes.
gica vai afectar outros sistemas além do sistema Neste capítulo é dada especial ênfase a este tipo
nervoso, o que torna os DTN as anomalias de de problema.
desenvolvimento mais complexas.
Tratando-se de multideficiências (coexistência Sistematização
de duas ou mais perturbações nas áreas motora,
sensorial e cognitiva) de baixa incidência e pre- Na prática utiliza-se o termo de spina bifida (SB) ou
valência que entram no âmbito das doenças raras, espinha bífida como sinónimo de DTN, atenden-
do a que as crianças com os outros tipos de DTN
raramente sobrevivem. Esta anomalia localiza-se
mais frequentemente na região lombo-sagrada,
embora possa aparecer ao longo de toda a coluna.
Compreende as formas fechadas e as formas aber-
tas, consoante o tecido neural se encontra ou não
FIG. 1
coberto pela pele normal.
Imagens axiais de RMN da coluna que mostram o não As formas fechadas podem incluir uma massa
encerramento posterior das vértebras e a existência de subcutânea (lipomielomeningocele, lipomeningo-
hidro-siringomielia (seta). (ver adiante) cele, mielocistocele), que faz saliência na região
928 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
PC discinética
Pele
Pele
LCR
Tufo de pêlos LCR Meninges
Pele
Relativamente aos factores genéticos, eles rela- de evacuação – buracos de Magendie e Lushka) e
cionam-se essencialmente com os genes, ainda atrésia do aqueduto de Sylvius.
não completamente identificados, que regulam o A circulação do LCR depende dum gradiente
metabolismo do complexo folato-homocisteína, de pressões; em situação normal a pressão intra-
principal responsável pelo controlo dos mecanis- ventricular é ~ 180 mm H2O e a do seio longitudi-
mos celulares de encerramento do tubo neural. O nal superior ~ 90 mm H2O.
risco de uma mulher com um filho portador de SB A hidrocefalia que resulta de obstrução ao
vir a ter outro filho afectado é 20 vezes superior ao nível do sistema ventricular é chamada obstrutiva
da população geral. No Núcleo de SB do HDE, ou não comunicante; a que resulta de obliteração
houve 4 recorrências de fetos com SB em 165 mães ao nível das cisternas subaracnoideias, ou de dis-
de crianças afectadas, seguidas ao longo de 20 função das vilosidades aracnoideias é chamada
anos. O valproato de sódio e a carbamazepina, não obstrutiva ou comunicante.
medicamentos antiepilépticos, aumentam a
incidência de DTN quando tomados durante a Manifestações clínicas
gravidez, por muito provável interferência no
metabolismo do ácido fólico. Na impossibilidade Em termos de sistematização, os doentes com SB
de mudar a terapêutica, estas mulheres devem dividem-se em 3 grupos, de acordo com o nível da
obrigatoriamente receber suplementos de ácido lesão: nível superior (L2 ou acima), nível médio
fólico e, ao engravidarem, ser seguidas em consul- (L3 a L5), e nível inferior (S1 ou abaixo). Quanto
ta de alto risco, com ecografias obstétricas mor- mais elevado for o nível da lesão (Figura 8) maior
fológicas de elevada resolução. Nas 136 crianças a probabilidade de ocorrência de hidrocefalia e
actualmente seguidas no Núcleo de SB do HDE, maior o grau de incapacidade motora e de com-
duas mães tinham tomado carbamazepina e uma plicações secundárias.
valproato de sódio, durante a gravidez. Cerca de 40% dos doentes com SB desloca-se
A solução de continuidade ao nível do tubo em cadeira de rodas. A lesão medular e/ou das
neural permite a excreção de substâncias produzi- raízes nervosas é responsável pela paraplegia
das no feto (alfa-feto-proteína [AFP], acetilcoli- mais ou menos grave, pelo compromisso da sensi-
nesterase) para o líquido amniótico, servindo de bilidade com risco de úlceras de pressão e
marcadores bioquímicos do defeito em causa. Por queimaduras, pelas malformações e deformações
outro lado, o rastreio no soro materno de AFP ortopédicas, pela ausência de controlo dos esfínc-
entre as 16-18 semanas de gestação permite iden- teres vesical e anal, e pelas complicações nefro-
tificar fetos de risco. urológicas.
A hidrocefalia, que surge na grande maioria A hidrocefalia que, como foi referido, ocorre na
dos casos de DTN, explica-se fundamentalmente grande maioria dos casos de mielomeningocele, é
por 3 mecanismos gerais: a causa dos problemas cognitivos, visuais e de
1) insuficiência de reabsorção do LCR pelas equilíbrio que alguns doentes com SB apresentam.
vilosidades aracnoideias de Pacchioni, sendo o Nos doentes com SB sem hidrocefalia, a função
mesmo segregado pelos plexos coroideus nos ven- cognitiva é habitualmente sobreponível à da po-
trículos laterais (por ex. trombose dos seios pulação geral.
venosos); A epilepsia, presente num número restrito
2) hipersecreção de LCR (raramente), por destes doentes (3% – na casuística do Núcleo do
exemplo, por papiloma dos plexos coroideus; HDE), é habitualmente secundária a complicações
3) obstrução mecânica (98% dos casos) impe- da hidrocefalia.
dindo a circulação do LCR; para além de proces- Apneia, alteração de deglutição e estridor
sos inflamatórios, cabe referir fundamentalmente podem surgir nalguns doentes com SB, sobretudo
tumores e anomalias congénitas já citadas antes, lactentes, devido à malformação de Arnold-Chiari
associadas a DTN, acrescentando a anomalia de e a conflito de espaço a nível do foramen magnum,
Dandy-Walker (dilatação quística do IVº ventrícu- com disfunção dos pares cranianos inferiores.
lo por ausência congénita dos respectivos orifícios Mais de metade dos doentes com malformação
CAPÍTULO 190 Defeitos do tubo neural 931
SB tem início, na maioria dos casos, no período realizar-se logo nas primeiras horas de vida de
pré-natal, a partir das 20 semanas de gestação. A modo a evitar a infecção e, assim, diminuir o risco
RMN fetal veio tornar possível uma melhor iden- de agravamento da lesão motora e o compromisso
tificação dos DTN; o recurso a este exame é indis- cognitivo. Quanto aos lipomeningoceles, a inter-
pensável para fundamentar a decisão relativa- venção pode ser adiada vários meses ou mesmo
mente ao prosseguimento ou interrupção duma anos, desde que não sejam muito volumosos e não
gravidez cursando com DTN. apareçam sinais associados à medula ancorada.
Após o nascimento é ainda a RMN o exame de A hidrocefalia pode estar presente desde o
escolha para uma adequada avaliação destas si- nascimento (em cerca de 15% dos mielomeningoce-
tuações; sempre que possível deve ser realizada à les) e a DVP pode realizar-se em simultâneo com o
totalidade do SNC antes do encerramento do encerramento do MM. Na maioria dos casos a
DTN, para estudo evolutivo mais apurado. hidrocefalia torna-se aparente 2 a 3 semanas depois
A inexistência de pregas radiárias perianais ou do encerramento do DTN. Daí a necessidade da
a sua escassez apontam para o quadro de intesti- derivação, colocando um tubo flexível no sistema
no neurogénico com maior probalidade de incon- ventricular cerebral (geralmente no ventrículo la-
tinência anal. teral direito) para drenar o excesso de LCR para o
Nas formas fechadas deve ser sempre realiza- peritoneu. Nos raros casos em que não existe possi-
do o estudo imagiológico por RMN da coluna, bilidade de absorção pelo peritoneu, esta derivação
sobretudo se houver a associação de 2 ou mais deverá ser feita para uma das aurículas.
sinais cutâneos. O “desancoramento” da medula melhora a
A medula ancorada é uma complicação fre- disfunção da bexiga e evita a progressão de sinais
quente das formas abertas e fechadas de disrafismo; piramidais nos membros inferiores. Uma vez estes
pode tornar-se sintomática em qualquer idade, mas instalados, já é problemática a sua regressão, em-
mais frequentemente na criança ou jovem adulto: bora se possa evitar a sua progressão.
desenvolvimento de sinais piramidais nos membros A maioria das crianças com SB necessita de
inferiores, deterioração da marcha, aumento da fre- apoios para a sua mobilidade – talas, canadianas
quência de infecções urinárias, maiores dificuldades e/ou cadeiras de rodas. A obesidade é um dos
na continência, e desenvolvimento de escoliose. problemas frequentes nesta população a qual, não
só compromete ainda mais a sua deambulação,
Tratamento como aumenta o risco de doenças cardiovasculares.
A ausência de sensibilidade favorece o apareci-
O tratamento da SB já é possível iniciar-se durante mento de escaras, feridas ou queimaduras nas
a gravidez, com a cirurgia fetal. O encerramento zonas afectadas devido à inexistência de dor. A
do mielomeningocele (MM) in utero diminui a sua cicatrização é lenta e obriga muitas vezes à
probabilidade de desenvolvimento de hidroce- imobilização prolongada e a longos internamen-
falia, mas parece não melhorar muito a funciona- tos hospitalares.
lidade dos membros inferiores. Outros factores condicionantes do prognóstico
Trata-se duma área da cirurgia fetal ainda em da SB, e causas frequentes de mortalidade, são as
investigação, restrita a alguns centros neurocirúr- complicações (obstrução, infecção) das DVP para
gicos; é, por isso, necessário avaliar mais estudos resolução da hidrocefalia. Mesmo as hidrocefalias
prospectivos comparando os resultados do encer- sem válvula necessitam de vigilância periódica,
ramento no período pré-natal com os do encerra- pois existe sempre a possibilidade da sua descom-
mento no período pós- natal. pensação, com repercussões a nível cognitivo
Após a criança nascer, o encerramento do mielo visual e motor. No Quadro 1 figuram os sinais
ou do meningocele deve realizar-se nas primeiras mais frequentes de disfunção duma DVP.
24 a 72 horas de vida num bloco operatório isento Grande parte das crianças e jovens com SB tem
de látex, medida que deverá ser sempre seguida alterações vesicais e intestinais (bexiga e intestino
em ulteriores intervenções cirúrgicas. Se houver neurogénicos), implicando necessidade de apren-
rotura da membrana envolvente, a cirurgia deverá dizagem do seu controlo e de tratamento de modo a
CAPÍTULO 190 Defeitos do tubo neural 933
QUADRO 1 – Sinais de disfunção de DVP se o que foi dito antes a propósito da importância
do suplemento oral de ácido fólico na dose de
Agudos 4mg/dia (nos casos de antecedentes de SB em
– Cefaleia,vómitos,estrabismo, letargia filho anterior), desde 1 mês antes da data planea-
Insidiosos da para a concepção e, pelo menos, ao longo do
– Dificuldade de concentração primeiro trimestre da gravidez, enquanto durar a
– Aparecimento/agravamento de dificuldades neurulação; não se verificando antecedentes de
escolares risco, em idêntico período é recomendada a dose
– Alterações do humor menor (0,4 mg).
– Cefaleia intermitente As mulheres com epilepsia e que queiram
– Sonolência engravidar devem evitar tomar o valproato de
sódio ou a carbamazepina; caso não seja possível
substituir esta medicação antiepiléptica, são
obter, sempre que possível, uma continência social. imprescindíveis os suplementos pré e periconcep-
Para evitar lesões renais, os pais e mais tarde as cionais com ácido fólico e a sua orientação para
próprias crianças (de preferência antes de entra- uma consulta de alto risco.
rem na escola primária), devem aprender a fazer
algaliações para esvaziar a bexiga de 4 em 4 horas, BIBLIOGRAFIA
com pausa nocturna de 8 horas. A cateterização Adzick NS, et al. Prenatal repair of myelomeningocele versus
intermitente deve ser instituída logo nos primei- postnatal repair. N Engl J Med 2011; 364: 993 - 1004
ros meses de vida sempre que os resíduos uriná- Aslan AR, Kogan BA. Conservative management in neurogenic
rios sejam superiores a 10% da capacidade vesical bladder dysfunction. Curr Opin Urol 2002; 12: 473-477
calculada para a idade da criança. Calado E, Loff C. The failures of spina bifida transdisciplinary
care. Eur J Pediatr Surg 2002; 12: S51-52
Prognóstico Campagnoni At, et al (eds). Developmental Neuroscience.
Basel: Karger, 2008
São necessários exames complementares de diag- Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
nóstico seriados (urinoculturas, ecografias e cinti- Dias L.Orthopedic care in spina bifida: past, present and
grafias renais, cistografias, estudos urodinâmicos, future. Dev Med Child Neurol 2004; 46: 579
RMN,TAC) e múltiplos tratamentos médicos e/ou Guggisberg D, Hadj-Rabia S, Viney C, et al. Skin markers of
cirúrgicos para prevenir e tratar as complicações occult spinal dysraphism in children. Arch Dermatol 2004;
ao longo da vida do doente com SB. A inexistência 140: 1109-1115
de equipas multidisciplinares que assegurem uma Kaufman BA. Neural tube defects. Pediatr Clin North Am.
adequada vigilância do doente com SB reflecte-se 2004; 51: 389-419
habitualmente em deterioração da qualidade de Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
vida. AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
Há menos de três décadas poucos bebés com Medical, 2011
SB sobreviviam ao seu primeiro ano de vida. Hoje, ShinSH, Im YJ, Lee YS,et al. Spina bifida occulta:not to be over-
graças a um melhor tratamento que passa, não só looked in children with nocturnal enuresis. Int J Urol 2013
por uma sofisticação das técnicas actualmente Jan 8.doi:10.1111/ju.12054
disponíveis, mas também por um forte investi- Van Dyke DC, Stumbo PJ, Berg MJ, Niebyl JR. Folic acid and
mento na prevenção das complicações secundá- prevention of birth defects. Dev Med Child Neurol 2002; 44:
rias, em 90% dos casos é atingida a idade adulta. 426-429
Walsh DS, Adzick NS. Foetal surgery for spina bifida. Semin
Prevenção Neonatol 2003; 8: 197-205
191
disciplinares escalonadas ao longo do tempo, adap-
tadas à evolução da criança, e tentando responder
às solicitações da família em que ela se insere.
Em qualquer intervenção (re)habilitadora há
que: respeitar e facilitar as diversas etapas do neu-
rodesenvolvimento da criança, nomeadamente a
HABILITAÇÃO PARA aquisição do controlo cefálico e do tronco, da
quadrupedia (quando possível), da verticalização,
A MARCHA E AJUDAS e da funcionalidade dos membros superiores; e,
igualmente estimular o desenvolvimento das fun-
TÉCNICAS EM CRIANÇAS ções perceptivas e cognitivas e da aquisição da lin-
guagem e da fala.
COM SPINA BIFIDA Em geral as crianças com SB são simpáticas e
sociáveis, e não levantam problemas de comuni-
Clara Loff cação nem de socialização.
Só uma equipa multi e transdisciplinar que
envolva médicos, enfermeiros, terapeutas (fisiote-
rapeutas, terapeutas ocupacionais e terapeutas da
Importância do problema fala), psicólogos, técnicos do serviço social, edu-
cadores e professores, pode dar resposta aos
Conforme é tratado no capítulo anterior, a spina bifida inúmeros desafios que coloca um doente com
(SB) é a forma mais comum de disrafismo espinhal. spina bifida. A (re)habilitação destas crianças visa
Tendo em perspectiva a habilitação para a essencialmente três objectivos: 1 – a preservação
marcha nos casos com esta anomalia, o Quadro 1 da função renal (e a obtenção de continência
discrimina os diferentes níveis de lesão medular e esfincteriana socialmente aceitável). 2 – a aqui-
suas consequências músculo-esqueléticas. sição da marcha ou, na impossibilidade desta, a
deambulação autónoma. 3 – a promoção dum
Intervenção desenvolvimento psicomotor adequado.
Neste capítulo é abordada concisamente a
A actuação envolve uma série de intervenções pluri- intervenção na área da (re)abilitação motora, que
visa essencialmente: a) – evitar as deformidades e rem correcção cirúrgica em tempos que devem ser
alterações posturais; b) – a aquisição da deambu- discutidos entre especialistas que tratam o doente,
lação autónoma. como o ortopedista, o neurocirurgião e o fisiatra.
O tratamento preventivo dos desalinhamentos As escolioses, por serem progressivas com
segmentares dos membros inferiores em crianças graves consequências posturais e respiratórias,
com esta patologia é uma preocupação presente têm indicação cirúrgica desde que a curvatura
desde o nascimento, e mantém-se ao longo do torácica tenha angulação superior a 40 graus.
crescimento. Antes, logo que sejam detectados desvios estrutu-
Desde os primeiros dias de vida avaliam-se as rados da coluna vertebral, deve actuar-se através
alterações músculo-esqueléticas, motoras, sensiti- do uso de ortóteses do tronco (coletes). Estes não
vas e esfincterianas, estabelecendo o nível da lesão irão alterar a progressão da curvatura, mas per-
medular. Nas situações em que se detectam, ou mitem uma postura mais correcta do tronco, facili-
prevêem, alterações posturais ou contracturas tando a posição de sentar e a funcionalidade dos
musculares (que podem originar flexum, sub-lu- membros superiores (Capítulo 243).
xações, talismo ou equinismo), utilizam-se técni- Para conseguir o ortostatismo e a marcha, a
cas de fisioterapia (mobilização, estimulação e criança com SB necessita, regra geral, de algum tipo
posicionamentos) e confeccionam-se pequenas de ajuda técnica (abordada adiante). Caso não con-
ortóteses; de preferência ligaduras funcionais exe- siga uma marcha autónoma, poderá beneficiar de
cutadas com adesivo hipoalérgico, ou talas de algum meio de deambulação adaptado, como a
material termomoldável, necessariamente leves e cadeira de rodas, de propulsão manual ou eléctrica.
almofadadas para posicionamento dos joelhos, Atendendo ao carácter de multideficiência de
tíbio-társicas e pés. Um exemplo frequente de con- que a maioria das crianças com SB padece, são
tracturas precoces é o dos flexores da anca e do necessárias intervenções terapêuticas que englo-
joelho, (flexum) cuja instalação pode ser preveni- bem, quer técnicas de estimulação do neurode-
da colocando o bebé em decúbito ventral várias senvolvimento, quer fisioterapia, terapia ocupa-
vezes por dia. cional, terapia da fala e outras.
À medida que a criança cresce e se desenvolve Todas estas terapêuticas, sejam as preventivas
vai sendo necessário reavaliá-la periodicamente, e correctivas das alterações músculo-esqueléticas,
estabelecendo definitivamente o nível de lesão com os esforços na obtenção da marcha, sejam as
medular, o que nem sempre se consegue nas estimuladoras do desenvolvimento, utilizam
primeiras observações. Presta-se especial atenção algum tipo de ajudas técnicas, para compensar a
à detecção precoce de deformidades, não só nos deficiência ou incapacidade presentes.
membros inferiores, como na coluna vertebral. A As ajudas técnicas também denominadas
luxação ou subluxação das ancas, os flexa dos joe- apoios tecnológicos (AT), incluem um conjunto
lhos, as alterações posturais dos pés e as escolioses de equipamentos, produtos e serviços que têm
são frequentes e exigem intervenções terapêuticas como objectivo promover a independência das
atempadas. pessoas com deficiência e incapacidade, tendo
As luxações e subluxações das ancas têm indi- como finalidade a igualdade de oportunidades e
cação cirúrgica se forem dolorosas, caso a criança a inclusão social.
tenha potencialidades para a marcha (lesões Abrangem um vasto leque de aparelhos e
abaixo de L3); ou se forem unilaterais (provocan- mecanismos que vão de simples talas até equipa-
do assimetria da bacia e dificuldade em assumir a mentos sofisticados de controlo remoto, passando
posição de sentar). por cadeiras de rodas manuais ou motorizadas,
As alterações dos joelhos e a sua repercussão próteses para amputados, aparelhos auditivos,
funcional são habitualmente de menor importân- óculos e lentes de contacto, ventiladores mecâni-
cia. A prevenção dos seus flexa faz-se pelo posi- cos, e equipamentos de apoio às actividades de
cionamento com talas de extensão. vida diária.
As deformidades dos pés (talus, equinus, aduc- Em resumo, no conceito de AT é englobado
tus, valgus, equino-varus), quando rígidas, reque- qualquer aparelho ou mecanismo que auxilia o
936 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
doente com deficiência, promovendo a normaliza- criança é lento, não conseguindo acompanhar os
ção funcional e melhorando a sua qualidade de outros alunos. Embora a motricidade fina possa
vida. estar afectada, a maioria das crianças com SB con-
Um dos subgrupos das AT é o das ortóteses segue ter um grafismo e escrita aceitáveis, sendo o
atrás definidas. computador apenas um auxiliar e não um substi-
As AT são necessárias à maioria das crianças tuto destas funções.
com SB, não só pela necessidade de alinhamento Nos casos raros em que existem alterações da
do tronco e membros, com vista à verticalização e linguagem e da fala, recorre-se aos meios aumen-
deambulação, mas também para estimular o tativos e alternativos de comunicação que,
desenvolvimento e facilitar a sua integração na através de tecnologia informática, com software e
família, na escola e na sociedade. O seu uso deve acessos adaptados, favorecem o desenvolvimento
ser iniciado precocemente. É comum a indicação dos conceitos linguísticos e promovem a comuni-
de ligaduras funcionais e de talas posteriores cação e a socialização das crianças com estas defi-
logo no período neonatal. Também nos primeiros 3 ciências.
meses, após a estabilização clínica, se introduzem
as cunhas e os rolos para estimulação do controlo GLOSSÁRIO
cefálico e do tronco. Posteriormente serão: o banco Flexum > termo considerado por alguns especialistas como "gíria", e
triangular – que facilita o equilíbrio do tronco e a não completamente correcto, para significar rigidez articular em
função dos membros superiores; o plano inclina- flexão ou contractura articular em flexão.
do com rodas– que promove a verticalização e per- Ortóteses > aparelhagem destinada a suplementar ou corrigir a alte-
mite à criança ter uma perspectiva diferente do ração morfológica de um órgão, de um membro ou segmento de um
ambiente que a rodeia e a deambulação assistida; o membro, ou a deficiência de uma função.
standing frame – para o ortostatismo, que possibili- Prótese > aparelho ou dispositivo destinado a substituir um órgão, mem-
ta actividades numa mesa de trabalho ou de bro ou parte de um membro destruída ou gravemente afectada.
refeições; e o andarilho, na preparação da marcha.
Esta, em grande número de casos, só é possível BIBLIOGRAFIA
com o uso de ortóteses para os membros inferiores Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
e de auxiliares de marcha, que podem ser cana- Effgen S(ed). Meeting the physical needs of children.
dianas, pirâmides ou andarilhos. Philadelphia: FA Davis, 2012
Para conseguir o ortostatismo e eventual mar- Forsyth R, Newton R. Pediatric Neurology. Oxford: Oxford
cha, procede-se aos ajustes posturais e correcções University Press, 2007
de deformidades, através do uso de ortóteses do Guralnick MJ (ed). The Developmental Systems Approach to
tronco (coletes e assentos moldados) e dos mem- Early Intervention. Baltimore: Paul Brookes, 2005
bros inferiores (talas de posicionamento). Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
Todas as ortóteses devem ter protecção das Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
zonas de pressão, devido ao défice sensitivo. 2011
De salientar que é possível estabelecer uma Liptak GS, Dosa NP. Myelomeningocele. Pediatr Rev 2010;
relação entre o nível da lesão, as ortóteses neces- 31:443-450
sárias e o prognóstico de marcha. McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
Na realidade, devido a múltiplos factores Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010
(excesso de peso, deformações adquiridas, medu- Zaoutis LB, Chiang VW. Comprehensive Pediatrics Hospital
la ancorada, défice cognitivo, alterações emo- Medicine. Philadelphia: Mosby Elsevier, 2007
cionais, problemas familiares e outros) nem todas
as crianças atingem a capacidade de deambulação
prevista para um determinado nível de lesão.
Há AT ligadas às novas tecnologias que podem
aplicar-se à (re)abilitação de crianças com defi-
ciências específicas. O uso de computador na
escola justifica-se quando o ritmo de execução da
CAPÍTULO 192 Discranias 937
192
com a idade pós-concepcional e não com a idade
pós-natal.
A classificação das principais discranias con-
templa três grandes grupos: as macrocefalias, as
microcefalias e as craniossinostoses.
DISCRANIAS
1. MACROCEFALIA
João M. Videira Amaral
A macrocefalia define-se pela verificação de
perímetro cefálico acima do percentil 97 e cresci-
mento excessivo da cabeça. (ver capítulo 21).
Definição e classificação De referir que o perímetro cefálico pode ter
uma velocidade de crescimento muito rápida
Os termos discrania e alocefalia exprimem a traduzida pelo cruzamento de percentis (nomea-
existência de anomalias morfológicas bem visíveis damente nos casos de lactentes em fase de recu-
do crânio em contraposição, respectivamente a peração de crescimento ou catch up growth), sobre-
normocrania e normocefalia traduzindo a nor- tudo se houver antecedentes de prematuridade ou
malidade; dentro da normalidade há amplas de restrição de crescimento intra-uterino.
variações fisiológicas quanto à forma (mesoce- O Quadro 1 resume as principais causas de
falia, dolicocefalia, braquicefalia e hiperbraquice- macrocefalia.
falia). As situações de macrocefalia devem ser
Para valorizar objectivamente as referidas va- encaminhadas para centros especializados.
riações fisiológicas, torna-se fundamental recor-
dar a noção de índice cefálico.
O índice cefálico (IC) obtém-se dividindo o 2. MICROCEFALIA
resultado do diâmetro cefálico transversal (DCT)
pelo do diâmetro cefálico ântero-posterior (DCAP), Definição e classificação
multiplicando este quociente por 100: IC = DCT/
/DCAP x 100. A microcefalia ou diminuição acentuada do volu-
Os valores considerados normais oscilam entre me do crânio é definida pela verificação de perí-
76-80,9. metro cefálico abaixo do percentil 3 associada a
Assim, IC <76 corresponde a dolicocefalia; e IC velocidade lenta, anormal, do crescimento da
> 80,9 corresponde a braquicefalia. cabeça.
O crescimento do crânio* reflecte largamente o A microcefalia é classificada como “primária”
crescimento do encéfalo, sendo de salientar três quando resulta de aberração do desenvolvimento
noções práticas: ou de agressão em fase precoce da neurogénese; a
1) o tamanho da cabeça pode ser afectado pela consequência é a diminuição do número ou das
espessura dos ossos do crânio; 2) a importância da dimensões das células. São considerados diversos
avaliação seriada do perímetro cefálico – com ou tipos de hereditariedade (AD, AR, ligada ao X),
sem discrania – relacionando-o com outros parâ- sendo mais favorável o prognóstico nas formas
metros como o peso, idade e estatura; 3) nos casos dominantes.
de antecedentes de prematuridade e ou muito A microcefalia é considerada “secundária”
baixo peso de nascimento (inferior a 1500 gramas) quando resulta de agressões ou noxas variadas
a importância de relacionar o perímetro cefálico actuando sobre um encéfalo previamente normal,
ou no final do 3º trimestre da gravidez ou durante
o período perinatal.
*A relação anatómica entre o crânio e o seu conteúdo justifica a inclusão
Por vezes a microcefalia já é obvia na data de
do tópico na Parte dedicada à Neurologia. nascimento.
938 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Fisiológicas
Sutura Frontal (Metópica)
Lactente ex-pré-termo ou restrição de crescimento intra-
uterino, familiar constitucional, estatura elevada Fontanela Anterior
Alterações predominantemente ósseas Sutura Coronária
Raquitismo, hipofosfatasémia, acondroplasia, disostose
crânio-facial de Crouzon, mucopolissacaridoses – gar-
goilismo ou doença de Hurler, etc. Sutura Sagital
Alterações da substância nervosa
Megaencefalia, tumores cerebrais, neurofibromatose,
gigantismo cerebral ou síndroma de Sotos
Fontanela Posterior
Alterações das meninges
Derrame subdural, hematoma subdural Sutura Lambdóide
Alterações da circulação do líquido céfalo-raquidiano
Hidrocefalia congénita ou adquirida, ventriculite)
FIG. 1
Crânio: fontanelas e suturas; visão esquemática superior
* Exceptuando nos casos de craniossinostose, a microcefalia implica
sempre microencefalia, isto é, encéfalo anormalmente pequeno.
abstraindo as observadas em visão lateral (Adaptado de SBP).
CAPÍTULO 192 Discranias 939
A fontanela anterior fecha-se mais cedo, mas QUADRO 3 – Classificação das sinostoses
as suturas não se obliteram precocemente.
No respeitante à etiopatogénese da craniossi- Primárias
nostose existem em confronto diversas teorias, o – Simples (sagital, coronal uni ou bilateral, metópica,
que leva a concluir sobre o não conhecimento mista e total)
exacto do processo de encerramento precoce das – Complicadas (associadas a outras anomalias englo-
suturas. Certas formas clínicas relacionam-se com bando situações sindromáticas, por ex. síndroma de
factores genéticos, destacando-se 4 genes princi- Apert, doença de Crouzon ou disostose craniofacial,
pais associados a formas sindrómicas de cra- síndroma de Carpenter, síndroma de Pfeiffer)
niossinostose. Descrevem-se mais de 100 síndro- Secundárias
mas com craniossinostose associada. – Pós-traumatismo, etc.
Como a fusão antecipada não se opera simul-
taneamente em todas as suturas, o crânio cresce
compensatoriamente no sentido das que per- encerramento de duas ou mais suturas é cerca de
manecem abertas, adquirindo formas anormais. 15%.
Dito doutro modo: o crescimento ósseo inter- Estão descritas formas esporádicas e familiares,
rompe-se no sentido perpendicular à sutura pre- respectivamente com incidências de 1/1.700 a
maturamente ossificada (Lei de Virchow). 2.500, e 1/25.000 nado-vivos.
FIG. 3 FIG. 4
Aspecto de lactente com quadro de escafocefalia associada a Aspecto radiográfico do crânio em lactente com turricefalia não
oxicefalia. (NIHDE) sendo visíveis as suturas por sinostose. (NIHDE)
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Sztriha L. Spectrum of corpus callosum agenesis. Pediatr
Neurol 2005; 32: 94-10 As síndromas neurocutâneas ou facomatoses são
definidas como doenças hereditárias heterogéneas
que se caracterizam por alterações do sistema ner-
voso e da pele; outros órgãos como o olho, rim e
coração, são também afectados. Por estar compro-
metida a diferenciação e o crescimento celulares
(designadamente a diferenciação da ectoderme
primitiva), a organogénese está igualmente pertur-
bada, com consequente formação de tumores, ge-
ralmente benignos.
As situações que cabem no âmbito da definição
são a neurofibromatose, a esclerose tuberosa, a sín-
droma de Sturge-Weber, a incontinentia pigmenti, a
ataxia telangiectasia, a doença de von Hippel-
Lindau, a síndroma PHACE, a hipomelanose de
Ito e a síndroma de nevus linear.
Formas clínicas
As manchas de tipo “café com leite”, geral- tico deve ser feito nos primeiros anos de vida
mente presentes desde o nascimento, tendem a sendo o exame imagiológico através da ressonân-
aumentar em número e tamanho com a idade, ao cia magnética nuclear (RMN) o ideal para avalia-
mesmo tempo que vão surgindo os neurofibromas ção das lesões tumorais. Os tumores do sistema
na pré-puberdade (Figura 1). Associam-se fre- nervoso periférico são neurofibromas e schwan-
quentemente ao glioma das vias ópticas (Figura 2) nomas, localizados na maioria das vezes na zona
e a estenose do aqueduto de Sylvius. de exteriorização das fibras sensitivas no canal
Os hamartomas da íris ou nódulos de Lisch raquidiano. As alterações ósseas são também fre-
raramente se encontram nos primeiros anos de quentes, destacando-se a escoliose com ou sem
vida, surgindo durante a adolescência. Podem ser cifose, a pseudartrose, (Figura 3) a displasia facial
identificados através do exame com lâmpadas de (esfenoidal) e, menos frequentemente, a hemi-
fenda. hipertrofia facial ou generalizada.
A NF1 constitui a forma clínica que mais fre- As dificuldades escolares são muitas vezes a
quentemente se associa a tumores do sistema ner- primeira preocupação dos pais. O défice cognitivo
voso central (SNC), periférico e doutros órgãos, nestes doentes não é habitualmente acentuado,
sendo de natureza histológica muito variável. Os mas estima-se que o quociente de inteligência (QI)
gliomas da via óptica são os mais frequentes se situe entre 15 a 20 pontos abaixo do dos irmãos
(cerca de 15%) e estão presentes desde o nasci- não afectados. A epilepsia é habitualmente uma
mento na maioria dos casos (Figura 2). O diagnós- complicação menor da NF1 e geralmente de fácil
FIG. 1 FIG. 2
Neurofibromatose tipo I. Manchas tipo “café com leite”. Glioma da via óptica (TAC-CE).
946 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
quentes são as oculares (em 1/3 dos doentes: reti- afecta 70% dos doentes e a sua gravidade rela-
na displásica, pseudoglioma e estrabismo), den- ciona-se com a precocidade e gravidade da epilep-
tárias e ortopédicas (luxação da anca e hemivérte- sia. O prognóstico da síndroma de Sturge-Weber é
bras). muito variável e dependente, sobretudo, do con-
trolo das crises, bem como dos défices motor e
4. Síndroma de Sturge-Weber, rara, ocorre cognitivo. É muito frequente a evolução para
esporadicamente com uma frequência de 1/50.000. epilepsia refractária à terapêutica médica, razão
Estão descritos casos de transmissão autossómica pela qual a cirurgia da epilepsia deve ser encara-
recessiva e transmissão dominante. Atinge igual- da muito precocemente em tais situações.
mente os dois sexos e caracteriza-se por anomalias
vasculares, habitualmente num processo multi- 5. Ataxia telangiectasia, afectando cerca de
ssistémico que envolve a pele, SNC, olhos e outros 1/40.000 nado vivos, pelas as suas características
órgãos. clínicas ocupa um lugar importante dentro das
A sua forma completa associa sinais e sintomas doenças degenerativas. A transmissão é autossó-
relacionados com o angioma leptomeníngeo, o mica recessiva, com uma alta incidência de novos
angioma cutâneo e o angioma ocular. (Figura 5) casos, por mutações do respectivo gene (ATM) no
O angioma cutâneo é um angioma cutaneomu- cromossoma 11q22-23.
coso facial, cor de vinho do Porto, presente desde Cursa com ataxia cerebelosa, coreoatetose,
o nascimento, que tende a ser unilateral e a telangiectasias oculocutâneas, imunodeficiência,
envolver a metade superior da face e pálpebra. O hipersensibilidade às radiações e elevada incidên-
angioma ocular é ipsilateral, presente em 30% dos cia de neoplasias, como leucemias e linfomas. A
casos e pode estar associado a glaucoma. O ataxia cerebelosa é progressiva, com um início
angioma leptomeníngeo pode ser demonstrado precoce e presente em todos os doentes, (cerca dos
por tomografia axial computadorizada (TAC) ou 2 anos) enquanto a coreoatetose pode surgir em
ressonância magnética nuclear (RMN), com loca- menos de metade dos mesmos. As telangiectasias
lização mais frequente na região parieto-occipital. oculocutâneas evidenciam-se geralmente entre os
Da patologia associada destaca-se a epilepsia em 4-6 anos, afectam de uma forma simétrica a con-
75 a 90% dos casos, com início no primeiro ano de juntiva, formando uma rede de finas telangiec-
vida em quase metade destes doentes; a gravi- tasias. Movimentos oculares anómalos (apraxia
dade está muitas vezes relacionada com a loca- óculo-motora), presentes em todos os doentes,
lização e extensão da lesão cerebral. A hemiparé- podem preceder as telangiectasias. Posterior-
sia, (ou hemiplegia), está presente em 30 a 45% mente, aparecem as telangiectasias cutâneas (em
dos casos antes dos dois anos. O atraso mental 40% dos casos), sempre simétricas, na base do
nariz, nos pavilhões auriculares ou nas mãos.
O doseamento da alfa-fetoproteína, (elevada),
do antigénio carcinoembrionário e das imunoglo-
bulinas (diminuição de Ig A secretória, Ig G2, IgG4
e IgE) são importantes marcadores diagnósticos,
associados ao estudo cromossómico e à evolução
clínica.
O prognóstico está, sobretudo, dependente da
deterioração neurológica. Existe degenerescência
espinocerebelosa, lesão dos cornos posteriores da
medula, com perda dos reflexos tendinosos e
atrofia espinhal medular, necessitando a maioria
dos doentes de cadeira de rodas entre os 10-15
FIG. 5
anos. A imunodeficiência leva a infecções recor-
Síndroma de Sturge-Weber: angioma cutaneomucoso da rentes, por vezes graves, interferindo também de
hemiface direita e fronte. (NIHDE) uma forma importante no prognóstico.
948 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
195
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Medical, 2011 um grupo nosológico heterogéneo, tendo em
Solomon T, Ninnis J, Deming D, et al. Use of propranolol for comum o compromisso da unidade motora num
treatment of hemangiomas in PHACE syndrome. J dos seus segmentos: neurónio motor ou 2º
Perinatol 2011; 31:739-741 neurónio (tronco cerebral ou cornos anteriores da
medula), raízes nervosas, nervo periférico, junção
neuromuscular e músculo. A maioria destas
doenças é determinada geneticamente, tendo nas
duas últimas décadas ocorrido um importante
avanço na genética molecular permitindo um diag-
nóstico mais rigoroso, o aconselhamento genético e
o diagnóstico pré-natal. As alterações segmentares
tais como a paralisia cerebral (abordada no capítu-
lo 189) e, dum modo geral, as situações em que se
verifica influência do encéfalo sobre a função
muscular, tais como espasticidade, não se incluem
no conceito de doenças neuromusculares.
A classificação das DNM pode ser feita de acor-
do com a topografia, carácter congénito e adqui-
rido, agudo ou crónico, e progressivo ou estático
(Quadro 1).
Etiopatogénese e relação
com a semiologia clínica
Doença NM Grave
– Dificuldade alimentar Atrofia Muscular Espinhal tipo 1
– Insuficiência respiratória NHSM tipo III (forma congénita)*
Distrofia Muscular Congénita (merosina negativa)
Síndroma Miasténica Congénita
Distrofia Miotónica Congénita
Miopatia Centronuclear
Miopatia Nemalínica
Miopatia Mitocondrial
Doença NM Moderada
– Atraso do desenvolvimento motor Atrofia Muscular Espinhal tipo 2
– Graus variáveis de paralisia e atrofia muscular NHSM tipo III
Distrofia Muscular Congénita (merosina positiva)
Miopatias Congénitas
Mitocondriopatias
Doença NM Ligeira
– Com uma vida quase normal Atrofia Muscular Espinhal tipo 3
Síndroma Miasténica Congénita
Miopatias Congénitas
*Neuropatias hereditárias sensitivo – motoras (NHSM)
De acordo com o tempo de evolução da doença com doença sistémica (hepática ou cardíaca) e
poderá haver retracções tendinosas (como a metabólica (como a acidose láctica), ou de uma
retracção do tendão de Aquiles) e deformidades afecção do sistema nervoso central (pela clínica e
esqueléticas (como o pé equino e varo) associadas pela imagiologia), sugerem citopatia mitocondri-
ao défice motor e à atrofia muscular. Outras mani- al. Nalguns subtipos de distrofia muscular con-
festações de doença neuromuscular são possíveis, génita e na distrofia miotónica também há
como o palato arqueado, a paralisia facial e ocular envolvimento do SNC. Na distrofia muscular pro-
(com ptose palpebral) e a luxação congénita da anca gressiva de Duchenne podem ocorrer cardiopatia
(consequência de hipomobilidade intra-uterina). e défice cognitivo ligeiro.
Um défice motor com predomínio distal, O espectro fenotípico das doenças neuromus-
atrofia muscular, hipo ou arreflexia e compromis- culares é muito amplo quanto à gravidade mas, na
so também distal da sensibilidade, sugerem o mesma família, o fenótipo tende a ser semelhante.
diagnóstico de neuropatia periférica.
O padrão evolutivo da doença pode sugerir Exames complementares
um diagnóstico específico. Refira-se a fatigabili-
dade crescente ao longo do dia, típica de miaste- A anamnese e o exame objectivo permitem a sus-
nia, ou o padrão de surtos desencadeados por peita de doença neuromuscular, assim como da
infecções, actividade física ou jejum, sugestivos de localização (segmento da unidade motora prova-
miopatias metabólicas (citopatias mitocondriais velmente afectado).
ou glicogenoses), ou paralisia periódica. Os exames complementares de diagnóstico
Na distrofia miotónica e nas miotonias con- mais úteis são a enzimologia muscular (dosea-
génitas ocorre um fenómeno de dificuldade no mento da fosfocreatinocinase – CPK), o electro-
relaxamento muscular após uma contracção vo- miograma (EMG), a biópsia de músculo, a biópsia
luntária (habitualmente mais proeminente nos de nervo, as provas terapêuticas (como a prova do
músculos distais). edrofónio), e os estudos de genética molecular.
A associação das alterações neuromusculares Refira-se ainda o estudo metabólico, os exames
952 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
imagiológicos (TAC e RMN), e a avaliação cardía- deve ser realizado se existir suspeita de doença
ca (ecocardiografia). metabólica (Capítulo 368).
O doseamento da CPK poderá ser útil na dife- A avaliação cardiológica deve ser feita na sus-
renciação entre doenças musculares primárias e peita de doença neuromuscular que se associe a
neuropatias. No recém-nascido, um aumento de cardiopatia (miocardiopatia ou disritmias), como
CPK poderá indicar distrofia muscular congénita a distrofia muscular progressiva – de Duchenne
ou distrofia miotónica congénita; no lactente e ou de Becker, algumas mitocondriopatias, glico-
criança mais velha colocam-se as hipóteses de dis- genoses, miopatia congénita e distrofia miotónica.
trofia muscular congénita, miosite, distrofia muscu- Os estudos de genética molecular, realizados
lar progressiva (mesmo em fase pré-sintomática), em centros especializados, são essenciais para a
miopatias congénitas e distrofia miotónica infantil. confirmação diagnóstica de algumas doenças neu-
Nos rapazes no 3º ano de vida com atraso na romusculares (Quadro 3) e sua classificação mais
aquisição ou alterações da marcha, o doseamento exacta. Estes estudos são particularmente úteis
de CPK é importante, e caso seja elevado (> 10.000 para distinção das diferentes formas de distrofia
UI/L) há indicação para realizar estudo genético, muscular congénita – com deleções identificadas
dispensando-se o EMG ou a biópsia muscular. em locus específicos, de distrofia muscular pro-
O EMG permite diferenciar qual o segmento gressiva, de miopatia nemalínica, de miopatias
da unidade motora afectado, sendo especialmente mitocondriais e de polineuropatia hereditária sen-
útil para o rápido diagnóstico de atrofia muscular sitivo – motora.
espinhal tipo I (AME I – doença de Werdnig-
Hoffman), de neuropatia (distinguindo a neu- Tratamento (aspectos gerais)
ropatia desmielinizante da axonal, sendo funda-
mental o registo da velocidade de condução ner- A abordagem terapêutica destas doenças consiste
vosa), e de doença da placa motora (a estimulação sobretudo em métodos paliativos, como a reabili-
repetitiva do músculo induz fatigabilidade pro- tação motora e a cirurgia ortopédica, tentando
gressiva). minorar os défices motores apresentados pelos
A biópsia de músculo (com microscopia ópti- doentes. A abordagem terapêutica do recém-
ca, electrónica ou com estudo imuno-histoquími- nascido com grave compromisso motor e respi-
co) permite o diagnóstico dos vários tipos de ratório é delicada, constituindo um problema
doenças musculares. Na distrofia muscular con- ético. Nas patologias em que pode haver compro-
génita, distrofia muscular progressiva e distrofia misso da função respiratória, esta deve ser avalia-
miotónica congénita, a microscopia óptica com- da periodicamente, iniciando, logo que se justi-
prova a distrofia, sendo necessário o estudo fique, programa de ventilação (inicialmente não
imuno-histoquímico para uma classificação mais invasiva, e intermitente, como o BIPAP nocturno);
completa (estudo da presença de merosina ou de se existirem dificuldades alimentares há que pon-
distrofina e sarcoglicanos, com recurso a técnicas derar a gastrostomia. A restante patologia associa-
de Western Blotting para análise quantitativa). da (cardiológica, oftalmológica, pedopsiquiátrica,
A biópsia do nervo confirma a hipótese de otorrinolaringológica) deverá ser avaliada pelo
neuropatia, classificando-a (por exemplo: desmie- especialista respectivo por indicação do médico
linizante ou hipomielinizante). responsável. Alguns tipos de doença neuromus-
A RMN – CE poderá ser útil nas citopatias cular têm terapêutica farmacológica específica
mitocondriais (alteração de sinal dos núcleos da (por exemplo: distrofia muscular progressiva, e
base e da substância branca), na distrofia muscu- miastenia gravis). A integração do indivíduo com
lar congénita com afecção do SNC (defeitos de doença neuromuscular no seu meio é um desafio
desenvolvimento cortical e atrofia cerebelosa) e na multidisciplinar, envolvendo diferentes parceiros
distrofia miotónica congénita (áreas de possível (assistente social, professores, entre outros), e a
gliose cerebral). obtenção de ajudas técnicas (cadeiras de rodas,
O estudo metabólico (lactato, piruvato, amó- coletes ortostáticos, computadores, etc.). (Capítulo
nia, aminoácidos, ácidos orgânicos, entre outros) 191)
CAPÍTULO 195 Doenças neuromusculares 953
sem apoio. Os movimentos fetais são escassos. As b – polioencefalite em que se verifica compro-
manifestações iniciais são: hipotonia progressiva, misso dos centros superiores do encéfalo; podem
parésia de predomínio proximal, arreflexia e fasci- surgir convulsões e coma, para além de paralisia
culações da língua. A afecção dos músculos inter- espástica e sinais de irritação meníngea;
costais e bulbares leva a compromisso respi- c – espinhal: é esta forma que é paradigmática
ratório, com insuficiência e infecções respiratórias da afecção do corno anterior e que justifica a inclu-
graves, sendo estas a causa de mortalidade, ocor- são da poliomielite neste capítulo de doenças neuro-
rendo geralmente antes dos 2 anos de idade. musculares.
2. AME – 2 (Forma Intermédia). Inicia- se entre Para além de parestesias, fasciculações e espas-
os 6 e 12 meses de idade, com hipotonia e parésia mos, salienta-se a particularidade da paralisia flácida
(sobretudo dos membros inferiores). A criança assimétrica, sobretudo das áreas proximais do mem-
consegue sentar-se sem apoio, embora não adqui- bro inferior de um lado (um só músculo ou grupos
ra a marcha. Há um progressivo envolvimento de músculos), podendo posteriormente outro mem-
dos membros superiores e dos músculos respi- bro (superior) também ser atingido. A fase de para-
ratórios, com compromisso respiratório na segun- lisia tem duração variável com recuparação ou
da década de vida (causa de morte). sequelas, o que depende do grau de lesão neuronal.
3. AME – 3 (Doença de Kugelberg- Welander). A paralisia dos membros inferiores pode associar-se
Tem início após os 18 meses de idade, com a disfunção vesical ou dismotilidade intestinal. Se
aquisição da marcha (embora com dificuldades forem afectados os segmentos espinhais cervicais e
associadas). Há diminuição da força das cinturas torácicos, pode surgir insuficiência respiratória.
pélvica e escapular. Poderá haver perda da mar- Tratamento: o tratamento é sintomático, sendo
cha na segunda década de vida. que não existe tratamento específico antivírico. Na
Diagnóstico: É confirmado pelo EMG, biópsia fase aguda estão contraindicados procedimentos
de músculo e estudo de genética molecular. cirúrgicos e injecções intramusculares.
De referir que as estirpes de vacina viva podem
Poliomielite originar infecções fatais em crianças com agama-
Etiopatogénese e clínica: A infecção pelo polio globulinémia ou imunodeficiência combinada.
vírus tipos 1-3 (enterovírus) é hoje pouco comum
nos países desenvolvidos e designadamente em 2. Polirradiculoneuropatias
Portugal, o que se explica pelo sucesso dos pro-
gramas de imunização. Síndroma de Guillain-Barré (SGB)
O período de incubação oscila geralmente Definição e importância do problema: Trata-se de
entre 8-12 dias (com variações entre 5 e 35 dias). uma polirradiculoneuropatia desmielinizante in-
Descrevem-se as seguintes formas clínicas: flamatória aguda, levando a paralisia progressiva
1) Forma assintomática (mais de 90% dos casos). após infecção ou imunização.
2) Doença minor ou não paralítica (cerca de 5% A SGB tem uma prevalência de 1- 4/100.000,
dos casos). As manifestações clínicas são: febre, afectando, em geral, as crianças com idade supe-
mal estar, odinofagia e vómitos surgindo cerca de rior 2 anos. Ocorre insuficiência respiratória em
4 dias após exposição ao vírus; a evolução é 25% dos casos, sendo necessária ventilação artifi-
favorável com cura espontânea. cial. A mortalidade é cerca de 2-3% na criança,
3) Forma paralítica (cerca de 0,1% dos casos) sendo superior no adulto (até 15%).
ocorrendo com uma sequência de manifestações Etiopatogénese: Observa-se lesão do neurónio
idênticas às da doença minor. motor (raiz e nervo periférico) com desmieliniza-
Por sua vez, a poliomielite paralítica integra 3 ção, presença de linfócitos e de macrófagos, me-
síndromas distintas relacionadas com os territórios diada por mecanismo auto-imune (presença de
do SNC mais intensamente afectados: auto-anticorpos anti-gangliósido – GM1 e GM1b).
a – bulbar acompanhada de paralisias dos mús- Uma infecção ou imunização que leve a uma alte-
culos faciais, da mastigação, respiratórios, etc. em ração das populações de células T supressoras, e
função dos centros afectados; de linfócitos T e B que reconhecem antigénios do
CAPÍTULO 195 Doenças neuromusculares 955
sistema nervoso, poderá estar na génese do SGB. terapêutica actual baseia-se na administração de
A infecção desencadeante tem geralmente etiolo- imunoglobulina (2g/kg) por via intravenosa (dose
gia vírica (VEB, CMV, VHA, VHB, vírus da total), em 2 dias – com resultados sobreponíveis à
varicela – zoster, vírus do sarampo e da rubéola, plasmaferese.
Influenza A e B, Coxsackie e Echovirus), embora
possa ser bacteriana (Campylobacter jejuni e Neuropatias hereditárias
Mycoplasma). As vacinas anti-rábica ou anti- sensitivo-motoras (NHSM)
Influenza também se associam a SGB. Importância do problema: As neuropatias here-
Clínica e evolução: A redução gradual da força ditárias sensitivo – motoras são o grupo de
e as parestesias são as queixas iniciais. A avaliação doenças degenerativas do sistema nervoso peri-
neurológica revela uma paralisia generalizada, férico mais comuns na criança (40% das neuropa-
essencialmente simétrica, geralmente distal (em- tias crónicas).
bora possa ser proximal ou mista), com carácter Etiopatogénese: A degenerescência da baínha de
ascendente (sequencialmente: membros inferiores, mielina e/ou axónios leva a uma amiotrofia paralíti-
membros superiores, tronco, e face) e arreflexia ca distal com arreflexia, envolvendo inicialmente os
generalizada. A paralisia dos músculos respi- membros inferiores. Os avanços na genética molecu-
ratórios com necessidade de ventilação mecânica é lar contribuiram para uma melhor compreensão
uma complicação da SGB. Caso haja ataxia e oftal- destas doenças, alterando a sua classificação.
moplegia é provável tratar- se da síndroma de Existem diferentes padrões de transmissão
Miller-Fisher (SGB com afecção dos pares crani- genética (AR, AD, ligada ao X).
anos). Há sinais de disfunção dos nervos Várias mutações foram descritas com influên-
autonómicos tais como hipotensão, taquicardia, cia na alteração da função de duas proteínas rela-
hipertensão e arritmia cardíaca; pode verificar-se cionadas com o metabolismo da mielina: a PMP 22
igualmente disfunção do esfíncter vesical. Após o (perypheral myelin protein 22) – locus 17p11.2-12, e a
início dos primeiros sintomas pode haver agrava- MPZ (myelin protein 0) – locus 1q22-23.
mento no período de 10 a 30 dias. A maioria das NHSM não é típica da idade
Diagnóstico: o exame do LCR revela dissociação pediátrica. As mais frequentes neste grupo são:
albumino-citológica (hiperproteinorráquia com con- 1. NHSM I (Doença de Charcot- Marie- Tooth).
tagem celular < 10 células/ mm3). A electrofisiologia Surge na criança após os 3 anos de idade geral-
revela diminuição das velocidades de condução ner- mente por deformação osteoarticular dos pés (pé
vosa sensitiva e motora, compatível com desmieli- cavo e pé pendente), associada a alteração da mar-
nização. O diagnóstico diferencial deve ser feito com cha (steppage). Gradualmente uma atrofia de pre-
as neuropatias periféricas (tóxicas e infecciosas), a domínio distal instala-se com deformidade bila-
poliomielite (sobretudo a vacinal), mielopatia aguda teral dos pés e, mais tarde, das mãos.
por compressão medular (tumor, trauma, abcesso), 2. NHSM III (Doença de Déjerine- Sottas). Esta
esclerose múltipla, doença muscular (polimiosite, doença tem duas formas de apresentação.
miopatia mitocondrial) e doença da placa neuro- A forma congénita, rara e grave, com hipoto-
muscular (miastenia gravis). nia desde o período neonatal, pode estar associa-
Prognóstico: A recuperação é, em geral, com- da ou não a dificuldade alimentar e/ou respi-
pleta, havendo sequelas neurológicas em 5-25% ratória (com necessidade de ventilação), e a artro-
dos doentes. Pode haver recorrência de SGB em gripose. A forma clássica ou infantil inicia-se no
3% dos casos. Os factores de mau prognóstico são: 2º ano de vida, caracterizando-se por atraso no
maior gravidade do défice motor; maior período desenvolvimento motor, podendo haver perda da
desde o início da doença até ao início da recupe- marcha no início da 2ª década de vida.
ração, e EMG com sinais de desnervação. Diagnóstico: O EMG é fundamental revelando
Tratamento: A instabilidade clínica obriga a redução na velocidade de condução nervosa. A
internamento hospitalar com monitorização con- biópsia de nervo realiza-se actualmente com
tínua dos parâmetros vitais; poderá ser necessário menor frequência, tendo vindo a ser substituída
entubação para ventilação imediata. A abordagem pelos estudos de genética molecular.
956 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
tonia neonatal e paralisia proximal, amimia, difi- miopatia miotubular). A genética molecular con-
culdade alimentar e respiratória, dismorfismos tribui para o diagnóstico, revelando a expansão da
craniofaciais e envolvimento cardíaco. Os quadros repetição do tripleto CTG na análise da mutação
menos graves têm um início mais tardio. O padrão do gene DMPK (gene da miotonina- locus
de transmissão pode ser autossómico recessivo ou 19q13.3). Nesta doença há o fenómeno de anteci-
autossómico dominante. São conhecidas várias pação que consiste numa maior precocidade no
mutações genéticas afectando uma proteína mus- início da doença, e num aumento da gravidade da
cular específica. mesma nas gerações seguintes.
• Miopatia centronuclear ou miotubular
A microscopia revela miotúbulos fetais dispos- Miosites
tos centralmente na fibra muscular, sugerindo um A inflamação do tecido muscular ou miosite (pós-
atraso na maturação do sistema sarcotubular. Há infecciosa) é uma situação aguda e transitória,
várias apresentações possíveis: na forma ligada ao possivelmente mediada imunologicamente, e de-
cromossoma X (locus Xq28) a sintomalogia clínica sencadeada por uma infecção vírica (Enterovírus,
é muito grave, com insuficiência respiratória e Echovirus, Coxsackie B, Influenza A e B, VEB, HSV,
dificuldade alimentar após o parto; as formas Varicella- zoster, entre outros). O quadro clínico con-
autossómicas (recessivas ou dominantes) são siste em mialgias intensas (geralmente nos
menos graves, com variabilidade fenotípica. A gémeos), com dor à palpação dos músculos
presença de ptose palpebral e ocasional envolvi- envolvidos, e impotência funcional. A terapêutica
mento do SNC (com convulsões e défice cogniti- é sintomática, sendo esta situação auto-limitada.
vo), sugerem o diagnóstico. As miosites de origem bacteriana ou parasitária
são muito raras nos países desenvolvidos.
Doença miotónica NOTA – Sugere-se a consulta do Glossário
(Doença de Steinert) Geral relativamente aos termos Artrogripose e
Com uma incidência de 1/30.000 na população Miotonia.
geral é a segunda distrofia muscular mais comum
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elevada (25% dos doentes) por insuficiência respi- Gilden DH. Bell’s palsy. NEJM 2004; 351: 1323-1331
ratória. As crianças que sobreviveram ao 1º ano Ho C, Straatman L. A review of pediatric palliative care service
podem apresentar défice cognitivo e “fraqueza” utilization in children with a progressive neuromuscular
facial, (lábio superior em V invertido) com melho- disease who died on a palliative care program. J Chil
ria evidente da função muscular até à 2ª ou 3ª Neurol 2013; 28: 40-44
década de vida, altura em que se instala um Holland NJ, Weiner GM. Recent developments in Bell’s palsy.
quadro de miopatia progressiva com défice cogni- BMJ 2004; 329: 553-557
tivo. A miotonia só se observa após o período Houlden H, Blake J, Reilly MM. Hereditary sensory neu-
neonatal. A mãe da criança é doente, podendo não ropathies. Curr Opin Neurol 2004; 17: 569-577
manifestar os sintomas exuberantes. Hughes R, Wijdicks E et al. Practice parameter: Immunothe-
A biópsia muscular sugere deficiente matu- rapy for Guillain- Barré syndrome. Report of the Quality
ração muscular (fibras pequenas, pouco diferen- Standards Subcommittee of the American Academy of
ciadas com padrão muito semelhante ao da Neurology. Neurology 2003; 61: 736- 740
960 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
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Van Deutekom JC, Van Ommen G-J. Advances in Duchenne Definição e importância do problema
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Genetics 2003; 4: 774-783 As doenças degenerativas são situações here-
Wallgre–Patterson C. Gene table: congenital myopathies. Eur J ditárias raras caracterizadas por regressão pro-
Paediatr Neurol 2005; 9: 27-28 gressiva do desenvolvimento e manifestações
Wylam ME, Anderson PM, Kuntz NL, Rodriguez V. Successful sistémicas (perda da visão, fala, audição, loco-
treatment of refractory myasthenia gravis using rituximab: moção, muitas vezes em associação a convul-
a pediatric case report. J Pediatr 2003; 143: 674-677 sões, dificuldade alimentar e défice cognitivo).
Apesar de não haver terapêutica eficaz, o dia-
gnóstico é fundamental para proporcionar à
família o prognóstico e o aconselhamento genéti-
co. Na maioria dos casos a transmissão é autos-
sómica recessiva, o que confere uma probabili-
dade de 25% de recorrência. Pode verificar-se
igualmente transmissão hereditária ligada ao
cromossoma X e, mais raramente, autossómica
dominante.
As doenças degenerativas podem ser classifi-
cadas pelo defeito subjacente (no lisossoma, no pe-
roxissoma, na mitocôndria, etc.) ou pela localização
anatómica predominante (substância branca, subs-
tância cinzenta, gânglios da base e cerebelo). O estu-
do imagiológico por ressonância magnética constitui
o exame que dá as indicações mais precisas sobre a
localização do defeito. A detecção do estado de por-
tador pode ser feita por estudo enzimático.
Perante um doente com suspeita de doença
heredodegenerativa, é fundamental uma cuida-
dosa história clínica. A anamnese permite desco-
brir casos semelhantes na família e perceber o tipo
de hereditariedade em questão. Os antecedentes
de gravidez, de parto e pós-natais podem orientar
para uma etiologia sequelar e não progressiva. No
que se refere à doença actual, pode evidenciar-se o
carácter subagudo ou crónico da doença, a idade
CAPÍTULO 196 Doenças neurodegenerativas 961
de aparecimento de sinais ou sintomas, o tipo de tendinosa indica lesão da via piramidal, o que é
doença neurológica, a regressão do desenvolvi- relacionável com doença da substância branca
mento e sinais ou sintomas de doença sistémica. (leucodistrofia).
Estas doenças devem ser acompanhadas em A ataxia manifesta-se nas doenças do cerebelo
centros especializados, embora os respectivos e das vias cerebelosas, e a discinésia (distonia e
cuidados gerais possam ser ministrados no coreoatetose) nas que afectam predominante-
âmbito dos cuidados primários. mente os gânglios da base.
A neuropatia periférica pode ser resultante de
Manifestações clínicas desmielinização do neurónio motor periférico no
estádio avançado das doenças degenerativas do
Atraso e regressão do desenvolvimento sistema nervoso central. Constitui a manifestação
Nas formas de início neonatal o atraso pode ser principal em doenças do neurónio motor periféri-
grave, não se verificando aquisições, Nas formas co (Charcot Marie Tooth) e nos casos de doenças
infantis precoces (início entre 4-18 meses) pode com envolvimento do cerebelo (degenerescências
haver alguma aquisição de competências e, nas espinocerebelosas).
infantis tardias (início entre 18 meses – 4 anos) e
juvenis (início após os 4 anos), pode haver clara- Comportamento e alterações psiquiátricas
mente um período de desenvolvimento normal. As alterações do comportamento e a doença psi-
Em crianças com atraso de desenvolvimento, quiátrica podem ser a forma de apresentação,
uma lentidão extrema no ritmo de aquisições, ou a especialmente nas formas de início juvenil e no
sua regressão constituem indicadores de doença adulto. São exemplos a doença de Wilson, a adre-
progressiva. (Capítulos 21 e 22) noleucodistrofia, a leucodistrofia metacromática,
Da mesma maneira, o aparecimento de sinais a doença de Krabbe, a doença de Nieman Pick e a
ou sintomas neurológicos, psiquiátricos ou lipofuscinose.
sistémicos, ou uma história familiar informativa,
são indicadores de doença progressiva e obrigam Alterações do perímetro cefálico
a uma investigação etiológica. A microcefalia progressiva por atrofia cerebral é
frequente nas doenças degenerativas. Mais rara-
Epilepsia mente verifica-se macrocefalia, como por exemplo
A epilepsia pode surgir em várias doenças dege- nas doenças de Tay Sachs, Alexander e Canavan.
nerativas, sugerindo o envolvimento da substân- O Quadro 2 resume, de modo integrado, as prin-
cia cinzenta. De facto, nas doenças da substância cipais alterações do exame neurológico em diver-
cinzenta a epilepsia é a manifestação clínica pre- sas afecções. (Capítulo 192)
dominante com a particularidade de ser refrac-
tária. (Quadro 1) (Capítulo 373) Alterações oculares
A avaliação oftalmológica é importante podendo
Doença motora orientar para a etiologia. (Quadro 3) (Capítulos
A espasticidade associada à hiperreflexia osteo- 254-256 e Parte XXXII)
Alteração do comportamento;
Adrenoleucodistrofia ++ + +
disfagia; neuropatia
Doença de Hallervorden
+ ++ Deterioração cognitiva
Spatz
197
ronal programada (apoptose) e há um “pico” de
mielinização e biossíntese dos neurotransmissores
correspondendo ao aperfeiçoamento das funções.
A este propósito, será importante reter as
seguintes noções: 1) existem períodos chamados
sensíveis ou “críticos” a que corresponde aumento
REABILITAÇÃO NEUROLÓGICA do número de células e conexões sinápticas e
aparecimento de aquisições/funções, traduzindo a
Aldina Alves designação “crítico”, maior susceptibilidade a
determinadas noxas (noção de estrutura tran-
sitória); 2) existem estruturas específicas que
provavelmente favorecem a migração celular e a
Conceitos fundamentais formação de sinapses; 3) a morte celular e proces-
sos regressivos correspondem à especialização das
Como introdução a este tema é fundamental defi- funções; 4) é possível o chamado “rearranjo do sis-
nir alguns conceitos para a compreensão do tema”: determinadas áreas silenciosas ou supleti-
mesmo: sequência do desenvolvimento cerebral, vas podem vir a “ser chamadas” a substituir uma
plasticidade cerebral, detecção precoce e inter- função quando determinada zona cerebral é lesada.
venção precoce.
2. Plasticidade cerebral
1. Sequência do desenvolvimento cerebral Sendo o sistema nervoso central (SNC) um sis-
Os complexos circuitos neuronais existentes no tema dinâmico, a “plasticidade cerebral” corres-
cérebro em desenvolvimento são constituídos ponde à sua capacidade de reorganização após
durante um período de tempo prolongado, na lesão; esta reorganização implica modificação da
vida pré e pós natal. estrutura e da forma, através de novas conexões
No período pré-natal ocorrem sequencialmente: sinápticas de modo a preservar a competência.
– neurogénese (1º mês de gestação) - produção O desenvolvimento e a maturação cerebrais da
de neurónios na matriz germinal criança têm um ritmo muito rápido nos primeiros
– proliferação e migração neuronais (2º trimes- anos de vida, pelo que tal capacidade de reorgani-
tre). zação cerebral é seguramente maior neste período
No período pós-natal: da vida do que no adulto.
– sinaptogénese – formação axonal e desen- A recuperação da função será tanto mais eficaz
volvimento das conexões dendríticas quanto mais precoce, intensiva, continuada, moti-
– desenvolvimento da glia vadora e específica for a actuação, sobretudo se
– organização e mielinização (com inicio pré decorrer num ambiente estimulante. Depende
natal mas só finalizada vários anos após o também da extensão e localização da lesão, saben-
nascimento) do-se que existem idades sensíveis para cada
A sinaptogénese é o aspecto mais importante função. Por exemplo, no caso duma criança com
para o desenvolvimento cerebral normal. uma surdez neuro-sensorial que não foi diagnosti-
As alterações genéticas ou adquiridas em cada cada precocemente, sendo colocada a prótese de-
uma das fases anteriores podem levar a padrões pois os 6/9 meses perde-se a capacidade de recu-
distintos de patologia cerebral ou disfunção. peração da audição por falta de estimulação do
Nos 2 primeiros anos de vida há uma super- córtex auditivo. (Capítulos 21, 22 e 79)
produção de neurónios com um máximo desen- Em suma, a plasticidade cerebral constitui a
volvimento das conexões sinápticas nas várias base em que assentam os princípios da inter-
camadas do córtex simultaneamente, correspon- venção precoce (ver adiante).
dendo ao aparecimento das funções. Dos 2 aos 12
anos dá-se uma redução selectiva das sinapses 3. Detecção precoce
através do processo designado por morte neu- Algumas deficiências manifestam-se logo ao nascer
966 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
ou mesmo antes; contudo, na maioria dos casos maturação do SNC, tirando partido da plastici-
poderá haver factores de risco susceptíveis de dade cerebral.
causar deficiência, tornando-se esta evidente ape- b) Quando se deve iniciar?
nas no decorrer do desenvolvimento da criança. • O mais precocemente possível, enquanto o
Tais crianças em risco de uma perturbação do sistema ainda está lábil e com capacidade de reor-
desenvolvimento deverão ser, por isso, identifi- ganização atendendo aos marcos, datas e idades
cadas antes de tal pertubação se manifestar (é a “sensíveis” para cada função ( como já atrás foi
noção de detecção precoce). referido).
Assim, para uma detecção precoce dos problemas de c) Quando poderá ser demasiado tarde?
desenvolvimento da criança é essencial que a avaliação • Quando o SNC já está organizado num
do mesmo faça parte integrante dos cuidados de vi- “mapa” cerebral de modelos e circuitos funcionais
gilância da saúde, em particular nas situações de risco estáveis.
biológico ou social; tais cuidados pressupõem o acom- d) Objectivos da intervenção precoce:
panhamento, esclarecimento e participação da família. • Assegurar que todas as crianças em situação
Por outro lado, através da avaliação do desen- de risco ou com problemas de desenvolvimento,
volvimento, poderão ser detectados sinais de bem como as suas famílias, recebam os cuidados
“alerta” nas áreas da motricidade, visão, audição, específicos de que necessitam, sendo necessária
linguagem, cognição e comportamento, bem como uma colaboração estreita dos Serviços de Saúde,
problemas do ambiente social que podem e Segurança Social e Educação;
devem ser adequadamente avaliados e acompa- • Criar condições na família, escola e
nhados através duma intervenção precoce. sociedade, de modo que a criança tenha o máximo
de autonomia e integração;
4. Intervenção precoce • Ajudar a família a ultrapassar os aspectos
Intervenção precoce é toda a forma de actividades negativos da deficiência e a criar um olhar positi-
de estimulação dirigidas à criança, e de orien- vo sobre as aptidões da criança.
tações dirigidas aos pais, levadas a cabo como É a noção de resiliência, chamando-se atenção
consequência directa e imediata da detecção do para a importância dos pontos de viragem (Touch
risco, ou da identificação dum problema de desen- points). (Capítulos 21 e 22)
volvimento. A intervenção precoce diz respeito à
criança, aos pais, à família e ao meio ambiente alargado, Problemas neurológicos, habilitação
tendo como objectivo criar condições favoráveis ao seu e reabilitação
desenvolvimento.
Inclui actividades como: estimulação do desen- Os problemas neurológicos em que mais fre-
volvimento, com ensino, e várias terapias (fisio- quentemente está indicada a respectiva reabili-
terapia, terapia ocupacional e da fala), estratégias tação através do SMFR são: sequelas de prema-
educacionais e a colaboração de diferentes serviços turidade; sequelas de asfixia perinatal; spina bífi-
funcionando em equipas transdisciplinares. da; e as doenças neuromusculares.
O apoio cobre o período entre o momento do Debruçar-nos-emos sobre a intervenção, orien-
eventual diagnóstico pré-natal e aquele em que a tações e seguimento levados a cabo pelo SMFR do
criança atinge a idade da escolaridade obrigatória. HDE incidindo sobre crianças com sequelas de
a) Qual a sua importância? prematuridade, visando os recém nascidos (RN)
• Desenvolver estratégias que promovam uma com um peso ao nascer (PN) inferior a 1.500 g; tais
adaptação plástica do cérebro aos estímulos do crianças constituem um grupo de risco susceptí-
meio (relembrando o conceito plasticidade cere- vel de alterações do desenvolvimento, e igual-
bral) uma vez que a função favorece o desenvolvi- mente um bom modelo para compreender a acção
mento das estruturas neuronais; multidisciplinar da reabilitação.
• Experiências mais enriquecedoras podem A patologia da prematuridade, neste grupo de
promover alterações neuronais que favoreçam o muito baixo peso (MBP), é frequentemente multi-
controlo da disfunção, tendo em conta as fases de ssistémica, de gravidade inversamente propor-
CAPÍTULO 197 Reabilitação neurológica 967
cional à idade gestacional, pelo que requer o meio hospitalar, especificidade das UCIN) e
envolvimento duma equipa multidisciplinar. impactes causados por uma situação inesperada
Do ponto de vista do fisiatra, a maior atenção de angústia, medo e insegurança. A envolvência
no futuro destas crianças, será dirigida a even- na relação com aquele bébé, que é seu, e que
tuais sequelas pulmonares – displasia broncopul- necessitará de alguns cuidados diferentes dos
monar (DBP), e neurológicas – motoras, cogniti- habituais dum mais “maturo,”será de primordial
vas e sensoriais (visão e audição), alterações da importância. Serão apoiados e ensinados os pais
linguagem, do comportamento e dificuldades de no seu manejo logo que existam condições clínicas
aprendizagem; por isso, é feito um seguimento para tal.
sistemático do seu desenvolvimento nas idades- Será feita uma sensibilização no sentido de
chave, para detecção precoce de eventuais proporcionar condições facilitadoras do bem
desvios/disfunções. A identificação (sinalização) estar do RN: ritmo sono/vigília, calmantes da
e intervenção iniciar-se-ão durante o internamen- dor/diminuindo o estresse, envolvendo equipa
to na unidade de cuidados intensivos neonatais médica e de enfermagem (por exemplo, redução
(UCIN). da luz, do ruído e do número de intervenções com
Neste âmbito e revisitando os conceitos de manipulação do RN).
reabilitação e habilitação, caberá dizer que no con- Alguns exemplos práticos: cobrir as incubado-
texto da prematuridade prevalecerá o conceito de ras de modo a protejer o RN da luz artificial das
habilitação, isto é: usar um conjunto de estratégias UCIN; após intervenções mais dolorosas envolver
que visem estimular e potenciar as capacidades da a criança com cobertor confortável em flexão, ou
criança de modo que o seu desenvolvimento colocá-la sobre a mãe em posição de canguru; se tal
possa decorrer da forma mais aproximada da nor- for possível, esse contacto pele com pele é muito
malidade. Ou seja, a ideia-chave do termo “habili- calmante e relaxante. Vários autores advogam
tação” associa-se a proactividade e antecipação. também o uso cuidadoso de soluto de sacarose a
Se uma criança com antecedentes de prema- 2% aplicado sobre a língua como medida de con-
turidade vier a ter um quadro de paralisia cerebral solação em casos de dor aparente.
(PC) e tiver de se submeter a uma cirurgia, por ex. Serão adoptadas estratégias que promovam
para alongamentos tendinosos, tal intervenção na um desenvolvimento psicomotor e sensorial tão
sequência do pós-operatório caberá no conceito de harmonioso quanto possível, de acordo com as
reabilitação. diferentes fases clínicas e a triagem das necessi-
Na UCIN, e de acordo com cada situação clíni- dades da criança, respeitando sempre o seu ritmo
ca, a atitude poderá ser apenas expectante e de biológico e estabilização hemodinâmica; será me-
vigilância activa de modo a detectar eventuais lhorado o conforto promovendo uma correcta
alterações neurológicas e ou perturbações do neu- postura de “descanso”, usando por ex. os “ninhos
rodesenvolvimento – detecção de eventuais com panos moles”; demonstrado e explicado o
sinais de alarme. Inicialmente, poderá ser possí- banho.
vel proceder apenas a cinesiterapia respiratória, se Será demonstrado e ensinado à mãe o manusea-
for esse o caso. Eventualmente, poderá nem haver mento do bébé como forma de estimulação táctil,
condições para qualquer intervenção que não seja proporcionando um contacto pele com pele, trans-
o falar com os pais, ouvi-los, tranquilizá-los, missor de afectos, relaxante e calmante da dor, com-
explicar-lhes, ensinando-os a interagir com “aque- provadamente impulsionador de ganho ponderal.
le ser tão pequeno” mas que “emite sinais que têm Este é um momento íntimo e privilegiado de dar e
de ter reciprocidade”. receber, de alerta para todos os sinais que o bébé
Durante este período de internamento será possa transmitir, os quais serão a base da comuni-
privilegiado o processo de vinculação: estimulada cação para que possa crescer e desenvolver-se. Mais
e reforçada a importância da interacção com a uma vez, a importância dos Pontos de viragem.
criança (relação mãe/filho), que nestes casos não Far-se-á uma estimulação sensorial melhoran-
será tão espontânea como em circunstâncias ditas do a interacção com a mãe de modo que essa seja
normais, pelo próprio contexto, (situação clínica, uma relação gratificante.
968 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
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PARTE XXII
Cardiologia
972 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
198
o Professor João Videira Amaral (e, a partir de
2008, a Professora Teresa Neto) pediram-nos para
ministrar aulas teóricas e teórico-práticas de
Cardiologia Pediátrica, colaboração que aceitámos
com entusiasmo e temos cumprido de bom grado
desde 1999. Para complemento bibliográfico do
INTRODUÇÃO À CARDIOLOGIA ensino, o mesmo (editor-coordenador) deu-nos a
honra e possibilidade de compilar este tópico para
PEDIÁTRICA o Tratado de Clínica Pediátrica. Para a elaboração
deste texto utilizámos grande parte do material da
Sashicanta Kaku monografia por nós publicada e co-editada:
(Soares-Costa JTS e Kaku S (eds). Cardiopatias
Congénitas. Lisboa: Permanyer Portugal, 2005).
Foram elaborados adicionalmente, textos sobre
O diagnóstico e tratamento das doenças cardíacas cardiomiopatias, miocardite, endocardite, peri-
nas crianças, tanto nos aspectos médicos como nos cardite, febre reumática, insuficiência cardíaca e
cirúrgicos, tem sofrido grande evolução nos doença de Kawasaki.
últimos anos graças aos progressos nas áreas de De um modo sistemático são focados aspectos
imagiologia, cateterismo cardíaco, cuidados inten- fundamentais relacionados com anatomofisiolo-
sivos e cirurgia cardíaca. Estes progressos permi- gia, etiopatogénese, diagnóstico e tratamento mé-
tem a detecção e terapêutica precoces de doenças dico e cirúrgico das cardiopatias mais frequentes.
cardiovasculares com consequente diminuição da Incluímos um capítulo sobre não doença e pseudo
mortalidade/morbilidade e melhoria significativa doença devido às importantes implicações resul-
do prognóstico. tantes de qualquer suspeita de doença cardíaca a
Em Portugal a Cardiologia Pediátrica é reco- nível pessoal, familiar e social.
nhecida como especialidade independente desde
1984. O Serviço de Cardiologia Pediátrica do Hos- BIBLIOGRAFIA
pital de Santa Marta, que dirigimos, foi criado em Chin AJ, Saint-Jeannet JP, Lo CW. How insights from cardio-
24/2/1987 por Fernanda Sampayo, sendo impor- vascular developmental biology have impacted the care of
tante referir sucintamente os principais antece- infants and children with congenital heart disease. Mech
dentes históricos. Dev 2012; 129:75-79
Em Outubro de 1969 Fernanda Sampayo, re- Kaku S. Cardiologia Pediátrica in Fragmentos para a História
gressada dos Estados Unidos onde obtivera o títu- da Cardiologia Portuguesa. Carlos Perdigão e Manuel
lo de pediatra pelo American Board of Pediatrics e Valente Alves (eds). Lisboa: Sociedade Portuguesa de
o de cardiologista pediatra pelo Americam Board Cardiologia Editora, 2006
of Pediatric Cardiology, iniciou a Consulta de
Cardiologia Pediátrica no Hospital de Santa
Marta, Lisboa. Em 1971 foi criada a chamada
Secção de Cardiologia Pediátrica integrada no
Serviço de Cardiologia do mesmo hospital, trans-
formada sucessivamente em Unidade de Car-
diologia Pediátrica (1978) e, nove anos mais tarde,
em Serviço, atrás citado. Fernanda Sampayo
dirigiu todas estas áreas assistenciais até à sua
aposentação em 1993. É o mais antigo do país e
tem idoneidade formativa total para a especiali-
dade, com forte tradição no ensino médico.
Com a preocupação de os alunos do 5º e 6º
anos terem uma formação completa em Pediatria,
CAPÍTULO 199 Cardiologia fetal 973
199
o risco aumenta em relação à população em geral,
variando com grau de parentesco, sexo e tipo de
cardiopatia. Síndromas polimalformativas fami-
liares também são indicação para ecocardiograma
fetal.
2. Identificar riscos ambientais potencialmente
CARDIOLOGIA FETAL teratogénicos, quer sejam infecciosos, medica-
mentosos, tóxicos, químicos ou outros. As doen-
Graça Nogueira e António J. Macedo ças maternas também devem ser identificadas, em
particular diabetes pré-concepcional, doenças do
colagénio, fenilcetonúria e hipotiroidismo.
3. Identificar riscos inerentes ao próprio feto,
Importância do problema como a translucência da nuca aumentada no pri-
meiro trimestre e outras anomalias congénitas
A Cardiologia Fetal é uma valência da Cardiologia associadas como anomalias renais, esqueléticas ou
Pediátrica; dedica-se ao estudo e tratamento das gastrintestinais. Situações mais gerais, como res-
perturbações cardíacas e circulatórias da criança trição de crescimento intra-uterino, ascite ou
no período pré-natal. Assume um carácter perina- anasarca fetais, podem igualmente associar-se a
tal quando os cuidados se estendem ao período patologia cardíaca. Este grupo requer, além da
neonatal, uma mais valia pela vantagem da conti- avaliação clínica, uma ecografia obstétrica cor-
nuidade de cuidados à criança e à família. rectamente executada e interpretada. (capítulo 324)
É possível estudar-se com acuidade a anátomo Ainda que cerca de metade das gravidezes de
– fisiologia cardíaca fetal desde a 12ª – 13ª semana crianças com cardiopatia tenham riscos identificá-
de gestação pela ecocardiografia intravaginal, veis, só cerca de um terço das grávidas é referen-
podendo-se prosseguir os estudos pelo segundo e ciado aos serviços de cardiologia pediátrica para
terceiro trimestres através da ecocardiografia rastreio. Esta circunstância explica que a grande
transabdominal. A idade gestacional ideal para a maioria das crianças com cardiopatia nasça sem
ecocardiografia fetal compreende o período entre diagnóstico pré-natal. Por outro lado, actual-
as 17 e as 20 semanas. (ver Parte XXXI) mente, quase todas as gravidezes são vigiadas e
A Cardiologia Perinatal é também uma valên- submetidas a várias ecografias, mas a grande
cia da Medicina Fetal que, no período pré-natal, maioria das cardiopatias graves não é iden-
leva a uma estreita relação com obstetras e peri- tificada. No Serviço de Cardiologia Pediátrica do
natologistas; e, no período neonatal, com pedia- Hospital de Santa Marta apenas cerca de 4% dos
tras neonatologistas, cirurgiões cardíacos e anes- recém-nascidos com cardiopatia têm diagnóstico
tesistas. A estreita colaboração entre estes pré-natal. No entanto, tem vindo a aumentar o
especialistas permite o diagnóstico precoce de pa- número de fetos que nos são enviados para eco-
tologia cardíaca (e o seu tratamento quando indi- cardiograma fetal cujo motivo principal de refe-
cado), assim como o planeamento das melhores rência é a dificuldade técnica no estudo cardíaco.
condições possíveis para o parto e cuidados Este facto denota o elevado grau de preocupação
perinatais. e de exigência por parte dos obstetras ecografistas
A eficácia dos cuidados terciários de saúde só que não se limitam a observar as imagens no plano
tem tradução se forem bem articulados com das quatro câmaras e sentem necessidade de avaliar
cuidados primários de qualidade. Na área do bem a saída dos ventrículos e as grandes artérias.
diagnóstico pré-natal das cardiopatias, as atitudes No plano das quatro câmaras identificam-se car-
a ter em termos de cuidados primários para quem diopatias como coração univentricular, coração es-
segue uma grávida, são: querdo ou coração direito hipoplásicos, e defeitos
1. Identificar as famílias em risco de terem do septo aurículo-ventricular.
filhos com cardiopatia congénita - se a mãe, o pai No plano de saída ventricular e grandes artérias
ou irmãos do feto têm uma cardiopatia congénita, identificam-se cardiopatias como tetralogia de
974 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Fallot e transposição das grandes artérias. Uma 2.1.2 – Doença do colagénio com AC
vez identificada uma anomalia cardíaca no feto, a Ro/SSA e ou La/SSB positivos
grávida deve ser orientada para uma consulta de 2.1.3 – Medicação
alto risco obstétrico. Aí será feito acompanha- 2.1.4 – Infecção materna
mento adequado e serão realizadas ecografias
morfológicas minuciosas para rastreio de outras 3. Causa fetal
anomalias. Cada caso será discutido em reuniões 3.1 – Dificuldades técnicas no estudo do cora-
conjuntas de diagnóstico pré-natal, onde serão ção fetal
programadas, com os obstetras e neonatologistas, 3.2 – Suspeita de cardiopatia na ecografia
as atitudes periparto mais adequadas. obstétrica
Em caso de falecimento do bebé, será discutido 3.3 – Patologia dos fluidos/derrames fetais
o estudo anatomopatológico com fins de aconse- 3.3.1 – Hidropisia fetal
lhamento genético. Pode estar indicada a reali- 3.3.2 – Hidrotórax
zação de cariótipo fetal, muitas vezes orientado 3.3.3 – Derrame pericárdico
pelo tipo de cardiopatia, tentando antecipar a 3.3.4 – Derrame pleural
evolução da doença. Por exemplo, nas cardio- 3.3.5 – Poli-hidrâmnio
patias do tipo conotruncal (tetralogia de Fallot, 3.4 – Anomalias fetais extracardíacas
truncus arteriosus, transposição das grandes 3.4.1 – Onfalocele
artérias) é importante fazer-se ao feto um estudo 3.4.2 – Hérnia diafragmática
cromossómico com hibridação in situ (FISH) da 3.4.3 – Atrésia esófago/duodenal
região crítica 22q11.2, para o rastreio de síndroma 3.4.4 – Fístula tráqueo-esofágica
de DiGeorge, situação que pode cursar com 3.4.5 – Higroma quístico
hipocalcémia neonatal grave e maior suscepti- 3.4.6 – Alterações esqueléticas
bilidade para infecções. Além disso, deve-se 3.4.7 – Anomalias renais
esclarecer e acalmar os pais, de preferência no 3.4.8 – Artéria umbilical única
centro de cardiologia pediátrica onde a criança irá 3.4.9 – Restrição do crescimento intra-
ser seguida e tratada. Os cardiologistas pediá- uterino
tricos e os cirurgiões cardíacos deverão explicar 3.5 – Anomalias cromossómicas, confirmadas
aos pais de modo personalizado a cardiopatia e os ou suspeitas
resultados dos tratamentos propostos. Poderão 3.6 – Translucência da nuca aumentada
também ser apresentados outros pais e familiares 3.7 – Arritmias
de crianças com cardiopatia, já tratadas, a fim de 3.8 – Outras causas
trocarem informações e testemunharem a sua 3.8.1 – Tumor muito vascularizado
vivência pessoal. A opção de prosseguir ou não 3.8.2 – Fístula arteriovenosa
com a gravidez é sempre do casal, sabendo-se que 3.8.3 – Gémeo acardíaco
é sempre uma decisão difícil. (Capítulo 3) 3.8.4 – Transfusão feto-fetal
3.8.5 – Anemia
Indicações para ecocardiograma 3.8.6 – Ausência de ductus venosus
tem cardiopatia, mas alguns têm síndroma de aos pais destas crianças, para programação de
Wolff-Parkinson-White. Depois do parto, deve ser gravidezes futuras. (capítulo 211)
mantida terapêutica com digitálicos durante os
primeiros 6 a 12 meses, mesmo quando as crianças BIBLIOGRAFIA
estão assintomáticas. Allan L, Hornberger L, Sharland G. Textbook of Fetal
Cardiology. London: Greenwich MML, 2000
Outros tipos de intervenção terapêutica in Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
útero – Nos anos 90 iniciaram-se tentativas de Macedo AJ, Castela E, Monterroso J, Ferreira M, Lima M.
tratamento dos obstáculos esquerdos graves que Normas para Ecocardiografia Fetal. Rev Port Cardiol 1994;
evoluem muitas vezes para hipoplasia do 13: 113-114
ventrículo esquerdo. Introduzindo um cateter no Macedo AJ, Ferreira M. O seu bebé tem uma cardiopatia.
ventrículo esquerdo por via transtorácica, era feita Lisboa: Gulbenkian, 1996
dilatação da válvula aórtica, mas os resultados Nogueira G, Macedo AJ. Cardiologia Fetal. In Soares-Costa JTS
não foram animadores. Hoje retomou-se esse e Kaku S (eds). Cardiopatias Congénitas. Lisboa:
tratamento para os obstáculos esquerdos e Permanyer Portugal, 2005; 21-26
também para os direitos, nomeadamente no caso Oster ME, Lee KA, Honein MA, et al. Temporal trends in sur-
de estenose pulmonar crítica. Os resultados vival among infants with critical congenital heart defects.
parecem mais promissores. Também têm sido Pediatrics 2013; 131: e1502-e1508
feitas tentativas de septostomia auricular in utero Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
nos casos em que há encerramento ou restrição de AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
fluxo através do foramen ovale. Medical, 2011
Sullivan ID. Prenatal diagnosis of structural heart disease:
Tratamento do recém-nascido Does it make a difference to survival? Heart 2002; 87: 405-
com cardiopatia 406
Trines J, Hornberger LK. Evolution of heart disease in utero.
Este é o concluir de todo um trabalho de acom- Pediatr Cardiol 2004; 12: 287-298
panhamento pré-natal. O paradigma desta situa- Xavier P, Matias A, Silva JT, Montenegro N, Areias JC. Prenatal
ção é a transposição completa das grandes artérias diagnosis of congenital heart disease. Critical evaluation of a
cujo diagnóstico pré-natal nem sempre é fácil. Na twelve-month experience. Rev Port Cardiol 2003; 19: 213-214
maior parte dos casos surge, logo nas primeiras
horas de vida, cianose persistente obrigando a
terapêutica imediata. Esta pode incluir adminis-
tração de prostaglandinas E1 e transporte, de
urgência, para um Serviço de Cardiologia Pediá-
trica. Dado que a administração de prostaglan-
dina E1 pode provocar apneia como acção
acessória importante, recomenda-se que o trans-
porte seja realizado em viaturas com pessoal
especializado e incubadoras com ventiladores
como as do Instituto Nacional de Emergência
Médica (INEM). No Serviço de Cardiologia Pediá-
trica é, em geral, necessário realizar septostomia
auricular de Rashkind como terapêutica de
emergência. A cirurgia de correcção anatómica
(operação de Jatène) realiza-se durante a primeira
semana e os resultados dependem muito das
condições pré-operatórias. Daqui se infere a im-
portância do diagnóstico pré-natal. Por outro
lado, é fundamental o aconselhamento genético
976 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
200
QUADRO 1 – Características gerais do sopro
inocente
Intensidade
Inferior a 3/6
Altura
NÃO DOENÇA Grave
Timbre
E PSEUDO-DOENÇA CARDÍACA Vibrações de altura e intensidade homogéneas
Local de máxima intensidade
Fátima F. Pinto e Sashicanta Kaku Específico para cada tipo
Intervalo entre o 1º ruído e o sopro
Existe
Circunscrito no precórdio
Importância do problema Sim
Modifica-se com posição ou com manobras
A maioria das crianças atendidas pela primeira Sim (posição, respiração, exercício, manobras de
vez na consulta de Cardiologia Pediátrica não tem compressão vascular, febre).
doença cardíaca. Aquelas são enviadas por sin-
tomatologia mal definida como dor torácica, “pi-
cadas e sensação de falta de ar”. O esclarecimento das cardiopatias congénitas que é 3 a 4/1000 no
destas situações é importante a fim de evitar o mesmo grupo etário (6 a 8/1000 nado – vivos). A
estigma de doença cardíaca com todas as conse- maioria dos sopros cardíacos inocentes pode ser
quências sobre o estado psicológico e qualidade identificada com base na anamnese e na obser-
de vida das crianças e das famílias. Os motivos vação. As principais características de cada tipo de
principais para o envio à consulta de Cardiologia sopro inocente estão resumidas nos Quadros 1 e 2.
Pediátrica são discriminados nas alíneas seguin- Na nossa experiência, os mais frequentes são:
tes. sopro vibratório (43%) seguido de zumbido
venoso e da associação de ambos (11% cada). O
Sopro cardíaco detectado sopro pulmonar (7%) e o ruído carotídeo (menos
em observação de rotina de 1%) são menos frequentes. Os sopros inocentes
(sopro inocente) tendem a variar de intensidade com o estado
dinâmico da circulação, e a desaparecer com a
A incidência de sopro inocente (não associado idade. O diagnóstico de sopro inocente pode ser
patologia cardiovascular) em crianças em idade confirmado pela ausência de alterações cardiovas-
escolar é ~ 75%, em contraste com a prevalência culares na radiografia do tórax e no electrocardio-
grama. Os pais devem ser alertados para o facto pela respiração, tosse e movimentos do tórax; é
de o sopro inocente poder ser mais bem audível auto-limitada.
em situações de febre, anemia ou após esforço e A glândula mamária pode ser responsável por
quando a criança é observada por um médico dor torácica, em particular em jovens no início da
diferente do habitual. Há que evitar o desenvolvi- menarca, durante as menstruações ou durante a
mento de “neurose cardíaca” e processos de so- gravidez.
breprotecção ou complexos de culpa nos pais. Das causas pulmonares salienta-se a asma.
Nesta situação, a dor pode ser causada pelo
Sintomas ou sinais não esclarecidos esforço muscular associado à dispneia e à tosse,
(suspeita de causa cardíaca pelo ou pode ser devida à ansiedade. A inflamação da
médico assistente) pleura pode causar dor torácica que ocorre
durante a inspiração e se acompanha de atritos
1. Dor torácica durante actividade normal pleurais detectados por auscultação.
Esta é actualmente a principal causa de envio à Das causas gastrintestinais, salienta-se o
consulta de Cardiologia Pediátrica de crianças refluxo gastresofágico que muitas vezes se associa
mais velhas e adolescentes. Este facto deve-se, em à asma.
parte, à divulgação mediática da morte de despor- Outra causa é a dor psicogénica, cada vez mais
tistas jovens em pleno esforço e ao receio por parte frequente em crianças e adolescentes sujeitos a
dos pais de a dor poder corresponder a uma vários tipos de tensão emocional.
doença cardíaca grave, potencialmente letal.
Na maioria das situações trata-se da chamada 2. Queixas ou sinais inespecíficos
“dor torácica benigna do adolescente”. É mais fre- São inúmeros os motivos inespecíficos que podem
quente entre as idades de 8 e 16 anos. A dor ocorre levar os pais a suspeitar de doença cardíaca e a
em repouso, é aguda, cortante ou do tipo picada e, insistir junto do médico assistente na necessidade
raramente, do tipo opressão ou aperto. Dura do esclarecimento da mesma.
breves instantes durante os quais algumas cri- a) Cansaço – é uma das queixas mais fre-
anças sentem “o coração bater”. Ocasionalmente, quentes. O cansaço pode ter múltiplas causas não
pode ser de grande intensidade provocando cardíacas: psicológicas (carência afectiva, imitação
choro, aparecendo e desaparecendo subitamente. de familiares idosos ou doentes com quem
A observação e os exames complementares são coabitam) ou orgânicas (obesidade, falta de treino
completamente normais. Deve assegurar-se à físico, asma, alterações ortopédicas).
família a ausência de patologia e alertar para a b) Perdas de conhecimento acompanhadas ou
possibilidade de a dor poder repetir-se. não de convulsões – são situações alarmantes
A dor torácica neste grupo etário é frequente- que podem ter diversas causas. A causa cardíaca é
mente de origem músculo-esquelética. A obser- rara; por isso, estas crianças devem sempre ser
vação clínica deve ser cuidadosa e, além do estado investigadas neurologicamente antes de serem
da pele, deve-se analisar as costelas e as articu- enviadas à Cardiologia Pediátrica.
lações condrocostais. A costocondrite das articu- c) Espasmo do soluço – é muitas vezes motivo
lações costocondrais e condrosternais é frequente de referência à consulta de Cardiologia Pediátrica.
em adolescentes, decorre sem edema, localiza-se d) Alterações benignas do ritmo cardíaco –
entre a 2ª e a 5ª articulações e é auto-limitada. são muitas vezes mal interpretadas. Ao avaliar o
A síndroma de Tietze, mais rara, decorre com ritmo e a frequência cardíaca da criança é
inflamação não supurada e edema das articulações necessário ter em consideração as condições em
cartilagíneas das costelas. Pode ser recidivante e que se efectua o exame, excluindo febre, choro ou
necessitar de analgésicos e anti-inflamatórios. agitação. É frequente o envio por “arritmia respi-
Outra causa rara de dor torácica é a mialgia ou ratória ou fisiológica”, normal na criança.
pleurodínia, localizada na região abdominal supe- e) Valores elevados de TASO – tais valores
rior ou intercostal. A causa é vírica e ocorre em elevados de antiestreptolisinas apenas indicam a
geral com síndroma gripal. A dor é intensificada existência prévia de infecção por estreptococos; e,
978 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
201
na ausência de sinais ou sintomas cardiovascu-
lares, o TASO não é sinónimo de doença cardíaca
nem de febre reumática.
f) Pseudocardiomegália na radiografia do
tórax – deve-se em geral a sobreposição de
imagem do timo com a silhueta cardíaca ou a defi-
ciente técnica de execução (em expiração ou em CARDIOPATIAS CONGÉNITAS.
posição ântero-posterior).
Os sinais e sintomas inespecíficos, quando mal GRUPOS FISIOPATOLÓGICOS
esclarecidos, levantam suspeita de doença cardía-
ca. Para a sua diferenciação, é fundamental co- Anabela Paixão e Sashicanta Kaku
nhecer os limites dos valores normais na criança
e ter em consideração que a doença cardíaca na
criança apresenta sinais e sintomas bem definidos
que podem ser avaliados e identificados numa Importância do problema
observação cuidadosa.
Nalguns centros, como complemento da Tendo em consideração o número de cavidades,
observação clínica, para o rastreio de defeitos válvulas, septos e estruturas vasculares que
cardíacos no RN, tem sido utilizada a técnica de entram e saem do coração, é fácil imaginar a quan-
oximetria transcutânea. tidade de defeitos estruturais decorrentes de
anomalias do desenvolvimento do coração ma-
BIBLIOGRAFIA tematicamente possíveis: cavidades hipoplásicas
Biancaniello T. Innocent murmurs. Circulation 2005; 111: e 20 - ou inexistentes, septos incompletos, câmaras de
e 22 entrada ou saída estenosadas, válvulas malfor-
Danford DA, McNamara DG. Innocent murmurs and heart madas, vasos mal posicionados ou ainda, per-
sounds. In Garson AJr, Bricker JT, Fisher DJ, Neish SR (eds). sistência de estruturas que não tenham passado
The Science and Practice of Pediatric Cardiology Edition. pelo normal processo de involução pós-natal.
Baltimore: Williams & Wilkins 1998; 2203-2212 Embora existam numerosas combinações de
Lima M. Não doença e pseudo-doença cardíaca. In Temas de defeitos que determinam um considerável núme-
Pediatria-vol III.Cardiologia Pediátrica. Lisboa Beecham, ro de variantes anatómicas, é possível enquadrar
1994; 59-71 essas entidades clínicas em cinco grupos fisiopa-
Pinto F, Kaku S. Não-doença e pseudodoença cardíaca na cri- tológicos, de modo a tornar mais facilmente com-
ança. In Soares-Costa JTS e Kaku S (eds). Cardiopatias preensível o seu quadro clínico. Sendo a clínica
Congénitas.Lisboa: Permanyer Portugal, 2005; 21-26 determinada pelas consequências das anomalias
Powell R, Pattison HM, Bhoyar A, et al. Pulse oximetry screen- cardíacas, a sua avaliação deve ter em conta: a
ing for congenital heart defects in newborn infants: an eval- anomalia fisiológica básica e o tipo de carga que
uation of acceptability to mothers. Arch Dis Child Fetal impõe ao sistema cardiovascular em desenvolvi-
Neonatal Ed 2013; F59-F63 mento; o efeito possível sobre a dinâmica da cir-
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon culação fetal e neonatal; a influência dos fenó-
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill menos de adaptação circulatória pós-natal, (par-
Medical, 2011 ticularmente a maturação do leito vascular pul-
Sampayo F, Lima M. Adolescente e saúde. Aspectos cardio- monar) sobre as características do quadro clínico.
lógicos. Rev Port Pediatr 1981; 12 (supl 2): 37-45
Talner NS, Carboni MP. Chest pain in the adolescent and Grupos fisiopatológicos
young adult. Cardiol Rev 2000; 8: 49-56
De uma forma simplificada, as cardiopatias con-
génitas mais frequentes integram os seguintes gru-
pos fisiopatológicos:
1. Shunts esquerdo-direito
CAPÍTULO 201 Cardiopatias congénitas. Grupos fisiopatológicos 979
desenvolva gradualmente permitirá uma adaptação é relativamente fácil de avaliar pelas características
do miocárdio à sobrecarga de pressão. Um dos da auscultação cardíaca e pelas alterações electro-
mecanismos de adaptação é a hipertrofia ventricular. cardiográficas relacionadas com o grau de hiper-
A sobrecarga crónica de pressão provoca alterações trofia ventricular direita que determinam.
na circulação miocárdica que se torna insuficiente
para corresponder ao aumento das necessidades 3. Cardiopatias congénitas cianóticas
metabólicas impostas pelo aumento da massa mus- As cardiopatias congénitas cianóticas provocam
cular ventricular, provocando isquémia e, conse- hipoxémia na circulação sistémica por falta de oxi-
quentemente, disfunção ventricular e insuficiência genação do sangue venoso proveniente do retorno
cardíaca. venoso sistémico. A manifestação clínica desta situ-
2.1. Obstáculos do coração esquerdo. Os ação é a cianose. Esta é atribuída à presença de mais
obstáculos esquerdos são obstruções à entrada ou de cinco gramas de hemoglobina não saturada por
à saída do coração esquerdo. A fisiopatologia e a cada 100 mL de sangue circulante. A detecção clíni-
clínica diferem com a localização anatómica do ca da cianose depende, não só da quantidade de
obstáculo. A regurgitação valvular é muito fre- hemoglobina (Hb) reduzida presente no sangue
quente e não pode ser ignorada na avaliação circulante, mas também da sua concentração total.
destas lesões. A localização anatómica à entrada Uma insaturação de 40% (ou saturação Hb-O2 de
do coração esquerdo (exemplos: estenose das veias 60%) provocará cianose num doente com hemoglo-
pulmonares, cor triatriatum, estenose supra- bina > 12,5 g/dL mas não será detectada se a hemo-
valvular mitral ou doença mitral congénita) provo- globina for inferior a 10g/dL pois nesse caso só
ca inicialmente obstáculo ao retorno venoso pul- haverá quatro gramas de hemoglobina reduzida
monar e, portanto, hipertensão venosa e edema em circulação. As lesões que determinam esta
pulmonar com consequente diminuição da compli- expressão clínica enquadram-se em dois mecanis-
ance ou distensibilidade pulmonar, provocando mos fisiopatológicos: os shunts direito-esquerdo e a
aumento do esforço respiratório. Este quadro pode fisiologia de transposição.
ser confundido com doença pulmonar. Numa fase 3.1. Com shunts direito-esquerdo. A tetralogia
posterior, desenvolve-se hipertensão arterial e de Fallot é o protótipo da fisiologia de shunt direi-
arteriolar pulmonares, com sobrecarga de pressão to-esquerdo. Consiste na associação de comuni-
do ventrículo direito. Nos obstáculos à saída do cação interventricular grande com obstáculo à
coração esquerdo (exemplos: estenose aórtica sub- saída do ventrículo direito a nível infundibular e,
valvular, valvular e supravalvular, coarctação da por vezes, também a nível valvular pulmonar. A
aorta) a principal alteração hemodinâmica é o gravidade do obstáculo direito (responsável pela
aumento da resistência à ejecção do ventrículo redução do fluxo sanguíneo na circulação pul-
esquerdo, com aumento da pressão intraventricu- monar e passagem de sangue do coração direito
lar e hipertrofia ventricular esquerda. A evolução para o esquerdo) é o factor determinante do grau
para disfunção ventricular depende da gravidade de hipoxémia sistémica. Várias cardiopatias con-
e cronicidade do obstáculo. A associação de insufi- génitas complexas partilham este tipo de fisiolo-
ciência valvular com a estenose aórtica pode deter- gia, uma vez que associam uma comunicação
minar a data da intervenção terapêutica, indepen- intracardíaca grande com um obstáculo à circu-
dentemente da gravidade do obstáculo. lação pulmonar que pode ocorrer a diversos
2.2. Obstáculos do coração direito. Os obstá- níveis, desde a válvula tricúspide à pulmonar e,
culos à entrada do coração direito (ex. obstrução também, a nível das artérias pulmonares (exem-
das veias cavas, atrésia ou estenose tricúspide), plos: atrésia da tricúspide com comunicação inter-
bem como as lesões regurgitantes da válvula auricular, ventrículo direito de dupla saída com
tricúspide, produzem quadros de congestão obstáculo pulmonar ou coração univentricular
venosa sistémica com hepatomegália e edema pe- com obstáculo pulmonar).
riférico. Os obstáculos à saída do ventrículo direito 3.2. Com fisiologia de transposição. A trans-
situam-se a nível valvular, subvalvular e, mais ra- posição das grandes artérias, a cardiopatia con-
ramente, supravalvular. A gravidade destas lesões génita cianótica mais frequente no período neona-
CAPÍTULO 202 Persistência do canal arterial 981
202
tal, representa cerca de 5% de todas as cardiopatias
congénitas. Caracteriza-se por concordância
auriculo-ventricular e discordância ventriculo-
arterial, em que a aorta emerge do ventrículo mor-
fologicamente direito e a artéria pulmonar do ven-
trículo morfologicamente esquerdo. Como conse-
quência deste arranjo anatómico, o sangue venoso, PERSISTÊNCIA DO CANAL
proveniente das veias cavas, passa da aurícula
direita para o ventrículo direito e é ejectado na ARTERIAL
aorta, sem ser oxigenado e o sangue oxigenado,
proveniente dos pulmões, entra no coração esquer- Ana Cristina Ferreira, Graça Nogueira e Sashicanta
do e sai pela artéria pulmonar novamente para os Kaku
pulmões. A situação clínica resultante deste arran-
jo anatómico (circulação em paralelo, ao contrário
da circulação normal que é em série), é a
hipoxémia grave desde as primeiras horas de vida. Importância do problema
bolização das prostaglandinas pelo pulmão dade do canal arterial de grande calibre traduz-se
imaturo e a patologia pulmonar hipoxémica fre- por aumento da amplitude dos pulsos periféricos,
quente do RN pré-termo são alguns dos factores agravamento das alterações pulmonares e necessi-
que contribuem para o não encerramento do canal dade de ventilação mecânica para além do tempo
arterial. Os factores genéticos parecem estar esperado. O sopro é audível após as três semanas
envolvidos existindo um risco de recorrência de 2- de vida (por diminuição das resistências vascu-
4% em irmãos de um caso afectado, sendo que lares pulmonares), sendo habitualmente sistólico,
determinados genes têm sido associados a maior rude e mais audível no bordo esquerdo do ester-
incidência (por ex TRAF1, MYH11). Está documen- no. Está documentado aumento de incidência de
tada também a associação com a infecção pelo vírus displasia broncopulmonar, hemorragia intraven-
da rubéola no primeiro trimestre de gravidez. tricular e enterocolite necrosante. (Capítulo 333)
Com a diminuição da resistência vascular pul-
monar após o nascimento, o sangue oxigenado da Exames complementares
aorta descendente passa pelo canal arterial e mistu-
ra-se na artéria pulmonar com o sangue venoso O diagnóstico é fundamentado num conjunto de
proveniente do ventrículo direito. O aumento de exames complementares descritos a seguir:
volume de sangue através do pulmão, aurícula
esquerda, ventrículo esquerdo e novamente aorta, é Radiografia de tórax
responsável pelo aumento das dimensões das Nos casos com shunt pequeno a radiografia de tórax
câmaras cardíacas esquerdas e dilatação dos grandes não apresenta alterações. Nos casos com shunt mo-
vasos. A magnitude do shunt é determinada pela derado ou grande, observa-se proeminência dos
resistência oferecida pelo canal arterial (comprimen- arcos da artéria pulmonar e da aorta, aumento do
to, diâmetro e trajecto) quando o canal é pequeno, e índice cárdio-torácico (por dilatação da aurícula e
pela resistência vascular pulmonar quando o canal é ventrículo esquerdos) e aumento da vascularização
grande. O aumento de volume de sangue ejectado pulmonar. Com a progressão para doença vascular
pelo ventrículo esquerdo e o des-vio de sangue da obstrutiva pulmonar, as dimensões do coração nor-
aorta para a artéria pulmonar são responsáveis pela malizam, verifica-se dilatação do tronco e ramos
grande amplitude de pulso. (Capítulo 326) hilares da artéria pulmonar, e diminuição de calibre
dos seus ramos periféricos. (“árvore de inverno”).
Manifestações clínicas
Electrocardiograma
Nos casos com shunt pequeno os doentes estão as- Nos casos com shunt pequeno o exame é normal e
sintomáticos e o diagnóstico é suspeitado pela nos casos com shunt moderado ou grande há
detecção de sopro cardíaco em observação de roti- sinais de dilatação da aurícula esquerda e hiper-
na. Os casos com shunt grande manifestam-se por trofia ventricular esquerda. Se a situação evoluir
polipneia, diaforese, recusa alimentar e perda pon- com doença vascular obstrutiva pulmonar pode-
deral entre a terceira e a sexta semana de vida, por rão observar-se sinais de hipertrofia biventricular.
diminuição da resistência vascular pulmonar. A Nos pré-termo, o electrocardiograma inicialmente
onda de pulso é geralmente ampla. O impulso api- é normal, surgindo sinais de hipertrofia ventricu-
cal está desviado para esquerda. O componente lar direita seguidos de hipertrofia biventricular
pulmonar do segundo ruído cardíaco tem intensi- duas a três semanas depois. Nalguns casos podem
dade aumentada. Ausculta-se sopro contínuo que surgir sinais de isquémia do miocárdio.
se inicia pouco depois do primeiro ruído e atinge a
máxima intensidade na região do segundo ruído. É Ecocardiograma
mais audível no segundo espaço intercostal As dimensões das cavidades esquerdas fornecem
esquerdo. Por vezes ausculta-se sopro diastólico sinais indirectos sobre a magnitude do shunt e o estu-
apical devido à “estenose relativa” da válvula do com Doppler permite detectar e quantificar o shunt
mitral, por aumento de débito (rodado de débito). através do canal arterial. O ecocardiograma permite
Nos recém-nascidos pré-termo, a permeabili- também identificar eventual patologia associada.
CAPÍTULO 202 Persistência do canal arterial 983
203
com peso inferior a 6 kg portadores de canal arte-
rial de grande calibre e insuficiência cardíaca
refractária à terapêutica médica. Nos pré-termo
recorre-se à cirurgia nos casos em que existe con-
tra-indicação, ou resistência ao uso de indometaci-
na. As complicações (lesão dos nervos laríngeos
recorrente ou frénico, lesão do canal torácico, COMUNICAÇÃO
hemorragia, atelectasia e derrame pleural) são
raras. A taxa de mortalidade é inferior a 1%. INTERAURICULAR
Nota Importante: Nos primeiros 5 dias de vida em Ana Carriço, Fátima F. Pinto e Sashicanta Kaku
RN pré-termo, a determinação sérica seriada do BNP
(péptido natriurético do tipo B) constitui um biomar-
cador útil para definir a estratégia terapêutica nas
situações de ductus arteriosus hemodinamicamente Definição e importância do problema
significativo. Determinados centros utilizam os
seguintes critérios – "picos" pelas 24-48 horas de vida: Entende-se por comunicação interauricular (CIA)
~250 pg/mL <> tratamento médico; ~2.000 pg/mL qualquer solução de continuidade entre as duas
<> laqueação cirúrgica. (Capítulo 331) aurículas, com excepção do foramen ovale cuja per-
meabilidade é fundamental durante a vida fetal.
Seguimento Após o nascimento, devido ao aumento de pres-
sões na aurícula esquerda, dá-se o seu encerra-
Na ausência de hipertensão pulmonar ou compli- mento funcional e, durante o primeiro ano de
cações cirúrgicas, os doentes com canal arterial vida, o encerramento anatómico. Em 25% a 30%
totalmente encerrado apenas necessitam de segui- dos casos o encerramento anatómico não é com-
mento durante seis meses após a terapêutica. pleto – foramen ovale patente.
A comunicação interauricular aparece fre-
BIBLIOGRAFIA quentemente isolada e classifica-se de acordo com
Alagarsamy S, Chhabra M, Gudavalli M, et al. Comparison of a posição que ocupa no septo interauricular, a sua
clinical criteria with echocardiographic findings in diagnos- embriologia e o seu tamanho (Figura 1).
ing PDA in preterm infants. J Perinat Med 2005; 33: 161-164 1. Comunicação interauricular tipo fossa
Cooke RWI. Persistent arterial duct in the preterm infant. In ovalis – erradamente designada por CIA tipo
Anderson RH, Baker EJ, Macartney FJ, Rigby ML, ostium secundum, é a forma mais frequente, repre-
Shinebourne EA, Tynan M, (eds). Paediatric Cardiology. sentando 6% a 10% das cardiopatias congénitas. É
London: Churchill Livigstone 2002; 713-720 mais frequente no sexo masculino (2/1) e ocorre
Ferreira AC, Nogueira G, Kaku S. Persistência do canal arteri- de forma esporádica, embora estejam descritos
al. In Soares-Costa JTS e Kaku S (eds). Cardiopatias casos de incidência familiar. Pela sua localização,
Congénitas.Lisboa:Permanyer Portugal, 2005; 31-36 deve fazer-se o diagnóstico diferencial com fora-
Kaku S, Pinto F, Ferreira R, Trigo C, Walsh K. Oclusão do canal men ovale patente.
arterial por via percutânea com filamentos helicoidais de 2. Comunicação interauricular tipo ostium pri-
separação controlável. Rev Port Cardiol 1996; 15: 913-916 mum – localiza-se numa posição caudal em relação
Lee C-H, Chen H-N, Tsao L-Y, et al. Oral ibuprofen versus à fossa ovalis. Embriologicamente, resulta de uma
intravenous indomethacin for closure of patent ductus alteração do desenvolvimento do septo aurículo-
artriosus in very low birth weight infants. Pediatrics and ventricular, devendo, por isso, ser classificada no
Neonatology 2012; 53: 346-353 grupo dos defeitos do septo aurículo-ventricular.
Mine K, Ohashi A, Tsuji S, et al. B-type natriuretic peptide for 3. Comunicação interauricular tipo sinus
assessment of haemodynamically PDA in premture infants. venosus – situa-se, posteriormente à fossa ovalis e
Acta Paediatrica 2013; 102: e347- e352 acompanha-se geralmente de anomalias de cone-
xão das veias pulmonares direitas.
CAPÍTULO 203 Comunicação interauricular 985
sido tratados, existe o risco de aparecimento de torácica, obesidade, doentes adultos e outros)
arritmias auriculares nomeadamente flutter ou fi- pode ser necessário recorrer ao ecocardiograma
brilhação e consequente dilatação da aurícula transesofágico que permite melhor definição da
esquerda. morfologia e dimensões dos defeitos e sua relação
com estruturas adjacentes.
Exames complementares
Tratamento
Radiografia do tórax
Nos casos em que exista grande shunt interauricu- O tratamento destina-se, em geral, à prevenção da
lar poderá haver dilatação do ventrículo direito e evolução para doença vascular pulmonar e ao
do tronco da artéria pulmonar. A dilatação da aparecimento de arritmias na idade adulta. Está
aurícula direita não é, em geral, visível na radio- também indicado em todos os casos em que possa
grafia em posição póstero-anterior. A ausência da existir risco de acidentes vasculares cerebrais por
imagem da veia cava superior é um sinal pouco embolização através da comunicação interauricu-
descrito, mas frequente nos defeitos grandes. lar. Os defeitos de grandes dimensões, quando
Existe aumento da vascularização até à periferia responsáveis por sintomas e sinais de insuficiên-
dos campos pulmonares (plétora). cia cardíaca, podem necessitar de tratamento
médico com diuréticos e digitálicos. O encerra-
Electrocardiograma mento (médico ou cirúrgico) está indicado em
A maioria dos doentes apresenta-se em ritmo todos os doentes com mais de dois anos de idade
sinusal. Nalguns casos, pode haver aumento do nos quais a relação entre débitos pulmonar e
intervalo P-R, traduzindo atraso de condução sistémico (Qp/Qs) seja superior a 1,5.
aurículo-ventricular (bloqueio aurículo-ventricu- 1. Cateterismo cardíaco – não é necessário
lar de primeiro grau). O eixo do QRS no plano para o diagnóstico, mas pode estar indicado para
frontal é normal e em quase todos os casos existe terapêutica (em doentes seleccionados) através da
padrão rSR’ (com R’>r) nas derivações precordiais colocação de dispositivos por via percutânea. É
direitas traduzindo dilatação do ventrículo direi- um procedimento seguro (orientado por ecocar-
to. De notar que o padrão rSr’ existe numa per- diografia transesofágica ou intravascular), exige
centagem importante de crianças (dizemos que tempo de internamento mais curto do que a cirur-
este padrão é “normal” na criança). Não represen- gia e não necessita de circulação extracorporal
ta qualquer tipo de “bloqueio” pelo que se deve nem de toracotomia (pelo que não deixa cicatriz).
evitar o termo “padrão de bloqueio incompleto de 2. Tratamento cirúrgico – tem indicação para
ramo direito”. Para se diagnosticar dilatação ven- os casos em que esteja contra-indicado o cateteris-
tricular direita, a amplitude da onda R’ no com- mo terapêutico pela idade e peso da criança, ou
plexo rSR’ deverá ser superior a 15mm nas cri- por anatomia desfavorável. O risco de mortali-
anças com menos de um ano de idade, e superior dade e morbilidade cirúrgicas é mínimo.
a 10mm nas crianças mais velhas. 3. Profilaxia da endocardite bacteriana – ao
contrário do indicado para a maioria das lesões
Ecocardiograma cardíacas, segundo a American Heart Association,
É o exame que permite fazer o diagnóstico. O eco- a profilaxia da endocardite bacteriana não é
cardiograma modo M permite medir as dimen- necessária nas comunicações interauriculares iso-
sões das cavidades do coração e as características ladas (excepto nos defeitos de septo aurículo-ven-
do movimento do septo interventricular. O eco- tricular incompletos – ostium primum).
cardiograma (modo bidimensional) fornece dados
relativos ao número, localização e dimensões das BIBLIOGRAFIA
lesões; e o Doppler codificado em cor permite Beerman LB, Zuberbuhler JR. Atrial septal defect. In Anderson
avaliar as características do fluxo interauricular e RH, Baker EJ, Macartney FJ, Rigby ML, Shinebourne EA,
a relação entre os débitos pulmonar e sistémico. Tynan M, (eds). Paediatric Cardiology. London: Churchill
Nos doentes com “má janela” (por deformação Livigstone, 2002; 901-930
CAPÍTULO 204 Comunicação interventricular 987
204
Garson AJ. Diagnostic electrocardiography. In Anderson RH,
Baker EJ, Macartney FJ, Rigby ML, Shinebourne EA, Tynan
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oventricular conduction intervals in children with and
without atrial septal defects. J Electrocardiol 1982;15:9-14 A comunicação interventricular consiste numa
Swartz EN. Is transcatheter device occlusion as good as open solução de continuidade do septo interventricular
heart septal for closure of atrial septal defects? Arch Dis que estabelece uma comunicação entre o ventrícu-
Child 2004; 89: 684-688 lo esquerdo e o ventrículo direito. É a anomalia
cardíaca congénita mais frequente representando
20% de todas as cardiopatias congénitas enquanto
defeito isolado. Admite-se etiologia multifactorial.
A nomenclatura mais consensual classifica as
comunicações interventriculares em perimembra-
nosas (70%) e musculares (30%). A localização do
defeito tem implicações importantes na probabili-
dade de encerramento espontâneo, na predis-
posição para complicações e na abordagem cirúr-
gica.
Fisiopatologia
do por aumento do retorno venoso pulmonar, aumento de débito através da válvula mitral. Nos
com consequente dilatação e hipertrofia; defeitos grandes com hipertensão pulmonar grave
2. sobrecarga de pressão no leito capilar pul- desaparecem os sinais de hiperdinamismo cardía-
monar, com aumento do líquido intersticial pul- co e a sintomatologia de insuficiência cardíaca. O
monar e consequente alteração da distensibili- sopro sistólico é de curta duração e o componente
dade (compliance) pulmonar e prejuízo das trocas pulmonar do segundo ruído está aumentado de
gasosas; intensidade. Nos casos em que há inversão do
3. compromisso do débito cardíaco sistémico shunt, com passagem de sangue venoso para a cir-
devido à recirculação pulmonar através do ven- culação sistémica, surge cianose central, primeiro
trículo esquerdo, o que desencadeia mecanismos com o esforço, e posteriormente em repouso.
de manutenção de perfusão de órgãos e da pressão
arterial, como por exemplo a activação do sistema Exames complementares
nervoso simpático e do sistema renina-angiotensi-
na-aldosterona, com consequente aumento da Electrocardiograma
resistência vascular periférica e retenção de água e Nos defeitos pequenos, o electrocardiograma é
sódio. O aumento mantido da pressão capilar pul- normal. Nos defeitos moderados existem sinais de
monar produz alterações definitivas nos vasos, hipertrofia do ventrículo esquerdo e, nas comuni-
aumentando irreversivelmente a resistência vascu- cações interventriculares grandes, o electrocardio-
lar pulmonar que pode atingir níveis supras- grama apresenta hipertrofia biventricular. Nos
sistémicos, conduzindo à inversão do shunt (sín- casos de doença vascular pulmonar obstrutiva
droma de Eisenmenger). (síndroma de Eisenmenger), pode verificar–se
hipertrofia ventricular direita exclusiva.
Manifestações clínicas
Radiografia do tórax
As manifestações clínicas dependem das dimen- Nas comunicações interventriculares pequenas, a
sões do defeito e da resistência vascular pulmonar. radiografia é normal. Nos defeitos moderados, a
As crianças com comunicação interventricular silhueta cardíaca está aumentada e a vasculariza-
pequena são, em regra, assintomáticas e a forma ção pulmonar está aumentada (plétora pul-
de apresentação mais frequente é a detecção de monar). Nas comunicações grandes, são evi-
sopro cardíaco entre a segunda e a sexta semana dentes: aumento da silhueta cardíaca, dilatação da
de vida. artéria pulmonar e aumento da vascularização
Os casos com comunicações moderadas ou pulmonar, principalmente na região hilar. Nos
grandes manifestam-se no final do primeiro mês casos com insuficiência cardíaca congestiva, pode
de vida com polipneia, cansaço durante as ma- observar-se edema intersticial. Nos doentes com
madas, hipersudorese, atraso estaturo-ponderal e hipertensão pulmonar grave existe dilatação da
infecções respiratórias frequentes. artéria pulmonar e diminuição da vascularização
Nas crianças com comunicações interventricu- pulmonar na periferia dos campos pulmonares
lares pequenas ausculta-se sopro cardíaco holos- (oligoémia periférica – árvore de inverno).
sistólico, de grau III-IV/VI, mais audível ao nível
do terceiro ou quarto espaço intercostal esquerdo Ecocardiograma
com irradiação para o bordo direito do esterno. O ecocardiograma permite determinar a localização
Nos defeitos moderados ausculta-se sopro e dimensões dos defeitos, calcular a magnitude do
holossistólico de grau IV-V/VI na região paraster- shunt e sua repercussão sobre as dimensões das
nal esquerda, irradiando para a direita. cavidades cardíacas, calcular a pressão na artéria
Nas comunicações interventriculares grandes pulmonar, e identificar anomalias associadas.
o sopro cardíaco não é audível em toda a sístole. A
intensidade do componente pulmonar do segun- Cateterismo cardíaco
do ruído está aumentada e pode auscultar-se um O cateterismo cardíaco actualmente só está indica-
rodado diastólico na ponta, provocado pelo do nos casos em que a ecocardiografia não seja
CAPÍTULO 204 Comunicação interventricular 989
205
1 2 3
DEFEITOS DO SEPTO
AURÍCULO-VENTRICULAR 1 – No coração normal existem quatro válvulas, duas de entrada
(VM: válvula mitral; VT: válvula tricúspide) e duas de saída (AO:
aorta; AP: pulmonar). Os anéis das VM e VT são independentes e a
válvula AO encontra-se encravada entre os dois.
Mónica Rebelo e António J. Macedo
2 – Nos DSAV completos ou de orifício único, os aneis da VM e
VT juntam-se num só comum (AC), com uma válvula AV comum
(VC) de 5 folhetos. Há um orifício de entrada AV comum que serve
conjuntamente o ventrículo direito e o esquerdo.
Definição
3 – Nos DSAV incompletos ou de orifícios separados, também
existe um anel comum às duas válvulas AV (AC) mas dois dos
Os defeitos do septo aurículo-ventricular (DSAV) folhetos da válvula AV comum unem-se ao centro, formando dois
orifícios separados, um para o ventrículo direito (OD) e outro para
são anomalias complexas com dois componentes o esquerdo (OE). Esta união central de folhetos também se faz à
principais: defeito no meio do coração originado custa do septo interventricular, pelo que não existe CIV mas só CIA
tipo ostium primum.
pela ausência do septo aurículo-ventricular e
anomalia das válvulas mitral e tricúspide que Quer nos DSAV completos quer nos incompletos, a AO torna-se mais anterior,
com consequente alongamento do tracto de saída do ventrículo esquerdo.
deixam de ser individualizadas e passam a ter
anel e folhetos comuns, formando uma única
FIG. 1
válvula.
Tipos de DSAV. Representação esquemática.
Anatomia
Num corte comum às aurículas
(AD e AE) e aos ventrículos
No coração normal, o septo aurículo-ventricular (VD e VE, separados pelo
resulta da diferença dos níveis de inserção das septo SIV) vêem-se as
estruturas anómalas dum
válvulas aurículo-ventriculares, ficando a válvula DSAV tipo completo: uma
mitral inserida mais alta do que a válvula tricúspide. válvula AV comum (*) que
O septo aurículo-ventricular põe potencialmente em separa as aurículas dos
ventrículos, vendo-se acima
contacto o ventrículo esquerdo com a aurícula direi- dela uma CIA típica, na
ta. A porção anterior deste septo é membranosa, porção baixa do septo
interauricular. Por baixo da
constituída pela porção superior do septo membra- válvula AV vê-se uma CIV.
noso; a porção posterior, muscular, contém o feixe de
His e o nódulo aurículo-ventricular.
Anomalias comuns aos defeitos do septo –
estes defeitos, nas suas diferentes formas, têm
quatro anomalias comuns a todos eles (Figuras 1 e
FIG. 2
2):
1. Um anel comum para as válvulas mitral e DSAV. Representação anatómica.
tricúspide e folhetos comuns às duas válvulas. A
anatomia desta válvula e as suas relações com os 2. Um “buraco” no meio do coração, no local
septos é determinante na definição das diferentes onde existia o septo aurículo-ventricular. Este
formas dos defeitos. Os músculos papilares, prin- defeito cria uma comunicação aurículo-ventricu-
cipalmente os esquerdos, sofrem uma rotação e lar (do ventrículo esquerdo para a aurícula direi-
aproximam-se entre si e do tracto de saída ven- ta) e, estendendo-se aos septos interventricular e
tricular. interauricular, cria uma comunicação interventri-
CAPÍTULO 205 Defeitos do septo aurículo-ventricular 991
aumenta a pressão na aurícula esquerda e contribui ciência cardíaca: cansaço e sudorese durante as
para o aumento da pressão venosa pulmonar. mamadas, deficiente aumento ponderal e infec-
Nos defeitos incompletos: a pressão no ven- ções respiratórias de repetição. A ausência de
trículo direito está pouco aumentada. Há shunt sinais de insuficiência cardíaca pode representar
esquerdo-direito pelo ostium primum e sobrecarga hipertensão pulmonar grave. O segundo ruído
de volume do ventrículo direito. A regurgitação pulmonar deve ser cuidadosamente analisado: a
da válvula aurículo-ventricular esquerda rara- sua intensidade está sempre aumentada nos
mente é grave e faz-se preferencialmente pela defeitos completos e existe muitas vezes desdo-
comissura mediana, para a aurícula direita. bramento fixo. A comunicação interauricular e a
comunicação interventricular que em geral são
Manifestações clínicas grandes, não originam sopros podendo, no entan-
to, auscultar-se sopro sistólico suave de expulsão
Síndromas associadas pulmonar. A regurgitação da válvula aurículo-
Na trissomia 21 predominam as formas comple- ventricular gera um sopro holossistólico na ponta.
tas com boa função da válvula aurículo-ventricu-
lar e sem outras anomalias associadas a não ser, Quadro clínico dos defeitos incompletos
raramente, tetralogia de Fallot e truncus arteriosus. Os defeitos incompletos têm sinais discretos, pelo
Outras trissomias (como a trissomia 13 ou a tris- que o seu diagnóstico é mais tardio. O quadro clíni-
somia18) podem também ter, ainda que menos co é semelhante ao das comunicações inter-auricu-
frequentemente, associação com esta patologia. A lares, a não ser que a válvula aurículo-ventricular
síndroma de Ellis van Creveld associa-se a aurícu- seja muito malformada. Os casos de grande shunt
la única. As anomalias do situs, em particular o interauricular manifestam-se pela ausência da arrit-
isomerismo direito, acompanham-se frequente- mia respiratória fisiológica; por auscultação cardía-
mente de defeitos do septo aurículo-ventricular. ca verifica-se aumento de intensidade do primeiro
Os defeitos completos, quando surgem em cri- ruído, desdobramento fixo do segundo ruído com
anças não sindromáticas, apresentam maior defor- componente pulmonar aumentado de intensidade,
mação da válvula aurículo-ventricular e têm mais e sopro sistólico suave de expulsão pulmonar.
frequentemente anomalias cardíacas associadas. Ausculta-se sopro de regurgitação na ponta, e o
aumento de débito através da válvula “tricúspide”
Quadro clínico dos defeitos completos manifesta-se por rodado tricúspide no quarto
No recém-nascido o quadro clínico pode ser dis- espaço intercostal direito. (Consultar Glossário)
creto com dificuldade respiratória ligeira e hepa-
tomegalia discreta. Pode haver cianose durante o Exames complementares
choro, por inversão do “shunt” com o esforço. A
intensidade do componente pulmonar do segundo Radiografia do tórax
ruído está aumentada pela hipertensão pulmonar, A radiografia do tórax evidencia sinais de plétora
e muitas vezes não se auscultam sopros. Entre as pulmonar e cardiomegália. Existe cardiomegália
duas e três semanas de vida começam a eviden- importante nas formas completas à custa da dila-
ciar-se sinais de insuficiência cardíaca condiciona- tação dos ventrículos e das aurículas; igualmente
da por dois factores: regurgitação da válvula dilatação do arco da artéria pulmonar. Nas formas
aurículo-ventricular e diminuição das resistências incompletas a cardiomegália é rara. (Figura 3)
vasculares pulmonares. Nos casos com regurgi-
tação significativa, a insuficiência cardíaca é pre- Electrocardiograma
coce. A diminuição das resistências pulmonares, O electrocardiograma apresenta desvio esquerdo
na presença de comunicação interventricular do eixo eléctrico do QRS (devido ao desvio poste-
grande, pode ser retardada ou não se verificar; e a rior do nódulo aurículo ventricular) que é tanto
ausência dos sinais de insuficiência cardíaca pode maior quanto maior for o defeito. Os defeitos in-
levar a atraso importante do diagnóstico. completos têm o eixo de QRS entre (-40º) e
No lactente predominam os sinais de insufi- (-60º) e os completos entre (-90º) e (-120º). Nos
CAPÍTULO 205 Defeitos do septo aurículo-ventricular 993
FIG. 3
Telerradiografia do tórax de um lactente com defeito completo do septo AV. Verifica-se a existência de cardiomegália e plétora
pulmonar. Aumento da aurícula direita, dos dois ventrículos e da artéria pulmonar. No ECG de um defeito incompleto, existe
desvio esquerdo do AQRS e padrão de sobrecarga diastólica do ventrículo direito.
defeitos incompletos, nas derivações precordiais ceder-se ao estudo do cariótipo fetal, dada a fre-
direitas (V3R a V1) existe um padrão rSR’ com quente associação com trissomia 21.
onda T negativa, sugestivo de sobrecarga diastóli-
ca do ventrículo direito. Nos defeitos completos Cateterismo cardíaco
existem sinais de sobrecarga de pressão no ven- O cateterismo apenas está indicado nos casos em
trículo direito com ondas R de amplitude aumen- que o achado fornecido pelo ecocardiograma é insu-
tada, ondas T positivas em V1, sobrecarga de vol- ficiente. Permite avaliar as resistências pulmonares
ume no ventrículo esquerdo com ondas Q profun- e a possibilidade da sua reversibilidade nos casos
das, e ondas R e T de amplitude aumentada em V5 em que estejam elevadas, através de provas especí-
e V6 (Figura 3). ficas com oxigénio ou com óxido nítrico.
(ostium primum) com remendo de pericárdio autól- Situs inversus > Anomalia em que um ou mais órgãos estão localizados
ogo. A comissura mediana do componente no lado aposto ao que ocupariam normalmente. O coração normal
esquerdo da válvula aurículo-ventricular poderá aparece como imagem “em espelho” (espelho sagital). O arco aórti-
necessitar de reparação. co, a aurícula esquerda e a câmara de ar do estômago estão locali-
Nos defeitos completos é necessário encerrar zados à direita (ver adiante “situs solitus”). São descritos 2 padrões;
a comunicação interventricular e a comunicação 1) ponta cardíaca à direita correspondendo a imagem “em espelho”
interauricular, e reparar os folhetos valvulares. completa (situs inversus cardíaco ) com cerca de 3-5% de defeitos
cardíacos associados; 2) ponta cardíaca à esquerda (situs inversus
Evolução com levocárdia) registando-se em 100% dos casos defeitos cardíacos
associados. Por vezes está associado a anomalias como asplenia,
A evolução está condicionada pela existência de polisplenia ou mesentério comum.
defeitos residuais, principalmente no componente Nota importante: havendo discordância entre posição do arco aórtico e da
esquerdo da válvula aurículo-ventricular. Em câmara de ar do estômago, deve suspeitar-se de drenagem anómala da veia
geral, após a cirurgia, a criança aumenta de peso, cava inferior no sistema ázigos.
deixa de ter infecções respiratórias de repetição e Situs sagitallis > Forma de anomalia da posição do coração cuja ponta
torna-se mais activa. Quando há lesões residuais está situada no hemitórax direito (ponta para diante) devido à
significativas da válvula aurículo-ventricular a rotação de ≥ 90° para a direita dos ventrículos em volta das grandes
criança pode necessitar de terapêutica anticonges- artérias da base (aorta e artéria pulmonar), mantendo estas a sua
tiva e, nos casos mais graves, poderá ser posição normal. Sinónimo de dextro-rotação. As vísceras estão em
necessária nova reparação cirúrgica com eventual posição normal.
recurso a prótese mecânica em posição mitral. Situs solitus > Coração em posição “normal”, o que pressupõe posições
à esquerda, do arco aórtico, aurícula esquerda e câmara de ar gástri-
GLOSSÁRIO ca. O situs solitus engloba 2 padrões: 1) padrão dito normal com a
Dextrocárdia > Deslocamento do coração para o hemitórax direito [por ponta cardíca à esquerda; 2) dextroversão em que a ponta do coração
dextroposição (por HDC, ou derrame pleural esquerdo), dextro- roda (em grau variável) para a direita. Em 1) a incidência de defeitos
rotação ou por situs inversus]. cardíacos é ~1%; em 2) é 100% sendo mais frequentes a transposição
Isomerismo > Falta de assimetria visceral (afecta sobretudo aurículas, dos grandes vasos com ou sem CIV e ou estenose pulmonar.
brônquios e pulmões). Em Cardiologia, por isomerismo entende-se
que o corpo tem os dois lados iguais, isto é, são ambos de morfolo- BIBLIOGRAFIA
gia direita (isomerismo direito) ou são ambos de morfologia Al-Hay AA, Macneill SJ, Yacoub M Shore DF, Shinebourne EA.
esquerda (isomerismo esquerdo). Complete atrioventricular septal defect, Down syndrome
No isomerismo direito, os dois pulmões têm morfologia de pulmão and surgical outcome. Ann Thorac Surg 2003, 75: 412-421
direito (com três lobos e com ambos os brônquios curtos e epiarteri- Anderson RH, Baker EJ Macartney FJ, Rigby ML, Shinebourne
ais), e os dois apêndices auriculares têm morfologia direita. O baço, EA, Tynan M, (eds). Paediatric Cardiology. London:
sendo de origem esquerda, está frequentemente ausente (asplenia) Churchil Livingstone, 2002
no isomerismo direito. As veias pulmonares têm conexão anómala Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
não conectando directamente com a aurícula. Existem malfor- Dunlop KA, Mulholland HC, Casey FA, Craig B, Gladstone DJ.
mações de rotação mesentérica e o fígado é, em geral, central. A ten year review of atrioventricular septal defects. Cardiol
No isomerismo esquerdo, os dois pulmões têm morfologia de pul- Young 2004; 14: 15-23
mão esquerdo (com dois lobos e com ambos os brônquios longos e Fraisse A, Massih TA, Kreitmann B, Metras D, Vouhe P, Sidi D,
hipoarteriais), e os dois apêndices auriculares têm morfologia Bonnet D. Characteristics and management of cleft mitral
esquerda. Existe polisplenia (baços múltiplos). As veias pulmonares valve. J Am Coll Cardiol 2003, 42: 1988-1993
conectam com a aurícula, mas é frequente a ausência da porção Icardo JM, Rincon JMG, Ros MA. Malformaciones cardíacas,
supra-hepática da veia cava inferior, seguindo a drenagem venosa heterotaxia e lateralidad. Rev Esp Cardiol 2002; 55: 962-974
desta porção através das veias azygos ou hemiazygos até ao coração. Rebelo M, Macedo AJ. Defeitos do septo aurículo-ventricular. In
Situs > Palavra latina que significa posição ou situação. Soares-Costa JTS e Kaku S (eds). Cardiopatias Congénitas.
Situs incertus ou ambiguus ou heterotaxia > Situação anormal das Lisboa:Permanyer Portugal, 2005; 49-60
vísceras sem corresponder a transposição bem definida; associada a Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA(eds).
defeitos cardíacos e do baço (asplenia/polisplenia). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Medical, 2011
CAPÍTULO 206 Coarctação da aorta 995
206
tamento uniforme do arco aórtico que se inicia
habitualmente antes da origem da artéria sub-
clávia esquerda.
A coarctação da aorta pode associar-se a outras
anomalias cardíacas como: válvula aórtica bicús-
pide, comunicação interventricular, estenose aór-
COARCTAÇÃO DA AORTA tica e malformações da válvula mitral. A asso-
ciação com múltiplos obstáculos esquerdos é desi-
Hugo Vinhas, Conceição Trigo e Sashicanta Kaku gnada por síndroma de Shöne. Por vezes existe
associação com anomalias extracardíacas: como
artéria subclávia direita com origem distal à
inserção do canal arterial; e aneurismas do polí-
Definição e importância do problema gono de Willis.
to distal à coarctação verifica-se dilatação pós- ligeiras. As alterações que poderão ser observadas
estenótica, o qual tem parede arterial de espessura são: aumento do índice cárdio-torácico sobretudo
reduzida. As consequências a longo prazo à custa de dilatação do ventrículo direito (mais
traduzem-se na presença frequente de aneurismas frequente nas obstruções graves do recém-nascido
saculares do polígono de Willis e no desenvolvi- e do lactente); “ratamento” ou “erosão” do bordo
mento de hipertensão arterial na metade superior inferior, da quarta à oitava costelas, devido à cir-
do corpo. A hipertensão arterial pode persistir culação colateral através das artérias intercostais
mesmo após correcção da coarctação, possivel- (raras antes dos quatro anos de idade), e sinal do
mente relacionada com disfunção de barorrecep- “3”, resultante da combinação das dilatações pré e
tores e alterações irreversíveis da parede vascular. pós-estenótica separadas pela zona coarctada.
207
introduz por cateterismo periférico na artéria (neste caso, aorta)
após angioplastia, para impedir recidiva de CoAo.
BIBLIOGRAFIA
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Kaku S, Marques CA, Romano MC, Borges A, Sampayo F. Definição e importância do problema
Prostaglandina E2 oral no tratamento de 41 crianças com
cardiopatia congénita. Rev Port Pediatr 1988; 19: 215-220 A designação estenose aórtica abrange um conjunto
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson de defeitos situados na região da válvula aórtica con-
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Marques C, Kaku S, Sampayo F. Diagnóstico da coarctação da relacionada com deficiente desenvolvimento embrio-
aorta. Arquivos do Hospital Dona Estefânia 1987; 2: 131-140 nário da válvula de base genética ou com noxas intra-
Marques C, Magalhães P, Kaku S, Sampayo F, Bento R. uterinas (infecções, alterações metabólicas, etc.), cor-
Experiência de 10 anos em crianças operadas a coarctação responde a cerca de 5% das anomalias cardíacas. Até
da aorta. Rev Port Cardiol 1987; 6: 529-553 há cerca de três décadas a febre reumática era uma
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon causa que explicava as formas adquiridas.
AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill São conhecidos três grandes grupos de lesões a
Medical, 2011 esse nível, de acordo com a respectiva localização:
valvular, subvalvular e supravalvular .
Aspectos epidemiológicos
Manifestações clínicas
A morte súbita é a manifestação clínica mais grave, válvulas espessas e pouco móveis, não se detec-
com um risco estimado em 3 casos / 1.000 / ano. ta estalido de abertura.
A forma grave do recém-nascido, reconhecida
como causa de morbilidade e mortalidade Exames complementares
intrauterina, não produz, habitualmente, manifes-
tações clínicas de insuficiência cardíaca nos Electrocardiograma
primeiros dias de vida; contudo, com o encerra- As alterações mais frequentes e mais relacionadas
mento do canal arterial pode estabelecer-se, como com a gravidade da estenose são a hipertrofia e
consequência do baixo débito cardíaco, um sobrecarga do ventrículo esquerdo: aumento da
quadro de insuficiência cardíaca global com amplitude de ondas R e evolução progressiva para
tendência para agravamento progressivo. A inten- a inversão das ondas T, com depressão dos seg-
sidade deste quadro e a sua evolução variam com mentos ST. No período neonatal e nos lactentes
a estrutura e função do ventrículo esquerdo, com formas graves existe, com frequência,
sendo as formas mais graves e de prognóstico hipertrofia ventricular direita.
mais reservado, aquelas em que o ventrículo es- O electrocardiograma dinâmico de Holter,
querdo é pequeno. sempre que indicado pela clínica, deve fazer parte
A forma moderada a grave após o primeiro do acompanhamento dos doentes, pois as arri-
mês de vida manifesta-se quando a estenose aór- tmias e as perturbações da condução ocorrem com
tica não é crítica, geralmente após o período frequência.
neonatal: cansaço, taquipneia e hipersudorese A prova de esforço poderá ser útil no segui-
durante a alimentação, associados a progressão mento das crianças com formas de estenose mo-
ponderal lenta. Na maioria dos casos a doença derada. A ocorrência de alterações da repolariza-
apenas é suspeitada pela detecção de sopro sistóli- ção, hipotensão, angor, arritmias graves ou sín-
co numa avaliação clínica ocasional. cope relaciona-se com a gravidade da estenose
A forma ligeira é geralmente assintomática, aórtica, podendo estabelecer a indicação para
com exame objectivo considerado normal. A serem adoptadas atitudes interventivas.
doença poderá, por outro lado, ser detectada pela
auscultação de sopro sistólico durante uma ava- Radiografia do tórax
liação clínica de rotina. De salientar que a pro- As crianças com insuficiência cardíaca podem
gressão da estenose é variável, podendo tornar-se apresentar um aumento da silhueta cardíaca. A
grave e sintomática. cardiomegália é, no entanto, um marcador pouco
De acordo com o que foi referido antes, os sensível da gravidade da estenose. Por vezes
achados do exame objectivo poderão variar com observa-se proeminência da aorta ascendente, por
a gravidade da estenose, sendo que aquele dilatação pós-estenótica. É rara a calcificação da
poderá ser normal. O pulso pode ser parvus e tar- válvula nas idades pediátricas.
dus e o impulso apical sustido. É frequente exis-
tir frémito suprasternal e nas carótidas. Na aus- Ecocardiografia
cultação, o primeiro ruído é normal, o segundo É actualmente o principal método de diagnóstico
ruído tem desdobramento estreito com intensi- de estenose aórtica: permite avaliar a morfologia
dade diminuída do componente aórtico. Aus- da válvula, determinar a localização da obstrução
culta-se muitas vezes terceiro ruído. Frequen- e quantificar a sua gravidade. O Doppler contínuo
temente, existe estalido de abertura da válvula permite estudar a velocidade do fluxo de sangue e
aórtica audível na ponta e bordo esquerdo do calcular o gradiente de pressões na zona estenosa-
esterno. Ausculta-se sopro sistólico de expulsão da. Valores: inferiores a 25 mmHg representam
na porção média do bordo esquerdo do esterno estenose não significativa; entre 25 mmHg e 50
com irradiação para a porção superior do bordo mmHg traduzem estenose ligeira; entre 50 mmHg
direito e pescoço. Nos casos em que o débito e 75 mmHg correspondem a estenose moderada; e
através da válvula é extremamente reduzido, não acima de 75 mmHg associam-se a estenose grave.
se detecta qualquer sopro. Nestes casos, sendo as É possível determinar a área da válvula aórtica
1000 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
que, por ser independente do débito cardíaco, re- riódica em centro especializado e feita avaliação
presenta de modo mais fidedigno a gravidade do ecocardiográfica anual. Nas estenoses ligeiras
obstáculo. Uma área efectiva inferior a 0,5 cm2/m2 (gradiente ≥25 mmHg e <50 mmHg) a avaliação
de superfície corporal traduz estenose grave. deve ser anual e os desportos de competição com
A ecocardiografia permite ainda avaliar a actividade física intensa devem ser desaconselha-
existência de regurgitação aórtica e detectar a pre- dos, podendo manter-se a actividade física recre-
sença de outras anomalias cardíacas. ativa normal. A obstrução moderada (gradiente
entre 50 e 75 mmHg) constitui uma “zona cinzen-
Cateterismo cardíaco ta” que poderá implicar tomar uma atitude inter-
Actualmente o cateterismo de diagnóstico cardía- ventiva. Estes doentes devem ser acompanhados
co apenas está indicado nos casos em que exista com maior periodicidade e a actividade física
discrepância entre a clínica e o ecocardiograma. A deve ser restringida a esforços ligeiros.
valvuloplastia por cateterismo está indicada em A valvuloplastia percutânea é realizada
casos seleccionados (válvulas com três sigmóides através da insuflação de um balão na válvula aór-
e sem insuficiência significativa). tica; a mesma comporta mortalidade média de
cerca de 2,4%, mais elevada nos lactentes com
Tratamento menos de 3 meses. Este procedimento é eficaz,
com redução de imediato do gradiente trans-
A actuação clínica nas crianças com estenose aór- valvular, mas a longo prazo é grande a taxa de
tica tem por objectivos a prevenção da disfunção recorrência. A partir da terceira década de vida e
irreversível do ventrículo esquerdo e da morte com a calcificação progressiva da válvula, a eficá-
súbita, assim como o alívio dos sintomas. O trata- cia diminui. A complicação mais frequente é o
mento consiste na eliminação ou diminuição aparecimento ou o agravamento de insuficiência
mecânica do obstáculo por cirurgia ou por valvu- aórtica. A vantagem principal da valvuloplastia
loplastia percutânea de balão. por balão é adiar a cirurgia, que continuará a ser
As indicações da valvuloplastia percutânea necessária em muitos doentes.
de balão discriminam-se a seguir: A cirurgia comporta mortalidade baixa,
1. Existência de sintomas e/ou alterações da excepto nas formas neonatais graves. Na valvulo-
repolarização de novo no electrocardiograma e o tomia aumenta-se o orifício aórtico através da se-
gradiente máximo ≥ 50 mmHg*; paração das comissuras; a mesma associa-se a
2. Doentes assintomáticos com gradiente máxi- risco de agravamento da insuficiência aórtica e a
mo > 60 mmHg; restenose a longo prazo. Por outro lado, nem
3. Doentes que pretendam praticar desporto de todas as válvulas são passíveis de valvulotomia.
competição nos quais o gradiente seja ≥ 50 mmHg. De salientar que a mortalidade na sequência de tal
Estas recomendações baseiam-se em análises intervenção, em crianças e adolescentes, é cerca
subjectivas (dado que a história natural da doença de 2%. Nos últimos anos tem sido cada vez mais
é muito variável, está ainda mal definida e não utilizada a substituição da válvula aórtica pela
existem ensaios clínicos), pelo que não devem ser válvula pulmonar do próprio doente (cirurgia de
consideradas rígidas. Ross), estando provado o potencial de crescimen-
Nas crianças em que ainda não haja indicação to do autoenxerto pulmonar.
para intervenção é fundamental manter um segui- Nas crianças em que ainda não haja indicação
mento rigoroso, tendo em conta o carácter pro- para intervenção é fundamental manter um segui-
gressivo da estenose. Nas formas discretas (gradi- mento rigoroso, tendo em conta o carácter pro-
ente <25 mmHg) deve ser realizada consulta pe- gressivo da estenose.
Todos os doentes e os portadores de válvula
*Gradiente: define-se como diferença de pressões sistólicas entre duas aórtica bicúspide devem ser submetidos a profi-
cavidades ou entre duas porções dentro da mesma cavidade ou vaso. laxia da endocardite infecciosa, independente-
Neste caso trata-se da diferença de pressões entre o ventrículo esquer-
do (VE) e a aorta (Ao). Quando mais grave for a estenose, maior será o mente da gravidade da estenose, mesmo depois
gradiente ou seja a diferença de pressões entre o VE e a Ao. de tratados.
CAPÍTULO 207 Estenose aórtica 1001
A radiografia do tórax habitualmente não apre- Trata-se da forma mais rara de estenose aórtica,
senta alterações. O electrocardiograma pode ser representando cerca de 2% dos respectivos casos.
normal ou apresentar sinais de hipertrofia ventri- Frequentemente associada a perturbações do
cular esquerda. A ecocardiografia é o melhor metabolismo do cálcio, faz parte das alterações
método de avaliação (Figura 1), sendo o gradiente que constituem a síndroma de Williams a qual
de pressões, através do obstáculo, o melhor índice integra, fundamentalmente, fácies característica
da gravidade da obstrução. (de duende), atraso mental, personalidade extro-
vertida e amigável, hiperacúsia, lábios grossos, e
atraso do crescimento. Podendo também ocorrer
em crianças sem alterações metabólicas, estão
descritas formas familiares. A associação a este-
nose da origem dos grandes vasos da crossa da
aorta, coronárias, artérias subclávias, renais e pul-
monares é frequente e deve ser diagnosticada
antes da cirurgia. Atribui-se a microdeleções do
gene da elastina do cromossoma 7.
Nos doentes sem síndroma de Williams os sin-
tomas são raros. A dispneia e angina ocorrem nas
fases avançadas da doença e a síncope é rara. A
hipertensão arterial sistémica é comum. Fre-
quentemente encontram-se frémitos nas carótidas,
na região suprasternal ou no bordo direito do ester-
no. Os pulsos periféricos devem ser avaliados com
atenção, sendo frequentes pulsações mais intensas
FIG. 1
na carótida direita e membro superior direito (pelo
Ecocardiograma na estenose aórtica subvalvular em posição chamado efeito Coanda provocado pelo jacto de
parasternal:visualização de diafragma subaórtico. sangue na zona pós-estenótica). Não se ausculta
1002 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
208
estalido. O sopro sistólico é mais intenso no bordo
direito do esterno, irradiando para as carótidas.
Exames complementares
Após o nascimento, verifica-se: a) inversão das O quadro clínico agrava-se durante a primeira
resistências vasculares (resistência sistémica > semana de vida; na ausência de terapêutica, leva à
resistência pulmonar), aumento da pressão na morte em poucos dias.
aurícula esquerda e consequente encerramento do
foramen ovale; b) encerramento do canal arterial, por Exames complementares
aumento da saturação de Hb-oxigénio e dimi-
nuição das prostaglandinas. Provoca-se, assim, Electrocardiograma
uma acentuada redução do débito cardíaco sistémi- Revela sinais de taquicárdia sinusal e hipertrofia
co e da pressão na aorta, desencadeando um qua- ventricular direita com padrão qR nas derivações
dro de choque circulatório e acidose metabólica. A precordiais direitas. Podem registar-se ondas R
manutenção de débito sistémico adequado depen- amplas nas derivações precordiais V5 e V6 as
de: da permeabilidade do canal arterial com quais recolhem potenciais do ventrículo direito
dimensões adequadas de modo a permitir ao ven- dilatado.
trículo direito ejectar sangue para a aorta; e da
existência de uma comunicação interauricular que Radiografia do tórax
possa descomprimir a aurícula esquerda. Se a Revela sinais de cardiomegália e congestão veno-
comunicação interauricular for grande, o shunt sa pulmonar.
esquerdo-direito não será restritivo e a saturação
arterial de Hb-oxigénio poderá aproximar-se de Ecocardiograma
80%. Nos casos com septo interauricular intacto ou O estudo por Doppler codificado em cor permite
com comunicação interauricular restritiva, haverá fazer o diagnóstico, avaliar a gravidade da situa-
edema pulmonar e a saturação arterial de Hb-oxi- ção e a emergência da terapêutica. Existe, fre-
génio será baixa. Sem tratamento, o recém-nascido quentemente, coarctação da aorta.
poderá morrer em pouco tempo (Capítulo 326). O cateterismo cardíaco e a angiocardiografia,
Devido ao baixo débito cardíaco, existe acidose além de terem risco elevado, não estão indicados.
metabólica e a PaCO2 está habitualmente normal
ou até diminuída. A hipoxémia é ligeira a mode- Tratamento
rada e os lactatos estão elevados.
O diagnóstico pré-natal desta cardiopatia tem O tratamento médico tem como finalidade essen-
importância fundamental, dado que nos casos cial a estabilização hemodinâmica por:
com septo interauricular restritivo, poderá fazer- • Correcção da acidose metabólica e eventual
-se septostomia ou dilatação com balão in utero ventilação mecânica e/ou suporte inotrópi-
(entre 26 e 34 semanas de idade gestacional). O co.
diagnóstico neonatal precoce destes doentes po- • Perfusão de prostaglandina E1 (dose inicial
derá permitir a descompressão da aurícula es- de 0,5 -1 µg/Kg/min) que, reabrindo o canal
querda por atriosseptostomia. arterial, poderá melhorar temporariamente o
quadro de baixo débito.
Manifestações clínicas • Atriosseptostomia de Rashkind, com balão
por via percutânea em casos com foramen
A SCEH manifesta-se logo nas primeiras horas de ovale restritivo: pode descomprimir a aurícu-
vida com dificuldade respiratória, hipoxémia, aci- la esquerda e melhorar a oxigenação.
dose, vasoconstrição das extremidades, pulsos
débeis e taquicárdia (choque). Pode não existir Existem várias opções de tratamento cirúrgico:
cianose importante, mas os sinais de insuficiência 1. Operação Norwood que se realiza em três
cardíaca como hepatomegália edema pulmonar e estádios:
ritmo de galope podem estar presentes. Na aus- • Primeiro estádio: Efectua-se no período neo-
cultação cardíaca, o segundo ruído é único e tem natal. Consiste em: a) divisão do tronco da
intensidade aumentada; habitualmente não exis- artéria pulmonar, com encerramento do topo
tem sopros. distal com um remendo e laqueação do canal
1004 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
arterial; b) criação de uma anastomose A escolha de qualquer das duas opções cirúr-
sistémico-pulmonar (shunt). c) conexão do gicas, implica taxas de sobrevivência aos cinco
topo proximal da pulmonar à aorta ascen- anos inferiores a 50%. A escolha é controversa e
dente hipoplásica e arco aórtico com um baseia-se na experiência dos diferentes centros.
homoenxerto pulmonar ou aórtico; d) exci- No entanto, a grande dificuldade no aparecimen-
são do septo interauricular de modo a per- to de dadores em tempo útil, tem levado a maio-
mitir uma mistura adequada. ria dos centros a optar pela cirurgia de Norwood.
A taxa de mortalidade imediata nos me- A atitude de prestar apenas cuidados de
lhores centros é ~ 35% e, aos 12 meses, após suporte, sem intervenção cirúrgica, tem vindo a
a cirurgia é ~ 45%, ocorrendo a maioria das ter cada vez menos adeptos.
mortes nos primeiros seis meses após a cirur-
gia. BIBLIOGRAFIA
• Segundo estádio: Consiste na realização de Allen HD, et al (eds). Moss and Adams, Heart Disease in
uma anastomose entre a veia cava superior e o Infants, Children and Adolescents including the Fetus and
ramo direito da artéria pulmonar (operação de Young Adult. Philadelphia: Williams & Wilkins, 2001
Glenn bidireccional) aos seis meses de idade, Anderson RH, Baker EJ Macartney FJ, Rigby ML, Shinebourne
com o objectivo de retirar a sobrecarga de EA, Tynan M (eds). Paediatric Cardiology. London:
volume ao ventrículo direito. A taxa de mor- Churchil Livingstone, 2002
talidade deste procedimento é cerca de 5%. Boucek RJJr, Chrisant MR. Cardiac transplantation for
• Terceiro estádio: Consiste na realização de hypoplastic left heart syndrome. Cardiol Young 2004; 14
uma anastomose entre a veia cava inferior e (Supl 1): 83-87
a artéria pulmonar, completando-se deste Bove EL, Ohye RG, Devaney EJ. Hypoplastic left heart syn-
modo a conexão bicavopulmonar (cirurgia drome: conventional surgical management. Semin Thorac
de Fontan)*. Esta cirurgia realiza-se em geral Cardiovasc Surg Pediatr Card Surg Annu 2004; 7: 3-10
por volta dos 1,5 – 2 anos de idade e a mor- Connor JA, Arons RR, Figueroa M, Gebbie KM. Clinical out-
talidade operatória é cerca de 15 a 20%. comes and secondary diagnoses for infants born with
Deste modo, a taxa de sobrevivência após a hypoplastic left heart syndrome. Pediatrics 2004; 114: 160-
cirurgia de Fontan é cerca de 50% aos quatro 165
anos. Konn AA, Ackerson L, Lo B. How pediatricians counsel par-
2. Transplante cardíaco – A sobrevivência após ents when no “best-choice” management exists: lessons to
transplantação cardíaca tem melhorado graças a be learned from hypoplastic left heart syndrome. Arch
evolução das medidas de suporte pré e pós-opera- Pediatr Adolesc Med 2004; 158: 436-441
tório, melhor compreensão do sistema imunitário Marshall AC, van der Velde ME, Tworetzky W, Gomez CA,
e novas opções de imunossupressores. Os resulta- Wilkins-Haug L, Benson CB, Jennings RW, Lock JE.
dos divulgados pela Sociedade Internacional de Creation of an atrial septal defect in utero for fetuses with
Transplante Cardíaco e Pulmonar mostram que os hypoplastic left heart syndrome and intact or highly restric-
receptores com menos de um ano de idade, que tive atrial septum. Circulation 2004; 110: 253-258
sobrevivam um ano após a transplantação, têm McInerny T(ed). Tratado de Pediatria /American Academy of
uma taxa de sobrevivência superior a 95% aos Pediatrics. Madrid:Panamericana,2010
quatro anos. As crianças submetidas à terapêutica Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
cirúrgica convencional, podem, nalguns casos, vir AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
a necessitar de transplante cardíaco por insufi- Medical, 2011
ciência cardíaca refractária à terapêutica. Theilen U, Shekerdemian L. The intensive care of infants with
hypoplastic left heart syndrome. Arch Dis Fetal Neonatal
Ed 2005; 90: F97-F102
Vlahos AP, Lock JE, McElhinney DB, van der Velde ME.
*Tal significa que se completou a anastomose entre as duas veias cavas Hypoplastic left heart syndrome with intact or highly
e a árvore pulmonar (veia cava superior e ramo direito da artéria pul-
monar no 2º estádio, e veia cava inferior e ramo direito da artéria pul-
restrictive atrial septum. Outcome after neonatal trans-
monar no 3º estádio). catheter atrial septostomy. Circulation 2004; 109: 2326-2330
CAPÍTULO 209 Estenose pulmonar 1005
Manifestações clínicas
dibular também não se ouve estalido de abertura, rada, as dimensões da silhueta cardíaca e a vascu-
há diminuição da intensidade do componente larização pulmonar são normais. Nos casos
pulmonar do segundo ruído e o sopro de expulsão graves, como o da estenose pulmonar crítica do
tem duração inversamente proporcional à gravi- recém-nascido, poder-se-á observar cardiome-
dade do obstáculo. gália por dilatação da aurícula direita e redução
A estenose supravalvular e a estenose dos ra- da vascularização pulmonar, tendo em conta o
mos da artéria pulmonar são raras e ocorrem asso- shunt direito-esquerdo através do foramen ovale
ciadas a síndromas como de rubéola congénita, de patente.
Noonan, Williams, Alagille, e a cardiopatias con-
génitas complexas. Nestes casos o sopro de expul- Ecocardiografia
são irradia amplamente, sendo audível também A ecocardiografia bidimensional permite a visua-
na face posterior do tórax. lização das anomalias morfológicas da válvula
pulmonar, a dilatação pós-estenótica, a hipertrofia
Exames complementares ventricular direita e outros defeitos cardíacos
eventualmente associados. Com eco-Doppler esti-
Electrocardiograma ma-se o gradiente transvalvular pulmonar que se
O electrocardiograma (ECG) é bastante confiável correlaciona bastante bem com a medição directa
para estimar a gravidade do obstáculo pulmonar. obtida por cateterismo cardíaco, o que permite
Nas estenoses ligeiras, o ECG é normal ou apre- quantificar a gravidade do obstáculo.
senta apenas ligeiro desvio direito do eixo do QRS
no plano frontal. A amplitude das ondas R nas Cateterismo cardíaco
derivações precordiais direitas é inferior a 15mm. Está indicado apenas nos doentes que vão ser sub-
Na estenose pulmonar moderada há sinais de metidos a intervenção terapêutica. Permite deter-
hipertrofia ventricular direita: desvio direito do minar a pressão no ventrículo direito (e compará-
eixo do QRS e inversão da relação R/S em V1, -la com a pressão sistémica) e o gradiente através
onde a amplitude de R é, em regra, inferior a 20 do obstáculo. A cineangiocardiografia evidencia a
mm, e a relação R/S igual ou superior a 4/1. A localização do obstáculo e a sua gravidade, de
onda T pode ser positiva em V1. forma a orientar a valvuloplastia.
Na estenose pulmonar grave observam-se
sinais de hipertrofia ventricular direita acentuada, Tratamento
com desvio direito do eixo de QRS (superior a
+150º) e padrão “qR” ou “Rs” nas derivações pre- Pela história natural, sabe-se que o obstáculo se
cordiais direitas ou onda “R pura”, de amplitude agrava com o tempo: em 4% dos doentes com gra-
superior a 20 mm. A relação R/S em V1 está dientes transvalvulares inferiores a 25 mm Hg;
invertida. Nos casos mais graves, a onda P tem em 21% dos que têm gradientes entre 25 e 50 mm
uma amplitude superior a 2,5 mm, sugestiva de Hg; e em 80% dos que têm gradientes entre 50 e
dilatação da aurícula direita, podendo surgir 80 mm Hg. A esperança média de vida dos
alterações de ST-T de isquémia, por sobrecarga de doentes com estenose pulmonar após tratamento
pressão. é sobreponível à da população geral. O tratamen-
to de eleição é a valvuloplastia pulmonar por via
Radiografia do tórax percutânea que consiste na dilatação da válvula
A procidência do arco pulmonar na silhueta com um cateter de balão apropriado. É um pro-
cardíaca, correspondente à dilatação pós-estenóti- cedimento eficaz e seguro, particularmente nos
ca do tronco da artéria pulmonar e da porção casos de válvulas pulmonares não displásicas. A
proximal do ramo esquerdo, está presente em 90% angioplastia percutânea das artérias pulmonares é
dos casos, mas não tem relação com a gravidade igualmente o tratamento de primeira escolha para
da estenose. A sua existência é rara nos recém- a estenose pulmonar supravalvular. Actualmente,
nascidos e nos doentes com válvula pulmonar dis- a cirurgia cardíaca está limitada aos casos de
plásica. Nos casos com estenose ligeira ou mode- insucesso das plastias percutâneas e à estenose
CAPÍTULO 210 Tetralogia de Fallot 1007
210
pulmonar subvalvular. Após tratamento bem
sucedido, os doentes podem ter um estilo de vida
sem restrições, incluindo actividade desportiva.
Todos os doentes têm indicação para profilaxia
da endocardite bacteriana.
Etiopatogénese
e manifestações clínicas
nicação interventricular, condiciona o quadro como nas crianças acianóticas. Constituem uma
clínico. Quando o obstáculo é ligeiro, predomina o emergência e exigem internamento hospitalar para
shunt esquerdo-direito, pelo que não há cianose. tratamento imediato. Alguns autores atribuem as
Nos obstáculos moderados, a resistência à ejecção crises à diminuição do fluxo pulmonar por espasmo
do ventrículo direito é semelhante à resistência da região infundibular. Outros admitem vários
vascular sistémica, pelo que o shunt é bidirec- mecanismos que, actuando isolados ou associados,
cional e não há cianose em repouso. Com o exercí- provocam polipneia e hiperventilação com conse-
cio, diminui a resistência vascular sistémica e pre- quente aumento das resistências vasculares pul-
domina o shunt direito-esquerdo, com a conse- monares e do shunt direito-esquerdo a nível ventri-
quente cianose. Quando o obstáculo é grave o cular. A diminuição da pressão de oxigénio (PO2)
débito pulmonar está muito reduzido e há shunt arterial, a acidose e hipercápnia resultantes, além de
direito-esquerdo, com cianose grave. desencadearem as manifestações neurológicas,
A forma com obstáculo ligeiro da câmara de facilitam o metabolismo anaeróbio e consequente
saída do ventrículo direito manifesta-se entre as agravamento da acidémia. Esta, actuando sobre o
quatro e as seis semanas de vida por taquipneia, centro respiratório, agrava a hiperpneia com conse-
recusa alimentar e má progressão ponderal, sem quente aumento da resistência vascular pulmonar e
cianose; as características são então semelhantes perpetuação do ciclo vicioso.
às de uma grande comunicação interventricular. A posição de “cócoras” (ou equivalente) é adop-
Nos casos com obstáculo moderado, os recém- tada por crianças mais velhas com a finalidade de
nascidos estão acianóticos e a doença é diagnosti- aliviar a cianose, dispneia ou lipotímia induzidas
cada no decurso da investigação de sopro sistólico pelo esforço. Admite-se que a angulação e com-
detectado nas primeiras semanas de vida. A pressão das artérias femorais provocadas por esta
cianose surge entre seis e dezoito meses de idade, manobra excluem da circulação o sangue insatu-
à medida que aumenta o obstáculo. Inicialmente rado dos membros inferiores e aumenta a resistên-
intermitente, manifestando-se apenas durante o cia vascular periférica. Deste modo, aumenta o
choro, mamadas ou outra actividade física, torna- fluxo pulmonar, diminui a hipoxémia e os doentes
se persistente e associada a cansaço e/ou lipo- sentem-se mais confortáveis.
tímia. Os recém-nascidos com obstáculo grave Dependendo da gravidade da doença pode
apresentam, logo nos primeiros dias de vida, haver cianose, atraso da progressão estaturo-pon-
cianose que se agrava com o encerramento do deral, hipocratismo digital ou taquipneia. A cianose
canal arterial. pode ser evidente apenas nas mucosas, ou estar
As crises de hipóxia e a posição de cócoras ausente (“mascarada”) pela existência de anemia. O
(squatting) são manifestações importantes da hipocratismo digital que consiste no alargamento e
gravidade da doença. aumento de espessura das extremidades dos dedos
As crises de hipóxia ou crises de cianose, mais (dedos em “baqueta de tambor”) acompanhado do
frequentes entre seis meses e dois anos de idade, aumento da convexidade das unhas (unhas em
manifestam-se por episódios de cianose intensa “vidro de relógio”) só é evidente quando há
com palidez, hiperpneia, irritabilidade e choro pro- hipoxémia significativa e mantida, sendo raro o seu
longado. Acompanham-se de hipotonia, sonolência aparecimento antes dos seis meses de idade.
ou perda da consciência e podem provocar convul- Na auscultação cardíaca o 1º ruído é normal, o
sões, acidente vascular cerebral ou mesmo morte. 2º ruído é geralmente único. Pode auscultar-se
Durante as crises diminuem a intensidade e estalido de expulsão aórtica (por dilatação da
duração do sopro de expulsão pré-existente (que aorta ascendente). Geralmente ausculta-se sopro
pode mesmo desaparecer), reaparecendo quando a de expulsão no 3º espaço intercostal junto do bor-
criança recupera. Em geral, são de curta duração do esquerdo do esterno. O sopro tem origem na
(menos de 15 minutos), ocorrem de manhã ao acor- zona de estenose infundibular e a sua intensidade
dar e podem ser precipitadas pelo esforço, ambiente e duração são inversamente proporcionais ao
quente, ou podem não ter factor desencadeante. grau de estenose. Nas formas ligeiras o sopro é
Surgem tanto nas crianças com cianose persistente intenso, nas estenoses moderadas é em crescendo-
CAPÍTULO 210 Tetralogia de Fallot 1009
Evolução
Exames complementares
FIG. 2
Radiografia do tórax
A silhueta cardíaca é de dimensões normais, há Electrocardiografia: ritmo sinusal, eixo QRS no quadrante
concavidade do arco pulmonar, ponta levantada inferior direito e sinais de hipertrofia ventricular direita com
(coração em forma de bota) e diminuição da vas- transição brusca dos complexos ventriculares em V1-V2.
cularização pulmonar (Figura 1). Nas crianças
acianóticas a radiografia pode ser normal. Cateterismo cardíaco
O cateterismo cardíaco permite confirmar os acha-
Electrocardiograma dos ecográficos; é sobretudo útil para uma caracteri-
Os achados mais comuns são o desvio direito do zação pré-operatória detalhada da árvore pulmonar
eixo de QRS (entre +90º e +150º) e hipertrofia ven- arterial (Figura 4), das anomalias das artérias coro-
tricular direita, com ondas R dominantes em V4R nárias e das colaterais sistémico-pulmonares. Nos
e V1, transição brusca de V4R para V1 ou de V1 casos com estenose valvular pulmonar associada,
para V2 e ondas S dominantes em V6. (Figura 2) está indicada dilatação percutânea com a finalidade
de evitar a realização de anastomose sistémico-pul-
Ecocardiograma monar cirúrgica e promover o crescimento dos
O ecocardiograma bidimensional permite avaliar ramos da artéria pulmonar.
as características anatómicas (comunicação inter-
ventricular, tracto de saída do ventrículo direito, Tratamento
válvula pulmonar, tronco e ramos da artéria pul-
monar) e identificar lesões associadas. O estudo As crises de hipóxia devem ser encaradas, como
com Doppler quantifica o gradiente de pressão na foi referido, como emergências. A criança deve ser
zona do obstáculo pulmonar. (Figura 3) colocada na posição genupeitoral com a cabeça
1010 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Prognóstico
mais baixa que os membros inferiores, mantida
em ambiente pouco aquecido. Estas medidas têm As lesões residuais (obstrução da câmara de saída
como objectivo aumentar a resistência vascular do ventrículo direito e/ou regurgitação pul-
sistémica, o que diminui o shunt direito-esquerdo. monar) são de grau ligeiro e bem toleradas. Numa
Nos doentes com poucos dias de vida pode tentar-
se a reabertura do canal arterial com adminis-
*Válvula mono cusp significa qua a substituição da válvula pulmonar do
tração de prostagladina E1 ou E2. Deve ser admi- doente é feita utilizando um enxerto valvular em que existe uma cúspi-
nistrado oxigénio. O sulfato de morfina (0,1 mg/ de valvular com a finalidade de evitar insuficiência valvular.
CAPÍTULO 211 Transposição completa das grandes artérias 1011
211
pequena percentagem de doentes poderá haver
necessidade de reoperação para corrigir comuni-
cações interventriculares residuais ou de obstácu-
lo pulmonar evolutivo. As alterações do ritmo
cardíaco são frequentes após a cirurgia e, na maio-
ria das vezes, correspondem a bloqueio de ramo
direito. No entanto, embora com baixa incidência, TRANSPOSIÇÃO COMPLETA
há risco de morte súbita por bloqueio aurículo-
-ventricular completo ou por arritmia ventricular. DAS GRANDES ARTÉRIAS
A maioria dos doentes fica assintomática, sem
necessidade de terapêutica e com muito boa tole- Sashicanta Kaku e Miguel Pacheco
rância ao exercício. Na ausência de lesões resi-
duais significativas a gravidez é bem tolerada.
Manifestações clínicas
pode ser necessária para a sobrevivência da criança, semanas de vida enquanto o ventrículo esquerdo
nos primeiros dias de vida. (ver adiante) mantém a capacidade de adaptação a pressões
sistémicas. Nos casos de apresentação tardia
Tratamento (idade superior a um mês), pode ser necessário
fazer banding prévio da artéria pulmonar de modo
Tratamento de suporte a provocar a hipertrofia do ventrículo esquerdo, o
Consiste na correcção da acidose metabólica e da que poderá gerar pressões sistémicas após a cor-
hipoglicemia, administração de oxigénio e de recção anatómica.
prostaglandina E1 com o objectivo de manter a Nos casos com doença vascular pulmonar irre-
permeabilidade do canal arterial. versível, opta-se por fazer a correcção anatómica
mantendo a CIV aberta (ou criando uma CIV “de
Atriosseptostomia por cateter novo”).
Descrita por Rashkind e Miller em 1966, foi o fac- Os problemas detectados no seguimento dos
tor que teve maior influência na sobrevivência das doentes operados de correcção anatómica (oclu-
crianças com TGA. Nesta técnica, a passagem são/estenose das artérias coronárias, estenose
brusca, através do septo interauricular, de um supravalvular e dos ramos das artérias pul-
cateter munido de um balão com soro, permite monares, e disfunção da válvula pulmonar em
criar uma comunicação interauricular. A manobra posição aórtica) têm vindo a diminuir de incidên-
é controlada por ecocardiograma bidimensional, cia com o aperfeiçoamento da técnica cirúrgica.
devendo ser realizada nos primeiros dias de vida,
pois raramente tem êxito após o terceiro mês. Prognóstico
212
actualmente entre 3-5/100.000 no Reino Unido e
6-11/100.000 nos EUA e Canadá. É provável que
tal aumento se relacione com uma maior possi-
bilidade diagnóstica decorrente do melhor conhe-
cimento da doença, parecendo existir predis-
posição genética (nomeadamente em relação com
DOENÇA DE KAWASAKI a existência de genes determinantes dos seguintes
tipos no sistema HLA: B5, B44, Bw51, DR3 e
E DOENÇA CARDÍACA – DRB3*0301). A recorrência é rara. Estudos genéti-
cos identificaram casos com elevada susceptibili-
ABORDAGEM dade de receptores de citocinas relacionados com
genes CCL3 e CCL3L1, e portadores de variantes
MULTIDISCIPLINAR de certos genes tais como o CCR5.
de classe II, em zona deslocada ou fora do habi- neoantigénios actuando no endotélio, tornam este
tual sulco peptídico de união. Desta forma, este especialmente susceptível à agressão por anticor-
“desvio”, à margem do “sistema chave-fechadu- pos citotóxicos e por células T activadas; 4) verifi-
ra”, permite que as referidas toxinas actuem de ca-se, então, edema endotelial e do músculo liso
forma inespecífica em zonas mais amplas e em vascular, do que resulta extensão do infiltrado
grande escala, sendo, por isso, designadas por inflamatório às restantes camadas da parede vas-
superantigénios. Tais super – antigénios diferem cular e área perivascular, destruição da lâmina
dos antigénios convencionais em vários aspectos elástica interna (vasculite), assim como infla-
importantes: 1) activação policlonal das células B; mação do miocárdio e do pericárdio; 5) tal vas-
2) estimulação de um número maciço de linfócitos culite aguda generalizada pode evoluir para ecta-
T circulantes capazes de se ligarem a um receptor sia ou mesmo formação de aneurisma, propician-
de superfície celular específico e; 3) produção do obstrução do fluxo sanguíneo e trombose , com
intensiva de citocinas pró-inflamatórias. possibilidade de ulterior proliferação da íntima e
Apenas um número limitado de linfócitos res- de oclusão estenótica.
ponde a um antigénio convencional (tipicamente
<1 célula em cada 10.000 linfócitos). Pelo con- Manifestações clínicas e diagnóstico
trário, os superantigénios podem activar até 20 a
30 % dos linfócitos T circulantes, com subsequente Não existindo exame laboratorial específico para
libertação de quantidades extremamente elevadas esta doença, o seu diagnóstico é baseado em crité-
de citocinas que posteriormente dão origem a rios clínicos, agrupados do seguinte modo:
uma cascata de eventos traduzindo activação imu- • Febre persistente inexplicada durante um
nológica de grau extremo, a qual pode ser tipifi- período mínimo de cinco dias, associada à
cada pela elevação sérica de todas as imunoglo- presença de, pelo menos, quatro dos cinco
bulinas. sinais clínicos seguintes (Quadro 1):
A febre alta e elevação dos reagentes de fase 1. Alterações das extremidades, que evoluem
aguda podem ser secundários ao aumento de IL- com eritema e edema das mãos e dos pés na
1, IL-6 e de TNF-α. O processo adenopático cervi- fase inicial, e posteriormente descamação em
cal pode reflectir a activação marcada das células placas, uma a três semanas após o início do
B e T. quadro febril;
A lesão vascular em geral, assim como a lesão
do endotélio das coronárias pode resultar: 1) da QUADRO 1 – Critérios de diagnóstico
activação de células endoteliais e de moléculas de de doença de Kawasaki (DK)
adesão leucocitárias; 2) da infiltração de células
CD4+ e CD8+ assim como de macrófagos; 3) da Febre inexplicada durante ≥ 5 dias (critério essencial),
resposta pró-inflamatória e pró-trombótica exage- mais 4 das seguintes manifestações:
rada produzida pelo excesso de citocinas; e 4) da 1. Conjuntivite (hiperémia conjuntival bulbar bi-
acção de neoantigénios sobre o referido endotélio lateral, não supurada) ( 80-90%)
coronário. 2. Linfadenomegália cervical anterior, aguda, não
É plausível o seguinte mecanismo fisiopa- supurada, > 1,5 cm (50-70%)
tológico: 1) determinado germe microbiano pro- 3. Exantema polimorfo generalizado, não vesicu-
dutor de superantigénios coloniza as membranas lar, principalmente no tronco (>90%)
mucosas do tracto gastrintestinal de um indivíduo 4. Alterações nos lábios e/ou mucosas (80 - 90%)
geneticamente predisposto; 2) a toxina é absorvi- 5. Alterações das extremidades ou na região
da através da mucosa inflamada, estimulando as perineal (80%).
células mononucleares locais e/ou circulantes a
Nota: Na presença de febre e de alterações cardíacas detectadas pelo
produzir citocinas pró-inflamatórias que, por sua ecocardiograma, são aceites menos de 4 dos 5 critérios descritos.
vez, provocam a febre e as restantes alterações (entre parênteses a percentagem média de aparecimento das
clínicas observadas na DK; 3) em resposta à esti- manifestações clínicas).
Evolução
A B C D
FIG. 2
DK – Aspectos imagiológicos de aneurisma da artéria coronária direita (ACD): A – arteriografia; B e C – ecografia.
D – sinal ecográfico de hydrops da vesícula biliar. (ACD – artéria coronária direita; AN – aneurisma)
gite e queilite. Podem ocorrer disfunção hepática e malizam. As únicas lesões que podem persistir
complicações cardíacas (miocardite e pericardite). O nesta fase são os aneurismas das artérias coro-
quadro laboratorial evidencia situação inflamatória nárias. Nos doentes com complicações cardíacas,
aguda, com leucocitose, aumento da velocidade de podem surgir consequências tardias graves como
sedimentação eritrocitária e da proteína C reactiva. rotura de aneurismas coronários. A mortalidade
2. Fase subaguda (~2-4 semanas): persistência global é cerca de 2% na criança não tratada, e de
da irritabilidade, anorexia e conjuntivite. A febre 0,1% na que recebeu tratamento.
tende a desaparecer nesta fase mas, se persistir, Todavia, a morbilidade e a mortalidade secun-
aumenta o risco de complicações cardíacas perma- dárias a complicações cardiovasculares podem ser
nentes. Inicia-se a descamação dos dedos das mãos significativas: nesta perspectiva destaca-se que os
e dos pés (Figura 3), bem como a formação de aneurismas coronários ocorrem em 20 a 25% dos
aneurismas das artérias coronárias. É a fase de casos não tratados, o que contrasta com a taxa de
maior risco de morte súbita. O quadro laboratorial 4% nos tratados. Por consequência, o grau de
evidencia trombocitose crescente que pode atingir compromisso coronário dita a necessidade de
1.000.000/mm3. seguimento a longo prazo, sendo a revasculariza-
3. Fase de convalescença ou crónica (~ 6-12 ção miocárdica uma prioridade nos casos graves.
semanas): todos os sinais da doença desaparecem
e os marcadores laboratoriais de fase aguda nor- Exames complementares
4. Nalguns centros, se verificada resistência à risco teórico associado de síndroma de Reye. Pelo
2ª dose de IGIV ou perante ineficácia dos corti- risco de síndroma de Reye, salienta-se ainda a
cóides, utiliza-se um inibidor do TNF, infli- importância da vacinação antigripe nas crianças
ximab. submetidas a terapêutica crónica com AAS. Na
Tratamento das complicações presença de um surto de sarampo e caso a criança
O enfarte agudo do miocárdio é a principal causa não esteja imune, a vacina deve ser administrada e
de mortalidade e, embora possa ocorrer na fase repetida 11 meses mais tarde. O restante calen-
aguda, é mais habitualmente tardio, i.e., mais de dário vacinal deverá ser cumprido em obediência
um ano após o início da doença. A experiência da ao Programa Nacional de Vacinação.
angioplastia coronária por via percutânea é muito O prognóstico a longo prazo, designadamente
limitada neste grupo de doentes, pelo que nos quanto à probabilidade de doença aterosclerótica
casos mais graves está indicada cirurgia de revas- futura, ainda não está bem estabelecido, uma vez
cularização coronária ou transplantação cardíaca. que o seguimento destes doentes está actualmente
limitado a cerca de 40 anos. Por outro lado, mesmo
Seguimento e prognóstico naqueles em que não se desenvolvem alterações
coronárias macroscópicas, nem se verificam alte-
A actuação a longo prazo deve ser adequada ao rações ecocardiográficas, são desconhecidas as
grau de envolvimento coronário. Existem critérios possíveis consequências da lesão celular endotelial.
de estratificação de risco que determinam reco- Têm sido relatados casos de adultos com enfarte
mendações relativas a terapêutica antiagregante e agudo do miocárdio ou outra patologia cardíaca e
hipocoagulante, actividade física e vigilância car- antecedentes de situação compatível com DK na
diológica. infância.
O ecocardiograma deve ser realizado precoce- É aconselhável proceder a estudo do perfil
mente na fase aguda da doença, e 6 a 8 semanas lipídico cerca de 1 ano após início da sintomatologia
após o seu início com o intuito de verificar a eficá- de DK, recomendando concomitantemente estilos
cia da terapêutica. Na presença de alterações ima- de vida saudáveis, designadamente alimentação
giológicas, a periodicidade deste exame comple- adequada, exercício físico regular e evicção de
mentar deverá ser mais estreita. No caso de recor- tabagismo.
rência (novo episódio com início 3 meses após o
inaugural e após normalização da velocidade de AGRADECIMENTOS
sedimentação), o tratamento deve ser semelhante O editor e os autores agradecem à Drª Catarina Gouveia a
ao inicial. Na presença de alterações ecocardiográ- cedência de uma imagem de ecografia referente a hidropisia
ficas, a criança deverá ser observada periodica- vesicular.
mente para detecção precoce de arritmias, mio-
cardite, regurgitação valvular e insuficiência BIBLIOGRAFIA
cardíaca. American Academy of Pediatrics. Kawasaki Disease. In:
A actividade física é limitada pelo próprio Pickering LK, Baker CJ, Long SS, McMillan JA, (eds). Red
doente no período de recuperação, podendo durar Book: 2006 Report of the Committee of Infectious Diseases.
algumas semanas. Outras restrições deverão em Elk Grove Village, IL: American Academy of Pediatrics,
ser impostas apenas nas crianças com risco 2006: 412-414
aumentado de trombose, e particularmente na Baumer JH. Guideline Review. Kawasaki disease: what to do
presença de aneurismas. with incomplete cases? Arch Dis Child Educ Pract Ed 2005;
A administração de vacinas vivas atenuadas 90: ep102 – ep104
(como a VASPR e a vacina antivaricela) deve ser Baumer JH, Love S, Gupta A, et al. Salicylate for the treatment
adiada, uma vez que os anticorpos adquiridos pas- of Kawasaki disease in children (Review). The Cochrane
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antivaricela não deverá também ser administrada for refractory Kawasaki Syndrome. J Pediatr 2005; 146:662-
enquanto durar a terapêutica com salicilatos pelo 667 que veio de cima
CAPÍTULO 213 Cardite reumática 1021
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A incidência mundial é variável, podendo ir de 1
a 150 por cem mil crianças e jovens. Nos países
industrializados, a partir dos anos 50, verificou-
se redução drástica devido à melhoria dos cuida-
dos primários e das condições socioeconómicas.
No entanto, o registo, nesses países, de surtos
esporádicos leva a admitir outros factores como
a identificação de novas estirpes de Strepto-
coccus, responsáveis por formas graves de
cardite.
1022 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Como notas gerais relativamente às particula- 5%), e nódulos subcutâneos (0 a 4%). A febre é
ridades das manifestações em função da idade muito frequente, em particular no primeiro surto.
(salientando-se que o pico de incidência da FR A poliartrite, rara antes dos cinco anos, é
corresponde à faixa 5- 15 anos e que é rara antes migratória, não supurativa, assimétrica e das
dos 5 anos), cabe salientar: a instalação da IC é grandes articulações.
tanto mais rápida quanto menor a idade da cri- Em surtos descritos mais recentemente, a
ança(mais rápida no RN do que no lactente); a avaliação clínica da cardite permite o diagnóstico
cianose é relativamente rara e, se associada a IC em 75% dos casos; a realização precoce de ecocar-
traduz gravidade, o que pode surgir nas cardiopa- diografia Doppler-cor nos casos suspeitos,
tias complexas; a hepatomegália está pratica- aumenta este valor para mais de 90%.
mente sempre presente no RN e lactente; edema A cardite pode surgir isolada ou precedida de
e fervores são mais raros na criança em compara- artrite; tem como sinal importante a taquicárdia,
ção com o adolescente e adulto. (ver adiante) em particular se registada com a criança a dormir,
sem febre e sem insuficiência cardíaca. A sua
Manifestações clínicas e exames evidência mais típica é o sopro de regurgitação
complementares mitral, suave, holossistólico, mais audível na
ponta e com irradiação para a axila. Na fase
As manifestações clínicas da FR são variáveis e o aguda, pode auscultar-se o rodado de Carey
diagnóstico baseia-se nos critérios de Duckett Coombs que é um sopro diastólico suave, curto e
Jones introduzidos em 1944 (Quadro 1). A pre- de tonalidade grave. Mais audível na ponta e
sença de dois critérios major ou de um major asso- axila, é variável e desaparece ainda na fase aguda.
ciado a dois minor, se acompanhada de evidência A insuficiência aórtica isolada é rara. A proba-
de infecção prévia por estreptococo do grupo A, bilidade de uma lesão valvular ser de origem
indica uma alta probabilidade de febre reumática. reumatismal é ~ 13% para a regurgitação aórtica
É importante referir que a presença de um título de isolada, ~ 76% para a regurgitação mitral isolada e
antiestreptolisina O (TASO) elevado, com ou sem dores ~ 97% para as duas lesões associadas. (Glossário)
articulares inespecíficas, não é suficiente para o diag- A lesão miocárdica pode levar a disfunção
nóstico de febre reumática. (NB: dor articular não é cardíaca importante, pelas alterações da contrac-
sinónimo de artrite). tilidade ventricular esquerda e pela regurgitação
As manifestações major, por ordem de frequên- valvular que se agravam nos casos de surtos
cia, são poliartrite (60 a 70% dos casos), cardite (50 repetidos.
a 60%), coreia (15 a 20%), eritema marginado (0 a A insuficiência cardíaca manifesta-se por
ortopneia, tosse, edema pulmonar, hepatomegália
QUADRO 1 – Critérios de Jones modificados e estase venosa. Nas crianças mais novas estas
manifestações podem ser subtis. A cardiomegália
Major Minor é constante, podendo ser comparticipada por der-
Cardite Clínicos: artralgia; febre rame pericárdico, frequente nos casos graves.
Artrite Laboratoriais: VS>, PCR> A propósito da IC no contexto de cardite
Coreia ECG: Intervalo P-R > reumática, cita-se a classificação funcional da New
Nódulos subcutâneos York Heart Association (NYHA) muito utilizada
Eritema marginado em adultos; baseia-se na avaliação das actividades
diárias. Por se tratar de critérios considerados
Evidência de infecção estreptocóccica: inadequados para recém-nascidos e lactentes, na
* Serologia específica positiva: TASO elevado ou a idade pediátrica utiliza-se a classificação de Ross,
aumentar (≥ 2x) que corresponde a uma adaptação da classificação
* Cultura positiva de Streptococcus na orofaringe da NYHA para a idade pediátrica. (Quadro 2)
Abreviaturas: VS=velocidade de sedimentação; PCR=proteína C reactiva;
A coreia de Sydenham indica compromisso
ECG = electrocardiograma; > = aumentado(a). do sistema nervoso central e caracteriza-se por
movimentos involuntários despropositados, exa-
1024 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Nota: FC considerada normal com a idade: RN: 80-100; 1 ano: 80-160; 2-3 anos:80-130; 4 -5 anos: 80-120; 6-7 anos: 75-115; 8-10 anos: 70- 110; > 10 anos: 65-110. FR considerada normal com a idade:
RN: 40-45; 1-6 meses: 30-35; 6 meses-2 anos: 25-35; >2-6 anos: 20-25; > 6-12 anos: 18-20; > 12 anos: ~18.
cerbados pelo esforço e estresse. É mais frequente mas a cultura do exsudado faríngeo é positiva ape-
no sexo feminino, tem um período de latência nas em 2/3 dos casos, razão pela qual se utiliza a
longo e, quando surge, os resultados dos exames serologia específica para se demonstrar a infecção
laboratoriais são em geral normais. estreptocócica. O doseamento do título de anti-
O eritema marginado é um exantema macular, estreptolisina O (TASO) é o método mais utilizado,
confluente, não pruriginoso, de cor rosada e bordo sendo positivo em mais de 85% dos casos. É signi-
serpiginoso, surgindo em geral no tronco e dorso, ficativa a subida dos valores dos títulos para duas
região proximal dos membros e nádegas. ou mais vezes os valores iniciais, devendo a
Os nódulos subcutâneos associam-se a cardite primeira determinação ser realizada o mais preco-
activa, são pequenos, duros e móveis; surgem na cemente possível, e as seguintes, duas a três sema-
superfície extensora das articulações, ao longo da nas depois. O TASO tem o pico entre as quatro e
coluna e na região occipital. seis semanas e começa a diminuir às oito semanas
Dos critérios minor, a febre, presente na fase de evolução. O título de antiDNAse B mantém-se
aguda, cede aos salicilatos. A velocidade de sedi- elevado durante mais tempo. A associação do
mentação, muito elevada na fase aguda, diminui TASO com o teste positivo anti-DNAse B eleva
progressivamente coincidindo com a melhoria esta percentagem para quase 100%. (Quadro 1)
clínica. Pode diminuir em presença de insuficiên-
cia cardíaca e voltar a aumentar com a melhoria Diagnóstico diferencial
da função miocárdica. Na coreia, a velocidade de
sedimentação é normal. De salientar que o valor Na fase aguda, sendo a febre reumática doença
da proteína C reactiva não sofre flutuações com a febril, inflamatória, há que fazer o diagnóstico
insuficiência cardíaca. diferencial com outras situações graves, tais como
Na telerradiografia do tórax, são frequentes os miocardite e pericardite víricas, doença de
sinais de pneumonite difusa. A presença de estase Kawasaki e endocardite infecciosa.
venosa pulmonar é a favor de insuficiência cardía- Os casos em que predomina o componente
ca importante. articular devem distinguir-se da artrite reuma-
O electrocardiograma apresenta intervalo PR tóide juvenil. O modo assimétrico e migratório
aumentado que normaliza com a melhoria clínica. das lesões das grandes articulações, e a rápida re-
As alterações inespecíficas do segmento ST e in- solução da sintomatologia com doses baixas de
versão da onda T significam, em geral, miocardite. ácido acetil salicílico, são a favor da febre reumáti-
As arritmias são raras e autolimitadas. ca. Deve fazer-se diagnóstico diferencial com ou-
A demonstração de infecção faríngea prévia tras artrites como as associadas a lúpus eritem-
por Streptococus é obrigatória para o diagnóstico; atoso sistémico, artrites infecciosas, doença do
CAPÍTULO 213 Cardite reumática 1025
soro, doença de Lyme, hemoglobinopatias e leuce- mais confiáveis. Outros achados da doença são:
mias. prolapso da válvula mitral, dilatação do anel e
Na criança, o diagnóstico etiológico duma rotura de corda tendinosa.
anomalia mitral que cursa com regurgitação, pode Na presença de coreia isolada, pode não haver
ser difícil. sinais clínicos de lesão cardíaca, pelo que está
A endocardite bacteriana que atinja uma indicada a realização do ecocardiograma. Além do
válvula mitral com anomalia congénita é uma apoio no diagnóstico, este exame é importante no
doença febril que pode simular febre reumática. A seguimento dos doentes com cardite, mediante a
presença de baço palpável, petéquias e hematúria avaliação seriada das dimensões das estruturas
microscópica, são dados a favor de endocardite. A cardíacas e da sua função.
velocidade de sedimentação está aumentada nas A ecocardiografia intra-esofágica é útil, princi-
duas situações, mas as flutuações descritas para a palmente no estudo pré-operatório da válvula
febre reumática em consequência da insuficiência mitral ou em situações de diagnóstico diferencial
cardíaca não se verificam na endocardite. As menos claro, como a demonstração de rotura de
hemoculturas positivas são a chave do diagnósti- corda tendinosa ou de vegetações.
co. A análise detalhada da morfologia e função da
válvula mitral pelo ecocardiograma é importante Prevenção primária
para o diagnóstico da febre reumática e para a
detecção de vegetações em casos de endocardite. O tratamento da infecção aguda (ou prevenção
A situação que mais dúvidas oferece é a pre- primária) amigdalite estreptocócica com penicili-
sença de apenas um critério major, geralmente a na benzatínica administrada por via intramuscu-
artrite. Nestes casos poder-se-á manter o doente lar em dose única (600.000 UI nas crianças com
em vigilância sob profilaxia antibiótica secun- peso inferior a 25 Kg e 1.200.000 UI nas crianças
dária; se se verificar recorrência da artrite, sem com peso igual ou superior a 25Kg) é mais seguro
evidência de infecção estreptocócica, fica excluída e eficaz. Nos raros casos de alergia à penicilina,
a etiologia reumatismal. utiliza-se eritromicina por via oral administrada
durante 10 dias. A azitromicina, administrada
Valor da ecocardiografia durante cinco dias, é uma alternativa válida. As
sulfamidas não têm indicação no tratamento da
Nos 20% de casos de febre reumática que se apre- infecção aguda.
sentam sem sopros e sem sinais clínicos de cardite
é possível diagnosticar lesão da válvula mitral Tratamento
com regurgitação por ecocardiografia com Dop-
pler codificado em cor. Apresentando grande sen- 1. Febre reumática propriamente dira
sibilidade e especificidade quando devidamente • Na fase precoce de diagnóstico da febre
interpretada, a ecocardiografia é um método de reumática, os anti-inflamatórios, se forem admi-
diagnóstico de primeira linha que deve ser reali- nistrados intempestivamente, podem mascarar os
zado antes da instituição da terapêutica anti- sinais de inflamação, modificar a velocidade de
inflamatória. As alterações morfológicas da fase sedimentação e os aspectos clínicos e ecocardio-
aguda relacionadas com o edema da válvula gráficos.
mitral e do aparelho tensor podem desaparecer • Após o diagnóstico de FR deve iniciar-se
rapidamente sob a acção da terapêutica com ácido ácido acetilsalicílico (100 mg/Kg/dia, repartido
acetilsalicílico. A valorização da ecogenicidade em quatro tomas, com as refeições) cuja dose de-
das estruturas cardíacas, se não existir uniformi- verá ser reduzida lentamente, à medida que for
dade de aplicação de "ganhos e brilhos", presta-se diminuindo a velocidade de sedimentação.
a grande variabilidade de interpretações. Os • A corticoterapia tem indicação nos casos de
dados morfológicos (espessamento ou lesões dos cardite e insuficiência cardíaca resistentes a outros
folhetos valvulares, encurtamento e espessamen- tratamentos. Utiliza-se a prednisolona na dose de 2
to do aparelho tensor e fusão das comissuras) são mg/Kg/dia durante duas a três semanas, reduzin-
1026 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
do-se durante as duas semanas seguintes; e, nesse SNC simpático e renina sérica. O seu uso em pe-
período, reinicia-se ácido acetilsalicílico, para evi- diatria está generalizado, apesar de haver poucos
tar recaídas. Associa-se, em geral, um protector estudos.
gástrico (ver adiante). É importante a monitorização sérica, em espe-
• Continua a ser preconizado o repouso abso- cial quando se associam a diuréticos devido ao ris-
luto no leito, como medida de redução do trabalho co de intoxicação, potenciada por eventual hipo-
cardíaco. caliémia secundária ao uso do diurético. Utiliza-se
• O apoio familiar e das educadoras de infân- a digoxina (dose total de digitalização: 25-50 μg/kg
cia (e de professores, para ensino das crianças em por via parentérica seguida de dose de manutenção
idade escolar) são importantes dado que o inter- de 5-10 μg/kg/dia por via oral dividida em duas
namento é bastante prolongado, podendo ultra- ou três tomas por dia.
passar dois meses.
• O tratamento cirúrgico, raramente necessário b. Catecolaminas
na fase aguda, está indicado nos casos com lesões Actuam por estimulação β-adrenérgica.A escolha
valvulares importantes. deve ser adaptada individualmente, no geral em
combinação. Têm como inconvenientes: aumen-
2. Insuficiência cardíaca.* tam o consumo de O2;. Comportam risco de arri-
Medidas gerais tmias: e afectam a função diastólica. Têm menor
– Nutrição -a IC aumenta o consumo de O2 e efeito na IC crónica, por diminuição dos β-recep-
provoca anorexia, vómitos e má progressão pon- tores:
deral. Por isso é fundamental assegurar uma nu- Dopamina – precursor biológico da noradre-
trição adequada com reforço calórico entérico se nalina, estimula também os receptores dopa-
necessário, com alimentação por sonda nasogás- minérgicos renais melhorando a perfusão renal
trica e/ou alimentação parentérica. quando usada com doses <5 μg/kg/minuto.
– Suprimento de fluidos – deve proceder-se a Administra-se diluída em soro dextrosado na
restrição de fluidos, em particular nos casos sub- dose de 2 a 5μg/kg/minuto (efeito dopaminérgi-
metidos a cirurgia com circulação extracorporal. co renal) ou 5 a 20 μg/kg/minuto (efeito β
– Diminuição do consumo de O2 – com sedação e, adrenérgico); ou ainda > 20 μg/kg/minuto (efeito
se necessário, ventilação. α-adrenérgico renal). Não se deve ultrapassar a
– Correcção de factores concomitantes (anemia, dose de 25 μg/kg/minuto.
sépsis, etc.). Dobutamina – com acção inotrópica e vasodi-
latadora, melhora a contractilidade sem variação
Tratamento farmacológico significativa da frequência cardíaca e da pressão
Tendo em conta a etiopatogénese da IC atrás sin- arterial. Administra-se diluída em soro dextrosa-
tetizada, com o tratamento farmacológico são do na dose de 2,5 a 15 μg/kg/minuto.
empregues fundamentalmente fármacos com três Adrenalina e noradrenalina – utilizam-se
tipos de acções: 1) diurética nas situações em que principalmente nas situações de baixo débito na
existe aumento da pré-carga; 2) inotrópica nas sequência de cirurgia cardíaca. Têm importante
situações em que existe diminuição da contractili- efeito cronotrópico e podem ser arritmogénicas.
dade; e 3) vasodilatadora nas situações em que
existe aumento da pré-carga. c. Inibidores da enzima de conversão da angio-
tensina (IECA)
a. Inotrópicos – digitálicos (digoxina) A activação do eixo renina-angiotensina-aldos-
Inibem Na-K ATPase que resulta em efeito ino- terona (RAA) está associada a maior mortalidade
trópico. Por outro lado, reduzem a activação do na IC. Os IECA reduzem a angiotensina II, que
causa vasoconstrição e hipertrofia ventricular.
Captopril e enalapril são os mais frequentemente
*Os princípios enunciados para o tratamento da IC no contexto de
cardite reumática são extrapoláveis, dum modo geral, para outras si-
utilizados. Dado que têm efeito hipotensor inicial
tuações de IC de etiopatogénese diversa. marcado, devem iniciar-se com doses baixas. Não
CAPÍTULO 213 Cardite reumática 1027
se devem administrar concomitantemente potás- pelo que poderá requerer associação com outros
sio, nem diuréticos que possam reter potássio inotrópicos.
como a espironolactona, pelo risco de hiperca- Levosimendan. É inotrópico e vasodilatador
liémia. com acção prolongada. Actua sem aumentar con-
Enalapril – administrar 0,01-0,05 mg/kg por sumo de O2. Em adultos, está demonstrada me-
dose, três a quatro vezes por dia. lhoria dos parâmetros hemodinâmicos na IC,
Captopril – iniciar com 0,15 mg/kg por dose, havendo, no entanto, dúvidas quanto ao efeito na
três vezes por dia. Aumentar com intervalos de 12 redução da mortalidade. Em Cardiologia Pediá-
a 48 horas, mas não ultrapassar 6 mg/kg/dia. trica existem escassos estudos demonstrando que
existe benefício; por isso, deve ser apenas utiliza-
d. β-Bloqueantes do em casos de IC refractária. Deve ter-se especial
Revertem os efeitos deletérios da activação cateco- atenção a arritmias secundárias ao seu uso.
laminérgica crónica. Têm também propriedades Neseritide. Trata-se do BNP sintético com
antiarrítmicas e de vasodilatação coronária. efeito diurético e de dilatação venosa, arterial e
Nos adultos com IC existe benefício bem docu- coronária, sem efeito inotrópico ou pró-arrítmico.
mentado (melhoria sintomática, diminuição da Actua por diminuição das neuro- hormonas acti-
mortalidade). Em Pediatria, alguns estudos não vadas na IC. Estudos em adultos comprovam me-
aleatórios mostram benefício do: lhoria hemodinâmica e dos sintomas. O medica-
Carvedilol, cujo uso se está a generalizar em mento é bem tolerado. Existe benefício quanto à
Cardiologia Pediátrica (dose inicial 0,03 mg/dose; diurese e perfil neuro-hormonal.
aumento de 0,03 mg/dose semanalmente com Nitroprussiato de sódio. Está indicado em
controlo da pressão arterial e da frequência cardía- situações acompanhadas de regurgitação valvu-
ca (RN e lactentes: 3 doses/ dia; crianças maiores: lar.
duas doses/dia).
Prevenção secundária
e. Diuréticos
O seu uso está generalizado na IC, aguda ou A prevenção secundária é tão importante como a
crónica apesar da ausência de estudos clínicos em prevenção primária. Na ausência de novos surtos,
idade pediátrica no contexto de IC. Têm a van- a maioria das alterações cardíacas resultantes da
tagem de diminuir a congestão pulmonar, provo- febre reumática melhoram e a função cardíaca
cando melhoria sintomática, da função ventricular pode normalizar. Por outro lado, as sequelas dos
e da tolerância ao esforço. Utilizam-se nomeada- surtos subsequentes, sempre mais graves do que
mente: as do primeiro surto, produzem lesões quase
Furosemido – actua na ansa de Henle, provo- sempre irreversíveis. Por estas razões, a prevenção
cando perda de electrólitos e água. Deve ter-se em secundária, importante no prognóstico da doença,
atenção o risco de hiponatrémia e hipocaliémia. é feita com penicilina benzatínica administrada
Administra-se na dose de 1mg/kg/dose aumen- por via intramuscular nas mesmas doses que para
tando 1mg/kg com intervalos de seis a 12 horas a prevenção primária, com intervalos de quatro
até o máximo de 6mg/kg/dose. semanas*. Nos países endémicos (como os de
Antagonistas da aldosterona como a espiro- África, América do Sul, Índia, Filipinas) o interva-
nolactona que, poupando potássio, podem ser uti- lo deve ser encurtado para três semanas. Nos
lizados em associação com furosemido. raros casos de alergia à penicilina, está indicada a
profilaxia por via oral (eritromicina ou sulfonami-
f. Outros fármacos das – sulfadiazina ou sulfisoxazol), em que a
Milrinona. Provoca inibição da fosfosdiesterase adesão e a eficácia são menores. A penicilina V
(que degrada AMPc) e aumenta o cálcio. Tem (oral) não está comercializada em Portugal.
efeito: inotrópico, lusotrópico e de diminuição da
resistência vascular sistémica sem aumentar con- *Nas populações de alto risco, alguns autores preconizam intervalo de
sumo de O2. Pode provocar hipotensão arterial, 3 semanas.
1028 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
As recomendações da Associação Americana Lima M.Febre reumática de novo. Notícias Medicas 1994; 2200: 2
de Cardiologia apontam para uma individualiza- Macedo AJ, Primo M, Kaku S, Lima M, Sampayo F.
ção do tempo de duração da profilaxia secundária, Cardiopatia reumática na criança. Estudo comparativo em
dependendo principalmente da existência de dois períodos sucessivos de nove anos. Acta Med Port
cardite reumática. Na presença de sequelas, a pro- 1989;3:127-131
filaxia deverá durar toda a vida (mesmo após Madriago E, Silberbach M. Heart failure in infants and chil-
eventual cirurgia). Nos casos sem sequelas (doença dren. Pediatr Rev 2010; 31: 4-12
valvular), nomeadamente doença valvular persis- Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
tente, a profilaxia é feita até à idade adulta. Nos AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
doentes com lesões valvulares, está indicada profi- Medical, 2011
laxia da endocardite bacteriana mesmo após cirur- Sampayo F, Lima M, Kaku S, Veiga CAS, Mata-Antunes AM.
gia. Cardiopatia reumática em idades pediátricas. Estudo epi-
demiológico, acção preventiva e avaliação a longo prazo. J
GLOSSÁRIO Médico 1980; 103: 49-54
BNP (brain natriuretic peptide > Poderia traduzir-se por péptido natri-
urético cerebral mas é habitual utilizar-se a abreviatura inglesa.
Trata-se de péptidos libertados pelos miócitos ventriculares. Tal
como os ANP (atrial natriuretic peptides), péptidos natriuréticos
auriculares produzidos e armazenados em células auriculares espe-
cializadas e libertados pelo estímulo da distensão auricular, têm
efeito natriurético e diurético.
Lusotrópico > Fármaco que melhora o relaxamento miocárdico.
Pulso saltão > Pulso de grande amplitude a que corresponde subida
muito rápida da PA em sístole e descida igualmente rápida na diás-
tole. É típico da insuficiência aórtica.
BIBLIOGRAFIA
Ayoub EM, Majced HA. Poststreptococcal reactive arthritis.
Curr Opin Rheumatol 2000; 12: 306-310
Brito MJ, Macedo AJ, et al. Ressurgimento da febre reumática.
Novas causas ou velhas atitudes? Acta Med Port 1996; 9:
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Jones criteria 1992 update. JAMA 1992; 268: 2069-2073
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ic heart disease at the close of the century. Circulation 1993;
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Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds).
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Langlois DM, Andreae M. Group A streptococcal infections.
Pediatr Rev 2011; 32: 423 - 430
CAPÍTULO 214 Endocardite infecciosa 1029
214
Olser ou esplenomegália) são mais raras em cri-
anças do que em adultos, estando virtualmente
ausentes em recém-nascidos. As alterações renais
(glomerulonefrite) podem ser secundárias a fenó-
menos auto-imunes ou embólicos. Podem registar-
se embolias para outros órgãos, nomeadamente
ENDOCARDITE INFECCIOSA sistema nervoso central onde podem provocar
aneurismas micóticos cuja ruptura pode ser cata-
Isabel Freitas, Graça Nogueira e Sashicanta Kaku strófica (ver Glossário Geral).
Exames complementares
215
empíricas e incluem insuficiência cardíaca por dis-
função valvular, persistência de vegetações após
fenómenos embólicos (particularmente se aumen-
tarem de dimensão apesar do tratamento), embo-
lias recorrentes e extensão perivalvular da in-
fecção (formação de abcesso, fístula, deiscência
protésica). A terapêutica médica é habitualmente MIOCARDITE
ineficaz na endocardite fúngica sendo necessária
cirurgia, na maioria dos casos. José Diogo Martins e Sashicanta Kaku
A mortalidade varia entre 20% e 30%, sendo
mais elevada na endocardite fúngica e nos casos
que atingem material protésico.
Definição, etiopatogénese
BIBLIOGRAFIA e importância do problema
Ashrafian H, Bogle RG. Antimicrobial prophylaxis for endo-
carditis: emotion or science? Heart 2007; 93: 5-6 A miocardite é uma doença inflamatória do mús-
Baddour LM, Wilson WR, Bayer AS et al. Infective endocardi- culo cardíaco, caracterizada por infiltrado leuco-
tis: diagnosis, antimicrobial therapy, and management of citário associado a degenerescência e/ou necrose
complications: American Heart Association: endorsed by não isquémica dos miócitos. Sendo a miocardite
the Infectious Diseases Society of America. Circulation causa importante de morte súbita, regista-se uma
2005; 111: e394-434 diferença significativa entre a sua incidência em
Bashore TM, Cabell C, Fowler V Jr. Update on infective endo- estudos clínicos (0,01 a 0,3%) e necrópsicos (1 a
carditis. Curr Probl Cardiol 2006; 31: 274-352 4%). Sob o ponto de vista etiológico, as miocar-
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011 dites consideram-se de causa infecciosa (represen-
Durack DT, Lukes AS, Bright DK. New criteria for diagnosis of tam mais de 2/3 dos casos), auto-imune, tóxica e
infective endocarditis: utilization of specific echocardio- de causa desconhecida. Os agentes infecciosos
graphic findings. Duke Endocarditis Service. Am J Med incluem bactérias, riquétsias, parasitas, fungos e vírus
1994; 96: 200-209 Cocksackie B, adenovírus, citomegalovírus e herpes
Ellis ME, Al-Abdely H, Sandridge A, Greer W, Ventura W. vírus. Nas causas auto-imunes incluem-se febre
Fungal endocarditis: evidence in the world literature, 1965- reumática, lúpus e artrite reumatóide, entre ou-
1995. Clin Infect Dis 2001; 32: 50-62 tras. Alguns fármacos (como penicilina, adriami-
Ferrieri P, Gewitz MH, Gerber MA et al. Committee on cina e anfotericina B) e substâncias tóxicas (como
Rheumatic Fever, Endocarditis, and Kawasaki Disease of álcool e metais pesados), podem ser responsáveis
the American Heart Association Council on Cardiovascular por miocardite. Descrevem-se ainda miocardites
Disease in the Young. Unique features of infective endo- secundárias no contexto de esclerodermia e de
carditis in childhood. Circulation 2002; 105: 2115-2126 sarcoidose.
Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders, 2011 Manifestações clínicas
Macedo A, Agualusa A, Kaku S, Lima M, Cabrita J, Bento R,
Sampayo F. Endocardite por Candida parapsilosis após cor- A lesão miocárdica nas miocardites víricas resulta
recção de tetralogia de Fallot. Tratamento médico-cirúrgico. da acção citotóxica do vírus, sendo também im-
Acta Méd Port 1991; 4: 301-304 portante a lesão auto-imune subsequente. A
Moreillon P, Que Ya. Infective endocarditis. Lancet 2004; 363: doença inicia-se por um pródromo “gripal” inca-
139 - 148 racterístico que antecede os sintomas e sinais de
Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon AA(eds). insuficiência cardíaca por um período de dias a
Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill Medical, 2011 semanas. A apresentação clínica pode ser insidiosa,
Wilson W, Tauberrt KA, Gewitz M, et al. Prevention of infective com queixas gástricas (secundárias a baixo débito
endocarditis. Guidelines from the American Heart Association. intestinal) e cansaço fácil ou de instalação súbita
Circulation 2007; DOI: 10.1161/circulationaha. 106. 183095 associados a outros sintomas e sinais de insufi-
1032 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
ciência cardíaca (má perfusão, pulso alternante, admitidos no hospital pode atingir 80%, graças à
polipneia, edema, taquicárdia, ritmo de galope ou utilização de dispositivos externos de assistência
choque cardiogénico). A miocardite pode apresen- ventricular. A idade mais jovem e a gravidade do
tar-se ainda como arritmia ou morte súbita. quadro clínico são factores de mau prognóstico.
Estima-se que um terço dos sobreviventes venha a
Exames complementares necessitar de transplante cardíaco.
216
restringe o enchimento diastólico cardíaco. A
causa mais importante continua a ser a pericardite
tuberculosa.
Manifestações clínicas
FIG. 1
Cardiomegália (por pericardite de etiologia tuberculosa)
evidenciada em radiografia do tórax. (NIHDE)
Tratamento e prognóstico
BIBLIOGRAFIA
Baker E. Pericarditis. In Anderson RH, Baker EJ, Macartney FJ,
Rigby ML, Shinebourne EA, Tynan M (eds). Paediatric
Cardiology. London: Churchill Livigstone, 2002; 1704-1711
Blanco CC, Parekh JB. Pericarditis. Pediatr Rev 2010; 31: 83-84
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
CAPÍTULO 217 Cardiomiopatias 1035
217
Aspectos epidemiológicos
A incidência anual é cerca de 0,58 a 0,73 por
100.000 crianças. Existem múltiplas causas identi-
ficadas, sendo a causa vírica responsável por 9% a
13% dos casos. As doenças neuromusculares, em
particular a distrofia muscular de Duchenne, re-
CARDIOMIOPATIAS presentam cerca de 12% dos casos. Os casos fami-
liares constituem cerca de 6% do total. Outras
José Diogo Martins e Sashicanta Kaku causas incluem alterações isquémicas (anomalias
das coronárias, disritmias prolongadas), doenças
hereditárias do metabolismo (mucopolissa-
caridoses, doenças de armazenamento de glico-
Definição e importância do problema génio, esfingolipidoses) (Capítulo 368), lesões por
tóxicos (destacando-se os antineoplásicos), alte-
As cardiomiopatias consistem numa anomalia do rações endócrinas (por exemplo da tiróide) ou
miocárdio associada a disfunção cardíaca, sistólica deficiências nutricionais (beribéri, kwashiorkor).
e/ou diastólica, na ausência de anomalias estrutu- Numa parcela dos 65% a 70% dos casos consider-
rais anatómicas. ados idiopáticos têm sido demonstrados defeitos
A classificação das cardiomiopatias é fun- genéticos e antecedentes de miocardite vírica por
cional, baseada no quadro fisiopatológico e inclui estudo PCR.
as formas hipertrófica, dilatada e restritiva. Con-
sidera-se ainda um quarto grupo, constituído por Manifestações clínicas
cardiomiopatias não classificáveis nos três grupos A cardiomiopatia dilatada apresenta-se como
anteriores. De acordo com o Registo Nacional de insuficiência cardíaca congestiva que, nos recém-
Cardiomiopatias dos Estados Unidos da América, nascidos e lactentes, se manifesta por cansaço
a forma dilatada é a mais frequente (58%), segui- durante a alimentação e má progressão estaturo-
da da hipertrófica (25%). As formas restritiva e as ponderal.
não classificadas representam 3% e 4%, respecti- O exame objectivo revela polipneia, má per-
vamente. fusão periférica, hepatomegália e edema. A aus-
A incidência anual é 1,1 a 1,2 por 100.000 cultação cardíaca revela taquicárdia, diminuição
crianças; os internamentos por cardiomiopatia não da intensidade dos ruídos cardíacos e ritmo de
ultrapassam 1% do total de internamentos por galope. Notam-se sinais de congestão venosa e
doença cardíaca em crianças. Trata-se duma diminuição do murmúrio vesicular nas bases pul-
doença grave, sendo que cerca de 40% das crianças monares. Os casos mais graves apresentam-se
atingidas morrem ou necessitam de transplante com falência circulatória por choque cardiogénico.
cardíaco nos primeiros dois anos após o início dos
sintomas. Exames complementares
A apresentação é mais frequente no primeiro No electrocardiograma observam-se sinais de
ano de vida, registando-se um segundo pico taquicárdia sinusal, alterações da repolarização e
durante a adolescência. Os estudos genéticos con- hipertrofia ventricular. A presença de ondas Q
firmam etiopatogénese hereditária numa percen- profundas em derivações esquerdas deve alertar
tagem elevada de casos. para a possibilidade de anomalia coronária. A
radiografia do tórax revela cardiomegália e con-
1. Cardiomiopatia dilatada gestão venosa pulmonar.
O ecocardiograma permite identificar a dila-
A cardiomiopatia dilatada é uma doença do tação ventricular, detectar anomalias, avaliar a
músculo cardíaco caracterizada por dilatação ven- função valvular e a presença de derrame pericár-
tricular com diminuição da contractilidade. (pri- dico ou de trombos.
mariamente disfunção sistólica). Os métodos de diagnóstico etiológico devem
1036 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
a finalidade de aliviar o obstáculo de saída do direita) resulta em aumento das pressões de enchi-
ventrículo esquerdo e melhorar a dinâmica dias- mento ventriculares (telediastólica) e hipertensão
tólica ventricular esquerda). A eficácia da utiliza- pulmonar.
ção profiláctica de β-bloqueantes em doentes ass- A maioria dos doentes apresenta sinais discretos
intomáticos, com a finalidade de alterar a pro- de compromisso cardíaco, sendo a doença detecta-
gressão da doença, não está demonstrada. Nos da em exames “de rotina”. Alguns doentes referem
casos de défice de carnitina está indicada a admi- intolerância e dispneia com o esforço e síncope. As
nistração oral deste produto. As indicações para manifestações da doença surgem habitualmente
colocação de cardioversores-desfibrilhadores entre cinco e oito anos de idade. Há uma incidência
implantáveis em crianças são controversas; justifi- elevada de fenómenos tromboembólicos sistémicos
cam-se apenas como prevenção secundária nos e de perturbações do ritmo cardíaco (taquidisri-
doentes ressuscitados de episódios de morte súbi- tmias e bloqueio aurículo-ventricular completo).
ta e como prevenção primária nos casos com
múltiplos factores de risco de morte súbita. Exames complementares
Em casos refractários está indicada a remoção O electrocardiograma apresenta sinais de
cirúrgica do obstáculo subaórtico por miectomia. dilatação biauricular. Na radiografia do tórax
O transplante cardíaco é uma opção que deve ser destacam-se cardiomegália e congestão pulmonar.
cuidadosamente avaliada depois de excluídas A ecocardiografia mostra sinais de dilatação auri-
causas extracardíacas da doença. A terapia génica cular sem alterações ventriculares evidentes. O
dá neste momento os primeiros passos de um cateterismo cardíaco revela pressões telediastóli-
futuro promissor. cas elevadas, hipertensão pulmonar e aumento da
O prognóstico é variável devido à heterogenei- resistência vascular pulmonar.
dade genética e à variabilidade das causas
secundárias. Estima-se, para a totalidade da po- Tratamento e prognóstico
pulação (crianças e adultos) um risco de morte A terapêutica médica anticongestiva (vasodilata-
súbita de 1% por ano. Nos doentes sintomáticos dores sistémicos, diuréticos, inotrópicos) não
com menos de um ano de idade o prognóstico é altera o curso desta doença, considerando-se que
particularmente adverso e a causa de morte é o único tratamento adequado é o transplante car-
habitualmente insuficiência cardíaca (90%). díaco. A utilização de vasodilatadores pulmonares
antes do transplante pode contribuir para melho-
3. Cardiomiopatia restritiva rar o pós-operatório destes doentes.
O prognóstico dos doentes não transplantados
As cardiomiopatias restritivas caracterizam-se por é reservado, com sobrevida de 20 a 30% aos 10
disfunção ventricular diastólica com função anos. O tempo médio entre o diagnóstico e o
sistólica preservada, ausência de hipertrofia ou transplante é ~ 2 a 3 anos. Como a história natural
dilatação ventricular e dilatação biauricular. da doença é heterogénea, é difícil estabelecer
(primeiramente disfunção diastólica, muitas vezes momento ideal para o transplante cardíaco. No
combinada com disfunção sistólica). entanto, a descompensação hemodinâmica condi-
ciona negativamente o prognóstico da cirurgia.
Aspectos epidemiológicos
Constituem 2,5 a 5% dos casos de cardiomiopatia. 4. Outras Cardiomiopatias
Na maioria dos casos, não é possível identificar a
causa (formas idiopáticas). Alguns casos são se- Ventrículo esquerdo não compactado
cundários a doenças infiltrativas miocárdicas,
fibrose endomiocárdica ou miopatias familiares. O ventrículo esquerdo não compactado é uma car-
diomiopatia secundária a provável paragem na
Manifestações clínicas morfogénese endomiocárdica fetal, a qual resulta
A restrição da drenagem venosa pulmonar (para a em múltiplas trabeculações ventriculares proemi-
aurícula esquerda) e sistémica (para a aurícula nentes e recessos intraventriculares profundos.
1038 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
218
QUADRO 1 – Classificação das Doenças
Reumáticas Juvenis mais comuns
(cont.)
2. Síndromas auto-inflamatórias
• Hereditárias
INTRODUÇÃO À CLÍNICA Relacionadas com CIAS*; Síndroma de Muckle Wells;
Síndroma da urticária familiar ao frio; Síndroma de
DAS DOENÇAS REUMÁTICAS CINCA
Não relacionadas com CIAS: PAPA, Febre mediterrâni-
JUVENIS ca familiar; HIDS (síndroma de hiper IgD); TRAPS;
Doença de Crohn familiar; Síndroma de Blau
J. A. Melo Gomes • Não Hereditárias
PFAPA; Osteomielite multifocal crónica recorrente; AIJ
sistémica – alguns casos de forma sistémica persistente
ou recorrente
3. Espondilatropatias juvenis
Importância do problema
• Espondilite anquilosante juvenil
e sistematização
• Artrites reactivas / Síndroma de Reiter
• Artrite psoriásica
As doenças reumáticas crónicas juvenis são cons-
• Artrites associadas à doença inflamatória crónica do
tituídas por um amplo grupo de patologias da
intestino
infância e juventude que têm a característica
• Espondilartropatias indiferenciadas
comum de envolverem estruturas do aparelho lo- 4. Febre Reumática / Reumatismo Pós-estreptocócico
comotor em particular, e do tecido conjuntivo em 5. Conectivites / Vasculites Juvenis
geral. Por este motivo, estas doenças podem afec- (Doenças difusas do tecido conjuntivo)
tar não só estruturas específicas do aparelho loco- • Lupus eritematoso sistémico
motor (membrana sinovial articular, cartilagem • Doença mista do tecido conjuntivo
articular, tendões, músculos, ossos), mas também • Síndroma anti-fosfolípidos
outros órgãos e sistemas. • Esclerodermia
Surgindo numa fase da vida particular, na qual • Dermatomiosite / Polimiosite
a experimentação física individual desempenha • Vasculites necrosantes
um papel tão importante no crescimento e matu- – Púrpura de Schonlein-Henoch
ração da criança e/ou do adolescente, estas – Poliarterite nodosa
– Doença de Kawasaki
QUADRO 1 – Classificação das Doenças – Poliarterite microscópica
Reumáticas Juvenis mais comuns – Granulomatose de Wegener
– Doença de Takayasu
1. Artrites Idiopáticas Juvenis – Granulomatose de Churg-Strauss
• Sistémica 6. Síndromas associadas a imunodeficiência
• Oligoarticular persistente 7. Dores “de crescimento”
• Oligoarticular estendida 8. Sinovite transitória da anca
• Poliarticular com factores reumatóides (FR) IgM no soro 9. Manifestações osteoarticulares de doenças não
• Poliarticular sem factores reumatóides (FR)IgM no soro reumáticas da infância
10. Artrites infecciosas / Osteomielite
• Artrite psoriásica
11. Osteocondroses idiopáticas juvenis
• Artrite associada a entesite (alta probabilidade de
12. Epifisiólise proximal do fémur
espondilartropatia juvenil)
13. Doenças hereditárias do tecido conjuntivo
• Outras formas (inclassificáveis; classificáveis em mais
14. Síndroma de hipermobilidade articular benigna
de um subgrupo) (continuação)
*CIAS = cold induced autoinflammatory syndrome
CAPÍTULO 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) 1043
219
doenças podem ter profundas repercussões sobre
o desenvolvimento normal dos jovens por elas
afectadas.
Pelas suas repercussões sobre o olho, cons-
tituem também uma causa de perda de visão neste
grupo etário.
As manifestações clínicas iniciais dependerão ARTRITES IDIOPÁTICAS
sempre da doença em presença, podendo, por isso,
ser muito diversas (Capítulo 112). JUVENIS (AIJ)
No Quadro 1 indica-se uma classificação pos-
sível das doenças reumáticas crónicas juvenis. J. A. Melo Gomes
Por ausência de espaço para englobar todas
estas situações clínicas, algumas das quais serão
motivo doutros capítulos deste livro, iremos abor-
dar sucessivamente a classificação e evolução de Introdução histórica
conceitos das artrites idiopáticas juvenis (AIJ), as
várias doenças englobadas sob a designação Do ponto de vista histórico, o primeiro estudo de
comum de AIJ, as síndromas auto-inflamatórias, casos de artrite juvenil com as características do
as doenças difusas do tecido conjuntivo juvenis grupo de doenças que estamos a considerar foi
mais frequentes (incluindo as vasculites necrosan- publicado em 1864, por Cornil, numa doente de 29
tes juvenis) e a febre reumática. anos, com doença iniciada aos 12 anos de idade.
A primeira publicação de casos em idade pe-
BIBLIOGRAFIA diátrica é de 1881 por Moncorvo, autor brasileiro
(consultar Bibliografia do Capítulo 219) que fez a sua “thèse de doctorat” em Paris, sobre
uma doente de 2 anos de idade, não se sabendo se
voltou a publicar algum outro estudo sobre o mes-
mo tema.
A primeira série bem estudada foi publicada
em 1891, também como thèse de doctorat em Paris,
por Diamant-Berger, médico francês que reviu 38
casos clínicos, 4 dos quais da sua observação pes-
soal. Este autor passou o resto da sua vida clínica
como obstetra na cidade de Lyon, não se con-
hecendo nenhuma publicação posterior sua sobre
o mesmo assunto.
A primeira análise criteriosa da doença reumáti-
ca crónica da criança foi publicada por George
Frederic Still no Reino Unido 1897, tendo sido este
mesmo trabalho lido por Sir Alfred Garrod, outra
figura ímpar dos primórdios da Reumatologia
inglesa, que estabeleceu pela primeira vez a relação
entre hiperuricémia e gota.
Nesse estudo Still não só identifica e caracteri-
za bem a forma sistémica de artrite idiopática ju-
venil (AIJ), como chama a atenção para a sua
potencial gravidade (com mortalidade, nessa
altura, superior a 10% num seguimento de cerca
de 5 anos) e a distingue de outra forma de AIJ em
que a doença é predominantemente articular, che-
1044 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
gando a propor que se trataria de duas doenças mização de critérios, estabeleceu-se a designação
diferentes, quer clínica, quer patogenicamente. de artrites idiopáticas juvenis, (AIJ), através de
Seguindo a tradição dos autores que no século um grupo de trabalho de nomenclatura e classifi-
XIX publicaram sobre as AIJ, Still nunca mais cação das doenças reumáticas crónicas juvenis,
voltou a abordar este tema, apesar de uma activi- patrocinado pela ILAR (International League
dade editorial extensa, ligada à Medicina e à Against Rheumatism).
Pediatria, tendo mesmo publicado várias edições A denominação descritiva de ACJ pressupõe
de um tratado de doenças da criança, no qual que não se trata de uma doença, mas sim de um
nunca se referiu às doenças reumáticas crónicas grupo de patologias caracterizadas pela presença
juvenis. de doença inflamatória articular – Artrite – que
Já no século XX e no Reino Unido, duas figuras cursa com duração superior ou igual a 3 meses –
se destacam na história da evolução de conceitos Crónica – num grupo etário bem definido – Juvenil
relativos às artrites juvenis. São elas Eric Bywa- – tendo início antes de se completar o 16º ano de
ters, Reumatologista de mérito universalmente vida. Este diagnóstico obriga à exclusão de um
reconhecido, com trabalhos de importância fun- largo grupo de doenças da infância que podem ter
damental na histopatologia das doenças reumáti- sintomas semelhantes aos da ACJ (Quadro 1).
cas e nas doenças reumáticas crónicas juvenis, que A ACJ foi subdividida em três formas distin-
começou a trabalhar este assunto numa altura tas, classificadas de acordo com a evolução clínica
(1948, após o fim da II Guerra Mundial) em que a durante os primeiros 6 meses de doença: a forma
doença reumática juvenil mais comum em todas Sistémica, a forma Poliarticular e a forma Oligoar-
as enfermarias do Canadian Memorial Red Cross ticular, representando provavelmente doenças
Hospital, em Taplow – Inglaterra, era a febre diferentes.
reumática. Na forma Sistémica predominam as manifes-
tações extra-articulares:
Classificação e evolução de conceitos • febre alta intermitente (presente em 100%
dos casos) com picos febris vespertinos
No início dos anos 60 Barbara Margareth Ansell (≥39ºC) e apirexia ou temperaturas sub-
juntou-se à equipa médica de Taplow e ajudou febris matinais;
este centro a atingir o topo da reumatologia pediá- • exantema macular eritematoso (80% dos
trica mundial, centro de referência e formação casos), de cor rósea ou salmão, por vezes
para muitos dos que agora dirigem conceituados muito fugaz, que pode estar presente apenas
serviços e unidades de Reumatologia Pediátrica durante os picos febris e se pode associar a
em todo o Mundo. fenómeno de Koebner;
A estes autores se devem os primeiros critérios • hepatosplenomegalia (60% dos casos);
de classificação da EULAR (European League • adenomegalias generalizadas (50% dos casos);
Against Rheumatism), bem como a designação de • serosite (20% dos casos) – geralmente sob
Artrite Crónica Juvenil, que durante algumas forma de pericardite, que tem expressão
décadas foi a mais prevalente segundo reumatolo- clínica em 5% dos casos e pode ser detectada
gistas e pediatras europeus. ecocardiograficamente em cerca de 20% dos
As patologias reumáticas crónicas da infância doentes; a pleurite e a peritonite asséptica
e adolescência que originam maior número de são muito mais raras.
consultas (cerca de 60% do total das consultas As manifestações articulares, indispensáveis
externas de Reumatologia Pediátrica) encontram- para o diagnóstico, podem ser muito escassas, ou
se no grupo das doenças crónicas anteriormente estar mesmo ausentes (20% dos casos), nas
designadas por artrite crónica juvenil (ACJ), na primeiras semanas ou meses de doença. A médio-
Europa, e artrite reumatóide juvenil (ARJ) nos longo prazo cerca de 40% dos doentes com esta
Estados Unidos da América e grande parte do forma de doença vêm a sofrer de poliartrite exten-
continente Americano. sa, e muitas vezes incapacitante. A amiloidose
Recentemente, numa tentativa séria de unifor- secundária, embora rara (< 2%), é um risco a con-
CAPÍTULO 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) 1045
QUADRO 2 – Comparação das classificações de Artrite Crónica Juvenil (ACJ), Artrite Reumatóide
Juvenil (ARJ) e Artrites Idiopáticas Juvenis (AIJ)
relacionados com a sua filosofia de base. Nomea- 5. Os critérios não estão validados por nenhum
damente é de salientar que: estudo prospectivo.
1. Não identificam, de forma coerente, os
vários grupos da classificação como doenças, Assim sendo, é fácil compreender que as
quando tal poderia ser feito em relação aos várias tentativas de classificação atrás expostas
seguintes: não são definitivas e têm vindo a evoluir no senti-
(a) Artrite sistémica – situação que tem a desi- do de aproximar a comunidade médica interna-
gnação de doença de Still do adulto, quando se cional em torno de uma forma de classificação que
inicia após os 16 anos de idade; possa ser partilhada por todos.
(b) Poliartrite com FR IgM positivos – corres- É assim previsível que, a curto-médio prazo, a
pondendo à artrite reumatóide, deveria, por isso, designação passe a ser de Artrite Juvenil e os vários
ser classificada como Artrite Reumatóide Juvenil; subgrupos iniciais sejam considerados, sempre que
(c) Artrite relacionada com entesite – corres- possível, como doenças independentes, tais como a
ponde, quase sempre, a formas de espondilartro- doença de Still ou AIJ sistémica, a artrite reumatóide
patia juvenil; por vezes é necessário esperar juvenil (isto é, AIJ poliarticular ou oligoarticular
muitos anos, ou mesmo décadas, até à total estendida com factores reumatóides IgM presentes
eclosão do quadro clínico, o qual (tal como sucede no soro e evolução clínica sobreponível à da artrite
por vezes no adulto) pode ser bastante benigno; reumatóide do adulto), e as espondilartropatias,
(d) Oligoartrite, persistente ou estendida (com incluindo a espondilite anquilosante, a síndroma de
ANA positivos e/ou uveíte crónica); trata-se de Reiter e as espondilartropatias indiferenciadas, bem
uma forma de doença reumática crónica exclusiva- como a artrite psoriásica juvenil e as artrites asso-
mente encontrada em crianças sendo que não há ciadas à doença inflamatória crónica do intestino.
casos idênticos descritos na idade adulta; As maiores vantagens desta classificação con-
(e) Não aplicam os critérios de diagnóstico da sistem no facto de: por um lado, se poder aliviar a
AR do adulto, que permitiriam identificar casos ansiedade dos pais com a atribuição de uma desi-
de AR entre as crianças com Poliartrite e FR IgM gnação provisória nos casos, nada raros, em que
negativos; um diagnóstico definitivo não é possível, ou
(f) Apenas identificam como doença a Artrite demora meses ou anos a concretizar-se; e, por
psoriásica, com critérios de diagnóstico muito outro lado, ao atribuir-se uma designação única a
semelhantes aos publicados previamente por estas várias patologias (cada uma por si pouco
autores que redigiram os critérios da AIJ de Durban. comum), consegue-se uma massa crítica de
2. Não reconhecem explicitamente que em doentes e vontades que podem auxiliar a defender
muitos casos de AIJ o diagnóstico definitivo só estas crianças nos ambientes escolar, vocacional,
pode ser conseguido na idade adulta, por muito de apoio social e outros.
cuidadosos e competentes que sejam os Reuma- O Quadro 3 sintetiza a correspondência entre os
tologistas Pediatras. grupos de classificação das AIJ e a classificação
3. Não realçam a existência de doenças reumáti- actual das doenças reumáticas do adulto.
cas crónicas próprias da infância, para as quais se Do ponto de vista da abordagem diagnóstica
poderia propor uma designação específica. destas doenças é óbvio que só poderemos evocar
4. Parecem desconhecer o verdadeiro significa- uma suspeita de AIJ se uma criança ou adoles-
do do termo “idiopático”, recusando-se a consi- cente tiver artrite, pelo menos numa articulação,
derar como tal doenças mais bem caracterizadas, iniciada em idade inferior a 16 anos.
como por exemplo o lúpus eritematoso sistémico Ter artrite significa não apenas existir dor arti-
(LES) e a dermatomiosite juvenil (DMJ), em que cular, mas esta associar-se a tumefacção, aumento
esta designação tambem é aplicável. Obviamente da temperatura local (menos comum nas artrites
que não se propõe que o LES e a DMJ façam parte crónicas que nas agudas) e/ou limitação de movi-
deste grupo de doenças; contudo trata-se também mentos das articulações atingidas. (ver adiante)
de doenças idiopáticas e o seu início é muitas É importante salientar que muitas vezes as
vezes juvenil. crianças mais pequenas podem verbalmente negar
1050 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Classificação das AIJ – ILAR / Durban – Edmonton Grupo nosológico correspondente nos adultos
Artrite sistémica Doença de Still
Poliartrite com FR IgM presentes Artrite reumatóide
Poliartrite com FR IgM negativos Artrite reumatóide sem FR IgM (deveriam ser utililizados
na criança os critérios do ACR)
Espondilartropatias
Oligoartrite com ANA+ e/ou uveíte crónica Sem correspondência no adulto
Oligoartrite estendida com FR IgM + Artrite reumatóide
Oligoartrite tardia / HLA B27 Espondilartropatias
Artrite relacionada com entesite Espondilartropatias
Artrite psoriásica juvenil Artrite psoriásica
Outras / Inclassificáveis Diagnóstico preciso a definir na idade adulta
a existência de dor articular, sendo esta apenas QUADRO 4 – Artrites Idiopáticas Juvenis
confirmada pela observação da expressão facial
enquanto se explora a mobilidade das articulações Como suspeitar?
envolvidas. (Quadro 4) • Presença de ARTRITE (pelo menos 2 das três manifes-
O diagnóstico de AIJ pressupõe também a tações seguintes: dor articular / tumefacção articular
exclusão de várias doenças juvenis que podem / limitação da mobilidade articular) de uma ou mais
causar artrite no mesmo grupo etário. No Quadro articulações
5 estão indicadas as principais doenças que +
podem causar dificuldades no diagnóstico dife- • Duração superior ou igual a 6 semanas
rencial das AIJ. +
• Início das queixas antes dos 16 anos de idade
Aspectos epidemiológicos
idade limite de internamento de doentes nos Algumas destas doenças têm alterações da
serviços de pediatria de países do norte da Europa imunidade humoral, incluindo presença de com-
e dos EUA, em meados do século passado. plexos imunes, vários auto-anticorpos e activação
A idade de início é diferente para as várias do complemento, por vezes com aumento dos
doenças que fazem parte do grupo das AIJ, como níveis séricos deste.
veremos abaixo, aceitando-se que o grupo total tem Por outro lado, há seguramente uma partici-
um pico de início entre os 1 e os 3 anos de idade, no pação genética múltipla, oligogénica ou poligéni-
qual existe nítida predominância do sexo feminino, ca, provavelmente responsável pelas alterações
distribuindo-se as restantes idades de início de imunológicas que causam a doença e que levam a
forma mais ou menos equilibrada até aos 16 anos. aumento da incidência familiar de algumas das
Sexo – No grupo total a relação entre sexos é doenças classificadas sob a designação de AIJ.
cerca de 2F/1M, sendo em todos os estudos publi- Face à heterogeneidade, quer dos quadros
cados o sexo feminino o mais afectado. Contudo, clínicos que são classificados como AIJ, quer da
esta diferença difere muito de acordo com o tipo de expressão clínica variável de cada uma dessas
AIJ que se considera. Assim, nas espondilartopatias doenças, será dificil ou impossível identificar um
juvenis o sexo masculino é afectado mais vezes agente etiológico, ou uma via patogénica única,
(3M/1F) que o feminino; na AIJ oligoarticular de que explique o desencadear destas doenças.
início precoce (em idade < 6 anos) com anticorpos O TNF-α e a IL-6 desempenham também um
antinucleares presentes no soro, o sexo feminino é importante papel na patogénese de muitas destas
atingido com muito maior frequência (5F/1M); e, doenças, o que tem implicações terapêuticas.
na forma sistémica, a frequência é praticamente As infecções, os traumatismos físicos e os fac-
igual nos dois sexos. tores psicológicos têm sido também implicados na
Cerca de 50-60% dos casos de AIJ têm início de patogénese, embora surjam sempre dúvidas sobre
forma oligoarticular,20-25% de forma poliarticular o seu papel.
e 15 a 20% de forma sistémica. Como noutros aspectos das AIJ, a avaliação
Influência geográfica e racial – As AIJ têm sido adequada dos factores etiológicos e patogénicos
descritas em todas as latitudes e etnias, sendo a sua só terá sucesso quando forem estudados grupos
epidemiologia bem conhecida nos países com homogéneos de doentes, que sofram de uma só
serviços de saúde mais desenvolvidos e mais bem doença.
organizados. Alguns estudos apontam para dife- Os antigénios de histocompatibilidade do grupo
renças entre populações de origem europeia e afri- HLA têm um papel em várias doenças classificadas
cana, enquanto outros detectaram números de acor- sob a designação comum de AIJ, o que explica o
do com a representação respectiva destas duas po- fenómeno de agregação familiar que se verifica no
pulações na comunidade em estudo, no mesmo país. grupo das espondilartropatias, e provavelmente
Em suma, estas doenças atingem todos os gru- também noutras situações clínicas distintas.
pos étnicos, com diferenças que ainda não são É bem conhecida a frequência aumentada dos
bem conhecidas. alelos A2, B27 e B35 dos antigénios HLA de classe I
na AIJ. O aumento da frequência do HLA B27,
Etiopatogénese detectado em vários estudos, é devido aos casos
de espondilite anquilosante juvenil e doutras
Não constituindo uma única doença, é fácil com- espondilartropatias juvenis que são incluídos em
preender que as AIJ não poderão ter todas a alguns dos vários subgrupos de AIJ. A presença
mesma etiologia e patogénese. deste antigénio constitui, pois, um marcador para
Alguns factos, porém, estão bem estabelecidos. o diagnóstico de espondilartropatia juvenil.
Por um lado, existe uma desregulação do sistema Também o HLA DR4, um antigénio HLA de
imunitário, com anomalia das células T que infil- classe II, é um marcador de pior prognóstico para
tram a membrana sinovial das articulações afec- alguns tipos de artrite, nomeadamente das formas
tadas, o que sugere o papel destas células na sistémica e poliarticular com factores reumatóides
patogénese da doença. IgM presentes no soro.
1052 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 7 – Registo das articulações atingidas com: Tumefacção (T), Dor (D) ou Movimentos
Limitados (ML)
Coluna Cervical
Coluna Dorsal
Coluna Lombar
Sacroilíacas
Uma contagem articular cuidadosa deve ser gmentação cutânea sobre essas articulações.
registada na altura em que é efectuada. Os nódulos subcutâneos são raros, ocorrendo
A osteopenia e a osteoporose, de desuso e rela- em menos de 5% dos casos de AIJ, quase exclusi-
cionáveis com corticoterapia, são relativamente vamente nos doentes que evoluem como uma AR
comuns nos mesmos doentes com baixa estatura e do adulto (formas poliarticulares, com factores
envolvimento poliarticular muito extenso, por reumatóides IgM presentes no soro).
vezes com grandes incapacidades para a marcha. O linfedema dos membros e a vasculite
As fracturas de fragilidade, quer vertebrais, quer cutânea são muito raros.
de ossos longos, não são raras nestes doentes. A atrofia muscular é frequente, particularmente
Por estes motivos, o médico necessita de estar nos casos com poliartrite extensa ou naqueles em
particularmente alerta para esta complicação da que os posicionamentos articulares não são cuida-
doença e da respectiva terapêutica nos doentes de dosos durante as fases de inflamação mais activa.
maior risco. De realçar que, no adulto, a dose má- Podem resultar encurtamentos músculo-tendi-
xima considerada “segura” para o osso é 5mg de nosos, os quais causam contracturas em flexão,
prednisolona ou equivalente por dia, em toma por vezes de difícil resolução sem o recurso a téc-
única. nicas cirúrgicas.
O envolvimento cardíaco não é muito comum,
Manifestações extra-articulares mas deve ser reconhecido. A pericardite surge em
menos de 5% dos casos de AIJ, sendo quase exclu-
Nem só as articulações são envolvidas neste siva da forma sistémica; por estudos ecocardio-
grupo de doenças. gráficos 20% dos doentes com forma sistémica
A pele é tipicamente atingida na AIJ sistémica, terão evidência de envolvimento pericárdico. O
com um exantema macular ou máculo-papular tamponamento cardíaco por este motivo é muito
eritematoso, por vezes muito fugaz e que pode raro, mas encontra-se descrito.
surgir apenas durante os períodos de febre alta, e A miocardite e a endocardite são muito mais
estar completamente ausente nas horas do dia em raras. Esta última pode colocar dificuldade no
que a criança está apirética. Pode atingir o tronco diagnóstico diferencial com febre reumática como
e os membros, sendo raro na face. O exantema comorbilidade.
surge por vezes em zonas de atrito cutâneo (fenó- O envolvimento pleuropulmonar é bastante
meno de Kœbner) e pode ser desencadeado por mais raro. Ocasionalmente é detectável discreta
um arranhão com a unha do observador; consi- pleurite em doentes com forma sistémica e peri-
derado um dos sinais de actividade da doença. cardite clínica. O envolvimento do parênquima
Claro que as manifestações de psoríase na pele pulmonar, com fibrose intersticial grave, está
ou no couro cabeludo e/ou o picotado ungueal descrito e pode ser causa de exitus letalis.
típico podem ajudar no diagnóstico de artrite O sistema gastrintestinal pode ser envolvido na
psoriásica juvenil. Porém, é bom recordar que na AIJ, quer pela doença, como acontece nos casos
maioria das crianças com artrite psoriásica a associados a doença inflamatória crónica do
artrite precede durante meses ou anos o apareci- intestino (em que a típica diarreia, com sangue,
mento das lesões cutâneas típicas da psoríase. muco e pus, pode surgir apenas meses ou anos
Nas restantes formas de AIJ a pele pode ter após o início da artrite, só então sendo possível o
alterações devidas a toxicidade medicamentosa – diagnóstico definitivo), quer pelas terapêuticas
vários AINE, os corticosteróides e várias terapêu- utilizadas que podem causar iatrogenia a este
ticas modificadoras da doença (DMARD), como nível, (particularmente os AINE que causam
os sais de ouro, a sulfassalazina e os antipalúdi- desconforto abdominal, anorexia, e mesmo úlcera
cos, entre outros fármacos, podem provocar toxi- péptica). Quando a diarreia e sinais de má-
dermias variadas. Quando a poliartrite é extensa, absorção estão presentes desde o início, as hipóte-
envolve as pequenas articulações das mãos (IFP ses diagnósticas de mucoviscidose e de doença
e/ou IFD), e está activa por longos períodos de celíaca devem ser excluídas.
tempo, podem resultar fenómenos de hiperpi- A hepatomegalia e a esplenomegalia são
1056 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
comuns (50-60%) na AIJ sistémica, e muito menos Os ANA são positivos em cerca de 15% das
comuns nas restantes formas. crianças saudáveis, não servindo, isoladamente,
As adenomegalias generalizadas (mais de 3 para diagnosticar nenhuma doença auto-imune. A
territórios ganglionares distintos) são também sua positividade mais alta (60-70%) é atingida nas
muito frequentes na forma sistémica, detectando- crianças com AIJ monoarticular associada a uveíte
se em cerca de 50% dos casos. Vale a pena chamar crónica.
a atenção para uma forma particular de adenome- Proceder a mais exames complementares só
galia, a adenite mesentérica, que se pode observar será justificado em casos de suspeita forte de ou-
também na AIJ sistémica e causa dor e distensão tras alternativas diagnósticas; tal poderá aconte-
abdominal, levando por vezes à laparotomia com cer, mas é raro, pois o diagnóstico de AIJ é muitas
o falso diagnóstico de apendicite aguda; tal é fácil vezes relativamente fácil de se admitir.
de compreender se nos lembrarmos de que estas O exame do líquido sinovial pode ser impor-
crianças podem ter também febre alta e leucoci- tante para tentar excluir o diagnóstico de artrite
tose com neutrofilia. séptica. Contudo, os resultados das culturas são
O envolvimento renal é relativamente raro, mas a frequentemente negativos (cerca de 40% dos
iatrogenia (AINE, sais de ouro, D-penicilamina) casos) mesmo na presença de artrite séptica; por-
pode provocar alterações a este nível. Os sais de tanto este exame complementar pode confirmar,
ouro e a D-penicilamina, cuja utilização actual é mas não excluir, essa hipótese diagnóstica.
escassa ou nula nestes doentes, foram já incrimina-
dos em casos de nefrotoxicidade, por vezes com sín- Exames histopatológicos
droma nefrótica reversível. Outro tipo de envolvi-
mento renal, raro mas grave, é a amiloidose, que Na maior parte dos casos de AIJ não se justifica
deve ser suspeitada quando, numa criança com AIJ efectuar uma biópsia da sinovial, método algo
sistémica ou poliarticular, com doença continua- cruento (mesmo quando a biópsia é feita com tro-
mente activa durante mais de 5 anos, surgem edema carte de Parker & Pearson, por punção, com uma
dos membros inferiores e proteinúria, acompan- pequena incisão cutânea), pois as alterações detec-
hados ou não de hipertensão arterial. A amiloidose é tadas são inespecíficas: infiltrado linfoplasmo-
uma complicação cada vez mais rara da AIJ, suscep- citário e espessamento da membrana sinovial
tível de ser tratada se identificada a tempo. compatível com a presença de sinovite crónica.
A única excepção será nos casos de monoar-
Exames laboratoriais trite, em que a suspeita de artrite infecciosa, no-
meadamente artrite tuberculosa, deve ser excluída
Sendo o diagnóstico de AIJ clínico, não existem cuidadosamente antes de se iniciar a terapêutica
alterações laboratoriais patognomónicas destas da AIJ. Do ponto de vista clínico as duas situações
doenças que, relembramos, são um grupo hetero- podem ser indistinguíveis e a presença de granu-
géneo de entidades clínicas. lomas tuberculóides com caseificação na mem-
As determinações laboratoriais de base, a brana sinovial pode ser decisiva para o diagnósti-
realizar em todos os casos de AIJ, incluem o co e tratamento adequados.
hemograma com plaquetas, as provas de função Outros exames histológicos poderão justificar-
renal e hepática, a velocidade de sedimentação se, como é o caso das biópsias: da gordura abdo-
globular, a proteína C reactiva doseada, os anti- minal ou rectal, para pesquisa de substância
corpos antinucleares (ANA), os factores reuma- amilóide, na suspeita de amiloidose secundária;
tóides IgM séricos (FRIgM: RA teste e reacção de ou da mucosa intestinal, na suspeita de artropatia
Waaler-Rose); e, nos casos de suspeita de espondi- da doença inflamatória crónica do intestino.
lartropatia, a pesquisa de HLA B27.
Os FRIgM séricos estão presentes em cerca de Exames imagiológicos
8% dos casos de AIJ, geralmente formas de início
ou evolução poliarticular, que clinicamente em A radiologia é um meio de diagnóstico largamente
nada se distinguem da AR do adulto. acessível e a que se recorre com frequência para
CAPÍTULO 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) 1057
auxiliar no diagnóstico das doenças do aparelho As alterações radiológicas mais comuns são: a
locomotor. A radiografia clássica permite identifi- osteopenia justa-articular; a opacificação das
car apenas alterações tardias devidas às AIJ, sendo partes moles adjacentes à articulação (indicativas
habitualmente normal nas primeiras semanas ou de derrame sinovial e/ou espessamento da mem-
meses de doença. Justifica-se a realização de radio- brana sinovial e/ou edema das partes moles peri-
grafia das articulações afectadas e contralaterais: articulares); o aumento de dimensões das epífises
sempre que existe artrite de causa desconhecida e adjacentes às articulações afectadas (como acon-
ainda sem diagnóstico bem estabelecido; para ava- tece nos casos em que há crescimento assimétrico
liação basal do estado da cartilagem (avaliado atra- dos membros); a fusão precoce das cartilagens de
vés da espessura da entrelinha articular); para crescimento (causadora de braquidactilia); e as
verificação da não existência de lesões ósseas ines- erosões ósseas adjacentes às articulações afec-
peradas – como poderia ser o caso de osteoma tadas, que são mais tardias e documentam a pre-
osteóide ou outro tumor ósseo; na suspeita de sença de sinovite crónica agressiva.
monoartrite, ou para pesquisa das linhas de osteó- Nos casos mais graves, e exigindo já vários
lise paralelas às cartilagens de crescimento que se meses ou anos de evolução da doença, surgem as
podem observar nas leucoses agudas. deformações das epífises e as destruições graves
Nos estádios precoces de investigação em caso da cartilagem articular, com redução da entrelinha
de AIJ, nomeadamente se subsistirem algumas articular, o que poderá exigir próteses articulares.
dúvidas relativamente à existência ou não de Tal sucede principalmente nas formas poliarticu-
artrite, o exame complementar mais rentável é a lares com FRIgM presentes no soro (tipo AR do
ecografia articular, que pode e deve ser efectuada adulto) e nas formas sistémicas com evolução
por quem tenha experiência específica de avalia- poliarticular extensa.
ção articular e de outras estruturas do aparelho O estudo radiológico da coluna cervical, para
locomotor. Tal acontece já em vários serviços de detecção de artrite das interapofisárias posteri-
Reumatologia do nosso País. Esta abordagem dia- ores e de subluxação atloido-odontoideia, exige
gnóstica, incruenta e sem radiações ionizantes, que sejam feitas radiografias da coluna cervical
pode auxiliar na confirmação da existência de em projecção de perfil neutro e em hiperflexão –
artrite, de tenossinovite, de quistos sinoviais e suas só com a hiperflexão é possível o diagnóstico da
eventuais roturas (como pode acontecer com os subluxação atloido-odontoideia, a qual se confir-
quistos de Baker do escavado popliteu do joelho). ma quando a distância entre a face posterior do
Nos estádios mais avançados da doença, arco anterior do atlas (C1) e a face anterior da apó-
poderão justificar-se a TAC, por exemplo: para fise odontoideia do axis (C2) é superior ou igual a
avaliar adequadamente o risco de compressão 3 mm.
neurológica nos casos de subluxação atloido- A radiografia clássica da bacia não é eficaz na
odontoideia; para avaliar a gravidade do envolvi- detecção de sacro-ileítes até aos 14-15 anos, idade
mento das articulações temporomandibulares; ou a partir da qual se dá a ossificação das vertentes
ainda para diagnosticar uma sacroileíte em ado- articulares (até então formadas por cartilagem)
lescente com suspeita de espondilartropatia. destas articulações.
A RMN só não é utilizada com maior frequên- A cintigrafia articular com Tecnécio (99mTc) ,
cia devido aos elevados custos e à necessidade de na nossa opinião, é um método usado excessiva e
sedar as crianças mais pequenas; com efeito, pode abusivamente nas crianças com suspeita de AIJ,
também cumprir, às vezes com vantagem, os mes- pois uma contagem articular cuidadosa por quem
mos objectivos da ecografia. a saiba e queira fazer, consegue obter informações
Com a evolução da cronicidade das lesões sobreponíveis sobre a existência ou não de infla-
osteoarticulares estabelecem-se, nos casos mais mação articular. Embora seja um método sensível,
graves, lesões osteoarticulares que devem ser tão sensível que um traumatismo articular recente
avaliadas adequadamente através da radiografia pode resultar em hipercaptação local, a cintigrafia
(anual ou bienal) das articulações com doença é muito inespecífica, não ajudando a diferenciar as
activa. várias formas de artrite – nomeadamente não per-
1058 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
mitindo o diagnóstico diferencial com artrite sép- QUADRO 8 – Objectivos do tratamento das AIJ
tica ou outras formas de artropatia da infância.
Pode, contudo, ser útil nos casos de suspeita de Iniciais e de curto prazo
osteoma osteóide ou outros tumores do osso, ou • Controlar a inflamação
para detectar a presença de sacroileíte, numa • Aliviar a dor articular
idade em que a radiografia não o permita, pelas • Preservar a função articular
razões atrás apontadas. • Prevenir as deformações articulares
De longo prazo
Critérios de referência • Prevenir a iatrogenia
a centros especializados • Proporcionar crescimento e desenvolvimento normais
• Promover a inserção social e dar apoio vocacional ade-
A suspeita diagnóstica de AIJ, ou a simples quado
manutenção de um quadro clínico de artrite com • Corrigir eventuais deformações articulares
uma duração de seis ou mais semanas, deve levar
ao encaminhamento do doente a uma consulta de
Reumatologia Pediátrica, por parte do médico Tendo o cuidado de não atemorizar indevida-
assistente (pediatra ou médico de família), sem mente os doentes e/ou os seus familiares, estas
que estes deixem de tomar importante parte acti- fontes transmitem conhecimentos válidos sobre as
va na equipa que presta cuidados. doenças reumáticas juvenis e seus tratamentos
mais utilizados; toda a informação foi elaborada
Tratamento por reumatologistas pediátricos de toda a Europa,
incluindo Portugal, (o da PRINTO) ou só de
Aspectos gerais Portugal (o da ANDAI).
O tratamento das AIJ, embora tenha especifici- Porque a educação do doente e a partilha de
dades que são próprias de cada doença (ver capí- experiências é importante para estes e outros
tulos seguintes), tem princípios comuns que se doentes e familiares com doenças crónicas, for-
devem à necessidade de reduzir ao mínimo os mou-se em Portugal, há pouco mais de 10 anos a
efeitos de uma artrite crónica neste grupo etário. ANDAI, associação de doentes acima indicada,
Os seus objectivos gerais básicos, a curto e a longo que tem desenvolvido as suas actividades com os
prazo, encontram-se expostos no Quadro 8. objectivos de: educar os doentes e seus familiares;
Para alcançar estes objectivos é indispensável a lhes proporcionar local físico para a troca de
participação da família, tão coesa e interessada experiências e esclarecimento de dúvidas; apoiar
quanto possível, com grande importância no os doentes junto ao poder político; e proporcionar
prognóstico, independentemente da gravidade da divulgação de conhecimentos sobre as doenças
doença, tal como acontece em qualquer doença reumáticas juvenis à família alargada destas cri-
crónica juvenil. anças, que inclui necessariamente os seus profes-
A educação para a saúde é nestes casos funda- sores.
mental; além do reumatologista pediátrico e do Um plano mínimo de exercícios deve ser acon-
pediatra ou do médico de família assistentes, a selhado, o qual dependerá da doença em questão
família deve ser orientada sobre a melhor forma e do tipo de envolvimento articular de cada
de obter informação adequada, caso a pretenda criança. Muitas vezes é também necessário pro-
procurar. Actualmente há dois sítios da internet, porcionar a estas crianças um repouso adequado,
com informação cuidadosa e bem preparada para que pode exigir, nos casos de AIJ poliarticular ou
apoiar os doentes com AIJ e seus familiares. São sistémica mais graves, a necessidade de pequeno
eles o da PRINTO – Pediatric Rheumatology repouso a meio do dia (uma sesta), tantas vezes
International Trials Organization: www.printo.it/ muito difícil de concretizar.
pediatric-rheumatology e o da ANDAI – Associa- Com a duração da doença torna-se necessário
ção Nacional de Doentes com Artrites Infantis e realçar junto dos doentes a necessidade de pre-
Juvenis: www.andai.sapo.pt. venção de atitudes viciosas das articulações, que
CAPÍTULO 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) 1059
podem gerar incapacidade e limitações articu- cada vez menos prescrito com esta indicação.
lares, não só indesejáveis como susceptíveis de A indometacina é particularmente eficaz para
prevenção. o tratamento da febre da AIJ sistémica, sendo tam-
bém uma das melhores opções para as artrites das
Anti-inflamatórios não esteróides (AINE) espondilartropatias, com ou sem envolvimento
O tratamento farmacológico destina-se a alcançar axial.
os objectivos acima enunciados de controlar a O naproxeno é também um anti-inflamatório
inflamação, controlar ou eliminar a dor articular e eficaz, mais para as queixas articulares que para o
preservar a função articular, para prevenir as de- tratamento da febre; partilha com a indometacina
formações articulares. Claro que embora os anti- o facto de necessitar apenas de 2 administrações
inflamatórios não esteróides (AINE) sejam fárma- diárias, o que é altamente conveniente para cri-
cos eficazes, não conseguem alcançar todos estes anças que necessitam de manter a sua escolari-
objectivos. dade normal.
Os mais utilizados em reumatologia pediátrica O meloxicam é outro dos fármacos que tem a
e as respectivas doses encontram-se indicados no grande vantagem de poder ser administrado ape-
Quadro 9. nas uma vez por dia, tão potente como os outros.
Os doentes e familiares devem ser informados Neste momento o único AINE que está
quanto aos objectivos deste tipo de abordagem disponível em Portugal sob forma de suspensão é o
terapêutica, que não é curativa e não constituirá ibuprofeno, o que constitui um determinante para
mais que uma tentativa de alívio sintomático, na a escolha deste eficaz fármaco para o tratamento da
maioria dos casos. Contudo, é possível que alguns dor articular nas crianças mais jovens com AIJ.
doentes, com formas sistémicas monocíclicas ou
com formas oligoarticulares ligeiras, possam ter o Analgésicos
seu problema resolvido apenas com esta terapêu- O paracetamol pode ser utilizado com vantagens,
tica. no controlo da dor articular e da febre, quando os
Não está provada cientificamente superiori- AINE não conseguem alcançar isoladamente estes
dade de um AINE em relação a outros, sendo que objectivos durante as 24 horas do dia. Esta opção
a maior parte destes fármacos começou a ser uti- terapêutica deve ser utilizada apenas em SOS e
lizada sem estudos clínicos em crianças com AIJ. não como terapêutica de rotina, devendo os
O ácido acetilsalicílico é o AINE usado há mais doentes e familiares ser instruídos no sentido de
tempo, tendo sido durante largos anos o único serem evitadas mais de 3 doses diárias.
aprovado nos EUA. Devido aos seus frequentes
efeitos secundários, mais numerosos nas doses anti- Corticosteróides
inflamatórias indicadas no Quadro 9, e ao facto de Por vezes, quer a febre da forma sistémica, quer as
serem necessárias doses de 4-4 horas para manter o queixas articulares, quer ainda a uveíte crónica,
seu efeito nos casos de doença activa, o mesmo é não cedem adequadamente aos AINE, o que leva
à utilização de corticosteróides com a finalidade
QUADRO 9 – Anti-Inflamatórios não esteróides de permitir uma vida de relação normal e a
(AINE) mais utilizados no trata- assiduidade escolar que se pretende.
mento das AIJ As indicações para a utilização de corticoste-
róides estão indicadas no Quadro 10, encontran-
AINE DOSE do-se mais limitadas numa época em que os
• Ibuprofeno 30-50mg/Kg/dia agentes biológicos se revelam muito eficazes na ter-
• Indometacina 2,5mg/Kg/dia apêutica das manifestações articulares e extra-
• Naproxeno 15-20mg/Kg/dia articulares da AIJ; nas manifestações extra-articu-
• Diclofenac 2,5mg/Kg/dia lares da AIJ sistémica serve de exemplo o antago-
• Meloxicam 0,125-0,25mg/Kg/dia nista do receptor da IL1 ou anakinra e o tocilizu-
• Ácido acetilsalicílico 80-120mg/kg/dia mab; e, nas manifestações articulares das AIJ
poliarticulares, o etanercept (ver adiante).
1060 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 10 – Indicações para a utilização de peso/dia), sendo que existe uma grande variação
corticosteróides em doentes individual na gravidade da supressão do cresci-
com AIJ mento e na dose mínima necessária para que tal
aconteça; com efeito, a administração em dias al-
1) AIJ Sistémica ternados diminui muito a importância deste efeito
• Febre resistente aos AINE adverso. Infelizmente, esta forma de adminis-
• Pericardite tração é pouco eficaz para as formas de doença
• Poliartrite resistente à restante terapêutica (incluindo activa e grave em que os corticóides podem ter
AINE + MTX + etanercept, anakinra ou tocilizumab) indicação.
2) Formas Poliarticulares O tratamento do hipocrescimento (anterior-
• Poliartrite activa resistente a AINE + MTX + etaner- mente chamado nanismo “cortisónico”) com hor-
cept mona de crescimento (GH) só deve ser considera-
3) Formas Oligoarticulares e/ou Espondilartropatias do se a dose de corticóide utilizada for inferior a
• Uveíte, aguda ou crónica, resistente à terapêutica local 0,35mg/Kg de peso/dia de prednisona ou equiva-
• Doença inflamatória crónica do intestino (inflamação lente, pois com doses desta ordem ou superiores a
intestinal) GH é ineficaz.
4) Qualquer forma de AIJ, se 1 a 3 articulações origi- O deflazacort é um corticosteróide que parece
nam impotência funcional* ter menor efeito cushingóide, menor efeito glico-
* Via intra-articular (sinovectomia química com hexacetonido de triancinolona) só após
corticóide, e também menor efeito supressor do
cuidadosa exclusão de artrite infecciosa, particularmente nos casos de monoartrite.
crescimento.
Metotrexato
O que verdadeiramente limita a utilização dos Actualmente o metotrexato (MTX), devido à sua
corticosteróides não é a sua eficácia, que é boa, elevada e rápida eficácia, associada a uma boa tole-
mas sim os seus efeitos secundários, por vezes rância a longo prazo, é considerado o medicamen-
tanto ou mais graves que a própria doença que to de escolha gold standard para o tratamento da AIJ
tratam. resistente aos AINE, qualquer que seja a forma da
Podemos dizer que, quando administrados doença (dose: 0,5 – 1 mg/kg/semana PO ou SC).
durante tempo prolongado por via sistémica, não O MTX revela-se útil para o tratamento da
existe dose segura para estes fármacos: corti- maior parte dos casos de AIJ, quer para a artrite
costeróide seguro, é apenas aquele que o doente em si, cuja remissão pode induzir, quer para algu-
não tomou! mas complicações da mesma, tal como a uveíte
Os efeitos secundários dos corticosteróides, crónica resistente à terapêutica tópica.
variados e graves, são bem conhecidos de todos os Antes do início desta terapêutica deve ser
médicos e incluem, entre outros: supressão do eixo fornecida aos pais dos doentes informação verbal e
hipotálamo-hipófise-suprarrenal, restrição do escrita sobre os potenciais efeitos adversos do fár-
crescimento, sinais cushingóides, estrias cutâneas maco e forma de os prevenir; tal inclui a admi-
violáceas, osteoporose, hipertensão, a redução da nistração, por via oral, de 10 mg semanais de ácido
tolerância à glicose e diabetes, redução da defesa fólico, em toma única também, com o mínimo de
contra as infecções, ulceração péptica, cataratas, 48 h de intervalo em relação à dose semanal de MTX.
glaucoma, psicose, miopatia e necrose asséptica do Este tipo de informação é particularmente im-
osso. portante se nos lembrarmos de que este fármaco
Parte destes efeitos secundários pode ser foi inicialmente produzido para tratar leucemias,
muito reduzida ou mesmo prevenida com uma em doses 20 a 40 vezes superiores às que se uti-
adequada restrição da ingestão de hidratos de car- lizam para tratar as AIJ.
bono. Como medidas preventivas da iatrogenia,
Relativamente à restrição do crescimento, ela antes do início do MTX há que garantir que o
pode ocorrer mesmo com doses muito baixas de doente esteja vacinado contra as hepatites A e B e
prednisolona ou equivalente, (~ 0,4mg/Kg de que não sofra de tuberculose.
CAPÍTULO 219 Artrites idiopáticas juvenis (AIJ) 1061
• Monitorização dos doentes sob terapêutica – História recente (< 5 anos) de neoplasia
biológica – Vacinas vivas:
Os doentes devem ser avaliados com uma fre- Não devem ser administradas durante o trata-
quência mínima trimestral. Da avaliação deve mento com agentes biológicos; idealmente a
constar um conjunto de variáveis que permitam sua administração deve ser efectuada até três
determinar a eficácia do tratamento: meses antes do inicio do agente biológico
1 – Avaliação global pelo doente/pais (Escala
Visual Analógica de 0-10) • Critérios para suspensão temporária ou para
2 – Avaliação global pelo médico (Escala Visual adiamento do início da terapêutica biológica
Analógica de 0-10) – Infecção de novo
3 – Child Health Assessment Questionnaire – Cirurgia major programada
(CHAQ, utilizado na sua versão portuguesa)
4 – Número de articulações activas (articu- De salientar que, pelo seu elevado preço e po-
lações tumefactas, excluindo tumefacção óssea, ou tenciais efeitos adversos, os agentes biológicos,
com limitação da mobilidade associada a dor, embora muito eficazes, devem ser iniciados com
calor ou ambas) precaução em doentes com AIJ; a sua prescrição
5 – Número de articulações com limitação da deverá ser da responsabilidade de reumatologista
mobilidade pediátrico com particular experiência no tratamen-
6 – Velocidade de sedimentação to da AIJ, seguindo os consensos do Grupo de
Trabalho de Reumatologia Pediátrica da So-ciedade
• Critérios para manutenção da terapêutica Portuguesa de Reumatologia, acima indicados. Os
biológica doentes devem ser seguidos cuidadosamente,
Considera-se critério de resposta a melhoria de, devendo a continuidade da prescrição e o forneci-
pelo menos, 30% em 3 destas 6 variáveis, sem mento do agente biológico ser condicionados à
agravamento superior a 30% em mais do que uma adesão estrita a este plano de avaliação continuada.
das restantes variáveis, em duas avaliações sepa-
radas por 3 meses, tendo como base de compara- Transplante autólogo de medula óssea
ção a avaliação efectuada antes do início do O transplante autólogo de medula óssea foi ini-
agente biológico. ciado na era “pré agentes biológicos”, como méto-
do experimental (agressivo, caro e com muitos
• Actuação na ausência de resposta efeitos adversos) de tratar doenças auto-imunes
Se não ocorrer melhoria em 2 avaliações sucessivas, graves que não respondiam às terapêuticas
de acordo com opinião do especialista, deve sus- convencionais.
pender-se o fármaco biológico e considerar outras Uma revisão recente desta abordagem tera-
alternativas terapêuticas (doente não respondente). pêutica por Kleer IM et al, colectou todos os casos
de AIJ tratados desta forma no espaço europeu,
NB. Antes do início da terapêutica biológica deve tendo revelado que, um ano após a intervenção,
ser efectuado um rastreio de tuberculose (capítulo 53% (18/34) dos doentes estavam em remissão e
281). A terapêutica biológica pode ser iniciada 1 mês 21% (7/34) tinham evidenciado resistência à tera-
após o início da terapêutica antituberculosa nos casos pêutica. Não são resultados particularmente bri-
de tuberculose latente. lhantes, atendendo à morbilidade e ao custo desta
intervenção. A mortalidade de 15% (5/34) aos 12
• Contra-indicações absolutas da terapêutica meses é o resultado que mais levou a refrear muito
biológica o entusiasmo relativo a esta abordagem terapêutica.
– Existência de infecção activa, nomeadamente
tuberculose activa Agentes físicos e terapêutica ocupacional
– Insuficiência cardíaca
– Doenças desmielinizantes A terapêutica com agentes físicos e a terapêutica
– Gravidez ocupacional têm por objectivos contribuir para re-
1064 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
duzir a dor articular, manter ou recuperar a sinovectomia química com hexacetonido de trian-
função articular, e prevenir as deformações articu- cinolona. (Quadro 10)
lares e a incapacidade daí resultante. No adolescente ou adulto jovem, em que pode
Deve sempre ter-se em consideração que a cri- haver lesões articulares limitativas ao nível dos
ança deve ser integrada no seu ambiente (familiar, joelhos, das ancas, dos ombros ou dos cotovelos,
social, escolar) motivo pelo qual (a não ser em por exemplo, as próteses articulares constituem
casos excepcionalmente graves e pontuais) estas uma solução que pode contribuir para melhorar
técnicas devem ser ensinadas ao doente e/ou aos significativamente a qualidade de vida e a inte-
pais de forma a poderem ser efectuadas no gração social e profissional dos doentes.
domicílio, sem que contribuam para aumentar o A cirurgia oftalmológica, ao resolver os proble-
absentismo escolar. mas devidos às principais complicações da uveíte
Um período de descanso à tarde, após o re- crónica – queratite em banda, cataratas e glauco-
gresso da escola, pode ser útil. Contudo, a maior ma – pode ser de importância fundamental na
parte das crianças limitará a sua actividade física, preservação ou recuperação da acuidade visual
de acordo com a incapacidade. Exercícios físicos nas crianças ou adolescentes com AIJ oligoarticu-
regulares, tais como andar de triciclo ou de bici- lar com anticorpos antinucleares presentes no soro
cleta, devem ser encorajados. e uveíte crónica. (Partes XXV e XXVI)
Um plano de exercícios, para fazer no domi-
cílio, adequado ao tipo de compromisso articular GLOSSÁRIO
da criança, deve ser ensinado aos pais. A este pro- Oligoartrite “estendida” > Nos primeiros 6 meses de doença há ape-
pósito, a ANDAI, a Associação Nacional de Doen- nas 1 a 4 articulações atingidas e posteriormente passa a haver com-
tes com Artrites Infantis e Juvenis, tem um guia promisso de 5 ou mais articulações.
para pais que é distribuído gratuitamente aos seus Poliartrite extensa > A que atinge um número elevado de articulações.
sócios, incluindo um plano geral de exercícios que
podem ser seleccionados. BIBLIOGRAFIA
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CAPÍTULO 220 Doenças reumáticas juvenis englobadas no grupo das artrites idiopáticas juvenis 1067
Manifestações clínicas
2. ESPONDILITE ANQUILOSANTE E
OUTRAS ESPONDILARTROPATIAS
JUVENIS, INCLUINDO AS ESPONDI-
LARTROPATIAS INDIFERENCIADAS
Manifestações clínicas
ropénica em relação com inflamação crónica), e/ou dos pés, de forma assimétrica; e haver dac-
trombocitose ligeira, velocidade de sedimentação tilite (“dedos em salsicha”) e entesite.
elevada, proteína C reactiva positiva, e presença Na maior parte dos casos (60%) a artrite precede
de HLA B27, em especial nos casos raros de a psoríase, por vezes de anos ou mesmo décadas;
evolução de tipo espondilítico. mas por vezes (10%) as duas manifestações surgem
A pesquisa de sangue oculto nas fezes é fre- simultaneamente e, nos restantes casos (30%), a
quentemente positiva. O anticorpo anticitoplasma psoríase precede o aparecimento da artrite.
dos neutrófilos de destribuição perinuclear
(ANCA-p) pode ser positivo e orientar a investi- Exames laboratoriais
gação diagnóstica.
Do ponto de vista laboratorial não existem acha-
Como suspeitar? dos específicos da artrite psoriásica juvenil: estão
geralmente presentes anemia moderada,
• Oligoartrite periférica, com ou sem entesite; trombocitose ligeira, velocidade de sedimentação
• Emagrecimento, ou falta de progressão ponderal, elevada, proteína C reactiva positiva, típicos da
desproporcionada com a gravidade da artrite; inflamação crónica. Os anticorpos antinucleares
• Eritema nodoso ou pioderma gangrenoso; são positivos em 40-50% dos casos. Um número
• Diarreia crónica ou episódios curtos e frequen- apreciável de doentes (25%) pode ter os mar-
tes de diarreia; cadores inflamatórios de fase aguda (VS e proteí-
• Uveíte anterior aguda, associada a diarreia. na C reactiva) com valores normais, o que não
deve levar à exclusão do diagnóstico clínico de
Tratamento artrite.
Manifestações clínicas
Exames laboratariais
Como suspeitar?
221
liar (FMF), síndroma Hiper-IgD (HIDS), síndro-
ma periódica associada ao receptor do TNF
(TRAPS), síndroma de urticária familiar associada
ao frio, síndroma de Muckle-Wells (MWS), síndro-
ma CINCA (crónica infantil neurológica cutânea e
articular) e síndroma PAPA (artrite piogénica, pio-
SÍNDROMAS dermite gangrenosa, acne).
Apesar de apresentarem um curso semelhante
AUTO-INFLAMATÓRIAS com episódios recorrentes de inflamação sistémi-
ca, distinguem-se entre si por variações na clínica,
Sónia Melo Gomes, Marta Conde e J. A. Melo Gomes por mutações genéticas específicas, e pelo modo
de transmissão hereditária, indicados no Quadro
1. As opções terapêuticas para cada uma destas
síndromas também são diferentes.
Sistematização O diagnóstico diferencial é feito através de um
exame clínico exaustivo, seguido da análise genéti-
As síndromas auto-inflamatórias são um conjunto ca específica considerando as hipóteses admitidas.
de patologias caracterizadas por episódios recor- No que diz respeito a outros grupos nosológicos, é
rentes de febre e inflamação localizada ou sistémi- importante excluir a patologia inflamatória crónica, neo-
ca, sem intervenção de agentes infecciosos, meca- plasia e infecção. As manifestações clínicas, alterações
nismos auto-imunes ou linfócitos T auto-reactivos. genéticas e a súmula breve da terapêutica destas
Após a classificação inicial que englobava apenas síndromas encontram-se indicadas no Quadro 2.
síndromas auto-inflamatórias de transmissão
familiar, várias outras patologias foram entretanto Febre mediterrânica familiar (FMF)
incluídas sob a mesma denominação auto-infla-
matória designadamente outras doenças de trans- A FMF é uma doença de transmissão autossómica
missão mendeliana como a síndroma de Blau, ou recessiva, frequente em populações da bacia
de transmissão complexa como a doença de Behçet. mediterrânica, nomeadamente judeus sefarditas,
Uma classificação possível é apresentada no turcos e descendentes de árabes. O gene envolvi-
Quadro 1. do, MEFV, codifica uma proteína denominada
Neste capítulo é dada ênfase a certas entidades pirina ou marenostrina.
que fazem parte das síndromas hereditárias e não Esta doença é caracterizada por episódios
hereditárias. recorrentes de febre e serosite (peritonite, pleurite
ou artrite) de início súbito e curta duração, entre 6
horas a 4 dias.
1. SÍNDROMAS As manifestações mais frequentes são dor
AUTO-INFLAMATÓRIAS abdominal, geralmente muito intensa e acompa-
HEREDITÁRIAS nhada de prostração, com ou sem sinais de peri-
tonite franca (sendo frequente a dor à descom-
As síndromas auto-inflamatórias hereditárias pressão), artralgias, artrite, e dor torácica como
compreendem um grupo de doenças caracteri- manifestação de pleurite. As alterações cutâneas
zadas por episódios recorrentes de febre e infla- são características: exantema erisipelóide nos pés
mação sistémica, na ausência de causas infec- e zona pré-tibial.
ciosas, neoplásicas ou auto-imunes; as mesmas Os resultados dos exames laboratoriais reve-
estão relacionadas com mutações de genes impli- lam leucocitose, aumento da proteíca C reactiva,
cados na resposta inflamatória e na apoptose. do fibrinogénio e da proteína amilóide A sérica.
Mutações em cinco genes diferentes dão O tratamento com colchicina é eficaz na pre-
origem a síndromas auto-inflamatórias hereditárias venção das crises, diminuindo a sua frequência e
actualmente descritas: febre mediterrânica fami- também a probabilidade de aparecimento de
CAPÍTULO 221 Síndromas auto-inflamatórias 1075
amiloidose, que é a complicação mais grave e te- nante. Os dados clínicos mais úteis para distinguir
mível desta doença. O diagnóstico precoce e a esta síndroma das outras febres periódicas são o
adesão à terapêutica com colchicina são os aspec- carácter prolongado dos episódios febris que
tos fundamentais do tratamento da FMF. podem chegar a ter várias semanas de duração, a
conjuntivite, e as mialgias localizadas. Outros
TRAPS – Síndroma periódica sinais e sintomas frequentes são a dor abdominal,
associada ao receptor do TNF o exantema macular eritematoso com placas de
(TNF Receptor Associated edema e as artralgias.
Periodic Syndrome) A avaliação laboratorial na crise revela neutro-
filia, aumento da PCR e estimulação policlonal de
É causada por mutações no gene TNFRSF1A e imunoglobulinas, em especial IgA e IgD.
apresenta uma transmissão autossómica domi- O tratamento consiste na administração de
1076 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Abreviaturas: Linf – Linfadenopatia; Fact desenc – Factores desencadeantes; NS – neuro-sensorial; IGIV – imunoglobulina humana intravenosa; CyA – ciclosporina A
corticóides em altas doses, podendo ser útil o A associação do quadro clínico característico a
etanercept. duas determinações séricas de IgD superiores a
100U/ml com um mês de intervalo é sugestiva do
Síndroma Hiper-IgD diagnóstico.
(HIDS – Hyper IgD Syndrome) Até à data não existe tratamento específico
para a HIDS. Estão descritos casos pontuais de
O gene implicado é o da mevalonatocinase, enzi- melhoria com a administração de corticóides,
ma que nestes doentes apresenta uma actividade imunoglobulina humana endovenosa em doses
de 5 a 15% do normal. O modo de transmissão é altas, colchicina e ciclosporina A. A simvastatina
autossómico recessivo. Esta doença caracteriza-se poderá diminuir a duração dos episódios febris
por episódios de febre recorrente que geralmente sem efeito na redução do número dos mesmos.
se iniciam no primeiro ano de vida, com cerca de
4-6 dias de duração, aos quais se segue uma Síndromas periódicas associadas
diminuição gradual da febre. Os episódios febris à criopirina
tendem a recorrer com intervalos de 4-6 semanas
e podem ser desencadeados por vacinação, trau- As outras 3 síndromas – urticária familiar pelo frio
matismo mínimo, cirurgia ou estresse. (UFF), síndroma de Muckle-Wells (MWS) e sín-
A clínica engloba adenopatias cervicais, dor droma CINCA – compoem o grupo das síndromas
abdominal, vómitos e diarreia. As manifestações cu- periódicas associadas à criopirina. Estas síndromas
tâneas e articulares (artralgias ou artrites de grandes resultam de várias mutações diferentes no gene
articulações, exantema máculo-papular eritematoso CIAS1 (Cold-Induced Autoinflammatory Syndrome 1)
ou púrpura petequial), quando presentes, desapare- que dão origem a anomalias na criopirina, com
cem lentamente após a resolução da crise. transmissão autossómica dominante.
CAPÍTULO 221 Síndromas auto-inflamatórias 1077
2. SÍNDROMAS
AUTO-INFLAMATÓRIAS
NÃO HEREDITÁRIAS
da pela apresentação periódica das crises patogénicos, de acordo com o artigo original de
dolorosas com ulterior remissão. Embora a maior- George Frederic Still. Os ANA e FR são geralmen-
ia dos doentes apresente várias lesões simultâneas, te negativos; por outro lado, não tem sido consis-
apenas uma é sintomática em cada crise. Foi tentemente demonstrada a presença de outros
descrita a associação de CRMO a outras patologias auto-anticorpos ou células T auto-reactivas. A as-
como doença inflamatória do intestino, psoríase, sociação genética a polimorfismos dos genes das
pustulose palmoplantar e síndroma de Sweet. citocinas inflamatórias IL-6, TNF-α e MIF (macro-
A suspeita do diagnóstico é clínica. A velocidade phage migration inibition factor) evidenciam de
de sedimentação está ligeiramente elevada (mas forma indirecta a possibilidade de inclusão da AIJ-
menos que na osteomielite infecciosa) e o hemogra- S nas síndromas auto-inflamatórias. Alguns des-
ma é habitualmente normal. As alterações radiográ- tes polimorfismos têm significado funcional já que
ficas dependem da fase da doença, sendo sobre- estão associados a maior expressão das citocinas
poníveis às encontradas na osteomielite: lesões oste- inflamatórias. A boa resposta ao anakinra, à seme-
olíticas no início da doença que gradualmente são lhança de outras síndromas auto-inflamatórias
rodeadas por esclerose marginal com alargamento (por exemplo síndroma CINCA), poderá bem ser
do osso afectado. A RMN e a TAC podem propor- outro dado a favor da sua natureza auto-infla-
cionar informação relativamente às articulações e matória.
tecidos moles envolventes, sendo os achados ósseos A clínica da AIJ-S, terapêutica e prognóstico
sobreponíveis aos da osteomielite infecciosa. A estão descritos nos capítulos 219 e 220.
cintigrafia óssea é útil para a detecção de outros
ossos/zonas afectadas assintomáticos. (Figura 3) BIBLIOGRAFIA
Os achados histopatológicos não são específi- Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
cos; no entanto, a biópsia óssea é necessária para Dierselhuis MP, Frenkel J. Anakinra for flares of of pyogenic
excluir processo infeccioso (associada a culturas arthritis in PAPA syndrome. Rheumatology 2005; 44: 406-
para bactérias aeróbias e anaeróbias, fungos e 408
micobacterias típicas e atípicas), bem como proces- Drenth JP, Van der Meer JW. Hereditary periodic fever. NEJM
so neoplásico. 2001; 345: 1748-1757
A terapêutica de eleição inclui os anti-infla- Gideon A, Holthusen W, Masel LF et al. Subacute and chronic
matórios em doses anti-inflamatórias adequadas, symmetrical osteomyelitis. Ann Radiol 1972; 15: 329-342
com boa resposta na grande maioria dos doentes. Goldbach-Mansky R, Dailey NJ, Canna SW, et al. Neonatal
Observações não controladas apontam também onset multisystem inflammatory disease responsive to
para o papel favorável da antibioticoterapia cróni- interleukin – 1β inhibition. NEJM 2006; 355: 581-592
ca em dose baixa. Outros tratamentos utilizados Guillén Martín S, et al. Osteomielitis crónica multifocal recur-
são os corticosteróides e o bloqueante do TNFα, rente. Annales de Pediatria 2005; 62: 573-578
infliximab, com boa resposta, à semelhança de Handrick W, Hörmann D, Voppmann A, Schille R, Reichardt P,
alguns doentes com síndroma SAPHO. Tróbs RB, et al. Chronic recurrent multifocal osteomyelitis-
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Incluir a AIJ-S nas síndromas auto-inflamatórias Kliegman RM, Stanton BF, et al.. Nelson Textbook of Pediatrics.
não é tão estranho quanto possa parecer. Clinica- Philadelphia: Saunders Elsevier, 2011
mente a AIJ-S é passível de confusão com as sín- Long SS. Syndrome of period fever, aphtous stomatitis,
dromas HIDS, TRAPS, e PFAPA, especialmente na pharyngitis and adenitis (PFAPA)-what it isn’t; what it is? J
sua forma cíclica e quando os sintomas sistémicos Pediatr 1999; 135: 1-5
precedem a artrite. Por outro lado, a AIJ-S pode Marshall Gs, Edwards KM, Butler J, Lawton AR. Syndrome of
ser considerada uma entidade clínica única, dife- period fever, pharyngitis and aphtous stomatitis. J Pediatr
rente mesmo das restantes AIJ na sua forma clíni- 1987; 110: 43-46
ca típica, o que sugere diferentes mecanismos etio- McDermott M, Frenkel J. Hereditary periodic fever syndromes.
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disrupt binding to PTP PEST and are responsible for PAPA SNC, rins, articulações e sistema hematopoiético.
syndrome, an autoinflammatory disorder. Human Mol Gen Com manifestações clínicas e laboratoriais
2002; 11: 961-969 semelhantes às observadas na idade adulta e
evolução imprevisível, a criança evidencia habi-
tualmente uma forma de início mais grave, e com
compromisso de órgão também mais frequente e
mais grave que no adulto.
Os estudos epidemiológicos têm demonstrado
diferentes incidências da doença nas diferentes
populações, havendo uma influência étnica.
Assim, as crianças negras e índio-americanas têm
uma maior incidência da doença. A gravidade
também é diferente. As crianças negras têm uma
maior prevalência de compromisso renal, neuro-
psiquiátrico, e cardíaco.
Nos últimos anos o prognóstico da doença
melhorou. A taxa de sobrevivência é actualmente
~ 95% ao fim de 11 anos de seguimento nalgumas
séries. O diagnóstico precoce, a intervenção tera-
pêutica atempada, a utilização de novos trata-
mentos, assim como o controlo adequado das
complicações, contribuiram para a maior sobre-
vivência.
A abordagem terapêutica não inclui apenas a
lesão do órgão envolvido pelo LES; com efeito,
existem muitos outros aspectos que necessitam de
especial atenção, nomeadamente o impacte nega-
tivo uma vez que se trata de doença crónica num
organismo em desenvolvimento.
1082 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
1. Sistémicas ou gerais
A febre é um sintoma frequente, quer na apresen-
tação da doença, quer durante os surtos de agudiza-
FIG. 2
ção; pode ser intermitente ou contínua, e de grau
variável. A fadiga é extremamente comum, assim Alopécia difusa em adolescente com LES.
como a perda de peso. Estes sintomas sistémicos ou
constitucionais estão geralmente associados às ou- A
tras manifestações da doença.
2. Mucocutâneas
A manifestação mucocutânea mais característica
do LES é o eritema malar em asa de borboleta.
Esta lesão cutânea eritematosa localiza-se na
região malar e dorso do nariz, poupando as pre-
gas nasolabiais. (Figura 1).
Mas outras manifestações também podem
ocorrer, como as aftas orais indolores, o enantema
do palato, a fotossensibilidade cutânea, a alopécia, B
o fenómeno de Raynaud (Figuras 2 e 3), o eritema
palmar e as lesões de vasculite dos pequenos vasos
localizadas nas polpas digitais (púrpura palpável);
ou, nas formas mais graves, as ulcerações. O lúpus
discóide observa-se mais raramente que no adulto,
assim como o lúpus cutâneo subagudo. (Quadro 5)
FIG. 3
Fenómeno de Raynaud observado nos pés de criança de 10
anos com LES.
lo-esqueléticas. A artrite é, na sua forma caracte- têm cardiopatia isquémica assintomática. Os fac-
rística, uma poliartrite simétrica que evolui sem tores de risco de desenvolvimento de aterosclerose
deformações ou erosões. As grandes e as peque- precoce são os descritos no Quadro 3.
nas articulações podem ser afectadas. A pericardite é a manifestação mais frequente e
A mialgia e a fraqueza muscular proximal raramente pode complicar-se por tamponamento
podem também ocorrer. A miosite, quando pre- cardíaco. No entanto, todas as estruturas cardíacas
sente, associa-se a vasculite cutânea e a lesão de podem ser afectadas; ou seja poderá surgir qual-
órgão. quer dos seguintes quadros clínicos: miocardite,
A necrose asséptica ocorre preferencialmente cardiomiopatia, endocardite verrugosa e altera-
nas articulações de carga como a coxofemoral ou o ções da condução. Alguns autores descreveram
joelho, e tem sido descrita como uma consequên- uma associação entre detecção sérica de anti-
cia do tratamento com corticosteróides ou secun- Ro/SSA e anti-La/SSB e compromisso cardíaco.
dária à doença. (ver adiante)
4. Cardíacas 5. Pulmonares
O compromisso cardíaco constitui uma importante O pulmão está afectado em percentagem variável
causa de morbilidade e mortalidade no LES; estu- (5-77%) das crianças, sendo as manifestações
dos demonstram que cerca de 16% das crianças semelhantes às observadas no adulto. A pleurite é a
1086 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 3 – Factores de risco de doença car- proteinúria e/ou hematúria microscópica persis-
diovascular precoce no LES tente. A hipertensão arterial tem sido descrita em
40% dos doentes, verificando-se, em cerca de
• Níveis séricos elevados de homocisteína metade, deterioração da função renal.
• Hiperinsulinémia Os factores associados às formas mais graves
• Hipertensão arterial de lesão renal são: níveis de proteinúria, hema-
• Proteinúria nefrótica túria, hipoalbuminémia, valor sérico elevado de
• Dislipidémia creatinina e número de fármacos usados para con-
• Vasculite arterial trolo da pressão arterial (Quadro 4).
• Anticorpos antifosfolípidos A biópsia renal é útil na orientação do
• Anticoagulante lúpico prognóstico e da terapêutica. De acordo com a
• Obesidade induzida pelos esteróides Organização Mundial de Saúde utiliza-se a
seguinte classificação histológica para a nefrite
lúpica: classe I – normal; classe II – proliferação
mais comum; todavia a pneumonite intersticial mesangial; classe III – glomerulonefrite focal seg-
aguda ou crónica, a hemorragia pulmonar, o trom- mentar; classe IV – glomerulonefrite proliferativa
boembolismo pulmonar, a disfunção diafragmática difusa; classe V – glomerulonefrite membranosa;
e a hipertensão arterial pulmonar também têm sido classe VI – glomerulosclerose.
descritas nas crianças. A tríade clássica (hemoptis- As classes III e IV traduzem as lesões histoló-
es, diminuição súbita da hemoglobina e infiltrado gicas mais frequentes, ocorrendo em cerca de 65%
pulmonar característico da hemorragia pulmonar) dos doentes, enquanto as classes I e II têm menor
não está sempre presente. frequência (25%). A classe V é mais rara na cri-
A síndroma do pulmão encarcerado é rara na ança, descrita em aproximadamente 9% dos casos.
criança, traduzindo-se pela instalação súbita de A biópsia renal fornece-nos outras informações
dispneia relacionável com restrição dos movimen- úteis para o prognóstico, nomeadamente as altera-
tos diafragmáticos. ções tubulointersticias em associação com as uti-
A alteração das provas de função respiratória lizadas na determinação do índice de actividade
tem sido descrita em crianças assintomáticas, o ou cronicidade. (capítulos 156 e 158)
que sugere a presença de doença subclínica. A
diminuição da difusão do monóxido de carbono é 7. Neuropsíquicas
a anomalia mais frequentemente detectada, O compromisso do sistema nervoso central,
descrita em cerca de 26% dos casos. A TAC de alta comum na criança com LES, comporta elevada
resolução é um método muito sensível para o taxa de morbilidade e mortalidade. A sua fre-
diagnóstico precoce de doença intersticial. quência varia entre 20% e 60% dos doentes, de
Takada e colaboradores descreveram em 2005 acordo com as diferentes séries. O seu início é pre-
o primeiro caso de BOOP no LES de início juvenil
que respondeu a doses elevadas de corticoste- QUADRO 4 – Factores de prognóstico da nefrite
róides (ver Abreviaturas). lúpica na criança
coce e, por vezes, não se acompanha doutras ma- A leucopénia e a linfopénia ocorrem em cerca
nifestações de exacerbação do LES. de metade das crianças com LES.
As convulsões são as manifestações mais fre- Os anticorpos antifosfolípidos estão presentes
quentes; todavia o espectro é vasto e inclui, em cerca de 70% dos casos e existe correlação
nomeadamente, cefaleia, psicose, depressão, neu- entre o respectivo teor e o desenvolvimento de
ropatia periférica, doença cerebrovascular, distúr- fenómenos trombóticos. (ver alínea 7)
bios cognitivos, coreia, meningite asséptica ou A síndroma de anticorpos antifosfolípidos
mielite transversa. catastrófica é uma complicação rara: caracteriza-
A cefaleia persistente e intensa não cedendo à se por fenómenos de trombose em múltiplos
terapêutica analgésica usual deverá ser considera- órgãos dando origem a um quadro de falência
da no contexto do LES. multiórgão.
Os anticorpos antifosfolípidos são identifica-
dos em cerca de 70% das crianças com manifes- 9. Gastrintestinais e hepáticas
tações neuropsiquiátricas do LES. Todavia, a asso- A dor abdominal pode resultar da inflamação da
ciação entre anticorpos antifosfolípidos e manifes- membrana serosa peritoneal, pancreatite, vas-
tações não-trombóticas do neurolúpus não tem culite mesentérica ou enterite com concomitante
sido confirmada em diversas séries. A única corre- má-absorção.
lação com significado estatístico é a descrita na A pancreatite também pode ocorrer no contex-
doença cerebrovascular. to do tratamento com corticosteróides ou azatio-
O compromisso do sistema nervoso central é prina.
por vezes difícil de diagnosticar; com efeito, muitas As alterações da função hepática são detec-
das suas manifestações são subtis e poderão dever- tadas em cerca de 25% das crianças e associadas
se a outras causas, tais como: infecção, efeitos dos por vezes a hepatomegália no contexto do proces-
corticosteróides, ou dificuldade psíquica na adap- so inflamatório. Mais raramente poderá surgir
tação à doença crónica. A punção lombar, a quadro de hepatite lúpica.
ressonância magnética nuclear e os testes neu- A esplenomegalia, assim com as adenome-
rocognitivos são úteis na orientação diagnóstica. galias, ocorrem em cerca de 25% dos casos; tam-
bém reflectem as alterações inflamatórias genera-
8. Hematológicas lizadas, características desta doença.
Os distúrbios hematológicos são comuns no LES
pediátrico. A anemia normocrómica normocítica, 10. Outras manifestações
característica de doença inflamatória crónica, é a As alterações da função tiroideia ocorrem no LES
mais frequente; quando persiste durante longos pediátrico, sendo o hipotiroidismo a alteração
períodos pode tornar-se microcítica e hipocrómi- mais frequentemente detectada. Cerca de 20% dos
ca. A hemólise é uma causa menos frequente de doentes têm anticorpos antitiroideus e, mais rara-
anemia; todavia a prova de Coombs pode ser mente, tiroidite.
positiva em 30 a 40% dos doentes. A tromboci- Atraso na puberdade e irregularidade mens-
topénia observa-se em cerca de 30% das crianças e trual são frequentes e relacionam-se com a activi-
é a forma de apresentação da doença em 15% dos dade da doença; todavia, também podem ser
casos. A síndroma de Evans poderá ocorrer no secundários ao tratamento (por exemplo, com cor-
contexto de LES, como forma de apresentação ou ticosteróides).
no decurso da doença.
A presença de púrpura trombocitopénica Exames complementares
trombótica, caracterizada por anemia hemolítica
microangiopática, distúrbios neurológicos e re- A principal marca do lúpus é a formaçção de auto-
nais, impõe a exclusão de LES. Alguns autores anticorpos contra antigénios nucleares (ADN,
sugerem que a púrpura trombocitopénica trom- ribossomas), proteínas ribonucleares citoplásmicas
bótica é mais comum no LES iniciado em idade (Ro, La) e nucleares (Sm), plaquetas, factores de
pediátrica. coagulação, Ig, eritrócitos, leucócitos, etc..
1088 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
C3 e C4, e do complemento hemolítico total (CH50). Nota: A presença de 4 (quatro) ou mais critérios legitima o diagnóstico de LES; a sensibilidade e especi-
ficidade deste método é respectivamente 96% e 100%
Reitera-se a importância doutros (exames ima-
giológicos, laboratoriais, ECG, ecocardiograma,
etc.) face ao contexto clínico discriminado nas são dos mesmos. O Quadro 5 sintetiza os critérios
alíneas anteriores de 1. a 10. de diagnóstico classicamente aceites para o LES.
O LES deve ser considerado no diagnóstico dife- O tratamento do LES iniciado em idade pediátrica
rencial com muitas situações clínicas, desde sín- é semelhante ao do adulto, todavia com algumas
droma febril indeterminada a artralgias, anemia e particularidades relativas ao grupo etário (doença
nefrite. O diagnóstico diferencial da sintomatolo- crónica que se inicia num período de desenvolvi-
gia relaciona-se com o órgão afectado; citam-se mento físico e emocional).
designadamente GN pós- estreptocócica, FR, ane- A criança e a família devem ser devidamente
mia hemolítica idiopática, PTI, leucemia, endo- informadas sobre a doença e o seu tratamento. As
cardite infecciosa. O quadro clínico inicial poderá decisões terapêuticas devem ser tomadas em con-
constar apenas de parotidite, dor abdominal, junto e sempre com o objectivo de permitir uma
mielite transversa ou vertigem. evolução física e emocional plena para que criança
Recorda-se, a propósito, que os ANA podem possa ser um adulto independente.
ser detectados noutras situações para além do LES A exposição solar deve ser evitada, usando sem-
e lúpus induzido por fármacos: AJ, dermato- pre protector solar e roupas adequadas de forma a
miosite juvenil, vasculites, esclerodermia, mono- reduzir ao mínimo a área corporal exposta.
nucleose infecciosa e hepatite crónica activa. As crianças com fenómeno de Raynaud benefi-
Deverá ter-se em conta ter-se em conta que cer- ciam de medidas protectoras para o frio, blo-
tos fármacos (ver Etiopatogénese) poderão origi- queantes dos canais de cálcio ou outros vasodi-
nar quadro simile LES, que regredirá após suspen- latadores.
CAPÍTULO 222 Lúpus eritematoso sistémico infantil e juvenil 1089
Os corticosteróides utilizados em doses va- administrados ambos por via endovenosa, foi uti-
riáveis são a base do tratamento, dependendo do lizada com sucesso nos casos de nefrite refractária
órgão afectado. Os corticosteróides têm impor- a outras terapêuticas.
tantes efeitos adversos que podem afectar negati- Nos casos de citopénias renitentes à corticote-
vamente o desenvolvimento físico e psíquico da rapia, o emprego de IGIV ou IGSC é uma alterna-
criança. Eles são responsáveis por inibição do tiva (Capítulo 223). Mais recentemente a terapêu-
crescimento linear, atraso da puberdade, fácies tica anti-CD20 com rituximab nos casos de nefrite
cushingóide, obesidade do tronco, hirsutismo, lúpica ou citopénia grave é outra opção eficaz.
acne e estrias cutâneas. Existem ainda outros O transplante autólogo de células estaminais é
efeitos adversos igualmente graves, como por também utilizado nos casos de extrema gravidade
exemplo cataratas, osteoporose, hipertensão arte- e refractários ao tratamento convencional.
rial, hiperglicémia, dislipidémia e miopatia. Na criança com LES está indicado completar o
Para reduzir estes efeitos secundários devem programa de vacinação (excepto vacinas com
usar-se os corticosteróides na menor dose eficaz e microrganismo vivo, contra-indicadas durante os
durante o mínimo de tempo necessário. Algumas períodos de imunossupressão).
medidas ajudam a reduzir ou a prevenir estas con- O LES não afecta a fertilidade; assim, os jovens
sequências tais como, dieta equilibrada com adolescentes devem ser informados sobre os
restrição de hidratos carbono e de sal, e suprimen- métodos anticonceptivos. A utilização de contra-
to adequado de cálcio e vitamina D. ceptivos com estrogéneos deve ser evitada pelo
Os AINE (e a hidroxicloroquina na dose de risco de exacerbação da doença.
5mg/Kg/dia) estão indicados no tratamento das
manifestações cutâneo-articulares do LES. A Prognóstico
administração de hidroxicloroquina tem o risco de
retinopatia, pelo que se requer uma observação O prognóstico das crianças com lúpus tem melho-
oftalmológica regular. rado nas últimas décadas, sendo a taxa de sobre-
O metotrexato é outra alternativa para o trata- vivência aos 10 anos superior a 85%. Vários fac-
mento da artrite refractária, permitindo reduzir a tores têm contribuído para esta mudança, tais
dose de corticosteróides. como: o diagnóstico precoce, a identificação de
Os imunossupressores (azatioprina e ciclofos- formas menos graves, a instituição atempada de
famida) são usados quando existe compromisso de terapêutica, e a utilização de novas terapêuticas
órgão major como o rim e o SNC. A ciclofosfamida é que permitem um melhor controlo de formas
usada em pulsos endovenosos mensais durante seis graves da doença.
meses, seguidos por periodicidade trimestral, com- Nas crianças com nefrite lúpica têm sido des-
pletando no total 24 meses. O risco de indução de critas taxas de sobrevivência de 97% e 94%, ao fim
esterilidade por toxicidade gonadal é a principal de 5 e 11 anos respectivamente (casos de nefrite
preocupação inerente ao seu uso neste grupo etário. lúpica comprovadas por biópsia renal e tratados
A falência ovárica prematura é rara na criança com azatioprina ou ciclofosfamida).
mas existe uma redução da reserva ovárica na A melhoria da esperança de vida acompanha-
criança exposta à ciclofosfamida. A dose total de se de maior morbilidade relacionada com a lesão
ciclofosfamida administrada e a idade do doente de órgão provocada pela doença, com as conse-
são os principais factores de risco. De acordo com quências dos tratamentos, ou ainda com outras
estudos efectuados noutras patologias, o uso de complicações que surgem no decurso da doença
ciclofosfamida por via oral numa dose total inferior (infecções recorrentes, aterosclerose prematura,
a 200mg/Kg/dia não provoca toxicidade gonadal. osteoporose e hipertensão).
Mais recentemente foi introduzido no trata- A avaliação da criança e adolescente com LES
mento da nefrite lúpica o micofenolato de mofetil. requer, deste modo, não só a determinação da
Há estudos que demonstram uma maior eficácia actividade da doença, como também da lesão de
deste fármaco nas formas da classe V (ver atrás). órgão e das consequências no bem estar físico e
A associação de ciclofosfamida e metotrexato, psíquico.
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1092 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Etiopatogénese
testinal, pele, e do tecido celular subcutâneo. A tema malar assemelha-se ao do lúpus eritematoso
vasculopatia sistémica conduz a coagulação in- (Figura 1);
travascular, com oclusão e enfarte consequentes. – pápulas ou sinal de Gottron: elevações aver-
Ao nível da pele, como consequência das lesões melhadas, lisas ou descamativas evoluindo para
endoteliais capilares, surge atrofia da epiderme, zonas atróficas e despigmentadas; localizam-se na
degenerescência das células basais e infiltrado lin- superfície de extensão interfalângica, metcarpo-
focitário na derme. Na fase de cicatrização verifica- falângica, região periungneal, cotovelos, joelhos,
se deposição de sais de cálcio (calcinose). coxas e tórax (Figura 2); nos casos de vasculite dis-
Em todo o trajecto do tracto gastrintestinal o seminada pode verificar-se fotossensibilidade,
epifenómeno mais marcante da vasculopatia é a livedo reticularis, etc. (Figura 3);
ulceração e perfuração. – calcinose sob a forma de placas ou nódulos
superficiais, geralmente nas extremidades, poden-
Manifestações clínicas do ulcerar e infectar secundariamente;
– eritema e/ou telangiectasia e espessamento
A DMJ tem geralmente início insidioso e pro- periungueal, edema subcutâneo, nódulos sub-
gressivo, com aparecimento de mialgias e fraque- cutâneos, púrpura, alopécia e lipodistrofia (perda
za muscular; no entanto, em cerca de 30% dos de tecido adiposo subcutâneo) localizada ou
casos pode desenvolver-se de forma aguda e com generalizada;
rápida evolução das manifestações clínicas. – na mucosa oral: enantema, gengivo-estoma-
No início da doença prevalecem os chamados tite com ulceração e odinofagia, associados a anti-
sinais e sintomas constitucionais como febre, ano- corpos anti-RNAt sintetase;
rexia, adinamia, astenia, perda de peso. Outras manifestações incluem artrite (em cerca
Na fase de doença estabelecida as principais ca- de 10-15% dos casos, em geral das pequenas arti-
racterísticas clínicas dizem respeito às manifes- culações), tenossinovite, hepatomegália, espleno-
tações cutâneas e musculares, sendo que as cutâ- megália, vómitos, diarreia, hematemeses, mele-
neas podem ou não preceder as musculares; no nas, alterações cardiovasculares (pericardite, mio-
primeiro caso, tais manifestações poderão ser inter- cardite, hipertensão arterial, fenómenos de Ray-
pretadas como “alergia ou outra dermatose”. naud), doença pulmonar restritiva associada a
Como manifestações musculares citam-se: fibrose relacionada com a presença de anticorpos,
mialgias, contracturas e atrofia muscular, fraqueza exantema inespecífico, linfadenopatia, retinopatia
muscular progressiva, principalmente proximal associada a atrofia óptica, nefropatia podendo
(cinturas escapular e pélvica, e flexores do pescoço evoluir para insuficiência renal, etc..
e dorso), com dificuldade de subir e descer
escadas, levantar-se da cadeira, levantar-se do
chão,etc.. É nítido o sinal de Gower : o doente , ao
levantar-se do chão uma vez sentado, na tentativa
de se endireitar, tem de apoiar progressivamente
as mãos sobre as pernas e coxas, de baixo para
cima, alternadamente dum lado e doutro, como
que servindo de alavanca ou suporte.
Se os músculos das vias respiratórias superio-
res e faringe forem afectados, poderá haver difi-
culdade na deglutição e voz nasalada.
As manifestações mucocutâneas, especial-
mente representativas da DMJ, são as seguintes:
– exantema heliotrópico simétrico violáceo-
eritematoso circundando as pálpebras e podendo
FIG. 1
estender-se até ao dorso do nariz, regiões mala-
res,ombros e dorso (em xaile ou manta); o exan- Exantema heliotrópico.
1094 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
A B
FIG. 3
A – Caso de dermatomiosite em criança de 3 anos. São
notórios as pápulas de Gottron no cotovelo e o livedo
reticularis do antebraço e nádegas. B – A radiografia do
braço mostra sinais de calcinose dos tecidos moles.
vezes sinais de dilatação capilar e de trombose; Nos casos acompanhados de sinais infla-
determinação do factor de von Willebrand que, matórios acentuados, vasculite, de valor acentua-
como marcador de lesão endotelial, poderá indi- do baixo (nº absoluto) de células CD56+ NH e de
ciar actividade da doença ou recidiva; endoscopia valor elevado das enzimas musculares, inicia-se a
digestiva; estudos imagiológicos (TAC, RMN, corticoterapia com doses mais elevadas (pulsos de
etc.). metilprednisolona IV -30 mg/kg/dia durante 3
Os indicadores da activação imunológica na dias até máximo de 1 g/dia). Com a melhoria
DMJ incluem linfopénia, diminuição de: células clínica e laboratorial reduz-se progressivamente a
circulantes memória CD8 ICAM-1, número abso- dose da metilprednisolona até 3, 2 ou 1 vez/sema-
luto de células natural killer (NT) CD56+, CD3–, na, passando depois, a administrar prednisolona
CD16+ no sangue periférico. oral em dose de 0,5 mg/kg/dia nos dias de não
pulsoterapia e após paragem da pulsoterapia.
Diagnóstico diferencial A hidroxicloroquina na dose de 4mg/kg/dia
está indicada para as formas de manifestações
Admitindo a possibilidade de formas clínicas cutâneas exuberantes, não tendo efeito na doença
raras de DMJ sem manifestações cutâneas, ou muscular.
cujas manifestações cutâneas não constituem sinal O metrotrexato PO (15-20 mg/m2/semana
precoce, o diagnóstico diferencial faz-se com acompanhado de suplemento de ácido fólico),
situações acompanhadas de fraqueza muscular outros imunossupressores (ciclosporina, ciclofos-
como miosite pós-infecções por vírus (influenza A famida ou azatioprina) ou IGIV, ou ainda agentes
e B, coxsackievirus), miopatias primárias, miosites biológicos (etanercept) estão indicados nos casos
inflamatórias associadas a doenças do tecido refractários à corticoterapia (minoria).
conectivo, polimiosite (causa importante de “bebé Nos casos de miosite e manifestações sistémi-
hipotónico”, mais rara que a DMJ),etc.. Em deter- cas mais graves, deve ser utilizada terapêutica
minados casos a biópsia muscular permitirá fazer combinada, com corticosteróides, ciclosporina A
a destrinça. (3 mg/Kg/dia) e metotrexato (15 mg/m2/se-
mana).
Tratamento Na fase aguda está indicado o repouso no leito;
entretanto, o doente deve ser hospitalizado se
As bases gerais da actuação na DMJ (salientando- houver sinais de vasculite, disfagia ou disfunção
-se que deverá ser levada a cabo em centro espe- respiratória.
cializado com o apoio de subespecialista) pres- Uma vez que os raios solares provocam exa-
supõem: cerbação dos sinais cutâneos, deverá providen-
– o facto de se tratar duma doença crónica ciar-se o uso de protector solar.
com possibilidade de remissão ao cabo de 2 a Outras medidas incluem fisioterapia, cuidados
3 anos de evolução; cutâneos, suplementos de cálcio e vitamina D,
– o facto de que não existe tratamento curativo; regime alimentar adequado e protectores gástri-
– a possibilidade de ser possível suprimir a cos (estes últimos em situações com manifestações
resposta inflamatória e, até certo ponto, pre- digestivas atrás descritas).
servar a mobilidade articular e o crescimento
e desenvolvimento adequados. Complicações
Para o tratamento da miopatia com sinais
inflamatórios mínimos estão indicados os corti- A complicação mais grave, já descrita, é a calci-
costeróides; em geral utiliza-se a prednisolona PO nose da pele e tecidos moles, a qual pode ser
na dose de 1-2mg/kg/dia; em função da resposta generalizada.
clínica e laboratorial e tendo em conta os efeitos Outra complicação descrita é a resistência à
secundários da corticoterapia de longa duração, insulina evoluindo para diabetes do tipo 2, sendo
procede-se depois à diminuição gradual da pre- de referir que o controlo de tal resistência é acom-
dnisolona para a 0,5mg/kg/dia até suspensão. panhado de melhoria da doença muscular.
1096 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
A evolução da DMJ é variável: poderão surgir sur- Apesar da raridade, a PM pode ser observada na
tos de manifestações com duração de 6 a 8 meses primeira infância, constituindo uma das causas de
(na maioria dos casos), de evolução benigna e “bebé hipotónico” por hipotonia generalizada.
seguidos de remissão total, ou surtos de duração
superior a 2 anos, de evolução crónica, sem remis- Diagnóstico diferencial e exames
são, com sequelas (calcinose, atrofia muscular, complementares
contracturas, etc.) implicando corticoterapia pro-
longada. O diagnóstico diferencial da PM faz-se com outras
Com a terapêutica actualmente disponível a miopatias e com perturbações neuromusculares
mortalidade foi reduzida extraordinariamente não inflamatórias tais como:
(antes cerca de 40%, hoje cerca de 5%). As situa- – distrofia muscular congénita,
ções que comportam maior risco são: vasculopa- – distrofia muscular de Duchenne
tia que afecta o tubo digestivo, provocando – glicogenoses
hemorragias e perfuração; miosite progressiva – miopatias mitocondriais
refractária à terapêutica e levando ao apare- – miopatias por drogas ou toxinas (D-penicili-
cimento ou ao agravamento da calcinose; infec- namina, corticóides, hydroxicloroquina, etc.)
ções intercorrentes explicadas pelos efeitos da te- – miopatias inflamatórias pós-infecciosas, mais
rapêutica imunossupressora; e, ainda, fraqueza frequentes em idade pediátrica (por vírus
muscular e insuficiência respiratória com risco de influenza A e B, coxsackievírus B, Mycoplasma,
síndroma aspirativa. Salmonella, Serratia, Schistosoma, Toxoplasma,
etc.)
– miosite eosinófila.
2. POLIMIOSITE JUVENIL Tal como foi referido a propósito da DMJ, a
biópsia muscular assume a maior importância.
Definições e sistematização
Tratamento
A polimiosite juvenil (PM) é uma miopatia infla-
matória idiopática crónica muito rara, ainda menos Aplicam-se os mesmos princípios enunciados a
comum que a dermatomiosite juvenil (DMJ), sendo propósito da DMJ. Quer nesta, quer na PM, quer
que classicamente as referidas entidades clínicas se ainda nas esclerodermias, em formas clínicas
incluem no mesmo grupo; diferenciam-se apenas recorrentes ou resistentes à terapêutica conven-
pela presença ou ausência de alterações cutâneas. cional, alguns centros especializados têm aplicado
Trata-se de doenças musculares inflamatórias com êxito imunoglobulina (Ig G) por via sub-
(miosites) crónicas que se traduzem clinicamente cutânea (sc/SCIG) em alternativa à Ig G iv/IGIV,
por diminuição da força muscular. verificando-se menos efeitos adversos relativa-
Outras miopatias inflamatórias incluem as mente à esta última modalidade (IV). (ver
miosites associadas às doenças do tecido conjunti- Capítulo 224)
vo e as pós-infecciosas.
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1098 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
QUADRO 1 – Classificação das Esclerodermias dado que a sua história natural inclui as formas
Juvenis (*) difusa e limitada (Quadro 1).
A forma difusa é a mais agressiva e caracteri-
Esclerodermia sistémica (pele e órgãos internos) za-se clinicamente por um envolvimento precoce
• difusa (ou esclerose cutânea progressiva) cutâneo com edema e ulterior induração, surgin-
• limitada (esclerodermias localizadas e síndroma do mais tardiamente atrofia cutânea A perda de
CREST) tecido subcutâneo na face pode resultar em
Síndroma de sobreposição retracção dos lábios e comissuras, resultando no
• Esclerodermatomiosite ou outras combinações aspecto de “boca pequena, abrindo-se pouco”.
• Doença mista do tecido conectivo Outra consequência da perda de tecido subcutâ-
Doença localizada (à pele, ou morfeia) neo é a ulceração da pele nas zonas de pressão
• Morfeia em placa (por ex. cotovelos) com subsequente calcificação.
• Morfeia generalizada O envolvimento vascular explica a propensão
• Morfeia bolhosa para lesões isquémicas. Igualmente podem ocor-
• Morfeia linear rer calcificações dos tecidos moles dos joelhos,
• Morfeia profunda ombros e articulações metacarpofalângicas.
(*) de acordo com ILAR
O fenómeno de Raynaud é importante, não só
por ser habitualmente a manifestação clínica inicial,
precedendo as restantes por vários meses ou anos,
considerando a capacidade actual para gerir con- mas também por poder ser suficientemente intenso a
venientemente as complicações de órgão alvo que ponto de causar incapacidade significativa e inclusi-
podem ser causadas pela doença não controlada. ve predispor para o aparecimento de lesões isquémi-
As fases iniciais da doença caracterizam-se por cas, mais frequentes ao nível das polpas digitais. Tal
um início insidioso das manifestações clínicas e alteração é ainda possível pela própria lesão cutânea
pelo carácter episódico das crises. Frequente- que pode criar zonas de atrofia, úlcera e necrose dos
mente a doença estabelece-se, surgindo lesões per- tecidos moles sub-cutâneos. (Figuras 1 e 2)
manentes cujas consequências a longo prazo O quadro músculo-esquelético caracteriza-se
podem causar a morte. por envolvimento articular com artralgias e, por
Um elevado índice de suspeita clínica deve estar vezes, artrite geralmente das pequenas articu-
presente no pediatra e no reumatologista pediátrico lações das mãos, tornozelos e joelhos. A presença
para estabelecer o diagnóstico precocemente. de contracturas articulares, geralmente por
A presença de fenómeno de Raynaud das mãos envolvimento tendinoso e dos tecidos moles sub-
e/ou pés, edema das partes moles das mãos e/ou cutâneos periarticulares, é frequente. Igualmente
face, lesões isquémicas com ulceração e atrofia das mialgias, com ou sem miosite, atingem cerca de
polpas digitais das mãos, aparecimento de telan- 20% dos casos, situação que não cumpre, no
giectasias na face, mãos e parte superior do tronco entanto, critérios para esclerodermatomiosite.
devem levar à suspeita do diagnóstico. O compromisso gastrintestinal atinge cerca de
Outros sinais que poderão estar presentes de iní- 25% dos casos, com lesão proximal inicial (oral e
cio são artralgias, fraqueza e dor musculares, dis- esofágica), tardia (porções mais distais). A doença
pneia, disfagia, aparecimento de calcificações sub- esofágica predispoe tanto para refluxo gastresofági-
cutâneas ou contracturas dos tecidos moles. co crónico, bem como para lesões pulmonares.
A suspeita do diagnóstico de esclerodermia Do ponto de vista cardíaco pode existir fenó-
deve levar à referência rápida do/a doente a con- meno de Raynaud a nível das coronárias e dos
sulta de reumatologia pediátrica, com indicação seus ramos (doença isquémica), ou mesmo peri-
expressa desta suspeita diagnóstica. cardite constritiva, que é rara.
Com a evolução da doença outras complicações
Manifestações clínicas podem estar presentes. Classicamente o compro-
misso pulmonar e renal é responsável por compo-
A evolução da esclerodermia sistémica é variável nente importante da mortalidade e morbilidade.
CAPÍTULO 224 Esclerodermias juvenis 1099
225
bilidade, poliangeíte microscópica, granulomatose
de Wegener e síndroma de Churg-Strauss);
5 – Imunológica
Este grupo baseia-se na presença ou ausência
de anticorpo anticitoplasma de neutrófilos
(ANCA): vasculites ANCA positivo (granulo-
VASCULITES SISTÉMICAS matose de Wegener, síndroma de Churg-Strauss e
poliangeíte microscópica), e ANCA negativo.
Margarida Paula Ramos
O diagnóstico de vasculites baseia-se:
1) na anamnese e no exame objectivo por-
menorizados (designadamente investigan-
Definição e importância do problema do eventual utilização de fármacos, pal-
pação de pulsos, e medição da pressão arte-
As vasculites constituem um grupo heterogéneo rial);
de doenças, na sua globalidade raras, de etiopa- 2) em exames complementares seleccionados
togénese não totalmente esclarecida, caracteriza- em função da história clínica, os quais
das por inflamação e necrose da parede dos vasos, poderão culminar no exame histopatológico
do que resulta grau variável de isquémia e lesão (biópsia) e no estudo de biologia molecular.
teciduais ao nível de diversos territórios.
Todo e qualquer tipo de vaso e toda e qual- Existem vários achados clínicos sugestivos de
quer estrutura do mesmo vaso podem ser afecta- vasculite (Quadro 1).
dos; salienta-se que diferentes estruturas podem O Quadro 2 integra alguns parâmetros labora-
ser afectadas de modo selectivo, o que condiciona toriais que, embora inespecíficos, sugerem a pre-
manifestações clínicas muito variáveis. sença de vasculite.
Assim, tal patologia pode classificar-se aten- A actual classificação das vasculites em idade
dendo a critérios diversos, compreendendo-se que pediátrica, validada em 2006 após período ante-
determinada entidade possa estar incluída em rior em que era feita extrapolação a partir da dos
mais do que uma categoria classificativa: adultos, consta do Quadro 3.
1 – Topográfica Seguidamente são abordadas as vasculites
Localizadas (restritas à pele) ou sistémicas
(envolvendo órgãos internos); QUADRO 1 – Achados clínicos sugestivos
2 – Etiológica de vasculite
Primárias ou secundárias (associadas princi-
palmente a infecções, a doenças reumáticas como 1. Febre prolongada de origem indeterminada
artrite idiopática juvenil, lúpus eritematoso sisté- 2. Sintomas constitucionais: perda de peso, astenia,
mico, dermatomiosite juvenil, e a neoplasias); adinamia, anorexia
3 – Histológica 3. Lesões cutâneas: exantema urticariforme, necrose,
Leucocitoclástica (púrpura de Henoch-Schön- úlceras, petéquias, nódulos subcutâneos, livedo
lein, vasculite de hipersensibilidade), necrosante reticularis
(poliarterite nodosa – PAN, doença de Kawasaki), 4. Artrite, artralgia, mialgia
granulomatosa (granulomatose de Wegener e sín- 5. Serosite
droma de Churg-Strauss), de células gigantes 6. Manifestações neurológicas: cefaleia, alterações do
(arterite de Takayasu) e outras (doença de Behçet); sistema nervoso central, neuropatia periférica
5 – Anátomo-fisiológica (calibre dos vasos) 7. Hipertensão arterial, ausência ou assimetria de
Afectando vasos grandes (arterite de Takaya- amplitude dos pulsos
su), vasos médios (doença de Kawasaki, poliar- 8. Infiltrado pulmonar, lesão do septo nasal
terite nodosa) e vasos pequenos (púrpura de 9. Hemorragia digestiva
Henoch-Schönlein, PAN, vasculite de hipersensi-
1102 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Manifestações clínicas
Sinais cutâneos
A pele é afectada em todos os casos (púrpura). A
hemorragia cutânea manifesta-se inicialmente
como exantema maculopapular ou urticariforme,
raramente pruriginoso, indolor, na face dorsal das
pernas junto à região maleolar dos tornozelos.
Ao cabo de 24-48 horas as lesões tornam-se
maiores, confluentes, purpúricas, não desapare-
FIG. 1
cendo à compressão digital - com áreas concomi-
tantes de petéquias confluentes e de equimoses de Púrpura de Henoch-Schönlein – Exantema maculopapular: A –
apresentação simétrica, principalmente na super- localização nas nádegas; B – localização nas coxas e ante-
fície de extensão dos membros inferiores e náde- braços. (NIHDE)
gas, menos frequentemente nos membros supe-
riores e face, e raramente no tronco.
No mesmo doente poderão ser observados
vários estádios evolutivos do exantema, sendo que
as lesões mais antigas adquirem uma tonalidade
mais escura, acastanhada, que tende a desaparecer
em 4 semanas; no entanto, tais lesões poderão per-
sistir durante meses. (Figuras 1 A e B, e 2)
Em casos graves aparecem lesões necróticas e
infecção secundária. Em cerca de 30-50% dos
FIG. 2
casos, principalmente em crianças com menos de
3 anos, ocorre edema não depressível e indolor de Púrpura de HS com localização de exantema predominante
mãos, pés, região periorbitária, coiro cabeludo e, nas pernas.
eventualmente, angioedema.
Poderá verificar-se uma ou mais recorrências Sinais articulares
(5 - 40% dos doentes) durante as primeiras 6 sema- O compromisso articular (artrite e ou artralgia) –
nas. Em casos de recorrência, as lesões tendem a que pode preceder as lesões cutâneas – constitui a
aparecer nos mesmos locais das lesões prévias. O segunda manifestação mais frequente, ocorrendo
aparecimento de cicatrizes cutâneas é raro. em 60 a 90% dos doentes. É geralmente agudo,
1104 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
migratório, oligoarticular, ao nível das grandes cia de vasculite (nas amostras obtidas por biópsia)
articulações, principalmente dos membros infe- confirmam o diagnóstico de PHS.
riores (joelhos, tornozelos), com duração de
alguns dias em cada articulação. A artrite não Sinais nefro-urológicos
deixa sequelas; porém, na fase aguda pode ser De todos os sistemas orgânicos envolvidos, o rim é
bastante dolorosa e incapacitante, de modo seme- o principal responsável pela mortalidade, morbilidade e
lhante ao compromisso articular que surge na prognóstico a longo prazo. Com efeito, o compro-
febre reumática. Poderá verificar-se raramente o misso renal está presente em 20 a 100% dos casos,
aparecimento de mialgias associadas. sendo raro o seu início antes do quadro cutâneo.
Em 80% dos pacientes esta manifestação surge nas
Sinais gastrintestinais primeiras 4 semanas de doença e, no restante con-
Em cerca de 30 a 70% dos casos ocorrem manifes- tingente, nos primeiros 2 meses, ou mais tarde.
tações gastrintestinais no primeiro mês após o iní- Verifica-se micro ou macro- hematúria em 25 a
cio da doença. Elas traduzem-se por dor abdomi- 30% dos pacientes. A proteinúria isolada é rara. A
nal periumbilical (tipo cólica de forte intensidade, combinação hematúria e proteinúria está associa-
exacerbada durante nas refeições), náuseas, vómi- da a progressão para insuficiência renal crónica em
tos, hematemese, melena ou enterorragia; e, menos 15% dos casos. Hipertensão arterial, insuficiência
frequentemente, pancreatite aguda hemorrágica, renal aguda, síndromas nefrítica ou nefrótica são
colite ulcerosa, colite pseudomembranosa, entero- alguns dos determinantes de mau prognóstico.
patia com perda de proteína, hidropisia da vesícu- A doença renal grave manifesta-se principal-
la biliar e esteatorreia. A hemorragia gastrintesti- mente em crianças com idade superior a 5 anos e
nal não ocorre na ausência de dor abdominal. ocorre em 1 a 5% de todas as crianças com PHS.
Complicações como invaginação intestinal, per- Factores como idade (crianças maiores), púrpura
furação com peritonite, enfarte da parede intestinal persistente, dor abdominal grave e recorrências,
ou estenose ileal podem aparecer no decurso da são apontados como preditivos do aparecimento
doença: as regiões mais acometidas são jejuno e íleo. e da gravidade de doença renal.
A invaginação intestinal (de localização A biópsia renal está indicada nos casos com sín-
ileoileal e ileocólica respectivamente em 65% e droma nefrítica, síndroma nefrótica, insuficiência
35% dos casos) ocorre em 1 a 5% dos pacientes, renal aguda ou crónica e proteinúria persistente.
traduzindo-se por dor abdominal intensa e súbita, Em 10 a 20% dos casos a nefrite pode progredir,
hemorragia, e massa abdominal palpável. A dor apesar da regressão das outras manifestações.
abdominal intensa e o edema escrotal podem pre- Outras manifestações do foro nefro-urológico,
ceder o quadro de púrpura em cerca de 20% dos mais raras, incluem: orquiepididimite com edema
casos levando a confusão diagnóstica e, em e dor escrotal, torção testicular, etc..
muitos casos, a intervenção cirúrgica desnecessá-
ria; salienta-se que existe um risco maior de Outras manifestações associadas
doença renal nos pacientes com hemorragia intes- Citam-se, neste contexto: febre, vasculite em sis-
tinal. Outra manifestação rara e tardia é a estenose tema nervoso central (com cefaleias, convulsões,
esofágica. parésias, neuropatia periférica, hemorragia intra-
O diagnóstico das situações que estão na base craniana, nevrite óptica, polirradiculonevrite, aci-
dos sinais gastrintestinais é realizado através de dente vascular cerebral isquémico, alterações do
estudos radiológicos, ultrassonografia, endos- comportamento ou coma), epistaxe, parotidite,
copia ou observação intra-operatória das lesões compromisso ocular (hemorragia subconjuntival),
intestinais. (Capítulo 315) hepatosplenomegalia, colecistite, tiroidite, lin-
As lesões mais encontradas na endoscopia são fadenopatia e alterações cardiopulmonares (enfar-
áreas de hemorragia, erosões gástricas e jejunais, te do miocárdio, pleurite, pericardite, tampona-
duodenite e lesões múltiplas de cólon e recto. Os mento cardíaco, doença pulmonar intersticial,
exames contrastados são contra-indicados. As edema ou hemorragia pulmonar, e diminuição da
alterações histopatológicas cutâneas com evidên- difusão pulmonar do monóxido de carbono, etc.).
CAPÍTULO 225 Vasculites sistémicas 1105
A PHS pode acompanhar outras formas de associada por vezes a mialgias, dor abdominal,
vasculite ou de doença auto-imune, como por hemorragia digestiva e hematúria microscópica
exemplo a febre mediterrânica familiar e a doença e/ou proteinúria.
inflamatória do intestino. Os crtérios utilizados na actualidade para o
diagnóstico de certeza de PHS constam do
Exames complementares Quadro 4.
No que respeita ao diagnóstico diferencial há
Os exames laboratoriais são inespecíficos. que atender aos seguintes pontos:
A anemia, quando ocorre, é devida a perdas 1 – É importante afastar infecções graves como
gastrintestinais. Leucocitose moderada com desvio meningococcémia, septicémia e coagulação intra-
à esquerda e eosinofilia são observadas nalguns vascular disseminada.
pacientes. O número de plaquetas está geralmente 2 – O exantema hemorrágico, que ocorre oca-
normal, embora possa surgir hiperplaquetose sionalmente no sarampo, na varicela e na escarlati-
relacionada com a gravidade da doença. na, faz parte do diagnóstico diferencial da PHS.
A velocidade de sedimentação (VS), a proteína 3 – A vasculite de hipersensibilidade tem
C reactiva (PCR) e o complemento (C) podem muitas semelhanças com a púrpura de Henoch-
apresentar-se normais ou discretamente elevados. Schönlein. Em geral, a vasculite de hipersensibili-
O coagulograma é normal. O antigénio rela- dade provoca mais importante compromisso
cionado com o factor de Von Willebrand encontra- orgânico (pleurite, pericardite, insuficiência car-
se aumentado na fase activa da doença, assim díaca), salientando-se que o predomínio de infil-
como o tempo de tromboplastina parcial activado trado de células mononucleares é frequentemente
(TTPa), reflectindo lesão endotelial vascular. Os encontrado no exame anátomo-patológico. A ocor-
níveis de factor XIII, também conhecido como fac- rência predominante em indivíduos maiores de 16
tor estabilizador da fibrina, podem estar diminuí- anos, característica da vasculite de hipersensibili-
dos durante a fase aguda, principalmente nos dade, também diferencia as duas entidades.
casos com compromisso gastrintestinal grave. A Outros tipos de vasculite e causas de glomerulone-
fragilidade capilar poderá ser evidenciada pela frite e de diátese hemorrágica devem ser afastados.
prova do “garrote”. 4 – A síndroma hemolítica-urémica também
O sedimento urinário está alterado nos casos de pode simular alguns sinais e sintomas da PHS. A
compromisso renal, mostrando hematúria com nefrite pós-estreptocócica pode ser diferenciada
dismorfismo eritrocitário, com ou sem proteinúria, da púrpura pela diminuição dos níveis de com-
leucocitúria, e, eventualmente, cilindros hemáticos. plemento e ausência de sinais cutâneos.
A creatinina sérica pode estar elevada nos 5 – A nefropatia por IgA apresenta as mesmas
casos de insuficiência renal. A pesquisa de sangue alterações glomerulares detectadas por imunoflu-
oculto nas fezes pode ser positiva. orescência e microscopia eletrónica, embora com
A imunoglobulina A sérica está aumentada em evolução clínica diferente da da PHS. Refira-se
50% dos casos;surge normalização ao cabo de 3 que tal entidade (nefropatia por IgA) não apresen-
meses da doença, não havendo relação com o
compromisso renal. A biópsia renal poderá evi- QUADRO 4 – Critérios de diagnóstico da
denciar deposição de imunocomplexos contendo Púrpura de Henoch Schönlein
IgA nos glomérulos renais, o que constitui factor
importante no prognóstico da nefrite. A detecção Púrpura palpável (critério obrigatório) na presença
de auto-anticorpos não tem valor na PHS. de, pelo menos, 1 dos seguintes achados:
1. Dor abdominal difusa
Diagnóstico 2. Depósito de IgA (biópsia)
3. Artrite ou artralgia aguda
O diagnóstico da PHS é essencialmente clínico 4. Compromisso renal (proteinúria ou hematúria)
sendo suspeito nas seguintes circunstâncias: (Adaptado de Ozen et al, 2006
ta o quadro cutâneo; por outro lado, evidencia doença renal é controverso. Nos casos de nefrite
sinais de lesão glomerular lentamente progressi- grave (síndroma nefrótica e glomerulonefrite com
va e crónica que pode levar à insuficiência renal mais de 50% de crescentes no exame histopa-
crónica independente da apresentação, ao con- tológico) recomenda-se o uso de pulsoterapia com
trário da PHS que é uma doença aguda com lesão metilprednisolona, seguida de prednisona oral,
renal associada , geralmente não progressiva. além de imunossupressores (azatioprina ou ciclo-
6 – Distúrbios da coagulação e trombocitopé- fosfamida). Com esta terapia tem-se observado
nia podem causar lesões purpúricas. redução de crescentes fibrosos e da progressão
7 – Outros diagnósticos diferenciais nas situa- para insuficiência renal crónica. (Parte XIX)
ções acompanhadas de compromisso gastrin-
testinal incluem a doença inflamatória intestinal e Complicações e prognóstico
a enterocolite por Yersinia.
8 – Os quadros de abdómen agudo aparente Geralmente a PHS regride ao cabo de 3-4 sema-
que surgem previamente às lesões cutâneas nas, havendo, no entanto, a possibilidade de re-
podem ser confundidos com apendicite, adenite corrências, como foi referido antes. A artrite tam-
mesentérica, úlcera gastroduodenal, diverticulite, bém evolui favoravelmente, sem sequelas e sem
e eventualmente levar à laparotomia exploradora. recorrências.
9 – O chamado edema hemorrágico agudo, No que respeita às manifestações do foro gas-
forma isolada de vasculite leucocitoclástica que trintestinal há que contar com a possibilidade de
afecta sobretudo crianças com < 2 anos, tem hiperperistaltismo anómalo transitório com risco
semelhanças com PHS. Verifica-se em tal situação de invaginação intestinal e complicações inerentes,
bom estado geral, com: febre, edema da face, caso não seja feito diagnóstico atempado.
escroto, mãos e pés; equimoses (maiores que na A mortalidade na fase aguda resulta de com-
PHS) na face e extremidades; e petéquias nas plicações gastrintestinais e de insuficiência renal
mucosas. O tronco é poupado. Nos casos duvi- aguda (rara).
dosos pode recorrer-se à biópsia da pele. A progressão para insuficiência renal crónica é
inferior a 1% dos casos de PHS; no entanto, haven-
Tratamento do antecedentes desta patologia na fase aguda, está
indicado o seguimento da criança para avaliação
Na maioria dos casos de PHS não existe necessi- periódica da função renal.
dade de tratamento medicamentoso, uma vez que Em suma, o prognóstico é bom, em geral.
as manifestações são geralmente autolimitadas. Todas estas eventualidades deverão, claro está,
Haverá, como medidas gerais, que providenciar a ser explicadas à família.
hidratação adequada.
Em casos acompanhados de febre, edema ou
sinais de compromisso articular está indicado o 2. POLIARTERITE NODOSA
uso de analgésicos-antipiréticos e de anti-infla-
matórios. O ácido acetilsalicílico não deve ser Definição, aspectos epidemiológicos
usado pela possibilidade de provocar alterações e importância do problema
gástricas e promover disfunção plaquetária.
Nas situações associadas a compromisso gas- A poliarterite nodosa (PAN) é uma vasculite
trintestinal, do sistema nervoso central, e hemor- sistémica segmentar de tipo necrosante, atingindo
ragia pulmonar, está indicada corticoterapia (em sobretudo as artérias musculares de pequeno e
geral utiliza-se prednisona ou prednisolona na médio calibre. O termo sinónimo é periarterite.
dose de 1 a 2 mg/Kg/dia). A ranitidina pode ser Os órgãos predominantemente afectados são:
utilizada em pacientes com sintomas gastrintesti- pele, vísceras abdominais, rins, sistema nervoso
nais, para redução da dor abdominal e da hemor- central (SNC) e músculos.
ragia digestiva. Trata-se duma doença rara na infância e na
O uso do corticosteróide na prevenção da adolescência. No grupo etário pediátrico verifica-
CAPÍTULO 225 Vasculites sistémicas 1107
Etiopatogénese
Manifestações clínicas
FIG. 6
e diagnóstico diferencial
Eritema nodoso em criança com quadro de tuberculose
Os nódulos subcutâneos são geralmente averme- primária. (NIHDE)
lhados, com bordos violáceos, ligeiramente ele-
vados e muito dolorosos. São arredondados e Exames complementares
medem entre 1 e 10 centímetros de diâmetro.
Podem ser irregulares e coalescentes e têm O diagnóstico de EN é clínico. Determinados
duração variável, de semanas a meses. Lo- exames complementares, inspecíficos deverão ser
calizam-se sobretudo na região pré-tibial (bilate- fundamentados em função da anamnese e da sus-
ral e simetricamente), embora possam ser obser- peita da doença de base, para determinar a etiolo-
vados nas coxas, nádegas e membros superiores. gia e a actividade do processo inflamatório. Eis os
Durante a evolução (em cerca de 3 a 6 semanas), fundamentais:
as lesões tornam-se violáceas e acastanhadas, – Hemograma: pode evidenciar leucocitose,
assemelhando-se a hematomas, regredindo de- com ou sem neutrofilia;
pois espontaneamente (Figura 6). Refira-se que a – Provas de fase aguda (por ex. PCR,VS,alfa-1-
localização nos membros superiores sugere uma glicoproteína,etc.): estão alteradas na maior parte
etiologia hoje inexistente no nosso país em idade dos casos;
pediátrica – a lepra. – Electroforese das proteínas: a presença de
O EN pode ter carácter recorrente, com hipoalbuminémia sugere doença intestinal infla-
evolução arrastada, na circunstância de associação matória (DII);
certas a doenças crónicas, como rectocolite – TASO: de modo seriado poderá confirmar
ulcerosa e lúpus eritematoso sistémico. De salien- antecedentes de infecção estreptocócica prévia;
tar que poderá haver manifestações músculo- – Radiografia do tórax: poderá confirmar etio-
esqueléticas tais como artralgia, artrite e dor mus- logia tuberculosa;
cular) e, também, sinais inespecíficos como febre e – Prova tuberculínica (intradermorreacção de
adinamia. Mantoux): idem;
O diagnóstico diferencial faz-se fundamental- – Detecção de autoanticorpos antinúcleo (ANA):
mente com eritema induratum, tromboflebite, po- negativa, excepto nos casos de lúpus associado ou
liarterite nodosa cutânea e sarcoidose subcutânea. doutras doenças do tecido conectivo;
1114 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
– Biópsia das lesões em determinados casos; mação de granulomas atingindo o tracto respi-
– Colonoscopia e/ou trânsito intestinal: para ratório superior e inferior, e os rins (glomerulone-
esclarecimento de eventual DII nos casos de sin- frite). Pode ocorrer de forma sistémica ou limita-
tomatologia do foro digestivo, designadamente da, esta última podendo evoluir para sistémica.
acompanhada de lesões perianais (úlceras e dis- Trata-se duma patologia rara na idade pediátrica,
tensão abdominal) (Capítulo 112). sobretudo antes dos 15 anos; na maioria dos casos
surge entre a 4ª e a 6ª décadas de vida, sobretudo
Tratamento na raça caucasiana e com predomínio no sexo
feminino (~3/1). Estima-se uma prevalência entre
O tratamento do EN consiste fundamentalmente 8 a 30 casos/1.000.000/ano, respectivamente no
no alívio da dor e no controlo do processo infla- Reino Unido e nos Estados Unidos da América.
matório:
– Anti-inflamatórios não esteróides/AINE Etiopatogénese
(naproxeno: 15 a 20 mg/kg/dia, ou indometacina:
1 a 3 mg/kg/dia). A etiologia da GW é desconhecida, admitindo-se
– Corticosteróides, indicados nos casos de dor que, devido à frequência do compromisso das vias
e de processo inflamatório intensos- (prednisona aéreas, um antigénio inalado, (alergénio ou
ou prednisolona: 0,5 mg/kg/dia). agente infeccioso), possa ser desencadeante dum
– Penicilina benzatínica: 600.000 UI nas processo inflamatório de mediação imune.
crianças com peso inferior a 25 kg e 1.200.000 UI Algumas bactérias (nomeadamente Staphylococ-
naquelas com peso igual ou superior a 25 kg cada cus aureus) produzindo os chamados superanti-
3 semanas (nos casos de EN recorrente com sus- génios (antigénios com capacidade para desenca-
peita de infecção estreptocócica como factor de- dear resposta inflamatória desproporcional ao estí-
sencadeante e na perspectiva de profilaxia mulo), têm sido implicadas na iniciação do proces-
secundária) com a duração de 6-12 meses. so inflamatório ao nível dos capilares (capilarite).
– Tuberculostáticos se se comprovar infecção Foi relatado o papel de um gene (CTLA-4 ou um
tuberculosa (capítulo 281). gene próximo a este) codificando o antigénio 4 dos
– Suspensão imediata de fármaco suspeito de linfócitos T (linfócitos T citotóxicos) susceptíveis de
desencadear o processo inflamatório. maior activação no processo inflamatório.
Verificou-se que uma proteinase (PR3), em
Prognóstico condições de normalidade integrada no interior
dos grânulos – alfa dos neutrófilos, se encontra à
O prognóstico geralmente é bom; desde que tenha superfície dos neutrófilos em doentes com GW.
sido instituída a terapêutica adequada à doença de Dado que os ANCA que se ligam ao PR3 são
base, as lesões são autolimitadas e desaparecem. específicos da GW, é hoje admitido o papel etio-
O EN pode ser recorrente (vários surtos cuja patogénico da expressão anormal de PR3.
intensidade se vai esbatendo ao longo do tempo). O antigénio de histocompatibilidade HLA B8
A recorrência persistente, ao longo de anos, deve parece estar associado à GW; contudo outros ha-
evocar patologia associada, sendo a doença de plótipos têm sido identificados em casos fami-
Behçet uma das possibilidades a considerar. liares de GW associada a PAN: (HLA A2, B7,
DRw12, A31, Bw60 e DR4).
5. GRANULOMATOSE DE WEGENER
Manifestações clínicas e diagnóstico
Definição, aspectos epidemiológicos
e importância do problema A sintomatologia respiratória está presente geral-
mente desde o início do quadro, podendo ser atri-
A granulomatose de Wegener (GW) é uma vas- buída a infecções ou a alergia, principalmente
culite necrosante dos pequenos vasos com for- quando estão ausentes as manifestações sistémicas.
CAPÍTULO 225 Vasculites sistémicas 1115
da doença (anticorpos c-ANCA no citoplasma), o idade pediátrica), assim como as artérias pul-
que não acontece com os p-ANCA ou perinucleares. monares.
Os achados imuno-histoquímicos sugerem um
Tratamento mecanismo de resposta imune a um antigénio,
mediado por células T cujos receptores eviden-
O tratamento inicial consiste na corticoterapia oral ciam disfunção. Por outro lado, demonstrou-se
e IV. Na maioria dos casos, é necessária a associação nalguns estudos a formação de imunocomplexos,
de um imunossupressor sendo, a primeira escolha, a activação do complemento e o papel de anticor-
a ciclofosfamida por via oral ou endovenosa na pos antiendoteliais. Verifica-se elevação de IL-6 e
forma de pulsoterapia. Alguns estudos têm sido diminuição de IL-10
realizados para avaliar a eficácia do metotrexato Os achados histopatológicos evidenciam infil-
associado à corticoterapia nos casos com doença trado linfo-monocitário, alterações granulo-
menos grave, sendo os resultados considerados matosas e ulterior fibrose, que se desenvolvem da
animadores. O metotrexato ou a azatioprina tam- adventícia para a íntima.
bém poderão ser importantes na fase de remissão. No que respeita a antigénios de histocompati-
A experiência com a IGIV é escassa. bilidade, verifica-se associação da doença ao HLA
B-52 e HLA DR-2 no Japão, ao HLA B-52 e HLA
Prognóstico B-5 na Coreia, e ao HLA B-39 no México.
Diagnóstico diferencial
FIG. 7
Um vez que a aortite e a regurgitação aórtica se
poderão desenvolver na AT, outras situações com Imagens de angio-RM em criança de 9 anos de idade, com
estes achados deverão também ser consideradas, arterite de Takayasu diagnosticada aos 7 anos. Nestas imagens
incluindo a doença de Behçet. podem ser observadas várias estenoses arteriais, designadamente
da artéria subclávia esquerda (A), da aorta abdominal e das
Há que considerar ainda os quadros de hiper-
artérias renais (B).
tensão arterial e de coarctação da aorta.
É importante também recordar ainda outras
situações como febre reumática, espondilite Tratamento
anquilosante com aortite, artrite idiopática juve-
nil, o lúpus eritematoso sistémico, sarcoidose, e Os princípios básicos do tratamento incluem a
vasculites em geral. excisão cirúrgica das lesões vasculares com es-
1118 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
tenose e ou aneurisma, e terapia imunossupressora. National Institutes of Health experience. Int J cardiol 1996;
Os corticosteróides (prednisona ou pre- S99-S102
dnisolona por via oral) são utilizados na fase acti- Kliegman RM, Behrman RE, Jenson HB, Stanton BF (eds).
va da doença, com respostas eficazes (variáveis) se Nelson Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Saunders
iniciados precocemente. Em doentes com sin- Elsevier, 2007; 995-1052
tomas sistémicos persistentes ou doença progres- Marins KS, Baptista R, Nentzinsky V, Azevedo ML, Bica BG.
siva, associa-se metotrexato ou ciclofosfamida. O Poliarterite nodosa cutânea na infância com gangrena digital
metotrexato em baixas doses permite diminuir as e possível associação com o estreptococo beta-hemolítico do
doses da corticoterapia. São também utilizados grupo A: relato de caso e revisão de literatura. Rev Bras
anti-hipertensivos, cardiotónicos, anticoagulantes Reumatol 2008; 48: 111-117
e antiagregantes plaquetários em função do con- McCulloch M, Andronikou S, Goddard E, et al. Angiographic
texto clínico de cada caso. features of 26 children with Takayasu’s arteritis. Pediatr
Nos casos de tuberculose associada, há que Radiol 2003; 33: 230-235
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CAPÍTULO 226 Febre reumática 1119
Etiopatogénese
ente susceptível pode levar à activação de linfócitos terizando a pancardite, a endocardite, isolada ou
T e B pelos antigénios estreptocócicos e super- não, é a manifestação mais encontrada.
antigénios, resultando na produção de citocinas e A presença de sopro cardíaco patológico, com
anticorpos dirigidos contra estruturas do hos- ou sem taquicárdia, na ausência de febre, caracte-
pedeiro. riza a cardite clínica. O sopro é geralmente sistóli-
co, apical e reflecte a insuficiência mitral. As
Manifestações clínicas válvulas mais acometidas em ordem de frequên-
cia são: mitral, aórtica, tricúspide e pulmonar. O
Na maioria dos casos, o aparecimento das mani- compromisso de válvulas cardíacas direitas iso-
festações clínicas ocorre entre a segunda e a ter- ladamente, sem envolvimento das esquerdas, é
ceira semana após a infecção estreptocócica. Por muito raro. A estenose mitral é rara na faixa etária
vezes o quadro clínico pode aparecer mais preco- pediátrica; quando presente, indica lesão cardíaca
cemente (Capítulo 213). prévia.
Nos últimos anos, têm-se descrito casos de
Artrite pacientes com cardite assintomática (subclínica)
A poliartrite é a manifestação mais frequente da que se apresentam sem sopro cardíaco, porém
FR, ocorrendo em 60% a 70% dos pacientes no com alteração ecocardiográfica.
primeiro surto. Embora muito frequente, é a mani- A cardite pode manifestar-se até à sexta se-
festação menos específica. Geralmente a artrite é mana de evolução do surto agudo, e casos com
migratória, assimétrica transitória, autolimitada, resultados de marcadores inflamatórios de fase
atingindo as grandes articulações, com dor des- aguda elevados devem ser acompanhados sema-
proporcional aos sinais inflamatórios; e apresenta nalmente durante esse período. Sopro cardíaco
uma boa resposta a doses anti-inflamatórias de durante a fase aguda não indica lesão valvular
ácido acetilsalicílico. Geralmente o processo infla- permanente, e em 60% dos casos regride.
matóro permanece por 2 ou 3 dias em cada articu- Nos casos de miocardite ou pericardite iso-
lação, e desaparece sem deixar sequelas em 2 a 3 ladas, sem envolvimento endocárdico, outros
semanas. Porém, há que salientar que nem sempre diagnósticos diferenciais devem ser considerados.
a artrite é típica; e que há casos com período de
latência mais curto, mono ou oligoartrite, com Coreia de Sydenham
compromisso de pequenas articulações e coluna Esta manifestação ocorre mais frequentemente no
cervical, com duração superior a 6 semanas e má sexo feminino. A sua frequência oscila entre 15 e
resposta aos salicilatos. 35%. Ela é caracterizada por labilidade emocional,
De referir que a chamada artrite reactiva pós- fraqueza muscular e, posteriormente, movimen-
estreptocócica se apresenta após um período de tos involuntários e incoordenados. Todos os mús-
latência mais curto (≤ 10 dias após a infecção): culos podem ser afectados; porém os movimentos
artrite prolongada ou artrite recorrente, às vezes das mãos, braços, pés e pernas, além de lábios, lín-
simétrica e com tenossinovite, e sem resposta aos gua e face, são mais evidentes. Dificuldades na
anti-inflamatórios não esteróides (AINE). Trata-se fala e na escrita podem estar presentes. Os movi-
doutra forma de artrite que, nos países onde a FR mentos coreicos são geralmente bilaterais, dimi-
é prevalente, deve ser, contudo, considerada como nuem com o repouso e desaparecem com o sono.
pertencendo ao espectro da mesma, implicando Transtornos neuropsiquiátricos ocorrem como
conduta profiláctica e terapêutica semelhante à sequela da coreia e incluem distúrbios obsessivo-
que é aplicada à artrite, antes descrita. compulsivos, depressão, tiques e dificuldade de
concentração.
Cardite Embora a coreia seja descrita como uma mani-
A cardite é a segunda manifestação mais fre- festação isolada, ela está associada à cardite ou à
quente, ocorrendo em 40 a 50% dos pacientes. artrite em metade dos casos. A coreia é uma mani-
Apesar de o endocárdio, miocárdio e pericárdio festação tardia da FR, e, por esse motivo, quando
poderem estar afectados simultaneamente, carac- se apresenta isolada, a demonstração laboratorial
CAPÍTULO 226 Febre reumática 1121
Nódulos subcutâneos
Trata-se duma manifestação clínica rara, que
ocorre em cerca de 3% dos casos e geralmente está
associada à cardite. Os nódulos são arredondados,
móveis, indolores e presentes nas superfícies de
FIG. 2
extensão das articulações, principalmente em
cotovelos, joelhos e tornozelos. (Figura 1) Eritema marginado.
para salvaguardar a saúde dos indivíduos sãos e evitar a doença. the diagnosis and follow-up of rheumatic carditis in chil-
Prevenção secundária > …… para impedir o agravamento da doença. dren and adolescents: a two-year prospective study. J
Prevenção terciária > …… para evitar sequelas da doença já estabele- Rheumatol 2000; 27: 1082-1086
cida e permitir reinserção social do doente. Jones TD. The diagnosis of rheumatic fever. J Am Med Assoc.
Muitas vezes emprega-se o termo prevenção como sinónimo de profi- 1944; 126: 481-484
laxia. De acordo com os peritos da linguagem biomédica deve uti- Langlois DM, Andreae M,. Group A streptococcal infections.
lizar-se o termo “prevenção” quando se aplica a acção (por exemplo Pediatr Rev 2011; 32: 423 - 430
estilo de vida saudável); e o termo profilaxia quando se refere a sub- Maia DP, Teixeira AL, Cunningham CQ, Cardoso F. Obsessive
stância (por ex. penicilina ou outro fármaco) – penicilina profilácti- compulsive behavior, hyperactivity, and attention deficit
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CAPÍTULO 227 Dores de “crescimento” 1125
227
de exercício físico mais intenso. A sua duração é
inferior a 2 horas.
O exame físico é normal e, na maioria dos
casos, não há mesmo referência a dor articular, se
bem investigada clinicamente a situação. Trata-se
principal ou exclusivamente de algias ao nível
DORES DE “CRESCIMENTO” da superfície de extensão dos membros infe-
riores, podendo, em casos raros, ser também atin-
J. A. Melo Gomes gidos os membros superiores; não há quaisquer
limitações funcionais do aparelho locomotor. O
crescimento é normal.
Frequentemente há referência a sintomatologia
Definição e importância do problema idêntica num dos progenitores durante a infância,
o que poderá determinar a existência de uma pre-
O termo “dores de crescimento”, controverso, re- disposição familiar para a dor. A massagem suave,
presenta um mau uso da linguagem médica, pela com ou sem anti-inflamatório ou analgésico tópi-
sua imprecisão; trata-se dum diagnóstico facil- co, é habitualmente suficiente para permitir o
mente aceite pelos pais pela frequência muitas alívio das queixas e o repouso nocturno adequa-
vezes excessiva com que é utilizado. do.
Efectivamente, as dores dos membros que as Embora o prognóstico a curto e longo prazo
crianças com este diagnóstico referem (em cerca seja excelente, pode haver alguma ansiedade do
de 10-20% em idades escolar) não são causadas agregado familiar, pois, por vezes, as crianças acor-
pelo crescimento. dam durante a noite a chorar e a queixar-se das
dores. Com o evoluir do tempo estas queixas vão-
Critérios de diagnóstico se tornando progressivamente mais raras e menos
intensas, até desaparecerem completamente, inde-
Do ponto de vista clínico este diagnóstico aplica- pendentemente dos tratamentos efectuados.
se a um conjunto de dores com características bem Os resultados dos exames complementares,
definidas (Quadro 1), surgindo entre os 4 e os 12 por vezes efectuados para aliviar as preocupações
anos de idade, habitualmente apenas ao fim da familiares, são integralmente normais.
tarde ou à noite e nunca pela manhã ao acordar, e
podendo ser desencadeadas ou agravadas em dias Diagnóstico diferencial
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PARTE XXIV
Osteocondrodisplasias
1128 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
228
ser detectadas no período pré-natal e diagnosti-
cadas já no recém-nascido.
As possibilidades terapêuticas actuais são
limitadas, se bem que nalguns casos de displasias
esqueléticas as técnicas cirúrgicas que permitem o
alongamento ósseo das extremidades constituam
DISPLASIAS ESQUELÉTICAS um avanço significativo, designadamente no
grupo acondroplasia-hipocondroplasia e certas
E DOENÇAS AFINS – formas de displasia metafisária.
Ignacio Villa Elizaga e João M. Videira Amaral Actualmente as displasias predominantemente es-
queléticas e não esqueléticas são classificadas ten-
do em conta: a) critérios de ordem genética, co-
nhecidos; b) manifestações clínicas e radiográfi-
Importância do problema cas semelhantes, pressupondo etiopatogénese e
base genética comuns, no entanto desconhecidas.
A designação de osteocondrodisplasias/OCD, Assim, determinadas entidades anteriormente
displasias esqueléticas, e displasias ósseas (ou, classificadas no mesmo grupo são hoje considera-
segundo a designação clássica, doenças ósseas das separadamente uma vez que se demonstrou
constitucionais) diz respeito a um grupo hete- que os respectivos genes mutantes eram dife-
rogéneo de entidades caracterizadas por anoma- rentes.
lias do crescimento e desenvolvimento do Para fins didácticos são considerados os se-
esqueleto (osso e cartilagem em cuja composição guintes grandes grupos:
entra o tecido conectivo). O respectivo quadro
clínico é dominado por alterações esqueléticas Displasias esqueléticas
(em geral baixa estatura, deformações ósseas e 1) Osteodisplasias cujo exemplo prototípico é
repercussão funcional), realçando-se que na maior a osteogénese imperfeita que se distingue das
parte dos casos outros tecidos não esqueléticos restantes pela fragilidade óssea, associada às ca-
também podem estar afectados. racterísticas gerais atrás referidas;
Determinadas entidades em que predominam 2) Condrodisplasias, associadas a genes que
as alterações do tecido conectivo integram o são essenciais para o crescimento e desenvolvi-
grupo das chamadas displasias do tecido conecti- mento do esqueleto; as mesmas englobam dois
vo (ver adiante Sistematização). Daí algumas difi- subgrupos: 2.1) correspondente aos casos em que
culdades ao tentar estabelecer-se uma classifi- predominam membros curtos; e 2.2) correspon-
cação que seja prática e útil para o clínico. dente aos casos em que predomina tronco curto.
Tal patologia compreende mais de 370 dife- Refira-se, a propósito, que alguns casos de con-
rentes entidades, com uma prevalência calculada drodisplasias podem ser identificados pelos
em cerca de 1/4.000 nascimentos, salientando-se antecedentes pessoais e familiares, e exame físico.
que cada vez maior número de casos tem sido 3) Disostoses, ou anomalias isoladas de deter-
relacionado com defeitos de genes. minado osso ou de ossos de determinada região
As consequências de tais alterações a nível mo- anatómica cuja etiopatogénese pode ser diversa;
lecular podem ter repercussões, quer no esquele- de realçar que tais anomalias podem estar asso-
to, quer, como foi referido, noutros tecidos, var- ciadas a entidades atrás referidas em 1) e 2).
iando muito as manifestações: entre formas letais Dum modo geral a designação das displasias
in utero, a formas oligossintomáticas, por vezes esqueléticas relaciona-se com a localização anató-
subdiagnosticadas ou não identificadas. mica dos ossos afectados e/ou das anomalias his-
Nesta perspectiva, muitas das doenças podem tológicas mais frequentemente encontradas.
CAPÍTULO 228 Displasias esqueléticas e doenças afins 1129
No que se refere à etiopatogénese, as situações tualmente atingindo a coxa no seu terço superior)
referidas em 1) e 2) são resultantes de alteração estiverem ao nível da crista ilíaca ou acima desta,
intrínseca dos ossos, enquanto as referidas em 3) a desproporção torna-se evidente.
integram-se numa alteração do tecido mesen- • Importa igualmente averiguar qual a região
quimatoso ou forma jovem do tecido conectivo, o do corpo com maior encurtamento (segmento do
qual tem como elemento constitutivo essencial membro ou tronco).
fibrilhas de colagénio que actuam como elemento Se a porção proximal de um membro- respecti-
de suporte dos tecidos. vamente úmero ou fémur – constituir a parte mais
O termo de “nanismo” usado anteriormente curta, está-se perante um encurtamento chamado
como sinónimo de baixa estatura, desproporcionada rizomélico (por ex. acondroplasia). Se o encurta-
ou harmónica, está hoje abandonado pela conotação mento afectar a parte medial do membro- respecti-
pejorativa e discriminativa daquele relativamente ao vamente antebraço ou perna – o encurtamento é
doente e familiares; hoje utiliza-se genericamente o designado mesomélico. Se o encurtamento se veri-
termo de displasia, ou de hipocrescimento. ficar na parte distal do membro-respectivamente
Para além dos grandes grupos atrás referidos mãos e pés – o encurtamento é chamado acromélico.
poderá surgir ainda uma multiplicidade de situa- Se o tronco corresponder à área predominan-
ções (metabólicas, nutricionais, etc.) com expres- temente mais curta, o mesmo é acompanhado de
são esquelética, cuja etiopatogénese é extrínseca pescoço,tórax e coluna vertebral mais curtos (por
aos ossos ou ainda não está completamente ex. síndroma de Mórquio).
esclarecida. 2) Detecção de eventuais anomalias associa-
das.
Displasias do tecido conectivo 3) Exame radiográfico do esqueleto com
Estas afecções, em geral designadas por não medições dos vários segmentos dos membros,
esqueléticas, partilham características comuns tórax, coluna, etc..
com as displasias esqueléticas no que se refere à 4) Exames complementares vários a selec-
etiopatogénese (mutação de determinados genes cionar em função do contexto clínico: estudo cito-
com papel especial no referido tecido conectivo) e genético, exame da pele (histoquímico, cultura de
têm uma expressão clínica mais relevante ao fibroblastos para estudo do colagénio, etc.), bio-
nível de tecidos não esqueléticos (exceptuando químico (balanço do cálcio/fósforo, fosfatase
na síndroma de Marfan e na aracnodactilia con- alcalina, etc.), biomolecular, biópsia da cartilagem
génita). e do osso, etc..
material genético que surgem “de novo”), associa- tária pode evidenciar um tipo de transmissão
da às anomalias hereditárias do tecido conjuntivo, dominante muito marcado. Em certos casos, a
são espontâneas na sua origem, dado que não se descendência de um indivíduo normal pode levar
identificou qualquer situação de risco epide- ao aparecimento de dois ou mais indivíduos gra-
miológico associado a agentes externos indutores. vemente afectados; este último padrão, sugestivo
Salienta-se, a propósito, que as mutações co- de transmissão de modo recessivo, pode corres-
nhecidas na actualidade são de dois tipos funda- ponder a mosaicismos germinais no progenitor.
mentais:mutações pontuais (que afectam apenas
um nucleótido) ou deleções/grandes inserções Etiopatogénese
(que afectam vários nucleótidos).
O efeito da mutação sobre a função duma pro- Em função da etiopatogénese, as entidades
teína também é muito variável: pode produzir englobadas no conceito de displasia esquelética e
diminuição, anulação ou transformação da referida não esquelética podem ser agrupadas em função
função. Em muitos destes transtornos, a detecção de determinados mecanismos conhecidos ou
de portadores da anomalia somente é possível ana- doutros critérios abaixo discriminados.
lisando os polimorfismos do ADN no indivíduo e Assim, para melhor compreensão dos Quadros
na sua família. Nas doenças com gene conhecido 1-A, B, C e 2 adiante descritos, foram considera-
podem empregar-se técnicas de diagnóstico directo dos diversos tipos de etiopatogénese designados
mediante amplificação por PCR (polymerase chain respectivamente por dígitos de tamanho pequeno
reaction ou reacção em cadeia da polimerase). entre parênteses de (1) a (6):
Actualmente investiga-se a hipótese de deter- (1) Alterações dos receptores transmem-
minado fenótipo poder corresponder a dois ou branares
mais genes. (2) Alterações do colagénio e das proteínas da
Neste tipo de patologia a transmissão heredi- matriz da cartilagem
AD: Autossómica dominante. AR: Autossómica recessiva. (*) Ocasionalmente letal no RN.
1132 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
FIG. 2
Displasia tanatófora. Radiografia do esqueleto evidenciando
FIG. 1 sinais de situs inversus, encurtamento e encurvamento dos
Displasia tanatófora (fenótipo). (NIHDE) ossos longos. (NIHDE)
1134 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
FIG. 5
Displasia diastrófica. (NIHDE)
FIG. 3
Acondroplasia. (NIHDE)
FIG. 6 FIG. 7
Displasia campomélica. Displasia campomélica.
Pormenor do encurtamento Hemissoma direito. Pormenor
FIG. 4 da coxa direita. do aspecto radiográfico do
Mão de criança com acondroplasia. (NIHDE) encurvamento do fémur direito.
1136 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
229
No que respeita às displasias do tecido conec-
tivo (não esqueléticas) nos capítulos 230 a 235 é
dada ênfase, sequencialmente às síndromas de
Ehlers – Danlos, Alport, epidermólise bolhosa,
síndroma de Marfan, cutis laxa, pseudoxantoma
elástico e síndroma de Williams.
OSTEOGÉNESE IMPERFEITA
GLOSSÁRIO
Platispondilia > Achatamento do corpo vertebral de várias vértebras da Ignacio Villa Elizaga
região dorsolombar que pode conduzir a cifose.
BIBLIOGRAFIA
A Bibliografia referente aos capítulos que integram a Parte XXIV é Definição e importância do problema
descrita no final do Capítulo 235.
O termo osteogénese imperfeita (OI) designa um
grupo de displasias ósseas constitucionais heredi-
tárias, heterogéneas sob os pontos de vista clínico
e genético, causadas por defeitos estruturais ou
quantitativos do colagénio de tipo I, o compo-
nente principal da matriz extracelular do osso e
pele.
Caracteriza-se por osteopénia, fragilidade
óssea, fracturas patológicas e outras anomalias do
tecido conjuntivo tais como escleróticas azuis,
dentinogénese imperfeita e surdez progressiva.
Na sua forma clássica verifica-se transmissão AD.
A incidência de OI na infância oscila entre
1/10.000 e 1/20.000
Alterações moleculares
230
tendo células de estroma com capacidade de dife-
renciação em osteoblastos está a ser estudada em
crianças com OI do tipo III grave.
A hipoacusia trata-se inicialmente com próte-
ses auditivas sem dispensar, no entanto, em fase
ulterior, tratamento cirúrgico do foro otorrino-
laringológico. DENTINOGÉNESE IMPERFEITA
Complicações Ignacio Villa Elizaga
Manifestações clínicas
Exame radiológico
Tratamento
231
Em situações especiais de abrasões graves
pode estar indicada a realização de implantes se o
leito ósseo o permitir.
SÍNDROMAS
DE EHLERS-DANLOS
Ignacio Villa Elizaga
Classificação
mais grave: fragilidade vascular e tecidual impor- hipotrófica (fina, frágil e translúcida), sendo que a
tantes conduzindo a ruptura espontânea de hipermobilidade articular somente afecta as
artérias e intestino, do que resulta diminuição da pequenas articulações.
esperança de vida. Nas mulheres grávidas um dos O tipo VI ou cifoscoliótico, caracteriza-se por
riscos é a ruptura uterina. hiperelasticidade cutânea, hipermobilidade arti-
Ao contrário do que acontece nas formas clás- cular, hipotonia muscular neonatal grave, cifosco-
sicas, no tipo IV a pele não é hiperelástica,mas sim liose progressiva, (hábito semelhante ao da síndro-
1144 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
ma de Marfan), e osteopénia. Poderá ocorrer rup- Tal hipermobilidade pode ser objectivada
tura do globo ocular e das grandes artérias. A here- mediante a escala de Beighton, baseada em cinco
ditariedade é autossómica recessiva, distinguindo- manobras exploratórias: a) a extremidade do pri-
se dois subtipos: subtipo A (SED VI-A) associado a meiro dedo da mão pode ser colocada de modo
deficiência de colagénio lisil-hidroxilase; e o subtipo passivo sobre a face anterior do antebraço (1
B (SED VI-B), sem a citada deficiência. ponto para cada lado); b) a dorsiflexão passiva do
O tipo VII também engloba três subtipos (VII- 5º dedo da mão é inferior a 90º (1 ponto para cada
A, VII-B e VII-C); os dois primeiros, designados mão); c) o cotovelo hiperestende-se mais de 10º (1
artrocalázicos, caracterizam-se por hipermobili- ponto para cada cotovelo); d) o joelho hiperesten-
dade articular grave generalizada, luxação con- de-se mais de 10º (1 ponto para cada joelho); e) a
génita bilateral da coxofemoral, compromisso dér- flexão do tronco com os joelhos em extensão per-
mico moderado e osteopénia.Transmitem-se de mite que as palmas se estendam no solo (1 ponto).
forma autossómica dominante . Com base nestes parâmetros de avaliação, con-
O subtipo VII-C ou dermatosparaxis caracteri- sidera-se hipermobilidade nos casos com pontua-
za-se por pele frágil e redundante, hérnias de ções iguais ou superiores a 5/9.
grandes dimensões, laxidão articular e sinais dis- Os pés planos e a escoliose fazem também
mórficos; transmite-se de modo autossómico parte das manifestações articulares das SED.
recessivo. Poderá verificar-se igualmente osteopénia.
Descreveu-se uma forma progeróide de SED
caracterizada por hiperlaxidão cutaneoarticular, Outras
atraso mental, estatura baixa, aspecto simile A fragilidade das estruturas vasculares explica o
progéria e periodontite. frequente aparecimento de hematomas secundá-
Actualmente debate-se a existência indepen- rios a traumatismos mínimos, assim como o
dente doutras variedades de SED: o tipo V de aumento do tempo de hemorragia e a tendência
transmissão ligada ao sexo, a forma VIII ou peri- hemorrágiaca em intervenções cirúrgicas e
odontótica, a forma X associada a deficiência de extracções dentárias
fibronectina, e outras formas inespecíficas. Na SED I podem surgir prolapso mitral e hér-
A síndroma de Menkes, anteriormente classifi- nias viscerais.
cada como SED IX, já não se inclui hoje neste grupo. Na SED VI por vezes verifica-se o aparecimen-
to de escleróticas azuis, podendo produzir-se rup-
Manifestações clínicas tura do globo ocular com traumatismos mínimos.
Na SED IV o maior risco é a ruptura espon-
Cutâneas tânea de artérias e vísceras ocas, assim como a
A pele é fina, de aspecto atrófico e hiperelástica, ruptura uterina durante a gravidez.
excepto na SED IV. Verifica-se pregueamento exces-
sivo da pele ao deslizar-se o dedo do observador Exames complementares
sobre a mesma, voltando à posição inicial ao cessar
o estiramento,ao contrário do que acontece com a O diagnóstico baseia-se na clínica. Em casos espe-
cutis laxa em que o pregueamento se mantém. ciais recorre-se á biópsia cutânea para análise da
(Capítulo 231) ultrastrutura do colagénio mediante microscopia
Nas áreas de atrito, como cotovelos, joelhos ou electrónica, análise da produção de colagénio V
regiões pré-tibiais, a pele tem aspecto brilhante, anómalo por cultura de fibroblastos, ou detecção
por vezes hiperpigmentada, com frequentes cica- de mutações genéticas.
trizes de aspecto papiráceo ou de papel de fumar. Em função do contexto clínico e perante sus-
peita de osteopénia poderá proceder-se a absor-
Articulares e ósseas ciometria DEXA.
A hipermobilidade articular, característica da A arteriografia está contraindicada.
doença, predispõe a lesões ligamentosas e luxações Na SED IV deve proceder-se ao ecocardiograma
recidivantes que poderão conduzir a artroses. com periodicidade para excluir aneurisma aórtico.
CAPÍTULO 232 Síndroma de Alport 1145
Diagnóstico diferencial
Manifestações clínicas
233
Estão descritos casos raros, associados a SA, de
leiomiomas do esófago, tracto respiratório inferior
e genital feminino.
Exames complementares
Manifestações clínicas
FIG. 1
Epidermólise bolhosa em RN (URN/HDE).
CAPÍTULO 233 Epidermólise bolhosa 1147
EB distrófica ou EBD
Neste subtipo de gravidade variável, as bolhas de
conteúdo sero-hemorrágico formam-se sob a
membrana basal; são explicáveis, por anomalias
das fibrilhas do colagénio VII e doutras estruturas.
As lesões, conduzindo mais tarde a cicatrizes e
por vezes a mutilações, são mais frequentes nas
palmas das mãos e plantas dos pés.
A EBD está associada a mutações em COL7A1.
Manifestações extradérmicas
Na EB podem aparecer manifestações nos olhos,
mucosas orificiais, tracto digestivo ou génito-
urinário, e músculos.
As bolhas e cicatrizes orofaríngeas e gastre-
sofágicas podem associar-se a complicações gra-
ves e causar infecções secundárias, anemia e
desnutrição.
Diagnóstico
234
morbilidade cardiovascular, salientando-se que o
diagnóstico e terapêutica precoces melhoram a
taxa de complicações e a sobrevivência.
Manifestações clínicas
Etiopatogénese
Importância do problema
Tratamento
235
Em determinados casos está indicado o trata-
mento cirúrgico da dilatação aórtica para evitar
dissecção ou insuficiência mitral.
As técnicas de tratamento médico-cirúrgico
permitiram duplicar a expectativa de vida , ele-
vando-se a 65 anos.
Sempre que sejam detectadas anomalias CUTIS LAXA, PSEUDOXAN-
valvulares ou da raiz aórtica é recomendada a
profilaxia antibiótica da endocardite. TOMA ELÁSTICO E SÍNDROMA
A luxação do cristalino também pode requerer
cirurgia. DE WILLIAMS
A escoliose requer fisioterapia e, por vezes,
tratamento cirúrgico. Ignacio Villa Elizaga
As deformações torácicas também poderão
requerer tratamento cirúrgico.
As actividades que levem a descompressões
bruscas, pelo risco de pneumotórax, devem ser 1. CUTIS LAXA
desaconselhadas (subida em ascensores muito
rápidos, viagens em aviões não pressurizados, etc.). Definição
FIG. 1
Cutis laxa em lactente: pregueamento da pele mantido ao cessar o estiramento.
Diagnóstico diferencial
Tratamento
FIG. 2
2. PSEUDOXANTOMA ELÁSTICO
Aspecto de fenótipo da cutis laxa congénita em adolescente;
são notórias hérnias inguniais. (NIHDE) Definição
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PARTE XXV
Ortopedia
1156 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
236
Devido às particularidades anátomo-fisiológi-
cas do esqueleto da criança e adolescentes que os
tornam distintos do adulto, adquire nessas idades
o estatuto de sector especializado – a Ortopedia
Pediátrica – com diferenciação e individualidade
próprias dentro da actividade ortopédica geral,
INTRODUÇÃO À ORTOPEDIA constituindo o objectivo temático da presente
Parte deste Tratado.
PEDIÁTRICA Entre as referidas particularidades, a mais
importante e típica destas idades será o cresci-
J. de Salis Amaral mento, como capacidade intrínseca e única do
esqueleto infantil, desde a origem, para aumentar
as suas dimensões e modelar a sua morfologia até
assumir por completo, no final da adolescência, as
Conceitos fundamentais características do esqueleto do adulto.
Este crescimento, apesar das variações de
Etimologicamente e tal como foi escrito pela velocidade com que se efectua, dependentes, entre
primeira vez por Nicolas Andry em meados do outras circunstâncias, da idade cronológica da
século XVIII, no título de um tratado que escreveu criança e da região anatómica considerada, reali-
sobre a correcção das deformidades na criança, za-se de forma permanente, desde o aparecimento
Ortopedia significa: “arte de corrigir, nas crianças, do esboço ósteo-articular primitivo, cerca da oita-
as deformidades do corpo”. Rapidamente, porém, va semana da gestação, até à completa maturi-
estendeu-se este termo ao estudo e tratamento de dade esquelética; por isso, o crescimento repre-
outros tipos de patologia com repercussão domi- senta um factor condicionante básico de toda a
nante sobre o esqueleto, sem distinção da idade patologia ortopédica na idade pediátrica.
do doente, e generalizou-se a partir do final do Assim, face a determinada situação patológica
século XIX a toda a patologia do aparelho loco- ortopédica, tratando-se de um organismo em cres-
motor. Na actualidade, embora a denominação cimento e desenvolvimento, às alterações primá-
deste ramo da Medicina se tenha mantido inalte- rias decorrentes da própria lesão músculo-
rada, traduz um âmbito muito mais amplo, esquelética, há que associar sempre uma avaliação
podendo-se definir, de forma abreviada, e de acor- do potencial de crescimento remanescente no se-
do com a Academia Americana de Cirurgia gmento anatómico afectado, porque dele depende
Ortopédica, como “a especialidade que com- a magnitude e o tipo das alterações secundárias
preende o diagnóstico, tratamento, reabilitação e resultantes da referida lesão. Este potencial tanto
prevenção das lesões e doenças do sistema mus- pode actuar em desfavor como em benefício do
culo-esquelético”. doente, o que significa a possibilidade de originar
Este sistema músculo-esquelético desempenha e agravar deformidades, ou de as prevenir e corri-
basicamente três tipos de funções primordiais: a gir se, pelo contrário, for bem aproveitado e con-
de depósito e reserva de elementos indispensáveis duzido.
à vida do organismo, de suporte e protecção de A ambivalência deste factor dá relevância a
estruturas nobres importantes, e a de protagonista uma outra característica importante e bem visível
na postura e na mobilidade dos diferentes seg- da Ortopedia Pediátrica, na sua vertente terapêu-
mentos anatómicos em que habitualmente dividi- tica; referimo-nos à prevenção das alterações ou
mos o corpo humano. deformidades do crescimento. Como é evidente,
Em virtude desta sua última função, cumpre um esta prevenção (que, em determinadas circunstân-
papel fundamental na locomoção e, através dela, na cias poderá ser possível na fase pré-natal), será
vida de relação do indivíduo de qualquer idade, sempre muito mais fácil de executar e com resul-
contribuindo na criança, de forma secundária mas tados mais gratificantes do que a correcção das
determinante, para o seu desenvolvimento. deformidades, uma vez estabelecidas.
CAPÍTULO 236 Introdução à Ortopedia Pediátrica 1157
Ainda no que se refere ao tratamento destas mente com as cartilagens de crescimento, para o
situações, seja ele preventivo ou curativo, será aumento gradual das dimensões e forma da peça
conveniente salientar a necessidade de o equa- óssea correspondente. Nos ossos longos, protago-
cionar sempre também numa perspectiva de nistas do crescimento do esqueleto na sua dimen-
longo prazo, para a eventualidade de futuras são mais aparente, ou seja, em comprimento, entre
exigências terapêuticas adicionais na idade adulta as distintas cartilagens de crescimento existentes,
que podem ficar comprometidas se ignorarmos ou as mais importantes do ponto de vista fisiopa-
minimizarmos esta condição. tológico e clínico, são as chamadas cartilagens de
Na presente Parte optou-se por uma abor- conjugação. Trata-se de estruturas com alto nível
dagem sucinta das situações mais comuns que de diferenciação histológica e funcional, respon-
afectam o sistema músculo-esquelético, dividin- sáveis pelo crescimento longitudinal do osso,
do-a em dois sectores. No primeiro faremos algu- localizadas nas respectivas metáfises e interpostas
mas considerações sumárias sobre factores de no tecido ósseo; aquelas constituem, pela sua
ordem geral, relativos às características do es- natureza cartilagínea, um segmento de menor
queleto da criança e à sintomatologia habitual da resistência mecânica, susceptível de se fracturar
sua patologia, para, no segundo sector, subdividi- ou descolar do tecido ósseo subjacente, dando
do em duas secções, nos referirmos à patologia assim origem a transtornos do crescimento, de
não traumática e traumática deste grupo etário. gravidade variável. Se, como dissémos, as pode-
Na impossibilidade evidente de nos alongarmos mos considerar estruturas frágeis do ponto de
nestas considerações, tivémos como objectivos vista mecânico, por outro lado, ao estarem inter-
essenciais transmitir os aspectos práticos que per- postas no tecido ósseo desta zona anatómica dos
mitam chegar ao diagnóstico correcto da situação ossos longos, servem habitualmente de barreira à
e a uma avaliação das suas consequências, pro- expansão de lesões de natureza infecciosa ou
porcionar a informação básica relativa à terapêuti- tumoral localizadas na sua vizinhança.
ca adequada, e prover orientações para o enca- As referidas características do esqueleto infan-
minhamento atempado dos doentes para o espe- til, cujo potencial é máximo à nascença, vão-se
cialista. atenuando gradualmente com a idade, acabando
por desaparecer no final da adolescência, quando
Considerações gerais sobre semiologia o indivíduo atinge a idade adulta.
Passando agora à abordagem dos aspectos
O esqueleto na idade pediátrica distingue-se do semiológicos revelados por um exame clínico ade-
esqueleto do adulto, conforme já dissémos, por quado, importa considerar que, se a qualidade
apresentar um determinado número de caracterís- deste exame é fundamental na prática clínica de
ticas que o individualizam no seu comportamento qualquer especialidade, na Ortopedia tem uma
não só fisiológico, habitual, como também na importância capital porque, com frequência, dá-
forma como responde às agressões que o atingem. nos de imediato o diagnóstico, ou para ele nos
As mais importantes são: a sua maior elasticidade, orienta, conseguindo-se chegar a uma conclusão
uma grande capacidade de remodelação, a pre- acertada mediante o recurso a poucos e simples
sença de um periósteo espesso e a existência das exames complementares. Na Ortopedia Pediátri-
cartilagens de crescimento, nomeadamente das ca, embora esta característica se mantenha, ao
chamadas cartilagens fisárias, de conjugação ou abranger doentes numa faixa etária em que se pro-
simplesmente fises. duzem profundas transformações orgânicas e
Se as primeiras lhe permitem ter uma maior comportamentais, esse exame assume aspectos
plasticidade, adaptando-se melhor às forças a que particulares e impõe condicionalismos a que de-
se encontra sujeito, mantendo ou readquirindo a vemos atender.
configuração que lhe é própria, a espessura do Assim, na observação clínica de uma criança
periósteo, além de constituir um invólucro robus- pequena, quase sempre irrequieta ou amedronta-
to do tecido ósseo subjacente, contribui, pela sua da, não é possível aplicar a metodologia habitual,
grande capacidade de regeneração óssea, junta- longa e exaustiva, utilizada no exame do adulto.
1158 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Requerem-se por isso, da parte do médico, imagi- velha e no adolescente, já será possível e obri-
nação e experiência para saber seleccionar rapida- gatório investigar a localização exacta da dor e sua
mente, a partir da história, o conjunto de manobras eventual irradiação.
exploratórias, de execução simples e breve, ade- A sua duração e natureza, bem como as cir-
quadas à detecção da causa das queixas actuais. cunstâncias que determinaram o seu aparecimen-
Por outro lado, é preciso saber que a sintoma- to e as que a aliviam ou a agravam, interferindo
tologia de determinadas situações patológicas ou não com o sono (esclarecendo-nos sobre a sua
nem sempre se revela de forma constante no intensidade e permanência), são outros tantos
decurso das várias etapas do crescimento; por aspectos que interessa averiguar, por serem orien-
exemplo, as infecções dos discos intervertebrais tadores de um possível diagnóstico. Assim, por
(discites) na criança pequena podem manifestar- exemplo, uma dor persistente, sem causa apa-
se inicialmente por uma incapacidade para a mar- rente, não muito intensa, localizada na zona
cha; mais tarde, apenas por alterações do estado metafisária e prolongando-se ao longo de sema-
geral; e, na adolescência, por dor local na coluna nas, pode ser sugestiva de lesão tumoral. A dor
vertebral. Portanto, o exame clínico deverá ser aguda, intensa, pulsátil, justa-epifisária ou arti-
realizado tendo sempre em conta, não só a suspei- cular faz suspeitar de lesão inflamatória ou infec-
ta da patologia em causa, como também a idade ciosa.
do doente. Quanto à deformidade, tomada no sentido
Reportando-nos agora apenas aos sinais e sin- lato de alteração da forma ou da aparência habi-
tomas locais das afecções ortopédicas, e abstrain- tual, tanto dos membros como do tronco (ou de
do dos sintomas gerais eventualmente associados, qualquer um dos seus segmentos anatómicos), é
são três os achados semiológicos principais, bási- necessário sublinhar que a criança se adapta facil-
cos, habitualmente presentes neste tipo de situa- mente à mesma, contrariamente ao que se passa
ções: dor, deformidade e impotência funcional. É no adulto, não lhe causando em geral grande limi-
porém evidente que em Pediatria, a comprovação tação funcional.
exacta do predomínio relativo de qualquer um Os pais são os primeiros a detectá-la e a for-
deles será muito variável, dependendo não só do necerem toda a informação desejada, mas é im-
tipo da doença e sua fase de evolução, como tam- portante caracterizar bem o que, neste âmbito, se
bém até da capacidade de avaliação e comuni- entende por patológico, principalmente no caso
cação das queixas por parte do próprio doente, o de este tipo de queixas surgir isolado. Com gran-
que estará em relação directa com a idade e de frequência os pais recorrem ao médico porque
respectivo desenvolvimento neuropsíquico. Será, descobriram no filho o que, no seu entender, con-
por isso, muito diferente a maneira como uma cri- sideram ser deformidades, esperando daquele a
ança pequena, outra em idade escolar, e um ado- confirmação da anomalia e exigindo a imediata
lescente, manifestam a presença e intensidade de actuação terapêutica. Acontece, porém, que na
sintomas, competindo ao médico a responsabili- maioria dos casos, os invocados problemas não
dade e o engenho necessários à sua adequada car- passam de situações sem qualquer significado
acterização. patológico, traduzindo variantes da normalidade
A dor é um sintoma importante a valorizar que se corrigem muitas vezes espontaneamente
devidamente porque em Ortopedia Pediátrica e, durante o desenvolvimento subsequente da cri-
contrariamente ao que se passa no adulto, tem ança.
uma causa orgânica em mais de 80% dos casos. Haverá, por isso, que investigar e interpretar
Porém, na criança pequena, incapaz de se expri- correctamente certas alterações, enquadrando-as
mir de forma adequada, este sintoma manifesta-se no conjunto da restante sintomatologia, e inqui-
muitas vezes apenas pelo choro mais ou menos rindo especialmente sobre a sua localização,
contínuo ou intenso, aumentando com a tentativa natureza e duração (quando e como começou; se
de mobilização da parte afectada, e na recusa em tem sido progressiva, e rapidez dessa progressão).
mobilizar ou utilizar o segmento anatómico do A impotência ou incapacidade funcional é
membro atingido pela lesão. Na criança mais outro dos sintomas dominantes na patologia orto-
CAPÍTULO 236 Introdução à Ortopedia Pediátrica 1159
pédica; trata-se do achado relacionado com a dor e actuais, para terminar na área anatómica exacta
a deformidade, e no grupo etário mais baixo pode das referidas queixas.
constituir o único aparente. É mais evidente quan- O pormenor com que se procederá a estas dis-
do se estabelece de forma aguda e relacionado com tintas etapas dependerá do tipo de patologia e das
um episódio recente, por exemplo, de natureza circunstâncias particulares do doente, aspectos
traumática ou inflamatória. Outras vezes instala-se estes primariamente esclarecidos pela anamnese,
de forma insidiosa e gradual, tornando-se menos com a qual, porém, todos os achados do exame
perceptível, devido aos mecanismos de compensa- objectivo devem ser permanentemente confronta-
ção funcional que a criança facilmente encontra e dos e testados, como única forma de se chegar a
aos quais se adapta. Todos estes aspectos deverão, uma interpretação fidedigna de toda a informação
por isso, ser convenientemente investigados e recolhida e, daí, a um diagnóstico correcto.
valorizados na colheita da história clínica. Sublinha-se que um exame objectivo adequa-
Os três sintomas/sinais principais que acabá- do exige a colaboração do doente e familiares, o
mos de mencionar estão sempre relacionados que neste grupo etário, principalmente na criança
entre si, podendo haver predomínio de um ou pequena, não é fácil de conseguir. Irá depender da
outro consoante a patologia presente e as circun- sua idade, desenvolvimento, comportamento,
stâncias próprias do doente. No entanto, como educação e relacionamento com os familiares di-
princípio orientador, será importante não esque- rectos (que, por vezes dificultam mais do que aju-
cer o conhecido aforismo: “a criança que se quei- dam) e da paciência, capacidade de improvisação
xa tem quase sempre razão até prova em con- e experiência do médico que o atende. Sem estes
trário”. atributos onde prevalece o chamado bom senso
Isto significa que, nestas idades, a grande clínico, arriscamo-nos a transformar este exame
maioria dos doentes com sintomatologia evidente numa cena de luta inglória com a criança e os
do tipo referido, tem uma causa orgânica subja- familiares, com total impossibilidade de se chegar
cente que a explica e que importa investigar. No a conclusões válidas.
adolescente, tal não é tão evidente, aproximando- Por isso, a estratégia acima referida, é apresen-
se do que se passa nos adultos: muitas vezes as tada apenas como orientação genérica, devendo
queixas deste foro podem ter um componente ser adaptada a cada caso concreto, segundo as
emocional ou psíquico que as potencia ou deter- suas características peculiares, não hesitando o
mina, com o que será necessário contar para uma clínico em passar imediatamente à última fase, a
interpretação correcta das mesmas. do exame local se for julgado conveniente, em vez
Considerando-se os sintomas/sinais descritos de esgotar a débil capacidade de atenção e colabo-
como os mais frequentes e notórios colhidos na ração da criança em manobras exploratórias sem
anamnese e exame objectivo de doentes desta utilidade prática imediata na elaboração do dia-
faixa etária com patologia ortopédica, torna-se gnóstico.
depois necessário proceder à sua caracterização e Nunca será demais repetir que o exame objec-
interpretação com rigor. tivo deve ser realizado nas melhores condições
Como na maioria das situações ortopédicas – possíveis no que diz respeito às instalações, com o
incluindo muitas das doenças sistémicas com doente despido e na presença dos pais ou fami-
repercussão músculo-esquelética – as lesões têm liares. A sua execução, independentemente da
carácter predominantemente regional ou local; é, citada estratégia, custuma obedecer a uma siste-
por isso, conveniente adoptar uma estratégia matização que compreende as três etapas clássicas
definida na execução do referido exame objectivo. de inspecção, palpação e mobilização. Se é pre-
Embora cada observador possa seguir a que mais ferível e didacticamente mais correcto que estas
lhe convier, julgamos aconselhável sistematizar etapas se processem de acordo com a referida
essa abordagem clínica, sugerindo, por exemplo, ordem, nada impede que a experiência do clínico
começar-se pela observação global do doente, pas- e o tipo de patologia presente determinem a modi-
sando depois à observação regional (membros e ficação do esquema indicado, permitindo realizá-
tronco), particularmente na zona das queixas las em simultâneo.
1160 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Na Ortopedia Pediátrica, tal como acontece diagnóstico clínico sem que se tenha de recorrer a
noutra áreas da Medicina, para a confirmação do provas mais complicadas e caras.
diagnóstico não são necessários habitualmente
múltiplos e dispendiosos exames complementares; Sistematização
na maioria das vezes os referidos exames comple-
mentares de diagnóstico resumem-se aos exames Nesta Parte serão abordadas de forma necessaria-
laboratoriais clássicos para avaliação global da mente sucinta e genérica, algumas das situações
situação, a que se acrescentam os específicos em mais correntes do foro ortopédico que afluem às
função da área da patologia infecciosa e infla- consultas de Pediatria e para as quais os ortope-
matória, e aos exames imagiológicos; salientam-se distas são muitas vezes solicitados a dar parecer.
a radiologia simples do esqueleto, a tomografia Procuraremos dar uma noção da sua frequência,
axial computadorizada (TAC), a ressonância ma- importância do ponto de vista clínico e orientação
gnética nuclear (RMN), a ecografia e a cintigrafia. terapêutica. O Quadro 1 sistematiza os tópicos a
Com este leque de possibilidades no âmbito referi- abordar nos capítulos seguintes.
do é quase sempre possível confirmar ou excluir o
BIBLIOGRAFIA
QUADRO 1 – Sistematização ortopédica A bibliografia dos capítulos referentes à Ortopedia é incluída a
pediátrica seguir ao capítulo 244.
Os capítulos 245 e 246 referem-se a aspectos da reabilitação
Patologia não traumática motivada por problemas ortopédicos, cuja bibliografia se
• Patologia geral: segue ao último. (consultar Capítulo 10).
– Infecções
– Tumores
– Desvios axiais dos membros
• Patologia regional específica:
– Membro superior
– Membro inferior:
a. Coxofemoral:
– Anca dolorosa (sinovite transitória; epifisiólise
femoral proximal, doença de Legg-Calvé-
Perthes)
– Alterações da mobilidade (anca instável – dis-
plasia de desenvolvimento da anca; anca blo-
queada)
– Deformidade
b. Joelho
– Dor (gonalgia)
– Alterações da mobilidade
– Deformidade (osteocondroses; genu varum;
valgum; flexum e recurvatum)
b. Pé
– Dor
– Deformidade (pé valgo e pé cavo; pé boto)
– Tronco
– Dor (cervicalgia, dorsalgia e lombalgia)
– Deformidade (torcicolo; escolioses; cifoses;
espondilólise e espondilolistese)
Patologia traumática. Noções gerais
CAPÍTULO 237 Osteomielite 1161
237
frequente abaixo dos 5 anos, nalguns centros com
maior incidência que o S aureus), Streptococcus do
grupo A, Salmonella (sobretudo em casos de drepa-
nocitose), espécies Candida e bactérias Gram-negati-
vas (sobretudo em infecções nosocomiais), Strepto-
coccus do grupo B e Treponema pallidum (sobretudo
OSTEOMIELITE em recém-nascidos). Haemophilus influenzae do tipo b
é hoje menos frequentemente implicado devido à
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo imunização realizada a partir da idade dos 2 meses.
Os microrganismos atingem o osso essencial-
mente de duas formas: 1) disseminação hematogé-
nica a partir de foco infeccioso vizinho; ou à dis-
Definição e importância do problema tância (pele, amígdala, ouvido médio, etc.) que
corresponde à forma mais frequente em crianças e
A osteomielite é uma infecção óssea frequentemente lactentes; 2) inoculação directa na sequência, por
causada pela colonização e proliferação de germes exemplo, de acto cirúrgico, procedimento invasi-
bacterianos, e mais raramente fungos e vírus, vo ou lesão traumática.
atingindo todos os elementos constituintes do osso. O microrganismo, atingindo o tecido ósseo,
De acordo com a evolução clínica distinguem-se as localiza-se habitualmente ao nível das metáfises
formas aguda e crónica; nas crianças é típica da dos ossos longos. Esta localização explica-se pelas
primeira a chamada osteomielite hematogénica; na características regionais da própria rede vascular
forma crónica distinguem-se dois tipos: a intra óssea, derivada da artéria nutritiva do osso;
osteomielite crónica ab initio, sem fase aguda prévia tal rede é constituída por ansas longas, dilatadas,
– denominada abcesso de Brodie; e a crónica, como de paredes muito finas, responsável pela dimi-
evolução de uma forma aguda precedente. nuição da velocidade circulatória, o que favorece a
A osteomielite aguda surge com uma incidên- implantação e multiplicação dos germes com for-
cia de cerca de 1/5.000 crianças com idade inferi- mação de um microabcesso. Com a antibioticote-
or a 13 anos; metade desta relação verifica-se em rapia precoce e em dose correcta, a situação não
idades inferiores a 5 anos (cerca de um terço com ultrapassa normalmente esta fase; se tal não acon-
idades inferiores a 2 anos). Predomina no sexo tecer, a lesão evolui e o material purulento difunde-
masculino na razão de 2,5/1. se rapidamente através dos canais de Havers, pro-
Neste capítulo é dada ênfase à osteomielite gredindo para a cortical (abcesso subperióstico) e
aguda hematogénica. para o canal medular, com necrose isquémica do
tecido ósseo perifocal e a possibilidade de for-
Etiopatogénese mação de sequestros (fragmentos de osso necrosa-
do) (Figura 1). Numa fase ainda mais avançada do
Maioritariamente provocada por Staphylococcus processo infeccioso, o abcesso subperióstico pode
aureus (sensível ou resistente à meticilina), afecta perfurar os tecidos moles interpostos e fistulizar,
recém-nascidos, crianças e adolescentes, sendo cerca com drenagem espontânea de pus para o exterior.
de duas vezes mais frequente do que a artrite séptica. Se a metáfise onde ocorrem estas transfor-
Certas estirpes de S. aureus (que produzem uma toxi- mações é intra-articular, ou seja, se faz parte da
na: leucocidina de Panton e Valentine ou LPV), estão extremidade óssea articular cuja respectiva cápsula
associadas a formas graves de osteomielite e artrite. se insere abaixo das cartilagem de conjugação,
Tais estirpes são geralmente sensíveis à meticilina. como acontece a nível da extremidade superior do
Nas infecções adquiridas na comunidade existe fémur e da extremidade proximal do rádio, a per-
maior probabilidade de se verificar a comparticipação furação do abcesso subperióstico faz-se para dentro
de estirpes de S. aureus sensível à meticilina. da articulação, dando origem a uma artrite séptica.
Outros germes poderão estar implicados como No caso do chamado abcesso de Brodie ou
Kingella kingae (bacilo Gram-negativo cada vez mais osteomielite crónica ab initio, a situação não evolui
1162 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Diagnóstico diferencial
A B C
O diagnóstico diferencial da situação clínica com
os sinais atrás descritos, em função de determi-
nadas localizações, deve fazer-se, essencialmente,
com artrite infecciosa, enfarte ósseo (no contexto
da drepanocitose), celulite, fascite, discite, artrite
reuma-tóide, e neoplasia maligna óssea. Relativa-
mente a esta última, cabe realçar, sobretudo nas
crianças a partir dos cinco anos, o sarcoma de
A – Formação metafisária de microabcesso com pus e osteólise focal;
B – Progressão do pus para a periferia, rotura do periósteo (abcesso Ewing que, nas fases iniciais, tem um comporta-
subperióstico) e reacção periostal em “casca de cebola”; mento clínico e imagiológico muito semelhante.
C – Ossificação periostal, osteólise irregular, necrose óssea e
formação do sequestro.
Exames complementares
FIG. 1 O hemograma pode revelar leucocitose com neu-
Representação esquemática da evolução de um foco de trofilia, por vezes acompanhada de aparecimento
osteomielite aguda. de neutrófilos imaturos no sangue periférico. A
proteína C reactiva (PCR) e a velocidade de sedi-
com a exuberância acima referida; por aumento mentação com valores elevados revelam, em geral,
da resistência do hospedeiro e/ou virulência mo- sensibilidade para o diagnóstico e baixa especifici-
derada do germe, o organismo consegue delimitar dade; refira-se, no entanto, a importância da sua
o processo, conferindo-lhe características de croni- determinação seriada, a ponderar caso a caso para
cidade, sendo escassos ou moderados os sinais valorizar a situação; a descida dos valores da PCR
clínicos e imagiológicos. constitui um dos critérios de evolução favorável
uma vez iniciado o tratamento antimicrobiano.
Manifestações clínicas Nas formas causadas por S. aureus LPV é fre-
quente leucopénia inicial.
O quadro clínico, que pode variar com a idade, A hemocultura é positiva em cerca de 30% a
é caracterizado habitualmente pelo início brus- 60% dos casos.
co, com dor intensa, metafisária, exacerbada à Nas fases iniciais do processo infeccioso, o
mínima pressão local, acompanhando-se de fe- estudo radiográfico simples não revela alterações;
bre elevada e alteração do estado geral. Com a em geral, somente a partir de duas a três semanas
difusão da infecção verifica-se edema do se- de evolução, são detectados os primeiros sinais
gmento do membro afectado e marcha claudi- anómalos – descolamento/elevação inicial e, ulte-
cante no caso de localização. Nos recém-nasci- riormente, espessamento do mesmo periósteo (em
dos podem surgir sinais sistémicos e quadro de estratos sobrepostos e concêntricos, corresponden-
pseudoparalisia ou imobilidade do membro, do à descrição clássica da imagem em casca de cebo-
explicável pela dor. la), associado a zonas de osteocondensação e
Nas formas provocadas por S. aureus LPV o qua- osteólise metafisárias, com padrão desigual.
dro clínico integra formas invasivas, sistémicas Mais tarde, no caso de a infecção prosseguir
com choque e possibilidade de fascite e miosite sem tratamento ou com tratamento inadequado,
necrosantes e ainda trombose séptica profunda intensificam-se as imagens descritas a que se asso-
e pneumonia. ciam sinais de necrose/osteólise irregular. Como
Os ossos mais frequentemente afectados são o resultado da necrose, nas situações de processo
úmero, a tíbia e o fémur (70% a 75% dos casos). As crónico, formam-se os chamados sequestros ou
infecções dos pequenos ossos das mãos e dos fragmentos de osso esclerosado, não vasculariza-
ossos achatados, no conjunto, surgem em 25 a 30% do que se traduz na radiografia simples por uma
dos casos. imagem de condensação cálcica, irregular, separa-
CAPÍTULO 237 Osteomielite 1163
Prognóstico
238
Os germes bacterianos implicados na artrite sép-
tica são os mesmos que provocam a osteomielite,
salientando-se os seguintes agentes: S. aureus sen-
sível ou resistente à meticilina, S. aureus produtor ou
não de LPV e Kingella kingae. Refira-se que a doença
de Lyme (ver Capítulo 293) pode incluir no seu
ARTRITE SÉPTICA quadro clínico – forma tardia – a manifestação de
artrite, e que a etiologia relacionável com o
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo Haemophilus influenzae do tipo b e o S. pneumoniae
tem diminuído com a aplicação das respectivas
vacinas a número cada vez maior de crianças.
Por outro lado, conforme o “terreno” clínico, o
Definição e importância do problema tipo de agente microbiano pode divergir dos mais
frequentes. Assim, por exemplo, em situações de
A artrite séptica ou supurada é uma infecção do drepanocitose, haverá alta probabilidade de estar
espaço articular que (na criança) resulta, na maio- em causa o S. pneumoniae; em casos de síndroma
ria das vezes, de disseminação hematogénica bac- de imunossupressão serão os Gram-negativos os
teriana. agentes mais prováveis; nas feridas penetrantes
Este tipo de patologia tem especial importância do pé ou de artrite de inoculação, serão, respecti-
por duas razões essenciais: a gravidade clínica sus- vamente, Pseudomonas ou S. aureus e Gram-nega-
ceptível de interferir com o prognóstico funcional tivos e anaeróbios; e nos adolescentes sexual-
e por vezes vital do indivíduo afectado; e a signi- mente activos a N. Gonorrhoeae (doença gonocóci-
ficativa incidência anual, sendo de referir que em ca). Esta última situação, hoje mais rara, é acom-
países ditos desenvolvidos são atingidas 10 crian- panhada, na sua fase precoce, de exantema febril e
ças/ano em cada 100.000, números que incluem compromisso poliarticular simétrico, designando-
todas as articulações. Esta proporção aumenta em se este conjunto de sinais por síndroma artrite-
regiões quentes e húmidas e em populações com dermatite (artite com líquido sinovial estéril ape-
condições socioeconómicas precárias. sar de bacteriémia comprovada). Na fase tardia
Podendo surgir em qualquer idade, cerca de surge compromisso monoarticular com isolamen-
30% dos casos ocorre antes dos 2 anos e 50% antes to frequente do germe microbiano em causa.
dos 3 anos. O joelho é a articulação mais fre- A presença de bactérias (ou dos seus metaboli-
quentemente atingida depois dos 2 anos, e a anca tos) no interior da articulação tem as seguintes
antes dessa idade, nomeadamente no recém- repercussões:
nascido. As artrites do joelho e da anca correspon- – Consequências histoquímicas:
dem a cerca de 85% de todos os casos de artrite em • Condrólise (por aumento local das enzimas
idade pediátrica. de origem bacteriana);
• Inibição da regeneração cartilagínea (pela
Etiopatogénese redução da produção de líquido sinovial,
pela redução da síntese dos proteoglicanos e
Várias são as vias pelas quais os agentes infec- pela imobilização da própria articulação).
ciosos podem atingir uma articulação: – Consequências mecânicas:
• Via hematogénica (é a mais frequente, verifi- • Compressão vascular;
cando-se em mais de 80 % dos casos); • Luxação articular ou epifisiólise, nos casos
• Disseminação de osteomielite na proximi- particularmente graves.
dade;
• Infecção periarticular; Manifestações clínicas
• Procedimentos diagnósticos ou terapêuticos
invasivos (iatrogenia); Após a realização da anamnese, tendo o cuidado
• Feridas perfurantes. de averiguar as circunstâncias em que surgiu a sin-
CAPÍTULO 238 Artrite séptica 1165
tomatologia presente, quando se observa uma cri- articulação profunda como a coxofemoral), au-
ança com suspeita de artrite séptica, há que ter em mento do espaço articular (indicativo de presença
conta um conjunto de sinais gerais e locais. de derrame intra- articular) e rarefação óssea epi-
– Sinais gerais: hipertermia; anorexia; irritabi- fisária e metafisária.
lidade; prostração; no conjunto, estes sinais Nas fases tardias da artrite surgem já sinais
indicam um estado geral comprometido, com evidentes da natureza destrutiva do processo
franca aparência de criança em “estado de infeccioso, como a diminuição e irregularidade
doença”. Nos recém-nascidos, deve-se dar parti- marcadas da interlinha articular, deformidades
cular atenção a manifestações clínicas mais discre- das epífises e metáfises correspondentes, altera-
tas, ou incaracterísticas como a pseudoparalisia de ções imagiológicas do respectivo tecido ósseo
um membro que, por vezes, constitui o único (osteorrarefacção e osteocondensação) e perda
achado positivo nestas situações de artrite. mais ou menos completa do contacto entre as
– Sinais locais: perda dos contornos ósseos da superfícies articulares (subluxação ou luxação).
articulação; aumento da temperatura local e rubor; Quanto aos restantes exames imagiológicos, a
derrame articular com onda de choque positiva (no ecografia tem interesse para a detecção e avaliação
caso do joelho, pode haver acumulação de líquido do derrame articular (particularmente na coxo-
até 200 cc); limitação dolorosa da mobilidade. femoral – articulação de difícil acesso à exploração
De acordo com o período evolutivo, a artrite clínica pelo volume considerável de tecidos moles
séptica pode classificar-se em aguda (1ª semana), envolventes); a cintigrafia permite excluir a osteo-
subaguda (2ª-4ª semana) e crónica (mais de 4 se- mielite (através da marcação de leucócitos); a
manas de evolução). tomografia axial computadorizada (TAC) é ideal
para avaliar as alterações do tecido ósseo (exten-
Exames complementares são do processo destrutivo e a presença de seques-
tros), e a ressonância magnética nuclear (RMN),
As análises de sangue (hemograma, velocidade de exame elucidativo na detecção de alterações dos
sedimentação e doseamento da proteína C reacti- tecidos moles, permitindo avaliar o grau de des-
va) revelam, em geral, leucocitose e elevação dos truição da cartilagem e distinguir a artrite do
restantes parâmetros. No entanto, a punção arti- abcesso profundo e da celulite.
cular (artrocentese), com aspiração e/ou lavagem
articular, seguida de análise do líquido articular, Diagnóstico diferencial
constituem os procedimentos de eleição para o
diagnóstico da artrite séptica, que deverão ser Os parâmetros clínicos, laboratoriais e imagiológi-
efectuados em ambiente estéril (bloco operatório) cos que acabámos de enunciar não são exclusivos
e por quem tenha experiência. da artrite séptica, para o diagnóstico da qual se
A hemocultura e o exame cultural do líquido exige o isolamento do germe no líquido articular.
articular são positivos em cerca de 50-60% dos No Quadro 1 é indicado um conjunto de situações
casos. No entanto, devido ao efeito bacteriostático clínicas que importa considerar no diagnóstico
do líquido sinovial, o referido exame cultural do diferencial da artrite séptica.
aspirado articular poderá ser negativo, mesmo no
caso de ser purulento. Tratamento
Na adolescência, o esclarecimento etiológico
da artrite implica a exploração da existência de N. O tratamento antimicrobiano inicial da artrite sép-
gonorrhoeae (exame directo e cultural) em vários tica baseia-se na idade, considerando a probabili-
locais do organismo, como faringe, recto, uretra e dade do germe provavelmente envolvido, e o
colo do útero. resultado da coloração Gram do líquido articular
O exame radiológico convencional nas fases aspirado. Refira-se que antes do início deste trata-
iniciais do processo pode evidenciar alterações: mento, deverá ser feita a tentativa de isolamento
acentuação da opacidade correspondente aos teci- do germe em causa, o que é viável apenas em cen-
dos moles periarticulares (nomeadamente numa tro especializado.
1166 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
239
prognóstico completamente diferentes, sendo os
primeiros muito mais frequentes do que os segun-
dos, e mostrando estes uma prevalência que ronda
os 10 por milhão de habitantes com < 18 anos/ano.
A classificação usualmente adoptada é a his-
tológica, dividindo-os em grupos de acordo com a
TUMORES ÓSSEOS natureza e grau de diferenciação das células origi-
nárias predominantes do tumor; assim, pode con-
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo siderar-se que tumores, tanto benignos como
malignos, podem ser provenientes do tecido
ósseo, cartilagíneo, fibroso, da medula óssea, dos
vasos, ou do mesênquima.
Importância do problema Os tumores benignos caracterizam-se por serem
capsulados, terem um crescimento gradual e não
Considerando os diversos tipos de tumores do sis- invasivo das estruturas vizinhas, não recidivarem
tema músculo-esquelético apenas será feita uma quando correctamente tratados, nem metastizarem,
referência sucinta aos tumores primitivos dos não mostrarem alterações citológicas de malig-
ossos, omitindo os secundários ou metastáticos nidade no exame anátomo-patológico do tecido
(Capítulos 127, 132, 180). tumoral, e terem habitualmente bom prognóstico.
Os tumores primitivos dos ossos ocorrem pre- Pelo contrário, os tumores malignos têm cres-
dominantemente nas idades jovens (crianças, adoles- cimento rápido, invasivo e destrutivo, com limites
centes e adultos jovens), correspondendo a cerca de muito mal definidos, infiltram os tecidos vizinhos,
20% do total de tumores registados nestas idades. e o respectivo exame anátomo-patológico revela
A sua localização é variável, dependendo do atipias celulares evidentes; por outro lado, recidi-
tipo e natureza do tumor; contudo mostram uma vam e metastizam sempre, aparecendo as metás-
certa preferência pelos ossos longos, e nestes, pela região tases muito precocemente, donde se depreende
epifisiometafisária das chamadas epífises “férteis” dos que o prognóstico é sempre mau.
membros. Denominam-se assim aquelas epífises
que contribuem mais para o crescimento longitu- Manifestações clínicas
dinal dos membros, considerando-se que no mem-
bro superior correspondem às da região proximal As manifestações clínicas dependem do tipo e
do braço e distal do antebraço e, no membro infe- natureza do tumor. Dum modo geral, a anamnese
rior, às da região distal da coxa e proximal da e a observação do doente, associadas à interpre-
perna. Isto significa que estas lesões, no membro tação correcta dos exames imagiológicos adequa-
superior, mostram predilecção pela região do dos, são suficientes para se chegar a um diagnós-
ombro e do punho, e no membro inferior pela tico provisório muito próximo do definitivo. Este
região do joelho. exigirá ainda a identificação histológica do tumor
O osteossarcoma é o tumor maligno primário a partir do material de biópsia, o que nem sempre
mais comum em idade pediátrica (> 10 anos), é fácil pelas dificuldades de interpretação que
seguindo-se em frequência o sarcoma de Ewing. muitas vezes se levantam.
Este último ultrapassa o primeiro em frequência Ainda como elementos orientadores do dia-
abaixo dos 10 anos, sendo que ambos surgem gnóstico, e no que se refere ao exame clínico,
sobretudo na 2ª década de vida com relação seme- podemos considerar a idade do doente (as lesões
lhante quanto ao sexo(M/F) cerca de 1,5/1. neoplásicas são raras antes dos cinco anos de
vida), a sintomatologia geral (repercussão sobre o
Classificação e características estado geral) e a local, destacando nesta a dor, a
impotência funcional e a tumefacção.
Os tumores primitivos dividem-se em dois grandes A dor é o sintoma mais importante; sempre
grupos, benignos e malignos, com características e presente nos tumores malignos, mas não con-
1168 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Exames imagiológicos
Prognóstico
joelhos que “roçam na marcha” (marcha em cir- Acessoriamente e a decidir pelo ortopedista,
cundução), estabilidade e excursão da rótula, poderão ser pedidos outros exames:
avaliação de eventuais desalinhamentos rota- • Radiografias das coxofemorais, ântero-pos-
cionais do membro (anteversão e/ou torção terior e perfis (se a radiografia extralonga
femoral; rotação/torção da tíbia), etc.. detectar anomalias da fise femoral proxi-
Será ainda conveniente quantificar a importân- mal);
cia do desvio, o que se faz executando-se algumas • Radiografia do punho esquerdo para deter-
medições simples (diferentes consoante o desvio); minação da idade óssea;
por norma, com o doente em posição de pé (tam- • Estudo por tomografia axial computadoriza-
bém denominada “em carga” ou “ortostatismo”) e da” (TAC) e por ressonância magnética
com os pés paralelos entre si e perpendiculares ao nuclear (RMN).
plano frontal:
Joelho valgo: neste caso, a avaliação é feita Exames laboratoriais
medindo a distância intermaleolar (DIM), na
posição referida e com os joelhos em contacto pela Em função do contexto clínico (por ex. síndromas
sua face interna (côndilos femorais internos). plurimalformativas) estarão indicados exames
Consideram-se normais valores até aos 2 cm; ultra- laboratorias diversos, como os relacionados com o
passando esta medida distinguem-se três graus de metabolismo fosfo-cálcico. Salienta-se que o tipo
valgismo – ligeiro (DIM entre 2-5cm), moderado de situações referidas poderá requer o apoio mul-
(DIM entre > 5-9cm) e grave (DIM > 9cm). De tidisciplinar, nomeadamente da Endocrinologia e
salientar que esta medição poderá não ser correcta, da Genética Médica.
e a deformidade vir a ser sobreavaliada nos indiví-
duos obesos com coxas volumosas, devido à difi- Orientações para o clínico
culdade em se conseguir o contacto da saliência
dos côndilos femorais (face interna dos joelhos), Apesar de o joelho valgo constituir uma patologia
devendo recorrer-se então à medição radiológica. muito frequente e habitualmente benigna, deverá
Joelho varo: neste caso a avaliação do desvio ser solicitada a observação do ortopedista sempre
faz-se medindo a distância entre a face interna de que se verificar a sua associação a alguma das
ambos os joelhos, com o doente na posição acima seguintes condições:
descrita mas com os pés juntos (maléolos internos • Deformidades múltiplas associadas;
em contacto). O padrão considerado normal do • Valgismo moderado-grave dos joelhos (DIM
varismo altera-se, como já foi referido, ao longo ou distância intermaleolar > 5cm);
dos dois anos primeiros anos de vida, atenuando- • Sintomatologia dolorosa local;
se progressivamente até desaparecer por comple- • Valgismo dos joelhos que não regrediu espon-
to na fase adulta (o joelho adulto tem um discreto taneamente, em crianças de idade superior
valgo, mais acentuado no sexo feminino). aos 6-7 anos.
No caso do joelho varo, sempre que persista
Exames imagiológicos para além dos dois anos de idade, há que encami-
nhar a criança à consulta de Ortopedia.
Os exames imagiológicos destinados a caracteri-
zar os desvios suspeitos como patológicos, podem
ser solicitados pelo pediatra, até para facilitar uma
eventual primeira observação pelo ortopedista.
Eis os recomendados:
• Radiografia extralonga, “em carga” (ortosta-
tismo) dos membros inferiores;
• Radiografias em dois planos, ântero-posterior
e perfil, dos joelhos (para definição de even-
tuais alterações locais).
1172 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
241
tece quando os pais ou educadores levantam ou
suspendem a criança pela mão; ou seja, o membro
superior é submetido a um esticão brusco.
A sintomatologia resume-se a dor intensa e
impotência funcional imediata, com o cotovelo
bloqueado em extensão e pronação. O diagnóstico
PATOLOGIA REGIONAL é fácil e a terapêutica também, embora seja acon-
selhável ser executada por especialista. A mano-
ESPECÍFICA DO MEMBRO bra de redução dessa subluxação consta da mani-
pulação imediata, suave, do cotovelo, reproduzin-
SUPERIOR do o movimento contrário ao que esteve na
origem da lesão; ou seja, realizar simultaneamente
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo a compressão da cúpula radial contra o côndilo
umeral, a supinação e a flexão do cotovelo, man-
tendo este em repouso transitório (“braço ao
peito” com o cotovelo em flexão a 90° e supinação
Importância do problema completa).
O prognóstico costuma ser excelente, pelo que
Excluindo as doenças com compromisso geral do a sua importância não corresponde à intensidade
esqueleto e as situações localizadas ou regionais de das queixas nem ao sentimento de culpa do adul-
natureza congénita, habitualmente raras (si- to, causador involuntário da situação.
nostose radiocubital com bloqueio da prono-su-
pinação, luxação completa ou parcial da cabeça Osteocondroses
radial com proeminência posterior desta e res-
trição da mobilidade do cotovelo, as “mãos botas”, Sob esta designação costuma considerar-se um
etc.), infecciosa e tumoral, pode dizer-se que a conjunto de doenças caracterizadas pelo apareci-
patologia deste segmento anatómico é dominada mento de alterações necrótico-degenerativas, de
pelas situações de origem traumática e suas seque- natureza provavelmente isquémica, mais ou
las, as quais não serão abordadas por ultrapas- menos extensas e localizadas nos núcleos de ossi-
sarem o âmbito do livro. ficação de algumas epífises ou apófises; a causa é
Neste capítulo apenas será feita referência: 1) à desconhecida embora pareça relacionada com
chamada pronação dolorosa de Ombredanne ou traumatismos repetidos. A doença evolui espon-
simplesmente pronação dolorosa, por ser uma taneamente para a cura com revascularização da
situação comum causando alguma perplexidade zona necrótica e reconstituição do tecido ósseo
ao clínico menos habituado a lidar com patologia normal em tempo variável, mas habitualmente
do esqueleto infantil; 2) e às osteocondroses. longo (meses ou até anos), dependendo da sua
localização anatómica.
Pronação dolorosa As mais importantes do ponto de vista clínico
situam-se no membro inferior, pelo que as abor-
Verifica-se nas crianças pequenas (até cerca dos 4- daremos com mais pormenor no capítulo 242. No
5 anos), ainda com grande elasticidade cápsulo- entanto, podem também aparecer no membro
ligamentar e musculatura débil. Consiste numa superior, mas só muito raramente, localizando-se
subluxação da cabeça radial por distensão ou a nível do cotovelo e carpo e recebendo denomi-
ruptura parcial do ligamento anular do rádio que nação diferente consoante o segmento ósseo
se desloca sobre a cabeça deste, interpondo-se às atingido (doença de Panner – côndilo umeral;
superfícies articulares da cúpula cefálica radial e doença de Kienbock – no semilunar; doença de
do côndilo umeral, bloqueando os movimentos. O Burns – cabeça do cúbito).
mecanismo da lesão deve-se à tracção do membro, A sintomatologia, dependendo da localização
em extensão do cotovelo e pronação, como acon- e do estádio de evolução da doença, é dominada
CAPÍTULO 242 Patologia regional específica do membro inferior 1173
242
pela dor, habitualmente moderada, e pela inca-
pacidade funcional, mais ou menos intensa que
lhe está associada. O diagnóstico baseia-se na
clínica e na imagiologia, sendo suficiente o exame
radiológico convencional, em dois planos perpen-
diculares. A imagem visualizada na radiografia
simples corresponde ao estádio de evolução do PATOLOGIA REGIONAL
processo patológico: de início, condensação óssea
(atrofia e hipercalcificação ⁄ necrose), fragmen- ESPECÍFICA DO MEMBRO
tação dessa imagem (revascularização ⁄ início da
reossificação); ulteriormente, normalização das INFERIOR
características radiográficas da zona afectada, com
ou sem alteração da sua morfologia (cura do J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo
processo, com ou sem deformidade residual).
O tratamento é sintomático (antiálgicos e/ou
anti-inflamatórios), a que se associa o repouso ou
descarga da zona afectada, nomeadamente em Relativamente ao grupo nosológico em epígrafe,
período de agudização das queixas dolorosas. O adoptou-se critério de abordagem sucinta, de
prognóstico é, em geral, excelente. acordo com a região anatómica e, dentro desta,
com a sintomatologia mais frequente. (Quadro 1
do capítulo 236).
Anca dolorosa
tação, etc.) à tentativa de mobilização deste, são coxofemoral, de aparecimento mais tardio mas que
manifestações objectivas de dor e deverão sempre se manifesta também por dor intensa. Surge no iní-
levantar a suspeitar de artrite séptica em fase ini- cio da adolescência, entre os onze e os dezasseis
cial, exigindo as medidas já descritas para a sua anos de idade, e está relacionada com as alterações
detecção e tratamento. hormonais dessa fase do desenvolvimento e sua
repercussão sobre as cartilagens de crescimento. É
Sinovite transitória da anca habitual estar associada a traumatismos de intensi-
Na criança já em fase da marcha e até ao final da dade variável, predominando no sexo masculino,
idade escolar (3-8 anos), a causa mais frequente de nomeadamente em indivíduos com um morfotipo
dor na coxofemoral é a chamada sinovite tran- particular, (adiposogenital ou longilíneo).
sitória da anca. Consiste numa situação infla- Consiste numa falência das propriedades
matória da articulação de natureza reactiva, em mecânicas da cartilagem de conjugação ou fise,
geral a um traumatismo, mas também a infla- situada entre a cabeça e o colo femoral, permitin-
mações prévias ou coincidentes noutros locais do do que a epífise, sob a acção das forças que sus-
organismo. Acompanha-se de derrame intra-arti- tenta, e devido à configuração morfológica dessa
cular de volume variável, mantendo-se a sin- extremidade do fémur, vá escorregando sobre o
tomatologia, em regra, cerca de uma semana. topo do colo femoral, no sentido posterior e infe-
A existência de um derrame de dimensões rior, acabando nos casos extremos por ficar
apreciáveis pode originar uma atitude da articu- implantada na porção inferior da face posterior do
lação em semi-flexão, ligeira abdução e rotação referido colo. (Figura 1)
externa; tal corresponde à posição de maior Dependendo do grau de deslocamento, do
capacidade da cavidade articular, espontanea- tempo decorrido desde o início da sintomatologia,
mente adoptada para acondicionar melhor e com e da incapacidade funcional com que se apresenta,
menor tensão esse derrame, numa tentativa in- assim existem outras tantas classificações, numa
consciente de defesa com consequente diminuição tentativa de orientação terapêutica e prognóstica.
da dor. Concomitantemente, e com o mesmo si- A mais recente, e talvez mais determinante neste
gnificado, pode haver incapacidade funcional e aspecto, é a que considera duas formas clínicas: as
limitação da mobilidade, sendo a rotação interna e epifisiólises estáveis e as instáveis.
a adução os primeiros movimentos alterados. Nas primeiras (estáveis) o doente, apesar das
Os exames laboratoriais para avaliação do esta- queixas, consegue fazer marcha sem recorrer às
do geral e da repercussão da doença são inconclu- canadianas e o tratamento adequado é bem sucedi-
sivos. do em cerca de 95% dos casos, sendo o prognóstico
Quanto aos exames imagiológicos, o radiogra- quanto à função bom ou razoável.
ma simples não revela alterações, mas tem inte-
resse para detectar outro tipo de patologia; a
ecografia permite confirmar a presença do der-
rame e respectivo volume.
O tratamento limita-se ao repouso e à adminis-
tração de anti-inflamatórios, evoluindo o episódio
para a cura espontânea, sem deixar sequelas; note-
-se, porém, que não é rara a evolução por crises
repetidas com as mesmas características ao longo
do referido intervalo de idades. Estas crianças
podem vir a desenvolver, mais tarde, uma osteo-
condrose da cabeça femoral, a chamada doença de
FIG. 1
Legg-Calvé-Perthes.
Representação esquemática do deslizamento do núcleo
Epifisiólise femoral proximal cefálico do fémur sobre o respectivo colo: epifisiólise femoral
Trata-se doutra patologia localizada à articulação proximal (EFP).
CAPÍTULO 242 Patologia regional específica do membro inferior 1175
existir, passando a doença despercebida aos pais e resume-se à instabilidade articular, detectável por
evidenciando-se só mais tarde, já na sua fase final, manobras de exploração clínica (de Barlow e
por encurtamento do membro e restrição dos Ortolani) habitualmente utilizadas.
movimentos (rotação interna e abdução). A manobra de Barlow uma vez realizada,
“provoca a saída” da cabeça femoral do acetábulo.
Alterações da mobilidade da anca Para realizar esta manobra, as ancas e os joelhos
devem estar flectidos a 90°. As mãos do obser-
Anca instável vador seguram o membro inferior do recém-
Sendo a coxofemoral uma enartrose (articulação -nascido colocando o polegar na face interna da
constituída por superfície articular de forma prati- coxa e os restantes dedos na face externa. Aplica-
camente esférica), possui, não só uma mobilidade se pressão no joelho em direcção posterior en-
em todos os planos do espaço, como também uma quanto se faz adução do fémur (Figura 4). Se a
estabilidade considerável, acrescida pelas manobra for positiva sente-se um ressalto em
resistentes estruturas cápsulo-ligamentosas que a “clique” que corresponde à luxação da cabeça
integram. Assim, para que a instabilidade se evi- femoral e à sua passagem sobre o rebordo do
dencie, será necessário que os componentes ós- acetábulo.
seos percam a sua morfologia ou as suas relações A manobra de Ortolani é um “sinal de recolo-
anatómicas normais, a qual é intensificada pela cação” da cabeça femoral dentro do acetábulo. A
distensão ou fragilidade das referidas estruturas posição de colocação das mãos é idêntica à da
de contenção. manobra de Barlow. No entanto, o observador
Estas circunstâncias podem ser congénitas, executa uma manobra de abdução enquanto pres-
como no caso da chamada displasia de desen- siona o grande trocânter em sentido anterior e
volvimento da anca, manifestando-se a instabili- interno (Figura 5). Se a manobra for positiva
dade logo à nascença, ou surgir mais tarde, como sente-se igualmente um ressalto e um “clique”
resultado de situações patológicas prévias, princi- que corresponde à redução da cabeça femoral
palmente de natureza traumática ou infecciosa dentro do acetábulo e à sua passagem sobre o
(artrite séptica). rebordo posterior do acetábulo.
Nesta alínea é apenas considerada a displasia No RN com a anca luxada verifica-se retracção
de desenvolvimento da anca (DDA), denomi- dos músculos adutores. Assim, depois de idades
nação que deve substituir a impropriamente superiores a um/três meses, já não é possível
chamada luxação congénita da anca porque, de reduzir a anca com a manobra de Ortolani.
facto, as crianças não nascem com a anca luxada. A obrigatoriedade do diagnóstico precoce,
Como o nome indica, consiste numa alteração feito imediatamente após o nascimento, permite
dos componentes articulares que, embora pre- instituir uma actuação que é relativamente sim-
sentes e completamente formados quando do ples e de êxito assegurado na maioria dos doentes,
nascimento, mantêm uma morfologia e orientação melhorando significativamente o prognóstico.
ainda fetais, consideradas anómalas para uma Esta evidência levou à aplicação em todos os paí-
criança nascitura. Este atraso do desenvolvimento ses, a partir da década de setenta do século vinte,
da articulação, se não for detectado e correcta- de um programa de rastreio clínico desta situação
mente tratado à nascença, persiste; e, nos meses que faz parte obrigatória do primeiro exame clíni-
subsequentes até à idade da marcha, induz as co do recém-nascido. Os casos duvidosos são
condições mecânicas favoráveis à progressiva encaminhados para o especialista para esclareci-
perda de contacto entre as superfícies articulares, mento e eventual tratamento, conseguindo-se com
ou seja, à luxação da coxofemoral. Assim, a luxa- esta estratégia diminuir de forma drástica o
ção é tardia e só ocorre se o diagnóstico passar número de doentes que aparecem já em fase de
despercebido e não der lugar ao tratamento atem- luxação, muito mais difíceis de tratar e de resulta-
pado e adequado. do sempre problemático. (Capítulo 327)
A sintomatologia, como a criança ainda não Os restantes sinais clínicos habitualmente des-
sabe queixar-se e a DDA não se traduz por dor, critos nesta doença, para além da discreta assime-
CAPÍTULO 242 Patologia regional específica do membro inferior 1177
articulares, extenso e íntimo contacto das mes- Sob o ponto de vista fisiopatológico, as referi-
mas). A manifestação clínica de tais alterações é das alterações produzem uma atrofia relativa e
variável, consoante a gravidade da situação: perda de consistência do núcleo de ossificação
desde a restrição ligeira dos movimentos até ao cefálico do fémur, deixando sem suporte adequa-
bloqueio completo ou anquilose da articulação. do a cartilagem articular suprajacente que cola-
Devido aos condicionalismos anátomo-fun- psa, perdendo-se a esfericidade da cabeça femo-
cionais articulares, o primeiro movimento a ficar ral, indispensável à manutenção da mobilidade
limitado é a rotação interna, seguindo-se-lhe a normal da articulação (Figura 6). O referido cola-
abdução e, só depois, os restantes movimentos. pso e consequente deformidade da cabeça femoral
Dependendo da patologia de base e da sua evolu- vão depender da extensão e da localização dessas
ção, esta restrição não progride necessariamente lesões, estando descritas formas clínicas diversas
até à anquilose, que se faz habitualmente com a com elas relacionadas.
anca em posição viciosa de rotação externa, Ao evoluir para a cura, ou seja, para a reossifi-
adução e semi-flexão. Por isso, o que se verifica na cação do núcleo, o resultado final dependerá da
maioria das vezes é a sua estabilização num dos extensão da doença, deformidade já existente,
estádios intermédios, com ou sem regressão ulte- idade da criança e tratamento executado. Em
rior. regra, é possível verificar-se alguma deformidade
A limitação da mobilidade, como sintoma iso- residual, mais ou menos importante que, nos
lado, é rara, acompanhando-se habitualmente de casos piores termina na chamada “coxa magna”;
dor simultânea ou prévia, conforme já foi referido, esta corresponde a uma alteração da forma da
e, por vezes também, de impotência funcional, extremidade superior do fémur, caracterizada por
embora neste caso costume aparecer só mais tarde. cabeça volumosa, mais ou menos aplanada, com
As situações patológicas mais frequentes que colo femoral curto e espesso, e encurtamento do
podem manifestar-se apenas por esta limitação membro respectivo.
são o derrame articular discreto, por exemplo, de As manifestações clínicas iniciais, mais evi-
natureza traumática ou inflamatória, e a doença dentes e importantes, são a limitação da mobili-
de Legg-Calvé-Perthes (ou mais simplesmente dade, concretamente da rotação interna, seguida
doença de Perthes). da abdução. Pode acompanhar-se de dor rela-
A doença de Legg-Calvé-Perthes pertence ao cionada com o movimento, mais ou menos inten-
grupo das denominadas osteocondroses que, con- sa, mas na maioria das vezes discreta ou nula.
forme já referimos, constituem um conjunto de Localiza-se, como dissemos, na virilha e face ante-
afecções de etiologia desconhecida, caracterizadas
pelo aparecimento de alterações necrótico-dege-
nerativas, de natureza isquémica com extensão
variável, e localizadas nos núcleos de ossificação
de algumas epífises ou apófises. Evoluem de
forma espontânea, mas muito lentamente, para a
cura, dependendo a sua gravidade do segmento
ósseo atingido. No caso particular da doença de
Perthes, ao afectar a epífise proximal do fémur,
componente essencial da articulação mais volu-
mosa do corpo humano, a sua importância é con-
siderável, pelas consequências funcionais nocivas
que dela podem resultar.
Aparece nas crianças dos três anos até ao fim da
idade escolar (10-11 anos), com um pico de incidên-
FIG. 6
cia dos três aos oito anos; é mais frequente no sexo
masculino (5/1) e pode ser bilateral em cerca de Doença de Legg-Calvé-Perthes (DLCP): representação
1/5 dos casos (incidência ~1/1.200 crianças). esquemática da evolução da doença (consultar texto).
CAPÍTULO 242 Patologia regional específica do membro inferior 1179
Deformidade coxofemoral
joelho ou até à distância, como já referimos no consideráveis, torna-se notório o aumento de volu-
caso da dor referida proveniente da anca. me do joelho, assumindo este, espontaneamente,
No âmbito da patologia do joelho sobressaem: uma posição viciosa de semi-flexão, correspon-
a de natureza traumática, os processos infeccio- dente à posição de maior capacidade articular. Por
sos e inflamatórios, as osteocondroses, os tumo- isso mesmo, também se denomina posição de defe-
res, as síndromas de hiperpressão circunscrita sa anti-álgica porque, ao permitir uma maior acu-
articular, as displasias, etc.. mulação de líquido, diminui a pressão exercida
A dor tem características muito variáveis por este nas estruturas cápsulo-ligamentosas,
(intensidade, localização, relação com factores que responsável pelo desencadear do estímulo do-
a aliviam, duração, etc.) de acordo com sua loroso.
origem. Pode associar-se a uma série de outros Por vezes, essa limitação da mobilidade apa-
sinais e sintomas, como: dificuldade em subir rece bruscamente, no decurso da exploração do
escadas, em se manter sentado muito tempo ou movimento, como uma resistência elástica mas
em passar da posição sentada à de pé; bloqueio real que não é possível vencer e a que chamamos
articular; aumento de volume do joelho por der- bloqueio da articulação. Este é normalmente rela-
rame articular; e limitação da mobilidade. cionado com alterações da regularidade das
A localização da dor, embora seja por vezes superfícies articulares que, interpondo-se, dificul-
difícil de precisar por parte dos doentes, se asso- tam ou impedem a progressão do movimento; tal
ciada a algumas das queixas anteriormente referi- acontece, por exemplo, no caso de lesões osteo-
das, pode indiciar a sua origem. Assim, quando é condrais ou dos meniscos, de origem traumática,
anterior e acompanhada de dificuldade em per- ou de condromatose, ou ainda, em casos raros, da
manecer muito tempo sentado ou em subir chamada osteocondrite dissecante.
escadas, sugere patologia da articulação patelo-
femoral; dor na face externa ou interna do joelho, A osteocondrite dissecante do joelho é uma
associada a bloqueio sugere patologia meniscal; doença característica da segunda década de vida,
instabilidade no plano frontal acompanhada de embora possa surgir com menor frequência na cri-
dor pode significar rotura do ligamento lateral ança mais velha e no adulto jovem. Caracteriza-se
respectivo, etc.. por necrose óssea circunscrita, subcondral, mais
ou menos extensa, constituindo um fragmento
Alterações da mobilidade do joelho osteocartilaginoso que se destaca habitualmente
em grau variável do respectivo leito ósseo, poden-
Num joelho previamente são, estas alterações do vir a destacar-se por completo, transformando-
manifestam-se de duas maneiras extremas: limi- se num corpo livre intra-articular. Localiza-se com
tação da mobilidade ou exagero da mesma, tendo maior frequência na porção média, da vertente
como referência os limites normais do movimento. externa do côndilo interno, mas pode aparecer
noutras zonas do joelho, como na porção posterior
Limitação da mobilidade do côndilo externo, na tróclea femoral ou na su-
A limitação da mobilidade pode ter expressões perfície articular da rótula. Admite-se que a sua
diversas consoante a sua origem, costumando origem esteja relacionada com traumatismos
estar associada a dor e/ou derrame intra-articular. repetidos e isquémia em doentes com “esqueleto
Tal derrame, habitualmente relacionado com trau- imaturo”, pelo que é frequente encontrar-se em
matismos ou processos inflamatórios e infeccio- praticantes de desporto intensivo.
sos, traduz sempre um sofrimento articular. Se for As manifestações clínicas traduzem-se por:
de volume suficiente, é detectável pelo chamado dor espontânea ou relacionada com o esforço, bem
sinal de “choque da rótula”, restringindo a mobili- como desencadeada ou agravada pela pressão da
dade nos extremos do arco de movimento normal zona lesada; derrame ou até hemartrose; atrofia
da articulação, ou seja, dificultando ou impedindo da musculatura da coxa; e dificuldade na mobi-
a execução “dos últimos graus” da extensão e da lização da articulação com eventuais episódios de
flexão máximas. No caso de atingir proporções bloqueio transitório.
1182 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
O diagnóstico é clínico e imagiológico (radio- ao que acontece na anca por se tratar de uma arti-
logia convencional) necessitando, por vezes, de culação superficial, coberta por tegumentos de
projecções especiais para melhor visualização da pouca espessura) são fácil e rapidamente detec-
lesão. táveis pela observação clínica. Para efeitos de sis-
O tratamento deverá ser conduzido por espe- tematização, estas deformidades, a que já nos refe-
cialista e depende das características da lesão rimos, podem descrever-se no plano frontal (joelho
(localização, extensão, e fase de evolução da doen- varo e joelho valgo /genu varum e genu valgum), no
ça) assim como do grau de maturidade esquelética plano sagital (joelho flexo e joelho recurvado/genu
do doente: pode variar entre a modalidade incru- flexum e genu recurvatum), ou serem mistas, assu-
enta e a cruenta ou cirúrgica, feita habitualmente mindo formas complexas nos diferentes planos do
por via artroscópica. espaço. A sua origem está em relação com
transtornos intrínsecos da articulação (alterações
Exagero da mobilidade morfológicas das superfíciees articulares e do
O exagero da mobilidade pode considerar-se de aparelho cápsulo-ligamentar) ou extrínsecos (pa-
dois tipos: tologia neuromuscular ou óssea, justa-articular –
– hipermobilidade – se o movimento se faz tumores, sequelas de trauma, etc.).
para além dos limites normais; Estas transformações da configuração normal
– instabilidade – se existe défice de solidez da do joelho, não considerando as situações genera-
articulação, mesmo quando em repouso, por lizadas mas apenas aquelas localizadas a esta
incapacidade de contenção das suas estru- articulação, podem ter origem congénita, e mani-
turas cápsulo-ligamentares. festar-se logo ao nascer, como no caso da luxação
Ambas as modalidades, quando ligeiras ou congénita dos joelhos, ou ser adquiridas. Neste
moderadas, podem ser consideradas normais nas caso estabelecem-se mais tarde, podendo a sua
crianças muito jovens (até aos três/quatro anos), causa inserir-se, como sempre, num dos grandes
devido à hiperelasticidade da cápsula e dos liga- capítulos da patologia geral; ou seja, pode ser
mentos de reforço, bem como a uma certa hipo- idiopática, traumática, inflamatória, tumoral,
tonicidade da musculatura protectora dessas neurológica ou vascular.
estruturas. A elas se deve, nessas idades, o apareci- No âmbito das deformidades adquiridas, já
mento de um desvio mais ou menos acentuado do nos referimos aos desvios patológicos dos eixos de
alinhamento dos joelhos no plano frontal (joelho causa idiopática, susceptíveis de tratamento, do
varo e valgo/genu varum e valgum) ou no plano foro do especialista.
sagital (joelho em hiperextensão/genu recurvatum), As deformidades de origem traumática, tam-
detectáveis nas seguintes circunstâncias: quando o bém importantes, podem dar lugar a defeitos con-
doente assume a bipedestação; ou, estando este em sideráveis, dependendo do tipo de lesão das carti-
decúbito dorsal, se testa a solidez látero-medial da lagens de crescimento fisárias da extremidade dis-
articulação, ou se explora e força a extensão do tal do fémur e proximal da tíbia.
joelho para além dos limites normais. O mesmo acontece com as deformidades de
A existência de hipermobilidade ou instabili- origem inflamatória, particularmente com as
dade anormais para a idade do doente exige a infecções, quer sejam do tipo purulento (artrites
investigação da sua causa; esta poderá residir sépticas), como granulomatoso (tuberculose).
numa deficiência do aparelho cápsulo-ligamentar Seja qual for a causa destes defeitos, o seu dia-
ou na alteração da morfologia normal das superfí- gnóstico não põe habitualmente grandes problemas
cies articulares, hipóteses que a clínica e os exames pela acessibilidade da articulação, não só à explo-
complementares de diagnóstico, particularmente ração clínica, como à investigação complementar,
a imagiologia, permitem esclarecer devidamente. quer imagiológica ou até invasiva (biópsia articular).
O tratamento depende da lesão e é da com-
Deformidade do joelho petência do especialista.
Nesta região anatómica e dentro das deformi-
As deformidades a nível do joelho (contrariamente dades, convém fazer uma referência à doença de
CAPÍTULO 242 Patologia regional específica do membro inferior 1183
Osgood-Schlatter por ser muito frequente e resul- repercutem-se a este nível, o que determina a
tar em deformação visível do contorno do joelho, intensidade de toda a sintomatologia dolorosa. A
a nível da tuberosidade anterior da tíbia. sua localização é fácil de esclarecer pela acessibi-
Pertence ao grupo já referido das osteocon- lidade à exploração clínica, permitindo caracteri-
droses, neste caso da epífise proximal da tíbia; está zar melhor essa dor, identificando com alguma
relacionada com o esforço de tracção exercido precisão a estrutura anatómica lesada.
pelo tendão rotuliano no ponto da sua inserção Quanto às anomalias congénitas que pro-
óssea. Aparece no final da idade escolar e princí- duzem dor, como única ou primeira manifestação
pio da adolescência, e manifesta-se de início por clínica, há que considerar os diferentes tipos de
dor ao esforço em extensão do joelho (correr, subir sinostose (barras ósseas) dos ossos do tarso; é
escadas, etc.) e à palpação da região referida. mais comum e sintomática, a sinostose astragalo-
Segue-se, em fase mais tardia, o aumento de volu- calcaneana (ponte óssea ligando os dois ossos); o
me visível, com proeminência da tuberosidade diagnóstico é imagiológico e pode exigir a
anterior da tíbia. ressecção cirúrgica.
A evolução é arrastada com tendência para a Entre as osteocondroses que aparecem habi-
cura; contudo, em casos raros pode dar lugar à tualmente no pé, há a referir a doença de Köhler
paragem de crescimento da porção anterior da e a doença de Sever. Em ambas a dor é a queixa
epífise tibial respectiva (epifisiodese), originando principal, habitualmente incómoda apenas na
deformação da extremidade proximal da tíbia, marcha , no apoio, ou à palpação local; no primei-
com inclinação anterior do prato tibial e joelho ro caso, situa-se no escafóide társico e no segundo,
recurvado/genu recurvatum. a nível do núcleo de ossificação da apófise poste-
O diagnóstico é clínico e imagiológico (radio- rior do calcâneo. O radiograma simples é sufi-
logia convencional), visualizando-se nos radio- ciente para fazer o diagnóstico, sendo a imagem
gramas simples deste segmento do osso os aspec- da estrutura óssea afectada idêntica, nas dife-
tos já descritos, correspondentes ao respectivo rentes fases da evolução da doença à das osteo-
estádio da doença (fragmentação, necrose, reab- condroses com outras localizações. A doença
sorção e reossificação). segue o curso natural até à cura, sendo o objectivo
O tratamento é quase sempre incruento terapêutico minorar o esforço a que o respectivo
(repouso, antiálgico e anti-inflamatório) exigindo, segmento ósseo está sujeito, até à sua reconsti-
nalguns casos, o recurso a infiltrações locais de tuição espontânea e consequente normalização da
corticosteróides e/ou de soluto de dextrose hiper- sua capacidade de resistência.
osmolar (a 12,5%). Nos defeitos posturais que vulgarmente se
observam no pé, a dor pode ser difusa, irradiando
Pé doloroso a todo o pé, ou localizar-se apenas numa região
deste (antepé ou retropé) de acordo com o tipo de
Na idade pediátrica (excluídas as situações trau- desequilíbrio verificado; está relacionada, não só
máticas, inflamatórias e tumorais), a causa mais com o peso da criança, como também com a bipe-
frequente de dor no pé reside nas calosidades destação. É importante verificar, mediante a
plantares, habitualmente associadas a eventuais observação clínica, se estes pés mantêm a flexibi-
alterações da morfologia ou funcionalidade deste lidade própria das idades jovens ou se, pelo con-
segmento anatómico; estas queixas dolorosas po- trário, existe rigidez à manipulação, com ou sem
dem ainda surgir associadas a anomalias congéni- contractura reactiva da musculatura regional.
tas, a situações de osteocondrose, (também exis- Nesta última circunstância, há que investigar a
tentes a este nível) e a defeitos posturais, resultan- presença de anomalia congénita do tipo da sinos-
do, neste caso, da distensão e fadiga dos complex- tose, ou de situação do foro neurológico.
os sistemas cápsulo-ligamentosos do pé.
Sendo o pé a estrutura mais distal de suporte Deformidades do pé
do organismo, e a bipedestação a atitude normal-
mente assumida, o peso do corpo e os esforços As deformidades do pé, dada a sua constituição
1184 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Pé boto
Também conhecido como pé torto na linguagem
popular ou, na forma erudita, como pé equino-
varo-aduto congénito, representa a mais fre-
quente anomalia congénita do pé, sendo bilateral
em 50% dos casos (com ou sem assimetria de
gravidade). A sua etiopatogénese é desconhecida,
FIG. 11
mas admite-se que possa ser multifactorial (here-
ditária, postural intra-útero, neuromuscular, etc.). Pés botos.
Embora de magnitude variável, é sempre uma
deformidade complexa, com um componente de pesquisa. A radiologia convencional, ao permitir
equino-varo do retropé (posição relativa do calcâ- avaliar a posição relativa dos ossos do tarso, pode
neo), supinação do médio-pé (planta do pé volta- ser útil para controlar a evolução do tratamento e a
da para dentro), e aduto do ante-pé (eixo do ante- necessidade de o modificar, recorrendo à cirurgia.
pé fazendo com o eixo do retropé um ângulo aber- A terapêutica, de início sempre incruenta,
to para dentro) (Figura 11). deve ser iniciada precocemente, logo após o nasci-
A posição anormal do pé, particularmente do mento e executada pelo especialista. Consiste em
tarso, leva a alterações dos correspondentes teci- sessões periódicas de manipulação do pé,
dos moles, espessamento dos ligamentos, retrac- seguidas de imobilização no máximo da correcção
ções capsulares, atrofias musculares que, manten- conseguida em cada sessão, até se obter pé plantí-
do-se, impedem o normal desenvolvimento do grado. Eventualmente, poderá ser necessário
esqueleto respectivo, com fixação e agravamento recorrer à cirurgia, não só dos tecidos moles
das deformidades. (tendões, fáscias) como também óssea, embora
As manifestações clínicas nos primeiros esta só em fase final do crescimento. O resultado
meses de vida resumem-se ao aspecto do pé e à final depende, não só da precocidade do diagnós-
escassa mobilidade dos seus segmentos; mais tico e da instituição imediata do tratamento ade-
tarde, na idade da marcha, esta torna-se difícil, quado, como também do grau de deformidade e
com o aparecimento de calosidades nas zonas de da flexibilidade do pé.
apoio, e dores. Importa ainda voltar a referir a associação
O diagnóstico é fácil, requerendo apenas um desta deformidade com outras anomalias con-
simples e sumário exame objectivo da criança; génitas, nomeadamente com a displasia de desen-
mais difícil e importante será determinar a gravi- volvimento da anca, o que exige proceder sempre
dade da situação, relacionada com a magnitude a exame cuidadoso doutras articulações em todos
dos diferentes componentes da deformidade, e o os casos de pé boto.
grau de rigidez, sendo ambos os aspectos deter- (Consultar Glossário Geral)
minantes do sucesso do tratamento.
Os exames complementares não têm grande
utilidade; apenas a ecografia tem interesse para o
diagnóstico pré-natal, sendo possível detectar o pé
boto a partir da 16ª semana de gestação. A
importância deste diagnóstico deve-se ao facto de a
deformidade poder estar associada a outras ano-
malias congénitas, alertando o clínico para a sua
1186 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
243
diagnóstico, podemos classificá-la em dois grupos
principais – traumático ou atraumático, con-
soante existe ou não episódio traumático prévio.
Entre as características do esqueleto infantil que
condicionam a forma como este reage ao trauma e
suas consequências, destacam-se a maior elastici-
PATOLOGIA REGIONAL dade óssea e do aparelho cápsulo-ligamentoso.
Assim, no caso da coluna e antes da adolescência,
ESPECÍFICA DO TRONCO prevalecem as lesões articulares (luxações e sub-
luxações) sobre as fracturas puras. Isto verifica-se
J. de Salis Amaral e J. Lameiras Campagnolo particularmente nas regiões mais móveis da colu-
na, nomeadamente na coluna cervical e na junção
occipitocervical.
Mais tarde, as lesões traumáticas assumem
Tronco doloroso padrões que se aproximam daqueles observados e
descritos nos adultos.
Cervicalgia, dorsalgia e lombalgia No processo de elaboração do diagnóstico os
A dor é sempre um sintoma essencial, seja qual for dados clínicos são, como sempre, fundamentais
a circunstância em que ocorre; mas, se localizada para estabelecermos as hipóteses possíveis; torna--
no tronco e na fase de crescimento, atinge uma se, por isso, obrigatória a avaliação do estado neu-
particular relevância porque é muito rara, con- rológico do doente pelos riscos que a patologia da
trariamente ao que acontece no adulto. coluna pode implicar neste domínio. Esses dados
Na idade pediátrica é habitualmente de natu- são também importantes porque nos orientam para
reza orgânica e, excluindo a causa traumática, a os exames complementares a realizar, correspon-
sua origem está frequentemente relacionada com dendo à imagiologia um papel determinante a
situações infecciosas ou tumorais. Constitui, por desempenhar (radiologia simples, TAC ou RMN).
isso, um sintoma suspeito de situação clínica A terapêutica depende da etiologia provável
potencialmente grave que deve ser objecto de da dor, mas terá sempre como objectivo primor-
exploração cuidada, diagnóstico devidamente dial a preservação da função neurológica, impli-
confirmado, e consequente terapêutica adequada. cando os cuidados necessários para evitar o seu
Consoante a zona da coluna em que está locali- compromisso ou agravamento. Daí a importância
zada assim se denomina cervicalgia, dorsalgia ou do repouso e imobilização da coluna enquanto
lombalgia, assumindo na prática, em todas estas não se chegar a um diagnóstico definitivo que ori-
localizações, os mesmos atributos. Dependendo da ente a evolução do tratamento.
sua causa efectiva, acompanha-se habitualmente
de rigidez ou espasmo muscular defensivo da Deformidades do tronco
respectiva região da coluna, a qual pode assumir
posturas anómalas ou mover-se em bloco, com Torcicolo
limitação da amplitude global dos movimentos do Designa-se por torcicolo a deformidade caracteri-
tronco. Esta característica é mais evidente nas zada pelo desvio rotatório, mais ou menos fixo, da
zonas da coluna com maior mobilidade (coluna cabeça, com inclinação contralateral desta, a que
cervical – torcicolo; coluna lombar – escoliose se associa cervicalgia de intensidade variável, des-
antiálgica). À sintomatologia referida pode asso- pertada ou agravada pelo movimento.
ciar-se uma série de manifestações (alteração da É clássico considerar dois grupos de torcicolos
força muscular, dos reflexos osteotendinosos, da – congénito e adquirido – conforme a deformidade
sensibilidade, clono, etc.) relacionadas com possí- está presente na data do nascimento ou aparece
vel compromisso medular e/ou radicular prove- mais tarde.
niente, por sua vez, da causa da dor. No primeiro caso, e de acordo com a sua etio-
Quanto à etiologia da dor e para efeitos de logia, pode ainda subdividir-se em:
CAPÍTULO 243 Patologia regional específica do tronco 1187
• Torcicolo congénito miogénico, se resul- vertebral no plano frontal. Tal curvatura pode não
tante de um encurtamento do músculo ester- ter importância alguma e constituir postura cor-
nocleidomastoideu, por metaplasia fibrosa poral voluntariamente assumida ou, pelo con-
retráctil do feixe esternal e/ou clavicular; trário, corresponder a deformidade que progride
• Torcicolo congénito ósseo se devido a mal- até se tornar esteticamente inaceitável, compro-
formação das vértebras cervicais (hemivérte- metendo o funcionamento de outros órgãos e apa-
bra, sinostose parcial, etc.). relhos. (Figura 1 A, B)
Quanto ao torcicolo adquirido, consideram-se As escolioses classificam-se em dois grandes
também dois grupos principais: grupos, com manifestações clínicas e prognóstico
• Torcicolo adquirido osteoarticular quando diferentes: as escolioses não estruturais e as estru-
provocado por lesões localizadas na coluna, turais.
por exemplo, de natureza traumática, situa- Nas primeiras – escolioses não estruturais – as
ções inflamatórias agudas ou crónicas da co- curvaturas não coincidem com alterações da mor-
luna cervical, reumatismos, discopatias, in- fologia normal das vértebras e nunca progridem.
fecções ósseas, etc.. Estas escolioses podem representar apenas uma
• Torcicolo adquirido sintomático se a causa é postura temporária e voluntária, habitualmente
extrínseca à coluna, levando ao aparecimen- adoptada por qualquer indivíduo, ou ser sin-
to da deformidade por contractura assimé- tomáticas, isto é, como reacção a patologia subja-
trica, reactiva, da musculatura do pescoço cente que, uma vez resolvida, possibilita à coluna
(astigmatismo, diplopia, distúrbios labirínti- reassumir espontaneamente a sua configuração
cos, abcessos orofaríngeos, etc.). normal, rectilínea (no plano anatómico frontal),
As manifestações clínicas resumem-se à posi- com desaparecimento da curvatura neste plano. O
ção viciosa da cabeça com rigidez mais ou menos prognóstico é habitualmente bom do ponto de
acentuada dependendo da etiologia, e dor incons- vista da curvatura, mas em relação ao doente
tante podendo, quando presente, ser despertada dependerá da patologia de base.
ou agravada pela tentativa de movimento. Como exemplos de escolioses não estruturais
O diagnóstico é orientado fundamentalmente incluem-se as escolioses posturais, as compen-
pelos dados da anamnese, conjugados com os da satórias (por dismetrias dos membros inferiores) e
observação clínica, na qual é obrigatório incluir as antiálgicas, por situação inflamatória, traumáti-
um exame neurológico completo a fim de avaliar ca ou tumoral (osteoarticular ou neurológica).
a integridade medular e/ou radicular.
Os exames complementares devem adequar- A B
se às hipóteses de diagnóstico formuladas, mas
são dominados pela imagiologia, com prioridade
para a radiologia convencional, por vezes difícil
de interpretar devido à posição da cabeça; neste
caso, é conveniente recorrer à TAC e/ou RMN
para completo esclarecimento da situação, parti-
cularmente se existirem antecedentes de natureza
traumática.
O tratamento depende da etiologia. Como
medidas imediatas deverá prescrever-se repouso
e imobilização da coluna cervical (ortótese de
suporte cervical), a que se associa medicação
(analgésicos, AINE e relaxantes musculares), de
acordo com o contexto clínico de cada caso.
FIG. 1
Escoliose A – Doente com escoliose idiopática. B – Radiografia
Chama-se escoliose a toda a curvatura da coluna póstero-anterior do mesmo doente, em ortostatismo.
1188 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
A B
FIG. 4
Escoliose estrutural – deformidade das vértebras; A – Repre-
sentação esquemática da alteração do contorno do tronco
FIG. 2 resultante das deformidades referidas, com o doente em
ortostatismo; B – Acentuação desta alteração do contorno
Escoliose estrutural – deformidade das vértebras; A – no plano
do tronco quando o doente flecte a coluna (Teste de Adams).
frontal; B – no plano horizontal.
CAPÍTULO 243 Patologia regional específica do tronco 1189
lateral direita e esquerda; quando a escoliose não da medula ou das raízes, quando são mais acen-
é estrutural, a curvatura rectifica-se na flexão late- tuadas ou incluem um pequeno número de vérte-
ral feita para a convexidade da curvatura; tal não bras (denominadas cifoses angulares). (Figura 5)
sucede nas escolioses estruturais, cuja curvatura Quanto à etiopatogénese, as cifoses classifi-
pode atenuar-se um pouco dependendo da sua cam-se em posturais, congénitas, traumáticas,
flexibilidade, mas não desaparece, evidenciando- idiopáticas (doença de Scheurmann – osteocon-
se a dismorfia dos respectivos corpos vertebrais. drose dos “pratos” ou apófises polares das vérte-
Não é frequente, em idade pediátrica, o apare- bras) e infecciosas (resultando na destruição do
cimento doutro tipo de sintomatologia; haverá, disco e colapso anterior das vértebras).
porém, interesse em avaliar a flexibilidade da As manifestações clínicas restringem-se à de-
curva associada ou não à existência de dores, as formidade, mais ou menos acentuada, com menor
quais constituem sintomas importantes de suspei- ou maior flexibilidade, e às dores que, contraria-
ta da presença de lesões inflamatórias ou tumorais mente ao que acontece nas escolioses, surgem aqui
na génese da escoliose. mais cedo e com muito maior frequência; é habi-
Queixas do foro neurológico também não são tual que a elas se fique a dever a descoberta da
habituais, mas podem existir nalguns casos raros, própria deformidade. Pode também haver sinais
por exemplo, de escolioses congénitas com com- de compromisso medular e/ou radicular progres-
ponente cifótico. Constituem um sinal de alarme sivo consoante a localização e as características da
que poderá agravar-se com a inevitável pro- deformidade (ex. as já referidas cifoses angulares).
gressão destas escolioses. Este facto obriga sempre O diagnóstico é clínico e imagiológico, sendo
ao exame neurológico (sumário, mas atento) em obrigatório realizar a todos estes doentes um
todos os casos de curvatura anómala. exame neurológico cuidado.
O diagnóstico é fundamentalmente clínico, O tratamento deverá ser conduzido pelo espe-
mas deverá ser confirmado pela radiologia con- cialista e depende da etiologia da deformidade.
vencional, aconselhando-se fazer dois radiogra- Nas cifoses posturais, bem como nas idiopáticas
mas da coluna inteira, frente e perfil, os quais per- que são as mais comuns, é habitualmente incruen-
mitem colher informação útil para correcta avalia- to (medicação antiálgica, cinesiterapia, utilização
ção.
Na prática, o problema é habitualmente desco- A B
berto pelos familiares ou pelos professores de
ginástica que enviam o doente ao clínico geral ou
ao pediatra. Estes, perante dados clínicos suges-
tivos, deverão encaminhar o caso para o especia-
lista a quem compete decidir sobre a oportu-
nidade e modalidade do tratamento a executar,
seja ele, incruento (cinesiterapia, uso de ortóteses,
etc.) ou cruento (correcção da curvatura mediante
instrumentação e artrodese)*.
Cifose
Define-se cifose como a curvatura da coluna, no
plano sagital, de convexidade posterior. De salien-
tar que existem cifoses fisiológicas a nível torácico
FIG. 5
e sacrococcígeo, as quais passam a ser consi-
deradas deformidades se ultrapassam determina- A – Representação esquemática de uma cifose angular;
da magnitude ou se têm uma localização diferente B – Doente com cifose angular de etiologia traumática.
da referida. A sua importância reside no risco neu-
rológico que envolvem, ao poderem vir a dar (*) Artrodese – intervenção cirúrgica que consiste em bloquear defini-
tivamente uma articulação.
origem muito rapidamente a compressão anterior
1190 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
de ortóteses específicas); nas restantes poderá ser parte proximal da vértebra (correspondente ao
necessário recorrer à cirurgia. corpo, pedículos e apófises articulares superiores)
sobre a distal (englobando o resto do arco neural e
Espondilólise e espondilolistese as apófises articulares inferiores). (Figura 7)
A espondilólise é uma solução de continuidade Esta evolução é sempre gradual e classifica-se
do arco posterior da vértebra, habitualmente bila- de acordo com a extensão do percurso do se-
teral, devido a um defeito de ossificação do gmento proximal sobre o distal; observam-se des-
chamado istmo, ou seja, da zona de confluência da locamentos de grau variável, desde os insignifi-
lâmina, do pedículo e das respectivas apófises cantes até ao extremo da “queda” de L5 na pelve,
articulares dessa vértebra (Figura 6). Localiza-se com localização do corpo desta vértebra à frente
habitualmente a nível de L4 e L5, e está relaciona- do corpo de S1, situação que se denomina espon-
da com a carga a que estas vértebras estão sujeitas diloptose.
pela bipedestação. As manifestações clínicas da espondilolistese
Trata-se duma anomalia relativamente fre- são variáveis , podendo ter alguma relação com o
quente que, por via de regra, se mantém assin- grau de deslizamento anteriormente explicado.
tomática até à idade adulta. Constitui em geral Manifesta-se por crises de dor lombar relaciona-
um achado radiográfico na sequência de episódio das com o esforço, podendo associar-se-lhe sinais
de lombalgia com a qual poderá nem sequer ter de compromisso radicular, encurtamento do tron-
qualquer relação. co, horizontalização da pelve e retracção ou encur-
A fim de se poder visualizar melhor o defeito tamento mais ou menos acentuado dos músculos
ósseo, os exames radiográficos da coluna lom- isquiotibiais. Este encurtamento pesquisa-se com
bossagrada devem ser realizados nos dois planos o doente em decúbito dorsal e revela-se pela di-
clássicos (ântero-posterior e perfil) e também em minuição da amplitude da elevação do membro
posição oblíqua (direita e esquerda), sendo nestas inferior a partir do plano da cama, mantendo o
últimas projecções que melhor se costuma identi- joelho em extensão.
ficar o defeito vertebral. O diagnóstico é imagiológico podendo exigir,
A espondilólise não carece de tratamento nem para além da radiologia convencional, TAC ou
é impeditiva de uma vida normal, sendo porém RMN, em função das queixas neurológicas pre-
conveniente proteger a coluna, cuidando a cor- sentes.
recção da postura, e a tonificação e o reequilíbrio O tratamento está subordinado à evolução do
da musculatura do tronco. deslocamento e à sintomatologia presente, in-
A sua importância reside na possibilidade de cluindo medicação (antiálgicos e AINE), cinesite-
evoluir para espondilolistese que consiste no rapia e cirurgia.
deslizamento ou migração anterior (listesis) da
FIG. 6 FIG. 7
Representação esquemática de espondilólise. Representação esquemática de espondilolistese.
CAPÍTULO 244 Patologia traumática 1191
244
de algumas regiões anatómicas ao trauma, e com a
probabilidade acrescida da ocorrência de determina-
dos mecanismos lesionais em certas idades.
Assim, são situações mais frequentes:
• no recém-nascido: fractura da clavícula, tor-
cicolo, fractura do fémur;
PATOLOGIA TRAUMÁTICA • nos primeiros 2-4 anos de vida: pronação
dolorosa;
J. de Salis Aamral e J. Lameiras Campagnolo • entre os 5-8 anos: fractura supracondiliana
do úmero;
• na infância tardia/adolescência: fracturas dos
ossos do antebraço (e outros ossos longos),
Importância do problema lesões de sobreuso/osteocondroses (calcâneo,
tuberosidade anterior da tíbia ou pólo inferior
As lesões ósteo-articulares de causa traumática, da rótula, navicular, etc.), lesões das fises em
muito frequentes em idade pediátrica, constituem fase de encerramento, para além de lesões
cerca de 10% a 15% de todas as lesões traumáticas com padrão já semelhante ao dos adultos.
que acorrem ao serviço de urgência. Nas crianças Esta lista sumária não exclui a multiplicidade e
mais pequenas são consequência da sua actividade simultaneidade doutras lesões que se poderão
lúdica característica e, nas mais velhas, incluindo encontrar numa criança, nomeadamente no caso
adolescentes, são devidas essencialmente à activi- de traumatismos violentos, como acontece nos
dade desportiva e a acidentes rodoviários. Nesta acidentes de viação ou quedas de grande altura.
última circunstância, as lesões são dum modo (Capítulo 38)
geral, muito mais graves, exigindo medidas te- Vem a propósito lembrar aqui a síndroma da cri-
rapêuticas mais complexas. ança maltratada, para a qual os profissionais de
Atendendo a que as lesões em causa atingem saúde devem estar particularmente atentos, englo-
um organismo em fase de crescimento, as conse- bando lesões traumáticas com diversas localizações,
quências podem ser agravadas pelo compromisso incluindo as osteoarticulares. (Capítulo 37)
das cartilagens de crescimento, particularmente Por último, recorda-se que as fracturas nas cri-
nas situadas nas regiões epifisiometafisárias dos anças têm algumas particularidades no que toca à
ossos longos, com repercussão variável no cresci- sua consolidação:
mento dos respectivos ossos • Rapidez do processo (tanto maior quanto
mais nova for a criança);
Etiopatogénese • Quase ausência de algumas complicações
observáveis no adulto, tais como as pseudar-
O esqueleto em fase de crescimento tem particu- troses;
laridades que o distinguem do adulto, o que con- • Risco de hipercrescimento a nível segmento
diciona a sua resposta às lesões traumáticas ósseo fracturado, verificado até aos 18-24
encontradas neste escalão etário. Com efeito, para meses pós-fractura, o qual é geralmente mais
além da já referida presença das cartilagens de marcado após cirurgia de reparação óssea
crescimento, há que salientar a presença de pe- (osteossíntese);
riósteo espesso e resistente, de uma relação • Remodelação óssea que corrige maioritaria-
matriz/osso superior à do adulto (o que condi- mente defeitos de alinhamento axial (mas
ciona uma maior elasticidade óssea) e uma veloci- não rotacional) das fracturas; esta capaci-
dade elevada de renovação e remodelação ósseas dade de remodelação é tanto mais impor-
(responsáveis por uma maior capacidade de tante quanto mais jovem for a criança;
reparação). • Risco de atraso de crescimento (por vezes irre-
A distribuição das lesões em função do escalão versível) simétrico ou assimétrico, consoante o
etário está relacionada com a maior susceptibilidade tipo de lesão das cartilagens de crescimento.
1192 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Grau IV Grau V
FIG. 2
FIG. 1 Radiografias, em dois planos, da extremidade inferior do
Classificação de Salter-Harris relativa às lesões traumáticas fémur onde se nota a existência de lesão traumática da
envolvendo a cartilagem de conjugação. As lesões de Grau I e respectiva cartilagem de conjugação (Grau I da classificação de
II serão as de melhor prognóstico. Salter-Harris), mais evidente na radiografia de perfil (setas).
Grau I – Separação através da fise; Grau II – Fractura através
duma porção da fise, mas englobando também a metáfise;
Grau III – Fractura através duma porção da fise, mas atingin-
do a epífise e a articulação; Grau IV – Fractura atingindo a
metáfise, fise e epífise; Grau V – Fractura originando com-
pressão e lesão por esmagamento da fise.
Diagnóstico diferencial
No entanto, habitualmente compete ao clínico No caso das fracturas com desvios nos planos
geral ou ao pediatra, os primeiros a observar o frontal e sagital (e sem lesão da cartilagem de
doente, a realização de uma série de procedimen- crescimento), como já foi referido, poderá não
tos terapêuticos básicos, antes de o encaminharem haver necessidade de redução da fractura, desde
para o especialista. que o desvio não exceda cerca de 20° (variável
Entre esses procedimentos destacam-se os consoante a idade); no entanto, desvios rota-
seguintes: cionais no foco de fractura implicam a sua correc-
• Penso estéril local – na ferida do foco de ta redução e imobilização.
fractura, caso a fractura seja exposta, no sen- No que se refere às lesões articulares, particu-
tido de impedir a contaminação adicional; larmente se atingirem a cartilagem de conjugação,
• Imobilização provisória – com ligadura, e como princípio básico, todas as fracturas deve-
contenção elástica ou contenção rígida (con- rão ser reduzidas anatomicamente e assim manti-
soante a gravidade) que, no caso de suspei- das, por meios incruentos ou cruentos, sob pena
ta de fractura, deverá incluir as articulações de darem origem a sequelas importantes.
adjacentes (proximal e distal) ao segmento Ainda em relação às lesões das cartilagens de
ósseo suspeito; crescimento e aos grupos da citada classificação
• Descarga do membro afectado que, no mem- de Salter-Harris, poderá considerar-se que as
bro inferior, implica o uso de 2 canadianas lesões do grupo I e II não costumam dar origem a
para as crianças colaborantes, e o repouso no complicações, sendo susceptíveis de tratamento
leito, com ou sem tracção desse membro; incruento, embora as do grupo II requeiram habi-
• Elevação do membro afectado durante a tualmente tratamento cirúrgico; as do grupo III e
fase de edema e dor; IV, atingindo a interlinha articular, exigem sempre
• Crioterapia local (cerca de 15 minutos, de tratamento cirúrgico e dão origem a sequelas com
duas em duas horas, durante 2-3 dias); grande frequência; as do grupo V são em geral
• Terapêutica analgésica e/ou anti-inflama- reconhecidas, apenas retrospectivamente, pela
tória adequada. deformidade resultante do encerramento pre-
Nas situações com risco vital, naquelas em que maturo, de grau variável, da cartilagem de cresci-
há deformidades major (com ou sem exposição mento.
óssea), ou nos casos em que há um quadro álgico As sequelas destas lesões, com importância
significativo (mesmo em repouso), os doentes variável mas quase sempre relevante, são as situa-
deverão ser rapidamente encaminhados para um ções que colocam os maiores problemas a resolver
serviço de urgência (com ortopedista disponível, no campo da traumatologia do grupo etário
de preferência). pediátrico. O seu tratamento implica, necessaria-
mente, diferentes tipos de estratégias cirúrgicas
Perspectiva terapêutica do ortopedista (realinhamentos, alongamentos, desepifisioide-
Na idade pediátrica, as lesões osteoarticulares ses*, encurtamentos contralaterais, etc.) para mino-
atingem preferencialmente o osso e a cartilagem de rar as repercussões na vida da criança afectada.
crescimento, sendo raras as lesões ligamentosas.
Actualmente, as fracturas dos ossos longos BIBLIOGRAFIA (capítulos 236 a 244)
têm tido um aumento relativo das suas indicações Basu PS, Elsebaie H, Noordeen MH. Congenital spinal defor-
cirúrgicas, fruto de três ordens de factores: alta mity: a comprehensive assessment at presentation. Spine
energia de alguns acidentes (rodoviários e 2002; 27: 225-2259
desportivos), advento de técnicas cirúrgicas com Beaty JH, Kasser JR, (eds). Rockwood and Wilkins’ Fractures in
muito boa relação custo-benefício (tal como o Children. Philadelphia: Lippincott-Williams & Wilkins,
encavilhamento elástico dos ossos), e progressiva 2001
redução dos tempos de internamento/imobiliza-
ção do doente. No entanto, e apesar deste facto, a
* Epifisioidese consiste na separação das cartilagens de conjugação de
grande maioria das fracturas consolida rapida- um osso longo por um implante a fim de travar o crescimento.
mente e sem sequelas valorizáveis. Desepifisioidese é um procedimento com objectivo inverso.
1196 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
245
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Staheli LT. Practice of Pediatric Orthopedics. Philadelphia: nital Anomalies and Twins) apenas tem o registo
Lippincott-Williams & Wilkins, 2006 de algumas anomalias menores (polidactilia e sin-
Topol GA, Podesta LA, Reeves KD, et al. Hyperosmolar dex- dactilia) não especificando a sua localização: mãos
trose injection for recalcitrant Osgood-Schlatter disease. ou pés. As estatísticas disponíveis abrangem todas
Pediatrics 2011; 128: e1121-e1128 as anomalias do membro superior (0,4 a 0,5 por
White N, Sty R. Radiologic evaluation and classification of 1.000 recém nascidos vivos) não especificando as
pediatric fractures. Clin Pediatr Emerg Med 2002; 3: 94-105 pequenas anomalias da mão. Cerca de 80% destas
anomalias do membro superior são unilaterais e
mais frequentes no lado direito.
Muitos dos defeitos congénitos menores da
mão têm resolução cirúrgica, sendo que nem sem-
pre a reconstrução cirúrgica é possível ou a
mesma é apenas estética, não melhorando a
função. No entanto, em algumas deles o trata-
mento conservador tem bons resultados quando
realizado precocemente, evitando a cirurgia. São
CAPÍTULO 245 Reabilitação de anomalias congénitas da mão – Noções gerais 1197
Camptodactilia
FIG. 7 FIG. 8
B
Polegar aduto do grupo II Polegar em gatilho
bilateral – a contractura dos
flexores impede a abdução /
extensão passiva dos
polegares.
246
(tala) fabricada de forma simples e de fácil cor-
recção que irá ajustar-se ao membro, apenas para
igualar o comprimento dos membros inferiores.
Por volta dos 8 meses aplica-se uma prótese
com pé, muito rudimentar e relativamente estéti-
ca, que será fabricada de forma a igualar também
REABILITAÇÃO o comprimento dos membros; tal permitirá a
aquisição da posição sentada e a simetria da
DE ANOMALIAS CONGÉNITAS actividade motora utilizando as extremidades.
Salienta-se que a prescrição da prótese deve ser
E ADQUIRIDAS DOS MEMBROS orientada para a maior funcionalidade da marcha,
e que a mesma deverá ser adaptada às fases do
INFERIORES – NOÇÕES GERAIS desenvolvimento psicomotor.
Quando a anomalia do membro prejudica a
M. Madalena de Quinhones Levy aplicação de prótese é preferível que se proponha
a correcção cirúrgica, mas só depois de se atingir o
crescimento máximo do membro afectado.
Quando há necessidade de aplicar uma pró-
Importância do problema tese com joelho, a mesma é colocada após os 3
anos; com efeito, só nesta altura a criança con-
A frequência das anomalias congénitas major dos segue fazer o controlo do joelho utilizando a
membros inferiores, incluindo amputação congénita flexão-extensão. Com o uso diário da sua prótese,
é cerca de 10 a 15 casos por 100.000 nascimentos. a criança pode atingir o seu total controlo por
Dum modo geral, a etiopatogénese relaciona-se com volta dos 5 anos.
noxas ocorridas entre a 4ª e 6ª semana de gestação. São referidos alguns exemplos.
No conjunto geral das amputações dos mem-
bros inferiores em idade pediátrica, cerca de 50- Deficiência congénita transversal de fémur
60% são de origem congénita, e 40-50% adquiridas; Como exemplo de actuação no âmbito das anoma-
considerando estas últimas, cerca de 1/3 relaciona- lias congénitas dos membros inferiores cita-se a
se com neoplasias e 2/3 com lesões traumáticas. deficiência congénita transversal do fémur por
amputação. Esta anomalia é descrita referindo o
Aspectos gerais da actuação nível de amputação.
É utilizada uma prótese convencional constan-
As anomalias congénitas major dos membros do de perna (ou perna e coxa), plástica, joelho
(inferiores e superiores) encontram-se entre os livre e pé.
problemas difíceis de solucionar. As próteses em geral vão sendo ajustadas
A intervenção da equipa de reabilitação deverá durante o crescimento da criança. (Figura 1)
ser realizada o mais precocemente possível de
forma a impedir repercussões sobre o desenvolvi- Deficiência congénita longitudinal do fémur
mento psicomotor da criança. Outro exemplo diz respeito à chamada deficiência
Para a aquisição da marcha podem ser uti- congénita longitudinal do fémur.
lizadas ajudas técnicas e próteses. Distinguem-se dois grupos:
Recordando, a propósito do tópico em análise: • Fémur curto congénito em que existe uma
ortótese é definida como um aparelho colocado no simples hipoplasia global do fémur sem alte-
membro permitindo corrigir uma atitude, tornan- ração da anca.
do o membro novamente funcional; e prótese é um • Fémur curto congénito com desenvolvi-
aparelho que substitui o membro ausente. mento de coxa vara.
Nos casos de um membro inferior amputado, Na adolescência, quando o crescimento do
antes dos 8 meses de idade é aplicada ortótese membro leva ao uso de ortótese e/ou prótese que,
CAPÍTULO 246 Reabilitação de anomalias congénitas e adquiridas dos membros inferiores 1201
FIG. 2
Deficiência congénita longitudinal do fémur. Método
cirúrgico: amputação do pé com ulterior aplicação de prótese.
FIG. 1
Exemplo de prótese aplicada em ambos os membros
inferiores por amputação congénita de ambas as coxas a
níveis diferentes.
Outras anomalias
Diveras anomalias do fémur, da tíbia ou do
perónio traduzindo-se, em geral, por encurtamen-
FIG. 3
to do membro implicam soluções mais complexas
como a cirurgia associada a aplicação de próteses Defeito da tíbia e perónio implicando encurtamento do
e ortóteses. (Figura 3) membro inferior direito em criança de 14 meses. Aplicação de
Tais situações ultrapassam o âmbito do capítu- ortótese e calçado ortopédico, aguardando intervenção
cirúrgica.
lo, pelo que não são pormenorizadas.
1202 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
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PARTE XXVI
Oftalmologia
1204 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
247 coróide
esclera
músculo
recto medial
íris
Retina
humor aquoso
corpo vítero
íris
corpo ciliar
Esclera
esclera cone
João Goyri O’Neill retina, com células tendão do músculo bastonete
fotossensíeveis recto lateral
pigmentadas
e nervosas
Bases anatomofisiológicas
FIG. 1
com implicações clínicas
Esquema do globo ocular.
Para melhor compreensão dos vários problemas
clínicos que afectam o sistema ocular, são recorda- 2. Túnica intermédia vascular pigmentada: úvea.
dos sucintamente alguns aspectos da respectiva Compreende a coroideia (coróide ou corióide), o
anátomo-fisiologia. corpo ciliar e a íris. A coroideia, situada abaixo da
Os globos oculares estão localizados nas cavi- esclerótica, está impregnada por pigmentos que
dades ósseas denominadas órbitas, compostas de absorvem a luz que chega à retina, evitando sua
porções dos ossos frontal, maxilar superior, malar, reflexão; é intensamente vascularizada, com a
esfenóide, etmóide, lacrimal e palatino. função de nutrir a retina.
Ao globo ocular encontram-se associadas estru- Possui uma estrutura muscular de cor variável
turas acessórias adiante discriminadas (anexos): – a íris, a qual é dotada de um orifício central
pálpebras, cílios (pestanas), supracílios (sobrance- (pupila) cujo diâmetro varia de acordo com a ilu-
lhas), conjuntiva, músculos extrínsecos e aparelho minação do ambiente.
lacrimal. A túnica coroideia une-se na parte anterior do
O diâmetro do globo ocular no recém-nascido olho ao corpo ciliar, estrutura formada por mus-
corresponde a cerca de 65% do do adulto (respec- culatura lisa que envolve o cristalino, modifican-
tivamente ~17 mm e 24 mm). O olho aumenta do sua forma.
rapidamente de tamanho durante os primeiros 2
anos da vida, salientando-se que o respectivo 3. Túnica interna: retina
crescimento é mais lento, depois, até à puberdade. A retina é a camada mais interna do globo ocular.
Cada globo ocular compõe-se, respectiva- Nela se encontram células nervosas especializadas
mente, de três túnicas, de quatro meios transpa- em captar os estímulos luminosos, (fotorrecepto-
rentes, e dos já referidos anexos. (Figura 1) res) designadamente as denominadas por cones e
bastonetes.
Túnicas Os cones encontram-se principalmente na reti-
1. Túnica fibrosa externa ou esclerótica (“zona na central, região da mácula (fovea central ou mácu-
branca” do olho). Trata-se duma túnica resistente la lutea/amarela).
de tecido fibroso e elástico que envolve externa- Os referidos cones permitem uma visão de alta
mente o globo ocular. A maior parte da esclerótica resolução e cromática, mas somente em presença
é opaca e chama-se esclera; nesta, estão inseridos os de forte luminosidade (visão diurna ou fotópica).
músculos extraoculares que movem os globos ocu- Os bastonetes, ausentes na mácula, encontram-
lares. A parte anterior da esclerótica, transparente, se principalmente na retina periférica, transmitin-
chama-se córnea e actua como lente convergente. do informação directamente para as células gan-
CAPÍTULO 247 Introdução à Oftalmologia Pediátrica 1205
glionares e permitem visão não cromática com la e orienta a passagem da luz até à retina. Divide
fraca luminosidade (mesópica ou crepuscular) e o interior do olho em dois compartimentos con-
visão nocturna (ou escotópica). tendo fluidos ligeiramente diferentes: a) a câmara
No fundo da retina localiza-se o ponto cego anterior, preenchida pelo humor aquoso como foi
(mancha cega ou papila), insensível à luz, ao nível referido antes; b) a câmara posterior, preenchida
do qual não há cones nem bastonetes; corres- pelo humor vítreo.
ponde à emergência de vasos sanguíneos da reti- O cristalino pode variar a sua forma ficando
na e do nervo óptico, nervo que conduz os impul- mais achatado ou mais globoso, uma vez que está
sos nervosos para o centro da visão, no cérebro. suspenso pelo músculo ciliar; tais modificações
Na retina encontra-se também a já citada man- de forma ocorrem para fazer convergir os raios
cha amarela (macula lutea ou fovea central), assim luminosos na direcção da mancha amarela. Com
chamada por evidenciar pigmento de cor amare- efeito, o cristalino fica mais globoso para a visão
lada. O centro desta zona não contém vasos, próxima, e mais aplanado para a visão à distância,
sendo constituído unicamente por cones retini- permitindo que os olhos ajustem o foco para dife-
anos; é a este nível que as impressões visuais têm rentes distâncias.
o máximo de precisão e nitidez. A essa propriedade do cristalino dá-se o nome de
No ambiente escuro é muito difícil, e às vezes até acomodação. Com o envelhecimento, o cristalino
mesmo impossível, a visão.Com efeito, é a luz que perde progressivamente a transparência normal, tor-
estimula o tecido nervoso dos olhos e permite dis- nando-se opaco; a tal situação chama-se catarata.
tinguir a forma, o tamanho, a cor, o movimento, etc.. Com a idade, à medida que comprimento
Em ambientes mal iluminados, por acção do axial do olho aumenta, o cristalino aplana-se.
sistema nervoso simpático, o diâmetro da pupila 4. Humor vítreo
aumenta, o que permite a entrada de maior quan- O humor vítreo é um fluido mais viscoso e
tidade de luz. Ao invés, em locais muito ilumina- gelatinoso que o humor aquoso ocupando o
dos, a acção do sistema nervoso parassimpático espaço entre o cristalino e a retina, isto é, a câmara
leva à diminuição do diâmetro da pupila e, conse- posterior do olho. A sua pressão mantém o globo
quentemente à entrada de luz. Tal mecanismo ocular esférico.
evita o ofuscamento e impede que a luz em exces-
so lese as células fotossensíveis da retina. Anexos
1. A conjuntiva é uma mucosa transparente,
Meios transparentes lisa, que reveste a face interna das pálpebras (con-
1. Córnea juntiva palpebral) e a face anterior do globo ocu-
Trata-se da porção transparente da túnica lar até à córnea (conjuntiva bulbar); une o fundo
externa (esclerótica); é circular no seu contorno e das pálpebras ao globo ocular, permitindo o seu
de espessura uniforme. A sua superfície é nutrida deslizamento.
pela lágrima, segregada pelas glândulas lacrimais 2. As pálpebras são duas porções de pele
e drenada para a cavidade nasal através de um revestidas internamente pela conjuntiva palpe-
orifício existente no canto interno do olho. bral. Servem para proteger os olhos e distribuir
O diâmetro corneano médio é ~ 9,5 a 10,5 mm sobre eles a secreção líquida designada lágrima.
nos recém-nascidos e ~12 mm nos adultos. Quanto 3. Os cílios ou pestanas impedem a entrada de
ao respectivo raio da curvatura: 6,6 – 7,4 mm nos poeira e de excesso de luz nos olhos.
recém-nascidos e ~7,4 a 8,4 mm nos adultos. 4. As sobrancelhas ou supracílios têm a função
2. Humor aquoso primordial de proteger o globo ocular da sudação
É o liquido aquoso que se situa entre a córnea da fronte.
e o cristalino, preenchendo o espaço designado 5. As glândulas lacrimais produzem lágrimas
por câmara anterior do olho. continuamente. Tal líquido é distribuído pelos
3. Cristalino movimentos das pálpebras, limpando e lubrifi-
Tem o formato de lente biconvexa coberta por cando o olho. As lágrimas são drenadas através do
uma cápsula transparente. Situa-se atrás da pupi- canal lacrimal que desemboca nas fossas nasais.
1206 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
6. Os músculos extrínsecos oculares. Estes e pela visão. A normal utilização das funções
músculos são em número de seis (6), com a desi- visuais é, por isso, de extrema importância para
gnação respectiva de rectos, em número de quatro um desenvolvimento harmonioso e saudável do
(4) , e de oblíquos, em número de dois (2). ser em crescimento e desenvolvimento – criança e
Os músculos rectos têm todos uma inserção adolescente. Refira- se, a propósito, que o período
comum pelo tendão de Zinn na porção média da crítico de desenvolvimento e maturação da visão
fenda esfenoidal. se processa até aos 4 anos, sendo os primeiros seis
O músculo recto superior tem uma acção de meses cruciais.
elevação, intorção (ou rotação em torno do eixo Está demonstrado que o recém-nascido (RN) é
principal, para dentro), e adução. O músculo recto capaz de ver quando estimulado, por exemplo,
inferior tem uma acção de abaixamento, extorção por mudanças de intensidade luminosa (res-
(ou rotação em torno do eixo principal, para fora), saltando-se que o rosto da mãe constitui um estí-
e adução. O músculo recto interno ou medial tem mulo visual da maior importância); realça-se
uma acção de adução. O músculo recto externo ainda que a maioria das funções sensoriais e
ou lateral tem uma acção de abdução. motoras ligadas ao sistema da visual se desen-
O músculo grande oblíquo (superior) tem volve sobretudo no período pós-natal.
uma acção de abaixamento, intorção e abdução. O Com efeito, o desenvolvimento da visão no
músculo pequeno oblíquo (inferior) tem uma primeiro ano de vida depende essencialmente da
acção de elevação, extorção e abdução. (Figura 2) maturação da retina (cones e bastonetes), da
mielinização dos nervos ópticos e outras vias ner-
Desenvolvimento do sistema visual vosas, assim como do desenvolvimento das sina-
e sua importância pses ao nível do córtex visual. Fácil se torna dedu-
zir, então, a extraordinária vulnerabilidade de tais
Considerando a globalidade dos órgãos dos senti- estruturas a noxas que possam surgir nos primei-
dos, na espécie humana a visão constitui o mais ros meses incluindo período pré-natal, das quais
importante meio de comunicação com o mundo poderão resultar sequelas graves.
exterior. De toda a informação que recolhemos, No que respeita a particularidades anatómicas
mais de 70% passa em primeiro lugar pelos olhos é importante salientar que o olho de um RN de
termo tem um diâmetro cerca de 70% do do adul-
2
to, e cerca de 95% pelos 3-4 anos de vida. Quanto
1 ao diâmetro da córnea, também em relação ao
3 adulto, tais valores percentuais são, respectiva-
4
5
mente, 80% no RN e 95% pelos 1-2 anos. Relativa-
mente à velocidade de crescimento, o globo ocular
atinge o acme durante o primeiro ano de vida, com
desaceleração a partir do 3º ano, e em velocidade
mais lenta até à puberdade. (Capítulo 255)
7
Os RN e pequenos lactentes mantêm as pálpe-
6 bras encerradas durante a maior parte do tempo;
quanto à sua acuidade visual (adiante abordada
1 – Tróclea de reflexão do 4 – Músculo recto superior com mais pormenor, e já aqui definida resumida-
músculo grande oblíquo 5 – Músculo recto externo
mente como a capacidade para distinguir dois
2 – Músculo levantador da 6 – Músculo pequeno
pálpebra superior oblíquo pontos distintos a uma determinada distância),
3 – Músculo grande oblíquo 7 – Músculo recto inferior numa escala de 0-400 (escala de Snellen) é cerca de
20/400, atingindo a acuidade semelhante à do
adulto pelos 2-3 anos de idade .
FIG. 2
No respeitante à acomodação (fenómeno pelo
Figura 4 – Músculos extrínsecos do olho e levantador da qual se torna possível visualizar objectos próxi-
pálpebra superior. mos em função da contracção do músculo ciliar e
CAPÍTULO 247 Introdução à Oftalmologia Pediátrica 1207
248
da gravidez e do parto, o peso de nascimento,
idade gestacional, eventuais traumatismos rela-
cionados com o parto, designdamente com reper-
cussão no globo ocular, a necessidade de oxige-
noterapia, são aspectos fundamentais que devem
ser inquiridos. A evolução do subsequente desen-
EXAME OFTALMOLÓGICO volvimento da criança deverá ser cuidadosamente
avaliada, sendo útil a análise de fotografias em
NA IDADE PEDIÁTRICA idades diferentes para observar o alinhamento
dos olhos e a posição da cabeça em relação ao
João Goyri O’Neill pescoço e tronco. A informação sobre o comporta-
mento diário da criança quando utiliza a visão, na
escola, junto à televisão, e nas actividades lúdicas,
é também importante.
Metodologia geral O inquérito sobre as doenças que afectaram a
criança e os tratamentos a que esteve submetida
A avaliação oftalmológica da criança inicia-se constitui um elemento igualmente de relevo para
desde o momento da sua entrada na sala de con- a anamnese, tendo em conta a possibilidade de
sulta. Deve ser atentamente analisada a posição desencadeamento de certo tipo de patologia oftal-
da cabeça, a movimentação dos olhos e a forma mológica associada a determinados eventos.
como se desloca, servindo-se da orientação visual.
O Quadro 1 resume os dez passos fundamen- Exame objectivo e testes específicos
tais da avaliação oftalmológica.A acuidade visual
é definida como a capacidade do olho para distin- 1 – No exame geral, numa abordagem sumária,
guir entre dois pontos próximos, a qual depende deve ser analisada a configuração facial, a implan-
de diversos factores, em especial do espaçamento tação dos globos oculares e os seus movimentos,
dos foto-receptores na retina e da precisão da re- nomeadamente para a fixação do olhar desperta-
fracção do olho. do por fontes luminosas e pelos sons; igualmente,
a eventual existência de fotofobia, as pálpebras e o
Anamnese pestanejo, a localização e orientação das pestanas,
bem como a coordenação olho-mão. A verificação
Na anamnese devem ser pesquisados anteceden- de posição anómala da cabeça em relação ao pes-
tes familiares e hereditários (cegueira na família, coço e ao tronco merece uma menção especial:
estrabismo, cataratas em crianças, defeitos da quer a retroflexão, quer a rotação ou a inclinação
refracção, nomeadamente miopia, etc.). A história da cabeça, poderão corresponder a posições
viciosas para que a criança tenha melhor acuidade
QUADRO 1 – Avaliação oftalmológica visual, ou para compensar uma diplopia. Muitas
vezes a posição viciosa permite o alinhamento
1. Anamnese ocular.
2. Exame geral Com uma fonte de luz (lanterna) observam-se
3. Fixação, alinhamento e motilidade oculares os fundos de saco conjuntivais e os pontos lacri-
4. Acuidade visual mais, que devem estar patentes; avalia-se a colo-
5. Visão cromática ração da esclera, os vasos conjuntivais, a trans-
6. Visão binocular parência e o diâmetro das córneas, a profundi-
7. Campo visual dade da câmara anterior, a íris e a área pupilar.
8. Reflexos pupilares As pupilas devem ter diâmetros semelhantes
9. Fundoscopia (isocória), salientando-se que a presença de aniso-
10. Outros exames cória implica estudos mais detalhados. Devem ser
regularmente redondas, excluindo-se assim a exis-
CAPÍTULO 248 Exame oftalmológico na idade pediátrica 1209
priado (face humana aos três meses, uma fonte de branco e outro com riscos ou barras pretas e bran-
luz depois, e um brinquedo aos 6 meses). O movi- cas de larguras variadas.A criança é atraída pelo
mento com perseguição do estímulo visual padrão com barras, (desde que exista capacidade
adquire-se primeiramente na horizontal e, só de discriminação acima do limiar de acuidade
depois, na vertical, pelas 4 a 8 semanas. visual) sendo a acuidade visual deduzida pela me-
A prova de reacção à oclusão constitui tam- nor largura das barras que atrai o olhar e chama a
bém um método simples de avaliação da acuidade atenção da mesma.
visual, podendo ser realizado pelos próprios pais, As bolas rolantes STYCAR, (um conjunto de
desde que devidamente elucidados. 10 bolas brancas com diâmetros progressivamente
Na prática, procede-se à oclusão de um dos menores, que se fazem deslocar num tapete negro,
olhos estando a criança a fixar determinado objec- observando-se a fixação e perseguição da criança
to que lhe desperte a atenção. Com este procedi- ao estímulo visual), constituem outro método de
mento é possível obter três tipos de respostas: 1) avaliação da acuidade visual, passível de aplicar
se a criança reagir apenas à oclusão de um olho, pelos 6 meses de idade. Também aqui, como no
poderá tratar-se de défice grave no olho que não olhar preferencial, não é possível estabelecer uma
reagiu à oclusão, o que implica observação por equivalência com a acuidade determinada por
oftalmologista; 2) se a criança não reagir à oclusão optótipos. (Figura 2)
de qualquer dos olhos, tal indicará, em princípio, Outro método é a utilização de optótipos (fi-
acuidade visual normal nos dois olhos; 3) a guras, letras ou caracteres de tamanhos diferentes,
criança poderá não reagir também por razões rela- apresentados sob a forma de quadros em série).
cionadas com comportamento (por ex. apatia), ou Em geral, após os 3 anos de idade já é possível
por alterações do sistema nervoso central. avaliar a acuidade visual utilizando um destes
métodos de optótipos: habitualmente, para os
• Métodos quantitativos* mais pequenos, apenas em símbolos isolados e,
A pesquisa do nistagmo optocinético, uma depois dos 4 anos, em tabelas com conjuntos de
resposta involuntária com movimento pendular letras. A prática do examinador e, sobretudo, o
dos olhos, (movimento alternado dos olhos em grau de desenvolvimento da criança ditarão qual
direcções opostas, repetitivo) desencadeada pela a melhor técnica a utilizar. Os símbolos, quando
apresentação rítmica de um estímulo visual – por isolados, dão em regra uma melhor a acuidade
exemplo faixas ou tiras alternadamente negras e bran-
cas aplicadas num tambor rotativo – pode também Nistagmo optocinético
servir para a determinação da acuidade visual.
Diminuindo progressivamente a largura dessas
faixas colocadas de modo sucessivo na face lateral
do tambor, é possível avaliar a acuidade visual
máxima relacionando-a com a faixa de menor
largura capaz de desencadear o movimento
reflexo. (Figura 2)
Os chamados testes do olhar preferencial,
como os que empregam cartões de Teller, podem
ser utilizados como técnica de avaliação da
A B
acuidade visual, após os 4-5 meses, em crianças
pré-verbais. Os referidos cartões têm um lado
FIG. 2
Avaliação da acuidade visual utilizando o métodos do nista-
*Notas importantes: gmo optocinético (A) observando o comportamento da criança
a – Não é possível estabelecer uma equivalência entre os resultados
obtidos pelos diversos métodos quantitativos. atrás dum biombo com orifício (permitindo que a mesma não
b – A determinação da acuidade visual deve ser feita separadamente veja o observador) (B). Esta estratégia é aplicada, também para
para longe e para perto, em monocularidade e em binocularidade, sem o olhar preferencial, e para as bolas rolantes STYCAR.
correcção óptica e utilizando-a, quando existir.
CAPÍTULO 248 Exame oftalmológico na idade pediátrica 1211
visual do que quando estão incluídos numa série, As discromatopsias adquiridas devem-se a
em tabelas. (Figura 3) patologia coriorretiniana ou do nervo óptico e são
Não existe consenso sobre o melhor método em geral evolutivas e frequentemente unilaterais
e/ou tabelas de optótipos a utilizar para a deter- ou assimétricas, acompanhadas doutros sinais e
minação da acuidade visual em crianças pequenas sintomas.
e até à idade escolar. Diversos métodos têm sido É bom relembrar que a criança em idade pré-
propostos e utilizados: tabelas de letras e de escolar poderá distinguir as cores primárias (ver-
desenhos figurativos, como as representadas na melho, verde e azul), mas não ser ainda capaz de
Figura 3, E de Snellen (com a letra E em várias as identificar pelo nome.
posições) etc.. Os testes comparativos, como a utilização de
A técnica dos potenciais eléctricos atingindo o pares de canetas de formato igual e com as três cores
córtex occipital, desencadeados por um estímulo primárias, são úteis para a avaliação da visão
visual [os chamados potenciais evocados visuais cromática na criança pequena. Nas mais crescidas
(PEV)] é uma forma mais objectiva de avaliar a podem ser utilizados os livros de tábuas
capacidade visual; tal técnica não dá, contudo, pseudoisocromáticos, como o de Ishiara, com a iden-
informação sobre o processamento neurológico tificação dos números; ou, se a criança ainda não os
mais diferenciado. reconhecer, recorrendo ao “jogo” dos labirintos, que
em geral já consegue executar aos 4 - 5 anos.
4 – Embora não se realize muitas vezes como Os testes dicotómicos de Farnsworth, mais
exame de rotina na avaliação da criança, o estudo informativos, mas também mais complexos, reque-
da visão cromática está indicado, sobretudo em rem melhor colaboração, sendo por isso mais difí-
situações com suspeita de discromatopsia (per- ceis de aplicar numa criança.
turbação na percepção das cores, de que é exem-
plo o daltonismo); trata-se, efectivamente, dum 5 – No estudo da visão binocular há que ter
problema importante (congénito hereditário ou em conta os elementos já recolhidos na observação
adquirido), sobretudo se for desconhecido, por da fixação, no estudo da motilidade ocular, e na
poder interferir no desenvolvimento global da avaliação da acuidade visual.
criança e no seu rendimento escolar. As acro- Dum modo geral, pode afirmar-se que a ava-
matopsias totais são muito raras. liação da bisão binocular se baseia na noção da
As discromatopsias congénitas são heredi- capacidade de fusão das imagens recebidas por
tárias, bilaterais e não evolutivas. Têm maior cada olho.
incidência no sexo masculino aparecendo, segun- Uma correcta binocularidade só é possível com
do alguns autores, em 8% dos rapazes e apenas movimentos oculares normais e com visão equili-
0,5% das raparigas, embora com graus diversos. brada nos dois olhos.
De referir que o exame da motilidade ocular
extrínseca é levado a cabo inicialmente em binocu-
laridade (terminologia de “versões”) avaliando a
simetria da rotação dos dois olhos; verificando-se
assimetria, a avaliação deve passar a fazer-se pro-
cedendo à oclusão alternada de cada olho (mono-
cularidade com a terminologia de “duções”).
É igualmente importante determinar se algum
dos seis músculos extrínsecos que movimentam o
olho está hiper ou hipofuncionante, o que poderá
determinar desequilíbrio em determinada posição
do olhar.
As posições de olhar (ou posições cardinais)
FIG. 3
são as seguintes: para baixo e para a direita, para
Símbolos e tabelas para determinação da acuidade visual. cima e para a direita, para a direita na linha média,
1212 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
para a esquerda e para cima, para a esquerda na No caso de se verificar um desvio fixo na
linha média, e para baixo e para a esquerda. Deve direcção medial (convergente), diz-se que há
igualmente analisar-se o olhar para cima e para esotropia; a situação de desvio fixo para fora
baixo, assim como a posição primária do olhar. (divergente), designa-se exotropia.
Aos 6 meses a criança já deverá ter a visão Se o movimento for vertical para cima, haverá
binocular estabelecida (teste de Hirschberg), hipotropia ou hipoforia; se para baixo, hiper-
existindo condições ideais (intrínsecas e extrínse- tropia ou hiperforia (consultar adiante glossário).
cas de desenvolvimento) tais como ausência de Nas heteroforias (desvios latentes) é apenas o
anomalias congénitas e estimulação com interac- olho ocluído que executa um movimento por
tividade. detrás do oclusor (quando lhe é retirado o estímu-
O chamado cover-test baseando-se no estudo lo de fixação) sendo que, ao destapar-se, readquire
da motilidade ocular extrínseca, é um exame a fixação sem que haja movimento simultâneo do
essencial no estudo da visão binocular, permitin- olho que esteve a fixar. (Figura 4)
do um diagnóstico dos desvios latentes e cons- Os testes de estereopsia dão uma indicação
tantes, assim como da sua alternância ou unilate- útil sobre o funcionamento sensorial da visão
ralidade binocular e, quando normais, mostram a existên-
Para a execução do cover-test não é necessário cia de percepção simultânea e de uma boa capaci-
equipamento especial, apenas um objecto de fixa- dade de fusão das imagens recolhidas pelos dois
ção (optótipo correspondente à melhor acuidade olhos.
visual conseguida pela criança) e um oclusor; Um dos testes mais utilizados é o estereoteste
todavia, importa haver experiência e treino por polarizado de Wirt-Titmus, baseado numa disso-
quem o executa para se obter a colaboração da cri- ciação da imagem que é apresentada aos dois
ança, nomeadamente quanto à observação dos olhos. A dissociação é feita colocando óculos com
movimentos dos olhos. O teste deverá ser realiza- filtros que polarizam a luz segundo direcções
do com fixação para longe (6 metros) e para perto opostas; desta forma, cada olho vê uma imagem
(30 cm); se a criança usar óculos deverá ainda ser algo diferente, com ligeiro deslocamento lateral
executado com a correcção óptica. em relação à imagem do outro olho. (Figura 5)
Na prática , procede-se do seguinte modo: na Na prática são apresentados vários círculos e
modalidade de “cover” para perto (30 cm) deve desenhos de dimensões diferentes fabricados em
ocluir-se um olho enquanto o paciente fixa o material polarizado. Da fusão das duas imagens
objecto com o outro; remove-se depois a oclusão,
observando o movimento do olho ocluído. Cover-test
OD OE OD OE
Na condição ideal para a binocularidade, a orto-
foria (correcto alinhamento dos dois olhos, sem desvios
latentes ou manifestos), não há qualquer movimento
dos olhos, atrás do oclusor ou ao destapar, pois
ambos se mantêm alinhados com o objecto de fix-
ação, pese embora a oclusão de um deles. Ortoforia Exoforia de OD
OD OE OD OE
Na heterotropia (não alinhamento ocular mani-
festo ou estrabismo) a oclusão do olho que fixa obri-
ga o outro olho que estava desviado a movimentar-
se para alinhar o ponto de fixação da retina (a fóvea
se houver uma fixação central) com o objecto.
Se o movimento do olho após remoção da Esotropia alternante Esotropia de OE
oclusão se verificar em direcção à linha média
(convergente), diz-se que há esoforia; caso tal não
FIG. 4
se verifique (divergente) diz-se que há exoforia.
Em ambas as situações os dois olhos fixam o Covert Test: alguns resultados obtidos (consultar texto e
objecto quando estão descobertos. glossário).
CAPÍTULO 248 Exame oftalmológico na idade pediátrica 1213
2
1
4
1 – Mácula
2 – Papila óptica
3 – Ramo temporal superior da artéria central da retina
4 – Ramo temporal inferior da veia central da retina
FIG. 8
Avaliação do campo visual pelo método de Sheridan com bolas FIG. 9
montadas. Fundoscopia normal.
CAPÍTULO 248 Exame oftalmológico na idade pediátrica 1215
GLOSSÁRIO
Acomodação > fenómeno pelo qual se consegue visualizar os objectos
próximos, o que é possível graças à contracção do músculo ciliar e à
elasticidade da cápsula do cristalino.
Acuidade visual > capacidade de distinguir dois pontos distintos a
determinada distância;este parâmetro mede a actividade macular
(visão central).
Campimetria > exploração e determinação do campo visual periférico
e central.
Catarata > opacidade do cristalino.
Estereopsia > Capacidade de percepção de imagens com noção de rele-
vo ou de 3 dimensões.
Estrabismo > não alinhamento ocular.
Hifema > colecção de sangue na câmara anterior.
Hipopion > colecção de pus na câmara anterior.
Leucocória > pupila branca (em vez de negra, normal).
Nistagmo > oscilações rítmicas dos globos oculares, independentes dos
movimentos oculares normais.
Ortóptica > Conjunto de processos de reeducação do olho destinados à
correção das pertubações da visão binocular (designadamente estra-
bismo) e da motibilidade ocular.
Prefixo “exo” > divergente.
Prefixo “eso”ou “endo” > convergente.
Sufixo “foria” > latente.
Sufixo “tropia” > manifesto.
1216 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
249
e pré-escolares;no recém-nascido surge com uma
prevalência entre 1% e 25%, correspondendo os
valores mais elevados aos recém-nascidos (RN)
pré-termo portadores de retinopatia da prema-
turidade. Na faixa etária entre 11 e 13 anos a
prevalência também é mais elevada.
ANOMALIAS DE REFRACÇÃO A hipermetropia é o erro de refracção mais
comum na idade pediátrica, sendo que a maioria
(AMETROPIA) dos recém-nascidos é hipermétrope.
250
com a idade; no entanto, no que se refere à acuida-
de visual, os sinais e sintomas são mais evidentes
do que nos outros erros de refracção.
Tratamento
Etiopatogénese e classificação
252
pel importante na nutrição da córnea, na sua
lubrificação, na protecção do olho contra os
agentes infecciosos e os poluentes externos, e na
refracção. A sua composição, produção e estabili-
dade são, por isso, importantes.
A fina camada lipídica, a mais externa, é pro-
OBSTRUÇÃO DO APARELHO duzida pelas células intertarsais das glândulas de
Meibomius, pelas células glandulares sebáceas de
LACRIMAL Zeiss e pelas células sudoríparas de Moll.
A camada aquosa, intermédia e a mais espessa,
João Goyri O’Neill e J.L. Dória resulta das células secretoras de Krause e de
Wolfring, também designadas por glândulas
lacrimais acessórias.
A camada mucinosa, mais interna, é produzida
Bases anatomofisiológicas pelas células caliciformes, pelas células glandu-
e definições lares de Manz e pelas criptas de Henle. (Figura 2)
O movimento das pálpebras promove a circu-
Em condições basais a produção da lágrima lação da lágrima encaminhando-a para o canto
depende das várias células glandulares que se dis- interno da fenda palpebral – carúncula. A sua
tribuem pelas pálpebras e conjuntiva. Destacando- drenagem faz-se pelas vias lacrimais que se ini-
se a glândula lacrimal, esta localiza-se na porção ciam nos pontos lacrimais, pequenos orifícios, um
súpero-externa e anterior da órbita; compreende superior e outro inferior, no topo dos tubérculos
duas porções: orbital e palpebral. (Figura 1) lacrimais. Seguem-se os canalículos lacrimais que
A mesma cresce até aos 4 anos , sendo que a se abrem no saco lacrimal, e este continua-se pelo
produção reflexa da sua secreção – a lágrima – é, canal lacrimonasal, cuja abertura inferior se loca-
em geral, ínfima até ao 6º mês de vida. liza na meato inferior das fossas nasais.
O filme lacrimal com as suas três camadas - Embriologicamente as vias lacrimais resultam
lipídica, aquosa e mucinosa, desempenha um pa- de um cordão celular ectodérmico cujas células
8
7
1
8
7
2
3
4 1 – Pele
2 – Tecido celular subcutâneo 9
3 – Músculo orbicular
5 das pálpebras (estriado) 5
2 1 4 – Camada celular
6 submuscular 4
5 – Tarso
6 – Glândulas de Meibomius 3
1 – Carúncula lacrimal 5 – Sulco pálpebro-geniano
2 – Prega semilunar 6 – Sulco órbito-palpebral inferior 7 – Músculo superior do
3 – Comissura interna 7 – Sulco órbito-palpebral superior tarso ou de Müller (liso)
das pálpebras 8 – Pálpebra superior (porção 8 – Conjuntiva palpebral 6
4 – Comissura externa orbitária) 9 – Conjuntiva bulbar
das pálpebras
FIG. 1
Globo ocular direito em esquema: relação com pálpebra e FIG. 2
carúncula lacrimal. Constituição anatómica da pálpebra (corte sagital).
1222 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
centrais desaparecem depois, para dar lugar ao transborda o rebordo palpebral, correndo pela face.
lume tubular. À nascença, segundo alguns estu- As chamadas “lágrimas de crocodilo” na desi-
dos, mais de 35% dos bébés não têm ainda a tota- gnação popular correspondem à situação em que
lidade do sistema de drenagem patente, e em há lacrimejo durante a sucção e mastigação; tal se
cerca de 5% das crianças nascidas de termo per- explica por enervação aberrante entre o 5º par cra-
sistem ainda alguns restos celulares até cerca do niano (o qual enerva a glândula lacrimal) e as
sexto mês de vida, ocluindo a parte inferior do fibras gustativas do 7º par.
canal lacrimonasal. (Figura 3)
As Figuras 1 e 3 esquematisando, respectiva- Importância do problema
mente a relação entre glândula lacrimal e carún-
cula, e o trajecto das vias lacrimais, facilitam a Em cerca de 5 a 7 % dos recém-nascidos e lactentes,
compreensão dos processos em que existe dificul- não estando os canalículos e ductos lacrimais com-
dade de drenagem da secreção lacrimal. pletamente desenvolvidos, existe possibilidade de
Diz- se que há lacrimejo quando se verifica obstrução lacrimal em idade muito precoce.
excesso de produção de lágrimas, como acontece, Por outro lado, poderão estar em causa defeitos
por exemplo, nos casos de estimulação retiniana congénitos de canalização duma ou mais daquelas
com luz brilhante), psíquica (por ex. o choro e o estruturas, também com consequente obstrução la-
riso) ou física (por ex. corpos estranhos, poluentes, crimal; salienta-se que a causa mais frequente de
ambiente seco). Igualmente, as conjuntivites, os epífora no lactente é, de facto, a obstrução con-
corpos estranhos superficiais na córnea e na con- génita da via lacrimal.
juntiva, e a triquíase (desvio congénito ou adqui-
rido das pestanas para dentro, contra o globo ocu- Manifestações clínicas
lar, enquanto a pálpebra conserva a sua posição
normal), podem actuar como irritantes, desen- A obstrução das vias lacrimais é a causa mais
cadeando o lacrimejo. comum de epífora na criança recém-nascida, que
O termo epífora reserva-se para as situações de se acompanha por vezes de uma secreção mucosa
deficiente drenagem através da vias lacrimais. Em ou mucopurulenta junto dos pontos lacrimais. As
ambos os casos, (lacrimejo e epífora), a lágrima vias lacrimais impermeáveis, com secreção retida
funcionando como um meio de cultura e de
2 3
desenvolvimento microbiano facilitam, por sua
vez, a ocorrência de conjuntivites repetidas, com
epífora e lacrimejo.
A epífora e o lacrimejo a que atrás nos referi-
mos, como epifenómenos de obstrução da via
lacrimal, levam a conjuntivite recorrente explicá-
vel pela estase lacrimal; recordando o trajecto das
1
vias lacrimais (Figura 3) pode compreender-se
4 que a compressão do dorso do nariz pode originar
refluxo da secreção para o espaço conjuntival.
(Capítulo 254)
5
A dacriocistite (ou infecção do saco naso-
1 – Pontos lacrimais lacrimal) é uma complicação frequente, sendo de
2 – Canalículos lacrimais
referir que o germe bacteriano mais frequente-
3 – Saco lacrimal
4 – Canal lacrimonasal mente implicado é o Staphylococcus aureus; traduz-
5 – Fossas nasais se por rubor e dor ao nível da comissura interna
palpebral e do dorso do nariz, epífora e refluxo de
secreção mucosa ou mucopurulenta pelos canalí-
FIG. 3
culos lacrimais.
Vias lacrimais em esquema: olho direito. O diagnóstico de obstrução das vias lacrimais
CAPÍTULO 252 Obstrução do aparelho lacrimal 1223
pode ser facilmente feito com a instilação de uma génito, a massagem digital cuidadosa poderá ser
gota de fluoresceína a 2% no fundo de saco con- suficiente para resolver a situação; noutros casos
juntival inferior, verificando-se depois, com luz haverá necessidade de sondagem cautelosa ou de
ultra-violeta, o aparecimento do corante, ou não manobras cirúrgicas mais complexas.
(no caso de obstrução), nas fossas nasais ou na
faringe. BIBLIOGRAFIA
Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
Diagnóstico diferencial Honovar SG, Prakash VE, Rao GN. Outcome of probing for
congenital nasolacrimal duct obstruction in older children.
Nas síndromas de obstrução das vias lacrimais Am J Ophthalmol 2000; 130: 42-48
haverá que ponderar duas situações específicas: 1) Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
atrésia dos pontos lacrimais (em geral, trata-se Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
duma fina membrana epitelial que oclui o orífi- 2011
cio); 2) dacriocistocele (mucocele) congénito, Mac Ewen CJ, Young JD. Epiphora during the first year of life.
pouco frequente, resultando duma obstrução a Eye 1991; 5: 596-600
montante (canalículos lacrimais) e a jusante (canal Pepose JS, Holland GN, Wilhelmus KR. Ocular Infection &
lacrimonasal) do saco lacrimal, levando à sua Immunity. St Louis: Mosby, 2004
dilatação, habitualmente com infecção, que ocorre Rudolph CD, Rudolph AM, Lister GE, First LR, Gershon
nas primeiras semanas de vida. AA(eds). Rudolph’s Pediatrics. New York: McGraw-Hill
Medical, 2011
Tratamento Taylor D (ed). Pediatric Ophtalmology. Oxford: Blackwell
Science, 2004
A massagem digital, ou com uma “cotonete”,
repetida várias vezes ao dia na zona do saco
lacrimal e do canal lacrimonasal é muitas vezes
suficiente para resolver a situação: esvaziando-se
com tal manobra o saco lacrimal, evita-se assim o
crescimento bacteriano; por outro lado, a pressão
hidrostática produzida contribui para a expulsão
dos” restos” de secreções mais ou menos viscosas
que ainda entopem o canal lacrimonasal. À mas-
sagem pode associar-se a instilação de uma gota
de colírio antibiótico, se houver conjuntivites de
repetição.
Quando a situação não se soluciona com as
massagens persistentes até aos 6 meses, poderá
estar indicada a sondagem das vias lacrimais, ati-
tude que deverá ser ponderada e realizada, sem-
pre pelo médico oftalmologista. A título de infor-
mação apenas, são descritos alguns procedimen-
tos que ultrapassam o âmbito do pediatra e do
clínico geral.
Se a dificuldade de drenagem das lágrimas for
explicada por atrésia dos pontos lacrimais, bastará
realizar a sua perfuração, seguida de dilatação.
Nalguns casos menos frequentes a oclusão pro-
longa-se pelo canalículo lacrimal, implicando uma
atitude cirúrgica mais elaborada.
Nos casos de dacriocistocele (mucocele) con-
1224 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
253
cularização do nervo óptico levando à perda de
função progressiva das fibras nervosas de que se
compõe, com consequente perda de campo visual.
A imaturidade do colagénio da córnea e escle-
rótica na infância confere elasticidade ao globo ocu-
lar. Na criança, o excesso de PIO pode ainda originar
GLAUCOMA aumento de volume do globo ocular (buftalmo) e da
córnea (megalocórnea); o estiramento desta estrutu-
Cristina Brito ra assim como a ruptura das camadas mais poste-
riores da mesma favorecem a entrada de humor
aquoso na sua espessura, do que resulta edema e
consequente perda da habitual transparência.
Definição Da etiopatogénese decorre um dos modos de
classificar o glaucoma, podendo considerar-se dois
O termo glaucoma designa um conjunto de grandes grupos:
doenças que se caracterizam por lesão do nervo 1) os glaucomas resultantes de qualquer per-
óptico e perda de campo visual, habitualmente turbação do sistema de circulação e de drenagem
associadas a, ou provocadas por, aumento da do humor aquoso, relacionável com anomalia iso-
pressão intra-ocular (PIO) avaliada por tonometria. lada do ângulo iridocorneano (disgenesia da
malha trabecular) e alterações secundárias do de-
Importância do problema senvolvimento da íris e corpo ciliar – são os glau-
comas primários; (Figura 1)
Trata-se duma situação relativamente prevalente 2) os glaucomas resultantes de doenças ocu-
na população geral (3%), sendo bastante mais fre- lares congénitas ou adquiridas várias (por exem-
quente na população idosa, e muito rara na popu-
lação infantil ou juvenil. Embora constitua menos 5 12
11
8 17
de 0,07% das doenças do foro oftalmológico, de 9
acordo com diversos estudos epidemiológicos 10
13
pode resultar em amaurose em cerca de 3% a 12%
4
dos casos. Nas formas congénitas têm sido apu- 6
radas incidências da ordem de 1/10.000 a 1/
7
20.000 recém-nascidos.
15
Etiopatogénese e classificação 3
2
14 16
O humor aquoso produzido pelo corpo ciliar pas- 1
sa da câmara posterior, através do orifício pupilar,
para a câmara anterior, sendo drenado através da 1 – Processos ciliares 9 – Cápsula de Tenon
2 – Fibras circulares do mús- 10 – Episclerótica
malha trabecular do ângulo iridocorneano e do culo ciliar ou de Brucke 11 – Córnea
canal de Schlemm para a circulação geral pelas 3 – Fibras radiais do músculo 12 – Esclerótica
chamadas veias aquosas. (Figura 1) ciliar 13 – Trabécula esclero-
A pressão intra-ocular (PIO) – com um valor 4 – Fibras longitudinais do corneana
músculo ciliar 14 – Íris
médio de 7 mmHg na data do nascimento, aumen- 5 – Canal de Schlemm 15 – Câmara anterior
tando cerca de 1 mmHg cada 2 anos até aos 12 6 – Linha de Schwalbe 16 – Câmara posterior
anos – resulta do equilíbrio entre a produção de 7 – Membrana de Descemet 17 – Limbo esclerocorneano
8 – Conjuntiva
humor aquoso e a respectiva drenagem. Se houver
excesso de produção ou obstáculo à drenagem
FIG. 1
verifica-se acumulação de líquido no interior do
globo ocular. O excesso de PIO compromete a vas- Ângulo iridocorneano
CAPÍTULO 253 Glaucoma 1225
plo outro tipo de disgenesias como do segmento segmento anterior, a criança pode evidenciar miopia
anterior do globo ocular, do segmento posterior ou progressiva, estrabismo ou percepção de perda de
de todo o globo), doenças inflamatórias ou infec- campo visual; nestas situações a sintomatologia rela-
ciosas do globo ocular (por ex. uveíte), doenças ciona-se essencialmente com a perda visual.
metabólicas (por ex. mucopolissacaridoses), O diagnóstico diferencial deve estabelecer-se
doenças do tecido conjuntivo, tumores oculares com a megalocórnea,inflamações, traumatismos
(por ex. retinoblastoma), bloqueio da pupila por de nascimento, obstrução das vias nasolacrimais,
sinéquias posteriores da íris ao cristalino, sublu- e ceratoconjuntivites, entre outras situações.
xação do cristalino (por ex. na homocistinúria e Seguidamente é dada ênfase a duas formas
síndroma de Marfan), artrite crónica juvenil (por clínicas de glaucoma primário.
sinéquias inflamatórias – goniossinéquias), neu-
rofibromatoses, anomalias craniofaciais sindro- Glaucoma primário congénito
máticas, cromossomopatias, lesões resultantes de É a forma mais frequente de glaucoma no recém-
traumatismos, lesões iatrogénicas (como as que nascido e lactente.
resultam de intervenções cirúrgicas por catarata, e Na maioria dos casos trata-se de formas espo-
do uso prolongado de corticosteróides locais ou rádicas, demonstrando-se em cerca de 10-40% dos
sistémicos etc.) – são os glaucomas secundários. casos antecedentes familiares e hereditariedade
Existem outras classificações relacionadas, autossómica recessiva com penetrância variável.
nomeadamente com: o modo de aparecimento Conhecem-se pelo menos três loci cromossómicos
(agudo ou crónico), idade de aparecimento, idade responsáveis pela hereditariedade do glaucoma
de manifestação manifestação (no período neona- congénito primário. O gene CYP1B1 foi identifica-
tal ou ulteriormente). do num desses três loci.
O risco de ocorrência em irmãos de uma
Manifestações clínicas e diagnóstico criança afectada, sem consanguinidade dos pais, é
muito baixo (3% para o sexo masculino e 0% para
O glaucoma primário (correspondendo a cerca de uma criança do sexo feminino). Apesar de a pro-
60-70% dos casos pediátricos, em regra congénito, babilidade ser baixa, recomenda-se o exame de
pelo facto de a PIO ter início geralmente no perío- irmãos e descendentes de doentes com glaucoma con-
do pré-natal), evidencia sintomatologia antes dos génito primário, especialmente nos primeiros 6
3 anos de idade, enquanto o que é gerado após o meses de vida.
nascimento (em regra secundário, também cha-
mado adquirido ou juvenil) evidencia sintoma- Glaucoma primário juvenil
tologia entre os 3 e 30 anos. Associa-se a miopia e história familiar de glaucoma,
As manifestações dependem muito da magni- de início entre os 5 e 20 anos. Parece haver associa-
tude da elevação da PIO e da idade de início. Os ção com o gene GLC1A do cromossoma 1q21-q31.
achados mais frequentes são: lacrimejo, fotofo-
bia, blefarospasmo, megalocórnea, buftalmo e Exames complementares
opacidade corneana.
Uma PIO elevada muito precoce, evidenciada Para além da tonometria e doutros exames espe-
logo na data do nascimento, pode provocar opaci- cializados que ultrapassam o âmbito do livro, o
ficação, procidência e aumento de dimensões da especialista recorre em geral a exames imagio-
córnea. Nos casos de aumento mais gradual da lógicos, destacando-se a ecografia para avaliação
PIO poderá verificar-se, não opacidade corneana, do comprimento axial do globo ocular, com
mas apenas buftalmo ou buftalmia. relevância na fase de opção terapêutica e no estu-
A ocorrência simultânea de lacrimejo, fotofo- do evolutivo.
bia e blefarospasmo, no recém-nascido ou lacten-
te, associados a edema corneano, é muito sugesti- Tratamento
va de hipertensão ocular.
Após os 3 anos, como diminui a elasticidade do A abordagem terapêutica médica ou cirúrgica (a
1226 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Prognóstico
BIBLIOGRAFIA
Bohnsack BL, Freedman SF. Surgical outcomes in childhood
uveitic glaucoma. Am J Ophtalmol 2013; 155:134-142
Brito C, Abrantes P. Oftalmologia. In Palminha J, Carrilho E
(eds). Orientação Diagnóstica em Pediatria. Lisboa: Lidel,
2003; 685-718
Flammer J. Glaucoma. Göttingen: Hogrefe & Huber Publishers,
2003
Ho CL, Walton DS. Management of childhood glaucoma. Curr
Opin Ophthalmol 2004; 15: 460-464
Kincaid MC, Yanoff M, Fine BS. Retina. In Tasman W, Jaeger
CAPÍTULO 254 Síndroma do “olho vermelho” 1227
254
• a associação a prurido intenso indica, em
geral, a presença de conjuntivite alérgica;
• a dor “em pontada”, de início agudo e localiza-
da sugere a presença de corpo estranho;
• a dor mais insidiosa, profunda, de carácter
difuso, e por vezes mal definida, pode acom-
SÍNDROMA DO “OLHO panhar um quadro de uveíte ou de neurite
óptica;
VERMELHO” • a “sensação de corpo estranho”, de queima-
dura ou de desconforto, mais ou menos inten-
José Nepomuceno sa, pode indiciar alteração local nas pálpebras,
conjuntiva, córnea, esclerótica ou episclera.
A fotofobia tem uma importância limitada como
possível indicador da localização da doença que
Definição cursa com “olho vermelho”: apesar de estar frequen-
temente associada a doença intra-ocular (uveíte,
A designação de “olho vermelho”, traduzindo um glaucoma), pode tambem surgir em processos
conceito semiológico, diz respeito a um conjunto de patológicos extra-oculares (conjuntivite, ceratite).
situações frequentes em Oftalmologia Pediátrica Seguidamente são abordadas as principais si-
em que predomina, entre outros sinais ou sintomas, tuações clínicas que cursam com “olho verme-
o rubor ou hiperémia do globo ocular. lho”, salientando-se que, na maioria das mesmas,
está indicado o encaminhamento para o oftalmo-
Etiopatogénese e semiologia logista.
4. Dacriocistite
A dacriocistite é uma infecção do saco lacrimal,
geralmente obstruído; os agentes etiológicos mais
frequentes são: S. aureus, S. coagulase negativo, S.
pneumoniae, Streptococcus pyogenes (grupo A), etc..
FIG. 1 FIG. 2
Exercendo pressão sobre o saco nasolacrimal veri-
Calázio. (NIHDE) Hordéolo externo. (NIHDE) fica-se a saída de exsudado purulento.
O antibiótico de primeira escolha é a flucloxa-
cilina ou, em alternativa, o ácido fusídico, canami- cilina; em alternativa: amoxicilina-clavulanato,
cina, gentamicina ou cloranfenicol (de 4-4 horas e cefalosporinas de segunda ou terceira geração, ou
5 vezes por dia), entre outros. clindamicina.
Se a lesão resistir ao tratamento médico pode, A duração do tratamento é 7-10 dias, sendo
após o desaparecimento da inflamação aguda e que poderá estar indicado o exame cultural do
adequada delimitação capsular, ser removida exsudado com coloração de Gram; havendo sinais
cirurgicamente, por via cutânea ou conjuntival. de pus colectado, o oftalmologista procede a
A antibioticoterapia sistémica somente está drenagem cirúrgica. (Figura 3)
indicada se se verificar celulite difusa ou adenite
pré-auricular. 5. Conjuntivite aguda
Definição e importância do problema
2. Hordéolo externo A conjuntivite aguda, constituindo, seguramente,
Esta situação (sinónima de terçol e, na designação a principal causa de “olho vermelho” na idade
popular, de terçolho) é um processo inflamatório pediátrica, define-se como inflamação da conjun-
agudo supurado, em forma de ”grão de cevada” tiva provocada por infecção bacteriana ou vírica,
que se desenvolve no bordo da pálpebra, proci- estado alérgico ou irritação mecânica (corpos
dente para fora, ao nível de uma das glândulas estranhos, líquidos, etc.). As conjuntivites em
sebáceas (glândulas de Zeiss), acompanhado de geral podem evoluir de modo agudo ou crónico.
dor. (Figura 2)
Na prática, a actuação é semelhante à já referi-
da a propósito do calázio e hordéolo interno.
3. Blefarite
Trata-se duma inflamação (aguda ou crónica) do
bordo da pálpebra. Originando sensação de “irri-
tação” e prurido, são descritas as formas estafilo-
cócica e seborreica. A pediculose das pálpebras pode
originar um quadro de blefarite. A etiologia mais fre-
quente é estafilocócica.
Na prática é suficiente a aplicação tópica
empírica de unguento (pomada) oftálmico com
antibiótico de 4-4 horas (5 vezes por dia): ácido
FIG. 3
fusídico, polimixina, cloranfenicol, gentamicina, ou
canamicina. Dacriocistite: tumefacação do saco lacrimal.
CAPÍTULO 254 Síndroma do “olho vermelho” 1229
Manifestações clínicas
As conjuntivites agudas, para além da hiperémia
conjuntival, sensação de “areia ou de corpo estra-
nho” no olho, evidenciam-se por prurido, ardor e
aparecimento de lacrimejo e secreção aquosa,
mucosa ou purulenta; havendo compromisso da
conjuntiva palpebral, surgirá edema palpebral.
Em geral não evoluem com dor, excepto se existir
concomitante compromisso da córnea. Os reflexos
pupilares são normais.
A presença de secreção purulenta com encerra-
mento palpebral matinal sugere infecção bacteriana.
FIG. 4
Nas conjuntivites bacterianas (estando em
causa, sobretudo, Streptococcus pneumoniae, Mora- Conjuntivite papilar com exsudado purulento.
xella, Haemophilus influenzae e Chlamydia trachoma-
tis, do que resulta o quadro anátomo-patológico
de conjuntivite papilar), a secreção varia entre
mucosa e mucopurulenta, em função da virulên-
cia do germe. (Figura 4)
No caso do H. influenzae é habitual haver secre-
ção simultaneamente sanguinolenta, a qual não
deverá ser confundida com hemorragia subcon-
juntival ou hiposfagma; é autolimitada e, por isso,
de evolução favorável.
Nas situações de etiologia por C. trachomatis é
habitual a concomitância de sintomatologia do
foro respiratório.
FIG. 5
O período de contagiosidade das conjuntivites
bacterianas agudas, dum modo geral, termina cerca Conjuntivite vírica.
1230 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
víricas agudas, dum modo geral, termina cerca de conjuntival de modo sistemático tendo em conta
7 dias após início dos sinais e sintomas. que a conjuntivite bacteriana responde a grande
A chamada oftalmia neonatal corresponde a número de antimicrobianos tópicos aplicados
uma forma de conjuntivite que ocorre nos segundo critério empírico;por outro lado, estando
primeiras quatro semanas de vida (período neo- em causa infecção conjuntival aguda provavel-
natal) com uma frequência oscilando entre 1% e mente vírica, a aplicação de antimicrobianos tópi-
12%; trata-se da doença ocular mais frequente no cos não comporta efeitos colaterias significativos.
recém-nascido. No entanto, no periodo neonatal, perante sus-
Em função da idade de manifestação inicial peita de conjuntivite gonocócica,deverá proceder-
são considerados vários agentes etiológicos pos- se a coloração pelo método de Gram e a exame
síveis. cultural do exsudado.
Se surgir entre 1-3 dias após o parto, sendo
notória secreção purulenta espessa e abundante, a Tratamento
causa será a Neisseria gonorrhoeae (com maior pro- I) Recém-nascido
babilidade) ou Herpes simplex. Salienta-se a probabi- A antibioticoterapia a aplicar depende do agente
lidade de a infecção por gonococo ou por vírus her- etiológico de que há suspeita; poderá haver indi-
pes simples se poder estender à córnea; por isso, esta cação de internamento (utilizando antibioticotera-
situação constitui uma emergência oftalmológica. pia por via sistémica/endovenosa) sendo indis-
Se as manifestações surgirem entre os 5 e 10 pensável o apoio do oftalmologista.
dias, os agentes etiológicos prováveis serão a – N. gonorrhoeae
Chlamydia trachomatis ou cocos gram-positivos O antibiótico de primeira escolha é a ceftriaxona
(Staphylococcus aureus, Streptococcus pneumoniae, na dose de 25-50 mg/kg (dose máxima: 125 mg) por
Streptococcus do grupo B, etc.). via intravenosa ou intramuscular em dose única;
Nas conjuntivites surgidas após os 7 dias de este esquema é igualmente aplicável a recém-nasci-
vida está em causa geralmente o vírus Herpes sim- dos de mães com gonorreia, não tratadas. Pode
plex, sendo que a respectiva infecção, como foi empregar-se cefotaxima por via endovenosa
referido antes, poderá manifestar-se já antes. Pode durante 10-14 dias (50 mg/kg/dia divididos por
ser uni ou bilateral; habitualmente verifica-se duas doses).
secreção serosa ou mucopurulenta. Como tratamento tópico está indicada lava-
No período neonatal poderá surgir uma forma gem com soro fisiológico e aplicação de compres-
de conjuntivite de causa química (conjuntivite sas esterilizadas aquecidas, sobre a pálpebra
química), de evolução autolimitada (24-48 horas) encerrada.
a qual se relaciona, curiosamente, com a utiliza- A detecção desta infecção no recém-nascido
ção de nitrato de prata a 1% na profilaxia da implica igualmente o tratamento dos progenitores.
oftalmia gonocócica levada a efeito já na sala de – Chlamydia trachomatis
parto (método Credé); os sinais surgem, em geral, Os antibióticos de eleição são macrólidos:
entre as 6 e 12 horas após o parto: exsudado mais eritromicina (40 mg/kg/dia em 4 doses) ou clari-
frequentemente aquoso, podendo evoluir para tromicina (15 mg/kg/dia em duas doses) durante
purulento. 14 dias.
Refira-se, no entanto, que tal medida con- Torna-se também indispensável o tratamento
tribuiu, de facto, para a diminuição da incidência dos progenitores.
da conjuntivite gonocócica. – Outros germes: S. aureus, S. pneumoniae, H.
A conjuntivite alérgica aguda deve-se a uma influenzae
reacção mediada pela IgE (tipo 1) a qual é estimu- Nestes casos está indicada a aplicação de un-
lada por alergénios como pó da casa, pêlo de ani- guentos (pomadas) oftálmicos de 4-4 horas – cinco
mais, pólen,etc.. vezes por dia, ou gotas oftálmicas (colírio) de 3-3
horas-seis vezes por dia, à base de ácido fusídico,
Diagnóstico laboratorial cloranfenicol, oxitetraciclina, polimixina, etc.
Não se procede a exames culturais do exsudado durante 7-10 dias. (Capítulos 359 a 362)
CAPÍTULO 254 Síndroma do “olho vermelho” 1231
255
forma associada aos portadores de lentes de con-
tacto, habitual em adolescentes.
ser localizada a uma área (escotoma), generaliza- conhecimento com testes de optótipos e acuidade
da, etc., consoante a quantidade e localização de de leitura), determinação da sensibilidade ao con-
fibras nervosas afectadas. traste (capacidade de ver detalhes em níveis baixos
• Leucocória – Trata-se de “pupila de cor bran- de contraste), registo dos campos visuais e avalia-
ca” a qual pode ter várias causas; relaciona-se com ção da visão cromática. Completa-se pela visualiza-
opacidade da córnea, do cristalino (catarata), com ção directa da retina (oftalmoscopia directa e indi-
patologia do segmento posterior do globo ocular recta), habitualmente com a pupila dilatada farma-
(retinoblastoma, descolamento da retina de causa cologicamente. Frequentemente é necessário recor-
inflamatória, infecciosa, degenerativa, traumática, rer a outros exames complementares com a retino-
etc.), patologia vítreo-retiniana ou defeito congénito. grafia, a angiografia fluoresceínica, a ecografia ocu-
• Estrabismo – O estrabismo pode ser a única lar, a tomografia de coerência óptica e a electrofisio-
manifestação de doença retiniana; assim, qualquer logia (electrorretinograma, electroculograma e
criança estrábica deve ser sempre avaliada e sujei- potenciais evocados visuais). (Capítulo 248)
ta a fundoscopia. A baixa de visão traduz-se em São referidos a seguir problemas clínicos de
dificuldade na fixação e consequente desvio do etiopatogénese diversa associados a doença retini-
olho. ana, chamando-se especial atenção para a retino-
• Nistagmo – A sucessão de movimentos rít- patia da prematuridade e para o retinoblastoma.
micos, involuntários e conjugados dos globos ocu-
lares, com alternância de oscilações lentas e rápi- 1. Anomalias congénitas
das pode ser uni ou bilateral. Define-se conven- As anomalias congénitas da retina e nervo óptico
cionalmente pelo sentido da oscilação rápida e podem implicar um compromisso funcional va-
pela sua direcção: horizontal, vertical, rotatório, riável, salientando-se que algumas delas poderão
multidireccional ou misto. Constitui sinal de indiciar a existência defeitos com outra localização.
lesões do aparelho vestibular ou das vias nervosas Surgem com uma incidência ~1,6/1.000 em RN.
centrais ou periféricas; pode ser provocado por São exemplos a displasia vítreo-retiniana, a
certas posições. Quando de origem retiniana persistência do vítreo primário hiperplásico,
ocorre por incapacidade de fixação associada a anomalias vasculares e o coloboma (qualquer
patologia macular. anomalia congénita do desenvolvimento que
poderá surgir em qualquer das seguintes estru-
Principais doenças retinianas turas: pálpebras, íris, cristalino, coroideia, retina
ou nervo óptico).
Em termos semiológicos as doenças retinianas O coloboma é um dos constituintes da associa-
podem dividir-se em dois grupos: as doenças macu- ção CHARGE, razão pela qual a sua verificação
lares e as doenças da periferia retiniana. Recorda-se obriga à detecção doutros defeitos (síndromas mal-
que a mácula é a região da retina que contribui pri- formativas, cromossomopatias, etc.). (Capítulo 18)
mordialmente para a visão central, fotópica e de alta
resolução. 2. Albinismo
As doenças maculares caracterizam-se por O albinismo corresponde a um grupo heterogéneo
diminuição da acuidade visual, metamorfopsia, de doenças, quer sob o ponto de vista genético,
fotofobia, hemeralopia e alterações campimétricas quer clínico; caracteriza-se por hipopigmentação
centrais (escotoma central). A periferia retiniana é da pele, cabelo e olhos, explicável por deficiência
responsável pela visão periférica, escotópica e de da produção de melanina. São descritas duas for-
orientação espacial, pelo que as afecções periféri- mas de albinismo: oculocutâneo e ocular. As sín-
cas se associam à perturbação da referida visão. dromas de Hermansky-Pudlak e Chediak-Higashi
A avaliação objectiva das doenças retinianas associam-se a albinismo oculocutâneo.
compreende a medição da acuidade visual (acuida-
de de detecção medida com pequenos objectos, 3. Doenças hereditárias do metabolismo
acuidade de padrões pelo olhar preferencial ou pela Existem mais de 400 doenças hereditárias com
resolução de linhas de orientação, acuidade de re- envolvimento significativo da retina, mácula ou
CAPÍTULO 255 Doenças da retina 1235
coróide, com quadros clínicos diversos de dege- uma cor esbranquiçada rodeando a zona da fóvea.
nerescência retiniana, conforme as áreas inicial- (Quadro 2 e Figura 2)
mente atingidas e progressão verificada. A patolo-
gia metabólica pode originar alterações retinianas 4. Diabetes mellitus
com aspectos particulares, nomeadamente as No que se refere a diabetes mellitus (tipos 1 e 2)
degenerativas (retinopatia pigmentar, atrofia gira- cabe referir que as manifestações oculares mais
ta, alteração do epitélio pigmentar e alteração da frequentes ocorrem na retina e no cristalino. A
mácula em mancha cor de cereja), bem como retinopatia diabética raramente surge antes de 3-5
quadros de hemorragia retiniana e neuropatia anos de doença, e antes da puberdade. O tempo
óptica. (Quadro 1) de evolução e o grau de descompensação metabó-
Nas alterações degenerativas da mácula o lica da doença são factores relevantes no desen-
aspecto em mancha cor de cereja é de uma forma volvimento e na gravidade das complicações ocu-
geral relacionado com etiologia metabólica, sendo lares. Surge microangiopatia progressiva que leva
fundamental o diagnóstico diferencial das doen- à lesão e oclusão dos pequenos vasos retinianos.
ças de sobrecarga lisossomal. Tal padrão do fundo Em fases inicias da retinopatia (chamada de fundo)
ocular é devido à acumulação de lípidos comple- à fundoscopia observam-se microaneurismas (di-
xos nas células ganglionares da retina, originando latação capilar), tortuosidade vascular, hemorra-
gias e edema. Pode haver défice da aquidade vi-
QUADRO 1 – Degenerescência retiniana
e doenças hereditárias
do metabolismo
por Toxoplasma gondii, Citomegalovírus, Mycobacterim çadas) em maior ou menor extensão. Um aspecto
tuberculosis, Candida albicans, Toxocara canis, etc.. frequente nalgumas infecções congénitas (rubéo-
Como noutras doenças retinianas, a presença la, sarampo) é o quadro designado classicamente
de uveíte posterior pode revelar-se quando a por “retinopatia pigmentada em sal e pimenta” em
criança é capaz de expressar queixas, nomeada- que se observa a dispersão pigmentar em toda a
mente de miodesopsia, de alteração da acuidade retina ou parte dela.
ou qualidade visual, ou através de sinais que reve- A doença ocular em crianças infectadas pelo
lam diminuição da acuidade visual. Frequente- VIH e Citomegalovírus é muito menos frequente do
mente trata-se de situações que se associam a que nos adultos.
outras manifestações oculares, inflamatórias ou a • Coroidorretinites bacterianas e fúngicas –
anomalias congénitas. Trata-se de situações mais raras, habitualmente
O atraso no diagnóstico devido à não verbali- ocorrendo associadas a outras manifestações ocu-
zação das queixas e as consequências sobre o sis- lares e não oculares. A sífilis congénita pode dar
tema visual, ainda em desenvolvimento, podem origem a retinopatia em sal e pimenta semelhante à
agravar o prognóstico na criança mais pequena. da rubéola. O envolvimento retiniano é ainda pos-
Refira-se, no entanto, que por vezes o diagnós- sível na doença de Lyme, na tuberculose e na
tico de uveíte posterior é um achado ocasional no doença do arranhão do gato. Em todas estas
âmbito de observação oftalmológica realizada por doenças as manifestações clínicas são muito va-
motivos diversos. riáveis, não havendo um padrão típico de apre-
São descritos a seguir alguns quadros clínicos sentação. (Capítulos 285 e 295).
que tipificam processos de inflamação e infecção A retinopatia surgindo no contexto de septi-
de expressão retiniana. cémia ou bacteriémia é muito rara; em geral deve-
• Toxocarose – Deve-se à presença da larva se a um êmbolo séptico decorrente de endocardite
enquistada na retina. Em geral existe compromis- bacteriana.
so uniocular. O aspecto mais típico é o de granu- O exame oftalmológico especializado permite
loma localizado no pólo posterior do olho ou na identificar sinais de hemorragia centrada por uma
periferia; no entanto, o processo inflamatório área branca (mancha de Roth), como manifestação
pode ser mais difuso. Ao cicatrizar, pode originar do êmbolo formado.
o descolamento da retina. As manifestações clíni- As infecções por fungos (por ex. Candida albi-
cas incluem diminuição de visão, estrabismo ou cans) também podem originar endoftalmite por
leucocória, impondo por vezes, o diagnóstico di- embolia.
ferencial com retinoblastoma. • Coroidorretinite por Toxoplasma gondii
• Retinites víricas – Vários agentes víricos (Toxoplasmose) – A toxoplasmose (congénita ou
(por ex. vírus da imunodeficiência humana/VIH, adquirida) é a causa mais importante de uveíte poste-
Herpes simplex, Herpes zoster, Citomegalovírus e rior em todos os grupos etários; em idade pediátrica
vírus da rubéola) podem infectar a retina da cri- é responsável por cerca de 50% dos casos de uveí-
ança, desde a fase de vida intra-uterina, podendo te posterior (coroidite ou coroidorretinite).
as respectivas repercussões ser mais ou menos de- Uma vez instalado na célula retiniana, há pro-
vastadoras. liferação do protozoário causando reacção de hi-
Para além da infecção da retina, outras estru- persensibilidade e inflamação nos tecidos e vasos
turas oculares podem estar envolvidas, como a adjacentes, vítreo e coroideia, sendo de realçar que
córnea, o cristalino, a íris, o corpo ciliar, o nervo poderá surgir reactivação em zona adjacente a
óptico, etc.. cicatriz coroidorretiniana antiga.
O exame fundoscópico permite observar focos As manifestações de toxoplasmose congénita
activos de coriorretinite (áreas de edema retiniano variam muito, entre cicatriz retiniana periférica e
que se podem associar a fenómenos de vasculite e coroidorretinite activa.
hemorragias) ou cicatrizes de infecção coroidorre- • Uveítes não infecciosas – Estas afecções são
tiniana (áreas de hiperpigmentação alternando muito raras em idade pediátrica salientando-se, a
com áreas menos pigmentadas ou esbranqui- este propósito, que alguns casos de uveíte posterior
1238 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
refractiva entre os dois olhos). Este último defeito rando a capacidade de irrigação sanguínea, surge
refractivo pode ser uma causa de ambliopia. um processo de necrose e de calcificação. Enquan-
As perturbações da motilidade ocular (estrabis- to as células tumorais com origem nas camadas
mo e nistagmo) poderão tornar-se manifestas pos- mais internas da retina crescem em direcção ao
teriormente, relacionando-se, quer com sequelas cristalino invadindo outras zonas da retina, as que
oculares (retinopatia e defeitos refractivos), quer se originam nas camadas mais externas podem
com lesões do sistema nervoso central associadas. levar ao descolamento da mesma. O retinoblas-
Devido a erros refractivos significativos ou a toma, através da invasão do nervo óptico ou da
estrabismo, a criança com antecedentes de prema- coroideia, pode invadir a órbita, salientando-se
turidade tem maior probabilidade de vir a ser que a disseminação à distância, por via linfática
amblíope. (Capítulos 249-251) ou sanguínea, surge raramente.
No respeitante ao tipo histológico em causa, cabe
9. Retinoblastoma salientar que o sarcoma osteogénico é o mais fre-
Aspectos epidemiológicos e importância do pro- quente. Outros tipos tumorais possíveis são: neuro-
blema – O retinoblastoma, desenvolvendo-se a blastoma, condrossarcoma, rabdomiossarcoma, etc..
partir de células retinianas nucleadas imaturas, é o Nos casos de retinoblastoma hereditário existe ele-
tumor maligno ocular mais frequente na criança. A vada probabilidade de aparecimento de pinealoblas-
célula estaminal ou primordial do retinoblastoma toma, altamente invasivo e letal, habitualmente
parece ser neuronal. ocorrendo nos primeiros quatro anos de vida.
A sua incidência mundial oscila, de acordo Manifestações clínicas e diagnóstico – As
com diversas estatísticas, entre 1 para 14.000 a principais formas de apresentação do retinoblas-
1/34.000 recém-nascidos. Em 90 % dos casos toma são estrabismo (em geral o primeiro sinal) e
surge antes dos 3 anos, sendo 30% bilateral. diminuição da visão ou leucocória. A propósito de
Numa minoria (10%) há antecedentes familiares. leucocória, cabe referir a ausência do reflexo ver-
A sua importância deriva essencialmente do melho da pupila da criança quando o foco lumi-
facto de ser letal quando não tratado; inversa- noso forte atravessa a pupila. (Figura 4)
mente, quando diagnosticado e tratado de forma Mais raramente e/ou com a progressão do
oportuna, a percentagem de cura aumenta signi- tumor, este pode manifestar-se por hifema espontâ-
ficativamente. (Capítulo 125) neo (presença de sangue entre a íris e a córnea),
Etiopatogénese – O retinoblastoma representa glaucoma secundário, anisocória (midríase do olho
a expressão fenotípica da ausência de um gene afectado), heterocromia iridiana (diferente colo-
supressor tumoral, designado por gene do ração das íris), nistagmo ou inflamação crónica. Em
retinoblastoma ou RB1, que se localiza no braço fases muito avançadas de proliferação ultrapassan-
longo, banda 14, do cromossoma 13 (13q14). Trata- do os limites do globo, poderá sugerir o diagnósti-
-se do primeiro gene supressor tumoral humano co de celulite orbitária.
que foi completamente caracterizado. A sua função De acordo com a classificação internacional
é suprimir o crescimento celular. Duas cópias nor- (2007) são considerados cinco grupos de A a E em
mais do gene estão presentes na maioria das célu- função da extensão: A (≤ 3 mm) ou small; B (big-
las humanas, sendo a sua função limitar o cresci-
mento da célula; de referir que apenas uma cópia
normal basta para cumprir a sua função. Antes de
se conhecer a existência deste gene, o retinoblas-
toma era classificado como esporádico ou here-
ditário. Clínica e histologicamente, ambas as for-
mas são indistinguíveis. A variedade hereditária,
associando-se a tumores múltiplos e a compromisso
binocular, pode ocorrer sob as formas autossómica
FIG. 4
dominante (mais frequente), ou recessiva.
Como resultado do crescimento celular supe- Leucocória do globo ocular esquerdo.
CAPÍTULO 255 Doenças da retina 1243
AGRADECIMENTO
FIG. 6
As Figuras 4, 5 e 6 foram gentilmente cedidas pelos colegas
Retinoblastoma – Drs. Maria Araújo e Augusto Magalhães da Secção de
imagem de Oftalmologia Pediátrica de Serviço de Oftalmologia do
calcificação (TAC). Hospital de São João, Porto, e a Figura 2 pelo Prof. João
1244 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
256
Goyri O´Neill da FCM/UNL e Serviço Universitário de
Oftalmologia do Hospital Egas Moniz, Lisboa, a quem o
editor e autora muito agradecem.
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CAPÍTULO 256 Catarata 1245
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Actuação prática
FIG. 1 FIG. 2
Laceração palpebral. Hemorragia subconjuntival.
1248 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
hifema espontâneo pode ser uma manifestação O edema retiniano, geralmente transitório,
doutras doenças (retinoblastoma, alterações da resulta de traumatismo directo do globo ocular. A
coagulação, leucemia, xantogranuloma juvenil visão pode estar afectada se a localização for ma-
etc.); quando abundante, não permite fazer o exa- cular.
me dos fundos oculares. Nestes casos deve pro- A rotura da coroideia resulta, em geral, de
ceder-se à avaliação ecográfica do cristalino, do traumatismo directo anteroposterior. Pode ser
vítreo e da retina. Geralmente verifica-se reabsor- compatível com boa acuidade visual se a mácula
ção em poucos dias. não estiver afectada.
A catarata traumática pode aparecer horas, O chamado buraco macular pode ser observa-
dias, ou meses depois do traumatismo. Perante do a seguir a um traumatismo (logo, ou semanas
uma situação de catarata monocular, principal- mais tarde) como complicação de edema retini-
mente na segunda infância, deve efectivamente ano, hemorragia sub-retiniana ou rotura da
inquirir-se sobre a eventualidade de episódio trau- coroideia.
mático anterior. O tratamento das cataratas trau- A retinopatia de Purtscher, também conhecida
máticas é cirúrgico. por angiopatia retiniana traumática, geralmente
A luxação ou subluxação do cristalino consti- bilateral, é secundária a traumatismo craniano e
tui outro exemplo de lesão traumática do segmen- torácico graves, com hiperpressão no território da
to anterior; a sua verificação na circunstância de veia cava superior. Manifesta-se por hemorragias
traumatismo mínimo implica o diagnóstico dife- retinianas e pré-retinianas abundantes, exsudados
rencial com outro tipo de patologia de base (por algodonosos retinianos e peripapilares, e por ede-
ex. síndroma de Weill-Marchesani, de Marfan, ma da mácula.
homocistinémia ou miopia grave). O descolamento da retina em idade pediátrica
À forma congénita de deslocação do cristalino tem como primeira causa o traumatismo. A
dá-se o nome de ectopia do cristalino (ectopia lentis). solução terapêutica é cirúrgica.
A luxação anterior do cristalino é mal tolerada, A neuropatia óptica pós-traumática resulta de
acompanhando-se de dores e de diminuição da compressão, ou mesmo secção anatómica, do ner-
acuidade visual. A solução é cirúrgica. vo óptico. A consequência é a amaurose ou a
A luxação posterior do cristalino é mais tole- diminuição muito acentuada da visão.
rada, mas provoca sempre uma baixa de acuidade
visual que deve ser corrigida com brevidade para 2. Traumatismos oculares abertos
evitar a ambliopia. A solução,como regra geral, é Nestas situações há solução de continuidade das
cirúrgica. paredes do globo ocular. Como exemplos paradig-
A subluxação do cristalino requer apenas vigi- máticos consideram-se as feridas do globo ocular
lância e correcção da acuidade visual quando é e os corpos estranhos.
pouco acentuada. Se for muito pronunciada e com As feridas do globo ocular, de acordo com a
grave repercussão na acuidade visual, a solução é respectiva localização, podem ser corneanas,
também cirúrgica. esclerais e córneo-esclerais. Requerem reparação
• Traumatismos do segmento posterior cirúrgica urgente, acompanhada de tratamento
A hemorragia do vítreo (sangue na câmara anti-inflamatório e anti-infeccioso.
vítrea) é uma complicação frequente dos trauma- Os corpos estranhos intra-oculares requerem
tismos do segmento posterior. Se pouco abun- um estudo pormenorizado para se proceder à cor-
dante, e permitir a observação dos fundos ocu- recta localização e à extracção.
lares, requer apenas vigilância. Se for muito abun-
dante e não permitir fundoscopia, o seguimento é 3. Lesões por agentes químicos e físicos
feito também com estudo ecográfico para avaliar o As lesões por agentes físicos são pouco frequentes
estado da retina ou a existência de possível corpo na criança. O tratamento por radiações ionizantes
estranho. Na presença de lesões retinianas ou da em certos casos de tumor (retinoblastoma) podem
não reabsorção da hemorragia, é necessário inter- provocar cataratas ou lesões isquémicas da retina.
vir cirurgicamente. O traumatismo solar por fixação do sol, quando se
CAPÍTULO 257 Traumatismos óculo-orbitários 1249
observa um eclipse, provoca lesões maculares fo- Na ausência de anamnese, o diagnóstico é feito
veais. com base nos sinais neurorradiológicos (hemato-
As lesões por agentes químicos são mais fre- ma subdural, por vezes bilateral e edema cerebral)
quentes provocando queimaduras, principalmen- e oftalmológicos (hemorragias retinianas, pré-
te corneanas e conjuntivais. A gravidade depende retinianas e vítreas graves).
do tipo de agente, da sua quantidade e do tempo Se a criança sobreviver, o prognóstico é grave
de permanência no fundo de saco conjuntival. pelas lesões retinianas, do nervo óptico e cerebrais
provocadas pelo traumatismo.
Traumatismos da órbita Nas crianças maiores é frequente encontrar
hemorragias retinianas, lesões do couro cabeludo,
Nesta alínea são considerados traumatismos corpo, hematomas ou edema periorbtário, cica-
directos e traumatismos indirectos trizes corneanas, hifema, desinserção da íris, luxa-
Os traumatismos directos são responsáveis por ção do cristalino, cataratas, e descolamento de
fracturas do rebordo orbitário, podendo atingir os retina, por vezes bilateral.
ossos contíguos, incluindo as paredes da órbita. Nestes casos, a criança deve ser hospitalizada
Podem fazer parte de um quadro traumático mais em serviço de pediatria para estudo clínico e ima-
grave, com compromisso concomitante das pálpe- giológico pormenorizado e tratada por uma
bras, vias lacrimais, globo ocular e crânio. equipa multidisciplinar.
Os traumatismos indirectos atingem o conteú-
do orbitário sem atingir o rebordo. No momento BIBLIOGRAFIA
do traumatismo, o conteúdo da órbita não com- Cruz M (ed). Tratado de Pediatria. Barcelona: Ergon, 2011
pressível transmite a onda de choque às paredes, Forbes BJ, Christian CW, Judkins AR, et al. Inflicted childhood
sendo que as zonas de menor resistência podem neurotrauma (shaken baby syndrome): ophthalmic find-
sofrer fracturas (fracturas por estalido). ings. J Pediatr Ophthalmol Strabismus 2004; 41: 80-88
Os traumatismos que mais frequentemente são Khaw PT, Shah P, Elkington AR. Injury to the eye. BMJ 2004;
observados em oftalmologia são os que atingem o 328: 36-38
pavimento, a parede interna e tecto da órbita; menos Kivlin JD, Simons KB, Lazoritz S, et al. Shaken baby Syndrome.
frequentes são os que atingem a parede externa e o Ophthalmology 2000; 107: 1246-1254
vértice. Kliegman RM, Stanton BF, Schor NF, Geme JWSt (eds). Nelson
Textbook of Pediatrics. Philadelphia: Elsevier Saunders,
Traumatismos óculo-orbitários 2011
na criança maltratada Nelson LB, Olitsky SE. Harley’s Ophthalmology. Philadelphia:
Lippincott Williams & Wilkins, 2005; 296-298
A prática de maus tratos é, infelizmente, um acon- Van Heuven WAJ, Zwaan JT. Decision making in Ophtalmo-
tecimento frequente, por vezes mortal e sempre logy. An algorithmic approach. St Louis: Mosby, 2000
com sequelas físicas e psíquicas importantes.
Os sinais oftalmológicos traumáticos no con-
texto referido são diferentes conforme se trata de
um lactente ou de uma criança com mais idade.
No lactente descreve-se uma síndroma especial-
mente grave, a síndroma da criança sacudida. Nesta
síndroma a escassez de sinais traumáticos externos
contrasta com a gravidade do caso (coma e crises
convulsivas): a criança, chorando continuamente, é
sacudida varias vezes e com violência pelo agres-
sor. Sendo a cabeça nesta idade “suportada” com
dificuldade (certa instabilidade cefálica compatível
com a idade do lactente), a mesma “é projectada a
cada sacudidela”.
PARTE XXVII
Estomatologia
1252 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
Crescimento, desenvolvimento,
FIG. 1
Crescimento do maxilar superior.
FIG. 2 FIG. 4
Crescimento do maxilar inferior. Crescimento maxilo-facial.
1254 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
dentária é a inflamação, geralmente complicada nos planos vertical e transversal, no total de 8 inci-
por necrose, da parede de um alvéolo dentário. sivos, 4 caninos e 8 molares.
• Coroa dentária – parte do dente que se apre- Os dentes definitivos são 32: oito por qua-
senta saliente no bordo alveolar. Está ligada à raiz, drante, com as mesmas características de distri-
inserida no alvéolo pelo colo. buição, no total de 8 incisivos, 4 caninos, 8 pré-
• Raiz dentária ou apex – parte do dente pela molares e 12 molares. Só a dentição definitiva pos-
qual está implantado (não visível). sui pré-molares que substituem os molares de leite,
pois os molares definitivos surgem de novo, ime-
Erupção dentária e terminologia diatamente atrás dos últimos molares decíduos.
Se é lícito designá-los segundo critérios ana-
A erupção de um dente inicia-se quando, comple- tómicos, por exemplo “incisivo decíduo central
tada a coroa, a raiz atingiu aproximadamente 3/4 superior esquerdo” “segundo molar definitivo
do seu todo. Esta dimensão parece ser mais rele- inferior direito”, é preferível a designação numéri-
vante que a idade cronológica ou esquelética, a ca, internacional e mais simples (Figura 7).
velocidade de crescimento ou a maturidade psico- Considera-se, em sentido horário, na dentição
motora. definitiva, a arcada dentária superior dividida em
A erupção dos primeiros dentes, decíduos, é hemiarcada 1 (hemimaxilar direito) e hemiarcada
habitualmente simétrica, iniciando-se pelos inci- 2 (hemimaxilar esquerdo) e a arcada dentária infe-
sivos centrais inferiores, seguidos pelos oponentes rior dividida em hemiarcada 3 (hemimandíbula
do maxilar superior e assim alternadamente, no esquerda) e hemiarcada 4 (hemimandíbula direi-
sentido ântero-posterior (apesar de a erupção do ta); assim, fala-se de 1º, 2º, 3º ou 4º quadrantes,
primeiro molar surgir antes do canino), entre os 6 constituindo estes os algarismos da esquerda, con-
e os 24 meses meses de idade, com variações que forme o diagrama. Seguem-se-lhes, separados por
podem atingir 1 ano. É mais desejável a simetria do um ponto, o número de ordem na hemiarcada,
que qualquer calendário previsto. A regularidade contados a partir das linhas médias ou interincisi-
desta sequência sugere que a mesma decorre sob vas. O mesmo se diz na dentição decídua, mas,
determinação genética. neste caso, as hemiarcadas designam-se por 5, 6, 7
Pode acompanhar-se de tumefacção e rubor e 8.
das zonas implicadas, de desconforto ou dor, Se é mais correcto dizer-se, por exemplo de 1.1,
sialorreia, rubor facial ou exantema e diarreia.
Raras vezes se assiste a obstruções eruptivas,
na ausência de patologia maxilar significativa ou
dismorfia franca, dada a inexistência de predeces-
sores ocupando espaços indevidos nas arcadas.
Não pode o mesmo afirmar-se relativamente à
dentição definitiva. Exceptuam-se os dentes surgi-
dos no feto/recém-nascido, de “calendário inédi-
to” e merecedores de melhor avaliação pelo espe-
cialista (Capítulo 327).
O saco de tecido conjuntivo ou folículo, dentro
do qual o germe dentário se desenvolve, pode não
sofrer rotura espontânea, avolumando-se na arcada 1.8 1.7 1.6 1.5 1.4 1.3 1.2 1.1 2.1 2.2 2.3 2.4 2.5 2.6 2.7 2.8
como verdadeiro quisto folicular ou dentígero. É ou ou
5.5 5.4 5.3 5.2 5.1 6.1 6.2 6.3 6.4 6.5
habitualmente designado por quisto de erupção ou 8.5 8.4 83 8.2 8.1 7.1 7.2 7.3 7.4 7.5
ou ou
por hematoma de erupção, em função do conteúdo e, 4.8 4.7 4.6 4.5 4.4 4.3 4.2 4.1 3.1 3.2 3.3 3.4 3.5 3.6 3.7 3.8
salvo quadro infeccioso ou dimensão exagerada,
raras vezes merece correcção cirúrgica.
FIG. 7
Os dentes decíduos são em número de 20:
cinco por quadrante, simetricamente distribuídos, Diagrama dentário.
1256 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
“um ponto um”, a verdade é que, na gíria, dize- “rompe”. Como o dente de leite vai seguindo o
mos “onze”. Ainda mais comum é referir os espaço que “lhe dão” as raízes do dente de leite,
dentes pela sua ordem na arcada, como quando não se “desorienta” na direcção da erupção,
comentamos, por exemplo “os 6os deviam ter sido acompanhando a posição e direcção do dente
selados”. definitivo.
Cronologia BIBLIOGRAFIA
da Parte XXVII
As tabelas de cronologia eruptiva divulgadas Incluída no fim do Capítulo 263
diferem umas das outras, sendo importante
explicá-las aos pais. (Quadro 1)
Torna-se evidente que decorrem 4 anos sem
erupções, entre a dos últimos molares decíduos e
a dos primeiros dentes definitivos, apesar da
importância dos fenómenos que se vão verifican-
do dentro dos maxilares.
No entanto, neste período vão-se desenvolven-
do concomitantemente os germes dos dentes
definitivos, por baixo ou atrás dos dentes de leite,
enquanto estes sofrem progressiva reabsorção
radicular (rizálise).
Com efeito, as raízes dos dentes de leite vão
sendo reabsorvidas, “desaparecendo”, sendo o
espaço que deixam sempre ocupado pelo dente
definitivo em desenvolvimento que se vai apro-
ximando cada vez mais da superfície. Quando o
dente de leite já não tem raiz, “cai” e o definitivo
259
mento da carinha de anjo, para alguns incorrecta-
mente face de querubim, de mento exíguo e tão
conotadamente infantil.
É frequente o desagrado dos pais relativa-
mente aos diastemas. Cabe explicar que se trata
de fenómeno natural e desejável, numa “casa que
OCLUSÃO E ASPECTOS se prepara para novas visitas”, os dentes defini-
tivos anteriores, de muito maiores diâmetros
DA RELAÇÃO MOLAR transversos.
Tais diastemas beneficiam de facto, os blocos
E DA RELAÇÃO INCISIVA incisivos e, destes, particularmente o superior,
pois o somatório dos diâmetros transversos de
Rosário Malheiro 5.1+5.2+6.1+6.2 ronda 23,4 mm, menos 8,2 mm
que o somatório dos diâmetros transversos de
1.1+1.2+2.1+2.2; por outro lado, o somatório dos
diâmetros transversos de 7.1+7.2+8.1+8.2 ronda
Oclusão dentária e suas implicações 17,4 mm, menos 5,6 mm que o somatório dos
diâmetros transversos de 3.1+3.2+4.1+4.2.
O conceito de oclusão em Estomatologia refere-se Entre caninos decíduos e vindouros primeiros
à situação de contacto entre os dentes dos maxi- molares definitivos, os constrangimentos de
lares superiores e inferiores quando os mesmos se espaço não são tão importantes como entre cani-
aproximam. Má-oclusão ou disoclusão é a relação nos. Os segmentos posteriores das arcadas têm,
defeituosa ou irregular da oclusão dentária. até, lucro de espaço, na substituição dos segundos
A “perda” de um dente relacionável com situa- molares decíduos pelos segundos pré-molares, de
ções como esfoliação precoce relativamente à diâmetros mesio-distais aproximadamente 2 mm
rizogénese do definitivo sucedâneo, avulsão inferiores.
traumática, extracção ou grande diminuição de De referir, no entanto, que não deixa de ser
diâmetro por cárie, acarreta a não preservação do relevante o espaço disponível intra-arcadas, ou
respectivo espaço na arcada. O espaço disponibi- melhor, a discrepância entre espaço disponível e
lizado, se não for alvo de “manutenção” terapêu- espaço necessário para o alinhamento dentário
tica, será progressivamente ocupado, sobretudo desejável.
pelo avanço real ou pela inclinação anterior dos Torna-se, assim, óbvio que a ausência de dias-
dentes imediatamente posteriores. temas, na dentição decídua, torne mais provável
Mais importantes ainda, nos 4 anos que decor- uma dentição definitiva dita “apinhada”; tal como
rem sem erupções dentárias, são o crescimento pro- uma dentição decídua apinhada quase certamente
gressivo dos perímetros ósseos das arcadas, com anunciará um apinhamento dos definitivos, caso
aumento de dimensão dos espaços interdentários não se intervenha na criança.
ou diastemas, e o crescimento da mandíbula. Cabe ao pediatra conhecer e compreender as
A mandíbula vai assumindo uma posição rela- fases do crescimento e desenvolvimento maxilo-fa-
tivamente mais anterior, justificando que, pelos 5 ciais e dentários, para atempado encaminhamento
anos, os bordos dos incisivos se relacionem topo- ao estomatologia, prevenindo o mais comum dos
a-topo, numa relação de oclusão completamente efeitos de oclusão, o chamado apinhamento (dentes
distinta da dos incisivos definitivos, cujo trespasse desalinhados e amontoados).
horizontal e vertical é conhecido. (ver Glossário)
A dimensão vertical vai diminuindo, dado o Aspectos da relação molar
uso dos decíduos, de forma mais ou menos pre-
coce, exista ou não bruxismo (ou bricomania). A Bem observadas no plano transversal, as cúspides
maior dimensão e o melhor posicionamento man- palatinas dos primeiros molares superiores defini-
dibulares permitem compreender o desapareci- tivos (“6ºs superiores”) e as cúspides vestibulares dos
1258 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
FIG. 1
Relação molar (plano transversal).
Overjet e overbite Perspectiva vertical
FIG. 3
Relação incisiva (overjet e overbite) e perspectiva vertical.
260
A B
TRAUMATOLOGIA
Má posição da mandíbula Contracção do mento e
ALVÉOLO-DENTÁRIA
e dos músculos periorais projecção anterior da língua
Rosário Malheiro
FIG. 5
Repercussão do “dedo na boca” e da projecção anterior da
língua na relação incisiva. Importância do problema
A mordida aberta contribui para arrastar até Os traumatismos alvéolo-dentários não se encon-
fase muito tardia o vício de sucção, associada a pro- tram geralmente ligados ao risco de vida. Excep-
tracção/interposição labial da língua. (Figura 4) tuam-se a entrada de corpo estranho na via aérea,
Pode exemplificar-se com a sucção do polegar, a “queda posterior”da língua em fractura man-
em tempo precoce da vida, ou da chupeta com base dibular com recuo muito acentuado, e eventual
nos diagramas de Moyers. (Figura 5A) lesão de pedículo vascular major.
Compreende-se que a inclinação labial dos Trata-se de problemas muito frequentes,
incisivos superiores será tanto maior quanto mais salientando-se que a precocidade de tratamento
profunda, no palato, for a colocação do dedo e tem implicação no prognóstico; adiar opções,
quanto durante mais tempo a força se exercer; e transferindo-as para decisão dita tecnicamente
que a inclinação lingual dos incisivos inferiores especializada, se tardia, não retira a responsabili-
tenderá, também, a ser proporcional ao tempo dade profissional.
durante o qual a pressão lhes é transmitida. A divulgação de informação básica junto das
A continuidade da pressão do polegar, no pala- escolas poderia melhorar a triagem dos casos a
to, pode tornar-se igualmente indesejável para a encaminhar para o estomatologista, e diminuir o
reabsorção do osso do pavimento nasal (Capítulo tempo que decorre até aos primeiros socorros
258 – Figura 4), contribuindo para o aumento da alvéolo-dentários, com resultados muito positivos
profundidade do palato, por compromisso do em Saúde Pública, como aconteceu nos países
crescimento vertical. Outra consequência é a pro- nórdicos.
tracção da língua, na deglutição, alongando o Uma população pouco informada e uma rede
tempo de deglutição infantil. Surge, então, uma de cuidados não contemplando a urgência de
sequência de repercussões (disfunção, má oclusão estomatologia, mais responsabilidade acarreta ao
e dismorfia) que só melhora com a cessação do pediatra e clínico geral, os quais primeiramente
hábito. (Figura 5B) observam a criança após o traumatismo.
Parece, assim, justificar-se maior atenção a
conhecimentos que rendibilizem tão escassos
recursos. Um maior rigor terminológico entre
médicos e outros profissionais de saúde permi-
tiria, por exemplo, uma consultadoria telefónica
ou audiovisual efectiva, com elevados benefícios e
óbvios ganhos de eficiência.
1260 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
A B C D E G H I J L1 L2
FIG. 1 FIG. 3
Fracturas coronárias e fracturas corono-radiculares. Lesões periodontais (exceptuando avulsão).
F M
FIG. 2 FIG. 4
Fractura radicular (do terço médio). Lesão periodontal (avulsão).
1262 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
maior investigação ou terapêutica, tal como acon- “total”, enquanto as radiculares - com traço de
tece com as concussões e subluxações. fractura do terço médio ou cervical - carecem ape-
Nas luxações extrusas, a raiz ter-se-á desloca- nas de extracção do fragmento coronário. As frac-
do para fora do alvéolo, segundo o respectivo turas do terço apical são muitas vezes compatíveis
eixo, poupando o folículo do dente definitivo; o com a permanência dos dentes, sem complicações.
reposicionamento é possível, “num instante”, mas
não justificará que se recorra a meios especiais, na 2. Lesões traumáticas da dentição definitiva
criança não colaborante, nem que de tal opção Nos casos de lesões traumáticas da dentição defi-
resulte lesão iatrogénica no germe. Em contra- nitiva os objectivos terapêuticos passam pela
partida, a sua redução pode impor o recurso a preservação dos próprios dentes, impondo recur-
contenção (splinting). sos e diferenciação técnica. São analisadas neste
As fracturas dos processos alveolares impli- âmbito, as seguintes situações.
cam imobilização rígida durante aproximada-
mente 2 meses. • Lesões periodontais
As lesões periodontais impoem métodos de
• Lesões periodontais contenção e/ou imobilização exigindo algum
Nos traumatismos verificados imediatamente treino, mesmo que idealmente conduzidos com
antes de momento de esfoliação, salvo questão major, materiais simples; as luxações obrigam a redução
há duas opções possíveis: abstenção ou extracção. precoce, com reposicionamentos adequados e
A partir das 24 horas, na maioria dos casos a contidos, nas primeiras 6 horas. O tempo decorri-
redução é impossível e, pelas 12 horas, insatis- do entre o traumatismo e o seu tratamento, ou os
fatória, o que é explicável pela progressiva organi- primeiros cuidados que merecem, é relevante no
zação dos coágulos. sucesso biológico e na onerosidade global da
As lesões periodontais justificam a adminis- reabilitação.
tração de analgésicos, como paracetamol; excep-
tuando a concussão e a subluxação, é norma o • Fracturas coronárias complicadas e corono-
recurso ao ibuprofeno, bem como à cobertura -radiculares
antibiótica, com beta-lactâmicos. As fracturas coronárias complicadas, bem
Pode haver necessidade de alongar no tempo a como as corono-radiculares, e mesmo algumas ra-
dieta mole, mas a criança é geralmente capaz, a diculares, não são situações urgentes, embora seja
curto prazo, de se defender de zona dolorosa, con- aconselhável a observação por estomatologita
duzindo os alimentos para zona não dolorosa da dentro de 24 horas. Apesar dos quadros dolorosos
boca. e da necessidade de abstenção alimentar, são
lesões menores, sem risco acrescido.
• Lesões dos dentes e da polpa
As fracturas coronárias não complicadas, na • Avulsão
criança colaborante, justificam reabilitação por A avulsão representa, talvez, a situação mais
parte do estomatologista, não cabendo no âmbito desafiante, pela necessidade de decisões imedia-
da urgência. tas. A sua abordagem tem variado muito, nos últi-
Nas fracturas coronárias complicadas, na mos anos e continua a não ser consensual: discute-
criança não colaborante, a resolução é a extracção se a responsabilização médico-legal por atraso de
dentária; a criança colaborante, porém, pode justi- reimplante, e a ética de se proceder a reimplante
ficar tratamento endodôncico, em função da idade com elevada probabilidade de insucesso, apenas
e circunstância. (Capítulo 262) em nome da expectativa dos pais.
As fracturas corono-radiculares e as fracturas O factor primordial é o tempo extra-alveolar,
radiculares são facilmente diagnosticáveis pela sobretudo o tempo extra-alveolar em meio seco,
observação dos fragmentos disponíveis e dos não pela necrose da polpa, mas pela morte do li-
alvéolos, não estando indicado exame radiológico. gamento periodontal, considerada inevitável a
Nas corono-radiculares está indicada extracção partir dos 60 minutos. Um tempo extra-alveolar
CAPÍTULO 260 Traumatologia alvéolo-dentária 1267
rondando os 20 minutos associa-se a sucesso Se o dente estiver em meio seco, como geral-
biológico satisfatório, razão para se entender, mente acontece, deve ser transferido para salino
aliás, que o reimplante ideal é o que é imediata- ou leite, manipulado pela coroa, nunca pela raiz
mente conduzido pelo próprio, ou por socorrista evitando lesão acrescida das células periodontais.
presente (o professor, a mãe). (ver atrás – Reforçando o que foi dito antes, na ausência de
Actuação prioritária) acesso rápido a estomatologista, deve ser reimplan-
São dois os tipos de evolução periodontal mais tado imediatamente, se a menos de 20 minutos do
frequentes, após um reimplante. acidente. Se o ápex estiver aberto, justifica-se um
Um constitui a chamada reabsorção externa banho prévio, de 5 minutos, num soluto de 1 grama
inflamatória com desaparecimento progressivo da de doxiciclina para 20 ml de água destilada.
raiz, de origem osteoclástica, com subsequente Se o tempo extra-alveolar for superior a 1 hora, é
perda dentária. desejável submeter a raiz ao ácido cítrico e a um fluore-
Outro é a reabsorção de substituição – vulgo, to, minorando os riscos de reabsorção externa infla-
anquilose – traduzindo-se no desaparecimento matória e reimplantar, mesmo que o reposicionamento
progressivo do próprio ligamento periodontal, conseguido não seja o ideal.
com fusão entre dente e osso que acaba por tomar, A dificuldade na adaptação ao alvéolo pode
substituir, o próprio dente. Tal implica, na criança resolver-se através de irrigação com seringa de
em crescimento, paragem do crescimento da apó- soro (remoção de coágulos), ou suavemente em-
fise alveolar, conduzindo a sequela importante*. purrando, com instrumento cirúrgico, as tábuas
A opção de reimplantar começa assim, pela fracturadas. Não deve exercer-se pressão impor-
necessidadede avaliar a probabilidade de cada um tante com o dente.
destes tipos de evolução, pois que a cura do peri- Na indisponibilidade de um método ortopé-
odonto, com restitutio ad integrum, parece ser uma dico de contenção, a pressão dos lábios, ajudada
raridade e a reabsorção superficial pouco fre- por um dedo ou pela interposição de um objecto,
quente. Há que verificar também: 1) se a extremi- podem ser de grande utilidade.
dade da raiz se encontra já completamente forma- Apesar da necessidade de boa gestão do
da ou não, definindo-se a probabilidade de sobre- tempo, a tendência internacional é obter-se consen-
vivência da polpa ou a necessidade de indução do timento informado, seja para reimplantar, seja para
encerramento radicular, no futuro, pelo recurso ao não reimplantar.
Ca (HO)2 e consequente aumento da probabili-
dade de fractura radicular e insucesso; 2) igual-
mente se se trata de dente são, a reimplantar em
alvéolo são e arcada não apinhada; 3) há que ter
em conta ainda a acessibilidade geográfica e
social, e a possibilidade de deslocação, por exem-
plo, a centro onde possa ser feito o seguimento
adequado.
Reitera-se a antibioticoterapia profiláctica,
idealmente com beta-lactâmicos, nas doses habi-
tuais; a antibioticoterapia é facto relevante no
sucesso e deve ser promovida no serviço de
urgência. (ver atrás – Actuação prioritária)
* Com efeito, existe como que uma frente osteoclástica que se encarrega
da reabsorção/desaparecimento do dente, imediatamente seguida por
uma fronteira osteoblástica em que os tecidos dentários são substituí-
dos por osso (daí reabsorção de substituição). Num momento intermé-
dio no processo, é impossível dizer, com base na radiologia, onde acaba
dente e começa osso. Esse neo-osso tem, porém, comportamento dis-
tinto do osso são e não cresce. Daí a possibilidade de ulterior deformi-
dade.
1268 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
261
Conceptualmente, em suma, trata-se de uma
doença, quase-infecciosa, de origem bacteriana, que
atinge inicialmente os tecidos duros do dente e que,
na sua evolução natural, dá origem a uma cavidade.
Etiopatogénese
CÁRIE DENTÁRIA
Admite-se desde 1892 com W. D. Miller (teoria
Rosário Malheiro químico-parasitária ou acidogénica), que a cárie se
deve sobretudo à desmineralização dos tecidos
inorgânicos do dente por ácidos (láctico, acético,
pirúvico) elaborados por flora bacteriana específi-
Definição e importância do problema ca (acidogénica), a partir de glicólise do substrato
dietético (hidratos de carbono).
O termo genérico cárie significa degradação do Assim, considera-se um modelo etiopatogéni-
tecido ósseo, com amolecimento e destruição. co ainda adequado o da conjugação simultânea de
Cárie dentária é a destruição localizada e progres- três factores: microflora patogénica ou factor
siva dos dentes. agente; substrato (regime alimentar) ou factor
A cárie dentária atinge primeiramente o ambiente; e dente susceptível ou factor hospe-
esmalte (1º grau), em seguida a dentina (ou mar- deiro (Figura 1).
fim) que é atacada pelas bactérias (2º grau), As bactérias começam por fixar-se na película
podendo chegar-se ao 3º grau que corresponde à exógena, adquirida, de proteínas salivares, pro-
necrose da polpa dentária. O resultado final é a duzindo polissacáridos extracelulares que incor-
formação de cavidades. poram; estrutura-se, assim, uma camada, placa ou
A cárie dentária continua a ser a doença mais “biofilme” de bactérias capazes de colonizar as
frequente do globo. A sua incidência tem vindo a superfícies dentárias.
reduzir-se nos países industrializados que – desde A cárie dentária traduz, pois, a desmineraliza-
meados dos anos 50 – puseram em prática a fluo- ção ácida dos tecidos calcificados dos dentes
retação da água, leite e/ou sal das cozinhas, a (fracção apatítica), induzida pelos ácidos orgâni-
suplementação de flúor, em gotas ou comprimi- cos resultantes da fermentação dos açúcares do
dos, e a intensificação da higiene oral. O paradi- regime alimentar, produzida pelos agentes da
gma é constituído pelos escandinavos. placa bacteriana.
O índice CPO de um indivíduo constitui o No âmbito da etiopatogénese são abordados
somatório do seu número de dentes Cariados (C), com mais pormenor aspectos específicos em
número de dentes Perdidos por cárie (P) e número
de dentes Obturados (O). Corresponde ao inglês
DMFT (Decayed, Missing, Filled Teeth). Tal índice, DENTE MICROFLORA
todavia, continua a aumentar nos países de menor
nível socioeconómico, de acordo com a
Organização Mundial de Saúde. Esta tinha con-
siderado desejável um índice inferior a 3 aos 12
anos no ano 2000, e deseja atingir um índice infe-
rior a 1,5 no ano 2015. Consideradas as Regiões de
Saúde de Portugal e o ano de 2000, o Índice CPO, CÁRIE
SUBSTRATO
aos 12 anos, era 2,9 e 4,7 aos 15 anos.
De acordo com um Estudo Nacional de Saúde
Oral em 2005, a percentagem de indivíduos sem
FIG. 1
cárie era: aos 6 anos → 50,9: aos 12 → 43,8 e aos
15 → 28,1. Relação dente, microflora, substrato e cárie.
CAPÍTULO 261 Cárie dentária 1269
Microflora
Está provado que o grupo dos microrganismos
Streptococcus mutans e S. sobrinus é essencial para o
início da cárie, especialmente a das superfícies
lisas dos dentes.
FIG. 4
Com efeito, tais bactérias têm a capacidade de
Complexo dentino-pulpar. aderir ao esmalte, produzir compostos ácidos e de
sobreviver em meio de pH baixo. Contudo, as
diferentes espécies não são idênticas na capaci-
dade de fermentação ácida dos açúcares (glicólise),
nem na diminuição do pH que induzem, pelo que
não apresentam o mesmo potencial cariogénico.
O agente bacteriano S. mutans tem também
uma capacidade de recolonização rápida e possui
especial virulência, quer pela aptidão colonizado-
ra (adesinas), quer pelas características de per-
FIG. 5
sistência (agressinas, toxinas, impedinas, etc.),
Odontoblastos e túbulos dentinários. quer ainda pela eficácia de destruição celular
(actividade proteásica e pró-inflamatória). Assim,
pequena e única artéria que a atinge através da as respectivas taxas de colonização na cavidade
extremidade da raiz (ou ápex), subdividindo-se oral possuem valor preditivo e permitem recon-
no seu espaço central. (Capítulo 258) hecimento diagnóstico da população de alto risco.
Estando enclausurada em paredes rígidas, a A estagnação de restos alimentares é impor-
polpa é incapaz de aumentar de volume, durante tante no desenvolvimento da placa bacteriana e
um processo inflamatório. respectiva cariogenicidade. A placa torna-se visí-
O tecido conjuntivo pulpar distingue-se de vel ao fim de 12-24 horas de se deixar de proceder
outros tecidos conjuntivos laxos por, à sua perife- a escovagem, sendo facilmente demonstrável
ria, se alinharem os odontoblastos, células tróficas pelos “corantes de placa”, como os solutos de
produtoras de dentina. Os seus corpos celulares eritrosina, disponíveis em quase todas as marcas
alongam-se nos processos odontoblásticos, no de produtos de higiene dentária.
interior dos canalículos dentinários preenchidos Os corantes também permitem a verificação
por um fluido intersticial (Figura 5). pedagógica e simples de que o atrito da masti-
Tudo se passa como se os odontoblastos e seus gação não é suficiente para a respectiva remoção,
prolongamentos tivessem conexões com fibras só eficazmente obtida por escovagem.
nervosas simples, do tipo C; essas fibras são
estimuladas com o alongar e encurtar dos pro- Colonização oral
longamentos, com origem nas variações dimen- A criança recém-nascida tem a boca isenta de bac-
CAPÍTULO 261 Cárie dentária 1271
Advoga-se o não recurso a dentífricos de sabor muito úteis nas crianças e jovens com aparelhos
a guloseimas, para não estimular a criança ao seu de ortodôncia ou próteses.
consumo dissimulado. Outros métodos, paralelos e mais ou menos
Como regra de segurança, ao longo do período diferenciados, estão fora do âmbito deste livro que
de prevenção não deve ser ultrapassada a dose de não pretende relevar a importância do apoio
120 mg (total). profissionalizado. No que diz respeito às crianças
O risco de intoxicação aguda (doses > 5 com necessidades especiais, convida-se o leitor a
mg/Kg) deve, porém, fazer com que a inacessibi- consultar o Manual de Boas Práticas em Saúde
lidade das embalagens de dentífricos e afins obe- Oral, disponível no sítio electrónico da Direcção
deça às mesmas regras de segurança e protecção Geral da Saúde (www.dgsaude.pt).
dos medicamentos.
Selantes de fissuras
Escovagem Os sulcos e fissuras são elementos anatómicos im-
Compreende-se, assim, que o controlo da placa portantes dos molares e pré-molares, apesar de não
bacteriana passa pela higienização pós-alimentar serem exclusivos destes. Constituem zonas anfrac-
de todos os dentes, desde a sua erupção, a pro- tuosas, morfologicamente vulneráveis (defeitos de
mover desde os primeiros meses de vida com coalescência do esmalte) e de difícil acesso aos
compressa húmida ou dedeira espiculada, de bor- pêlos da escova (Figura 6).
racha ou pequena escova macia, idealmente já Se a fluorização reduziu a prevalência da cárie
com pequena porção de dentífrico fluoretado, das superfícies lisas dos dentes, não tem influen-
entre 1000 e 1500 ppm. ciado significativamente a respectiva incidência
A escovagem, que se deve executar desde o ao nível dos sulcos e fissuras.
aparecimento do primeiro dente, estabelece o atri- Os sulcos e fissuras representam apenas 12%
to que permite desalojar a placa bacteriana e os da superfície total do esmalte exposto, mas estão
seus ácidos, sendo especialmente útil após as na origem de 50% das situações de cárie em idade
refeições e ao deitar, dada a diminuição do efeito escolar, podendo representar até 80% das lesões
tampão e de depuração salivares, próprios da diagnosticáveis aos 12 anos.
hipossialia nocturna. A ausência de escovagem Sabe-se, no entanto, que a maioria das cáries de
nocturna é, pois, muito penalizante. fissura se inicia logo durante a fase de erupção dos
A maioria das pastas com fluoreto apresenta-se pré-molares, relativamente rápida (1-2 meses), em
com algum tipo de abrasivo, compatível com aque- comparação com a dos molares, que ronda 1 ano e
le; outros componentes químicos – como é o caso meio. Assim poderá haver já cárie com maior pro-
da clorexidina a 0,2%, um antisséptico de elevada babilidade após erupção completa dos molares Os
eficácia antiplaca bacteriana, e do triclosan– são de primeiros molares definitivos, sextos dentes ou
utilização menos generalizada em pediatria. dentes dos 6 anos são especialmente atingidos.
A escovagem, também relevante no controlo da
doença periodontal, deve decorrer na presença de
adulto e justificar o apuramento técnico, “mãos na
escova”, por parte deste, pelo menos até aos 6 anos
de idade ou quando houver condições de autonomia
a qual carece, ainda assim, de controlo esporádico.
O convite à escovagem simultânea, em família,
pode ser interessante, nalguns grupos ou circuns-
tâncias. Uma das escovagens diárias deve ser feita
FIG. 6
na escola, uma vez que na vida de muitas crianças
essa pode ser a única oportunidade de informação Sulcos e fissuras.
adequadamente veiculada e controlada.
Os hidropulsores, com um ou vários jactos, já * O termo selagem em estomatologia e ortopedia significa no sentido
genérico, “fixação de material”.
relativamente vulgarizados, são complementos
1276 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
262
Os sulcos e fissuras são eficazmente protegi-
dos pelos chamados selantes, se adequadamente
aplicados; o método que se resume constitui, ape-
nas, um exemplo*.
O esmalte é pré-tratado pelo ácido fosfórico a
37%, durante 20 segundos, sofrendo uma desmi-
neralização em superfície e lavado com água, a PRINCIPAIS SÍNDROMAS
seguir, durante aproximadamente 30 segundos.
Depois de seco, é-lhe aplicada uma resina tipo Bis- AVÉOLO-DENTÁRIAS
GMA que se projectará nas micro-retenções
induzidas pelo ataque ácido, mas que deverá Rosário Malheiro
estender-se um pouco em superfície, para pro-
tecção completa.
Os selantes são esteticamente excelentes ou
mesmo “invisíveis”, mas dependem muito – em Síndroma dentinária
efectividade – do rigor técnico da sua aplicação. O
isolamento da saliva é fundamental. O frio e os doces, actuando na dentina exposta,
Não está provada a sua utilidade nos sulcos (seja por cárie, seja por traumatismo), desen-
dos molares decíduos. cadeiam dor.
O esmalte é pré-tratado pelo ácido fosfórico a Assim, a chamada síndroma dentinária é
37%, durante 20 segundos, sofrendo uma desmi- definida pelo aparecimento de um quadro cons-
neralização em superfície e lavado com água, a tando de dor desencadeada pelo frio, doces/áci-
seguir, durante aproximadamente 30 segundos. dos e contacto (menos intensa pelo calor e masti-
Depois de seco, é-lhe aplicada uma resina tipo Bis- gação) cessando instantaneamente uma vez reti-
GMA que se projectará nas micro-retenções rado o estímulo e desaparecendo com a protecção
induzidas pelo ataque ácido, mas que deverá directa da dentina exposta, por material dentário.
estender-se um pouco em superfície, para pro- Na observação do doente, para comprovação
tecção completa. diagnóstica, estimula-se uma zona dentária sus-
Os selantes são esteticamente excelentes ou peita com o ar frio da seringa de ar e/ou com bola
mesmo “invisíveis”, mas dependem muito – em de algodão impregnada de cloreto de etilo.
efectividade – do rigor técnico da sua aplicação. O O espaço volumétrico, intratubular, vai dimi-
isolamento da saliva é fundamental. nuindo ao longo da vida, conforme vai aumentan-
Não está provada a sua utilidade nos sulcos do a espessura da dentina que constitui a própria
dos molares decíduos. parede tubular, até à sua obliteração completa.
De facto, logo após a erupção dentária, os odon-
toblastos deixam de elaborar a dentina primária,
estruturalmente ideal para ser elaborada dentina
secundária, em resposta aos estímulos. Sem capaci-
dade mitótica quando sofrem necrose por agressão,
são substituídos por odontoblast like cells, produzi-
das pelas células mesenquimatosas indiferencia-
das, mas produtoras de dentina atípica, atubular.
Este cariz atubular da dentina esclerótica ou
terciária do dente agredido, (ou também senil ou
senescente), permite compreender a subida do
limiar de estimulação dolorosa, ao longo da vida;
também ao longo da vida, pela deposição periféri-
ca da dentina secundária produzida, o espaço da
polpa se vai-se tornando cada vez mais reduzido.
CAPÍTULO 262 Principais síndromas avéolo-dentárias 1277
À agressão da polpa, seja infecciosa, física ou Na cárie, a polpa está apenas sujeita a estímulos
química, sucedem-se as pulpites, processos infla- indirectos até sofrer invasão bacteriana. A partir
matórios diversos do tecido conjuntivo, os quais de então, o processo inflamatório torna-se pró-
apenas se distinguem pelas particularidades necrótico, estendendo-se à totalidade da mesma e,
anatómicas do dente e pela função trófica dos para além dela, através do foramen apical e acessó-
odontoblastos. rios, para o periodonto, mais propriamente para o
O grande sinal da pulpite aguda é a dor inter- espaço ligamentar periapical (peri-apex), já extra-
mitente que pode limitar-se à “consciência de um dentário.
dente”, mas que se revela tipicamente intensa, Na síndroma periodontal, a dor intermitente é
durando de segundos a horas, com início e fim substituída por dor contínua, aliviada pelo calor,
abruptos, e muitas vezes espontâneos. Manifesta- especialmente intensa à pressão e à percussão,
-se uma ou duas vezes por dia, com horário repeti- alongando-se muito para além do término do
do (ciclalgias), muitas vezes vespertino. Pode ter estímulo. Em situação extrema, mas não rara, o
localização óbvia, mas pode irradiar, no território contacto do dente com os seus oponentes pode ser
homolateral do trigémio, para dentes contíguos excruciante: o doente baba-se, na atitude de evitar
(agonistas ou antagonistas) e para áreas vizinhas, o encerramento da boca e recusa alimentar-se, na
de que são exemplo o nariz, olho, orelha, região expectativa de repetição de dor intensa; foge do
geniana e mento. contacto com qualquer instrumento que apoie o
Quando a pulpite decorre com exposição exame clínico, e protege a face.
dentinária simultânea, associa-se-lhe a síndroma A síndroma periodontal responde de forma
dentinária descrita. insuficiente aos análgésicos correntes.
A dor – desencadeada pelo frio e calor, doces e O Quadro 1 resume os aspectos relevantes da
ácidos – alonga-se para além da cessação dos estí- relação dor/estímulo que permite distinguir as
mulos, tipificando a síndroma pulpar. três síndromas descritas.
A síndroma pulpar revela satisfatória resposta Assim, um breve interrogatório permitirá dis-
aos análgésicos correntes (paracetamol, ibupro- tinguir a síndroma dentinária da síndroma pulpar
feno). Pode, quando intensa, fazer-se acompanhar e da síndroma periodontal, mesmo que seja relati-
de alterações cutâneas vasomotoras e secretórias, vamente frequente um estádio evolutivo misto,
ptialismo, lacrimejo e paralisia facial reflexa. pulpoperiodontal, resumindo as características
A pulpite crónica pode ser subclínica ou dos dois últimos.
mesmo assintomática. A estimulação pelo frio (ar frio, cloreto de
A partir de um determinado momento da evo- etilo), pelo calor (gutta-percha aquecida), e pela
lução, a pulpite torna-se irreversível, conduzindo percussão, clarificam as circunstâncias. Dados
inexoravelmente à necrose. São seus sinais clínicos radiológicos podem complementar e coadjuvar a
a dor espontânea e a dor à percussão, assinalando história clínica.
a junção e/ou passagem à síndroma periodontal. Sabe-se que, em circunstância de dor que se
^
Abreviaturas: F – frio • C- calor • Aç+Ác - acúcares e ácidos • C–contacto • m – mastigação • p – pressão • P – percussão
Cessa/ Não Cessa - cessa ou não cessa com a interrupção dos estímulos • EX – exposição pulpar
1278 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
263
tornou espontânea e/ou que passou a manifestar-
se ou a agravar-se à percussão, há evolução para
necrose, estando indicada remoção do tecido pul-
par ou dos seus restos necróticos – pulpectomia –
desbridamento canalar, por metodologia endo-
dôntica. São actos técnicos popularmente designa-
dos pelo amplo título de desvitalização, obvia- INFECÇÕES ODONTOGÉNICAS
mente da competência do estomatologista.
Da desvitalização resulta que o espaço inicial- Rosário Malheiro
mente ocupado pela polpa é substituído por mate-
riais que, idealmente deverão permanecer estan-
ques, impedindo qualquer vida microbiana intra-
dentária. Etiopatogénese e quadros clínicos
Se o tratamento endodôntico não for exequível,
só a extracção dentária será resolutiva. Entende-se por infecção odontogénica aquela que
Em suma, no que respeita à terapêutica, a provém de um dente ou dos tecidos que o envol-
actuação não é sobreponível, tratando-se de den- vem.
tição decídua ou de dentição definitiva. Nas alíneas seguintes são abordados os qua-
No capítulo seguinte (263) são descritos os dros clínicos mais frequentes englobados no con-
principais quadros clínicos infecciosos com ponto ceito atrás expresso, estabelecendo uma relação
de partida no complexo dentinopulpar. integrada entre a etiopatogénese e sintomatologia.
A B
FIG. 1
Evolução da periodontite.
CAPÍTULO 263 Infecções odontogénicas 1279
o sulco, mas poupando a zona periodontal; é a fís- já uma forma de compromisso da medular, isto é,
tula gengival. (Figura 1B) representa uma forma localizada de osteomielite;
O abcesso alveolar agudo pode, assim, surgir a sua extensão significativa – em superfície e vo-
na evolução natural da periodontite aguda. lume – pode originar osteomielite supurada.
Mas é mais frequente o referido abcesso enxer- Trata-se dum quadro de maior morbilidade
tar-se numa inflamação ou infecção crónica, (granu- que implica necessidade de vigilância rigorosa e
loma periapical), do seguinte modo: pulpite in- medidas adiante discriminadas.
duzindo periodontite (inflamação ligamentar)
seguida de necrose do osso alveolar e colonização Celulite
por microrganismos. As celulites odontogénicas decorrem habitual-
Salienta-se que a infecção de um dente decí- mente com alterações significativas da função
duo poderá comprometer o desenvolvimento do fagocitária e deficiência da imunidade celular e
dente definitivo sucessor. humoral.
Por outro lado, há que admitir a possibilidade O quadro de celulite resulta da disseminação
(rara) de sépsis. da infecção odontogénica estendendo-se, directa
ou indirectamente, ao tecido célulo-adiposo maxi-
Granuloma e quisto periapicais lofacial e/ou cervicofacial.
O chamado granuloma periapical corresponde a um A sua flora é, porém, sobreponível à que carac-
foco de tecido de granulação circundado por uma teriza outras infecções odontogénicas de menor rele-
cápsula de tecido conjuntivo fibroso; é constituído vo, como o abcesso alveolar agudo. É geralmente
por fibroblastos e células inflamatórias, sobretudo mista, predominando a associação de Streptococcus
macrófagos, linfócitos e plasmócitos. A maioria dos (viridans, milleri, sanguis), com Prevotella, Peptostrepto-
linfócitos é do tipo T admitindo-se que estes tenham coccus e fusobactérias. O seu reconhecimento através
papel na produção do factor activador dos osteo- de exame cultural é fundamental.
clastos, os quais são responsáveis pela reabsorção, A celulite odontogénica mais frequente, no
quer óssea, quer radicular que se lhes associa. entanto, não se desenvolve segundo o modelo que
É a mais frequente sequela das pulpites e assi- tem vindo a ser descrito, isto é, a partir da necrose
nala uma competente barreira imunológica; pelo pulpar, por cárie. Efectivamente ela deriva da
seu desenvolvimento - tantas vezes subclínico - infecção tecidual pericoroa dentária (pericorona-
pode constituir um mero achado radiológico, rite) ao nível da mucosa do bordo alveolar, e
quando já possui volume bastante. Tende a apre- atinge, sobretudo, os molares inferiores. Na sua
sentar, então, como sinal, uma hipertransparência evolução típica há difusão da lesão endo-óssea
periapical óbvia, redonda ou ovalada, apensa à para a submucosa, variando as manifestações
extremidade de uma raiz, de limites bem defi- clínicas em função dos limites anatómicos das
nidos, ou mesmo limitada por linha osteoscleróti- locas e espaços das fascias, assim como da relação
ca (marcadora de lento crescimento). das raízes dos dentes, quer com as tábuas
Apresenta semelhanças evidentes com o quisto mandibulares, (dentes inferiores), quer com o
periodontal apical; o quisto, porém, por definição, maxilar superior. Seguidamente são exemplifi-
tem parede com revestimento epitelial e conteúdo cadas diversas vias de difusão.
líquido. Ambos assinalam a necrose pulpar. Os incisivos, caninos e primeiros pré-molares
(e molares decíduos) tenderão a exteriorizar as
Osteomielite suas infecções para a superfície vestibular; os
O processo séptico – quer se trate de circunstância segundos pré-molares e os primeiros molares de-
aguda ab initio, quer se trate de agudização de lesão finitivos exteriorizarão, indiferente ou simultane-
crónica – na maioria das vezes decorre sem grande amente, para as superfícies vestibular e lingual; os
compromisso sistémico, apesar de se lhe poder segundos molares definitivos e os terceiros mo-
associar síndroma febril e linfadenopatia regional. lares (sisos) “preferirão” a tábua interna.
Tendo em conta que as raízes dentárias são Em contrapartida, no plano vertical, a drena-
intra-ósseas, o abcesso alveolar agudo representa gem será sobretudo supra-milo-hioideia, até ao
1280 TRATADO DE CLÍNICA PEDIÁTRICA
VERSÃO ACTUALIZADA
Volume 1
Com o apoio de: Abbott Laboratórios, Lda.
2ª Edição
Volume
1