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CLEPTOMANIA E FURT0 FAMÉLICO

Por Severino Coelho Viana

O nosso Código Penal reserva um título especial destinado à


incriminação dos atos praticados contra o patrimônio, cujo título subdivide-se em sete
capítulos que especificam as condutas típicas e são denominados de: I – do furto; II – do
roubo e da extorsão; III – da usurpação; IV – do dano; V – da apropriação indébita; VI – do
estelionato e outras fraudes e VII – da receptação. E se bem que, em um outro título
estabelece várias tipificações dos crimes praticados contra a administração pública, que
são condutas parecidas, mas não idênticas, todavia voltadas à proteção da atividade
funcional do Estado e à preservação da integralidade no que diz respeito ao patrimônio do
ente público (federal, estadual e municipal).
O nosso estudo resume-se a dois tipos de condutas polêmicas e
praticadas por pessoas que estão vivendo situações diferenciadas no seu modus vivendi:
pela prática da cleptomania e a outra por ocasião da ocorrência do furto famélico. A
primeira é extensiva ao campo da psicologia; enquanto que a outra ao setor de assistência
social, por falta de medidas concretas e realizadoras da vontade política dos governantes
no que pertine a reorganização estrutural do Estado.

A cleptomania, segundo o dicionário Michaelis 2000, volume II, é o


impulso neurótico persistente para o furto, especialmente sem motivo econômico 1.

O novo Dicionário Jurídico Brasileiro, de José Náufel, conceitua a


cleptomania como sendo uma tendência irresistível para o furto de objetos de pequeno
valor, a qual constitui forma de obsessão motora. É um estado psicopatológico.

Compulsão desenfreada para o furto. Assim é definida a cleptomania,


que pode atingir crianças, adultos e idosos, indistintamente, sendo mais comum em
mulheres. Uma das características essenciais da patologia é a dificuldade em resistir ao
impulso de furtar, não importando o valor do produto subtraído. "Muitas vezes esses
objetos possuem pouco valor monetário e o cleptomaníaco teria condições de comprá-los,
mas, freqüentemente, os dá de presente ou joga-os fora", afirma a psicóloga Nancy Erlach.
Quem sofre de cleptomania tem um sentimento de crescente tensão
antes do furto e sente prazer, satisfação e alívio ao cometê-lo. "O estímulo a essa
sensação é que leva essas pessoas a cometerem o ato", afirma Nancy. Segundo ela,
poderia se fazer uma analogia ao consumo de drogas ou à compulsão por comida, pela
sensação que essas ações proporcionam.
1
Michaelis 2000 – Moderno dicionário da Língua Portuguesa.
1
Um dado interessante analisado pela profissional é que muitos dos
indivíduos com este transtorno evitam furtar quando alguma conseqüência mais grave
pode acontecer. Tem o caso de que o paciente que não se controlava de forma alguma,
porém, quando percebia que havia câmeras no estabelecimento ou que a polícia pudesse
chegar, com certeza, abortava a ação e diluía o ato.
Explica a psicóloga que os furtos não são planejados antecipadamente,
nem há grandes elucubrações para realizá-lo. "O furto sempre é cometido somente pela
pessoa, sem participação de outras e ela não leva em conta o fato de poder ser pega em
flagrante caso o risco não seja iminente", afirma Nancy. Segundo ela, a carência de quem
vive esse constrangedor problema está, quase sempre, bem distante da financeira”.

Logo do ponto de vista penal, com suporte no assentimento da


psicologia, a conduta exime da responsabilidade penal o autor, por que falta o dolo,
elemento subjetivo do tipo, que é a vontade consciente do agente que quis produzir ou
assumiu o risco de produzir o resultado.

"Normalmente a causa é uma forte carência de carinho e atenção e o


processo costuma ter início na infância; a criança tem uma profunda falta de afeto que a
leva, geralmente, ao desespero", explica a profissional. Segundo ela, os pais devem,
principalmente hoje em dia, tomar muito cuidado, pois a falta de tempo e o pouco contato
com a criança podem desencadear este processo sem que se perceba. "As crianças
precisam de atenção, carinho, amor e compreensão; sem isso, elas, que ainda estão
formando seus sentimentos, podem desviar-se para qualquer compulsão, entre elas a
cleptomania", diz Nancy. Ela revela que quando as crianças sentem-se frustradas, furtam
na tentativa de conseguir o amor que precisam e não recebem dentro de casa. "Nesses
casos, o objeto subtraído assume um valor simbólico; ela está, na verdade, resgatando o
amor que lhe falta", explica a psicóloga.
Outro cuidado que deve ser tomado pela família é com comentários
que podem desencadear o processo. "Dizer, por exemplo, que o vizinho furtou a
correspondência, a faxineira furtou um objeto, entre outros, pode parecer, à primeira vista,
um comentário sem sentido, mas, num quadro de carência aguda, pode ser o início da
cleptomania para uma criança que a levará à idade adulta", alerta a profissional.
Segundo Nancy, quando cuidadosamente diagnosticada, a cleptomania
pode ser tratada com sucesso, mas dificilmente eliminada. Ainda existem poucos estudos
e escassa literatura sobre a enfermidade, mas se sabe que indivíduos acometidos por este
transtorno podem apresentar alguns distúrbios associados, tais como: anorexia nervosa,
bulimia nervosa, fobias, distúrbios ansiosos e depressão.
Ela alerta também para as pessoas que buscam tratamento. De acordo
com a profissional, quase sempre são aquelas surpreendidas furtando, ou seja, é muito
difícil alguém procurar auxílio psicológico por si só e, por isso, a cleptomania acaba sendo
um problema velado. "Medicamentos antidepressivos podem funcionar bem, mas, mesmo
assim, ainda é um tratamento difícil, pois depende muito da boa vontade do paciente já
que, muitas vezes, ele não se enxerga doente e, portanto, não deseja melhorar", afirma a
psicóloga.
Nancy explica que o melhor a fazer é tratar o paciente com terapia e
realizar análise contínua, já que o desaparecimento total e definitivo é difícil. Ao menor
2
sinal, os pais devem procurar profissional capacitado para tentar eliminar a evolução da
cleptomania. "O trabalho realizado na psicoterapia é buscar o desenvolvimento do
autocontrole da pessoa; devemos ter um diálogo aberto com o paciente e jamais culpá-lo
pelo seu ato. É importante fazê-lo entender o que a enfermidade causa para si e para a
sociedade, que envolve família e amigos 2", finaliza a psicóloga.

O julgador teria alguns caminhos a percorrer no sentimento de tentar


praticar um ato de justiça, analisando o caso concreto, com fundamento em prova pericial
ou avaliação psicossocial. Em primeiro lugar, exime da responsabilidade penal,
absolvendo-o, pela inexistência do dolo, elemento subjetivo do tipo penal 3 . Segunda
alternativa, se constatada a através da prova pericial ou da avaliação psicossocial a
inimputabilidade do autor da infração penal, seria o caso de isenção de aplicação da pena,
previsão contida na legislação penal 4, ou, então, redução da pena imposta, ou de aplicação
de tratamento terapêutico; se for o caso de semi-imputabilidade, quando o agente que
cometeu estava acometido de uma perturbação de saúde mental ou por desenvolvimento
mental incompleto ou retardado ou não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito
do fato ou determinar com de acordo com esse entendimento, conforme preceito expresso
no art. 26, parágrafo único, do CP ). E, finalmente, diminuir a pena de um a dois terços, ou
aplicar somente a pena de multa5.

O furto, como uma conduta típica determinada na lei penal


incriminadora traz um disciplinamento genérico e abstrato, o de subtrair, para si ou para
outrem, coisa alheia móvel6 , havendo uma graduação minimizante ou maximinizante na
aplicação da pena, conforme o fato concretamente consumado e as suas circunstâncias de
tempo, modo de agir, quantidade de pessoas e os meios empregados, quais sejam, se de
pequeno valor e o réu for primário; se no repouso noturno, com destruição ou rompimento
de obstáculo, com abuso de confiança ou mediante fraude, escalada ou destreza; com
emprego de chave falsa ou mediante concurso de duas ou mais pessoas.
Significa o furto de uma ação em que o agente deseja apoderar-se ou
assenhorear-se de coisa pertencente a outrem, ou tornar-se senhor ou dono daquilo que,
juridicamente, não lhe pertence.

Situações particulares no contexto do furto, que merece ser estudado


dentro dos seus liames e de suas sutilezas, como de fato acontece, dá-se com o furto
famélico, porque envereda para o terreno do estado de necessidade. Afirma Guilherme de
Souza Nucci: “furto famélico pode, em tese, constituir estado de necessidade. É a hipótese
de se subtrair qualquer alimento para saciar a forme. O art. 24 do Código Penal estabelece
ser possível o perecimento de um direito (patrimônio) para salvaguardar outro de maior
valor (vida, integridade física ou saúde humana), desde que o sacrifício seja indispensável
e inevitável”7.
2
C-87 – artigo – Cleptomania, um problema velado – autoria - Nancy Erlach – psicóloga –
nerlach@terra.com.br - Http://www.aomestrecomcarinho.com.br .
3
Código Penal – art. 18.
4
Código Penal – art. 26.
5
Código Penal – art. 155, § 2º.
6
Código Penal – art. 155, Caput.
7
Código Penal Comentado – Guilherme de Souza Nucci – pág. 495.
3
O estado de necessidade exculpante ocorre quando o agente sacrifica
bem de valor maior para salvar outro de menor valor, não lhe sendo possível exigir, nas
circunstâncias, outro comportamento. Trata-se, pois, da aplicação da teoria da
inexigibilidade de conduta diversa, razão pela qual, uma vez reconhecida, não se exclui a
ilicitude, e sim a culpabilidade.
Nas nossas andanças nesses rincões, tivemos a oportunidade de
presenciar um fato típico de furto famélico, na zona rural do alto sertão paraibano.
Era precisamente nas vésperas do dia de São João, momento que
prometia uma boa safra, pois o ano havia sido invernoso e a mesa do sertanejo estava
farta.
À tardinha, deitado numa rede no alpendre, percebíamos a
movimentação do pessoal da fazenda. O pilão batia de forma cadenciada, ouvia a zoada
do moinho, o rangido das palhas de milho na cozinha e o cheiro incandescente que vinha
do forno torrando o bolo de milho, da panela no fogão cozinhando a pamonha e a canjica.
A fogueira acesa que clareava mais ainda uma noite de céu estrelado,
animando os corações dos viventes ao seu redor. Já se organizava o noivo e a noiva para
o casamento matuto e se preparava o início da quadrilha junina. Realizavam-se
adivinhações, batizados de fogueira e as tradicionais simpatias, especialmente dirigidas ao
padroeiro Antônio, o santo casamenteiro.
Começou o autêntico forró pé-de-serra: o fole, o zabumba, o triângulo,
o reco-reco e o pífano, puxado à cerveja e à cana-de-cabeça, servido com as comidas
típicas de milho verde, num terreiro batido de barro vermelho.
Terminada a parte festiva e divertimento, todos se recolheram para
dentro de suas casas.
Plena madrugada. Ouve-se um grito ecoando nas entranhas da
serrania:
__ Ôiiiiiiiiiiiiiiiii...Ôiiiiiiiiiiiii...Ôiiiiiiiiiiiii...
A senhora, dona da casa, com seus cabelos brancos, vivida pela
experiência, que conhecia as matreirices do sertanejo, acordou o marido e dizia:
__ Este grito, fino e sufocante, indica que está acontecendo alguma
coisa estranha.
E cada vez mais o eco se aproximava:
__ Ôiiiiiiiiiiiiiii... Ôiiiiiiiiiiiii... Ôiiiiiiiiiiiii...
Agora se ouvia um barulho trepidoso vindo dos arredores da casa. Era
um barulho misturado de pisadas humanas e o roçar dos pés de marmeleiro.
__Acuda-se!... Acuda-se!... Acuda-se!...
Uma multidão corria atrás de um desconhecido.
Por onde passava aquela multidão em correria, os moradores
acompanhavam, ninguém mais dormia, e todos corriam dentro do matagal ou pelo
tabuleiros, armados de faca, facão, trinchete, foice, roçadeira, enxada e pedaços de
chibanca, além da famosa espingarda bate-bucha.
Zanóio, era um sarará, afoito e metido a valente, armado de facão e de
uma espingarda, vinha manquejando e viu uma multidão cercando uma moita grande de
velame, recoberta pela folhagem de melão-de-são-caetano, onde o larápio se escondia,
quando se ouviu um berro:
4
__Zanóio, pelo amor de Deus, o que aconteceu? Como ficou para trás?
__Levei uma topada num lajedo e arranquei dois dedos do pé, por isso
estou arquejando.
De outra banda, vinha Maria Barra saltitando, e fazendo toda aquela
cena de mexerico, ocasião que Miguel Taboca assustou-se:
__Que é isso Maria? Está endemoniada?
__Não! Eu vinha correndo e cair dentro de um matagal de cansanção,
por isso meu corpo está todo ardendo.
O dia clareava e o frio arrepiava.
A gritaria era geral. Vamos derrubar a moita de roçadeira. O ladrão está
lá dentro. Ou se entrega ou morre...
Ouviu-se um grito de lamentação, nascido de dentro da moita:
__Tô rendido, eu vou jogar a minha faca. Só peço, pelo amor de Deus,
que não me mate. Fiz isso para salvar os meus filhos e minha mulher, que estão passando
fome.
A multidão gritava em desespero.
__Então, levante os braços e saia da moita.
Saiu aquele homenzarrão, aparentando 60 anos de idade, medindo
1.90 m, de altura, com olhar penetrante, com a pele queimada pelo sol causticante, com as
mãos para cima, como se tivesse assinando a sua própria declaração de covardia.
A moita é totalmente revistada, encontraram dentro de um balaio: duas
galinhas, um molho de coentro, outro de alface e um molho de cebola verde, enquanto que
as galinhas estavam vivas.

__Vamos, rapaz, você está preso.


O ladrão foi amarrado de corda e levado até a casa grande, humilhado,
maltratado e menosprezado pela multidão que o xingava. Dos olhos dele descia apenas
uma lágrima e não dizia uma só palavra.
Chegando na casa grande, só se ouvia a algazarra.
__Vamos amarrá-lo e pendurá-lo de cabeça para baixo, enquanto
esperamos a polícia.
Aí, houve a nossa interferência: o homem está amarrado de corda
grossa de gado bravo, por que pendurá-lo de cabeça para baixo? Basta colocar alguns
vigias e esperar as providências da autoridade policial. O bom senso prevaleceu.
A polícia só veio ao sítio, no final da tarde, conduzida num Jeep, sem
capota e sem pára-brisa, quando se percebia a arrogância do cabo de polícia que desceu
do automóvel e logo gritou com todo o ímpeto de sua autoridade:
__Cadê o meliante?
A cena foi deprimente. Tirou o cinturão e mandou a chicotada no pobre
coitado, que contorcia todo o seu corpo aflitivo.
O fato mereceu uma outra intromissão de nossa parte:

__Tenha paciência. O homem já está preso. Que querem mais?


__Cadê o produto do furto, falou o cabo.
__Traga o balaio: duas galinhas, um molho de coentro, um de alface e
outro de cebola verde, que tinha sido retirados da hortaliça caseira.
5
O cabo de polícia olhou para o ladrão e indagou?
__Como você faz um negócio desses?
Respondeu com toda sua humildade:
__PARA DAR DE COMER A MINHA FAMÍLIA.

o fato mais notório de furto famélico, que ficou conhecido


nacionalmente, foi do auxiliar de almoxarifado, Augusto Sátiro de Jesus, primário e de
bons antecedentes criminais, que trabalhava no Restaurante do Aeroporto, rede de
alimentação que atende restaurantes e operadoras aéreas, em São Paulo, que ficou preso
durante 16 dias, por ter tentado furtar um pedaço de coxa e uma sobrecoxa de frango, com
prazo de validade vencido. Alegou que fazia um ano e seis meses que trabalhava na
empresa, ocasião que estava sozinho em casa e sem um centavo para comprar comida. O
pedaço de frango, avaliado em R$ 0,90 (noventa centavos), custou caro a Jesus. Além de
ter ficado 16 dias preso com outros 25 homens em uma cela de 12 metros quadrados, ele
foi demitido por justa causa, medida que não prevê nenhum tipo de indenização
trabalhista.

Reportando-nos à lição do mestre Damásio E. de Jesus que assim se


expressa: “O Código Penal considera em estado de necessidade, uma das causas de
exclusão da ilicitude, quem pratica fato típico para salvar de perigo atual, que não
provocou por sua vontade, ‘‘nem podia de outro modo evitar...’’, bem jurídico seu ou de
terceiro (art. 24). Significa que o agente não tem outro meio de evitar a lesão ao interesse
jurídico próprio ou alheio que não o de praticar o fato necessitado, ofendendo outro bem.
Ocorre nas hipóteses em que é inviável a abstenção de realização do comportamento
lesivo em face da inevitabilidade do perigo de dano por outra forma (‘‘beco com uma única
saída possível’’). Exemplos: danos em propriedade alheia para extinguir incêndio;
subtração de alimentos para evitar a morte por inanição; subtração de água para evitar a
morte por sede; aborto para salvar a vida da gestante; morte de náufrago para apanhar a
única tábua de salvação; subtração de veículo para transportar doente em perigo de vida;
violação de domicílio para acudir vítima de crime; lançamento de mercadorias de avião em
perigo; desvio de canal para impedir inundação; omissão de socorro médico para acudir
outro paciente etc. Nesses casos, exposto o bem a perigo de dano real, grave e atual, se o
conflito de interesses pode ser resolvido de outra maneira (conduta diversa), como pedido
de socorro a terceira pessoa, lesão menor, fuga (‘‘commodus discessus’’) ou mesmo
abstenção da conduta, o fato não fica justificado. É preciso que o único meio que se
apresenta ao sujeito para impedir a lesão do bem jurídico seja o cometimento do fato
lesivo. Não é um conceito rígido, mas relativo, aquilatado pelas circunstâncias do caso
concreto em que se vê envolvido o agente. Se o perigo pode ser afastado por uma conduta
menos ofensiva ou comportamento diferente, a realização do comportamento mais lesivo
não configura a excludente da ilicitude, subsistindo crime. A jurisprudência tem se
manifestado diversas vezes nesse sentido: Revista dos Tribunais, 518:377, 535:304 e
559:358; Julgados do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, 35:334; 39:41 e 65:384”.8”

8
Furto Famélico e Estado de Necessidade – Damásio E. de Jesus – O Neófito – Informativo Jurídico –
http://www.neofito.com.br
6
A tese de Antônio Souza Prudente, firmada na literatura de João Cabral
e Melo, “Morte e Vida Severina”, traz um argumento de forma excepcional: “Se na doutrina
secular do catolicismo, furtar, roubar ou saquear bens alheios, em estado de necessidade
extrema, não é sequer pecado venial, cometendo pecado mortal aquele que, podendo
alimentar a quem está morrendo de fome não o faz, matando-o, nos termos de nosso
ordenamento jurídico-penal, não há crime, quando o agente pratica o fato em estado de
necessidade, respondendo, embora, pelo excesso doloso ou culposo. (Código Penal, art.
23,I e respectivo parágrafo único). Ainda que, formalmente, o ato de ‘‘subtrair para si ou
para outrem, coisa alheia móvel’’ tipifique o crime de furto (Cód. Penal, art. 155, caput) ou
‘‘subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência
à pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de
resistência’’, tipifique, em tese, o crime de roubo (Cód. Penal, art. 157), por caracterizar-se
a contradição entre o fato praticado pelo sujeito e a norma de proibição, quando isto
acontece em estado de necessidade, como nas hipóteses de furtos, roubos ou saques
famélicos, não há crime, por ausência de antijuridicidade material. Nosso Código Penal diz
que ‘‘se considera em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo
atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio
ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se (art. 24, caput). Os
flagelados das secas do Nordeste e do abandono estatal encontram-se, sem dúvida, como
nos mostram as cenas televisivas, em estado de extrema necessidade, famintos, sedentos
e quase nus, numa situação de perigo atual das próprias vidas, que se constituem num
bem constitucionalmente protegido, como garantia fundamental, não sendo razoável exigir-
se deles tamanho sacrifício, posto que não provocaram tal perigo, nem podiam de outro
modo evitá-lo, não lhes restando outra alternativa senão a de lesar os bens e interesse de
outrem, nos limites de suas necessidades vitais, ainda que de simples vidas severinas 9.”

Preleciona o grande mestre, Júlio Fabbrini Mirabete, no sentido de


cautela para averiguação e reconhecimento do estado de necessidade, no ângulo da
consumação do furto famélico: “o furto famélico deve ser apreciado pelo juiz com extrema
cautela, sob pena de abrir perigoso precedente, favorecendo a prática de outros delitos da
mesma espécie, em razão da impunidade dos infratores. Para o reconhecimento do furto
famélico é necessário que o réu atue com o único intento de saciar a fome, em
necessidade extrema, não podendo esperar mais, por a situação insuportável e que
somente através do ato ilícito consiga resolver o problema da falta de alimentação, sendo
certo que, a simples alegação de falta de recursos financeiros não justifica tal prática 10.”

A nosso sentir, o julgador, depois de bem avaliado o caso concreto, no


instante de pôr a termo uma ocorrência de furto famélico, poderá encontrar duas posições
jurídicas, com respaldo jurisprudencial e doutrinário, absolvendo o imputado, por estado de
necessidade, com suporte na falta de culpabilidade ou exclusão da antijuridicidade. Por
outro ângulo, poderá arregimentar o seu livre convencimento baseado no princípio da
insignificância, que afasta o elemento do crime da ilicitude, dependendo do valor monetário

9
Antônio Souza Prudente – Saque Famélico e Exclusão de Ilicitude – O Neófito – Informativo Jurídico –
http://www.neofito.com.br
10
Código Penal Interpretado – Júlio Fabbrini Mirabete – pág. 884.
7
da coisa subtraída, dos antecedentes criminais, das circunstâncias e do modo de atuação
e da periculosidade do infrator penal.

O legislador fixa os paradigmas das condutas ilícitas que são


relevantes para o direito penal, através das descrições típicas. Formulados esses tipos
legais de crimes, neles devem subsumir-se os acontecimentos da vida, para que melhor se
possa atribuir a dignidade jurídico-criminal.

Daí a importância da adequação típica, não só no campo do direito


penal, como também na esfera do direito processual penal: é o que Jimenez de Asua, com
tanto acerto, denominava de valor procesal de la tipicidade (Tratado de Direito Penal - V2,
pág. 77)

Nesse sentido, é que não basta apenas que a conduta humana esteja
descrita formalmente na lei, tem que visualizar algo mais; se esse comportamento humano
foi, verdadeiramente, lesivo a bens jurídicos, moral e patrimonialmente. Com isso,
considerar-se-iam atípicas condutas humanas que não lesem a vida em sociedade, por
serem ínfimas e insignificantes, não merecendo qualquer apreciação da função judiciária.

Essa mudança passa justamente pela efetivação das normas penais,


ou seja, torná-las mais eficazes, atuantes. O Estado não pode mais se preocupar com
fatos de poucas relevâncias jurídica, sob pena de acontecimentos importantes perderem
espaço para aqueles, afogando, assim, o já conturbado ordenamento jurídico do país.

Os adeptos da aplicabilidade do princípio da insignificância no direito


penal entendem haver uma série de desproporção entre o fato delituoso praticado pelo
agente e sua correspondente pena, em determinados delitos. Sustentam esses estudiosos
que seria injusto essa medida igualitária a ambas situações, onde aplicando-se o citado
princípio se estaria distribuindo justiça mais eqüitativamente. Daí, verbis gratia, não
poderia ser computada a mesma pena a uma pessoa que furta coisas alheia móvel, no
valor de R$ 1.000,00 reais, e outra que furta, nas mesmas condições, coisa alheia móvel
de apenas 3 ou 4 reais.

A era contemporânea vivenciada no ramo do direito penal, com


relevantes conseqüências no direito penitenciário, até pelo fato de vivermos o momento da
despenalização, com uma atuação consistente, criteriosa e metodológica, o aplicador do
direito agindo de forma eficaz, com fundamento nos articulados deste artigo jurídico,
encontraria uma maneira de contribuir com a diminuição da burocracia judiciária, reduzindo
o número de processos, assustando a barriga de traça e assombrando o monstro
atemorizador da morosidade.

João Pessoa 0 Pb, 05 de novembro de 2005.

8
SEVERINO COELHO VIANA
E-mail – scoelho@globo.com,

Promotor de Justiça

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