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Tutoria Direitos Reais |Diogo Saúde Guerreiro

Pedro de Albuquerque – Posse e Constituto Possessório

ML afirma que o cumprimento da obrigação de entrega da coisa opera a transmissão da


respetiva posse para o comprador: assim será, efetivamente, se ele não for já possuidor.
O problema coloca-se em saber se, por norma, a CV não opera, mesmo sem a entrega, a
transmissão da coisa por constituto possessório - art 1263.º/c) do CC - e 1264.º do CC.
ML admite esta possibilidade, mas não como regra: é duvidoso se, quando após a venda o
vendedor não procede à entrega imediata do bem, se deve presumir a verificação do constituto
possessório, permanecendo o vendedor como detentor, ou se se deve antes presumir a
manutenção da posse no vendedor.
Face à conceção objetivista da posse, que ML considera plasmada no artigo 1251.º do CC,
entende ser de entender que o vendedor como possuidor em todas as hipóteses nas quais exercer
poderes de facto sobre a coisa, apenas passando a detentor se for convencionado que passará a
possuir em nome do comprador - art 1253.º/c).
 
Entre nós, é dominante a conceção subjetivista da posse(entre outros, PL/AV, Paula Costa e
Silva, Henrique Mesquita, Rui Pinto Duarte), quer na doutrina, quer na jurisprudência.
A favor de uma compreensão objetivista da posse, manifestou-se essencialmente: José Tavares,
ML, OA, CF, BR e JAV. Jurisprudência recente tem se manifestado nesse sentido. O STJ a
25/11/1999(Quirino Soares) considerou que não é a vontade que decide da posse, mas sim o
direito ele próprio. O animus dos alienantes relativamente aos bens que alienaram, mas
continuaram a deter pode ser titular dos direito alienado, e todavia, tal intenção ser indiferente
para a ordem jurídica. A 13/08/2008, o STJ(Pereira da Silva) pronuncia-se no mesmo sentido:
cabe ao Direito decidir se uma situação é vista como possessória, ou ao invés de detenção.
 
Este debate colocou-se na pandectista alemã, entre Savigny e Jhering.
De uma forma geral(mais detalhes nos resumos de reais), na conceção subjetivista de Savigny,
para a ocorrência de posse, exigir-se-ia, para além do corpus - controlo fáctico sobre a coisa -
um animus, que corresponderia a uma intenção específica do possuidor, o qual teria que
consistir na intenção de agir como proprietário - animus domini. A detenção corresponderia a
um corpus desacompanhado de animus, enquanto na posse ocorreriam as duas situações.
Na conceção objetiva de Jhering, tanto na posse, como na detenção ocorreria a verificação do
corpus e animus, distinguindo-se uma da outra pelo facto de na detenção ocorrer uma
disposição legal que descaracteriza a situação como posse, retirando os interditos ao possuidor.
 
PA concorda com uma formulação objetivista da posse, considerando a explicação de MC a
mais acertada.
Para MC, o animus levanta em si, independentemente mesmo da consideração do regime
jurídico consagrado, uma série de dificuldades, a começar logo pelo da vontade: ele reporta-se à
intenção de ser proprietário - animus domini - de ser possuidor - animus possidendi - ou de ter a
coisa para si - animus sibi habendi. Uma das formas de ultrapassar o problema poderia traduzir-
se no apelo à teoria da causa. Na impossibilidade de reconhecer, de entender e de controlar o
animus, atribuir-se-lhe-ia o conteúdo do título de aquisição da posse, ou se se preferir, da sua
"causa". Tal animus porém já não teria a ver com a vontade. Estamos perante uma construção
objetiva.
À luz do nosso direito, encontramos soluções possessória onde, expressamente, se dispensa
qualquer animus: a posse pode ser adquirida por quem não tenha uso da razão - art 1266.º CC -
outro tanto sucedendo com o funcionamento da usucapião - art 1289.º/2.
Como sublinha MC e ML, o artigo 1251.º não faz referência a qualquer animus e refere, por
defeito, as situações de detenção - art 1253.º O estilo e a sistemática são de índole claramente
objetivistas. Aliás, de acordo com MC, o facto de o alargamento das ações possessórias ao
locatário, ao parceiro pensador, ao comodatário e até ao depositário leva a uma compreensão
objetiva da posse como funciona a favor de um sistema de tipo objetivo.
 
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Relativamente aos trabalhos preparatórios, MC lembra o seu caráter inconclusivo, retirando um


argumento dos trabalhos preparatório que é fraco: a opinião histórica dos autores materiais da
lei não colhe se não tiver ficado consagrada, sendo isso que pretendemos saber.
Mais difícil é o argumento a tirar do artigo 1253.º/a), partindo MC das últimas alíneas do artigo
1253.º para explicar aquela.
O art 1253.º/b) refere como detentor o beneficiário da mera tolerância: a jurisprudência
apresenta uma noção ampla de tolerância, levando-a além da mera simpatia ou da
obsequiosidade entre vizinhos. Os nossos tribunais vieram a centrar a mera tolerância no
exercício tácito ou expressamente autorizado pelo proprietário(Henrique Mesquita/MC).
O art 1253.º/c) corresponde à detenção propriamente dita. Ficam abarcados os possuidores da
coisa em termos de direitos reais menores, ou de outros direitos reais de gozo, em relação à
posse, em termos de propriedade. Estes titular são possuidores, em nome próprio, nos termos do
direito que os legitime: meros detentores, em termos de propriedade. Trata-se de um simples
fenómeno de sobreposição de posses.
Este artigo abrange ainda as situações de representação formal, assim como as situações nas
quais o agente atua em nome de outrem, mesmo sem representação formal. Tal o caso da gestão
representativa de negócios, bem como da situação dos auxiliares com contemplatio domini.
Para MC, a referência ao mandatário do possuidor resultou de um lapso das revisões
ministeriais: não se observou como o CC de 1966 dissociou o mandato da representação.
Havendo mandato sem representação, o mandatário adquire os direitos e assume as obrigações
decorrentes dos atos que celebra - art 1180.º do CC - e, portanto, adquire a posse. Apenas é
obrigado, depois, a transferir para o mandatário os direitos adquiridos.
A expressão "mandatários do possuidor" parece ter sido usada fora do seu alcance técnico,
traduzindo, apenas, o mandato com representação e outras situações de atuação com
contemplatio domini.
 
A interpretação literal do artigo 1253.º/a) levar-nos-ia a julgar como detentores as pessoas que
exercem o poder de facto em termos altruísticos, sem intenção de agir como beneficiários do
direito. Não pode ser esta a interpretação: basta pensar numa situação de interposição real de
pessoas - alguém pode ser titular de um direito e agir sem intenção de ser seu beneficiário. O
facto de alguém exercer um poder sem intenção de agir como beneficiário do direito não é
incompatível com o animus. O possuidor pode sê-lo sem intenção de beneficiar do direito.
 
Para Oliveira Ascensão, o artigo 1253.º/a) refletiria aqueles casos nos quais o próprio agente
declarasse não pretender ser possuidor.
Esta orientação é afastada por MC:
 
i. MC alega a irrelevância da protestatio facta contraria: segundo as regras gerais, a
atuação voluntária não é descaracterizada pelo facto de o agente fazer simples
declarações. Mesmo para efeitos contratuais, um comportamento não é
prejudicado pela declaração de sinal inverso. Esta regra aplica-se à posse. ML
também apresenta este argumento;
ii. A posse não dá apenas direitos: ela suscita o aparecimento de deveres. Assim, o
possuidor de má-fé responde pela perda ou deterioração da coisa - art 1269.º - de
vendo restituir os frutos e responde pelos frutos que o proprietário diligente
poderia ter obtido - art 1271.º. Não seria aceitável que alguém pudesse escapar a
estes deveres pela simples circunstância de declarar não querer ser possuidor. No
limite, o ladrão é possuidor, por muito que declare não querer sê-lo.
 
Para OA, nos cenários que aquele vizinho que cuida dos bens de um emigrante, mas declara
fazê-lo apenas em nome do mesmo, a quem restituirá tudo no seu regresso, não seria possuidor,
na medida em que não exerceria um poder autónomo sobre a coisa. Mesmo se não houver
mandato ou contrato de trabalho, os intervenientes desvalroizam a sua intervenção: nestes casos,
haveria mera detenção. No mesmo sentido, estaria a situação em que aquele que cultiva em terra
alheia declara trabalhar para o dono da terra.
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Para MC, em ambas as hipóteses, existe gestão de negócios - art 464.º. Se o interventor afirmar
agir em nome do proprietário, a gestão é representativa. Há detenção por força do artigo
1253.º/c). Se não o fizer, a gestão não é representativa: o interventor é possuidor, embora deva
transferir tudo o que, assim, obtenha para o dono por força dos artigos 1181.º/1 e 471.º do CC.
Os exemplo de Oliveira Ascensão cabem assim na alínea c).
Para MC, a única saída para ressalvar o animus do artigo 1253.º/a) é a teoria da causa. Esta é
incompatível coma ideia de animus. O artigo refletiria assim as situações em que o poder de
facto foi adquirido em termos tais que a própria lei afasta a posse, desde que a situação não
fique abrangida pelo âmbito das alíneas b) ou c) do mesmo preceito.
Ficar-nos ia, assim, para o artigo 1253.º/a), o exercício do poder de facto sobre bens do domínio
público, como se infere do artigo 1267.º/1/b) e do artigo 202.º/2. Também se poderia referir a
situação do artigo 2096.º/2: o que sonegar bens da herança é considerado mero detentor desses
bens. Por via da teoria da causa, não há animus nem posse.
ML contra argumenta: Sendo o exercício de poderes sobre bens do domínio público
especificamente regulada no art 1267.º/1/b), não faria sentido ela caber na alínea a) do artigo
1253.º.
Para além do mais, esta construção tornaria o artigo 1253.º/a)numa pura norma remissiva.
De acordo com ML, só há uma explicação adequada para o art 1253.º/a): ele corresponde
às situações em que há exercício de poderes de facto sobre a coisa, mas os mesmos
correspondem ao conteúdo de um direito ao qual a lei não reconhece a tutela possessória.
Assim, por exemplo, a lei reconhece a tutela possessória do locatário e comodatário, mas não a
reconhece ao hóspede no contrato de hospedagem, nem ao titular do direito real de habitação
periódica: será então a estas situações que se refere o art 1253.º/a).
 
JAV criticou a construção de MC, procurando regressar a uma conceção objetivista da posse
nos moldes propostos por Oliveira Ascensão.
Quanto à irrelevância da protestatio facta contraria, JAV afirma nada impedir a consagração
particular de normas de natureza excecional. O Direito poderia pretender, em situações
concretas, atribuir relevância à declaração do interessado na prossecução de objetivos gerais do
sistema jurídico. O art 1253.º/a) seria justamente uma dessas regras. Desta forma, o sistema
manteria a sua coerência interna, no sentido de fazer corresponder a posse a uma exteriorização
de um direito sobre a coisa, que se perderia se a posse se mantivesse mesmo nos casos em que o
detentor negasse a titularidade de um direito.
Quanto ao segundo argumento de MC, JAV considera perder ele toda a força se se ponderar o
regime a que está sujeito o detentor e se proceder, simultaneamente ao seu confronto com o do
possuidor de má-fé. E isto pela simples razão de que, feito este cotejo, se chega à conclusão de
que o detentor ainda está em pior situação diante do titular do direito de fundo do que o
possuidor.
 
Para JAV, os exemplos propostos por Oliveira Ascensão para ilustrar situações compreendidas
no artigo 1253.º/a) corresponderiam a casos de gestão de negócios é considerada inexata. Sem a
declaração do interveniente, a situação seria possessória. Só com a declaração muda o
tratamento jurídico da mesma. É com ela que se percebe que a intervenção ocorre em gestão de
negócios e não representa a exteriorização de um direito próprio sobre a coisa.
O artigo 1253.º/a) aplica-se assim a todas as situações nas quais quem tem corpus possessório
esclarece socialmente não ter nenhum direito sobre a coisa. Porquanto a posse é tutelada como
exteriorização de um direito, quando aquele que tem a cosia em seu poder se comporta de modo
a esclarecer a comunidade não se arrogar nenhum direito sobre ela, a ordem jurídica trata a
situação como mera detenção.
Ex: A é proprietário e possuidor de um carro velho estacionado na rua. Pretendendo vê-lo
removido pelos serviços camarários, A faz saber junto dos seus vizinhos já não ser proprietário
do carro, embora conserve consigo as chaves. A intenção não assumiria no recorte do artigo
1253.º/a) a função de elemento constitutivo da posse. O seu sentido seria negativo: não confere
posse, antes a retira em situações normalmente consideradas como possessórias. Deste modo,
tudo se manteria dentro dos quadros objetivos da posse.
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As objeções de JAV não convencem PA. Em primeiro lugar, MC não sustenta representarem as
hipóteses de gestão representativa situações de mosso, mas sim moldarem-se elas a situações de
detenção por aplicação do artigo 1253.º/c) e não em virtude do artigo 1253.º/a).
Quanto às hipóteses de gestão não representativa, JAV entende saber-se, com a declaração, dar-
se a intervenção por conta de outrem(gestão de negócios) e não representar a exteriorização de
um direito próprio sobre a coisa.
PA não considera tal objeção exata: quem atua por conta de outrem tem, de facto, um direito
próprio sobre as coisas submetidas ao seu controlo. É isso que, normalmente, distingue a
atuação por conta de outrem da atuação em nome de outrem. Neste segundo cenário, o
interveniente é, efetivamente, titular de todos as situações resultantes da atuação por conta do
dominus. Os artigo 1157.º, 1180.º, 1181.º/1 e 471.º são categóricos e não deixam qualquer
dúvida.
 
Quanto ao exemplo do carro, numa primeira fase, JAV, ao afirmar pretender que os serviços
camarários reboquem o automóvel, o comportamento do dono tem o significado de uma
renúncia à propriedade e projeta-se ao nível possessório, retirando-lhe a posse nos termos do
artigo 1253.º/a) do CC. Não obstante o corpus, passa a existir uma situação de mera detenção
após ter declarado renunciar ao carro. PA não entende que tais afirmações eram exatas. Não se
vê como a declaração do proprietário teria inicialmente o efeito pretendido por JAV.
Basta pensar que, não obstante a declaração no sentido de não ser possuidor, se ele mandar
pintar o carro, enchê-lo de gasolina todos dias, fazer viagens constantemente com passageiros a
quem cobra um preço que guarda para si, etc. Neste caso, mesmo os subjetivistas diriam haver a
exteriorização de um comportamento revelador de uma intenção de possuir. Por maioria de
razão, os objetivistas terão de aceitar a existência de posse nesta eventualidade. O que interessa
é o comportamento e não a declaração. O próprio artigo 1252.º/2 contém uma presunção de
posse em situações desse tipo ao esclarecer como, em caso de dúvida, que a posse se presume
naquele que exerce o poder de facto, não parecendo suficiente a declaração em sentido inverso
do possuidor para a afastar.
Ex: No caso do ladrão apanhado em flagrante a roubar uma carteira, o significado da sua ação
não pode deixar de ser o apossamento por esbulho, mesmo se ele declarar não ter qualquer
intenção de possuir sendo antes um mero detentor.
Face ao artigo 1253.º/a), a protestatio facta contraria não pode ter o relevo que JAV lhe atribuiu
na primeira fase do seu pensamento. O próprio demonstrava-o, ao referir os pressupostos do
abandono como forma de extinção da posse. O abandono pressupõe a perda efetiva do corpus:
não basta a simples intenção de não possuir, se o controlo material permanecer inalterado.
Como uma vez constituída a posse ela se conserva com a mera suscetibilidade de atuação
material sobre a coisa - art 1257.º/1 - tem de existir uma quebra efetiva do domínio para se falar
em abandono. Ora ao depor este artigo contra o abandono por mera declaração, este artigo
também depõe contra a extinção da posse por convolação para mera detenção mediante simples
declaração, não contrariada pela cessação do corpus. Aliás, como a detenção supõe, justamente,
a existência e manutenção do corpus dir-se-ia opor o artigo 1257.º/1, ainda mais, à extinção da
posse nos cenários em que o possuidor declara pretender passar a mero detentor.
 
Mas mesmo quando assim não fosse e a declaração degredasse o possuidor a mero detentor
contra a realidade do respetivo comportamento, Então:
 
 Se a declaração pudesse ter, simultaneamente, o efeito de renúncia ao direito de
fundo e à posse, transformando-a em detenção, o comportamento inverso à
declaração produziria logo a seguir a ela e, a menos que se entendesse não poder
ser nunca alterada ou modificada(posição até agora sem qualquer defensor como
além disso conclusivamente impugnada por PCS) a constituição de nova posse
por apossamento. De nada serviria a declaração.
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 Se declaração respeitasse apenas à posse, pertencendo o direito de fundo a um


terceiro, o comportamento contrário a ela determinaria, logo após a constituição
da nova posse por inversão do título da posse.
 
Para PA, JAV parecia ainda pressupor passar a posse, sempre, com o direito de fundo, solo
consensu, numa manifestação da força translativa real da vontade na posse, em termos análogos
ao artigo 408.º/1 do CC[princípio da consensualidade]. Se alguém por declaração renunciasse ao
direito de propriedade, também perderia também a posse. O autor no entanto não aceita esta
ideia para o constituto possessório. JAV afirma não estar o constituto possessório para a posse,
como o princípio da consensualidade para os restantes direitos reais. A regra geral relativamente
à transmissão da posse persistiria na tradição, material ou simbólica. O transmitente do direito
real afigura-se obrigado a entregar a coisa ao adquirente, mas se não o fizer, a posse continua
com ele não se transmitindo.
Ou seja: aquele que declara abandonar um direito perde a posse, mas aquele que afirma
transmitir esse direito mantém a posse. Para PA, não existe coerência interna: o tratamento
deveria ser o mesmo, uma vez que em ambos os casos há uma declaração de vontade que
contraria a exteriorização de um direito.
 
Para JAV, o constituto possessório teria 3 requisitos por força do artigo 1264.º:
 
i. Um negócio jurídico de transmissão de um direito real de gozo;
ii. Que o transmitente do direito real seja possuidor;
iii. Uma causa para a detenção. Esta causa seria antes de mais um contrato. O
comprador celebra, simultaneamente, com a venda, um outro contrato com o
vendedor(arrendamento, depósito, comodato, etc.) nos termos do qual se constitui
um direito que exige uma atuação material sobre a coisa. O comprador adquire
assim a posse anterior do transmitente/vendedor referente ao direito real
transmitido, mesmo se, em cumprimento do contrato celebrado este último
permanece com a coisa em seu poder. Para JAV, poderia ainda ser uma mera
cláusula do contrato de transmissão: pense-se na compra-venda com reserva de
usufruto.
 
Assim, para haver transferência de posse por constituto possessório, teria de haver uma
declaração de vontade, eventualmente até tácita, por força da qual as partes permitiam ao
vendedor ter a coisa, na qualidade de detentor. Não se assistindo a essa declaração de vontade e
não podendo o vendedor reter a coisa, ele seria possuidor. Sendo JAV objetivista, a vontade não
tem natureza constitutiva da posse. Na primeira fase do seu pensamento, o único sentido da
vontade era negativo: não confere posse, antes a retira em situações que normalmente seriam de
posse. Este entendimento quanto ao constituto possessório leva-o a atribuir à vontade relevância
constitutiva da posse no âmbito daquele instituto.
Nesta primeira construção, é por força de um ato de vontade que a posse se transmite- a
convenção ou o contrato que permite ao vendedor reter a coisa juntamente com a alienação.
Sem ele, não haveria transferência da posse. O próprio autor viria então a abandonar esta
construção.
 
A aceitação de que a transferência da posse opera solo consensu, ou seja, é adquirida sem a
necessidade de um ato material ou simbólico que a revele, tem tido alguma informação na
Jurisprudência. Por exemplo, o AC. Do TRPorto de 04/12/2007(Cristina Coelho).
Na doutrina, tem aparecido manifestações desta ideia, todavia, normalmente, em linha das
orientações subjetivistas da posse.
A estrutura básica do constituto possessório corresponderia à de dois negócios jurídicos
realizados em simultâneo. Um destinado a transferir para terceiro determinado direito real sobre
a coisa, o outro permitindo ao comprador continuar a deter o controlo material da coisa. Não
haveria, pois, por detrás desta afirmação, o reconhecimento segundo o qual o constituto
possessório e o artigo 1264.º consagrariam para a posse um efeito translativo imediato idêntico
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ao estabelecido pelo artigo 408.º para os direitos reais. A verdade é que, na medida da defesa de
uma compreensão subjetiva da posse, nada impede a possibilidade de o constituto possessório
operar a transmissão imediata da posse, com base no simples contrato, sem dependência de
qualquer convenção reconhecendo ao antigo titular a possibilidade de continuar a deter a coisa.
 
Defendendo PA uma conceção objetivista da posse, à luz desta, não se pode considerar estar o
artigo 1264.º para a posse como o artigo 408.º está para os direitos reais? A resposta afirmativa
é demonstrada por Oliveira Ascensão, com a qual PA concorda.
OA julga como pressupostos do constituto possessório:
 
i. A transmissão do direito real relativo à coisa a que a posse se refere;
ii. Pelo possuidor;
iii. Sem haver entrega;
iv. A não sujeição da transmissão do direito real a condição suspensiva
 
Preenchidos estes pressupostos, o adquirente do direito relativo à coisa adquire também a posse.
E acrescenta;: a transferência da posse é, pois, um mero efeito do negócio, como a do direito
real em geral.
 
Para PA, a razão pela qual se continua a sustentar não operar a transferência da posse como
simples efeito do contrato resulta de uma deficiente compressão da ligação histórica entre a CV,
a tradição e a posse. Historicamente, o modelo predominante foi o de que era a tradição, com a
investidura na posse, a operar a transmissão da propriedade. Com as construções racionalistas e
a consagração pelo CC/FR da eficácia real translativa da CV a tradição deixou de ser necessária
para a transmissão do direito real. Colocou-se então o problema de saber se em virtude do mero
contrato ou título não se devia verificar também a transferência da posse.
Manuel Rodrigues, no âmbito do CC de Seabra, referia alguns argumentos a favor da solução segundo a qual a posse
se deveria transferir com o contrato(creio não ser necessário saber). No entanto, Manuel Rodrigues defendida que a
posse não se transferia por mero efeito do contrato. Mas a consequência não era inevitável. Bastava para se chegar a
conclusão diversa distinguir diferentes categorias de posse consoante tivesse sido realizado apenas o contrato ou
executados os atos subsequentes aos quais o Direito dava relevância para efeitos de resolução dos conflitos de dupla
alienação.
Independentemente disso, estes preceitos não têm correspondência no atual do CC, tombando por terra os argumentos
daí extraídos.
 
Para PA, a transferência da posse, por constituto possessório, como mero efeito do contrato, é a
solução que melhor corresponde ao sentimento de justiça e razoabilidade que deve presidir a
todas as soluções jurídicas.
Ex: A vende o objeto x a B. Nessa venda, convenciona-se a possibilidade de B continuar como
detentor da coisa, passando A imediatamente a possuidor, segundo o entendimento tradicional
do constituto possessório. Assim, se no dia a seguir à venda, C se apropriar de x, A pode
recorrer às ações possessórias para defesa da sua posição jurídica. Todavia, se nada for
convencionado, ficando o A imediatamente obrigado a entregar a coisa a B, o A não seria
possuidor.
Em outros termos, quando a coisa pode ser retida pelo alienante, o adquirente torna-se possuidor
solu consensu. Quando não pode ser retida, não se torna possuidor, sendo necessário um ato
adicional de transferência da posse. Neste caso, o A não poderia recorrer às ações possessórias,
tendo de recorrer à ação revindicação, muito mais complicada e pesada.
Para PA, só uma pouca adequada compreensão da dimensão metodológica do direito poderia
justificar tal solução. O sentido do artigo 1264.º não pode deixar de ser o de que a transmissão
da posse opera com o contrato de transmissão. A referência do artigo 1264.º "a qualquer causa"
não tem o sentido de exigir que o antigo possuidor, para passar a detentor, tenha uma causa
jurídica atributiva do direito de conservar a coisa. O preceito estipula é que se o titular do direito
real, na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de se considerar transferida a
posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a detê-la. Qualquer que
seja a causa, o alienante que não transfira a coisa passa a detentor e o adquirente a possuidor.
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Como se articula esta solução com o artigo 1253.º/a)? Com vimos, MC apela para a teoria da
causa. Este artigo refletiria assim as situações em que o poder de facto foi adquirido em termos
tais que exista disposição afastando a posse, desde que a situação não fique abrangida pelo
âmbito das alíneas do mesmo preceito.
Quanto à objeção à construção de MC por ML, considerando esta esvaziar o sentido do preceito
legal, PA não vislumbra qual seria o problema de ser uma norma apenas remissiva. A chave está
na correta compreensão do constituto possessório.
MC tenta, numa primeira fase, articular o artigo 1264.º com o artigo 1253.º, sendo os requisitos
desta figura:
 
i. Um titular de direito real que esteja na posse da coisa;
ii. Que transmita esse direito a outrem;
iii. E que fique na detenção da coisa.
 
Nestas condições, sob influência do Direito e não da vontade, o transmissário do direito real
adquire a posse por constituto possessório, enquanto o transmitente passa a detentor. O
possuidor degrada-se em detentor porque, tendo transmitido o seu direito, passa a possuir em
nome de outrem, perdendo a posse nos termos do artigo 1253.º/c). Por outro lado, o adquirente
da posse recebe-a aparentemente sem exercer poderes materiais, porque esses poderes são
exercidos, em seu nome, pelo antigo possuidor e atual detentor repercutindo-se,
consequentemente, na sua esfera jurídica.
MC, num estudo mais tarde da posse, não volta a tentar esta articulação, parecendo remeter os
casos de constituo possessório para o artigo 1253.º/c) do CC, enquanto a alínea a) valeria apenas
para as situações já mencionadas.
Tal posição foi sufragada no Ac. Do STJ de 25/11/1999(Quirino Soares) e 13/03/2008(Pereira
da Silva).
 
PA defende a transferência da posse por mero efeito do contrato e do direito, mas não o recurso
ao artigo 1253.º/c). Seria voltar a fazer apelo à vontade, pelo menos ficcionada, do alienante no
sentido de que ele atuaria em nome do comprador. Não há que ficcionar tal situação.
Transferindo-se o direito real transmite-se, também, do mesmo passo, verificados os
pressupostos do constituto possessório, a posse. O alienante passa a detentor nos termos do
artigo 1253.º/a) => o sentido normativo deste preceito é justamente o de esclarecer a
irrelevância de qualquer vontade em direção contrária à de que resulta do artigo 1264.º. O artigo
1253.º/a) integra-se assim de forma coerente no sistema objetivo da posse. A ausência da
vontade ou intenção de agir como beneficiário do direito é aferida, não por referência à real
vontade real do sujeito concreto, mas antes normativamente por referência ao constituto
possessório. Normativamente, havendo constituto possessório, não há posse, mas sim detenção.
O sujeito é tido, independentemente da sua vontade real, como desprovido da intenção de
possuir. A ausência de vontade é pois normativa e não real. Não se averigua o estado subjetivo
dos agentes.
 
Os casos predominantes compreendidos no artigo 1253.º/a) são aqueles que, tendo havido
transferência do direito real por ato de vontade, por força do artigo 1264.º, necessariamente,
houve transferência da posse, com desconsideração da vontade em sentido inverso. Devemos
então enquadrar neste artigo o adquirente de um bem com reserva de propriedade. Temos uma
imputação direta de um corpus a sujeito diferente daquele que o exerce, por força do artigo
1253.º/a) do CC, não havendo atuação em nome de outrem.
Nos negócios translativos da propriedade, dependentes da autonomia privada, a eventual
vontade do alienante, o seu animus, é desconsiderado.
Hoje, JAV defende a posição de PA, sendo que este último a defende de 2008, desconsiderando
JAV as posições anteriores.
 
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Assim, uma compreensão objetiva da posse impede a CV de produzir como efeito, em regra, a
transferência da posse? Não impede. Ao invés, na perspetiva da PA, impõe-na como regra,
como evidenciam as posições de MC e OA. Só não será assim se o alienante não for ele próprio
possuidor.

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