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DIREITOS REAIS

Registo Predial, Posse, Propriedade e Compropriedade

Distinguir entre direitos reais como direitos subjectivos e como direito das coisas, este
constante do Livro III, art. 1251º e ss do CC.
ACESS~QO
Direitos reais de gozo - atribuem ao respectivo titular poderes de uso ou de fruição sobre uma
coisa: propriedade, usufruto, uso e habitação, direito de superfície e servidões prediais.
Direitos reais de garantia - caracterizam-se por atribuir ao seu titular uma situação de
preferência na realização de um crédito à custa do valor de certa coisa. São eles a consignação de
rendimentos, o penhor, a hipoteca, os privilégios creditórios e o direito de retenção.
Direitos reais de aquisição - atribuem ao respectivo titular o poder (potestativo) de, mediante o
seu exercício, adquirirem certo direito real sobre determinada coisa - 413º e 421º (contrato promessa
com eficácia real) e direitos de preferência legal (1409º, 1555º CC, 47º RAU e 1091.º CC - NRAU).

Na concepção clássica, o direito real é entendido como o poder directo e imediato sobre uma coisa.
De rejeitar, dado que os direitos reais envolvem, como todos os direitos subjectivos, uma relação entre pessoas,
não com uma coisa.

Segundo a concepção moderna ou personalista, na relação jurídica real existe um poder absoluto, que a todos
vincula, e a que corresponde, do lado passivo, o chamado dever geral de respeito, uma obrigação passiva universal. Ou, ao
menos, oponibilidade erga omnes, segundo a qual o direito absoluto se caracteriza pela possibilidade de o fazer valer
contra quem ameace interferir ou de facto interfira no seu exercício.

As teorias mistas concebem o direito real como o poder de exigir de todos os outros uma atitude de respeito pela
utilização da coisa em certos termos por parte do titular activo - M. Pinto.

Os direitos reais são absolutos, erga omnes: Se o pacto de preferência (414º e ss) tiver
eficácia meramente obrigacional, a venda da coisa por A a B, em violação do pacto de preferência
entre A e C, não é afectada por este incumprimento; a venda de A a B mantém-se, é válida e eficaz:
apenas poderá haver obrigação de A indemnizar C, por incumprimento do pacto.
Mas se o pacto tiver eficácia real - 421º - então a venda efectuada por A a B, em violação do
pacto, acabará por ver o seu efeito aquisitivo paralisado pelo direito de preferência de C, nos termos
do art. 1410º do CC. O direito de B cede perante a preferência real de C.
A natureza real do direito de preferência de C está aqui bem expressa na característica dos
direitos reais que é a absolutidade, traduzida na oponibilidade erga omnes.
Direito real é o poder jurídico absoluto, atribuído a uma pessoa determinada para a realização
de interesses jurídico-privados, mediante o aproveitamento imediato de utilidades de uma coisa
corpórea – art. 1302º e 1303º CC.

Direitos reais e direitos de crédito

A teoria clássica, atenta a concepção de direito real e de crédito por ela perfilhados, colocava
o acento tónico na diferente modalidade do bem sobre que recaía cada uma das correspondentes
situações jurídicas: coisas, num caso, prestações, no outro.

Para a doutrina moderna ou personalista ao direito real correspondia o dever geral de respeito,
enquanto ao direito de crédito se contrapunha um dever específico, imposto a pessoas determinadas
ou determináveis.

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Súmula: Os direitos reais têm natureza absoluta, no sentido de as faculdades conferidas ao
seu titular serem oponíveis erga omnes. Característica também existente nos direitos de
personalidade, mas naqueles verifica-se a inerência que se desenvolve na sequela e prevalência.

Inerência

significa que o interesse do titular do direito real é realizado por ele, mediante o
aproveitamento imediato de utilidades da própria coisa. E tem como corolário a inseparabilidade que
significa não apenas que o direito real não se concebe sem a coisa que tem por objecto, mas ainda
que aquela tem de existir, ser certa e determinada no momento da constituição do direito real - 1545º,
nº 1 - servidões prediais.
Sequela

É a possibilidade de o direito real ser exercido sobre a coisa que constitui seu objecto, mesmo
quando na posse ou detenção de outrem, acompanhando-a nas suas vicissitudes, onde quer que ela
se encontre.
Manifesta-se na acção de reivindicação - 1311º; na possibilidade de o credor hipotecário fazer
vender a coisa hipotecada (686º, hipoteca direito real de garantia), esteja ela no património do devedor
ou de terceiro; ineficácia em relação ao titular de acto (venda de coisa alheia, arrendamento - 1024º, nº
2) praticado por quem não tem para tanto legitimidade.

Limitações:
- constituição de posse sobre móveis a favor de terceiro de boa fé,
- inoponibilidade da invalidade a terceiros de boa fé - 291º
- e aquisição registal.
Prevalência

Significa prioridade dos direitos reais sobre todos os direitos de crédito e sobre todos os
direitos reais de constituição posterior; Só faz sentido quando houver incompatibilidade de direitos
sobre a mesma coisa.
Quando um direito real, mesmo de constituição posterior, conflitua com um direito de crédito,
aquele tem mais-valia e prevalece sobre este, a menos que se trate de uma limitação aceite pelo titular
do direito real que por ele deva ser respeitada. Assim,
Se A se obriga a emprestar X a B, não pode invocar a prevalência do direito real para se
libertar da obrigação, que deve respeitar. Se, porém, entretanto, A vender X a C, este não está
obrigado a emprestá-la a B. Neste sentido, o direito real prevalece sobre o de crédito.

Tipicidade

Nos direitos reais vigora o princípio da tipicidade ou do numerus clausus - 1306º - que impede
os particulares de criarem, com eficácia real, situações jurídicas que não estejam como tal previstas na
lei. Toda a restrição resultante de negócio jurídico que não esteja nestas condições, tem natureza
obrigacional - 1306º, nº 1, in fine. A lei converte esse negócio, independentemente dos requisitos
exigidos no art. 293º.
Publicidade

Espontânea - a que, como os actos de posse, resulta da simples realidade das coisas, sem
mais; funciona para móveis ou imóveis, mas é essencialmente para aqueles;

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Provocada - a que deriva de uma actuação intencionalmente dirigida a dar a conhecer a
terceiros uma certa situação jurídica e que se faz mediante a inscrição de certos factos em livros ou
registos próprios, que são guardados ou conservados por um serviço público, as Conservatórias. Tem
por objecto imóveis ou móveis registáveis.

A publicidade espontânea é inerente à posse (1251º e 1262º) e dela retira a lei efeitos
importantes, nomeadamente a presunção da titularidade do direito a que se dirigem os actos materiais
de posse - 1268º, nº 1 - e defesa dessa situação de posse - 1278º, nº 1 - presunção juris tantum pois é
permitida ao esbulhador ou perturbador a prova da titularidade do direito possuído. A presunção
possessória e a correspondente tutela cedem sempre que o possuidor seja convencido na questão de
titularidade do direito a que respeita a posse - 1278º, nº 1, 2ª parte.

Não vigora no direito português o princípio posse vale título, como resulta do disposto no art. 1301º do CC1,
embora fique a cargo do proprietário a obrigação de restituir ao comprador de boa fé o preço por ele pago, com direito de
regresso contra o autor do prejuízo.
A razão de ser do artigo 1301º do Código Civil radica na protecção do comércio, pois seria inadmissível que o
comerciante vendedor tivesse necessidade de provar ou garantir que as coisas por si vendidas são realmente suas ou que
o comprador se preocupasse com a eventualidade de não pertencerem ao vendedor as coisas, próprias do seu comércio.
No entanto, a protecção concedida cessa se a coisa saiu de posse do proprietário reivindicante por meios
fraudulentos, como acontece no caso de furto.
Por desnecessidade de protecção do comércio, o regime previsto no artigo 1301º do Código Civil não é aplicável
às coisas móveis sujeitas a registo - BMJ 315-296 e Ac. STJ de 9.10.2008 (Ex.mo Cons.º S. Costa) no P.º 08B2720.

Negócios jurídicos com eficácia real - A constituição ou transferência de direitos reais sobre
coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato. É a regra no nosso direito - 408º, nº 1, 879º, a),
954º, a) e 1317º, a).
Negócios reais quoad constitutionem - a traditio é elemento constitutivo destes negócios, de
que são exemplos o penhor (669º, nº 1), doação consensual de coisa móvel (art. 947.°, nº 2) que não
depende de formalidade alguma quando acompanhada da tradição da coisa doada; se o não for só
pode ser feita por escrito (o escrito posterior não tem efeitos retroactivos, valendo apenas como
renovação da celebração de negócio nulo - Col. 99-IV-284), do mútuo (art. 1142º) e do depósito
irregular (art.ºs 1205º e 1206°).
A eficácia constitutiva da posse, como fonte de aquisição de direitos reais, circunscreve-se à
usucapião, embora seja importante como uma primeira linha de defesa do direito possuído.

Publicidade registral

O art 1º do C. R. Predial - o registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à


situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário - não nos dá
ideia exacta da importância do registo que se não limita a esta apregoada função de publicidade. O
registo tem implicações substantivas que vão muito para além desta função.

O registo predial português é público - está a cargo de serviços públicos e real (não pessoal) -
assenta num acto de registo que respeita aos prédios em si mesmos e não às pessoas que sejam
titulares de direitos que os tenham por objecto. É obrigatório – art. 8ºA e 8ºD.

Os actos de registo que podem ser, quanto à sua eficácia, definitivos ou provisórios, assentam
na requisição de registo, documento dirigido à Conservatória em que se formula o pedido do registo,

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- O que exigir de terceiro coisa por este comprada, de boa fé, a comerciante que negoceie em coisa
do mesmo ou semelhante género é obrigado a restituir o preço que o adquirente tiver dado por ela,
mas goza do direito de regresso contra aquele que culposamente deu causa ao prejuízo.

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acompanhado dos documentos que comprovam o facto a registar e que servem de título do acto a
registar.

Além de suportes documentais - fichas e diário em suporte informático (22º) - há, para efeitos
de busca e consulta, ficheiros reais e pessoais (24º).

No Diário registam-se, por ordem cronológica, os pedidos de registo e respectivos documentos


(22º, al. a) - a apresentação - sendo fundamental respeitar a ordem de entrada pois é a ordem das
apresentações que determina a prioridade do registo - 6º, nº 1, CRP – salvo as inscrições hipotecárias
da mesma data – 6º, n.º 2 – que concorrem entre si na proporção dos respectivos créditos.

A descrição é o retrato físico, económico e fiscal do prédio - 79º e 82º.


A descrição é feita numa ficha, por freguesia e em cada freguesia com um número de ordem
privativo, constituído por cinco algarismos, a que se segue a data da apresentação.
O prédio nº 20 duma freguesia, com apresentação pedida em 10 de Março de 1995, será
descrito na ficha nº 00020/100395 - 82º, nº 1, a).
Os averbamentos às descrições servem para alterar, completar ou rectificar os elementos
delas constantes, devendo neles ser feitas as menções relativas ao seu fim. Os averbamentos, além
do seu número privativo, devem ter também o número e data da apresentação, quando dela
dependam (cfr. art. 88º, nº 1, e 89º do C. R. Predial).

A inscrição revela a situação jurídica do prédio - 91º, nº 1. Por isso respeitam sempre a uma
descrição genérica ou subordinada - nº 2.

As inscrições são pedidas como provisórias por natureza nos casos dos n.ºs 1 e 2 do art. 92º
do CRP, com períodos de vigência diferentes – n.ºs 3 a 7 do art. 92.º

A identificação da inscrição fazia-se nos termos da al. a) do n.º 1 do art. 93º, mediante uma
letra, seguida do número de ordem correspondente e o número e data da apresentação. As letras
eram:
G - para inscrição da aquisição ou reconhecimento de propriedade;
C- " " de hipoteca e
F - para as restantes.

Esta al. a) do n.º 1 do art. 93º foi revogada pelo Dec-lei n.º 116/2008.

Os averbamentos à inscrição servem para completar, restringir ou actualizar uma inscrição já


existente, devendo ser lançados na inscrição a que respeitam (n.os 1 e 4 do art. 100º).
O registo pode ser definitivo ou provisório, sendo este por natureza ou por dúvidas (69º -
recusa, 92 e 70º).
Caducidade das inscrições provisórias – prazos nas condições do art. 92º, n.ºs 3 a 11.

Princípios gerais

Princípio da Instância - Nos termos do art. 41º o registo efectua-se mediante pedido de quem
tenha legitimidade, salvo os casos de oficiosidade previstos na lei.
Legitimidade registral - 36º a 38º.
Princípio da legalidade - 68º - actividade fiscalizadora do Conservador, com possibilidade de
recusa - 69º.

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Princípio da tipicidade - não sendo, como parece não ser, taxativa a enumeração dos actos
sujeitos a registo, como constam dos art. 2º e 3º, a tipicidade será apenas indirecta.
Principio do trato sucessivo - 34º: o registo definitivo de aquisição de direitos ou de
constituição de encargos por negócio jurídico só pode ter lugar se os bens que tais actos têm por
objecto estiverem inscritos em nome de quem os transmite ou onera. Por aplicação deste princípio
podemos apurar a história jurídica desse bem, desde a primeira inscrição até ao momento da consulta.
Justificação - 116º e ss.
AUJ do STJ (Ex.mo Cons.º Azevedo Ramos) de 12.4.2007, no Pr.º 07A2464, REVISTA AMPLIADA

I – Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos arts 116º, nº1, do Código do Registo
Predial e 89º e 101º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito
de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a
prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7º do
Código do Registo Predial.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA e marido BB, CC e mulher DD instauraram a presente acção de impugnação de justificação notarial contra EE
e mulher FF, pedindo :
a) Se considere impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura de 14 de Fevereiro de
1996, referente à invocada aquisição pelos réus, por usucapião, do prédio que identificam no art. 1º da petição inicial ;
b) – Se declare nula e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, por forma a que os réus
não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado e objecto da presente impugnação ;
c) - Se ordene o cancelamento de quaisquer registos operados com base no documento aqui impugnado ;
d) – Se declare que o prédio identificado no art. 1º da petição pertence à herança aberta e ilíquida de GG e
mulher HH, avós do réu marido .

Para tanto, os autores alegaram, em síntese:


São falsas as declarações que os réus produziram na escritura de justificação, nomeadamente, quanto à data do
falecimento do anterior proprietário do prédio a que a escritura respeita, bem como sobre a existência da invocada doação
verbal do imóvel aos réus e que estes tenham entrado na sua posse na data que afirmam e o tenham adquirido por
usucapião .
O prédio pertence à herança dos indicados GG e HH, de quem os autores são herdeiros, por serem seus filhos .

Os réus contestaram.
Por excepção, invocaram a caducidade do direito de acção e, por impugnação, contradisseram os factos
invocados pelos autores.
Além disso, deduziram reconvenção, pedindo:
a) – Sejam os réus declarados únicos donos e legítimos proprietários e possuidores do prédio identificado no art.
1º da petição inicial, objecto da justificação notarial, por o terem adquirido por usucapião.
b) - Subsidiariamente, seja reconhecido o direito de propriedade dos réus sobre o mesmo prédio, por via da
aplicação do instituto da acessão industrial imobiliária .

Houve réplica dos autores .

No despacho saneador, foi deliberado :


1- Admitir a reconvenção, com base no disposto na al. c), do nº2, do art. 274, do C.P.C., com a argumentação de
que, independentemente da natureza jurídica da acção de impugnação de justificação notarial, em geral considerada como
acção de apreciação negativa, e da questão do ónus da prova dos factos incluídos na escritura de justificação, o certo é
que toda a controvérsia respeita ao direito invocado pelo justificante, que aqui é o direito de propriedade sobre o prédio
rústico, tendo os autores formulado também o pedido de declaração de que esse direito pertence à herança em que são
interessados .
2- Julgar improcedente a excepção da caducidade da acção .

Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença, que decidiu :


1- Julgar a acção improcedente e absolver os réus dos pedidos .

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2- Julgar procedente o pedido reconvencional principal e, consequentemente, declarar os réus únicos e legítimos
proprietários e possuidores do prédio objecto da justificação notarial de 14-2-96, identificado no art. 1º da petição inicial .

Apelaram os autores, com êxito, pois a Relação de Guimarães, através do seu Acórdão de 6-3-07, sentenciou
nos seguintes termos ( fls 410):
“ 1- Julga-se procedente a apelação.
3- Revoga-se a sentença, atendendo-se ao peticionado pelos recorrentes”.

Agora, são os réus que pedem revista, produzindo alegações, onde resumidamente concluem :
1- Era aos autores que incumbia, diversamente do decidido, alegar e provar factos susceptíveis de ilidir a
presunção do art. 7º do Cód. Reg. Predial de que os réus beneficiavam, oriunda do facto de terem efectuado o registo do
seu direito, com base na escritura de justificação notarial, o que os autores não lograram fazer, pelo que o Acórdão
recorrido deve ser revogado e substituído por outro de sentido diverso.
2 – Da matéria de facto dada como provada resulta que a posse dos réus reveste os seus elementos constitutivos
( corpus e animus) e que se iniciou, pelo menos, há mais de 15 anos desde a propositura da acção, pelo que deverá ser
atendida a aquisição do direito de propriedade pelos réus, através da usucapião .
3 – A acção em causa é uma acção de simples apreciação negativa, mas os autores também peticionam que seja
declarado que o prédio pertence à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito dos indicados GG e mulher HH, pelo que,
face às regras do ónus da prova, pelo menos este pedido de apreciação positiva deve ser julgado improcedente .
4 – No Acórdão recorrido existe manifesta contradição entre a fundamentação e a parte decisória, por não ser
reconhecido aos réus o direito inerente à presunção derivada do registo predial e por ser reconhecido o direito de
propriedade da mencionada herança sobre o mesmo imóvel .
5 - Consideram violados os arts 7º do C. Reg. Predial, 4º do C.P.C. e 342º, 343º, 1252º, nº2, 1296º e 1253º, al. b),
do C.C.

Os autores contra-alegaram em defesa do julgado .

Por iniciativa do anterior Ex.mo Conselheiro Relator, veio a ser determinado pelo Ex.mo Sr. Presidente deste
Supremo Tribunal de Justiça que a revista fosse julgada de forma ampliada, com vista à uniformização de jurisprudência,
nos termos dos arts. 732-A e 732-B do C.P.C.

Foi emitido parecer pelo Ex-mo Procurador Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal, no qual foi defendida a
concessão da revista pedida, com uniformização da jurisprudência no sentido seguinte:
“ Na acção de impugnação de facto justificado notarialmente e inscrito definitivamente no registo, incumbe ao
autor ilidir, mediante prova em contrário, a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos
termos em que o registo o define, face às disposições conjugadas dos arts 7º, 8º, 10º e 116º, nº1, do Cód. Reg. Predial,
344º, nº1 e 350º do Cód. Civil”.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

A Relação considerou provados os factos seguintes :

1- Em 14-2-96, no Cartório Notarial de Vila Nova de Cerveira, os réus EE e mulher outorgaram a escritura de
justificação notarial, cuja fotocópia constitui documento de fls 10 e segs, para efeito de registo de aquisição, por usucapião,
do prédio rústico, composto por terreno de cultivo, denominado Calves, sito no lugar de Crastos, da freguesia de S. Pedro
da Torre, da concelho de Valença, inscrito na matriz sob o art. 4776, na qual intervieram como “primeiros outorgantes” os
ora réus e como “segundos outorgantes” II, JJ e LL, donde consta o seguinte :
“ Pelos primeiros outorgantes foi dito que são donos e legítimos possuidores, com exclusão de outrem, do prédio
rústico composto por terreno de cultivo, denominado de Calves, com a área de 2.600m2, sito na lugar de Crastos, freguesia
de S. Pedro da Torre, inscrito na matriz sob o art. 4776 ....
Que o identificado prédio foi adquirido por doação feita pelo avô do justificante marido, GG, entretanto já falecido,
no ano de 1974, sem que no entanto ficassem a dispor de título formal que lhes permita o respectivo registo na
Conservatória do Registo Predial; mas desde logo entraram na posse e fruição do prédio, em nome próprio, posse que
assim detém há muito mais de vinte anos, sem interrupção ou ocultação de quem quer que seja .
Que essa posse foi adquirida sem violência e mantida sem oposição, ostensivamente, com conhecimento de toda
a gente e com aproveitamento de todas as utilidades do prédio, agindo sempre por forma correspondente ao exercício do
direito de propriedade, quer usufruindo como tal o imóvel, quer suportando os respectivos encargos .

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Que esta posse em nome próprio, pacífica, contínua e pública, conduziu à aquisição do imóvel, por usucapião,
que invocam, justificando o direito de propriedade, para o efeito de registo, dado que esta forma de aquisição não pode ser
comprovada por qualquer outro título formal extrajudicial .
Pelos segundos outorgantes foi dito que confirmam as declarações que antecedem, por corresponderem
inteiramente à verdade “ .
2 – O extracto dessa escritura foi publicada no Jornal “ Notícias de Valença “, de 10-3-96 .
3 – A aquisição do referido prédio, por usucapião, foi inscrita no registo predial, a favor dos réus, em 23-5-96.
4 – GG, avô do réu, faleceu em 7-6-82, no estado de casado com HH, que veio a falecer em 1-4-89 .
5 – Os autores AA e CC são filhos dos falecidos GG e HH .
6 – O prédio referido no anterior nº1 pertenceu ao casal dos referidos GG e HH .
7 – No inventário nº 279/99, instaurado no Tribunal Judicial de Valença, para partilha das heranças dos
mencionados GG e HH, em que foi cabeça de casal MM ( filha daqueles e mãe do réu), não foi relacionado o prédio,
mencionado no nº1 ; não houve reclamação contra a relação de bens ; os bens foram adjudicados, por acordo, em
conferência de interessados de 28-2-02 ; os autores não estiveram presentes, mas estiveram representados, nessa
conferência .
8 - A partilha, nesse inventário, foi homologada por sentença de 24-5-02, transitada em julgado .
9 – No processo de imposto sucessório por óbito do indicado GG, foi apresentada a relação de bens de fls 20 a
30, onde o prédio em questão foi incluído sob a verba nº 25 .
10 – Pelo menos a partir de 1983, o réu e, depois, ele e sua mulher, passaram a cultivar e a colher os frutos do
prédio, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém .
11 – Pelo menos a partir de 1983, os réus iniciaram a construção da casa de habitação no terreno do questionado
prédio, tendo essa construção se prolongado por vários anos .
12 – A parte do prédio que não se encontra fisicamente ocupada pela casa é utilizada acessoriamente a esta,
nomeadamente, sendo utilizado parte para cultivo de horta, fruteiras e vinha e parte para jardim .
13 – A referida casa e terreno formam uma unidade económica, limitada e vedada, e a separação deles
depreciaria quer a casa, quer o logradouro.
14 – O valor da casa de habitação é de 132.480 euros e o valor do terreno referido no nº1 é de 34.036 euros .
15 – Os autores residem no Brasil e no Canadá e vêm a Portugal por períodos muito curtos de tempo .
16 – A construção ocupada pelos réus, considerando a habitação e o anexo, ocupa a área de 153,96 m2.
17 – É de 880 m2 a área do logradouro, considerando como tal a área circundante ao edifício e que se encontra
pavimentada, ou ajardinada, ou destinada ao depósito de lenhas, paletes e outros objectos, bem como à circulação e onde
se encontra implantada uma construção amovível, em chapa ondulada.

18- A presente acção foi proposta em 6-9-02, conforme carimbo aposto na petição inicial .

Vejamos agora o mérito do recurso .

1.
Sustentam os recorrentes que tendo efectuado o registo do questionado prédio, com base numa escritura de
justificação notarial de aquisição do respectivo direito de propriedade, por usucapião, beneficiam da presunção de
titularidade do direito prevista no art. 7º do Cód. Reg. Predial .
Esta é uma questão jurídica controvertida, que a primeira instância decidiu no sentido favorável aos réus, ora
recorrentes, mas que a Relação de Guimarães resolveu em sentido contrário, fazendo proceder a pretensão dos autores
em desfavor dos réus, que têm o prédio registado a seu favor .
A jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça sobre esta questão de direito tem-se mostrado dividida .
No sentido defendido pelos recorrentes, pronunciaram-se, entre outros, os Acórdãos deste S.T.J. de 19-3-02,
proc. 02A197; de 5-11-02, proc. 02A900; de 3-7-03, proc. 03B2066 ; de 29-6-05, proc. 05B2072 ; de 22-11-05, proc. 2485/
o5 ; de 11-7-06, proc. 06A2105 ; de 11-1-07, proc. 4316/06 ; de 8-2-07, proc. 2586/06 e de 15-5-07, proc. 07A1273.
Em sentido contrário, decidiram também, entre outros, os Acórdãos de 3-3-98, proc. 914/97 ; de 11-4-00, proc.
00A248; de 24-6-04, proc. 03B3843; de 25-10-05, proc. 05A2709; de 21-2-06, proc. 06A073; de 14-11-06, proc. 06A3486.
Daí a necessidade de uniformização da jurisprudência .

2.

No caso dos autos, trata-se de uma escritura de justificação notarial para estabelecimento de trato sucessivo no
registo predial, prevista no art. 116º, nº1, do Cód. Reg. Predial e nos arts 89º, 96º, nº1 e 101º do Cód. do Notariado, que
dispõem o seguinte :

Art. 116º, nº1, do C.R.P. :

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“O adquirente que não disponha de documento para prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante
escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo”.

Art. 89º do Cód. do Not.


“1- A justificação para efeitos do nº1 do art. 116º do Código do Registo Predial consiste na declaração, feita pelo
interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua
aquisição e referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais .
2 – Quando for alegada a usucapião, baseada em posse não titulada, devem mencionar-se expressamente as
circunstâncias de facto que determinam o início da posse, bem como as que consubstanciam e caracterizam a posse
geradora da usucapião “.

Art. 96º, nº 1, do Cód. do Not.


“As declarações prestadas pelo justificante são confirmadas por três declarantes” .

Art. 101º do Cód. do Not.


“1- Se algum interessado impugnar em juízo o facto justificado deve requerer simultaneamente ao tribunal a
imediata comunicação ao notário da pendência da acção .
2- Só podem ser passadas certidões de escritura de justificação decorridos 30 dias sobre a data em que o
extracto for publicado, se dentro desse prazo não for recebida comunicação de pendência da impugnação .
3 – O disposto no número anterior não prejudica a passagem de certidão para efeito de impugnação .
4 – Em caso de impugnação, as certidões só podem ser passadas depois de averbada a decisão definitiva da
acção .
5...”

Tanto basta para se evidenciar que a justificação notarial é um expediente técnico simplificado, um processo
anormal de titulação (preâmbulo do dec-lei nº 40.603, de 18-5-56), processo esse que todavia foi sucessivamente ampliado
desde o advento do registo predial obrigatório, iniciado com a justificação extrajudicial de direitos prevista na Lei nº 2049,
de 6 de Agosto de 1951.
A evolução legislativa foi caracterizada pelo reforço da tutela da fé pública registral, assente no princípio da
legitimação de direitos sobre imóveis titulados judicial ou extrajudicialmente.
Como escreve Borges Araújo (C/ colaboração de Albino Matos – Prática Notarial, 4ª ed. pág. 339) “ na génese do
sistema em que assenta a justificação notarial está o principio do trato sucessivo .
Partindo da ideia de que, respeitando este princípio, se poderia criar um documento que substituísse, para efeitos
de registo, títulos faltosos, criou-se um sistema em que nos aparece a nova escritura, de natureza excepcional, para apoiar
e servir as necessidades do registo obrigatório, que se pretendia estabelecer.
O novo título foi buscar ao princípio do trato sucessivo a sua razão de ser, servindo não só o registo obrigatório
como o registo predial em geral, ao possibilitar registos que de outro modo seriam impossíveis “ .
Mas a escritura de justificação notarial não oferece cabais garantias de segurança e de correspondência com a
realidade, potenciando, mesmo, a sua utilização fraudulenta e permitindo que o justificante dela se sirva para titular direitos
que não possui, com lesão de direitos de terceiros.
Efectivamente, trata-se de uma forma especial de titular direitos sobre imóveis, para efeito de descrição na
Conservatória do Registo Predial, baseada em declarações dos próprios interessados, embora confirmadas por três
declarantes, em que a fraude é possível e simples de executar.
A justificação notarial não constitui acto translativo, pressupondo sempre, no caso de invocação de usucapião,
uma sequência de actos a ela conducentes, que podem ser impugnados, antes ou depois de ser efectuado o registo, com
base naquela escritura .
É que a usucapião constitui o fundamento primário dos direitos reais na nossa ordem jurídica, não podendo
esquecer-se que a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião (Oliveira Ascensão,
Efeitos Substantivos do Registo Predial na Ordem Jurídica Portuguesa, ROA, Ano 34, pág. 43/46) .
E o art. 101º, nº 1, do Cód. do Notariado, não fixa qualquer prazo para propositura da acção de impugnação do
facto justificado.
O facto comprovado pelo registo da escritura de justificação é impugnável, nos termos gerais do art. 8º, nº 1, do
Cód. Reg. Predial, pelo que deve ser pedido o cancelamento do registo com a impugnação do facto justificado.

3.

Tem sido entendido, pela jurisprudência deste Supremo Tribunal, que a acção de impugnação de escritura de
justificação notarial, prevista no art. 116, nº 1, do Cód. Reg. Predial, na sua pureza, se apresenta como uma acção de
simples apreciação negativa - art. 4º, nº2, al. a), do C.P.C.

8
Nas acções de simples apreciação ou declaração negativa, incumbe ao réu a prova dos factos constitutivos do
direito que se arroga – art. 343º, nº1, do C.C.
No caso concreto, não se trata de uma pura acção de simples apreciação negativa, pois os autores, para além de
formularem, nas alíneas a), b) e c) da parte conclusiva do petitório, pedidos declarativos de apreciação negativa, cuja prova
incumbe aos réus (art. 343º, nº 1), deduzem também, na alínea d), um pedido declarativo de apreciação positiva, ou seja,
que se declare que o ajuizado prédio pertence à herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de GG e mulher HH, cuja prova
já pertence aos autores (art. 342º, nº 1).
Atentando, aqui e agora, apenas nos pedidos declarativos de apreciação negativa, dir-se-á que os réus, na
escritura de justificação notarial, se dizem donos do prédio lá identificado, justificando a sua aquisição por usucapião.
Já vimos que, sendo os réus quem afirmam a existência desse direito, lhes cabe a prova dos respectivos factos
constitutivos.
Mas, nessa situação, os réus não podem beneficiar da presunção derivada do registo do prédio a que
procederam a seu favor, na Conservatória, nos termos do art. 7º do Cód. Reg. Predial, segundo a qual o registo definitivo
constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
É que o registo foi feito exactamente com base na escritura de justificação, agora impugnada.
A impugnação da escritura de justificação significa a impugnação dos factos com base nos quais foi celebrado o
registo .
A impugnação desses factos, traduzida na alegação da sua não verificação ou da sua não correspondência com
a realidade, não pode deixar de abalar a credibilidade do registo e a sua eficácia prevista no art. 7º do Cód. Reg. Predial,
que é precisamente a presunção de que existe um direito cuja existência é posta em causa através da presente acção.
Daí que, impugnada a escritura com base na qual foi lavrado o registo, por impugnado também se tem de haver
esse mesmo registo, não podendo valer contra o impugnante a referida presunção, que a lei concede no pressuposto da
existência do direito registado.
A escritura de justificação notarial, com as declarações que nela foram exaradas, apenas vale para efeito de
descrição do prédio na Conservatória do Registo Predial, se não vier a ser impugnada – art. 101º do Cód. do Notariado .
Como o registo foi feito com base em tal escritura de justificação, aqui impugnada, e precisamente porque o foi,
não pode ele constituir qualquer presunção de que o direito existe, já que é este mesmo direito cuja existência se pretende
apurar nesta acção.
O princípio da boa fé registral não pode, só por si, justificar a solução oposta, sobretudo porque a escritura de
justificação é um meio de suprir a falta de um título para registo.
Acresce que, não estando a acção sujeita a qualquer prazo de caducidade (Ac. S.T.J. de 15-6-94, Col. Ac. S.T.J.,
II, 2º, 140), é totalmente indiferente que já tenha ou não sido lavrado o registo com base na escritura de justificação.
Se o registo já se encontrar lavrado (como é o caso), o autor impugnante apenas terá de pedir o seu
cancelamento – art. 8º, nº1, do C. Reg. Predial.
O que tudo permite concluir, como se conclui, que o direito de propriedade afirmado na escritura de justificação
notarial e, com base nela, levado ao registo, passou a ser incerto com a impugnação apresentada, daí decorrendo que os
réus não possam beneficiar da aludida presunção do art. 7º do Cód. Reg. Predial.

4.
Afastado que os réus se possam prevalecer da eficácia da presunção legal do registo, importa agora apreciar se
lograram fazer prova da aquisição do questionado prédio, através da usucapião, nos termos do art. 1287º do C.C. .
A verificação da usucapião depende de dois elementos: a posse e o decurso de certo período de tempo, variável
conforme a natureza móvel ou imóvel da coisa .
Para conduzir à usucapião, a posse tem sempre de revestir duas características: ser pública e pacífica .
Os restantes caracteres ( boa ou má fé, titulada ou não) influem apenas no prazo.
Por sua vez, a posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do
direito de propriedade ou de outro direito real – art. 1251º.
Necessita de dois elementos : o corpus e o animus .
É que o nosso legislador não aceitou a concepção objectiva da posse, consagrada em alguns códigos
estrangeiros, segundo a qual a posse sobre uma coisa se adquire pela mera obtenção do poder de facto .
Segundo a nossa lei, é necessário algo mais, ou seja, é preciso que haja, da parte do detentor, a intenção
( animus ) de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa, e não um mero poder de facto sobre ela .
Pois bem .
Está admitido, por acordo das partes, que o questionado prédio rústico pertenceu ao casal dos falecidos GG e
mulher HH, integrando o respectivo património ( alínea F) da peça dos factos assentes ) .
A invocada posse dos réus sobre o mesmo prédio não é titulada, por estes não terem logrado provar a pretensa
doação, nem qualquer outro modo legítimo de adquirir – art. 1259º do C.C.
Como não há registo do título, nem da mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a
posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má fé – art. 1296º do mesmo diploma.

9
No caso concreto, os pretensos actos de posse só se iniciaram a partir do ano de 1983.
Até à data da propositura desta acção, em 6-9-02, decorreram apenas dezanove anos, oito meses e cinco dias,
sendo certo que os réus foram citados em 19-9-02, por cartas registadas com aviso de recepção ( fls 50 e 51), pelo que a
interrupção do prazo da usucapião operou no termo do quinto dia após a data da entrada em juízo da acção, ou seja,
quando apenas tinham decorrido dezanove anos, oito meses e dez dias – arts. 323º, nºs 1 e 2 e 1292º, do C. C.
Provou-se o corpus da posse, por se ter apurado que, pelo menos partir de 1983, primeiro, o réu e, depois, ele e
sua mulher, passaram a cultivar e a colher os frutos do prédio, de forma ininterrupta, à vista de toda a gente e sem
oposição de ninguém, e ainda que, também pelo menos a partir de 1983, os réus iniciaram a construção de uma casa de
habitação no terreno do questionado prédio, que se prolongou por vários anos .
Embora não tivesse resultado provado que os réus praticassem tais actos com ânimo de exercerem o direito de
propriedade sobre o mesmo prédio, como tinham invocado (resposta restritiva ao quesito 9º da base instrutória), sempre se
poderá afirmar que subsiste uma situação de dúvida, por também não se ter apurado que tenham agido como simples
detentores (Anotação do Prof. Henrique Mesquita ao Acordão do S.T.J. de 9-1-97, R.L.J. Ano 132 - pág. 23 e segs) .
Assim, é de presumir que os réus agiram como verdadeiros possuidores, nos termos do art. 1252º, nº2, do C.C.,
pois, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto .
Mas não se provou a boa fé dos réus ( art. 1260º, nº1), por não terem demonstrado que só tivessem procedido à
construção da casa naquele terreno, por estarem convencidos que actuavam legitimamente, como tinham alegado
(resposta negativa ao quesito 16º) .

E, como a posse é não titulada, também se presume de má fé – art. 1260º, nº2.


O que tudo significa que, não estando demonstrada a boa fé, era necessário que a posse perdurasse pelo prazo
de 20 anos para que os réus pudessem adquirir o prédio, por usucapião, prazo esse que, já vimos, não ter decorrido.
Em face do exposto, os réus não podem ter adquirido, por usucapião, o questionado prédio, identificado na
escritura de justificação notarial, como invocam .

5.
Tanto basta para conduzir à procedência dos anteriores pedidos dos autores, atrás identificados sob as alíneas
a), b) e c) , face á regra do ónus da prova prevista no citado art. 343º, nº1, do C.C.
Apenas com uma ressalva .
O autor pede se declare nula a escritura de justificação notarial de 14 de Fevereiro de 1996, com fundamento na
falsidade das afirmações justificatórias constantes da mesma escritura.
Ora, a falsidade das afirmações dos outorgantes não figura entre as causas típicas de nulidade dos actos
notariais, previstas nos arts 70º e 71º do Código do Notariado .
Do que se trata é antes da ineficácia de tal escritura, declarando-se que não produz efeitos, por os réus não
terem adquirido o prédio por usucapião .
Tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em vez da sua
nulidade, o tribunal deve corrigir, oficiosamente, tal erro, e declarar tal ineficácia da escritura de justificação notarial, como
permitido pelo art. 664º do C.P.C. ( Acordão uniformizador de jurisprudência nº 3/01, de 23-1-01, publicado no Diário da
República, 1ª Série A, de 9-2-01) .

6.
Resta analisar o pedido declarativo de apreciação positiva, deduzido sob alínea d), através do qual os autores
pretendem que se declare que o prédio identificado no art. 1º da petição inicial pertence à herança ilíquida e indivisa aberta
por óbito de GG e mulher HH .
Tal prédio vem aí identificado do seguinte modo :
“ Prédio rústico composto por terreno de cultivo, denominado Calves, com a área de 2.600 m2, sito no lugar de
Crastos, freguesia de S. Pedro da Torre, do concelho de Valença, a confrontar do norte com ...., do sul com estrada
camarária, do nascente com ... e do poente com ....., não descrito na Conservatória do Registo Predial, mas inscrito na
respectiva matriz, em nome do justificante marido, sob o 4776, com o valor patrimonial de 3.140$00, a que atribuem o valor
de oitocentos mil escudos “ .
Já vimos que incumbe aos autores o ónus da prova deste pedido.
Ora, está provada a pertinência do referido prédio ao património dos falecidos GG e mulher ( pais e sogros dos
autores e avós do réu ) e ainda que os autores são herdeiros daqueles, factos constitutivos do direito dos mesmos autores .
Facto extintivo do direito dos autores e constitutivo do direito dos réus seria a válida transmissão desse direito de
propriedade sobre o aludido prédio ou a aquisição dele por usucapião .
Os réus não fizeram prova de qualquer negócio translativo válido, nem tão pouco da aquisição do prédio, por
usucapião .

10
Com a morte do GG e mulher HH abriu-se a respectiva sucessão, que é o chamamento de uma ou mais pessoas
à titularidade das relações jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida e a consequente devolução dos bens que a esta
pertenciam – art. 2024º do C.C.

Enquanto não é feita a partilha, os bens integram a herança indivisa - art. 2101º.
Como ficou provado que o prédio foi incluído na relação de bens apresentada no processo de imposto sucessório
por óbito do indicado GG e que o mesmo imóvel pertenceu ao património do referido casal do GG e mulher, por morte
destes titulares do direito de propriedade, a respectiva posse continuou nos seus sucessores ( entre os quais se contam os
autores ) desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa, nos termos do art. 1255º, nº1.
Tal como observam Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao referido preceito ( Cód. Civil Anotado, Vol.
III, 2º ed., pág. 13) , “ continuando a posse do de cujus no sucessor, há que admitir, como consequência necessária, que o
sucessor não precisa de praticar qualquer acto material de apreensão ou de utilização da coisa, como expressamente se
declara neste artigo e se repete na parte final do nº1, do art. 2050º, para ser havido para todos os efeitos legais, como
possuidor ; ele pode inclusivamente ignorar a existência da posse . Em segundo lugar, a posse não é nova . A posse
continua a ser a antiga com todos os seus caracteres ...” .
Essa posse também faz presumir o direito de propriedade na mencionada herança – art. 1268º, nº 1.
E, por gozar dessa presunção legal, está até dispensada a prova do facto a que ela conduz – art. 350º, nº 1.
De resto, está aceite, pelos próprios réus, a pertinência do prédio ao património do casal dos falecidos GG e
mulher, o que afasta qualquer presunção de titularidade do direito de propriedade, a favor dos mesmos réus, com base na
sua posse, desde 1983.
Vem pedido que se declare que o prédio do artigo 1º da petição pertence à herança aberta e ilíquida do GG e
mulher .
No entanto, verifica-se que, actualmente, já se procedeu á partilha por óbito dos indicados GG e mulher, mas que
não foi incluído nessa partilha o questionado prédio do art. 1º da petição inicial .
Ora, a omissão desse bem da herança não determina a nulidade da partilha efectuada, mas apenas a partilha
adicional dos bens omitidos – art. 2122º do C.C.
Havendo um prédio omitido, como é o caso, a todo o tempo qualquer dos herdeiros pode requerer a respectiva
partilha adicional, dada a imprescritibilidade do direito de sair da comunhão hereditária, nos termos do art. 2101º.
Daí que o pedido em análise só possa proceder quanto à declaração de que o prédio identificado no art. 1º da
petição inicial, ainda por partilhar, pertence á citada herança .

7.
Em face do exposto, decidem :

I - Negar a revista, confirmando parcialmente o Acórdão recorrido, com as seguintes precisões :

A - Julgam procedente a acção e, consequentemente :

1 - Declaram impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na escritura de 14 de Fevereiro de 1996,
por os réus não terem adquirido o prédio nela identificado, correspondente ao do artigo 1º da petição inicial, por usucapião.
2 - Declaram ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, por forma a que os réus
não possam, através dela, registar quaisquer direitos sobre o prédio nela identificado .
3 - Ordenam o cancelamento de quaisquer registos operados com base na dita escritura .
4 - Declaram que o prédio identificado no art. 1º da petição inicial, ainda por partilhar, pertence à herança aberta
por óbito de GG e mulher HH .

B - Julgam improcedente o pedido reconvencional principal (usucapião), objecto do presente recurso .

II – Condenar os recorrentes nas custas .

III - Uniformizar a jurisprudência nos termos seguintes :

- Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116º, nº1, do Código do
Registo Predial e 89º e 101º do Código do Notariado, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do
direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-
lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo
7º do Código do Registo Predial .

11
Lisboa, 4 de Dezembro de 2007

Azevedo Ramos
Duarte Soares ( vencido de acordo com a declaração do Sr. Conselheiro João Camilo)
Silva Salazar Faria Antunes
Moreira Alves ( vencido de acordo com a declaração que se anexa)*
Salvador da Costa ( vencido, conforme declaração de voto em anexo)**
Ferreira de Sousa ( reponderando posição anterior)
Santos Bernardino ( vencido em parte, conforme declaração que junto)***
Nuno Cameira
Alves Velho ( vencido, em parte (quanto a uniformização), conforme declaração que anexo) ****
Armindo Luis
Pires da Rosa ( vencido com declaração de voto que junto)*****
Bettencourt de Faria Sousa Leite Salreta Pereira Custódio Montes Pereira da Silva Rodrigues dos Santos
João Bernardo
Urbano Dias ( Junto declaração de voto)******
Paulo Sá ( vencido, com declaração de voto idêntica à do sr Conselheiro Alves Velho)
Mota Miranda ( vencido conforme declaração do Ex.mo Conselheiro Salvador da Costa)
Alberto Sobrinho (vencido nos termos da declaração de voto do Ex.mo Conselheiro Salvador da Costa)
Arlindo Rocha Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Oliveira Vasconcelos Fonseca Ramos Mário Cruz
Rui Mauricío ( vencido nos termos da declaração de voto do Ex.mo Conselheiro João Camilo)
Cardoso de Albuquerque Garcia Calejo
João Camilo (vencido nos termos da declaração de voto que junto)*******
Noronha do Nascimento
________________________________________________
* Declaração de voto Sr. Conselheiro Moreira Alves

Não se vê razão para alterar a regra registral sobre o ónus da prova. E em conformidade, uniformizaria
jurisprudência no sentido de que, depois de inscrição registral efectuada com base em escritura de justificação notarial, tal
não impede que o titular do registo beneficie da presunção do Art. 7ª do Código de Registo Predial

**Declaração de voto Sr. Conselheiro Salvador da Costa

I
O caso que é objecto do processo apresenta a particularidade, por um lado, de os autores pedirem a declaração
de que identificado prédio pertence à herança indivisa de duas pessoas apenas com a invocação, a título de causa de
pedir, de que o mesmo pertenceu a determinado casal e quando a herança já estava partilhada por sentença transitada em
julgado.
E, por outro, de impugnarem a escritura de justificação notarial de aquisição do mesmo prédio por usucapião
onde os outorgantes construíram, a partir de 1983, uma casa, e quando apenas faltavam três meses e vinte e cinco dias
para se completar o prazo máximo para o efeito, ainda por cima contado a partir de início identificado pela expressão pelo
menos a partir de 1983.

II
A solução que resulta do acórdão é, por um lado, a de declaração de que o mencionado prédio ainda por partilhar
pertence à herança aberta por óbito de GG e de HH .
E, por outro, de que incumbe aos justificantes o ónus de prova dos factos constitutivos do direito de propriedade
cuja afirmação de aquisição é veiculada pelo conteúdo da escritura pública de justificação notarial depois de realizado o
registo predial.
Discordamos da referida solução jurídica pelos motivos que sinteticamente vão enunciados.

1. Pertença do Prédio à Herança Partilhada


Os autores pediram na acção que se declarasse pertencer o prédio à herança aberta e ilíquida de GG e de HH.
Não se serviram da acção da petição de herança, certo que não pediram o reconhecimento da sua qualidade de
herdeiros nem a restituição do prédio em causa (artigo 2075º, nº 1, do Código Civil).

12
Tinham o ónus de alegar e de provar os factos reveladores de que o mencionado prédio integrava o acervo
hereditário deixado por GG e HH (artigos 342º, nº 1, do Código Civil e 264º, nº 1 e 467º, nº 1, alínea d), do Código de
Processo Civil).
A prova de que o mencionado prédio se integrava no acervo hereditário deixado por GG e por HH dependia, por
seu turno, da demonstração de que eles eram os titulares do respectivo direito de propriedade.
A referida prova era susceptível de derivar, por um lado, da inscrição no registo predial de algum título de
aquisição do direito de propriedade sobre o prédio por parte de GG e HH sem ilisão da presunção da titularidade do direito
(artigo 7º do Código do Registo Predial).
Ou, por outro, da demonstração do direito de propriedade sobre o prédio a título originário, por exemplo por
usucapião.
Todavia, os recorridos limitaram-se a afirmar na petição inicial que o referido prédio pertenceu ao casal de GG e
de HH , ficando sem se saber o período em que tal aconteceu, isto é, quando começou e acabou e a que título.
Como se não trata de afirmação de facto, era insusceptível de prova por confissão ou de admissão por acordo
(artigos 352º do Código Civil e 490º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Nem quem considera - em nosso entender sem apoio legal - dever a mencionada expressão ser considerada de
estrutura fáctica identificadora de uma relação de propriedade entre uma pessoa e uma coisa podia aqui usar esse critério,
porque está em causa o mérito de um pedido de declaração de propriedade.
Perante tal omissão de matéria de facto, a solução devia ser, em nosso entender, dada a fase de recurso em que
a questão se suscita, a de improcedência do mencionado pedido.

2. Ónus de Prova dos Factos Constitutivos do Direito Inscrito no Registo Predial


A aquisição do direito de propriedade sobre o prédio por usucapião por parte dos recorridos foi inscrita no registo
predial no dia 23 de Maio de 1996, na sequência de escritura de justificação notarial outorgada no dia 14 de Fevereiro de
1996, cujo extracto foi publicado no Jornal Notícias de Valença, no dia 10 de Março de 1996.
A aquisição do direito de propriedade sobre imóveis está sujeita a registo e, em regra, a respectiva inscrição só
pode operar com base em documento que legalmente a comprove (artigos 2º, nº 1, alínea a), 43º, nº 1 e 116º, nº 1, do
Código do Registo Predial).
A lei admite, porém, que a falta do referido documento seja suprida por via de escritura de justificação notarial, a
que se reporta, além do mais, o artigo 89º do Código do Notariado.
Expressa o referido artigo, por um lado, que a justificação para estabelecimento do trato sucessivo no registo
predial, para efeitos do nº 1 do artigo 116º do Código do Registo Predial, consiste na declaração feita pelo interessado por
via da qual afirme, com exclusão de outrem, ser titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição e
referindo as razões que o impossibilitam de a comprovar pelos meios normais (nº 1).
E, por outro, que alegada a usucapião baseada em posse não titulada, deve o interessado mencionar
expressamente as circunstâncias de facto determinantes do seu início e as que a consubstanciam e caracterizam (nº 2).
Nesse quadro, no caso de se tratar de direito de propriedade, pode o justificante invocar algum dos seus modos
de aquisição, designadamente o contrato, a sucessão por morte, a usucapião, a ocupação e a acessão (artigo 1316º do
Código Civil).
Assim, visa a referida justificação, em relação a direitos sobre imóveis ou equiparados, conformar a situação
jurídica respectiva com a sua situação registal, como é o caso da celebração de negócios jurídicos sem a forma documental
legalmente exigida.
E, conforme resulta do artigo 96º, nº 1, do Código do Notariado, o direito real em causa é justificado por via de
declaração do interessado confirmada por três declarantes.
Trata-se, pois, de um meio expedito destinado a possibilitar o registo da aquisição de um direito, de natureza
probatória, que permite harmonizar a situação jurídica com a registal.
É um procedimento de excepção de titular actos ou factos jurídicos sujeitos a registo, que pressupõe algum
negócio jurídico ou algum facto jurídico legitimador da titularidade do direito em causa na pessoa do justificante, que a lei
envolve de determinadas cautelas.
Nesse contexto, a realização do registo predial com base na mencionada escritura depende da sua publicação
num jornal e da emissão de uma certidão dela depois do decurso de trinta dias sobre a aludida publicação e de não haver
comunicação da pendência de impugnação judicial do facto justificado (artigos 100º e 101º, nº 2, do Código do Registo
Predial).
Verifica-se, pois, que a lei prescreve a exigência de uma pluralidade de diligências entre a outorga da escritura de
justificação notarial e a inscrição do facto aquisitivo dela decorrente no registo, incluindo a respectiva publicidade, a fim de
suprir a menor segurança do título.
As acções em que se impugnem as aludidas escrituras de justificação notarial são de simples apreciação
negativa, na medida em que por via delas é visada a eliminação dos efeitos dos factos aquisitivos nelas declarados (artigo
4º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil).

13
Nas referidas acções de impugnação instauradas antes de a escritura de justificação judicial ser inscrita no
registo, cabe ao réu ou ao autor reconvindo, conforme os casos, a prova dos factos constitutivos do direito de que se
arroguem (artigo 343º, nº 1, do Código Civil).
Decorrido, porém, o prazo de impugnação da escritura de justificação notarial sem que a ela tenha havido lugar,
isto é, cumprida que seja a fase da publicidade da respectiva outorga acima referida e inscrita a aquisição do direito, passa
esta inscrição a constituir a presunção da titularidade do direito em causa, nos termos do artigo 7º do Código do Registo
Predial.
Levado ao registo o facto aquisitivo do direito de propriedade ou de outro direito real, ele passa a assumir a sua
função normal de os publicitar, com a particularidade de presunção acima referida, independentemente da natureza do
título que lhe serviu de base.
Nesse caso, por virtude da mencionada presunção, o ónus de prova da falsidade da mencionada escritura de
justificação notarial, ou seja, de que o direito nela declarado não existe, passa a incumbir ao autor ou ao réu reconvinte,
conforme os casos (artigos 342º, nº 1, 344º, nº 1 e 350º do Código Civil e 7º do Código do Registo Predial).

III
Em consequência, interpretaria a lei para efeito de uniformização da jurisprudência nos termos seguintes:

“ Nas acções de impugnação de factos justificados notarialmente já definitivamente inscritos no registo predial, é
ao autor ou ao reconvinte, conforme os casos, que incumbe ilidir, mediante prova do contrário, a presunção legal que deriva
do registo. “

*** Declaração de voto Sr. Conselheiro Santos Bernardino

Vencido em parte:
Não acompanho o acórdão no ponto em que nele se decide “que o prédio identificado no art. 1º da petição inicial,
ainda por partilhar, pertence à herança aberta por óbito de GG e mulher HH.”
Não encontro, no acervo factual dado como assente, suporte bastante para esta decisão.
Na verdade, apenas se constata que o prédio em causa “pertenceu ao casal dos referidos GG e HH” (n.º 6 dos
factos provados) – o que constitui mera conclusão, não ancorada em factos que a permitam extrair.
Conclusão ademais perturbada pela facticidade inserta nos n.os 7 e 9 do rol dos factos provados: o prédio foi
incluído no processo de imposto sucessório por óbito do dito GG (que faleceu em 07.06.82), mas não foi (e não se sabe
porquê) posteriormente relacionado, em 1999, no inventário 279/99, instaurado no Tribunal Judicial de Valença, para
partilha das heranças deste e do seu cônjuge, falecido em 01.04.89, sendo certo que neste não houve reclamação contra a
relação de bens, e que os autores, não tendo estado presentes na conferência de interessados em que, por acordo, foram
adjudicados os bens da herança, estiveram, todavia, aí representados.
Por isso, entendo que, no tocante ao pedido dos autores acima referenciado sub alínea d), a acção deveria
improceder.
No mais, acompanho a decisão e subscrevo a sua fundamentação e a fórmula uniformizadora da jurisprudência.
**** Declaração de voto Sr. Conselheiro Alves Velho

Vencido quanto à formulação do segmento uniformizador de jurisprudência e respectivos fundamentos.


Entendo que a acção em que se impugne o facto justificado pelas declarações contidas na escritura, visando
tornar ineficazes essas declarações, só configura uma acção de declaração negativa, com a inerente repercussão no ónus
da prova, até à inscrição do facto no registo predial, fim último e único da escritura: - Se o réu prova o que declarara na
escritura, esta continua a poder servir de base ao registo; - Se não o demonstra, a escritura é ineficaz.
Com a inscrição o facto justificado migra para o registo e fica satisfeita e esgotada a finalidade da a escritura,
como mero instrumento da inscrição registal, deixando de fazer sentido, a meu ver, falar ainda de qualquer ineficácia da
mesma. É o que decorre do regime previsto no art. 101º do CN, com conteúdo útil limitado ao período em que a escritura
possa ser utilizada para os fins para que foi outorgada – uma inscrição registal.
Uma vez levado ao registo o facto impugnado, a discussão da titularidade do direito há-de ter lugar, por inteiro,
em acção de declaração positiva, com ou sem reconvenção – sem cabimento em acção de impugnação de justificação -,
tudo com sujeição às regras sobre distribuição do ónus da prova e presunções que, face às causa de pedir e pedidos
formulados, forem aplicáveis.
Teria, assim, quanto à uniformização, concluído no sentido de que, intentada a acção após a inscrição registral
lavrada com base numa escritura de justificação notarial, o título utilizado não obsta a que o respectivo titular possa
beneficiar da presunção estabelecida no art. 7º do C. Reg. Predial.

*****Declaração de voto Sr. Conselheiro Pires da Rosa

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Na acção de impugnação de justificação notarial enquanto acção de simples apreciação negativa sobre os RR
recai o ónus da prova dos factos levados à escritura de justificação e que sustentam o registo.
Só que, com o registo, deixa de haver a situação de incerteza que é pressuposto desse tipo de acção e passa a
haver uma situação de agressão concreta a um direito de outrem ( os AA ) e então só uma acção de condenação,
afirmando uma realidade real diferente da realidade registral, pode pôr em causa esta última, afirmada pela presunção do
art.7º do CRPredial.
Os RR beneficiam pois dessa presunção ... juris tantum, que só pode ser destruída por um facto que a ela se
sobreponha.
In casu, os AA fizeram essa prova porque provaram que o prédio registado fazia parte da herança aberta por
óbito de seus pais.
Aos RR competia, então, fazer a prova de um qualquer negócio translativo válido dessa propriedade para si
próprios partindo da propriedade ou dos seus avós ou das heranças destes, ou a aquisição desse mesmo direito ou por
usucapião ou por acessão.
Porque não provaram a aquisição por usucapião, nos termos elaborados no acórdão ( que nessa parte subscrevo
) e porque para aquisição por acessão faltariam na acção todos – todos – os titulares das heranças dos avós dos RR, voto
a decisão em concreto, que não a afirmação jurisprudencial seguida que – penso – deveria ser fixada da seguinte forma:
Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial enquanto acção de simples apreciação negativa, ao
réu incumbe o ónus da prova do facto justificado; efectuado o registo, a acção a propor deixa de ser uma acção desse tipo
e ao autor compete a alegação e prova do facto que, afirmando um direito próprio, destrua a presunção registral do art.7º
do CRPredial.

******Declaração de voto Sr. Conselheiro Urbano Dias


Repensando posição anteriormente tomada, acompanho o voto de vencido expresso pelo Exº Senhor
Conselheiro Alves Velho no que tange à tese que obteve vencimento na uniformização de jurisprudência.
Acompanho, ainda, a declaração do Exº Senhor Conselheiro Salvador da Costa na declaração de voto que
exprimiu relativamente ao pedido da al. d) da petição.

*******Declaração de voto Sr. Conselheiro João Camilo


Pese embora o muito respeito pelo douto acórdão proferido, sou de opinião contrária à que fez vencimento, tal
como defendi em projecto de acórdão que como Relator inicial elaborei e que, porém, não logrou vencimento. Passo muito
resumidamente a expor a minha opinião que defendi com desenvolvimento do projecto de acórdão referido.
Está em causa neste recurso, essencialmente, a pretensão dos recorrentes no sentido de que tendo efectuado o
registo do prédio em discussão, com base numa escritura notarial de justificação da aquisição daquele por usucapião,
beneficiam da presunção de titularidade prevista no artigo 7º do Código de Registo Predial, apesar de ser objecto desta
acção a impugnação da referida escritura de justificação predial.
O instituto da justificação notarial consiste num expediente técnico simplificado de titulação de facto com vista ao
seu ingresso no registo, na falta de título mais idóneo, tal como resulta da origem histórica deste instituto – Lei nº 2049 de
6-08-10951, Decreto-Lei nº 40603 de 18-05-1956 a que sucedeu o regime actual dos arts. 89º, 101º do Cód. do Notariado e
art. 116º, nº 1 do Cód. de Registo Predial.
Por seu turno o art. 7º deste último diploma legal estipula que o registo definitivo constitui presunção de que o
direito existe e pertence ao titular inscrito.
Este dispositivo não contém qualquer restrição e, por isso, caso seja efectuado o registo do facto justificado pela
escritura de justificação predial, o titular inscrito goza da referida presunção mesmo na acção em que seja impugnado o
facto justificado.
A presente acção de justificação é habitualmente classificada como de simples apreciação negativa, pelo que o
ónus de prova se inverte, nos termos do art. 343º, nº 1 do Cód. Civil. Porém beneficiando o aqui réu da presunção
decorrente do registo, nos termos do art. 344º, nº 1 do Cód. Civil, volta o ónus de prova a caber aos aqui autores
impugnantes do facto justificado.
No caso dos autos, há outros pedidos que desvirtuam a referida natureza desta acção, como seja o pedido dos
autores de reconhecimento da propriedade do prédio em causa a favor da herança de que são interessados e o pedido
reconvencional dos réus de reconhecimento do mesmo direito de propriedade, a seu favor.
Tais pedidos não alteram as regras de repartição do ónus de prova acima referido, pois os réus, em nosso
entender, sempre beneficiam da presunção decorrente do registo que os autores não infirmaram.
Se adoptássemos a solução que acabou por ser decidido no acórdão acima proferido, ficaria sem conteúdo útil a
disposição do art. 101º, nº 2 do Cód. do Notariado que estipula que após a celebração da escritura se não possa extrair
certidão da mesma antes de decorrido o prazo de trinta dias contados da publicação do extracto da mesma escritura e
desde que nesse prazo não seja recebida a comunicação da pendência de acção de impugnação daquela.

15
Se com ou sem registo, o justificante não beneficiava da respectiva presunção decorrente do registo, não havia
razão para a exigência daquele compasso temporal, pois, então bastaria a lei impedir a passagem da certidão antes de ser
comprovado a publicação do extracto da escritura.
Logo o entendimento contrário ao nosso, viola o disposto no nº 3 do art. 9º do Cód. Civil.
Por outro lado, também não colhe o argumento geralmente apontado para a defesa da opinião que obteve
vencimento no acórdão que antecede, no sentido de que a solução legal aqui defendida é perigosa para o comércio jurídico
por permitir que com base numa simples escritura notarial contendo o depoimento de três testemunhas, sem qualquer
controlo contraditório ou judicial, fosse possível um qualquer agente beneficiar da presunção decorrente do registo.
Com efeito, o estabelecimento do instituto em causa visou, como dissemos já, satisfazer prementes necessidades
de ordem prática ponderando o legislador na sua institucionalização esses perigos que considerou serem menores do que
os benefícios decorrentes da adopção daquele regime legal.
Além disso, as pessoas que fraudulentamente usem desse instituto estarão sob as sanções legais, mesmo de
ordem penal, que os afastarão, em regra, dessa prática ilegal.
Acresce a isto a circunstância de o gozo da referida presunção legal poder ser afastada, pois se trata de
presunção iuris tantum, e, portanto, passível de ser contrariada por prova em contrário.
Assim, em conclusão, diremos que somos da opinião de que, como no caso dos autos, os réus justificantes que
efectuaram o registo do prédio justificando com base na escritura de justificação, por falta da atempada impugnação,
beneficiam da presunção decorrente do registo, nos termos do artigo 7º citado.
Como os autores não provaram o contrário do que consta do registo, em nosso entender teria o pedido dos
autores de improceder e proceder o pedido reconvencional principal dos réus de reconhecimento do seu direito de
propriedade sobre o imóvel em causa, reconhecimento esse apenas baseado na presunção legal, tal como decidiu a 1ª
instância.
Procedendo este fundamento do recurso, ficaria prejudicado o conhecimento das demais questões levantadas no
objecto do mesmo.
Pelo exposto, em nosso entendimento, deveria ser concedida a revista pedida, com revogação do acórdão
recorrido, passando a valer a sentença da 1ª instância e deveria ser uniformizada a jurisprudência, nos termos dos artigos
732º-A e 732º-B do Código de Processo Civil, quanto à matéria em causa, nos termos apontados pelo Ministério Público
que se seguem:
“ Na acção de impugnação de facto justificado notarialmente e inscrito definitivamente no registo, incumbe ao
autor ilidir, mediante prova em contrário, a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos
termos em que o registo o define, face às disposições conjugadas dos artigos 7º, 8º, 10º, 116, nº 1 do Código de Registo
Predial , 344º, nº 1 e 350º do Código Civil”.

Princípio da legitimação registral - 9º, nº 1 - Segundo este princípio, não podem ser titulados
actos jurídicos de que resulte a transmissão de direitos ou constituição de encargos sobre imóveis,
sem que estes estejam definitivamente inscritos a favor de quem transmite ou constitui o encargo.
Reforça o princípio do trato sucessivo, do art. 34.

Princípio da prioridade - 6º - Prevalece o direito primeiramente inscrito sobre os que,


relativamente aos mesmos bens, se lhe seguirem, quando incompatíveis. As hipotecas inscritas na
mesma data concorrem entre si na proporção dos créditos que cada uma delas garante (n.° 2). Os
registos provisórios convertidos em definitivos ou com reclamação ou recurso procedentes conservam
a prioridade que tinham como provisórios ou da apresentação, respectivamente - nº 3 e 4.

Efeitos do registo predial

A fé pública registral é fruto do princípio da legalidade e efectiva-se mediante presunções


registais.

Nos termos do art. 7º:


I - o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe
II - e pertence ao titular inscrito, nos precisos temos em que o registo o define.

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Estas presunções são ilidíveis, como resulta dos art. 8º, 3º, b) e 13º que admitem acções para
extinção de registos por não corresponderem à realidade - 16º, a), desde que se peça o cancelamento
do registo - 8º, nº 2 - e do art. 1268º, nº 1 - conflito de presunções possessória e registal.

A Jurisprudência é unânime no sentido de que a presunção do art. 7º não abrange os


elementos de identificação ou a composição (áreas) dos prédios - Col. STJ 97-II-126, 96-2-217, 97-4-
181 e 2004-III-23; Ac. de 14.10.2004 (O. Barros), Pº 1969.04, 2578.04, 06B035, Ac. de 7.7.05 e, por
último, o Ac. do STJ de 18.12.07, no P.º 07B4420 - porque tal depende de declaração dos titulares e
não é verificado pelo Conservador que não pode, por isso, conferir-lhe fé pública, essencial aos
documentos com força probatória plena.

A - Efeitos substantivos - efeitos que vão para além da função de publicidade e resultam da
tutela da confiança de quem contrata com base no registo.
1 - Registo (não) constitutivo - Porque os factos sujeitos a registo podem ser invocados inter
partes ou seus herdeiros, ainda que não registados - 4º, nº 1 - só na hipoteca o registo é constitutivo -
4º, nº 2 e 687º CC.

2 - Registo enunciativo - o registo limita-se a enunciar, a dar conhecimento da existência do


facto registado, nada de novo acrescentando no plano da relevância substantiva desse facto: posse,
usucapião, prazo mais curto para aquisição por usucapião - 1295º e 1296º.

3 - Registo consolidativo - n.ºs 1 dos art. 4º e 5º. Não são terceiros para este efeito os terceiros
não interessados ou estranhos, os que não invoquem uma situação jurídica incompatível com a que
emerge do facto jurídico não registado: proprietário que não registou em acção de despejo contra o
inquilino ou de indemnização por danos contra o vizinho.
Também a tutela do art. 5º, nº 1, não abrange titulares de situações jurídicas incompatíveis
como
a) - adquirente posterior por facto também não registado;
Se A vender, sucessivamente, o prédio X a B e a C, enquanto não houver registo a solução é
a do direito substantivo: a venda a C é nula por falta de legitimidade do alienante que vendeu coisa
alheia e ineficaz em relação a B - 408º, nº 1, 879º, al. a) e 892º.

b) - adquirente posterior por facto registado, mas de má fé.

Se C registar a sua aquisição antes de B mas souber da anterior venda de A a C, estando,


pois, de má fé, não merece a tutela do registo pela simples razão de se não verificar um dos elementos
constitutivos da confiança no registo.

A. Varela - RLJ 118-308 e 316 e 127-23 e ss - dispensa a boa fé para conceder a este terceiro
a tutela do registo, mas Carvalho Fernandes ensina que não pode merecer tutela quem se pretende
aproveitar da realidade formal do registo em detrimento da realidade substancial, que conhece.
Para este Professor, terceiros a quem não pode ser oposto um acto anterior não registado são
apenas aqueles que, de boa fé, se mostram titulares de uma inscrição registal incompatível com o
direito anteriormente adquirido ou constituído.

Este requisito da boa fé do adquirente foi consagrado no AUJ de 18.5.99, mas o nº 4 do art. 5º
do CRP, acrescentado pelo Dec-lei nº 533/99, de 11 de Dezembro, é omisso neste ponto.

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Sobre o conceito de terceiros veja-se o AUJ de 18.5.99, no DR IA, de 10.7.99, que alterou o
anterior, de 20.5.97, já referido a propósito da penhora (garantia das obrigações) e do seguinte teor:

Terceiros, para efeitos do disposto no nº 5 do CRP, são os adquirentes de boa fé, de um


mesmo transmitente comum, de direitos incompatíveis, sobre a mesma coisa.

Este conceito restrito foi consagrado no nº 4 do art. 5º do CRP: Terceiros, para efeitos de
registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si.

Questão que parece continuar em aberto é a de saber se a aquisição de direitos sobre uma
coisa sem intervenção do seu proprietário - por penhora ou hipoteca judicial, por exemplo, seguida de
aquisição no processo de execução - não é, apesar da interposição do tribunal ou da lei, aquisição do
mesmo transmitente.
É - o para A. Varela e H. Mesquita, na RLJ 127-20, citando Vaz Serra:

Terceiros portanto, relativamente a determinada alienação, são não só aqueles que adquiram
do mesmo alienante direitos incompatíveis, mas também aqueles cujos direitos, adquiridos ao abrigo
da lei, tenham esse alienante como sujeito passivo, ainda que ele não haja intervindo nos actos
jurídicos (penhora, arresto, hipoteca judicial, etc.) de que tais direitos resultam.
Pronunciando-se especificamente sobre o acto da penhora, com vista à delimitação do
conceito de terceiros para efeitos de registo, escreveu Vaz Serra:

Terceiros, para efeitos de registo predial, são, em princípio, os adquirentes de direitos sobre a
coisa incompatíveis entre si e procedentes do mesmo autor.
Ora, pode dizer-se que se um prédio for comprado a determinado vendedor e for penhorado
em execução contra este vendedor, o comprador e o penhorante são terceiros: o penhorante é terceiro
em relação à aquisição feita pelo comprador, e este é terceiro em relação à penhora, pois os direitos
do comprador e do penhorante são incompatíveis entre si e derivam do mesmo autor.
A circunstância de a penhora não ser um acto de transmissão operado pelo executado não
impede que o penhorante obtenha um direito contra o executado, direito que pode considerar-se
emanado deste, embora sem a sua intervenção. Do mesmo modo que, por ex., o credor com hipoteca
legal ou judicial, apesar de não ter obtido o direito hipotecário por acto do dono da coisa hipotecada, é
terceiro em relação a um credor com hipoteca voluntária sobre a mesma coisa, e este é terceiro em
relação ao credor com hipoteca legal ou judicial sobre a coisa, também o penhorante é terceiro em
relação ao adquirente contratual da coisa, e este é terceiro em relação ao penhorante dela.
A noção de terceiro em registo predial é a que resulta da função do registo, do fim tido em
vista pela lei ao sujeitar o acto a registo: e, pretendendo a lei assegurar a terceiros que o mesmo autor
não dispôs da coisa ou não a onerou senão nos termos que constarem do registo, esta intenção legal
é aplicável também ao caso da penhora, já que o credor que faz penhorar a coisa carece de saber se
esta se encontra, ou não, livre e na propriedade do executado».

Este entendimento é, sem sombra de dúvida, o que melhor se harmoniza com os fins do
registo e com as regras legais que estabelecem os efeitos dos actos que nele devem ser inscritos.
Conforme se declara no artigo 1º do respectivo Código, o registo predial visa
fundamentalmente, através da publicidade que dá à situação jurídica das coisas imóveis, conferir
segurança ao comércio jurídico imobiliário.
Se A, inscrito no registo como proprietário de determinado prédio, o vende a B e este não
regista a aquisição, a lei protege aquele a quem A, apesar de, perante as regras do direito civil,

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nenhum direito ter já sobre o imóvel, faça uma nova venda, desde que o comprador registe o negócio
aquisitivo em primeiro lugar.

O Ac. do STJ, de 7.7.99, na Col. STJ 99-II-167, adiante referido, seguiu a doutrina de que o
adquirente em venda judicial e o comprador particular têm o mesmo transmitente comum, o mesmo
decidindo o Ac. do STJ de 14.1.2003, na Col. Jur. (STJ) 2003-I-19.

Sobre esta matéria convém ler os Ac. na Col. 01-III-30 (Relação de Coimbra) e na Col. STJ 02-
I-154, além dos distribuídos a propósito das Garantias das Obrigações, incluindo os comentários em
Cadernos de Direito Privado.

A doutrina corrente afasta a tutela registal do adquirente posterior mas que primeiro registou,
fazendo aplicação analógica do art. 17º, nº 2, do C. R. Predial, quando a aquisição do terceiro seja a
título gratuito e ele esteja de má fé.
Decidiu a Relação de Coimbra - Col. 96-IV-34 - que só o terceiro adquirente de boa fé pode
confiar na fé pública do registo.
Se o terceiro adquirente sabe que o registo está em desconformidade com a situação jurídica
real, não pode confiar na presunção, sendo-lhe oponível o direito não registado - compra e venda de
imóvel - por, tratando-se de contrato com eficácia real, ter efeitos erga omnes.
E o STJ - Col. STJ 96-III-104 - ensinou que o art. 291º, nº 2 do CC encontra-se em vigor, por
não ter sido revogado pelo C. Reg. Predial.

Assim, se a acção de declaração de nulidade ou anulação da compra e venda de imóveis, cuja


aquisição foi inscrita no registo predial pela segunda adquirente, tiver sido registada antes de
decorridos três anos sobre a conclusão de tal aquisição, os direitos desse adquirente (terceiro) não são
reconhecidos, prevalecendo os do primeiro adquirente, ainda que o terceiro adquirente esteja de boa
fé e a aquisição tenha sido a título oneroso, como era o caso do acórdão:

Em 22 de Setembro de 1983 a ré Maria dos Prazeres e seu cônjuge outorgaram com a autora uma escritura de
compra e venda de lotes, de que aqueles foram transmitentes e esta adquirente. Esta não procedeu à inscrição da
aquisição em seu nome no registo predial.
Em 22 de Abril de 1991 a mesma ré, já viúva, e os réus José Fernando e António Francisco lograram inscrever os
mesmos lotes em seus nomes, sem determinação de parte ou direito, no registo predial.
Em 5 de Junho de 1991 esses três réus e as rés Maria de Lurdes e Ana Maria outorgaram com a ré Lopes de
Carvalho & Filha, L.da, escritura em que aqueles declararam vender a esta os mesmos lotes de terreno, que esta declarou
comprar-lhes.
Em 27 de Junho de 1991 foi inscrita no registo predial esta última aquisição, em nome da derradeira ré.
Em 25 de Novembro de 1991 a ora (Autora) recorrida Duarte, S. A., propôs a presente acção, que veio a ser
registada em 20 de Fevereiro de 1992.

A escritura de 22 de Setembro de 1983 teve o efeito de transmitir o direito de propriedade sobre os lotes em
causa dos alienantes (a primeira ré e seu marido) para a adquirente (a autora), por força do disposto nos artigos 408º, nº 1,
e 879º, alínea a), do Código Civil.
Assim, quando intervieram na escritura de 5 de Junho de 1991, os cinco primeiros réus procederam à venda de
bens que já não lhes pertenciam, à venda de bens alheios, para a qual manifestamente careciam de legitimidade.
Consequentemente, esse contrato de compra e venda é nulo, de harmonia com o prescrito no artigo 892º
daquele Código.
Acontece, porém, que a autora não curou de registar logo em seu nome a aquisição dos dois lotes e, quando,
mais tarde - segundo declarou - o pretendeu fazer, verificou que, após a data daquela primeira escritura, havia no registo
predial duas inscrições daqueles lotes em nome de outras pessoas.
A aparente contradição entre o art. 291º, nº 2, do CC e os art. 5º, nº 1 e 1º, nº 2, do CRP foi assim resolvida:

A solução foi apontada por Mota Pinto nestes termos:

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«No actual Código Civil o problema da oponibilidade da nulidade e anulabilidade a terceiros foi resolvido de forma
original, através de um sistema de compromisso entre os interesses que estão na base da inva lidade e os interesses
legítimos de terceiros e do tráfico. Em princípio, tais formas de invalidade são oponíveis a terceiros, salvo o caso especial
da simulação, que é inoponível a terceiros de boa fé (artigo 243º).
Em nome da protecção dos legítimos interesses de terceiros e dos interesses do tráfico jurídico estabeleceu-se,
contudo, que a (acção de) declaração de nulidade ou a anulação do negócio respeitante a bens sujeitos a registo, se não
for proposta e registada nos três anos posteriores à conclusão do negócio, é inoponível a terceiros de boa fé, adquirentes,
a título oneroso, de direitos sobre os mesmos bens (cfr. artigo 291º).
Daqui decorre, logicamente, que, tendo a acção que vise aquela declaração de nulidade ou anulação sido
registada antes de se concluírem os três anos subsequentes à conclusão do negócio nulo ou anulável, essa declaração já é
oponível a terceiros, ainda que de boa fé, adquirentes, a título oneroso, de direitos sobre os mesmos bens.

É esta também a lição de Antunes Varela: «De acordo com a solução decorrente dessa disposição» (o artigo
291º do Código Civil), «os efeitos extintivos característicos da nulidade ou anulação (do contrato) mantêm-se plenamente
durante os três anos posteriores à conclusão do negócio impugnado, desde que a acção, estando sujeita a registo, seja
efectivamente registada.
Passado, no entanto, esse período de defeso cerrado, se o contrato nulo ou anulado respeitar a bens imóveis (ou
a móveis sujeitos a registo) e esses bens tiverem sido alienados ou onerados a favor de terceiro, que tenha registado a sua
aquisição, os efeitos da nulidade ou da anulação podem ter que ceder perante o direito do terceiro adquirente. Bastará para
tal que o registo da aquisição de terceiro seja anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação, que a aqui sição tenha
sido a título oneroso e que o adquirente tenha agido de boa fé.»

Regressando ao caso sob recurso, verificamos que a venda nula (art. 892º CC) foi realizada através da escritura
de 5 de Junho de 1991 (data, portanto, da conclusão do respectivo negócio) e que a acção para declaração da sua
nulidade foi registada em 20 de Fevereiro de 1992, antes de decorridos três anos sobre aquela data.
Consequentemente, por aplicação do artigo 291º, nº 2, os direitos da recorrente (que comprou depois mas
registou) aos indicados lotes não são reconhecidos, prevalecendo a aquisição deles feita pela autora.

Como se viu, Couto Gonçalves, em Cadernos de Direito Privado, nº 9, pág. 52, comentário a
Ac. do STJ, de 19.2.2004, refere-se a esta decisão de 1996 que teria aplicado indevidamente o art.
291º, nº 2, a terceiros para efeitos de registo, como decisão peregrina.

Também o STJ decidiu e ensinou:


Acórdão do STJ (Ex.ma Cons.ª M. dos Prazeres Beleza), de 5 de Julho de 2007, no Pr.º 07B1361

IV – O artigo 291º do Código Civil não se encontra revogado, tendo um âmbito de aplicação diverso daquele que
(actualmente) cabe ao artigo 5º do Código do Registo Predial;
V – Sendo aplicável o artigo 5º do Código do Registo Predial, não releva o prazo de três anos, previsto no nº 2 do
artigo 291º do Código Civil para a propositura e registo da acção de declaração de nulidade ou de anulação;
VI – É terceiro para os efeitos previstos no artigo 5º do Código do Registo Predial, quer na redacção decorrente
do Decreto-Lei nº 533/99, de 11 de Dezembro, que lhe aditou o nº 4, quer na sua anterior versão, aquele que compra um
prédio a quem figura no registo predial como seu proprietário, apesar de (este alienante) já ter anteriormente alienado a
outrem o mesmo prédio, por permuta não registada.
VII – Essa permuta não produz efeitos em relação ao comprador que registou a sua aquisição, prevalecendo o
direito de propriedade do mesmo comprador não obstante ter adquirido de quem já tinha alienado o direito;
VIII – Não pode, pois, ser julgada procedente a acção de declaração de nulidade da compra e venda instaurada
pelo primeiro adquirente, com fundamento em se tratar de venda de bens alheios, apesar de ter sido proposta e registada
nos três anos posteriores à celebração da compra e venda.

Acórdão STJ (Ex.mo Cons.º Salvador da Costa), de 21.6.2006, no Pr.º 07B1847:

1. O conceito de terceiro a que se refere o artigo 291º do Código Civil, motivado pela ideia de estabilidade das
situações jurídicas, pressupõe a sequência de nulidades e o conflito entre o primeiro transmitente e o último sub-
adquirente, e é diverso do conceito de terceiro para efeito de registo a que se reporta o artigo 5º, nº 1, do Código do
Registo Predial.
2. Não tendo o primitivo adquirente da nua propriedade sobre a fracção predial inscrito a sua aquisição no registo
predial, e tendo outrem adquirido do mesmo vendedor o direito de propriedade plena sobre ela inscrito no registo a sua

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aquisição, não pode o primeiro opor ao último a nulidade do contrato de compra e venda com fundamento na venda de
coisa alheia.

De negócio inválido, mas com registo prioritário e de boa fé resulta a tutela de terceiro e
atribuição a negócio inválido de eficácia que ele não tinha assegurada segundo o direito substantivo. É
o registo no seu efeito aquisitivo.

4 - Registo aquisitivo: a aquisição tabular - 291º, nº 2, CC e 17º, nº 2, CRPredial: enquanto o


art. 291º, nº 2 dispõe que a tutela dos direitos de terceiros não tem lugar se a acção de invalidação do
primeiro negócio «for proposta e registada dentro dos três anos posteriores» à sua conclusão, aquelas
normas do registo predial tutelam a situação registral do terceiro sem qualquer limitação temporal.

Sobre a conjugação destes preceitos convém ler o Ac do STJ acima indicado e pág. 104 a 109
do CRP anotado, de Isabel Pereira Mendes, 7ª ed. Almedina, 1995 e a RLJ 118-307 e ss que em parte
(pág. 310) se transcreve:

A inscrição do acto no registo não defende o adquirente, ao invés do que sucede no direito
alemão, contra os efeitos da destruição provocada pela nulidade ou anulação do contrato, nem sequer
contra os efeitos da destruição em cascata desencadeada pela nulidade ou anulação de qualquer
contrato de alienação ou oneração anterior.
Nenhuma disposição se encontra, com efeito, seja nas regras comuns da lei civil, seja entre as
normas específicas do registo predial (do registo de navios, de automóveis ou de aviões), que, em
nome do princípio da abstracção ou da autonomia do negócio, acautele o titular do direito inscrito nos
livros das conservatórias do registo contra os efeitos próprios da nulidade ou da anulação do acto que
serve de base ou pressuposto à inscrição.
A própria disposição inovadora e original contida no artigo 291º do Código Civil confirma a
orientação tradicional do sistema lusitano, embora tenha limitado no tempo o preito de vassalagem
rendido pelo registo predial ao poder destrutivo das causas de nulidade ou anulação do negócio
De acordo com a solução decorrente dessa disposição, os efeitos extintivos característicos da
nulidade ou anulação (do contrato) mantêm-se plenamente durante os três anos posteriores à
conclusão do negócio impugnado, desde que a acção, estando sujeita a registo, seja efectivamente
registada. Passado, no entanto, esse período de defeso cerrado, se o contrato nulo ou anulado
respeitar a bens imóveis (ou a móveis sujeitos a registo) e esses bens tiverem sido alienados ou
onerados a favor de terceiro, que tenha registado a sua aquisição, os efeitos da nulidade ou da
anulação podem ter que ceder perante o direito do terceiro adquirente. Bastará para tal que o registo
da aquisição de terceiro seja anterior ao registo da acção de nulidade ou anulação, que a aquisição
tenha sido a título oneroso, e que o adquirente tenha agido de boa fé.
A nova disciplina instituída pelo artigo 291º do Código Civil pode ser assim retratada sob um
duplo prisma de observação.
Por um lado, a disposição legal confirma a falta de valor constitutivo (autónomo) do registo, na
medida em que durante os três anos posteriores à conclusão de qualquer contrato não defende o
titular do direito formalmente inscrito nos livros do registo predial contra os efeitos da nulidade ou da
anulação do contrato que tenha servido de pressuposto à sua aquisição.
A vendeu em 1986 certo prédio a B, que por sua vez o vendeu no mesmo ano ou
posteriormente a C, tendo B e C registado as suas compras.
Se A vier entretanto, depois da compra de C, requerer fundadamente a declaração de nulidade
ou a anulação da venda efectuada a B e registar a acção, nem B nem C poderão opor-se à eficácia
real e retroactiva da nulidade ou da anulação, se A tiver proposto a acção dentro dos três anos
posteriores à data em que, no ano de 1986, vendeu a B o imóvel.

21
De nada valerá a C ou a B, durante esse período negro da eficácia da nulidade ou da
anulação requerida por A, a alegação de terem agido de boa fé ou de a sua aquisição se ter efectuado
a título oneroso.
Por outro lado, o novo preceito legal representa uma primeira e significativa conquista do
registo contra o regime tradicional da nulidade e da anulação, na medida em que permite ao titular da
inscrição efectuada no registo, embora só a partir de certo período posterior à conclusão do contrato
nulo ou anulável, fazer prevalecer o seu direito (real) referente ao imóvel ou ao móvel sujeito a registo
sobre o direito, relativo à mesma coisa, do beneficiário da nulidade ou anulação.

O disposto nos art. 408º, nº 1, do CC e no art. 5º, nº 1, do CRP conciliar-se-ia, de acordo com
o ensinamento do Prof. Varela (RLJ 118-315) da seguinte forma:
Nos contratos de alienação ou de oneração de coisa determinada, a constituição ou a
transferência do direito real opera-se por meio do contrato, salvo (além de outros casos previstos na
lei) quando se trate de coisas imóveis ou de móveis sujeitos a registo.
Neste caso, a constituição ou a transferência do direito real dá-se ainda por mero efeito do
contrato entre as partes ou seus herdeiros; todavia, em face de terceiros, a constituição ou
transferência do direito real apenas se verifica a partir da data do registo (art. 5º, n.° 1, do Cód. Reg.
Predial).
No caso de duas ou mais pessoas terem adquirido do mesmo transmitente direitos
incompatíveis, prevalecerá o direito que primeiro for levado ao registo (critério da prioridade do registo)
e não o correspondente ao contrato de alienação ou oneração mais antigo.

Notar-se-á que em 20 de Maio de 1997 o Pleno do STJ proferira AUJ, no BMJ 467-88 que consagrou um
conceito amplo de terceiros e deu mais força ao Registo Predial quando estabeleceu que Terceiros, para efeitos de registo
predial, são todos os que, tendo obtido registo de um direito sobre determinado prédio, veriam esse direito ser arredado por
um qualquer facto, jurídico anterior não registado, ou registado posteriormente.

Este AUJ foi alterado pelo de 18 de Maio de 1999, acima referido.

Apesar dele, o STJ - Col. 99-II-164 (Cópia distribuída com as Garantias das Obrigações) -
decidiu, em 7.7.99, que
I - A exigência de em acção de reivindicação ser feita pelo autor a prova de ter havido uma aquisição originária do
direito de propriedade ou uma ou várias aquisições derivadas que formem uma cadeia ininterrupta a terminar numa
aquisição originária do mesmo direito, vale para os casos em que o proprietário se limita a pedir a declaração de que é
dono.
II - A articulação entre esta exigência de prova de uma aquisição originária a fundamentar a existência do direito
de propriedade invocado, por um lado, e a força da presunção resultante da inscrição registral de aquisição, por outro, faz-
-se no sentido de que a dita inscrição registral dispensa o seu titular de provar a aquisição originária bem como a eventual
cadeia de aquisições derivadas anteriores à aquisição que conseguiu fazer inscrever.
III - No acórdão uniformizador proferido pelo STJ em 18/05/99 consagrou-se a orientação segundo a qual a
inoponibilidade de direitos a um terceiro, para efeitos de registo predial, pressupõe que ambos os direitos advenham de um
mesmo transmitente comum, excluindo-se os casos em que o direito em conflito com o direito não inscrito deriva de uma
diligência judicial, seja ela arresto, penhora ou hipoteca judicial.
IV - Na venda executiva o executado é substituído no acto da venda pelo juiz enquanto órgão do Estado,
gerando-se uma aquisição derivada em que o executado é o transmitente.
V - Por isso, ao adquirente em venda judicial não pode ser oposta, apesar daquele acórdão uniformizador, uma
transmissão anteriormente feita pelo executado a favor de uma outra pessoa que a não fez inscrever oportunamente no
registo predial.
VI - Aquele que adquiriu um direito de propriedade e omitiu o registo do negócio aquisitivo, não podendo opor
esse direito aos terceiros protegidos pelo registo, também não pode invocar perante os mesmos terceiros, para efeitos de
afastar a prevalência do direito destes, a posse do alienante, sob pena de a regra da inoponibilidade por falta de registo não
ter, na prática, qualquer eficácia.

22
Conclusão: ao adquirente em venda judicial não pode ser oposta, apesar daquele acórdão
uniformizador, uma transmissão anteriormente feita pelo executado a favor de uma outra pessoa que a
não fez inscrever oportunamente no registo predial, nem este adquirente que não registou pode somar
à sua a posse do alienante para poder invocar em seu favor a usucapião. E a presunção da titularidade
do direito resultante da posse (art. 1268º, nº 1) é ilidível e foi ilidida pela prova da titularidade do direito
de propriedade.

Em sentido contrário, com dois votos de vencido, decidiu o STJ (referido Ac. na Col. STJ 2002-
I-154 e comentado nos Cadernos de Direito Privado, cópia já distribuída) que o adquirente não
registante pode invocar a posse do seu antecessor para afastar a prevalência do adquirente que
registou a aquisição:

I – Na venda executiva gera-se uma aquisição derivada em que o executado é o transmitente.


II – Assim, o anterior adquirente do direito de propriedade não registado e o adquirente em
venda executiva de direito de propriedade registado são terceiros para efeitos de registo, nos termos
do n.º 4 do art. 5º do C. R. Predial.
III – Aquele que adquiriu um direito de propriedade e omitiu o registo do negócio aquisitivo
pode invocar a posse do prédio transmitido perante terceiro protegido pelo registo, para efeitos de
afastar a prevalência do direito deste.

Por último, o Ac. de 16.10.2008, proferido no P.º 07B4396, o STJ (Ex.mo Cons.º Pires da Rosa) decidiu:
1 – Recebem direitos (de propriedade) incompatíveis de um mesmo autor comum quem adquire esse direito por
compra e venda de uma determinada pessoa e quem o adquire em execução contra essa mesma pessoa, como
executada, dirigida.
2 – Estes dois adquirentes são, então, terceiros entre si para efeitos de registo.
3 – Qualquer que seja a natureza da venda judicial é do titular executado que provém o direito que o adquirente
adquire.
4 – Coisa diferente se passa em relação a um simples arresto, penhora ou hipoteca judicial uma vez que, em tais
casos, não estamos perante direitos reais de aquisição mas simples direitos de garantia.

Reler o Ac. 14/06/2005 (Cons.º Nuno Cameira), a pág. 81/83 de Garantias das Obrigações,
com o seguinte sumário na base de dados do ITIJ:

1 - A declaração de nulidade e consequente cancelamento da inscrição de propriedade a favor do transmitente de


certo bem imóvel não afecta os direitos sobre ele adquiridos a título oneroso por terceiro de boa fé se o registo desta
aquisição for anterior ao registo da acção de nulidade.

2 - Só nos casos em que o terceiro de boa fé não agiu com base no registo, isto é, quando o negócio inválido não
foi registado, é que deve aplicar-se o regime previsto no art.º 291º do Código Civil em lugar do estabelecido no art.º 17º, nº
2, do Código do Registo Predial.

3 - Age de boa fé, no âmbito do art.º 17º, nº 2, do Código do Registo Predial, aquele que no momento da
aquisição desconhecia, sem culpa, o vício de que o registo padecia.

4 - Se um registo provisório caducar por não ter sido convertido ou renovado dentro do prazo da respectiva
vigência a nova inscrição do mesmo facto posteriormente efectuada consubstancia um novo registo, e não a renovação do
registo provisório anterior.

POSSE - 1251º a 1301º


Regras gerais - 1251º a 1257º

23
Dizia Ihering, citado por Manuel Rodrigues, que a propriedade sem a posse é um tesouro sem
a chave para o abrir, uma árvore frutífera sem a escada necessária para lhe colher os frutos. Sem a
possibilidade de exercer os poderes em que se analisam, de que serviria ao proprietário o seu direito
de propriedade, ao usufrutuário o seu direito de usufruto?

Conceito - 1251º - Posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma
correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.

A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua sobre uma coisa por forma
correspondente ao exercício de determinado direito real (corpus) e o faz com a intenção de agir como
titular desse direito (animus).
Por detrás da actuação do possuidor pode não haver qualquer direito que a legitime ou
justifique, traduzindo-se a posse numa simples situação de facto, a que a ordem jurídica, todavia,
reconhece vários efeitos, que podem consistir, quando a situação possessória se prolongue por certo
período de tempo, na sua conversão ou transformação numa situação jurídica definitiva, pela via da
usucapião. Fala-se, a tal respeito, em posse formal ou ius possessionis.
Em regra, porém, o possuidor tem também a titularidade do direito que exerce pos-
sessoriamente. É a chamada posse causal ou ius possidendi.
Nesta segunda modalidade, a posse é apenas o lado material ou exterior de determinado
direito - a sua face concreta ou a sua expressão no plano da realidade física. Dito de outro modo, a
posse causal é o direito em acção.

Se alguém que tenha apenas uma posse formal alienar o direito correspondente à sua
actuação possessória, como se dele fosse titular, o beneficiário da alienação (comprador, donatário,
permutante, etc.) nada adquire por mero efeito do negócio porque se trata de uma aquisição derivada
e ninguém pode transmitir direitos que lhe não pertençam (nemo plus iuris in alium transferre potest
quam ipse habet).
Para que a transmissão se opere validamente, é necessário que o transmitente seja titular do
direito que constitui o objecto do negócio - RLJ 127-26.

Segundo P. Lima e A. Varela, o Código actual regressou aos princípios romanistas que só em
casos muito contados abrangiam a posse de direitos. Daí que estes Autores não admitam a posse do
direito de propriedade intelectual ou industrial (Ac. R.ão do Porto, na Col. 01-V-199, decidiu que não
pode adquirir-se por usucapião a propriedade de marcas comerciais ou industriais) mas apenas da
propriedade que incide sobre coisas corpóreas (III, pág. 2 e ss).

O art. 1302º CC estabelece que só as coisas corpóreas, móveis ou imóveis, podem ser
objecto do direito de propriedade regulado neste código.

A posse de herança só poderá exercer-se em relação a bens herdados concretos, pois sendo
a herança uma universalidade de coisas, direitos e obrigações não é susceptível de posse como tal.
Ver 1255º.

Também não haverá posse dos direitos reais de garantia: se estes direitos fossem
susceptíveis de posse, não teria o legislador necessidade de conferir tutela possessória ao penhor e
ao direito de retenção, como acontece com os art. 670º, a), 758º e 759º, 3, CC.
Porque na hipoteca e na consignação de rendimentos os bens sujeitos a estas garantias não
estão em poder do credor, não atribuiu a lei a estes credores qualquer forma de tutela possessória -
Ib., 4, citando H. Mesquita.

24
As coisas do domínio público são insusceptíveis de posse pelos particulares, estão fora do
comércio, e o Estado defende-as com os seus poderes de polícia. A posse é um instituto de direito
privado. Mas no rigor dos princípios nada obsta à posse de coisas do domínio privado do Estado,
como aconteceu na tentativa de usucapião pela C. M. Mirandela em relação ao Paço dos Távoras
onde funcionam os Paços do Concelho - R.ão Porto, Ac. na Col. 88-II-196. Outros casos veremos a
propósito da usucapião.
Esta matéria é estudada pelo Dr. Durval Ferreira, a pág. 75 e ss da 2ª edição de Posse e
Usucapião.

A posse é um direito real porque confere poder sobre uma coisa; é hereditável (1255º),
alienável (1256º) e registável (1294º e 1295º; 2º, 1, al. e), C. R. Predial). A lei concede ao possuidor a
tutela possessória - 1276º e ss.
Mas é um direito real provisório: Tutela-se a posse de ano e dia [(1267º, d)], mas apenas
enquanto não aparecer alguém a demonstrar a titularidade do direito correspondente, ou o direito real
pleno que é a propriedade - 1278º, 1, in fine: … enquanto não for convencido na questão da
titularidade do direito.

Como decidiu o STJ (Cons.º S. Paixão) em 8.5.2001, na Col. STJ 01-II-57:

I - A posse é protegida apenas por se presumir que, por detrás dela, existe na titularidade do possuidor o direito
real correspondente.
II - Penhorado um imóvel de sociedade comercial em execução fiscal contra ela movida, mesmo que o bem seja
entregue a um gerente da executada como depositário, cessou a posse daquela, sendo o depositário possuidor em nome
alheio, já que o imóvel fica à ordem do tribunal.
III - Vendido o prédio por propostas em carta fechada e passado o respectivo título de transmissão ao adquirente,
transfere-se para este o direito de propriedade, entrando na posse do prédio como consequência directa e imediata da
aquisição.

Tem sido muito discutido saber se o estabelecimento é susceptível de posse e de defesa possessória. Só a nível
do STJ pode indicar-se em sentido negativo - BMJ 348-384 e aí citados, com a seguinte justificação: como unidade jurídica
o estabelecimento comercial não é objecto de posse, por não ser possível dissociar todos os elementos que o integram, os
mais heterogéneos, desde as mercadorias ao aviamento e, acrescentamos nós, à própria «loja» onde o comerciante exerce
a sua actividade.
No mesmo Bol., pág. 116, vem publicado Parecer da PGR que concluiu pela impossibilidade de penhor sobre
estabelecimento – Perante os preceitos dos art. 666º e ss, do CC vigente, não é admissível a constituição de penhor sobre
um estabelecimento hoteleiro - , mas com douto voto de vencido e apoiado na doutrina dominante, de que se destaca:
Ora, como ensina Orlando de Carvalho, às coisas stricto sensu não pertencem só as coisas físicas ou coisas
corpóreas, mas igualmente as coisas incorpóreas, designadamente os objectos da propriedade autoral e industrial e o
estabelecimento ou empresa mercantil (que, aliás, tem uma incorporalidade sui generis)» (Direito das coisas, 1977, págs.
189 e segs.). Daí que, para este Autor, apesar de o artigo 1302º do Código declarar que «só as coisas corpóreas, móveis
ou imóveis, podem ser objecto do direito de propriedade regulado neste Código», há que lembrar que, para além de existir
propriedade para além da contemplada no Código (propriedade intelectual, cfr. o artigo 1303º), «outras coisas incorpóreas,
presumivelmente não abrangidas em uma tal disposição porque até hoje não objecto de legislação especial, como é o caso
do estabelecimento mercantil, são passíveis de verdadeira propriedade - ou de verdadeiro domínio, se se prefere -
propriedade a reger, enquanto outras normas não haja, tanto quanto possível pelo que o Código estatui (com as
adaptações exigidas, evidentemente, pelo seu carácter incorpóreo sui generis). De resto, a restrição do artigo 1302º valeria,
se valesse (e cremos demonstrado que não), apenas para o direito de propriedade: não já assim para o usufruto (artigo
1439º: «uma coisa ou direito alheio»), para o penhor (artigo 666º: «coisa móvel», «valor de créditos ou outros direitos») (...).
Que ao falar-se de «coisa» se fala aqui, não só de toda a coisa em sentido estrito, e, portanto, também das coisas
incorpóreas, mas mesmo de coisa em sentido amplo e, portanto, dos próprios direitos (quando susceptíveis de coisificação,
obviamente), é algo tão líquido quanto o envolver-se o estabelecimento mercantil naquele grupo de coisas stricto sensu
(visto não ser um direito, como é sabido). Nem de outro modo se entendiam disposições, como as dos artigos 94º, 3, 1118º,
1682º, 3 (1682ºA, nº 1, al. b), e 1938º, f), que postulam o estabelecimento como um objecto passível de alienação e
oneração como qualquer espécie de coisas» (últ. ob. cit., págs. 191 e segs.). [Não deixa, por isso, de admirar que Luís Brito

25
Correia, depois de afirmar que o estabelecimento é uma coisa « sui generis» (Direito Comercial, vol. III, 1983/84, pág. 36),
conclua que só pode ser objecto de penhor relativamente às coisas móveis que o integrem (ob. cit., págs. 62 e seg.),
parecendo, assim, excluir o penhor do próprio estabelecimento].
Mais não é preciso adiantar para fundamentar a opinião de que o direito vigente permite o penhor de
estabelecimento mercantil, instituto gerado na prática, aplaudido pela doutrina e aceite pela jurisprudência como uma forma
relevante de recurso ao crédito sobretudo por parte dos pequenos e médios empresários, lamentavelmente esquecido pelo
legislador até aos nossos dias (mais uma tentativa fruste de obviar à sua falta consistiu na recente introdução da «hipoteca
de fábricas», que o Código Civil de Seabra já previa, no artigo 691º do Código actual, pelo Decreto-Lei nº 225/84, de 6 de
Julho, mas nem por isso ignorado pela mesma prática que o gerou).

Em sentido algo diferente, parecendo admitir a usucapião de estabelecimento quando nele se


escreve: Assim, não sendo titulada a posse invocada pelo autor, e apenas conduzindo à usucapião a
posse sem título quando dure seis anos (artigo 1299º do Código Civil) - bem se decidiu nas instâncias
ao julgar-se improcedente a acção com a consequente absolvição do pedido, o BMJ 353-469.

Em sentido afirmativo vai boa parte da doutrina, como referido em nota a este Ac. e na Col. 96-
I-238 e IV-122.
Em ac. de 15.6.2000 - Col. STJ 2000-II-115 - decidiu-se que, embora seja possível a defesa
possessória do estabelecimento comercial, a usucapião só pode funcionar perante os elementos
corpóreos do estabelecimento e não sobre os seus elementos incorpóreos, como o direito de
arrendamento.
Parece-me que apesar da natureza do estabelecimento, porque ele pode ser comprado e
vendido – alienado - (trespasse) e penhorado - o art. 862ºA CPC diz precisamente como se faz a
penhora de estabelecimento, sendo que a penhora não é mais que o desapossamento - 848º CPC -, a
apreensão do bem para posterior venda - deve ser admitida a posse e defesa possessória do
estabelecimento, nomeadamente pelos antigos embargos de terceiro que deixaram de ser meio de
defesa só da posse para passarem a sê-lo, também, de qualquer direito incompatível com a realização
ou âmbito da diligência ordenada judicialmente - 351º, 1, CPC.
Idêntica discussão se passa com a possibilidade de posse de quota de sociedade, ou de
acções de S.A. ou outras participações sociais, com possibilidade ou não de usucapião.

Vimos, a propósito do penhor, que no Parecer na Col. 96-II-5 e ss, N. Serens e O. Carvalho
defendem o penhor; P. Carlos, Parecer na Col. 83-I -7, escreve expressamente que O dono de uma
quota de uma sociedade por quotas é seu possuidor, com «corpus» e «animus», e, por isso, pode
deduzir embargos de terceiro contra a respectiva penhora em execução movida contra outra pessoa.
Em sentido contrário, Parecer de A. Varela, na Col. STJ 93-I-265, e BMJ 421-450, com voto de
vencido.
O STJ admitiu a defesa por embargos de terceiro de acções de S.A. por entender que a acção
é um título de crédito com algo de corpóreo, no BMJ 334-430.

Segundo a doutrina tradicional, a posse é constituída por corpus - ou poder de facto, o


exercício, a prática ou possibilidade de prática de actos materiais, externos, virados para o exterior,
visíveis por toda a gente; e pelo animus, elemento psicológico, vontade, intenção de agir como titular
do direito real correspondente aos actos materiais praticados.
Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Serra Baptista), de 16.10.2008, Pr.º 08B2352:

A usucapião, preenchidos que se encontrem determinados pressupostos, faculta, como se sabe, a constituição do
direito real correspondente à respectiva posse – art. 1287º.
Sendo a posse conducente à dominialidade a posse em sentido estrito e não a posse precária ou mera detenção.

26
Sendo sabido, e quase pacificamente assim entendido, que o nosso legislador consagrou a concepção subjectiva
da posse, devendo esta ser integrada por dois elementos estruturais: o corpus (a actuação de facto correspondente ao
exercício do direito) e o animus, o seu elemento subjectivo (correspondente à intenção de exercer como seu titular, um
direito real sobre a coisa e não um mero poder de facto sobre ela) – art. 1251º, H. Mesquita, Direitos Reais, p. 68, Mota
Pinto, Direitos Reais, p. 189, P. Lima e A. Varela, CCAnotado, vol. III, p. 5, Acs do STJ de 5/3/91 (Pº 081671), de 28/5/02
(Pº01B1466), de 20/10/07 (Pº 07A1807) in www.dgsi.pt e de 14/5/96 (uniformizador de jurisprudência), in DR II S. de
24/6/96).

E, como se diz também neste referido acórdão deste Supremo Tribunal, uniformizador de jurisprudência, por ser
difícil, se não impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito
aparente, é que o art. 1252º, nº 2, tal como já sucedia no § 1º do art. 481º do C. de Seabra, estabelece uma presunção de
posse em nome daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus).

Com efeito, exigindo a lei o corpus e o animus para efeito de haver posse, e como a prova do animus poderá ser
muito difícil é estabelecida uma presunção legal que diz que, em caso de dúvida, se presume a posse naquele que exerce
o poder de facto. Daqui decorrendo que o exercício do corpus faz presumir a existência do animus – Mota Pinto, Direitos
Reais, p. 191.
Sendo, pois, o animus – elemento intelectual da posse – inferível pelo poder de facto: a intenção de domínio não
tem de explicar-se, presumindo-se, como já dito, a posse naquele que exerce o poder de facto.
Competindo àqueles que se arrogam a propriedade, provar que o detentor não é possuidor – art. 350º, nº 1.
Podendo, assim, adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de
facto sobre uma coisa – citado acórdão uniformizador de jurisprudência, de 14 de Maio de 1996.
Gozando, por outro lado, o possuidor da presunção da titularidade do direito, excepto se existir a favor de outrem
presunção fundada em registo anterior ao início da posse – art. 1268º, nº 1.
Presumindo-se, assim, que quem está na posse de uma coisa é titular do direito correspondente aos actos que se
praticam sobre ela.
Escrevendo, a respeito, Mota Pinto, in ob. cit., p.204 e 205:
“Esta presunção significa, portanto, que numa acção de reivindicação – uma acção em que, como já foi dito, se
pretende obter a declaração de propriedade e a restituição da coisa ao proprietário -, acção posta pelo proprietário contra o
possuidor, este não tem o ónus da prova, cabendo, assim, ao reivindicante esse encargo.
(…………………………………………………………………………………..)
Ora, isto – esta presunção legal estabelecida no art. 1268º - pode ser muito importante, porque pode ser atribuída
a propriedade ao possuidor, não propriamente porque o possuidor conseguiu provar que era proprietário, mas antes porque
não foi provado que ele não o era.”

Contudo, haverá que ver se tal ré exerceu o correspondente poder de facto sobre a biblioteca com animus
possidendi, ou se a respectiva presunção legal foi ilidida, não passando a mesma de mera detentora da coisa ou de sua
possuidora precária.

Considerando-se como tal, nos termos do art. 1253º:


“a) Os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito;
b) Os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito;
c) Os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, todos os que possuem em nome de
outrem.”

Não podendo os mesmos adquirir por usucapião, salvo se houver inversão do título – art. 1265º.
Havendo o detentor que tornar directamente conhecida da pessoa em cujo nome possuía a sua intenção de
actuar como titular do direito – P. Lima e A. Varela, ob. e vol. cit., p. 30.

Ora, in casu, provado ficou que, fazendo parte do acervo hereditário do EE, falecido em 26/2/83, no estado de
casado com a DD, uma biblioteca composta por cerca de 5.000 volumes, a mesma continuou em poder desta – não se
provando que apenas na qualidade de também herdeira – a qual, após o dito decesso, a tem vindo a aumentar com novas
aquisições, deixando-a usufruir por terceiros, sem qualquer oposição, dela cuidando e organizando, assim sucedendo por
mais de vinte anos após a morte do EE.
Pelo que se tem de ter como verificado o animus possessório por banda da ré DD.
Não sendo, assim, a mesma uma mera possuidora precária da biblioteca.
Não se tornando, pois, necessária qualquer inversão do título de posse.

27
Preenchidos se encontrando, assim, os pressupostos da sua aquisição da biblioteca por via da invocada
usucapião (que não opera ipso jure, tendo, para ser eficaz de ser invocada por quem dela aproveita) – arts 1287º, 1289º, nº
1, 1299º, segunda parte».

Embora não expressamente dito na lei, é pelo animus que se distingue as situações de posse
verdadeira e própria das de mera detenção - 1253º - tal como é pelo animus que se sabe que direito é
possuído.
Os actos correspondentes ao direito de propriedade, ao usufruto, à servidão, dão direito à
usucapião desse direito possuído - 1251º e 1287º - tantum praescriptum quantum possessum, mas só
se sabe se o possuidor possui como proprietário, como usufrutuário, se actua por forma
correspondente ao direito de propriedade, de usufruto, de servidão, de acordo com o respectivo
animus.
Presunções: 1252º, 1254º, 1257º e 1268º

O acto de aquisição da posse que releva para a usucapião terá de conter os dois elementos
definidores do conceito de posse: o corpus e o animus. Se só o primeiro se preenche, verifica-se uma
situação de detenção, insusceptível de conduzir à dominialidade, à aquisição do direito de propriedade.

Por ser difícil, se não impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja
coincidente com a prova do direito aparente, estabelece o n.° 2 do artigo 1252º, como já o fazia o § 1º
do artigo 481º do Código de 1867, uma presunção de posse em nome próprio por parte daquele que
exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus).

Porque a posse tanto pode ser exercida pessoalmente como por intermédio de outrem - 1252º
- e se mantém enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de
continuar essa actuação (1257º, nº 1), sentiu a lei necessidade de estabelecer as presunções do nº 2
dos art. 1252º e 1257º, segundo as quais se presume a posse naquele que exerce o poder de facto
(1252º, 2) e que a posse continua em nome de quem a começou (1257º, 2).

Divergências de interpretação destas normas levaram a Ac. Un. de Jur., no D.R. de 24.6.96 e
no BMJ 457-55, segundo o qual Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for
ilidida, os que exercem o poder de facto sobre uma coisa.

… «A posse, por certo lapso de tempo e com certas características, conduz ao direito real que indicia. É o
fenómeno da usucapião, definido no artigo 1287.º, como todos os a seguir indicados sem menção em contrário, do actual
Código Civil.
Mas a posse como caminho para a dominialidade é a posse stricto sensu, não a posse precária ou detenção.
Esta só é susceptível de levar à dominialidade se houver inversão do título de posse, como resulta do artigo 1290.º, que
corresponde ao artigo 510.º do Código Civil de Seabra.
Foi precisamente por configurar a actuação de Francisco sobre o imóvel, no período de tempo compreendido
entre finais dos anos 40 e inícios dos anos 50 e a data da sua morte, ocorrida em 1968, como um caso de detenção, nunca
invertida, que o acórdão recorrido recusou a possibilidade de aquisição do imóvel por usucapião.
São havidos como detentores ou possuidores precários os indicados no artigo 1253.º, ou seja, todos aqueles que,
tendo embora a detenção da coisa, não exercem sobre ela os poderes de facto com o animus de exercer o direito real
correspondente.
Como já acontecia com o Código Civil de 1867, o actual ordenamento jurídico português adopta a concepção
subjectiva da posse. Daí ser esta integrada por dois elementos estruturais: o corpus e o animus possidendi.
Define-se o corpus como o exercício actual ou potencial de um poder de facto sobre a coisa, enquanto o animus
possidendi se caracteriza como a intenção de agir como titular do direito correspondente aos actos realizados (2).
O acto de aquisição da posse que releva para a usucapião terá assim de conter os dois elementos definidores do
conceito de posse: o corpus e o animus.
Se só o primeiro se preenche, verifica-se uma situação de detenção, insusceptível de conduzir à dominialidade.

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Por ser difícil, se não impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova
do direito aparente, estabelece o n.º 2 do artigo 1252.º, como já o fazia o § 1.º do artigo 481.º do Código de 1867, uma
presunção de posse em nome próprio por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção
da coisa (corpus) (3).
Donde, e tendo em conta o que se dispõe no n.º 1 do artigo 350.º, competir àqueles que se arrogam a posse
provar que o detentor não é possuidor. O que não lograram fazer nem na hipótese versada no acórdão-fundamento nem na
contemplada no acórdão-recorrido. Contudo, enquanto no primeiro, com invocação expressa do § 1.º do artigo 481.º do
Código de Seabra, se deu como provado e apesar de os réus também não terem logrado afastar a presunção, ora recebida
no n.º 2 do artigo 1252.º, não se deu como preenchido o animus possidendi, precisamente por os autores não terem
demonstrado que o seu antecessor Francisco o tivesse exercido. O que vale por dizer que o acórdão recorrido desrespeitou
a regra do citado n.º 2 do artigo 1252.º Se a tivesse acatado, não poderia deixar de considerar preenchido o animus
possidendi por parte do referenciado Francisco, em conformidade com a presunção legal.
Julgam-se, assim, preenchidos não só o requisito corpus mas também o requisito animus por parte de Francisco,
tanto no momento da aquisição da posse como no da sua conservação, em conformidade com o que se dispõe no artigo
1257.º E os mesmos requisitos são de considerar preenchidos por parte dos seus herdeiros, ora recorrentes, como
continuadores da posse, nos termos do artigo 1255.º
E, por a aludida posse ter decorrido pelo tempo necessário à aquisição do imóvel dos autos por usucapião, não
pode a acção deixar de proceder como julgou a Relação.
4. Pelo exposto, na procedência do recurso, revoga-se o acórdão recorrido, para ficar a subsistir a decisão da 2.ª
instância, e uniformiza-se a jurisprudência nos seguintes termos:
Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre
uma coisa.

Custas deste recurso e do de revista pelos recorridos.


Lisboa, 14 de Maio de 1996.
Amâncio Ferreira (Relator) …

(2) Cfr., por todos, Manuel Rodrigues, A Posse, 3.ª ed., págs. 181 e segs.; Pires de Lima e Antunes Varela, ob.
cit., págs. 5 e seg.; Orlando de Carvalho, Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 122.º, págs. 65 e segs.; Mota
Pinto, Direitos Reais, 1970-1971, págs. 177 e segs.; Manuel Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, págs. 65 e segs.; e
Penha Gonçalves, Curso de Direitos Reais, 2.ª ed., págs. 238 e seguintes.
(3) Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 8; e Manuel Henrique Mesquita, ob. cit., pág. 72.

Há já muito ensinara M. Pinto que o exercício do corpus faz presumir o animus, presunção que
corresponde à normalidade das coisas, ao quod plerumque accidit.

Este AUJ foi aplicado pelo STJ em Ac. publicado na Col. STJ 97-I-37, versando conflito de
presunções: do registo - art. 7º - e do CC - 1268º e 1252º, 2, assim sumariado:

I - No nosso direito dá-se prevalência à usucapião e não ao registo.


II - Se o registo não for anterior ao registo da posse, prevalece a presunção derivada daquela.
III - O animus, como elemento da posse, é inferível, exprime-se pelo poder de facto; a intenção de domínio não
tem de explicar-se e muito menos por palavras.
IV - O art. 1252º, nº 2, do CC, visando facilitar a prova do animus, estabelece uma importante presunção de
posse para quem tem o poder de facto.

«Questão de fundo
Os AA. têm a seu favor a presunção advinda do registo (art. 7º do Cód. Reg. Predial); por outro lado, o R.,
relativamente à posse invocada, provou o corpus mas não provou o animus.
O art. 7º do Cód. Reg. Predial prescreve que o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e
pertence ao titular inscrito.
Por seu lado o art. 1.268º do Cód. Civil estatui que o possuidor goza da presunção de titularidade do direito,
excepto se existir a favor de outrem presunção fundada em registo anterior ao início da posse.
Escreve sobre este artigo Oliveira Ascensão ... que no nosso direito se dá prevalência á usucapião e não ao
registo.
Mais importante que a situação escrita é a situação real.
Se o registo não for anterior ao início da posse, prevalece a presunção derivada daquela.
Isto mesmo que o interessado só tenha conseguido provar a posse actual.

29
Da posse, mesmo actual, deriva logo a presunção de propriedade, que só cede se for provado um registo anterior
ao início da posse.
Se o titular do registo não provar também a anterioridade deste em relação à posse, não goza da presunção de
propriedade (neste caso, o registo dos AA. é de 1992).
Tem-se entendido que no nosso direito prevalece a concepção subjectiva da posse (Savigny).
Nesta concepção a posse é integrada por dois elementos:
- o corpus, que consiste no domínio de facto sobre a coisa, e
- o animus, que é a intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele
domínio de facto - vide M. Henrique Mesquita, in Direitos Reais, 1967, pág. 67.
O mesmo autor escreve a seguir (pág. 72) que não há grande diferença prática entre as concepções objectiva e a
subjectiva.
Chama a atenção para o art. 1.252º, nº 2, que, visando facilitar a prova do animus, estabelece uma importante
presunção de posse para o que tem o poder de facto.
Ensina por seu lado Orlando de Carvalho (Introdução à posse, in R.L.J., 122, pág. 68) que tem uma ideia errada
do animus quem mantenha a concepção dos glosadores e do primitivo Savigny, de pura intentio, puro logos avulso,
sobreponivel, como a alma dos gnósticos, à aparência de facto.
Não existe corpus sem animus nem animus sem corpus.
Corpus é o exercício de poderes de facto que intende uma vontade de domínio, de poder jurídico-real.
Animus é essa intenção jurídico-real.
E inferível, exprime-se, pelo poder de facto.
A intenção de domínio não tem de explicitar-se e muito menos por palavras.
O que importa é que se infira do próprio modo de actuação ou de utilização (lato sensu).
O Pleno deste Tribunal, em acórdão recente de uniformização da jurisprudência (de 14/05/96, publicado no D.R.
II, de 24/06/96), aplicou esta doutrina, ao extrair a seguinte conclusão:
«Podem adquirir por usucapião, se a presunção de posse não for ilidida, os que exercem o poder de facto sobre
uma coisa».
Escorando-se no art. 1252º, nº 2, considerou o Pleno que o poder de facto faz nascer uma presunção de posse,
não sendo lícito ao Tribunal exigir ainda a quem invoca a posse a prova, sempre difícil, do animus.

Ficou provado que os antecessores do R. agricultaram o prédio, durante 20 a 30 anos, ininterruptamente, através
de colonos.
Isto significa que aqueles antecessores (Raul Cunha e mulher) tiveram a posse (provou-se o corpus, o que
chega, nos termos do art. 1252º, nº 2) do chão, sendo os colonos donos de eventuais benfeitorias.
Porque a posse do chão se prolongou por mais de 20 anos, houve usucapião, nos termos do art. 1296 do Cód.
Civil.
Tendo adquirido por usucapião, os antecessores do R. podiam vender-lhe o prédio, como fizeram».

Pelo que foi a acção (fundada na presunção do registo - art. 7º CRP) julgada improcedente e
procedente a reconvenção (baseada em posse anterior ao registo - 1268º), declarando-se o reconvinte
dono do prédio e mandando-se cancelar o registo existente a favor do Autor.

Consagra a lei outra presunção no art. 1254º - posse no tempo intermédio do possuidor actual
que possuiu no tempo mais remoto, desde que titulada a posse actual - também correspondente ao
que é normal acontecer.

1253º - Casos de simples detenção

Da conjugação dos art. 1251º e 1253º resulta indiscutivelmente (H. Mesquita, 75) a
consagração da doutrina subjectivista de Savigny. Perde-se a posse pela perda do corpus - perda,
roubo ou destruição da coisa ou do animus, como acontece no constituto possessório - 1264º: o
proprietário que vende a casa em que continua a viver mas agora na qualidade de inquilino, passando
a pagar renda (1264º, 1), ou vende a casa com inquilino que continua lá dentro (1264º, 2): em qualquer
destes casos transferiu a propriedade e a posse para o comprador, embora este não chegue a entrar
na casa.
1255º e 1256º - Sucessão e acessão de posse

30
São dois casos em que a posse continua nos sucessores; É causa de sucessão na posse a
morte do possuidor; Não é necessária a apreensão material da coisa, entendendo-se por sucessores
tanto os herdeiros como os legatários, embora Oliveira Ascensão ensine que só de herdeiros se trata.
Dá-se acessão na posse quando o sucessor inter vivos soma, junta a sua própria posse à do
seu antecessor. Assim, se o vendedor de um imóvel o possuiu durante dez anos, o vendeu e o
comprador continuou a possui-lo durante mais dez anos, então este comprador pode invocar a
aquisição da propriedade por usucapião, somando a sua posse com a do seu antecessor.

Por outro lado, se o direito estiver sujeito a registo, o adquirente só poderá opô-lo a terceiros depois de registar o
negócio aquisitivo.
Suponhamos que A, Proprietário de determinado prédio e, simultaneamente, Possuidor (posse causal), vende o
imóvel a B, que não regista a compra.
Se A, entretanto, vender de novo o prédio a C e este registar o negócio aquisitivo, é ao seu direito que deverá
reconhecer-se prevalência. O registo a favor de C torna a venda feita a B, não obstante a sua anterioridade, absolutamente
ineficaz.

Ora, se os preceitos do registo não permitem que B oponha a C o direito de propriedade que adquiriu de A,
também não podem permitir que B afaste a prevalência do direito de C mediante a invocação da posse do transmitente,
pois essa posse mais não é do que a face material ou concreta do direito que a lei declara inoponível a terceiros. A regra da
inoponibilidade deve abranger não só o direito cujo registo se omitiu, mas também a posse (posse causal) que lhe
corresponde.
Não se interpretando a lei nestes termos, o registo nenhuma segurança conferiria aos negócios a ele sujeitos e
deixaria, consequentemente, de ter qualquer importância prática.
Com efeito, todo aquele que não inscrevesse determinado direito no registo e tomasse conhecimento de que fora
registado um direito conflituante poderia, quando assim fosse, alegar que adquirira já o direito por via possessória, juntando
à sua posse a do transmitente e a dos demais antecessores, até onde se tornasse necessário para completar o prazo da
usucapião.
Foi precisamente isto o que aconteceu no caso decidido pelo acórdão em apreciação. Tendo sido realizadas
sucessivamente duas vendas do mesmo apartamento (uma em 1977, por negociação particular, e a outra em 1984, por
arrematação judicial) e só a mais recente constando do registo, os herdeiros do primeiro comprador, demandados em
acção de reivindicação pelo segundo, invocaram a usucapião (que não carece de registo), argumentando que se
encontravam na posse do apartamento e que ao possuidor é permitido, nos termos do artigo 1256º do Código Civil, juntar à
sua posse, para efeito de preenchimento do prazo de que a lei faz depender a aquisição originária do direito, a posse do
transmitente e a dos demais antecessores.
As instâncias e o Supremo aceitaram este entendimento e, com base nele, negaram qualquer direito ao
comprador que tivera o cuidado de cumprir o ónus do registo e ordenaram o cancelamento da inscrição feita a seu favor.
Abriu-se, deste modo, uma porta que facilmente permitiria neutralizar ou privar de toda a eficácia prática a regra
que declara um direito real não inscrito no registo (quando deva sê-lo) inoponível a terceiros que adquiram e registem sobre
a mesma coisa direitos incompatíveis.
Trata-se, sem a menor sombra de dúvida, de uma interpretação que desfere um rude golpe no instituto do registo
predial e na segurança que, através dele, o legislador pretende conferir ao comércio jurídico imo biliário. Por isso se entende
que deve ser rejeitada - RLJ 127-27.

No mesmo sentido decidiu o STJ, na Col. 2003-I-197 e na Col. STJ 99-II-164, acima visto:

Aquele que adquiriu um direito de propriedade e omitiu o registo do negócio aquisitivo, não
podendo opor esse direito aos terceiros protegidos pelo registo, também não pode invocar perante os
mesmos terceiros, para efeitos de afastar a prevalência do direito destes, a posse do alienante, sob
pena de a regra da inoponibilidade por falta de registo não ter, na prática, qualquer eficácia.
Contra: o também já referido na Col. Jur. STJ 2002-I-154, com votos de vencido.
Para fazer funcionar este instituto da acessão de posses exige a lei que a transmissão da
posse se faça por título formalmente válido - 1259º, 1 e Col. 80 -IV-288, BMJ 256-170, 259-227 e 353-
469.
Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Alves Velho), de 27.11.2007, no P.º 07A3815:

31
- Invocado como título de aquisição do direito de propriedade a usucapião, que é uma forma de aquisição
originária, e provados os respectivos factos integradores, o direito não poderá deixar de ser reconhecido ao requerente.
- Se se invocar um título de aquisição derivada, como a compra e venda, então, é ainda necessário que se
demonstre que o direito já existia na titularidade no transmitente, pois que o contrato não é constitutivo do direito de
propriedade, mas apenas translativo.
- Quando assim seja, pode assumir especial relevância a figura da acessão da posse a que se refere o art. 1256º
C. Civ., facultando a junção da posse do adquirente à do seu antecessor.
- O título a que alude e exige a norma do n.º 1 do art. 1256º é o que a lei também exigir para que o negócio de
transmissão seja formal e substancialmente válido, não relevando, para o efeito, como título legítimo de aquisição, um acto
nulo, sendo que, neste caso, só pode ser invocada a posse pessoalmente exercida e não a dos antepossuidores.

E resulta do nº 2 que as posses devem ser contínuas e homogéneas, só se somando dentro


das que têm menor âmbito: o possuidor na qualidade de usufrutuário pode somar à sua posse uma
posse anterior de proprietário, porque no direito de propriedade se contém o usufruto. Um possuidor de
boa fé pode juntar uma posse anterior de má fé, ou vice-versa, embora em qualquer dos casos a
posse seja considerada de má fé, por ser aquela que tem menor âmbito – P. Lima – A. Varela, III, 15.

Caracteres da posse - 1258º a 1262º

Titulada - 1259º - Nenhum vício de fundo afasta hoje categoricamente a titularidade da posse,
incluindo entre eles a simulação - embora na simulação absoluta seja difícil ocorrer o animus
possidendi - o erro, a coacção, a ofensa de lei de ordem pública, etc. A lei prescinde apenas da
validade substancial do negócio jurídico. Se o acto é nulo por vício de forma, como se, por exemplo, se
compra um prédio por escrito particular, ou verbalmente, a posse que daí deriva não é titulada.
A partilha não será justo título, não converte em titulada uma posse que o não era; o inventário
e a escritura de partilhas não são negócios translativos, falta neles o transmitente de que fala o art.
1259º, nº 1 - PLAVarela, III - 19; contra: D. Marques, Prescrição aquisitiva, ali citado.

Dada a natureza interpretativa deste art. 1259º, é ele de aplicação retroactiva - 13º.

«Pires de Lima e Antunes Varela, em ora já clássicas " Noções Fundamentais de Direito Civil ", II (5ª ed., 1962),
63, ensinavam que o justo título referido no art. 518º do C. Civ. de 1867 era " qualquer título capaz de transferir a
propriedade da coisa, mesmo que no caso concreto a não haja transferido ".
Era, a outro tempo, considerada de boa fé, conforme arts. 476º e 520º do mesmo Código, a procedente de título
de que o possuidor não conhecesse os vícios no momento da aquisição, julgando, portanto, estar a exercer legitimamente
o seu direito (ibidem, 64).
Desta sorte, já então era posse titulada, a que, tal como actualmente decorre do art. 1259º C. Civ. e elucidam
Mota Pinto (" Direitos Reais " (1972), 199) e Oliveira Ascensão (" Direitos Reais " (1974), 278), se funde em modo idóneo,
em abstracto, para determinar a aquisição, independentemente de, no caso concreto, o transmitente ter ou não o direito a
transmitir e da validade substancial do negócio jurídico. "Esse negócio jurídico é o título da posse; justo título lhe chamava
o Código de 1867, não porque seja um título válido em concreto (...), mas porque em abstracto ele seria adequado para a
obtenção do efeito jurídico que se pretende " (Oliveira Ascensão, loc.cit.) (7) - Ac. STJ (Cons.º Oliveira Barros), de
16.11.2006, P.º 06B2897.

Posse de boa e de má fé - 1260º - conceito psicológico. Interessa para o regime de frutos -


1270º e 1271º; encargos - 1272º; benfeitorias (arts. 1273.° a 1275º); fixação do prazo da usucapião
(arts. 1294º a 1296º e 1298º a 1300º) e pressupostos da acção de reivindicação, na hipótese do artº
1301º - coisa comprada de boa fé a comerciante.

Com o regime do art. 1301º visa proteger-se o comércio. Mas tal regime não é aplicável se a
coisa vendida em comércio e reivindicada saiu da esfera do proprietário reivindicante por meios

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fraudulentos, por furto, etc.; Por desnecessidade de protecção do comércio, não se aplica este regime
às coisas móveis sujeitas a registo, como os automóveis - BMJ 315-296 e P.º 08B2720.

Posse pacífica e violenta - 1261º - a violência pode ser contra as coisas ou contra as pessoas,
mas exclui-se a ameaça lícita e o simples temor reverencial, nos termos do art. 255º. Só interessa a
violência exercida no início da posse, pois só se inicia a posse a partir da cessação da violência -
1261º, 1 e 2, 1267º, 2, in fine e 1297º.

Posse sob violência - 1300º, 2 e O. Carvalho, RLJ 122º - 293.

Posse pública - e oculta - 1262º - Não é necessário que a posse seja exercida à vista dos
interessados, mas que o seja de forma a poder ser deles conhecida.

Veremos a propósito da usucapião que é indispensável, para que a posse conduza à


aquisição, por usucapião, do direito possuído, que ela (posse) seja pacífica e pública - 1297º - sendo
os restantes caracteres - boa fé e registo - simples factores de diminuição do tempo de posse - 1294º
a 1296º.
Aquisição da posse - 1263º a 1266º

Notar aqui a inversão do título – 1265º - por acto de terceiro - arrendatário que compra a casa
a non domino e deixa de pagar rendas ao antigo senhorio. Esta inversão há-de resultar de acto capaz
de transferir a posse.

Constituto possessório 1264º:

CONSTITUTO POSSESSÓRIO
POSSE DETENÇÃO
USUCAPIÃO

I - Nos termos do artigo 1264º, nº 1, do Código Civil, se o titular do direito real, que está na posse da coisa,
transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transmitida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer
causa, aquele continue a deter a coisa.
II - O «constituto possessório» é, assim, uma forma de aquisição solo consensu da posse, isto é, uma aquisição
sem necessidade de um acto material ou simbólico que a revele.
III - A posse, como caminho para a dominialidade - para a usucapião a que se refere o artigo 1287º do Código
Civil - é a posse stricto sensu, e não a posse precária ou detenção (artigo 1290º do mesmo Código), sendo certo que são
tidos como detentores ou possuidores precários os referidos e enumerados no artigo 1253º do Código Civil, isto é, todos os
que, tendo embora a detenção da coisa, não exercem sobre ela os poderes de facto com o animus de exercer o direito real
correspondente.
IV - Tendo a ré vendido ao autor, por escrituras públicas documentadas no processo, determinados imóveis, não
podia ela continuar a praticar aí actos como se fosse a proprietária dos prédios, pois deixou de ter o animus rem sibi
habendi e de ser possuidora dos mesmos.
V - Face à existência das escrituras públicas de compra e venda desses imóveis, não podia ser dado como
provado, pelo tribunal colectivo, que a ré agiu sempre «como se fosse dona» (resposta ao quesito 19) e «convicta de que
não lesava direitos de outrem» (resposta ao quesito 20), pelo que se têm as mesmas respostas por não escritas, nos
termos do nº 4 do artigo 646º do Código de Processo Civil, assim se alterando, nesta parte, a matéria de facto, como o
permitem os artigos 729º nº 2, e 722º nº 2, do mesmo Código - STJ, Ac. 10 de Dezº de 1997, BMJ 472-483.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Garcia Calejo) de 17.4.2008, Pr.º 07A4348:



«Nos termos do art. 1265º “a inversão do título de posse pode dar-se por oposição do detentor do direito contra
aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse”. Ou seja, a inversão da posse, dá-se
quando ocorra uma oposição por parte do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro
capaz de transferir a posse.

33
No caso vertente, teremos que nos debruçar, num primeiro momento, sobre se existiu um acto de oposição dos
AA. contra a proprietária, a falecida D. EE, tendo passado a partir de então a comportarem-se como titulares do direito em
causa, o usufruto.
Como se viu, a atitude dos AA. relativamente à casa, modificou-se a partir da emissão da declaração emitida pela
proprietária e já acima referenciada. A partir desse momento, deixaram de pagar as rendas e convencidos que eram
“usufrutuários”, (porque se convenceram que a proprietária nessa qualidade os havia constituído), passaram-se a
apresentar, designadamente junto dos outros condóminos, como “usufrutuários” da dita fracção autónoma. Quer dizer, a
partir dessa altura, os AA. assumiram um comportamento diferente em relação à coisa, alterando o animus possedendi (ou
a vontade de se comportar) em relação a ela. Mas para ocorrer a inversão do título de posse não basta a modificação da
vontade de comportamento em relação à coisa. É necessário que a exteriorização da vontade seja categórica, seja
revelada por actos positivos de oposição ao proprietário, de forma a sobrepor-se à aparência que era representada pelo
título. Os actos terão que ser praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem. O que
se pretende com o dispositivo do art. 1265º é, a nosso ver, que sem ambiguidades, se transmita ao detentor do direito em
cujo nome se possuía, a modificação da atitude, manifestando-lhe a intenção de passar a actuar sobre a coisa, como titular
do direito e já não como mero detentor. A oposição de que fala a disposição não terá que implicar controvérsia ou disputa
entre o possuidor e o titular do direito, mas um acto positivo (material ou jurídico) inequívoco de forma a que este fique
absolutamente ciente da alteração de conduta, psicológica operada, em relação ao bem imóvel».

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Azevedo Ramos) de 9.9.2008, no Pr.º 08A1988:



«Por outro lado, cumpre ainda salientar que, embora se tivesse apurado que, desde 30-5-64, o autor se passou a
julgar dono do andar e da arrecadação, o certo é que não basta tal estado psicológico de convicção interior, nem o facto do
mesmo, desde 1966, ter comparticipado em certas despesas do andar e do prédio ou de ter pago a contribuição autárquica,
a partir de 1974, pois não foi feita prova da inversão do título da posse em que aquele se encontrava, que teria de ser
efectuada por oposição aos promitentes vendedores e levada ao conhecimento destes, em virtude da posse em nome
próprio não ter sido originariamente conferida aos autores.
Nos termos do art. 1265 do C. C., a inversão do título da posse só pode dar-se por oposição do detentor do
direito contra aquele em cujo nome possuía ou por acto de terceiro capaz de transferir a posse.
Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed, pág. 30) “torna-se
necessário um acto de oposição contra a pessoa em cujo nome o opoente possuía.
Nesse sentido pode dizer-se que ainda se mantém a regra “nemo sibi causam possessionis mutare potest “.
Não basta sequer que a detenção se prolongue para além do termo do título (depósito, mandato, usufruto a
termo, etc) que lhe servia de base.
O detentor há-de tornar directamente conhecida da pessoa cujo nome possuía (quer judicial, quer
extrajudicialmente) a sua intenção de actuar como titular do direito “.
Para ser eficaz, a inversão da posse tem de traduzir-se “em actos positivos (materiais ou jurídicos) inequívocos
(reveladores que o detentor quer, a partir da oposição, actuar como se tivesse sobre a coisa o direito real que até então
considerava pertencente a outrem) e praticados na presença ou com o consentimento daquele a quem os actos se opõem
(Henrique Mesquita, Direitos Reais, 1967, pág. 98).
Ora, desde a outorga do ajuizado contrato promessa, os autores tiveram muitas oportunidades para inverterem o
título da posse precária em que estavam investidos, levando ao conhecimento dos réus (ou dos seus herdeiros), quer
judicial ou extrajudicialmente, a sua intenção de actuar como titulares do direito de propriedade sobre os mencionados
andar e arrecadação.
Mas nunca o fizeram, designadamente quando foram notificados pela ré EE, em 25-7-79, para lhe enviarem o
contrato promessa e para esclarecerem se estavam na disposição de outorgar a respectiva escritura de compra e venda .
E apenas se provou que os réus sempre souberam e nunca se opuseram à utilização que os autores faziam do
andar, por eles expressamente consentida mediante a entrega das chaves, na sequência da celebração do contrato
promessa, nada se tendo apurado quanto ao conhecimento, pelos réus, da mudança da convicção pessoal dos autores,
nem quanto ao conhecimento do pagamento dos aludidos encargos que estes passaram a efectuar.
Em face do exposto, não operou a aquisição, por usucapião, do andar e arrecadação, a favor dos autores, não
obstante o largo período de tempo decorrido sobre a outorga do contrato promessa de compra e venda, nem pode ser
declarado constituído o pretendido regime de propriedade horizontal.»

Perda da posse - 1267º

Não confundir abandono com inércia: a posse do direito de propriedade só desaparece pela
posse de outrem exercida esta por mais de um ano, a antiga posse de ano e dia - al. d) do nº 1.

34
Notar, no n.º 2 deste art. 1267º, o início da contagem da nova posse, correspondente ao art.
1297º (para usucapião).
Efeitos da posse - 1268º a 1275º

O mais importante efeito da posse é a presunção da titularidade do direito possuído - 1268º.

Havendo conflito de presunções, uma derivada do registo (artigo 7º do Código de Registo


Predial) e outra emergente da posse (artigo 1268º, nº 1, do Código Civil), prevalece esta última que só
cede no confronto com a presunção derivada de registo anterior ao início da posse - BMJ 414-545,
assim sumariado e com a seguinte factualidade:

Por escritura de 1968 A doou uma casa a B; em 1975, a mesma A instituiu C sua única herdeira, apesar de
apenas ser dona daquele prédio que doara; falecida A em 1976, C praticou sobre a casa inúmeros actos de posse, obras
de vulto, etc.
B obtém, em 1986, registo a seu favor e reivindica de C o prédio; C reconvém com base em usucapião ou
acessão, obtendo ganho de causa com base no nº 1 do art. 1268º do CC, como se vê desta passagem do Acórdão:

«... a recorrida (C) detém o prédio, mau grado a doação cuja validade não foi posta em causa no acórdão
recorrido, desde Dezembro de 1976 (pelo menos), enquanto que o registo, a favor do recorrente marido, é de cerca de 10
anos depois, exercendo sobre ele todos os actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, nomeadamente
por transformação do bem reivindicado, mercê de importantes obras, de grandes proporções, realizadas durante anos, na
presença de todos e sem oposição de quem quer que fosse, até ao embargo das mesmas.
Daí ser a sua posse sobre o prédio titulada, pacífica, de boa fé e pública.
A inscrição do prédio a favor do autor marido, na Conservatória do Registo Predial, ocorreu em 1986; portanto,
muito tempo depois de iniciada a posse por parte da ré recorrida e operada cerca de 18 anos sobre a doação em que se
baseou.
Donde a óbvia conclusão de que prevalece a posse da ré por iniciada antes do registo.»

***
«1. O art. 1268º, nº. 1 do CC estabelece presunção de titularidade do direito.
- Esta presunção porque se baseia numa aparência, só funciona quando o sujeito se apoderou facticamente da
coisa. Uma posse meramente jurídica, como a resultante de constituto possessório, não dá presunção de titularidade. Não
precisa de ser a posse efectiva, tal como é reclamada pela usucapião, mas é uma posse que tem de se manifestar por uma
actuação fáctica sobre a coisa - cf. Oliveira Ascensão, Direito Civil Reais, 5ª ed., págs. 106.
A posse que determina presunção da titularidade do direito não será a que já produziu usucapião, pois que esta é
uma forma concreta de aquisição originária. Assim, a posse a que se reporta o art. 1268º, nº. 1 só pode ser a que ainda lhe
falta capacidade aquisitiva por carência do decurso de tempo necessário.
Pode dar-se o caso de o titular inscrito haver transmitido o seu direito a um primeiro adquirente, deixando aquele
de ser titular do direito, permitindo que um terceiro obtenha um título, mediante, p. ex., a venda executiva. Este título é
substancialmente inválido porque representa aquisição a non domino. Se registado, constitui presunção de que o direito
existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define - art. 7º do C. R. Predial.
Trata-se de presunção legal geralmente taxada de juris tantum. Deste modo pode ser ilidida mediante prova do
contrário - art. 350º, nº. 2 do CC.
2. Como a posse é presunção de titularidade (art. 1268º, nº. 1) pode surgir um conflito desta presunção e da que
se funda no registo.
- Quem deve então ser afinal considerado proprietário, o possuidor ou quem o registo proclama titular?
2a) À sombra do Código de Seabra, surgiram várias opiniões: a de Manuel Rodrigues a defender a prevalência da
presunção fundada no registo - cfr. a Posse, págs. 326; a de Vaz Serra, a defender o confronto das duas disposições que
estabelecem as presunções em conflito, de modo a apurar-se qual a que contém um princípio geral e qual um preceito
especial, tendo este preferência - cfr. BMJ 110-196/198; o do Ac. do STJ de 19.6.60 no sentido de no caso de colisão de
presunções de propriedade dever dar-se prevalência à que emerge do acto ou facto mais antigo - cf. BMJ nº. 195, pág.
227.
- A posição correcta era a firmada pelo STJ dado atender ao princípio geral da prevalência do direito real mais
antigo sobre a mesma coisa, princípio este imanente no Código de Seabra - arts. 1578º e 1580º.

2b) O conflito de presunções decide-se, no Código vigente, à sombra do art. 1268º, nº. 1, que estabelece a
hierarquização das suas presunções:

35
- se o registo for anterior ao início da posse, prevalece a presunção fundada no registo.
- se a posse for anterior à data do registo, prevalece a presunção fundada na posse.
A hierarquização das duas presunções está, pois, na determinação da data do início da posse.
Para este efeito, se a posse for titulada, pode-se utilizar a presunção do art. 1254º, segundo o qual se presume
que há posse desde a data do título - cf. P. Lima e A. Varela, CC anot., vol. III, 2ª ed., págs. 35.

2c) A quem cabe a presunção de titularidade quando não ficou provada a antiguidade da posse?
A resposta está no art. 1268º, nº. 1:
a presunção fundada na posse só cede quando existir registo anterior ao início da posse, o que significa que se
se não prova que o registo é anterior ao início da posse, prevalece a presunção fundada na posse, e isto mesmo que o
interessado só tenha conseguido provar a posse actual, como bem salienta Oliveira Ascensão ao escrever:
"Da posse, mesmo actual, deriva logo a presunção de propriedade, que só cede se for provado um registo
anterior ao início da posse. Se o titular do registo não provar a anteriroridade deste em relação à posse, não goza da
presunção de titularidade" - cfr. ob. cit., 356 – Ac. do STJ (Miranda Gusmão), de 4.4.2002, na Col. Jur. STJ 2002-I-154 a
158.
***
«Ora, as presunções de titularidade, quer se fundem no registo (art. 7.° do CRegP), quer na posse, são
presunções iuris tantum, ou seja, ilidíveis mediante prova em contrário. Deste modo, ainda que a presunção fundada na
posse seja anterior ao registo, a presunção pode ser ilidida sempre que o titular inscrito no registo prove que o bem lhe
pertence.
Assim, quando o art. 1268.°, n.° 1, do CC determina que a presunção de titularidade fundada na posse deve
ceder quando existir uma presunção fundada em registo anterior ao início da posse está-se a referir, de acordo com a
classificação proposta por ORLANDO DE CARVALHO, ao efeito imediato, e ao não efeito central, do registo 2. Aliás, o
citado autor refere-se a este artigo para demonstrar que a lei prevê expressamente a possibilidade de coexistência de uma
presunção de titularidade fundada na posse e outra no registo, para daí concluir que contra o efeito central do registo pode
erguer-se uma aquisição por usucapião, ou seja, que o primeiro adquirente pode adquirir por usucapião contra aquele que
adquiriu pelo registo. Ora, se à aquisição pelo registo obstasse uma posse anterior, não era necessário defender que o
primeiro adquirente pode adquirir a propriedade por usucapião, sempre que a sua posse se iniciasse antes do registo, o
que acontecerá, as mais das vezes, em face do art. 1254.°, n.° 2, do CC. Consequentemente, entendemos que a aquisição
por usucapião não está circunscrita às hipóteses em que se prove que a posse foi adquirida depois de o terceiro ter
efectuado o registo.
Através de alguns exemplos será mais fácil perceber o que tentámos demonstrar. Imaginemos que A vende a B
uma determinada fracção autónoma, que B passa a habitar, sem contudo registar a sua aquisição. Sendo A e B
presumíveis proprietários do imóvel, o legislador entendeu que deveria resolver este conflito de presunções de titularidade,
considerando que, em caso de dúvida, deve prevalecer a presunção fundada na posse, a menos que se prove que o
registo é anterior ao início da posse. Assim, neste caso, prevaleceria a presunção de A, uma vez que a posse de B se
iniciou depois do registo existente a seu favor. Ora, não é pelo facto de B não ter registado a sua aquisição que ele deixa
de ser proprietário do imóvel, uma vez que a propriedade se transferiu para ele por mero efeito do contrato de compra e
venda (arts. 408.°, n.° 1, e 879.°, alínea a), do CC).
Da mesma forma, se após A ter vendido a referida fracção autónoma a B e lha ter entregue, a vender a C e este
registar a aquisição, B e C terão simultaneamente a seu favor uma presunção de titularidade do bem, devendo prevalecer
aquela que se tiver constituído em primeiro lugar. Isto não significa que, se a posse de B tiver tido início antes do registo a
favor de C, este não possa ilidir a presunção provando que é o proprietário.
Assim como, caso A venda o mesmo imóvel a B e, posteriormente, a C, B não deixa de ser proprietário do imóvel
pelo facto de A ter transmitido a posse a C antes de B ter registado, desde que B registe a sua aquisição antes de C o ter
feito.
Se entendermos que o registo tem um efeito aquisitivo, enquanto elemento integrante de um facto complexo de
produção sucessiva através do qual é possível ao terceiro adquirir a titularidade do direito, é possível concluir que o terceiro
para efeitos de registo adquire um direito de propriedade sobre o imóvel e, nessa medida, pode ilidir a presunção de
titularidade do possuidor.

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5. O efeito aquisitivo do registo
2
- A este propósito, defende ORLANDO DE CARVALHO que do registo decorrem três espécies de efeitos: o efeito
imediato que consiste na presunção iuris (autuo; de titularidade do direito (art. 7.° do CRegP), o efeito central que
determina "inoponibilidade a terceiros dos factos sujeitos a registo enquanto este se não fizer, acompanhada da
substituição, em matéria de prevalência, da regra da prioridade da aquisição pela da prioridade da inscrição" e os efeitos
laterais "que são aqueles que se consignam na lei, independentemente dos dois outros efeitos", como, por exemplo, os
arts. 291.°, 435.', 1294.° e 1298.°. Cfr. ORLANDO DE CARVALHO, "Terceiros para efeitos de registo", cit., p. 101.

36
A interpretação apresentada exige que se demonstre em que medida é que o registo, não sendo constitutivo,
pode ter um efeito aquisitivo.
Uma vez que, nos termos do art. 5.°, n.° 1, do CRegP, o facto não registado não é oponível a terceiros para
efeitos de registo, aquele que, sendo terceiro e estando de boa fé, procede ao registo do facto aquisitivo prioritariamente
torna-se titular do direito real sobre o bem, não por via negocial, porque o contrato será nulo por violação do princípio do
nino plus iuris, mas por força da lei.
Na esteira de CARVALHO FERNANDES, entendemos que o facto jurídico complexo de produção sucessiva — do
qual fazem parte um negócio inválido por violação do princípio do nemo plus iuris, a boa fé do terceiro e um registo
prioritário — simultaneamente funciona como facto impeditivo de eficácia do primeiro negócio celebrado, mas não
registado, e determina que o terceiro se torne o único e efectivo titular do direito. A solução não podia deixar de ser esta
porque, de outra forma, existiriam dois direitos reais exactamente com o mesmo conteúdo sobre o mesmo bem.
Aquele que confiou no registo não pode ver prevalecer o direito de outrem com base na posse, ainda que esta
fosse uma posse causal no momento em que foi adquirida. Relevante é que, no momento em que o referido facto complexo
de produção sucessiva se verifica, a posse deixa de ser causal e passa a ser formal. Nessa medida, a presunção de
titularidade fundada na posse pode ser ilidida mediante a prova de que o bem pertence a outra pessoa.
Num ordenamento como o português, em que a posse não permite sequer que o terceiro adquirente de bens
móveis não sujeitos a registo possa adquirir a propriedade do bem, não teria sentido que a posse pudesse pôr, de alguma
forma, em causa uma aquisição tabular.

6. Conclusões
1. A posse e o registo predial são, no ordenamento jurídico português, as duas formas de publicidade de direitos
reais sobre imóveis.
2. Tanto a posse como o registo fazem presumir a titularidade do direito.
3. Sendo as duas presunções ilidíveis, qualquer uma delas, independentemente do momento em que se tenham
constituído, pode ser ilidida mediante a prova da titularidade do direito.
4. Adquirindo o terceiro para efeitos de registo a propriedade do bem, o anterior proprietário deixa de o ser, pelo
que, ainda que seja o possuidor, a sua presunção de titularidade pode ser afastada, mesmo que a posse se tenha
constituído antes do registo.
5. Aquele que, de boa fé, tenha adquirido do mesmo autor um direito (total ou parcialmente) incompatível sobre o
mesmo bem e registe prioritariamente a sua aquisição torna-se, por força da lei, o titular do direito que, em virtude do
princípio do nemo plus iuris, não tinha adquirido por via negocial.
6. O credor penhorante, assim como qualquer outro titular de um direito obtido por acto unilateral, pode ser
considerado terceiro para efeitos de registo. – Ana Maria Taveira da Fonseca, Cadernos de Direito Privado, nº 20 (Out. a
Dez. 2007), 23 a 25.

Ver Ac. na Col. STJ 97-I-37, transcrito a propósito da presunção do n.º 2 do art. 1252.º e ac.
de 7.7.99, na Col. STJ 99-II-164, já acima citado, a estudar mais detalhadamente aquando da acção
de reivindicação.

Os restantes efeitos da posse verificam-se nos casos de:


Perda ou deterioração da coisa - 1269º - enquanto o possuidor de boa fé só responde com
culpa, o de má fé responde mesmo sem culpa. Resta-lhe o recurso ao disposto no art. 807º, nº 2, ou
seja, a possibilidade de provar que o credor teria igualmente sofrido os danos se a obrigação tivesse
sido cumprida em tempo.
Frutos - possuidor de boa fé - 1270º e 212º - conceito de frutos.
- possuidor de má fé - 1271º - ver 215º - despesas de cultura.

Encargos - 1272º - encargos normais que correspondem ou estão adstritos à sua fruição,
como as contribuições, juros, amortizações, apanágio.

Benfeitorias - 1273º a 1275º -


Conceito - 216º - Espécies: n.ºs 2 e 3 - necessárias -
as que têm por fim evitar a perda, a destruição ou deterioração da coisa;

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úteis - as que, não sendo indispensáveis para a sua conservação, lhe
aumentam, todavia, o valor;
voluptuárias - as que não sendo indispensáveis para a sua conservação nem
lhe aumentando o valor, servem, apenas para recreio do benfeitorizante.

No tocante a benfeitorias necessárias e úteis, rege o art. 1273º: Tanto o possuidor de boa fé
como o de má fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem
assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento
da coisa benfeitorizada - nº 1 - pois que se ocorrer tal detrimento - a apreciar objectivamente - tem o
possuidor direito ao valor das benfeitorias (úteis, claro), calculado esse valor segundo as regras do
enriquecimento sem causa - 479º: A medida da restituição tem como limites o custo das benfeitorias -
empobrecimento - e o do enriquecimento do titular da coisa.

A propósito da expressão segundo as regras do enriquecimento sem causa , do art. 1273º, n.º
2, decidiu o STJ, em seu Ac. de 4.4.2000, no BMJ 496-223:
«Convém ter presente que o conceito de indemnização nesta situação não é o mesmo que indemnização de
perdas e danos. Nem a sua causa nem os seus fins são os mesmos.
Nesta situação estamos perante dois sujeitos ligados por uma relação de arrendamento (rural), um deles
incorpora bens seus e (ou) faz despesas em bens alheios, não podendo levantar, sem detrimento, as beneficiações feitas.
Por definição só são de considerar as incorporações que beneficiam.
Se beneficiam e tem de ficar sem elas, o dono do prédio que com elas fica tem de as pagar.
Segundo o Decreto-Lei n.º 5411 pagava-as pelo valor que tinham findo o contrato, não repugnava porque tinham
sido consentidas e o facto de só dizerem respeito a arrendamentos por menos de 20 anos pressupunha que não tinham
sido amortizadas.
Segundo a Lei n.º 2114 o valor «era calculado pelo seu custo se não exceder o valor do benefício à data da
cessação do arrendamento. No caso contrário não poderá haver mais do que esse valor.»
Segundo o Código Civil de 1966 a obrigação de restituir o enriquecimento pressupõe que alguém tenha
enriquecido e que esse enriquecimento tenha sido feito à custa de outrem, o que pressupõe a entrada num património de
valores que segundo a lei deviam pertencer a outro património.
Essa obrigação não pode exceder o valor do empobrecimento nem o do enriquecimento. Se com um
empobrecimento de 10 de alguém outrem enriquece 100, só tem de restituir 10; se com o empobrecimento de 100 só
enriquece 10 só tem de restituir 10.
Segundo o Dec.-Lei n.º 335/88 a forma de indemnização é a mesma.
Para se liquidar a obrigação de indemnizar temos de saber quanto custaram as benfeitorias, procedendo à
actualização monetária desse custo à data do fim do contrato, temos depois de saber em que medida essas benfeitorias,
no fim do contrato, valorizam o prédio. Na posse destes valores, de acordo com os critérios apontados, fixamos a
indemnização.
Da matéria de facto provada nós sabemos «o valor actual da benfeitoria, tendo em conta o que seria o custo da
sua efectivação e a depreciação provocada pelo uso».
Segundo o que entendemos da dita expressão, avaliou-se a benfeitoria como nova, hoje, e fez-se o cálculo da
sua desvalorização pelo tempo. Cremos que isto não respeita o critério legal. Temos de saber quanto valorizam o prédio as
benfeitorias hoje (data da denúncia do arrendamento) e qual foi o seu custo, actualizado à mesma data.
Não temos elementos para fazer uma tal avaliação e nem pela ampliação da matéria de facto os obteríamos.
Só nos resta, reconhecendo o direito à indemnização, relegar para execução de sentença a liquidação da
mesma».

Porque se trata de uma dívida de valor, deve ser actualizado de acordo com a desvalorização
da moeda: Entre a data da realização das benfeitorias e a data em que é reclamada a respectiva
indemnização pode mediar um longo período e o possuidor deve receber o valor real que despendeu
para conservar a coisa ou para lhe introduzir melhoramentos. O possuidor deve receber o montante
que seria necessário para, no momento da reivindicação, fazer aquelas benfeitorias - P. Lima -A.
Varela, CC Anotado III, 43.

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Este regime aplica-se de modo directo à posse propriamente dita; e, indirectamente, também a
situações que não são de posse verdadeira e própria, como o credor pignoratício - 670º, b) - o
locatário, considerado possuidor de má fé - 1046º, comodatário, idem - 1138º, 1, o usufrutuário,
considerado possuidor de boa fé - 1450º, 2 e 1459º, 2.

Quanto às voluptuárias - 1275º - distingue a lei entre o possuidor de boa fé - que só as pode
levantar desde que não haja detrimento para a coisa, pois, se houver tal detrimento, não tem direito a
qualquer valor; o possuidor de má fé perde sempre as benfeitorias voluptuárias, pudesse ou não
levantá-las sem detrimento para a coisa.

Foi considerada benfeitoria útil a construção de casa de banho com porta e janela em casa
emprestada ao benfeitorizante - BMJ 414-556; Mas não se lhe concedeu o direito de haver o valor das
benfeitorias por não ter o benfeitorizante alegado - como lhe cumpria 342º, nº 1 - que o levantamento
das benfeitorias provocava detrimento para a casa objecto da benfeitoria.

«Com referência ao direito de indemnização por benfeitorias, provou-se que a ré construiu, no quintal do prédio,
um pavilhão para armazenagem de bicicletas e motorizadas, tendo gasto na obra não mais de 150.000$00, e que a
senhoria «teve conhecimento da realização desta obra».
Mesmo admitindo-se, como se decidiu nas instâncias e é aceite pela recorrente, que se trata de benfeitorias úteis,
sujeitas ao disposto no artigo 1273º do Código Civil, não procede a pretensão da sua indemnização.
Por esse artigo 1273º o possuidor tem direito «a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o
possa fazer sem detrimento dela» (nº 1); e «quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das
benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas ...» (nº 2).
O acórdão recorrido negou o direito a indemnização porque a ré não alegou que o levantamento das benfeitorias
«iria provocar detrimento na coisa» e, pelo tipo de construção, «não é possível chegar-se a saber se esse tal detrimento
existiria ou não no caso de serem levantadas», cabendo à ré o ónus da prova desses factos.
A recorrente alega, no essencial, que «resulta da vistoria judicial ... que tal pavilhão foi cons truído em
argamassa» e que as benfeitorias «não podem, até por definição, ser levantadas sem detrimento», mas essa divergência
respeita a simples matéria de facto (a possibilidade de detrimento da coisa), cuja reapreciação não cabe a este tribunal
(artigo 722º, 2, do Código de Processo Civil).
Ainda por outra via se deve concluir como no acórdão recorrido: resulta do disposto no citado artigo 1273º que o
direito do possuidor é, em princípio, o de levantar as benfeitorias, apresentando-se o direito a indemnização como efeito ou
consequência da existência de detrimento da coisa, provocado pelo levantamento; a possibilidade desse detrimento
configura-se assim como circunstância impeditiva daquele primeiro direito do possuidor; por isso, e porque o detrimento
deve incidir sobre a coisa, sendo indiferente o relativo às benfeitorias, é ao dono da coisa que cabe invocar o dano, quando
for pedido o levantamento, como meio de oposição a este, com o consequente reconhecimento do direito a indemnização;
se o possuidor pedir a indemnização, a oposição do dono da coisa implica o reconheci mento do direito ao levantamento,
não se colocando então qualquer problema de ónus da prova.
Esta solução é idêntica à que resultava da lei anterior, onde se dispunha que «a possibilidade de detrimento será
apreciada pelo vencedor» (artigo 499º, § 3º, do Código Civil de 1876), mas não deve atribuir-se relevância ao facto de a lei
actual não reproduzir essa disposição, uma vez que aquela solução está de harmonia com a letra da lei e se apresenta
como a mais razoável na medida em que o dono da coisa deve poder optar entre sofrer o detrimento (permitindo o levanta-
mento das benfeitorias) ou evitá-lo (pagando a indemnização).
No caso presente, os autores opuseram-se ao pedido de indemnização e isso seria suficiente, como se notou,
para a sua improcedência - Ac. de 27.4.99, BMJ 486-274.

Por míngua de elementos caracterizadores não foi considerada benfeitoria necessária a introdução dum sistema
de tratamento de águas duma piscina - BMJ 357-440.

O sublocatário ou cessionário ilícitos - não autorizados, não reconhecidos como tais ou não comunicada a cessão
- não são possuidores em nome de outrem relativamente ao prédio arrendado, pelo que não têm direito a benfeitorias,
mesmo úteis, nem direito de retenção e consequentes embargos - Col. STJ 1997-III-143.

DEFESA POSSESSÓRIA - 1276º a 1286º

39
Como direito real que é, ainda que provisório no sentido visto (art. 1278º, n.º 1, in fine), a
posse goza da protecção do Direito que, além da acção directa - 336º e 1277º - lhe consagra, apertis
verbis, cinco diferentes tipos de acções ou providências, a saber:

1 - Acção de prevenção - 1276º - Supõe justo, sério, fundado receio de turbação ou esbulho
da posse. Acção de pouca ou nenhuma utilidade, por substituída, com vantagem, pela providência
cautelar não especificada ou procedimento cautelar comum, hoje regulada no art. 381º e ss e antes no
art. 399º CPC para a turbação ou esbulho (395º) e

2 - Restituição provisória de posse em caso de esbulho violento - 393º CPC e art. 1279º CC,
sendo o conceito de violência o consagrado no art. 1261º, 2, remissivo para o 255º.
Se houve simples turbação ou esbulho não violento, pode o possuidor perturbado ou
esbulhado recorrer ao procedimento cautelar comum - 395º CPC.
Na questão de se saber se a violência fundamento da Restituição Provisória de Posse há-de
ser só contra as pessoas ou também contra as coisas, decidiu o Supremo que a violência, para
caracterização do esbulho, tanto pode ser praticada sobre as pessoas como sobre as coisas que
constituem obstáculo ao esbulho - BMJ 477-506.
O recurso a esta providência não afasta (sem prejuízo do disposto nos artigos anteriores) o
recurso imediato à

3 - Acção de restituição - 1278º - cujo fundamento é o esbulho, a privação, o desapossa-mento


total ou parcial, ainda que sem apossamento da coisa pelo esbulhador.
Esta acção pode ser proposta pelo esbulhado ou seus herdeiros contra o esbulhador ou seus
herdeiros e, ainda, contra quem, tendo conhecimento do esbulho, esteja na posse da coisa - art.
1281º, nº 2.
Se a actividade do agente não chega a ser esbulho, cabe ao possuidor a

4 - Acção de manutenção - 1278º - pois, apesar da perturbação, da turbação, o ofendido


mantém a posse, a retenção ou fruição existente ou a sua possibilidade. A turbação é mais que
ameaça e menos que esbulho.
Pode ser intentada pelo perturbado ou pelos seus herdeiros, mas apenas contra o perturbador;
a eventual acção de indemnização já pode ser instaurada contra os herdeiros deste - art. 1281º, nº 1;
não é permitida entre compossuidores - 1286º, nº 2.

5 - Embargos de terceiro - 1285º CC e 351º CPC - providência que tem de característico ser
meio de defesa não só da posse mas também - desde a reforma processual de 95/96 - de qualquer
direito incompatível com a realização ou âmbito de diligência ordenada judicialmente.

Dada a natureza das servidões não aparentes, o uso destas acções em defesa delas só tem
lugar quando a posse se funda em título provindo do proprietário do prédio serviente ou de quem lho
transmitiu - 1280º.
Perante este documento fica suprida a sempre difícil prova da posse da servidão não
aparente, precisamente por não aparente, por não se revelar por sinais exteriores – art. 1548º, n.º 2,
CC.
A natureza de direito real provisório que a posse tem determina que esta não será mantida ou
restituída se o requerido, o turbador ou esbulhador convencer de que é ele o titular do direito
alegadamente possuído, do direito real correspondente que a lei presume - 1268º, nº 1 - estar por
detrás da posse perturbada ou esbulhada - 1278º, nº 1.
No mesmo sentido o disposto na parte final do nº 5 do art. 510º do CPC.

40
Casos há, porém, em que a prova da propriedade não implica a improcedência do pedido
possessório, nomeadamente quando a lei concede defesa da posse mesmo contra o proprietário,
como sucede com o locatário, - 1037º, 2, CC.
Por força do nº 2 do art. 1278º e dado que a posse se perde, como se viu - 1267º, 1, d) - pela
posse de outrem por prazo superior a um ano, tem o requerente da restituição ou manutenção de
provar que a sua posse dura há mais de ano.
Considera a lei que só depois de decorrido este prazo há uma situação de posse
suficientemente definida e assente, merecedora de tutela jurídica.
Se não provar tal posse, só será restituído ou mantido contra quem não tiver melhor posse,
graduando-se as posses em concorrência de acordo com os critérios do nº 3 deste art. 1278º: posse
titulada, mais antiga, actual.
1282º - Caducidade

Pela mesma razão que se protege a posse de ano e dia, estabelece a lei a caducidade das
acções de manutenção e de restituição se não forem instauradas dentro do ano subsequente ao facto
da turbação ou do esbulho, ou ao conhecimento dele quando tenha sido praticado a ocultas: não vale
a pena instaurar acção para defesa de posse que se perdeu há mais de um ano porque a posse de
outrem, por mais de um ano, é, ela própria, tutelada pelo direito - art. 1267º, n.º 1, al. d).
Os embargos de terceiro devem ser deduzidos no prazo do art. 353º, nº 2, do CPC; se a título
preventivo - 359º CPC: antes de realizada mas depois de ordenada a diligência.

Ver Parecer de M. Pinto, na Col. 85-III-31.

1281º- Legitimidade
1283º e 1284º - Efeitos e indemnização (P.º 08A2179)

Obtidas a restituição ou a manutenção, é o requerente havido como se nunca tivesse sido


esbulhado ou perturbado - 1283º - com direito a indemnização e a ser restituído no lugar do esbulho e
à custa do esbulhador - 1284º.

1286º - Defesa da composse

Tal como cada comproprietário pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que seja lícito
opor-lhe que ela lhe não pertence por inteiro - 1405º, 2 - e à semelhança do que se passa com a acção
de petição de herança por um só herdeiro - 2078º, 1,- também cada um dos compossuidores, seja qual
for a parte que lhe cabe, pode usar contra terceiro dos meios facultados nos artigos precedentes, quer
para defesa da própria posse, quer para defesa da posse comum, sem que ao terceiro seja lícito opor-
lhe que ela não lhe pertence por inteiro - 1286º, 1.
Já se disse que entre compossuidores não é permitido exercício da acção de manutenção –
art. 1268º, n.º 2.
USUCAPIÃO

Chamava-lhe o antigo Direito Prescrição Aquisitiva e porque o Registo Predial não era
obrigatório nem hoje é, em regra, constitutivo, quase sempre as questões de titularidade do direito se
resolviam por apelo à usucapião, forma de aquisição originária do direito de propriedade e de outros
direitos reais de gozo.
Não havia praticamente acção real em que o A. não invocasse esta forma de aquisição, quase
sempre com fórmulas correntes em que se alegavam os factos integradores dos conceitos de posse

41
pública, pacífica, contínua e de boa fé, por mais de 30 anos e até por tempo que excede a memória
dos vivos.
Ainda hoje é assim, pois a presunção resultante do registo é ilidível e cede perante a
resultante da posse desde que mais antiga (art. 1268º, n.º 1, CC), como vimos - BMJ 328-546 414-545
e Col. STJ 97-I-37.
É aqui que mais ressalta a função pacificadora e de segurança da posse, transformando, pelo
decurso do tempo, a situação provisória que é a posse na situação definitiva que é o direito de
propriedade ou de outros direitos reais de gozo que durante anos se possuíram.

De entre os modos de aquisição do direito de propriedade (1316º), de usufruto (1440º) e de


constituição de servidões (1547º), avulta a usucapião que a lei define assim no

art. 1287º
A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso
de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo exercício
corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.

Daqui se vê que a usucapião vive da união dos dois elementos nucleares que são a posse e o
decurso do tempo.
É um modo de aquisição originária de direitos reais, pela transformação em jurídica duma
situação de facto, em benefício daquele que exerce a gestão económica da coisa.
A posse boa para usucapião há-de ter as características de posse verdadeira e própria, não
sendo, por isso, usucapíveis direitos que, embora dotados de tutela possessória, se reconduzem a
situações de mera detenção (arrendamento); outros casos há em que a lei, porque não é clara a
situação de posse, não admite a usucapião, como acontece com as servidões prediais não aparentes
(art. 1280º) e com os direitos de uso e habitação - 1293º.

Mesmo que houvesse fraccionamento ilegal, nos termos do art. 1376, nº 1, do C. C., desde que esteja invocada a
usucapião e se verifiquem os respectivos pressupostos (pressupostos que resultaram apurados no caso presente), procede
a aquisição do direito de propriedade, com base na usucapião, relativamente ao prédio dos autores.
É que a usucapião constitui uma forma de aquisição originária.
A lei, ponderando determinados aspectos que considerou relevantes, assumiu que certas situações de facto
pudessem converter-se em verdadeiro direito, como acontece quando a posse se prolonga por um período de tempo
significativo.
A usucapião é o instrumento capaz de se sobrepor a certas vicissitudes ou irregularidades formais ou
substanciais, relativamente a actos de alienação ou de oneração de bens.
Através da usucapião, o sistema jurídico, provada que seja a realidade substancial de que depende, confere a
legitimidade de que carecia o possuidor, independentemente da natureza do vício que afecta a sua posição face ao bem.
Consequentemente, só resta concluir que das regras da usucapião decorre que o direito correspondente à posse
exercida é adquirido ex novo e, por isso, está imune aos vícios que anteriormente pudessem ser apontados (Carvalho
Fernandes, Lições de Direitos Reais, 207) – Ac. do STJ (A. Ramos), de 19.10.2004, Procº 04A2988, base de dados do ITIJ.

…«Em 1982, o 1 ° Réu efectuou o pagamento integral do preço acordado.


O 1° Réu, por si e seus antepossuidores, tem agricultado e benfeitorizado, tratado vinha, plantado milho, batatas
e feijão, contratando e pagando a trabalhadores, colhendo os respectivos frutos, que vende ou consome.
O que sempre foi feito à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem oposição de ninguém,
ininterruptamente, agindo e comportando-se relativamente a ele como seu verdadeiro e exclusivo proprietário e na
convicção de que com a sua posse não lesava os direitos de outrem.»

Feita esta enumeração, e delimitado como está o objecto do recurso pelas conclusões das alegações da
recorrente, começaremos por dizer que ele carece de razão.
Com efeito, como se preceitua no art.º 1311° C. Civil (acção de reivindicação) o proprietário pode exigir
judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente
restituição do que lhe pertence.

42
A aqui Autora recorrente formula em primeira linha o pedido de reconhecimento do seu domínio sobre o prédio
em questão e de entrega dele pelos Réus.
E fundamenta a sua propriedade sobre o mesmo na usucapião.
Ora como se estabelece no art.º 1287° C. Civ. a posse do direito de propriedade (ou de outros direitos reais de
gozo) mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo
exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.
E a posse como caminho para a dominialidade é a posse "stricto sensu".
Anote-se que a posse na sua força jurísgena aspira ao direito, tende a converter-se em direito.
Daí que o ordenamento não somente a proteja, como a reconheça como um caminho para a dominialidade,
reconstituindo, através dela, a própria ordenação definitiva.
É o fenómeno da usucapião, cuja "ratio" Heck vislumbra no valor do conhecimento (Erkentnisverten) que a posse
é.
A usucapião é, no que importa agora considerar, uma forma originária de aquisição do direito de propriedade e
requer que a posse tenha certas características, que seja, de algum modo, "digna" do direito a que conduz. O que nela se
homenageia, é menos a posse em si do que o direito que a mesma indicia, que é a prefiguração do direito a cujo título se
possui.
Donde a exigência, em qualquer sistema possessório, de uma posse em nome próprio, de uma intenção de
domínio, e uma intenção que não deixe dúvidas sobre a sua autenticidade (v. Prof. Orlando de Carvalho, Introdução à
Posse, Ver. de Legislação e Jurisprudência, 122, pág. 67).

Como se estatui no art.º 1251° C. Civ. posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma
correspondente ao exercício do direito de propriedade (ou de outro direito real).
E sabe-se que o direito real se pode definir como a afectação jurídicoprivada de uma coisa corpórea aos fins das
pessoas individualmente consideradas, caracterizando-se, assim, a relação de natureza real por um direito de domínio ou
de soberania (total ou parcial) sobre a coisa em que incida, por um poder que todos os outros têm de respeitar (cfr. Prof.es
P Lima, Lições de Direito Civil - Direitos Reais, pág. 50, Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1, pág. 351, Henrique Mesquita,
Direitos Reais, pág. 10, e Oliveira Ascensão, Direitos Reais, pág. 72).
Como também se conhece que naquela supra mencionada definição legal de posse são sensíveis a nota do
"corpus" (quando alguém actua) e a nota do " animus" (por forma correspon-dente ao exercício do direito de propriedade ou
de outro direito real).
E há uma relação biunívoca entre "corpus" (exercício de poderes de facto que intente uma vontade de domínio,
de poder jurídico real) e "animus" (intenção jurídico-real, a vontade de agir como titular de um direito real, que se exprime e
"hoc sensu" emerge ou é inferível em/ou de certa actuação de facto).
Em suma, o acto de aquisição da posse que releva para a usucapião terá, assim, de conter aqueles dois
elementos, definidores do conceito de posse (cfr. Durval Ferreira, Posse e Usucapião, pág. 126 e seg, Almedina).
Por outro lado, é preciso esclarecer (e não esquecer) que a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no
registo, mas na usucapião.
Esta como cabalmente resulta do art.º 7° C. R. Predial em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais. Por
isso o que se fixou no registo passa à frente dos títulos substantivos existentes, mas nada pode contra a usucapião (Prof.
Oliveira Ascensão, obra citada, pág. 413).
E com estas considerações se clarifica a questão essencial a resolver no caso "sub judice".

Reafirma-se que se constata nesta acção de reivindicação que o pedido formulado pela Autora é, em primeira
linha, a declaração do seu direito de propriedade sobre o prédio denominado "Retorta e Souto de Ovil", em Machossas,
Ancêde, Baião, e em segunda linha, a sua violação pelos detentores ilícitos.
Ora sucede que o ónus da prova dos factos constitutivos da declaração desse direito cabe à Autora, como resulta
do disposto nos art.°s 342 e 1311 C. Civil, e nenhum desses factos estão provados.
Mas bem mais do que isso lograram os Réus provar que adquiriram o direito de propriedade sobre o dito prédio
através da via originária da usucapião, como manifestamente resulta da matéria de facto provada.
Tudo a significar que improcede a pretensão de domínio da Autora em relação àquele prédio, e que, em
consequência, fica prejudicada a apreciação da nulidade dos dois actos notariais praticados (escritura de justificação
notarial de 13/1/95 e de compra e venda à O em 20/6/95) e da pretensão de condenação do Réu a pagar-lhe as supra
mencionadas quantias em dinheiro.
Como nota final o dizer-se que os documentos que a recorrente destaca não têm a força probatória que ela lhes
pretende dar, e, designadamente, que a escritura de fls. 207 a 213 faz prova plena de todos os factos nela atestados,
enquanto documento autêntico, incluindo a declaração de quitação total emitida pelo vendedor a favor do comprador (sabe-
-se que os documentos autênticos apenas fazem prova plena dos factos atestados com base em percepções do
documentador ou dos que se passam na sua presença - cfr. art.° 371° C. Civil).

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Por tudo o exposto, e sem necessidade de mais amplas considerações, improcedem as conclusões das
alegações da recorrente, sendo de manter o decidido no acórdão recorrido, que não violou preceitos legais ou cometeu
nulidades, "maxime" aqueles e aquelas aludidas pela Autora – Ac. do STJ (Fernandes Magalhães) de 7 de Junho de 2005,
Proc. 05A1607.

I - Na compropriedade, a quota de cada contitular é ideal e o uso da coisa comum por um deles não constitui
posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título.
II - Sendo apenas dois os contitulares a comungarem num único direito de propriedade, a inversão do título de
posse, entre eles, apenas se poderá dar por oposição de um ao outro dos contitulares, de uso por um contra o uso que o
outro pretendesse fazer da coisa - aqui, a substituição da posse do réu e da autora, cada um como compossuidor
comproprietário, para posse, por cada um, em nome próprio e passando esta posse, com o animus de actuar como titular
do direito de propriedade sobre a “sua” metade, a ser directamente conhecida do outro compossuidor comproprietário.
III - Provada a materialização há mais de 20 anos e em que cada um passou a possuir, como se sua fosse,
mutuamente se privando do uso sobre a totalidade do prédio e limitando-o à metade que lhe ficava demarcada, sem
qualquer interferência do outro, metade essa cuja área legalmente permitia a divisão do prédio (portaria n° 202/70 de
21.04) constitui prova indiscutível da inequivocidade da posse que cada um passou a exercer apenas em nome próprio e
revela que a oposição ao outro não sofre contestação; inexiste o direito de preferência por cada um ter adquirido por
usucapião a «sua» metade concretamente separada da outra e cada um a tendo possuído com animus possidendi por
tempo suficiente e com as características próprias para se consolidar o direito de propriedade respectivo.
IV - A lei apenas determina como consequência do abuso de direito a ilegitimidade do seu exercício. Cabe à
jurisprudência, face ao concreto caso submetido a litígio, a definição dos termos dessa ilegitimidade.
Ac. do STJ (Lopes Pinto) de 05.02.01, na Revista 4652/04

1. A presunção reportada à definição da situação jurídica dos prédios não abrange os seus elementos de
identificação, designadamente a área respectiva, as confrontações e os artigos matriciais de referência.
2. Como o comproprietário, por força do seu próprio título, é possuidor em nome alheio quanto aos direitos dos
restantes condóminos, não poderá adquirir o respectivo direito por usucapião sem a verificação de um comportamento
idóneo à inversão do título da posse.
3. Ocorre essa inversão quando dois comproprietários dividem o prédio comum em duas partes iguais, como se
passassem a existir dois prédios distintos, e a partir daí cada um passa a comportar-se em relação a cada uma delas como
se fosse o seu exclusivo proprietário.
4. Em regra, a posse implica a presunção legal da titularidade do direito; e a excepção ocorre no caso de colisão
entre ela e a presunção derivada do registo de um direito anterior ao início da posse, caso em que prevalece esta última
presunção.
5. Adquirido por uma pessoa o direito de propriedade sobre um prédio por contrato de compra e venda celebrado
por escritura pública no dia 24 de Julho de 1979, que passou desde então a exercer sobre ele, de boa fé, pacifica e
publicamente, o poder de facto correspondente ao exercício daquele direito, com intenção de se comportar como seu
titular, ela adquiriu, no dia 24 de Julho de 1994, sobre aquele prédio, por usucapião, o direito de propriedade, reportado à
data do início dessa actuação.
6. Não releva no confronto da pessoa mencionada sob 5 o registo predial no dia 3 de Outubro de 1994, a favor de
outra, de um décimo do direito de propriedade sobre o aludido prédio.
7. Esta última não tem o direito de preferir na venda de nove décimos do direito de propriedade sobre aquele
prédio ocorrida no dia 21 de Maio de 1996, exclusivamente feita nessa proporção por virtude da existência da mencionada
inscrição no registo – Ac. STJ (Cons.º Salvador da Costa) de 15.12.2005, P.º 05B3944


«3.2. A outra questão que cumpre a este Tribunal enfrentar é a da (im)possibilidade de os autores, ora recorridos,
enquanto meros comproprietários e, por isso, possuidores em nome alheio relativamente ao que excede a sua quota,
adquirirem, por usucapião, o direito de propriedade sobre a parcela em causa.
Mas, tal como entenderam as instâncias, também aqui claudica a argumentação dos recorrentes.
Da matéria de facto que vem dada como assente – e que, em função do que ficou referido no n.º anterior, cabe a
este Tribunal aceitar – colhe-se que o prédio referido em I, inscrito no art. matricial 2106 da freguesia de Cernache, era
composto, desde antes de Dezembro de 1977, por três parcelas, perfeitamente delimitadas, separadas entre si e
autónomas, por força das estradas que atravessavam o prédio, sendo a maior (aqui referenciada pela letra A) conhecida
como «Olival». E, no acordo que efectuaram, previamente à escritura de partilhas de 13.12.77, o prédio foi partilhado
ficando a parcela A para o autor e seu irmão AS (metade para cada) e as parcelas aqui identificadas pelas letras B e C para
o AG.

44
Porém, a partir da escritura de partilhas de 22.12.77, por óbito de Joaquim Matias Caçador, pai do autor, os
demandantes, aqui recorridos, por via do acordo celebrado com o irmão António, passaram a fruir toda a parcela A como se
fossem os seus únicos e exclusivos proprietários, semeando cereais, plantando batatas, colhendo a azeitona e o pasto e
roçando o mato, fazendo-o de forma contínua e repetida, à luz do dia (ou seja, à vista de todos), com conhecimento dos
outorgantes da dita escritura, dos donos dos prédios vizinhos e de todas as pessoas do círculo social onde se situa esse
prédio, com intenção ou vontade de agir como titulares da propriedade plena e exclusiva e ignorando estarem a lesar o
direito de outrem.
Não foi, pois, como comproprietários, sim como proprietários exclusivos, que possuíram aquela parcela, da qual
– tal como se intui do apurado complexo fáctico – o AG, afinal, tendo em conta a autonomização das parcelas, nunca foi,
em bom rigor, nem nunca se arrogou comproprietário, provado que está que, na escritura de partilhas de 13.12.77 (por
óbito do seu tio, JB), só lhe ficaram a pertencer as parcelas B e C do prédio inscrito no art. matricial 2106 da freguesia de
Cernache, e nenhum direito (de compropriedade ou outro) obteve sobre a parcela A – pelo menos, nos moldes em que os
recorrentes o configuram – nenhum direito podendo, por isso, transmitir aos seus sucessores.
Vale dizer que a partir da subsequente escritura de partilhas de 22.12.77, o estado de facto criado pela divisão
feita pelos comproprietários não pode deixar de relevar. E esse poder de facto sobre a parcela A, exercido a partir de então,
em exclusividade, pelos autores, não pode haver-se como mera posse precária ou detenção.
São havidos como detentores ou possuidores precários os indicados no art. 1253º. Característica comum a todos
eles é que, tendo embora a detenção da coisa, não exercem sobre ela os poderes de facto com o animus de exercer o
direito real correspondente.
E o certo é que – repete-se – a partir daquela data, os autores “passaram a usar, gozar e fruir toda a parcela A
como se fossem os seus únicos e exclusivos proprietários” (n.º XXIX da matéria de facto), isto é, com animus possidendi,
com a intenção de agir como titulares do direito correspondente aos actos realizados, como titulares do direito de
propriedade sobre a dita parcela.
E este estado de facto acima aludido, criado pela divisão do prédio e pela autonomização das suas parcelas,
converteu-se, sem dúvida, em estado de direito, pelo funcionamento das regras da usucapião, cujos fundamentos se
mostram inequivocamente provados, como flui da matéria de facto acima enunciada e explicitada nos n.os XX a XXV do rol
factual que vem dado como assente.
A materialização, há quase 30 anos (relativamente a Março de 2006 – cfr. n.os VIII e XLI dos factos provados), de
uma parcela determinada, que os autores passaram a possuir, como se sua fosse, privando-se do uso e fruição sobre a
totalidade do prédio e limitando-o à fracção que lhe ficou atribuída, sem qualquer interferência (que se saiba) do AG, que,
por seu turno, ficou, também em exclusividade, com as parcelas B e C, constitui prova indiscutível da inequivocidade da
posse de cada um – posse que cada um passou a exercer em nome próprio sobre a respectiva fracção ou fracções (7). .

Poder-se-ia questionar se a aquisição por usucapião, com a consequência de os autores, por força do disposto
no art. 1288º, se considerarem proprietários da questionada parcela A desde a data do início da posse, não se depararia
com um obstáculo intransponível, decorrente do disposto no n.º 2 do art. 1406º.
Nos termos deste normativo, o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva
ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título.
E uma das formas por que pode dar-se a inversão do título da posse (da posse como comproprietário para posse
como proprietário singular) é “por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía” (art. 1265º).
Mas, tal exigência – a de que tenha ocorrido a inversão do título de posse – não tem aqui aplicação, face ao que
se deixou referido. Estando, na verdade, provado que, desde finais de Dezembro de 1977, os autores actuaram como
proprietários exclusivos da fracção A, exerceram, desde então, sobre ela, a posse correspondente ao direito de
propriedade, e nunca a posse própria de comproprietários de um prédio comum. No mesmo sentido já se pronunciou este
Supremo Tribunal (8).
Pode, assim, afoitamente concluir-se, tal como – a avaliar pelo respectivo sumário – se fez noutro aresto,
igualmente deste Tribunal (9) , que, “na compropriedade, a unidade predial pode parcelar-se por usucapião desde que os
comproprietários passem a utilizar partes distintas do prédio como se estivesse materialmente dividido em fracções,
ocupando cada um daqueles uma delas, perfeitamente delimitada e circunscrita, sem oposição, de modo exclusivo, à vista
de toda a gente, sem violência, na convicção de exercer um direito próprio, como se seu verdadeiro dono fosse, sem
invasão de parcelas alheias” – Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Santos Bernardino) de 9.10.2008, Pr.º 08B1914.

Acórdão do STJ (Ex.mo Cons.º Salvador da Costa), de 18.12.2007, no Pr.º 07B4420:

1. Não ofende o caso julgado formado pela sentença homologatória de transacção na acção cível enxertada em
processo penal por crime de dano, cujo objecto foi o de condenação dos arguidos no pagamento à assistente de
determinada quantia e a aceitação de implantação do tranqueiro por aqueles destruído, a sentença proferida na acção cível

45
subsequente, intentada pelos primeiros contra a última, declarativa da aquisição do direito de propriedade sobre
identificada parcela de terreno cujo acesso aquele tranqueiro visava vedar, com fundamento em contrato de compra e
venda e usucapião.
2. A referida instauração da acção cível pelos autores, apesar do conteúdo da aludida transacção, é insusceptível
de ser qualificada de abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium.
3. A inscrição no registo predial da titularidade do direito de propriedade de uma pessoa sobre o prédio, sem
ilisão pela parte contrária da respectiva presunção, justifica a conclusão da propriedade, mas não a respectiva dimensão
nem a abrangência da questionada parcela de terreno.
4. Assente que aquela parcela de terreno se integra no prédio dos autores e que tal prédio foi por eles adquirido
por usucapião, deve declarar-se a sua titularidade do direito de propriedade sobre ela.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I
AA e BB intentaram, no dia 21 de Junho de 2001, acção declarativa de condenação, com processo ordinário,
contra CC e DD, pedindo a declaração de serem donos e possuidores de identificado prédio abrangente de uma área
triangular com cerca de dez metros quadrados no seu canto norte-poente e de que identificado prédio dos réus a não
abrange, bem como a condenação destes a demolirem os muros, o tranqueiro e o portão na parte que ocupam, deixando-a
livre de quaisquer restolhos ou entulhos.
Motivaram a sua pretensão na circunstância de terem adquirido o direito de propriedade sobre aquele prédio por
escritura pública e usucapião e de os réus, sem o seu consentimento, o terem ocupado naquela parte.
Em contestação, afirmaram os réus terem adquirido o mencionado terreno por usucapião e que as áreas dos
terrenos em causa evoluíram e foram rectificadas, terminando por pedir a condenação dos autores a indemnizá-los, com
fundamento na litigância de má fé, no montante de 300 000$, e os autores, na réplica, negaram a versão apresentada pelos
primeiros.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, no dia 2 de Novembro de 2005, por via da qual os autores foram
declarados proprietários do prédio abrangente da questionada parcela de terreno e os réus condenados na demolição do
muro, do tranqueiro e do portão e a deixarem essa parte da parcela livre de quaisquer restolhos, entulhos o congéneres.
Interpuseram os réus recurso de apelação, e a Relação, por acórdão proferido no dia 9 de Julho de 2007, negou-
lhe provimento.

Interpuseram os apelantes recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:


- os recorridos não gozam de presunção de propriedade sobre a mencionada parcela de terreno, relevando não a
compra titulada pela escritura, mas a acordada divisão posterior, que não foi levada ao registo;
- os recorrentes tinham a posse da parcela de terreno desde Março de 1997, e, mesmo que dúvidas houvesse, o
seu poder de facto sobre ela, confirmado pela construção do muro que a delimitou e pela colocação do tranqueiro e do
portão, faz presumir a sua posse;
- o registo da aquisição do prédio pelos recorridos ocorreu depois do início da posse dos recorrentes, pelo que,
mesmo beneficiando da presunção derivada do registo, ela seria afastada pela sua posse anterior, nos termos do artigo
1268º, nº 1, do Código Civil;
- o acórdão viola os artigos 493º a 495º, 497º e 498º do Código de Processo Civil, porque contraria a sentença
homologatória de transacção, retirando-lhe toda a eficácia e autoridade, havendo contradição prática entre ambos por não
poderem ser simultaneamente executados sem detrimento de algum;
- ainda que assim se não entenda, têm os recorrentes justo título para continuarem a ocupar a faixa de terreno
em causa do mesmo modo por que vêm fazendo, o que não pode ser posto em causa pelo acórdão recorrido;
- ainda que não haja caso julgado, é abusivo o direito reclamado pelos recorridos, porque choca gravemente o
sentido de justiça a circunstância de se terem comprometido na transacção a reconstruir o tranqueiro colocado como forma
de delimitar a faixa de terreno e na acção virem pedir o contrário;
- ainda que os recorridos tivessem tal direito, o seu exercício excederia manifestamente os limites impostos pela
boa fé, bons costumes e fins do direito por eles invocado.

Responderam os recorridos, em síntese de conclusão:


- acusados da prática de crime de dano, na iminência de condenação criminal e cível, optaram por aceitar pagar
aos recorrentes 25 000$ contra a desistência da queixa criminal, nunca tendo estado em causa no processo criminal a
questão da propriedade entre uns e outros;
- os recorrentes não têm posse sobre a faixa de terreno em causa, sendo dela meros detentores, mas têm-na os
recorridos por si e antecessores, há mais de vinte anos, consubstanciada em actos materiais demonstrativos da intenção
de exercerem o direito de propriedade sobre ela;

46
- adquiriram o direito de propriedade sobre o prédio por usucapião, nos termos do artigo 1296º do Código Civil, a
sua acção não revela abuso do direito, não tendo os recorrentes justo título de ocupação;
- não há contradição entre decisões judiciais, porque a sentença homologatória da transacção apenas
reconheceu como válida a vontade das partes nessa altura expressa, sem qualquer pronúncia sobre a definição dos limites
dos prédios;
- não há ofensa de caso julgado porque não há identidade de sujeitos, nem de pedido ou de causa de pedir.

II
É a seguinte a factualidade considerada no tribunal recorrido:
1. Em 1983, os autores e os réus combinaram comprar um prédio misto, composto por um artigo urbano e por um
artigo rústico, que posteriormente dividiriam e demarcariam entre si, de modo a formarem dois prédios distintos, para cada
um ficar a pertencer a cada um deles, na sequência do que o réu outorgou nas escrituras públicas abaixo mencionadas.
2. Em escritura pública lavrada no dia 28 de Janeiro de 1983 na Secretaria Notarial de Vila Nova de Famalicão,
EE, por um lado, e DD, por outro, declararam, a primeira vender e o último comprar, por 200 000$, o prédio urbano
constituído por uma casa de habitação, com quintal, sito no lugar da Lamela, da freguesia de Landim, a confrontar do norte
com o caminho público, do sul com herdeiros de ... e EE, do nascente com herdeiros de ... e do poente com ..., parte da
descrição predial nº 30 367, inscrito na matriz sob o artigo 253.
3. Em escritura pública lavrada no dia 28 de Janeiro de 1983 na Secretaria Notarial de Vila Nova de Famalicão,
EE, por um lado, e DD, como gestor de negócios de AA, por outro, declararam, a primeira vender e o último comprar, por
100 000$, o prédio rústico denominado "Bouça da Porta", sito no lugar de Lamela, freguesia de Landim, concelho de Vila
Nova de Famalicão, a confrontar do norte com DD, do sul com herdeiros de .., do nascente com herdeiros de ... e do
poente com herdeiros de ---, parte da descrição predial nº 30367, inscrito na matriz rústica sob o artigo 302.
4. Nessa altura, os autores e os réus demarcaram os dois prédios através de marcos, assinalados no terreno pela
implantação de esteios da antiga ramada.
5. Os autores fizeram construir no prédio referido sob II 3 uma casa de habitação de rés-do-chão e anexos, sendo
tal prédio constituído pela referida habitação, anexos e quintal, prédio esse com uma área de, pelo menos, 1420 metros
quadrados, confrontando, actualmente, do norte com caminho público, do sul com herdeiros de ..., do nascente com
herdeiros de ... e do poente com os réus, e está descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão
com o nº 00470/130597, e inscrito em nome dos autores no dia 13 de Maio de 1997.
6. Em 1997, os réus rectificaram as áreas do seu prédio e reduziram a área de quintal para 756 metros
quadrados, de forma a deixarem livre uma certa área de terreno - em concreto não determinada – que, conforme a
demarcação acordada com os autores, a estes pertencia, e, por essa razão, em 1999, os serviços de finanças eliminaram o
artigo 253º urbano e atribuíram ao prédio dos réus o novo artigo urbano 1199º.
7. Em 1997, para procederam ao registo em seu nome do prédio referido sob II 3, os autores apresentaram nos
serviços de finanças do concelho o seu pedido de inscrição, declarando- -o omisso, e, no pedido de inscrição,
atribuíram ao prédio a área de 1420 metros quadrados, o que foi aceite por aqueles serviços sem qualquer confirmação da
sua parte, sendo que o prédio dos autores está actualmente inscrito sob o artigo 714º rústico.
8. Em Março de 1997, procederam os réus à construção de um muro e tranqueiro, assim como à colocação de
um portão, com o que invadiram o canto norte/poente do prédio dos autores mencionado sob II 3 e ocuparam uma parcela
triangular do mesmo com cerca de dez metros de altura, 1,6 metros de lado e 10,5 metros de hipotenusa.
9. Os réus promoveram o registo do prédio mencionado sob II 2 no dia 20 de Janeiro de 1998, na Conservatória
do Registo Predial, extractado para ficha, pelo que deixou de fazer parte da descrição nº 30 367 e passou a constituir a
descrição nº O0475/2001998 Landim, estando a inscrição a seu favor identificada pela referência G-2.
10. Os autores por si e antepossuidores, desde há mais de vinte anos que arrendam o prédio referido sob II 3,
colhendo os respectivos frutos, recebendo rendas, procedendo a construções, venerando-as, assim como aos quintais e
culturas, pagando as respectivas contribuições, o que fizeram e fazem ininterruptamente, à vista de toda a gente,
nomeadamente dos vizinhos, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de estarem a exercer um direito próprio e
ignorando lesar direitos alheios, sendo por todos considerados como seus donos.
11. No 2º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Nova de Famalicão, no processo crime comum singular n.º 30/98, em
que era ofendida DD, e arguidos BB e AA, foi lavrada a seguinte transacção: a ofendida disse desistir da queixa
apresentada contra os arguidos e transaccionar quanto ao pedido de indemnização civil, nos seguintes termos: 1º - Reduz
o pedido para 25 000$00 a pagar no prazo de 8 dias no escritório do mandatário da ofendida, contra recibo de quitação; 2º
- O tranqueiro será reconstruído no local onde antes se encontrava
12. Foi proferida sentença no dia 3 de Maio de 1999, transitada em julgado, que julgou válida e relevante a
desistência de queixa, homologando-a e julgando extinto o procedimento criminal, e homologada a transacção,
condenando e absolvendo nos seus precisos termos.

III

47
A questão essencial decidenda é a de saber se os recorridos têm ou não direito de propriedade sobre a
questionada parcela de terreno.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação dos recorrentes e dos recorridos,
a resposta às referidas questões pressupõe a análise da seguinte problemática:
- ocorre ou não ofensa do caso julgado?
- efeitos da presunção de propriedade resultante do registo predial da aquisição;
- pressupostos de aquisição do direito de propriedade com base na posse;
- adquiriram os recorridos o direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob II 3?
- adquiriram os recorridos o direito de propriedade sobre a faixa de terreno em causa?
- é abusivo o exercício pelos recorridos do direito de acção?
- síntese da solução para o caso decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas subquestões.

1.
Comecemos com a análise da questão de saber se ocorre não a ofensa de caso julgado invocada pelos
recorrentes.
O caso julgado é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso e que tem por fim evitar que o tribunal seja
colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior (artigos 494º, alínea i), 495º e 497, n.º 2, do
Código de Processo Civil).
Caracteriza-se essencialmente pela não susceptibilidade de impugnação de uma decisão em razão do seu
trânsito em julgado, que decorre, por seu turno, da não susceptibilidade de interposição de recurso ordinário ou de
reclamação (artigo 677º do Código de Processo Civil).
A ofensa do caso julgado material depende de a decisão recorrida contrariar uma outra que lhe seja anterior,
transitada em julgado, proferida entre as mesmas partes, sobre o mesmo objecto, baseada na mesma causa de pedir
(artigos 497º, 498º, 671º e 672º do Código de Processo Civil).
A ofensa do caso julgado formal ocorre, por seu turno, quando no mesmo processo é proferida decisão contrária
a outra sobre a relação processual, salvo se esta, por sua natureza, for insusceptível de recurso de agravo (artigo 672º do
Código de Processo Civil).
O caso julgado formal envolve a força obrigatória dentro do processo, e o material no processo e fora dele
(artigos 671º e 672º do Código de Processo Civil).

O objecto da transacção em causa foi a obrigação de pagamento da quantia de 25 000$ a título de indemnização
e a reconstrução do tranqueiro no local onde antes se encontrava, em que os recorridos outorgaram na posição de
requeridos e a recorrente na posição de requerente.
A sentença condenou os recorrentes a pagar à recorrida a mencionada quantia e reconheceu o direito da última a
reconstruir o tranqueiro no local onde antes se encontrava.
O objecto da acção penal foram factos integrantes de um crime de dano decorrente da destruição do tranqueiro,
na qual figuraram como sujeitos a recorrente, que foi a denunciante, e os recorridos, que foram arguidos.
O processo terminou por desistência da queixa por parte da recorrente e por transacção outorgada entre ela e os
recorridos no que concerne à indemnização e à reconstrução do tranqueiro no local onde antes se encontrava.
A causa de pedir relativa à acção cível enxertada no processo penal reporta-se ao prejuízo da recorrente
derivada da destruição do tranqueiro, enquanto a causa de pedir nesta acção se consubstancia na aquisição do direito de
propriedade sobre determinada parcela de terreno por compra e venda e usucapião e na sua ocupação não consentida por
outrem.
O pedido cível formulado na acção penal consubstanciou-se no pagamento de determinada quantia em dinheiro e
o pedido nesta acção visa a declaração da titularidade do direito de propriedade sobre identificada parcela de terreno e a
condenação na prestação de facto concernente à demolição de muros, tranqueiro e portão.
Em consequência, não há, no caso-espécie, coincidência de pedidos nem de causa de pedir, que constituem
pressupostos da excepção dilatória do caso julgado.
Em consequência, a sentença homologatória proferida na acção penal nada decidiu daquilo que foi decidido
nesta acção, nem podia decidir dado o conteúdo do contrato de transacção que se limitou a homologar.
O acórdão recorrido não a contraria, por isso, nem lhe retira a respectiva eficácia – condenação no pagamento de
determinada quantia e legitimação de reconstrução do tranqueiro.
Não há contradição prática entre as duas sentenças, porque cada uma delas pode ser executada no tempo em
que adquiriu a eficácia de caso julgado.

48
A conclusão é, por isso, no sentido de que o acórdão recorrido não ofendeu o caso julgado material que se
formou na acção penal no âmbito da acção cível que nela foi enxertada, pelo que não ocorre a excepção dilatória de caso
julgado invocada pelos recorrentes.

2.
Prossigamos com a análise dos efeitos da presunção de titularidade derivada do registo predial.
Enquanto os recorridos inscreveram no registo predial a aquisição do direito de propriedade a seu favor sobre o
prédio mencionado sob 3 no dia 13 de Maio de 1997, os recorrentes inscreveram a aquisição do direito de propriedade a
seu favor sobre o prédio mencionado sob 2 no dia 20 de Janeiro de 1998.
No tribunal da primeira instância considerou-se serem os recorridos titulares do direito de propriedade sobre o
aludido prédio por via da presunção derivada do registo.

A principal finalidade do registo predial é dar publicidade à situação jurídica dos prédios, assegurando a quem
adquirir direitos sobre eles o conhecimento de toda a realidade subjectiva e objectiva que os envolva (artigo 1.º do Código
do Registo Predial).
Dada a sua natureza essencialmente declarativa e a sua função de publicitação de direitos sobre prédios, não
pode o registo predial assegurar a efectiva existência do direito na titularidade da pessoa em nome da qual está inscrito.
Conforme resulta de II 5, a aquisição do direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob II 3 está inscrita
no registo predial na titularidade dos recorridos.
O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos termos em que o
registo o define (artigo 7.º do Código do Registo Predial).
Em virtude da mencionada presunção, estão os recorridos dispensados de provar os factos constitutivos do seu
direito de propriedade sobre o referido prédio (artigo 350.º, n.º 1 do Código Civil).
Consequentemente, reverteu para os recorrentes o ónus de prova dos factos reveladores de que os recorrentes
não são titulares do direito de propriedade cuja presunção decorre do registo predial (artigo 344º, nº 1, do Código Civil).
Como os recorrentes não ilidiram a mencionada presunção, a conclusão é no sentido de que os recorridos são
titulares do direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob II 3.
Todavia, a referida presunção, reportada à definição da situação jurídica dos prédios, não abrange os seus
elementos de identificação, designadamente a área respectiva, as confrontações e os artigos matriciais de referência.

3.

Atentemos agora nos pressupostos de aquisição do direito de propriedade com base na posse.
A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de
propriedade ou de outro direito real (artigo 1251º do Código Civil).
Nela se diferenciam dois elementos, o corpus ou domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo
de poderes materiais sobre ela ou na possibilidade física desse exercício, e o animus, consubstanciado na intenção de
exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio.
A aquisição originária da posse é susceptível de derivar, além do mais, do apossamento, ou seja, da aquisição
unilateral da posse por via do exercício de um poder de facto, isto é, pela prática reiterada, com publicidade, de actos
materiais correspondentes ao exercício do direito (artigo 1263º, alínea a), do Código Civil).
A posse também é susceptível de se obter por via da sua transferência, ou seja, por tradição ou sucessão por
morte ou entre vivos.
A tradição consubstancia-se na transferência voluntária da posse entre vivos, em regra quando a transmissão da
situação jurídica e da situação de facto coincidem, o que ocorre quando há entrega da coisa. Mas a entrega efectiva não é
essencial à referida transmissão, visto que a lei se basta, para o efeito, com a entrega simbólica (artigo 1263º, alínea b), do
Código Civil).
Quem suceder na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse do
antecessor, e se a posse do antecessor for de natureza diferente da posse do sucessor, a acessão só ocorre nos limites da
de menor âmbito (artigo 1256º do Código Civil).
Reporta-se este artigo à soma facultativa de situações consecutivas de posse propriamente dita, isto é, com
corpus e animus, independentemente da natureza do respectivo acto translativo.
A posse mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a
continuar, e presume-se que continua em nome de quem a começou (artigo 1257º Código Civil).
Assim, embora seja o corpus que marca a existência e a duração da posse, a sua conservação não depende em
absoluto da continuidade dos actos materiais. Com efeito, se a posse se mantém enquanto haja a possibilidade de
continuar a actuação correspondente ao exercício do direito, a relação da pessoa com a coisa legalmente exigida para o
efeito não implica necessariamente que ela se traduza em actos materiais.

49
Nesta perspectiva, há corpus enquanto a coisa estiver submetida à vontade do sujeito em termos de ele poder,
querendo, renovar a actuação material sobre ela.
A posse de direitos reais de gozo, incluindo o direito de propriedade, mantida por certo lapso de tempo, faculta,
em regra, ao possuidor a aquisição por usucapião do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação, cujos efeitos
revertem retroactivamente à data do seu início (artigos 1287º e 1288º do Código Civil).
É titulada se fundada em algum modo legítimo de adquirir - negócio jurídico abstracta-mente idóneo à
transferência do direito - independentemente do direito de quem transmite e da validade substancial do negócio jurídico
(artigo 1259º, nº 1, do Código Civil).
É de boa fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, presumindo-se como tal a
posse titulada e de má fé a não titulada e a que for adquirida por violência, ainda que seja titulada (artigo 1260º do Código
Civil).
A ignorância a que a lei se reporta envolve, em regra, a convicção do exercício de um direito próprio, adquirido
por título válido, sendo o momento relevante para o efeito o da aquisição da posse, seja por apreensão da coisa, seja por
tradição material ou simbólica.
É pacífica a posse adquirida sem violência, considerando-se violenta a obtida pelo uso de coacção física ou
moral, e pública a que é exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados (artigo 1261º do Código Civil).
O possuidor goza da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada no registo
anterior ao início da posse (artigo 1268º, nº 1, do Código Civil).
A regra é, pois, a de que a posse implica a presunção legal da titularidade do direito, e a excepção no caso de
colisão entre ela e a presunção derivada do registo de um direito anterior ao início da posse, caso em que prevalece esta
última presunção.
Assim, no caso de o início da posse em relação a um direito ser anterior ao registo predial do referido direito,
prevalece a presunção derivada da posse sobre a presunção derivada do registo.
Resulta, pois, da lei gozar o possuidor da presunção da titularidade do direito. A excepção da segunda parte
consiste em dar prevalência à presunção fundada no registo de um direito anterior ao início da posse se houver colisão
entre a presunção resultante da posse e a resultante do registo.
Havendo título de aquisição e registo deste, a usucapião tem lugar quando a posse de boa fé durar dez anos
contados desde a data do registo ou, ainda que seja de má fé, houver durado quinze anos contados da mesma data (artigo
1294º do Código Civil).
Inexistindo registo do título ou da mera posse, a usucapião só ocorre no termo do prazo de quinze anos se a
posse for de boa fé, e de vinte anos se a posse for de má fé ou de boa fé não titulada (artigo 1296º do Código Civil).
Na hipótese de a posse ter sido constituída por violência ou de modo oculto, a contagem do prazo de usucapião
começa cessada que seja a violência ou tornada a posse pública (artigo 1297º do Código Civil).
Ora, resulta do exposto que apenas a posse tomada oculta ou violentamente é insusceptível de fundar a
usucapião, porque o prazo para o efeito só começa quando cesse a violência e surja a publicidade (artigo 1297º do Código
Civil).

4.
Vejamos agora se os recorridos adquiriram ou não o direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob II 3
com base na posse.
No tribunal da primeira instância considerou-se serem os recorridos titulares do direito de propriedade sobre
prédio por via da usucapião.
A Relação confirmou o mencionado julgado com base na posse sobre o prédio, envolvida de corpus e animus e
na circunstância de os recorrentes apenas terem sido detentores a partir de determinada altura.
Salientou, por um lado, não ter a divisão dos prédios a virtualidade de interromper a posse anteriormente
existente, continuada por cada um dos nela intervenientes na parte que lhes coube nessa divisão.
E, por outro, não ter fundamento a argumentação dos recorrentes quanto à contagem do prazo e à questão da
boa fé cuja existência os factos apurados revelavam.
Sintetizemos os factos provados que relevam, aos quais importa aplicar as normas jurídicas pertinentes.

Os recorrentes e os recorridos acordaram, no início do ano de 1983, comprarem um prédio com parte urbana e
rústica a dividir entre eles de modo a formarem dois prédios distintos, que posteriormente dividiriam e demarcariam.
No dia 28 de Janeiro daquele ano, foram celebrados dois contratos de compra e venda, em que figurou como
vendedora ... e como compradores, primeiro o recorrente quanto ao prédio urbano constituído por uma casa de habitação,
parte da descrição predial, matricialmente inscrito sob o artigo 253º, e, depois, o recorrido quanto ao prédio rústico, parte da
mesma descrição predial, matricialmente inscrito sob o artigo 302º, com identificadas confrontações, a norte com o
recorrente, e nessa altura, eles demarcaram os dois prédios.

50
Os recorridos construíram uma casa de habitação no mencionado prédio, que ficou com anexos e quintal,
confrontando a poente com os recorrentes, o qual foi descrito no registo predial e inscrito na sua titularidade no dia 13 de
Maio de 1997.
Para inscreverem a aquisição do prédio na sua titularidade, declararam, em 1997, a sua omissão e requereram a
respectiva inscrição matricial com a área de 1420 metros quadrados, sem confirmação de outrem, ficando sob o artigo
rústico 714º.
Os recorrentes, por seu turno, rectificaram, em 1997, as áreas do seu prédio, reduzindo a do quintal a 756 metros
quadrados, deixando livre uma área de terreno que, conforme a demarcação acordada com os recorridos a estes pertencia.
Além disso, no mesmo ano, construíram um muro e um tranqueiro e colocaram um portão, com o que invadiram o
canto norte/poente do prédio dos recorridos, ocupando uma parcela triangular do mesmo com cerca de dez metros de
altura, 1,6 metros de lado e 10,50 metros de hipotenusa.
Ademais, promoveram, no dia 20 de Janeiro de 1998, o registo do seu prédio, deixando de fazer parte da
descrição nº 30 367 e passando a constituir a descrição nº 00475, e ficando inscrito na sua titularidade.
Por virtude da rectificação de áreas mencionada, os serviços de finanças eliminaram o artigo urbano 253º e
atribuíram ao seu prédio o novo artigo urbano 1199º.
Os recorridos, por si e anteriores possuidores, há mais de vinte anos, arrendam o aludido prédio, colhendo os
respectivos frutos, recebendo rendas, procedendo a construções, venerando-as, assim como aos quintais e culturas,
pagando as respectivas contribuições, ininterruptamente, à vista de toda a gente, nomeadamente dos vizinhos, sem
oposição de alguém, convictos de estarem a exercer um direito próprio, ignorando lesarem direitos alheios, e por todos
considerados como seus donos.
Conforme já se referiu, uma das formas de aquisição do direito de propriedade, reportada ao momento do início
da posse, é a usucapião (artigos 1288º, 1316º e 1317º, alínea c), do Código Civil).
Os recorridos adquiriram a posse do prédio em causa por via da tradição, na sequência do contrato de compra e
venda mencionado sob II 3, que se traduz em justo título de aquisição, conforme resulta do artigo 1316º do Código Civil, no
dia 28 de Janeiro de 1983.
O referido título de aquisição foi levado ao registo no dia 13 de Maio de 1997, com a consequência de o prazo de
aquisição do direito de propriedade sobre o prédio em causa, porque os recorridos eram possuidores de boa fé, se
completar no dia 13 de Maio de 2007 (artigos 279º, alínea c) e 1294º, alínea a), do Código Civil).
Independentemente disso, importa ter em conta que a sua posse acrescida à dos anteriores titulares do direito de
propriedade foi pacífica, pública, de boa fé e durou mais de vinte anos.
A conclusão é, por isso, no sentido de que os recorridos adquiriram originariamente, por usucapião, o direito de
propriedade sobre o prédio mencionado sob II 3.

5.
Continuemos com a análise da subquestão de saber se os recorridos adquiriram ou não o direito de propriedade
sobre a questionada faixa de terreno.
No tribunal da primeira instância considerou-se que os recorridos adquiriram o direito de propriedade sobre ela
por usucapião.
A Relação, por seu turno, confirmou o decidido, justificando com a circunstância de os recorrentes não terem
posse sobre a mencionada faixa de terreno, e de só serem seus detentores.
A sentença homologatória da transacção não constitui título de ocupação da parcela de terreno em causa, porque
ele não decorre do seu conteúdo, certo que não conheceu sobre algum direito de propriedade ou de posse ou que ele lhes
fosse reconhecido.
Os recorrentes exerceram, na sequência da implantação do muro, do portão e do tranqueiro, um poder de facto
sobre a parcela de terreno em causa desde 8 Março de 1997, o qual constitui elemento integrante do corpus da posse.
Incumbia-lhes, porém, a prova de que a sua posse, nessas circunstâncias, até a recorrida ter operado a
destruição do tranqueiro, havia durado mais de um ano, o que não lograram (artigos 342º, nº 2 e 1276º, nº 1, alínea d), do
Código Civil).
Assim, a circunstância de os recorrentes haverem exercido os referidos actos de posse não permite a conclusão
de os recorridos haverem perdido a posse que sobre a mencionada parcela vinham a exercer.
Por isso, não tem fundamento legal a alegação dos recorrentes no sentido de que a sua posse sobre a parcela de
terreno em causa inutilizou a presunção de propriedade a favor dos recorridos derivada do registo.
De qualquer modo, esta problemática não podia assumir relevo no caso vertente, porque o registo predial não
podia ter a virtualidade de definir a titularidade do direito de propriedade sobre a questionada faixa de terreno que
recorrentes e recorridos entendem integrar o seu prédio.
Tal como os recorrentes alegaram, face à estrutura da acção de reivindicação em causa, impunha-se aos
recorridos a prova dos factos reveladores de que adquiriram o direito de propriedade sobre a questionada parcela de
terreno, objecto crucial do litígio (artigos 342º, nº 1, 1311º, nº 1, do Código Civil e 498º, nº 4, do Código de Processo Civil).

51
Todavia, dados os factos provados e a respectiva conexão, a solução desta questão é tributária daqueloutra da
aquisição do direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob II 3.
Com efeito, está assente que, celebrados os contratos de compra e venda mencionados sob II 2 e 3, os
recorridos e os recorrentes demarcaram os prédios que constituíram o respectivo objecto mediato, e que, cerca de treze
anos depois, no dia 8 de Março de 1997, os últimos construíram o muro e o tranqueiro e colocaram um portão.
Mas também está assente que os recorrentes, com a mencionada acção, invadiram o canto norte/poente do
prédio dos recorridos mencionado sob II 3, ocupando uma parcela triangular do mesmo com cerca de dez metros de altura,
1,6 metros de lado e 10,5 metros de hipotenusa.
Assim, resulta desta factualidade, que a discutida área de terreno se integra no prédio dos recorridos, em relação
ao qual estes últimos adquiriram o direito de propriedade por usucapião, ou seja, originariamente, com efeitos à data do
início da posse.

6.
Prossigamos agora com a análise da questão de saber se os recorrentes agiram ou não com abuso do direito.
Alegaram os recorrentes que se os recorridos tivessem tal direito, a circunstância de se terem comprometido na
transacção a reconstruir o tranqueiro delimitador da faixa de terreno e na acção pedirem o contrário, o seu exercício
chocaria gravemente o sentido de justiça e excederia manifestamente os seus limites impostos pela boa fé pelos bons
costumes e fins.
Expressa a lei ser ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites
impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito (artigo 334º do Código Civil).
Reporta-se, pois, este artigo à existência de um direito substantivo exercido com manifesto excesso em relação
aos limites decorrentes do seu fim social ou económico, em contrário da boa fé ou dos bons costumes, proibindo
essencialmente a utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de interesses exorbitantes do fim
que lhe inere.
O fim económico e social de um direito traduz-se, essencialmente, na satisfação do interesse do respectivo titular
no âmbito dos limites legalmente previstos; os bons costumes são, grosso modo, o conjunto de regras de comportamento
relacional, acolhidas pelo direito, variáveis no tempo e, por isso, mutáveis conforme as concepções ético-jurídicas
dominantes na colectividade de referência em determinados tempo e espaço.
O seu funcionamento, como excepção peremptória imprópria de direito adjectivo que é, não depende da sua
consciencialização por parte do respectivo sujeito.
O entendimento da jurisprudência, no seguimento da doutrina, tem sido no sentido de que este instituto funciona
como limite ao exercício de direitos quando a atitude do seu titular se manifeste em comportamento ofensivo do sentido
ético-jurídico da generalidade das pessoas em termos clamorosamente opostos aos ditames da lealdade e da correcção
imperantes na ordem jurídica.
Uma das vertentes do abuso do direito é o designado venire contra factum proprium, no confronto com o princípio
da tutela da confiança, como é o caso de ser exercido contra alguém que, com base em convincente conduta, positiva ou
negativa de quem o podia exercer, confiou em que tal exercício não ocorresse e programou em conformidade a sua
actividade.
Dir-se-á, nessa hipótese, que o titular do direito opera o seu exercício no confronto de outrem depois de a este
fazer crer, por palavras ou actos, que o não exerceria, ou seja, depois de gerar uma situação objectiva de confiança em que
ele não seria exercido.
Aproximemos do caso concreto em análise as referidas considerações de ordem jurídica.
Os recorridos eram possuidores da mencionada parcela de terreno, posse que foi perturbada pelos recorrentes,
no dia 8 de Março de 1997, por via da implantação do muro, do tranqueiro e do portão.
A recorrida reagiu a tal perturbação por via da destruição do mencionado tranqueiro, foi accionada criminalmente
cerca de um ano depois e, um ano passado, ocorreu a transacção e, cerca de dois anos após, foi instaurada esta acção
cível.
A referida transacção ocorreu em acção criminal, a recorrida não se comprometeu a reconstruir o mencionado
tranqueiro nem a discutir judicialmente a titularidade do direito em causa.
Em consequência, ao invés do que os recorrentes alegaram, os factos provados não revelam terem os recorridos
agido na acção em causa com abuso do direito, incluindo a modalidade de conduta contraditória.

7.
Finalmente, a síntese da solução para o caso-espécie, decorrente dos factos provados e da lei.
O acórdão recorrido não ofende o caso julgado decorrente da sentença homologatória da transacção cível
preferida no processo-crime em que a recorrente era requerente e os recorridos requeridos.
A inscrição da titularidade do direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob II 3 a favor dos recorridos no
registo predial, sem ilisão pelos recorrentes da presunção de propriedade daqueles, justifica a conclusão de que os
primeiros são os proprietários daquele prédio.

52
A referida presunção não abrange, porém, a dimensão do referido prédio, ou seja, não permite a inclusão do
direito de propriedade presumido dos recorridos sobre a questionada parcela de terreno.
Mas os recorridos adquiriram por usucapião o direito de propriedade sobre o aludido prédio que inclui a
mencionada parcela de terreno.
Não ocorrem, na espécie, os pressupostos da excepção peremptória imprópria do abuso pelos recorridos do
exercício do seu direito.

Improcede, por isso, o recurso.


Vencidos, são os recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do
Código de Processo Civil).

III
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condenam-se os recorrentes no pagamento das custas
respectivas.

Lisboa, 18 de Dezembro de 2007.

Salvador da Costa (relator) Ferreira de Sousa Armindo Luis

A usucapião retroage à data do início da posse em nome próprio, à data em que se inicia uma
posse boa para usucapião - 1288º e 1317º, c), este para a propriedade.
Todos os que podem adquirir, inclusive os incapazes que tenham o uso da razão, a
consciência de que estão a praticar actos materiais de posse (por si ou por seus legais
representantes), podem adquirir (capacidade de exercício - nº 2) e aproveitar da usucapião
(capacidade de gozo - nº 1) - 1289º.

A inversão do título, transformando a mera detenção em posse, pode levar à usucapião mas,
naturalmente, o prazo para usucapião só se inicia desde a inversão do título - 1290º.
A usucapião por compossuidor aproveita aos compossuidores do objecto da posse comum.
Nos termos do art. 1406º, 2, aplicável à composse por força do art. 1404º, o compossuidor só
aproveita em seu exclusivo interesse dos seus actos de posse desde que inverta o título em relação
aos seus colegas compossuidores.
Tem interesse notar que também aqui são aplicáveis as regras relativas à suspensão e
interrupção da prescrição - 318º e ss e 323º e ss, além das demais referidas expressamente no art.
1292º.
A usucapião carece de ser invocada pelo interessado para produzir efeitos - art. 303º e Col.
94-I-39.
Usucapião de imóveis

Nos art. 1294º a 1297º regula a lei os vários prazos, mais ou menos longos de acordo com a
natureza da posse, de usucapião de imóveis.
O prazo máximo é hoje de 20 anos, enquanto pelo Código de Seabra tal prazo era de 30 anos.
Aplicação do art. 297º do CC. Neste ponto convém ler o Ac. do STJ no BMJ 305-293.

Já vimos que a posse boa para usucapião há-de ser, pelo menos, pública e pacífica, que a
posse violenta ou tomada a ocultas não merece a tutela do direito, antes sofre a sua reprovação.

Daí que se a posse tiver sido constituída com violência ou tomada ocultamente, os prazos da
usucapião só começam a contar-se desde que cesse a violência ou a posse se torne pública - 1297º .
Acórdão do STJ (Ex.mo Cons.º Salvador da Costa), de 15/12/2005 05B3944:

1. A presunção reportada à definição da situação jurídica dos prédios não abrange os seus elementos de
identificação, designadamente a área respectiva, as confrontações e os artigos matriciais de referência.

53
2. Como o comproprietário, por força do seu próprio título, é possuidor em nome alheio quanto aos direitos dos
restantes condóminos, não poderá adquirir o respectivo direito por usucapião sem a verificação de um comportamento
idóneo à inversão do título da posse.
3. Ocorre essa inversão quando dois comproprietários dividem o prédio comum em duas partes iguais, como se
passassem a existir dois prédios distintos, e a partir daí cada um passa a comportar-se em relação a cada uma delas como
se fosse o seu exclusivo proprietário.
4. Em regra, a posse implica a presunção legal da titularidade do direito; e a excepção ocorre no caso de colisão
entre ela e a presunção derivada do registo de um direito anterior ao início da posse, caso em que prevalece esta última
presunção.
5. Adquirido por uma pessoa o direito de propriedade sobre um prédio por contrato de compra e venda celebrado
por escritura pública no dia 24 de Julho de 1979, que passou desde então a exercer sobre ele, de boa fé, pacifica e
publicamente, o poder de facto correspondente ao exercício daquele direito, com intenção de se comportar como seu
titular, ela adquiriu, no dia 24 de Julho de 1994, sobre aquele prédio, por usucapião, o direito de propriedade, reportado à
data do início dessa actuação.
6. Não releva no confronto da pessoa mencionada sob 5 o registo predial no dia 3 de Outubro de 1994, a favor de
outra, de um décimo do direito de propriedade sobre o aludido prédio.
7. Esta última não tem o direito de preferir na venda de nove décimos do direito de propriedade sobre aquele
prédio ocorrida no dia 21 de Maio de 1996, exclusivamente feita nessa proporção por virtude da existência da mencionada
inscrição no registo.

I
"A" intentou, no dia 16 de Setembro de 1996, contra B e C, por um lado, e D e E, por outro, acção declarativa
constitutiva condenatória, com processo ordinário, pedindo a declaração do seu direito de preferência na venda pelos
primeiros aos segundos de nove décimos do direito de propriedade sobre identificado prédio e de que o preço da venda foi
de 6.500.000$00, a condenação na restituição do diferencial de 3.500.000$00 e dos dois últimos a pagar-lhe 2.723.120$00
por perdas e danos.
Invocou ser dono de 1/10 do prédio e a referida venda sem comunicação para preferir, ter sido o preço respectivo
de 6.500.000$00 e declarado na escritura o de 10.000.000$00, o derrube depois da venda de árvores e redução da área do
prédio e do prejuízo daí decorrente.
Em contestação, alegaram os réus serem os primeiros donos de todo o prédio, terem-no adquirido por usucapião,
ser o registo de 1/10 ilegal, e, em reconvenção, pediram os primeiros réus a declaração do seu direito de propriedade de
1/10 e que fosse ordenado o cancelamento do registo predial da referida titularidade do autor.
Na réplica, o autor ampliou o pedido no sentido da declaração da rectificação da escritura de 24 de Julho de 1979
em termos de ficar a constar que a venda apenas teve por objecto nove décimos do prédio.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 13 de Março de 2000, que absolveu os réus do pedido e
julgou a reconvenção procedente, da qual os autores apelaram, e a Relação, por acórdão proferido no dia 18 de Dezembro
de 2000, negou provimento ao recurso.
No recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça, ordenou à Relação, por acórdão proferido no dia 31 de
Maio de 2001, a ampliação da matéria de facto, a Relação assim procedeu.
Falecida C, foram habilitados em sua substituição B, F e G, e, realizado novo julgamento, foi proferida nova
sentença no dia 17 de Dezembro de 2004 que absolveu os réus do pedido e julgou a reconvenção procedente.
Apelou o autor, e a Relação, por acórdão proferido no dia 6 de Junho de 2005, negou provimento ao recurso.

Interpôs o apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:


- tem inscrita definitivamente a seu favor no registo predial a décima parte indivisa do direito de propriedade sobre
prédio e a recorrida E as restantes nove décimas, constituído o referido registo presunção da existência do seu direito, pelo
que não tem de o provar;
- a posse de um comproprietário sobre todo o prédio sem o consentimento dos outros não conduz à aquisição por
usucapião, porque não é exclusiva;
- o uso do pinhal na proporção de nove décimos não constitui posse de quota superior nem começou a correr o
prazo de usucapião por não ter havido inversão do título da posse;
- não houve a referida inversão porque os recorridos nunca se manifestaram contra a sua qualidade de
comproprietário, que lhes afirmou e eles aceitaram, e não provaram a posse em nome do recorrente correspondente à sua
quota;
- goza do direito de preferência na aquisição de nove décimos do prédio em causa, pelo que a sentença violou os
artigos 7° do Código do Registo Predial, 350º, 1265º, 1268º, n° 1, 1296º, 1405º, 1406º, n° 2 e 1409 do Código Civil.

Responderam os recorridos, em sede de conclusão de alegação:


- quando lhes venderam nove décimos do prédio, B e C eram proprietários da totalidade do prédio;

54
- não há correspondência entre o prédio de que o recorrente afirma ter adquirido a quota de um décimo e aquele
de que são donos e possuidores, e, ainda que a houvesse, quem transmitiu aquela quota ao recorrente não era titular do
direito transmitido;
- nunca reconheceram facticamente o direito de que o recorrente se arroga, e nem ele ou os supostos
transmitentes da parte indivisa de cuja aquisição se arroga exerceram posse sobre o prédio;
- B e C e antepossuidores primeiro, de forma plena e exclusiva, e depois, após a venda, aqueles e D e E, têm
exercido sobre o prédio, há mais de trinta anos, desde tempos imemoriais, a posse pública, contínua, pacífica, de boa fé e
com o ânimo de serem seus donos;
- o recorrente não é nem nunca foi comproprietário do prédio, tendo sido ilidida a presunção decorrente do
registo, e a inversão do título da posse supõe a substituição de uma posse precária por uma posse em nome próprio, o que
não sucede no caso;
- não faz sentido argumentar com a não inversão do título da posse porque os recorridos não exerciam posse
precária, sempre tendo possuído com ânimo de donos e, após a constituição da compropriedade, nunca exerceram posse
para além da quota de que são titulares;
- demonstrada a posse dos recorridos anterior ao registo da quota decimal pelo recorrente, à presunção derivada
do registo sobrepõe-se, nos termos do artigo 1268º, nº 1, do Código Civil, a presunção derivada da posse.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:

III

A questão essencial decidenda é a de saber se o recorrente tem ou não preferência na alienação do prédio
rústico mencionado sob II 1 que aos recorridos D e E foi feita pelos recorridos B e C.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pelo recorrente e
pelos recorridos, sem prejuízo de a solução dada a alguma prejudicar a solução de outra ou de outras, a resposta à referida
questão pressupõe a análise das seguintes sub-questões:

- lei adjectiva aplicável na acção e nos recursos;


- síntese dos factos jurídicos essencialmente relevantes;
- efeitos da presunção de titularidade derivada do registo predial;
- estrutura da compropriedade e da posse usucapiente;
- direito legal de preferência do comproprietário;
- adquiriram B e C o direito de propriedade sobre o prédio em causa?
- a presunção da titularidade do recorrente sobre a décima parte do direito de propriedade sobre o prédio foi ou
não ilidida?
- síntese da solução para o caso decorrente dos factos e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela determinação da lei adjectiva que se sucedeu no tempo aplicável na acção e nos recursos.
Como a acção foi intentada no dia 16 de Setembro de 1996, são-lhe aplicáveis, salvo quanto a prazos, as normas
anteriores às do Código de Processo Civil Revisto, que entrou em vigor no dia 1 de Janeiro de 1997 (artigos 6º, nº 1 e 16º
do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).
Como a sentença foi proferida no tribunal da 1ª instância no dia 17 de Dezembro de 2004 e o acórdão da Relação
foi proferido no dia 6 de Junho de 2005, aos recursos são aplicáveis as pertinentes normas do Código de Processo Civil
Revisto (artigo 25º, nº 1, do Decreto-Lei nº 329-A/95, de 12 de Dezembro).

2.
Atentemos agora na síntese dos factos jurídicos provados mais relevantes para a decisão do recurso, ou seja,
aqueles com base nos quais o recorrente pretende substituir D e R na posição de compradores do prédio em causa, e os
recorridos B e C visam a declaração judicial da sua titularidade da décima parte do direito de propriedade sobre ele que no
registo predial está inscrito na titularidade do primeiro.
No dia 24 de Julho de 1979 B e C compraram o prédio em causa a K, mas não inscre-veram a aquisição no
registo predial.
No dia 19 de Julho de 1994 comprou o recorrente um décimo do mesmo prédio a M, N e a P e inscreveu essa
aquisição no registo predial no dia 3 de Outubro de 1994, e no dia 7 de Novembro seguinte comunicou essa aquisição a B
e o seu interesse na aquisição da parte deles se a decidissem vender.

55
No dia 22 de Abril de 1996, B e C prometerem vender nove décimos do referido prédio a D e a E, e no dia 21 de
Maio seguinte venderam-lhes essa quota sem o conhecimento do autor, e a última registou na sua titularidade essa
aquisição.
B e C pretenderam vender a totalidade do prédio, mas não o puderam fazer por virtude de o recorrente haver
inscrito no registo predial, na sua titularidade, a décima parte indivisa do prédio, e resolveram outorgar logo a escritura
referente aos nove décimos indivisos e deixar para mais tarde a resolução do diferendo referente à inscrição feita pelo
recorrente.
B e C, e D e E e antepossuidores, em conjunto e na proporção das respectivas partes de um décimo e nove
décimos, há mais de trinta anos, desde tempos imemoriais, de forma ininterrupta, têm, por um lado, agricultado, o referido
prédio, plantando árvores, colhendo estas e o mato, dando de arrendamento, recebendo as rendas, procedendo à sua
limpeza e guarda e pago as respectivas contribuições.
E, por outro, terem feito tudo isso sem violência ou oposição de alguém, sem consciência de lesar ou de haver
direito de outrem, por forma de todos conhecida, designadamente pelos residentes da freguesia de Arada, na convicção de
estarem a exercer o seu direito de donos daquelas partes do prédio em causa.

3.
Vejamos agora os efeitos da presunção de titularidade derivada do registo predial.
A principal finalidade do registo predial é dar publicidade à situação jurídica dos prédios, assegurando a quem
adquirir direitos sobre eles o conhecimento de toda a realidade subjectiva e objectiva que os envolva (artigo 1.º do Código
do Registo Predial).
Dada a sua natureza essencialmente declarativa e a sua função de publicitação de direitos sobre prédios, não
pode o registo predial assegurar a efectiva existência do direito na titularidade da pessoa em nome da qual está inscrito.
Conforme resulta de II 7, a quota decimal do direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob II 1 está
inscrita no registo predial na titularidade do recorrente desde o dia 3 de Outubro de 1994, ou seja desde cerca de dois anos
antes da data em que propôs a acção.
O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos termos em que o
registo o define (artigo 7.º do Código do Registo Predial).
A referida presunção, reportada à definição da situação jurídica dos prédios, não abrange os seus elementos de
identificação, designadamente a área respectiva, as confrontações e os artigos matriciais de referência.
Em virtude da mencionada presunção, está o recorrente dispensado de provar os factos constitutivos do seu
direito de propriedade sobre o referido prédio na proporção de um décimo (artigo 350.º, n.º 1 do Código Civil).
Consequentemente, reverteu para C e os recorridos o ónus de prova dos factos reveladores de que o recorrente
não é titular do direito de propriedade cuja presunção decorre do registo predial (artigo 344º, nº 1, do Código Civil).

4.
Atentemos, ora, no regime da compropriedade e da posse usucapiente.
Existe propriedade em comum ou compropriedade quando duas ou mais pessoas são titulares do direito de
propriedade sobre a mesma coisa (artigo 1403º, nº 1, do Código Civil).
Os comproprietários exercem, em conjunto, todos os direitos que pertencem ao proprietário singular e,
separadamente, participam nas vantagens e encargos da coisa, na proporção das suas quotas (artigo 1405º, nº 1, do
Código Civil).
A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de
propriedade ou de outro direito real (artigo 1251º do Código Civil).
Nela se diferenciam dois elementos, o corpus ou domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo
de poderes materiais sobre ela ou a possibilidade física desse exercício, e o animus, consubstanciado na intenção de
exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio.
A aquisição da posse pode ser originária ou derivada, no primeiro caso por apossamento ou inversão do título e,
no segundo, por tradição, sucessão ou constituto possessório.
À sucessão por morte reporta-se o artigo 1255º do Código Civil, segundo o qual, por morte do possuidor, a posse
continua nos seus sucessores desde o momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa.
Assim, independentemente do título de chamamento, a posse do de cujus, ou seja, a posse antiga, continua
sempre nos chamados à sucessão nos bens, sem necessidade da prática de qualquer acto material de apreensão.
O apossamento traduz-se na aquisição unilateral da posse por via do exercício de um poder de facto, ou seja,
pela prática reiterada, com publicidade, de actos materiais correspondentes ao exercício do direito (artigo 1263º, alínea a),
do Código Civil).
A traditio consubstancia-se, por seu turno, na transferência voluntária da posse entre vivos, em regra quando a
transmissão da situação jurídica e da situação de facto coincidem, o que ocorre quando há entrega da coisa.

56
A entrega efectiva não é, porém, essencial à transmissão da posse, visto que a lei se basta, para o efeito, com a
entrega simbólica (artigo 1263º, alínea b), do Código Civil).
A aquisição da posse através do constituto possessório pressupõe, em regra, a transmissão pelo possuidor, sem
entrega da coisa, do direito real relativo àquela (artigo 1264º, nº 1, do Código Civil).
A inversão do título da posse ocorre quando o detentor se opõe àquele em cujo nome possuía ou no caso de um
terceiro praticar algum acto idóneo à transmissão da posse (artigo 1265º do Código Civil).
É o caso, por exemplo, de alguém que se arroga proprietário da coisa e a vende àquele que a detém, ou quanto o
detentor deixe de praticar actos na convicção de agir por condescendência do proprietário e passe a actuar, no confronto
deste como se fosse o dono.
Quem suceder na posse de outrem por título diverso da sucessão por morte pode juntar à sua a posse do
antecessor, e se a posse do antecessor for de natureza diferente da posse do sucessor, a acessão só ocorre nos limites da
de menor âmbito (artigo 1256º do Código Civil).
Reporta-se este artigo à soma facultativa de situações consecutivas de posse própriamente dita, isto é, com
corpus e animus, independentemente da natureza do respectivo acto translativo.
A posse mantém-se enquanto durar a actuação correspondente ao exercício do direito ou a possibilidade de a
continuar, e presume-se que continua em nome de quem a começou (artigo 1257º Código Civil).
Assim, embora seja o corpus que marca a existência e a duração da posse, a sua conservação não depende em
absoluto da continuidade dos actos materiais. Com efeito, se a posse se mantém enquanto haja a possibilidade de
continuar a actuação correspondente ao exercício do direito, a relação da pessoa com a coisa legalmente exigida para o
efeito não implica necessariamente que ela se traduza em actos materiais.
Nesta perspectiva, há corpus enquanto a coisa estiver submetida à vontade do sujeito em termos de ele poder,
querendo, renovar a actuação material sobre ela
O possuidor em nome alheio não adquire a coisa possuída sem inversão do título da posse, pelo que não basta,
para o efeito, por exemplo, que o comproprietário haja exercido durante longo tempo os poderes correspondentes à
propriedade singular.

Com efeito, o uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota
superior à dele, salvo se tiver havido inversão do referido título (artigo 1406º, nº 2, do Código Civil).
Assim, como o comproprietário, por força do seu próprio título, é possuidor em nome alheio quanto aos direitos
dos restantes condóminos, não poderá adquirir o respectivo direito sem a verificação de um comportamento idóneo a
inverter o título da posse.

A posse de direitos reais de gozo, incluindo o direito de propriedade, mantida por certo lapso de tempo, faculta,
em regra, ao possuidor a aquisição por usucapião do direito a cujo exercício corresponde a sua actuação (artigo 1287º do
Código Civil).
Os efeitos da invocação da usucapião revertem retroactivamente à data do início da posse propriamente dita
(artigo 1288º do Código Civil).
É titulada se fundada em algum modo legítimo de adquirir - negócio jurídico abstracta-mente idóneo à
transferência do direito - independentemente do direito de quem transmite e da validade substancial do negócio jurídico
(artigo 1259º, nº 1, do Código Civil).
É de boa fé quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem, presumindo-se de boa fé
a posse titulada e de má fé a posse não titulada e a que for adquirida por violência, ainda que seja titulada (artigo 1260º do
Código Civil).
A ignorância a que a lei se reporta envolve, em regra, a convicção do exercício de um direito próprio, adquirido
por título válido, sendo o momento relevante para o efeito o da aquisição da posse, seja por apreensão da coisa, seja por
tradição material ou simbólica.
É pacífica a posse adquirida sem violência, considerando-se violenta a obtida pelo uso de coacção física ou
moral, e pública a que é exercida de modo a poder ser conhecida pelos interessados (artigo 1261º do Código Civil).
O possuidor goza da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada no registo
anterior ao início da posse (artigo 1268º, nº 1, do Código Civil).
A regra é, pois, a de que a posse implica a presunção legal da titularidade do direito, e a excepção no caso de
colisão entre ela e a presunção derivada do registo de um direito anterior ao início da posse, caso em que prevalece esta
última presunção.
Assim, no caso de o início da posse em relação a um direito ser anterior ao registo predial do referido direito, a
prevalece a presunção derivada da posse sobre a presunção derivada do registo.
Determina-se, pois, que o possuidor goza da presunção da titularidade do direito. A excepção da segunda parte
consiste em dar prevalência à presunção fundada no registo de um direito anterior ao início da posse se houver colisão
entre a presunção resultante da posse e a resultante do registo.

57
Assim, quem possuir em nome alheio, como é o caso do comproprietário no que excede a sua quota, não podem
adquirir o direito de propriedade plena por usucapião sem inversão do título da posse (artigo 1290º do Código Civil).
Havendo título de aquisição e registo deste, a usucapião tem lugar quando a posse de boa fé durar dez anos
contados desde a data do registo ou, ainda que seja de má fé, houver durado quinze anos contados da mesma data (artigo
1294º do Código Civil).

Inexistindo registo do título ou da mera posse, a usucapião só ocorre no termo do prazo de quinze anos se a
posse for de boa fé, e de vinte anos se a posse for de má fé ou de boa fé não titulada (artigo 1296º do Código Civil).
Na hipótese tiver sido constituída por violência ou de modo oculto, a contagem do prazo de usucapião começa
cessada que seja a violência ou tornada a posse pública (artigo 1297º do Código Civil).

5.
Vejamos agora o conteúdo do direito de preferência.
Expressa a lei, por um lado, que o comproprietário goza do direito de preferência e tem o primeiro lugar entre os
preferentes legais, além do mais, no caso de venda a estranhos da quota de qualquer dos seus consortes (artigo 1409º, nº
1, 1ª parte, do Código Civil).
E, por outro, ser aplicável à preferência do comproprietário, com as necessárias adaptações, o disposto nos
artigos 416º a 418º do Código Civil.
Visa o direito de preferência a consecução da propriedade plena ou diminuir o número de consortes e evitar a
entrada de estranhos na comunhão em causa.
Nesse quadro, querendo vender a quota do direito em causa, deve o pretenso vendedor comunicar ao
comproprietário o projecto de venda e as cláusulas do contrato, e este, recebida a comunicação, em regra, no prazo de oito
dias, deve exercer o seu direito, sob pena de caducidade (artigo 416º do Código Civil).
E o comproprietário a quem se não dê conhecimento da venda tem o direito de haver para si a quota alienada,
contanto que o requeira no prazo de seis meses a contar da data em que teve conhecimento dos elementos essenciais da
alienação e deposite o preço nos quinze dias seguintes à data em que a acção foi proposta (artigo 1410º, nº 1, do Código
Civil).
O direito de preferência do comproprietário configura-se como direito potestativo que, na dinâmica do seu
exercício, envolve a aquisição do direito de propriedade sobre a quota do direito por via da substituição do comprador na
respectiva posição contratual.
Se dever considerar-se ser o recorrente vero titular da décima parte do direito de propriedade sobre o prédio
mencionado sob II 1, como ele intentou a acção em causa menos de seis meses depois da celebração do contrato de
compra e venda referido sob II 10, então deve ser-lhe judicialmente reconhecido o direito de preferência que ele invoca.
No caso contrário, isto é, se o recorrente não dever ser considerado contitular do direito de propriedade sobre o
mencionado prédio, certo é que a sua pretensão não poderá proceder, por falta de uma condição necessária para a
constituição do direito de preferência.

6.
Atentemos agora na sub-questão de saber se B e C adquiriram ou não, por usucapião, o direito de propriedade
sobre o prédio em causa.
Com efeito, uma das formas de aquisição do direito de propriedade, reportada ao momento do início da posse, é
a usucapião (artigos 1288º, 1316º e 1317º, alínea c), do Código Civil).
Os recorridos B, F e G pretendem, contra o que consta do registo predial ou seja, a titularidade do recorrente da
quota decimal do prédio mencionado sob II 1, que se declare serem eles efectivamente os titulares desse direito.
Não o fizeram, porém, ao invés do que for entendido nas instâncias, em quadro processual reconvencional de
condenação ou de reivindicação a que alude o artigo 1311º do Código Civil, naturalmente porque o que está em causa no
caso espécie nada tem a ver com a posse ou detenção do recorrente sobre o prédio mencionado sob II 1.
Tal como o recorrente referiu, os factos não revelam que C ou algum dos recorridos tenha invertido, no seu
confronto, o título da posse no que concerne à décima parte do direito de propriedade sobre o prédio.

Um exemplo de inversão do título de posse no confronto de dois comproprietários ocorre se eles dividem o prédio
comum em duas partes iguais, como se passassem a existir dois prédios distintos, e partir daí cada um deles passa a
comportar-se em relação a cada uma das referidas parcelas como se fosse o seu exclusivo proprietário, assim delimitando
mútua e voluntariamente o poder de facto do outro.

Também é certo resultar da lei, conforme acima se referiu, que não verificada a inversão do título de posse, não
pode qualquer comproprietário adquirir por usucapião o direito de propriedade plena no que concerne à quota do direito de
propriedade do outro ou dos outros comproprietários.

58
Mas para se verifique essa situação é necessário, como é natural, que ocorra uma situação efectiva de
compropriedade, ou seja, uma contitularidade de direitos de propriedade e de posse verdadeira e própria sobre a mesma
coisa e o concernente conflito.
B e C adquiriram no dia 24 de Julho de 1979, o direito de propriedade sobre o prédio mencionado sob II 1 por via
de um contrato de compra e venda, formalizado por escritura pública, celebrado com K, sobrinha e herdeira testamentária
de I, que nele figurou como vendedora.
E a partir daí passaram comportar-se em relação ao prédio como possuidores em relação a todo o prédio e não
como meros detentores em relação alguma quota ideal, que então não estava constituída, certo que a sua inscrição no
registo predial só ocorreu 15 anos, 2 meses e nove dias depois.

B e C passaram então a exercer sobre o referido prédio o poder de facto correspondente ao exercício do direito
de propriedade plena, com intenção de se comportarem como seus únicos titulares, de boa fé, pacifica e publicamente.
Por isso, assente o referido poder de facto e intenção em contrato de compra e venda formalmente válido, pelo
que é caso de posse titulada, decorridos quinze anos, ou seja, no dia 24 de Julho de 1994, B e C adquiriram o direito de
propriedade plena sobre o referido prédio por usucapião (artigos 1251º, 1258º, 1259º, nº 1, 1260º, nºs 1 e 2, 1261º, nº 1,
1262º, 1263º, alíneas a) e b), 1287º, 1288º, 1296º, 1316º e 1317º, alínea c), do Código Civil).
Assim, não havia conflito de posses sobre o prédio mencionado sob II 1 entre o recorrente, por um lado, e B e C,
por outro, nem conflito de direitos de propriedade de um e outros, pressuposto da exigência da inversão do título de posse
para o começo do curso do prazo da usucapião.

7.
Vejamos agora se os recorridos lograram ou não ilidir a presunção decorrente do registo da titularidade do
recorrente da décima parte do direito de propriedade sobre o prédio em causa.
O recorrente só inscreveu no registo predial a aquisição da décima parte do direito de propriedade sobre o
referido prédio no dia 3 de Outubro de 1994, ou seja, dois meses e nove dias depois de B e C serem titulares do direito de
propriedade plena sobre ele.
A falta de reacção de B e de C, no dia 7 de Novembro de 1994, quando o recorrente lhes comunicou a referida
aquisição e o seu interesse na compra dos nove décimos do direito de propriedade sobre o prédio, que entendia serem da
titularidade deles, não significa que os primeiros reconhecessem o direito de propriedade invocado pelo último (artigo 217º,
nº 1 e 218º do Código Civil).
Alias, o que resulta dos factos provados é o contrário desse reconhecimento, porque a declaração produzida por
B e C de venda de apenas nove décimos do direito de propriedade sobre o prédio derivou da circunstância de o recorrente
haver inscrito no registo predial aquisição da quota decimal desse direito num quadro de intenção de deixar para mais tarde
a resolução do diferendo referente a essa inscrição no registo predial.
Por isso, não tem fundamento lógico a afirmação do recorrente no sentido de que se B e C fossem proprietários
da totalidade do prédio teriam declarado no contrato-promessa que celebraram com D e E prometer vender-lhe o prédio e
não os referidos nove décimos.
Em consequência, provada está a aquisição por B e C do direito de propriedade plena sobre o prédio em causa
por usucapião em momento anterior à inscrição de nove décimas do direito de propriedade sobre ele na titularidade do
recorrente.
Por isso, a conclusão é no sentido de que os recorridos demonstraram não ser o recorrente titular do direito de
propriedade na proporção de um décimo sobre o prédio mencionado sob II 1, ou seja, de que ilidiram a presunção registal
em causa.

8.
Atentemos finalmente na síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos e da lei.
Os recorridos B e C adquiriram o direito de propriedade plena sobre o prédio mencionado sob II 1 por usucapião
antes do registo predial pelo recorrente da aquisição da décima parte do referido direito.
O recorridos B, F e G lograram ilidir a presunção registal da titularidade pelo recorrente da décima parte do direito
de propriedade sobre o referido prédio.
Não tendo o recorrente provado ser comproprietário do referido prédio cujo direito de propriedade, na proporção
de nove décimos, B e C transferiram para os recorridos D e E, não pode ser considerado titular do direito de preferência na
venda que invocou no confronto dos últimos.

Improcede, por isso, o recurso.


Vencido, é o recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de
Processo Civil).

IV

59
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se o recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 15 de Dezembro de 2005.


Salvador da Costa (Relator)
Usucapião de móveis

Sujeitos a registo - 1298º


Não sujeitos a registo - 1299º -
Posse violenta ou oculta e transmissão a terceiro - 1300º, nº 2.
Protecção da boa fé no comércio de móveis - 1301º e BMJ 315-296

Outros exemplos

Os bens do domínio privado do Estado podem ser adquiridos por usucapião desde que, para
além dos prazos normais, decorra mais metade dos mesmos (Lei n.º 54, de 16 de Julho de 1913),
mantida em vigor pelo art. 1304º CC - BMJ 360-609.
Bens do domínio privado das autarquias e sua afectação a fins de utilidade pública. Usucapião
- Col. STJ 97-I-156:

Com a presente acção visou o A., em primeira linha, que seja declarado único proprietário de um prédio urbano
que identifica.
Trata-se, portanto, de uma acção destinada a fazer valer um direito real, como é o direito de propriedade que se
pretende ver reconhecido, e, por isso mesmo, de uma acção real, independentemente do seu tipo, atento o disposto no
artigo 4º nº 2 do Cód. de Proc. Civil.
E, nas acções reais, face ao disposto no artigo 496º nº 4, daquele Código, "a causa de pedir é o facto jurídico de
que derivou o direito real", o que quer significar, nas palavras do Prof. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, págs. 692
e sgs."que, na acção destinada a fazer valer o direito de propriedade do autor contra o terceiro possuidor da coisa, começa
por se exigir (de acordo com a teoria da substanciação), além da indicação do direito cujo reconhecimento se pede e do
efeito, que se pretende obter, a narração do facto concreto (a compra, a doação ou a deixa associados à titularidade do
direito do transmitente, ou a ocupação, a acessão, a usucapião, etc.) que serve de base ao pedido".
E, a servir de base ao pedido de reconhecimento do direito de propriedade mencionou o A. a aquisição desse
direito pela usucapião, que invocou.
Assim, e por testamento público de 25-4-1866, com que se finou o Conde Ferreira, manifestou este a vontade de
que os seus testamenteiros mandassem construir e mobilar cento e vinte casas para escolas primárias de ambos os sexos
nas terras que forem cabeças de concelho, sendo todas por uma planta, e com acomodações para vivenda do professor,
não excedendo o custo de cada casa e mobília a quantia de um conto e duzentos mil reis, devendo a casa, depois de
pronta, ser entregue à Junta de Paróquia em que for construída.
Por Decreto Real de 27 de Junho de 1866 legislou-se no sentido de que "são auctorizadas câmaras municipais
para contratar, nos termos legais, com os testamenteiros do fallecido Conde de Ferreira, a construção de edifícios e o
fornecimento de mobília para o estabelecimento de escolas de ensino primário, mandadas fazer em cumprimento da
disposição testamentária do mesmo Conde" (artigo 5º) e de que "as casas escolares, a que se refere a presente lei, são
consideradas para todos os efeitos como bens distritaes, municipaes ou parochiais, conforme tenham sido instituídas pelo
distrito, pelo município, parochia ou por particulares para os fins indicados" (§ único do artigo 8º).
Este edifício, casa escolar construída pelo Município da Figueira da Foz com dinheiro deixado pelo Conde de
Ferreira, portanto por este instituída, ficou, atento o disposto naquele artigo 8º § único, sendo um bem paroquial, afectado a
um fim de utilidade pública, de escola primária.
Conforme o Prof. Marcello Caetano, Manual do Direito Administrativo, Vol. I, 10ª edição, págs. 352/353, a
paróquia era, ao tempo, mero agregado social e religioso, natureza que manteve na vigência do Código Administrativo de
1842, que nesta parte volveu ao regime do Decreto nº 23, de 16 de Maio de 1832, excluindo-a da divisão do território e da
conformação administrativa, e até 1878, altura em que a freguesia ou paróquia entra a fazer parte, definitivamente, da
organização administrativa portuguesa.
A tradição legislativa e a praxe administrativa, nacional e estrangeira, distinguem entre domínio público e privado
do Estado e das autarquias.
Mas, não sendo ao tempo da construção da escola a paróquia uma autarquia, não há que falar no domínio
público de então da agora Ré Freguesia.

60
Aliás, a natureza de coisas públicas para as casas escolares, com subtracção delas ao regime do direito privado,
não resulta sequer do Decreto Real de 27 de Junho de 1866.
Quando, em 1873, a freguesia ou paróquia reassumiu a dignidade de autarquia, o domínio privado da agora Ré
passou a compreender a casa escolar instituída pelo Conde de Ferreira, mas com afectação a um fim de utilidade pública,
de escola primária, por isso bem indisponível.
Ainda hoje, face ao disposto nos artigos 5º, alínea a) e 7º nºs 2 e 3, do Decreto-Lei nº 477/80, de 15 de Novembro
(que se refere aos bens do Estado, mas cujos princípios são de seguir quanto aos bens das autarquias, critério já adoptado
pela doutrina), os imóveis, nomeadamente os prédios rústicos ou urbanos, e os direitos a eles inerentes, integram o
domínio privado do Estado ou das autarquias, indisponíveis se afectos a fins de utilidade pública.
Todavia, como adverte o Prof. Marcello Caetano, ob. cit., Vol. II, 9ª edição, pág. 969: "Deve ter-se presente que a
indisponibilidade dos bens não altera, em substância, o princípio de que o regime global desses bens não é o do domínio
público, mas o do domínio privado; não lhes deixa de ser aplicável o direito privado, em regra.
Por consequência, com a indisponibilidade não se pretende conferir aos bens a condição jurídica de inalienáveis
em virtude da sua própria utilidade pública, exterior aos bens, que eles são chamados a servir".
Ora, a matéria de facto apurada é reveladora da "prática reiterada de factos empíricos" sobre o imóvel
identificado, "correspondente a uma intenção de direito, a intenção de exercer um direito real", neste caso o direito de
propriedade, sempre sem desvio do fim de utilidade pública a que foi afectado o imóvel sobre que recai, os elementos
corpus e animus da posse, na definição do Prof. Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, na Rev. De Leg. e Jurisp., Ano
124º, pág. 261, prática essa reportada aos titulares ou agentes da pessoa colectiva de direito público A., pelo que está,
assim, caracterizada a posse jurídica, uti dominus, do A.
E, salvaguardada que foi a afectação do imóvel ao fim de utilidade pública, essa posse, que tem início logo em
1869 ou, o mais tardar, em 1873, e decorreu ininterruptamente por um prazo muito superior a trinta anos, é conducente à
aquisição originária do direito de propriedade do A. sobre o imóvel, pela usucapião, face ao que se dispunha nos artigos
505º e 528º do Código Civil de 1867, em cuja vigência se consumou, já que o prazo máximo de trinta anos ali previsto
decorreu por inteiro nessa vigência (cfr. Prof. Marcello Caetano, ob. cit., Vol. II, págs. 986 e 996).

6. - Termos em que, negando a revista, se confirma o douto acórdão recorrido.


Sem custas, por delas estar isenta a recorrente (artigo 2º nº 1, alínea e) do Cód. das Custas Judiciais).

Lisboa, 18 de Março de 1997

Costa Marques Henriques de Matos Costa Soares

C. e v. com reserva de propriedade - Para A. Peralta, A Posição ... 77, o gozo do comprador
deriva da sua posse em nome próprio, resultante da entrega do bem, em execução do contrato; ao
vendedor continua a pertencer a posse nos termos de direito de propriedade, direito de que ainda é
titular.

Promitente comprador com direito de retenção - Já visto em sede de contrato-promessa e


direito de retenção.

Jazigos em cemitérios públicos - é insusceptível de usucapião a propriedade de jazigo em


cemitério municipal ou paroquial.

... Posto isto, compete averiguar se no domínio da legislação em vigor a partir daquela data (4.7.72) é de
considerar o jazigo erguido em cemitério municipal coisa susceptível de posse conducente à usucapião (art. 202º, 1251º,
1252º, 1267, nº 1, b) e 1287º).
Não parece discutível natureza de bem do domínio público do cemitério municipal pois “é objecto de propriedade
de uma autarquia local, é destinado à inumação de cadáveres de todos os indivíduos que falecerem na circunscrição e é
livre o acesso de todos ao campo santo" (Marcelo Caetano); é, enfim, coisa destinada ao uso público (por analogia,
Assento do STJ de 19.4.89).
Não obstante, é consentida a concessão de terrenos no cemitério municipal para jazigos e sepulturas perpétuas -
artº 51º do Cód. Administrativo).
Ponto está em saber se o beneficiário de tal concessão pode actuar sobre o terreno e o jazigo que nele venha a
erguer como seu dono (arts. 1251º e 1252º.
Mas a resposta impõe-se pela negativa pois o terreno objecto da concessão é afectado ao exclusivo proveito
imediato do concessionário, sem, porém, perder a sua natureza de coisa 'fora do comércio" (art. 202º. nº 2 do CC.).

61
Assim sendo, a fruição do mesmo, em privado, se bem perpetuamente, configura um direito real administrativo (v.
Vítor Manuel Lopes Dias em "Cemitérios, Jazigos e Sepulturas”, pág. 326 e segs), insusceptível de o fazer entrar no
domínio privado, de forma a constituir objecto de um direito de propriedade de que o concessionário seria titular.

Trata-se de um direito real, limitado pela natureza do objecto de concessão e pela finalidade específica de acto
possessório, capaz (?) de presumir o direito de propriedade e de a ele fazer conduzir ao longo do tempo.

BMJ 479 (1998) 276


CEMITÉRIOS PÚBLICOS
NATUREZA JURÍDICA
UTILIZAÇÃO OU USO PRIVATIVO
CONCESSÃO
DIREITO SUBJECTIVO PÚBLICO DE USO PRIVATIVO
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
DE CÍRCULO

I — Os cemitérios públicos são bens dominiais possuídos e administrados pelos municípios e freguesias, afectos
a um fim de utilidade pública — a inumação em condições sanitárias suficientes dos cadáveres de pessoas
falecidas nas autarquias.
II — A utilização de terreno nos cemitérios constitui uma forma de uso do domínio público pelos particulares.
III — A concessão de utilização ou uso privativo de certa parcela de cemitério paroquial, enquanto consentida a
uma ou algumas pessoas determinadas, pode ser feita por acto autoritário da Administração — acto administrativo — ou
por contrato administrativo — artigo 9.°, n.º 2, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.
IV — Esse direito ao uso privativo caracteriza-se como direito subjectivo público.
V — O tribunal administrativo de círculo é competente, em razão da matéria, para, em acção aí intentada, julgar
pedidos respeitantes a contrato administrativo de concessão de uso privativo de parcela de terreno de cemitério paroquial
(sua interpretação) e a incumprimento deste;
VI — O tribunal administrativo de círculo é incompetente, em razão da matéria, para, em acção aí intentada por
particular, que se considera titular do direito de uso privativo de certa parcela de terreno de cemitério paroquial e que lhe
terá sido concedido por contrato, julgar pedido de condenação doutro particular, por responsabilidade extra-contratual,
fundada em imputada conduta deste, tida pelo autor como violadora daquele invocado seu direito de uso privativo.

SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO


Acórdão de 24 de Setembro de 1998
Recurso n.° 43 843
(Secção do Contencioso Administrativo)

Conforme entendimento doutrinal e jurisprudencial (cfr. Marcello Caetano, Direito Administrativo, vol. 2.º, 9.ª ed.,
reimpressão, pág. 919; Vítor Manuel Lopes Dias, Cemitérios, Jazigos e Sepulturas, págs. 329 e segs.; acórdãos deste
Supremo Tribunal Administrativo de 27 de Outubro de 1988, de 7 de Março de 1989 e de 10 de Março de 1992,
respectivamente, recursos n.º 35 046, n.º 26 036 e n.º 29 754), os cemitérios públicos são bens dominiais possuídos e
administrados pelos municípios e pelas freguesias, afectos a um fim de utilidade pública - a inumação em condições
sanitárias suficientes dos cadáveres das pessoas falecidas nas autarquias.
A utilização de terreno nos cemitérios constitui uma forma de uso do domínio público pelos particulares.
A concessão de utilização ou uso privativo de certa parcela de cemitério paroquial, enquanto consentido a uma ou
algumas pessoas determinadas, pode ser feita por acto autoritário da Administração — acto administrativo — ou por
contrato administrativo (artigo 9.°, n.º 2, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais).
Devendo ser titulada por alvará passado pelo presidente da Junta de Freguesia [cfr. artigo 33.º, n.º 1, alínea i), da
Lei n.° 79/77, de 25 de Outubro — vigente ao tempo do contrato de concessão invocado pelo autor (5 de Dezembro de
1982) e ao tempo do alvará passado pelo presidente da Junta de Freguesia de Castelo do Neiva (7 de Maio de 1983), bem
como o artigo 36.º do Decreto n.º 48 770, de 18 de Dezembro de 1968, que, ao abrigo do disposto no artigo 29.º do Decreto
n.º 44 220, de 3 de Março de 1962, disciplinou os regulamentos dos cemitérios municipais e paroquiais].
Essa concessão é apenas de uso, não da gestão do respectivo domínio público, e não confere ao respectivo
titular qualquer direito subjectivo privado, nomeadamente o direito de propriedade privada ou o poder de uso que o integra,
porque as coisas do domínio público estão fora do comércio jurídico privado e não pode um poder de propriedade pública
desdobrar-se em poderes que não sejam também de carácter público.

62
Assim, não obstante a concessão do uso privativo de certa parcela de terreno do cemitério, esta mantém-se
sempre, por todo o tempo que a concessão durar, como coisa pública, afectada à utilidade colectiva, sobre ela mantendo a
Administração os poderes de autoridade, os quais não transfere pela concessão de uso para o utente privado.
Essa concessão confere apenas a uma ou algumas pessoas determinadas o direito de usar ou utilizar
privativamente, com carácter exclusivo (porque o efeito de exclusão é da essência do uso privativo), o terreno da parcela
cemiterial para sepultura, ou seja, para os referidos fins de utilidade pública dos cemitérios (inumação de cadáveres de
pessoas falecidas em condições sanitárias suficientes) e segundo os ditames das aplicáveis leis administrativas e
regulamentos de igual índole.
Os poderes que integram tal direito de uso privativo acham-se submetidos, desde a sua constituição — por acto
ou contrato administrativo — passando pelo seu exercício — fortemente condicionado por imperativos de interesse público
e sujeito a uma fiscalização contínua por parte da Administração (cfr. artigos 37.º a 41.º dos modelos de regulamentos
sobre cemitérios aprovados pelo Decreto n.° 48 770) — até aos seus modos de extinção (§ único do artigo 37.º e artigos
42.º a 46.º, ibidem) estruturados em vista da necessidade de salvaguardar os interesses superiores do domínio.
Por isso, este Supremo Tribunal Administrativo (cfr. arestos acima citados), no seguimento do ensino de Freitas
do Amaral e Marcello Caetano, obras e locais abaixo indicados, considera esse direito como um direito subjectivo público,
como tal sujeito a normas de direito público, fundamentalmente de direito administrativo e com os limites que derivam da
natureza e fins públicos dos cemitérios, de que a sepultura é parte. (Cfr. Marcello Caetano, ob. cit., págs. 929, 930, 936,
937, 938, 940, 941, 946 e 947, e Freitas do Amaral, A Utilização do Domínio Público pelos Particulares, págs. 165, 166,
167, 172, nota 3, 173, 177, 180, 185 e 186, 206, 207 a 209, 222, 257 a 263.)

Relativamente à natureza jurídica dos cemitérios públicos, para além da jurisprudência citada
no acórdão, ver ainda acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 27 de Outubro de 1988, no
recurso n.º 25 546.

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 12/14/1937, no Processo 049140

Sumário:
Os túmulos construídos em cemitérios municipais ou paroquiais são susceptíveis de posse, a qual os
concessionários e seus sucessores podem defender pelos respectivos meios.
….
O que há a discutir e se uma sepultura, túmulo ou jazigo são susceptíveis de posse e, consequentemente, se se
pode usar de acções possessórias contra a turbação ou esbulho. Os cemitérios, quer os municipais, quer os paroquiais,
são cousas públicas sendo permitido a todos utilizarem-se deles para o fim a que são destinados com as restrições
impostas pela lei e regulamentos administrativos.
Mas tanto as câmaras como as juntas de freguesia sempre puderam e podem ainda fazer nesses cemitérios
concessões temporárias ou perpetuas para sepulturas ou jazigos.
Sobre a natureza de tais concessões é que as opiniões divergem.

Vejamos o que dizem os textos legais sobre o assunto:


Na portaria de 26 de Setembro de 1866 lê-se:
Considerando que ainda nos cemitérios legalmente autorizados a propriedade que neles se adquire não pode
deixar de reputar-se sui generis e sujeita as disposições policiais que o Governo entender convenientes a bem da saúde
dos povos... As portarias de 13 de Abril e 21 de Novembro de 1868 sustentam que a aquisição de terrenos para sepulturas
e um contrato sui generis que não transfere para o adquirente, como a venda, o pleno domínio do terreno cedido e so a
faculdade de o usar para um fim certo e determinado. Não há, pois, aquisição de propriedade ou dominio, que não pode
transmitir-se por contrato de venda.
A portaria, porém, de 19 de Março de 1881 volta à doutrina seguida na de 1866, pois diz: e com efeito especial a
propriedade dos jazigos, o que quer dizer que não podem em relação a ela exercer-se todos os direitos que resultam do
domínio, mas simplesmente aqueles que a natureza especial dessa propriedade permite. As questões, porém, que sem
implicarem com a natureza especial dessa propriedade e sem a modificarem ou alterarem digam respeito ao domínio e a
posse dos jazigos e ao facto de se permitir a estranhos o uso da cousa comum com consentimento de um dos
comproprietários sem o assentimento dos outros, sendo, como são, questões de puro direito civil, que nada influem na
natureza e aplicação especial dessa propriedade sui generis, são da exclusiva competência dos tribunais de justiça, as
quais é e deve ser inteiramente estranha a autoridade administrativa.
O parágrafo 1 do artigo 18 da Lei n.º 621, de 23 de Junho de 1916, dispõe o seguinte: Na alienação dos bens
imobiliários referidos no n. 2 do artigo 94 da lei nº 88 não se incluem as vendas e trocas de terrenos destinados a
construção e alinhamento de edificações junto das ruas, avenidas e estradas de valor inferior a 1000 escudos em Lisboa e

63
Porto e a 300 escudos nos outros municípios, bem como as vendas de terrenos dos cemitérios para a construção de
jazigos, podendo quaisquer das alienações referidas ser deliberadas pelas comissões administrativas.
O regulamento para a liquidação e cobrança da contribuição de registo (hoje sisa), aprovado por decreto de 23 de
Dezembro de 1899, diz no seu artigo 1: A contribuição de registo em geral incide sobre todos os actos que importam
transmissão perpetua ou temporária de propriedade de qualquer valor, espécie e natureza por titulo gratuito ou oneroso,
qualquer que seja a denominação ou forma do titulo; e no seu artigo 2: Compreendem-se na disposição do artigo
antecedente, n.1, os contratos de compra e venda, escambo ou troca, constituição de enfiteuse e censo consignativo, e
bem assim as alienações perpetuas ou temporárias, quer dos terrenos para construção de jazigos, quer dos próprios
jazigos.
Temos, pois que, segundo a portaria de 1866, os terrenos concedidos nos cemitérios constituem uma
propriedade sui generis; que nos termos da de 1881 os jazigos constituem uma propriedade especial em relação a qual se
exercem os direitos de domínio, que a sua natureza especial permite. A Lei nº 621, seguindo a mesma orientação, fala-nos
na venda e alienação de terrenos dos cemitérios para a construção de jazigos. Onde se dão estes factos há transferência ?
Do uso ou da propriedade? Da propriedade, por nela se compreender a alienação.
Diz o artigo 2359 do Código Civil: O direito de alienação e inerente a propriedade.
O simples uso de cousas públicas não e susceptível de alienação. Pela alienação ou venda constitue-se uma
propriedade particular. E que de propriedade se trata resulta ainda do citado regulamento de contribuição de registo,
contribuição esta que incide sobre os actos de transmissão de propriedade. Entre esses actos contam-se as alienações
perpétuas ou temporárias, quer dos terrenos para a construção dos jazigos, quer dos próprios jazigos.
Portanto as concessões referidas constituem uma propriedade privada, sui generis, especial, com restrições
impostas pelas leis e regulamentos administrativos e resolúvel em virtude do seu destino, pois que não impede a mudança
dos cemitérios para outro local.
Dado este carácter das concessões, como a propriedade se manifesta pela posse, evidente é que o seu objecto
ou as cousas sobre que se exercem são susceptíveis de posse, e consequentemente e legal o emprego das acções
possessórias contra os particulares que perturbarem ou esbulharem a referida posse; é este e o caso dos autos.
Bem se julgou, portanto, nos acórdãos recorridos, em que os réus foram condenados a restituir aos autores o
terreno e túmulo de que os haviam esbulhado e de que os autores se achavam de posse havia mais de trinta anos e nos
quais estavam sepultadas pessoas de sua família.
Pelo que negam provimento ao recurso, condenam os recorrentes nas custas e firmam o seguinte assento:

Os túmulos construídos em cemitérios municipais ou paroquiais são susceptíveis de posse, a qual os


concessionários e seus sucessores podem defender pelos respectivos meios.

Costa Santos - E. Santos - J. Soares - Lopes Cardoso - Sampaio Duarte - Alberto Plácido - Abílio de Andrade -
Luiz Osório - Afonso de Albuquerque - Adriano Fernandes - Avelino Leite - Magalhães Barros - Carlos Alves - César A.
Santos (vencido. só podem ser objecto de posse as cousas e direitos que sejam susceptíveis de apropriação (Código Civil,
artigo 479) e só podem ser objecto de apropriação as que estiverem em comércio (artigo 370).
Não se mostra que o terreno sobre que assenta o túmulo tenha sido desamortizado e posto em comércio, e,
portanto, não podia recair sobre ele qualquer espécie de posse). - Ramiro Ferreira (vencido. Parece assente - o assunto
está proficientemente tratado na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 58, pagina 392 - que o terreno dos cemitérios,
no todo e em cada uma das suas partes, tem de considerar-se como cousa pública, exclusivamente destinada ao
enterramento dos mortos.
É de ver que, assim sendo, não é susceptível de propriedade privada, enquanto daquele serviço não for
desafectado.
A concessão de terreno para túmulos e jazigos, embora não escape à acção do fisco, não é uma alienação, e o
que por ela cobra o corpo administrativo não pode haver-se como preço de venda. É uma taxa constituindo receita ordinária
- artigos 569, parágrafo 1, n. 4, e 620, n. 1, do actual Código Administrativo - e pelo Código de 1896, artigo 68, n. 8, e lei de
7 de Agosto de 1916, artigo 108, n. 7, era um imposto directo municipal.
Ora, como as cousas públicas e as nelas encorporadas estão fora do comércio, e sabido e que, por isso não
podem ser objecto de posse, é vidente que vedado fica exercer a respeito delas qualquer dos meios possessórios
regulados no Código do Processo Civil.
Contra os desacatos praticados nos túmulos e jazigos encontrarão os interessados a necessária defesa em
preceitos penais e nas leis e regulamentos administrativos).

Acórdão da R.ão de Guimarães (Ex.mo Des. António Gonçalves de 25.5.2005, base de dados da DGSI:

1. Os cemitérios municipais e paroquiais pertencem ao domínio público do Município e da Freguesia e, por isso,
porque estão fora do comércio privado, são bens inalienáveis (não são vendáveis nem doáveis), num contexto de relações
jurídicas privadas e disciplinadas pelo direito civil privado;

64
2. Convenhamos porém que, quando dizemos que os jazigos e as sepulturas são inalienáveis, estamos a
enquadrar esta afirmação num contexto de relações jurídicas privadas e disciplinadas pelo direito civil privado; esta
asserção já não é verdadeira se incluirmos esta temática no âmbito do direito público;
3. Tanto os Municípios como as Freguesias, sempre puderam fazer nesses cemitérios concessões temporárias
ou perpétuas para sepulturas ou jazigos; e a concessão consentida ao abrigo do disposto no art.º 51.º do Código
Administrativo não lhe retira a natureza de um bem público, pois que esta prerrogativa, administrativamente deferida a
alguém, não lhe confere o privilégio de actuar sobre a sepultura ou jazigo como se de seu dono se tratasse.
4. E, se é assim, também se tem de aceitar a transmissão pela via sucessória das sepulturas e jazigos
regularmente construídos em cemitérios. Tendo a concessão como fim último obter e reservar um lugar destinado à última
morada dos finados familiares e ainda a forma encontrada para os poder lembrar no meio de todos os restantes, este
desiderato não surtiria efeito se os herdeiros ficassem impedidos de suceder na posição jurídica do falecido.

Acórdão do STJ (Ex.mo Cons.º Salvador da Costa), de 09/02/2006, Pr.º 06B202:



3. Os cemitérios municipais e paroquiais são bens integrados no domínio público cujo uso privativo,
designadamente para a construção de jazigos, é atribuído a particulares sob o regime de contrato de concessão, que os
não podem adquirir por usucapião.
4. O cadáver em si é uma coisa que não integra a herança e que, por razões de piedade e respeito pelos mortos,
queda excluído do tráfico jurídico normal.
5. Não integra negócio jurídico sobre o cadáver o acordo entre a concessionária do jazigo e o cônjuge do defunto
no sentido de este ser inumado no jazigo daquela sob condição de compensação patrimonial.
6. A circunstância de o cadáver ser de pessoa que residia no lar de idosos da concessionária do jazigo não
significa que a respectiva inumação nele pela última tenha ocorrido no cumprimento de uma obrigação natural.
7. O concessionário do direito de construção do jazigo tem sobre ele exclusivos poderes de uso e fruição, no
âmbito dos quais é livre de consentir ou de recusar o depósito no mesmo de cadáveres de terceiros.
8. Inverificada a condição mencionada sob 5, pode a concessionária do jazigo exigir do cônjuge do falecido, em
acção declarativa de condenação, a transladação do cadáver, mas não a exigir-lhe o pagamento do que viesse a
despender na remoção em substituição do primeiro, matéria própria da acção executiva para prestação de facto.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
A Santa Casa da Misericórdia de Fão Hospital e Lar de São João de Deus intentou, no dia 17 de Julho de 1998
contra a AA, a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a declaração do seu direito de
propriedade sobre identificada capela e a condenação da ré a remover dela o cadáver de BB sob pena de o fazer à custa
dela pelo valor a liquidar em execução de sentença e indemnizá-la na quantia diária de 3 000$ entre 18 de Novembro de
1994 até à remoção e juros moratórios à taxa legal desde a data da citação.
Fundamentou a sua pretensão na circunstância de ser a proprietária da capela-jazigo, e de a ré ser a única
herdeira do falecido e que a pedido dela, por terem celebrado um contrato-promessa de compra e venda de um prédio,
aceitou sepultá-lo num gavetão da capela, sob a condição de ela o remover para local próprio no prazo entre 60 a 90 e que
ela assim não procedeu.

Na fase da condensação do processo, foi a acção julgada improcedente por sentença proferida no dia 14 de
Julho de 2000, que a Relação revogou, ordenando que o processo prosseguisse nas fases de instrução e julgamento, e,
realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 7 de Março de 2005, por via da qual a ré foi absolvida do pedido.

Apelou a autora, e a Relação, dando parcial provimento ao recurso, condenou a ré a remover o referido cadáver
sob pena de a autora o fazer a seu cargo pelo valor a liquidar em execução de sentença.
I
Interpôs a apelada recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- o acórdão não especifica os fundamentos de direito justificativos da decisão na parte em que julga procedente o
pedido da sua condenação na remoção do cadáver, pelo que ocorre a nulidade prevista no alínea b) do nº 1 do artigo 668º
do Código de Processo Civil;
- os factos provados não revelam a dificuldade da recorrida para sepultar outras pessoas ligadas por
compromissos assumidos;
- o cadáver não faz parte da herança, está subtraído ao tráfico jurídico por força do artigo 202º do Código Civil,
pelo que o acordo que o envolva, incluindo a sua transladação, é inválido face ao disposto no artigo 280º daquele diploma
e, consequentemente, não pode gerar obrigações;

65
- a recorrida depositou o cadáver no quadro de uma obrigação natural, não podendo, por isso, exigir a remoção,
pelo que também os fundamentos de facto do acórdão estão em oposição com a decisão, configurando a nulidade a que se
reporta a alínea c) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil.

Respondeu a recorrida, em síntese de alegação:


- a recorrida confunde o cadáver com a obrigação da sua remoção, não houve negócio em relação ao cadáver
mas a assunção pela recorrente de uma obrigação que podia e devia cumprir, pelo que não há nulidade;
- a recorrida era o cônjuge do falecido, pelo que tem o dever de remoção do cadáver em respeito de obrigações
administrativas, não se tratando de obrigação natural ou de dever de ordem moral e social;
- é uma obrigação não cumprida pela recorrente resultante de contrato válido, sem dependência da falta de
espaço na capela-jazigo.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. A capela-jazigo nº 1, sita no arruamento central, primeira à direita, do cemitério paroquial da freguesia de Fão,
situa-se no melhor local do cemitério e é a mais valiosa e rica de quantas lá estão.
2. Desde há mais de 50 anos que a autora vem possuindo a mencionada capela por si e em seu nome, cuidando
dela, pintando-a, limpando-a e depositando nela os mortos, por forma de todos conhecida, sem soluções de continuidade,
na convicção de que o faz como verdadeira proprietária.
3. BB faleceu no dia 17 de Agosto de 1994, no estado de casado com a ré, de cujo funeral a autora se
encarregou, e o seu cadáver foi depositado no gavetão nº 2 esquerdo da capela-jazigo mencionada sob 1.
4. A ré escreveu à autora, no dia 18 de Novembro de 1994, uma carta do seguinte teor: "Venho por este meio
comunicar a Vª Exª. que decidi optar por não efectuar a doação a essa Santa Casa e bem assim não efectuar o contrato
relativo ao meu internamento no vosso lar". "...Deste modo, solicito que me remeta a minha conta discriminada relativa às
despesas que essa Santa Casa suportou com o funeral do meu marido e bem assim com o meu alojamento, a fim de
proceder à sua regularização no mais curto espaço de tempo. Por outro lado, solicito ainda um prazo de 60 a 90 dias para
proceder à transferência do meu marido do vosso jazigo, porquanto tal prazo é necessário para as formalidades. Por tudo
quanto fica dito e por se mostrarem sem interesse para a Santa Casa e porque deles necessito, solicito que me enviem
pelo correio todos os documentos em vosso poder e que tinha entregue a V. Exª, sem esquecer o original do documento
por mim assinado, já que nenhum contrato foi realizado".
5. A autora enviou à autora uma carta, no dia 30 de Abril de 1998, do seguinte teor: "Em cumprimento do acordo
celebrado com V. Exª, procedeu esta instituição ao funeral do seu falecido marido que repousa num jazigo nossa
propriedade no cemitério de Fão. Ora uma vez que V. Exª rompeu o acordo celebrado, e apesar de em 19 de Novembro de
1994 ter informado que no prazo de 60 a 90 dias procederia a remoção dos restos mortais do seu falecido marido, o que,
até agora, não fez, informamos a V. Exª que a partir de 18 de Novembro de 1994 reclamamos de V. Exª a quantia de 3
000$ diários pela ocupação do jazigo. Se no prazo de 30 dias não forem removidos os restos mortais, irá esta instituição
promover tal remoção e consequentemente reclamar em sede judicial a indemnização devida".

III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrida tem ou não direito a exigir da recorrente a remoção do
cadáver de BB do jazigo onde está depositado ou a pagar-lhe o custo da remoção a que a primeira proceda.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente e da recorrida, a
resposta às referidas questões pressupõe a análise da seguinte problemática:
- está ou não o acórdão recorrido afectado de nulidade por falta de fundamentação de direito?
- está ou não o acórdão recorrido afectado de nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão?
- natureza jurídica do cadáver e regime dos actos principais que lhe respeitam;
- situação jurídica da recorrida relativa ao jazigo em causa;
- tem ou não a recorrente o direito a declinar a transladação do cadáver?
- síntese da solução para o caso decorrente dos factos e da lei,

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.


….
3.
Vejamos, ora, a natureza jurídica do cadáver e o regime jurídico dos actos que lhe respeitam.
Conforme resulta do artigo 68º, nº 1, do Código Civil, a um tempo, a morte faz cessar a personalidade jurídica e
implica o surgimento do que foi o seu suporte material, ou seja, o cadáver.
O respeito pelos mortos e as ideias religiosas em redor do fenómeno morte tem levado a diversos entendimentos
sobre a natureza jurídica do cadáver, entendendo uns que se trata de uma coisa e outros que se trata de uma realidade
diversa posicionada entre a coisa e a pessoa.

66
A lei caracteriza, por um lado, o cadáver como o corpo humano após a morte até estarem terminados os
fenómenos de destruição da matéria orgânica (artigo 2º, nº 1, alínea i), do Decreto-Lei nº 411/98, de 30 de Dezembro).
E, por outro, considera coisa tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas, mas logo estabelecendo
considerarem-se fora do comércio as coisas que não podem ser objecto de direitos privados (artigo 202º do Código Civil).
Assim, o cadáver em si, na sua existência efémera até à destruição, é uma coisa que não integra a herança e
que, por razões de piedade e respeito pelos mortos, queda excluído do tráfico jurídico normal.
Vários são os actos relativos ao cadáver, por exemplo, a remoção, a inumação, a exumação e transladação, a
que se reporta essencialmente o Decreto-Lei nº 411/98, de 30 de Dezembro, alterado pelos Decretos-Leis nºs 5/2000, de
29 de Janeiro, e 138/2000, de 13 de Julho.
A remoção é o levantamento do cadáver do local onde ocorreu ou foi verificado o óbito e o seu subsequente
transporte a fim de se proceder à sua inumação ou cremação (artigo 2º, alínea d)).
A inumação é a colocação do cadáver em sepultura, jazigo ou local de consumpção aeróbica, e a exumação
traduz-se na abertura de sepultura, do local de consumpção aeróbica ou caixão de metal onde se encontra inumado o
cadáver (artigo 2º, alíneas e) e f)).
A inumação em jazigo implica que o cadáver esteja encerrado em caixão de zinco com folha com a espessura
mínima de 0,4 milímetros, devendo nele serem colocados filtros depuradores e dispositivos adequados a impedir os efeitos
da pressão dos gazes no seu interior (artigo 12º).
Por seu turno, a lei caracteriza a transladação como o transporte do cadáver inumado em jazigo ou de ossadas
para local diferente daquele em que se encontram, a fim de serem de novo inumados, cremados ou colocados em ossário
(artigo 2º, alínea g)).
A transladação do cadáver deve ser requerida à entidade responsável pela administração do cemitério onde o
cadáver ou as ossadas estiverem inumados, e é decidida pela entidade responsável pela administração do cemitério,
mediante solicitação da primeira (artigo 4º, nºs. 2 e 3).
Têm legitimidade para requerer a prática dos referidos actos, além do mais, o cônjuge sobrevivo.
Resulta, pois, do referido regime jurídico que a recorrente tem legitimidade para implementar a transladação do
cadáver de BB do jazigo onde se encontra para outro local.

4.
Atentemos agora na natureza e âmbito do direito da recorrida relativamente ao mencionado jazigo
Os cemitérios municipais e paroquiais são bens integrados no domínio público cujo uso privativo,
designadamente para a construção de jazigos, é atribuído a particulares sob o regime de contrato de concessão.
É aos municípios, através das câmaras municipais ou às freguesias, através das respectivas juntas, conforme se
trate de cemitérios municipais ou de cemitérios paroquiais, que a lei atribui a competência para conceder terrenos nos
cemitérios para jazigos, mausoléus ou sepulturas perpétuas, regime que já vem do passado longínquo, e que agora consta
nos artigos 34º, nº 6, alínea d) e 68º, nº 2, alínea r), da Lei nº 169/99, de 18 de Setembro.
Dos referidos contratos de concessão não deriva para o concessionário um direito de propriedade nos termos em
que o consente o regime de direito privado, não obstante possa haver transmissão mortis causa ou entre vivos desde que
tal seja autorizado pela respectiva autarquia local.
Por isso, tal como foi considerado na sentença proferida na 1ª instância, a factualidade mencionada sob II 1 e 2,
em que o conceito de posse não pode ter o sentido jurídico a que se reporta o artigo 1251º do Código Civil, não permite a
declaração de que a recorrida adquiriu o direito de propriedade sobre o jazigo por usucapião, mas permite a conclusão de
que ela é concessionária do jazigo em causa.
Perante este quadro, a conclusão é no sentido de que a recorrente, como titular do direito de uso e fruição
exclusivos do aludido jazigo, é livre de consentir ou de recusar nele o depósito de cadáveres, sem prejuízo das vinculações
decorrentes de contratos que haja celebrado.

5.
Vejamos agora se a recorrente tem ou não direito a recusar a transladação do cadáver.
A lei expressa serem nulos, além do mais, os negócios jurídicos cujo objecto seja legalmente impossível,
contrário à lei ou ofensivo dos bons costumes (artigo 280º do Código Civil).
No caso de a recorrente e a recorrida terem celebrado algum contrato cujo objecto mediato fosse o próprio
cadáver, como se trata de coisa excluída do tráfico jurídico, ele seria nulo por impossibilidade legal.
Mas a este propósito, todavia, da factualidade provada apenas resulta que a recorrente se encarregou do funeral
de BB, que o cadáver foi depositado no jazigo da recorrida e que a primeira, cerca de três meses depois do decesso
daquele à última solicitou, para transferir o cadáver, um prazo entre 60 e 90 dias.

Além disso só se sabe, em tanto quanto releva no caso vertente, que três anos, cinco meses e doze dias, a
recorrida exigiu à recorrente a remoção do cadáver no prazo de trinta dias sob pena de operar reclamação judicial com
pedido de indemnização.

67
Perante este quadro, em que só houve declaração de compromisso por parte da recorrente, certo é inexistir
fundamento para se concluir ter ocorrido algum contrato entre a recorrente e a recorrida cujo objecto mediato tenha sido o
cadáver em causa e, consequen-temente, não tem razão de ser qualquer qualificação jurídica de ilegalidade.
A recorrente suscita a questão de se tratar de cumprimento de uma obrigação natural por parte da recorrida e
que, por isso, esta não lhe pode exigir a prestação de remoção do cadáver.
Expressa a lei, por um lado, fundar-se a obrigação natural num mero dever de ordem moral ou social cujo
cumprimento é insusceptível de ser judicialmente exigido, mas que corresponde a um dever de justiça (artigo 402º do
Código Civil).
E, por outro, não poder ser repetido o que for prestado espontaneamente, isto é, livre de toda a coacção, em
cumprimento de obrigação natural, excepto se o devedor não tiver capacidade para efectuar a prestação (artigo 403º do
Código Civil).
Trata-se, pois, de obrigações sem a característica da coercibilidade e em relação às quais não funciona o
princípio da repetição do indevido a que se reporta o artigo 476º, nº 1, do Código Civil.
Envolvem deveres morais ou sociais com relevância jurídica consubstanciada em a lei considerar como causa
justificativa da atribuição patrimonial operada pelo devedor.
Dir-se-á envolverem as obrigações naturais o requisito objectivo que se traduz a existência de um dever de
justiça, e o requisito subjectivo consubstanciado na intenção de cumprir um dever.
A este propósito apenas resulta da factualidade provada que a recorrida se encarregou do funeral de BB e que o
cadáver deste foi depositado num dos gavetões do jazigo da primeira.
Em consequência, tendo em conta o nível de utilização de jazigos no depósito de cadáveres e a natureza de
pessoa colectiva de utilidade pública da recorrida que gere um lar de idosos, inexiste fundamento legal para considerar que
ela tenha operado o referido depósito do cadáver em causa no cumprimento de alguma obrigação natural.
Assim, como a recorrida é a exclusiva titular do direito de usufruição do jazigo em causa, e a recorrente não
dispõe de título que lhe permita manter o cadáver da pessoa que foi o seu cônjuge, a conclusão é no sentido de que a
primeira tem o direito de exigir à última a pretendida transladação.
Aliás é a própria recorrente que reconheceu a falta de título para a ocupação do jazigo pelo cadáver de BB ao
solicitar-lhe prazo para o remover, mas que não removeu, ao invés do que era a sua obrigação.
Mas a recorrida só pode obter a substituição da recorrente, por si ou por outrem, no âmbito da acção executiva
para prestação de facto (artigos 933º a 940º do Código de Processo Civil).
Assim, por esse motivo, não tem a recorrida o direito a impor à recorrente a condenação a pagar-lhe a quantia a
liquidar em execução de sentença que viesse a despender com a transladação do cadáver realizada por si própria.

6.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso decorrente dos factos e da lei, o acórdão recorrido não
está afectado de nulidade por falta de fundamentação jurídica ou por contradição entre os fundamentos e a decisão.
A recorrida, por via da sua posição jurídica de concessionária do jazigo em causa, tem direito ao seu uso e
fruição, excluindo a sua ocupação por outrem, salvo vinculação a que deva sujeitar-se.
Não há contrato algum celebrado entre a recorrente e a recorrida relativamente ao cadáver de BB propriamente
dito e o seu depósito no aludido jazigo não resultou de cumprimento pela última de alguma obrigação natural.
A recorrente não tem título de ocupação do jazigo da titularidade da recorrida com o cadáver da pessoa que foi o
seu cônjuge, pelo que tem a obrigação de o transladar, e tem para o efeito legitimidade substantiva.
Mas a recorrida não tem o direito a impor à recorrente a condenação a pagar-lhe a quantia a liquidar em
execução de sentença que viesse a despender com a transladação do cadáver realizada por si própria.
Assim, o recurso de revista só procede quanto à referida vertente de condenação no que viesse a liquidar-se
posteriormente.

Vencidas parcialmente, seriam, em princípio, as recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas
respectivas, na proporção do vencimento (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Mas a recorrida, em razão do seu estatuto de instituição particular de solidariedade social goza de isenção de
pagamento de custas (artigo 2º, nº 1, alínea g), do Código das Custas Judiciais e 14º, nº 1, do Decreto-Lei nº 324/2003, de
27 de Dezembro).
Quanto à recorrente, porque beneficia do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas,
tendo em conta o disposto nos artigos 15º, nº 1, 37º, nº 1, 54º, nºs 1 a 3, do Decreto-Lei nº 387-B/87, de 29 de Dezembro,
57º, nºs 1 e 2, da Lei nº 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e 51º, nºs 1 e 2, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, inexiste
fundamento legal para que seja condenada no pagamento das custas relativas ao recurso.

IV

68
Pelo exposto, apenas se revoga o acórdão recorrido na parte em que condenou a recorrente a pagar à recorrida
a quantia a liquidar em execução de sentença derivada da substituição na transladação do cadáver, mantendo-se no mais
o que foi decidido pela Relação.

Lisboa, 9 de Fevereiro de 2006


Salvador da Costa Ferreira de Sousa Armindo Luís

BALDIOS
Ac. do STJ (Cons.º Oliveira Barros), 16/11/2006 P.º 06B2897:

I - Não confundíveis os baldios, na sua génese, com os bens próprios da freguesia ou do concelho, tendo antes
carácter de bens em comunidade ou de propriedade comunal, sobressai estabelecer-se no art. 389º, § 2º, C. Adm.
(aprovado pelo DL 31.095, de 31/12/40) simples presunção da qualificação aí referida "para efeitos de regulamentação do
seu uso e fruição e os demais consignados na lei", conforme corpo do mesmo artigo.
II - Com a remição dos foros de que fossem credoras, de que § único do art.722º C. Adm. impôs às câmaras
municipais a promoção, a levar a efeito até 31/12/46 nos termos do Decreto nº 24.427, de 27/8/34, operou-se - tenha ela
sido bem ou mal efectuada - efectiva inversão do título da posse a partir dessa data, posse essa assim e então titulada, e,
enquanto tal, presumida de boa fé, dado consoante art. 9º daquele Decreto, a certidão da guia do depósito do preço ou do
distrate constituir documento comprovativo da extinção do ónus respectivo, com força bastante para os cancelamentos de
registos a efectuar nas Conservatórias do Registo Predial competentes.
III - O justo título referido no art. 518º do C. Civ. de 1867 era qualquer título capaz de transferir a propriedade da
coisa, mesmo que no caso concreto a não tivesse transferido, sendo considerada de boa fé, conforme arts. 476º e 520º
desse mesmo Código, a procedente de título de que o possuidor não conhecesse os vícios no momento da aquisição,
julgando, portanto, estar a exercer legitimamente o seu direito
IV - É posse titulada, como actualmente decorre do art. 1259º C. Civ., a que se funde em modo idóneo, em
abstracto, para determinar a aquisição, independentemente de, no caso concreto, o transmitente ter ou não o direito a
transmitir e da validade substancial do negócio jurídico.
V - Expressamente admitida no § único do art. 388º C. Adm. a prescritibilidade dos baldios, passou, com a
remição, a correr em 31/12/46, o prazo de 15 anos conducente à aquisição por usucapião, conforme arts. 510º, 518º, 519º,
520º e 528º do C. Civ. de 1867, pelo que, quando proibida pelo DL 39/76, de 19/1, essa aquisição por usucapião já há
muito estava consumada.

***

«A questão de fundo está em saber se os antecessores do R. Álvaro da Costa Correia, designadamente seu pai e
avó, adquiriram por usucapião ou prescrição aquisitiva o imóvel que ele declarou às Finanças como herança daquela sua
avó e depois vendeu aos RR Abílio e esposa.
O Conselho Directivo dos Baldios defende que não, pois aquele bem, seja a casa seja o terreno em que está
implantada e lhe serve de logradouro, jamais pertenceu à defunta senhora e, portanto, não passou ao seu sucessor, antes
pertence ao baldio da Facha; os RR entendem que adquiriram por usucapião o bem porque o possuíram desde, pelo
menos, 1964 até à entrada em vigor da Lei 68/93 {(conclusão h)} pois adquire por usucapião aquele que está na posse do
terreno baldio, iniciando-se a posse entre 1945 a 64, sucessivamente, até à data da instauração da acção - em 1998,
consecutivamente durante 53 anos (conclusão i).

Não vale a pena perder tempo com o estudo da natureza jurídica ou conceito de baldios, antes convém ter
presente o conceito legal - art. 1º do Dec-lei n.º 39/76, de 19 de Janeiro, e art. 1º, n.º 1, da Lei n.º 68/93, de 4 de Setembro -
e o assento constitucional destes meios de produção comunitários, possuídos e geridos por comunidades locais, na
expressão do art. 82º, n.º 4, al. b), da Constituição.
Analisando os factos acima elencados sob os n.os 7 a 9 - Na Facha existe uma área com dezenas de hectares de
terreno baldio denominada “Baldios da Facha” que desde há mais de 100 ou 200 anos vem sendo sem qualquer
interrupção temporal, detida, possuída e gerida pelos moradores da freguesia; os moradores - compartes - da Freguesia da
Facha, desde a data agora mesmo referida ali apascentam os animais, procedem ao corte de lenha, ao roço de mato e à
recolha de pruma e folhas de árvores e outros despojos das limpezas - á vista de toda a gente, com conhecimento e
aceitação de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição e na convicção de exercerem um direito comum de vizinhos -
logo se conclui estarmos, sem sombra de dúvida, perante baldios, ou seja, terrenos geridos e possuídos por comunidades
locais.

69
Antes de mais, temos de precisar que a questão a analisar - aquisição por usucapião do direito de propriedade
por parte do réu Álvaro Correia (ou seus antecessores) dos terrenos em causa - será feita à sombra do Código Civil de
Seabra, do Código Administrativo de 1940 e do Código Civil de 1966 até ao início da vigência do Decreto-Lei n.º 39/76, de
19 de Janeiro, que, no seu artigo 2º, prescreve que os terrenos baldios encontram-se fora do comércio jurídico, não
podendo, no todo ou em parte, ser objecto de apropriação privada por qualquer forma ou título, incluída a usucapião.
Tal norma encontra-se em consonância com um dos princípios fundamentais da organização económica: o sector
comunitário - artigo 82º, n.º 4, alínea b), da Constituição -, o qual abrange os meios de produção possuídos e geridos por
comunidades territoriais sem personalidade jurídica («povos», «aldeias»), sendo o caso mais relevante, mas não único, o
dos baldios, «que se apresenta como uma figura específica, em que é a própria comunidade enquanto colectividade de
pessoas, que é titular da propriedade dos bens, bem como da respectiva gestão, pelo que o Estado não pode apossar-se
nos termos em que o pode fazer em relação ao sector privado ou cooperativo (Gomes Canotilho e Vital Moreira,
Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., revista, pág. 406).

É dado como certo que os baldios, à sombra do Código Civil de Seabra, eram susceptíveis de apropriação e
prescrição.
Dada as características dos baldios, a doutrina e a jurisprudência inclinavam-se para considerá-los como coisas
susceptíveis de apropriação e prescrição (Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, vol. III, págs. 144 e 145; Manuel
Rodrigues, A Posse, pág. 147, e decisões judiciais citadas na nota 1, Carlos Moreira, Os Baldios, 1921, pág. 97, com
citações de doutrina e jurisprudência; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Novembro de 1931, Revista de
Legislação e de Jurisprudência, ano 64º, pág. 266).
O Código Administrativo de 1940 veio consagrar expressamente, no § único do seu artigo 388º, a prescritibilidade
dos baldios, em termos que configuram uma verdadeira interpretação autêntica do direito anterior, considerando-se, por
isso, de aplicação retroactiva nos termos do art. 8º do Código de Seabra (cfr. doutrina e decisões judiciais citadas por
Jaime Gralheiro, Comentário à Lei dos Baldios, pág. 56).
O regime instituído pelo Código Administrativo de 1940 não sofreu alteração com a entrada em vigor do Código
Civil porque o seu art. 202º não inclui os baldios no domínio público ou fora do comércio.
O artigo 474º do Código de Seabra definia a posse como a retenção ou fruição de qualquer coisa ou direito.
A norma, apesar de clara, não deixa de ser imprecisa de modo que surgiu, perante a pergunta de qual o conceito
de posse, três soluções - conforme noticia Manuel Rodrigues, que ensinava que o conceito de posse do Código era
formado por dois elementos: o corpus traduzido na pratica de actos materiais, e o animus sibi habendi, traduzido na
intenção de exercer um poder sobre as coisas correspondentes a um direito real, no próprio interesse.
E Manuel Rodrigues ensinava ainda que os dois parágrafos do artigo 481º se destinavam a determinar o animus
sibi habendi:
- No caso de o corpus se exercer com título, o animus que se pode invocar é o que está inerente ao título - § 2º
do artigo 481º;
- No caso de o corpus se exercer sem título, a lei presume que aquele que exerce um direito o frui como se fora
seu titular - § 1º do artigo 48lº - cfr. A Posse, 2ª ed., 1940, págs. 97 e seguintes.
A presunção legal do § 1º do artigo 481º é uma presunção iuris tantum - artigo 2158º -o que significa que só cede
perante prova do contrário. E a prova do contrário é a prova principal, visto se destinar a demonstrar não existir o facto
presumido, e não somente criar a dúvida a tal respeito (Manuel de Andrade, Algumas Questões em Matéria de Injúrias
Graves como Fundamento do Divórcio, pág. 24).
E a prova do contrário, para o caso da presunção do § 1º do artigo 481º do Código de Seabra, será a
demonstração de que os actos praticados são actos facultativos ou de mera tolerância, que são os praticados por quem
não é titular da coisa ou do direito que incidem, ou, por outras palavras, não significam a afirmação de um direito - Manuel
Rodrigues, ob. cit., págs. 226 e 232.
A posse, com certos caracteres - publicidade e continuidade - com o decurso de certo tempo - variável em função
da existência de justo título e de boa fé - levava à aquisição do direito exercido: dizia-se, então, à prescrição positiva - artigo
506º, § único, do Código de Seabra.
À luz do Código Civil vigente, a posse (definida nos termos do artigo 1251º - a corresponder ao artigo 474º do
Código de Seabra - sendo um dos seus elementos - o animus sibi habendi - determinado, em caso de dúvida, nos termos
do n.º 2 do artigo 1252º, a corresponder ao § 1º do artigo 481º do Código de Seabra) em certos caracteres - publicidade e
continuidade - e com o decurso de certo tempo - variável em função da existência de título e de boa fé - leva à aquisição
por usucapião do direito exercido - artigo 1287º .

No que respeita mais especificamente à aquisição de baldios por prescrição, o regime florestal instituído em
1901-1903 abriu, teoricamente, essa possibilidade, e o entendimento de que eram susceptíveis de posse e prescrição saiu
fortemente robustecido com a publicação do Decreto n.º 7.933, de 10.12.1920, especificamente do seu artigo 7º (neste
sentido, Ferreira Salgado, “A Prescrição dos Baldios, in Scientia Jurídica, ano IV, p. 237).

70
Foi, porém, o Código Administrativo de 1940 que veio declarar, expressamente, que “os baldios são prescritíveis”
(§ único do artigo 388º).
Situação que só veio a inverter-se em 1976, com a entrada em vigor dos já citados DL n.º 39/76 e n.º 40/76.
Na verdade, o artigo 2º do primeiro diploma - após o artigo 1º ter definido os baldios como ”.. os terrenos
comunitariamente usados e fruídos por moradores de determinada freguesia ou freguesias, ou parte delas”- estabeleceu:
“Os terrenos baldios encontram-se fora do comércio jurídico, não podendo, no todo ou em parte, ser objecto de
apropriação privada por qualquer forma ou título, incluída a usucapião”.
Por seu turno, o artigo 1º do DL n.º 40/76 veio dispor:
“Os actos ou negócios jurídicos que tenham como objecto a apropriação de terrenos baldios ou parcelas de
baldios por particulares, bem como as subsequentes transmissões que não forem nulas, são, nos termos de direito,
anuláveis a todo o tempo”.
À luz do regime definido por estes diplomas de 76, parece não oferecer dúvidas a conclusão de que deixou de ser
possível a aquisição, por usucapião, de terrenos baldios ou parcelas de baldios.
Regime que, no essencial, foi acolhido pela lei em vigor - a Lei n.º 68/93, de 4 de Setembro.
Dela destacamos o artigo 4º, n.º 1:
“Os actos ou negócios jurídicos de apropriação ou apossamento, tendo por objecto terrenos baldios, bem como
da sua posterior transmissão, são nulos, nos termos gerais de direito, excepto nos casos expressamente previstos na
presente lei” .

Na vigência do Código de Seabra, o prazo para adquirir por usucapião era de trinta anos quando o possuidor
não tinha registo e possuía de má fé ou sem título - art. 476º e 529º; com a entrada em vigor do actual Código, em 1 de
Junho de 1967, esse prazo baixou para 15 anos de posse sem título ou registo, mas de boa fé, ou 20 anos se de má fé -
art. 1296º do CC - dizendo-se de boa fé a posse quando o possuidor ignorava, ao adquiri-la, que lesava o direito de outrem
- art. 1260º, n.º 1 - e presumindo-se de má fé a posse não titulada - n.º 2 deste art. 1260º.
Nos termos do art. 297º, n.º 1, do CC, a lei nova que fixa prazo mais curto é aplicável aos prazos que estiverem
em curso, mas este prazo mais curto só se conta a partir da entrada em vigor da nova lei, a não ser que segundo a lei
antiga falte menos tempo para o prazo se completar.

De acordo com a regra geral contida no art. 342º, n.º 1, do CC, àquele que invocar um direito cabe fazer a prova
dos factos constitutivos do direito alegado.
Também é seguro que a resposta negativa a um quesito significa tão só que dele nada se provou e não que se
provou o contrário do que nele se perguntava.

Sabido que o imóvel litigado, casa e terreno que lhe serve de logradouro, está integrado no Baldio da Facha, cabe
ao R Álvaro demonstrar que os seus antecessores adquiriram por usucapião (anterior prescrição aquisitiva) esse bem. Ou
seja, que por mais de 30 ou 15/20 anos, a contar nos termos do art. 297º, n.º 1, antes de Janeiro de 1976 possuíram
pública e pacificamente, com animus sibi habendi (que se presume em quem exerce o corpus, o poder de facto - art. 1252º,
n.º 2 e AUJ no D.R., II série, de 24.6.96 e BMJ 457-55) a casa e terreno.
Está adquirido (certidões de fs. 43, 44 e escritura de habilitação nos apensos autos de embargo) que a falecida
Maria Correia Lopes foi avó do R. Álvaro Correia e mãe do João Correia; o Álvaro era filho deste João Correia e sobrinho
neto de João Lopes Correia, irmão daquela Maria Correia Lopes .

Como factos úteis à tese dos RR temos apenas estes:


Em 1945 o baldio da Facha passou a ser gerido pela Administração Florestal de Viana do Castelo por então ter
sido submetido a regime florestal.
Alguns anos depois a referida Administração Florestal passou a ceder a alguns moradores mais pobres parcelas
de 500 m2 terreno para eles ali construírem a sua casa de habitação.
Um dos contemplados com esta cedência de terreno baldio, em data que se desconhece e sem auto de entrega,
alvará ou qualquer outro documento, foi o tio avô do R. Álvaro, o João Lopes Correia (resposta restritiva ao quesito 5º) que,
nos anos 60 procedeu à construção de um socalco nesse terreno e à sua vedação (facto n.º 19).
Em 1964, andando os louvados ao serviço das Finanças na elaboração de novas matrizes, criaram na área de
terreno ocupada por este João Correia Lopes duas inscrições matriciais, ambas rústicas e referindo leiras de cultivo: o
artigo 1057º com 750 m2 e em nome de João Lopes Correia (irmão da falecida Maria e tio avô do R. Álvaro); e outra com o
n.º 1058, a área de 290 m2 e em nome de João Correia, pai deste R. Álvaro e filho daquela Maria Correia Lopes.
Depois desta inscrição na matriz de 1964 foram implantados no terreno matriciado em nome do João Lopes
Correia os alicerces e quatro paredes mestras para uma casa com a área de 28 m2 (facto n.º 22).
Foi ali construída uma casa em data que se desconhece mas antes de 1980, pois a Maria Correia Lopes, avó do
1º réu, introduziu melhoramentos nessa casa de habitação, substituiu a telha mourisca, ampliou a área coberta com um

71
anexo, cujo chão cimentou (facto n.º 24) e na década de 80 jamais a Junta de Freguesia ou outro órgão impediu a avó do
1º réu de habitar a referida casa - (facto n.º 25).
O prédio a que foi atribuído o artigo 1058º foi inscrito em nome de João Correia por informação dada aos
louvados pelos próprios e pela Junta de Freguesia, aquando das novas matrizes - (facto n.º 26).

Está bem de ver que os actos de posse praticados pelo tio avô, pela avó e pelo pai do R. Álvaro, ainda que bons
para usucapião, apenas ocorreram depois de 1960, década em que foi construído o socalco e vedado o terreno cedido pela
Administração Florestal de Viana ao João Lopes Correia, por forma a estar o terreno desbravado em 1964 quando inscrito
em nome dos tio avô e pai do R. E não desde 1945, ano de submissão do baldio ao regime florestal, muito menos nos anos
30, como alegado pelos RR (resposta negativa ao quesito 19º).
Ora, entre 1960 e 1976, data em que com o Dec-lei n.º 39/76, de 19 de Janeiro, passou a ser proibida a
usucapião de baldios, decorreram 16 anos dos 30 necessários pelo Código de Seabra e entre 1967 e 1976 passaram 9
anos dos 15 ou 20 exigidos pelo Código de 1967.
Em qualquer dos casos - e ao contrário do que dizem em g), h) e i) - não passou sobre a posse dos antecessores
do R. o tempo bastante para que estes adquirissem por usucapião o direito de propriedade sobre o questionado imóvel.
Pelo que se desatende o assim concluído» - Afonso Correia, na Rev. 1965/2002, da 6ª secção.

Regime processual

Com a revogação dos art. 1033º a 1036º, 1037º a 1043º e 1044º a 1051º CPC pela reforma do
processo civil de 1995/96, desapareceram dos processos especiais os então chamados meios
possessórios, as acções possessórias propriamente ditas, os embargos de terceiro e a acção de posse
judicial avulsa ou entrega judicial.

As acções possessórias estão agora sujeitas ao processo comum, cabendo reconvenção para
se discutir a questão do domínio que ao R. era permitido introduzir na contestação daquelas acções,
nos termos dos anteriores e revogados art. 1034º a 1036º CPC.

Notar o disposto no nº 5 do art. 510º do CPC.

Dada a dificuldade de, frequentemente, distinguir entre turbação - a que cabe acção de
manutenção - e esbulho - para que é adequada a acção de restituição, tal como se dispunha no art.
1033º, 2, CPC, diz hoje o art. 661º, nº 3, CPC, que se tiver sido requerida a manutenção em lugar da
restituição da posse, ou esta em vez daquela, o juiz conhecerá do pedido correspondente à situação
realmente verificada. Doutra forma poderia haver violação do princípio consagrado no original 661º do
CPC (ne eat judex ultra petitum).

PROPRIEDADE

O direito de propriedade é o direito real máximo mediante o qual é assegurada a certa pessoa,
com exclusividade, a generalidade dos poderes de aproveitamento global das utilidades de certa coisa.

Para H. Mesquita é o poder exclusivo, directo e imediato sobre uma coisa.


Este conceito resulta do disposto no art. 1305º CC que, atribuindo ao titular do direito de
propriedade os mais amplos poderes de uso, fruição e disposição, não deixa de lhe apontar as
limitações e restrições impostas pela lei.

Como características fundamentais do direito de propriedade temos:


a) - O proprietário tem poderes indeterminados, mas plenos e exclusivos, pois as limitações
hão-de resultar da lei;

72
b) - Elasticidade - o proprietário limitado recupera a plenitude do seu direito de propriedade
sempre que se extingue o direito real menor que limitava o seu direito;
c) - Perpetuidade – o direito de propriedade não se extingue pelo não uso, se bem que a lei
possa sancionar esse não uso. É excepcional a propriedade temporária - 1307º, nº 2. Mas extingue-se
pela aquisição por outrem (usucapião).
d) - Goza de defesa extrajudicial (acção directa - 1314º - legítima defesa) e judicial,
especificamente pela acção de reivindicação (1311º).
e) - numerus clausus - 1306º CC.

O negócio de constituição de um direito real não previsto é, pois, nulo, se dele resultar um
parcelamento da propriedade; e produz efeitos obrigacionais (art. 1306º, n.º 1), se dele nascer uma
pura restrição ao direito de propriedade de outrem. Podem citar-se, como exemplos deste último tipo, o
direito de passagem sobre certo prédio, constituído em benefício de pessoas, e de um modo geral,
todo o direito de uso e fruição, que não esteja especialmente previsto no Código ou noutra lei. Estão
nestas condições as chamadas servidões pessoais - PLAV, III, 96.
A acção de reivindicação é uma acção real (sujeita a registo - art. 3º, nº 1, a), do CRP) porque
tem origem num direito real, porque a sua causa de pedir (498º, nº 4, 2ª parte, CPC) é o facto jurídico
de que deriva esse direito real.
Tem legitimidade activa o titular do direito reivindicado e será réu quem estiver na posse ou
detenção da coisa - 1311º, nº 1.
Formulará o Autor dois pedidos, um principal - reconhecimento do seu direito de propriedade -
e outro secundário ou consequência deste - a restituição do que lhe pertence.
Nos termos do nº 2, uma vez reconhecido o direito de propriedade, a restituição só pode ser
recusada nos casos previstos na lei, ou seja, quando o possuidor ou detentor tem título, tem causa,
tem fundamento bastante para tal posse ou detenção, como o arrendamento, o direito a novo
arrendamento, o direito de retenção por benfeitorias (929º CPC), etc.

De acordo com as regras do onus da prova (art. 342º CC), cabe ao A. provar o direito de
propriedade sobre a coisa e que esta se encontra na posse ou detenção do R; a este cabe a prova de
qualquer facto impeditivo ou extintivo do direito do A., a prova da excepção, a prova de que possui por
virtude de um direito real ou obrigacional que lhe permite recusar a restituição, que legitima a sua
posse ou detenção.

A invocação, apenas, de um negócio translativo de propriedade não basta para caracterizar a


causa de pedir na acção de reivindicação, pelo que o reivindicante, pelo menos quando não foi
favorecido por nenhuma presunção legal de propriedade, terá de invocar factos dos quais resulte a
aquisição originária do domínio por parte dele ou de um transmitente anterior - BMJ 257-82.
Satisfaz à invocação do domínio o autor declarar-se dono e proprietário do prédio reivindicado,
juntar certidão do registo predial em seu nome e dizer que o prédio lhe adveio por transmissão - BMJ
240-220.

É que a inscrição da aquisição em seu nome no registo - a provar pela certidão que é junta
com a petição - faz presumir que o direito registado lhe pertence - art. 7º do CRP - e quem tem a seu
favor presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz - 350º, nº 1 - sujeitando-se, no
entanto, a que o R. ilida tal presunção ou beneficie de presunção prevalecente, como é o caso da
presunção derivada da posse - 1268º, nº 1:

Havendo conflito de presunções, uma derivada do registo (artigo 7º do Código de Registo


Predial) e outra emergente da posse (artigo 1268º, nº 1, do Código Civil), prevalece esta última

73
que só cede no confronto com a presunção derivada do registo anterior ao início da posse . -
BMJ 414-545 e os antes vistos.

Mais recentemente - Ac. de 7 de Julho de 1999, na Col. STJ 99-II-164 - o STJ tratou esta
matéria, aplicando já o novo conceito de terceiros, Acórdão já referido acima, de que foi distribuída
cópia aquando do estudo das Garantias das Obrigações, e assim sumariado:

I - A exigência de em acção de reivindicação ser feita pelo autor a prova de ter havido uma aquisição originária do
direito de propriedade ou uma ou várias aquisições derivadas que formem uma cadeia ininterrupta a terminar numa
aquisição originária do mesmo direito, vale para os casos em que o proprietário se limita a pedir a declaração de que é
dono.
II - A articulação entre esta exigência de prova de uma aquisição originária a fundamentar a existência do direito
de propriedade invocado, por um lado, e a força da presunção resultante da inscrição registral de aquisição, por outro, faz-
se no sentido de que a dita inscrição registral dispensa o seu titular de provar a aquisição originária bem como a eventual
cadeia de aquisições derivadas anteriores à aquisição que conseguiu fazer inscrever.
III - No acórdão uniformizador proferido pelo STJ em 18.05.1999 consagrou-se a orientação segundo a qual a
inoponibilidade de direitos a um terceiro, para efeitos de registo predial, pressupõe que ambos os direitos advenham de um
mesmo transmitente comum, excluindo-se os casos em que o direito em conflito com o direito não inscrito deriva de uma
diligência judicial, seja ela arresto, penhora ou hipoteca judicial.
IV - Na venda executiva o executado é substituído no acto da venda pelo juiz enquanto órgão do Estado,
gerando-se uma aquisição derivada em que o executado é o transmitente.
V - Por isso, ao adquirente em venda judicial não pode ser oposta, apesar daquele acórdão uniformizador, uma
transmissão anteriormente feita pelo executado a favor de uma outra pessoa que a não fez inscrever oportunamente no
registo predial.
VI - Aquele que adquiriu um direito de propriedade e omitiu o registo do negócio aquisitivo, não podendo opor
esse direito aos terceiros protegidos pelo registo, também não pode invocar perante os mesmos terceiros, para efeitos de
afastar a prevalência do direito destes, a posse do alienante, sob pena de a regra da inoponibilidade por falta de registo não
ter, na prática, qualquer eficácia.

Note-se que no próprio AUJ de 1999 se sujeita às regras comuns a aquisição posterior
(mesmo em execução) mas registada, desde que, como é o caso, se tenha ultrapassado a fase da
penhora e tenha havido já arrematação, estando então em confronto dois direitos de propriedade, de
igual força, e não um direito (real) de garantia - a penhora - e outro de propriedade - fs. 4361 do DR IA
de 10.7.1999, onde está publicado o AUJ.

No recente Acórdão do STJ abaixo transcrito fez-se prevalecer a compra não registada sobre
a venda executiva registada, mas considerando dois pormenores relevantes:
- o comprador não registante adquiriu por usucapião e
- o comprador em execução sabia que o imóvel não pertencia ao executado quando foi
penhorado:

Acórdão do STJ (Ex.mo Cons.º Fonseca Ramos), de 5.6.2007, no Processo 07A1473:

REIVINDICAÇÃO
CONTRATO DE COMPRA E VENDA VENDA EXECUTIVA REGISTO

Porque na ordem jurídica portuguesa o usucapião prevalece sobre o registo, o comprador que não registou a
aquisição de um imóvel mas logrou fazer prova da aquisição originária (usucapião), não vê o seu direito afectado por
ulterior penhora daquele bem e subsequentemente venda executiva, mesmo tendo o adquirente registado o bem a seu
favor e, posteriormente, tendo-o alienado ao reivindicado, sabendo este que o imóvel fora adquirido pelo reivindicante.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

74
AAe mulher BB intentaram, em 24.2.2003, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Fafe – com distribuição ao 1º
Juízo – acção declarativa de condenação com processo comum, sob forma ordinária, contra:

CC & C.ª, Ld.ª.

Pretendendo a declaração de que são proprietários de um lote de terreno que identificam, que são nulos os
contratos de compra e venda efectuados após a sua aquisição, ordenando-se o cancelamento dos respectivos registos e a
condenação da Ré a restituir-lhes tal prédio.

Para tanto alegam, em suma, ter adquirido o prédio em apreço por compra titulada pela escritura pública de
10.01.1984.

Alegam, ainda os factos atinentes à aquisição originária da propriedade por usucapião.


Em Julho de 2003 a Ré entrou no seu prédio com máquinas, aí efectuando trabalhos de terraplanagem, vindo a
partir daí a depositar nele materiais diversos.

Contestando, a Ré alegou, em suma, ter adquirido por escritura pública de 4.02.2002 o prédio rústico onde
efectuou os referidos trabalhos de terraplanagem, estando a respectiva propriedade inscrita a seu favor.

Foi-lhe vendido o prédio por uma sociedade comercial que, por sua vez, o adquiriu por venda em hasta pública.

Replicaram os réus reafirmando a posição expressa na petição inicial.

Foi elaborado despacho saneador e organizados os factos assentes e a base instrutória, apresentando as partes
os seus requerimentos de prova.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com obediência das formalidades legais, finda a qual se
produziram as respostas que dirimiram a factualidade controvertida.

***
A final foi proferida sentença que:

Julgou a acção procedente e, consequentemente:

a) Declarou os AA. legítimos proprietários do prédio descrito no ponto 2) dos factos provados;

b) Declarou nulas as compras-e-vendas respeitantes ao referido prédio, realizadas posteriormente a 10.01.1994;

c) Ordenou o cancelamento do registo de penhora efectuado a 26.06.1995 e os das aquisições posteriores,


designadamente a inscrição G6 e o registo a favor da Ré;

d) Condenou a Ré a restituir imediatamente o dito prédio aos autores, livre de pessoas e de bens.

***

Inconformada a Ré apelou para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por Acórdão de fls. 232 a 243, de
11.1.2007, negou provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida.

***
De novo inconformada recorre a Ré para este Supremo Tribunal e nas alegações apresentadas formulou as
seguintes conclusões:

1° - Os Autores têm título — a escritura pública de compra e venda celebrada em 10 de Janeiro de 1984, mas
não têm o registo da compra.
2° - A usucapião, por efeito do disposto no artigo 1296°, só se verifica ao fim de 15 anos, na caso de boa-fé, e de
20 anos, se de má-fé.
Pelo que, no caso sub judice, os Autores, estando de boa-fé, só podem adquirir o prédio, por usucapião, ao fim
de 15 anos.

75
3° - A firma “DD - Imobiliária, Ldª” comprou o prédio através de venda judicial, tendo procedido ao seu registo no
dia 2 de Março de 1998 — matéria assente nos presentes autos.
4° - Após a firma “DD-Imobiliária, Ldª” ter adquirido o prédio através da venda judicial, os Recorridos não podiam
nele permanecer, tendo perdido a sua posse, por ter decorrido mais de um ano desde a entrega do prédio àquela firma até
á propositura da acção – alínea d) do artigo 1267°do Código Civil.
5° - Assim, também, não se encontram verificados os requisitos previstos no artigo 1287° do Código Civil — o
decurso do tempo para a verificação da usucapião.
6° - A sentença recorrida violou o disposto nos artigos 1251º, 1263°, 1267°, 1287° e 1296°, todos do Código
Civil.

Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o acórdão da Relação, por
assim ser de Inteira justiça.

Os AA. contra-alegaram, batendo-se pela confirmação do Acórdão recorrido.

***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que nas instâncias foram considerados provados os
seguintes factos:

1) Os autores residem fora da área da comarca de Fafe.

2) Por escritura de 10.01.1984 os Autores compraram António de Moura e mulher Rosa Alves da Cunha o
seguinte prédio: lote de terreno destinado à construção com a área de 543 m2, já dividido e demarcado, desintegrado do
prédio rústico denominado “Sorte de Mato dos Campos Novos”, situado no lugar da Corujeira, da freguesia de Medelo,
descrito na Conservatória sob o nº 24.290 e inscrito na matriz sob o artigo 277º, confrontando do Nascente com José
Manuel Oliveira Rodrigues e Cª, Ld.ª, Sul com os vendedores, Poente com a estrada e Norte com herdeiros de Virgílio de
Oliveira, como melhor consta da certidão junta a fls. 10 a 12 cujo teor aqui se dá por reproduzido.

3) Os autores não registaram a sua aquisição na Conservatória do registo Predial.

4) No Tribunal Judicial de Vila Verde, pelo 1° Juízo, correu termos processo de execução n°9-A/93, contra a
Herança Ilíquida Indivisa de António de Moura.

5) No âmbito desse processo de execução foi registada a penhora do prédio rústico objecto da compra por parte
da Ré.
6) Esse processo de execução correu os seus termos normais tendo terminado com a venda judicial a favor da
firma “DD-Imobiliária, Ldª”, com sede na Rua José Ribeiro Vieira de Castro, n°195, na cidade de Fafe, o qual procedeu ao
registo respectivo em 2 de Março de 1998 – inscrição G6.

7) O registo da penhora foi, após a venda judicial, cancelado – Av. 4 – inscrição F1, em 7 de Outubro de 1998.

8) Os autores, por si e passados, há mais de vinte anos, procedem à limpeza, cortam matos e silvas, no lote de
terreno, destinado à construção com a área de 543 m2, já dividido e desintegrado do prédio rústico denominado “Sorte de
Mato de Campos Novos”, sito no lugar de Corujeira, freguesia de Medeio, descrito na Conservatória sob o n° 24.290 e
inscrito na matriz sob o artigo 277, confrontar de nascente com José Manuel Oliveira Rodrigues e Cª Ldª, sul com os
vendedores, poente com estrada e do norte com Herdeiros de Virgílio de Oliveira, lote este inscrito na matriz urbana sob o
art. 722º.

9) E tudo à vista e com o conhecimento de todos, de forma contínua, sem interrupção nem oposição de ninguém.

10) Na convicção em que estão e sempre estiveram os AA. de que tal prédio lhes pertence e de que sobre ele, de
modo exclusivo, exercem o seu direito de propriedade.

11) Tal prédio é o constante da escritura mencionada em 2).

12) Desde a data da escritura referida em 2) os Autores mantêm o lote devoluto, sem nele terem procedido a
qualquer construção.

76
13) A Ré não ignorava, no momento da aquisição, que o prédio era propriedade dos Autores.

14) O representante legal da ré, João Freitas Sousa, nasceu, viveu e ainda vive no lugar da Corujeira, freguesia
de Medelo, local onde se situa o terreno em causa.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso,
afora as questões de conhecimento oficioso, importa saber se os AA. adquiriram o imóvel por usucapião, o que passa por
apreciar quais as consequências jurídicas de não terem registado tal aquisição, e o imóvel em causa ter sido penhorado e
posteriormente vendido judicialmente a uma sociedade que, por sua vez, o vendeu à Ré que registou tal aquisição.

É inquestionável que atento o pedido e causa de pedir a acção intentada pelos AA. é de reivindicação – art. 1311º
do Código Civil.

Os AA. alegaram terem adquirido o prédio por contrato de compra e venda por escritura pública notarial de
10.1.1984 – aquisição derivada – e ainda por usucapião – aquisição originária – fundada em actos de posse.

Se é incontroversa tal aquisição derivada, já se questiona a aquisição por usucapião porquanto os AA. não
registaram a aquisição do prédio; este, em execução intentada contra a Herança Ilíquida e Indivisa aberta por morte do
vendedor aos AA. – António Moura – foi objecto de penhora – Execução nº9/93 que pendeu no Tribunal de Fafe –; o imóvel
foi vendido judicialmente a “DD Ldª”, que registou a aquisição em 2.3.1998; o registo da penhora foi cancelado em
7.10.1998; por sua vez a “DD, Ldª” por escritura pública notarial de 4.2.2002 vendeu o dito imóvel à Ré – doc. de fls. 30 a
33 – cujo direito de propriedade, desde 19.2.2002, se acha registada a seu favor – certidão da Conservatória do Registo
Predial de fls. 36 a 39.

Os factos sublinhados, que não foram objecto de impugnação, consideram-se provados por documentos
autênticos.

Nas instâncias considerou-se que os AA. sendo a sua posse titulada, mas não dispondo de registo, adquiririam
por usucapião já que no caso o prazo é de 15 anos – art. 1296º do Código Civil – “Não havendo registo do título nem da
mera posse, a usucapião só pode dar-se no termo de quinze anos, se a posse for de boa fé, e de vinte anos, se for de má
fé”.

Por sua vez a Ré entende que tal prazo de 15 anos, contado desde a data da aquisição pelos AA. – 10.1.1984 –
não decorreu, porquanto a “DD” adquiriu em venda judicial esse imóvel tendo registado tal aquisição em 2.3.1998, sendo
que a venda que fez à Ré, em 4.2.2002, foi por esta registada em 19.2.2002 – fls. 54.

Sustenta, assim, que, entre a data da compra pelos AA. e a da propositura da acção – 24.2.2003 – não
decorreram 15 anos.

Vejamos:

Os AA., como antes dissemos ancoraram a sua pretensão em duas vertentes.

Uma, a aquisição derivada do direito de propriedade através de contrato de compra e venda, celebrado por
escritura pública notarial, de 10.1.1984.

O contrato de compra e venda de imóveis celebrado através de escritura pública é válido e translativo do direito
de propriedade – arts. 874º, 875º e 879º a) do Código Civil.

Outra, alegando uma forma originária de aquisição daquele direito real – a usucapião arts. 1287º e 1316º do
citado diploma.

Por sua vez, a Ré afirma o seu direito de propriedade fundado na presunção registral – art. 7º do CRPredial.

O art. 1251º do Código Civil define posse como – “O poder que se manifesta quando alguém actua por forma
correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de doutro direito real”.

77
A posse, face à concepção adoptada na definição que do conceito dá o art. 1251º do Código Civil, tem de se
revestir de dois elementos: o “corpus”, ou seja a relação material com a coisa, e o “animus”, o elemento psicológico, a
intenção de actuar como se o agente fosse titular do direito real correspondente, seja ele o direito de propriedade ou outro.

“A doutrina dominante (Pires de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado., III, 2.ª ed., pág.5; Mota Pinto Direitos
Reais, p. 189; Henrique Mesquita, Direitos Reais. 69 e ss; Orlando de Carvalho, RLJ, 122."-65 e ss; Penha Gonçalves,
Direitos Reais. 2ª ed., págs. 243 e ss.) entende que o conceito de posse, acolhido nos arts. 1251º e ss., deve ser entendido
de acordo com a concepção subjectivista, analisando-se por isso numa situação jurídica que tem como ingredientes
necessários o “corpus" e o “animus possidendi” (contra, Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 1º-563 e ss; Oliveira Ascensão,
Direitos Reais, 4ªed., págs. 42 e ss.).
O “corpus” da posse traduz-se no “poder de facto” manifestado pela actividade exercida por forma
correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real (arts. 1251º e 1252.º nº2).
Actividade que não carece, aliás, de ser sempre efectiva, pois uma vez adquirida a posse, o “corpus” permanece
como que espiritualizado, enquanto o possuidor tiver a possibilidade de o exercer (art. 1257º, n.º1).
Quanto ao “animus possidendi”, a sua presença e relevância não poderão ser recusadas quando a actividade em
que o “corpus” se traduz, pela causa que a justifica, seja reveladora, por parte de quem a exerce, da vontade de criar em
seu benefício, uma aparência de titularidade correspondente ao direito de propriedade ou outro direito real.” – cfr. Abílio
Neto, in Código Civil Anotado, 12ª edição 1999, pág.971.

Estando registada, a favor da Ré, a aquisição do direito de propriedade, por via do contrato de compra e venda,
de harmonia com a regra do art. 7º do C.R. Predial, beneficia ela da presunção de que o direito de propriedade existe na
sua titularidade, nos exactos termos em que o registo o define.

Tal presunção, é ilidível pois que, como afirma, o Professor Oliveira Ascensão, in “Direitos Reais”, 5ª edição,
pág.382,

- “É preciso não esquecer que a base de toda a nossa ordem imobiliária não está no registo, mas na usucapião.
Esta em nada é prejudicada pelas vicissitudes registrais; vale por si.
Por isso, o que se fiou no registo passa à frente dos títulos substantivos existentes mas nada pode contra a
usucapião”.

Só a posse exercida em nome próprio e que revista as características de pacífica, titulada, de boa-fé e exercida
durante certo lapso de tempo conduz à usucapião.

O Código Civil perfilha, como é dominantemente entendido um conceito subjectivo de posse – art. 1251º do
Código Civil.

A posse pode ser exercida em nome próprio ou em nome alheio – art. 1252º do Código Civil.
Em caso de dúvida, presume-se a posse em quem exercer o poder de facto – nº2 do citado artigo.

Sobre este normativo escreveu o Professor Mota Pinto, in “Direitos Reais”, 1970, 191:

“Como a prova do “animus” poderá ser muito difícil, para facilitar as coisas, ao possuidor a lei estabelece uma
presunção. Diz que, em caso de dúvida, se presume a posse naquele que exerce o poder de facto. Daqui decorre que,
sendo necessário o “corpus” e o “animus”, o exercício daquele faz presumir a existência deste”.

“A usucapião, que é uma forma de constituição de direitos reais e não de transmissão, baseia-se numa situação
de posse – corpus e animus – exercida em nome próprio, durante os períodos estabelecidos na lei e revestindo os
caracteres que a lei lhe fixa, pública, contínua, pacífica, titulada e de boa fé” – Ac. do STJ, de 14.12.1994, CJSTJ 1994, III,
183.

O art. 1287º do citado diploma estatui – “A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo,
mantida por certo lapso de tempo faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo
exercício corresponde a sua actuação é o que se chama usucapião”.

As instâncias nenhuma abordagem fizeram ao facto de prédio ter sido penhorado e vendido judicialmente a quem
por sua vez vendeu à Ré, argumentando que se provaram os requisitos da posse conducente à usucapião.

78
Assim, no Acórdão recorrido, a fls. 242, pode ler-se “…Conforme se provou, a posse da parcela de terreno em
apreço, tem sido exercida continuamente (sem suspensão, nem interrupção), pelos autores e antepossuidores desde há
mais de 20 anos”.

Lebre de Freitas, in “A Acção Executiva à luz do Código Revisto”, 2ª ed., págs. 214 e segs. atribui à penhora um
triplo efeito:

- A transferência para o tribunal dos poderes de gozo que integram o direito do executado;
- A ineficácia relativa dos actos dispositivos do direito subsequentes;
- A constituição de preferência a favor do exequente.

O facto de a administração do imóvel penhorado estar confiada a outrem, normalmente um depositário, por
incumbência do Tribunal da execução, não retira ao seu proprietário o poder de disposição ou oneração do mesmo, apenas
contende com os seus poderes de gozo.
Os actos de oneração ou alienação não são inválidos, apenas são ineficazes em relação à execução.

Mas importa considerar que, quem vendeu à Ré – a “DD, Ldª” – adquiriu o imóvel em sede executiva – venda
judicial.

Nos termos do art. 824º do Código Civil,


1. A venda em execução transfere para o adquirente os direitos do executado sobre a coisa vendida.
2. Os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais
que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data
anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.
3. Os direitos de terceiro que caducarem nos termos do número anterior transferem-se para o produto da venda
dos respectivos bens.

“Os princípios da prioridade e do trato sucessivo levam a que a aquisição na venda executiva seja consequência
da penhora anteriormente inscrita.
A alienação em acção executiva deve, pois, equiparar-se às alienações voluntárias.
A aquisição feita ao tribunal não é uma aquisição originária, mas antes uma aquisição derivada translativa” – vide
o estudo “Penhora de imóveis e registo predial na reforma da acção executiva”, publicado nos “Cadernos de Direito
Privado”, nº4, de Mariana França Gouveia, citando Remédio Marques.

Na lógica decorrência do nº 1 do art. 824º do Código Civil, o direito do adquirente, em processo de execução, filia-
se no direito do executado, dele dependendo, quer quanto à sua existência, quer quanto à sua extensão – “ nemo plus juris
in aliud transferre potest quam ipse habet".

Em caso deveras semelhante ao que nos ocupa, este Supremo Tribunal em Acórdão de 4.12.2003, in
www.dgsi.pt – Proc.03B3639 – relator Conselheiro Moitinho de Almeida – ponderou:

“ […] A transmissão efectuada por hasta pública não tem origem no mesmo transmitente mas em acto judicial.
O tribunal não vende no exercício de poder originariamente pertencente ao credor ou a devedor, mas sim em
virtude de um poder autónomo que se reconhece à própria essência da função judiciária.
[…] De salientar que o mencionado Acórdão Uniformizador 3/99, na sua fundamentação, equipara a venda
judicial à alienação voluntária”.

Mesmo que se considere que a venda forçada, equiparada à venda voluntária, não pode deixar de ser aplicável o
princípio “nemo plus juris in aliud transferre potest quam ipse habet ”, pelo que quando o imóvel foi penhorado e,
subsequentemente vendido, não era já propriedade do executado porque esta já o tinha vendido aos ora AA. quando a
venda judicial se consumou.

Ademais, como se provou em 13), “A Ré não ignorava, no momento da aquisição, que o prédio era propriedade
dos AA.”.

Analisando a questão, na perspectiva da natureza do registo e consequências do não registo da aquisição por
parte dos AA. e do registo da penhora e da aquisição na sequência da venda judicial, sempre se dirá – acompanhando a
douta argumentação do Acórdão deste Tribunal de 30.4.2003, de que foi relator o Conselheiro Araújo de Barros – in
www.dgsi.pt Proc.03B996:

79
“O registo predial destina-se essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a
segurança do comércio jurídico imobiliário” (art. 1º do C. Registo Predial) e que, atento também o preceituado no art. 4º do
mesmo diploma, tem valor meramente declarativo, não conferindo, salvo excepcionalmente, quaisquer direitos (…).

O conceito de terceiros, após larga divergência jurisprudencial veio a ser definido pelo Dec.Lei nº 533/99, de 11
de Dezembro, que acrescentou ao art. 5º do C. Registo Predial um nº 4, onde se fez constar que “terceiros, para efeitos de
registo, são aqueles que tenham adquirido de um autor comum direitos incompatíveis entre si”.

Esclareceu, aliás, o legislador, no preâmbulo daquele Dec.Lei nº533/99 que:

“Se aproveita tomando partido pela clássica definição de Manuel de Andrade, para inserir no artigo 5º do Código
do Registo Predial o que deve entender-se por terceiros, para efeitos de registo, pondo-se cobro a divergências
jurisprudenciais geradoras de insegurança sobre a titularidade dos bens".

[…] Face à citada norma – e tendo também em consideração o caso concreto apreciado pelo Acórdão
Uniformizador nº 3/99 – passou a seguir-se o entendimento de que:

“O exequente que nomeia bens à penhora e o seu anterior adquirente não são terceiros; embora sujeita a registo,
no caso de imóveis, a penhora não se traduz na constituição de algum direito real sobre o prédio, sendo apenas um dos
actos em que se desenvolve o processo executivo ou, mais directamente, um ónus que passa a incidir sobre a coisa
penhorada para satisfação dos fins da execução.
A ineficácia apenas se reporta aos actos posteriores à penhora, pelo que os actos de disposição ou oneração de
bens, com data anterior ao registo da penhora, prevalecem sobre esta".

Isto é, em caso de conflito entre uma aquisição por compra e venda anterior não inscrita no registo e uma
penhora posterior registada, aquela obsta à eficácia da última, prevalecendo sobre ela”. – [Acs. STJ de 10.02.2000, no
Proc. 1223/99 da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida); de 17.02.2000, no Proc. 1061/99 da 2ª secção (relator Roger
Lopes); e de 29.02.2000, no Proc. 1091/99 da 1ª secção (relator Ribeiro Coelho)] Citados no Acórdão de 30.4.2003..

No referido Acórdão, respondendo à questão da preponderância, entre o direito de propriedade derivado de uma
compra e venda anterior, não registado, e o direito de propriedade, também derivado, decorrente de uma venda executiva,
mas submetido ao registo escreveu-se:

“A este propósito entendeu-se já que “na venda executiva o executado é substituído no acto da venda pelo juiz
enquanto órgão do Estado, gerando-se uma aquisição derivada em que o executado é o transmitente.
Por isso, ao adquirente em venda judicial não pode ser oposta uma transmissão anteriormente feita pelo
executado a favor de uma outra pessoa que a não fez inscrever oportunamente no registo predial” – Ac. STJ de 7.07.1999,
in CJSTJ Ano VII, II, pág. 164 (relator Ribeiro Coelho).

Solução que assenta, desde logo, no facto de o anterior adquirente, que não registou a aquisição, e o comprador
na venda judicial, que registou, haverem, afinal, adquirido de alienante comum.
Como também se funda na redacção do nº 2 do art. 824º do Código Civil, da qual se infere a caducidade, pela
venda executiva, dos direitos reais de gozo que não tiverem um registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou
garantia, ou seja, anterior à mais antiga destas garantias".

Dir-se-á, em contrário, que, na execução, o tribunal não vende no exercício de poder originariamente pertencente
ao credor ou ao devedor, mas sim em virtude de um poder autónomo que se reconhece à própria essência da função
judiciária.

Estaremos perante uma venda forçada, naturalmente alheia à vontade do executado – que, aliás, nem
legitimidade tem para proceder à venda, na medida em que estará a vender coisa alheia (art. 892º do Código Civil) – e para
a qual, em princípio, em nada contribui, sobretudo não emitindo qualquer declaração negocial nesse sentido.
Constitui, nesta medida, mero artifício a afirmação de que na venda judicial é o executado que deve ser visto
como vendedor.

Ademais, o direito de propriedade derivado da venda judicial (ao contrário do direito derivado da compra e venda,
que se transfere e consolida no património do comprador por mero efeito do contrato - arts. 879º, al. a) e 408º do Código
Civil) advém para o respectivo titular por força da lei e não por acto do executado, pelo que se não pode defender que
ocorra um conflito de dois direitos adquiridos do mesmo transmitente.

80
Tanto mais quanto é certo que, tendo ele já alienado a terceiro o bem imóvel (e a eficácia da transmissão do
direito de propriedade entre as partes não depende do registo - art. 4º, nº 1, do C. Registo Predial), quando a penhora foi
feita e se lhe seguiu a venda executiva, este de todo lhe não pertencia, não se encontrando, como tal, sujeito à execução
(arts. 601º do C.Civil e 821º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Razão por que se impõe admitir que, "tratando-se de coisa imobiliária, o adquirente, mesmo de boa fé, não
adquire a propriedade de coisa não pertencente ao executado"... “e que, sendo o bem vendido em execução propriedade
de terceiro, estar-se-á perante uma execução de coisa alheia, e o proprietário, terceiro no processo executivo, pode, nos
termos gerais, recorrer, designadamente, à acção de reivindicação […]”

Donde, provado que, à data em que foi penhorado o imóvel (e registada a penhora) já se efectivara a venda pelo
executado à autora do mesmo, a penhora foi de bens alheios, sendo a venda judicial também de bens alheios”.

Sufragando este entendimento, concluímos que aos AA. não é oponível a alienação do prédio reivindicado.

Ao concluir sempre se dirá que tendo os AA. comprado o imóvel em 10.1.1984 e intentado a acção em 24.2.2003,
tendo-se provado que reportado a esta data:

“Os autores, por si e antepassados, há mais de vinte anos, procedem à limpeza, cortam matos e silvas, no lote de
terreno, destinado à construção com a área de 543 m2, já dividido e desintegrado do prédio rústico denominado “Sorte de
Mato de Campos Novos”, … tudo à vista e com o conhecimento de todos, de forma contínua, sem interrupção nem
oposição de ninguém, na convicção em que estão e sempre estiveram os AA. de que tal prédio lhes pertence e de que
sobre ele, de modo exclusivo, exercem o seu direito de propriedade”, sempre se teria que considerar que adquiriram o
imóvel por usucapião, independentemente das vicissitudes por que passou o imóvel.

Por outro lado, tendo-se provado – item 13) da matéria de facto – que a Ré não ignorava, no momento da
aquisição, que o prédio era propriedade dos AA., é manifesto que tem de ser considerada adquirente de má-fé.

Decisão:

Nestes termos, acorda-se em negar a revista.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 05-06-2007

Fonseca Ramos (relator) Azevedo Ramos Silva Salazar

Nada impede que, nos termos do art. 470º CPC, o A. formule os pedidos característicos da
acção de reivindicação e com eles cumule pedido de indemnização a que haja lugar, nomeadamente
pelo rendimento que o proprietário poderia retirar do imóvel se não fosse a indevida ocupação - BMJ
411-559 – e ainda que o proprietário não haja sofrido prejuízo com a indevida ocupação - Col. Jur.
(STJ) 01-II-124.

Se decidido igual pedido cível em processo penal, tal decisão faz caso julgado - art. 84º3 CPP
4
e 129º CP - em futura acção cível que se proponha. Os art. 674º-A e 674º-B do CPC apenas regem
para as decisões absolutória ou condenatória penais e não para a decisão do pedido cível enxertado
no processo penal - Col. 99-II-268.
3
- “A decisão penal, ainda que absolutória, que conhecer do pedido civil constitui caso julgado nos
termos em que a lei atribui eficácia de caso julgado às sentenças civis”.

4
- “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”.

81
A acção de reivindicação é imprescritível, sem prejuízo da aquisição por usucapião, por
outrem, do direito reivindicado (1313º).

Breve referência à acção negatória, acção de simples apreciação, e à acção de demarcação,


antiga acção de arbitramento que hoje segue os trâmites processuais comuns.

Acórdão STJ (Ex.mo Cons.º Sebastião Póvoas), de 24.10.2006, Processo 06A3284 :

1 - A causa de pedir na lide reivindicatória é complexa consistindo no facto jurídico de que deriva o direito de
propriedade, que deve consistir na alegação de uma das formas originárias de adquirir, (podendo contudo bastar-se com a
existência de uma presunção registral) exigindo-se alegação e prova da ocupação abusiva e da coincidência entre a coisa
reivindicada e a detida pelo demandado.
2 - Demonstrada a propriedade e a detenção por outrem a entrega só pode ser obstada com base em qualquer
relação obrigacional ou real que legitime a recusa de restituição.
3 - Tal relação pode ser invocada por via de excepção - com aceitação dos fundamentos essenciais, ou
abstraindo da sua verdade, alegados pelo demandante, mas invocando factos novos que impedem, modificam ou
extinguem o direito invocado.
4 - Mas também pode ser feito por impugnação motivada, alegando factos opostos, para, por exemplo, tentar
convencer de aquisição por usucapião, sem formulação do pedido cruzado, mas apenas para ilidir a presunção do artigo 7º
do Código do Registo Predial.
5 - O STJ pode conhecer de facto não considerado pelas instâncias constante de confissão irretractada feita nos
articulados (desde que não contendendo com o principio da indivisibilidade) ao abrigo do nº 2 "in fine" do artigo 722 do
CPC, por se tratar de controlar as regras de direito probatório material.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"AA" e mulher BB, residentes em ..., do Município de Setúbal, CC e marido DD, residentes em Setúbal, EE e
marido FF, residentes em Matosinhos, intentaram acção com processo ordinário, contra GG e mulher HH, residentes em
Beja.

Pediram o reconhecimento da sua propriedade sobre um lote de terreno que identificam; que os Réus o vêm
detendo a titulo precário e gratuito; que sejam condenados a restitui-lo; que sejam condenados ao pagamento da quantia
mensal de 30000$00, a titulo de ocupação, desde a citação e até à entrega.

Contestaram os Réus alegando o domínio do terreno por o terem adquirido por usucapião.

O Circulo Judicial de Beja julgou a acção improcedente.


A Relação de Évora confirmou a absolvição do pedido.
Os Autores pedem revista assim concluindo as suas alegações:

- A prova dos factos sujeitos a registo não pode ser efectuada em desacordo com o respectivo registo predial e só
pode ser provada por certidões e fotocópias, artigo 110º do Código de Registo Predial;
- Quem tem um registo predial a seu favor beneficia da presunção resultante do registo, nos termos do artigo 7º
do Código de Registo Predial;
- Os Autores beneficiam dessa presunção, até porque não existe desconformidade entre essa realidade e a
realidade material do imóvel descrito;
- Nos termos do artigo 8º do CRP os Réus não podem impugnar o direito registado sem que simultaneamente
peçam o cancelamento do registo;
- A procedência do pedido de impugnação dos factos sujeitos a registo está dependente do pedido de
cancelamento dos mesmos;
- Tendo os Autores a seu favor a presunção do registo não pode deixar de proceder o seu pedido de condenação
dos Réus a reconhecê-lo e a restituírem o imóvel;
- Em 1962/1963, os Réus entraram na posse do imóvel por cedência dos pais e sogros dos Autores, sendo meros
detentores;

82
- A situação de detenção do imóvel não pode ser retirada por resultar de confissão irretratável, teria terminado em
1979, e desde essa data e 1987 - data de entrada desta acção - só decorreram oito anos, o que é insuficiente para o
usucapião;
- Mesmo em 1979, os Réus não adquiriram a posse em nome próprio;
- O inicio do uso do prédio pelos Réus iniciou-se na vigência do CC 1867 - sendo, então, a prescrição aquisitiva
de 30 anos - e quando a acção foi proposta não tinham decorrido 20 anos sobre a entrada em vigor do actual código -
artigos 309º e 297º.

As instâncias deram por assente a seguinte matéria de facto:

- No ano de 1962/1963, o pai e sogro dos Autores, II, cedeu a GG o prédio sito no ângulo da Rua Rainha D.
Amélia, da Freguesia de S. João Baptista, concelho de Beja, com a área de 741,40m2, confrontando do sul com a Travessa
Rainha D. Amélia e do poente com a "Empresa-A, Lda.".
- Em tal prédio, o GG instalou um parque de armazenamento de sucata e materiais de construção, aproveitando
uma construção ali existente;
- II, pai e sogro dos Autores, outorgando por si e como procurador de sua mulher, JJ, mãe e sogra dos mesmos, e
GG, casado com HH, declararam, por escritura de 12 de Fevereiro de 1963, lavrada no 2º Cartório Notarial de Beja:
aqueles vender e este comprar, pelo preço de 100.000$00 (cem mil escudos), o prédio urbano sito na Rua da Liberdade,
freguesia de S. João Baptista, Beja, descrito na Conservatória do Registo Predial de Beja, no livro B-5, a fls. 165, sob o
numero 1898, e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 393, e pelo preço de 80.000$00 (oitenta mil escudos), o
prédio urbano sito na Rua 5 de Outubro, freguesia de S. João Baptista, Beja, descrito na Conservatória do Registo Predial
de Beja, no livro B-39, a fls. 68, sob o numero 15229, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 993.
- A aquisição do direito real de propriedade sobre o referido prédio descrito sob o número 15229, por compra a II
e mulher, foi inscrita sob o número 28134, no Registo Predial, em Abril de 1963, a favor de GG.
- GG e mulher, por um lado, e a sociedade por quotas de responsabilidade limitada denominada "Empresa-A
Limitada", por outro, representada por KK e LL , declararam, por escritura de 10 de Julho de 1979: aqueles vender e esta
comprar, pelo preço de 406.000$00 (quatrocentos e seis mil escudos), prédio urbano sito na Rua 5 de Outubro, sem
número de policia, na freguesia de S. João Baptista, concelho de Beja, descrito na Conservatória do Registo Predial de
Beja sob o número 15229, a fls. 78 do livro B-39, inscrito sob o número 28134, a fls. 62 do livro J-39, inscrito na respectiva
matriz sob o artigo 993.
- GG e mulher e a sociedade "Empresa-A, Limitada", representada por KK e LL , por escritura de 8 de Julho de
1980, lavrada a fls. 150 do livro B-13, do 2º Cartório Notarial de Beja, declararam que: na escritura de 10 de Julho de 1979
ficou exarado que o prédio ali referido constituía o número 15229, a fls. 78 do livro B-39 da Conservatória do Registo
Predial de Beja, o que não é correcto; que rectificando a citada escritura, declaram que o referido prédio vai ser
desanexado, por efeito da compra e venda referida, da citada descrição predial.
- A aquisição do direito de propriedade sobre o prédio urbano de rés-do-chão, situado na Rua 5 de Outubro,
freguesia de S. João Baptista, da cidade de Beja, composto de uma divisão, descrito sobre o número 26894, está inscrita
no Registo Predial sob o número 44972, a favor da sociedade "Empresa-A, Limitada", por compra efectuada a GG e
mulher, HH, por escritura de 10 de Julho de 1979.
- A aquisição em comum e sem determinação de parte ou direito do prédio rústico - ângulo da Rua Rainha D.
Amélia com a Travessa Rainha D. Amélia, em Beja, lote de terreno destinado a construção urbana, com a área de 741,40
m2, confrontando do norte com herdeiros de II, do sul com Travessa Rainha D. Amélia, do nascente com Rua Rainha D.
Amélia e do poente com "Empresa-A, Limitada", omisso na matriz, por herança de II e mulher, JJ, casados na comunhão
geral - está inscrito no Registo Predial de Beja, desde 7 de Maio de 1987, a favor de AA, casado, na comunhão de
adquiridos, com BB, CC, casada, na comunhão de adquiridos, com DD, EE, casada, na comunhão de adquiridos, com FF.
- A parcela referida faz parte de descrição número 15229 do livro B-39 da Conservatória do Registo Predial de
Beja.
- O depósito de sacos de cimento, madeira, cofragens, máquinas e outros materiais, feito na sequência da
actividade referida é tida como pertença do GG.
- A actividade acima referida tem sido feita publicamente, à vista de toda a gente e com conhecimento das
pessoas.
- Pacificamente, sem oposição de ninguém, de forma ininterrupta e sem perturbações.
- Os Réus têm-se recusado a entregar aos Autores o prédio acima referido.
- Após a celebração da escritura pública referida, os pais e sogros dos Autores passaram a viver em Setúbal.
- E atravessaram dificuldade económicas que os obrigaram a pedir, por diversas vezes, dinheiro emprestado ao
GG e mulher, HH.
- Nestas circunstâncias, acedendo aos pedidos feitos, GG e mulher, HH entregaram aos pais e sogros dos
Autores a quantia global de 405.000$00 (quatrocentos e cinco mil escudos).
- Desde 1963, e de forma ininterrupta, que GG utiliza a parcela de terreno referida como se dono dela fosse.

83
- Tal utilização é feita à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e na convicção de não se lesarem
interesses de terceiros.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,

1- Reivindicação.
2- Matéria de facto.
3- Registo.
4- Conclusões.

1- Reivindicação.

1.1- No âmbito de acção reivindicatória - ou real - o demandante deve afirmar o seu domínio - ainda que, tão
somente, por apelo à presunção do artigo 7º do Código de Registo Predial - ao abrigo do nº1 do artigo 350º do CC - com
imputação ao demandado de ocupação intitulada, pedindo o reconhecimento da propriedade e condenação à restituição,
de acordo com o artigo 1311º do Código Civil (cf. Prof. Menezes Cordeiro, in "Direitos Reais", 846/7).
Embora neste tipo de lide o facto jurídico de que deriva o direito real deva ser constituído pela alegação de uma
das formas originárias de adquirir, pode ser suficiente a existência de presunção registral. (v.g., como exemplo de
jurisprudência sedimentada, o Acórdão do STJ de 18 de Fevereiro de 1988 - BMJ 374-414; cf. ainda o Prof. Carvalho
Fernandes, in "Lições de Direitos Reais", 2ª Ed., 252).

O pedido de reconhecimento do domínio é essencial, embora se admita a sua formulação implícita.

Uma vez demonstrada a propriedade da coisa e que esta se encontra na posse, ou detenção, de outrem, a sua
entrega só pode ser obstada com base em qualquer relação obrigacional ou real que confira e legitime a recusa de
restituição, nos termos do nº2 do artigo 1311º do diploma substantivo. (cf., "inter alia", os Acórdãos do STJ de 13 de Março
de 1986 e de 2 de Dezembro de 1986, in BMJ, 355-362 e 362-537, respectivamente; de 16 de Dezembro de 2004 - Pº
3869/04 -7ª; Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado, III, 1972, 100-103).
São pois pressupostos do direito de reivindicação a propriedade e a posse, ou detenção, por outrem, cabendo ao
Autor a sua prova por estes serem os factos constitutivos do seu direito (nº 1 do artigo 342º CC) e é o demandado que deve
fazer a prova dos factos impeditivos ou extintivos, do direito do demandante, ou seja da existência da referida relação
obrigacional ou real.

Este tipo de defesa pode surgir por excepção, isto é, com aceitação dos fundamentos essenciais alegados pelo
Autor, ou, no limite, abstraindo da sua verdade, mas alegando factos novos que impeçam, extingam ou modifiquem o direito
do demandante.
Mas pode, também, ser feita por negação motivada, apresentando o Réu nova versão da realidade com alegação
de factos opostos, mas então não por mera negação simples (ou directa).

1.2 - "In casu", os Réus defenderam-se impugnando a propriedade dos Autores e afirmando que a mesma lhes
pertence por o quintalão reivindicado se integrar em parcela que é sua propriedade, já que o compraram aos pais dos
Autores, tendo-o adquirido por usucapião.
Não deduziram, contudo, um pedido reconvencional de reconhecimento desse domínio.
Trata-se, por conseguinte - e na linha do acima exposto - de defesa por impugnação motivada destinada não a
obter o reconhecimento da sua propriedade mas a contradizer o direito alegado pelos Autores, assim ilidindo a sua
presunção derivada do registo.
Já a defesa seria por excepção peremptória se ocorresse uma aceitação dos factos da petição (ou sua
desconsideração) mas se pretendesse fazer abortar ou alterar os seus efeitos jurídicos mediante a alegação de nova
realidade factica.
De qualquer modo, sempre o "onus probandi" da diversa realidade caberia aos Réus, quer se tratasse de
excepção peremptória, quer de impugnação motivada com escopo de ilidir a presunção legal.
Mas do acervo dos factos assentes não resulta que os Réus tivessem logrado tal demonstração, que, aqui, se
traduziria na "relação real" a inviabilizar o direito aos Autores.

Os Autores demonstraram a identidade, ou coincidência, do prédio reivindicado com o detido pelos Réus (cf., a
propósito, o Acórdão do STJ de 2 de Dezembro de 1986 - BMJ 362-537), sendo que a estes cumpriria fazer prova da
inverdade dessa coincidência por, na sua versão, a parcela se integrar num prédio seu.

84
Porém, os Réus não fizeram a prova do seu alegado domínio.

2- Matéria de facto.
….
2.4 - Aqui chegados, conclui-se que até 1979 existiu mera detenção mas que, naquela data ocorreu a
confirmação da posse por "traditio brevi manu".

A acção foi intentada em 21 de Maio de 1987, tendo apenas decorrido oito anos desde o início da posse, o que
podia ser insuficiente para aquisição por usucapião.
Mas tal só seria relevante se as partes tivessem questionado a legitimidade do transmitente para outorgar a
escritura de 1963.
Daí que, pelo menos, os réus tenham uma posse anterior ao registo dos Autores, o que releva nos termos do nº 1
do artigo 1268º do Código Civil.
Os Réus lograram, assim, demonstrar uma relação real legitimadora de recusa de eventual restituição.

3 - Registo.

Os Autores beneficiam da presunção do artigo 7º (artigo 8º, ao tempo da propositura da acção) do Código de
Registo Predial.
Presunção legal, "tantum iuris", que os Réus lograram ilidir como lhes cumpria, "ex vi" do disposto nos artigos 344
nº1 e 350º nº 1 do Código Civil, ao demonstrarem uma posse anterior ao registo dos Autores (que é de 7 de Maio de 1987)
nos termos do nº1 do artigo 1268º do Código Civil.
Mesmo atendendo à concorrência de presunções, e havendo acordo quanto à identidade do prédio, e da sua
origem no mesmo transmitente, o registo dos Réus é anterior.
Não procede, em consequência, o pedido do reconhecimento do domínio com a inerente manifestação da
sequela.

4- Conclusões.

Pode concluir-se que:

a) A causa de pedir na lide reivindicatória é complexa consistindo no facto jurídico de que deriva o direito de
propriedade, que deve consistir na alegação de uma das formas originárias de adquirir, (podendo contudo bastar-se com a
existência de uma presunção registral) exigindo-se alegação e prova da ocupação abusiva e da coincidência entre a coisa
reivindicada e a detida pelo demandado.
b) Demonstrada a propriedade e a detenção por outrem a entrega só pode ser obstada com base em qualquer
relação obrigacional ou real que legitime a recusa de restituição.
c) Tal relação pode ser invocada por via de excepção - com aceitação dos fundamentos essenciais, ou abstraindo
da sua verdade, alegados pelo demandante, mas invocando factos novos que impedem, modificam ou extinguem o direito
invocado.
d) Mas também pode ser feito por impugnação motivada, alegando factos opostos, para, por exemplo, tentar
convencer de aquisição por usucapião, sem formulação do pedido cruzado, mas apenas para ilidir a presunção do artigo 7º
do Código do Registo Predial.
e) O STJ pode conhecer de facto não considerado pelas instâncias constante de confissão irretratada feita nos
articulados (desde que não contendendo com o principio da indivisibilidade) ao abrigo do nº 2 "in fine" do artigo 722 do
CPC, por se tratar de controlar as regras de direito probatório material.

Nos termos expostos, acordam negar a revista.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 24 de Outubro de 2006

Sebastião Póvoas (Relator) Moreira Alves Alves Velho

Acórdão do STJ (Ex.mo Cons.º S. Povoas) de 24/04/2007, nº P.º 07A853:

1) - A causa de pedir na lide reivindicatória é complexa consistindo no facto jurídico de que deriva o direito de
propriedade, que deve consistir na alegação de uma das formas originárias de adquirir, podendo contudo bastar-se com a

85
existência de uma presunção registral exigindo-se alegação e prova da ocupação abusiva e da coincidência entre a coisa
reivindicada e a detida pelo demandado.
2) - Demonstrada a propriedade por via da presunção não ilidida do artigo 7º do Código de Registo Predial, e a
detenção por outrem, a entrega só pode ser obstada com base em qualquer relação obrigacional ou real que legitime a
recusa de restituição.
3) - O pedido de reconhecimento da propriedade em acção de reivindicação pode ser formulado implicitamente,
sendo o resultado lógico da afirmação do domínio, da ocupação abusiva pelo demandado e do pedido de restituição.
4) - O valor do terreno ocupado, para os efeitos do nº 1 do artigo 1343º do Código Civil, é apurado em sede de
matéria de facto, insindicável no recurso de revista, só podendo o STJ dele conhecer, quando os critérios para a sua
indução se revelarem manifestamente desajustados ou inadequados, ou violadores de preceito legal em matéria de prova.

O direito de propriedade tem assento constitucional - art. 62º da Constituição - aí se


consagrando o direito à propriedade privada e a sua transmissibilidade inter vivos ou mortis causa.
Também em vários preceitos do diploma fundamental se consagra claramente a subordinação
do exercício do direito de propriedade ao interesse geral, a sua função social - 61º, nº 1, 81º, c) a e),
89º, 96º, nº 1, a) e 103º, a) e c).

Com efeito, o direito de propriedade sofre

Limitações de interesse público de que sobressaem:

Expropriação - 62º, nº 2 da Constituição, Cód. Exp. e 1310º do CC

Requisição - 62º, nº 2, da Constituição, 1309º e 1310º CC, 76º e 80º do C. Exp. Só pode
verificar-se nos casos previstos na lei e mediante indemnização adequada, tal como a expropriação.

Segundo M. Caetano, requisição é o «acto administrativo pelo qual um órgão competente impõe a um particular,
verificando-se as circunstâncias previstas na lei e mediante indemnização, a obrigação de prestar serviços, de ceder coisas
móveis ou semoventes ou consentir na utilização temporária de quaisquer bens que sejam necessários à realização do
interesse público e que não convenha procurar no mercado».

Servidões administrativas - implicam a afectação (de direito público) de utilidades de um prédio objecto de direitos
reais, em benefício de outro, por razões de utilidade pública. Na medida necessária à satisfação do fim público que as
justifica, as servidões administrativas traduzem-se em limitações ao exercício do correspondente direito, por referência às
utilidades do prédio que ficam afectadas.

Exemplos: servidões de margem (em relação a águas públicas), de aqueduto público, de estradas e auto-
estradas, linhas férreas, de linhas eléctricas, telefónicas e telegráficas, aeronáuticas, militares e de faróis, non aedificandi.

E sofre, também, Limitações de interesse particular, tais como:

- 1346º: Ac. no BMJ 446-224, protecção dos direitos da personalidade - art. 70º - com
abundante indicação de doutrina, lei e jurisprudência.
Nele se trata em profundidade da colisão de direitos, da protecção do ambiente e qualidade de
vida como direito de personalidade, com referência a Convenções internacionais relevantes na
matéria.
Nesta norma se regula a existência de pocilgas (BMJ 350-301), vacarias, estábulos ou
viteleiros (Col. 88-2-63; 92-I-83), pedreiras e direito ao trabalho versus direito de personalidade (92-III-
130), estabelecimento de pastelaria licenciado que produz fumos, vapores, ruídos e cheiros; colisão de
direitos (Col. 97-I-145); protecção do ambiente, actividade industrial, colisão de direitos, Lei de Bases
do Ambiente e Constituição: Ver ainda BMJ 442-365, 446-224 e Col. STJ 2000-III-70.

86
Por último, os Ac. na Col. Jur. (STJ) 2003-III-106

EMISSÃO DE RUÍDOS,
CHEIROS E VIBRAÇÕES
Colisão de direitos

Acórdão de 21 de Outubro de 2003

I - O artigo 1346º do Código Civil contém uma previsão específica para as relações de vizinhança, ali se dispondo
que o proprietário de um imóvel pode opor-se às emissões provenientes dos prédios vizinhos que importem um prejuízo
substancial para o uso do seu prédio ou que não resultem da utilização normal do prédio de que emanam.
II - A habitação é o espaço, com as condições de higiene e conforto, destinado a preservar a intimidade pessoal e
a privacidade familiar, bem como o local privilegiado para o repouso, sossego e tranquilidade necessários à preservação da
saúde e, assim, da integridade material e espiritual.
III - Nessa perspectiva, todas emissões de prédios vizinhos ao de habitação transcendem as meras relações reais
de vizinhança, envolvendo a tutela dos direitos de personalidade.
IV – No caso de colisão de direitos, o direito ao repouso é superior ao direito de propriedade e ao direito de
exercício de actividade comercial.
V - Justifica-se, assim, a proibição de emissão de ruídos, cheiros e vibrações provenientes da exploração de um
estabelecimento de talho e que prejudicam o uso adequado de um imóvel de habitação.

Ac. de 15.1.2004, na Col. Jur. 2004-I-23:

COLISÃO DE DIREITOS
DE EXERCÍCIO DESIGUAL

I - Estando em jogo o exercício de direito ao repouso e a um ambiente de vida humano sadio e ecologicamente
equilibrado perante o direito de se exercer uma actividade económica - concretamente a exploração de uma vacaria e de
uma ordenha - deve o intérprete, caso a caso, estabelecer limites e condicionalismos, de forma a conseguir uma
harmonização de concordância prática entre eles.
II - Daí que mesmo o direito inferior - o de cariz materialista - deve ser respeitado até onde for possível e apenas
deverá ser limitado na exacta proporção em que isso é exigido pela tutela razoável do conjunto principal de interesses.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Nuno Cameira) de 9.5.2006, no Pr.º 06A636

COLISÃO DE DIREITOS INICIATIVA PRIVADA


DIREITO À QUALIDADE DE VIDA INTERESSES DIFUSOS

Sumário:
1 - A figura da colisão de direitos prevista no art.º 335º do Código Civil pressupõe a existência em concreto de
pelo menos duas situações jurídicas activas de que dois diferentes sujeitos jurídicos são titulares num dado momento.
2 - E deixa de poder aplicar-se quando o tribunal, ponderada a situação de facto comprovada, conclua que na
realidade só um direito existe, radicado na esfera jurídica de um dos litigantes, em condições de ser exercido.
3 - Não pode invocar a figura da colisão de direitos para impedir a procedência do pedido de cessação da sua
actividade uma empresa que está a explorar sem licença camarária um parque de sucata parcialmente integrado em área
de Reserva Agrícola Nacional e em circunstâncias tais que ofende os direitos previstos nos art.ºs 66º, nº 1, da Constituição
(ambiente e qualidade de vida) e 70º do Código Civil (personalidade física ou moral).
4 - Isto porque, nesse caso, a colisão entre tais direitos, patrocinados pelo MP para defesa de interesses difusos,
e o pretenso direito da empresa ao livre exercício da iniciativa económica privada, reconhecido no art.º 61º da Constituição,
é meramente aparente, e não real.

….
Constituíram fundamentos essenciais da presente acção a violação por parte da ré do direito à saúde e à
qualidade de vida das pessoas e a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado.
Ora, as instâncias convergiram por inteiro nos aspectos essenciais da valoração ou qualificação jurídica dos
factos definitivamente assentes: em resumo entenderam, e bem, que o funcionamento do parque de sucata explorado pela
ré nos moldes que ficaram demonstrados - melhor se diria, talvez, com as consequências que os factos 4) a 8) retratam -
ofende o direito previsto no art.º 66º, nº 1, da CRP (o direito de todos a um ambiente de vida humano, sadio e

87
ecologicamente equilibrado), e também, acrescentamos nós, o direito consignado no art.º 70º, nº 1, do Código Civil, que,
estabelecendo uma tutela geral da personalidade física ou moral de todas as pessoas contra qualquer ofensa ilícita ou
ameaça de ofensa que lhe seja feita, deve ser tido como uma concretização antecipada daquele direito fundamental pela lei
ordinária (anterior à CRP aprovada em 1976).

De igual modo, tendo em conta, por um lado, o disposto no art.º 26º-A, do CPC, e, por outro, o art.º 45º, nº 3, da
LBA (3), não se questiona a legitimidade, quer processual, quer substantiva do MP para patrocinar esta causa - quer dizer,
uma acção com o pedido e a causa de pedir configurados nos termos que se expuseram.
Onde se regista divergência entre a 1ª instância e a Relação é na decisão final adoptada para o litígio e,
logicamente, na fundamentação que a ela conduziu, cerne da questão agora posta pelo recorrente.
Assim, no entendimento da sentença, mesmo que se parta do pressuposto de que há, no caso, um "conflito de
direitos" a dirimir segundo o art.º 335º do CC - conflito entre o direito à iniciativa económica privada (art.º 61º, nº 1,da CRP)
e o "direito subjectivo do ambiente" - sempre a balança pesa mais a "favor dos tais interesses difusos promovidos pelo MP,
porquanto está em causa a tutela do direito subjectivo a um ambiente sadio, mormente dos residentes da zona circundante
àquele parque de sucata, os direitos de personalidade destes, através do seu núcleo duro (a integridade física, a saúde e a
qualidade de vida)".

A Relação também começou por dizer que "a lesão do ambiente, quando atinja a qualidade de vida das pessoas,
ofende a sua integridade física, sendo que o direito a esta é um dos direitos fundamentais constitucionalmente
reconhecidos (art.º 25º, nº 1, da CRP)", acrescentando que "este direito, pela sua própria natureza, sobreleva os direitos de
conteúdo económico, social e cultural". No entanto, porque em última análise se mantinha de pé, segundo o acórdão
impugnado, a questão de saber se seria necessário encerrar as instalações da ré para pôr fim às violações do direito ao
ambiente registadas, tal como a 1ª instância decidira, veio a concluir-se, tudo ponderado, que haveria "outras formas" de
"corrigir" a fonte dos danos ocorridos. A forma escolhida foi aquela que está claramente expressa na parte decisória do
acórdão impugnado. Podem ali ver-se, com efeito, diversas proibições e injunções que têm a ré por destinatária e cuja
finalidade é limitar e condicionar, mas não suprimir por inteiro a actividade do parque de sucata, encerrando-o. De tudo isto
se infere que a razão última da decisão que a 2ª instância escolheu para o litígio, o verdadeiro fundamento jurídico que lhe
presidiu, não deixou de ser a ideia de que existe uma colisão de direitos na situação analisada, a resolver nos termos
previstos no art.º 335º do CC. Será assim?

A figura da colisão de direitos está incluída num Título da Parte Geral do nosso Código Civil denominado "Das
relações jurídicas", e num subtítulo cuja epígrafe é "Do exercício e tutela dos direitos". Segundo o nº 1 do indicado preceito,
"havendo colisão de direitos iguais ou da mesma espécie, devem os titulares ceder na medida do necessário para que
todos produzam igualmente o seu efeito, sem maior detrimento para qualquer das partes"; de acordo com o nº 2, "se os
direitos forem desiguais ou de espécie diferente, prevalece o que deva considerar-se superior". Parece-nos resultar com
toda a evidência, quer da inserção sistemática desta norma legal, quer da sua própria letra, e mais ainda do seu espírito, da
sua ratio legis, que o problema da aplicação prática deste instituto só pode colocar-se depois de o intérprete chegar à
conclusão de que, tendo na sua frente uma pluralidade de direitos pertencentes a titulares diversos, não é possível o
respectivo exercício simultâneo e integral. Enquanto limitação do exercício de um direito pelo exercício de outro - e quem
diz direito diz qualquer posição jurídica activa passível de actuação - a colisão de direitos pressupõe a efectiva existência
de ambos. Portanto, averiguando-se que de duas normas atributivas de direitos potencialmente aplicáveis à situação
ajuizada só uma delas, afinal, tem aplicação, conferindo, na prática, um único direito, então deixa de poder falar-se em
colisão real de direitos: tratar-se-á, em tal caso, duma colisão meramente aparente, sem correspondência na realidade. Isto
é assim porque as limitações ao exercício do direito - referimo-nos, claro está, às limitações extrínsecas, de entre as quais
avulta precisamente a colisão de direitos, e não às intrínsecas, atinentes ao seu conteúdo e objecto - determinando, no
fundo, como ele deve ser actuado, pressupõem a sua existência, validade e eficácia, que, o mesmo é dizer, um direito em
concreto. Não se afigura que faça sentido, pois, aludir a uma colisão de direitos em abstracto, isto é, não referida a
situações jurídicas activas de que dois diferentes sujeitos jurídicos sejam titulares em dado momento. Se, ponderada a
situação de facto comprovada, o julgador chegar à conclusão de que na realidade só um direito existe, radicado na esfera
jurídica de um dos litigantes, o instituto da colisão de direitos deixa de poder aplicar-se. Ora, é precisamente isto o que se
passa no caso sub judice.

A ré, na realidade, não se apresenta em face dos titulares dos interesses difusos representados pelo MP como
titular efectiva de um qualquer direito, designadamente do direito à iniciativa económica privada reconhecido pelo art.º 61º
da CRP, cujo exercício se torne necessário regular em ordem a que todos, se possível, produzam o seu efeito; não dispõe,
em concreto, desse direito, exactamente porque, consoante ficou amplamente provado, está a exercer a actividade
económica em causa - exploração lucrativa dum parque de sucata - totalmente à margem da lei: o parque não está
licenciado, uma parte dele encontra-se abrangido pela RAN e as actividades propriamente ditas ofendem direitos
fundamentais, constitucionalmente protegidos. Conclui-se, deste modo, que a decisão do acórdão recorrido não pode

88
subsistir, pois assentou num pressuposto - o direito da ré a que atrás se aludiu - que não se verifica. Deve, assim, ser
reposta a decisão da primeira instância, ainda que com fundamentos parcialmente distintos.

Na verdade, como resulta do exposto, o pedido procede na totalidade porque a ré, além do mais, não demonstrou
ser titular de qualquer direito que lhe permita prosseguir a exploração do parque de sucata, e não exactamente porque os
direitos (ou interesses difusos) patrocinados pelo MP devam, no caso, prevalecer, por serem superiores, no quadro do art.º
335º, nº 2, do CC.

3. Decisão
Acorda-se em conceder a revista, revogando o acórdão recorrido para ficar a subsistir a decisão da 1ª instância.
Custas pela ré.

Lisboa, 9 de Maio de 2006


Nuno Cameira
Salreta Pereira
João Camilo
--------------------------
(1) Reserva Agrícola Nacional.
(2) Constituição da República Portuguesa.
(3) Lei da Bases do Ambiente (Lei 11/87, de 7 de Abril).

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Miranda Gusmão) de 13.3.1997, no Pº 96B557:

I - «O Decreto-Lei 251/87, de 24 de Junho (Regulamento Geral sobre o Ruído) não se destinou, nem se destina a
resolver conflitos que possam surgir entre o direito de propriedade do prédio (estabelecimento) onde se desenvolva
actividade que produza ruído e os direitos à integridade física e moral das pessoas, à saúde, ao ambiente e à qualidade de
vida.
II - Em caso de conflito entre os "direitos, liberdades e garantias", não sujeitos a reserva da lei restritiva, com
outros direitos fundamentais (direitos económicos, sociais e culturais, v.g.) devem prevalecer os primeiros.
III - No campo da lei ordinária, há um texto atinente à colisão de direitos - o artigo 335 do Código Civil -, que,
apesar de anterior à Constituição de 1976, se mantém em vigor, tendo em vista o disposto no artigo 293 desta Constituição.
IV - Na interpretação do artigo 335 do Código Civil a propósito da colisão entre um direito de personalidade e um
outro direito que não de personalidade, devem prevalecer, em princípio, os bens ou valores pessoais aos bens ou valores
patrimoniais.
V - Para que exista responsabilidade civil por facto ilícito é necessário que se verifiquem, além do mais, os
pressupostos relativos à ilicitude e à culpa.

1347º - ainda que licenciadas pela autoridade administrativa, serão encerradas as instalações
prejudiciais.

No Ac. no BMJ 459-444 tratou-se a questão de instalação de bomba de gasolina junto de


escola primária, também questão de ambiente.

1348º - escavações que danificam o prédio vizinho: responsabilidade do proprietário, ainda


que a obra tenha sido executada por empreiteiro e mesmo que tenham sido tomadas as precauções
julgadas necessárias - BMJ 457-317 e Col. Jur. STJ 2001-I-174 (este responsabilizando a Brisa por
danos em prédios vizinhos, apesar de as obras de construção da auto-estrada serem levadas a cabo
por empreiteiro).

Acórdão STJ (Ex.mo Salvador da Costa) Processo 06B905, de 30/03/2006:

1. O processo equitativo, a que se reporta o artigo 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem,
implica o funcionamento dos princípios do contraditório e da igualdade processual e a motivação das decisões, e é aferido
em concreto, em termos de que cada uma das partes possa, de modo razoável, defender o seu direito em juízo, em
posição não inferior à da parte contrária.

89
2. A expressão seu autor a que se reporta o n.º 2 do artigo 1348º do Código Civil significa o proprietário do prédio
em que as obras foram feitas.
3. O nexo de causalidade legalmente exigível no quadro da responsabilidade civil por danos derivados de
escavações implica que estas sejam uma das condições concretas do estrago nos prédios vizinhos e que, em abstracto,
revelem a adequação razoável ao seu desenca-deamento.
4. O empreiteiro é responsável perante terceiros se no exercício da sua actividade desrespeitar ilicitamente e com
culpa os seus direitos, sejam de personalidade ou de propriedade.
5. Derivados os estragos no prédio vizinho de escavações sem o necessário escoramento, o empreiteiro que as
operou é o responsável pelo seu ressarcimento, mesmo que tenha agido com diligência na escolha e instruções dos
trabalhadores, neste caso objectivamente pela actuação culposa daqueles, nos termos do artigo 800º, n.º 1, do Código
Civil.
6. Independentemente de culpa, é o dono da obra solidariamente responsável com o empreiteiro pelos danos
causados pela nova edificação na esfera do dono do prédio vizinho, ainda que o último responda a título de culpa.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
"AA" e BB intentaram, no dia 16 de Julho de 1997, contra Empresa-A e Empresa-B esta a título subsidiário, e a
Empresa-C acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a pagarem-lhe 17 898
550$ acrescidos de juros de mora à taxa legal, em razão da acção de degradação e ameaça de ruína do seu prédio
habitação e na danosa realização de obras no prédio contíguo, da 1ª ré, pela 2ª ré, com base em contrato de empreitada
celebrado entre ambas e em contrato de seguro outorgado entre as últimas duas rés.
Em contestação, a primeira ré afirmou a sua ilegitimidade, sob o fundamento de a responsabilidade ser da
segunda ré, desconhecer os danos invocados pelos autores, terem sido realizados os necessários estudos e sondagens,
estar então o prédio daqueles em mau estado, e a segunda referiu que não celebrou contrato de seguro relativo aos danos
invocados pelos autores, e a terceira expressou que o prédio dos autores está no mesmo estado que estava antes das
obras.
Na réplica, os autores reafirmaram o que já haviam expressado na petição inicial, acrescentando dever a terceira
ré ser declarada parte ilegítima, e, no despacho saneador foi declarada a legitimidade ad causam da primeira ré e a
ilegitimidade da última, que por isso foi absolvida da instância.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 30 de Setembro de 2003, pela qual a 2ª ré foi absolvida do
pedido e a 1ª condenada a pagar aos autores € 15 812,69, e da qual esta apelou, e aquela arguiu a sua nulidade, que foi
desatendida, de cujo despacho ela agravou.
Nas alegações do recurso de agravo, a 2ª ré requereu a transcrição das cassetes de gravação do julgamento, o
que foi indeferido, de cujo despacho também agravou, e a Relação, por acórdão proferido no dia 22 de Novembro de 2004,
revogou a referida sentença, condenou solidariamente as 1ª e 2ª rés a pagar aos autores 15 812,69 e não conheceu de
qualquer desses outros recursos.
Os apelados requereram a rectificação do acórdão da Relação no sentido da condenação das apelantes no
pagamento de juros de mora, a Relação corrigiu o erro por acórdão proferido no dia 10 de Janeiro de 2005, Empresa-B
interpôs recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão proferido no dia 27 de Setembro de 2005, declarou
a nulidade do acórdão da Relação por omissão de pronúncia e devolveu o processo à Relação a fim de conhecer da
questão omitida.
A Relação, por acórdão proferido no dia 5 de Dezembro de 2005, condenou solidariamente Empresa-A e
Empresa-B a pagar aos autores a quantia de 15 812,69 e juros à taxa legal desde a citação, e a última interpôs recurso de
revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- o acórdão é nulo omissão por pronúncia, porque a Relação não se pronunciou sobre todas as contra alegações
que formulou;
- o acórdão viola o artigo 6º, nº 1, do da Convenção Europeia dos Direitos do Homem por violação do direito a um
processo equitativo, do direito à fundamentação, do direito a um tribunal, ao acesso a tribunal, ao exame da causa por um
tribunal e ausência de determinação dos seus direitos e obrigações;
- deve alterar-se o acórdão recorrido e ordenar-se a baixa do processo à Relação para que se pronuncie sobre as
contra-alegações da recorrente e as respectivas conclusões;
- em qualquer caso, deve ser absolvida do pedido e, quanto muito, apenas condenada Empresa-A;
- foram violados por errada interpretação e aplicação os artigos 660º, nº 2, do Código de Processo Civil, 1348º, nº
2, do Código Civil e 6º, nº 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Respondeu Empresa-A, em síntese de alegação:


- estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil, designadamente o nexo de causalidade entre o
facto e o dano;

90
- deve manter-se o acórdão recorrido.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. Por escritura pública outorgada em 24 de Agosto de 1978, no 6º Cartório Notarial do Porto, o autor, por um
lado, e CC e DD e cônjuge, esta por si e como procuradora de sua mãe, por outro, declararam estes vender e aquele
comprar, por 800 000$ o prédio urbano sito na Rua da Torrinha, 103/107, Porto, inscrito na matriz da freguesia de
Cedofeita sob o artigo 592º e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial sob o nº 5684, cujo valor comercial era de
cerca de 50 000000$, onde viviam os autores, a filha deles, o cônjuge desta e, no dia 16 de Julho de 1997, o neto dos
primeiros.
2. O prédio mencionado sob 1, apesar de antigo, apresentava-se, antes de se iniciarem os trabalhos no prédio da
ré Empresa-A, em razoáveis condições de habitabilidade e conforto, em meados da década de 80 os autores tinham-no
rebocado e pintado as paredes e substituído alguma da pavimentação, construído novas casas de banho, com tectos
falsos, pavimentos, azulejos e louças novas, e pintado todas as portas, caixilharias e rodapés.
3. A ré Empresa-A é proprietária do prédio com o n.º 113, sito na Rua da Torrinha, Porto, contíguo com o
mencionado sob 1, com características estruturais idênticas, e comuns parede de meação, fundações, alicerces, vigas e
um poço de água potável.
4. No prédio referido na primeira parte de 3, Empresa-A fez construir um novo edifício, composto de cave, rés-do-
chão, dois andares e recuado, construção que foi efectuada por Empresa-B com a qual a primeira celebrou um contrato de
empreitada.
5. As obras de demolição foram iniciadas em finais de Maio de 1994 e, terminados os trabalhos de demolição, os
autores, na presença dos representantes de Empresa-A e de Empresa-B, constataram não ter resultado para o interior do
prédio referido em 1 quaisquer danos substanciais, e que apenas existiam estragos nos rebocos exteriores do cunhal das
traseiras, que a última ficou de reparar quando começasse a trabalhar com massas.
6. Entretanto, os trabalhos continuaram a cargo de Empresa-B e, para a construção da cave, que o prédio não
tinha, aquela iniciou, em finais de Julho de 1994, os trabalhos de escavação.
7. A construção de uma cave de um prédio antigo e com paredes meeiras exige particulares cuidados
decorrentes do facto de a retirada de terras poder provocar movimentos nos terrenos e estruturas adjacentes, tornando
necessário sondar previamente o terreno junto ás empenas dos prédios vizinhos, respectivos alicerces e demais estruturas.
8. As rés não escoraram o prédio referido em 1 antes de iniciarem os trabalhos de escavação, e os realizados
eram idóneos a provocar-lhe movimentos predominantemente verticais na zona da parede de meação, os quais eram
idóneos a originar-lhe fissuração acentuada e a provocar-lhe desvio da estrutura, o qual apresenta hoje um assentamento
oblíquo, e há tectos e paredes com buracos, resultantes de quedas de estuque, com mais de meio metro.
9. Na demolição do prédio referido sob 3, primeira parte, foram exceptuadas a fachada e as paredes laterais, a
parede meeira foi conservada e não foi construída estrutura própria para a sustentar, e para a construção da cave do novo
edifício no prédio referido em 3 fizeram-se e desenvolveram-se, ao longo de toda a parede de meação e de modo
intercalado, parcelar e progressivo, fundações em betão armado que reforçaram a sua segurança e sustentação.
13. A parede meeira dos prédios foi conservada, tendo, com as obras, sido reforçada a segurança dos prédios,
para a sustentar não foi construída estrutura própria, a única estrutura existente foi projectada, desde o início, para suportar
as placas do novo edifício, que deixaram de assentar nas paredes.
14. Em Novembro de 1994, em dia de fortes chuvas, a ré Empresa-B fez colocar uma das lajes de um dos pisos
do prédio em construção, e, quando colocou a laje relativa ao 1º piso, ocorreu infiltração de água no prédio de 1, através da
parede de meação.
15. As estruturas do prédio mencionado sob 1 encontram-se alteradas, é inviável do ponto de vista económico
eliminar a inclinação vertical que apresenta, há diversas portas e janelas que não fecham, algumas delas saltaram dos
caixilhos, situação que pode ter origem em tais movimentos, há estragos nas paredes e nos tectos, fruto de infiltrações de
água - situação que pode ter origem em tais movimentos - as quais tiveram origem nas fissuras existentes entre as paredes
exteriores e as paredes de meação e no decurso da própria construção.
16. Os autores transigiram no âmbito da providência cautelar de embargo de obra nova, apenso, que instauraram
contra a ré Empresa-A.
17. Para reparar os estragos reparáveis, que apresenta o prédio mencionado sob 1, são necessários de trabalhos
de construção civil, que, em Setembro de 1996, orçavam em 2 167 750$.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se os recorridos têm ou não direito a exigir da recorrente a
indemnização que contra ela invocaram.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente, a resposta à
referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- está ou não o acórdão recorrido afectado de nulidade por falta de fundamentação ou omissão por pronúncia?

91
- infringe ou não o acórdão recorrido algum dos princípios consignados na Convenção Europeia dos Direitos do
Homem?
- há ou não nexo de causalidade entre as obras realizadas pela recorrente e os estragos do prédio dos
recorridos?
- responsabilidade civil por factos ilícitos;
- responsabilidade civil por factos lícitos no domínio das relações de vizinhança predial;
- natureza das relações contratuais ocorridas entre a recorrente e Empresa-A;
- responsabilidade civil de empreiteiros pelos danos causados a terceiros vizinhos com obras;
- deve ou não a recorrente ser absolvida do pedido?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos e da lei.
Vejamos de per se, cada uma das referidas sub-questões:

1.
Comecemos pela análise da questão de saber se o acórdão recorrido está ou não afectado de nulidade por falta
de fundamentação ou omissão de pronúncia.
Expressa a lei que o acórdão da Relação é nulo quando careça de fundamentação de facto e ou de direito ou
deixe de se pronunciar sobre questões de que devia conhecer (artigos 668º, nº 1, alíneas b) e d) e 716º, nº 1, do Código de
Processo Civil).
A Constituição estabelece que as decisões judiciais que não sejam de mero expediente devem ser
fundamentadas nos termos da lei ordinária (artigos 205º, nº 1).
Por seu turno, a lei ordinária prescreve que as decisões relativas a qualquer pedido controvertido ou alguma
dúvida suscitada no processo devem ser fundamentadas e que para tal não basta a simples adesão aos fundamentos
alegados no requerimento ou na oposição (artigo 158º do Código de Processo Civil).
Assim, deve o acórdão representar a vontade abstracta da lei ao caso particular submetido à Relação, pelo que,
sem fundamentação de facto e ou de direito não se consegue esse escopo nem se permite às partes por ele afectadas o
conhecimento do seu acerto ou desacerto, designadamente para efeito de interposição de recurso.
Mas uma coisa é a falta absoluta de fundamentação e outra a fundamentação insuficiente, errada ou medíocre, e
só a primeira constitui o fundamento de nulidade a que se reporta a alínea b) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo
Civil.
No que concerne à dita nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, a recorrente fundou-a na circunstância de
a Relação não se haver pronunciado sobre todas as contra alegações que formulou.
Expressa a lei que o acórdão da Relação é nulo quando deixe de se pronunciar sobre questões de que devia
conhecer (artigos 668º, nº 1, alínea d), e 716º, nº 1, do Código de Processo Civil).
O juiz deve, com efeito, resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação,
exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artigo 660º, nº 2, do Código de Processo
Civil).
Importa, porém, ter em linha de conta que uma coisa são os argumentos ou as razões de facto e ou de direito e
outra, essencialmente diversa, as questões de facto ou de direito.
As questões a que se reporta a alínea d) do nº 1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, em perspectiva de
serem de direito substantivo, são os pontos de facto e ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os
concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções.
O tribunal deve conhecer de todas as referidas questões, mas não de todos os argumentos expressados pelas
partes a fim de o convencer do sentido com que devem ser interpretados os factos e as normas jurídicas envolventes.
Julgada procedente a nulidade decorrente de omissão de pronúncia pela Relação, se for caso disso, impõe-se a
baixa do processo a fim de aquele Tribunal operar a reforma do acórdão (artigo 731º do Código de Processo Civil).
O recurso de apelação apreciado pela Relação foi interposto por Empresa-A, argumentando no sentido de
apenas ser da ora recorrente a obrigação de indemnização em causa.
A Relação enunciou as alegações de resposta ao recurso de apelação formuladas pela ora recorrente, no
sentido, por um lado, de que a sentença era nula por virtude de a decisão estar em contradição com os seus fundamentos
e que o tribunal a devia suprir.
E, por outro, serem os relatórios periciais contraditórios, haver contradição entre a resposta aos quesitos sexto e
trigésimo-terceiro, dever alterar-se a resposta ao primeiro para não provado, não reflectir a resposta ao quesito sexto o que
se produzira na audiência de julgamento, não terem os autores provado os danos, não perceber a condenação na
totalidade dos danos no montante de 2 167 750$ e em mais € 5 000, sem prova da desvalorização do prédio e com prova
de que a sua segurança ficou reforçada,
Além disso, consignou as conclusões de alegação da recorrente no sentido de os danos no prédio nada terem a
ver com a construção, e não terem os autores provado os danos que alegaram, não poder o tribunal condenar nem sequer
a apelante por não existir nexo de causalidade adequada entre as obras efectuadas e os danos sofridos;

92
E finalmente, que as alegações da apelante apenas a pretendem prejudicar, não ter podido interpor recurso em
razão da sua absolvição, ter agido segundo as boas regras de construção civil, e em cumprimento das ordens e projectos
da primeira e deverem ambas ser absolvidas do pedido.
A Relação, depois de expressar que o objecto do recurso era definido pelas conclusões da alegação do
recorrente, mas que, tendo em conta o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, apreciaria as conclusões de contra-
alegação formuladas por Empresa-B.
Nesse juízo de apreciação, expressou, por um lado, não conhecer da questão da transcrição das cassetes por já
ter sido apreciada, não haver contradição entre as respostas dadas aos quesitos sexto e trigésimo-terceiro, não dever ser
dada por provada a resposta ao quesito sexto, e manter a decisão da matéria de facto
E, por outro, depois de enunciar a questão de saber se perante a matéria de facto provada se impunha a
condenação não só da recorrente, como dona do prédio, mas também de Empresa-B, enquanto empreiteira, na sequência
de extensa motivação de facto e de direito, além do mais no sentido de que factualidade provada não deixava dúvidas de
que os danos em causa foram provocados pelas escavações levadas a efeito pela empreiteira, por esta haver omitido os
cuidados técnicos necessários na realização da obra, causa directa e adequada deles, concluiu no sentido positivo.
Perante este quadro, a conclusão não pode deixar de ser no sentido de que a Relação conheceu de todas as
questões que lhe foram postas pela apelante e aquelas que o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que ela devia
conhecer e fê-lo com clara suficiência de fundamentação fáctico-jurídica.
Por isso, ao invés do alegado pela recorrente, não está o acórdão recorrido afectado de nulidade por falta de
fundamentação ou omissão de pronúncia, e, consequentemente, inexiste fundamento para a anulação por ela pretendida.

2.
Atentemos agora sobre o acórdão recorrido infringe ou não algum dos princípios consignados na Convenção
Europeia dos Direitos do Homem.
A recorrente alegou que o acórdão recorrido violou o artigo 6º, nº 1, do da Convenção Europeia dos Direitos do
Homem no que concerne ao direito a um tribunal, ao acesso a este, ao exame por ele da causa por um tribunal e à
determinação dos seus direitos e obrigações, bem como a um processo equitativo.
Fundou essencialmente essa sua alegação nos mesmos motivos em fundou a arguição da nulidade do acórdão
por falta de fundamentação e omissão de pronúncia.
O artigo 6º, nº 1, do da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, sob a epígrafe direito a um processo
equitativo, estabelece na sua primeira parte, além do mais que aqui não releva, que qualquer pessoa tem direito a que a
sua causa seja examinada equitativa e publicamente, num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial,
estabelecido pela lei, o qual decidirá sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil.
O conceito de processo equitativo, a aferir face a um concreto processo, envolve que cada uma das partes possa
de modo razoável defender em juízo o seu direito em posição não inferior à da parte contrária, o que implica o
funcionamento dos princípios do contraditório e da igualdade processual e a motivação das decisões.
O princípio do contraditório implica que cada uma das partes seja chamada e admitida a expressar os seus
argumentos de facto e de direito, a apresentar as respectivas provas, a controlar as provas oferecidas pela parte contrária e
a discutir o resultado da respectiva produção.
O princípio da igualdade processual das partes pressupõe o posicionamento das partes no processo em
igualdade de condições, dispondo de idênticas possibilidades de realização da justiça a que tenham jus.
A determinação dos direitos e obrigações abrange a existência dos direitos, o conteúdo e uso destes, a matéria
de facto disponível e a interpretação e aplicação das pertinentes normas jurídicas.
Os princípios acima referidos estão consagrados, por um lado, na nossa Constituição, segundo a qual a todos é
assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e a que a
causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante um processo equitativo (artigo 20º, nºs 1
e 4).
E, por outro, na lei geral de processo, por via do princípio da garantia de acesso aos tribunais, segundo o qual a
protecção jurídica através deles implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força
de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, e que a todo o direito, em regra, corresponde uma acção
adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, e do princípio do contraditório, segundo o qual a resolução do conflito de
interesses pressupõe o chamamento da parte do lado passivo para deduzir oposição (artigos 2º e 3º, nºs 1 e 2, do Código
de Processo Civil).
Absolvida do pedido contra ela formulado por AA e BB na sentença proferida no tribunal da 1ª instância, face ao
conteúdo das alegações que formulou no recurso de apelação, apesar de não ser recorrida, ele só se compreende na
perspectiva de lhe ter sido admitida a ampliação daquele recurso, porventura à luz do disposto no artigo 684º-A, nº 1, do
Código de Processo Civil.
Olhando à dinâmica dos termos do recurso de apelação em causa, constata-se considerável amplitude da contra-
alegação que à recorrente foi permitida, o conforme conhecimento pela Relação das questões por ela suscitadas, a ampla
estrutura da respectiva fundamentação e o quadro de igualdade de partes processuais em que tudo isso ocorreu.

93
Daí decorre, ao invés do que a recorrente alegou, não ter ocorrido na espécie qualquer infracção ao princípio do
processo equitativo, nem violação do disposto no artigo 660º, nº 2, do Código de Processo Civil ou no artigo 6º, nº 1, da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

3.
Vejamos agora se ocorre ou não nexo de causalidade entre as obras realizadas pela recorrente e o estrago no
prédio dos recorridos.
A propósito do nexo de causalidade, expressa a lei que, quem estiver obrigado a reparar um dano deve restituir a
situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (artigo 563º do Código Civil).
Reportando-se a indemnização aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão,
mas aplicável em geral, reconduz a lei a causalidade à probabilidade, ou seja, afasta-se da ideia de que qualquer condição
é causa do dano, consagrando a concepção da causalidade adequada.
Dir-se-á, assim, decorrer do artigo 563º do Código Civil não bastar que o evento tenha produzido certo efeito para
que, de um ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele, antes sendo necessário que o
primeiro seja uma causa provável ou adequada do segundo.
Aproximando as referidas normas ao caso vertente, dir-se-á, por um lado, que no processo causal conducente a
uma situação de dano concorrem múltiplas circunstâncias, umas que se não tivessem ocorrido ela não teria eclodido, e
outras que, mesmo não verificadas, não excluiriam a sua ocorrência.
E, por outro, não ser suficiente, para que o mesmo se verifique, que a acção ou omissão do agente tenha sido
conditio sine qua non do dano, exigindo-se que ela seja adequada em abstracto a causá-lo.
Assim, no referido contexto, o nexo de causalidade implica que a acção ou a omissão do agente seja uma das
condições concretas do evento e que, em abstracto, seja adequada ou apropriada ao seu desencadeamento.
Em consequência, o juízo sobre a causalidade integra, por um lado, matéria de facto, certo que se trata de saber
se na sequência de determinada dinâmica factual um ou outro facto funcionou efectivamente como condição
desencadeante de determinado efeito.
E, por outro, matéria de direito, designadamente a determinação, no plano geral e abstracto, se aquela condição
foi ou não causa adequada do evento, ou seja se, dada a sua natureza, era ou não indiferente para a sua verificação.
Este Tribunal pode sindicar o juízo da Relação no que concerne à segunda das mencionadas vertentes do nexo
de causalidade adequada, mas não o pode sindicar no que concerne à primeira dessas enunciadas vertentes (artigos 722º,
nº 2, e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Está assente, quanto ao prédio dos recorridos, por um lado, haver tectos e paredes com buracos com mais de
meio metro resultantes de quedas de estuque, estarem alteradas as suas estruturas, haver portas e janelas que não
fecham, terem algumas delas saído dos caixilhos, haver fissuras entre as paredes exteriores e as de meação e que para a
respectiva reparação são necessários trabalhos de construção civil orçados há cerca de dez anos em 2 167 750$.
E, por outro, que o referido prédio apresenta hoje um assentamento oblíquo e inclinação vertical de eliminação
economicamente inviável.
Assim, ao invés do que a recorrente afirmou, estamos perante uma situação de danos que atingiram a esfera
jurídica dos recorridos, que são reparáveis, e outros, de reparação economicamente inviável, que implicam a
desvalorização do prédio.
A Relação, perante a factualidade provada concluiu que os danos no prédio dos recorridos foram provocados
pelas obras de escavação, sem o escorar, realizadas pela recorrente no prédio de Empresa-A.
Assim, no plano naturalístico, considerou que as escavações operadas pela recorrente é que provocaram os
estragos no prédio dos recorridos que estes invocaram na acção a título de causa de pedir, matéria que este tribunal, por
se tratar de matéria de facto, não pode sindicar no recurso de revista (artigo 722º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Acresce que, no plano geral e abstracto, tendo em conta o quadro de facto assente, inexiste fundamento legal
para concluir que as referidas escavações não são causa adequada do mencionado dano.
Impõe-se, por isso, assentar na verificação, na espécie, do mencionado nexo de causalidade adequada entre a
acção dos agentes da recorrente na escavação do prédio de Empresa-A e os referidos estragos no prédio dos recorridos.

4.
Verifiquemos agora, em síntese, em tanto quanto releva no caso vertente, os pressupostos da responsabilidade
por factos ilícitos.
A responsabilidade civil extracontratual é susceptível de abranger a tríplice espécie derivada de facto ilícito, do
risco ou de facto lícito.
A propósito da primeira das referidas vertentes, a lei expressa, além do mais que aqui não releva, que a violação
ilícita, com dolo ou mera culpa, do direito de outrem gera a obrigação de indemnizar o lesado pelos danos dela decorrentes
(artigo 483º, n.º 1, do Código Civil).

94
A ilicitude do facto pressupõe uma acção ou omissão controlável pela vontade, violadora de direitos subjectivos
relativos ou absolutos de outrem, nesta última categoria se integrando os direitos de personalidade e de propriedade, a que
se reporta o caso vertente.
A culpa lato sensu é susceptível de abranger o dolo, que não releva no caso vertente, e a culpa stricto sensu ou
mera negligência que se traduz, grosso modo, na omissão pelo agente da diligência ou do cuidado que lhe era exigível,
envolvendo, por seu turno, a vertente consciente ou inconsciente
No primeiro caso, o agente prevê a realização do facto ilícito como possível mas, por leviandade, precipitação,
desleixo ou incúria, crê na sua inverificação; no segundo, o agente, embora o pudesse e devesse prever, por
imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não o previu.
Na falta de outro critério legal, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das
circunstâncias de cada caso (artigo 487º, nº 2, do Código Civil).
O critério legal de apreciação da culpa é, pois, abstracto, ou seja, tendo em conta as concretas circunstâncias da
dinâmica do evento em causa, por referência a um agente normal.
O ónus de prova dos factos integrantes da culpa no quadro da responsabilidade civil extracontratual, se não
houver presunção legal de culpa, cabe a quem com base nela faz valer o seu direito (artigos 342º, n.º 1 e 487º, n.º 1, do
Código Civil).

5.
Atentemos agora na responsabilidade civil por factos lícitos no domínio das relações de vizinhança predial.
O artigo 1348º do Código Civil reporta-se, no quadro das relações de vizinhança entre prédios, a escavações em
algum deles e à obrigação de indemnização por danos causados no outro em razão delas.
Expressa, por um lado, que o proprietário tem a faculdade de abrir no seu prédio minas ou poços e fazer
escavações, desde que não prive os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar desmoronamentos ou deslocações
de terra (n.º 1)
E, por outro, logo que venham a padecer danos com as obras feitas, que os proprietários vizinhos serão
indemnizados pelo autor delas, mesmo que tenham sido tomadas as precauções julgadas necessárias (n.º 2).
A referida faculdade de escavação é um corolário do conteúdo do direito de propriedade nas suas vertentes de
uso, fruição e disposições limitadas (artigo 1305º do Código Civil).
O referido acto de escavação é, porém, ilícito, se privar algum prédio vizinho do apoio necessário para evitar
desmoronamentos ou deslocações de terras. Independentemente disso, se os proprietários dos prédios vizinhos sofrerem
prejuízos com as obras feitas, são indemnizados pelos seus autores, independentemente de culpa.
A expressão seus autores, interpretada na envolvência do fim normativo e do elemento sistemático significa os
proprietários dos prédios em que forem feitas as obras. Isso não exclui, porém, como é natural, se for caso disso,
verificando-se os respectivos pressupostos, a responsabilização indemnizatória de outras pessoas perante os proprietários
dos prédios vizinhos afectados, nomeadamente empreiteiros ou subempreiteiros.

6.
Vejamos agora a natureza das relações contratuais entre a recorrente e Empresa-A.
A empreitada é o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra (artigo
1207º do Código Civil).
A subempreitada é, por seu turno, o contrato pelo qual um terceiro se obriga para com o empreiteiro a realizar a
obra a que se encontra vinculado, ou parte dela (artigo 1213º, n.º 1, do Código Civil).
Como representantes de Empresa-A e da recorrente declararam convencionar, esta realizar para aquela
mediante um preço a nova construção do prédio mencionado sob II 3, primeira parte, certo é estarmos perante um contrato
de empreitada, em que a primeira figura como dona da obra e a última como empreiteira.

7.
Atentemos agora na responsabilidade civil dos empreiteiros pelos danos causados com as obras aos
proprietários de prédios vizinhos.
O empreiteiro é responsável, além do mais, isto é, no âmbito das suas relações com o dono da obra e no quadro
da responsabilidade civil contratual, se no exercício dessa sua actividade desrespeitar ilicitamente e com culpa direitos de
terceiro (artigo 483º, n.º 1, do Código Civil).
A violação com culpa, por ele, dos referidos direitos da titularidade de terceiro, designada-mente o absoluto de
propriedade dos donos de prédios contíguos daquele onde a obra é executada implica a sua responsabilidade
extracontratual.
A obrigação de indemnizar do empreiteiro, in natura, ou por substituição pecuniária, visa a colocação da situação
do lesado naquela que estaria se não tivesse ocorrido o dano, respondendo objectivamente pelos actos das pessoas que
utiliza na execução dos trabalhos, designadamente empregados ou subempreiteiros (artigo 800º, n.º 1, do Código Civil).

95
Na apreciação da culpa do empreiteiro, deve ter-se em conta o disposto no artigo 487º, n.º 2, do Código Civil, sob
o critério de ele dever actuar com a diligência do chamado bom pai de família, a que acima se fez referência, tendo em
conta a obrigação de operar segundo as regras da arte ou as normas técnicas de segurança vigentes no domínio da
construção civil.
Ainda que o empreiteiro tenha agido com diligência na escolha, instruções e fiscalização concernentes, deve ser
responsabilizado objectivamente, nos termos do artigo 800º, n.º 1, do Código Civil, pela actuação culposa dos seus
trabalhadores ou subempreiteiros, porque da actividade de uns e de outros ele, em regra, extrai vantagens económico-
financeiras.

8.
Vejamos agora se ocorre ou não na espécie fundamento para que a recorrente seja absolvida do pedido.
Ela alegou ter o acórdão recorrido violado o disposto no artigo 1348º, nº 2, do Código Civil e que, em qualquer
caso, devia ser absolvida do pedido e, quanto muito, apenas condenada Empresa-A.
Conforme acima se referiu, ao invés do alegado pela recorrente, os factos provados revelam a existência de
estragos no prédio dos recorridos, uns reparáveis, e outros não por a respectiva reparação ser economicamente inviável,
donde decorre a sua concernente desvalorização.
Em relação ao titular do direito de propriedade sobre o prédio vizinho àquele em que a obra é realizada, é
indiferente que a mesma seja pessoalmente realizada pelo dono do respectivo prédio ou por empregados dele ou por
empreiteiros por ele contratados.
A responsabilização das sociedades, como é o caso da recorrente e de Empresa-A, porque se trata de entidades
meramente jurídicas, assume alguma especificidade decorrente dessa característica.
Respondem civilmente pelos actos ou omissões dos seus representantes, agentes ou mandatários nos mesmos
termos em que os comitentes respondem pelos actos ou omissões dos seus comissários (artigos 157º e 165º do Código
Civil, e 6º, n.º 5, do Código das Sociedades Comerciais).
Assim, a responsabilidade civil extracontratual das sociedades é moldada na responsa-bilidade civil do comitente
no confronto com a responsabilidade civil do comissário.
Resulta do referido regime, por um lado, que o que encarrega outrem de qualquer comissão responde
independentemente de culpa pelos danos que o comissário causar desde que sobre este recaia a obrigação de indemnizar
(artigo 500º, n.º 1, do Código Civil).
E, por outro, que a responsabilidade do comitente só existe se o facto danoso foi praticado pelo comissário no
exercício da função que lhe foi confiada, ainda que intencionalmente ou contra as instruções do primeiro (artigo 500º, n.º 2,
do Código Civil).
A comissão é o serviço ou actividade realizada por conta e sob a direcção de outrem, são pressupostos da
responsabilização do comitente a existência desse vínculo entre ele e o comissário e a prática por este de um facto ilícito e
culposo no exercício da função ou por causa dela e, verificados que sejam, a responsabilidade civil do comitente assume-
se como Aobjectiva.
Resulta dos factos provados, tal como foi considerado pela Relação, que os estragos no prédio dos recorridos
derivaram das escavações no prédio contíguo de Empresa-A, realizada sem escoramento do primeiro dos mencionados
prédios por agentes da recorrente abaixo do nível das fundações do primeiro.
Impunha-se à recorrente, através dos seus representantes e agentes, que realizassem a escavação em causa,
de forma a assegurar segurança do prédio dos recorridos (artigo 128º Regulamento Geral das Edificações Urbanas).
A referida escavação exigia particular cuidado decorrente do facto de a retirada de terras poder provocar
movimentos no prédio dos recorridos e a recorrente, através dos seus agentes ou representantes, não os tomou,
designadamente não o escorou de forma a prevenir a sua danificação.
Resulta, assim, dos factos provados, que a recorrente, através dos seus agentes e representantes, não utilizou as
regras próprias da arte da construção civil que se lhe impunham.
Agiu, por isso, a recorrente, através dos agentes e representantes, ao não cumprirem o dever objectivo de
cuidado exigível ao empreiteiro normal, com culpa, ao menos na sua vertente inconsciente.
Decorrentemente, tendo em conta as considerações de ordem jurídica acima enunciadas, praticou a recorrente,
através dos seus representantes e agentes, um facto ilícito e culposo gerador dos danos em causa e, consequentemente,
constituiu-se na obrigação de indemnizar os recorridos em espécie ou por via de substituição por equivalente pecuniário, no
quadro da responsabilidade civil extracontratual (artigos 157º, 165º, 483º, n.º 1, 562º, 563º, 800º, n.º 1, 500º, n.ºs 1 e 2, do
Código Civil e 6º, n.º 5, do Código das Sociedades Comerciais).

Quanto a empresa-A os factos não revelam que ela tenha agido com culpa. Todavia, tal como foi entendido pela
Relação, ela é responsável, nos termos do artigo 1348º do Código Civil, pela eliminação das suas consequências, ou seja,
o dano que atingiu a esfera jurídica patrimonial dos recorridos.

96
No âmbito da responsabilidade civil decorrente de danos causados por veículos, a lei exclui a derivada do risco
no caso de o acidente ser imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao
funcionamento do veículo (artigo 505º do Código Civil).
Resulta do mencionado normativo a inadmissibilidade da concorrência entre o risco de uma pessoa e a culpa de
outra com vista à responsabilização de ambas.
Este normativo, cujo âmbito de aplicação se cinge à responsabilidade pelo risco automóvel, porque excepcional,
é insusceptível de aplicação analógica à situação de responsabilidade independente de culpa ou mesmo de ilicitude de uns,
a que a que se reporta o artigo 1348º do Código Civil, e de responsabilidade por culpa de outros (artigo 11º do Código
Civil).
Em consequência, a recorrente e Empresa-A são solidariamente responsáveis pelo ressarcimento dos danos em
causa no confronto dos recorridos (artigo 497º, n.º 1, do Código Civil).

9.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
O acórdão recorrido não está afectado de nulidade por falta de fundamentação ou omissão por pronúncia, nem
infringe algum dos princípios consignados na Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Os recorridos foram afectados na sua esfera jurídica no que concerne à violação do seu direito de propriedade
sobre o prédio em causa por via de danos nele causados por acção e omissão ilícita e culposa de agentes da recorrente no
quadro de um contrato de empreitada celebrado com Empresa-A, na envolvência do pertinente nexo de causalidade
adequada.
A recorrente, por um lado, por via da prática de facto ilícito e culposo, no quadro da responsabilidade
extracontratual, é responsável pela concernente indemnização no confronto dos recorridos.
Empresa-A é, por seu turno, responsável civilmente, no confronto dos recorridos, pela mencionada indemnização,
por ser a dona da obra de escavação realizada pela recorrente, independentemente de culpa.
Assim, são a recorrente e Empresa-A solidariamente responsáveis pelo ressarcimento dos prejuízos que
afectaram os recorridos na sua esfera jurídica.
Em consequência, não tem qualquer fundamento legal a alegação da recorrente no sentido de que pelo menos
ela devia ser absolvida do pedido.

Improcede, por isso, o recurso, com a consequência de dever manter-se o conteúdo decisório do acórdão
recorrido.
Vencida no recurso, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, n.ºs 1 e 2,
do Código de Processo Civil).
IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 30 de Março de 2006.


Salvador da Costa Ferreira de Sousa Armindo Luís

Acórdão do STJ (Ex.mo Cons.º Mário Cruz) de 13.12.2007, no Processo 07A3550:

EMPREITADA FORÇA MAIOR FACTO NOTÓRIO


TÍTULO RESPONSABILIDADE CULPA RISCO

Sumário:
I. Na empreitada não há uma relação de comissão entre concessionária, dona da obra e a empresa empreiteira,
pelo que não é aplicável nesta relação o disposto no art. 500.º do CC.
II. Um facto notório numa determinada época pode deixar de o ser alguns anos depois. Chuvas intensas em finais
de 1996, durante dias seguidos, não constituem facto notório em 1999, pelo que é necessária a sua alegação.
III. Resultado devido a força maior é o decorrente de uma situação imprevista e e imprevisível, cuja produção se
produziu independentemente da vontade ou das circunstâncias pessoais e para os quais não tenham as partes de algum
modo concorrido nem maneira de os evitar. O desvio de várias linhas de escoamento de águas pluviais para apenas uma, e
que venha a originar danos nos prédios colocados a jusante, não pode integrar-se no conceito de dano devido a força
maior.
IV. Tendo havido fortes deslocações de terras e escavações na construção de uma auto-estrada, e havendo
ficado provado que quer a dona da obra quer a empreiteira actuaram com a falta de cuidados necessários para se evitar
inundações a jusante, a responsabilidade pelos danos decorre a título de culpa por ambas as entidades (a dona da obra ou
porque o projecto acusou deficiências ou, porque não acusando deficiências, a sua execução não foi devidamente
fiscalizada; e empreiteira ou porque executou deficientemente o projecto sendo ele bom, ou, não sendo o projecto bom,

97
porque não chamou a atenção da dona da obra quanto às deficiências do projecto ou o executou não observando as boas
práticas).
V. Mesmo que não estivesse provada a responsabilidade do dono da obra a título de culpa, ele seria sempre
responsável a título de risco pelos danos sofridos nos prédios vizinhos, desde que esses danos sejam efeito necessário da
obra realizada em terrenos seus, onde tenha feito escavações ou deslocações de terras, art. 1348.º-2 do CC.
VI. No art. 1348.º-2 do CC. tem a jurisprudência e doutrina vindo a entender que por “autor das obras”, se deve
considerar o proprietário ou o dono delas.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

AAe BB
intentaram contra
CC, SA
e DD, SA,
acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário
pedindo:
a) que sejam as RR. condenadas a efectuarem as obras necessárias de condução e derivação das águas de
forma a evitar inundações e enxurradas nos prédios dos AA.
b) a pagarem aos AA. a indemnização já liquidada de Esc: 15.508.011$00, acrescida dos juros moratórios que se
vencerem desde a citação dos RR. até integral pagamento à taxa legal e anual de 10%;
c) a pagarem solidariamente aos AA. a indemnização a liquidar em execução de sentença, e referente:
c/1 – a despesas que os AA. tiverem de suportar com a aquisição de novas videiras e seu plantio, incluindo-se o
custo das mesmas, dos fertilizantes necessários e o pagamento dos trabalhadores agrícolas para a realização dessa tarefa;
c/2 – às perdas decorrentes da diminuição de produção agrícola dos prédios dos AA. (que identificaram), quanto
à produção hortícola, produção do vinho, batatas e milho desde a presente data até ao momento em que o terreno seja
reposto na situação anterior de forma a ser novamente agricultado e até à efectiva produção e colheita daquelas culturas;
c/3 – a gastos suportados pelos AA. com a abertura dos caminhos nos seus identificados prédios;
c/4 - à diferença do quantitativo constante no orçamento junto para a quantia efectivamente paga pelos AA., já
que neste momento não se sabe a data do início da sua execução.

Para o efeito, alegaram em síntese, que:


A Ré CC é responsável pela construção da A4 Porto - Amarante e do sub-lanço Penafiel-Amarante, tendo esta
celebrado com a Ré DD, SA um contrato de empreitada para a construção da obra geral e das obras de arte (PS e PI) dos
lotes Penafiel/Castelões e Castelões/Amarante, da A4.
Os AA. são donos de duas propriedades rústicas que formam um conjunto agrícola, estando ligados.
Os aludidos prédios encontravam-se agricultados.
Os Autores exploram água do subsolo dos aludidos prédios.
Os RR. fizeram várias obras, não cuidando de efectuar as mesmas de forma evitar as enxurradas,
desmoronamentos e as inundações dos terrenos inferiores, destruindo as culturas, socalcos, poças e minas dos AA.
Estando o seu solo carregado de detritos saibrosos, areia e pedras.
Para repor os terrenos no estado em que anteriormente se encontravam os Autores necessitarão de adquirir
terra.
É ainda necessário proceder à construção de tanques em substituição dos poços existentes e que ficaram
destruídos.
É igualmente necessário proceder à construção de onze muros de suporte de terras em betão.
Assim, tiveram prejuízos já liquidados de esc. 15.508.011$00, bem como outros a liquidar em execução de
sentença.
Concluem, pois, pela procedência da acção.

Na contestação a R. CC, deduziu o incidente de intervenção acessória da Companhia de EE, invocou a


ilegitimidade, por ter celebrado um contrato de empreitada com a R. DD, SA e impugnou os factos.
Concluiu pela improcedência da acção.

A R. DD, SA deduziu o incidente de intervenção acessória da Companhia de EE e impugnou os factos.


Concluiu pela improcedência da acção.

98
A interveniente Companhia de EE, SA impugnou os factos.
Conclui pela improcedência da acção.
***
Saneado, condensado e instruído o processo, seguiu ele para julgamento, vindo a ser dados como provados os
factos seguintes:

“1) A Ré CC é uma empresa de capitais mistos concessionária, com exclusividade em Portugal, da construção,
manutenção e exploração de auto-estradas.
2) A mesma é responsável pela construção da A4 Porto - Amarante e do sub-lanço Penafiel-Amarante.
3) A Ré DD, SA é uma sociedade que se dedica à construção civil, nomeadamente, obras públicas.
4) Em 6 de Dezembro de 1993, a Ré CC celebrou com a Ré DD, SA um contrato de empreitada para a
construção da obra geral e das obras de arte (PS e PI) dos lotes Penafiel/Castelões e Castelões/Amarante, da A4,
conforme documento junto aos autos a fls. 115 a 149.
5) Na Conservatória do Registo Predial de Amarante encontra-se descrito sob a ficha n° ......../.........., da
freguesia de Fregim, Amarante, um prédio rústico, denominado "Leiras......”, com a área de 15.500 m2, composto de
pastagem, videiras em cordão, pinhal e mato, a confrontar de norte com caminho, FF e outro, de nascente com GG, de sul
com caminho-de-ferro e de poente com HH, tendo o mesmo inscrita aquisição a favor de AA casado com BB, por compra.
6) Tal prédio encontra-se inscrito na matriz rústica da freguesia de Fregim no artigo 272°.
7) Na Conservatória do Registo Predial de Amarante encontra-se descrito sob a ficha n° ...../......, da freguesia de
Fregim, um prédio rústico denominado " Quinta do ......", com a área de 31.200 m2, composto de cultura, pastagem,
videiras em cordão, pinhal e mato, a confrontar de norte com caminho-de-ferro, de nascente com II e outro, de sul com rio
Tâmega e de poente com JJ, tendo o mesmo inscrita aquisição a favor de AA casado com BB, por compra a KK.
8) Tal prédio encontra-se inscrito na matriz rústica da freguesia de Fregim sob o artigo 253°.
9) A Ré DD SA, celebrou com a Companhia de EE um contrato de seguro titulado pela apólice n° ..-.....10 com o
objecto e condições constantes do documento junto aos autos a fls. 150 a 184.
10) Os prédios aludidos em 5) e 7) formam um conjunto agrícola, estando ligados.
11) No prédio aludido em 7) os Autores construíram uma casa de habitação, composta de cave e rés-do-chão.
12) Há mais de 30 anos os Autores, por si e antepossuidores, vêm fruindo de todas as utilidades dos prédios
identificados em 5) e 7), administrando-os como coisa sua, designadamente plantando, semeando, colhendo produtos
agrícolas, construindo a casa de habitação e aí residindo.
13) O que sempre fizeram de forma contínua e ininterrupta, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer
que fosse.
14) E na convicção de que ao assim agirem não lesavam direitos de terceiros e exerciam um direito próprio.
15) Até ao início da construção aludida em 3) os prédios identificados em 5) e 7) apresentavam-se agricultados,
com videiras e fruteiras.
16) Sendo aí semeado, na época própria, milho e planta da batata.
17) Os Autores procediam à fertilização do solo e à sua irrigação, limpando-o de ervas daninhas e cavando o
espaço circundante às videiras e demais fruteiras.
18) Os Autores exploram água do subsolo dos prédios identificados em 5) e 7), tendo para o efeito construído
poços e galerias de mina para um melhor aproveitamento da água.
19) Nos prédios aludidos em 5) e 7) existiam várias poças para onde a água era conduzida e partir das quais se
distribuía para irrigar toda a parte de lavradio.
20) A exploração da água foi feita predominantemente através da abertura de dois poços e construção de duas
minas, que se situam no prédio denominado "Leiras ......", no limite sudoeste do terreno de lavradio com o terreno de
monte.
21) Os prédios descritos em 5) e 7) estendem-se desde o Rio Tâmega, a sul, depois são atravessados pelo
caminho-de-ferro e terminam a norte numa encosta sobranceira ao dito caminho-de-ferro.
22) Existindo um acentuado desnível entre a parte situada a norte e a situada nas margens do rio Tâmega,
ficando esta num plano inferior àquela, cujo declive é não inferior a 50 metros.
23) Entre o local por onde passa a A4 e os prédios identificados em 5) e 7) existe um desnível aproximado de 100
metros.
24) Nesse local existe alguma água.
25) A noroeste da auto-estrada os Réus fizeram várias cortes, movimentações de terras e arranjos das vias
complementares à auto-estrada, designadamente na estrada que liga Amarante a ....... e na via que entronca nesta em
direcção à Igreja de Fregim.
26) Para a protecção da construção da auto-estrada e devido às águas superficiais, os Réus construíram uma
rede de escoamento dessas águas.
27) Tal construção foi efectuada na parte noroeste e sobranceira à auto-estrada.

99
28) Os Réus construíram vários aquedutos em cimento com o formato de meia cana que atingem "caixas de
cimento" com a forma quadrada e com dimensões de aproximadamente 1m2.
29) Conduzindo as referidas águas sob a auto-estrada por um canal de cimento, até à margem nascente da
mesma, as quais convergem para um único aqueduto.
30) Nesse local, os Réus fizeram desembocar aquele canal, com diâmetro de aproximadamente 1m, numa caixa
aberta.
31) Antes das obras efectuadas pelos Réus as águas escorriam naturalmente, em diversas linhas de água,
através dos terrenos que se situavam em plano inferior.
32) Sendo desviadas em diversos aquedutos, em pedra, antes de atingirem a linha do caminho-de-ferro e depois
o rio.
33) Esses aquedutos existiam também para protegerem a linha de caminho de ferro de eventuais derrocadas de
um muro de suporte paralelo e sobranceiro à mesma.
34) Os Réus não cuidaram de efectuar as obras necessárias de forma evitar as enxurradas, desmoronamentos e
as inundações dos terrenos inferiores.
35) Tendo antes desviado todas as águas para um ponto único, de onde correm livremente inundando e
destruindo os terrenos por onde passam.
36) Devido ao grande desnível do terreno desde o local onde as águas afluem e os prédios identificados em 5) e
7), é fortíssima a corrente de água que se forma, destruindo árvores e culturas e transportando, lenhas, pedras, entulho,
lixo e areia, que aí ficam depositados.
37) Tais águas aliadas à descida acentuada do terreno cavaram nos prédios identificados em 5) e 7) fendas com
mais de 3m de profundidade.
38) O prédio identificado em 5) era constituído por leiras em socalco, totalmente avinhadas.
39) No limite noroeste dessas leiras com o terreno de monte localizavam-se as aludidas poças e minas.
40) Em virtude das obras efectuadas pelos Réus a corrente de água invadiu aquele prédio e destruiu totalmente
as leiras expostas em socalcos, bem como as culturas aí existentes e as videiras.
41) E destruiu também as poças e as minas.
42) Os terrenos situados a sul da linha de caminho-de-ferro estão parcialmente destruídos.
43) Estando o seu solo carregado de detritos saibrosos, areia e pedras.
44) Os muros de suporte das terras foram destruídos em alguns locais.
45) E muita da terra foi levada pela corrente.

73) Todas as obras foram executadas exclusivamente pela Ré DD, SA..
74) Ao efectuar as obras na A4 a Ré DD, SA seguiu o Projecto de Execução fornecido pela Ré CC.”

Perante essa factualidade veio a Sentença a julgar parcialmente procedente a acção, especificando,
respectivamente, a cada um dos pedidos formulados:

a) Condenar solidariamente as RR. a efectuarem as obras necessárias de condução e derivação das águas de
forma a evitar inundações e enxurradas nos prédios dos AA.
b) Condenar as RR. a pagarem solidariamente aos AA. a quantia já liquidada de € 27.773,23 (vinte e sete mil
setecentos e setenta e três euros e vinte e três cêntimos), sendo € 4.000,00 de danos não patrimoniais e o restante de
danos patrimoniais, acrescida dos juros moratórios legais civis que se vencerem desde a citação dos RR. até integral
pagamento.;
c) Julgar parcialmente improcedente o pedido liquidado da quantia de € 36.083,04 (200.000$00 + 464.000$00 +
1.980.000$00 + 2.160.000$00 + 2.430.000$00) e dele se absolvendo as RR..
d) Condenar solidariamente as RR. a pagarem aos AA. a quantia que se liquidar em execução de sentença, não
superior a esc. 1.726.540$00, para aquisição de terra para reposição
e) Condenar as RR. a pagarem aos AA. a quantia que se liquidar em execução de sentença, não superior a esc.
650.520$00, para construção de tanques e limpeza das minas.
f) Condenar solidariamente as RR., a pagarem aos AA. a indemnização a liquidar em execução de sentença, e
referente:
- despesas que os AA. tiverem de suportar com a aquisição de novas videiras e seu plantio, incluindo-se o custo
das mesmas, dos fertilizantes necessários e o pagamento dos trabalhadores agrícolas para a realização dessa tarefa;
- (danos decorrentes da) diminuição de produção agrícola dos identificados prédios dos AA., referente à produção
hortícola, produção do vinho, batatas e milho desde a presente data até ao momento em que o terreno seja reposto na
situação anterior de forma a ser novamente agricultado e até à efectiva produção e colheita daquelas culturas;
- gastos suportados pelos AA. com a abertura dos caminhos nos seus identificados prédios;
g) Julgar improcedente o pedido de pagamento da diferença do quantitativo constante no orçamento junto para a
quantia efectivamente paga pelos AA., já que neste momento não se sabe a data do início da sua execução.

100
Custas da acção pelos AA. e RR. na proporção do vencimento e decaimento, considerando-se o decaimento da
parte liquidada de € 36.083,04 e, quanto ao pedido ilíquido as custas serão afixadas a final.”

Inconformados com a Sentença vieram a apelar tanto os AA. como cada um dos RR., apresentando as
respectivas alegações.

A Relação julgou:
a) procedente a apelação dos AA. no que respeita ao estabelecimento na sentença recorrida de montantes
máximos na liquidação em execução de sentença, das quantias necessárias à aquisição de terra para reposição dos
terrenos dos AA. e para a construção de tanques e limpeza de minas
b) procedente a apelação da Ré DD
c) improcedente a apelação da Ré CC,
e assim,
- revogou a sentença recorrida na parte em que, juntamente com a CC, fora condenada solidariamente a Ré DD a
pagar as indemnizações aos AA. (confirmando, logicamente, no demais, a Sentença)

A Ré CC recorreu para este Tribunal, interpondo revista e apresentando alegações.


Os AA. fizeram o mesmo.

Houve contra-alegações da Ré DD ao recurso dos AA, . e dos AA. ao recurso da Ré CC.

II. Âmbito dos recursos



Da leitura destas conclusões vemos que as questões que nos estão colocadas são as seguintes:
a) Apreciação da culpa e responsabilidade solidária da Ré DD, SA.
b) Indemnização pelos danos;

II-B) Âmbito de recurso da Ré CC:



Em face de tais conclusões vemos que as questões suscitadas pela Ré CC são as seguintes:

a) Valores dos depoimentos nas alegações quando a matéria de facto se mostre já fixada e não tenha sido
impugnada no recurso para a Relação nos termos do art. 690.º-A do CPC;
b) A força maior, como causa das inundações e o facto notório
c) Relação entre concessionária e construtora tendo em vista a indemnização a terceiros por danos causados a
estes
d) Condenação inoficiosa (ultra petitum)

III. Fundamentação

III - A) Os factos

A Relação manteve inalterados os factos considerados assentes e /ou provados na primeira instância, pelo que
não há necessidade de aqui voltar a transcrevê-los. (Vide Relatório)

III-B) Análise dos recursos

Como as questões suscitadas nos recursos se entrelaçam, e, noutras partes são comuns, vamos tratar cada uma
delas segundo o que nos parece o seu tratamento lógico:

c) Das relações entre concessionária e construtora e destas para com terceiros (recurso de AA. e Ré CC)

A Ré CC era a concessionária para a construção e exploração da A4.


Enquanto isso, a Ré DD foi a empreiteira escolhida pela CC para a construção do troço aqui em causa da referida
Auto-estrada, e com a qual contratou.
Entre a CC (concessionária e dona da obra) e a Ré DD (empreiteira) não existe qualquer relação de comissão:
O empreiteiro actua em nome próprio, enquanto o dono da obra tem o direito de a fiscalizar. (arts. 1207.º e ss. do
CC.)

101
Assim, quando da execução do referido contrato resultem danos para terceiros, não pode trazer-se à colação a
aplicação do disposto no art. 500.º do CC.
Até aqui estamos inteiramente de acordo com as alegações da Ré CC, mas isso mesmo já a Relação havia
referido no Acórdão recorrido.

Está no entanto estabelecida e provada, uma relação de causalidade entre as obras da auto-estrada e os danos
nos prédios dos AA.:
Na verdade, a causa dos danos assentou nos cortes e movimentação de terras, com a alteração da rede de
escoamento de águas superficiais, que, no seu conjunto, alterando o anterior percurso daquelas, não foi feita de molde a
evitar o extravasamento das enxurradas, provocando inundações dos terrenos inferiores, cavando neles fendas com mais
de três metros de profundidade e destruindo estruturas existentes, árvores e culturas, e pejando os prédios com pedras,
areias e detritos.
Não está alegado e muito menos provado pelas RR. que se registassem tais danos anteriormente às obras e à
nova construção.

A questão que se coloca é então a de saber quem é responsável pelos danos e a que título:
A Ré CC?
A Ré DD?
Ou ambas?
Por actos ilícitos ou pelo risco?
Pois bem:

Para responder a estas questões, temos que começar por referir que as relações entre os RR. e terceiros se têm
necessariamente de reger pelas normas atinentes à responsabilidade civil extracontratual, sendo por isso necessário
começar por trazer à colação o disposto no art. 483.º-1 do CC., que refere:
“Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal
destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.”

Os elementos constitutivos do direito de indemnizar, na forma de responsabilidade aquiliana, são portanto


constituídos pelo acto ilícito, culpa ou dolo, dano e nexo causal entre a culpa e o dano. (art. 483.º-1 do CC.).
Ora os AA. não só invocaram como provaram a violação do seu direito de propriedade com a destruição de leiras
e partes de muros de suporte e invasão de suas terras por pedras e detritos, danos esses que foram o resultado necessário
da falta de cuidado com que actuaram ambas as RR. (cfr. ponto 34) na obra atinente às escavações, deslocação de terras
e desvios de condução de águas.
Foi a falta de cuidado das RR., ao efectuarem as obras necessárias de forma a evitar as enxurradas,
desmoronamentos e as inundações dos terrenos inferiores ( cfr. 34.º) que fizeram com que o dano se produzisse.) A Ré CC
no plano de Projecto e Fiscalização, e a Ré DD no plano de Execução, em que também lhe competia providenciar por
evitar danos previsíveis em prédios de terceiros, chamando a atenção da dona da obra.
Na verdade, ao contrário do que acontecia antes das escavações e movimentação de terras, em que as águas
escorriam naturalmente em diversas linhas de água, através de terrenos que se situavam a nível inferior e eram desviadas
em diversos aquedutos, em pedra, antes de atingir a linha de caminho de ferro e o rio, as RR., ao não terem o cuidado de
efectuarem as obras necessárias de forma a evitar enxurradas, desmoronamentos e inundações dos terrenos inferiores
(ponto 34), fizeram com que todas as águas se direccionassem para um ponto único, gerando uma fortíssima corrente, que
veio a destruir árvores e culturas e transportando lenhas, pedras, entulho, lixo e areia, que ficaram depositados nos prédios
dos AA., ao mesmo tempo que destruiu poças, minas e leiras expostas em socalcos, derrubou muros de suporte em alguns
locais, e que, noutras partes dos prédios dos AA. veio a cavar fendas com mais de três metros de profundidade.

Apesar de estar provado que a Ré empreiteira executou a obra de acordo com o projecto (74.º), esse facto não a
desresponsabiliza perante terceiros, podendo apenas vir a desresponsabilizá-la nas relações internas com a dona da obra,
uma vez que na génese da responsabilidade perante os AA. está a culpa (na forma de falta de cuidado, ou negligência) (3):

Ao efectuar as obras a Ré DD, SA seguiu o Projecto de execução fornecido pela Ré CC?


Resposta : Provado, com que ambas actuaram, como tudo consta dos pontos 31 a 35 da matéria de facto
provada

Relativamente à Ré CC, a sua responsabilidade perante terceiro, decorreria, quanto mais não fosse, a título de
risco.
Com efeito, um dos casos de responsabilidade pelo risco previstos na lei é exactamente o do proprietário que em
consequência de escavações venha a afectar os prédios vizinhos. (4)., como resulta do disposto no art. 1348.º-2 do CC.

102
onde se estipula a responsabilidade do “autor delas”, mesmo que tenham sido tomadas as precauções julgadas
necessárias”
Na expressão “autor delas”, tem vindo a entender-se que o “autor das obras” é o proprietário, ou seja, o dono,
mesmo quando as mesmas decorrem sob o regime do contrato de empreitada. (5).
Não se reporta a lei, em qualquer passo à responsabilidade objectiva do empreiteiro, pelo que a responsabilidade
pelos danos, no caso de se não ter provado a culpa, teria de ser imputada integralmente à dona da obra, a título de risco.
(6).”
Abusiva portanto a referência à impossibilidade de a concessionária responder pelo risco.

d) Da medida dos danos (recursos dos AA. e da Ré CC)



IV. Decisão

Em face do exposto, concede-se parcial revista aos recursos dos AA. e da Ré CC, nos pontos já acima
enunciados.
Em consequência, revoga-se o Acórdão recorrido na parte que havia apenas condenado a Ré CC e absolvido a
R.DD, passando a ficar condenadas, solidariamente, ambas as RR. a pagar aos AA a quantia que vier a liquidar-se em
execução de sentença quanto aos danos patrimoniais relativos à necessidade de compra de terra, construção de tanques e
desobstrução de minas, assim como uma indemnização compensatória de 4.000,00 pelo desgosto, angústia e
preocupações vividos pelos AA. (valor este reportado à data da Sentença em primeira instância), com as ressalvas de que
sobre o montante indemnizatório por danos não patrimoniais os juros de mora devem ser contados desde a data da
Sentença e que, a indemnização global a atribuir não pode exceder o valor indicado na acção, sem actualização.
No demais, confirma-se o douto Acórdão recorrido, estendendo embora à Ré DD a condenação imposta à CC
Custas:
- Na Revista dos AA., 2/5 pelos AA. e 3/5 pelas RR.
- Na Revista da Ré CC, 4/5 a cargo desta e 1/5 pelos AA.
- Na acção e apelações, a responsabilidade pelas custas só a final poderá ser apurada, pelo que, a título
provisório, se fixa em 1/5 pelos AA. e 4/5, solidariamente, pelas RR.

Lisboa, 13 de Dezembro de 2007

Mário Cruz (Relator)


Faria Antunes
Moreira Alves

_________________________
(1) A Ré Brisa apresentou a conclusão 27 das suas alegações dizendo estar provado que desde as enxurradas
alegadas nos presentes autos os AA. nunca mais tiveram prejuízos. Ora esse facto, efectivamente, não está provado.
(2) Quesito 75.º da base instrutória:
O projecto de drenagem da A4 apresentado pela Brisa à Ré Bento Pedroso Construções, SA apresentava
deficiências?
Resposta: Não provado.
Não está provado, no entanto, em qualquer parte, que o Projecto de drenagem estivesse perfeito, sem
deficiências.
(3) Quesito 74.º da base instrutória:
Ao efectuar as obras a Ré Bento Pedroso Construções, SA seguiu o Projecto de execução fornecido pela Ré
Brisa?
Resposta: Provado.
(4) Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol III, 2.ª edição revista e aumentada, pg. 183.
(5) Ac do STJ de 96.05.28, CJ/STJ, 1996, 2.º-pg. 91; Ac.RL de 95.02.23, CJ, 1995, 1.º,-pg. 134; Ac. RP. de
97.12.02, CJ 5.º-212.
(6) De resto, já na Base LIII do DL n.º 315/91, de 20 de Agosto (diploma onde se estruturaram as normas que
definiam os direito, deveres e se estabelecia o quadro em que devia movimentar-se a concessionária, designadamente, nas
suas relações com empreiteiros e terceiros) se referia, no seu n.º 1, - sem que aí se fizesse qualquer distinção entre
responsabilidade a título de culpa ou risco - que
“1. Serão da inteira responsabilidade da concessionária todas as indemnizações que, nos termos da lei, sejam
devidas a terceiros em consequência de qualquer actividade decorrente da concessão.”

Acórdão do STJ (Ex.mo Cons.º Salvador da Costa) de 22.4.2008, no Pr.º 08B626:

103
1. Tendo a Relação deixado de conhecer no recurso de apelação da alegação de um dos recorrentes sobre o
âmbito quantitativo da indemnização por virtude de ter concluído pela inexistência do facto ilícito e culposo por aquele
perpetrado, não é caso de ampliação do recurso de revista interposto pela outra parte para prevenir a possibilidade do seu
provimento na parte recorrida, porque do que se trata é de substituição do tribunal ad quem ao tribunal recorrido a que se
reportam os artigos 715º, nº 2, e 726º do Código de Processo Civil.
2. O Supremo Tribunal de Justiça tem competência funcional para conhecer da questão da presunção de culpa
na actividade perigosa de construção civil de que resultaram danos reparáveis.
3. É actividade perigosa para efeito do disposto no artigo 493º, nº 2, do Código Civil aquela que, face às
circunstâncias envolventes, implica para outrem uma situação de perigo agravado de dano face à normalidade das coisas,
o que não ocorre com os trabalhos de construção civil em geral.
4. Mas uma particular actividade de construção civil é susceptível de ser qualificada de actividade perigosa para
aquele efeito face a específico circunstancialismo envolvente, por exemplo a escavação por máquinas pesadas na
proximidade das fundações de prédio contíguo, de construção antiga, assente em terreno lodoso, já assaz deteriorado pelo
seu tempo de duração.
5. A circunstância de a empreiteira ter cumprido o projecto de construção fornecido pelo dono da obra e sob a
fiscalização deste, e de aquela ter usado técnicas normalmente usadas em tal tipo de construção, é insusceptível, só por si,
face a omissões de diligências tendentes a prevenir o dano, de implicar o afastamento da referida presunção de culpa.
6. O dono da obra, independentemente de culpa, é responsável pelos danos causados a terceiros pela actividade
de escavação realizada pelo empreiteiro, em solidariedade com este último no âmbito da responsabilidade civil extra-
contratual a título de culpa.
7. No quadro da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito, são devidos juros de mora desde a data da
citação dos demandados não obstante algumas das verbas integrantes do dano tenham sido pagas depois disso.
8. A cláusula do contrato de seguro do ramo obras e montagens que exclui da cobertura as despesas com
medidas adicionais de segurança ou protecção a realizar em quadro de necessidade durante a execução dos trabalhos,
interpretada em conformidade com o princípio da impressão de um declaratário normal, não abrange as relativas aos a
trabalhos de escoramento realizados pelo lesado a fim de prevenir a ruína iminente do seu prédio.
9. Há nexo de causalidade cumulativa adequada e relevante entre o dano global produzido num edifício contíguo
ao espaço em que ocorreu a actividade de construção civil de demolição por determinado empreiteiro e a de escavação de
fundações e de construção do novo edifício por empreiteiro diverso.
10. À míngua de factos assentes suficientes para a determinação do quantum indemnizatório por equivalente
pecuniário, se não se revelar viável a prova de factos relevantes para o efeito no subsequente incidente de liquidação, deve
o mesmo ser calculado na própria sentença com base nos factos disponíveis e em juízos de equidade, sem abstrair do
estado de deterioração em que o edifício danificado se encontrava e a referida causalidade cumulativa.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Oliveira Rocha) de 5.6.2008, no Pr.º 08B1465:

I - A actividade de construção e obras, só por si e abstraindo dos meios utilizados, não é uma actividade que
revista perigo especial para terceiros e, consequentemente, não constitui em regra uma actividade perigosa.
II – Porém, em certos casos, a natureza dessa mesma actividade, os meios utilizados, a idade dos prédios
contíguos e os materiais utilizados na sua construção, impõe sua qualificação como sendo perigosa.
III – O art. 1348.º do CC corresponde um dos casos excepcionais de responsabilidade civil extracontratual
resultantes de uma actividade lícita, em que se prescinde da ilicitude e da culpa: a lei impõe ao autor das escavações,
embora lícitas, que indemnize qualquer proprietário vizinho lesado pela obra, ainda que tenham sido adoptadas as cautelas
que se consideraram exigíveis, atendendo, assim, a critérios de razoabilidade.
IV - É ao proprietário do prédio onde é feita a obra que se pretende atribuir, no n.º 2 do art. 1348.º do CC, a
obrigação de indemnizar os proprietários vizinhos.
V - Daí que seja totalmente irrelevante, na perspectiva do vizinho lesado, que a obra seja levada a cabo
pessoalmente pelo dono do prédio (ou através de pessoal que dele dependa por vínculo laboral) ou antes por empreiteiro
contratado (sob a direcção do próprio empreiteiro e sem vínculo de subordinação ao dono da obra): em qualquer das
hipóteses, o dono responde pelos mencionados danos.

1350º - Ruína de construção. Relacionar com os art. 492º, nº 1 e 493º, nº 1.


Se as escavações ou ruína de construção causarem danos em estabelecimento instalado em
prédio vizinho, pode o locatário, ao abrigo do disposto no art. 1037º do CC, pedir a indemnização
adequada (Col. 98-II-98).

104
1351º - Escoamento natural das águas – Col. STJ 2004-I-107- não por mão do homem ou de
águas sujas que não são águas naturais - Col. STJ 95-III-106.

- Escoamento natural das águas


- Causalidade adequada

(Acórdão do STJ, de 9 de Março de 2004, na Col. Jur. STJ 2004-I-107)

I - A violação do dever do dono dos prédios inferiores de receber as águas, terras e entulhos que, naturalmente e
sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, fazendo obras que estorvem o escoamento (artigo 1351º do CC) é
fonte de responsabilidade civil desde que, nos termos gerais, seja culposa e geradora de danos.
II - A nossa lei consagra a teoria da causalidade adequada na sua variante negativa.
III - Um facto é causal de um dano quando é uma de entre várias condições sem as quais o dano não se teria
produzido.
IV - Um bom pai de família, o proprietário normalmente diligente e respeitador do alterum non laedere, não faz
obra de forma a enterrar o prédio do vizinho, não faz um terrapleno impeditivo do curso normal das águas que, em vez de
correrem para o mar, refluem para o rés-do-chão do imóvel nesse terreno construído.

Se o escoamento de águas (naturais, não sujas) se der por obra do homem poderá constituir-
-se servidão de escoamento, nos termos gerais.

1356º - Se onerado o prédio com servidão de passagem, continua o proprietário a poder


exercer o direito de tapagem, desde que forneça uma chave ao dono do prédio dominante - BMJ 446-
257.

1360º a 1365º - construções e edificações, servidão de vistas e de estilicídio, janelas, frestas,


seteiras e óculos para luz. Estudo de H. Mesquita na RLJ 128-119 e ss, a estudar aquando das
servidões.

1370º e ss - paredes e muros de meação.

A propriedade tal como regulada no CC tem por objecto coisas corpóreas, móveis ou imóveis -
1302º - estando outras formas de propriedade, como os direitos de autor e a propriedade industrial,
sujeitas a legislação especial, com aplicação subsidiária do CC - 1303º - Col. Jur. 01-V-198.

Art. 1383º - Sobre caminhos, atravessadouros, interpretação restritiva do Assento de 19.4.89,


no DR I, de 2.6.89 (São públicos os caminhos que desde tempos imemoriais estão no uso directo e
imediato do público), pode ver-se o Ac. de 15.6.2000, no BMJ 498-226:

I - O assento de 19 de Abril de 1989, do Supremo Tribunal de Justiça, deve ser interpretado restritivamente, no
sentido de a publicidade do caminho exigir ainda a sua afectação à utilidade pública, ou seja, o uso do caminho visar a
satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância, e, ainda, de forma extensiva, quando se afirma que deixou
subsistir, em alternativa, o critério segundo o qual é público o caminho que, pertencendo a entidade pública, esteja afecto à
utilidade pública.
II - A interpretação do assento de 19 de Abril de 1989, acolhida na conclusão anterior, permite estabelecer a
distinção entre caminho público e atravessadouro ou atalho; nos seguintes termos:
- Um caminho que esteja no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, mesmo que atravesse
prédio particular, será público se estiver afectado à utilidade pública, ou seja, se visar a satisfação de interesses colectivos
de certo grau ou relevância;
- Quando um caminho se destine apenas a fazer a ligação entre caminhos públicos, através de prédio particular,
com vista ao encurtamento não significativo de distâncias, deve classificar-se como atravessadouro.

105
1. João … instaurou acção declarativa ordinária contra a Junta de Freguesia de Nogueira pedindo que esta fosse
condenada:
a) A reconhecer que o autor tem direito de colocar marcos delimitativos na sua propriedade onde entender,
designadamente no local exacto onde se encontravam os que foram criminosamente destruídos;
b) A reconhecer que o autor tem o direito de vedar ou tapar o prédio, designadamente a entrada do atalho para a
Rua Nova na parte alargada pela Junta de Freguesia; c) A reconhecer que o autor tem o direito de plantar vides ou árvores,
onde entender, no seu prédio, designadamente na bordadura de todos os caminhos que construiu ou venha a construir no
seu prédio;
d) A reconhecer qu o autor tem o direito de impedir a entrada no seu prédio dos elementos que integram a Junta
de Freguesia, ou de outros a seu mando, bem como máquinas da Junta de Freguesia ou a elas cedidas.

Para tal invocou a violação do direito de propriedade, praticada pela ré, que, segundo diz, lhe entrou num terreno
que lhe pertence, destruiu e arrancou esteios que suportam uma ramada de vides, destruiu marcos do terreno, arrancou
vinha e levantou os esteios, deles retirando a rede de arames, e levou acções sobre uma parte do terreno, metendo nele
uma máquina escavadora que lhe foi cedida pela Câmara Municipal de Lousada, abrindo, alargando e destruindo um
caminho no seio da propriedade, aterrou-lhe uma vala que o autor ali tinha construído, sendo tudo feito sem o
consentimento e contra a vontade do autor.

2. Contestou a ré, alegando que a sua actuação se limitou a arranjar um caminho público que corria atravessando
uma propriedade do autor e a desobstruí-lo de terras ou obstáculos colocados pelo mesmo autor, os quais impediam o
trânsito das pessoas pelo enunciado caminho.
Deduziu reconvenção, onde pediu que fosse reconhecida a publicidade do caminho existente na parte em que se
processa junto à mata do Vassoural e que o autor-reconvindo fosse condenado a abster-se da prática de quaisquer actos
que ponham em causa a sua plena utilização pelo público.

3. Procedeu-se a audiência de julgamento, tendo sido proferida sentença a julgar parcialmente procedente a
acção e procedente a reconvenção.

4. O autor apelou. A Relação do Porto, por acórdão de 17 de Dezembro de 1999, revogou a sentença recorrida
na parte em que vinha vencido o autor, substituindo-a por outra em que condenou a ré:
a) A reconhecer que o autor tem direito de colocar marcos delimitativos da sua propriedade, onde entender,
designadamente no local exacto donde foram retirados;
b) A reconhecer que o autor tem direito de vedar ou tapar o prédio, designadamente a entrada do atalho para a
Rua Nova na parte alargada pela Junta de Freguesia;
c) A reconhecer que o autor tem direito de plantar vides ou árvores, onde entender,

Questões a apreciar no presente recurso.
- a primeira, a qualificação jurídica do «atalho em causa»: caminho público ou atravessadouro;
- a segunda, se «o atalho em causa», qualificado como atravessadouro, deve considerar- -se excluído da
abolição do artigo 1384.° do Código Civil.
A segunda questão apresenta-se como nova -- com manifesta violação do princípio da estabilidade da instância,
no que concerne à reconvenção, artigo 268.° do Código de Processo Civil - de sorte que este Supremo Tribunal de Justiça
não pode «reapreciar» o que não chegou a ser «apreciado» pelas instâncias.
Daqui só a apreciação da primeira questão.

A qualificação jurídica do «atalho em causa»: caminho público ou atravessadouro.


1. Posição da Relação e das partes.
a) - A Relação do Porto decidiu não ser de aceitar o entendimento da sentença recorrida (o caminho em causa
ser um caminho público, alicerçando a sua fundamentação no assento do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de Abril de
1989 - Boletim do Ministério da Justiça, n ° 386, págs. 121), apoiado no parecer do Professor Henrique Mesquita e no
acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de Novembro de 1993, que interpretaram restritivamente o assento, pois, de outro
modo, tem de se considerar todos os atravessadouros com posse imemorial como caminhos públicos; quando o próprio
Código Civil os considera abolidos quando não transformados em servidões - artigo 1383.°
Daqui concluir que o «caminho em causa» dever ser qualificado como atravessadouro e dado não se encontrar
provado um dos requisitos da aquisição da dominialidade: a afectação à utilidade pública, ou seja, à satisfação de
interesses colectivos.

b) - A ré/recorrente Junta de Freguesia de Nogueira sustenta dever qualificar-se o caminho em causa como
caminho público, porquanto nunca se colocou em crise a afectação deste caminho à utilidade pública, de sorte que se

106
coloca em questão o conceito de coisas públicas: o artigo 380 ° do Código Civil de 1867 continua ainda em vigor, de sorte
que basta o uso directo e imediato pelo público para se considerar uma coisa pública, estando afecto a um fim de utilidade
pública inerente, derivado do facto de ela ser desde tempos imemoriais destinada ao uso de todas as pessoas,
independentemente da apropriação ou produção por pessoa colectiva de direito público.

c) O autor/recorrido sustenta que o caminho em causa deve ser qualificado como atravessadouro por, por um
lado, não haver nos autos qualquer prova de que a via em causa estivesse inserida no domínio público por actos de
apropriação da recorrente, sendo certo que para haver inversão do título de posse seria necessário que o recorrente
tivesse agido contra a vontade do recorrido, o que manifestamente não foi provado - cfr. artigos 1263.° e seguintes do
Código Civil.
Por outro lado, traduzindo-se os caminhos públicos e os atravessadouros (ou atalhos) em vias de comunicação
afectadas ao uso de qualquer pessoa, é evidente que o simples uso pelo público, ainda que imemorial, não pode bastar
para qualificar determinada passagem como caminho público, sob pena de todos os atravessadouros com longa duração
terem de ser qualificados como dominiais em manifesta violação dos artigos 1383.° e 1384.° do Código Civil.

Que dizer?
O assento de 19 de Abril de 1989 (são públicos os caminhos que desde tempos imemoriais estão no uso directo e
imediato do público - Boletim do Ministério da Justiça, n.° 386, pág. 121) veio pôr cobro (aparentemente) à divergência que,
desde há muito, se verificava na jurisprudência.
Segundo uma corrente, para que um caminho pudesse ser considerado público seria necessário verificar-se não
só a utilização directa e imediata pelo público, mas, ainda, a respectiva «construção e manutenção pelo Estado ou
autarquia local ou, segundo fórmula mais simples, que ele fosse produzido ou apropriado por pessoa colectiva do direito
público» - cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Dezembro de 1962, Boletim do Ministério da Justiça, n.°
122, pág. 173, e de 10 de Abril de 1969, Boletim do Ministério da Justiça, n.° 169, pág. 203.

Segundo outra corrente, para que certo caminho fosse qualificado como público bastaria o facto de ele estar a ser
usado directa e imediatamente pelo público desde tempo imemorial - cfr. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24
de Março de 1477, Boletim do Ministério da Justiça, n.° 252, pág. 156; de 26 de Março de 1985, Boletim do mistério da
Justiça, n ° 345, pág. 366; de 2 de Dezembro de 1992, Boletim do Ministério da.7ust ça, n.° 422, pág. 355; e de 1-9 de
Fevereiro de 1998, Boletim do Ministério da Justiça, n.° 474, pág. 481.

O assento de 19 de Abril de 1989 - hoje simples acórdão de uniformização de jurisprudência, artigo 732.°-A
Código de Processo Civil - só aparentemente pôs cobro à referida divergência jurisprudencial, pois, interpretado e seguido
à letra conduziria, conforme sublinha Henrique Mesquita, ao seguinte resultado: «todos os atravessadouros com posse
imemorial teriam de ser qualificados como caminhos públicos, e o artigo 1383.° do actual Código Civil, onde
expressamente se declara, no seguimento do que estabelecera já, no século XVIII, o Alvará de 9 de Julho de 1773, que se
consideram abolidos os atravessadouros, por mais antigos que sejam, desde que não se mostrem estabelecidos em
proveito de prédios determinados, constituindo servidões”, ficasse sem qualquer campo de aplicação e tornar-se-ia letra
morta» - cfr. parecer junto com as alegações do autor, no recurso de apelação, a fls. 322/344.

No mesmo sentido a declaração de voto do Conselheiro Baltazar Coelho quando escreve: «o assento acabado de
tirar manterá, qualificando-os como caminhos públicos, inúmeros atravessadouros, com manifesto desrespeito do
preceituado do artigo 1383.° do Código Civil, que, por razões ponderosas e conhecidas, acabou com aquela forma arcaica
e economicamente injustificável de limitação ao direito de propriedade», cfr. Boletim Ministério da Justiça, n ° 386, pág.125.

Pires de Lima e Antunes Varela, a propósito da corrente jurisprudencial que fez vencimento no assento de 19 de
Abril de 1989, escreveram:
«Traduzindo-se os caminhos públicos e os atravessadouros (ou atalhos) em vias de comunicação afectadas ao
uso de qualquer pessoa, é evidente que o simples uso pelo público, mesmo que imemorial, não pode bastar para qualificar
determinada passagem como caminho público, sob pena de todos os atravessadouros com longa duração terem se der
qualificadas como dominiais, em manifesta violação do preceituado nos artigos 1383 ° e 1384.°, que apenas ressalvam os
que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade.»
E acrescentam:
«Sempre que [...] o público faça passagem através de um prédio particular, em regra para atalhar ou encurtar
determinados trajectos ou distâncias, deve entender-se que se trata de um atravessadouro, sujeito à cominação do artigo
1383.°, salvo se se provar que a faixa de terreno por onde se faz a passagem entrou no domínio público, através de algum
dos títulos por que pode ser adquirido a dominialidade», cfr. Código Civil Anotado, vol. III, 2.ª ed., págs. 281 /282.

107
Segundo a doutrina, a aquisição da dominialidade pública depende, em regra, de dois requisitos: pertencer a
coisa a entidade de direito público e ser afectada à utilidade pública, podendo esta resultar de um acto administrativo ou de
uma «prática consentida pela Administração, em termos de manifestar a intenção de consagração ao uso público» [...] e
aquela utilidade pública, que consiste na aptidão das coisas para satisfazer necessidades colectivas, traduz o verdadeiro
fundamento da sua publicidade», cfr. Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, vol. II, 10 e ed., págs. 886/888.
Ora, se um dos requisitos essenciais da dominialidade é a afectação do caminho à utilidade pública, ou seja, à
satisfação de relevantes interesses colectivos, estamos em inteira sintonia com a doutrina do acórdão deste Supremo
Tribunal de Justiça de 10 de Novembro de 1993: o assento de 19 de Abril de 1989 deve ser interpretado restritivamente, no
sentido de a publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afectação à utilidade pública, ou seja, o uso do caminho visar a
satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância, e, ainda, de forma extensiva quando afirma que deixou
subsistir, em alternativa, o critério segundo o qual é público um caminho pertencente a entidade pública e estar afecto à
utilidade pública - cfr. Boletim do Ministério da Justiça, n.° 431, pág. 300, e Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do
Supremo Tribunal de Justiça, ano I, tomo III, pág. 135.

Daqui continuar a ser admissível a distinção entre caminhos públicos e atravessadouros nos seguintes termos:
um caminho, no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular será público
se estiver afectado à utilidade pública (ou seja, visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância); de
contrário (na falta desse requisito) e, em especial, quando se destinem apenas a fazer a ligação entre caminhos públicos,
por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distâncias, os caminhos devem classificar-se como
atravessadouros.

Perante o resultado interpretativo dado ao assento de 19 de Abril de 1989 quer pelo acórdão deste Supremo
Tribunal de 10 de Novembro, quer por Henrique Mesquita, a merecer o nosso inteiro acolhimento, conforme o exposto, não
pode oferecer dúvidas que o caminho em causa reveste a natureza de simples atravessadouro ou atalho.
Basta atentar na matéria fáctica fixada, nomeadamente:
- O acesso ao caminho, pelo lado norte, bem como a saída do caminho para fora do prédio rústico do autor,
denominado «Mata do Vassoural», faziam-se através de um atalho que corria entre dois prédios pertencentes a um tal
Jerónimo: ora, um caminho público tem de ter acesso e saída através de outra via dominial;
- Esse caminho sempre estabeleceu ligação dos lugares do Souto, onde se localiza o campo de futebol e a escola
primária, ao lugar da Rua Nova e EN 207: ora, estes locais tinham e continuam a ter acesso fácil através de uma estrada
camarária que passa ao lado do prédio rústico do autor, denominado «Mata do Vassoural»;
- O caminho em causa era muito utilizado pelas crianças para se dirigirem à escola primária e demais público
para acesso à igreja e campo de futebol: ora, o que não satisfazia (nem satisfaz) interesses colectivos de certo grau ou
relevância.

Do exposto poderá extrair-se que:

1) - O assento de 19 de Abril de 1989 - hoje simples acórdão de uniformização de jurisprudência - deve ser
interpretado restritivamente, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afectação a utilidade pública, ou
seja, o uso do caminho visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância, e, ainda, de forma extensiva
quando afirma que deixou subsistir, em alternativa, o critério segundo o qual é público um caminho pertencente à entidade
pública e estar afecto à utilidade pública;
2) - O assento de 19 de Abril de 1989 - hoje simples acórdão de uniformização de jurisprudência - permite, face à
interpretação dada, a distinção entre caminhos públicos e atravessadouros nos seguintes termos:
- Um caminho no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio particular
será público se estiver afectado à utilidade pública, ou seja, visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou
relevância;
- De contrário (na falta desse requisito) e, em especial, quando se destinem a fazer a ligação entre caminhos
públicos, por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distâncias, os caminhos devem classificar-se
como atravessadouros.

Face a tais conclusões, em conjugação com a matéria fáctica fixada, poderá precisar-se que:
1) O caminho em causa reveste a natureza de simples atravessadouro ou atalho;
2) O acórdão recorrido não merece censura dado ter observado o afirmado em 1.

Termos em que se nega a revista.


….
Lisboa, 15 de Junho de 2000.
Miranda Gusmão (Relator) - Sousa Inês - Nascimento Costa.

108
Este Acórdão está favoravelmente comentado na RLJ 134-366 a 371 e 135-62 a 64.

Em Outubro de 2004, no Proc. 2576/04, 7ª (Cons.º Araújo Barros) e sobre esta matéria o STJ
foi proferido o Acórdão assim sumariado:
1. Só pode conceber-se a existência de um atravessadouro quando o caminho constitui um acesso a lugares de
manifesta utilidade e atravessa prédio particular, sendo que o seu leito faz parte do prédio particular pelo qual passa.
2. O Assento do STJ de 19 de Abril de 1989, que fixou jurisprudência no sentido de que “são públicos os
caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”, deve ser interpretado restritivamente
de forma a considerar-se que a publicidade dos caminhos exige ainda a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a
sua utilização tenha por objectivo a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância.
3. Para a caracterização da dominialidade pública de um caminho há que atender a todos os factos reveladores
do interesse público e do uso directo, imediato e imemorial do caminho pelo público, desde o início da afectação a tal uso.
4. Não basta a posterior falta de utilização pelo público para determinar a desafectação tácita da finalidade
colectiva do bem público, pela razão simples de que tal falta de utilização pode resultar de factos diferentes do
desaparecimento da utilidade pública a cuja satisfação o bem público se encontrava afecto.
5. A desafectação tácita das coisas públicas apenas será de aceitar nos casos em que exista uma mudança de
situações ou de circunstâncias que haja modificado o condicionalismo de facto necessariamente pressuposto pela
qualificação jurídica.
6. Constituindo a utilização de um caminho público pela colectividade dos seus utilizadores um direito dessa
colectividade, que assim só tem o ónus da prova do carácter público do aludido caminho (art. 342º, n.º 1, do C. Civil), é
sobre quem pretenda excluir tal direito que recai o ónus da prova daquela relevante modificação (n.º 2 do mesmo art. 342º).
7. A desafectação tácita determina a integração do bem anteriormente público no domínio privado da entidade
pública respectiva, passando o leito do caminho a integrar o domínio privado da pessoa colectiva pública a que pertencia.
8. No que concerne à causa de pedir o nosso direito (art. 498º, n.º 4, do C. Proc. Civil) consagrou a denominada
teoria da substanciação, de harmonia com a qual aquela deve entender--se constituída pelos factos concretos que integram
a situação a apreciar independentemente da qualificação jurídica que lhes venha atribuída, a qual, como se infere do art.
664º do mesmo diploma, é ao tribunal que, em último termo, cabe ou compete determinar ou apurar.
9. A acção em que uma Autarquia peticiona, face a uma alegada violação do seu direito de propriedade, que se
declare que é dona e legítima possuidora de um caminho (que qualifica como público) e que se condene a ré a reconhecer
esse direito, a abster-se de o perturbar e, ainda, a repor o caminho no estado em que se encontrava, há-de proceder ainda
que se conclua que houve desafectação tácita do domínio público, porquanto o caminho continua a pertencer-lhe, embora
no domínio privado.

O Código Civil actual não define coisa pública, limitando-se a referir, no nº 2 do art. 202º, que se consideram “fora
do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio
público e as que são, por natureza, insusceptíveis de apreensão individual”.
Face a tal omissão, nomeadamente no tocante aos caminhos, veio a jurisprudência a divergir quanto aos
requisitos necessários para a sua qualificação como de natureza pública: assim, enquanto em alguns casos se entendia
bastar, para que os caminhos fossem considerados públicos, que estivessem a ser usados directa e imediatamente pelo
público, noutros foi defendido que, para o mesmo efeito, os caminhos tinham, não só que ser de utilização directa e
imediata pelo público, mas ainda deviam ter sido produzidos ou legitimamente apropriados por pessoa colectiva de direito
público.
Para terminar com a divergência existente, foi proferido o Assento do STJ de 19 de Abril de 1989 (2) que fixou
jurisprudência no sentido de que “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato
do público”.
Tal critério orientador tem vindo, porém, a ser interpretado, de modo predominante, de forma a considerar-se que
“a publicidade dos caminhos exige ainda a sua afectação a utilidade pública, ou seja, que a sua utilização tenha por
objectivo a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância”.
“Essa interpretação restritiva é, aliás, a que se encontrava na mente dos ilustres signatários do Assento, pois é
isso mesmo o que resulta do facto de o corpo do acórdão que o integra referir expressamente que quando a dominialidade
de certas coisas não está definida na lei, como sucede com as estradas municipais e os caminhos, essas coisas serão
públicas se estiverem afectadas de forma directa e imediata ao fim de utilidade pública que lhes está inerente. Nem outra
coisa se compreenderia: é que o uso público relevante para o efeito é precisamente o que pressupõe uma finalidade
comum desse uso. Isto é, se cada pessoa, isoladamente considerada, utiliza o caminho ou terreno apenas com vista a um
fim exclusivamente pessoal ou egoístico, distinto dos demais utilizadores do mesmo caminho ou terreno, para satisfação
apenas do seu próprio interesse sem atenção aos interesses dos demais, não é a soma de todas as utilizações e

109
finalidades pessoais que faz surgir o interesse público necessário para integrar aquele uso público relevante. Por muitas
que sejam as pessoas que utilizem um determinado caminho ou terreno, só se poderá sustentar a relevância desse uso por
todos para conduzir à classificação de caminho ou terreno público se o fim visado pela utilização for comum à generalidade
dos respectivos utilizadores, por o destino dessa utilização ser a satisfação da utilidade pública e não de uma soma de
utilidades individuais”.
Assim, como se refere no aludido acórdão de 13/01/2004, “para se decidir da relevância dos interesses públicos a
satisfazer por meio da utilização do caminho ou terreno para este poder ser classificado como público, há que ter em conta,
em primeira linha, por um lado, o número normal de utilizadores, que tem de ser uma generalidade de pessoas, como é a
hipótese de uma percentagem elevada dos membros de uma povoação, e, por outro lado, a importância que o fim visado
tem para estes à luz dos seus costumes colectivos e das suas tradições e não de opiniões externas”.

Acórdão do STJ (Ex.mo Cons.º S. Povoas) de 13.3.2008, no Pr.º 08A542:

1) O valor processual da causa corresponde à soma dos valores dos pedidos da acção e reconvencional. o qual
se mantém inalterado independentemente do resultado do pedido cruzado.

2) Havendo absolvição da instância reconvencional e prosseguindo a lide quanto ao pedido da acção, mantém-se
o valor para efeitos da alçada, ainda que o pedido principal tenha um valor não permissivo do recurso, desde que se mostre
salvaguardado o valor da sucumbência.

3) O Supremo Tribunal de Justiça está limitado nos seus poderes sobre a matéria de facto, âmbito em que, de
harmonia com o disposto nos artigos 26.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – Lei n.º 3/99, de
13 de Janeiro), e 722.º,n.º2 e 729.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, só lhe é licito intervir em questão prova
vinculada ou o desrespeito de norma reguladora do valor legal das provas.

4) Enquanto tribunal de revista, com competência restrita à matéria de direito, e só nos limitados termos
consentidos pelo n.º2 dos artigos 722.º e 729.º lhe sendo consentido que intervenha em matéria de facto, a possibilidade de
debater questões de facto perante este Tribunal confina-se ao domínio da prova vinculada, isto é, da única que a lei admite
para prova do facto em causa, e ao da força probatória legalmente atribuída a determinado meio de prova.

5) São públicos os caminhos que desde tempos imemoriais estão no uso directo e imediato do público em geral
para satisfação de relevantes fins de utilidade pública, relevância que, assim restringindo o âmbito do Assento de 19 de
Abril de 1989, quanto à afectação, é de apreciar casuisticamente no cotejo com as circunstâncias e o “modus vivendi”
locais.

6) Tempo imemorial é um período tão antigo que já não está na memória directa, ou indirecta – por tradição oral
dos seus antecessores – dos homens, que, por isso, não podem situar a sua origem.

7) Há desafectação tácita quando por razões de desnecessidade – que não de impossibilidade física ou legal – o
bem deixa de ser usado por todos para relevantes fins de utilidade pública, não sendo suficiente, para tal, uma mera não
utilização.

8) Verificada a desafectação o bem passa a integrar o domínio privado do Estado, ou de outra pessoa colectiva
de utilidade pública.

9) A satisfação de interesses colectivos relevantes – que não uma mera soma de interesses individuais de
conveniência – é ponto inicial do “distinguo” entre caminho público e atravessadouro.

10) Os atravessadouros ou atalhos são caminhos pelos quais o público faz passagem através de prédios
particulares, com o fim essencial de encurtar o percurso entre determinados locais, sendo os seus leitos parte integrante
dos prédios atravessados. Já os caminhos públicos destinam-se a estabelecer ligações de maior interesse, em geral entre
povoações, e os respectivos leitos fazem parte do domínio público.

11) Ou seja, um caminho, no uso directo e imediato do público, desde tempos imemoriais, que atravesse prédio
particular, será público se ocorrer afectação naqueles termos; mas se visar apenas o encurtamento, não significativo, de
distâncias, deverá classificar-se como atravessadouro, se o leito pertencer ao prédio atravessado.

A propriedade adquire-se por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão -
1316º; o art. 1317º indica o momento da aquisição da propriedade em cada uma destas formas. No

110
direito legal de preferência, a aquisição por sentença tem efeitos ex tunc, desde a data da alienação
em que, com êxito, se preferiu.

Negócios Jurídicos reais quoad effectum - produzem por si efeitos reais (408º, nº 1, 879º, al.
a), 954º, a) e 1317º, a) - e quoad constitutionem: para o negócio se formar validamente deve haver
entrega da coisa (traditio); exemplos característicos são, como já visto, a doação verbal de coisas
móveis (artº 947.°, n.° 2), o contrato de penhor (artº 669º, n.° 1), de depósito (art. 1185º).

Atenção, naqueles, à necessidade de registo para que sejam eficazes em relação a terceiros -
408º, nº 1, CC e 5º do CRP - A. Varela, na RLJ vista acima.

Usucapião - estudada aquando da posse.


Ocupação - 1318º a 1324º
Sucessão por morte - 2024º e ss; 2031º, 2050º.

Discute-se se a partilha tem carácter constitutivo ou meramente declarativo. P. Coelho defende esta última tese,
ensina que a partilha tem carácter meramente declarativo, é um negócio certificativo duma situação anterior, concretizando
em bens determinados um direito a uma parte ideal da herança que já existia antes dela.
Assim sendo, a partilha não será justo título para o efeito da aquisição por usucapião. O justo título para o efeito
será apenas a sentença homologatória da partilha. (Vide Lopes Cardoso, "Partilhas Judiciais", 3ª ed. II, pág. 504).

Acessão - 1325º a 1343º

A acessão - que ocorre quando com a coisa que é propriedade de alguém se une e incorpora
outra que lhe não pertencia (1325º) - pode ser natural se a união ou incorporação resultam
exclusivamente da acção de forças da natureza ou industrial se há, ainda que não exclusivamente,
intervenção do homem - 1326º. E será mobiliária ou imobiliária conforme a natureza das coisas a que
respeita. A acessão natural é sempre imobiliária (1327º a 1332º), enquanto que a industrial pode ser
mobiliária ou imobiliária.

A mobiliária desdobra-se em união ou confusão (1333º a 1335º) e em especificação (1336º a


1338º).
Interessa-nos, sobretudo, considerar a acessão industrial imobiliária regulada nos art. 1340º a
1343º.

... a extinção do direito do proprietário do solo não pode considerar-se ditada apenas por razões de interesse
particular. O fundamento ou motivo da acessão não reside tão-só na utilidade privada do beneficiário da acessão, mas
também no interesse público da resolução normativa de um conflito de direitos e no interesse, igualmente público,
subjacente ao princípio da tipicidade dos direitos reais, que exige que não permaneçam duas propriedades sobrepostas
fora dos casos expressamente previstos na lei, em que as vantagens do fraccionamento vertical do direito de propriedade
excedem os inconvenientes que podem surgir dos conflitos provocados pela sobreposição daí resultante.
Este interesse público prevalece, naturalmente, sobre o interesse particular do adquirente, a quem - lembre-se -
não é concedida, segundo a interpretação perfilhada pelo Supremo Tribunal de Justiça, qualquer possibilidade de evitar,
em concreto, a acessão, dado que esta opera automaticamente, uma vez verificada a incorporação da obra no solo - TC,
DR, II, de 30 de Outubro de 2.000, que julgou não inconstitucional esta forma de aquisição da propriedade que se não
confunde com a expropriação, mesmo por utilidade particular, com a indemnização fixada no valor que o prédio tinha antes
das obras.

Nela está em causa a aquisição de bens por efeito da construção de obras ou da feitura de
sementeiras ou plantações, quando ao seu autor não pertencerem o terreno ou materiais, sementes ou
plantas usadas, ou ambas as coisas. Os bens a que a aquisição respeita tanto podem ser o terreno
como os materiais, sementes ou plantas.

111
Embora o art. 1317º, al. d), disponha que a aquisição do direito de propriedade por acessão
tem lugar no momento da verificação do respectivo facto, uma vez verificada a incorporação (P. Lima -
A. Varela, Anotado, III), o certo é que o regime da acessão não impõe ao beneficiário a aquisição
automática do direito de propriedade sobre a coisa, antes atribui ao beneficiário a faculdade de
aquisição, um direito potestativo que ele exercerá ou não e, em regra, contra o pagamento de
indemnização à outra parte e verificados os pressupostos legais (maior valor da incorporação, boa fé,
etc.) - O. Ascensão, Menezes Cordeiro, Carvalho Fernandes.
Defendendo a aquisição automática, o STJ na Col. 96-I-154, a seguir referido.

Importa distinguir entre acessão e benfeitoria.

Numa primeira e sumária análise, a benfeitoria consiste num melhoramento feito por quem
está ligado à coisa em consequência de uma relação ou vínculo jurídico, ao passo que a acessão é um
fenómeno que vem do exterior, de um estranho, de uma pessoa que não tem contacto jurídico com
ela. A aquisição por acessão é sempre subordinada... à falta de um título que dê, de per si, a origem, a
disciplina da situação criada.
Num olhar mais atento, o que verdadeiramente caracteriza e justifica a acessão industrial
imobiliária é a natureza inovadora e transformadora das obras que podem, a nosso ver, ter lugar em
qualquer prédio alheio, seja unicamente no solo, seja em construção nele existente, desde que, no
entanto, se não trate de simples obras de melhoramento ou de reparação - Col. 1997-II-177 - (Araújo
Barros), com comentário favorável do Prof. Varela, este na Col. STJ 98-II-5:

ACESSÃO INDUSTRIAL IMOBILIÁRIA

A PROPRIEDADE DE IMÓVEL EM RUÍNA, PROFUNDAMENTE REMODELADO PELO SEU ARREMATANTE


EM HASTA PÚBLICA

Parecer do Professor Antunes Varela

SUMÁRIO:

I – O instituto da acessão cobre indistintamente prédios rústicos e prédios urbanos.


II – Tendo uma empresa adquirido em leilão, no decurso de processo de falência, um prédio urbano, em estado
de degradação, e feito, logo após a sinalização do acto de adjudicação, valiosas obras de restauro, apesar dessa
arrematação vir a ser anulada, em virtude de nulidade cometida no processo, adquiriu, por acessão industrial imobiliária, a
propriedade de tal prédio, pagando o valor que o imóvel tinha antes das obras, actualizado.
II – A actualização do preço devido ao antigo titular do imóvel, embora sendo uma dívida de valor, deve ser fixada
em relação à situação do prédio antes do início da execução das obras, e não à luz de qualquer momento posterior, mesmo
sem a mais valia das obras realizadas.

Capítulo 1
Introdução
1. Os factos. A actuação inicial da Autora.

No recurso de revista, para cuja instrução um dos recorrentes solicitou o nosso parecer, discute-se a questão da
propriedade de um vasto imóvel (prédio urbano) da cidade do Porto, sobre o qual realizou obras de profunda e dispendiosa
remodelação a firma que o arrematou em acto de hasta pública, num processo de falência que veio mais tarde a ser
anulado por falta de citação da ré, entretanto considerada falida.
Os factos essenciais da causa vêm minuciosamente narrados no relatório do douto acórdão recorrido e, por isso
mesmo, os aspectos da matéria de facto que realmente interessam ao julgamento do recurso podem resumir-se em poucas
palavras.

Foi em diversos dias do mês de Novembro do ano já relativamente distante de 1981 que os jornais diários do
Porto - "O Jornal de Noticias", "O Comércio do Porto" e o "Primeiro de Janeiro" - anunciaram a realização, no dia 25 desse

112
mês, do leilão judicial, por ordem da Câmara de Falências do Porto, dos bens pertencentes à Fábrica de Confecções
Schimming, Lda, já declarada falida, entre esses bens figurando o prédio urbano, de dois pavimentos, destinado a indústria
e habitação, situado na rua Manuel Pinto de Azevedo, nºs 619 a 663, da freguesia de Ramalde daquela cidade.
No dia aprazado, depois de múltiplos lances de oferta, num leilão especialmente animado, acabou o dito prédio
por ser adjudicado à firma Auto-Sueco, Ldª., sociedade importadora e revendedora de veículos automóveis, concessionária
em todo o país da marca "VOLVO", na sequência do lance de 55.200 contos por ela oferecido e que nenhum outro
concorrente cobriu.
Considerando o avultado dispêndio desta aquisição imobiliária, o estado de manifesta degradação e abandono
em que o prédio se encontrava na altura da arrematação e a sua premente necessidade de instalar na cidade a sua Divisão
de Vendas e de exposição de veículos, a Auto-Sueco, promoveu, logo após a sinalização do acto de adjudicação (realizada
em 25.11.1981) a elaboração dos projectos de arquitectura e de engenharia para as vultuosas obras de profunda
remodelação que necessitava de levar a cabo no edifício.
E cerca de três meses depois, em Fevereiro de 1982, foi o próprio Administrador da massa falida quem,
confrontado com as habituais dificuldades burocráticas provocadas pelas divergências verificadas, quanto à identificação
do prédio, entre a descrição do registo e a inscrição na matriz e com a relativa urgência das obras a realizar pelo
arrematante, sugeriu a este o pagamento imediato do remanescente do preço da arrematação, a troco da autorização que
ele daria para a imediata entrega do prédio e o imediato começo de execução das obras. (cfr. resposta ao quesito 9º do
questionário).
E assim se fez, de facto.
Em 22 de Março (de 1982), a Auto-Sueco, Ldª. pagou ao Cofre da Administração de Falências a quantia de
44.160 contos, remanescente do preço de arrematação por ela oferecido (cfr. letra G da Especificação); e a partir dessa
altura devem ter tido início as obras de restauro e de profunda remodelação do imóvel, que tudo indica encontrar-se então
em péssimo estado de conservação.
Para se ter, aliás, uma ideia exacta do volume, da natureza e do custo das obras programadas e executadas pela
Auto-Sueco, Ldª. no imóvel degradado da rua M. Pinto de Azevedo bastará fazer uma leitura atenta das dezenas de
quesitos formulados sobre as espécies de trabalhos descriminados na remodelação do imóvel e das respostas
maciçamente afirmativas do tribunal colectivo a todas as numerosas interrogações feitas sobre a sua realização.
Este conjunto verdadeiramente impressionante de trabalhos de restauro e de operações de remodelação do
edifício, tendo em vista a nova afectação que a arrematante deu ao imóvel, decorreu desde Março de 1982 até Maio de
1983, no que respeita ao troço substancial das obras de transformação do prédio (cfr. resposta ao quesito 28º).
E calculou-se que valorizou o imóvel (arrematado em Novembro de 1981, como vimos, pelo preço de 55.200
contos) pelo menos no montante correspondente ao custo total das obras, em cerca de 250.000 contos (cfr. resposta ao
quesito 33º).
E só para concluir a descrição dos trabalhos realizados por iniciativa da Auto-Sueco no imóvel em disputa entre
as partes, acrescentar-se-á que a firma arrematante realizou ainda, depois daquela data (Maio de 1983) - época em que
estalou abertamente o conflito agora trazido à apreciação do Supremo - as obras dispendiosas de conservação e de
remodelação que constam dos quesitos 35 a 40, a cuja realização o tribunal colectivo respondeu afirmativamente, que
custaram à empresa cerca de 41.000 contos (resposta ao quesito 41º) e que vêm minuciosamente inventariadas na douta
sentença de 1ª instância.
2. A reacção da ré (falida) no processo de falência.

Entretanto, a Fábrica de Confecções Shimming Ldª., ré na acção de falência em que foi realmente declarada
falida e na qual se procedeu à venda em hasta pública do imóvel da rua Manuel Pinto de Azevedo, do Porto, em 25 de
Novembro de 1981, apareceu pela primeira vez nessa acção, em 12 deste mês, a requerer a anulação de todo o processo
por falta de citação.
A verdade, porém, é que o leilão judicial dos bens da empresa falida se realizou, que a arrematação do imóvel da
freguesia de Ramalde se processou e se consumou com a escritura final de venda, e que as múltiplas obras de profunda
remodelação do edifício, autorizadas pelo administrador judicial da massa falida, foram levadas a cabo em mais de um ano
de intensivo trabalho.
Só em 26 de Julho de 1983 - quase dois anos depois do leilão de 25 de Novembro de 1981 -, a Auto-Sueco
recebeu a anódina (1) notificação, no âmbito do processo de falência, em que a notificada não era parte, de que a
Schimming pretendia retomar o domínio do imóvel arrematado naquela praça.
E só em fins de Outubro de 1983 a interessada recebeu a notificação de que fora anulado, na acção de falência
instaurada contra a Schimming, o acto de adjudicação do imóvel que ela arrematara por decisão proferida pelo tribunal de
1ª instância - e contra a qual a arrematante interpôs imediatamente recurso.
Essa decisão do tribunal de 1ª instância veio, entretanto, a ser confirmada pelo acórdão do Tribunal da Relação
do Porto, de 26 de Junho de 1985 e, finalmente, pelo acórdão de 18 de Fevereiro de 1986 do Supremo Tribunal de Justiça.
Deste acórdão final do Supremo veio a Auto-Sueco a ser notificada em 27 deste mês de Fevereiro, tendo a
decisão transitado em julgado no mês de Março seguinte.

113
3. A contra-reacção da Auto-Sueco, na acção cível de reconhecimento da sua propriedade sobre o imóvel.

Entretanto, decerto porque goradas todas as diligências de entendimento entre as duas empresas interessadas,
ou porque tivessem resultado infrutíferas as tentativas de defesa dos seus legítimos interesses, antes que a Schimming
tivesse procurado executar a decisão que em Março de 1986 acabou por decretar a nulidade do acto de adjudicação do
imóvel da rua Manuel Pinto de Azevedo à firma arrematante, foi a Auto-Sueco que, em fins de Janeiro de 1993, ingressou
em juízo com a acção cível (contra a Schimming) destinada a solucionar a questão da propriedade do imóvel, que cada
uma das sociedades chamava a si, por diferentes razões.
Na sua petição inicial, a Auto-Sueco começou por historiar as circunstâncias em que acudiu ao leilão judicial do
imóvel e em que, através duma concorrência particularmente viva e animada, acabou por ver a sua proposta (no valor de
55.200 contos) triunfar sobre as demais.
Uma vez investida judicialmente na titularidade do prédio, referiu as condições em que, autorizada pelo
administrador judicial da massa falida, meteu ombros à rápida execução de um vasto e profundo plano de remodelação do
edifício, tendo em vista a pronta instalação na zona norte do País do sector de vendas e de exposição de veículos
automóveis da prestigiada marca sueca da qual ela é a única representante.
Desse impressionante conjunto de obras de completa transformação do imóvel, levado a cabo desde Março de
1982 a Maio de 1983, veio a autora a fazer prova exuberante no período instrutório da acção.
E foi com base na diferença gritante, existente entre o valor acrescentado por essas obras ao imóvel (orçado
pelos técnicos em cerca de 250.000 contos) e o justo preço (55.200 contos) pelo qual a autora havia adquirido aquele
edifício velho e degradado, pràticamente em ruínas, que na petição, à luz da acessão industrial imobiliária e com base,
especificadamente, na doutrina do nº 1 do artigo 1340º do Código Civil, se requereu, como pedido principal, o
reconhecimento da propriedade da Auto-Sueco sobre o imóvel, ao mesmo tempo que ela, como indemnização devida à
Schimming, se dispunha a abrir definitivamente mão da quantia de 55.200 contos desembolsada na arrematação anulada.
Se assim se não entendesse, requereu a Autora, subsidiariamente, o pagamento da quantia de 166.000 contos,
correspondente ao valor das benfeitorias por ela realizadas no imóvel, bem como o reconhecimento do direito de retenção
deste, nos termos do artigo 754º do Código Civil, enquanto a importância devida não fosse efectivamente paga.

4. A defesa e a reconvenção da Schimming na acção cível de reconhecimento da propriedade.

A sociedade Schimming, ré na acção cível, além de ter negado o estado de degradação material em que o imóvel
se encontrava à data da sua venda judicial (contestação, nºs 32 a 35) bem como o custo atribuído pela Autora às obras por
ela realizadas (cont., nºs 39 a 44), começou por afirmar, nesse aspecto, que as obras efectuadas não foram "na sua
maioria", de pura conservação ou restauro, mas "obras de transformação do imóvel em causa, em ordem à sua adaptação
ao concreto fim para que a Autora o passou a utilizar."
E a conclusão que a ré tira do facto é que muitas das obras, pelo seu carácter específico, apenas valorizariam o
prédio num valor muito inferior ao do seu custo (cont., nºs 46 a 62).
A título reconvencional, veio a Schimming sustentar que a Auto-Sueco perdeu a propri-edade do imóvel a partir
de Outubro de 1983, logo que foi notificada da sentença do tribunal de 1ª instância que anulou a compra por ela efectuada,
em juízo, no dia 25 de Novembro de 1981. E nesse preciso momento se converteu em possuidora de má fé, por saber que
a sua posse lesava o direito de outrem (Cont., nº 91).
Nessa conformidade, requereu a Ré que a autora fosse condenada, nos termos do artigo 1271º do Código Civil, a
responder pelas rendas que o prédio normalmente proporcionaria, com as actualizações de renda devidas, embora também
com a dedução correspondente ao valor das benfeitorias com que a Autora tenha realmente beneficiado o imóvel (cont.,
nºs 94 e segs.)

5. Sentença proferida em 1ª instância

Depois da réplica e da tréplica oferecidas pelas partes, que nenhuma alteração substancial trouxeram aos
articulados anteriores, e de proferido despacho saneador, no âmbito do qual foram especificados os factos essenciais da
causa já referidos nos números anteriores desta exposição, e de quesitados os factos controvertidos com real interesse
para o julgamento das três questões substanciais levantadas pelos litigantes, entre os quais se destacava o conjunto
impressionante das obras realizadas pela autora no imóvel cuja propriedade se debatia, proferiu o Mmº Juiz do 6º Juízo do
Tribunal Cível da comarca do Porto, em 26 de Janeiro de 1996, a sentença final da acção, depois (evidentemente) de o
tribunal colectivo ter respondido, por sinal com grande clareza e muita precisão, à matéria de facto quesitada.
Nessa douta sentença, depois da minuciosa exposição da vasta matéria de facto alegada pelas partes, que o
tribunal deu como provada, o tribunal de 1ª instância julgou a acção proce-dente, declarando a Autora (Auto-Sueco, Ldª)
titular do direito de propriedade sobre o imóvel questionado, adquirido por acessão industrial imobiliária, e condenando a ré
(Fábrica de Confecções Schímming, Ldª.) a reconhecer esse direito.

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Em contrapartida, a sentença, tendo julgado embora improcedente, por não provada, a reconvenção deduzida
pela ré, não deixou de condenar a Autora no pagamento da quantia de 55.200 contos, como correspondente ao valor do
imóvel antes do início das obras, mas actualizada a partir de 1982, de acordo com os índices de variação dos preços ao
consumidor, publicados pelo Instituto Nacional de Estatística.
Como fundamento da decisão proferida sobre o pedido principal da autora, reconheceu o tribunal que a Autora
realizou, de boa fé, as complexas obras de profunda remodelação do imóvel questionado, justamente convencida até 26 de
Julho (senão até fins de Outubro) de 1983 de ser a titular da propriedade sobre ele, "por haver adquirido esse mesmo
direito em hasta pública, no âmbito de um processo de falência, sendo-lhe entregue a (respectiva) posse pelo próprio
administrador."
As obras pela Autora realizadas entre Março de 1982 e Maio do ano seguinte trouxeram ao imóvel um acréscimo
de valor da ordem dos 250.000 contos, o qual, comparado com o valor atribuído ao prédio antes de as obras principiarem
(55.200 contos, igual ao preço pelo qual foi adjudicado na praça pública, de Novembro de 1981), confere à Auto-Sueco, nos
termos do nº 1 do artigo 1340º do Código Civil, o direito de adquirir a propriedade sobre todo o imóvel.
Quanto ao valor que à autora das obras incumbe pagar, nos termos do referido nº 1 do artigo 13400, julgou o
tribunal que do confronto deste preceito com o nº 1 do artigo 1343º resulta para a adquirente do imóvel a obrigação de
actualizar a prestação devida, de acordo com o disposto nos artigos 550º e 551º do Código Civil, por se tratar, no fundo,
não de uma simples obrigação pecuniária, mas de uma autêntica divida de valor.

6. Os recursos de apelação interpostos pelos litigantes contra a decisão proferida.

Nem um, nem outro dos litigantes, como era de esperar em acção de tão elevado valor, se conformou com a
decisão proferida pelo tribunal de 1ª instância.
A Schimming insistiu na falta dos pressupostos legais da acessão imobiliária exigidos no artigo 1340º, nº 1, do
Código Civil e continuou a bater-se pela existência de má fé na posse do imóvel, exercida pela autora, depois da
arrematação judicial (ou seja, desde Outubro de 1983) e nas consequências por ela extraídas dessa posse de má fé,
quanto à restituição dos frutos civis, percebidos e percipiendos, exigível da possuidora.
Subsídiàriamente, entendeu a primeira apelante que, no caso de a tese da acessão imobiliária sustentada pela
autora vir a proceder, a prestação compensatória devida à proprietária do imóvel pelo autor das obras deveria ser
actualizada, não desde 28 de Novembro de 1982, como o tribunal de ia instância sentenciou, mas a partir da data
(26.11.1981) do depósito da primeira prestação a favor da antiga dona do imóvel, efectuada na arrematação judicial deste.
A Auto-Sueco, por seu turno, discordando fundamentalmente da tese da actualização da prestação devida à
antiga proprietária do prédio, que envolveria um verdadeiro enriquecimento sem causa da ré à custa da autora, requereu a
revogação parcial da sentença, no trecho em que a condena a pagar à Schimming a contraprestação que já oportunamente
liquidou na arrematação judicial efectuada no decurso do processo de falência.

Capítulo II

As questões de direito decididas no julgamento de 2ª instância e debatidas no recurso de revista

7. O acórdão da Relação do Porto, de 4 de Janeiro de 1997, confirmatório da sentença de 1ª instância.


Sequência.

As questões levantadas pelos recorrentes, na impugnação que um e outro desencadearam contra a decisão de 1ª
instância, são minuciosamente apreciadas, com um exame profundo e certeiro do pensamento da lei, com uma análise
atenta dos múltiplos factos comprovados em juízo, e com uma reprodução leal e aberta das razões alegadas pelos
contendores, no acórdão de 4 de Janeiro de 1997, que constitui, sem dúvida, uma peça verdadeiramente notável dos
nossos tribunais de 2ª instância.
Embora não possamos acompanhar o acórdão em todas as suas conclusões, nomea-damente no que respeita
actualização da prestação pecuniária devida à antiga dona do imóvel, é através da análise crítica do raciocínio
desenvolvido, com incontestável brilho e grande elevação de pensamento, pelo distinto relator do acórdão, que vai ser
elaborada a parte essencial do parecer que nos é solicitado sobre o mérito da posição sustentada por uma das partes.
Além desse comentário, muito cingido ao texto do excelente acórdão da Relação do Porto, haverá ainda
oportunidade de reflectir, quer sobre a declaração de voto do douto magistrado que assina vencido a decisão majoritária do
acórdão, tocando a questão principal da controvérsia entre as partes, quer muito levemente sobre os argumentos em que
os recorrentes assentam de modo especial o seu pedido de revista da sentença proferida pelo Juízo Cível do Porto e
confirmada na Relação.
Secção I

A acessão industrial imobiliária

115
8. Resposta do acórdão da Relação, à não verificação dos pressupostos legais da acessão industrial imobiliária.

Comecemos então, de acordo com a ordem adoptada pelo acórdão impugnado, pela questão da verificação, no
caso concreto debatido pelos litigantes, dos requisitos essenciais da acessão industrial imobiliária.
A primeira dúvida que o acórdão aprecia a esse propósito resulta da circunstância de o artigo 1340º, nº 1, do
Código Civil, que retracta a hipótese da acessão industrial imobiliária, se referir apenas àquele que, de boa fé, constituir
obra em terreno alheio, quando a verdade é que a Auto-Sueco construiu as obras amplamente referidas nos autos, não
sobre um terreno ou prédio rústico, mas sobre um prédio urbano, uma construção ou edifício.
O acórdão refuta o argumento, em sede interpretativa do preceito, por entender que a interpretação literalista da
primeira passagem do seu texto não é a mais consentânea com os princípios que regem a aquisição da propriedade do
terreno ou prédio em que a obra foi realizada.
Em primeiro lugar, no que ao texto da lei se refere, é logo no próprio artigo 1340º, nº 1, depois de se referir à
construção da obra em terreno alheio, que o legislador prescreve a possibilidade de o construtor adquirir o prédio (e já não
o terreno) em que a obra foi realizada.
Em segundo lugar, considera o acórdão que a ratio legís do preceito, baseada no carácter inovador e
transformador da obra realizada em imóvel ou prédio alheio, tanto cobre as obras realizadas em terreno (prédio rústico)
como as efectuadas em edifício ou construção (prédio urbano) de outrem.
Em relação à segunda dúvida - levantada ainda pelas alegações da ré - que era a de saber se o prédio sobre o
qual as obras realizadas pela Auto-Sueco era alheio, como na hipótese contemplada no artigo 1340º do Código Civil se
prevê, ou era próprio - como a ré recorda que era, na altura da execução das obras (entre Março de 1982 e Maio de 1983) -
considera o acórdão que, não obstante as obras terem sido efectivamente realizadas na sequência da compra e venda
judicial realizada em 25 de Novembro de 1981, quando a autora era realmente dona do prédio, não pode esquecer-se que
esta situação foi retroactivamente destruída com a ineficácia da venda judicial resultante da anulação total do processo de
falência, por falta de citação da ré (art. 909º, nº 1, al. b) do Cód. Proc. Civil)
Razão pela qual a qualidade de prédio alheio, quanto ao imóvel sobre o qual as obras se efectuaram entre Março
de 82 e Maio de 83, tem afinal de considerar-se verificada.
E nem sequer, adverte ainda o acórdão, se pode afirmar a existência, na pessoa colectiva autora das obras, da
qualidade de possuidora, incompatível com a figura da acessão, segundo a tese de alguns autores, porquanto a anulação
do processo de falência, da mesma forma que eliminou ex tunc o direito de propriedade da empresa arrematante do imóvel,
também suprimiu retroactivamente a posse causal, com base na qual ela possa ter planeado e executado as obras.
Quanto à terceira objecção levantada pela Schimming - atinente ao valor relativo das obras, de um lado, e do
prédio, antes de iniciadas as obras, do outro -, nenhuma dificuldade teve o acórdão em a repelir, com base nas simples
respostas do colectivo à matéria de facto quesitada.
Deram-se, realmente, como provados o facto de as obras realizadas no prédio questionado, entre Março de 1982
e Maio de 1983, terem importado num dispêndio global de 59.586.072$00 (resposta aos quesitos 110 a 320), bem como o
facto de essas obras terem valorizado o prédio em 250.000 contos (resposta ao quesito 33º).
E tanto bastou para que, confrontando estes números com o valor real atribuído ao imóvel antes de realizadas as
obras, que não excederia o lanço oferecido pela Auto-Sueco no leilão de Novembro de 1981: 55.200 contos, a Relação
desse tranquilamente como verificado o elemento fundamental da opção concedida à construtora das obras pelo nº 1 do
artigo 1340.º do Código Civil.
9. Análise dos reais pressupostos da acessão.

Atenta a importância decisiva da questão da acessão imobiliária sobre o julgamento da acção, vale a pena
reflectir um pouco mais sobre esse ponto, antes de se passar à exposição dos demais temas apreciados no acórdão.
A primeira dúvida analisada pelo acórdão a propósito da acessão imobiliária foi, como acabamos de ver, a
relacionada com o objecto da acessão imobiliária, ou, mais especificadamente, com a questão de saber se a acessão
(industrial) imobiliária, regulada nos artigos 1339º a 1343º do Código Civil, apenas cobre o caso em que as obras (a
sementeira, a plantação) realizadas por uma pessoa recaiem sobre terreno alheio, ou também abrange a hipótese de essas
obras terem sido efectuadas sobre o prédio urbano (construção ou edifício) pertencente a outrem.
Ora, não há a menor dúvida de que a acessão industrial imobiliária, tal como a lei a concebe e retracta como
modo geral de aquisição da propriedade sobre as coisas (no capitulo II do título do Direito das coisas consagrado ao direito
de propriedade), tanto compreende as obras sobre terreno (prédio rústico) como as obras sobre construção ou edifício
(prédio urbano) de outrem.
E, nesse aspecto, só há que louvar a meritória iniciativa de o acórdão se ter libertado do acanhado exame do
texto do nº 1 do artigo 1340º (ou, mais precisamente, do trecho introdutório desse nº 1), para esclarecidamente procurar
definir a verdadeira ratio legis (o espírito da norma em exame), como lhe manda o artigo 9º do Código Civil, ao colocar
expressamente a reconstituição do pensamento legislativo acima da pura análise gramatical ou exegética do texto da lei, na
realização da tarefa fundamental que é a interpretação desta.

116
Com efeito, ao analisar os termos em que o artigo 1325º do citado Código caracteriza a acessão em geral, como
modo genérico de aquisição da propriedade, o intérprete esclarecido verifica imediatamente três coisas.

A primeira é que o instituto cobre indistintamente coisas móveis e coisas imóveis, todos sabendo que nesta
segunda categoria cabem igualmente, em princípio, prédios rústicos e prédios urbanos (construções com determinadas
características e certas finalidades)
"Dá-se a acessão, diz essa disposição geral, quando com a coisa que é propriedade de alguém se una e
incorpora outra coisa que lhe não pertencia."
E quanto à distinção entre a acessão natural e a acessão industrial, de um lado, e à distinção entre a acessão
mobiliária e a acessão imobiliária, do outro, acrescenta o artigo 1326º, ainda nos termos gerais correspondentes ao
verdadeiro pensamento da lei, que a acessão industrial se dá, "quando, por facto do homem, se confundem objectos
pertencentes a diversos donos, ou quando alguém aplica o trabalho próprio a matéria pertencente a outrem, confundindo o
resultado desse trabalho com propriedade alheia."

A segunda observação, tirada já da leitura do artigo 1333º, nº 1, relativo à acessão industrial mobiliária, é a de
que a figura jurídica da acessão resulta de a lei não querer aplicar a esses casos práticos de confusão material de objectos
distintos pertencentes a donos diferentes o princípio salomónico do julgador que manda serrar ao meio a criança cuja
maternidade duas mulheres disputam perante a justiça.
"Se alguém, de boa fé, unir ou confundir objecto seu com objecto alheio, de modo que a separação deles não
seja possível ou, sendo-o, dela resulte prejuízo para alguma das partes, prescreve esse artigo 1333º, denunciando um
pensamento muito diferente da decisão simplista da sentença salomóníca, faz seu o objecto adjunto o dono daquele que for
de maior valor…"

A terceira nota que fere a atenção do intérprete esclarecido, justamente salientada por Penha Gonçalves nas
suas lições de Direitos Reais (2), é a de que na escolha do interessado a quem atribui a propriedade do conjunto de
objectos material ou economicamente inseparáveis, a lei se libertou completamente do brocardo, tradicional mas nem
sempre justo, do superfícies solo cedit, para abraçar, livre e criteriosamente, como resulta do disposto nos vários nºs. do
artigo 1340º e das disposições subsequentes, a solução mais justa e mais adequada às circunstâncias especiais de cada
tipo de situações.

Ora, sendo este o espírito geral do instituto da acessão, sendo as que acabam de ser expostas as razões
justificativas das soluções que, à margem do princípio clássico da superfícies solo cedit, a lei portuguesa consagrou, por
que cargas de água (passe o popularismo da expressão) é que o caso especial das obras realizadas por alguém no prédio
urbano pertencente a outrem haveria de cair fora do âmbito da acessão imobiliária?
Por que razão é que as obras realizadas por alguém no edifício alheio não haveriam de estar sujeitas ao mesmo
regime a que o artigo 1340º, 1, do Código Civil incontestavelmente sujeita as obras efectuadas por alguém no terreno de
outrem?
É verdade que no texto do nº 1 do artigo 1340º do dito Código, onde se trata da acessão industrial imobiliária, se
faz apenas menção da obra construída em terreno alheio.
Mas também é verdade que essa referência exclusiva ao terreno alheio, em face dos termos amplos e
abrangentes com que a lei traça os moldes do instituto da acessão nos artigos 1325º e 1326º (que falam apenas de coisas
ou de objectos pertencentes a diversos donos), e até no artigo 1328º, nº 2 (onde a propósito da acessão natural se alude
explicitamente à possibilidade de, por acção das águas, se deslocar uma porção de terreno de um prédio superior para
outro prédio inferior), só se explica pela circunstância de as hipóteses mais vulgares de acessão imobiliária - aquelas que
por esse simples facto o legislador teve presentes no seu espírito - serem os casos em que as obras (inclusive o novo
edifício erguido pelo construtor) foram realizadas por alguém sobre o terreno de outrem. O que nunca terá estado presente
no ânimo do legislador foi a intenção absurda, porque incoerente, de excluir do campo da acessão imobiliária os casos em
que as obras realizadas pelo construtor tenham recaído sobre construção ou edifício pertencente a outrem (3).

E a prova insofismável disso resulta desde logo, não só da ratio legis do preceito (art. 1340º do Cód. Civil), mas
também de duas outras circunstâncias:
1ª - a de, no mesmo texto do nº 1 do artigo 1340º, como na própria fundamentação do acórdão se observa, se dar
o nome de prédio ao terreno sobre o qual as obras aí previstas foram executadas, mas antes mesmo da sua execução;
2ª - a de, no texto de várias das disposições que integram a secção da acessão, se usarem quase indistintamente
as palavras terreno e prédio.
E o que não há, positivamente, é a menor indicação séria de que o legislador tenha querido excluir do âmbito da
acessão imobiliária os casos em que as obras realizadas pelo construtor - portador do trabalho aplicado em matéria alheia -
tenham recaído sobre edifício ou construção pertencente a outrem.

117
A segunda controvérsia examinada pelo acórdão a propósito da verificação dos requisitos da acessão industrial
imobiliária foi, como vimos, a da pertinência do prédio a pessoa diferente da autora dos trabalhos que sobre ele recaíram.
O requisito característico da acessão provém, na verdade, como inequivocamente se deduz dos preceitos
reguladores das várias modalidades da acessão (desde os arts. 1325º - coisa propriedade de alguém com outra coisa que
lhe não pertencia; e 1326º: objectos pertencentes a diversos donos, até os arts.1329º - lançamento de plantas, objectos ou
porções conhecidas de terreno sobre prédio alheio - 1333º - confusão de objecto seu com objecto alheio) da pertinência
dos elementos reunidos num só objecto (material ou economicamente indivisível, indecomponível ou inseparável), da
pertinência dos vários elementos congregados na coisa a titulares diferentes.
Requisito que não existiria no caso sub iudice, argumentava com verdadeiro sofisma a ré, porquanto as obras
essenciais realizadas no prédio foram levadas a cabo pela Auto-Sueco, entre Março de 82 e Maio de 1983, precisamente
na altura em que ela era a dona reconhecida do imóvel.
Há na argumentação da Schimming um verdadeiro sofisma, exactamente porque o conflito entre as partes
gerador da acção cível e da disputa entre elas só nasce quando o processo de falência é anulado e, decretada a ineficácia
da arrematação judicial de 25 de Novembro de 1981, ficou dum lado a Auto-Sueco como realizadora material das obras de
transformação do imóvel, e de boa fé, porque autorizada pelo representante do dono do imóvel a fazê-las: art. 1340º, nº 4,
do Cód. Civil) e, do outro lado, a Schimming, como dona do imóvel.
O momento ou o período de realização das obras passa a interessar apenas, a partir desse momento, para a
questão de saber se a construtora agiu de boa ou má fé.
Quanto à diferente pertinência das coisas confundidas (trabalho, de um lado; imóvel, do outro), que é o
verdadeiro elemento característico da acessão imobiliária, a sua verificação, após a destruição retroactiva do acto de
arrematação, é incontestável - mete-se pelos olhos dentro do julgador.
Importa salientar inclusivamente que tem carradas de razão o distinto relator do acórdão da Relação do Porto,
quando chama a atenção para a diferença de efeitos entre a ineficácia da venda judicial resultante da anulação de todo o
processo, por falta de citação do réu, nos termos do artigo 909º, nº 1, al. b) do Código de Processo Civil, e a simples
anulação da venda (judicial), a requerimento do comprador (como uma opção que a lei lhe faculta), concedida no artigo
908º, nº 1, do mesmo diploma legislativo.
De qualquer modo, como no acórdão impugnado justamente se observa, seja como consequência da anulação
do acto de arrematação de 25 de Novembro de 1981, seja como efeito da ineficácia desse acto proveniente da anulação de
todo o processo de falência, mais tarde decretada pelo tribunal onde esse processo correu, certo e incontestável é que,
após a destruição retroactiva do acto de aquisição do imóvel por parte da Auto-Sueco, ficou a existir entre esta empresa,
autora das obras de renovação, e a Schimming, dona ressuscitada do imóvel, a diversidade, a oposição ou o conflito de
títulos, que é a raiz da figura legal da acessão imobiliária.
Quanto à diferença de valor entre o antigo imóvel, antes de realizadas as obras, e o acréscimo de valorização que
as obras de renovação lhe trouxeram, nem valerá a pena acrescentar palavras aos elementos constantes dos autos, de tal
modo é evidente e gritante a verificação dos factos que, abandonado o velho critério romanista do superfícies solo cedit, o
nº 1 do artigo 1340º elege para conceder a preferência que dá ao autor da incorporação (executor das obras no imóvel).

Secção II

Refutação do pedido reconvencional da Schimming

10. Falta do pressuposto da ocupação indevida do imóvel.

Retornando à apreciação crítica do acórdão impugnado, que procura acompanhar pari passu os rasgos
fundamentais do raciocínio jurídico desenvolvido pelo seu relator, verifica-se que o acórdão, depois de assente a tese da
aquisição da propriedade do imóvel, por meio da acessão industrial imobiliária, a favor da autora das obras de profunda
renovação nele introduzidas, considera o pedido reconvencional da ré, baseado na ideia da ocupação indevida do prédio
pela Auto-Sueco, desde Outubro de 1983, totalmente prejudicado pela decisão do pedido principal da autora.
E supomos que, uma vez mais, em irrepreensível conformidade com a lei, a despeito de tudo quanto em contrário
se possa ter julgado no tribunal onde correu o processo de falência e onde se decretou a anulação do acto de arrematação
judicial, na completa ignorância do que se passava no juízo cível, depois da acção cível instaurada pela Auto-Sueco contra
a Schimming.
Decidiu-se efectivamente nesta acção cível, em sentença confirmada no acórdão da Relação, embora este se
encontre ainda pendente da sorte do presente recurso interposto para o Supremo, que a Auto-Sueco é, em verdade, na
sequência do disposto no nº 1 do artigo 1340º do Código, a real proprietária do imóvel, contanto que pague à contraparte o
valor inicial do prédio - que a Auto-Sueco protesta, aliás, ter já pago à Schimming no processo de falência desta.
Ora, a acessão é, em qualquer das suas modalidades (inclusivamente naquela que foi reconhecida em ambas as
instâncias, a favor da autora: a acessão industrial imobiliária), como resulta da sua natureza e estrutura, um modo de
aquisição originária da propriedade (cfr. art. 1316º do Código Civil)

118
E o momento exacto da aquisição da propriedade nela baseada é, um tanto à semelhança do que sucede com a
usucapião, o da verificação dos factos respectivos (não o da opção feita pelo beneficiário da acessão), nos termos da al. d)
do artigo 1317º do mesmo Código
E o facto que gera a aquisição da propriedade através da acessão - o facto respectivo a que laconicamente se
refere a al. d) do art. 1317º - não pode deixar de ser, na economia do discurso do nº 1 do artigo 1340º do Código Civil, a
construção da obra no terreno de outrem. E essas obras de extensa renovação do edifício degradado, compreensivelmente
destacadas no acórdão, são as realizadas entre Março de 1982 e Maio de 1983.
Quer isto dizer que é desde esta data de Maio de 1983 que, de acordo com a solução perfilhada no acórdão para
a questão principal da acessão imobiliária levantada pela Auto- Sueco, esta deve, por força da doutrina geral do artigo
1317ºdo Código Civil, ser considerada dona do imóvel.
Consequentemente, foi em estrita coerência com a solução por ele dada ao pedido principal da Auto-Sueco e em
obediência ao disposto no nº 2, 1º período, do artigo 660º do Código de Processo Civil, que o acórdão da Relação não
chegou a apreciar directamente o pedido reconvencional da ré, baseado na detenção ilícita do prédio pela Auto-Sueco
desde Outubro de 1983.
Secção III

A actualização do preço devido pela adquirente do imóvel

11. Sequência.

Das restantes questões abordadas no acórdão, a única que nos interessa comentar ainda, para o efeito do
julgamento da revista interposta para o tribunal superior, por merecer a nossa frontal discordância a solução adoptada, quer
na 1ª, quer na 2ª instância, é a relativa à actualização do preço devido pela autora das obras à antiga dona do prédio (à
Schimming).
Reconhecendo embora que o preço devido pela autora da incorporação (das obras, que construiu com trabalho
próprio no prédio alheio) é o correspondente ao valor que o prédio tinha antes do início das obras, conforme determina o nº
1 do artigo 1340º do Código Civil, tanto a sentença de 1ª instância como o acórdão da Relação, sob pretexto de que a
soma fixada corresponde a uma verdadeira dívida de valor, mandam aplicar à sua actual liquidação o regime excepcional
do artigo 551º do Código Civil.

12. Refutação da solução decretada nas instâncias.

A verdade, porém, é que essa actualização do valor do prédio fixado à data do início das obras (praticamente
reportado, como vimos, ao momento - 25 de Novembro de 1981 - em que o prédio foi arrematado, num leilão judicial
bastante concorrido e disputado) não tem o menor apoio legal, constitui (salvo o devido respeito) uma determinação
puramente arbitrária, que mal encobre a intenção de castigar o facto de a Auto-Sueco só agora vir a pagar uma importância
que, no entender dos tribunais, deveria ter sido entregue à Schimming logo em finais de 1983, quando as partes se deram
seriamente conta dos factos constitutivos da acessão imobiliária e da consequente aquisição originária da propriedade do
prédio por parte da Auto-Sueco.
Claro que ninguém contesta a existência, no sistema jurídico português, de verdadeiras dívidas de valor ao lado
das puras obrigações pecuniárias.
Dívidas de valor, sujeitas no próprio direito português constituído (art. 551º do Código Civil), ao princípio da sua
permanente actualização em face do valor oscilante da moeda, são aquelas que não têm directamente por objecto o
dinheiro, mas a prestação correspondente ao valor de certa coisa ou à satisfação de determinado objectivo como a
obrigação de alimentos, a obrigação de indemnizar por equivalente, a obrigação de restituir o enriquecimento obtido à custa
alheia), em que o dinheiro apenas intervém como um objecto temporal ou transitório de referência ou de liquidação da
prestação (1).
E dá-se mesmo a circunstância curiosa de a obrigação imposta ao adquirente do imóvel remodelado pelas obras
alheias ser declaradamente uma dívida de valor. De um valor, todavia, não sujeito a permanente actualização, como os
tribunais de instância erroneamente decretaram; mas do valor que o prédio tinha antes de as obras (de transformação)
terem sido iniciadas.
E esse valor, referido à data a que a lei manda concretamente, especificadamente, atender é o de 55.200 contos
(segundo os elementos de facto constantes dos autos).
O valor referido na lei é esse - e só esse - o valor do imóvel antes do começo das obras - e não, como os
tribunais de instância infundada e ilegalmente julgaram, o valor que o prédio, sem as obras, tiver à data da decisão
proferida sobre a acção.
Mesmo que se entenda que o atraso na recepção do preço devido à Schimming é imputável à Auto-Sueco (ponto
ainda agora controvertido entre as partes, por causa do entrecruza-mento do processo de falência com a acção cível de
reconhecimento da propriedade do imóvel), a sanção adequada contra esse atraso culposo do pagamento do preço não

119
seria nunca a alteração arbitrária do preço fixado na lei por um preço fixado em novos moldes, mas apenas a condenação
da Autora ao pagamento dos danos moratórios alegados e provados pela ré.

Secção IV

Comentários restantes sobre a acção

13. A declaração de voto inserida no acórdão.

A apreciação crítica do acórdão de 4 de Janeiro de 1997 proferido pela Relação do Porto sobre a acção
instaurada pela Auto-Sueco, que constitui a parte substancial do parecer que nos foi solicitado, não ficaria naturalmente
completa sem o exame da douta declaração de voto do Des. Emérico Soares, cuja tese levaria à improcedência da acção.
São duas as razões em que o distinto magistrado apoia a sua oposição à solução que fez vencimento no
acórdão. A primeira assenta na distinção entre obras de simples restauro (embora com alguns laivos ou aspectos de
inovação) do imóvel e obras de verdadeira alteração substancial do prédio.
E a observação mais importante a fazer sobre tal ponto é que essa distinção - muitas vezes dificílima, senão
objectivamente impossível de realizar, em muitos casos, não toca directa-mente na questão crucial da acessão industrial.
Quando se apura que as obras realizadas por alguém sobre coisa alheia resultaram do exercício regular de uma
relação jurídica como o comodato, o usufruto, a locação ou a própria posse, que não conflituam com o direito de
proprietário do imóvel, não há problema sobre o domínio deste, porque não chega a existir aquela diversidade de domínio
sobre os diversos objectos componentes da coisa, material ou economicamente indecomponível, que gera a figura da
acessão, em qualquer das suas variantes.
Se, pelo contrário, os trabalhos, a plantação ou a sementeira são realizados por alguém que não tem com o
proprietário do imóvel uma relação jurídica que justifique essa intromissão (por um estranho, por um terceiro, no sentido
vulgar, é que já surge em regra o problema da acessão, por se suspeitar ou presumir que o terceiro age no exercício de um
direito que pode conflituar com o direito do proprietário do imóvel, sobretudo quando este for material ou economicamente
indivisível.
Ora, o que sucede no caso do conflito entre a Auto-Sueco e a Schimming, é que a existência do conflito típico
gerador da figura da acessão imobiliária é cristalina como água e só a não vê quem a não quiser ver.
As obras realizadas no prédio do Porto pela Auto-Sueco - chamem-lhes de restauro, chamem-lhes de
remodelação, chamem-lhes de transformação, chamem-lhes o que quiserem - foram executadas ao abrigo de um direito de
propriedade adquirido numa arrematação judicial.
E a tal diversidade de domínios própria da acessão imobiliária, sobre os elementos componentes do prédio - a
parte antiga do imóvel, pertencente à Schimming, e as obras nele incrustradas, por acção da Auto-Sueco - veio a estalar
abertamente, como vimos, com a sentença judicial que, anulando o processo de falência, destruiu retroactivamente o acto
de arrematação da firma adquirente e ressuscitou o direito de propriedade da Schimminq sobre o antigo imóvel.
A existência do conflito previsto no artigo 1340º não depende, portanto, da pura qualificação das obras realizadas
no prédio questionado, nem da resolução do problema teórico de classificação dessas obras, que tanto poderia atormentar
o espírito do nosso digno magistrado.
E não resta nenhuma dúvida de que, verificada a existência incontestável do problema, o acórdão de 4 de Janeiro
de 1997 o resolveu em perfeita conformidade com a doutrina da lei.

14. A extensão legal da acessão imobiliária.

A segunda razão da discordância do magistrado que assinou vencido, perante a solução que fez vencimento no
acórdão, provém da sua adesão à tese de que a acessão industrial imobiliária só cobre o caso da realização de obras por
alguém em terreno (prédio rústico) alheio.
Não se adianta, porém, uma só palavra para, no plano superior do espírito da lei, ou do pensamento legislativo,
se explicar a razão por que as obras realizadas no prédio urbano alheio hão-de ter um regime diferente do estabelecido
para as obras realizadas, nas mesmíssimas condições, sobre prédio rústico alheio, nem sobre os desvios existentes entre
um regime e outro, nem sobre o regime válido para os prédios mistos.
Fica apenas de pé o argumento crassamente literal tirado da primeira parte do nº 1 do artigo 1340º, que já vimos
quanto vale, quer em face das considerações desenvolvidas na fundamentação do acórdão, quer à luz das múltiplas
disposições (incluindo a parte restante do próprio art. 1340º) que definem a real dimensão do instituto da acessão, em
qualquer das suas variantes, como modo específico da aquisição originária da propriedade.

Capítulo III

Conclusão

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15. Síntese final das considerações expostas.

Na sequência das razões que acabam de ser desenvolvidas em torno do acórdão impugnado, duas conclusões
se impõem no nosso espírito:

1ª - A solução ditada no acórdão, deferindo o pedido principal da Auto-Sueco, quanto à aquisição por acessão
industrial imobiliária do imóvel questionado, e indeferindo, consequen-temente, o pedido reconvencional da ré fundado na
indevida ocupação do prédio por parte da autora, merece a nosso modo de ver incondicional confirmação, por corresponder
à correcta interpretação e aplicação da lei aos factos apurados pelas instâncias;

2ª - Já o mesmo juízo se não faz acerca da parte do acórdão que determina a actualização do preço devido à
antiga titular do imóvel, a pretexto de se tratar de uma divida de valor, visto a lei (art. 1340º, nº 1 do Código Civil),
considerando-a embora expressamente como uma dívida de valor, a mandar fixar em relação à situação do prédio antes do
início da execução das obras, e não à luz de qualquer momento posterior, mesmo sem a mais valia das obras realizadas.

Tal é, pois, em síntese, o meu parecer sobre a decisão impugnada.

Lisboa, 30 de Setembro de 1997

João de Matos Antunes Varela

(1) Considera-se anódina a notificação feita à Auto-Sueco, por duas razões fundamentais: primeiro, porque, não
sendo a notificada parte no processo de falência, nem dispondo de legitimidade para nele defender os seus direitos,
nenhuma declaração do requerente da notificação feita nesse processo poderia produzir qualquer efeito em relação à
notificada; depois, porque referindo-se a notificação a um simples propósito que a notificante tinha em mente realizar, ela
não poderia, por sua própria natureza, surtir qualquer efeito, enquanto o propósito anunciado se não efectivasse.
(2) Curso de direitos reais, Lisboa, 1992, pág. 353.
(3) Outra foi, como no acórdão se informa, a interpretação do texto do artigo 1340º, nº 1, do Código Civil, aceite
no acórdão da Relação de Coimbra, de 20 de Março de 1990 (pub. na Col. Jur., ano XV, 1990, 2 pág. 51).
Mas a verdade é que, havendo no caso concreto apreciado por esse acórdão da Relação de Coimbra outras
razões para recusar a existência da acessão imobiliária, os doutos subscritores de tal acórdão não chegaram a investigar a
ratio legis do artigo 1340º, nem a definir a verdadeira dimensão do instituto da acessão.
(4) Essa é a posição claramente aceita no acórdão do Sup. Trib. Just., de 26.IV.96 (pub. na Col. Jur., Ac. do
S.T.J., IV, 1, pág. 153), em concordância com a doutrina exposta por Pires de Lima - Antunes Varela, Código Civil anotado,
2ª ed., com a colab. de H. Mesquita, anot., nº 7 ao art. 1340º, pág 165).
(5) Vide, por todos, Antunes Varela, Das obrigações em geral, I, 9ª ed., nº 244, pág. 887; Almeida Costa, Direito
das obrigações, 6ª ed., 1994, nº 63, pág. 630).

O STJ decidiu em seu Acórdão na Col. Jur. STJ 2004-I-55: As obras em prédio alheio, susceptíveis
de determinarem acessão, podem ter lugar tanto no solo como em construção nele existente, podendo ser objecto de
acessão um prédio urbano em que tenham sido realizadas obras que tenham alterado efectiva e radicalmente a sua
substância.

A benfeitoria não se destina senão a conservar ou melhorar a coisa, atribuindo a lei ao seu
autor um direito de levantamento ou um direito de crédito contra o dono da coisa benfeitorizada.
A acessão, diversamente, consiste na construção de coisa nova, mediante alteração da
substância daquela em que a obra é feita.

A moradia construída pelos cônjuges no terreno que é bem próprio de um deles constitui benfeitoria - Col. STJ
93-I-102.

O mesmo decidiu a Relação do Porto por Ac. na Col. 95-II-184, considerando que as obras de reconstrução e
ampliação de casa de um só (a quem fora doada) dos cônjuges, na pendência do casamento, são benfeitoria, pelo que o
prédio continua próprio do cônjuge a quem fora doado, embora este cônjuge esteja obrigado a compensar o património
comum pelo valor das benfeitorias realizadas na pendência do casamento - (1726º).

121
«Como afirma Oliveira Ascensão [Direitos Reais, 4ª ed., 43], não há prédio urbano sem aderência a uma
determinada porção de terreno. Esta porção de terreno sobre que o edifício assenta não é um prédio rústico. Após a
implantação do prédio urbano, perde autonomia, uma vez que a sua função específica foi absorvida no novo conjunto.
Parece-nos evidente, na verdade, que, com a construção do armazém, o terreno deixou de ter existência jurídica
autónoma, tendo ficado integrado no prédio urbano, passando o terreno e a edificação a formar uma unidade jurídica
indivisível – cfr. art. 204º, nº 2.

Põe-se então a questão de saber se esse prédio urbano constitui bem próprio ou comum dos cônjuges.

Para situações idênticas à que encontramos nos autos – edifício construído pelos cônjuges em terreno que é bem
próprio de um deles – tem sido defendido que a questão de saber se o bem é próprio ou comum passa por decidir se estão
reunidos os pressupostos da acessão imobiliária ou se a construção deve ser considerada benfeitoria.
Ora, considerando, designadamente, que o próprio dono participou na construção e que o cônjuge não
proprietário não desconhecia que o terreno pertencia ao outro cônjuge, não havendo propriamente uma autorização para a
incorporação, concluiu-se não estarem reunidos os requisitos da acessão imobiliária (art. 1340º); a construção constituiria
benfeitoria, mantendo o prédio a natureza de bem próprio [Neste sentido os Acs. do STJ de 27.1.93, CJ STJ I, 1, 102 e
desta Relação de 2.3.95, CJ XX, 2, 184].

É possível solução diferente, como propõe Rita Lobo Xavier, enquadrando a questão no Direito matrimonial [ Das
relações entre o Direito comum e o Direito matrimonial, em Comemoração dos 35 anos do Código Civil , Vol. I, 487 e segs.,
que acompanhamos].
Nota, desde logo, que o raciocínio descrito deveria conduzir à conclusão de que o edifício construído – enquanto
benfeitoria – era um bem comum, por força do art. 1733º nº 2: as benfeitorias realizadas em bens próprios de cônjuges
casados no regime de comunhão de adquiridos devem ser qualificadas como bens comuns [Neste sentido, Pereira Coelho
e Guilherme Oliveira, Curso de Direito da Família, I, 2ª ed.].
Por outro lado, acrescenta a mesma Autora, o espírito do sistema da comunhão de adquiridos é o de que
ingressam no património comum todos os “ganhos” “alcançados” pelos cônjuges, todos os bens que “advierem” aos
cônjuges durante o casamento que não sejam exceptuados por lei.
Assim, parece que a construção de uma casa estará abrangida por este conceito amplo de “adquirido”, que
prescinde da sua distinção baseada no fundamento jurídico da aquisição.
A casa constitui uma unidade jurídica com o terreno onde está implantada e não faz sentido pretender que o
terreno mantém a qualidade de bem próprio e que a casa é bem comum.
Ora, nos termos do art. 1726º, os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e
noutra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das prestações.
O objectivo desta disposição, afirma a referida Autora, é precisamente obstar a que um bem possa, em parte, ser
qualificado como comum e, em parte, como próprio de um dos cônjuges, na proporção do valor das entradas do património
comum e do património próprio desse cônjuge. O legislador evitou este resultado difícil recorrendo à regra simples da
prevalência da parte maior para a qualificação do bem.
Acrescenta depois que a situação em que os cônjuges constroem uma casa num terreno que é propriedade
exclusiva de um deles, utilizando valores comuns na construção, não parece ser substancialmente diferente daquela em
que os cônjuges pagam o preço de uma casa por meio da entrega de valores comuns e de um terreno incluído num dos
patrimónios próprios (situação que seria evidentemente subsumível na hipótese da referida norma).
Esta solução será também a que melhor corresponde às expectativas dos cônjuges. Com efeito, os cônjuges têm
o dever de conjugar esforços de ordem patrimonial para acorrer às necessidades da família e existem expectativas
fundadas, sobretudo quando o regime é comunitário, de que irão participar de forma igual nos resultados dessa
colaboração. É aliás tais expectativas que o regime da comunhão de adquiridos protege e, por isso, um regime deste tipo
corresponderá melhor à natural e espontânea interpenetração de patrimónios que ocorre durante a vida conjugal» - Ac. da
Relação do Porto, de 25.5.2006 (ITIJ), relatado pelo Ex.mo Des. Pinto de Almeida.

A autorização não está sujeita a forma e a acessão abrange tanto o terreno ocupado pela construção como o que
lhe serve de logradouro - STJ 96-I-153.

I - O direito de acessão restringe-se à parte do terreno onde se situam as obras que o valorizaram em montante
superior ao seu valor anterior.
II - Este excesso de valor deve considerar-se em relação ao momento em que se manifesta a vontade de exercer
o direito de acessão - Col. STJ 96-I-129.

I - Os limites do prédio são fixados segundo um critério económico.

122
II - Donde decorre que acessão industrial imobiliária pode ocorrer em relação a parcelas de prédios (parcela onde
a casa foi implantada, não todo o terreno do imóvel anterior à obra - Col. STJ 2.000-I-107 – mas supõe que a construção
obedeceu aos requisitos legais (licença administrativa de construção e destacamento – Col. Jur. (STJ) 2003-I-76:

ACESSÃO INDUSTRIAL IMOBILIÁRIA

- Prédio rústico - Indemnização


- Requisitos - Princípio do inquisitório

I - A construção de um prédio, devidamente autorizada, feita por um terceiro em prédio rústico alheio dará lugar,
ou não, a uma nova delimitação de um prédio urbano a destacar do primeiro consoante essa construção se destinar, ou
não, a um fim diferente.
II - Havendo essa autonomia económica, a acessão industrial imobiliária levará a que o construtor adquira apenas
a parcela respeitante ao edifício e sendo, nesse caso, a comparação dos valores feita entre o valor da construção e o valor
do terreno que integra a parcela em questão.
III - Não pode permitir-se que pela via da acessão industrial imobiliária se obtenha o que por via negocial não
seria possível conseguir se faltarem requisitos sem cuja verificação seriam inválidos os respectivos actos constitutivos
negociais.
IV - O princípio da inquisitoriedade, aplicado à iniciativa de averiguação dos factos a usar na decisão, só vale
quanto aos instrumentais, e não quanto aos essenciais.

J.A.M.R.C.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


No Tribunal de Círculo do Funchal foi proposta por JOÃO TOMÉ DOS SANTOS e mulher MARIA BATISTA DE
JESUS, bem como por ANTÓNIO GONÇALVES DOS SANTOS e mulher HERMÍNIA DE JESUS uma acção declarativa
pela qual pediram a condenação de MARIA JOSÉ RODRIGUES DOS SANTOS a reconhecer a aquisição, pelos autores,
da propriedade de um prédio urbano construído pelo falecido marido da ré em terreno pertencente aos autores ou a pagar-
lhes a quantia de 7.500.000$00 pelo valor dos 128 m2 de terreno onde o prédio foi implantado, adquirindo-os por acessão
imobiliária.
Em contestação a ré pediu a sua absolvição do pedido e reconveio no sentido de ser reconhecido o seu direito de
aquisição do solo e logradouro onde o prédio urbano em causa está implantado, mediante o pagamento da indemnização
de 500.000$00.
Em réplica os autores defenderam a improcedência do pedido reconvencional.
Prosseguindo a tramitação adequada, já na Vara Mista do Funchal foi proferida, após audiência de julgamento,
sentença que julgou a acção improcedente e procedente o pedido reconvencional, reconhecendo à ré o direito a adquirir
por acessão o solo e o logradouro do prédio urbano discutido mediante a indemnização de 640.000$00 aos autores,
condenando estes a reconhecerem a titularidade daquele direito da ré.
Os autores apelaram, tendo o seu recurso sido julgado na Relação de Lisboa por acórdão que revogou a
sentença e julgou improcedente o pedido reconvencional e procedente o primeiro dos pedidos alternativos formulados na
petição inicial, reconhecendo aos autores, mediante o pagamento de 57.361,76 Euros, o direito de propriedade, adquirido
por acessão, do prédio urbano em causa.
A ré interpôs o presente recurso de revista em que, alegando, pede que se revogue o acórdão recorrido e se
mantenha o decidido na 1ª instância.
Não são postos em causa por qualquer das partes os factos em que assentou o acórdão recorrido, pelo que,
usando-se aqui a faculdade concedida pelos arts. 713º, nº 6 e 726º do CPC, e uma vez que o mesmo aí foi já feito, remete-
se, quanto à sua enunciação, para a sentença.

Salienta-se que:
1 - Os recorridos são donos de um prédio rústico com a área aproximada de 35.000 m2;
2 - É um terreno com frente de estrada, habilitado para construção urbana, aí tendo sido já implantadas várias
edificações;
3 - Em parte deste prédio, autorizado pelos recorrentes, Luís Tomé dos Santos edificou em 1985 à face da
estrada um prédio urbano com 118 m2 de área coberta e 10 m2 de logradouro, tendo dois pavimentos separados por laje
de betão, com três quartos, cozinha e casa de banho no primeiro andar, uma garagem e uma loja;
4 - Por morte do Luís Santos em 1995, e em processo de inventário depois instaurado, este prédio urbano foi
licitado pela recorrente;
5 - O prédio urbano tem o valor de 11.500.000$00;

123
6 - O prédio rústico onde aquele está edificado tem valor superior a 11.500.000$00;
7 - O valor da área de terreno onde a casa foi edificada é de 5.000$00 por m2.
Há ainda que reter o seguinte.
No art. 23º da contestação foi alegado que a autorização dada para a casa ser edificada em parte do solo teve
como único fim o de o Luís Santos ali construir a sua casa de morada de família.
Este facto integra a causa de pedir do pedido reconvencional — cfr. art. 45º da contestação.
Não o tendo os ora recorridos impugnado na réplica, e não se vendo da petição inicial que tenha havido uma
impugnação antecipada do mesmo nem que se trate de facto contrário à globalidade da tese aí afirmada, impõe-se
considerar que aquele facto está admitido por acordo - cfr. art. 490º, nº 1 e 2 do CPC.

Está em causa uma questão de acessão imobiliária industrial, derivada da construção de uma obra em terreno
alheio mas com autorização dos respectivos proprietários, o que significa que a construção foi feita de boa fé - cfr. art.
1340º, nº 1 e 4 do CC, diploma do qual serão as disposições que adiante se referirem sem outra menção.
Esta modalidade de acessão, instituto que, em geral, tem lugar quando a uma coisa pertencente a certo dono se
une e incorpora outra que lhe não pertence - cfr. art. 1325º —, pode funcionar em dois sentidos, já que tanto a construção
pode ficar a pertencer ao dono do terreno, como pode este passar para a titularidade de quem construiu a obra.
Tudo depende da comparação que se fizer entre o valor da totalidade do prédio antes da construção e o que tiver
posteriormente.
Se o último apresentar, em relação ao primeiro, um aumento superior ao valor que este tinha, a acessão funciona
a favor do autor da construção, que adquirirá a propriedade do prédio onde a construção foi feita, pagando o valor que este
tinha anteriormente.
Se o aumento for inferior ao valor anterior, será ao proprietário do terreno que ficará pertencendo a construção,
contra o pagamento do valor desta quando foi feita.
Se o aumento for igual ao valor anterior, haverá licitação entre o proprietário do terreno e o autor da construção.
Estas soluções são as que, respectivamente, ditam os nº 1, 3 e 2 do art. 1340º.
Vem aceite pelos intervenientes nestes autos que a fixação do valor de ambos os prédios nos termos que acima
constam de 4. e 5. basta para fazer funcionar este critério, certamente porque pressupõem que o valor do prédio rústico,
depois da construção da casa, não diferirá da soma dos dois valores.
Embora não seja uma conclusão completamente exacta, nada obsta a que a ela adiramos.
Ora, sendo assim, segura seria, aparentemente, a conclusão segundo a qual a acessão funcionaria a favor dos
recorridos, por se verificar a hipótese prevista no art. 1340º, nº 3.
Porém, a recorrente defende, na linha do que a sentença reconhecera, que, tendo a casa independência
económica face ao prédio rústico onde foi edificada, a questão da acessão deverá ser perspectivada, não em relação à
totalidade do terreno que compõe o prédio rústico, mas considerando apenas a parcela que nele ocupou. E, por isso, a
comparação entre os respectivos valores — sendo de 11.500.000$00 o da casa e de 640.000$00 o do terreno — conduziria
a uma conclusão oposta, por aplicação do disposto no nº 1 do art. 1340º.
Prédio rústico é uma parte delimitada do solo com as construções nele existentes que não tenham autonomia
económica - cfr. art. 204º, nº 2.
Este critério, funcionando de acordo com a delimitação que em concreto seja feita, permite que, com Pires de
Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª edição, pg. 165, se diga que os limites do prédio serão fixados de
acordo com um critério económico, designadamente o de saber o que para o seu dono constitui, economicamente, uma
unidade.
Deste modo poderá dizer-se que, havendo um prédio rústico destinado a uma exploração agrícola, a construção,
que nele for feita pelo seu proprietário, de uma casa de habitação dará, pela sua autonomia económica, lugar a que um
novo prédio urbano se destaque daquele.
E, da mesma maneira, a construção de um prédio, devidamente autorizada, feita por um terceiro em prédio
rústico alheio tenderá a definir, ou não, uma nova delimitação de um prédio urbano a destacar do primeiro consoante essa
construção se destinar a um fim diferente - se se tratar, nomeadamente, de uma casa para habitação, economicamente
autónoma — ou se integrar na actividade económica que nele vier sendo desenvolvida - caso em que, ainda de acordo com
a definição legal citada, a construção não terá autonomia económica.
Assim tem entendido este STJ que, havendo essa autonomia económica, a acessão industrial imobiliária levará a
que o construtor adquira apenas a parcela respeitante ao edifício - cfr. acórdãos de 4/3/86, BMJ 355-442, de 6/7/89, BMJ
389-583, de 5/3/96, Col. Jur. - STJ, 1996-I-129, de 16/4/98, BMJ 476-428, de 10/2/00, BMJ 494-347 e de 17/2/00, Col. Jur. -
STJ, 2000-I-105.

E deve entender-se que o necessário confronto de valores será, nesse caso, feito entre o valor da construção e o
valor do terreno que integra a parcela em questão, pois esta, dada a sua autonomia, integra a noção de “totalidade do
prédio” a que se refere o art. 1340º - cfr., neste sentido, o citado acórdão de 16/4/98.

124
Porém, uma vez que este regime conduz a que haja a aquisição derivada do direito de propriedade sobre um
novo imóvel formado a partir de uma área de terreno que é excluída daquele a que originariamente pertencia, somos
necessariamente confrontados com as limitações legais a que se criem novos prédios, seja como simples divisão de um
prédio rústico em diversos prédios rústicos, seja como formação de um ou mais prédios urbanos a partir de área antes
incluída em prédio rústico.
Teve-se a percepção disto mesmo no acórdão de 6/7/89, onde foi tolerada a acessão imobiliária em caso desta
última espécie porque se demonstraram os requisitos legalmente exigidos, em especial a existência de alvará de
loteamento.
O mesmo entendimento foi já sustentado no voto de vencido aposto no acórdão de 17/2/00 e, também, em
estudo do Cons. Quirino Soares - cfr. Acessão e Benfeitorias, Col. Jur. - STJ, 1996-I-11 e segs., designadamente a pgs. 24.
E, sabido que a autonomização de parcelas de terreno, seja para com elas se constituírem novos prédios
rústicos, seja para darem lugar a prédios urbanos, está subordinada a requisitos sem cuja verificação serão inválidos os
respectivos actos constitutivos, não pode permitir-se que pela via da acessão industrial imobiliária se obtenha o que por via
negocial não seria possível conseguir. Aliás, já em hipótese com algumas semelhanças - a de se querer frustrar o direito de
preferência do confinante com a alegação de que se pretende afectar o terreno comprado à construção de uma residência -
se entendeu que a correspondente excepção a esse direito de preferência - a que é prevista no art. 1381º, al. a), parte final
- só funciona se se demonstrar que se poderá construir nesse local em conformidade com os condicionamentos legais -
doutrina que se abona no parecer de Manuel Henriques Mesquita, publicado na Col. Jur. 1986-V-51 e também na
orientação, constante e uniforme, deste STJ em casos desse tipo, evidenciada nos acórdãos de 31/1/80, 5/7/88, 22/11/88 e
11/7/91, publicados nos BMJ 293-358, 379-578, 381-592 e 409-803, de 21/6/94, publicado na Col. Jur. - STJ, 1994-II-154, e
ainda no proferido em 26/11/96 na revista nº 293/96, cujo relator foi o do presente.
O acórdão recorrido seguiu esta orientação. Mas rejeitou a pretensão da ora recorrente por entender que,
situando-se o prédio rústico em causa numa aglomeração urbana, haviam de verificar-se os requisitos exigidos pelo art. 5º
do DL nº 448/91, de 29/11, o que não estava demonstrado. E disse igualmente que a mesma pretensão não encontrava
tutela no DL nº 384/88, de 25/10, designadamente nos seus arts. 19º a 21º.

Vejamos.
O momento em que se adquire o direito de propriedade é, em caso de acessão, o da verificação dos factos
respectivos - cfr. art. 1317º, al. d).
Esses factos consistem, no caso que apreciamos, na ocorrência da incorporação da edificação no terreno e na
autorização dada a quem construiu aquela; ainda que se entenda que a acessão não é de funcionamento automática, antes
dependendo do exercício de um correlativo direito potestativo, sempre este exercício pressuporá o prévio nascimento do
correspondente direito, pelo que a data em que tal exercício tem lugar é irrelevante para o efeito.
Haverá, antes, que atender à da realização da construção — cfr., neste sentido, o acórdão deste STJ proferido
em 12/12/02 na revista nº 3568/02-7 e o parecer, nele citado, do Conselho Técnico dos Registos e Notariado que vem
publicado no Boletim dos Registos e Notariado, Julho, 7/2000, a fls. 74 e segs.
Relevando, por isso, para este efeito o ano de 1985, não pode fazer-se apelo, obviamente, ao DL nº 448/91 nem
ao DL nº 384/88. E, independentemente de o prédio rústico em causa estar, concretamente, situado numa zona regada ou
numa zona com potencialidades agrícolas e por via disso estar nesta data sujeito ao regime previsto nos arts. 23º e 24º do
Plano para o Ordenamento do Território na Região Autónoma da Madeira, aprovado pelo Decreto Legislativo Regional nº
12/95/M, de 24/6, também pela mesma razão este diploma não é de ponderar na decisão deste recurso.
E, assim, haveria que considerar, pela razão apontada, o DL nº 400/84, de 31/12.
Este diploma começa por exigir, no seu art. 1º, nº 1, al. a), licenciamento municipal para todas as acções que
tenham como objecto ou por efeito a divisão em lotes de qualquer área de um ou vários prédios destinados, imediata ou
subsequentemente, à construção; e no seu art. 2º, nº 1 — disposição paralela ao nº 1 do art. 5º do DL nº 448/91, ao qual o
acórdão recorrido se cingiu — dispensa de licenciamento a celebração de negócio jurídico que tenha como efeito a
transmissão, através do seu destaque, de uma única parcela de prédio inscrito ou participado na matriz, desde que se
verifiquem cumulativamente alguns requisitos, dois dos quais — os das suas al. c) e d), respectivamente haver projecto
para a construção de edifício com o máximo de dois fogos e ser mencionado na licença de construção que o prédio se situa
dentro de aglomerado urbano e que a parcela a destacar confronta com arruamento público existente — não estão
demonstrados.
Assim, a estar o prédio rústico em causa incluído em aglomerado urbano — o que o acórdão recorrido afirmou,
mas tem o desacordo de ambas as partes, tanto a recorrente como os recorridos —, o licenciamento não estaria
dispensado.
A não estar incluído em aglomerado urbano, também o não estaria — cfr. acórdão do STA de 30/1/97, Apêndice
ao D. Rep. de 25/11/99, Vol. I, pgs. 619 e segs..
Só que também ainda não é esta a sede legal da solução a adoptar, porque o art. 85º, nº 2 do DL nº 400/84 fez
depender a sua aplicação nas regiões autónomas de um diploma regional que adaptasse os seus princípios às realidades

125
locais. E esta adaptação foi feita, quanto à Madeira, pelo Decreto Legislativo Regional nº 19/86/M, de 1/10/86, que tornou aí
aplicável aquele DL mas que só entrou em vigor no dia imediato.
Assim, em 1985 vigorava na Madeira, nesta matéria, o DL nº 289/73, de 6/6, cujos arts. 1º e 27º condicionavam a
prévia licença da câmara municipal a divisão de prédios em lotes e a efectivação das respectivas operações, quer os
prédios se situassem em zonas urbanas, quer em zonas rurais.
Por isso, a falta de demonstração dos requisitos necessários para que possa ser validamente destacada a
parcela aqui em causa impede, não obstante a assinalada autonomia económica, que se lhe faça corresponder a
autonomia jurídica.
E, estando-se no campo de factos essenciais que não foram alegados, não pode este STJ usar a seu respeito a
faculdade conferida pelo art. 729º, nº 3, visto que os mesmos não podem ser averiguados ao abrigo do art. 264º, nº 2 - por
não serem instrumentais - e 3 - por não terem resultado da instrução e discussão da causa - e 265º, nº 3, todos do CPC. Na
verdade, o princípio da inquisitoriedade, aplicado à iniciativa de averiguação dos factos a usar na decisão, só vale quanto
aos instrumentais - cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Introdução ao Processo Civil, 2ª edição, pg. 62.
O que evidencia que, embora com razões jurídicas algo diversas, a solução acolhida no acórdão recorrido é de
manter.
Nega-se a revista.
Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Lisboa, 4 de Fevereiro de 2003

Ribeiro Coelho - Garcia Marques - Ferreira Ramos

Também por Ac. na Col. Jur. STJ 2003-II-15 se decidiu que o Tribunal não pode declarar a acessão sem prévio
cumprimento das leis administrativas que regulam o destaque e o loteamento.

Sobre indivisibilidade legal decidiu o STJ, em seu Acórdão (Cons.º Oliveira Barros) de 14.10.2004, no Pº 2962.04:

Não consentida pela lei dos loteamentos (art. 1º, n.º 1, 3º, al. a), 9º, n.º 1, 28º, n.º 1, 29º, 52º, 53º, n.º 1 e 56º, n.º
3 do Dec-lei n.º 448/91 de 29 de Novembro), a divisão do imóvel em substância sem prévia intervenção da Câmara
Municipal, ocorre indivisibilidade legal, aliás, de conhecimento oficioso, consoante n.º 4 do art. 1033º do CPC.

O valor devido pelo autor das obras, por quem exerce o direito de acessão, é o valor que o prédio tinha antes das
obras - art. 1340º, nº 1, in fine - nele realizadas, valor não actualizável apesar de se tratar de uma dívida de valor porque
este (valor) é previamente fixado pela lei: o valor que o prédio tinha antes das obras, da incorporação e não outro - RLJ
132-254 e 339 (A. Varela)
Dívidas de valor, sujeitas no próprio direito português constituído (art. 551º do Código Civil), ao princípio da sua
permanente actualização em face do valor oscilante da moeda, são aquelas que não têm directamente por objecto o
dinheiro, mas a prestação correspondente ao valor de certa coisa ou à satisfação de determinado objectivo como a
obrigação de alimentos, a obrigação de indemnizar por equivalente, a obrigação de restituir o enriqueci-mento obtido à
custa alheia, em que o dinheiro apenas intervém como um objecto temporal ou transitório de referência ou de liquidação da
prestação.

Contra: Ac. STJ, de 10.2.2000, BMJ 494-347 e da R.ão de Lisboa, de 24.1.2002, na Col. Jur.
02-I-88, entendendo que o valor do prédio antes das obras deve ser actualizado à data do exercício do
direito (potestativo) de acessão.

I - A boa fé como elemento constitutivo da acessão industrial imobiliária na modalidade prevista na parte final do
n.º 4 do art. 1340º do CC consiste na existência de autorização simples pelo dono do terreno para incorporação da obra.
II - Mas se a autorização para incorporação da obra for uma autorização negociada, com efeitos determinados
quanto ao benefício a retirar pelo autor da incorporação, não pode este retirar mais benefícios que os concedidos, estando
excluída a aquisição do terreno por acessão.
III - Neste caso, o conceito operativo de boa fé a considerar é o da boa fé - princípio geral do direito, a boa fé
como regra de actuação leal, correcta, no cumprimento das obrigações e no exercício dos direitos - Col. STJ 99-II-110.

Proc.n° 1524/05, Ac. STJ de 22.6.2005 – Consº Oliveira Barros:

I - Nos termos do art. 1325° C. Civ., a acessão industrial imobiliária ocorre quando com um prédio que é
propriedade de alguém se une e incorpora outra coisa que não lhe pertence, daí advindo uma ligação material, definitiva e

126
permanente entre a coisa acrescida e o prédio e a impossibilidade de separação das duas coisas sem alteração substancial
do todo obtido através dessa união.
II - Constituindo, fundamentalmente, um modo de resolução do conflito de direitos entre o dono da obra e o dono
do solo, a acessão industrial imobiliária é, conforme arts.1316° e 1317°, al.d), C. Civ., uma forma potestativa de aquisição
originária do direito de propriedade, de reconhecimento necessariamente judicial, em que o pagamento do valor do prédio
funciona como condição suspensiva da sua transmissão, embora com efeito retroactivo ao momento da incorporação,
III - Os pressupostos substantivos da acessão industrial imobiliária, estabelecidos no art. 1340° C. Civ., são os
seguintes:
a) - a incorporação consistente no acto voluntário de realização da obra, sementeira ou plantação;
b) - a natureza alheia do terreno sobre o qual é erguida a construção, lançada a sementeira ou efectuada a
plantação;
c) - a pertinência inicial dos materiais ao autor da incorporação;
d) - a formação de um todo único entre o terreno e a obra;
e) - o maior valor da obra relativamente ao terreno; e
f) - a boa fé do autor da incorporação.
IV - Não agindo de boa fé quem sabe ou admite que a construção é feita em terreno alheio, a boa fé exigida para
este efeito consiste, conforme n°4 do mesmo art.1340°, em o autor da obra desconhecer que o terreno era alheio ou em a
incorporação ter sido autorizada pelos donos do terreno, e deve existir no momento da construção.
V - Na falta de autorização expressa, a autorização pode revestir a forma tácita, ou seja, pode assentar em factos
que, com toda a probabilidade, a revelem, ou seja, em situações em que a autorização resulta de um negócio que pretende
ter por consequência a transmissão do prédio a favor do autor da incorporação, como é, por exemplo, o caso de um
contrato translativo nulo por falta da forma legal.
VI - É ainda pressuposto da acessão industrial imobiliária o pagamento do valor que o prédio tinha antes da obra.
VII - Tendo este Tribunal competência limitada à matéria de direito ( art.26° LOFTJ - Lei n°3/99, de 13/1 ), está-
lhe vedado o uso das presunções simples, naturais, judiciais ou hominis que os arts 349° e 351° C. Civ. consentem às
instâncias, e, salvo ilogismo, não cabe, sequer, nas suas atribuições a censura das presunções dessa natureza de que as
mesmas entendam usar.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Azevedo Ramos), de 18.12.2007, no Pr.º 07A4132:

I – A obrigação de pagamento imposta ao adquirente das construções incorporadas em determinado terreno é


tida como dívida de valor, que não está condicionada ao princípio nominalista.
II – O direito de acessão é um direito potestativo e, por isso, o momento a atender na fixação do valor da
indemnização, é o da manifestação de vontade do beneficiário de exercer o seu direito.
III – Daí que o montante a pagar pelo beneficiário da acessão deva ser a expressão pecuniária actualizada
(momento da conversão em dinheiro segundo o valor que tais bens tenham) do valor que o prédio tinha antes da
incorporação (na hipótese do nº 1, do art. 1340 do C.C.) ou do valor que as obras tinham à data da incorporação (no caso
do nº 3, do mesmo artigo).

Dispõe o art. 1340, do C.C., na parte que agora interessa considerar:


“1 - Se alguém, de boa fé construir obra em terreno alheio, ou nele fizer sementeira ou plantação, e o valor que
as obras, sementeiras ou plantações tiverem trazido à totalidade do prédio for maior do que o valor que este tinha antes, o
autor da incorporação adquire a propriedade dele, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, sementeiras ou
plantações.
2 - (...)
3 - Se o valor acrescentado for menor, as obras sementeiras ou plantações pertencem ao dano do terreno, com a
obrigação de indemnizar o autor delas do valor que tinham ao tempo da incorporação.
4 - (...) “

Foi declarado o direito da autora adquirir, por acessão, nos termos do art. 1340, nº 3, do C. C., o prédio urbano
composto por casa de habitação de rés-do-chão e um anexo, com a superfície coberta de 45 m2 e 28 m2, respectivamente.
Tal casa e anexo tinham os valores de 510 euros e 140 euros, respectivamente, o que perfaz o valor global de
650 euros, à data da respectiva incorporação no prédio da autora, ocorrida em 1971.

Na 1ª instância, foi decidido que, estando em causa uma dívida de valor, subtraída ao princípio nominalista,
consagrado no art. 550 do C.C., aquele valor do prédio deve ser actualizado desde a data da incorporação até à data mais
recente que puder ser atendida pelo tribunal, ou seja, até á data daquela sentença, proferida em 17-11-06. de acordo com a
tabela de índices de preços ao consumidor publicada pelo Instituto Nacional de Estatística.

127
Recorrendo a tais índices, durante o indicado período, foi obtido o valor de 30.898,60 euros, que a autora foi
então condenada a pagar aos réus.

Todavia, na Relação, foi considerado:


- que, para efeitos da determinação da indemnização a que alude o citado art. 1340, nº 3, só releva a contribuição
das construções existentes à data da incorporação, ficando de fora as citadas benfeitorias realizadas pelos réus, em 1990,
por terem ocorrido após a incorporação e não se confundirem com a acessão, que se verificou em 1971. Por isso, tendo as
benfeitorias tratamento diferenciado, manteve a condenação da autora no pagamento aos réus do seu respectivo valor, a
liquidar em execução de sentença.
- que a indemnização a pagar pela autora, como beneficiária da acessão, não deve ser feita com recurso à
aplicação dos índices de preços ao consumidor publicados pelo INE. Tratando-se de uma dívida de valor, tal indemnização
está sujeita ao princípio da sua permanente actualização, de tal modo que o momento a atender na fixação da
indemnização será o da manifestação da vontade de exercer o direito de acessão. E, assim, foi a autora condenada a
pagar aos réus o montante de 650 euros, correspondente ao valor das construções ao tempo da incorporação, acrescido
do montante que se vier a liquidar em execução de sentença, referente ao apuramento do seu valor actualizado.

Ora, a decisão da Relação, quanto ao modo de actualização do valor das construções ao tempo da incorporação,
merece a nossa concordância.
Trata-se de posição que já foi defendida nos Acórdãos do S.T.J. de 5-3-96 (Col. Ac. S.T.J., Ano IV, 1º, 129) e de
10-2-00 (Bol. 494-351), e que encontra apoio na doutrina (Oliveira Ascensão, Direitos Reais, 5ª ed., pág. 306 e segs;
Menezes Cordeiro, Direitos Reais, Vol. II, pág. 721) .

Não sofre dúvida que a obrigação de pagamento imposta ao adquirente das construções incorporadas em
determinado terreno é tida como dívida de valor, que não está condicionada ao princípio nominalista do art. 550 do C.C.
O direito de acessão é um direito potestativo e, por isso, o momento a atender, na fixação do valor da
indemnização, é o da manifestação de vontade do beneficiário de exercer o seu direito.
Por isso, o montante a pagar pelo beneficiário da acessão deve ser a expressão pecuniária actualizada (momento
da conversão em dinheiro segundo o valor que tais bens tenham) do valor que o prédio tinha antes da incorporação (na
hipótese do nº 1 do citado art. 1340) ou do valor que as obras tinham à data da incorporação (no caso do nº 3, do mesmo
artigo).
Assim, na fixação do montante da indemnização, há que atender ao momento da manifestação da vontade de
exercer o direito de acessão, pois é nesse momento que se dá a conversão em dinheiro do valor que as construções
tinham antes da incorporação.
Conforme já foi salientado pela Relação, é de rejeitar a actualização desde a incorporação, de acordo com os
índices anuais dos preços ao consumidor fornecidos pelo INE, pois tais índices representam tabelas sucessivas de subidas
dos preços, conduzindo, no caso dos autos, a uma injustificada sobrevalorização das construções, que não tem em
consideração nem a depreciação da moeda, nem a degradação do prédio causada pelo decurso do tempo, que constitui
um notório factor de desvalorização.
Como não resultou provada a expressão pecuniária actualizada (reportada ao citado momento em que se
manifestou a vontade de exercer o direito de acessão) do valor que as construções tinham à data da incorporação (casa de
rés do chão e anexo), foi relegado o seu apuramento para liquidação em execução de sentença.

Termos em que negam a revista.


Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 18 de Dezembro de 2007

Azevedo Ramos (relator) Silva Salazar Nuno Cameira

Estudo da autoria do Ex.mo Cons.º Quirino Soares sobre acessão e benfeitorias na Col. STJ
96-I-11 e ss.

COMPROPRIEDADE - 1403º a 1413º

Como se vê do art. 1403º, nº 1, do CC, existe compropriedade, ou propriedade comum,


quando duas ou mais pessoas detêm simultaneamente direito de propriedade sobre uma mesma
coisa.

128
As situações jurídicas de cada um dos consortes ou comproprietários são qualitativamente
iguais, sendo indiferente que o sejam ou não sob o ponto de vista quantitativo, presumindo-se as
quotas quantitativamente iguais se outra coisa não resultar do título constitutivo - 1403º, nº 2.
As regras da compropriedade são aplicáveis à comunhão de quaisquer outros direitos, com as
necessárias aplicações, e sem prejuízo do que para cada um destes a lei especialmente dispuser -
1404º.
Com efeito, pode haver comunhão em todos os direitos reais: co-usufruto, co-servidão,
composse, etc.
Figuras próximas:

Na comunhão conjugal existe um património colectivo, um património com dois sujeitos que
dele são titulares e que globalmente lhes pertence.
Essa massa patrimonial não se reparte entre os cônjuges por quotas ideais, como na
compropriedade ou comunhão do tipo romano: antes, como na antiga comunhão de tipo germânico,
pertence-lhes em bloco e só em bloco.
Os bens comuns constituem uma massa patrimonial a que, em vista da sua especial
afectação, a lei concede um certo grau de autonomia, e pertence aos dois cônjuges, podendo dizer-se
que os dois são titulares de um único direito.
Marido e mulher não têm qualquer fracção de direito que lhes corresponda individualmente e
de que, como tal, possam dispor; como, individualmente, não podem dispor da sua posição em face do
património comum por acto "inter vivos".
Trata-se de um património que pertence em comum a duas pessoas, mas sem se repartir
entre elas por quotas ideais, como na compropriedade: enquanto que a compropriedade é uma
comunhão por quotas, aquela é uma comunhão sem quotas.
Dissolvido o vínculo conjugal, o património comum degenera em comunhão ou
compropriedade do tipo romano, podendo então, qualquer dos consortes dispor da sua quota ideal ou
pedir a divisão da massa patrimonial através da partilha.

Nos termos do art. 1689º do CC - Partilha do casal. Pagamento de dívidas

1. Cessando as relações patrimoniais entre os cônjuges, estes ou os seus herdeiros recebem


os seus bens próprios e a sua meação no património comum, conferindo cada um deles o que dever a
este património.
2. Havendo passivo a liquidar, são pagas em primeiro lugar as dívidas comunicáveis até ao
valor do património comum, e só depois as restantes.
3. Os créditos de cada um dos cônjuges sobre o outro são pagos pela meação do cônjuge
devedor no património comum; mas, não existindo bens comuns, ou sendo estes insuficientes,
respondem os bens próprios do cônjuge devedor.

E como disposto no art. artigo 1730º - Participação dos cônjuges no património comum -
1. Os cônjuges participam por metade no activo e no passivo da comunhão, sendo nula
qualquer estipulação em sentido diverso.
2. A regra da metade não impede que cada um dos cônjuges faça em favor de terceiro
doações ou deixas por conta da sua meação nos bens comuns, nos termos permitidos por lei.

Após o divórcio e antes da partilha o património permanece em situação de propriedade


colectiva ou de mão comum mas equiparada à compropriedade - 1404º - regulando-se não pelas

129
normas do direito de família mas pelas dos direitos das coisas que disciplinam a comunhão de bens ou
direitos - Col. 92-IV-295 e A. Varela, na RLJ 126-304 e ss.

Aos bens comuns após a morte de um dos cônjuges mas antes da partilha aplicam-se as
regras da compropriedade - BMJ 452-343.

Natureza dos bens após divórcio de casados em comunhão de adquiridos, actos de uso e
outros, acção de acessão imobiliária e de reivindicação; prédio construído em terreno de outrem - H.
Mesquita, na RLJ 129-334.

«Os bens comuns do casal constituem um património autónomo especialmente afectado aos encargos da
sociedade conjugal.
Não se trata de um regime de compropriedade, este envolvido pelo interesse individual dos comproprietários, que
podem requerer a divisão da coisa comum, mas de uma propriedade colectiva, afectada aos encargos da sociedade
conjugal, insusceptível de divisão enquanto durar o casamento.
É, com efeito, a contitularidade de duas pessoas num mesmo direito que, além de único, é uno, o que se
consubstancia em comunhão una, indivisível e sem quotas.
Tratava-se, pois, reportando-nos à vigência do respectivo casamento, de um património autónomo pertencente à
recorrente e a C, ambos se configurando como titulares de um mesmo direito sobre ele, insusceptível de comportar a
divisão ideal de quota.

Dissolvido o casamento da recorrente e de C, por divórcio, no dia 25 de Outubro de 1993, extinguiram-se as suas
relações pessoais e patrimoniais dele decorrentes, passando o seu património de mão comum à situação de indivisão até
que eles operassem a respectiva partilha.
Dada a finalidade do referido património, no confronto com eventuais direitos de crédito activos ou passivos, o
mesmo não se transmutou em mera situação de compropriedade, tendo mantido sua a estrutura inicial até à respectiva
divisão e partilha.
Isso significa que a recorrente não tem algum direito sobre ele de que possa dispor só por si, designadamente o
de crédito relativo às benfeitorias que invocou em sede de reconvenção - Ac. do STJ (Consº Salvador da Costa), de
11.10.2005, na base de dados do ITIJ

A herança reveste a fisionomia de um património autónomo, separado, em confronto com o


património pessoal dos herdeiros.
Antes da partilha, a herança é uma «universitatis juris» com conteúdo próprio fixado na lei.
Os herdeiros são titulares de um direito indivisível enquanto se não fizer a partilha; até à
partilha tal direito recai sobre o conjunto da herança e não sobre bens certos e determinados, sobre
uma quota ideal da herança e não de cada um dos bens que constituem a herança.

Meação e a herança não se confundem: a titularidade daquela constitui um direito próprio


relacionado com o vínculo conjugal e regime de bens do casal; a meação resulta do fenómeno
sucessório. São patrimónios autónomos, distintos e com diversa afectação - Ac. de 1.2.95, na Col.
(STJ) 95-I-58.
Herança indivisa - Aceitação da herança - Partilha - Arrendamento de imóveis - Regime de comunhão
de adquiridos Consentimento do cônjuge

I - A comunhão hereditária, geralmente entendida como universalidade jurídica, não se confunde com a
compropriedade (v. artigo 1403º, nº 1, do Código Civil), uma vez que os herdeiros não são simultaneamente titulares do
direito de propriedade sobre a mesma coisa.
II - Da aceitação sucessória apenas decorre directamente para cada um dos chamados o direito a uma quota
hereditária, sendo que os herdeiros são titulares, apenas, de um direito à herança, universalidade de bens, ignorando-se
sobre qual ou quais esse direito hereditário se concretizará, bem podendo tais bens ficar a pertencer só a alguns ou a um,
sendo os demais compensados com tornas.
III - Até à partilha, os herdeiros são titulares tão-somente do direito a uma fracção ideal do conjunto, não podendo
exigir que essa fracção seja integrada por determinados bens ou por uma quota em cada um dos elementos a partilhar

130
sendo certo que só depois do realização da partilha é que o herdeiro poderá ficar a ser proprietário ou compro prietário de
determinado bem da herança.
IV - Não sendo o réu, à luz dos precedentes princípios jurídicos, proprietário nem comproprietário de qualquer dos
prédios pertencentes à herança indivisa, e não sendo, por isso, esses imóveis próprios dele, não carece, para o
arrendamento dos mesmos, do consentimento da esposa, com quem está casado em regime da comunhão de adquiridos -
Ac. STJ, Ac. de 26.1.99 (S. Paixão), no BMJ 483-211

É discutida a natureza jurídica da compropriedade. Para uns (Mota Pinto e Manuel Rodrigues) na
compropriedade cada um dos comproprietários é titular de um direito sobre uma quota ideal ou intelectual da coisa, que
constitui o seu objecto (1403º nº 2, 1408º e 1410º referem-se a quotas dos consortes).
Esta doutrina não explica os poderes dos comproprietários sobre a própria coisa, no seu todo e não sobre quotas,
meramente ideais ou intelectuais, como acontece no significativo poder de uso.
Outros (Lisboa) vêem na compropriedade um conjunto de direitos de propriedade, coexistindo sobre toda a coisa
e não sobre qualquer realidade ideal ou imaterial, como seria a quota, nem sequer sobre uma parte da coisa.
Do disposto no art. 1405º, nº 1 parece resultar o acerto desta doutrina: o conjunto dos poderes dos
comproprietários corresponde aos poderes dos proprietários singulares; mas na actuação desses poderes interfere o
aspecto quantitativo, pelo que os comproprietários só participam nas vantagens da coisa e só suportam os correspondentes
encargos na «proporção das suas quotas».
H. Mesquita trata a compropriedade como pessoa colectiva: na compropriedade haveria um só direito com vários
titulares. Tese sem apoio no regime da lei que considera os direitos qualitativamente iguais, permite a cada consorte onerar
ou dispor da sua quota (art. 1408º, nº 1, CC) e renunciar ao seu direito (1411º, nº 1, in fine).

Na compropriedade, havendo uma mera justaposição de direitos qualitativamente iguais, não está em causa mais
do que o uso e fruição da coisa comum pelo conjunto dos consortes.
Pelo contrário, na sociedade, a realização do fim comum - obtenção de lucro a repartir pelos sócios - não se
contenta com tão pouco, pelo que ela não pode ter como objecto uma mera actividade económica de fruição (artº 980º). A
actividade da sociedade tem de potenciar rendimentos, o que implica a criação de utilidades adicionais.

A - Isoladamente cada comproprietário pode:

1 - usar a coisa comum - 1406º, nº 1;


2 - onerar e ou dispor da sua quota - 1408º, nº 1;

Nulidade e ineficácia de disposição ou oneração de toda a coisa comum ou de parte


especificada dela, embora na proporção da sua quota – n.º 2:

Se um comproprietário, sem consentimento dos restantes, alienar parte específica da coisa


comum, ou toda ela, como coisa alheia, resulta do artº 893° valer o acto como venda de coisa futura,
com mera eficácia obrigacional, nos temos do n.° 2 do art.º 408º.
Sendo, porém, feita a venda como se de coisa própria se tratasse, comina a primeira parte do
artº 892º a nulidade do acto, por falta de legitimidade do alienante. A moderna doutrina vem, porém,
entendendo, sem discrepância de vulto, ser essa nulidade restrita às relações entre as partes.

No que respeita ao verdadeiro titular - in casu, aos restantes comproprie-tários - a alienação é


ineficaz - Col. Jur. STJ 2003-I-106 e 04-II-63:
Venda por um só dos comproprietários
Ineficácia em relação aos consortes que não consentiram
Redução do negócio
Usucapião

(Acórdão de 18 de Maio de 2004, Consº Reis Figueira)

SUMÁRIO:
I - A venda, por um só dos comproprietários, da totalidade da coisa comum é nula nas relações entre vendedores
e compradores, mas ineficaz em relação aos consortes que nela não consentiram.

131
II - Os quais, inoponível que lhes é a venda, podem por isso comportar-se como se ela não existisse: por
exemplo, reivindicando do terceiro adquirente a coisa comum.
III - Num caso destes, a conversão do negócio e a redução da venda da totalidade à venda da quota parte de que
o vendedor podia dispor depende de se poder concluir que, tendo em conta o fim prosseguido pelas partes, seja de concluir
que, caso elas tivessem previsto a ineficácia, teriam querido a compra e venda só da quota (vontade hipotética).
IV - Se esta vontade hipotética não foi alegada, não pode operar-se a conversão e a redução do negócio.
V - Mas, se o prédio assim vendido na totalidade por um só comproprietário, tem estado na posse do comprador,
nas condições e pelo período necessário para a usucapião, a propriedade dele acabou por ser por ele originariamente
adquirida, por usucapião.


Deste modo, temos que os primeiros RR., sendo embora apenas comproprietários do prédio vendido, na razão de
metade, o venderam na totalidade.
Aplica-se aqui o disposto no art. 1.408°, n° 2 do CC, conforme doutrinam Pires de Lima e Antunes Varela: «o
comproprietário que aliena ou onera parte especificada da coisa comum (ou toda a coisa comum) dispõe não apenas do
seu direito, mas também do que não lhe pertence, ou seja, do direito dos outros comproprietários sobre a coisa comum. Em
relação a estes, trata-se de uma alienação ou oneração de coisa alheia (...). Consequentemente, o negócio será ineficaz
em relação aos consortes que nele não consentiram, tal como é ineficaz, em relação ao verus dominus, a alienação ou
oneração de coisa totalmente sua em que ele não consinta. Aqueles consortes não carecem de fazer anular o negócio,
podendo comportar-se como se não tivesse sido celebrado.
Se, por exemplo, for vendida, apenas por um dos comproprietários, numa parte especificada da coisa comum [ou,
aditamos nós, a totalidade da coisa comum, por o regime ser o mesmo], poderá qualquer dos outros contitulares, uma vez
que o negócio lhe é inoponível, reivindicá-la das mãos do comprador» ("CC Anotado", vol. III, 2ª edição, 365 e 366).
Esta doutrina corresponde ao acolhimento da doutrina de Vaz Serra, em RLJ, Ano 103-58 (aqueles Autores
desvalorizam a venda de toda a coisa comum por um só dos consortes, porque julgam poder ocorrer "só no domínio dos
factos" [pág. 364]. No entanto, é disso precisamente que se trata aqui, o que dá bem a noção da singularidade do presente
caso...).

Adaptando esta doutrina ao nosso caso, em que a Ré Albertina e seu marido venderam a totalidade do prédio,
como se fossem proprietários únicos, quando eram comproprietários e nele tinham apenas uma quota parte de metade, a
alienação é nula nas relações entre vendedores e compradores, mas ineficaz para os outros comproprietários que não
consentiram (e por isso é-lhes inoponível): arts. 1.408°, n°- 2 e 892° do CC. Também assim na doutrina, Carvalho
Fernandes, "Lições de Direitos Reais", 2001, 343 e Henrique Mesquita, "Direitos Reais", lições de 1967, 261.

Portanto, e sintetizando:
a) - a venda feita pelos primeiros RR. aos segundos RR. é nula nas relações entre ambos, embora os vendedores
não possam opor a nulidade aos compradores, porque estes intervieram de boa fé, na medida em que adquiriram a
totalidade por escritura a quem tinha a totalidade registada em seu favor (além de que os segundos RR. têm registo da
aquisição em seu favor anterior mais de três anos em relação ao registo da presente acção, pelo que também por isso os
primeiros RR. não poderiam opor a nulidade aos segundos RR.: art. 291° do CC);
b) - mas, em relação aos AA., que são terceiros de boa fé em relação ao negócio efectuado, a venda é ineficaz:
arts. 1.408°, n° 2, e 892°, do CC; o que significa que os AA. podem exercer eficazmente aqui os seus direitos,
independentemente de, entre as partes no negócio, a venda ser nula ou válida.
Mas, a alienação é ineficaz para os AA., na totalidade, ou na apenas na razão da metade de que os RR. não
podiam dispor sem consentimento dos outros consortes? Esta questão, colocada pela primeira vez pelos recorrentes no
presente recurso de revista, é por isso uma questão em si mesmo nova em relação às questões postas à Relação.
Entende-se, não obstante, dever este Tribunal conhecê-la, porque se trata de uma questão de direito implícita na questão
da ineficácia, que foi colocada e resolvida pela Relação: posta a questão da ineficácia, na forma de ineficácia total, pode o
Tribunal conhecer essa questão, na forma de ineficácia parcial, porque quem pode conhecer do todo pode conhecer da
parte: arts. 660º, nº 2, e 661 °, nº 1, do CPC.
A lei não resolve directamente esta questão no capítulo da compropriedade (arts. 1.403° a 1.413° do CC), pelo
que temos que recorrer aos princípios gerais dos negócios jurídicos: redução e conversão dos negócios jurídicos nulos
(arts. 292° e 293° do CC).
De facto, os primeiros RR. podiam alienar, sem consentimento de ninguém, a sua quota-parte (metade): art.
1.408°, n° 1. Se tivessem alienado a sua quota parte, pela compra que lhes fizeram, os segundos RR. teriam adquirido
essa metade. Mas o negócio foi de venda e compra da totalidade, e os compradores registaram em seu favor a aquisição
da totalidade, deste modo se tornando adquirentes de boa fé, porque adquiriram por título legítimo a quem tinha em seu
favor o registo da totalidade: art. 291 °-, nº 1, do CC e fls. 140 dos autos.

132
Por que hão-de ter de restituir a totalidade do prédio, se o compraram de boa fé e na totalidade e registaram essa
aquisição? Porque hão-de ter de pagar uma indemnização por danos na forma de perda de rendimentos (rendas que os
AA, deixam de receber), se a ocupação que dele fazem é para eles lícita (titulada e de boa fé), motivo até por que a
nulidade nem pode ser- -lhes oposta pelos vendedores? Como se compreenderia que o negócio feito seja para
os consortes totalmente ineficaz? Justificar-se-á a redução do negócio?
Estas são as questões mais delicadas colocadas no presente recurso.

Escreveu Vaz Serra (RLJ, Ano 103°-58 e segs.): «A venda de coisa comum, feita por um dos comproprietários,
ineficaz em relação aos outros, pode converter-se na venda da quota do vendedor, quando contiver os requisitos de
substância e de forma desta venda e o fim prosseguido pelas partes permitir supor que elas a teriam querido, se tivessem
previsto a ineficácia (art. 293° do CC)». Solução esta importada do art. 1.424° do CC italiano, como ali se refere, e se
insere na linha do que já era propugnado por Manuel Andrade, " Teoria Geral de Relação Jurídica”, vol. II, 433 e segs.
Como notam esses Autores, não se trata apenas de uma conversão, mas de primeiro fazer operar uma
conversão (converte-se a venda da coisa comum na venda da quota parte) e depois proceder a uma redução do negócio à
venda dessa quota-parte resultante da conversão.
Decisivo é que, tendo em conta o fim prosseguido pelas partes, seja de concluir que elas, caso houvessem
previsto a ineficácia, teriam querido a compra e venda da quota do vendedor (vontade hipotética), porque tal é condição
para a conversão: art. 293° do CC e Autores citados (na dúvida sobre a vontade hipotética, não será de operar a
conversão: Andrade, 435).
Ora, a vontade hipotética nunca foi alegada (nem por isso poderia ser provada) nos autos e decerto o comprador
não quereria adquirir só parte, porque isso o colocaria numa posição de comproprietário do prédio.
Consequentemente, o negócio, ineficaz para os aqui AA., não pode ser convertido (reduzido) para venda da
quota que os vendedores tinham nele.
A consequência continua a ser a da ineficácia quanto aos contitulares que não venderam: os AA. e os irmãos do
Autor marido.

Mesmo inter partes a nulidade não segue o regime geral, porquanto se estabelecem restrições
à normal legitimidade para a arguir. Assim, o vendedor não a pode invocar perante o comprador de
boa fé, tal como o comprador doloso a não pode opor ao vendedor de boa fé (artº 892º, 894º e ss.).

Possibilidade de redução ou conversão comuns de venda de parte especificada da coisa -


293º e 292º CC - para, de seguida, o comproprietário exercer o direito de preferência:

Quando, porém, outro comproprietário pretende exercer o direito de preferência, parece razoável que a
conversão seja possível a requerimento dele, para poder exercer esse direito, mesmo que não seja de supor que as partes
teriam querido a compra e venda da quota ideal do vendedor; é que então não pode opor-se à conversão qualquer
interesse legítimo das partes: do vendedor porque se desfez de parte especificada ou de toda a coisa comum; do
comprador porque está sujeito à preferência e comprou - se toda a coisa - a non domino - RLJ 103-60, citado na Col. 89-I-
60.

O direito de preferência dos art. 1409º e 1410º é tratado a propósito dos direitos legais de
preferência.
De notar a natureza real do direito de preferência legal, com inerência, sequela e eficácia erga
omnes, sem necessidade de registo, em contraste com o direito de preferência convencional a que não
tenha sido atribuída eficácia real (416º e 421º):

ACÇÃO DE PREFERÊNCIA
Sua natureza e efeitos
Aquisição posterior do bem por terceiros

(Acórdão de 9 de Novembro de 2004, Cons.º Alves Velho)

SUMÁRIO:
I - O direito legal de preferência é um direito dotado de eficácia real ou erga omnes.

133
II – Reconhecido judicialmente tal direito, na competente acção instaurada para o efeito, os respectivos efeitos
retroagem, assim, à data da realização da alienação do bem, tudo se passando, juridicamente, quanto à titularidade do
direito transmitido, como se o contrato de alienação tivesse, desde o início, sido celebrado com o preferente.
III - Desse modo, qualquer aquisição ulterior do bem em causa por terceiros, na sequência da disposição do
mesmo, entretanto efectuada, pelo primitivo comprador, deve ser considerada a non domino, e como tal é inoponível ao
direito de propriedade adquirido pelo preferente, por ferida de nulidade ou mesmo de ineficácia.
IV - No caso, porém, de tais aquisições por terceiros terem sido registadas antes do registo de acção de
preferência, este, por força do disposto no art. 271 °, nº 3, do CPC, não produz efeitos processuais de caso julgado em
relação àqueles.
V - Todavia, tais situações em nada afectam a natureza absoluta do direito (substantivo) real do preferente, pelo
que este, em caso de recusa de entrega do bem em causa, apenas terá de convencer o terceiro adquirente da titularidade
daquele seu direito, instaurando, para o efeito, contra ele a competente acção (v. g. de reivindicação).

Ac. do STJ (Cons.º Oliveira Vasconcelos) de 27.5.2008, no Pr.º 08B1286:

I) - Apesar de a procedência de uma acção de preferência ter como resultado a substituição, com eficácia “ex
tunc”, do adquirente pelo preferente, o contrato celebrado entre o alienante e o adquirente produz a sua eficácia translativa
normal, mas em virtude da existência de um direito de opção, a posição jurídica do adquirente fica sujeita, por força da lei, a
uma “condição” (conditio juris) resolutiva: ele perderá o direito que adquiriu se a preferência vier a ser triunfalmente
exercida.
II) - O contrato celebrado entre o alienante e o primitivo adquirente não deixou de produzir eficácia translativa.

III) - Destas considerações decorre que durante o período em que mediou entre o contrato de compra e venda
inicial e a decisão final proferida na acção de preferência, o primitivo adquirente tinha uma ligação jurídica ao terreno: o
direito de propriedade.

IV) – Consequentemente, julgada procedente a acção de preferência, não podia esse primitivo adquirente invocar
a acessão industrial imobiliária como forma de aquisição do direito de propriedade.

3 - reivindicar a coisa comum, não podendo o terceiro opor-lhe que ela não lhe pertence por
inteiro - 1405º, nº 2; Porém, só os titulares em conjunto podem exercer o direito potestativo de
aquisição por acessão - RLJ 129-334.

B - Por maioria - Na falta de convenção em contrário, a administração cabe, por igual, a todos
os consortes - 1407º e 985º para que aquele remete; de administração são os actos de fruição da
coisa comum, da sua conservação ou beneficiação, e ainda, actos de alienação de frutos.

O STJ - Col. 95-II-125 - entendeu que um comproprietário, mesmo desacompanhado dos restantes, tem
legitimidade para reclamar a indemnização por danos de carácter patrimonial causados por outrem, no prédio comum.
(Entendeu-se não ser aplicável o art. 1407º, nem ser caso de litisconsórcio necessário no caso de exercício do direito de
indemnização por danos).

C - Por unanimidade
- disposição de toda a coisa ou de parte especificada dela - 1408º, nº 2;
- arrendamento de prédio indiviso - 1024º, nº 2;
- renúncia ao direito por um dos comproprietários para se eximir às despesas de conservação
ou fruição da coisa comum, nos termos do art. 1411º, n.os 1 e 2.

Encargos e despesas - 1407º, nº 1 e 1411º, nº 1.


Divisão - Salvo cláusula em contrário (prazo de cinco anos, renovável por nova convenção; em
relação a terceiros, registo se de imóvel se trata, assim como escritura pública - A. Varela, CC
Anotado) nenhum dos comproprietários é obrigado a permanecer na indivisão - 1412º, nº 1.
Extrajudicial - 1413º - (forma da compra e venda) ou judicial, pelo processo regulado nos art.
1052º a 1057º CPC.

134
É duvidoso que o A. possa desistir do pedido na acção de divisão de coisa comum. Não admitiu a desistência a
Relação do Porto, na Col. 1977-I-72; admitiu-se tal desistência no Ac. publicado na Col. 96-II-131.

PROPRIEDADE HORIZONTAL
1414º a 1438ºA
A propriedade horizontal foi instituída em Portugal pelo Dec-Lei nº 40.333, de 14.10.1955, tendo o regime então
consagrado transitado para o CC (art. 1414º e ss.), alterado pelo Dec.-Lei nº 267/94, de 25 de Outubro, ditado, como do
respectivo preâmbulo consta, pela necessidade de «aperfeiçoar regras e adaptar outras à evolução entretanto verificada,
suprindo omissões de regulamentação entretanto suscitadas e vencendo «algumas dificuldades de aplicação desfavorá-
veis ao progresso do instituto, sem, todavia, modificar o rumo escolhido pela lei antecedente».
A PH resultou da necessidade de dar habitação às populações que cada vez mais se concentram nos centros
urbanos, sacrificando o espaço aéreo com a construção em altura em favor da superfície em que menos moradias
independentes se construiriam.

É controvertida a natureza jurídica da Propriedade Horizontal.


Desde a teoria da indivisão forçada segundo a qual o edifício parcelado em distintas fracções pertence em
compropriedade aos diversos titulares dessas fracções, não sendo estes detentores de qualquer direito de propriedade
singular mas apenas da faculdade de fruir em exclusivo determinada fracção do edifício de que, afinal, são
comproprietários,
à da servidão - cada fracção é objecto de propriedade plena, embora onerada com um direito de servidão a favor
das que dele dependem,
ou aos que consideram a PH uma situação ou relação propter rem, sob a forma de um onus
ou lhe atribuem natureza dualista (M. Pinto e Dias Marques), pois a PH é integrada por um concurso de dois
direitos: um direito de plena propriedade sobre as partes privativas (cada condómino é pleno proprietário de cada uma das
fracções independentes de que se compõe o prédio sujeito ao regime da propriedade horizontal), e este direito é uma
“plena in re potestas” conferindo os poderes do proprietário; Coexiste, com esta plena propriedade, uma compropriedade
(forçada) nas partes comuns (cada um dos condóminos é, além de proprietário pleno da sua parte privativa,
comproprietário das partes comuns), que está ligada à propriedade plena da parte privativa, de tal forma que na alienação
do direito de propriedade horizontal vão co-envolvidos a propriedade sobre a parte privativa e o direito de compropriedade
sobre as partes comuns,
os que a consideram um direito real novo (O. Ascensão), complexo, pois combina figuras preexistentes de
direitos reais; propriedade e compropriedade, que se mantêm distintas por força da diversidade do seu objecto, um direito
real composto, pois os dois direitos reais fundem-se para constituir uma unidade nova (1420º, nº 2); mais recentemente,
este Autor considera a PH uma propriedade especial.

Para P. Lima-A. Varela, o que verdadeiramente caracteriza a propriedade horizontal é a fruição de um edifício por
parcelas ou fracções independentes, mediante a utilização de partes ou elementos afectados ao serviço do todo. Trata-se,
em suma, da coexistência, num mesmo edifício, de propriedades distintas, perfeitamente individualizadas, ao lado da
compropriedade de certos elementos, forçadamente comuns" - 1420º, nº 1 e 1421º.
A aplicação do regime - com as devidas adaptações - da PH a conjuntos de edifícios contíguos, funcionalmente
ligados entre si pela existência de partes comuns afectadas ao uso de todas ou algumas unidades ou fracções que os
compõem (1438ºA) veio modificar em certa medida o conceito de propriedade horizontal e tornar menos adequada esta
designação do instituto para abranger essa nova realidade.

Carvalho Fernandes, em Cadernos de Direito Privado, n.º 15, Julho a Setembro de 2006, pág. 3 a 14, conclui que
para bem se captar e traduzir a sua realidade jurídica, deve ele ser encarado como um «tipo específico de direito real de
gozo».
1414º

A fracção autónoma objecto de propriedade singular é fracção por ser parte de um todo e
autónoma por não depender de qualquer outra para prestar as utilidades a que se destina.
Enquanto proprietário da sua fracção - que é individualizada por letra distinta (82º, nº 2, do C.
R. Predial) - exerce ele o seu direito com exclusão dos demais condóminos, embora com as limitações
próprias de tal situação - art. 1422º; enquanto comproprietário das partes comuns fica enquadrado nas

135
regras da compropriedade, ainda que, também, com a sua peculiar fisionomia resultante do disposto
nos arts. 1420º, n.° 2 (indivisibilidade e irrenunciabilidade), 1423.° (não preferência) e 1425º, n.° 2
(não a algumas inovações nas partes comuns).
Como proprietário pode ele usar os meios de defesa dos art. 1311º a 1315º, adquiriu a
propriedade sobre a sua fracção por qualquer dos meios previstos nos art. 1316º e 1317º; tem o direito
de se opor aos factos incómodos ou prejudiciais enunciados no art. 1346º (fumos, vapores, cheiros,
ruídos), mesmo relativamente a outros condóminos que pratiquem qualquer desses factos, e está
sujeito às restrições e responsabilidades dos art. 1347º a 1349º e ss.

Com a nova redacção dada ao art. 1421º, al. b) e aditamento do nº 3, o uso por um condómino
de qualquer parte comum (seja da cobertura ou do subsolo), ainda que em exclusivo, não altera a
natureza dessa parte nem o seu estatuto jurídico, pelo que a respectiva fruição está sujeita às
limitações para que aponta o art. 1422º.
Por isso, também a afectação de uma parte comum ao uso exclusivo de um condómino nunca
lhe permitirá a aquisição por usucapião, com fundamento em inversão do título da posse - n.º 2 do art.
1406º CC5.
Já não se pode falar em propriedade horizontal se cada uma das fracções for independente
das demais e não tiver de utilizar espaços comuns do edifício, como sucede no caso de moradias
geminadas que de comum têm apenas a parede divisória entre elas. Neste caso regem as regras do
art. 1370º e ss6 (paredes e muros de meação).
Várias pessoas podem, simultaneamente, ser titulares do direito de propriedade sobre uma
fracção, ou ser uma pessoa proprietária da raiz e outra usufrutuária. Neste caso e entre essas pessoas
regem as regras dos respectivos direitos (compropriedade, usufruto). Mas às relações entre esse
grupo de pessoas titulares de direito sobre certa fracção autónoma e os demais condóminos são
aplicáveis as normas da propriedade horizontal.

1415º
A independência e autonomia das fracções, requisito indispensável da PH, é bem vincada no
art. 1415º: as fracções devem constituir unidades independentes, ser distintas e isoladas entre si e
com uma saída própria, seja para uma parte comum, seja directamente para a via pública, de forma a
evitar promiscuidade e litígios entre os diversos proprietários.
Se não houver partes comuns - como nalguns casos de propriedade vertical (lado esquerdo
para um e lado direito para outro, casas geminadas com saída independente para a rua, não há
Propriedade Horizontal, haverá duas propriedades contíguas, com parede de meação.

Notar a aplicação, devidamente adaptada, do regime da PH, nos termos do art. 1438ºA,
adiante analisado.
1416º e 1417º

As várias formas de constituição da PH - títulos constitutivos - constam do art. 1417º, mas o


art. 1416º comina com a nulidade do título a falta dos requisitos legalmente exigidos nos art. 1414º,
1415º e n.º 3 do art. 1418º.
Esta nulidade tem regime e efeitos diferentes do regime geral dos art. 286º e ss, pois não é de
conhecimento oficioso - 1416º, nº 2 - (embora não seja necessária a intervenção de todos os
condóminos para a pedir - Col. STJ 99-I-144) e importa a sujeição do prédio ao regime da
compropriedade, como dispõe o n.º 1 do art. 1416º.

5
- A. Seia, Propriedade Horizontal, 2ª ed., 2002, 17
6
- Aragão Seia, Propriedade Horizontal, Almedina, 2001, pág. 15.

136
Para além destes requisitos civis há os requisitos administrativos, nomeadamente os impostos
pelo RGEU que estabelece o regime jurídico da urbanização e edificação, e salvaguardando
exigências de segurança, salubridade, de natureza arquitectónica, estética, urbanística que têm de ser
respeitadas, por condicionarem a construção de edifícios e a sua utilização.

Por isso o STJ tirou o Assento de 10.5.89, no BMJ 387-79 e DR, II, de 22.6.89, dispondo que
«nos termos do artigo 294º do Código Civil, o título constitutivo ou modificativo da propriedade
horizontal é parcialmente nulo ao atribuir a parte comum ou a fracção autónoma do edifício destino ou
utilização diferentes dos constantes do respectivo projecto aprovado pela câmara municipal », doutrina
que passou a constar do n.º 3 do art. 1418º, na redacção do Dec-Lei nº 267/94, de 25 de Outubro.

Atento o interesse público de assegurar o cumprimento das condições de salubridade,


segurança e solidez dos edifícios em função do uso a que se destinam 7, confere a lei, além de aos
condóminos, também ao M.º P.º - 1416º, nº 2 - legitimidade para arguir a nulidade do título, ainda que
sobre participação da entidade pública competente para aprovar ou fiscalizar as construções.

Daí que se tenha decidido - Col. STJ 94-I-144 - haver nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal,
quando ele contraria o que foi aprovado pela Câmara Municipal, nomeadamente se passou um espaço comum destinado a
porteiro não residente para fracção autónoma, sob pena de ser considerado parcialmente nulo o título constitutivo do
condomínio e considerada nula a venda autónoma que tenha por objecto esse fogo, quer por ser venda a non domino quer
nos termos do art. 280º, nº 1, porque uma parte comum não é passível de venda - BMJ 431-472, Ac. de 3.11.93.

É parcialmente nulo o título constitutivo da propriedade horizontal que autonomizou como fracção a casa da
porteira - parte comum - e que, como tal, havia sido aprovada pela autarquia municipal no projecto de construção - Col. STJ
98-I-86.

PROPRIEDADE HORIZONTAL
- Título constitutivo
- Nulidade parcial do título constitutivo - Casa de porteira
- Partes comuns

Acórdão de 4 de Novembro de 2003, na Col. Jur. STJ 2003-III-129

I - Sendo proposta pelo condomínio uma acção, que visa a declaração de nulidade parcial de um título
constitutivo da propriedade horizontal de um prédio, na parte que individualiza a casa de porteira como fracção autónoma, a
subsequente condenação da Ré a reconhecer tal nulidade e a declaração de que esse espaço é parte comum do prédio,
contra a antiga proprietária deste entidade que procedeu a essa constituição de propriedade horizontal - a qual já não era
proprietária de qualquer fracção, não pode ser atendida essa pretensão, pois a mesma nunca vincularia o proprietário
dessa fracção, o qual não foi ouvido na acção.
II - Tendo todas as aquisições sido feitas após a escritura da constituição da propriedade horizontal, não podem
os condóminos - que tiveram acesso ao título dessa constituição - pedir a nulidade parcial do título, invocando um desfasa-
mento entre o aí constante e o que constava do projecto da obra, aprovado pela câmara municipal, e do licenciamento do
prédio por esta feito, sob pena de tal actuação poder ser considerada um abuso de direito, na modalidade do venire contra
factum proprium.
III - O facto de, aquando da comercialização para venda, e celebração dos respectivos contratos promessa, das
fracções autónomas do prédio, o sócio e representante da proprietária ter dito aos promitentes-compradores (e posteriores
proprietários) que o prédio em causa incluía nas suas partes comuns uma casa destinada a habitação poderia permitir a
anulação dos contratos, a verificarem-se os requisitos do erro ou do dolo (arts. 247º a 254º do Cód. Civil), ou o pagamento
de uma indemnização pela culpa in contrahendo (arts. 227º e 483º do mesmo diploma).
IV - As normas do RGEU têm em vista assegurar as condições de segurança, estética e salubridade das
edificações, submetendo-as a licenciamento e fiscalização das câmaras municipais.
V - Não resultando dos autos ter havido qualquer imposição legal no sentido de, no prédio, haver uma casa de
porteira a fazer parte integrante das áreas comuns, e tendo a então única proprietária do prédio optado por incluir o espaço
que, no projecto aprovado, estava reservado para esse efeito como fracção autónoma, também com destino a habitação,

7
- Ib., 2ª ed., 23.

137
não pode ter aplicação o disposto no art. 294º do Cód. Civil, que sanciona com a nulidade os negócios jurídicos celebrados
com disposição legal de carácter imperativo, salvo nos casos em que outra solução resulte da lei.

PROPRIEDADE HORIZONTAL
- Título constitutivo
- Modificações

Acórdão de 18 de Setembro de 2003, na Col. Jur. STJ 2003-III-36

I - A eventual desconformidade entre o projecto licenciado pela Câmara Municipal e o teor da escritura de
constituição de propriedade horizontal (normalmente por outorga unilateral do construtor/vendedor) será, de per si, gerador
da nulidade da escritura, por se tratar de acto nulo por violação de preceito legal imperativo (CC arts. 294º e 1419º n.os 1 e
2).
II - A possibilidade de modificação do título constitutivo da propriedade horizontal por escritura pública, havendo
acordo de todos os condóminos (CC art. 1419º) não afasta as normas imperativas, de interesse e ordem pública relativas à
conformidade da constituição com o projecto licenciado.
III - Assim, o título constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal é parcialmente nulo se atribuir a parte
comum ou a fracção autónoma do edifício destino ou utilização diferente das constantes do projecto aprovado.

PROPRIEDADE HORIZONTAL
- Conteúdo do título constitutivo
- Nulidade do título constitutivo
- Fim ou destino previsto no projecto aprovado
- Sala de convívio de condóminos

Acórdão de 19 de Janeiro de 2004, na Col. Jur. STJ 2004-I-31

I - Para efeito de verificação da nulidade do título constitutivo da propriedade horizontal prevista no art. 1.418º, nº
3 do Cód. Civil, o acento tónico da lei incide sobre a ausência de conformidade entre «o fim ou a utilização que,
relativamente a determinado espaço, consta do projecto aprovado pela entidade pública e o fim ou a utilização que a esse
espaço é dado no título constitutivo».
II - Não havendo discrepância entre esse fim ou destino que o projecto aprovado prevê para o espaço construído,
resulta indiferente, face ao título constitutivo, que o mesmo constitua fracção autónoma ou se integre nas partes comuns.
III - Uma coisa é o destino a dar a certa parte do edifício, que se funda em razões de natureza estritamente
técnica ligadas à segurança e salubridade do edifício e outra, bem diferente, a definição jurídico-real do mesmo
compartimento, matéria que compete exclusivamente ao título constitutivo, nos termos do art. 1418º do Cód. Civil, como
«acto modelador» do respectivo estatuto.
IV - Um andar destinado, segundo o projecto aprovado, a sala de convívio dos condóminos mantém esse destino,
quer venha a constituir uma fracção autónoma, quer se mantenha ou seja incluído nas partes comuns.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Pinto Montes) de 14.2.2008, no Pr.º 08B29:

1. O título constitutivo da propriedade horizontal – que, no caso, teve origem num negócio jurídico unilateral, por
escritura pública, levado a cabo pelo construtor do edifício - “é um acto modelador do estatuto da propriedade horizontal e
as suas determinações têm eficácia real”
2. Dada a natureza real do título constitutivo da propriedade horizontal, permanece, com eficácia erga omnes, o
fim a que se destinam as fracções nele constantes.
3. E, tendo sido levado a registo esse título, o mencionado fim é oponível a terceiros.
4. Não é de considerar como rectificação, mas, antes, alteração do título, a alegada “rectificação” do título
constitutivo da propriedade horizontal, se essa “rectificação” não se reporta a documentos anteriores que fazem parte do
título, nem o alegado erro resulta do contexto do acto de constituição da propriedade horizontal.
5. Assim, constando do título de constituição da propriedade horizontal que o fim de determinada fracção é o
comércio, não podia o título ser “rectificado” quatro anos depois, com base num alvará que não consta como integrante
daquele título, nem, por outro lado, resultar do contexto da escritura que o fim da referida fracção, afinal, era para
restaurante e/ou pastelaria.
6. Tratando-se de uma modificação do título constitutivo da propriedade horizontal, só podia ser levada a cabo,
nos termos do art. 1419.º, 1 do CC, com o acordo de todos os condóminos.

138
7. Mas mesmo que se considerasse que o mencionado acto era uma “rectificação”, porque a mesma era
susceptível de prejudicar os direitos dos titulares inscritos, nunca a rectificação podia ser levada a efeito à revelia dos
demais condóminos.
8. Não havendo acordo dos condóminos na referida alteração, a alegada “rectificação” é nula.

As várias formas de constituição da PH - títulos constitutivos - são o

1 - Negócio jurídico - inter vivos ou mortis causa. Se não for testamento há-de o negócio ser
celebrado por escritura pública ou documento particular autenticado - art. 80º, n.º 2, b), do C. Notariado
e 1419º CC - normalmente por acto unilateral do proprietário do prédio ainda em construção, sem a
pluralidade de titulares que o condomínio pressupõe.
Entende-se em tal caso que este acto, válido, fica dependente na sua eficácia e, em tudo o
que pressuponha a pluralidade de condóminos, da alienação de alguma fracção.
Da mesma forma entende-se que da concentração do direito de propriedade de todas as
fracções autónomas de um edifício em regime de propriedade horizontal numa só pessoa não resulta a
extinção automática e necessária desse regime; mas a vontade dessa mesma pessoa, formalmente
expressa nos temos do art. 1419°, pode fazê-lo cessar.
Há simples suspensão do funcionamento do sistema da PH; para certos efeitos, como o de
responsabilidade por dívidas (contribuição autárquica com privilégio imobiliário), convém que se
mantenha a autonomia das fracções.

O Dec. Lei nº 268/94, de 25 de Outubro, estabeleceu no seu artigo 10º que, celebrado um contrato promessa de
compra e venda de fracção autónoma a constituir, e salvo estipulação expressa em contrário, fica o promitente-vendedor
obrigado a exercer as diligências necessárias à constituição da propriedade horizontal e à obtenção da correspondente
licença de utilização.

Por sua vez, o Dec. Lei nº 281/99, de 26 de Julho, determinou que não podem ser celebradas escrituras públicas
que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos ou de suas fracções autónomas sem que se faça perante
o notário prova suficiente da inscrição na matriz predial, ou da respectiva participação para a inscrição, e da existência da
correspondente licença de utilização, de cujo alvará, ou isenção de alvará, se faz sempre menção expressa na escritura -
nº 1; para o efeito, nos prédios submetidos ao regime de propriedade horizontal, a menção deve especificar se a licença de
utilização foi atribuída ao prédio na sua totalidade ou apenas à fracção autónoma a transmitir - nº 2.
Assim, se o vendedor de fracção de imóvel destinada a ser arrendada para comércio não obteve a respectiva
licença de utilização, cumpre defeituosamente o contrato de compra e venda, pois de cumprimento defeituoso da obrigação
se trata e não de venda de coisa defeituosa, pelo que, se por virtude disso, o comprador ficou impedido de a arrendar, está
obrigado a indemnizá-lo pelos prejuízos sofridos
Adquiridos por compra uma fracção para habitação e um lugar indeterminado de garagem de um prédio
constituído em propriedade horizontal, a não disponibilidade permanente deste por causa imputável ao vendedor configura
um caso de cumprimento imperfeito ou defeituoso de obrigação, por a prestação realizada não corresponder ao objecto da
obrigação a que o vendedor estava adstrito, conferindo ao comprador o direito de redução da sua contraprestação8.

No entender do Ac. do STJ, de 1.7.2003, na Col. Jur. STJ 2003-II-12, a falta de licença de
habitação e de inscrição na matriz do prédio urbano torna legalmente impossível a procedência da
execução específica.

O STJ (DR, II, de 8.6.96) uniformizou a Jurisprudência no sentido de que "Nos termos do n.° 3
do artigo 442º do Código Civil, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.° 236/80, de 18 de Julho,
tendo havido tradição de fracção de prédio urbano, o promitente-comprador goza do direito da sua
retenção, mesmo que o edifício ainda não esteja submetido a regime da propriedade horizontal."

E decidiu que Não é viável a execução específica de contrato-promessa de compra e venda de


uma fracção de um prédio, enquanto não for constituída a propriedade horizontal - Col. STJ 97-I-111.
8
- Ib., 2ª ed., 27.

139
2 - Decisão judicial em acção de divisão de coisa comum ou em inventário - é forma de
encontrar partilha mais justa e equilibrada, atribuindo a cada interessado uma parte autónoma de
prédio que, de outra forma e por ser indivisível, seria adjudicado a um só ou vendido a terceiro. A
sentença a proferir verifica se estão presentes os requisitos legais para constituição da PH, incluindo
os exigidos pela autoridade administrativa9.
Examinou-se esta forma de constituição da PH no Ac. do STJ, na Col. Jur. (STJ) 01-II-51.

Ac. do STJ (Cons.º Nuno Cameira), de 29.11.2006, no P.º 06A3355:



A constituição de propriedade horizontal, mediante decisão judicial proferida em acção de divisão de coisa
comum, é um dos modos possíveis de cessação da compropriedade, relativamente a prédio urbano, e pode ter lugar, de
acordo com o que estabelece o artigo 1417º do Código Civil, a requerimento de qualquer consorte desde que se verifiquem
os requisitos exigidos pelo artigo 1415º do mesmo compêndio substantivo.
Assim, podem ser objecto de propriedade horizontal as fracções autónomas que além de constituírem unidades
independentes, sejam distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte comum do prédio ou para a via
pública.
Estes são, segundo afirma Luís Carvalho Fernandes (1), os requisitos civis do prédio para ser possível a
constituição de propriedade horizontal. Mas, além destes, existem outros, a que o mesmo autor chama requisitos
administrativos, impostos pelo Regulamento Geral das Edificações Urbanas, decorrentes de exigências de segurança,
salubridade, arquitectónica, estética, urbanís-tica e que têm de ser igualmente asseguradas, por condicionarem a
construção de edifícios e a sua utilização.
E o Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação aprovado pelo DL nº 555/99, de 16 de Dezembro, com as
alterações introduzidas pelo DL nº 177/2001, de 4 de Junho, é expresso relativamente à exigência de certificação pela
câmara municipal de que o edifício satisfaz os requisitos legais para a sua constituição em propriedade horizontal (artigos
62º a 66º).
Também o Código do Notariado é expresso, no caso de constituição negocial da propriedade horizontal, na
exigência de documento emitido pela Câmara Municipal respectiva, comprovativo da verificação dos requisitos legais
(artigo 59º nºs 1 e 2), exigência que é de generalizar (2), designadamente, ao caso dos autos.
Efectivamente, não é possível conceber a constituição da propriedade horizontal por decisão judicial sem a
observância de todos os requisitos legais, incluindo os de natureza administrativa.
Sendo essa a pretensão dos recorrentes ao intentarem a presente acção de divisão de coisa comum, ou seja, pôr
termo à indivisão mediante a constituição em propriedade horizontal, uma vez que, com os recorridos, são comproprietários
de um imóvel cuja constituição em propriedade horizontal não foi posta em crise quer pelas partes, quer pelo perito
nomeado pelo tribunal, tudo indicando obedecer ao estipulado no referido artigo 1415º, impunha-se que tivessem
demonstrado a verificação em concreto daqueles requisitos de índole administrativa, mediante a certificação dos mesmos
pela respectiva câmara municipal, os quais constituem uma verdadeira condição de procedência da acção.
Na verdade, a demonstração da verificação destes requisitos não pode deixar de condicio-nar a elaboração do
correspondente título de constituição da propriedade horizontal, no caso a sentença, e, por conseguinte, a procedência da
acção".
Subscrevemos por inteiro, fazendo-a nossa, a decisão adoptada pela Relação, assim como os fundamentos em
que se baseou, sem prejuízo do que adiante se refere.
Os art.ºs 62º a 66º do DL 555/99, de 16/12, na redacção que lhes foi conferida pelo DL 177/2001, em especial o
nº 3 do art.º 66º, evidenciam à saciedade que a certificação pela câmara municipal de que o edifício satisfaz os requisitos
legais para a sua constituição em regime de propriedade horizontal é um elemento que não pode deixar de estar à
disposição do juiz no momento em que, por via da sentença a proferir na acção de divisão de coisa comum, dá forma (e
substância) a este direito real; mas é um elemento que, por isso mesmo, representa muito mais do que um mero
pressuposto processual, cuja falta possa ser suprida por intervenção oficiosa do magistrado, ao abrigo do art.º 265º, nº 2,
do CPC; trata-se, verdadeiramente, como observa o acórdão recorrido, duma condição de procedência da acção, cuja
ausência implica a rejeição do pedido.
Neste mesmo sentido depõe ainda a norma do artº 1418º, nº 3, do CC, que sanciona o título constitutivo da
propriedade horizontal com a nulidade quando lhe falte a especificação exigida pelo nº 1 ou revele a não coincidência entre
o fim a que se destina cada fracção ou parte comum e o que foi fixado no projecto aprovado pela autoridade pública
competente. Na sua actual redacção (conferida pelo DL 267/94, de 25/10), este preceito representa a consagração
legislativa da doutrina do assento do STJ de 10.5.89, segundo a qual nos termos do art.º 294º do Código Civil o título

9
- ib., 36.

140
constitutivo ou modificativo da propriedade horizontal é parcialmente nulo ao atribuir à parte comum ou a fracção autónoma
do edifício destino ou utilização diferentes dos constantes do respectivo projecto aprovado pela câmara municipal.
Acontece que na origem do assento esteve a necessidade que se fez sentir de definir claramente a interpretação
a dar à norma do art.º 1416º, nº 1, do CC, isto é, saber o que está abrangido na expressão "falta de requisitos legalmente
exigidos": somente os enunciados no art.º 1415º ou, além destes, ainda "os concretizados pelas competentes autoridades
camarárias, de acordo com as normas que regem as construções urbanas"? Ora, não há dúvida de que este Tribunal optou
pela segunda alternativa, como resulta, quer da formulação do assento, quer dos fundamentos que sustentam a decisão
adoptada; acolheu-se explicitamente, com efeito, a ideia de que subjacente à disciplina imposta pelo RGEU está o
interesse público prosseguido pelas câmaras municipais; e este facto, se por um lado justifica a sanção da nulidade
imposta para as faltas apontadas, pois as normas violadas são de interesse e ordem pública, por outro lado impede que a
sentença constitutiva da propriedade horizontal possa ignorar, no momento em que é proferida, a comprovação documental
de que aquela autoridade administrativa aprovou o projecto, por este satisfazer todos os requisitos de natureza
administrativa.
As coisas, decerto, poderiam ser diferentes se, tendo alegado na altura apropriada (petição inicial) que pediram à
autarquia a licença ou autorização de utilização, ou mesmo só a certificação atrás indicada, e que esta fora concedida, os
recorrentes tivessem alegado também a existência de qualquer dificuldade (de natureza burocrática ou outra) na obtenção
do documento e na sua junção ao processo; nesse caso poderia defender-se consistentemente a aplicação do nº 3 do
referido art.º 265º, que diz incumbir ao juiz ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias à justa
composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer. Ora, por isso que representa, como se disse, não um
mero pressuposto processual (ou condição do processo), mas uma tal ou qual condição do pedido, a existência da dita
certificação teria que ser invocada em tempo útil pela parte interessada como facto condicionante da procedência daquele,
se não mesmo, mais precisamente, como facto constitutivo do direito alegado e integrado na causa de pedir (art.ºs 342º, nº
1, do CC e 264º, nº 1, do CPC); não o tendo sido, não se tornou, logicamente, um facto de que ao julgador fosse lícito
conhecer e tomar em consideração na sentença por sua iniciativa, já que o princípio do inquisitório não vigora entre nós
relativamente aos factos da causa que não sejam meramente instrumentais (art.ºs 264º, nº 2 e 664º).

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Mário Cruz) de 13.12.2007, no Proc. n.º 07A3023:

I. Não pode adquirir-se a propriedade de parte física de fracção autónoma de prédio constituído em propriedade
horizontal antes que haja alteração do título constitutivo que autonomize essa parte física da fracção da outra em que
estava inserida.
II. O Tribunal não pode alterar o título constitutivo da propriedade horizontal em violação das normas legais em
vigor, designadamente, sem a aprovação de todos os condóminos e junção de documento emanado da Câmara Municipal
comprovativo que a alteração está de acordo com as leis e regulamentos em vigor na autarquia, porque não pode impor a
terceiros nem aos Condóminos uma decisão que a todos atinge, quando os condóminos e o Município não são sequer
partes na acção.
III. O Tribunal só pode declarar adquiridas por usucapião fracções autónomas completas (a menos que se trate
de aquisição em compropriedade), sob pena de fraude à lei.
IV. Actua com abuso de direito o construtor vendedor que depois de ter declarado, através de documento
particular, doar a um condómino uma garagem e arrecadação e durante mais de 15 anos ter agido como verdadeira doação
válida se tratasse, vem invocar a inobservância da forma legal, ao fim desses anos todos, para obter a declaração judicial
de nulidade da doação.
V. Do abuso de direito podem decorrer vários efeitos jurídicos: pode dar lugar à obrigação de indemnizar, à
nulidade nos termos gerais do art. 294.º; à legitimidade da oposição; ao alongamento de um prazo de prescrição ou de
caducidade, etc.

Há que começar por referir que na escritura de constituição da propriedade horizontal, a fracção “A”, encontra-se
registada a favor dos RR..
De acordo com o art. 7.º-1 do CRP, “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao
titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”, pelo que temos de concluir que a fracção “A”, tal como
consta do registo na Conservatória, ou seja, como fracção autónoma própria, em regime de propriedade horizontal,
correspondente à cave do prédio, pertence aos RR. em toda a área que aí é indicada (288 m2), e em exclusividade.
Num prédio constituído em propriedade horizontal a posição jurídica dos respectivos titulares não é a mesma que
a dos proprietários de prédios a ela não sujeitos, pois existem partes próprias e partes comuns; e, mesmo nas partes
próprias, existem limitações sérias ao poder de alterar o seu conteúdo e objecto. (1).
Na verdade, na propriedade horizontal há um interesse relevante plural que se sobrepõe aos interesses
individuais, sendo aquele um interesse colectivo, manifestado num título constitutivo dessa forma específica de direito real.

141
No direito real de propriedade horizontal a questão do domínio encontra-se repartida entre vários sujeitos, os
condóminos, entrelaçando-se os interesses individuais de uns, de forma inseparável, com os interesses dos demais
condóminos, através de regras próprias, sendo de destacar que não está na disponibilidade de um ou de vários deles,
conseguir(em), só por si, a alteração do título de constituição desse tipo de propriedade, a menos que o título assim o tenha
previsto desde o início, anteriormente à primeira alienação. (arts. 1419.º e 1422.º--A, n.º3).
É indispensável, portanto, que o título de constituição o permita ou a assembleia de condóminos se pronuncie e
aprove as alterações sem qualquer oposição.

Por outro lado, para garantia de todos os cidadãos de que não ficam postos em causa interesses próprios
constitucionalmente protegidos (direito à habitação, saúde, higiene e bem estar, qualidade de vida e defesa do ambiente)
ou até mesmo outros interesses mais vastos da comunidade e que se encontram em ascensão (como o urbanismo, o
planeamento e o desenvolvimento sustentado), exige a lei que quer a constituição da propriedade horizontal quer as suas
eventuais e posteriores alterações, sejam objecto de sindicalização e licenciamento pela autoridade camarária, por forma a
garantir a sua conformidade às leis e regulamentos em vigor.
Mas as exigências legais não ficam por aqui:
Uma vez observados esses dois primeiros requisitos, para haver alteração ao título constitutivo da propriedade
horizontal terá de haver ainda nova escritura a alterar o título anterior ( sendo a escritura uma formalidade ad substantiam,
requisito indispensável para a validade do negócio, como decorre do disposto nos arts. 220.º, 371.º e 1419.º do CC.),
seguindo-se-lhe depois o efectivo registo (art. 2.º-1-b) do CRP), porque se quer dar a indispensável publicidade a actos tão
importantes para as relações fundamentais entre os condóminos e outros interessados, designadamente credores, mas a
que também não são alheias as defesas de interesses difusos ou relações de vizinhança, maxime com os demais
condóminos.
De notar a exigência legal de que a escritura de alteração do título constitutivo de propriedade horizontal não
pode ser feita sem a junção de documento camarário comprovativo de que a alteração ao título constitutivo está de acordo
com os correspondentes requisitos legais.(art. 60.º-1 do C. Notariado)

Tecidas estas breves considerações, podemos avançar um pouco, para dizer que o título exibido pelos AA. como
fonte do seu direito à aquisição da propriedade dos 21 m2 da garagem e arrecadação não é o adequado sob o ponto de
vista formal nem substancial:
Sob o ponto de vista substancial, porque as fracções autónomas, enquanto figurarem como tais no título
constitutivo da propriedade horizontal, são indivisíveis, só podendo dar lugar a novas fracções autónomas mediante
alteração do título constitutivo de propriedade horizontal, operada através de deliberação da assembleia de condóminos,
aprovada sem qualquer oposição. (art. 1422.º-A, n.º 3);
Sob o ponto de vista formal, porque a doação de imóvel ou sua fracção, implicando divisão de fracção autónoma
e alteração do título constitutivo da propriedade horizontal teria de ser feita por escritura pública (art. 947.º-1 do CC. e art.
80.º-2-b) do C do Notariado);
Assim, a alegada doação feita pelos RR. aos AA. do espaço físico correspondente à garagem e arrecadação, foi
nula por falta de observância da forma legal prescrita, como pelo facto de ir contra o regime imperativo da indivisibilidade
das fracções autónomas sem que o título de propriedade horizontal o tivesse previsto ou a assembleia de condóminos a
tivesse autorizado.(arts. 219.º e 280.º do CC.)

Reconhecemos que efectivamente a invocação de nulidade da doação por parte dos RR. constitui abuso de
direito (art. 334.º do CC.), sendo ilegítimo o uso dessa arma, - porque é manifestamente chocante, contrária aos princípios
da boa fé e dos bons costumes, virem agora os RR., ao fim de tantos anos, invocarem a nulidade de uma declaração de
doação subscrita por eles e na base da qual os AA. aí foram exercendo actos de posse, de boa fé, como se donos fossem.
No entanto, nem por isso terá deixar de ser considerada nula a doação para passar a ser o negócio válido,
porque se sobrepõem a essa razão interesses mais vastos, mas agora pelo facto de se ter feito letra morta de preceitos
legais atinentes à divisão e autonomização da garagem e arrecadação que os AA. vinham ocupando, os quais obedecem a
interesses de ordem pública, e que são inderrogáveis por vontade das partes (2)

Mas poderão os AA. ter adquirido a propriedade do espaço físico de 21 m2 através do instituto de usucapião?
A Relação respondeu a esta questão, dizendo que não, ao contrário do que havia decidido a primeira instância.

Entendemos que o fez correctamente.

A actuação dos AA. sobre o espaço da garagem e arrumos consubstanciava-se em actos de posse porque
assentes na prática reiterada, com publicidade de actos materiais de gozo e fruição do referido espaço, como sendo um
direito próprio, ao longo do tempo.

142
No entanto, o âmbito do direito a reconhecer não pode extravasar o respectivo suporte sobre o qual a posse é
exercida.
Assim, no domínio da propriedade horizontal, a usucapião, como fonte aquisitiva de direitos, só pode actuar nos
estritos limites em que a propriedade horizontal se enquadra - (art. 1263.º - a) do CC. e nunca extravasá-la.

Embora estivesse alegado pelos AA. que já no acto da escritura se quisesse incluir na expressão “venda da
fracção autónoma “H” com tudo o que a compõe” a garagem e arrecadação aqui reivindicada pelos AA. (e que depois viria
a ser objecto da já referida doação), o que é facto é que o A. não fez prova dessa matéria, como se pode ver da resposta
de “Não provado” , dada ao quesito 1.º da base instrutória, sendo certo que era aos AA. que o ónus da prova cabia (art.
342.º-1 do CC., porque a haver direito, a alegação de tal facto era constitutiva dele).
Daí que seja questão arrumada a discussão a respeito do alcance da declaração contida na escritura de que nela
se quereria contemplar o espaço da garagem e da arrecadação, matéria que era da exclusiva competência das instâncias e
cuja interpretação e prova o Supremo não pode alterar, uma vez que não se divisando erro algum nessa interpretação ou
na aplicação do Direito, não cabe dessa decisão recurso para o STJ - art. 712.º do CPC., n.º 6 do CPC . (3)

Assim, a escritura de compra e venda por parte dos AA. da fracção “H”, não serve de título para nela se
considerar englobada a garagem e arrumos sita na fracção “A”.

Mas poderia o título que serviria de base à usucapião advir do documento particular onde se refere a doação?

Vejamos:

Assentando a indicada doação num documento particular, a doação foi nula, porque não obedeceu à forma legal
(escritura pública).
Ora isso equivale a ausência de título, o que confere ao caso a configuração de uma posse não titulada sobre o
espaço da garagem e arrecadação. (art. 1259.º do CC.).
Não está provado nem sequer alegado, por outro lado, o registo do título (ainda que inválido) nem a mera posse.
Como estamos no domínio da aquisição de imóveis, a simples perspectiva de possível aplicação do instituto de
usucapião, poderia conduzir-nos, prima facie, à leitura do art. 1296.º do CC., segundo o qual, “não havendo registo do título
nem da mera posse a usucapião só pode dar-se ao termo de 15 anos, se a posse for de boa fé, e de 20 anos, se for de má
fé.”
Mas essa via está também condenada ao insucesso, porque este preceito tem de ler-se e interpretar-se com os
do direito real a que se reporta.

Com efeito, há que ter presente que a usucapião só opera a aquisição do direito real por forma correspondente
ao direito sobre o qual se exerce a posse.
E o direito que se exerceu aqui foi o da posse sobre uma pequena parte física de uma fracção autónoma alheia
(fracção A), de que os RR. são titulares, em prédio submetido ao regime de propriedade horizontal. (4)
Ora, na propriedade horizontal, - como bem referido no Acórdão recorrido - o direito de propriedade exclusiva só
se pode exercer sobre fracções autónomas, perfeitamente individualizadas no título constitutivo e não sobre partes delas
(arts. 1414.º, 1415.º, 1418.º e 1420.º do CC.), pelo que estando a garagem e arrecadação inserida fisicamente no espaço
que é pertença dos RR. (fracção “A”), não pode ela operar enquanto a situação de indivisibilidade se mantiver, o que só
poderia vir a acontecer se entretanto se tivesse tornado possível a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal.
No entanto, a constituição de propriedade horizontal por parte de decisão do Tribunal, como flui do art. 1417.º do
CC., só é admissível em acção de divisão de coisa comum ou em processo de inventário, a requerimento de consorte, e,
mesmo assim, desde que sejam unidades independentes, distintas e isoladas entre si, com saída própria para uma parte
comum do prédio ou para a via pública. (requisitos previstos no art. 1415.º do CC.)

Se só nesse condicionalismo pode o Tribunal constituir a propriedade horizontal, as mesmas considerações e


requisitos de substância e de forma se devem exigir para se proceder à sua alteração.

Essa situação, de resto, seria de todo inviável aqui, porque a presente acção, seria além do mais formalmente
inadequada para a alteração do título constitutivo, quer porque não obedece sequer a essas formas de processo (acção de
divisão de coisa comum e inventário).
E a referência à admissibilidade de constituição e/ou alteração do título constitutivo da propriedade horizontal
através das formas de processo acima indicadas têm na sua base a circunstância de neles poder ser exercido o
contraditório de todos os interessados directos, situação que não se verifica aqui, onde, a admitir-se a possibilidade de
constituição forçada, por via judicial, de uma alteração ao título constitutivo da propriedade horizontal, envolveria a violação

143
de uma das regras mais sagradas do direito, que é o da imposição de uma decisão a quem não pode defender-se por não
ser parte na causa nem nela ter sido chamada a intervir.
Ora, nenhum direito pode ser reconhecido jurisdicionalmente quando, em fraude à lei, estejam em causa
interesses de ordem pública, assim como nenhuma decisão judicial pode impor-se a quem não é parte no processo ou nele
não tenha intervido.

Consequentemente, por tudo quanto foi dito, também não pode operar aqui a usucapião para adquirir a
propriedade sobre aquela parte da garagem e arrumos fisicamente integradas na fracção “A” (5)”, na medida em que esse
objectivo é legalmente impossível sem a alteração do título constitutivo da propriedade horizontal, área em que o Tribunal
não pode actuar porque se exige acordo prévio de todos os condóminos. (6)

3 - Usucapião - 1287º - a posse há-de traduzir-se num comportamento que seja equivalente ao
que assumiria um condómino em relação a certa unidade de determinado prédio urbano e de todos em
relação às partes comuns, além de se impor a exigência dos requisitos legais (e administrativos) para
a constituição da propriedade horizontal, a declarar por sentença judicial que é o verdadeiro título
constitutivo da PH, a registar. Será, pois, de raríssima verificação.
Na falta dos requisitos exigidos pelos art. 1414º, 1415º e 1418º, nº 3, estar-se-á perante
compropriedade.

Os Prof. P. Lima e A. Varela - Anotado, III, 2ª ed., 403, citado em A. Seia, 2ª. ed., 37, ensinam que a propriedade
horizontal poderá constituir-se, ainda, por sentença, sempre que haja incumprimento de contrato promessa de compra e
venda de uma ou mais fracções autónomas, em edifício ainda não constituído em propriedade horizontal, e seja possível a
execução específica, nos termos do art. 830º do CC.

1418º
O título constitutivo (sujeito a registo - art. 2º, 1, b), do CRP) da propriedade horizontal é a
pedra angular no ordenamento que regula as relações entre os condóminos, gozando, assim, de
eficácia erga omnes, dada a sua natureza real, desde que conste de registo - BMJ 474-467.
Juntamente com o regulamento, o título constitutivo constitui o estatuto regulador do condomínio.

O título contém menções obrigatórias - nº 1:


- Individualização das fracções - indispensável para se determinar em relação a que parte do
prédio se verifica a propriedade singular de cada condómino, para saber se as fracções constituem
unidades independentes entre si, como é da natureza da PH, e para se conhecer que partes comuns
pertencem à fracção, em regime de compropriedade forçada;
- Fixação do valor relativo de cada fracção - indispensável para os efeitos previstos na lei - art.
1424° (repartição das despesas de conservação e fruição do edifício), dos arts. 1425º e 1426º
(deliberação sobre inovações e pagamento das respectivas despesas), do art. 1428° (destruição do
edifício e deliberação sobre o seu ulterior destino), do art. 1430º (determinação dos votos de cada
condómino na assembleia), do art. 1432º (convocação e funcionamento da assembleia), do art.
1435.°-A (administração provisória).

E pode – n.º 2 - conter especificações facultativas:


- fim a que se destina cada fracção ou parte comum;
- regulamento do condomínio;
- estipulação de compromisso arbitral para resolução de litígios emer-gentes das relações de
condomínio.

Estes n.os 2 e 3 - este último a cominar com nulidade a falta, no título constitutivo, das
menções referidas no nº 1 e a não coincidência entre o fim dele constante para fracção ou parte
comum com o que foi fixado no projecto aprovado pela entidade pública competente - foram
introduzidos pelo Dec-Lei nº 267/94, consagrando, como dito, a doutrina do Assento de 10.5.1989.

144
Os Assentos funcionam como leis interpretativas - A. Reis, Anotado, VI, 319 ; como tal e nos
termos do art. 13º, nº 1, do CC, fundem-se com a norma interpretada e a sua doutrina é aplicável a
títulos de constituição da PH anteriores à sua formulação, com as ressalvas daquele art. 13º - Col. STJ
94-I-144.
A nulidade não se estende a todo o título: eliminada a correspondente cláusula, prevalece o
fim fixado no projecto aprovado pela entidade pública competente - C. Fernandes, Lições de Direitos
Reais, 349.

O vício de falta de fixação do valor pode sanar-se nos termos do art. 59º, nº 3, do C. Not.
(documento autêntico complementar), pelo que a nulidade só deve prevalecer quando tal não ocorra.

Art. 59º do C. Not.

1 - Os instrumentos de constituição da propriedade horizontal só podem ser lavrados se for junto documento,
passado pela câmara municipal, comprovativo de que as fracções autónomas satisfazem os requisitos legais.
2 - Tratando-se de prédio construído para transmissão em fracções autónomas, o documento a que se refere o
número anterior pode ser substituído pela exibição do respectivo projecto de construção e, sendo caso disso, dos
posteriores projectos de alteração aprovados pela câmara municipal.
3 - O documento autêntico que se destine a completar o título constitutivo da propriedade horizontal, quanto à
especificação das partes do edifício correspondentes às fracções autónomas ou ao seu valor relativo, expresso em
percentagem ou permilagem, não pode ser lavrado sem a observância do disposto nos números anteriores.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Nuno Cameira) de 31.10.2006, no Proc.º 06A2603:

I - Não sendo obrigatória, perante o Código vigente ao tempo da constituição da propriedade horizontal em causa
nos autos, a inscrição registral do fim a que se destinam as fracções autónomas, nada impede, todavia, que o facto, não
registado, mas constante do título constitutivo da propriedade horizontal, relativo à finalidade habitacional da fracção
adquirida pela Ré, lhe seja plenamente oponível.
II - Ainda que a Ré não tenha consultado a escritura de constituição da propriedade horizontal antes de decidir
adquirir a fracção ajuizada, o desconhecimento do respectivo conteúdo não constitui impedimento à sua subordinação ao
estatuto do direito real que adquiriu, enquanto complexo de direitos e de obrigações que vinculam reciprocamente todos os
condóminos (presentes e futuros).
III - Valendo por definição esse estatuto, como vale, erga omnes, a sua modificação - e a utilização da fracção
que a Ré adquiriu para fim diversos do mencionado no título constitutivo implica uma modificação deste - exige o acordo de
todos os condóminos e a redução a escritura pública, nos termos do art. 1419.º, n.º 1, do CC.
IV - Deverá, pois, a Ré abster-se de utilizar a fracção autónoma em causa para outro fim que não seja a
habitação, conforme definido no título constitutivo.

1419º
Em regra, a modificação do título constitutivo tem de ser feita por escritura pública ou
documento particular autenticado (formalidade ad substantiam - 220º e 371º), sujeita a registo e exige
acordo de todos os condóminos, qualquer que seja o valor da respectiva fracção. Trata-se de um acto
unilateral que pode ser praticado pelo administrador em nome do condomínio, se o acordo de que
depende a modificação constar de acta assinada por todos os condóminos.

Já se decidiu (BMJ 358-529) que o consentimento exigido para modificação do título não é
judicialmente suprível e, ao contrário, que na falta de acordo de todos os interessados, só
judicialmente pode ser alterado o título constitutivo da PH - (Col. 92-II-117)10.

«Como julgou este Supremo Tribunal (Acórdão de 23 de Setembro de 2003 – 03A1835) “está vedado ao tribunal
intrometer-se no assunto e afastada a possibilidade de que isso possa suceder, ainda que seja no quadro de uma acção de
suprimento judicial de consentimento, dado o carácter excepcional de que este sempre se reveste. O artigo 1419º, nº 1,

10
Op. cit, 56 e nota 1.

145
atrás citado, é terminante e imperativo: só o acordo unânime, devidamente formalizado de todos os condóminos poderá
validar a modificação.” (cf., no mesmo sentido, os Acórdãos do STJ de 11 de Junho de 1986 – BMJ 358-529 e de 17 de
Janeiro de 1989 – BMJ 383-548; cf, ainda o Cons. Aragão Seia, in “Propriedade Horizontal”, 56)» – Ac. STJ de 3.10.2006,
P.º 06A2497.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Nuno Cameira) de 21.11.2006, Pr.º 06A3493:

I - Constatando-se a inexistência de acordo de todos os condóminos em ordem à modificação do título


constitutivo da propriedade horizontal, afigura-se incontestável que o acolhimento do pedido da autora, visando tal
modificação, implicaria frontal violação da norma do art. 1419.º, n.º 1, do CC, que é de natureza imperativa; implicaria, mais
precisamente, a obtenção dum resultado em fraude manifesta a essa disposição legal, de que o tribunal seria o
instrumento.
II - É certo que, conforme estabelece o n.º 3 do art. 1418.º, a não coincidência entre o fim, constante do título, a
que se destina cada fracção e aquele que foi fixado no projecto aprovado pela entidade pública competente determinam a
nulidade do título constitutivo (uma nulidade que, conforme decidiu o acórdão de uniformização de jurisprudência de 10-05-
89, é somente parcial).
III - Mas, parece evidente que a falta de coincidência geradora da nulidade que a lei comina deve reportar-se à
data da constituição da propriedade horizontal, e não a um qualquer momento ulterior, sob pena de perder sentido útil a
disposição do art. 1416.º, n.º 1, do CC.
IV - A situação jurídica do prédio, enquanto objecto de um direito real, eficaz erga omnes, define-se pelo título
constitutivo e não por qualquer negócio com eficácia meramente obrigacional; menos ainda, pelo projecto de construção do
edifício, ainda que aprovado pela autoridade administrativa competente.

Pode, porém, ser outorgado pelos condóminos interessados nos casos de junção ou divisão
de fracções - 1422ºA e seu nº 4.

Tem de respeitar-se, nestas alterações, o disposto no art. 1415º que caracteriza a PH, com
documento camarário comprovativo de que a alteração está de acordo com os requisitos legais (60º, nº
1, do C. Not.) e pode ocorrer necessidade de integrar por acordo o testamento para nele introduzir as
menções a que se refere o art. 1418º.
1420º

I - Cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do
edifício (artigo 1420º, nº 1, do Código Civil), aplicando-se neste caso as regras da compropriedade, na falta de específica
regulamentação.
II - Presumem-se comuns e, portanto, compropriedade de todos os condóminos, as coisas que não estejam
afectadas ao uso exclusivo de um deles (artº 1421º, nº 2, al. e), do C. Civil) - afectação material existente à data da
constituição do condomínio, que deve constar do respectivo título constitutivo, e não meramente resultante de uma
objectiva destinação.
III - Nas partes comuns não são permitidas inovações susceptíveis de prejudicar a utilização, por parte de alguns
condóminos, tanto das coisas próprias, como das comuns - (artigo 1425º, alínea a).
IV - Constituem inovação todas aquelas obras que modificam as coisas comuns, quer em sentido material, na
substância ou na forma, quer quanto à sua afectação ou destino, nomeadamente económico.
Não cabem, porém, no conceito de inovação as simples reparações ou reconstituição das coisas visando repô-las
no primitivo estado de utilização.

Pelo que se mandou retirar portas de alumínio com que um condómino vedara parte da cave - STJ, 9.5.91 BMJ
407-545

Notar que hoje, nos termos da al. b) do n.º 1 e n.º 3 do art. 1421º, são comuns as coisas aí indicadas (terraços, v.
g.), ainda que afectas ao uso exclusivo de um condómino.

I - Cada condómino tem o direito de defender, sem qualquer restrição especial derivada do regime da propriedade
horizontal, qualquer ofensa ao referido direito.
II - Como proprietário e condómino do prédio a autora tem o direito de isoladamente se defender de tudo quanto
ofenda o título constitutivo da propriedade horizontal, designadamente no que respeita a violação da estrutura do prédio e
ao desvio do fim das fracções que a compõem - Col. STJ 95-I-107

146
BMJ 444-563 e Col. STJ 95-I-107 - Ao lado da propriedade exclusiva sobre a sua fracção, cada condómino tem,
portanto, ainda um direito de compropriedade sobre as partes comuns do edifício, sendo assim contitular, juntamente com
os restantes condóminos, do direito de propriedade sobre as partes comuns.
São, portanto, quanto às partes comuns do prédio, as regras da compropriedade que se aplicam quanto a pontos
sobre que não exista regulamentação específica.
E o n.° 2 do artigo 1405º do Código Civil dispõe que cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum,
sem que a este seja lícito opor-lhe que ela lhe não pertence por inteiro.
Assim, cada condómino tem o direito de defender, sem qualquer restrição especial, derivada do regime de
propriedade horizontal, qualquer ofensa ao referido direito, venha ele donde vier.

Não existe litisconsórcio necessário quando o condómino pretende seja declarado que determinada parte de um
prédio constituído em propriedade horizontal é parte comum e, como consequência, a condenação do autor condómino a
reconhecê-lo como tal - Col. 90-IV-124.

Não se torna necessária a intervenção de todos os condóminos para legitimarem a acção que alguns deles
instauraram contra o réu, construtor do prédio constituído em propriedade horizontal, com vista à eliminação de defeitos de
construção nas partes comuns desse prédio... mal se compreenderia que, podendo cada consorte reivindicar de terceiro a
coisa comum, sem que a este seja lícito opor-lhe que esta não lhe pertence por inteiro (n.º 2 do artigo 1.405º do CC), não
pudesse pedir a reparação de defeitos na parte comum - Col. 99-III-10.

A legitimidade do administrador para agir em juízo na execução das funções que lhe competem ou quando
devidamente autorizado pela assembleia dos condóminos não afecta a referida legitimidade destes, atento o interesse
directo que cada um tem em demandar pela utilidade advinda da procedência da acção - BMJ 352-357.

BMJ 435-816 - Cada condómino é titular de um direito real composto, resultante da fusão do direito de
propriedade singular sobre a fracção que lhe pertence com um paralelo direito de compropriedade sobre as partes comuns
do prédio.
Todavia, a valência erga omnes, própria dos direitos reais, só pode efectivar-se em relação a terceiros,
designadamente em relação a simples arrendatários do condomínio, se o título constitutivo da propriedade horizontal
estiver registado.
Face à simples inscrição no registo predial, bem pode o condómino invocar a sua propriedade horizontal, quer
contra outros condóminos quer contra terceiros.
O princípio da incindibilidade não obsta a que os condóminos, alterando o título constitutivo da PH, convertam em
fracção autónoma uma parte comum - salvo se imperativamente comum - e a vendam.

1421º
Enquanto que o n.º 1 indica as partes imperativa e necessariamente comuns, do nº 2 constam
as partes presuntivamente comuns.
Com as alterações do Dec-Lei nº 267/94, designadamente na al. b) do nº 1 e acrescentamento
do nº 3, ficou claro que são imperativamente comuns o telhado ou os terraços de cobertura ainda que
destinados ao uso de qualquer fracção e não apenas, como constava daquela alínea, ao do ultimo
pavimento.

É que a fruição em comum de todas essas partes, pela função que desempenham, é inseparável da utilização,
por cada condómino, da sua fracção autónoma; mesmo o telhado, ainda que transformado em terraço para uso de uma ou
de algumas fracções, servindo para cobertura do edifício é essencial resguardo de todas as fracções, por isso se
integrando obrigatoriamente na comunhão - A Propriedade Horizontal, Rui Vieira Miller, 157.

Por isso se não concorda com o decidido pelo STJ Col. 97-II-34, segundo o qual não são parte
comum os terraços intermédios, os terraços incrustados num dos vários andares do prédio que dão
cobertura apenas a uma parte deste e que não se situam - ao nível do último pavimento - na sua parte
superior e que se encontram desde sempre afectados ao uso exclusivo dos donos daquele andar e ao
qual só eles têm acesso.

147
Parece evidente que não deixa de ser cobertura - ainda que só parcial - do piso inferior o
terraço que, à frente do 1º andar, serve de cobertura ao rés-do-chão e de varanda, de terraço, àquele
1º andar a que só o dono deste tem acesso, 1º andar que, por sua vez, é parcialmente coberto por
igual terraço do piso superior.

Parece mais acertada a decisão da Relação do Porto - Col. 91-IV-214 - segundo a qual

I - Em edifício constituído em regime de propriedade horizontal, os terraços de cobertura são necessariamente


comuns a todos os condóminos, ainda que destinados ao uso de um só, e mesmo no caso de apenas uma parte do prédio
ser coberta pelos terraços.
II - Feita uma construção num desses terraços contra a vontade dos condóminos e com prejuízo para a utilização
da garagem por alguns deles, deve a obra ser demolida.
III - A demolição não pode ser substituída por indemnização, sendo inaplicável o disposto no n.° 2 do art. 829.° do
Código Civil.

Os espaços de garagem que constam do título constitutivo da propriedade horizontal como partes comuns,
embora afectados ao uso exclusivo de cada um dos condóminos, estão sujeitos ao regime das partes comuns - Col. STJ
95-III-51.

I - Quer o telhado, em que se inclui a respectiva caixa vulgarmente designada por vão, quer o terraço são, nos
temos da lei positiva, imperativamente comuns, mesmo que estejam, por acordo ou face ao título constitutivo, afectos à
fruição de algum ou alguns condóminos, pelo que não são permitidas obras que constituam inovações sem prévia
aprovação por maioria de dois terços do valor total do prédio, a obter em assembleia de condóminos.
II - O facto de um terraço ter sido destinado ao uso de apenas alguns condóminos não transforma estes em
proprietários do mesmo pelo que é abusiva e ilícita a construção no mesmo de uma cozinha, implicando necessariamente a
sua demolição.
III - Deve considerar-se como celebrada contra lei com carácter imperativo e portanto nula, a escritura de
constituição de propriedade horizontal que inclui em determinadas fracções o terraço de cobertura do edifício - R.ão de
Lisboa, Col. 97-I-102.

Por Ac. de 8.2.2000, na Col. Jur. (STJ) 00-I-67 - e contrariando hesitante Jurisprudência
anterior, o STJ decidiu que
I - O sótão ("ou vão do telhado") não é parte necessariamente comum do edifício, não integrando os conceitos de
estrutura do prédio ou de telhado, para efeitos do artigo 1421º, nº 1 do CC.
II - O sótão (ou "vão do telhado") trata-se antes de parte do edifício que se presume comum, se do título
constitutivo da propriedade horizontal não constar a sua afectação a alguma fracção autónoma, podendo, pois, tal
presunção ser elidida.
III - Se um sótão, desde o início da construção do prédio, esteve afecto em exclusivo a uma fracção autónoma, só
através dela tendo comunicação, deve considerar-se que não é parte comum e que pertence a essa fracção autónoma,
ficando, por conseguinte, ilidida aquela presunção.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Lopes Pinto), de 19.11.2002, no Pr.º 02A3479:


«…
1. - A situação que interessa aos pedidos de restituição e de reposição do sótão pode, segundo a prova, resumir-
se assim -
- ainda antes de ser constituída a propriedade horizontal e de terem adquirido as suas fracções autónomas
detinham os réus contestantes, como inquilinos habitacionais, os andares que àquelas vieram a corresponder e também,
mercê de outros contratos de arrendamento firmados com a proprietária do prédio, espaços no sótão superior ao 5º andar,
constituído pelo vão do telhado, espaços estes que não obtiveram licenciamento camarário;
- estes réus ainda detêm esses espaços, invocando essa qualidade de arrendatários;
- o sótão é parte comum do prédio;
- a assembleia de condóminos deliberou a desocupação e o encerramento dos sótãos.
A posição defendida por estes réus é a de poderem continuar a ocupar os espaços que tomaram de
arrendamento ainda antes da sujeição do prédio ao regime de propriedade horizontal.

2. - Do título constitutivo da propriedade horizontal não é descrito como privativo nem consta que o sótão tenha
sido afectado à utilidade de apenas alguns condóminos nem ao uso exclusivo de um deles.

148
A afectação de cada espaço do sótão à fracção autónoma de cada um dos recorrentes, como sua pertença, teria
de constar desse título, o que não sucede.
Parte comum (CC - 1.421, 2 e)), como aliás reconhecem os recorrentes.
A assembleia de condóminos é um órgão colegial, com carácter deliberativo, e, no que ora interessa, só pode
pronunciar-se sobre matéria que respeitem às partes comuns do prédio.
Não se mostra que a deliberação que tomou tenha sido impugnada.
O título constitutivo da propriedade horizontal é o instrumento que define as relações entre os condóminos e fixa a
fruição de cada uma das fracções, sua composição e individualização. Este, levado ao registo, tem eficácia erga omnes.
Aos condóminos é inoponível a autorização que o instituidor da propriedade horizontal tenha, antes da sua
constituição, dado para uso diferente daquele que, face ao título, a parte comum deva ter.
Face à eficácia absoluta do estatuto da propriedade horizontal, à inoponibilidade da referida autorização e à
natureza real das relações entre condóminos é ilegal a detenção daqueles espaços do sótão de forma como pretendem, a
de ficarem afectados apenas ao seu uso.
3. - Embora não colocado, mas por ser de conhecimento oficioso, devia-se questionar o abuso de direito (CC-
334).
Todavia, são os próprios recorrentes quem liminarmente afastam um comportamento abusivo.
Na realidade, os contratos de arrendamento que invocam nunca foram por si opostos ao condomínio e tão só a
um terceiro, a quem teria sido transmitida a posição de senhorio, como que ele tivesse adquirido o sótão; porém,
contrastando com a tese da oponibilidade, reconhecem que o sótão não constitui fracção autónoma, que é parte comum do
edifício e que não foi, no título, afectado ao seu uso exclusivo.
Daí que no nº anterior se tenha preferido empregar o termo ‘autorização’ do instituidor da propriedade horizontal
em lugar de ‘contrato de arrendamento’ (com o condomínio).
A assembleia de condóminos, embora o pudesse fazer, não tinha de assumir a posição de senhorio tendo para si
transmitidos os contratos ou criando uns novos.
O problema não é, portanto, de extinção do arrendamento e de impropriedade do meio processual para a obter (a
sê-lo, outros teriam de ser os intervenientes) mas de detenção ilegal de espaços de uma parte comum, o sótão e de
privarem os outros condóminos de igualmente os usarem (CC- 1.422).
Tendo sido deliberada a desocupação e o encerramento, há que a respeitar libertando-o e, quanto à possibilidade
de uso, nenhum condómino o poderá utilizar enquanto a vontade manifestada se mantiver vigente».

Quanto às coisas referidas no nº 2, podem os condóminos acordar a sua exclusão do regime


de comunhão: dividir os jardins, pátios ou garagens em propriedade singular ou compropriedade por
alguns deles.

I - Tendo as varandas sido descritas, no título constitutivo de propriedade horizontal, como privativas da fracção
autónoma, não podem ser consideradas partes comuns pertença do condomínio, não obstante funcionarem como
cobertura parcial do prédio.
II - A enumeração das partes comuns do edifício feita no nº 1 do artigo 1421º do Código Civil não é imperativa.
Contra: P. Lima - A. Varela, III, 419.
III - A realização de obras pelos réus, nas ditas varandas, apenas está sujeita ao disposto no artigo 1422º do
Código Civil - BMJ 446-252.

As garagens ou lugares de estacionamento presumem-se comuns se, de acordo com o título, não fizerem parte
integrante da própria fracção ou não constituírem fracções autónomas.
Sendo partes comuns podem estar, ainda, afectados ao uso exclusivo de algum ou de alguns condóminos.
Se o espaço para estacionamento for comum há que disciplinar o seu uso e fruição, o que deve ser feito no
regulamento do condomínio.
Se neste se estabelecer que a garagem, embora em zona comum, tem demarcados lugares de utilização
privativa, fazendo o direito a essa utilização parte integrante da propriedade privada de cada condómino, inseparável da
respectiva fracção, esse direito constitui uma simples relação possessória, complemento de propriedade da respectiva
fracção.
Em relação a esse espaço ou lugar cada condómino é possuidor em nome próprio, traduzindo-se o elemento
animus na intenção de se comportar como titular do direito real correspondente que, no caso, é o de comproprietário. Esta
posse não é susceptível de conduzir à usucapião dado que as partes comuns não são divisíveis, salvo mediante
modificação do título constitutivo.
Normalmente os lugares serão delimitados no solo da garagem por marcações a tinta, com identificação da
fracção a cujo uso foram atribuídos11.
11
- Op. cit., 79.

149
1422º
Além de o direito de propriedade não ser absoluto (1305º), a natureza da PH requer especial
atenção à interdependência dos condóminos no uso e fruição do prédio, com relevo para a
comodidade e tranquilidade destes, para a sua segurança e do edifício.
Daí se compreenda a estatuição genérica deste nº 1: os condóminos sofrem as limitações
impostas aos proprietários e aos comproprietários das coisas imóveis, consoante esteja em causa o
exercício do seu direito sobre a fracção autónoma ou sobre as partes comuns.
Assim e enquanto proprietário está o dono da fracção autónoma sujeito às restrições da
propriedade e constantes dos art. 1346º a 1352º; na veste de comproprietário das partes comuns está
o condómino sujeito às limitações gerais do nº 1 do art. 1406º: na falta de acordo sobre o uso da coisa
comum, a qualquer deles "é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente
daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito".

No nº 2 contém-se enumeração exemplificativa (al. d) do nº 2) dos actos especialmente


vedados aos condóminos.
O lugar onde se poderão definir as limitações aos direitos dos condóminos que não resultem
directamente da lei ou que não constem do título constitutivo será o regulamento do edifício em
propriedade horizontal, hoje exigido pelo art. 1429°-A.
As restrições posteriores à constituição da propriedade horizontal, para terem eficácia em
relação a terceiros, v. g., arrendatários, devem constar do registo predial.

Contra: P. Lima-A. Varela, para quem, prevalecendo sobre qualquer negócio que com elas se não harmonize,
todas as restrições de origem negocial, quer quanto ao destino das fracções autónomas, quer quanto aos actos materiais
ou jurídicos que os condóminos não podem praticar, fazem parte integrante do estatuto do condomínio, o que equivale a
dizer que têm natureza real e, portanto, eficácia erga omnes.

No caso de essas novas restrições respeitarem ao estatuto do condomínio expresso no título


constitutivo, traduzir-se-ão em modificação deste que, então, deverá revestir a forma do n.° 1 do art.
1419.° e constituirão também um dos factos que a alínea b) do n.° 1 do art. 2º do Código do Registo
Predial sujeita a registo.

Notar o disposto no nº 3 – obras que modifiquem a linha arquitectónica ou o arranjo estético do


edifício - autorização em assembleia por maioria de, pelo menos, dois terços do valor total do prédio.

O nº 4, também novo, manda manter o uso que vem sendo dado à fracção cujo fim não conste
do título constitutivo, exigindo igual autorização por maioria de dois terços do valor total do prédio para
mudar o destino que vem tendo.

Não pode o condómino, por proibição deste nº 2 do art. 1422º,

al. a)
- Fazer obras no seu logradouro por forma a que, além de facilitar o acesso de estranhos à
fracção superior, altera a traça e linha arquitectónica do edifício - Col. 91-IV-299;

- construir sobre terraço que é de seu exclusivo uso mas também é cobertura de armazém.
Demolição e não indemnização - Col. 94-V-199;

- fechar o lugar de garagem que, apesar de afecto ao seu uso exclusivo, é parte comum - Col.
STJ 95-III-51;

150
- transformar o lugar de aparcamento em armazém de mercadorias. Em tal caso as obras
podem ser demolidas a requerimento de qualquer condómino, sem substituição por indemnização, nos
termos dos art. 566º e 829º, nº 2, normas que apenas são aplicáveis nas relações obrigacionais e não
no estatuto do condomínio que tem natureza real e eficácia erga omnes - Col. STJ 95-II-156.

- Construir uma espécie de andar recuado, alterando o telhado e parte do vão do telhado que,
apesar de ter acesso apenas pelo seu andar, é parte comum - Col. STJ 94-III-129.

I - A expressão linha arquitectónica, referida a um prédio urbano, significa o conjunto dos elementos estruturais
de construção que, integrados em unidade sistemática, lhe conferem a sua individualidade própria e específica.
II - A obra que modifica, prejudicando-os, os elementos diferenciadores do imóvel objecto do condomínio,
consistente na implantação de pilares no logradouro traseiro por forma a sobre eles se fazer assentar uma extensão de
certa fracção autónoma, aumentando-se a área desta, ofende a unidade sistemática que até aí o imóvel oferecia na sua
linha arquitectónica - BMJ 319-301.

Um condómino, dono de um andar e sótão destinado a habitação, não pode, por sua exclusiva vontade,
modificar o sótão e o telhado por forma a tornar aquele espaço habitável, sendo irrelevante, para este efeito, que tenha
obtido licença municipal de obras - Col. 91-III-176 e Ac. de 26.5.92, no BMJ 417-734.

I - Nas paredes exteriores de um edifício em propriedade horizontal, bem como nos terraços de cobertura afectos
ou não ao uso exclusivo de condómino ou em quaisquer partes do edifício ou coisas consideradas comuns não podem
realizar-se obras se não forem aprovadas pela maioria qualificada de condóminos.
II - Não havendo aprovação ou maioria qualificada as obras terão que ser demolidas - Col. 96-II-86.

Relações entre condóminos


Valor da licença camarária de construção
Construção autorizada pelos condóminos
(Ac. STJ, de 25 de Maio de 2000, na Col. Jur. (STJ) 2000-II-80

I - Transcende a vertente comunitária da propriedade horizontal, para se centrar nas relações bilaterais entre
condóminos, sujeitas às limitações impostas aos proprietários vicinais e aos comproprietários de imóveis, o litígio surgido
do levantamento de obra numa fracção que priva o dono de outra do seu gozo pleno, designadamente nas vertentes de
segurança (art. 70º CC) e de utilização de estendal para secagem de roupa.
II - A licença camarária para construir essa obra não tem, nem pode ter, virtualidade para impor uma compressão
ao exercício do direito de propriedade dos outros condóminos, (impondo-se a demolição e não indemnização - 829º CC -
que não vale para as violações do estatuto real do condomínio mas apenas para o incumprimento das obrigações em
geral).
III - A autorização dos outros condóminos para essa construção, mesmo que formalizada em Assembleia Geral, é
inoponível ao condómino lesado, que a assembleia apenas pode deliberar quanto às partes comuns - (art. 1425º e 1430º,
nº 1).

Se no contrato de arrendamento foi clausulado que o inquilino poderia colocar reclames ou letreiros no exterior do
prédio, esse direito mantém-se ainda que o prédio tenha sido posteriormente constituído em propriedade horizontal e a
assembleia de condóminos tenha reagido contra a manutenção desse regime - Col. STJ 99-III-98.

Contra: fundado na natureza obrigacional de qualquer restrição ao direito de propriedade senão nos casos
previstos na lei (numerus clausus) e no não efeito externo do contrato celebrado entre o primitivo e único proprietário do
prédio e o arrendatário que afixou o reclame, obrigação que não vincula os proprietários de outras fracções autónomas que
não o sucessor do senhorio/proprietário, o mesmo STJ, em Ac. de 1.6.2000 - A. Seia, op. cit., 88.

Limitação ao exercício dos direitos


Obras que prejudicam a linha arquitectónica ou o arranjo estético do edifício

- A expressão linha arquitectónica, referida a um prédio urbano, significa, em geral, o conjunto dos elementos
estruturais que, integrados em unidade sistemática, lhe conferem a sua individualidade própria e específica.
- A expressão arranjo estético, de um edifício, refere-se, em especial, ao conjunto de características visuais que
conferem unidade sistemática ao conjunto.

151
- A obra consistente na colocação de caixas de alumínio, destinadas à colocação de ar condicionado, com as
dimensões de 55 cm de profundidade, 100 cm de largura e 73 cm de altura, afixadas nas paredes exteriores do edifício,
prejudica o arranjo estético do mesmo, que foi concebido e projectado sem esses elementos.
- Como tal, só pode ser realizada se autorizada pela assembleia de condóminos, aprovada por maioria de 2/3 do
valor total do prédio - Col. Jur. 2000-I-189, (Ac de 17 de Janeiro de 2000, R.ão Porto)

As obras proibidas nesta alínea são as levadas a cabo pelo condómino na sua fracção
autónoma e que causam prejuízo para a segurança, linha arquitectónica ou arranjo estético do edifício,
salvaguardando interesses de ordem pública que nem com eventual autorização dos restantes
condóminos podem ser ultrapassadas12.

al. b) - destinar a sua fracção a usos ofensivos dos bons costumes

al. c) - uso diverso do fim a que a fracção é destinada

... constitui uso diverso do fim para que foram destinados a instalação de um laboratório de análises clínicas e de
um consultório médico em dois andares de prédio em regime de propriedade horizontal cujo título de constituição os
destinou a habitação, sendo irrelevante que o instituidor da propriedade horizontal tivesse prometido vender ao condómino
infractor uma fracção autónoma para o exercício de profissão liberal - BMJ 233-201.

Resultando do título constitutivo da propriedade horizontal que as respectivas fracções se destinam a habitação,
não pode, por força do art. 1422º, n.° 2, alínea c), do Código Civil, ser-lhes dado outro destino, designadamente o de
escritório comercial ou de exercício da profissão liberal de médico - BMJ 234-241.

As pessoas directamente interessadas em contradizer o pedido de retirada imediata de um consultório médico,


instalado por arrendamento em fracção autónoma de prédio em propriedade horizontal destinada apenas a habitação, são
os donos dessa fracção e o arrendatário, pois da procedência da acção resultará o reconhecimento da invalidade do
contrato de arrendamento e a cessação da actividade naquele local; só quando conjuntamente demandados é que a
decisão a proferir pode produzir o seu efeito útil normal, constituindo a falta de intervenção do arrendatário motivo de
ilegitimidade passiva - BMJ 267-152;

I - Se um condómino dá à sua fracção um uso diverso do fim a que, segundo o título constitutivo da propriedade
horizontal, ela é destinada, ou seja, se ele infringe a proibição contida no art. 1422º, nº 2, alínea c), do Código Civil, parece
evidente que, pelo menos em via de princípio, o único remédio para essa situação é a reconstituição natural (a afectação
da fracção ao fim a que ela estava destinada), solução que obriga tanto o condómino como o terceiro que, com base em
qualquer negócio com ele celebrado, esteja a utilizar essa fracção, desde que o título constitutivo da propriedade horizontal
esteja registado, em obediência ao determinado no art. 2º, n° 1, do Código de Registo Predial [hoje, alínea b) do n.° 1 do
art. 2º do Código vigente - Decreto-Lei n.° 224/84, de 6 de Julho, com posteriores alterações].
II - Neste caso, a reconstituição natural não pode ser substituída por indemnização pecuniária ao abrigo dos arts.
566.° e 829º, ambos do Código Civil, pois que as respectivas regras só procedem para o não cumprimento das obrigações
em geral, enquanto a afectação das fracções do prédio ao fim a que se destinam faz parte do estatuto real do domínio -
BMJ 305-303

A limitação constante da alínea c) do n.° 2 do art. 1422º do Código Civil respeita às relações entre os
condóminos, como resulta do n.° 1 do mesmo preceito, pelo que a violação dessa proibição pelo condómino não integra
nulidade de contrato por ele celebrado com terceiro e por ele invocável - BMJ 382-492.

I - Se o destino a comércio, atribuído no título constitutivo da propriedade horizontal, não se mostra em


desconformidade com o que consta do respectivo projecto aprovado pela Câmara Municipal, não há que fazer aplicação da
doutrina fixada pelo Assento de 10-5-1989.
II - A expressão comércio, constante da cláusula do título constitutivo da propriedade, só pode ter o sentido vulgar
e corrente, de mediação nas trocas, coincidente com o seu sentido económico, aquele que um declaratário normal deduz.
III - O arrendamento para, em parte da área da fracção, fabricar pão, produtos afins do pão e pastelaria (indústria)
quando o local, segundo o título constitutivo se destinava a comércio, constitui utilização para uso diverso.
12
- Em sentido contrário, Vieira Miller, para quem o proprietário pode fazer, na sua fracção, obras que
constituam inovações, desde que autorizado pela maioria qualificada (2/3) dos condóminos - A. Seia,
97, nota 3.

152
IV - De nada releva a circunstância de esse fabrico estar relacionado com o comércio de tais produtos, pois não
são actividades da mesma natureza, nem uma perde a natureza própria para assumir a outra - Col. STJ 95-III-123.

I - Quando se pretende a declaração de nulidade de negócio jurídico respeitante a parte comum de prédio
constituído em propriedade horizontal, a lei não impõe a intervenção de todos os condóminos.
II - Há nulidade do título constitutivo de propriedade horizontal, quando contraria o que foi aprovado pela câmara
municipal, nomeadamente se passou um espaço comum destinado a porteiro não residente, para fracção autónoma - Col.
STJ 94-I-144.

I - É consentâneo com o destino de profissão liberal o destino dado à fracção autónoma objectivado em prestação
de serviços médicos e meios auxiliares de diagnóstico.
II - Já assim não é quando estas actividades são organizadas e desenvolvidas por empresa mercantil, pelo que
neste caso foi dado fim diverso ao uso da fracção.
III - Além do mais há que ter presente os ruídos, trepidação e factos idênticos, ofensivos dos direitos de
personalidade dos restantes ocupantes das fracções autónomas - Ac. STJ de 19.2.98, BMJ 474-467, onde, com muito
interesse, se estudam as limitações ao direito de propriedade (art. 1346º), o direito ao trabalho, tudo relacionado com o
direito à qualidade de vida, direito de personalidade - art. 66º da CRP, 70º CC.

Não obstante ser válido o contrato de arrendamento para escritório das actividades comerciais de uma fracção
destinada a habitação, segundo o título constitutivo e respectivo registo da propriedade horizontal, isso não obsta à
procedência da acção de condenação do senhorio e do arrendatário a não utilizarem a fracção para fim diferente da
habitação e a cessar imediatamente a utilização diferente desse fim - Col. Jur. (STJ) 99-III-122.

Estabelecimento comercial
Natureza de actividade comercial

I - Para os efeitos do art. 230º do Cód. Comercial, uma empresa comercial pressupõe uma actividade exercida
profissionalmente e dotada de organização, ainda que rudimentar.
II - Tal exigência não vigora para o fim comercial a dar a uma fracção urbana, quer seja para uso do próprio dono,
quer se destine a arrendamento.
III - O RAU adoptou o critério económico - e não o jurídico - da actividade comercial, pois, doutro modo, não teria
feito a distinção entre a actividade comercial e a industrial (pelo que não pode instalar-se uma oficina de reparação de
veículos em fracção destinada ao comércio - art. 70º e 1346º CC - Ac. STJ, de 9.12.99, na Col. Jur. (STJ), 99-III-136.

Sobre a emissão de fumos, maus cheiros, ruídos, direitos de personalidade e relações de vizinhança, direito a
ambiente sadio e qualidade de vida, nesta especial vertente da propriedade horizontal, pode ver-se inúmeros exemplos em
A. Seia, op. cit., 2.ª ed, 90 e ss.

Atenção ao novo nº 4 deste art. 1422º: a alteração do uso não constante do título constitutivo
depende de autorização da maioria qualificada de dois terços do valor total do prédio.

1422ºA
Este preceito novo trata separadamente a junção e a divisão de fracções.
A junção de fracções contíguas - ou não contíguas se de garagens e arrecadações se tratar -
não depende de autorização dos demais condóminos, mas não pode ocorrer se exigir obras que
prejudiquem a segurança do edifício, a sua linha arquitectónica ou o seu arranjo estético, a menos que,
neste caso, seja obtida autorização da assembleia dos condóminos, conforme o n.° 3 do art. 1422º:
2/3 do valor total do prédio.

Como pressuposto da junção, a lei aponta a contiguidade das fracções, mas tem-se como certo que essa
faculdade não pode ser exercitada quando colida com as limitações impostas aos condóminos pelo anterior art. 1422.º
Assim, quando a unificação de fracções exija obras de adaptação - e essa circunstância ocorrerá, com mais
acuidade, nos casos de sua contiguidade vertical - tais obras não poderão prejudicar a segurança do edifício, nem a sua
linha arquitectónica ou o seu arranjo estético, a menos que, neste caso, seja obtida autorização da assembleia dos
condóminos, conforme o nº 3 do art. 1422º; de modo que, faltando esta autorização ou havendo prejuízo da segurança do

153
edifício, não será viável a unificação das fracções - Rui Vieira Miller, citando no mesmo sentido decisões das Relações de
Lisboa e Porto, de 90 e 92, antes, portanto, da actual redacção.

A divisão é, em geral, proibida, a menos que autorizada no próprio título constitutivo ou em


assembleia de condóminos, aprovada sem qualquer oposição – nº 3 do art. 1422º-A.
Além de da divisão terem de resultar novas fracções com as características e requisitos
exigidos pelos art. 1414º e 1415º, é necessário que a ela não haja oposição - as abstenções não
contam como oposição - e se a divisão implicar obras que constituam inovações em que rege o art.
1425º, funciona a regra geral do n.° 3 do art. 1432º, que postula a maioria de votos representativos do
capital investido, ou, em segunda convocatória - nº 4 do art. 1432º - a maioria dos condóminos
presentes, desde que representem, pelo menos, um quarto do valor total do prédio.

Se, para executar a junção ou divisão, for necessário executar obras, tem de atender-se ao
regime de obras fixado no art. 1425º e 1422º, a).

1423º
Excluída que está a preferência legal, atenta a especial natureza da PH a que não quadra a
concentração que resultaria da preferência, nada impede que se estabeleça preferência convencional
em pacto de preferência, no título ou posteriormente - 1419º - entre os condóminos.
Também haverá, mas agora nos termos do art. 1409º, preferência entre os comproprietários
de uma fracção autónoma.
As coisas comuns são, no seu todo, de tal modo necessárias à fruição de cada uma das
fracções autónomas que admitir a sua divisibilidade seria facultar-se a qualquer dos condóminos a
possibilidade de privar os restantes do gozo normal da sua parte do edifício.
Por isso a lei nega aos condóminos o direito de pedir a divisão das partes comuns.

1424º
Regra supletiva - os interessados podem convencionar regime diverso, nos termos do nº 2 -
para as despesas de serviços de interesse comum (limpeza, estética, portaria, segurança, jardim). O
valor das fracções é o fixado nos termos do art. 1418º.
Relativamente às despesas de conservação e fruição - o acordo depende da vontade unânime
dos condóminos, em escritura pública, por se tratar de modificação do título - art. 1419º, nº 1; quanto
às despesas de pagamento dos serviços comuns, o nº 2 contenta-se com a maioria de dois terços do
valor total do prédio, mas sem oposição.

Dificuldades práticas de parcelamento das despesas previsto nos n.os 3 e 4, embora se


entenda que no caso dos elevadores não é possível fraccionar as despesas de uso, reparação ou
conservação como nas escadas.

Desde que o condómino esteja em condições de poder usar o elevador - mora no rés-do-chão mas pode aceder à
garagem pelo elevador - está obrigado a participar nas respectivas despesas - Col. Jur. 2001-IV-209.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Ferreira de Almeida) de 24.2.2005, no Pr.º 05B094:

I. O que releva é o uso que cada condómino pode fazer das partes comuns, medido em princípio pelo valor
relativo da sua fracção e não o uso que efectivamente se faça delas; a responsabilidade pelas despesas de conservação
subsistirá mesmo em relação àqueles condóminos que, podendo fazê-lo, não utilizem (por si ou por intermédio de outrem)
as respectivas fracções e se não sirvam, por conseguinte, das partes comuns do prédio.
II. Se uma "sala do condomínio" e uma "arrecadação geral" do edifício - partes comuns - se localizam no 11° piso
do prédio, apenas aí sendo possível aceder através das escadas comuns e dos ascensores do imóvel - também partes
comuns - há que concluir, segundo um critério aferidor de carácter objectivo - o único legalmente definidor da situação - ser

154
manifesta a susceptibilidade (abstracta) de as diversas fracções poderem ser servidas pelas referidas partes e
equipamentos comuns.
III. Não se pode considerar isento de responsabilidade pelos encargos relativos às partes comuns, qualquer
condómino cuja fracção esteja objectivamente em condições de ser servida por essas partes ou equipamentos comuns.
IV. Apenas deverão ficar isentos de contribuir para as despesas de manutenção e conservação dos elevadores os
condóminos cujas fracções não são (nem podem ser) servidas por eles como os do rés-do-chão, a menos que possuam
algum arrumo no último piso ou na cave (neste incluída uma garagem ou um lugar de aparcamento) no caso desta também
ser servida por elevador, ou se houver no último piso um terraço, sala de reuniões ou de convívio que possa ser usada por
todos os condóminos.
V. É possível instituir, por acordo maioritário da assembleia de condóminos, um critério equitativo/proporcional de
repartição de despesas distinto do da proporcionalidade (permilagem) do valor das respectivas fracções, quiçá em função
da regularidade ou da intensidade da utilização das partes ou equipamentos comuns.

Pode ser o arrendatário a pagar as despesas correntes de condomínio se tal for acordado por escrito, no título do
contrato ou em aditamento a ele - 40º, 41º, 42º e 45º do RAU. Quando o arrendatário não pague, a responsabilidade é
sempre do condómino senhorio - 1424º.
Nos termos do art. 1.424º do Cód. Civil, os encargos de conservação e fruição do condomínio são pagos pelos
condóminos em proporção do valor das suas fracções, salvo disposição em contrário.
Estamos, por conseguinte, em presença de uma obrigação propter rem, em que o dever de realizar a prestação
de dare incumbe sempre ao titular do direito real, ou seja, ao condómino.
Decorrendo essa obrigação propter rem (isto é, a obrigação de pagar as despesas do condomínio), por definição,
do estatuto de um direito real, o respectivo devedor há-de ser forçosamente o titular desse direito".
Assim, no regime da propriedade horizontal, um condómino nunca pode recusar-se a contribuir para as despesas
necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento dos serviços de interesse comum,
alegando, por exemplo, que essa contribuição incumbe ao lojista, ao arrendatário ou ao comodatário.
Debruçando-se sobre a coexistência de um eventual acordo entre o condómino e o seu arrendatário, segundo o
qual as despesas, na parte que coubesse à função autónoma arrendada, seriam suportadas por este último (situação que,
no fim de contas, é equiparável à dos autos, quanto aos lojistas), Henrique Mesquita, na linha da doutrina e da
jurisprudência, sustenta que tal acordo é inoponível aos demais condóminos, acrescentando:
"Mesmo que estes ratifiquem e adquiram, em consequência disso, o direito de agir directamente contra o arren-
datário, deverá entender-se que a ratificação não exonera o condómino - locador (cfr. art. 595º, nº 1), pois isso equivaleria a
modificar o regime da propriedade horizontal» (cfr. Obrigações Reais e Onus Reais)
Donde resulta que o Regulamento do Centro Comercial - que, aliás, como acentua a Relação, não se mostra
aprovado por nenhuma assembleia de condóminos - invocado pela Ré, não tem virtualidade para a isentar, ao invés do que
preconiza, do pagamento das despesas do condomínio - Ac. STJ, de 16 de Maio de 2000 (Silva Paixão), na Col. Jur. (STJ),
00-II-64.

As obras em terraços de cobertura ou em fachadas de varandas, aqueles e estas comuns, ainda que afectos ao
uso exclusivo de um condómino, são da responsabilidade de todos os condóminos, desde que os defeitos a reparar não
sejam devidos a uso anormal do condómino a cujo uso estão afectos - Col. Jur. 89-III-159 e 85-III-142, citados em A. Seia,
op. cit., 128.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Urbano Dias) de 10.7.2008, no P.º 08A1057:



2. Por via do regime-regra consagrado no artigo 1424º do Código Civil é ao locatário financeiro que compete o
pagamento da quota-parte devida pela fracção que ocupa, em homenagem ao preceituado no artigo 10º, nº 1, alínea b) do
Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 265/97, de 2 de Outubro.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Santos Bernardino) de 6.11.2008, no Pr.º 08B2623:

1. O n.º 1 do art. 1424º do CC não visa indicar quem responde pelas despesas do condomínio, mas apenas
definir a medida em que cada um dos condóminos responde por essas despesas, estabelecendo a regra de partilha dos
encargos comuns entre os condóminos.
2. O inciso legal «Salvo disposição em contrário» refere-se, pois, ao modo, à medida, à proporção da repartição
dos encargos entre os condóminos: são pagos em proporção do valor das suas fracções, salvo disposição em contrário.
3. A norma do art. 10º/1.b) do Dec-lei 149/95, de 24 de Junho – diploma que estabelece o regime jurídico da
locação financeira – que estabelece, entre as obrigações do locatário, a de pagar, em caso de locação de fracção
autónoma, as despesas correntes necessárias à fruição das partes comuns do edifício e aos serviços de interesse comum,
e a da al. e) do n.º 2 do mesmo artigo, que lhe confere o direito de exercer, na locação de fracção autónoma, os direitos

155
próprios do locador, com excepção dos que, pela sua natureza, somente por aquele possam ser exercidos, são regras
especiais que, sem contrariarem substancialmente o regime da propriedade horizontal, o adaptam a uma situação
particular, cuja especificidade reclama um tratamento jurídico também especial.
4. Estas normas não têm mera eficácia obrigacional, não relevam apenas nas relações locador-locatário, antes
são de aplicação universal, impondo-se a terceiros e, consequentemente, também ao condomínio.
5. A situação do locador e locatário financeiros, quando o objecto da locação financeira é uma fracção autónoma
de um prédio em regime de propriedade horizontal, assume características particulares, decorrentes da própria fisionomia
do contrato entre eles celebrado: o locatário não é, juridicamente, o proprietário do bem locado, mas é o “proprietário”
económico desse bem, de que, por via de regra, se tornará verdadeiro dono no termo do contrato.
6. Estando uma fracção autónoma dada em locação financeira, é do locatário financeiro que o condomínio deve
exigir o pagamento dos “encargos condominiais” respectivos: o estatuto do locatário financeiro é, em tudo, idêntico ao de
qualquer condómino, sendo sobre ele, e não sobre o locador, que impende a responsabilidade por esse pagamento.

O art. 4º do Dec-Lei nº 268/94 impôs a criação de um fundo de reserva para ocorrer a


despesas de conservação do prédio (que pode ter o regime de poupança-condomínio, nos termos do
Dec-Lei n.º 269/94) e o art. 6º daquele primeiro diploma conferiu força de título executivo à acta da
reunião da assembleia que fixar o montante das contribuições devidas ao condomínio, isto é, as que
sejam devidas conforme o art. 1424.° ou quaisquer outras resultantes de despesas com a conservação
e fruição das partes comuns e a prestação de serviços de interesse comum.
PROPRIEDADE HORIZONTAL
- Obrigações propter rem
- Transmissão da fracção autónoma

(Ac. R.ão de Lisboa, de 14 de Dezembro de 2004)

I - Em relação às obrigações propter rem resultantes do estatuto do condomínio urbano é possível distinguir, em
casos de transmissão do direito de propriedade sobre a fracção, aquelas que continuam a ser da responsabilidade do
transmitente e as que se transferem para o adquirente.
II - A ambulatoriedade verifica-se, por exemplo, relativamente às despesas decorrentes da reparação de
elevadores.

No presente recurso, a questão fulcral que se coloca, face ao quadro conclusivo da alegação dos recorrentes, é a
de saber se, não sendo estes os proprietários da fracção autónoma em causa, também não poderiam ter ser condenados
em despesas de condomínio, por já não lhes dizerem respeito, e, em decorrência, não poderiam ter sido considerados
parte legítima nesta acção.

Como está provado nos autos, a fracção autónoma B-4º, do Edifício denominado “Torres Alto Lido”, sito à Estrada
Monumental, freguesia de São Martinho, concelho do Funchal, descrito na Conservatória do Registo Predial do Funchal,
sob o 18/19850221-São Martinho, foi, conforme inscrição nº 32, de 07/01/2000, da 1ª Conservatória do Registo Predial de
Funchal, adquirida, por compra, pelos réus, e foi, depois, conforme inscrição nº 40, de 18/04/2002, provisória por natureza,
da mesma Conservatória, adquirida, também por compra, pelos identificados Paulo Jorge Martins de Nóbrega e mulher Ana
Cristina Moniz Cabral, inscrição esta convertida em definitiva, conforme averb. AP.4 de 04/06/2002 - (cfr. doc. fls. 53/54).
Assim, uma vez que, nos termos do art. 6º, nº 3, do Cód. Reg. Predial, o registo convertido em definitivo conserva
a prioridade que tinha como provisório, não existe qualquer dúvida de que, por força da presunção derivada do registo,
estabelecida pelo art. 7º do mesmo Código, o direito de propriedade da fracção em causa pertenceu aos réus até
18/04/2002, nem de que, a partir desta mesma data, passou a pertencer aos mencionados Paulo Jorge Martins de Nóbrega
e mulher Ana Cristina Moniz Cabral.
Portanto, na data em que foi intentada a presente acção - em 08/05/2002 -, a propriedade da fracção autónoma
B-4º do prédio referido já não pertencia aos réus, ora recorrentes, mas sim aos novos adquirentes inscritos.

No que toca às despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de
serviços de interesse comum, é estipulado, com carácter supletivo, no art. 1424º, nº 1, do Cód. Civil, que são pagas pelos
condóminos em proporção do valor das suas fracções.
Esta obrigação de contribuir para estas despesas das partes comuns é, conforme são doutrina e jurisprudência
pacíficas, uma típica obrigação propter rem – uma obrigação decorrente não de uma relação creditória autónoma, mas
antes do próprio estatuto do condomínio. Mesmo quando estas obrigações que impendem sobre os condóminos resultem

156
do título constitutivo (e não directamente da lei), a sua força vinculativa decorre da eficácia real do estatuto do condomínio e
não de um acto de aceitação por parte daqueles.
No entanto, nestas mesmas obrigações (propter rem), em que o dever de realizar a prestação pertence sempre
ao titular de um direito real, pode surgir o problema da sua sucessão quando, verificados os pressupostos que no estatuto
do direito real se mencionem e constituída, assim, a relação obrigacional, ocorra um acto translativo do direito real antes do
cumprimento da obrigação.
Pelo que, a este respeito, e como conclui o Prof. Henrique Mesquita (2) é de rejeitar a doutrina (tradicional) que
considera a ambulatoriedade uma característica de todas as obrigações propter rem, no sentido de que a transmissão do
direito real de cujo estatuto a obrigação emerge implica automaticamente a transmissão desta para o novo titular do ius in
re.
Se há obrigações em que a ambulatoriedade se impõe, outras existem, pelo contrário, em que se devem
considerar intransmissíveis, por ser essa a solução que melhor se harmoniza com os vários interesses a que importa
conferir tutela adequada.
Deste modo, e segundo o mesmo autor, deve considerar-se não ambulatória a obrigação de os condóminos de
um edifício em regime de propriedade horizontal pagarem periodicamente uma prestação pecuniária para conservação e
fruição das partes comuns ou para remunerar serviços de interesse comum, quando assim tenha sido estabelecido no título
constitutivo do condomínio, em regulamento aprovado pelos condóminos ou em deliberação por eles tomada em
assembleia geral.
Assim, de acordo com este entendimento, temos de considerar que, no caso sub judice, o pagamento da quantia
de 175,64 euros, referente às quotas de condomínio em atraso de Janeiro a Abril de 2002, como uma prestação decorrente
de obrigação não ambulatória, continua a pertencer aos réus, e, por isso, terá, nesta parte, de improceder o presente
recurso.
Porém, são concebíveis situações em que a ponderação dos interesses em jogo impõe que a dívida se transmita
juntamente com o direito real de cujo estatuto emerge.
Daí que, sendo inquestionável que a obrigação propter rem já existia à data da alienação, possa também ser
necessário decidir se ela se transmitiu para o adquirente ou se, pelo contrário, continua a ter como devedor o alienante.
Assim, e ainda no entender do Prof. Henrique Mesquita (3), para os casos em que se concluiu um contrato de
empreitada que tem por objecto obras de reparação a que é necessário proceder, e em que, antes de os condóminos
pagarem a parte que lhes compete no preço da empreitada a executar, um deles vende a sua fracção autónoma, a solução
mais razoável é da ambulatoriedade.
Pelo que respeita ao alienante, com efeito, não se justifica que ele tenha de contribuir para uma despesa de que
nenhum proveito lhe poderá resultar, uma vez que a sua soberania sobre o prédio terminou. Mas já pelo que respeita ao
adquirente, há todas as razões para o sujeitar ao pagamento, quer porque é ele quem vai beneficiar da despesa em
questão, quer porque a necessidade de proceder a reparações ter-se-á naturalmente reflectido na determinação do preço
da fracção autónoma, quer ainda porque ele dispunha, objectivamente, de todos os elementos para conhecer o encargo a
que os condóminos estavam expostos, bastando-lhe, para tanto, confrontar o estatuto do condomínio com a situação em
que se encontrava uma das partes comuns do edifício.
Ora, se, no caso em apreço, constatamos que, em relação à obrigação decorrente do não pagamento das quotas
de condomínio referentes aos meses de Janeiro a Abril de 2002, é de considerar que se mantém a vinculação dos réus, o
mesmo não acontece relativamente à obrigação propter rem decorrente das despesas com as obras de reabilitação e
elevadores das torres 1 e 2 do edifício.
Tendo em atenção tudo o que sobre esta obrigação se expôs, nada, em face da factualidade apurada, nos
permite decidir que ela continuou a ter como devedores os réus (alienantes).
Assim, ao invés do que se entendeu na sentença recorrida, não sendo os réus, à data da propositura da acção,
os proprietários da fracção em causa, e não havendo nos autos elementos probatórios suficientes para se decidir que a
obrigação decorrente das despesas com as obras de reabilitação do edifício continuou a tê-los como devedores, não
podiam os mesmo ter sido condenados, como foram, no cumprimento desta obrigação.
Perante a não titularidade do direito de propriedade da fracção pelos réus, impunha-se, pois, que a presente
acção, quanto ao pedido de pagamento das despesas decorrentes das obras de reabilitação do edifício, fosse intentada
contra aqueles que, à data da sua propositura, eram os titulares do direito de propriedade da fracção em causa.
Pelo que, quanto ao pedido de pagamento das despesas decorrentes das obras de reabilitação do edifício, são
os réus parte ilegítima na presente acção, procedendo, portanto, nesta parte, o presente recurso.

V - Decisão:
Nestes termos, e em conformidade com o exposto, acorda-se, nesta Relação, em julgar parcialmente procedente
o presente recurso de apelação e, em consequência, alterando-se a douta sentença recorrida, absolvem-se o réus da
instância quanto ao pedido de pagamento da quantia de € 8.450,26 (oito mil quatrocentos e cinquenta euros e vinte seis
cêntimos), relativa à quota parte nas despesas das obras de reabilitação e elevadores das torres 1 e 2 do edifício, e
condenam-se os mesmos réus a pagarem à autora apenas o restante pedido, referente às quotas de condomínio em atraso

157
nos meses de Janeiro a Abril de 2002, no montante de € 175,64 (cento e setenta e cinco euros e sessenta e quatro
cêntimos), acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da citação.
Custas pelas partes, em ambas as instâncias, na proporção do decaimento.

Lisboa, 2004-12-14

Azadinho Loureiro Ferreira Pascoal Pereira da Silva

(1) cfr. Prof. Henrique Mesquita, RDES, XXIII, p. 130, e nota 119.
(2) in Obrigações Reais e Ónus Reais, p. 323.
(3) ob. cit. p. 342.

1425º
Obras inovadoras são todas aquelas que, recaindo em coisas próprias (?) ou em coisas
comuns, constituam uma alteração do prédio, tal como originariamente foi concebido, com o fim de
proporcionar a um, a vários, ou à totalidade dos condóminos, maiores vantagens ou melhores
benefícios, ainda que só de natureza económica.

Contra a opinião de Rui Vieira Miller, P. Lima-A. Varela, Anotado, entendem que este preceito
"não se refere às inovações introduzidas nas fracções autónomas, sujeitas à propriedade exclusiva de
cada condómino. Nesse domínio vigoram as normas relativas à propriedade de coisas imóveis, nas
quais cabem, entre outras, as limitações decorrentes das relações de vizinhança (art. 1422º). O
preceituado no art. 1426.° não deixa quaisquer dúvidas de que a regra consagrada no n.° 1 do artigo
anterior (este 1425º) foi prevista apenas para as inovações introduzidas nas coisas comuns."

O condómino que pretenda efectuar uma obra inovadora deverá obter a necessária
autorização mediante convocação da assembleia nos termos do art. 1431º, obtendo aí maioria
qualificada de votos representativos de dois terços do valor total do prédio, não podendo essa maioria,
por falta de disposição expressa, ser substituída por outra, nomeadamente a maioria em segunda
convocatória, pois o nº 4 do art. 1432º apenas ao antecedente nº 3 se reporta e a unanimidade
presumida pelo silêncio dos ausentes notificados (n.os 5 a 9 do art. 1432º) sempre exige prévia
aprovação unânime de dois terços.

No mesmo sentido ensina A. Seia, op. cit., 139.

Da adição de novos pisos ao edifício resulta o acrescentamento de outras fracções autónomas


ou, quando não, pelo menos a modificação da que for constituída pelo último piso o que, alterando o
valor total do prédio e, correspondentemente, o valor relativo das fracções até então existentes, torna
desconforme com a realidade o conteúdo desse título - daí, a necessidade de o modificar, o que só
pode acontecer por acordo unânime dos condóminos - art. 1419º, nº 1. Assim, só por acordo unânime
se pode deliberar o acrescentamento de novos pisos.

É jurisprudência corrente que a sanção contra as inovações efectuadas com infracção do disposto no art. 1425º é
a sua destruição, não podendo esta ser substituída por indemnização ao abrigo dos arts. 566° e 829.° do Código Civil,
normas apenas aplicáveis ao não cumprimento de obrigações voluntariamente assumidas.
A autorização municipal para a realização da obra respeita unicamente a fins administra-tivos (salubridade,
ordenamento do território, estética das povoações, segurança) e não ao direito de propriedade que escapa à sua alçada -
por último, o Bol. 450-492 e Col. (STJ) 00-II-80.

I - A distinção entre as obras previstas no art. 1.422º, nº 2, al. a), do CC (proibidas aos condóminos) e no seu art.
1.425º nº 1 (apenas dependentes da aprovação de maioria qualificada desses condóminos) reside em que, nas primeiras, é
necessária a prova de efectivo dano ou prejuízo para a segurança, linha arquitectónica ou arranjo estético do prédio e nas
segundas bastam as simples “inovações” ou alterações introduzidas na coisa.

158
II - A pretensão dos condóminos à demolição dessas obras pode ser julgada improcedente com fundamento em
abuso de direito - 334º do CC - Col. STJ 98-II-52.

I - Inovações, para os fins do art. 1425º do CC, são quaisquer alterações da estrutura ou do arranjo estético do
prédio.
II - Paredes mestras são não apenas as que se destinam a suportar as cargas, garantindo a ossatura do edifício,
mas também as que delimitam o perímetro da construção.
III - Se uma determinada loja está, no titulo constitutivo da propriedade horizontal, destinada a comércio, a
afectação da mesma a estabelecimento de cafetaria e “snack-bar” importa utilização para uso diverso - Col. STJ 99-II-99

O facto de uma pessoa ter autorização administrativa ou, até, de uma assembleia de condóminos para laborar
produzindo fumos e gorduras não lhe permite incomodar pessoas discordantes, com isso prejudicadas - Col. 96-I-105.

Mesmo que a parte comum esteja afecta ao uso exclusivo de um condómino - v.g. um terraço de cobertura - ele
não poderá efectuar aí qualquer construção sem autorização de todos os outros, além da necessária autorização
administrativa13.
Sobre a natureza da PH, direitos em relação a terceiros arrendatários, inovações em uma fracção, comércio e
indústria, direitos de personalidade, convém ler o Acórdão publicado no BMJ 435-816 e ss.

Ac. do STJ (Cons.º Pereira da Silva) de 19.10.2006, P.º 05B3863:

«À sanção com fonte na realização de obra, em violação do exarado no art. 1422º nºs 2 a) e 3 do CC, aquela
sendo a sua destruição, que não a indemnização em dinheiro, com apelo à equidade, por se radicar na violação do estatuto
real do condomínio, em jogo estando regras de interesse e ordem pública atinentes à organização da propriedade, não faz
óbice o ter sido realidade prévio licenciamento dessa obra pelos competentes serviços municipais».

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Urbano Dias) de 19.12.2006, no Pr.º 06A4300:

I - A colocação de obreiras e padieiras nas paredes exteriores e na coluna da parte comum de um prédio em
propriedade horizontal só é possível desde que o condómino que pretenda levar a cabo tais obras obtenha o consentimento
de uma maioria de dois terços do valor total do prédio; não tendo sido obtida tal maioria, a obra, se realizada, terá de ser
destruída.
II - A concretização de qualquer obra que afecte a linha arquitectónica ou o arranjo estético do prédio em
propriedade horizontal, por mínima que pareça, terá também de ser aprovada pela assembleia de condóminos através de
uma maioria representativa de dois terços do valor total do prédio; se concretizada, a mesma terá também de ser destruída,
caso aquela maioria qualificada não dê o seu agrement: a não ser assim, o prédio pode, de "obra pequena" em "pequena
obra", vir a assumir uma configuração totalmente diferente da originária e contra aquela maioria qualificada que a lei exige
para a alteração do prédio.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Azevedo Ramos) de 19.2.2008, no Pr.º 07A4756 :

I – As paredes exteriores de um prédio são de considerar comuns a todos os condóminos e destinadas ao serviço
exclusivo do próprio edifício.
II - As obras realizadas no logradouro de uma fracção autónoma, consistentes na edificação de duas
arrecadações, com a área de cerca de 2 m2 cada uma, estando ambas assentes na parede exterior do edifício, com a
construção de três novas paredes em alvenaria relativamente a cada arrecadação e telheiro sobre cada uma delas, devem
ser qualificadas como inovações em parte comum, sujeitas ao regime do art. 1425 do C.C.
III – A sanção correspondente à realização dessas obras ilegais é a sua destruição.

Com efeito, o art. 1425 do C.C. dispõe o seguinte:
1 - As obras que constituam inovações dependem da aprovação da maioria dos condóminos, devendo essa
maioria representar dos terços do valor total do prédio.
2 - Nas partes comuns do edifício não são permitidas inovações capazes de prejudicar a utilização, por parte de
algum dos condóminos , tanto das coisas próprias como comuns .

13
- Op. cit., 135, com apoio de Mota Pinto e referência ao art. 1419º, nº 1 - alteração do título
constitutivo.

159
Importa salientar que as inovações a que o preceito se refere respeitam às que são introduzidas nas partes
comuns de um edifício em propriedade horizontal, não sendo aplicável às inovações introduzidas nas fracções pertença
exclusiva dos condóminos.

Nos termos do art. 1421, nº1, al. a) do C.C., são comuns as seguintes partes do prédio :
“O solo, bem com o os alicerces, colunas pilares, paredes mestras e todas as partes restantes que constituem a
estrutura do edifício “.

O termo paredes abrange as paredes das fachadas, das empenas, de separação entre habitações, de caixas de
escada e interiores ou divisórias.
As paredes mestras são assim designadas por, nos edifícios, suportarem as cargas permanentes e acidentais.
É de entender que as paredes exteriores, que delimitam o perímetro da construção, “embora não sendo mestras
ou resistentes no verdadeiro sentido do termo, ao serem construídas tendo em vista não só as exigências de segurança,
como também as de salubridade, especialmente no que respeita à protecção contra a humidade, as variações de
temperatura e a propagação de ruídos e vibrações, podem ser consideradas como elementos estruturais das edificações e,
portanto, paredes mestras “ ( Aragão Seia , Propriedade Horizontal, 2ª ed, pág. 72) .
Também Sandra Passinhas (A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, pág. 31)
sustenta que “as paredes perimetrais (paredes exteriores que delimitam o edifício), mesmo quando não tenham a função de
paredes mestras, delimitam a superfície coberta, determinando a consistência volumétrica do edifício e delineando o perfil
arquitectónico, pelo que são de considerar comuns a todos os condóminos e destinadas ao serviço exclusivo do próprio
edifício “ .
As inovações em partes comuns dirigem-se ao melhoramento ou ao uso mais cómodo ou ao melhor rendimento
da coisa comum, isto é, essas alterações não se destinam a privilegiar o proprietário da fracção, mas sim a coisa comum
(Ac. S.T.J. de 4-10-95, Bol. 450-492) .
No conceito de inovação, que corresponde ao pensamento do art. 1425 do C.C. tanto cabem as alterações
introduzidas na substância ou forma da coisa, como as modificações estabelecidas na sua afectação ou destino ( Pires de
Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2º ed, pág. 434 e Aragão Seia, obra citada, pág. 139) .
Pois bem .
Embora tivesse resultado provado que a estrutura da parede exterior do edifício não foi afectada, a verdade é que
a obra realizada consistiu na construção de três novas paredes em alvenaria, relativamente a cada arrecadação e telheiros
sobre cada uma delas, estando ambas assentes nas paredes exteriores do edifício, que desse modo passou a integrar
cada uma das arrecadações .
Por isso, em cada um desses locais, a parede exterior passou a ter outra forma, diferente da original, na medida
em que a original passou a ficar integrada no interior de cada uma das construções e tendo passado a figurar como parede
exterior, a parede frontal de cada construção .
Acresce que a construção das duas arrecadações provoca um ligeiro adiantamento da fachada posterior do
edifício, igual à largura do telhado e que na parte superior desses anexos existe um telhado, em telha lusa, sem forro.
Por outro lado, também se apurou que, estando um estranho em cima do anexo sul, o acesso à janela poente da
fracção “A” é facilitado e ainda que o dono desta mesma fracção “A” serrou a parte do telheiro que cobria a janela da sua
fracção, com vista a recuperar, em parte, a entrada de ar e luz, pela mencionada janela, pois a referida obra retirava, em
parte, a entrada de ar e luz pela dita janela .
Porque as arrecadações assentam na parede exterior do edifício e atento todo o demais circunstancialismo
exposto, é de considerar que tais construções devem ser qualificadas como inovações em parte comum, sujeitas ao regime
do citado art. 1425.
Como o autor não obteve autorização nem a aprovação da maioria necessária dos condóminos prevista no
aludido art. 1425, nº1, do C.C., é também de concluir que as obras realizadas são ilegais .
Por sua vez, a deliberação impugnada não padece de qualquer vício, mostrando-se conforme à lei .
A sanção correspondente à realização das referidas obras ilegais é a destruição delas, isto é, a reconstituição
natural que não pode ser substituída por indemnização em dinheiro, ao abrigo do princípio da equidade estabelecido no art.
566, nº1, in fine, e 829, nº2, do C.C., porque este princípio só vale para o não cumprimento das obrigações em geral e não
para a violação do estatuto real do condomínio, em que estão em jogo regras de interesse e ordem pública atinentes à
organização da propriedade, que bolem com os interesses de todos os condóminos do prédio ( Aragão Seia, Propriedade
Horizontal, 2ª ed, pág. 143; Ac. S.T.J. de 25-5-00, Col. Ac. S.T.J., VIII, 2º, 80, Ac. S.T.J. de 4-10-95, Bol. 450-492, Ac. S.T.J
de 17-3-94, Bol. 435-816, entre outros ) .

1426º
O condómino discordante só poderá ser compelido a pagar a sua quota parte nas despesas
com as inovações quando destas necessariamente também tire vantagens, uma vez que o benefício

160
auferido é a causa determinante da sua responsabilidade por tais despesas - a menos que
judicialmente se reconheça ter sido fundada a sua recusa em as aprovar.

No processo executivo, pode o condómino devedor, quando não o tenha alcançado antes pelo
meio próprio, obter o reconhecimento de que a sua recusa foi fundada, mediante oposição à execução
(cf. art. 816º do Código de Processo Civil).

1427º
O condómino que, conforme este art. 1427°, tome a iniciativa de proceder às reparações
indispensáveis e urgentes de partes comuns do edifício, mais não terá a pagar do que a sua quota-
parte nas respectivas despesas, calculada nos termos do art. 1424°. E fica pelo excedente subrogado
- art. 592º - porque tinha um interesse directo na satisfação desse crédito resultante da necessidade e
urgência da efectivação das reparações, no exercício de direito que este art. 1427º lhe confere.

1428º
Os três quartos do valor a que se refere o nº 1 e a maioria do nº 2 são determinados de acordo
com o disposto no art. 1418º, do valor que lhe foi atribuído no título constitutivo. Mas além da maioria
de capital exige o nº 2 que a maioria deliberante seja formada também por maioria do número de
condóminos, assim se atendendo ao interesse particular de cada um e à consideração que ele deve
merecer na votação.
Sendo, por exemplo, onze os condóminos dos quais apenas quatro sejam necessários para
formar a maioria de capital, será ainda indispensável que, além desses, mais dois, pelo menos,
concordem com a reconstrução do prédio para esta ser validamente deliberada.

Os n.ºs 3 e 4 previnem a hipótese de algum condómino não querer participar nas despesas de
reconstrução: alienação forçada dos seus direitos a outros condóminos. A fixação judicial do valor faz-
se nos termos dos art. 1429º e 1430º do CPC.

1429º
De acordo com o actual regime, o seguro contra incêndio é obrigatório tanto para cada fracção
autónoma como para as partes comuns - nº 1 - determinando o nº 2 a quem compete fazer o seguro:
aos condóminos e, se estes o não fizerem, ao administrador.
Neste domínio, não está em causa o peculiar regime da propriedade horizontal, mas tão só a
responsabilidade de cada um dos condóminos no cumprimento de um contrato de seguro em que
todos são partes. Daí, ser lícito deixar de considerar o valor de cada fracção fixado no título
constitutivo, embora o valor seguro não possa ser inferior ao dele constante.

1429ºA
A aprovação do regulamento do condomínio há-de ser feita por maioria, regra geral do nº 3 do
art. 1432º, tal como as alterações, salvo quando ele se integre no título constitutivo, caso em que,
importando tais alterações a modificação do título, elas só poderão ter lugar conforme o disposto no
art. 1419°: acordo de todos os condóminos.
Se elaborado pelo administrador, não carece de aprovação da assembleia que, porém,
sempre pode sobre ele deliberar como órgão deliberativo do condomínio que é. E não pode,
naturalmente, tal regulamento elaborado pelo administrador introduzir alterações no título constitutivo.
1430º a 1438ºA
Administração das partes comuns

161
São dois os órgãos a quem compete administrar as coisas comuns - assembleia dos
condóminos e o administrador, embora este seja, no fundo, mero executor das deliberações da
assembleia, sem poder decisório e agindo por delegação da assembleia que em qualquer altura o
pode exonerar - 1435º, nº 1 - e de cujos actos para aquela se recorre - 1438.

Apesar de o condomínio não ter personalidade jurídica, a nova lei processual (art. 6º, al. e),
como a antiga quando devidamente interpretada, atribui personalidade judiciária ao condomínio
resultante da propriedade horizontal, relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes
do administrador.
A assembleia de condóminos tem, em princípio, meros poderes de administração e só das
partes comuns, não podendo coarctar direitos especiais de uso sobre determinadas partes comuns
que, no título constitutivo, tenham sido atribuídos a algum ou alguns condóminos (p. ex., uso exclusivo
do jardim pelos condóminos do rés-do-chão.
O Administrador executa as deliberações da assembleia mas também tem funções próprias -
1436º - e outras cometidas por lei.
Sobre poderes decisórios da assembleia: 1422º, nº 4; 1422º-A, nº 3; 1428º, nº 2; 1429º e 5º do
Dec-lei nº 268/94, de 25 de Outubro.

Nos termos do nº 2, ao proprietário de cada fracção cabem tantos votos quantas as unidades
que se contiverem no número indicativo da percentagem fixada no título constitutivo, com desprezo da
sua parte decimal. Se a fracção A tem a percentagem de 6,250% terá seis votos.
Se a fracção se encontra em regime de compropriedade, os comproprietários deliberarão
quem os representa - 1407º - não podendo fraccionar entre eles os votos que pertencem ao conjunto
deles - 1405º.
Em caso de usufruto ou uso e habitação deverá ser admitido a intervir na assembleia - como
condómino representante da fracção sujeita a usufruto - o proprietário ou o usufrutuário, consoante
caiba a um ou a outro o poder de decidir sobre a matéria sujeita a deliberação.

A assembleia de condóminos só pode pronunciar-se sobre matérias que respeitem às partes


comuns do prédio - 1430º e BMJ 301-418;

1431º
Assembleia ordinária - contas e orçamento – nº 1 do art. 1431º; extraordinária – nº 2 do art.
1431. Capital mínimo de 25% para convocação desta, salvo no caso de recurso dos actos do
administrador previsto no art. 1438º. Representação por procurador, representante legal do condómino
ausente ou incapaz. Cônjuge a quem couber a administração dos bens do casal, nos termos do art.
1678º.
1432º
Convocação e funcionamento da assembleia

1 - Convocatória por carta registada, enviada com dez dias de antecedência, ou aviso com
recibo assinado pelos condóminos.

2 - Conteúdo da convocatória, com a especialidade de dever indicar os assuntos que só por


unanimidade podem ser aprovados. Local de reunião na área do condomínio ou outro não abusivo.

3 - Aprovação de deliberações: maioria do capital investido - que pode não coincidir com a
maioria do número de condóminos - salvo disposições especiais:
- modificação do título: unanimidade - 1419º, nº 1;

162
- divisão de fracção: autorização sem oposição - 1422ºA, nº 3;
- despesas relativas ao pagamento de serviços de interesse comum – 2/3 do valor total do
prédio - 1424º, nº 2;
- aprovação de obras que constituem inovações: - maioria de votos e que represente, pelo
menos, dois terços do capital investido - 1425º;
- reconstrução do edifício por destruição total, igual ou superior a três quartos: - unanimidade -
1428º, nº 1;
- reconstrução por destruição inferior a três quartos: maioria do capital investido e maioria do
número de condóminos - 1428º, nº 2;

4 - Segunda convocatória: deliberações por maioria dos presentes desde que representem,
pelo menos, um quarto do valor total do prédio;
Se em segunda convocatória não for possível formar a maioria legal, por aplicação do nº 2 do
art. 1407º, qualquer dos condóminos poderá recorrer ao tribunal que decidirá, segundo juízos de
equidade e pelo processo regulado no art. 1427º CPC, o problema que deveria ser objecto de
deliberação14.

5 a 8 - aprovação tácita de deliberações que exijam unanimidade. Os prazos contam-se nos


termos dos art. 296º e 279º do CC.
Se a carta, remetida para o domicílio indicado nos termos do nº 9 do art. 1432º, vier devolvida
pode entender-se aplicável a regra do art. 254º do CPC; doutra forma será aplicável a notificação do
art. 225º (anúncio público da declaração) do CC.
A irregularidade na convocação da assembleia determina a anulabilidade das deliberações
nela tomadas - 1433º.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Paulo Sá), de 12.9.2006, no Pr.º 06A1264:

Sumário:
I - O n.º 2 do art. 1432.º do CC, aplicável às assembleias de condóminos, na sua actual redacção, introduzida
pelo DL n.º 267/94, de 25-10, consagra uma solução idêntica à do art. 174.º, n.º 2, do CC, ao impor que a convocatória
indique a ordem de trabalhos da reunião, inexistindo qualquer lacuna que justifique a aplicação analógica deste último
preceito legal.
II - A sanção do desrespeito do mencionado art. 1432.º, n.º 2, do CC é a anulabilidade, como decorre do art.
1433.º, n.º 1, do CC.
III - Constando da convocatória para a assembleia, como ordem de trabalhos, as matérias a que se refere o art.
1431.º do CC - contas do último ano e orçamento para o ano em curso -, além de outros assuntos (não especificados) do
interesse comum dos condóminos, deverá entender-se que o ponto atinente à “apreciação e aprovação do orçamento para
o exercício em curso” abrange a matéria relativa ao aumento das comparticipações dos condóminos.
IV - Assim, a convocatória enviada aos condóminos continha os elementos necessários e suficientes para que
pudessem tomar conhecimento do que se ia tratar na assembleia, não tendo a deliberação que procedeu ao aumento das
contribuições dos condóminos incidido sobre matéria estranha à ordem de trabalhos daquela constante.

1433º
Legitimidade para a impugnação: condóminos que não tenham aprovado a deliberação, seja
ela nula (contra a regra do art. 286º) ou anulável - nº 1.

Quando a assembleia infrinja normas de interesse e ordem pública (suponha-se, por ex., que a assembleia
autoriza a divisão entre os condóminos de alguma daquelas partes do edifício que o n.° 1 do art. 1421 considera
forçosamente comuns; que suprime, por maioria, o direito conferido pelo n.° 1 do art. 1428.°; que elimina a faculdade,
atribuída pelo art. 1427.° a qualquer condómino, de proceder a reparações indispensáveis e urgentes nas partes comuns
do edifício; que suprime o recurso dos actos do administrador a que alude o art. 1438.°; ou que dispensa o seguro do
edifício contra o risco de incêndio, diversamente do que se dispõe no n .º 1 do art. 1429.°), as deliberações tomadas devem
14
- Ib., 174

163
considerar-se nulas, e como tais, impugnáveis a todo o tempo e por qualquer interessado, nos termos do artigo 286. Se
assim não fosse, estaria na mão dos condóminos derrogar os preceitos em causa; bastaria, para tanto, que, após a
aprovação da deliberação, nenhum deles a impugnasse no prazo de vinte dias referido no n.° 2 do artigo 1433.° - P. Lima e
A. Vareja, Anotado, notas ao art. 1433.º

Se a deliberação versa sobre assunto estranho à sua competência que, como se viu (1430º), é
restrita às partes comuns, a deliberação é inexistente, ineficaz, não produz qualquer efeito.
A decisão a proferir pelo Tribunal limita-se a decretar a anulação e não a reapreciar o mérito
ou substituir a matéria dispositiva da deliberação.
Os prazos são de caducidade - 328º, contam-se nos termos dos art. 296º e 279º e não são de
conhecimento oficioso - 333º.

Caducidade das deliberações da assembleia de condóminos


Deliberação sobre a repartição das despesas de conservação
Deliberação cuja acta foi lavrada e assinada posteriormente à data da assembleia
Ac. do STJ (Azevedo Ramos) de 8 de Fev.º 2001, na Col. Jur. (STJ) 01-I-105

I - A deliberação que verse sobre a repartição entre condóminos das despesas de conservação das partes
comuns de um edifício não contende com normas de interesse e ordem pública que estabeleçam direitos inderrogáveis dos
condóminos (contende sim com o art. 1424º do CC que é uma norma dispositiva); assim, uma tal deliberação apenas pode
ser anulável e cair na previsão do art. 1433º do CC, com sujeição ao prazo de caducidade aí contemplado (60 dias, no caso
de não ter sido solicitada a assembleia extraordinária prevista no art. 1433º, n.º 2).
II - Também a falta da acta da assembleia de condóminos não conduz à nulidade ou inexistência da deliberação;
uma deliberação sem acta tem simplesmente a sua eficácia suspensa. Assim, tomada uma deliberação e ainda que não
seja lavrada e assinada nessa data a acta (o que não tem que acontecer na própria assembleia), começam a correr os
prazos de caducidade previstos no art. 1433º do CC.

Ac. do STJ (Silva Paixão), de 11/1/2000, BMJ 493-385:

I - No domínio do anterior n.º 2 do artigo 1433º, o prazo de caducidade era sempre de 20 dias, contando-se, no
entanto, para os condóminos presentes, da deliberação e, para os ausentes, da comunicação da deliberação.
II - Agora, contudo, não tendo sido solicitada assembleia extraordinária, a caducidade do direito de acção de
anulação opera, sempre - tanto para os condóminos presentes como para os ausentes - no prazo de 60 dias contados da
data da deliberação (n.º 4 do artigo 1433º).
III - O que significa que, actualmente, como pondera Rui Vieira Miller, os condóminos faltosos terão “de cuidar
diligentemente de se informar sobre se teve ou não lugar a assembleia e se novo dia foi efectivamente designado (cfr. A
Propriedade Horizontal no Código Civil, 3ª ed., 1998, pág. 272) e terão, de igual modo, de diligenciar no sentido de
conhecerem o teor das deliberações, para, se o desejarem, poderem impugná-las no prazo dilatado de 60 dias (repare-se
que o primitivo prazo de 20 dias foi alargado) sobre a data da deliberação. Não da comunicação da deliberação, como
primitivamente se estipulava.

Contra: A. Seia, citado no Ac. do STJ, de 21.1.2003, na Col. Jur. (STJ) 2003-I-36:
I - Havendo condóminos ausentes da assembleia as deliberações tomadas têm de lhes ser comunicadas, nos
termos do art. 1432º, n.º 6, do CC;
II - O direito de propor a acção de anulação, não tendo havido assembleia extraordinária, caduca no prazo de
vinte dias contados da deliberação, quanto aos condóminos presentes, e contados da data em que a deliberação lhes foi
comunicada, quanto aos ausentes.

ACÇÕES ANULATÓRIAS DE DELIBERAÇÕES DE CONDÓMINOS


- Prazo de caducidade - Ac. de 17 de Março de 2005, na Col. Jur. STJ 2005-I-150)

O prazo de caducidade de 60 dias, previsto no nº 4 do artigo 1433º do CC, de propositura das acções anulatórias
a que se reporta o nº 1 do mesmo artigo, conta-se desde a data da deliberação impugnanda mesmo para os condóminos
ausentes.

Providência cautelar - suspensão de deliberações sociais - 396º a 398º CPC.

164
Ac. do STJ (Cons.º Moitinho de Almeida), de 16.6.2005, P.º 05B4296:

O administrador não tem legitimidade passiva nas acções de impugnação de deliberações da assembleia de
condóminos.

«Também assim entende este Tribunal, com os mesmos fundamentos (acórdãos de 21 de Novembro de 1990,
processo n.°79772 e de 14 de Fevereiro de 1991, no Boletim do Ministério da justiça, n.°404, p.376). Aí se observa que a
legitimidade passiva do Administrador nas acções respeitantes às partes comuns do edifício não é extensível à impugnação
das deliberações do condomínio onde estão em causa interesses dos condóminos de outra natureza. Resulta claramente
do n.° 6 do artigo 1433.° do Código Civil que, nas acções de impugnação da assembleia dos condóminos, estes são
representados pelo administrador o que implica que devem também ser demandados».

Acórdão do STJ (Ex.mo Cons.º Bettencourt de Faria), de 20.9.2007, no Pr.º 07B787:

A acção de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos tem de ser interposta contra os
condóminos que as votaram, que naquela devem figurar como réus, embora representados em juízo pelo administrador,
que é quem deve ser citado.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I
A moveu acção ordinária contra a administração do condomínio de determinado prédio, em regime de
propriedade horizontal, sito na Urbanização Carcavelos Lux, Rua ...... Lote 0, em Carcavelos, pedindo que sejam
declaradas:
- a nulidade das deliberações constantes dos pontos 1 e 2 da Assembleia de Condóminos de 07.05.04;
- a falsidade da acta nº 16 da Assembleia de Condóminos de 07.05.04.
Subsidiariamente pede tais deliberações e acta sejam anuladas.

A ré contestou alegando a sua ilegitimidade.


Respondeu o autor defendendo essa legitimidade.
No despacho saneador decidiu-se que a ré tinha legitimidade passiva, e que deveria ser citada na pessoa do seu
administrador. E isto por ter interesse directo em contradizer os factos alegados.
Recorreu a ré, tendo a Relação dado provimento ao agravo, por entender que quem tem interesse em contradizer
são os próprios condóminos que votaram as decisões impugnadas. Só eles serão partes legítimas para serem
demandados, embora representados pelo administrador, ou pela pessoa que a assembleia designar para o efeito.
Agrava agora o autor, defendendo nas conclusões das suas alegações de recurso que o administrador, por ser o
órgão através do qual se executa a vontade do condomínio, será, por força da lei, o representante judiciário dos
condóminos. Assim, a acção destinada a apreciar a nulidade das deliberações da assembleia de condóminos deve ser
interposta contra o condomínio representado pelo administrador e não contra cada um dos condóminos.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

II
Como matéria assente que interessa para a decisão do recurso, temos os próprios termos processuais, tal como
atrás assinalámos.

III
Apreciando
1 O condomínio, na sua vertente de compropriedade, tem uma forma de administração que lhe é específica,
impondo a lei a existência de um administrador. Contudo, apesar da existência de um órgão de gestão, não são conferidos
direitos e deveres titulados por este polo administrativo, que o mesmo é dizer que o condomínio não tem personalidade
jurídica. Como em qualquer compropriedade, os titulares das relações jurídicas são os comproprietários, no caso, os
condóminos.
Apesar disso, a imposição legal de um órgão executor da vontade de tais condóminos acaba por ter reflexos na
defesa processual daquelas relações jurídicas.
O artº 6º do C. P. Civil concede ao condomínio personalidade judiciária. Ou seja, cabe-lhe defender em juízo
relações jurídicas de que não é titular, por não ser pessoa jurídica, e que do ponto de vista substantivo radicam na pessoa

165
dos condóminos. Com uma limitação. Essa faculdade é restrita às acções que se inserem no âmbito dos poderes do
administrador.
O que se compreende.
O administrador é um órgão executivo pelo que os seus poderes derivam da vontade comum e incontestada dos
condóminos. Todas as questões que se possam por a respeito desses poderes deparam-se com os mesmos interesses
dos condóminos. Donde advém a possibilidade legal de unificar a respectiva defesa processual através da atribuição da
personalidade judiciária ao condomínio, entendido este como o colectivo dos condóminos.
Mas, fora do âmbito do referido artº 6º, só os próprios titulares das relações jurídicas de condomínio é que podem
demandar ou serem demandados em acções que as tenham por objecto, não se encontrando nos artºs 1430º a 1438º do
C. Civil que versam sobre a administração do condomínio, qualquer excepção a esta regra.
Com efeito, o artº 1437º nº 1, quando diz que o administrador pode agir em juízo na execução das funções que
lhe pertencem, está apenas a ver pelo lado activo a questão que o artº 6º do C. P. Civil regulou pelo lado passivo. E o
mesmo se diga quanto ao seu nº 2 ao prescrever que o administrador pode ser demandado nas acções respeitantes às
partes comuns, que não respeitem à sua propriedade ou posse. Portanto, acções que respeitam ainda à administração
dessas partes comuns, que competem ao mesmo administrador, conforme as alíneas f) e g) do artº 1436º.
E a regra será os condóminos demandarem e serem demandados sem a intervenção sequer do administrador.
Como acontecerá, por exemplo, na hipótese dos condóminos reivindicarem para o condomínio determinada parcela de
terreno, ou serem demandados em acção de reivindicação interposta por terceiro.
No entanto, quanto à impugnação das deliberações da assembleia de condóminos, a letra da lei é expressa. O nº
6 do artº 1433º do C. Civil dispõe que a representação judiciária dos condóminos compete ao administrador. Mas
representar não significa ser parte. A legitimidade para ser parte, nos termos que vimos consignando, continua a pertencer
aos titulares do condomínio. Aliás, diz o preceito que o administrador representa os condóminos “contra quem são
propostas as acções”. Esta expressão inserida num artigo que tem como epígrafe “Impugnação das deliberações”, resolve,
para além de todas as outras considerações, o problema dos presentes autos. A acção de impugnação das deliberações da
assembleia de condóminos tem de ser interposta contra os condóminos que as votaram. Por imposição legal, o seu
representante em juízo será o administrador, que é quem deve ser citado. Mas a acção tem de ser movida contra os
aludidos condóminos que aí devem figurar como réus.
2 Reconhece-se que a questão não tem sido pacífica na jurisprudência. O próprio relator deste acórdão
subscreveu o Ac. STJ de 14.06.07.
Aí se considerou que a deliberação social que se pretende impugnar exprime a vontade do condomínio, do grupo
e não dos condóminos individualmente considerados. Assim, atenta necessidade de um condomínio ser representado em
juízo e o disposto nos artºs 6º e 22º do C. P. Civil, que o deve representar é o administrador.
Não sufragamos agora este entendimento.
O artº 22º refere-se à representação dos patrimónios autónomos, das sociedades, das associações e das
respectivas filiais, quando é certo que para o condomínio existem regras próprias, que não legitimam o recurso à analogia,
ou à interpretação extensiva.
E o artº 6º, refere-se a um caso específico que, como vimos, não abrange toda a problemática da representação
do condomínio. Por outro lado, quanto à vontade deste último, não existindo a personalidade jurídica, não se lhe pode
imputar uma vontade própria, podendo-se apenas constatar a conjunção das vontades dos seus titulares.

Com o que improcede o recurso.

Pelo exposto, acordam em negar provimento ao agravo e confirmam o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 20 de Setembro de 2007

Bettencourt de Faria (Relator)


Duarte Soares (vencido)*
Rodrigues dos Santos
Pereira da Silva
Santos Bernardino (vencido)**

* vencido pois de acordo com o projecto que apresentei confirmaria a decisão da 1ª instância, por entender que a
administração do condomínio tem plena legitimidade para o representar, na acção que impugnar as deliberações.

166
** vencido. A acção foi proposta contra o representante dos condóminos que deveriam ser demandados (o
administrador) e não contra os próprios condóminos. Era aquele - e não estes - que devia ser citado para a acção, em
veste de representante, é certo, e que deveria assumir a defesa dos seus representantes.
Afigura-se-nos, por isso, que embora o autor não se tenha expressado da forma mais correcta, não estamos
perante um caso de ilegitimidade, podendo e devendo, com vista ao aproveitamento dos actos processuais praticados, a
incorrecção ser sanada com a notificação a fazer pelo juiz da 1.ª instância ao autor para que identificasse os condóminos
que votaram a deliberação, contra eles prosseguindo depois a acção representados pelo administrador.

Acórdão do STJ (Ex.mo Cons.º Moreira Alves), de 29.11.2006, no Pr.º 06A2913:

I - O administrador não tem legitimidade para ser demandado como réu quando esteja em causa a impugnação
de deliberações do condomínio.
II - O n.º 6 do art. 1433.º, quando conjugado com o art. 1437.º, ambos do CC, e com a al. e) do art. 6.º do CPC,
não pode ser interpretado no sentido de conferir legitimidade processual passiva ao administrador do Condomínio, assim
como o art. 6.º, al. e) do CPC não concede personalidade judiciária ao condomínio quanto às acções em que pode intervir o
administrador, pura e simplesmente, mas apenas quanto àquelas em que o administrador intervém no exercício dos seus
poderes funcionais.
III - No caso das acções em que se impugnam deliberações da assembleia de condóminos, não se está no
âmbito dos poderes funcionais do administrador.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Nas Varas Cíveis da Comarca de Lisboa, Empresa-A, intentou a presente acção declarativa, com processo
ordinário, contra AA (na qualidade de administradora do Imóvel sito na R. .. nº ...) pedindo que, julgada a acção procedente,
se declarem anuladas as deliberações da Assembleia de Condóminos de 2 de Fevereiro de 2005, no que respeita à
aprovação das contas de 2004 e orçamento de 2005.
Para efeitos de decisão de agravo, não interessa considerar a factualidade em que a A. fundamenta o pedido).

Citada a Ré, defendeu-se, antes de mais por excepção, arguindo a sua ilegitimidade, porquanto o pedido de
invalidade “letra sensu” das deliberações da assembleia de condóminos deve ser formulado contra os condóminos que
tenham aprovado tais deliberações conforme resulta do disposto no Art.º 1433 nº6 do C.P.C.

(não interessa considerar a defesa por impugnação).


Replicou a A. defendendo ser a R. parte legítima.
Proferiu-se despacho saneador no âmbito do qual foi apreciada a questão da ilegitimidade da Ré, julgando-se
procedente a alegada excepção e em consequência julgou-se a Ré parte ilegítima na presente acção, absolvendo-se da
instância.

Inconformada apelou a A. para o Tribunal da Relação de Lisboa, o qual apreciando o agravo, lhe deu provimento,
revogando a decisão recorrida e julgando a Ré parte legítima.

É agora a Ré que, inconformada agrava para este STJ ao abrigo do disposto no Art.º 754º nº2 do C.P.C.,
invocando oposição do acórdão com vários outros acórdãos da mesma Relação que decidiram em sentido contrário.

Não existe factualidade relevante para a decisão, visto que a única questão a resolver é e direito e consiste em
saber se o administrador do condomínio tem (ou não tem) legitimidade para, por si e nessa qualidade, ser accionado nas
acções de (impugnação de deliberação da assembleia de condóminos.

Fundamentação

A questão acima enunciada é controversa como bem se salienta no acórdão recorrido.

Para uma corrente jurisprudencial, o administrador do condomínio não tem legitimidade passiva nas acções de
impugnação de deliberações da assembleia de condóminos. Tais acções devem ser propostas, não contra os
administradores, mas contra os condónimos.
(neste sentido cfr.
- Ac. S.T.J. de 14/2/91 – Nº conv. JSTJ000077a6;
- Ac. S.T.J de 23/9/98 – N. conv. JST00034212;
- Ac. S.T.J de 2/2/2006 – N. conv. JST000.)

167
Para outro, é inequívoca tal legitimidade passiva, uma vez que o administrador actua como representante
orgânico do condomínio, sendo certo que, como diz Sandra Passinhas (Assembleia de Condomínio e o Administrador na
Propriedade Horizontal)” A deliberação exprime a vontade do condomínio, do grupo, e não dos condóminos
(individualmente considerados, ou dos que aprovaram a deliberação).
E, sendo um acto do condomínio, a legitimidade passiva cabe ao administrador. A redacção do Art.º 1433 nº4, é
anterior à reforma de 94 e não foi objecto de actualização...”
(cof. Ac. R.L de 14/5/98 – Col/J. 1998 -3º-96;
- Ac. do S.T.J. - Agravo nº 1114/05 – 7º de 5/5/2005;
-Ac. do S.T.J. – Revista nº 3727/05 – 6 de 10/1/2006.)
Foi esta última orientação a adoptada pelo acórdão recorrido.

Cumpre, então, decidir.

Não obstante se reconhecer a dificuldade em optar por qualquer uma das soluções e pese embora o peso da
argumentação desenvolvida na defesa da segunda orientação enunciada, pensamos que a interpretação dos textos legais
não a consentem, daí que se opte pela primeira.
Consequentemente, decidir-se-á que o administrador não tem legitimidade para ser demandado como ........
quando esteja em causa a impugnação de deliberação do condomínio.

Vejamos melhor.
Dispõe o Art.º 6º e/ do C.P.C. que tem personalidade judiciária” o condomínio resultante da propriedade horizontal
relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador”.
Portanto, fora do âmbito dos poderes do administrador, o condomínio não tem personalidade judiciária, isto é, não
pode ser parte em juízo, competindo, assim, aos condóminos, agir em juízo em seu nome próprio.
Como é sabido, a atribuição de personalidade judiciária a determinadas entidades não dotadas de personalidade
jurídica, como é o caso do condomínio, visa a “ordenação dos interesses subjacentes a essas entidades” (cof. Luís
Carvalho Fernandes – Teoria Geral).
Ora, no caso do condomínio, o Art.º 1437 do C.C. confere ao administrador legitimidade para agir em juízo, quer
contra qualquer dos condóminos, quer contra terceiros, na execução das funções que lhes pertencem (legitimidade activa),
assim como lhe confere legitimidade passiva para ser demandado, mas apenas nas acções respeitantes às partes comuns
do edifício.
(Como parece evidente refere-se o preceito à chamada legitimidade formal, isto é a capacidade judiciária ou
processual – (susceptibilidade de estar a parte, pessoal e livremente em juízo) – e não à legitimidade “ad causam” que só
em concreto e caso a caso pode ser averiguada.
É que nem sempre a personalidade judiciária coincide com a capacidade processual. Pode falhar esta, apesar de
existir aquela.
É o que se passa no condomínio, ao qual é reconhecida personalidade judiciária embora sem a correspondente
capacidade processual. E, sendo assim, torna-se necessário que o exercício dos direitos processuais fique a cargo de
terceiro, que assim adquire legitimidade formal, agindo no processo, embora em nome e no interesse das partes que
representam (cf. Anselmo de Castro – Direito Processual Civil declaratório). Quer dizer, na falta de capacidade processual
há necessidade do seu suprimento e é exactamente essa a função do Art.º 1437 do C.P.C.).
Portanto, de acordo com o disposto no preceito em análise, como se diz no Ac. deste S.T. de 2/2/2006 “só quanto
a actos de conservação e punição dos cargos comuns, aos actos conservatórios ou relativos à prestação de serviços
comuns o administrador pode demandar e ser demandado nessa qualidade”.

Parece, pois, poder concluir-se que a introdução mo Art.º 6 do C.P.C. da alínea e/, quando da reforma de 1995,
não trouxe nada de novo que não resultasse já da lei substantiva (Art.º 1437 do C.C.)., pois, que, se o administrador podia
já agir em juízo no âmbito dos seus poderes funcionais, é porque a lei reconhecia implicitamente ao condomínio, a
necessária personalidade judiciária, sem que o preceito seria absurdo.

De resto, como observa L. Freitas (C.P.C.), citando A. Varela e Teixeira de Sousa “a ideia de elencar as
entidades às quais é atribuída personalidade judiciária visou desfazer duvidas quanto ao âmbito da categoria de património
autónomo semelhante à herança cujo titular ainda não estivesse determinado, embora alguma doutrina e jurisprudência
usasse, sem grande rigor, no que respeita ao condomínio, nele subsumir as figuras a que se referem as novas alíneas b) c)
e e)”

Parece-nos, assim, que o Art.º 6º e) do C.P.C. não visou abranger a situação de representação judiciária prevista
no nº4 (hoje nº 6) do Art.º 1433 do C.C., até porque, em matéria de deliberação da assembleia de condóminos o
administrador não tem quaisquer poderes nem exerce qualquer função administrativa. A apreciação e votação das

168
questões submetidas à assembleia de condóminos só a estes pertence, não desempenhando, nessa sede, o administrador,
qualquer papel.
O que lhe compete, isso sim, é o dever de executar as deliberações da assembleia (Art.º 1436 b) do C.C.) e
nessa actividade funcional, se porventura a execução da deliberação tiver a ver com actos conservatórios relativos às
partes comuns, já nada impedirá que o condomínio prejudicado, por ex, accione directamente o administrador. Então,
estaremos em pleno âmbito do disposto no Art.º 1437 nº2.
Mas, não é esta a perspectiva do Art.º 1433.
Segundo o nº 1 do preceito “As deliberações da assembleia contrárias à lei ou a regulamentos anteriormente
aprovados são anuláveis a requerimento de qualquer condómino que os não tenha votado”, o que significa que a conduta
pode ser sancionada com a anulabilidade, isto é, a deliberação contrária à lei ou ao regulamento, é da exclusiva
responsabilidade dos condóminos que a votarem, não envolvendo o exercício de qualquer poder ou desempenho de
funções da parte do administrador, enquanto tal.
Consequentemente, no que respeita às acções de impugnação das deliberações tomadas pela assembleia de
condóminos, não estamos no âmbito dos poderes do administrador, pelo que, nesse domínio, não goza o condomínio de
personalidade judiciária como resulta do Art.º 6 do C.P.C. e já resultava implicitamente do disposto no Art.º 1437 do C.C.
Daí que, nesta matéria são os próprios condóminos que devem ser pessoalmente accionados, dada a falta de
personalidade judiciária do condomínio, embora a sua representação em juízo caiba ao administrador ou à pessoa que a
assembleia designar para o efeito.
É o que resulta directamente do disposto no Art.º 1437 do C.C. quer no que respeita à legitimidade activa, quer
quanto à legitimidade passiva.
Quanto a esta, única que de momento nos interessa, diz expressamente o nº 6 do preceito que as acções são
propostas contra os condóminos “A representação judiciária dos condóminos contra quem são propostas as acções
compete ao administrador ou à pessoa que a assembleia designou para o efeito” (sublinhado nosso).
Sendo assim, como nos parece, é claro que, apesar da reformulação do Art.º 6 do C.P.C. e da sua nova alínea
e), não havia necessidade de actualizar a redacção do então nº4 (hoje nº6) do Art.º 1433 do C.C.
Aquela reformulação limita-se a ser a expressão processual do que já resultava do Art.º 1437 do C.C.
A harmonização a convergência fez-se com esse preceito e não com o nº6 do Art.º 1433.

Porém, o facto de a legitimidade passiva para as acções onde se impugne uma deliberação tomada na
assembleia de condóminos radicar nos próprios condóminos nos termos gerais do direito processual, não impede a
consideração de que a assembleia de condóminos configura um órgão colectivo ou colegial de que o administrador aparece
como órgão executivo, nem a contestação de que a deliberação vincula todos os condóminos, assim como a sua anulação
produz efeitos em relação a todos.
Ora, é em atenção a esta específica realidade que a lei, por razões de ordem prática (- dificuldade prática de
conseguir a mobilização de todos os condóminos para a defesa comum – o propósito de evitar a proliferação de
contestação com o natural prejuízo para a defesa, fase à previsível falta de cooperação ou coordenação – necessidade de
eficácia da defesa – simplificação do processado etc-), centralizou a representação judiciária dos condóminos accionados
na pessoa do administrador ou da outra pessoa para o efeito designada.
Tal representação corresponde, no entanto, a uma situação completamente diferente da prevista no Art.º 1437,
que não pressupõe a prévia atribuição de personalidade judiciária como acontece com a consignada no dito preceito legal,
no domínio do nº6 do Art.º 1433, estamos perante uma simples representação judiciária, determinada pela lei, ela própria a
implicar que os condóminos representados sejam individualmente accionados sob pena de não haver representação
alguma...

Por outro lado, parece que a respeito da representação judiciária, a que se refere o citado nº 6 do Art. 1433, não
será, sequer, adequado falar-se em representação orgânica exercida pelo órgão executivo-administrador.
É que a representação orgânica que compete ao administrador não poder ser afastada pela assembleia.
Como diz Sandra Passinhas (ob. cit. pág. 339) “O administrador é um órgão, tem aquilo a que se chame
representação orgânica e representa ex necessário o condomínio.
A assembleia não pode limitar a delimitada pelo núcleo das suas funções.”
Ora, no caso, essa representação (a representação judiciária) pode ser afastada pela assembleia que tem o
poder de designar quem entender para o efeito de representar os condóminos nas acções que contra eles foram intentados
para impugnar deliberação da assembleia.

Pensamos, assim, salvo melhor opinião, e não apenas por meras razões literais, que o nº 6 do Art.º 1433, quando
conjugado com o Art.º 1437 ambos do C. C. e com a alínea e) do Art.º 6 do C.P.C., não pode ser interpretado no sentido de
conferir legitimidade processual passiva ao administrador do condomínio, assim como o Art.º 6 e do C.P.C. não concede
personalidade judiciária ao condomínio quanto às acções em que pode intervir o administrador, pura e simplesmente, mas
apenas quanto àquelas em que o administrador intervém no exercício dos seus poderes funcionais. No caso das acções

169
em que se impugnam deliberação da assembleia de condóminos, não se está no âmbito dos poderes funcionais do
administrador.

Consequentemente, no caso concreto, a Ré AA, porque foi accionada na sua qualidade de administradora do
condomínio, não tem legitimidade passiva para esta acção, como bem decidiu a 1ª instância.
Procede, pois, o agravo.»

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Santos Bernardino) de 06-11-2008, no Pr.º 08B2784:

1. Fora do âmbito demarcado nos arts. 6º/e) do CPC e 1437º do CC, e designadamente no campo da
impugnação das deliberações tomadas em assembleia de condóminos, a questão da legitimidade não respeita
directamente ao condomínio a se, antes envolve os próprios condóminos, enquanto membros do órgão deliberativo que é a
assembleia de condóminos.
2. A questão da impugnação das deliberações é uma questão entre condóminos: é neles que radica a
legitimidade para impugnar e para defender a deliberação.
3. Quanto à legitimidade activa para a acção impugnatória das deliberações: são os condóminos que não tenham
votado a favor da sua aprovação que podem intentar, dentro dos prazos definidos na lei, a respectiva acção de anulação; e
não se exige actuação coligada, qualquer deles o podendo fazer.
4. Quanto à legitimidade passiva: só devem ser demandados, na acção de anulação da deliberação, os
condóminos que, tendo estado presentes ou representados na assembleia em que foi tomada a deliberação, votaram a
favor da sua aprovação, e não também os presentes ou representados que se abstiveram nem os que não estiveram
presentes nem representados, mesmo os que, posteriormente, nos termos do n.os 7 e 8 do art. 1432º do CC, hajam
comunicado por escrito o seu assentimento ou se hajam remetido ao silêncio.

Todavia, de acordo com o disposto no n.º 6 do art. 1433º, eles são representados na acção pelo administrador ou
por pessoa que a assembleia designar para esse efeito, razão por que, na petição inicial, deve (ou pode, como melhor se
verá) ser pedida a citação de todos eles na pessoa incumbida da sua representação judiciária.

Voltando ao caso ora em análise, verifica-se que foram demandados todos os condóminos que votaram a favor
da aprovação da deliberação cuja anulação vem pedida na presente acção.
Não pode, por isso, questionar-se a sua legitimidade, como bem decidiu a Relação.
O que sucede é que eles foram citados em suas próprias pessoas e não na pessoa ou pessoas a quem cabe a
sua representação em juízo – o administrador ou administradores do condomínio.
Tal facto, porém, não envolve mais do que uma mera irregularidade, sem influência no exame ou na decisão da
causa, não produzindo, por isso, qualquer nulidade (cfr. art. 201º/1, 2ª parte, do CPC).
Na verdade, não é verdadeiramente de falta ou irregularidade da representação que aqui se cura, a implicar
obrigatoriamente a aplicação do disposto nos arts. 23º, 24º e 265º/2 do CPC, como sustenta a Relação, pois não estamos
perante uma situação de incapacidade judiciária: os condóminos gozam de capacidade judiciária. Como refere ABÍLIO
NETO, “a lei, (...), para facilitar o desenvolvimento da acção e evitar a intervenção efectiva de todos, permite que os réus
sejam representados pelo administrador ou pela pessoa designada para o efeito por deliberação da assembleia (...), o que
significa que o autor poderá requerer a citação de todos os réus apenas na pessoa do administrador ou do representante
especial, se o houver” (5).
Não havendo representante especial designado, a citação na pessoa do administrador só poderá ter lugar se ele
próprio não for um dos condóminos autores. Se, nessa qualidade, a acção tiver sido intentada por ele, ou também por ele,
“terão de ser citados, individualmente, todos os condóminos demandados” (6) Autor, ob. e pág. cits. na nota anterior..
O que demonstra que, efectivamente, os condóminos demandados não estão afectados de incapacidade
judiciária.
Como o autor, na petição inicial, não pediu a citação deles na(s) pessoa(s) do(s) administrador(es), e essa
diligência processual foi efectuada nas pessoas de todos os demandados, nada obsta a que a acção prossiga os seus
termos, já que não existe incapacidade judiciária ou irregularidade de representação que deva ser suprida ou sanada.
Neste ponto – mas apenas neste ponto – diverge-se da bem fundada decisão da Relação».

1434º - arbitragem e penas pecuniárias.

1435º e 1435ºA (adm. provisório)

A nomeação pelo Tribunal segue os termos do art. 1428º CPC e o da sua exoneração o dos
art. 1485º e 1484ºB do CPC.

170
A exoneração pela Assembleia é mero reflexo do disposto no art. 1170º para a revogação do
mandato, que o administrador é simples mandatário, celebrando actos jurídicos no interesse e por
conta da assembleia dos condóminos. Por isso pode ele livremente renunciar às suas funções.

A eleição é por um ano, renovável, salvo disposição em contrário, e mantém-se em funções


até aceitação de funções pelo sucessor.

1436º
Além das funções aqui indicadas tem ainda o Administrador as que lhe são cometidas pelo
Dec-Lei nº 268/94 e no art. 1161º do CC, como mandatário que é.
As funções aqui elencadas são próprias, não pode a assembleia retirar-lhas, embora possa
cometer-lhe outras15.
1437º
O Administrador tem capacidade judiciária - a lei chama-lhe legitimidade - para estar em juízo,
tanto activa como passivamente.
Do lado passivo estará em representação dos condóminos contra quem são propostas as
acções de impugnação das deliberações - 1433º, nº 6 - ou nas acções respeitantes às partes comuns
do edifício - 1437º, nº 2.

A legitimidade passiva nas acções de impugnação das deliberações da assembleia de condóminos radica-se
naqueles que votaram a deliberação anulanda, representados, judiciariamente, pelo administrador - Ac. de 19.11.01, na
Col. Jur. 01-III-27.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Alves Velho) de 19.6.2007, no Pr.º 07A1454:



A questão que (mais) concretamente se coloca consiste em saber se a Administração do Condomínio pode
demandar a vendedora do edifício no seguimento de uma deliberação da Assembleia de Condóminos de “mandatar a
administração para interpor acção judicial contra a P..., SA relativa à reparação dos problemas existentes nas fracções
individuais dos condóminos”.
Como resulta das normas contidas nos arts. 1420º e 1421º C. Civil, na propriedade horizontal concorrem dois
direitos reais, um de propriedade singular, que tem por objecto as fracções autónomas do edifício e outro de
compropriedade incidente sobre as partes comuns identificadas no último dos preceitos referido.
O conjunto desses direitos – de propriedade exclusiva da fracção e de compropriedade nas partes comuns – é,
nas palavras da lei, incindível, de forma que o condómino não pode alienar um sem que faça o mesmo em relação ao outro,
do mesmo modo que lhe está vedado renunciar à parte comum como meio de se libertar do encargo das despesas
inerentes á sua conservação e fruição.

O condómino detém, assim, por força da lei que regula o respectivo estatuto, como direito real, uma dupla
posição jurídica na propriedade horizontal: - proprietário exclusivo da sua fracção e comproprietário das partes comuns do
edifício.
Dizer que o condómino é titular daquelas duas posições relativamente ao edifício constituído em regime de
propriedade horizontal é, porém, o mesmo que dizer que é sujeito da mesma dupla relação com o seu condomínio.

Com efeito, na noção fornecida por H. MESQUITA (“ A Propriedade Horizontal no Código Civil Português”, RDES,
A. XXIII, N.ºs 1-2-3-4, pg. 147), “o condomínio é a figura definidora da situação em que uma coisa materialmente indivisa ou
com estrutura unitária pertence a vários titulares, mas tendo cada um deles direitos privativos ou exclusivos de natureza
dominial – daí a expressão condomínio – sobre fracções determinadas”, mais referindo o Ilustre Professor que “cada
condómino está vinculado, no exercício do seu direito, a diversas limitações de origem legal ou negocial impostas em
benefício dos demais proprietários de fracções do prédio”, (loc. cit., 150 e 151).
A expressão “Condomínio”, de que a lei não fornece uma noção, traduz, em qualquer caso, o conceito de
compropriedade ou propriedade em comum (P. DE LIMA, “Verbo Enciclopédia”).

15
- Ib., 204 e ss.

171
A administração dessas partes comuns compete à assembleia de condóminos e a um administrador (art. 1430º-
1), enquanto a das fracções autónomas compete, em exclusivo, como a respectiva propriedade, ao respectivo titular.

Essa administração cabe, assim, conjuntamente a dois órgãos: a assembleia de condóminos, como órgão
deliberativo; e o administrador, como órgão executivo (art. 1436º C. Civil, em especial a sua al. h)).
Assente, pois, que, como regra, a lei apenas concede ao condomínio e respectiva administração poderes
relativamente às partes comuns.

Nem poderia ser de outro modo, nomeadamente quanto às fracções autónomas, pois que, então, estaríamos
perante uma violação do direito de propriedade dos respectivos titulares – art. 1305º C. Civil -, em relação aos quais, como
terceiros, tais actos seriam necessariamente ineficazes.
Por outro lado, a lei – art. 1436º C. Civil – enumera as diversas funções do administrador para cujo exercício,
justamente porque os poderes lhe advêm directamente da lei, não carece de autorização da assembleia.
E é assim que no art. 1437º-1 se dispõe que “o administrador tem legitimidade para agir em juízo, quer contra
qualquer dos condóminos, quer contra terceiro, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela
assembleia”.
Do mesmo modo, “pode também ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns”, mas já necessita
que a assembleia lhe atribua poderes especiais para o efeito quanto a questões relativas a questões de propriedade ou
posse de bens comuns – n.ºs 2 e 3 do mesmo art. 1437º.
Correspondentemente, a lei processual, no reconhecido pressuposto de que o condomínio não tem personalidade
jurídica – o que encontra clara manifestação na al. i) do art. 1436º (representação do conjunto dos condóminos) -, veio
admitir a personalidade judiciária do condomínio “relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do
administrador”.
Sempre, pois, como traço comum da falada legitimidade – legitimidade formal - e da personalidade judiciária a
actuação no âmbito dos poderes do administrador.

Aqui chegados, importa, então, determinar o preciso significado e alcance do último segmento da norma do n.º 1
do art. 1437º.
Já se viu que a primeira parte se refere aos poderes do administrador para agir em juízo no exercício de direitos
que a lei directa e expressamente lhe comete.

Além desses, reconhece-se-lhe legitimidade activa para agir “quer contra qualquer dos condóminos, quer contra
terceiro (…) quando autorizado pela assembleia”.

Ora, como já resulta do que se deixou dito, os poderes da assembleia de condóminos, no que ao caso interessa,
esgotam-se na administração das partes comuns, da compropriedade – arts. 1430º-1 e 1437º-3 cit..
Por outro lado, como proprietário exclusivo da sua fracção, o condómino tem a sua fruição e administração
exclusiva – art. 1420º-1 cit..
Quaisquer recíprocas intromissões nesses direitos de propriedade que, integrando, no seu conjunto, a
propriedade horizontal, têm titulares e conteúdos diferentes, estará ferida de ineficácia pela simples razão de se estar
perante a prática de actos relativos a direitos de que o autor não é titular, ou seja, direitos de terceiros.

Consequentemente, o autorizado pela assembleia há-de aferir-se pelo âmbito e limites da competência desta,
que se circunscrevem, insiste-se, aos factos e acções em que estejam em causa as partes comuns, ou seja, os direitos
sujeitos ao regime da compropriedade, que por, eventualmente, exorbitarem os poderes directamente atribuídos ao
administrador, mas caberem nos da assembleia, esta deve autorizar e mandatar (cfr. P. DE LIMA e A. VARELA, “CC,
Anotado”, vol. III, 2ª ed., 455).

Do ponto de vista da lei do processo, também a falta de legitimidade ressalta da falta de coincidência entre a
titularidade da relação jurídica de que são sujeitos o condomínio e sua administração e a das fracções autónomas em que
se verificarão os alegados defeitos (art. 26º CPC).

Deve, pois, concluir-se que a representação em juízo pela administração do condomínio se encontra balizada
pela execução das funções que lhe estão cometidas pela lei e pela autorização da assembleia no âmbito da respectiva
competência, ou seja, para intentar acções que tenham por objecto questões relativas às partes comuns do edifício (cfr. ac.
STJ, 17/2/98, CJ VI-I-86; SANDRA PASSINHAS, “A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade
Horizontal”, 341).

172
Pode demandar - lado activo - qualquer condómino ou terceiro na execução das funções que
lhe competem, nomeadamente em actos conservatórios dos bens comuns - al. f) do art. 1436º - agindo
por direito próprio, ou quando autorizado pela Assembleia - art. 1437º, 1, in fine.

Para acções relativas a questões de propriedade ou posse dos bens comuns exige a lei – art.
1437º, nº 3 - atribuição de poderes especiais pela Assembleia.

É claro que continua a ter legitimidade para a acção o condómino que, independentemente de qualquer
pressuposto processual, defende em juízo os seus direitos derivados da propriedade horizontal, tanto no que respeita à sua
fracção como às partes comuns, mas não pode vir a juízo defender os direitos próprios de outros condóminos - BMJ 228-
204 e Col. STJ 94-I-144, além dos atrás vistos para as obras ou destino diverso da fracção.

O administrador pode agir em juízo em representação dos condóminos quando a assembleia lhe conferir
autorização para tal, mas essa autorização e intervenção apenas respeitam às partes comuns do prédio.
No que toca às fracções autónomas, cada condómino é proprietário de cada uma delas, não tendo o
administrador poderes para accionar o construtor por eventuais defeitos internos das fracções - Col. 97-IV-77.

I - A autorização pela assembleia de condóminos ao administrador para agir em juízo só pode ter lugar em
matéria da competência dessa assembleia, que é relativa às partes comuns do prédio.
II - Não cobre, pois, a proposição, pelo administrador, de acção que verse a utilização de uma fracção autónoma
para fins diferentes dos permitidos - Col. 90-III-116.

Nesta acção podem estar - e normalmente estarão - em causa partes comuns, pelo que devia
ser admitido o administrador, autorizado pela assembleia, a demandar o infractor.

O STJ decidiu, em Ac. de 17.2.98, que os administradores de condomínio são partes legítimas quando a acção
proposta tem por objecto partes comuns (pedia-se a declaração de nulidade de escritura que autonomizou e vendeu a casa
da porteira - parte comum - que como tal havia sido aprovada pela Câmara no projecto de construção) e além disso,
quando ajam de harmonia com os poderes conferidos pela assembleia de condóminos - Col. STJ 98-I-86.

Capacidade judiciária – Legitimidade Propriedade horizontal - Administrador

I - O condomínio, na propriedade horizontal, não tem personalidade jurídica, mas é titular de personalidade
judiciária16, podendo por isso estar em juízo, no qual é, em princípio, representado pelo administrador.
II - O administrador tem, face ao artigo 1437º, n.º 1 e 2, do CC, legitimidade para agir em juízo, quer contra
qualquer dos condóminos, quer contra terceiro, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela
assembleia de condóminos, podendo também ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício.
III - Nas funções do administrador não cabe a defesa da propriedade ou posse dos bens comuns.
IV - A capacidade judiciária do administrador não abrange, assim, face ao nº 3 do artigo 1437º do CC, as acções
relativas a questões de propriedade ou posse respeitantes às partes comuns do imóvel, salvo se a assembleia lhe atribuir
para tanto poderes especiais.
V - Não pode, pelo exposto, ser recebida acção em que dois condóminos pedem que a administração do prédio
(e só ela) seja condenada a reconhecer que eles têm direito a utilizar determinados espaços de estacionamento existentes
na sub-cave do imóvel e que consideram partes comuns - isto, apesar de o acesso a essas zonas lhes haver sido impedido
por acto da administração - Ac. STJ, 16.12.99, BMJ 492-406.

CONDOMÍNIO
Legitimidade activa
Partes comuns

Acção contra o construtor com vista à eliminação dos defeitos de construção


Desnecessidade de prévia autorização dos condóminos

Ac. da R.ão do Porto (Des. Lemos Jorge) de 22.2.2005, na Col. Jur. 2005-I-194 a 196
16
- art. 6º do CPC: Têm ainda personalidade judiciária:
e) O condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às acções que se inserem no
âmbito dos poderes do administrador.

173
O administrador do condomínio tem legitimidade - sem necessidade de prévia autorização da assembleia de
condóminos - para intentar acção contra o construtor do prédio com vista a obter a condenação deste na realização das
obras necessárias à eliminação dos defeitos de construção.

Propriedade Horizontal
- Legitimidade de representação
- Acção para eliminação de defeitos de construção

I - O art.1405.º, n.º 2, do CC (referente à compropriedade) não é aplicável ao regime da propriedade horizontal.


II - Como regra, é o condomínio (representado pela sua administração) que tem legitimidade para demandar e ser
demandado nas acções em que estejam em causa interesses relativos às suas partes comuns, o mesmo se passando em
relação a cada um dos condóminos, relativamente às fracções de que é respectivo titular.
III - Porém, nas acções em que se discuta a obrigação do construtor-vendedor, das diversas fracções do imóvel
constituído em regime de propriedade horizontal proceder à eliminação dos seus defeitos ou de, em caso de
incumprimento, pagar a indemnização correspondente, só os respectivos proprietários-compradores dessas fracções
podem exercer tais direitos, que só a eles pertencem.
IV - Desse modo, estando em causa a aplicação do regime legal de venda de coisa defeituosa, previsto nos arts.
913.º e ss do CC, só os condóminos-compradores têm, em tais acções, legitimidade para demandar, e mesmo no que
concerne às partes comuns - Ac. do STJ (Cons.º Reis Figueira), de 7.12.2005, na Col. Jur. STJ 2005-III-159.

Acórdão do STJ (Ex.mo Cons.º Santos Bernardino), de 10.04.2007, no Pr.º 07B1875:

1. Na propriedade horizontal, a administração das partes comuns cabe, em conjunto, à assembleia dos
condóminos e ao administrador do condomínio.
2. Este é o órgão executivo da administração, cabendo-lhe o desempenho das funções referidas no art. 1436º do
CC, próprias do seu cargo, assim como as que lhe forem delegadas pela assembleia ou cometidas por outros preceitos
legais.
3. O art. 6º, al. e) do CPC ficciona a personalidade judiciária do condomínio relativamente às acções que se
inserem no âmbito dos poderes do administrador.
4. O art. 1437º do CC consagra a capacidade judiciária do condomínio, ao estabelecer a susceptibilidade de o
administrador, seu órgão executivo, estar em juízo em representação daquele, nas lides compreendidas no âmbito das
funções que lhe pertencem (art. 1436º), ou dos mais alargados poderes que lhe forem atribuídos pelo regulamento ou pela
assembleia, sendo que, em qualquer dos casos, as acções deverão ter sempre por objecto questões relativas às partes
comuns.
5. A acção destinada a efectivar a responsabilidade dos construtores/vendedores do prédio, por defeitos de
construção nas suas partes comuns, sendo uma acção obrigacional, pode ser instaurada quer pelo administrador, quer por
todos os condóminos, em litisconsórcio necessário.
6. Mas, sendo movida pelo administrador, deve este estar para tanto autorizado pela assembleia, pois a
reparação das partes comuns do prédio constitui um acto de administração que extravasa o âmbito das funções que a lei
lhe comete.
7. Tendo proposto a acção sem estar autorizado pela assembleia, deve o administrador providenciar pela
supressão de tal vício de representação, obtendo, para o efeito, a devida deliberação, sob pena de, não o fazendo no prazo
que, para o efeito, lhe for fixado, ser o réu absolvido da instância.
8. Ao conferir ao administrador a possibilidade de actuar em juízo, o art. 1437º do CC mais não faz do que
concretizar uma aplicação do disposto no art. 22º do CPC – que estatui sobre a representação das entidades que carecem
de personalidade jurídica – eliminando possíveis dúvidas sobre se aquele poderia, no exercício das suas atribuições,
recorrer à via judicial.
9. O art. 1437º não resolve, pois, o problema da legitimidade do administrador, que, aliás, não se coloca, porque
este age, em juízo, enquanto órgão do condomínio e, portanto, em representação deste. Do que, no fundo, se trata, é de
atribuir ao administrador legitimação para agir em nome do conjunto dos condóminos.
10. Parte no processo, relativamente às partes comuns do edifício, é o condomínio, sendo relativamente a este, e
não no tocante ao administrador, que se poderá colocar a questão da legitimidade.
11. Sendo inquestionável, no caso concreto, atenta a relação jurídica objecto do pleito, a legitimidade do
condomínio, representado pela sociedade administradora, a hipotética incapacidade judiciária desta, decorrente da
eventual procedência da acção de anulação judicial da deliberação da assembleia de condóminos que a autorizou a
instaurar a presente acção, redundará tão-somente num vício de representação, o qual se deve ter por suprido, à luz do

174
disposto no art. 25º do CPC, com a deliberação da assembleia de 12.04.2005, que, sem votos contra e apenas com uma
abstenção, ratificou os actos praticados, na acção, pela administradora.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



2.
Os factos a ter em conta para a decisão do presente recurso são os que integram a descrição operada ao longo
do número anterior, até à referência ao acórdão da Relação e indicação do seu fundamento, e que podem assim sintetizar-
se:
· a agravante, na qualidade de administradora do condomínio do empreendimento BB, intentou uma acção
destinada a efectivar a responsabilidade dos construtores/vendedores do prédio por defeitos de construção nas suas partes
comuns;
· fundou tal exercício numa deliberação tomada em assembleia geral de condóminos, realizada em 07.05.2003;
· sucede que corre termos na 3ª Secção da 5ª Vara Cível de Lisboa uma acção na qual foi requerida a anulação
judicial da sobredita deliberação;
· entretanto, em 16.09.2003, a assembleia geral de condóminos deliberou, por maioria, renovar as deliberações
tomadas na assembleia de 07.05.2003;
· posteriormente, em 12.04.2005, a mesma assembleia geral de condóminos deliberou, sem votos contra e
apenas com uma abstenção, ratificar os actos praticados pela agravante nos presentes autos na sequência das
deliberações tomadas nas assembleias de 07.05.2003 e 16.09.2003.

No caso vertente, coloca-se a questão de saber se:
· a sociedade administradora do condomínio carece de deliberação da assembleia de condóminos que a autorize
a propor uma acção destinada a efectivar a responsabilidade dos construtores/vendedores do prédio por defeitos de
construção nas suas partes comuns; e se
· a eventual falta dessa deliberação acarreta um vício de representação, sanável nos termos do art. 25º do CPC,
ou a ilegitimidade processual do administrador.

3.
Na propriedade horizontal concorrem dois direitos reais: um, de propriedade singular, que tem por objecto as
fracções autónomas do edifício; outro, de compropriedade, incidente sobre as partes comuns.
O conjunto destes direitos reais é incindível, não podendo o condómino alienar um deles sem que faça o mesmo
em relação ao outro, estando-lhe ainda vedada a renúncia à parte comum como meio de se libertar do encargo das
despesas inerentes à respectiva conservação e fruição (art. 1420º/2 do CC).
O condómino detém, assim, por força do seu estatuto legal, uma dupla posição jurídica na propriedade horizontal:
é proprietário exclusivo da sua fracção e comproprietário das partes comuns do prédio.
A administração da fracção autónoma compete, em exclusivo, ao condómino titular do respectivo direito de
propriedade (art. 1305º do CC).
Por seu turno, a administração das partes comuns cabe, em conjunto, a dois órgãos, a saber, a assembleia dos
condóminos e o administrador (art. 1430º do CC). À primeira, órgão deliberativo composto por todos os condóminos,
compete decidir sobre os problemas do condomínio que se refiram às partes comuns, encontrando soluções para os
resolver, delegando no administrador a sua execução e controlando a actividade deste. Ao segundo, órgão executivo da
administração, cabe o desempenho das funções referidas no art. 1436º do CC, próprias do seu cargo, assim como as que
lhe forem delegadas pela assembleia ou cometidas por outros preceitos legais.
No que concerne especificamente ao órgão executivo, e por forma a tornar efectivo o exercício dos poderes
processuais do condomínio, contornando assim os obstáculos decorrentes da falta de personalidade e capacidade jurídicas
deste, os arts. 6º, al. e) do CPC e 1437º do CC atribuem ao administrador a função da representação processual do
condomínio.
Na verdade, o aludido art. 6º, al. e) ficciona a personalidade judiciária do condomínio relativamente às acções que
se inserem no âmbito dos poderes do administrador. Por seu turno, o art. 1437º do CC consagra a capacidade judiciária do
condomínio ao estabelecer a susceptibilidade de o administrador (seu órgão executivo) estar em juízo em representação
daquele nas lides compreendidas no âmbito das funções que lhe pertencem (art. 1436º do CC) ou dos mais alargados
poderes que lhe forem atribuídos pelo regulamento ou pela assembleia, sendo que em qualquer dos casos as acções
deverão ter sempre por objecto questões relativas às partes comuns do edifício (2).
O fundamento do art. 1437º radica na própria natureza das funções de administrar. O administrador não é um
mandatário – é, repete-se, um órgão executivo do condomínio a quem cabe a representação orgânica, representando ex
necessario o condomínio (3). Não é este que deve estar em juízo, em sentido substancial, mas sim o administrador, na sua
qualidade de órgão executivo da assembleia de condóminos.

175
Por referência ao caso sub judice, é inquestionável que a acção destinada a efectivar a responsabilidade dos
construtores/vendedores do prédio por defeitos de construção nas suas partes comuns, por ser uma acção obrigacional (já
que assenta na execução defeituosa da prestação debitória do empreiteiro/vendedor, geradora de responsabilidade
contratual), pode ser instaurada quer pelo administrador, quer por todos os condóminos, em litisconsórcio necessário (art.
1405º do CC) (4).
Mas sendo a acção movida pelo administrador, ainda assim este deve estar para tanto autorizado pela
assembleia, pois a reparação das partes comuns do prédio constitui um acto de administração que extravasa o âmbito das
funções que a lei lhe comete. Designadamente, tal exercício não se enquadra na al. f) do art. 1436º do CC, porque os
“actos conservatórios dos direitos relativos aos bens comuns” são somente aqueles que nada resolvem em definitivo, que
não comprometem o futuro e que apenas visam manter uma coisa ou um direito numa determinada situação. Não integra
igualmente a al. g) do mesmo artigo, pois este normativo apenas se refere ao uso das coisas, sendo certo que também não
está em causa a prestação de serviços de interesse comum.
Não estando autorizado, e sendo a acção proposta, o administrador deverá providenciar pela supressão de tal
vício de representação, obtendo para o efeito a devida deliberação, sob pena de, não o fazendo no prazo que para o efeito
lhe for fixado, o réu ser absolvido da instância (art. 25º do CPC).
No caso vertente, com base na realidade factual que acima deixámos sinteticamente referida, a 1ª instância
suspendeu a lide, ao abrigo do disposto no art. 279º/1 do CPC, considerando existir um nexo de prejudicialidade entre a
acção de anulação pendente na 5ª Vara Cível de Lisboa, 3ª Secção, e os presentes autos: procedendo a primeira
desaparecerá nos segundos o fundamento concreto da legitimidade no qual a autora fundou a sua legitimidade activa.
O acórdão da Relação manteve a decisão da 1.ª instância. Defendeu ainda que a deliberação de 12.04.2005 não
tem a virtualidade de alterar a situação definida pelo despacho recorrido, não constituindo fundamento para levantar a
suspensão da instância. Com efeito, está-se no domínio da ilegitimidade e não no da incapacidade judiciária ou
irregularidade de representação. Assim, e porque o objecto da presente acção se situa fora das funções atribuídas ao
administrador do condomínio, só a autorização da assembleia, e não a mera ratificação dos actos praticados, é que pode
conferir à autora interesse directo em demandar, face ao disposto no art. 1437º/1 do CC.
Mas será de sufragar este entendimento?
É indiscutível que o presente litígio está directamente relacionado com a prática de um acto de administração
(reparação das partes comuns) que exorbita o âmbito das funções atribuídas pelo art. 1436º do CC ao administrador.
Sendo assim, já acima o dissemos, este carecia de autorização da assembleia para propor a presente acção contra as
agravadas, conforme decorre expressamente do art. 1437º/1 do CC.
Porém, como também já se deixou entrevisto, este normativo refere-se à capacidade processual e não à
legitimidade adjectiva (ad causum) do condomínio, ao invés do defendido no acórdão recorrido. Ao conferir ao
administrador a possibilidade de actuar em juízo, o art. 1437º mais não faz do que concretizar uma aplicação do disposto
no art. 22º do CPC – que estatui sobre a representação das entidades que carecem de personalidade jurídica – eliminando
possíveis dúvidas sobre se aquele poderia, no exercício das suas atribuições, recorrer à via judicial. Fica claro, com o
preceito em apreço, que o administrador da propriedade horizontal, na execução das funções que lhe pertencem ou quando
munido de autorização da assembleia de condóminos – relativamente a assuntos que, exorbitando da sua competência,
cabem, todavia, na competência desta assembleia – pode accionar terceiros ou qualquer dos condóminos, ou por eles ser
demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício. Como anota LUIS A. CARVALHO FERNANDES, “os
poderes de representação do administrador não podem deixar de ser encarados e compreendidos à luz da falta de
autonomia jurídica do condomínio. Correspondentemente, por referência à personalidade judiciária que lhe é reconhecida,
do que no fundo se trata é atribuir, ao administrador, legitimação para agir em nome do conjunto dos condóminos.” (5)
O aludido normativo não resolve, pois, o problema da legitimidade do administrador, que, aliás, não se coloca,
visto que este age, em juízo, enquanto órgão executivo do condomínio, e, portanto, em representação deste. Parte no
processo, relativamente às partes comuns do edifício – e é só destas que se cura – é o condomínio (que, como vimos já,
tem personalidade judiciária (6) , embora não tenha personalidade jurídica), sendo, pois, relativamente a este, e não no
tocante ao administrador, que se poderá colocar a questão da legitimidade.
Efectivamente, a legitimidade é uma posição das partes face ao objecto do processo, que, nos termos do art. 26º
do CPC, terá de se aferir, em acções propostas pelo administrador ou em que este seja demandado, “pelo interesse que o
património comum que representa (e não ele próprio) tenha em demandar ou em contradizer – expresso, no primeiro caso,
pela utilidade derivada da procedência da acção e, no segundo, pelo prejuízo que essa mesma procedência possa
ocasionar.” (7).
Significa isto que – sendo inquestionável, no caso em apreço, a legitimidade do condomínio, representado pela
sociedade administradora, atenta a relação jurídica objecto do pleito – a hipotética incapacidade judiciária desta, decorrente
da eventual procedência da acção de anulação judicial da deliberação da assembleia de condóminos que autorizou à aqui
agravante a presente demanda, redundará tão-somente num vício de representação, o qual se deve ter por suprido à luz do
disposto no art. 25º do CPC.
Com efeito, em 16.09.2003 a assembleia geral de condóminos deliberou, por maioria, renovar as deliberações
tomadas na assembleia de 07.05.2003. Posteriormente, em 12.04.2005, a mesma assembleia geral de condóminos

176
deliberou ratificar os actos praticados pela agravante nos presentes autos na sequência das deliberações tomadas nas
assembleias de 07.05.2003 e 16.09.2003.
Ora, se o risco decorrente da eventual irregularidade de representação do condomínio já está prevenido e
afastado, forçoso é concluir que não existe a apregoada relação de prejudicialidade entre a causa em discussão na acção
que corre os seus termos na 3ª Secção da 5ª Vara Cível de Lisboa (proc. n.º 6.085/03.0TVLSB) e os presentes autos, não
estando assim reunidos, in casu, os requisitos fixados no n.º 1 do art. 279º do CPC para a suspensão da instância.

E assim, em face do que vem exposto, a decisão recorrida não pode subsistir, devendo a mesma ser substituída
por outra que ordene o levantamento da suspensão da instância e o consequente prosseguimento dos autos.

4.
Termos em que ACORDAM os Juízes deste Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao agravo,
revogando o acórdão recorrido e ordenando o levantamento da suspensão da instância e o consequente prosseguimento
dos autos.

Lisboa, 04 de Outubro de 2007

Santos Bernardino (relator) Bettencourt de Faria Pereira da Silva


________________________
(1) Do outro indicado acórdão da Relação de Lisboa (de 16.05.96) apenas aparece, no site, o respectivo sumário.
(2) Neste sentido, cfr. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado, Volume III (artigos 1251º a
1575º), 2.ª edição revista e actualizada (reimpressão), Coimbra Editora, 1987, págs. 455 e 456, ARAGÃO SEIA, in
Propriedade Horizontal, Condóminos e Condomínios, Almedina, 2001, págs. 205 a 208, e SANDRA PASSINHAS, in A
Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, 2.ª edição, Almedina, 2002, págs. 338 e 339.
(3) Cfr. FRANCISCO RODRIGUES PARDAL e MANUEL BAPTISTA DIAS DA FONSECA, in Da Propriedade
Horizontal no Cód. Civil e legislação complementar, 5ª ed., Coimbra Editora 1988, pág. 277.
(4) Neste sentido, cfr. acórdão do STJ de 06-02-2007, proferido na Revista n.º 4525/06 - 1.ª Secção,
(5) Cfr. “Da natureza jurídica do direito de propriedade horizontal”, in Cadernos de Direito Privado, n.º 15
Julho/Setembro 2006, pág. 9.
(6) A personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte – art. 5º/1 do CPC.
(7) Cfr. RUI VIEIRA MILLER, A Propriedade Horizontal no Código Civil, 2ª ed., págs. 283/284

1438º
Pode afirmar-se, como regra, que só são susceptíveis de recurso os actos do administrador
que não estejam imediatamente vinculados a deliberação definitiva da assembleia, sem prejuízo,
todavia, de qualquer condómino suscitar a apreciação da fidelidade da execução desta, quando só ela
esteja em causa.
A deliberação da assembleia, agindo na qualidade de órgão hierárquico superior, com poderes
de apreciação e revogação no que toca ao recurso hierárquico dos actos do administrador, no caso
órgão hierarquicamente inferior, tem carácter definitivo, tendo o administrador de respeitar a
deliberação sem possibilidade de dela recorrer.
Por sua vez o condómino recorrente também não pode impugnar a deliberação em juízo ou
em qualquer outra instância, por os actos recorridos se situarem dentro da competência própria do
administrador ou resultarem de deficiente execução de deliberações da assembleia.
Se, porém extravasarem a competência do administrador ou a execução de deliberação da
assembleia e esta os confirmar ou alterar, saindo daquele âmbito, então estar-se-á perante uma nova
deliberação susceptível de ser impugnada.
O condómino recorrente deve solicitar ao administrador a convocação da assembleia - al. a),
do artigo 1436.º Se este o não fizer pode então convocá-la directamente – art. 1438º CC.

1438ºA
Refere-se este novo preceito aos condomínios fechados, instalados em antigas quintas, p.e. a
Quinta da Marinha, cujo conjunto constitui uma unidade jurídica formada por fracções autónomas
resultantes da aglutinação da propriedade exclusiva de cada uma dessas moradias com a quota-parte

177
do respectivo proprietário na compropriedade dos bens (jardins, golf, ténis, ginásio e instalações nele
estabelecidas) destinados à sua fruição em comum como indispensável ao gozo daquela.

Além do CC Anotado (P. Lima e A. Varela) e dos Manuais de Reais, convém estudar a
Propriedade Horizontal, do saudoso Cons.º Aragão Seia, obra aqui seguida de muito perto.

Propriedade das Águas

A - públicas

As águas são coisas imóveis - 204º, nº 1, al. b), CC - e dividem-se, quanto ao seu regime
jurídico, em públicas e particulares - 1385º.

É a Constituição que no seu art. 84º, 1, al. a) e c), diz pertencerem ao domínio público as
águas territoriais com os seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e
cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respectivos leitos, as nascentes de águas minero-
medicinais.

Esta enumeração não é taxativa, pelo que o legislador ordinário pode, por permissão da al. f)
do nº 1 e do nº 2 deste art. 84º, definir os bens sujeitos à dominialidade, nomeadamente as águas
nascentes ou existentes em terreno baldio - Col. STJ 96-II-114 - que, por serem do domínio público,
são imprescritíveis, insusceptíveis de usucapião, salvo se tiverem entrado no domínio privado por
preocupação.
O Código trata, apenas, das águas particulares, depois de, na segunda parte do art. 1385º,
declarar sujeitas ao regime estabelecido em leis especiais as águas públicas.
Vigorou nesta matéria a Lei de Águas, o Dec. 5787 IIII, superiormente comentado pelo Dr.
Veloso de Almeida, edição da Livraria Cruz, de Braga.
Leis posteriores vêm indicadas no CC Anotado, de P. Lima e A. Varela.

Foi publicada a Lei nº 54/2005, de 15 de Novembro, lei do domínio hídrico que revogou, entre
outros, o velho Decreto 5787 IIII. Nos termos do seu art. 30º, esta lei só entrou em vigor com a Lei da
Água, a Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro.
O Dec-lei n.º 226-A/2007, de 31 de Maio, - regime de utilização dos recursos hídricos – foi
alterado pelo Dec-lei n.º 391-A/2007, de 21 de Dezembro.

As águas públicas podiam (e podem) ser utilizadas por particulares mediante licença ou
concessão.

Artigo 59.º da Lei 58/05


Utilização privativa dos recursos hídricos do domínio público

1 - Considera-se utilização privativa dos recursos hídricos do domínio público aquela em que alguém obtiver para
si a reserva de um maior aproveitamento desses recursos do que a generalidade dos utentes ou aquela que implicar
alteração no estado dos mesmos recursos ou colocar esse estado em perigo.
2 - O direito de utilização privativa de domínio público só pode ser atribuído por licença ou por concessão
qualquer que seja a natureza e a forma jurídica do seu titular, não podendo ser adquirido por usucapião ou por qualquer
outro título.

Podiam as águas públicas ter entrado no domínio privado por préocupação até 21.3.1868.

178
Préocupação era o direito de adquirir quaisquer águas públicas ou comuns, mesmo de
correntes navegáveis ou flutuáveis (sem prejuízo, neste caso, da navegação ou flutuação a que tais
águas estavam prioritariamente sujeitas) e que consistia na ocupação, para qualquer fim,
designadamente para fins agrícolas ou industriais, daquelas águas por meio de obras permanentes de
represamento ou derivação, construídas até 21.3.1868.
Na medida dessa apropriação, verificava-se uma desafectação do uso público das águas
apropriadas, tornando-se estas particulares; os direitos resultantes da preocupação foram
salvaguardados, sucessivamente, pelo Código Civil de Seabra (438º), pelo Decreto 5787-IIII (33º) e CC
em vigor (1386º, nº 1, al. d), como o são pela Lei nº 54/2005 – art. 6º, nº 4, 8.º, n.º 3 e 15º.
Por isso, adquirido por preocupação o direito de propriedade sobre determinadas águas,
passou tal direito a poder ser objecto de qualquer negócio jurídico translativo daquela ou de usucapião
nos termos gerais - BMJ 381-627.
Note-se, porém, o adiante dito em notas ao art. 1397º

Preocupação - Sinais de apropriação


Distinção entre preocupação e usucapião

I - Só é possível o reconhecimento da pré-ocupação de águas desde que o aproveitamento delas tenha sido
acompanhado de obras visíveis ou aparentes e permanentes de represamento ou captação ou de derivação, construídas
até 21 de Março de 1868.
II - Constituem sinais inequívocos de apropriação das águas as condutas de captação, levadas e regos que as
represam e as levam ao prédio.
III - Os modos de aquisição originária de águas são a preocupação, necessariamente de águas públicas, e a
usucapião, necessariamente (visto serem imprescritíveis as públicas), de águas particulares - Ac. da Relação do Porto, de
2 de Março de 2000, na Col. 00-II-181.

Ainda sobre esta matéria - preocupação - e servidões de presa e de aqueduto, pode ver-se o Ac. da R.ão do
Porto, de 15.5.2001, na Col. Jur. 2001-III-184 e o na Col. 02-V-184.

Ac. do S.T.J. de 28-9-1988 (P. 76 065) - Águas / Usucapião / Preocupação

I – Documentos apresentados pelos autores, tais como a carta de doação que, no século XII quando o Condado
Portucalense era ainda do Reino das Astúrias e de Leão, a Rainha D. Teresa fez da cidade do Porto ao Bispo D. Hugo, e
que se reportam a privilégios de índole feudal abolidos, se não pela Carta Constitucional de 1826, pelo menos pelo decreto
de Mouzinho da Silveira de 13 de Agosto de 1832, não podem converter a propriedade do leito do rio, das margens, nem
das águas e nem tão pouco se referem a direitos que justifiquem a posse «animo domini», em termos de conduzir à
usucapião, mas têm apenas em vista certos privilégios que restringiam o uso público daqueles terrenos e águas, não
implicando a preocupação destas, a qual não pode confirmar-se sem haver obras ou vestígios delas, que a revelem.
IV – Os rios tidos como bens da nação – expressão equivalente à de hoje de bens do domínio público – ficaram
livres de qualquer válida apropriação anterior e ainda ficaram com a amplitude dada no decreto de 4 de Dezembro de 1830,
sendo integrados pelas águas e terrenos até onde chegassem as marés e passaram a integrar o domínio público.
V – Uma água pública só pode ser adquirida por um particular se este a captar, canalizando-a para os seus
prédios particulares, não podendo constituir-se propriedade com base numa posse sobre a água que corre num rio, sendo
tal posse impossível, pois que apenas é possível a captação da água de um rio que uma vez canalizada passa a ser
propriedade particular.
VI – Só é possível reconhecer-se a preocupação como título aquisitivo anterior a 21 de Março de 1868, se
existirem obras permanentes de captação e derivação de águas construídas até aquela data.
VII – As pessoas que pretendem obter o reconhecimento do seu direito de propriedade devem provar
documentalmente que tais terrenos do leito e das margens eram, por título legítimo, objecto de propriedade particular ou
comum antes de 31 de Dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de Março de 1868 - Bol. do
Min. da Just. 379, pág. 566

Ac. do STJ (Cons.º Salvador da Costa) de 23.3.2006, P.º 06B849:

Sumário:

179
3. Os baldios são terrenos sob a posse e administração de comunidades locais, segundo os usos e costumes,
sob o direito delas ao seu uso e fruição por via de apascentação de gados, recolha de lenha ou de mato ou de cultivo, fora
do comércio jurídico, inalienáveis, imprescritíveis e insusceptíveis de apropriação privada.
4. As águas nascidas em terrenos baldios são coisas integrantes do domínio público hídrico, fora do comércio
jurídico e, por isso, insusceptíveis de aquisição por particulares, por apropriação ou outro título.
5. O título de apropriação de águas originariamente públicas por via da pré-ocupação supõe a sua ocupação e
aproveitamento pelos proprietários de campos marginais por via da construção, com carácter permanente, antes de 21 de
Março de 1868, de represas, aquedutos, levadas ou canais.
6. A captação, aproveitamento e canalização das águas nascidas em terrenos baldios pelos habitantes de
determinada localidade, há mais de cem anos, reportados a um dos dias de 2001, é insusceptível de lhes proporcionar a
aquisição do respectivo direito de propriedade por via de usucapião ou de pré-ocupação.
7. Por não haver cometido facto ilícito, não é o Município sujeito da obrigação de indemnizar os munícipes da
localidade pelo facto de, no exercício da sua função de abastecimento de água às populações, haver destruído velhas
canalizações por aqueles outrora colocadas para o mesmo fim.

No tempo já distante, aos povoadores livres das aldeias rurais foram concedidos baldios para os haverem como
seus ou por seus os coutarem ou defenderem em proveito dos pastos e criações e logramento de lenha e madeira para as
suas casas e lavouras (Ordenações Manuelinas, Livro IV, Título LXVII, 8; e Ordenações Filipinas, Livro IV, Título XLIII, 9).
No domínio da vigência do Código Civil de 1867, que entrou em vigor no dia 21 de Março de 1868, as coisas em
geral, segundo o critério das entidades ou pessoas a quem pertenciam ou de quem delas se pudesse livremente aproveitar
eram classificadas de públicas, comuns e particulares (artigo 379º).
As coisas comuns abrangiam as naturais ou artificiais, não individualmente apropriadas, das quais só fosse
permitido tirar proveito, respeitados que fossem os regulamentos administrativos, aos indivíduos compreendidos em certa
circunscrição administrativa ou que fizessem parte de certa corporação pública, nas quais se integravam os terrenos
baldios, municipais e paroquiais (artigo 381º, proémio, e § 1º).
Posteriormente, a lei administrativa definiu os baldios de harmonia com o conceito civilístico de coisas comuns,
nada estabelecendo, porém, quanto à sua propriedade, distinguindo- -os nas espécies de indispensáveis ao
logradouro comum, de dispensáveis e próprios para cultura, de impróprios para cultura e os arborizados ou destinados à
arborização, estabelecendo o respectivo regime (artigos 388º a 403º do Código Administrativo de 1936-1940).
Por via das Leis nºs 1949, de 15 de Fevereiro de 1937, e 1971, de 15 de Junho de 1938, extensa área de baldios
foi sujeita a regime florestal, retirando-se, assim, o seu uso e fruição aos respectivos vizinhos.
A lei civil que se seguiu abandonou a classificação de coisas públicas, comuns e particulares em função da sua
titularidade, limitando-se a expressar ser coisa tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas, serem coisas fora do
comércio todas as que não podem ser objecto de direitos privados, tais como as que se encontrem no domínio público e
aquelas que, pela sua natureza, sejam insusceptíveis de apropriação individual (artigo 202º do Código Civil de 1966).
No âmbito desse quadro legal, a doutrina considerava que os baldios eram uma forma de propriedade comunal
pertencente à colectividade indivisível dos moradores vizinhos a quem estava afecta a respectiva fruição.
Entretanto, surgiu o Decreto-Lei nº 39/76, de 19 de Janeiro, com o declarado escopo de entrega dos baldios às
comunidades que deles haviam sido desapossadas, que os define como os terrenos comunitariamente usados e fruídos
por moradores de determinada freguesia ou freguesias, ou parte delas, declarando-os fora do comércio jurídico e que não
podiam, no todo ou em parte, ser objecto de apropriação privada por qualquer forma ou título, incluída a usucapião (artigo
1º).
Na altura a doutrina considerava a recuperação do conceito de coisas comuns no que concerne aos baldios, ou
que se tratava de coisas particulares de afectação especial integradas no património das autarquias locais.
E a nova Constituição da República Portuguesa, na sua versão de 1976, entre os três subsectores, elencou o dos
bens comunitários com posse útil e gestão pelas comunidades locais (artigo 89º, nº 2, alínea c)).
Entretanto foi publicada a Lei nº 68/93, de 4 de Setembro, que caracterizou os baldios como terrenos possuídos e
geridos por comunidades locais, definindo estas como o universo dos compartes e estas como os moradores de uma ou
mais freguesias ou parte delas que, segundo os usos e costumes, têm direito ao seu uso e fruição (artigo 1º).
A sua finalidade foi, por seu turno caracterizada como logradouro comum, designadamente para efeitos de
apascentação de gados, de recolha de lenhas ou de matos, de culturas e outras fruições, nomeadamente de natureza
agrícola, silvícola, silvo-pastoril ou apícola (artigo 2º).
Ademais, foi estabelecida a nulidade dos actos e negócios jurídicos de apropriação ou apossamento que
tivessem por objecto terrenos baldios, tal como os relativos à sua posterior transmissão, salvo nos casos expressamente
previstos na lei (artigo 4º, nº 1).
São administrados por direito próprio pelos respectivos compartes, nos termos dos costumes e usos aplicáveis
ou, na falta deles, através de órgão ou órgãos democraticamente eleitos (artigo 11º, nº 1).

180
Mas os poderes de administração dos compartes podem por eles ser delegados na junta de freguesia em cuja
área o baldio se localize, em relação à totalidade ou parte da área do baldio, ou de uma ou mais do que uma das
respectivas modalidades de aproveitamento (artigo 22º, nº 1).
Assim, por um lado, os baldios são terrenos possuídos e geridos por comunidades locais, segundo os usos e
costumes, com direito ao seu uso e fruição, designadamente por via da apascentação de gados, da recolha de lenhas ou
de matos ou da implementação de culturas várias.
E, por outro, que se trata de coisas em regra fora do comércio jurídico, por isso inalienáveis, imprescritíveis e
insusceptíveis de qualquer apropriação privada, por qualquer forma ou título.

No referido Monte da Cerdeira brotavam naturalmente, há mais de cem anos, águas do subsolo, a administração
daquele Monte sempre foi exercida pela Junta de Freguesia, e o respectivo terreno é utilizado desde tempos imemoriais
pelos habitantes locais para nele apascentarem os seus gados e dele extraírem todas as demais utilidades susceptíveis de
fruição.
Assim, as águas objecto do litígio estavam integradas no terreno baldio da freguesia do Lindoso, área do
Município de Ponte da Barca, e independentemente do uso que lhe deram, incluindo a captação da água, os recorrentes
não se apropriaram daquele terreno ou de alguma das suas partes.

4.
Atentemos agora na sub-questão relativa à natureza jurídica das referidas águas nascidas em terreno baldio.
Conforme resulta do exposto, as águas em causa nascem num terreno juridicamente qualificado de baldio da
freguesia de Lindoso.
A Constituição expressa pertencerem ao domínio público as águas territoriais com os seus leitos e os fundos
marinhos contíguos, bem como as dos lagos, das lagoas e dos cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os
respectivos leitos (artigo 84º, nº 1, alínea a)).
Conforme resulta do disposto na alínea f) daquele normativo, ao expressar pertencerem ao domínio público
outros bens como tal classificados por lei, o elenco a que alude o nº 1 daquele artigo não é taxativo.
Acresce que a Constituição remete para a lei ordinária a definição de quais os bens que integram o domínio
público do Estado, das regiões autónomas, das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites
(artigo 84º, nº 2).
No domínio da vigência do Código Civil de 1867 e do Decreto nº 8, de 1 de Dezembro de 1892, consideravam-se
comuns as correntes de água não navegáveis nem flutuáveis que, atravessando terrenos municipais ou paroquiais ou
prédios particulares, iam lançar-se no mar em corrente navegável ou flutuável, os lagos ou lagoas sitos em terrenos
municipais ou paroquiais e os reservatórios, fontes ou poços construídos à custa dos concelhos ou paróquias (artigo 381º,
proémio, e § 2º).
O Decreto nº 5787, IIII, de 10 de Maio de 1919, designado por Lei das Águas, classificou as águas em públicas e
particulares, deixando de fazer qualquer referência às águas comuns, e incluiu no domínio público as águas nativas que
brotassem de terrenos públicos, municipais ou da freguesia e as águas subterrâneas que nos mesmos existissem (artigo
1º, nº 5º).
Por seu turno, declarou integradas no domínio particular as águas que nascessem em algum prédio particular
bem como as águas subterrâneas que em algum deles se encontrassem (artigo 2º, nºs 1º e 3º).
O referido diploma, por um lado, permitia a todos a perfuração de minas e a abertura de poços, ordinários ou
artesianos, em terrenos públicos, municipais ou da freguesia, para exploração de águas subterrâneas, precedendo licença
da autoridade ou corporação a quem a administração dos terrenos pertencesse (artigo 30º, proémio).
E, por outro, que as águas subterrâneas que tivessem sido exploradas mediante a referida licença entravam no
domínio particular, ficando o beneficio que delas resultasse perpetuamente incorporado nos prédios a que a exploração se
destinou (artigo 31º).
O Código Civil de 1966, por seu turno, manteve a classificação bifronte de águas públicas e particulares, as
primeiras sujeitas ao regime estabelecido em leis especiais, estabelecendo sobre as últimas (artigo 1385º).
Tal como ocorria por força do Decreto nº 5787 IIII, de 19 de Janeiro de 1919, inclui na espécie das águas
particulares, além do mais, as águas que nascerem em prédio particular e as águas subterrâneas neles existentes (artigo
1386º, nº 1, alíneas a) e b)).
No domínio da vigência do Decreto-Lei nº 39/76, de 19 de Janeiro, foi cometida à assembleia dos compartes dos
terrenos baldios, além do mais, resolver, sob proposta do conselho directivo, as questões ligadas à delimitação dos baldios,
à sua ocupação devido a aproveitamento hidráulico e à utilização de captação de água (artigo 6º, alínea k).
Por seu turno, a Lei nº 68/93, de 4 de Setembro, atribuiu à assembleia de compartes a aprovação do plano de
utilização dos recursos dos baldios e respectivas actualizações, sob proposta do conselho directivo (artigos 15º, alínea e) e
21º, alínea d)).
Eliminada a categoria de coisas comuns, em que se integravam os baldios e as próprias águas existentes no seu
subsolo ou que deste brotem, ficou-se com a classificação bifronte de águas públicas e particulares.

181
Conforme já se referiu, a lei não inclui na categoria das águas particulares as águas existentes no subsolo dos
terrenos baldios ou que dele brotem, pelo que, tal como resultava do artigo 1º, nº 5º, do Decreto nº 5787 III, de 10 de Maio,
a conclusão é no sentido de que as referidas águas se integram no domínio público hídrico.
Actualmente, o regime de utilização do domínio hídrico, que compreende o público e o privado, sob a jurisdição
do Instituto da Água, consta do Decreto-Lei nº 46/94, de 22 de Fevereiro, que revogou, além do mais, o Decreto nº 8, de 1
de Dezembro de 1892, e o Decreto nº 5787 IIII, de 10 de Maio de 1919, com excepção do seu artigo 1º (artigo 91º, nº 1,
alíneas a) e c)).
Tendo em conta o referido regime jurídico que se sucedeu ao longo do tempo, as águas em causa são coisas fora
do comércio jurídico e, consequentemente, insusceptíveis de aquisição por apropriação por particulares (artigos 1º, nº 5º,
do Decreto nº 5787 IIII, de 10 de Maio de 1919, 372º e 479º do Código Civil de 1867, 202º, nº 2, do Código Civil de 1966 e
1º a 4º do Decreto-Lei nº 46/94. de 22 de Fevereiro).

(De acordo com o art. 7.º, b) e 8.º, n.º 2, da Lei do domínio hídrico – Lei n.º 54/2005, de 15 de Novembro - as
águas nascidas em baldios pertencem ao município e à freguesia conforme os terrenos públicos mencionados nas citadas
alíneas pertençam ao concelho e à freguesia ou sejam baldios municipais ou paroquiais…)

5.
Vejamos agora se os recorrentes adquiriram ou não o direito de propriedade sobre as referidas águas.
Os recorrentes invocaram aquisição do direito de propriedade sobre as questionadas águas, a título principal por
usucapião e, a título subsidiário, para o caso de serem públicas, por pré-ocupação.
Certo é que as águas públicas, enquanto o fossem, porque fora do comércio jurídico, não podiam ser objecto de
prescrição aquisitiva ou usucapião, isto antes do início da vigência do Código Civil de 1867, tal como depois dele,
designadamente durante o domínio da vigência do Decreto nº 5797 IIII, de 10 de Maio de 1919, tal como actualmente à luz
do Decreto-Lei nº 46/94, de 22 de Fevereiro.
Daí que a posse da água por via dos respectivos actos de exploração e aproveitamento só era susceptível de
relevar para efeito de aquisição originária por prescrição aquisitiva ou usucapião depois de ocorrer a situação de
privatização.
Os modos de privatização das águas do domínio público hídrico a que a lei se reporta são a pré-ocupação ou
doação régia e a concessão anteriores a 21 de Março de 1868, a concessão perpétua para regas ou melhoramentos
agrícolas e o licenciamento para esse fim da exploração das subterrâneas existentes em terrenos públicos, municipais ou
vicinais (artigo 1386º, nº 1, alíneas d), e) e f), do Código Civil de 1966).
A factualidade provada não revela que as águas em causa tenham sido objecto de privatização por via doação
régia ou de concessão anteriores a 21 de Março de 1868, nem que tenha ocorrido a concessão perpétua para regas ou
melhoramentos agrícolas ou o licenciamento para esse fim da exploração das subterrâneas existentes em terrenos
públicos, municipais ou da freguesia.
Mas importa verificar, tendo em conta o objecto do recurso, se as referidas águas foram ou não objecto de
privatização por via do instituto da pré-ocupação.
O Alvará de 27 de Novembro de 1804 reconheceu a pré-ocupação, baseada na construção das obras de
aproveitamento da água pública de carácter permanente, como as represas, os aquedutos, as levadas e os canais
destinados a proporcionar aos proprietários, marginais ou não, o seu aproveitamento
Tratava-se de mera ocupação de facto de águas públicas por via das referidas construções que implicava a
aquisição do respectivo direito de propriedade.
O Código Civil de 1867 salvaguardou os direitos sobre determinadas águas públicas adquiridas por particulares
até 21 de Março de 1868, por lei, uso e costume, concessão expressa, sentença ou prescrição, esta no caso de recair
sobre oposição não seguida ou construção de obras no prédio superior de que pudesse inferir-se abandono do primitivo
direito (artigo 438º).
Por seu turno, também o Decreto nº 5787 IIII, de 10 de Maio, operou similar salvaguarda, certo que estabeleceu
que as águas públicas que ao tempo da sua publicação estivessem legalmente concedidas ou sobre as quais alguma
pessoa tivesse adquirido direitos fundados em justo título, de harmonia com a legislação em vigor, continuariam a ser
aproveitadas nas mesmas condições, salvo o caso de expropriação por utilidade pública e demais restrições estabelecidas
no mesmo diploma e de devolução da água para o domínio público por motivo de caducidade (artigos 33º e 34º).
Finalmente, seguiu a mesma via o Código Civil de 1966, no artigo 1386º, nº 1, alíneas d), e) e f), do Código Civil
de 1966, nos termos acima referidos.
A expressão pré-ocupação tem a ver com a ideia de alguém primeiramente ter designado o lugar para a obra, que
lá colocou os materiais ou a iniciou, e constituiu título aquisitivo de águas públicas anterior a 21 de Março de 1868, data da
entrada em vigor do Código Civil de 1867, desde que até aquela data existam as referidas obras permanentes de captação
e derivação de águas.
Assim, o referido título de apropriação de águas originariamente públicas supõe, além do mais, a prova de que,
anteriormente a 21 de Março de 1868, existissem as mencionadas obras de captação e derivação.

182
Está assente, por um lado, que as águas em causa se encaminhavam para poças de regadio, com mais de 100
anos, construídas pelos antepassados dos autores, existentes em que eram armazenadas.
E, por outro, que depois de armazenadas, eram encaminhadas através de aquedutos a céu aberto, também
construídos pelos antepassados dos autores, que se estendiam por cerca de dois quilómetros, para uma outra poça, onde
era armazenada.
A expressão com mais de cem anos, reportada às obras de captação, condução e derivação de águas e à data
da propositura da acção, no dia 19 de Janeiro de 2001, ao invés do que os recorrentes alegaram, não permite a conclusão
no sentido da abrangência do tempo de 132 anos, 9 meses e vinte e seis dias, que era necessário para se atingir a data de
21 de Março de 1868.
Em consequência, a conclusão é no sentido de que os factos provados não revelam que os recorrentes tenham
adquirido, por pré-ocupação, o referido direito de propriedade sobre as mencionadas águas públicas até ao dia 21 de
Março de 1868.

Em razão disso, embora a posse dos recorrentes e dos seus antecessores tivesse durado o referido período de
tempo, excluída estava, por lei, certo que as mencionadas águas estarem fora do comércio, ela era insusceptível de gerar
para eles a aquisição do direito de propriedade sobre elas por prescrição aquisitiva ou usucapião.
Por isso não pode proceder o pedido formulado pelos recorrentes de declaração de serem titulares do direito de
propriedade sobre as águas que brotam dos terrenos baldios do Monte da Cerdeira, Castelo, freguesia do Lindoso.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Campos de Carvalho), de 29.5.1973, no Pr.º 064504:

I - Têm direito as águas de uma corrente não navegável nem flutuável, adquirido por preocupação e ressalvado
pelos artigos 438 do Código Civil de 1867, 33 do Decreto n.º 5787-IIII, e 1386, n. 1, alínea d), do Código Civil actual, os
proprietários de certos prédios rústicos, uns marginais e outros não, quando se mostre que aqueles, por si e pelos seus
antecessores, ininterruptamente há mais de 150 anos, à vista e com conhecimento de toda a gente e mediante regime
estável da sua distribuição entre eles estabelecido, vêm aproveitando a água da referida corrente para rega e lima desses
seus prédios, por meio de obras visíveis e aparentes, designadamente uma presa, feitas no leito da corrente pelos seus
antepassados e por estes e seus sucessores permanentemente mantidas e reparadas para aquele efeito, à vista de toda a
gente e sem oposição de quem nisso mostrasse interesse.
II - Uma vez adquirido por preocupação o direito às águas, estas tornaram-se particulares e como tal passaram a
poder ser objecto de negócio jurídico ou de usucapião nos termos gerais.
III - Existindo um rego térreo que, através de vários prédios, conduz a água retida na presa anteriormente referida
para os prédios não marginais da corrente, e que, ininterruptamente e há mais de 150 anos, é utilizado pelos proprietários
destes prédios e seus antecessores, à vista e com conhecimento de toda a gente, sem oposição de quem nisso mostrasse
interesse, e sempre com a convicção de existir um direito justificativo da condução da água para esses prédios, constituiu-
se por usucapião uma servidão de aqueduto a favor dos mesmos prédios (artigos 2272 e 2273 do Código Civil de 1867 e
artigos 1547 e 1548 do Código vigente).

B) - Águas particulares

O seu regime vem fixado nos art. 1386º a 1402º; deixa-se para o estudo das servidões a
análise das servidões de águas.

É clássico nesta matéria o excelente Manual, em dois volumes, de Tavarela Lobo. Mais sintético, interessa ler As
Águas no Código Civil, de J. Cândido de Pinho.

1386º
Na al. a) deve notar-se que são particulares as águas nascidas em prédio particular, ainda que
alimentadas por águas públicas - Col. 79-1111. O abandono aqui referido refere-se à água e não à
nascente e exige que a água forme, à saída do prédio onde nasce ou para onde foi conduzida pelo seu
proprietário, uma corrente que se dirija directa ou indirectamente para o mar. Se consumidas antes, as
águas continuam particulares.

A al. b) deve relacionar-se com o disposto nos art. 1348º e 1394º que conferem aos
proprietários de prédios particulares o direito de captação de águas subterrâneas nos seus prédios.

183
Na al. c) notar-se-á que para que possa considerar-se alimentado por uma corrente pública, é
necessário que o lago ou lagoa tenha saída para o mar, directamente ou através de uma corrente do
domínio público, pois só nestas condições pode considerar-se como pública a corrente que o alimenta
– P. Lima e A. Varela, III, 293.
Também o facto de um prédio ser dividido e o lago ficar circundado por vários prédios
resultantes dessa divisão não retira a natureza de particular ao lago ou lagoa para o tornar público, nos
termos do art. 1º, nº 4 da Lei das Águas.

Nas al. d), e) e f)) têm interesse os conceitos de preocupação, de concessão e de licença
acima vistos.
A preocupação referia-se a determinado caudal e só esse caudal entrou no domínio privado -
art. 1386º, nº 2. Se o preocupante utilizar caudal superior, nessa parte está a usar águas públicas e,
como tal, deve sujeitar-se ao respectivo regime e sanções.

1389º e 1390º
Sendo estas águas - de fontes ou nascentes - particulares, objecto do direito de propriedade, o
dono pode servir-se delas e dispor do seu uso livremente, salvas as restrições previstas na lei e os
direito que terceiro haja adquirido ao uso da água por título justo - 1389º.
É o art. 1390º que nos dá o conceito de justo título de aquisição da água de fontes e
nascentes: qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade (art. 1316º) de imóveis ou de constituir
servidões (1547º).

Para completa informação dos títulos anteriores ao Código vigente (concessão expressa,
sentença, prescrição - hoje usucapião - por 30 anos e até 21.3.1968) deve consultar-se P. Lima – A.
Varela, III, 302.

O direito à água que nasce em prédio alheio, conforme o título da sua constituição, pode ser
um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, e pode ser apenas o direito de a aproveitar
noutro prédio, com as limitações inerentes, por conseguinte, às necessidades deste. No primeiro caso,
a figura constituída é a da propriedade da água; no segundo, é a da servidão.
A constituição dum direito de propriedade depende da existência de um título capaz de a
adquirir - 1316º: contrato, sucessão por morte, usucapião, acessão; a constituição de uma servidão, da
existência de um dos meios referidos no artigo 1547º: contrato, testamento, usucapião, destinação do
pai de família, sentença e decisão administrativa.
E foi ainda em harmonia com esta doutrina que os artigos 1557º e 1558º (aproveitamento para
gastos domésticos e para fins agrícolas) enquadraram na categoria das servidões dois direitos que têm
exactamente por conteúdo o aproveitamento de água alheia. - P. Lima - A. Varela, III, 305.

No caso de propriedade da água há um direito pleno e, em princípio, ilimitado sobre a coisa


que envolve a possibilidade do mais amplo aproveitamento, ao serviço de qualquer fim, de todas as
utilidades que a água possa prestar; o direito de servidão confere ao seu titular apenas a possibilidade
de efectuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das
necessidades do prédio dominante - RLJ 115-220, citado no Ac. da R.ão do Porto, de 29.11.01, na Col.
01-V-201 e 203.
Águas
Direito de propriedade
Direito de servidão
Aquisição

184
Ac. STJ de 03-03-2005 (Cons.º Azevedo Ramos):

I - Enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária, por lei ou negócio jurídico, as águas são
partes componentes dos respectivos prédios.
II - Quando desintegradas, adquirem autonomia e são consideradas, de per si, imóveis.
III - Considera-se justo título de aquisição das águas das fontes e nascentes, conforme os casos (aquisição em
propriedade ou em servidão), qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões.
IV - O direito à água que nasce em prédio alheio, conforme o título da sua constituição, pode ser um direito ao
pleno uso da água, sem qualquer limitação, e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações
inerentes, por conseguinte, às necessidades deste.
V - No primeiro caso, a figura constituída é a do direito de propriedade da água; no segundo é a da servidão.
VI - A constituição de um direito de propriedade da água depende da existência de um título capaz de a transferir.
VII - A constituição de uma servidão resulta da existência de um dos meios referidos no art.º 1547 do CC.
VIII - A constituição de um direito de servidão sobre a água, por destinação do pai de família, nos termos do art.º
1549 do CC, verifica-se no momento em que os prédios pertencentes ao mesmo dono se separam quanto ao seu domínio,
ficando a pertencer a proprietários diferentes.
IX - A ressalva da declaração oposta à constituição da servidão, no momento em que os prédios ou fracções do
prédio se separam quanto ao seu domínio, deve constar de documento, não bastando para o efeito uma simples
declaração oral.

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 2-3-00, "A" e mulher B instauraram a presente acção ordinária contra a ré C, com base nos factos alegados
na petição inicial, onde pedem:
a) - seja declarado e reconhecido o direito de propriedade dos autores sobre os quatro prédios mencionados no
art. 1º da petição, que adquiriram pela escritura de compra e venda de 5-8-92;
b) - seja declarada e reconhecida a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade dos autores sobre a água
da mina a que se referem os arts 11º a 14º da mesma peça e a respectiva servidão de aqueduto, a favor dos ditos prédios
dos autores e onerando o prédio da ré (Lote nº 93), aludido no art.12;
c) - seja a ré condenada a reconhecer os direitos indicados nas alíneas anteriores;
d) - seja a ré condenada a repor a mina e respectivos óculos de ar e luz na situação anterior, de forma à água
correr livremente com o mesmo caudal;
e) - seja a ré condenada a abster-se da prática de quaisquer actos que atentem contra os referidos direitos dos
autores.

A ré contestou, concluindo pela absolvição do pedido e requerendo a intervenção principal da Câmara Municipal
de Fafe, como sua associada, intervenção que foi admitida.
A Câmara Municipal de Fafe aderiu à contestação apresentada pela ré.

Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença que julgou a acção procedente e condenou
as rés na totalidade do pedido.

Apelou a ré C e a Relação de Guimarães, através do seu acórdão 29-9-04, julgou procedente a apelação e
revogou a sentença recorrida para, em sua substituição, declarar e reconhecer o direito de propriedade dos autores sobre
os prédios mencionados no art. 1º da petição, mas absolvendo as rés dos restantes pedidos.

Agora, foram os autores que recorreram de revista, onde concluem:



2.
O direito de propriedade sobre a água da mina:

A propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo
o que neles se contém e não seja desintegrado do domínio, por lei ou negócio jurídico - art. 1344, nº1, do Cód. Civil.

Assim, "enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária, por lei ou negócio jurídico, as águas são
partes componentes dos respectivos prédios, tal como a terra, as pedras, etc. Quando desintegradas, adquirem autonomia
e são consideradas, de per si, imóveis " (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 196).
Se, por exemplo, um proprietário vender um veio de água existente num seu prédio desintegra da propriedade
superficiária esses elementos, por um negócio jurídico, obra da sua vontade.

185
Consequentemente, as águas são coisas imóveis, quando desintegradas da propriedade superficiária - art. 204,
nº1, al. b) do C.C.

Podem ser públicas ou particulares - arts. 1385.


Entre outras, são particulares as águas subterrâneas existentes em prédios particulares - art. 1386, nº 1, al. b), do
C.C.
Considera-se justo título de aquisição das águas das fontes e nascentes, conforme os casos, qualquer meio
legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões - art. 1390, n. 1, do C.C.

A usucapião, porém, só é atendida quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no
prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio - art. 1390, n. 2.

O direito à água que nasce em prédio alheio, conforme o título da sua constituição, "pode ser um direito ao uso
pleno da água, sem qualquer limitação, e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações
inerentes, por conseguinte, às necessidades deste. No primeiro caso, a figura constituída é a da propriedade da água, no
segundo, é a da servidão " (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., pág. 305; Antunes
Varela, R.L.J. Ano 115 - pág. 219/220, em Anotação ao Acórdão do S.T.J. de 15-1-81).

Consequentemente, sobre uma água existente ou nascida em prédio alheio podem constituir-se dois tipos
distintos de situações:
- o direito de propriedade, sempre que, desintegrada a água da propriedade superficiária, o seu titular pode usá-
la, frui-la e dispor dela livremente;
- o direito de servidão, quando, continuando a água a pertencer ao dono do solo ou de um outro prédio, se
concede a terceiro a possibilidade de aproveitá-la, em função das necessidades de um prédio diferente.

A constituição de um direito de propriedade depende da existência de um título capaz de a transferir.


A constituição de uma servidão resulta da existência de um dos meios referidos no art. 1547 do C.C.: contrato,
testamento, usucapião, destinação do pai de família, sentença e decisão administrativa (Pires de Lima e Antunes Varela,
Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed. pág. 305, Ac. S.T.J. de 18-3-82, Bol. 315-263).

Foi esta a doutrina que acabou por ser legislativamente consagrada no actual Código Civil, ao prever-se
expressamente a possibilidade de constituição de qualquer dos dois direitos, na parte final do nº 1 do citado art. 1390.
A possibilidade da constituição de um direito de servidão, por destinação do pai de família, sobre água que nasce
em prédio alheio, está de acordo com os princípios.

Salvo declaração em contrário, deve entender-se que um prédio é sempre transmitido com todas as suas
pertenças, acessórios e partes integrantes, por ser a situação que melhor corresponde à intenção normal das partes
contratantes.
Ora, a água com a qual se irrigava um prédio ou uma sua parcela é, em relação a ele, um acessório, que, em
princípio, deve acompanhar o principal.

A constituição de uma servidão por destinação do pai de família obedece aos requisitos do art. 1549 do C. C., que
dispõe o seguinte:

" Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis ou
permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para o outro, serão esses sinais havidos como
prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas fracções do mesmo prédio, vieram a
separar-se salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento ".

Trata-se de uma servidão voluntária, que se constitui no preciso momento em que os prédios ou as fracções de
determinado prédio passam a pertencer a proprietários diferentes.
Todavia, qualificar a servidão como voluntária, não significa dizer que ela resulta de uma declaração negocial.
A servidão assenta num facto voluntário (a colocação do sinal ou sinais aparentes e permanentes), mas a
relevância ou os efeitos deste facto são determinados por lei.

Pois bem.

Na petição inicial, os autores pedem o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre a água utilizada na
irrigação dos seus quatro prédios, que adquiriram pela escritura de 5-8-92.

186
Mas tal pedido não pode proceder.

Com efeito, esses quatro prédios vendidos aos autores, pela escritura de 5-8-92, e o outro prédio que foi vendido
à Câmara Municipal de Fafe, pela escritura de 23-12-92, eram pertença do mesmo dono, a Santa Casa da Misericórdia de
Fafe.
Na data da outorga da escritura de 5-8-92, os quatro prédios adquiridos pelos autores eram irrigados, conforme
as suas necessidades, com a água de uma nascente situada naquele outro prédio que continuou pertença da Santa Casa
da Misericórdia e que era conduzida para os primeiros através de uma mina, com 150 metros de comprimento.
Como a água provém de prédio alheio, os autores teriam de provar que adquiriram o direito de propriedade sobre
ela, por qualquer título legítimo, pois as águas, enquanto não forem desintegradas da propriedade superficiária, por lei ou
por negócio jurídico, são partes componentes do respectivo prédio onde nascem.
Ora, o direito de propriedade sobre a referida água não foi transmitido para os autores por via do mencionado
contrato de compra e venda de 5-8-92, nem através da usucapião ou de qualquer outro negócio jurídico.
Na escritura de compra e venda de 5-8-92 não se faz qualquer menção à aquisição do direito de propriedade
sobre a ajuizada água.

Também não estão reunidos os pressupostos da invocada usucapião, já que, continuando a água a ser pertença
do prédio onde nasce, para poder ser adquirido, por usucapião, o direito de propriedade sobre a mesma água, por parte
dos autores (coisa diferente é a possibilidade de constituição de um direito de servidão sobre água alheia, por destinação
do pai de família), só poderá atender-se à actuação destes que seja posterior à outorga da escritura de 5-8-92.

E, desde então e até à data da instauração desta acção, nem sequer tinham decorrido oito anos, tempo
insuficiente para que a usucapião, para efeito da aquisição do direito de propriedade sobre a água, pelos autores, se
pudesse consumar - arts 1296 e 1390, n. 2, do C.C.
Não existe, pois, qualquer título capaz de transferir a propriedade da água para os autores.

Apercebendo-se da improcedência do pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre a referida água,


os autores vieram agora, na revista, pedir o reconhecimento de um direito de servidão sobre a mesma água, limitada às
necessidades de irrigação dos seus prédios, por destinação do pai de família, com fundamento nos arts 1390, nºs 1 e 2 e
1549 do Cód. Civil.

A constituição dessa servidão depende da verificação de todos os pressupostos previstos no citado art. 1549.
A servidão constitui-se no preciso momento em que os prédios passam a pertencer a proprietários diferentes, por
qualquer título negocial.

A ressalva da declaração oposta à constituição da servidão, no momento em que os prédios ou as fracções do


prédio se separem quanto ao seu domínio, deve constar de documento, não bastando para o efeito uma simples
declaração oral (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., pág. 635).

Todavia, os autores já não podem vir pedir, nesta acção, o reconhecimento da constituição daquela servidão de
água, por destinação do pai de família, reportada ao momento da aquisição dos seus prédios, através da escritura de 5-8-
92, porque isso seria alterar o pedido e a causa de pedir iniciais, alteração que o art. 273 do C.P.C. não consente nesta
fase processual, por ser apenas permitida na réplica.

Por outro lado, este Supremo Tribunal também não pode condenar em objecto diverso do pedido - art. 661, nº1,
do C.P.C.
É que o direito de propriedade sobre a água e o direito de servidão constituem dois tipos distintos de situações.
Como escreve Antunes Varela (R.L.J. Ano 115-220), "existe entre os dois direitos reais uma profunda diferença,
tanto no seu conteúdo, como na sua extensão ou dimensão: no primeiro caso há um direito pleno e, em princípio ilimitado
sobre a coisa, que envolve a possibilidade do mais amplo aproveitamento, ao serviço de qualquer fim, de todas as
utilidades que a água possa prestar; o segundo confere ao seu titular apenas a possibilidade de efectuar o tipo de
aproveitamento de água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante ".
A invocação do direito de propriedade sobre a água que nasce em prédio alheio tem como pressuposto a sua
desintegração da respectiva propriedade superficiária.
No direito de servidão, a água continua a pertencer ao dono do prédio alheio onde nasce.
Por isso, só restará aos autores defender o direito de servidão à água que nasce em prédio alheio, em nova
acção, com fundamento na invocação do pertinente pedido e causa de pedir.

Termos em que negam a revista.

187
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 3 de Março de 2005


Azevedo Ramos, Silva Salazar, Ponce Leão.

Ac. da Relação de Guimarães, de 24.6.2004, relatado pelo Ex.mo Desembargador Vieira e Cunha, na Col. Jur.
2004-V-298/299:
«I. Nos termos do art. 1389° C.Civ., "o dono do prédio onde haja alguma fonte ou nascente de água pode servir-
se dela e dispor do seu uso livremente, salvas as restrições previstas na lei e os direitos que terceiro haja adquirido ao uso
da água por título justo".
Pelo art. 1390°, n° 1, C. Civ., considera-se título justo de aquisição da água das fontes e nascentes, conforme os
casos, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões; e pois que todas as
águas são de considerar coisas imóveis (art. 204°, n° 1, al. b), C. Civ.), há que concluir que os títulos de aquisição das
águas são os meios legítimos de aquisição da propriedade sobre imóveis - art. 1316° e ss., C. Civ. - contrato, usucapião,
ocupação, acessão e outros.
Por sua vez, se se encontra em causa a constituição de um direito de servidão, então a constituição de tal direito
depende da existência de um dos meios referidos no art. 1547°, C. Civ. -contrato, testamento, usucapião, destinação do pai
de família, sentença e decisão administrativa.
Ora, o que os RR. invocam na Contestação, e voltam a invocar no presente recurso, é que, há mais de 18 anos
que usavam e fruíam as águas desde 4ª feira ao pôr do sol, até 5ª feira, ao pôr do sol (em consonância com o que seria
permitido pelo título registado e especificado nos Factos Provados sob 8°).
Na realidade, a resposta aos quesitos 2° e 3°, no sentido de os RR. usarem as águas indiscriminadamente para
consumo doméstico e irrigação de culturas reporta-se à utilização efectuada após a nova obra de captação de água e
derivação, referida na al. O) da Especificação.
A concepção referida pelos próprios RR., na utilização pregressa da água, desde 24/08/81, aponta assim para a
alegação de um direito de servidão sobre a água nascente no prédio dos AA., já que os RR. apenas se arrogaram o direito
ao aproveitamento das águas, em período temporal restrito e em função das necessidades do respectivo prédio - como
escreveu Pires de Lima, B.M.J. 64°/10, cit. por Varela, Revista Decana,115°-219, "se se adquire o poder de dispor
livremente da água que nasce em prédio alheio, ou o direito de a captar subterraneamente, constitui-se um direito de
propriedade ou de compropriedade; se qualquer desses direitos está limitado às necessidades ou a certas necessidades de
um outro prédio (dominante), a figura será a da servidão".
Da mesma forma Varela, loc. cit., pg. 220, "o direito de servidão confere ao seu titular apenas a possibilidade de
efectuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio
dominante".
Acontece que a constituição do direito de servidão sobre bens imóveis só é válido se celebrado por escritura
pública - art. 89°, al. a), C. Not. 67 (hoje art. 80°, n° 1, C. Not. 95).
E, na escritura que titulou a venda por parte dos AA., aos RR. compradores, do prédio rústico de que esses RR.
são donos nenhuma menção se efectuou à venda ou à constituição de qualquer outro direito sobre as águas subterrâneas
ou nascentes do prédio dos AA.
Existe, porém, uma promessa de compra e venda, prévia à outorgada escritura, na qual os AA. prometeram
vender aos RR. "todos os direitos sobre a água existente numa mina situada no prédio dos promitentes vendedores,
juntamente com os terrenos vendidos para a promitente-compradora, não reservando os promitentes vendedores para si
quaisquer direitos sobre a mesma água".
A simples promessa, todavia, não é instrumento apto a que dele se retire a transferência do domínio ou a
constituição de qualquer direito sobre as águas, sem prejuízo de a declaração constante da promessa poder ser conjugada
com actos de posse subsequentes praticados pelos RR. e conducentes à usucapião.
II. Quanto à usucapião, e como modo legítimo de aquisição do direito às águas, o art. 1390°, n° 2, C. Civ.
estabelece as seguintes exigências para a aquisição por terceiro do direito à água de fontes ou nascentes existentes em
terreno alheio:
a) - têm de verificar-se todos os requisitos da usucapião (arts. 1293° e ss., C. Civ.);
b) - esses requisitos devem ser acompanhados da construção de obras visíveis e permanentes no prédio onde
exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio.
O "corpus' possessório (elemento material da posse) vê-se assim acrescentado do elemento a que se refere a al.
b), que não seria forçosamente necessário, à luz dos princípios gerais (M. H. Mesquita, "Reais", 1967, págs. 203 e 204),
mas que se compreende como um reforço do princípio geral da necessidade de aparência de sinais de constituição da
servidão, para que tal servidão possa ser constituída por usucapião - art. 1548°, n° 1, C. Civ.

188
A sentença em crise entendeu que os RR. apenas lograram provar que utilizavam a água, ainda que desde a
celebração da escritura pública de aquisição do seu terreno, mas pela conduta de uma terceira pessoa (resposta aos qq. 9°
a 16° - facto 24°), por mera tolerância desta.
Ainda que se deva afirmar que a conclusão respeitante à "mera tolerância" não consta dos factos apurados,
designadamente das citadas respostas aos qq. 9° a 16°, nem é matéria que se possa intuir a partir de qualquer desses ou
dos demais factos provados, há que referenciar que este acrescento, respeitante à "mera tolerância", remete o intérprete,
não para as relações entre o dono do prédio onde nascem as águas (os AA.) e aqueles que se arrogam o domínio sobre as
mesmas (os RR.), mas antes para as relações entre os RR. e a terceira pessoa, dona da conduta.
Nas relações entre o proprietário das águas e aquele que delas se aproveita, apenas relevaria a existência de
obras visíveis e permanentes de captação, independentemente da autoria ou da propriedade das mesmas (ut Guilherme
Moreira, "As Águas no Direito Civil", I -131 e J. C. Pinho, "As Águas no Código Civil", nota 55; Ac. R.P.23/09/97, Col. IV -
192, Ac. R.C. 21/01/97, Col. 97-I-30 e Ac. R.P.12/12/91, Col. 91-V-201, bem como demais jurisprudência e autores citados
nos arestos).
O que se encontra em causa é, nos termos da Resolução Régia de 1775, cit. In Ac. R.P.12/12/91, como apoio
interpretativo e por apelo ao elemento histórico, a existência de "um açude ou canal com manufactura constante e
permanente que faça presumir o referido título".
Na realidade, uma relação possessória, maxime sobre águas subterrâneas, pode ter vários contitulares.
Assim, tenham sido as obras de captação de água executadas e pertençam a um só dos beneficiários titulares
dos prédios dominantes (que podem ser vários) ou ao proprietário das águas, tal não afasta que a previsão do art.1390°, n°
2, C. Civ. se verifique no caso concreto - o que implicará tão somente a existência de obras visíveis e permanentes que
revelem captação e posse de água, independentemente de quem as tenha executado.
III. A posse conducente à usucapião deve ser pública e pacífica (art. 1297°, C. Civ.): os demais caracteres,
titulada ou não titulada, de boa ou de má fé, apenas influem no prazo necessário à usucapião (ut M. H. Mesquita, op. cit,
pg.112).
Ora, tais caracteres de publicidade e pacificidade não resultaram demonstrados na totalidade - na verdade, os
quesitos 13° (publicidade) e 14° ("sem a oposição de ninguém", a matéria que mais se aproximava, na própria alegação
dos RR., à pacificidade definida no art. 1261 °, n° 1, C. Civ.), ainda que respondidos em conjunto com outros quesitos,
receberam resposta negativa.
Trata-se de caracteres da posse que se vem entendendo integrarem o ónus de alegação e prova daquele que
pretende fazer-se valer do instituto - cf. S.T.J. 03/02/99 Bol. 484/384 ou Ac. R.C. 02/05/89 Bol. 387/671.
Assim sendo, não podem os RR. fazer valer o instituto da usucapião para aquisição da servidão rectius o prazo
necessário de continuação da posse a que alude o art. 1296°, C. Civ.
Saliente-se também que o elemento táctico alegado mais próximo de conduzir à prova da posse de boa fé, e que
foi traduzido na redacção do quesito 16° ("Na convicção de que utilizavam as referidas águas como um direito próprio")
resultou, de igual modo, não provado.
Ora, só essa prova seria capaz de ilidir a presunção de má fé na posse não titulada (art.1260°, n° 2, C. Civ.). E
que a posse é "não titulada", face apenas ao invocado contrato promessa em que se basearia a tradição, é incontornável -
cf. P. de Lima e Varela, "Anotado", I I I - art. 1259° - nota 2.
Assim, a invocada posse dos RR. também só poderia conduzir ao efeito da usucapião transcorrido que se
mostrasse o prazo de 20 anos - art. 1296° C. Civ. - sendo certo que a acção reivindicatória foi proposta transcorridos pouco
mais de 18 anos sobre o invocado início da posse, ou seja, sem que pudessem os Réus invocar o decurso do prazo apto à
constituição do direito que justificasse a recusa da entrega da coisa reivindicada.
IV. O facto de o prédio dos RR. se encontrar situado em nível inferior ao prédio dos AA. não dá nem tira direitos
àqueles RR. - não se cura, nos autos, do aproveitamento de quaisquer águas vertentes (art. 1391 °, C.Civ.).
Também não é caso de aplicação do disposto no art. 1399°, C. Civ., que dispõe supletivamente para a hipótese
de divisão de águas comuns; na verdade, pese embora o prédio dos RR. ter sido desanexado do prédio dos AA., é na parte
sobrante deste prédio dos AA. que as águas nascem, pelo que aos AA., donos da parte sobrante, é inteiramente aplicável o
disposto no já citado art. 1389°, C. Civ.

Para resumir a fundamentação:


I - Para a distinção entre servidão e propriedade das águas, a primeira confere ao seu titular apenas a
possibilidade de efectuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das
necessidades do prédio dominante, enquanto que, ao contrário, a segunda implica o poder de dispor livremente da água
que nasce em prédio alheio.
II -Tenham sido as obras de captação de água executadas e pertençam a um só dos beneficiários titulares dos
prédios dominantes (que podem ser vários) ou ao proprietário das águas, tal não afasta que a previsão do art.1390°, n° 2,
C. Civ. se verifique no caso concreto.
III - A posse conducente à usucapião deve ser pública e pacífica (art. 1297°, C.Civ.): tais caracteres da posse
integram o ónus de alegação e prova daquele que pretende fazer-se valer do instituto da usucapião».

189
Podem as águas ser objecto de negócio jurídico que as desintegre do prédio onde se
encontram e, v.g., vendidas a terceiro, passando a constituir objecto de direito autónomo.

I - As águas de fontes e nascentes podem ser desintegradas do prédio onde se encontram através de negócio
jurídico que atribua a respectiva propriedade a terceiros, mas tal negócio tem de observar as exigências de forma impostas
para os bens imóveis, nomeadamente a escritura pública, em caso de venda ou doação.
II - A menção pela lei - art. 1392º, nº 1 do CC - de restrições ao uso da água implica que o dono do solo continue
a ser o dono da nascente ou fonte bem como da respectiva água, apenas estando privado de lhe dar outro destino quando
há mais de cinco anos ela venha a ser utilizada naqueles termos - Col. 00-I-192.

Vimos já que os proprietários dos prédios inferiores estão sujeitos a receber as águas que,
naturalmente e sem obra do homem, decorrem dos prédios superiores, assim como a terra e entulhos
que elas arrastam na sua corrente - 1351º, 1.

O mais frequentemente invocado título de constituição tanto do direito de propriedade como do


de servidão de águas é a usucapião. Prevenindo situações de posse equívoca, a lei é aqui
particularmente exigente quanto ao corpus possessório.
Nos termos do nº 2 do art. 1390º a usucapião só é atendida quando for acompanhada da
construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem
a captação e a posse da água nesse prédio.

Para que possa ocorrer, em matéria de águas, usucapião e consequente aquisição por terceiro
do direito à água ou constituição de servidão de água, é necessário, nos termos do nº 2 do art. 1390º,
que:
a) - Se verifiquem todos os requisitos da usucapião - 1293º e ss;
b) - Esses requisitos devem ser acompanhados da construção de obras, visíveis e
permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a
posse da água nesse prédio.

Como a lei concede aos proprietários dos prédios inferiores o direito de aproveitar as águas
vindas dos prédios superiores - 1391º - exige-se, para evitar equívocos e consequentes conflitos, que
os actos daqueles sejam mais que simples actos de limpeza, destinados a melhor aproveitar a água,
antes devem constituir obras visíveis e permanentes que revelem a captação da água no prédio onde
existe a fonte ou nascente.

Sobre esta matéria convém ler o Ac. da Relação de Coimbra, de 21 de Janeiro de 1997, na Col. Jur. 97-I-30:

ÁGUAS
Provenientes de prédio superior
Aquisição por usucapião
Compropriedade de águas
Divisão de águas

SUMÁRIO:
I - Só pode adquirir-se por usucapião o direito de propriedade sobre as águas de prédio superior, quando houver
obras feitas neste, aparentes e permanentes.

II - Havendo compropriedade das águas, há que distinguir três hipóteses quanto à divisão:
a) - em conformidade com o título que especifique o direito de cada contitular;
b) - na falta ou insuficiência do título, segundo o regime estável e normal de distribuição, observado pelos
interessados há mais de 20 anos;

190
c) - na falta de titulo e costume juridicamente relevante de repartição, atendendo-se à superfície, necessidade e
natureza da cultura dos terrenos a regar.

Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Álvaro Almeida e mulher; Custódia Oliveira, substituída por habilitação por Maria Jordalina e marido, estes
também já Autores na acção, intentaram acção na forma de processo ordinário, no Tribunal Judicial de Oliveira de Frades,
contra Manuel Costa e mulher.
Foi requerida e admitida a intervenção principal de Ana Gomes e marido, por serem comproprietários da água em
discussão nos autos.

Os AA. pediram:
- Que os RR. sejam condenados a reconhecer que os RR. têm direito a regar e merujar com a água explorada e
represada através das obras referidas nos artºs 15 a 24º da petição e nos dias e horas referidas nos artºs 28 a 37º da
mesma;
- Que os RR. devem ser condenados a repôr toda a água referida nas poças e charcos mencionados nos ditos
artigos de modo a que os AA. possam continuar a utilizá-la como o faziam antes das obras referidas nos artºs 43º a 49º;
- Se tal não for possível, devem os RR., ser condenados a abrir no seu prédio, uma nova poça ou presa com a
capacidade igual à "Poça Larga" e charcos referidos nas als. b) e c) do artº 15º, encaminhando para aí toda a água que,
antes das obras, nascia na "Mina Cimeira", na Poça Larga, e no "Charco" e que cortaram com as ditas obras, podendo esta
nova peça resultar do alargamento da "Poça Grande", ou ser aberta noutro local de modo a que as sobras de água possam
escorrer para esta "Poça Grande".
- Devem ainda os RR. ser condenados, solidariamente, a pagar aos AA. os prejuízos que estes sofreram nos
seus prédios, em razão do corte das águas, no montante que se vier a liquidar em execução de sentença.

- Em fundamento dos seus pedidos, os RR. alegaram:


- Os AA. são donos de prédios denominados por "Fonte" e os RR. são donos de um prédio contíguo e com a
mesma denominação.
- Em tempos idos, os prédios dos 1º, 2º Autores e dos Réus formaram um só prédio denominado "Tapado Cimeiro
da Fonte".
- Na parte que veio a caber aos Réus existia a "Mina Cimeira", a "Poça Larga", um "Charco" e a "Poça Grande",
que exploravam e recolhiam água utilizada pelos AA. e RR. nas regas e merugem, nos dias de cada um.
- Nada foi determinado quando o prédio "Tapado Cimeiro das Fontes" foi dividido.
- Os RR., em Outubro (anterior ao ano da propositura da acção) abriram uma vala onde estava a "Mina Cimeira",
fizeram um poço manilhado, assim cortando a água que afluia à "Mina Cimeira" e à "Poça Larga", bem como a que afluia à
"Mina Cimeira" e à "Poça Larga", bem como a que nascia no "Charco".
- A água recolhida pelos RR. no poço manilhado, levam-na para as suas habitações situadas na Ortirgueira.
- Os AA., devido a esses cortes de água, ficaram impossibilitados de a utilizar nos seus terrenos, e a da "Poça
Grande" é insuficiente para regar e merujar os seus prédios.
- Devido à falta dessa água as produções desses prédios são prejudicadas, prejuízos que se manterão até à
reposição da situação e só depois podem ser avaliados.

Devidamente citados, os Réus Manuel Costa e mulher apresentaram a sua contestação em que alegaram:
- Que a mina referida pelos Autores não é cimeira, mas intermédia, e só as águas daquela foram partilhadas.
- A poça larga e o charco não tinham nascente e apenas serviam de represa a águas que aí afluiam de forma
natural.
- Com a exploração da mina intermédia não sofreram os Autores quaisquer prejuízos, podem continuar a
aproveitar a mesma água que tinham antes.

Efectuou-se, em seguida, a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferido o acórdão do Tribunal
Colectivo em que se decidiu a matéria do questionário, pela forma constante de fls. 120 e verso.

Foi, depois, proferida a sentença final em que julgou a acção provada e procedente e, em consequência:
A) Julgaram-se os RR. Armindo e mulher, parte legítima na acção;
B) Condenaram-se os RR. a reconhecerem que os AA. e intervenientes têm direito a regar e merujar com a água
explorada e represada através das obras referidas nos artºs 15º a 24º, da p.i., e nos dias e horas referidas nas respostas
aos quesitos 14º, 17º, 20º, 15º e 18º;

191
C) Condenaram-se os RR. a repôr toda a água referida, nas poças e charcos mencionados, nos mesmos artigos,
de modo a que os AA. e intervenientes possam continuar a utilizá-las, como faziam antes das obras levadas a cabo pelos
RR. e referidas nas respostas aos quesitos 27º a 37º;
D) Se tal não for possível (reconstituição natural), condenaram-se os RR. a abrirem no seu prédio uma nova peça
ou presa com a capacidade igual à "Poça Larga" e ao "Charco", referidos nas als. b) e c) do artº 15º, da petição,
encaminhando para aí toda a água que, antes das obras, nascia na "mina cimeira", na "poça larga" e no "charco", e que
cortaram com as ditas obras, podendo esta nova poça resultar do alargamento da "poça grande", ou ser aberta noutro
local, de modo a que as sobras da água possam escorrer para esta "poça grande";
E) Condenaram-se os RR., solidariamente, a pagarem aos Autores os prejuízos que estes sofreram nos seus
prédios, em razão do corte das águas, no montante que se vier a liquidar em execução de sentença.

Da referida sentença foi interposto pelos 1ºs Réus recurso de apelação.


- Os RR. Manuel Costa e mulher apresentaram doutas alegações em que formularam as conclusões seguintes:
............................................

- Vejamos, em primeiro lugar, os factos que se julgaram provados em 1ª instância:


- Os AA. Alvaro Almeida e mulher, são donos de um prédio rústico constituído por uma terra culta e inculta,
denominado "Fonte", sito em Sejões, a confrontar do norte e nascente com Manuel Costa, sul e poente em Custódia
Oliveira e outro, inscrito na matriz sob o artº 1323º (al. a) da especificação);
- Os AA. Maria Jordalina e marido, são donos de um prédio rústico denominado "Fonte", terra culta e inculta com
pinhal, sito em Sejões, a confrontar de norte com Alexandre Silva, do nascente com Alvaro Almeida, do sul com herdeiros
de Agostinho Lopes e poente com os próprios, inscrito na matriz sob o artº 1320º (al. b) da especificação);
- Os AA. Maria Jordalina e marido, são donos de um prédio denominado de "Fonte de Cima", terra culta e inculta
e pinhal, sito em Sejões, a confrontar do norte com caminho público, sul e poente com Custódia Oliveira e nascente com
Alexandrino Melo, inscrito na matriz sob o nº 1332º (al. c) da especificação);
- Os AA. Maria Jordalina e marido, são donos do prédio denominado "Fonte de Baixo", terra culta e inculta, com
videiras e pinhal, sito em Sejões, a confrontar do norte com Custódia Oliveira, nascente e sul com Alexandrino Melo e
poente com herdeiros de Agostinho Lopes, inscrito na matriz sob o artº 1334º (al. d) da especificação);
- Os AA., por si e antepassados, há mais de 30 anos, têm tirado de cada um dos seus prédios todas as vantagens
de que são susceptíveis, à vista de toda a gente, sem oposição ou interrupção de ninguém, na convicção de que não
ofendiam direitos de terceiros e como se de coisa própria se tratasse (alínea e) da especificação);
- Os RR. Manuel Costa e mulher, são donos de um prédio rústico denominado "Fonte", terreno culto e inculto e
mato e pinheiros, sito em Sejões, a confrontar do norte com herdeiros de Laurentina Barbeiro, do nascente com caminho
público, do sul e poente com Maria Jordalina e marido, inscrito na matriz sob o artº 1322º (al. f) da especificação);
- Os prédios descritos sob as als. A), B) e F) formavam um único prédio denominado "Tapado Cimeiro das
Fontes", pertencente a António Costa, casado com Albina Fernandes (al. g) da especificação);
- Por óbito de António Costa, deste prédio - "Tapado Cimeiro das Fontes" - veio a calhar 1/4 a cada um dos seus
filhos (José, João, Manuel e Maria Augusta) - al. h) da especificação;
- A parte da filha Maria Augusta, por óbito desta, veio a calhara Albina Fernandes (al. i) da especificação);
- Esta última parte, por óbito de Albina Fernandes, foi partilhada em conformidade com a escritura de fls. 14 a 16,
cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, formando as verbas nºs 6 e 7 (al. j) da especificação);
- A verba nº 7 veio a calhar aos AA. Alvaro Almeida e mulher, e é o prédio descrito sob a alínea a) da
especificação (al. e) da especificação);
- A verba nº 6 veio a calhar aos RR. Manuel Costa e mulher, e é o prédio referido sob a al. f) da especificação (al.
m) da especificação);
- As partes do José e João Costa, foram vendidos a Marcelino Gomes, que, por sua vez, as vendeu a Custódia
Oliveira e esta e Maria Jordalina e marido (al. n) da especificação);
- Há mais de 20 anos que estas partes se concretizaram no terreno formando, respectivamente, os prédios sob as
als. A), F) e B) da especificação);
- O período de rega vai desde 24/6 a 30/9, e o período de merugem ocupa o resto do ano (al. p) da
especificação).
- Pelas respostas aos quesitos:
- No tempo em que os prédios descritos sob as als. A), B), e F) da especificação formavam um único prédio, nele
existia, ao cimo, uma mina subterrânea, conhecida por "mina cimeira" (resposta ao quesito 1º);
- Mais abaixo, a cerca de 40 metros da boca da mina, existia uma poça, denominada "Poça Larga" (resposta ao
quesito 2º);
- Mais abaixo e para o lado existia um "charco", a 2 metros da "Poça Larga" (resposta ao quesito 3º);
- Do outro lado existia uma outra poça conhecida por "Poça Grande", a cerca de 27 metros da "Poça Larga"
(resposta ao quesito 4º);

192
- A "Mina Cimeira", na época de Inverno, explorava um caudal de água não determinado, mas que permitia ser
utilizada para merujar, e que costumava secar por volta dos finais de Agosto, princípios de Setembro (resposta ao quesito
5º);
- Esta água era lançada na "Poça Larga", através de um rego a céu aberto (resposta ao quesito 6º);
- Esta poça, além de recolher esta água, recolhia outra explorada através de um cano existente no bordo norte,
junto ao fundo da mesma poça (resposta ao quesito 7º);
- A água explorada por este cano só secava no fim de Agosto de cada ano (resposta ao quesito 8º);
- O "Charco" referido sob o quesito 3º também explorava um caudal de água, que nunca secava e enchia o
Charco duas vezes por dia (resposta ao quesito 9º);
- Quando a "Poça Larga" e o "Charco" enchiam a água sobrante era encaminhada para a "Poça Grande"
(resposta ao quesito 10º);
- Nesta "Poça Grande" havia outra exploração de água através de uma mina subterrânea, virada a norte
(resposta ao quesito 11º);
- Cuja boca deita directamente para a poça, ao nível do fundo (resposta ao quesito 12º);
- Os AA. Alvaro Almeida e mulher, há mais de 20 anos que utilizam tais águas para rega (resposta ao quesito
13º);
- Desde sábado à noite até domingo ao meio dia (resposta ao quesito 14º);
- Há cerca de 15 anos foi, pelos interessados, acordado e adoptado para a merugem, o período que a cada um
cabia na rega (resposta aos quesitos 15º e 18º);
- Custódia, e depois Maria Jordalina e marido, a quem vendeu em 1993, há mais de 20 anos que, no período de
rega, têm utilizado a mesma água (resposta ao quesito 16º);
- Desde quinta-feira à noite até sábado à noite (resposta ao quesito 17º);
- Os AA. Maria Jordalina e marido, regam com toda a água referida, menos a do "Charco" (resposta ao quesito
19º);
- Desde domingo à noite até terça-feira à mesma hora (resposta ao quesito 20º);
- As águas provenientes da "Mina Cimeira", "Poça Larga", "Charco" e "Poça Grande", sempre foram
encaminhadas e viradas para os prédios dos AA. através de regos e talhadeiras (resposta ao quesito 21º);
- Os quais existem à vista de toda a gente e cavados no terreno (resposta ao quesito 22º);
- Há mais de 20 ou 50 anos (resposta ao quesito 23º);
- Tem sido através deles que os AA. têm utilizado a água, há mais de 20 anos (resposta ao quesito 24º);
- À vista de toda a gente, sem interrupção nem oposição de quem quer que seja (resposta ao quesito 25º);
- Como se de um direito próprio se tratasse e na convicção de que não ofendiam direitos de terceiros (resposta ao
quesito 26º);
- Os RR. abriram uma vala com a profundidade de cerca de 6 metros, 3 metros de largura e cerca de 40 metros
de comprimento (resposta ao quesito 27º);
- No local onde estava implantada a "Mina Cimeira" (resposta ao quesito 28º);
- E até à "Poça Larga" (resposta ao quesito 29º);
- Em consequência, da "Mina Cimeira" apenas restou a sua parte final - 20 ou 30 cms - incrustada no topo norte
da barreira (resposta ao quesito 30º);
- No fundo da vala, os RR. abriram um poço (resposta ao quesito 31º);
- Com 1,80 metros de profundidade (resposta ao quesito 32º);
- Com a vala e o poço, os RR. cortaram toda a água que antes afluia à "Mina Cimeira" (resposta ao quesito 33º);
- E também toda a água que nascia no cano existente na "Poça Larga" (resposta ao quesito 34º);
- As obras levadas a cabo pelos RR. cortaram parte da água que nascia no "Charco" (resposta ao quesito 35º);
- Estas águas, os RR. recolhem-nas no poço antes referido através de um cano plástico (resposta ao quesito 36º);
- Levando-a, depois, para as casas de habitação dos 1ºs e 2ºs RR. (resposta ao quesito 37º);
- Em razão de tais cortes de águas, os AA. ficaram impossibilitados de utilizar as águas que afluiam à "Poça
Larga" e parte das que afluiam ao "Charco" (resposta ao quesito 38º);
- A produção de cereais, as pastagens, as árvores de fruta e videiras serão prejudicadas com a falta de tal água
(resposta ao quesito 39º).

Vejamos agora as conclusões 2ª e 5ª:
2ª) As obras, levadas a cabo pelos RR., foram-no no exercício legítimo de um direito que lhes assistia;
5ª) Inexistindo prejuízo, o direito dos RR., proprietários do prédio, de explorarem a água subterrânea, nele
existente, não sofre qualquer restrição.

- Nos termos do artº 1386º, nº 1, do C. Civil, são particulares:


a) - As águas que nascerem em prédio particular e as pluviais que nele caírem, enquanto não transpuserem,
abandonadas, os limites do mesmo prédio ou daquele para onde o dono dele as tiver conduzido, e ainda as que,

193
ultrapassando esses limites e correndo por prédios particulares, forem consumidas antes de se lançarem no mar ou em
outra água pública;
b) - As águas subterrâneas existentes em prédios particulares.
- Nos termos do artº 1389º; "O dono do prédio onde haja alguma fonte ou nascente de água pode servir-se dela e
dispor do seu uso livremente, salvas as restrições previstas na lei e os direitos que terceiro haja adquirido ao uso da água
por título justo".
- Foi sempre reconhecido no nosso direito o livre aproveitamento das águas das fontes e nascentes. Antes do
Decreto nº 5787, iiii, assim o preceituava o artº 444º, do C.Civil de Seabra, onde se dispunha que "O dono do prédio onde
houver alguma fonte ou nascente de água pode servir-se dela e dispor do seu uso livremente, salvo o direito que algum
terceiro tenha adquirido a esse uso por título justo".
- Como informam os Profs. P. de Lima e A.Varela, (C.Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 301), antes do C.Civil
de Seabra igual doutrina era já proclamada na Resolução Régia de 17/8/75, e a mesma doutrina era, aliás, orientação do
direito romano.
- Mas o artº 1389º, do actual C.Civil, prevê a existência de restrições ao livre exercício do direito de propriedade,
assim como a aquisição, por terceiro, de direitos ao uso das mesmas águas, e os direitos adquiridos são os previstos no
artº 1390º;
- Segundo o artº 1390º, nº 1, "Considera-se título justo de aquisição de água das fontes e nascentes, conforme os
casos, qualquer meio legítimode adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidão".
- Tanto pode estar em causa a constituição de um direito de propriedade, como de um direito de servidão sobre a
água.
- Até à entrada em vigor do C. Civil de 1867, eram títulos justos de aquisição das águas das fontes e nascentes
particulares os mencionados no artº 438º, desse Código, e que foram ressalvados pelo § único do artº 444º do mesmo
Código.
- Depois de entrar em vigor o Código de 1867, e até a publicação do Decreto nº 5787, iiii, de 10/5/19, o regime de
aquisição das águas das fontes e nascentes passou a ser outro.
- Por força do § único do artº 444º, era aplicável o preceituado no artº 439º, e este artigo, não só considerou
imprescritível o direito às águas, como tornou a sua aquisição dependente de escritura ou auto público.
- Pelo artº 99º, da Lei de Águas, portanto, a partir de 1919, voltou a admitir-se a prescrição como título aquisitivo
do direito sobre as águas das fontes e nascentes, e bem assim qualquer outro meio legítimo de adquirir direitos imobiliários,
reconhecido pela lei civil.
- O prazo de usucapião só podia contar-se a partir da entrada em vigor da Lei das Águas, portanto, a partir de 10
de Maio de 1919, mas essa questão não apresenta hoje interesse prático, dado o tempo já decorrido sobre a entrada em
vigor do Decreto de 1919 (cfr. Profs. P. de Lima e A.Varela, ob. cit., págs. 303 e 304, e Dr. Veloso de Almeida, Comentário
à Lei das Águas, 2ª ed., 1958, pág. 295).
- Pelo artº 1390º, nº 1, do C.Civil actual, considerando-se título justo de aquisição da água das fontes e
nascentes, conforme os casos, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir
servidões, e considerando-se todas as águas como coisas imóveis (cfr. artº 204º, nº 1, al. b) do C.Civil), há que concluir que
os títulos de aquisição das águas são os meios legítimos de aquisição da propriedade sobre imóveis (cfr. 1316º, e segs., do
C.Civil).
- Se está em causa a constituição de um direito de servidão, então, a constituição da servidão depende da
existência de um dos meios referidos no artº 1547º: contrato, testamento, usucapião, destinação do pai de família, sentença
e decisão administrativa.

- Ora, verificamos da p.i. (artº 42º e artigos antecedentes) que os AA. invocaram a aquisição, por usucapião, do
direito a regar e a merujar com as águas em questão e nos dias que mencionaram.
- Quanto à usucapião, e como modo legítimo de aquisição do direito às águas, o artº 1390º, nº 2, do C.Civil,
estabelece as seguintes exigências para a aquisição por terceiro do direito à água de fontes ou nascentes existentes em
terreno alheio:
a) - têm de verificar-se todos os requisitos da usucapião - artºs 1293º e segs.;
b) - esses requisitos devem ser acompanhados da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde
exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio.
Essas exigências tanto são necessárias para a aquisição por usucapião do direito de propriedade, como para a
aquisição por usucapião do direito de servidão de água existente em prédio de terceiros.
Como diz o Prof. Henrique Mesquita, (Direitos Reais, págs. 203 e 204), "Não bastam actos de limpeza (actos de
expurgação, no dizer dos artigos previstos) praticados no prédio superior com o objectivo de possibilitar ou tornar mais fácil
o decurso da água: tem de haver obras permanentes de captação, o que significa que ao "corpus possessionis" é aqui
essencial um requisito que não seria necessário à face dos princípios gerais, e com esta exigência visa o legislador excluir
da usucapião, em matéria de águas, situações de posse equívoca. Impendendo sobre os proprietários a obrigação de dar
escoamento às águas que naturalmente e sem obra do homem provenham de prédios superiores (artº 1351º), e facultando-

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lhes a lei, em compensação deste encargo, o poder legal de as aproveitar, a simples fruição, pelos proprietários inferiores,
da água de uma fonte ou nascente, tanto pode traduzir o cumprimento de um encargo e o mero exercício de uma faculdade
legal, como a intenção de agir "uti dominus".
As obras a que se refere o artº 1390º, nº 2, têm de estar situadas no prédio onde existe a fonte ou nascente, e
tanto podem ser levadas a cabo pelo dono do terreno onde se situa a fonte ou nascente, como por quem se arroga a
titularidade do direito à água.
O que é indispensável é que as obras sejam visíveis, pois só a posse pública é susceptível de conduzir à
usucapião, e permanentes, para dar continuidade ao "corpus possessionis", dado que a lei o torna dependente da
existência de obras (cfr. P. de Lima e A.Varela, ob. cit., pág. 306, e Henrique Mesquita, ob. cit., pág. 205).
A este propósito, escrevem os mesmos autores, em anotação ao artº 1394º (águas subterrâneas), in C. Civil
Anotado, vol. III, 2ª ed., pág. 322, que "sublinha-se, por outro lado, que das obras de captação feitas no prédio superior só
poderá derivar a aquisição de um direito (de propriedade ou servidão) sobre as águas efectivamente exploradas, quando
elas apresentem os caracteres de aparência e permanência, hoje expressamente no nº 2 do artº 1390º aplicável às águas
subterrâneas por força do disposto no nº 1 do artº 1395º). Sem obras permanentes, não pode haver uma posse contínua,
ininterrupta, e, sem sinais de aparência, a posse não preenche o requisito da publicidade, indispensável à usucapião (cfr.
os artºs 1293º, al. a), 1297º e 1300º, nº 1)".
Por isso, a jurisprudência já decidiu que "A falta do requisito geral de visibilidade, aparência e publicidade de
obras de captação e posse de águas impossibilita a aquisição por usucapião destas, sejam provenientes de fontes e
nascentes, sejam subterrâneas" (cfr. o acórdão do S.T.J., de 25/5/82, in Bol. nº 317, págs. 262 e segs., e cfr., também, o
acórdão da Rel. do Porto, de 7/4/81, in Col. Jur., Ano VI, tomo 2, págs. 116 a 118).

As obras levadas a cabo pelos RR., de harmonia com as respostas aos quesitos, consistiram no seguinte:
- Abriram uma vala com a profundidade de cerca de 6 metros, 3 metros de largura e cerca de 40 metros de
comprimento, no local onde estava implantada a "Mina Cimeira", e até à "Poça Larga", em consequência do que, da "Mina
Cimeira" apenas restou a sua parte final - 20 ou 30 cms. - incrustada no topo norte da barreira.
- No fundo da vala, os RR. abriram um poço, com 1,80 metros de profundidade, e com a vala e o poço cortaram
toda a água que antes afluia à "Mina Cimeira", e também toda a água que nascia no cano existente na "Poça Larga", e as
obras levadas a cabo pelos RR. cortaram parte da água que nascia no "Charco".
- Os RR. recolhem essas águas no poço antes referido através de um cano de plástico, levando-a, depois, para
as casas da habitação dos 1ºs e 2ºs RR..

Ora, é certo que, nos termos do artº 1348º, nº1, do C.Civil, "O proprietário tem a faculdade de abrir no seu prédio
minas ou poços e fazer escavações, desde que não prive os prédios vizinhos do apoio necessário para evitar
desmoronamentar ou deslocações de terra".
- Em termos gerais, esta disposição confere ao proprietário o direito de abrir minas ou poços no seu prédio e de
nela fazer escavações.
- Por outro lado, nos termos do artº 1394º, nº 1, do C.Civil, "É lícito ao proprietário procurar águas subterrâneas
no seu prédio, por meio de poços ordinários ou artesianos, minas ou quaisquer escavações, contanto que não prejudique
direitos que terceiro haja adquirido por título justo".
- Na parte final desta disposição são, portanto, ressalvados, perante a faculdade concedida ao proprietário do
prédio, os direitos que terceiro haja adquirido por título justo, e os títulos justos de aquisição das águas subterrâneas,
segundo o C.Civil, são os mencionados nos nºs 1 e 2 do artº 1390º, por força da remissão feita no nº 1 do artº 1395º.
- Sendo assim, importa apurar se os RR., conforme alegaram na p.i., adquiriram, por usucapião, o direito a regar
e merujar com a água explorada e represada através das obras referidas no mesmo articulado.
O termo "merugem" significa uma rega permanente ou água de lima, água que corre continuamente. A irrigação
compreende, além da rega propriamente dita, a lima e a merugem dos prédios. A rega respeita mais ao verão. Limar, como
se diz no Minho, merujar ou lameirar como costuma dizer-se noutras províncias, respeita ao Inverno, consistindo na
operação de deixar correr continuamente uma camada delgada de água sobre o terreno (cfr. Dr. Mário Tavarela Lobo,
Manual do Direito das Águas, vol. 1º, pág. 274).

Como já vimos, a usucapião é um justo título de aquisição de águas, mas que só é atendida nos termos do artº
1390, nº2.
A usucapião é definida pelo artº 1287º do C.Civil: "A posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de
gozo, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito a cujo
exercício corresponde a sua actuação"
A posse, na definição legal (artº 1251º) é o "poder que se manifesta quando alguém actua por forma
correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real".

195
Ora, da matéria facto fixada pelas respostas aos quesitos, e que nos dispensamos agora de reproduzir,
concluimos que os A.A., há mais de 20 anos, que utilizam as águas provenientes da "Mina Cimeira", "Poça Larga",
"Charco" e "Poça Grande", as quais sempre foram encaminhadas e viradas para os prédios dos AA., através de regas e
talhadeiras, os quais existem à vista de toda a gente e cavados no terreno, há mais de 20 ou 50 anos, e que os AA. utilizam
as águas à vista toda a gente, sem interrupção nem oposição de quem quer que seja, como se de um direito próprio se
tratasse e na convicção de não ofenderem direitos de terceiros.
- Os AA. Alvaro Almeida e mulher, há mais de 20 anos que utilizam tais águas para regar, desde sábado à noite
até domingo ao meio dia.
- Custódia Oliveira, e depois Maria Jordalina e marido, há mais de 20 ano que, no período de rega, têm utilizado a
mesma água, desde quinta-feira à noite até sábado à noite, e os AA. Maria Jordalina e marido regam com toda a água
referida, menos a água do "Charco", desde domingo à noite até terça-feira à mesma hora.
- Há cerca de 15 anos, os interessados adoptaram e acordaram para a merujar, o período que a cada um cabia
na rega.
- Verificamos, assim, que a posse exercida pelos AA. é integrada pelos dois elementos que são exigidos pela
concepção subjectiva da posse (Savigny), concepção acolhida pela nossa lei, como resulta dos artºs 1251º e 1253º, do
C.Civil: o "corpus" possessório (elemento material), consistente num domínio de facto sobre as águas, caracterizado no
exercício efectivo de poderes materiais sobre elas ou na possibilidade física desse exercício; e o "animus possidendi"
(elemento psicológico), consistente na instrução de exercer sobre aquelas águas, como seu titular, o direito real
correspondente àquele domínio de facto, ou seja, traduzido pelo intuito de se comportar como titular do direito
correspondente aos actos que se praticam (cfr. Prof. Henrique Mesquita, Direitos Reais, págs. 65 e segs., e Prof. Mota
Pinto, Direitos Reais, 1976, págs. 180 e segs.).
- Além disso, essa posse reveste-se das características de posse pública (artº 1262º), pacífica (artº 1261º, nº 1),
contínua e de boa fé (artº 1260º, nº 1), e foi exercida pelo tempo necessário à aquisição, por usucapião, do direito a cujo
exercício corresponde a actuação dos apelados (cfr. artºs 1287º, 1296º e 1287º, do C.Civil).
- Aliás, se observarmos a escritura de partilha outorgada no Cartório Notarial de São Pedro do Sul em 17/5/84,
bem como a relação dos bens que compunham a herança de Albina de Jesus, elaborada nos termos do artº 78º, do C. do
Notariado (cfr. documento nº 1, junto com a p.i.), escritura que é mencionada na al. j) da especificação, constatamos que da
parte final da relação de bens que se destinou a instruir aquela escritura, constam as seguintes pormenorizações:
"O prédio descrito na verba rio tem água para regar, semanalmente, da Mina Cimeira, Poça Larga, Charco e Poça
Grande, desde domingo ao meio dia até ao sol posto desse mesmo dia, e ainda de terça-feira à noite até quarta-feira à
noite. Tem ainda água para regar do Charco, três dias por semana, às segundas, terças e quintas-feiras. Para merujem
tem, das nascentes acima referidas, dezoito horas em cada período de quarenta e oito horas.
- O prédio descrito na verba sete tem água para regar da Mina Cimeira, Poça Larga, Charco e Poça Grande,
desde sábado à noite até domingo ao meio-dia. De merujar tem doze horas, em cada período de quarenta e oito horas, das
nascentes anteriormente referidas".
- Por outro lado, a matéria de facto fixada também aponta para a verificação do requisito da visibilidade e
aparência de obras, bem como do requisito de permanência, como reveladores da captação e posse da água (cfr. artº
1390º, nº 2), no prédio onde exista a nascente.
- Nesse sentido, esse requisito parece suficientemente patenteado nas respostas formuladas aos quesitos 1º, 2º,
3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º e 12º.
- "E sobre o significado das obras é admitida qualquer espécie de prova", como resulta da parte final do artº
1390º, nº 2.
- E era esta a doutrina dominante em face da lei anterior, mesmo sem texto expresso. Com efeito, segundo o
Prof. P.de Lima, citando também a opinião do Prof. Manuel Rodrigues, "Porque toda a obra é, de por si, equívoca, é
legítimo recorrer, para destruir a equivocidade, a todos os elementos que possam esclarecer e definir as obras e
consequentemente verificar se o aproveitamento traduz um direito do prédio inferior ou se é um acto de mera tolerância do
proprietário superior" (cfr. Lições de Direito Civil (Direito Reais), 1958, pág. 164).
- A propósito do requisito da visibilidade ou aparência e da permanência das obras, considerava P.de Lima (ob.
coit., pág. 166) que essa condição resultava dos requisitos gerais da prescrição, devendo as obras ser aparentes e
permanentes porque só assim "revestem a publicidade indispensável à procedência da prescrição, só assim se podendo
dizer do conhecimento do proprietário do prédio superior, revelando, da parte deste, o abandono".
- Deste modo, não podem proceder as conclusões 2ª e 5ª da douta alegação dos apelantes, dado que os AA.
adquiriram o direito às águas exploradas na "Mina Cimeira", "Poça Larga" e "como existente no bordo norte" e "Charco",
por meio de usucapião, que constitui um meio legítimo de adquirir as águas particulares de fontes e nascentes (cfr. artº
1390º, nºs 1 e 2).
- Claro que esse direito não é um direito a uma utilização exclusiva.
- São os AA., que referem, aliás, na p.i. (artºs 34º, 35º e 36º) que os RR, por sua vez, regam desde domingo ao
meio dia até domingo à noite e desde terça-feira à noite até quarta-feira à mesma hora (de todas as nascentes), regam,

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ainda mais, do "Charco", três dias por semana, às segundas, terças e quintas, e, para merujem, têm dezoito horas em cada
período de quarenta e oito horas, das mesmas nascentes.
- Mas uma relação possessória pode ter vários contitulares. Assim como os direitos reais definitivos podem ter
mais do que um sujeito (o caso típico é o da compropriedade), assim também na posse é admissível a contitularidade.
Então, temos a figura da da composse, quando determinada posse, em vez de ter um só sujeito, tem vários. Se a posse
exercida sobre uma coisa fosse de uma só pessoa, teriamos uma posse necessariamente exclusiva porque
subjectivamente singular. Se a posse fosse exercida sobre a coisa é de várias pessoas, há composse e, então, cada um
dos compossuidores exerce a posse correspondente à parte que lhe cabe na posse comum, sendo o conteúdo da posição
jurídica dos compossuidores qualitativamente igual quanto à sua natureza, embora possa ser quantitativamente diferente
(cfr. Prof. Henrique Mesquita, Direitos Reais, págs. 88 e 89 e Dr. Penha Gonçalves, Curso de Direitos Reais, pág. 261).
- Ora à composse se referem os artºs 1286º e 1291º, do C.Civil, dispondo este último artigo que "A usucapião por
um compossuidor relativamente ao objecto da posse comum aproveita igualmente aos demais compossuidores", sendo
extensivos à composse, com as devidas adaptações, as regras da compropriedade (artº 1404º, do C.Civil).

O artº 1390º, nº 1, do C.Civil, consagra a doutrina tradicional de que o direito a uma água nascida em prédio
alheio tanto pode ser um direito de servidão, retomando a doutrina tradicional provinda do direito romano.
- O Prof. A.Varela sintetizou as características especiais da propriedade e da servidão, nos termos seguintes:
"Mas existe entre os dois direitos reais uma profunda diferença, tanto no seu conteúdo, como na sua extensão ou
dimensão: no primeiro caso, há um direito pleno e, em princípio, ilimitado sobre a coisa, que envolve a possibilidade do
mais amplo aproveitamento, ao serviço de qualquer fim, de todas as utilidades que a água possa prestar; o segundo
confere ao seu titular apenas a possibilidade de efectuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e
na estrita medida das necessidades do prédio dominante "(Rev. Leg. e Jur., Ano 115º, pág. 220, anotação ao Ac. do S.T.J.,
de 15/1/81).
- A nota distintiva encontra-se, pois, na possibilidade de o titular do direito à água dispôr livremente da água que
nasce em prédio alheio ou ter um direito à água restringido às necessidades do seu prédio, conforme a definição do título
constitutivo (cfr., também, profs. P.de Lima e A.Varela, C.Civil Anotado, vol. III, 2ª ed., pág. 305, Dr. Mário Tavarela Cabo,
Manual de Direito de Águas, vol. II, págs. 35 e 36, e acórdão do S.T.J., de 18/3/82, in Bol. nº 315, págs. 263, e segs.).
- Na sentença final foi definido o direito das AA. como um direito de compropriedade daquelas águas.
- Como vemos das conclusões das alegações dos apelantes, não é propriamente posta em causa a definição do
direito dos AA. com um direito de compropriedade ou um direito de servidão.
- Mas pensamos que a definição do direito como um direito de compropriedade das águas se coaduna com a
matéria de facto resultante das respostas aos quesitos e da própria especificação, pois os prédios descritos sob as als. A),
B) e F) formavam um único prédio (cfr. al. g) da especificação).
- Essa relação possessória exercida por vários contitulares deu lugar, pelo decurso do tempo, à aquisição, por
usucapião, de um direito de compropriedade, sendo os direitos dos consortes às águas comuns qualititivamente iguais,
embora possam ser quantitativamente diferentes (cfr. artº 1403º, nºs 1 e 2, do C.Civil).
- Quanto às demais conclusões (1ª e 6ª) das alegações dos recorrentes:
- Invocam os apelantes a causa de nulidade prevista no artº 668º, nº 1, al. c), do C.P.Civil: nulidade da sentença
resultante de os fundamentos estarem em oposição com a decisão.
- Ocorre esta causa de nulidade quando exista uma contradição real entre os fundamentos e a decisão, quando a
fundamentação aponta num sentido e a decisão segue um caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente (cfr. Antunes
Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., págs. 689 e 690).
- A sentença, dada a fundamentação de facto, seguiu um caminho que se adequa a essa fundamentação.
- Há, no entanto, um aspecto que importa reponderar.
- Vimos que a irrigação compreende a rega propriamente dita, como também a merugem ou lima dos prédios.
- Pela resposta ao quesito 5º, verifica-se que a "Mina Cimeira", na época de Inverno, explorava um caudal da
água não determinado, mas que permitia ser utilizado para merujar, e que costumava secar por volta dos finais de Agosto,
princípios de Setembro.
- Vimos também que os AA. têm utilizado a água, através de regas e talhadeiras, há mais de 20 anos (cfr.
respostas aos quesitos 21º e 24º).
- É evidente que dentro dessa utilização cabe não só a rega propriamente dita, como também a merugem.
- Mas, quanto à merugem, apenas se provou que há cerca de 15 anos foi, pelos interessados, acordado e
adoptado para a merugem, o período que a cada um cabia na rega (cfr. resposta aos quesitos 15º e 18º).
- Diferentemente, o tempo de utilização das águas, no período de rega (v. al. p) da especificação), encontra-se
definido há mais de vinte anos.
- Ora, quanto à divisão de águas, há que distinguir três hipóteses quanto aos termos da divisão:
A) A primeira, é a de haver título que especifique o direito de cada um dos contitulares da água; nesse caso, a
divisão deve ser realizada em conformidade com as indicações do título;

197
B) A segunda, é a de, na falta ou insuficiência do título, haver um regime estável e normal de distribuição,
observado pelos interessados há mais de vinte anos, regendo para essa hipótese o artº 1400º;
C) A terceira hipótese é a de não haver título bastante nem costume juridicamente relevante na repartição. Para
esta hipótese, determina o artº 1399º, reproduzindo a doutrina do direito anterior, que se deve atender, na divisão
quantitativa da água, à superfície, necessidades e natureza da cultura dos terrenos a regar (cfr. P.de Lima e A.Varela,
C.Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 336).
- Quanto ao período de rega propriamente dito, está provado qual o tempo de utilização das águas pelos AA. e
esse costume é seguido há mais de 20 anos. Logo, na divisão das águas devem respeitar-se as próprias indicações do
título de aquisição do direito às águas.
- Quanto à merugem, o título de aquisição do direito às águas abrange essa faculdade de utilização, mas é
insuficiente quanto à forma de divisão das águas no período de merugem.
- Estando provado que "há cerca de 15 anos foi, pelos interessados, acordado e adoptado para a merugem, o
período que a cada um cabia na rega", não sabemos se é há exactamente 15 anos, há mais ou há menos de 15 anos, nem
se esse período de tempo se conta a partir da data da instauração da acção ou da data do acórdão que recaiu sobre a
matéria de facto.
- Na insuficiência do título, poderíamos recorrer a um regime estável e normal de distribuição das águas, se o
costume fosse seguido há mais de 20 anos.
- De facto, nos termos do artº 1400º, nº 1, do C.Civil, "As águas fruídas em comum que, por costume seguido há
mais de 20 anos, estiverem divididas ou subordinadas a um regime estável e normal de distribuição continuam a ser
aproveitadas por essa forma, sem nova divisão".
- A disposição do artº 1400º corresponde ao artº 101º, do Anteprojecto de P.de Lima e o nº 1 daquele artigo
corresponde, com alteração, ao artº 133º, nº 1, da lei de Águas.
- O costume referido na disposição (artº 1400º, nº 1), não é o costume local ou o uso geral da terra, nem é o
direito consuetudinário, nem a posse antiga ou prescrição, mas sim meros costumes de facto seguidos pelos interessados
em cada aproveitamento das águas.

Segundo a doutrina exposta por P.de Lima (Rev.Leg.Jur., ano 92º, págs. 63, citado por Tavarela Lobo, ob.cit., vol.
II, pág. 118), o sentido e o alcance do uso e costume assentava em três princípios:
a) "O uso e costume não legitima um direito originário sobre as águas;
b) O uso e costume pode indicar, porém, quem são os titulares do direito;
c) O uso e costume determina, só por si, a medida do direito de cada utente".

Relativamente ao caso "sub judice", podemos, por isso, concluir:


1 - Relativamente ao período de rega propriamente dita, as indicações do título - usucapião - de aquisição do
direito às águas, são suficientes para deverem ser respeitadas quanto à fruição e divisão das águas;
2 - Essas indicações também são suficientes para abranger na utilização das águas, não só a rega propriamente
dita, mas também a merugem;
3 - No entanto, devido à insuficiência do título e à inexistência de costume seguido há mais de 20 anos (cfr. artº
1400º, nº 1, do C.Civil), não pode considerar-se juridicamente relevante, para o efeito da divisão das águas no período de
merugem, o acordo que os interessados adoptaram e que é referido na resposta aos quesitos 15º e 18º.
- É apenas neste ponto que julgamos que deve ser alterada a sentença final.

Nos termos expostos, acordam nesta Relação em julgar apenas em parte procedente o recurso de apelaçãoe, em
consequência, confirmam a douta sentença recorrida, apenas a alterando quanto ao teor da al. b) da parte dispositiva da
sentença, condenando os RR. a reconhecerem que os AA. e intervenientes têm direito a regar com a água explorada e
represada através das obras referidas nos artºs 15º a 24º da p.i., e nos dias e horas referidas nas respostas aos quesitos
14º, 17º e 20º, e têm ainda direito a merujar, mas não se podendo considerar juridicamente relevante, para o efeito da
divisão das águas em questão no período de merugem, o acordo adaptado pelos interessados e que é referido na resposta
aos quesitos 15º e 18º, devido à insuficiência de aquisição do direito às águas, nesta parte, e à inexistência de costume
seguido há mais de 20 anos.
Custas, em ambas as instâncias, pelos AA., na proporção de 1/10 e pelos RR, ora apelantes, na proporção de
9/10.

Coimbra, 21 de Janeiro de 1997

Manuel da Silva Freitas


Pires da Rosa
Araújo Ferreira

198
O nº 3 do art. 1390º dispensa, em caso de divisão ou partilha de prédios sem intervenção de
terceiro, a existência de sinais reveladores da destinação do antigo proprietário para aquisição do
direito de servidão por destinação de pai de família, normalmente exigidos no art. 1549º.

1391º
O aproveitamento por terceiros da água que escorre do prédio superior, a acqua profluens, por
mais largo que seja o prazo durante o qual esse aproveitamento se der, não constitui posse de que
resulte ou possa resultar o direito à água. É acto precário, de mera tolerância, a que em qualquer
altura o dono da água pode pôr termo, aproveitando a água como entender, mesmo que as águas
tivessem vindo a correr para uma corrente pública, para o mar.

Como decidiu o STJ, por Ac. de 17.1.2002, na Col. Jur. STJ 2002-I-43:

O texto legal - art. 1391º - não deixa, a este respeito margem para dúvidas: “a privação (total ou parcial) desse
uso (por parte dos proprietários de prédios inferiores), por efeito de novo aproveitamento que faça o proprietário da fonte ou
nascente, não constitui violação de direito”.
Escrevem a este respeito, e lapidarmente, os Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol.
III, 2ª ed., págs. 310 e 311.
“Foi este direito à acqua profluens, conferido aos proprietários dos prédios inferiores, que levou o nosso
legislador, dada a equivocidade da posse, a tomar medidas restritas em matéria de prescrição, quer no C. Civil de 1867
(arts. 438 § único e 439º), quer posteriormente na Lei das Águas (art. 99º § único), quer no novo Código Civil (art. 1390º, n.º
2).
O direito à água que brota num prédio, escreveu Guilherme Moreira (in vol. II, Ap. n.º 37) é, compreendido que
está no direito de propriedade, facultativo, podendo consequentemente ser exercido ou não pelo proprietário, sem que do
seu não exercício resulte a perda desse direito. O facto de o proprietário abandonar essa água, deixando-a seguir o seu
curso natural e o aproveitamento pelos proprietários vizinhos da água assim abandonada, representam, em princípio, um
acto facultativo e de tolerância da parte do proprietário da nascente, não constituindo o aproveitamento por terceiros, por
mais largo que seja o prazo durante o qual ele se der, posse de que resulte ou possa resultar o direito à água.
Para este efeito, necessário se torna que, pela posse, se crie uma situação de facto cuja subsistência seja
incompatível com o direito de livre disposição que o proprietário do prédio tem sobre as nascentes que nele haja”.
E, a concluir: “É preciso, por conseguinte, que haja uma situação de verdadeira captação e posse da água contra
o proprietário da fonte ou nascente e não, como é normal, o simples exercício de uma factualidade de aproveitamento da
acqua profluens, na sequência do direito de escoamento conferido ao dono do prédio superior.
Chamam ainda os mesmos autores a atenção para a circunstância de a “natureza precária do direito dos prédios
inferiores, sujeito sempre à eventualidade de um novo aproveitamento feito pelo dono da nascente ou pelo dono de um
prédio superior por onde a água decorra “haver sido já consagrada pela Resolução Régia de 17 de Agosto de 1775.
No fundo - e tal como também bem obtempera a Relação - os recorrentes confundem o “direito ao uso das águas
sobejas ou sobrantes, com “direito a comunhão (quiçá indivisa e não alíquota) de águas».

Este direito de aproveitamento é atribuído aos proprietários sucessivamente superiores, de


forma que B não pode impedir A, proprietário superior a si e logo abaixo do dono da água, de
aproveitar toda a água que, vinda do prédio deste dono, cai no prédio dele, A.
Claro que sobre esta acqua profluens pode constituir-se direitos vários, mas nunca atingindo o
direito do dono da nascente que continua proprietário dela, nem os aproveitadores de prédios
superiores. Serão sempre direitos precários, de fraca consistência.

1392º e 1396º
Casal tanto significa pequena aldeia como uma casa isolada , como ensinou G. Moreira e
resulta da parte final do nº 2 do art. 1392º - Col. 83-II-229 e 94-IV-191.
Discutido é se o dono das águas pode mudar o curso subterrâneo delas P. Lima-A. Varela
entendem que sim, enquanto G. Moreira e H. Mesquita defendem o contrário.
Também se entende que o aproveitamento pode ser feito tanto dentro do prédio, na nascente,
como fora dele, nas correntes formadas por essa água.
199
Gastos domésticos são os necessários à satisfação das necessidades primárias da vida do
homem e dos seus animais. Exige-se que as águas sejam necessárias e não apenas úteis.
A indemnização será encontrada de acordo com as regras gerais dos art. 562º e ss.

Também o art. 1396º protege as fontes ou reservatório destinado a uso público, qualquer que
ele seja e não só, como no artigo 1392º, para gastos domésticos.
Como atrás se viu, as águas de fontes e nascentes podem ser desintegra-das do prédio onde
se encontram através de negócio jurídico que atribua a respectiva propriedade a terceiros, mas tal
negócio tem de observar as exigências de forma impostas para os bens imóveis, nomeadamente a
escritura pública, em caso de venda ou doação.

1393º
Tem pouco interesse prático esta remissão, salvo no tocante a direitos adquiridos
anteriormente à entrada em vigor do actual Código, de que tratam PLAVarela, designadamente quanto
à aquisição das águas de lagos e lagoas, em notas a este artigo.

1394º e 1348º - 1395º, nº 2

Concede a lei ao proprietário o direito de, como dono do subsolo (1344º, nº 1), captar águas
subterrâneas no seu prédio, por poços, minas ou quaisquer escavações. O mesmo pode fazer o
usufrutuário, embora este não possa alienar a água encontrada - (1483º).
Mas não pode com isso prejudicar direitos adquiridos por terceiro por título justo nem desviar
as águas ou veios subterrâneos de prédios contíguos por meio de infiltrações provocadas e não
naturais - n.os 1 e 2 do art. 1394º.

«Tendo os apelantes ficado privados da água da mina em consequência de pesquisas da apelada de águas
subterrâneas no seu prédio, é evidente a violação, por esta última, do direito daqueles.
Tendo as apelantes adquirido o direito às águas por contrato, a apelada ficou inibida de fazer no seu prédio
explorações que prejudiquem o abastecimento da nascente que alienaram - Col. 89-IV-217, que afectem os direitos
resultantes do contrato. Pode continuar a pesquisar no seu prédio outros veios de água - PLAVarela, III, 323 e 324:

Cada proprietário só pode explorar as águas que naturalmente atinjam o seu prédio. Não pode
provocar o desvio das que se encontrem ou passem em prédio vizinho, à superfície ou no subsolo.

Se o veio atravessa aqueles prédios é nítido que, no caso, cada um dos proprietários é dono
do troço do veio localizado dentro dos limites geográficos e territoriais de cada um deles. Porque assim
é, a exploração efectuada pelo 2º proprietário não constitui violação do direito de A. São direitos com
incidências distintas - J. C. Pinho, 114.

Pode a exploração ser ilegítima se puramente emulativa ou contrária aos limites impostos pela boa fé, pelos bons
costumes ou pelo fim social ou económico do direito de propriedade do dono do prédio explorante, privando o vizinho da
água que adquirira por justo título - Col. 83-V-211.

«Especialmente no que concerne a escavações tendentes a captar águas subterrâneas, expressa a lei, por um
lado, ser lícito ao proprietário procurá-las no seu prédio por meio de poços ordinários ou artesianos, minas ou escavações,
contanto que não prejudique direitos que terceiro haja adquirido por título justo (artigo 1394º, nº 1, do Código Civil).
A diminuição do caudal de qualquer água particular em consequência da exploração de água subterrânea não
constitui violação de direitos de terceiro, excepto se a captação se fizer por meio de infiltrações provocadas e não naturais
(artigo 1394º, nº 2, do Código Civil).
Não há, pois, violação dos direitos de terceiro no caso de diminuição de caudal em razão de captação se esta
apenas abranger as águas dos veios que naturalmente atravessam o prédio e as que nele se infiltrarem naturalmente.

200
Mas ocorre a violação de direitos de terceiro se a referida captação abranger as águas artificialmente infiltradas
por desvio de corrente, nascente ou veio subterrâneo existente em prédio vizinho, porque é proibida ao dono do prédio a
fruição de elementos que se situem para além dos limites objectivos do seu direito de propriedade (Ac. do STJ, de 25.5.82,
BMJ, nº 317, págs. 262 a 267).
Como os recorridos captaram as mencionadas águas subterrâneas no seu prédio por via dos poços artesianos,
no quadro do exercício do seu direito de propriedade, e, por via disso, adquiriram o direito de propriedade sobre elas, nos
termos dos artigos 1305º e 1344º, nº 1, do Código Civil, é justo o título da referida aquisição.
Diversa é a situação no que concerne à construção da barragem pelo recorrente que implicou a secagem dos
furos artesianos e a impossibilidade de os recorridos procederem à rega do milho, das oliveiras e dos freixos, ocasionando,
por isso, a sua perda.
É que a referida actividade do recorrente envolvente da construção da barragem não visou a captação de águas
subterrâneas no seu prédio, mas tão só a captação e armazenamento de águas públicas, pelo que não pode ser
enquadrada no artigo 1394º do Código Civil.» - Ac. STJ (Consº Salvador da Costa) de 3.2.2005, P.º 04B4805.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Araújo Barros), de 19.3.2002, no Pr.º 02B421:

I - O princípio geral é o da livre exploração de águas subterrâneas.


II - Cada proprietário só pode explorar, para além das águas estagnadas ou armazenadas no seu prédio, as que,
infiltrando-se naturalmente, o atinjam, os veios que naturalmente o alcancem ou atravessem, não lhe sendo lícito, por
constituir violação de direitos de terceiro, provocar artificialmente o desvio das águas que se encontrem ou passem em
prédio vizinho, à superfície ou no subsolo.
III - Não demonstrado esse desvio, é lícito a sua actuação, no exercício do direito de exploração e aproveitamento
de veios subterrâneos nos seus limites normais.

Sempre poderá haver lugar para o abuso do direito.

1395º, 1

Visto quanto consta dos art. 1316º para a propriedade e 1547º para as servidões, são justos
títulos de aquisição da propriedade de águas subterrâneas (como resulta da remessa para o art. 1390º
que rege para as águas de fontes e nascentes) o contrato, a sucessão por morte, a usucapião, a
acessão e demais modos previstos na lei, mas não a ocupação que se não refere a imóveis - 1318º a
1324º - e a lei - 1390º - só de imóveis cuida, bem como, para as servidões, o contrato, testamento,
usucapião, destinação de pai de família, sentença e decisão administrativa , estas duas últimas para as
servidões legais - (art. 1547º).

Claro que a usucapião só releva se as obras visíveis e permanentes tiverem sido feitas no
prédio superior, pois só com obras nesse prédio é possível a captação da água e, consequentemente,
a posse dela como água subterrânea. A mina feita pelo dono do prédio inferior para dentro do prédio
superior jamais pode ser visível, porque é subterrânea, neste prédio superior aonde foi captar, a
ocultas, a água nele existente.
Porém, se no prédio superior houver obra visível e permanente para acesso à mina, então
poderá estar verificado aquele requisito de usucapião.
Notar a exigência de clareza do título, exigida pelo nº 2 deste artigo 1395º.

1397º
Refere-se esta norma apenas àquelas águas que eram originariamente públicas e passaram
ao domínio privado por preocupação, doação régia e concessão - al. d) - por concessão perpétua para
regas ou melhoramentos agrícolas - al. e) - ou exploradas mediante licença em terrenos públicos,
municipais ou de freguesia - al. f) do art. 1386º.

201
Consagra este preceito dois importantes princípios em razão da origem pública da água: o da
inseparabilidade e o da caducidade.

Inseparabilidade - A água apropriada está vinculada ao prédio e, dentro deste, a um fim


específico, não podendo ser alienada separadamente, abandona-da, nem afectada a outro fim dentro
do próprio prédio. Adquirido o prédio por usucapião, deve o direito à água considerar-se incorporado
na sua aquisição.
Logo que ocorra qualquer destes factos, o direito adquirido extingue-se automaticamente, por
caducidade, revertendo as águas ao domínio público.
Por via deste regime verifica-se uma incorporação jurídica da água no prédio a que ela se
destina.
H. Mesquita e PL-AVarela defendem a insusceptibilidade de usucapião em relação a águas
públicas apropriadas por terem elas revertido para o domínio público logo que terceiro começou a
aproveitá-las.
J. C. Pinho defende a usucapião desde que verificada até à entrada em vigor do actual Código
porque foi só com este Código que se introduziu a ideia da inseparabilidade.
Não parece seja assim. É que o regime da caducidade, com a consequente reversão da água
para o domínio público, torna impossível a aquisição do direito à água por usucapião - PLAVarela, III,
333.
A ideia da caducidade do direito à água vem já do art. 34º da Lei das Águas que fazia reverter
estas águas ao domínio público se usadas para fim diferente ou abandono do aproveitamento.
No período de vigência do Cód. de 1867, até 1919 - data de entrada em vigor da Lei das
Águas, o Dec. 5787-IIII, de 10.5.1919 - era possível adquirir direitos sobre águas originariamente
públicas por escritura ou auto público (439º), mas não com base na posse porque todas as águas,
mesmo as originariamente particulares, foram declaradas insusceptíveis de usucapião pelos art. 439º e
444º, parágrafo único, daquele Código - H. Mesquita, Lições, n. 1 a pág. 230.
Enquanto águas particulares, no domínio privado, nos termos do art. 1386º CC, o titular destas
águas pode, como proprietário que é, socorrer-se do estatuto normal do domínio, intentando, por
exemplo, para defesa do seu direito, acções de reivindicação, acções possessórias, etc.

Não deve confundir-se não uso com abandono. Este assenta sobre uma intenção de renúncia
à água, que nem sempre se verifica no não aproveita-mento, acidental ou transitório, do uso a que o
titular tem direito, que pode não usar a água por variadas circunstâncias, sem perder o direito a elas.
1398º
Sob a epígrafe - condomínio das águas - regula a lei situações semelhantes à
compropriedade, com regime idêntico ao para esta figura consagrado no art. 1411º: o da contribuição
para as despesas necessárias à conservação ou fruição da coisa comum, na proporção das
respectivas quotas.
A lei fala em co-utentes, abrangendo assim comproprietários e titulares de um direito exclusivo
sobre uma parte da água.
Há comproprietários antes de partilhada a água, quando os contitulares têm direito a uma
quota ideal do todo; depois da partilha há direito exclusivo, de propriedade, ou condomínio sobre a
respectiva fracção da água, como acontece quando o indivíduo é dono de determinado caudal de água
ou de toda a água durante certas horas por dia ou em determinados dias da semana, etc.
Trata-se de um caso de obrigação real, pois o condómino da água não pode, contra a vontade
dos outros e diferentemente do que sucede na compro-priedade com despesa anteriormente aprovada
(1411º, nº 2), renunciar ao seu direito para se eximir ao encargo de contribuição para as despesas.
Não me parece que os simples utentes das águas sobejas do prédio superior estejam também
abrangidos neste comando legal, dada a situação precária, de mera tolerância, em que se encontram,

202
podendo o proprietário superior em qualquer altura aproveitar toda a água sem que isso constitua
violação de direito - 1391º, in fine.

1399º, 1400º e 1401º

Tal como acontece na compropriedade - 1412º, 1 - nenhum contitular de águas fruídas em


comum é obrigado a permanecer na indivisão, podendo proceder-se à partilha judicial (1052º e ss
CPC) ou extrajudicialmente.

«Diferentemente, o tempo de utilização das águas, no período de rega (v. al. p) da especificação), encontra-se
definido há mais de vinte anos.
Ora, quanto à divisão de águas, há que distinguir três hipóteses quanto aos termos da divisão:
A) - A primeira, é a de haver título que especifique o direito de cada um dos contitulares da água; nesse caso, a
divisão deve ser realizada em conformidade com as indicações do título;
B) - A segunda, é a de, na falta ou insuficiência do título, haver um regime estável e normal de distribuição,
observado pelos interessados há mais de vinte anos, regendo para essa hipótese o artº 1400º;
C) - A terceira hipótese é a de não haver título bastante nem costume juridicamente relevante na repartição. Para
esta hipótese, determina o artº 1399º, reproduzindo a doutrina do direito anterior, que se deve atender, na divisão
quantitativa da água, à superfície, necessidades e natureza da cultura dos terrenos a regar (cfr. P.de Lima e A.Varela,
C.Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 336).
Quanto ao período de rega propriamente dito, está provado qual o tempo de utilização das águas pelos AA. e
esse costume é seguido há mais de 20 anos. Logo, na divisão das águas devem respeitar-se as próprias indicações do
título de aquisição do direito às águas.
Quanto à merugem, o título de aquisição do direito às águas abrange essa faculdade de utilização, mas é
insuficiente quanto à forma de divisão das águas no período de merugem.
Estando provado que "há cerca de 15 anos foi, pelos interessados, acordado e adoptado para a merugem, o
período que a cada um cabia na rega", não sabemos se é há exactamente 15 anos, há mais ou há menos de 15 anos, nem
se esse período de tempo se conta a partir da data da instauração da acção ou da data do acórdão que recaiu sobre a
matéria de facto.
Na insuficiência do título, poderíamos recorrer a um regime estável e normal de distribuição das águas, se o
costume fosse seguido há mais de 20 anos.
De facto, nos termos do artº 1400º, nº 1, do C.Civil, "As águas fruídas em comum que, por costume seguido há
mais de 20 anos, estiverem divididas ou subordinadas a um regime estável e normal de distribuição continuam a ser
aproveitadas por essa forma, sem nova divisão".
A disposição do artº 1400º corresponde ao artº 101º, do Anteprojecto de P.de Lima e o nº 1 daquele artigo
corresponde, com alteração, ao artº 133º, nº 1, da lei de Águas.
O costume referido na disposição (artº 1400º, nº 1), não é o costume local ou o uso geral da terra, nem é o direito
consuetudinário, nem a posse antiga ou prescrição, mas sim meros costumes de facto seguidos pelos interessados em
cada aproveitamento das águas.
Segundo a doutrina exposta por P.de Lima (Rev.Leg.Jur., ano 92º, págs. 63, citado por Tavarela Cabo, ob.cit.,
vol. II, pág. 118), o sentido e o alcance do uso e costume assentava em três princípios:
a) - "O uso e costume não legitima um direito originário sobre as águas;
b) - O uso e costume pode indicar, porém, quem são os titulares do direito;
c) - O uso e costume determina, só por si, a medida do direito de cada utente".

Relativamente ao caso "sub judice", podemos, por isso, concluir:


1 - Relativamente ao período de rega propriamente dita, as indicações do título - usucapião - de aquisição do
direito às águas, são suficientes para deverem ser respeitadas quanto à fruição e divisão das águas;
2 - Essas indicações também são suficientes para abranger na utilização das águas, não só a rega propriamente
dita, mas também a merugem;
3 - No entanto, devido à insuficiência do título e à inexistência de costume seguido há mais de 20 anos (cfr. artº
1400º, nº 1, do C.Civil), não pode considerar-se juridicamente relevante, para o efeito da divisão das águas no período de
merugem, o acordo que os interessados adoptaram e que é referido na resposta aos quesitos 15º e 18º - Ac. da R.ão de
Coimbra, de 21.1.1997, Col. JUr. 97-I-35/36.

Nesta matéria de divisão de águas há que considerar três hipóteses:

203
I - Existência de título (1399º, 1ª parte) - a divisão das águas faz-se de acordo com os direitos
que o título atribui a cada um dos contitulares;

II - Falta ou é insuficiente o título, mas há um regime estável e normal de distribuição,


observado pelos interessados há mais de vinte anos - continua a fazer-se o aproveitamento por essa
forma costumeira, não se procede a nova divisão - 1400º, nº 1, in fine.
Não pode considerar-se costume juridicamente relevante, conducente a um regime estável e
normal de distribuição, qualquer dos costumes abolidos pelo art. 1401º, por antieconómicos e
geradores de conflitos, se é que algum desses costumes abolidos podia considerar-se costume neste
sentido de causal de distribuição estável e normal de distribuição da água.
Para ser relevante o costume há-de ser seguido há mais de vinte anos.

III - Não há título nem costume juridicamente relevante: procede-se à divisão de acordo com
os critérios fixados no art. 1399º: em proporção da superfície, necessidades e natureza da cultura dos
terrenos a regar, por tempo ou caudal.
O costume referido neste art. 1400º nada tem a ver com os usos, o direito consuetudinário a
que se refere o art. 3º CC.
Trata-se dos meros costumes de facto, seguidos pelos interessados em cada aproveitamento
da água. São uma forma de repartição da água, tacitamente acordada entre os consortes e que
ganhou relevância pela duração superior a vinte anos.
Quando não seja possível provar a autoria das obras de pré-ocupação, dada a sua
antiguidade, deve presumir-se que a autoria da preocupação pertence aos antecessores dos utentes
que venham aproveitando a água segundo partilha por costume relevante e antes do Código de
Seabra - H. Mesquita, 229.

O costume aqui em vista não atribui direitos à água, de propriedade ou quaisquer outros.
Limita-se a dar certo efeito jurídico a um uso tradicional que, em relação à água, lhe dão determinados
fruentes, considerando-a, por essa forma, dividida. O costume dá, apenas, a medida do direito de cada
co-utente. Quando muito, pode dizer-se que ressalva o direito adquirido à água, se ele já existir, mas
não visa a sua criação. O costume não constitui título de aquisição originária da água.

No ensinamento de H. Mesquita, se os co-utentes forem donos da água, o uso e costume de


facto funciona como um título que faz cessar a compropriedade, convertendo-a em condomínio;
quando a água lhes não pertença, o uso e costume terá apenas o efeito de determinar a medida da
utilização por cada um deles, mas sempre a título precário, sujeitos, a todo o tempo, ao direito de
desvio ou reivindicação do proprietário - 1400º, nº 2.

No nº 2 do art. 1400º estende-se a obrigatoriedade do costume a quem usa as águas sem,


todavia, a elas ter qualquer direito estável e absoluto. Porém, para que, ainda que condicionalmente, a
divisão possa aproveitar a estes co-utentes, é preciso que eles, por si e seus antecessores, tenham
estado na fruição (partilhada, dividida) da água de forma estável e normal, durante mais de vinte anos.

1402º

Trata-se de disposição interpretativa, que cede sempre que seja possível demonstrar o
emprego das expressões aí referidas com um sentido diferente daquele que a lei lhes atribui. Este
sentido legal só prevalece em caso de dúvida.

SERVIDÕES PREDIAIS

204
1543º a 1575º

Conceito e conteúdo - 1543º e 1544º - Servidão predial é o encargo imposto num prédio em
proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à
servidão e dominante o que dela beneficia.
Deste conceito legal resulta que, superada a estrutura feudal da propriedade e com a
legislação liberal saída da Revolução francesa, entre nós mais marcada com a extinção das lutuosas e
de outros encargos sobre os bens por Mouzinho da Silveira, não há hoje servidões ou encargos sobre
prédios a favor de pessoas mas só de outros prédios.
É claro que titulares da servidão são as pessoas, os donos dos prédios dominantes e sujeitos
passivos são os donos dos prédios servientes, pois só as pessoas podem ser titulares ou sujeitos de
direitos (art. 67º do CC). O que se quer dizer com isto é que as utilidades próprias das servidões são
propor-cionadas por um prédio em favor de outro prédio.

Assim, se A celebrar com B um contrato pelo qual aquele adquire o direito de passear ou
caçar em prédio deste, estamos perante simples direito de crédito, obrigacional, sem as características
de direito real, porque não se criou qualquer utilidade para outro prédio, como é característico das
servidões - 1543º - e porque vigora para os direitos reais o princípio da tipicidade - 1306º, nº 1.
Já se aquele contrato visasse constituir o mesmo direito em favor de um prédio diferente,
como o de os hóspedes do hotel ou clínica de A passearem no parque de B, então estaríamos perante
o direito real de servidão.

PLAVarela – C. C. Anotado, III, 613, destacam as seguintes notas:

a) - A servidão é um encargo, um direito real limitado, um jus in re aliena, uma restrição ao


direito de propriedade do prédio onerado ou serviente, mas não, como no direito romano, uma fonte de
fraccionamento do direito de propriedade, pela qual o dono do prédio dominante ficava proprietário da
faixa de terreno por onde se fazia a passagem ou do leito por onde corria a água.
b) - Sobre um prédio - Assinala-se aqui o carácter real da servidão que se traduz num poder
directo e imediato sobre o prédio onerado, como é próprio de todo o direito real.
Isto significa, praticamente, além de tudo o mais, que a servidão não é oponível apenas ao
proprietário do prédio onerado (por ela especialmente atingido no seu dominium), mas a todos os
terceiros (credores, arrendatários do prédio, titulares de outras servidões, etc.), e que ela vale tanto em
relação ao primitivo proprietário, como em relação aos futuros adquirentes.
c) - Em proveito de outro prédio e não em favor de uma pessoa, tal como hoje se não concebe
uma servidão sobre uma pessoa em favor de um prédio - servidões da gleba.
d) - prédios pertencentes a donos diferentes - Nemini res sua servit. Visto o conteúdo do direito
de propriedade, o proprietário pode constituir sobre um seu prédio os encargos que entender em favor
de outro prédio seu. Mas este encargo só adquire características de servidão quando o prédio passar a
dono diferente, como acontece nas servidões por destinação do pai de família.

Nada impede, porém, que o proprietário de um prédio constitua uma servidão sobre um outro
de que ele seja mero comproprietário, ou a que, inversamente, os comproprietários de certo prédio
adquiram uma servidão sobre um outro prédio, pertença exclusiva de um deles (R.ão de Coimbra, Ac.
de 19.6.01, na Col. Jur. 2001-III-37, com apoio em PLAV, Anotado III, 617:

São quatro as notas essenciais da servidão predial:


a) - é um encargo;
b) - recai sobre um prédio;

205
c) - em benefício de outro prédio;
d) - os prédios hão-de pertencer a donos diferentes.
É a última nota que está em causa no presente recurso: donos diferentes.
Se o dono de ambos os prédios é o mesmo, ele tem a plenitude do direito de propriedade sobre o prédio
serviente, e portanto não carece de constituir sobre ele qualquer outro direito. A propriedade tem um conteúdo de tal modo
rico e elástico, que nele cabem todas as faculdades de que os seu titular goza em relação à coisa. Por consequência, se o
proprietário de um prédio fizer através dele passagem para a exploração do outro prédio, só impropriamente se diria que
ele exerce um direito de servidão sobre o primeiro, visto que para legitimar tal passagem basta a invocação da sua plena
potestas. Ele utiliza os prédios, nesse caso, não iure servitutis, mas iure dominii..
É este fundamento que está condensado no princípio nemini res sua servit, princípio este em que encontra
fundamento quer a constituição da servidão por destinação de pai de família, consagrada no art. 1549º, que se dá quando
os prédios, serviente e dominante, deixam de pertencer ao mesmo dono, quer a extinção da servidão da reunião dos dois
prédios, dominante e serviente, do domínio da mesma pessoa, consagrada no art. 1569º, nº 1, a).
Se é certo que, em homenagem ao referido princípio, é impossível que o proprietário constitua em direito de
servidão sobre o seu próprio prédio, menos certo é que, se os dois prédios pertenceram ao mesmo dono, e houver sinais
visíveis e permanentes que revelem serventia de um para com o outro, serão esses sinais havido como provada de
servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios vieram a reparar-se: é o que dispõe o art. 1549º.
O Sr. Juiz “a quo” não foi assim coerente com o raciocínio que fez para não reconhecer a constituição da
servidão, pois que o fundamento que indicou para não se constituir a servidão de passagem - o nemini res sua servit - se
porventura ocorresse no caso, haveria de ser usado para concluir pela constituição da servidão por destinação de pai de
família, a partir do momento em que o domínio dos prédios se separou.
Só que no caso não estamos, tão pouco, perante uma situação em que se aplicou o dito princípio, pois que não
há total coincidência entre o dono do prédio dominante e o dono do prédio serviente: o prédio dominante, prédio urbano,
pertence ao Manuel, enquanto o prédio serviente, prédio rústico, pertence ao Manuel e a seus irmãos. Não se pode, pois,
dizer que seja o mesmo o dono de ambos os prédios.
Se os donos do prédio urbano fossem os mesmos do prédio rústico - o Manuel e os mesmos irmãos - nenhumas
dúvidas haveria quanto à constituição por destinação do pai de família, da previsão do art. 1549º. Mas não o sendo, já não
pode ocorrer essa situação: a servidão só pode ser constituída por um dos títulos normais, que são os três primeiros
referidos no art. 1547º, nº 1: nada obsta, pois, a que o proprietário de um prédio constitua uma servidão sobre um outro de
que ele seja mero comproprietário, bem como inversamente, os comproprietários de certo prédio adquiram uma servidão
sobre um prédio, pertença exclusiva de um deles.
Assim sendo, está ultrapassado o obstáculo que impediu o Sr. Juiz “a quo” de não reconhecer a peticionada
servidão de passagem: está apurado que há mais de 20 anos o Manuel está na posse daquela serventia, posse essa
adornada das características que conduzem ao reconhecimento do respectivo direito por usucapião e, assim, e por aí ter
acesso à sua casa.

Quanto ao conteúdo das servidões rege o art. 1544º. Podem ser as mais variadas, futuras ou
eventuais, mesmo que não aumentem o valor do prédio dominante.
Mas é necessário ter em conta outras normas legais, designadamente no caso de servidão de
escoamento:
Se as águas decorrem, naturalmente e sem obra do homem, de um prédio superior para um
prédio inferior, nos termos daquele preceito (1351º), haverá uma simples limitação ao direito de
propriedade, que decorre imediatamente da lei, mas não um encargo adicional.

A servidão de escoamento pressupõe a realização de obras que desviem o curso natural das
águas ou que provoquem a derivação de águas que tenderiam a ficar estagnadas no prédio
dominante.
A servidão legal de escoamento distingue-se do encargo do artigo 1351.°, designadamente,
pela necessidade de um acto constitutivo, que pode ser contrato, testamento, destinação de pai de
família, usucapião, sentença judicial ou decisão administrativa.
Ora, se na limitação imposta pelo artigo 1351°, n.° 1, aos prédios inferiores apenas se
compreendem as águas que decorrem naturalmente e sem obra do homem dos prédios superiores,
excluindo-se, designadamente, as águas nocivas, ou inquinadas, contendo matérias imundas ou a que
se juntaram quaisquer outras substâncias, por obra do homem, que as tornaram nocivas, igualmente a

206
aqua nocens terá de se considerar excluída do objecto da servidão legal de escoamento que, com um
tal conteúdo, é insusceptível de ser constituída por usucapião - BMJ 410-776.

São características da servidão:

I - Inseparabilidade - 1545º, nº 1 - é corolário do princípio de que as utilidades do prédio


serviente devem, têm de ser gozadas através do prédio dominante. É expressão da aderência da
servidão ao prédio.
Se o direito de aproveitar em certo prédio a água da fonte ou nascente alheia for afectado a
outro prédio, por cujas necessidades o direito se passa a aferir, haverá extinção da primitiva servidão e
constituição de uma nova servidão.

Adquirida por escritura pública parte da água de uma mina localizada em prédio rústico do vendedor, para irrigar
um prédio do comprador da mesma, há servidão de águas e não propriedade.
Tendo o seu comprador vendido o prédio por elas irrigado, não pode prevalecer-se da servidão, por esta ter de
ser gozada através desse prédio (prédio dominante) do qual não pode separar-se - Col. 97-V-181.

II - Indivisibilidade - 1546º - Se o prédio for dividido, a servidão que o onerava continuará


onerando todas as suas partes; mas se, por sua natureza, o exercício da servidão recair só numa das
parcelas, só esta continuará onerada - Col. 84-V-264.
Tudo se passa, em relação ao objecto e ao exercício da servidão, como se não tivesse havido
divisão.

III - Atipicidade do conteúdo - já apreciada a propósito do conteúdo da servidão - 1544º:


quaisquer utilidades, ainda que futuras ou eventuais, susceptí-veis de ser gozadas por intermédio do
prédio dominante.

IV - Ligação objectiva da servidão - Ressalta aqui a absoluta ligação, a aderência da servidão


ao prédio, o que caracteriza este direito como direito real em confronto com o direito de crédito que
não onera senão o contratante (art. 406º CC) e não também o adquirente do prédio.

As servidões, como tudo na vida, nascem, vivem e morrem.


Daí que a lei trate em capítulos separados a constituição (princípios gerais e especiais), o
exercício e a extinção das servidões.

Constituição - Princípios gerais - art. 1547º a 1549º

Uma primeira distinção é necessário fazer entre servidões voluntárias ou por facto do homem
e servidões legais. Mas há que entender em termos hábeis estas palavras voluntárias e legais.
As voluntárias constituem-se por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de
família - 1547º, nº 1; as legais podem constituir-se voluntariamente pelos mesmos meios, mas têm de
característico poderem ser constituídas também, na falta de constituição voluntária, por sentença
judicial ou, se caso disso, por decisão administrativa - 1547º, nº 2.
Se as servidões legais fossem, na verdadeira acepção do termo, «legais», resultariam ipso
jure da lei e não estaríamos então perante verdadeiras servidões, mas perante restrições objectivas
aos direitos reais.
O que precisamente distingue as servidões das restrições é que aquelas têm origem num acto
(negócio jurídico ou sentença) e estas resultam ipso jure de uma dada situação de facto em que ab
origine se encontram os prédios por elas afectados.

207
Pelo simples facto de um prédio se situar em nível inferior a outro está ele sujeito à restrição
(1351º) de receber as águas que sem obra do homem, naturalmente, escorrem do prédio superior;
mas para que este mesmo prédio inferior fique sujeito a servidão de escoamento é já necessário um
acto de constituição da dita servidão.

Num primeiro momento, a servidão legal é um simples direito potestativo que confere ao
respectivo titular a faculdade de constituir uma servidão sobre determinado prédio, independentemente
da vontade do dono deste.
Num segundo momento, exercido o direito potestativo e constituída assim, por acordo das
partes ou, na falta de acordo, por sentença ou acto administrativo, a relação de carácter real a que
tendia esse direito, a servidão legal converte-se numa verdadeira servidão, ou seja, num encargo
excepcional sobre a propriedade. Quer isto dizer que, nas servidões legais, a verdadeira servidão só
mediatamente é imposta por lei; a fonte imediata desta reside na vontade das partes, na sentença
constitutiva ou no acto administrativo.

O que verdadeiramente caracteriza a servidão legal é o facto de, para aqueles casos
especialmente previstos na lei, o proprietário do prédio dominante poder impor ao dono do prédio que
virá a ser o serviente, contra a vontade deste, a servidão que a lei previu. Não que não possam as
partes acordar na sua constituição.
Em confronto com as demais servidões e quanto ao modo por que podem constituir-se, as
servidões legais distinguem-se apenas pela possibilidade de, na falta de constituição voluntária, serem
impostas coercivamente.
Verificando-se os pressupostos que permitem impor uma servidão legal, a servidão que se
constituir deve considerar-se sempre legal, mesmo que não tenha sido coactivamente actuada - H.
Mesquita, RLJ 129º-255.

O legislador, de resto, nas duas únicas normas em que consagra um regime especial para as
servidões legais (1555º - direito de preferência na alienação de prédio encravado - e 1569º, nº 3 -
extinção das servidões legais), diz expressamente que tal regime se lhes aplica qualquer que tenha
sido o modo por que se hajam constituído.

Assim, constituída por usucapião uma servidão de passagem que podia ser coercivamente
imposta - 1550º - e por isso é uma servidão legal, o proprietário do prédio onerado tem direito de
preferência, nos termos do art. 1555º, apesar de a servidão se ter constituído por via possessória , por
usucapião. Contra, o Ac. na Col. STJ 94-I-75, comentado desfavoravelmente por H. Mesquita na nota
1 da RLJ 129-256.

Direito de preferência Servidão de passagem


Servidão legal

I - O proprietário onerado com servidão legal de passagem tem direito de preferência, no caso de venda ou dação
em cumprimento do prédio dominante.
II - Mas a servidão tem de existir, estar constituída ou reconhecida, por qualquer título constitutivo, como a
vontade das partes, sentença judicial ou acto administrativo, de harmonia com as disposições coordenadas dos art.ºs 1547,
n.º 2, e 1555, n.º 1, do CC.
III - Se não estiver demonstrada essa existência, constituição ou reconhecimento, fica prejudicado o direito de
preferir - Ac. STJ (Ex.mo Cons.º Neves Ribeiro) de 18-11-2004, Revista n.º 3602/04 - 7.ª Secção

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Ferreira Ramos de 24.2.1999, Pr.º 98A1016:

I - As servidões legais podem ser constituídas por sentença judicial, por decisão administrativa e voluntariamente,
sendo possível, neste caso, a constituição por contrato, por testamento, por usucapião e por destinação do pai de família.

208
II - Apenas quanto às servidões não aparentes é de excluir, por disposição expressa da lei, a sua constituição por
usucapião.
III - O direito de preferência concedido no artigo 1555º do C. Civil existe qualquer que tenha sido o título
constitutivo da servidão legal de passagem em causa.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Alves Velho) de 8.5.2007, no P.º 07A767:



«Sob a epígrafe “direito de preferência na alienação de prédio encravado”, o art. 1555º estabelece que “o
proprietário de prédio onerado com a servidão legal de passagem, qualquer que tenha sido o título constitutivo, tem direito
de preferência, no caso de venda (…) do prédio dominante”.
Aos requisitos de constituição de servidão legal de passagem refere-se o art. 1550º, atribuindo ao proprietário de
prédio encravado – o que não tenha comunicação com a via pública, que tenha comunicação insuficiente ou que o seu
estabelecimento seja excessivamente incómodo ou dispendioso (encrave absoluto ou relativo) – a faculdade de exigir a
constituição da servidão sobre prédio vizinho.

Vê-se, assim, que a lei faz depender o direito legal de preferência, ao que aqui importa pôr em evidência, de dois
pressupostos essenciais:
- Que o prédio do proprietário preferente esteja onerado com servidão legal de passagem, ou seja, ao regime de
servidão imposta por lei, ao abrigo do regime do art. 1550º, ou seja, devido à situação de encrave do prédio dominante que
legitima ao seu proprietário a faculdade de exigir a constituição da servidão de passagem; e,
- Que a servidão de passagem esteja constituída, isto é, não bastará a situação de encrave e a possibilidade de
exercício do direito de exigir a passagem; há-de haver já um título que legitima a passagem sobre o prédio do preferente
para acesso ao prédio alienado.

No caso, nenhuma dúvida há de que a factualidade provada configura a existência de uma servidão de passagem
constituída por usucapião (art. 1547º-1 C. Civil).

Por outro lado, não se questiona que a matéria de facto provada mostra que o prédio vendido, preferendo e
dominante confronta de todos os lados com outros prédios rústicos, sem qualquer acesso à via pública a não ser através do
prédio da Recorrida-preferente e da dita servidão.
Está-se, pois, perante prédio encravado, como aludido nos convocados arts. 1550º e 1555º, logo perante um
prédio cujo proprietário, a não beneficiar da passagem já constituída, sempre teria, ou tem, a faculdade de exigir a sua
constituição, com o mesmo conteúdo ou com conteúdo equivalente.
Numa palavra, o dono do prédio dos Recorrentes, apesar de beneficiar do direito de passagem constituído por
usucapião, como provado, nem por isso, e apesar disso, estaria privado do direito potestativo de constituir a servidão se,
por exemplo, o exercício daquela se tornasse impossível ou, por qualquer razão, v.g, o não uso (art. 1569º-1-b)), ocorresse
a extinção.

3. 2. 2. - Decorrendo mediatamente da lei, a servidão legal, podendo ser constituída por sentença, onde encontra
a sua fonte mais natural por poder ser imposta coercivamente, também pode ser constituída por qualquer das outras
formas admitidas na lei – art. 1547º-2 C. Civil
Nada obstará, pois, que uma servidão legal de passagem possa ter como título constitutivo a usucapião ou outra
forma de constituição voluntária. Será até natural, desde logo por razões de boa vizinhança, que se aceite que o confinante
encravado exerça passagem para normal exploração de seu prédio sem exigência de declaração judicial e indemnização.
Trata-se, afinal, de reconhecer um direito.

Por isso se tem afirmado que, correspondendo ao direito potestativo de a constituir, a servidão legal só
mediatamente decorre da lei, resultando a sua verdadeira fonte ou modo de constituição da vontade das partes, de
sentença constitutiva ou de acto administrativo, “com suporte naquele direito”. Essencial para a constituição da servidão
legal é a situação de prédio encravado (ac. STJ, de 18/11/04 e de 9/7/98, ITIJ-proc. n.º 04B3602 e 98A517).

Com efeito, explicitando melhor, na servidão legal confere-se o poder legal para constituir a servidão. A servidão
é imposta por lei embora não resulte imediatamente dela, isto é, a lei não basta para a sua constituição.
Para que tais servidões se constituam é necessário, na falta de acordo das partes, que se verifique se existem ou
não as condições legais para eu seja imposta a servidão e a sua constituição autorizada.

Enquanto a servidão não está constituída traduz-se numa restrição legal ao direito de propriedade mas, uma vez
constituída, fica sujeita ao regime que as outras servidões cuja constituição não é imposta por lei têm.

209
Por isso se referiu já que quando se fala em servidão legal se tem em vista o também mencionado poder legal
para a constituição, correspondente a um primeiro momento atinente ao encargo legal sobre o prédio. Depois, há um
segundo momento, a distinguir daquele, em que a restrição legal se transforma, como em qualquer outra servidão, em
encargo excepcional, em servidão propriamente dita. Tal sucede quando o titular da restrição legal, por acordo com o outro
proprietário ou através de acção judicial e coactivamente vê constituída a servidão.
Na verdade, sendo as servidões legais apenas impostas por lei mediatamente, tal significa e exige que a sua constituição
fique dependente da intervenção das pessoas, da prática “de um facto voluntário do qual imediatamente derivam” (PIRES
DE LIMA, “Lições de Direito Civil –Direitos Reais”, comp. de DAVID A. FERNANDES, 3.ª ed., 302 e 317).

3. 2. 3. - Assim, a par das servidões voluntárias propriamente ditas, pode falar-se em servidões constituídas
voluntariamente, apesar de poderem ser impostas coercivamente. Tratar-se- -á daquelas hipóteses em que,
concorrendo os pressupostos de constituição da servidão (legal) por via judicial, os interessados, reconhecendo-os,
constituem o encargo por acordo.
Quando tal suceda, a coincidência e coexistência dos requisitos de constituição da servidão legal, no momento da
constituição da servidão voluntária com o mesmo conteúdo, é de molde a justificar a aplicação do mesmo regime,
independentemente da forma de constituição ou, nas palavras da lei, “qualquer que tenha sido o título constitutivo”.

Efectivamente, sendo o escopo da preferência legal “pôr cobro a situações em que se possa recorrer a meios de
soberania para constituir servidões ou em que a ameaça a esse recurso conduza, ou possa conduzir, a uma «contratação»
não inteiramente livre” (MENEZES CORDEIRO, “Servidões legais e direito de preferência”, CJ XVII-I-77), não se vê que,
perante o que se deixou dito, essa ratio legis não esteja presente.

Conclui-se, pois, com a jurisprudência largamente dominante, que o conceito de servidão legal, para os fins
previstos no art. 1555º, abrange as servidões constituídas por qualquer título, mas que, se não fosse a existência desse
título, podiam ser judicialmente impostas, e não apenas as que tenham por título a sentença, concedendo o direito de
preferência aos proprietários de prédios onerados com o encargo legal de constituição de servidão, encontrando-se esta
efectivamente constituída, qualquer que tenha sido o título, nomeadamente por usucapião (cfr., por todos, o ac. deste
Supremo de 24/2/99, in BMJ 484º-389 (98A1016-ITIJ).

O prédio dos Recorrentes encontrava-se, por ocasião da venda, nessas condições, pelo que não merece censura
o decidido das Instâncias.»

Caracterizadas as servidões legais e voluntárias é tempo de analisar as várias formas de


constituição previstas no art. 1547º.

São elas:
a) - Contrato - por título oneroso ou gratuito mas sempre por escritura pública e registável, nos
termos dos Cód. Notariado e do R. Predial, por incidir sobre imóveis.
b) - Testamento -
c) - Usucapião - nos termos gerais desta figura baseada na posse e no decurso do tempo, mas
não aplicável às servidões não aparentes, aquelas que se não revelam por sinais visíveis e
permanentes (1548º, nº 2) como porta, rego, caminho trilhado e demarcado, janela. Se bem que a
servidão possa ser descontínua mas aparente, como é o caso da servidão de rego ou aqueduto que só
é aparente no tempo da rega.
Trata-se aqui da mesma questão de segurança pela publicidade (que substitui o registo)
consagrada para a posse conducente à aquisição da proprie-dade (aqui o direito real menor que é a
servidão) por usucapião.
A usucapião é a forma mais frequente de constituição de servidões, tanto voluntárias como
legais, entendidos estes conceitos nos termos vistos.

De entre as servidões voluntárias (que não podem ser coercivamnete impostas) convém
destacar, pela sua frequência, a servidão de estilicídio prevista no art. 1365º e a servidão de vistas, ar
e luz - 1362.
1365º

210
A fim de prevenir situações gravosas para os proprietários de prédios confinantes, o nº 1 do
art.º 1365º CC não permite, em princípio, que se edifique telhado cuja beira fique a menos de 50 cm do
prédio vizinho (dois palmos, no direito antigo). Mas se o beiral ultrapassar este prédio pode adquirir-se
servidão de estilicídio (stillicidium vel flumen recipiendi) pelo qual o proprietário do prédio serviente não
pode, nos termos do nº 2 do citado artigo, levantar edifício ou construção que impeça o escoamento
das águas, devendo realizar as obras necessárias para que o escoamento se faça sobre o seu prédio,
sem prejuízo para o prédio dominante - Col. STJ 95-I-43.

Trata-se de servidão contínua e aparente, resultando estas características da existência do


beiral do prédio dominante sobre o prédio serviente.
Se esta situação se mantiver pelo tempo e modo (posse pública e pacífica) bastantes para
usucapião, a servidão constituiu-se por esta forma, vivendo e extinguindo-se como qualquer servidão
voluntária com aquela origem.

1360º e 1362º
Uma das analisadas restrições resultantes da lei ao exercício do direito de propriedade consta
do art. 1360: o proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode abrir nela
janelas ou portas que deitem directa-mente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e cada uma
das obras o intervalo de metro e meio.
A mesma restrição se aplica a eirados, terraços, varandas, escadas exteriores e obras
semelhantes quando sejam servidas de parapeito de altura inferior a metro e meio, em toda a sua
extensão ou parte dela - nº 2.

Sobre estes conceitos pode ver-se o Ac. da R.ão de Coimbra, de 28.10.77, na Col. 77-V-1114.

Se o dono de um prédio transformar um patamar de escadas, uma varanda ou terraço em


marquise, fechando o espaço e construindo janelas sobre o prédio vizinho, a hipótese passa a ser
prevista pelo nº 1 e não fica a coberto da excepção do nº 2, ambos do art. 1360º CC.

Nos termos do artigo 1362º, nº 1, do Código Civil, a existência de janelas, portas, varandas,
terraços, eirados ou obras semelhantes, em contravenção com o disposto na lei (por exemplo, a
deitarem directamente sobre o prédio vizinho) pode importar, nos termos gerais, a constituição de
servidão de vistas por usucapião.
Constituída a servidão, fica onerado o prédio vizinho com este encargo e com a restrição de
não poder o seu dono construir nele a menos de metro e meio - nº 2 do art. 1362º.

Não se consideram abrangidas pelas restrições legais as frestas, seteiras ou óculos para luz e
ar ou janelas gradadas que se situem, pelo menos, a 1,80 cm de altura, a contar do solo ou do
sobrado, e não devam ter, numa das suas dimensões, mais de 15 cm. Podem, em princípio, ser
tapadas pelo vizinho, que mantém a faculdade de, a todo o tempo, levantar casa ou contramuro
porque tais aberturas não levam à constituição de servidão de vistas - 1363º e 1364º.

Temos assim, três tipos de aberturas:


1º - As que têm mais de 15 cm e se integram no conceito normal ou vulgar de janela:
aberturas mais ou menos amplas, onde, no dizer tradicionalista, cabe uma cabeça humana, munidas
de sistemas que podem abrir-se e fechar-se, e permitindo a entrada de ar e luz, e ainda o
debruçamento das pessoas nos seus parapeitos e gozo de vistas, de vidro fosco ou transparente, que
abram mais ou menos ou nem abram; Podem levar à constituição de servidão de vistas por usucapião
- 1362º.
211
2º - As que têm até 15 cm e se situam a mais de 1,80 m acima do solo ou sobrado,
constituindo frestas, seteiras ou óculos, e que se destinam, exclusiva-mente, a permitir a entrada de ar
e luz; Não originam servidão, podendo ser tapadas em qualquer altura, salvo abuso de direito - 1363º,
nº 1 e 1305º.

3º - As que têm até 15 cm, mas se situam a menos de 1,80 m do solo ou sobrado; Abrindo-se
uma fresta, seteira ou óculo, fora das condições prescritas na lei (a fresta tem, por exemplo, numa das
suas dimensões, mais de 15 cm, ou está situada abaixo de 1,80 m), e decorrido o prazo necessário
para haver usucapião, o proprietário adquire uma servidão que, denominada ou não servidão de vistas,
está sujeita ao regime geral das servidões - P.L.-A. Varela, nota ao art. 1363º e BMJ 203-169.

Estas aberturas, não sendo nem janelas nem frestas - estas tal como as caracteriza a lei - são
aberturas com relevo próprio, com conteúdo específico, em termos de constituírem um encargo
imposto sobre um prédio serviente em favor do outro, dominante, pertencente a dono diferente.
Tal encargo traduz-se na impossibilidade de se fazerem, no prédio serviente, obras que
obstem à entrada de ar e de luz, ou seja, que se construa parede encostada de forma a tapar as
aberturas. Esta entrada de ar e luz constitui o conteúdo desta servidão predial - 1544º.
Nada impede que se construa a menos de metro e meio - restrição que só existe para a
servidão de vistas, de janela propriamente dita - mas não pode construir-se por forma a impedir a
entrada de ar e luz, com o que se estorvaria o exercício desta servidão (atípica) que tem aquele
conteúdo permitido pela regra geral do art. 1544º - Ac de 4.12.97, no BMJ 472-471.

Em sentido contrário, o Ac do STJ, de 3.4.91 no BMJ 406-644, que, partindo do princípio da


tipicidade - art. 1306º - decidiu pela irrelevância de aberturas que não fossem janelas ou frestas, como
favoravelmente comentado pelo Prof. H. Mesquita, com diferente fundamentação, na RLJ 128º-126 e
ss:

A abertura de frestas em desconformidade com a lei pode originar a aquisição, por via
possessória, de uma servidão predial que confere ao respectivo titular o direito de manter tais
aberturas em condições irregulares.
Constituída a servidão, o proprietário serviente perde o direito, que antes lhe assistia, de exigir,
através de uma acção negatória, que as frestas sejam modificadas e harmonizadas com a lei. Mas não
sofre qualquer limitação no seu ius aedificandi, podendo construir mesmo junto à linha divisória, ainda
que tape ou inutilize as frestas, porque o artigo 1362º do Código Civil, que estabelece tal limitação (n.°
2), aplica-se apenas às janelas e demais obras nele mencionadas (quando não obedeçam aos
requisitos legais), e não às frestas.

Servidão predial
Servidão de vistas
Janelas Fresta
Usucapião

I - As janelas distinguem-se das frestas não só pelas suas dimensões, mas também pelo fim a que umas e outras
se destinam.
II - As frestas são aberturas estreitas, cuja única função é permitir a entrada de ar e luz, sendo as janelas
aberturas mais amplas, através das quais pode projectar-se a parte superior do corpo humano, e que dispõem de um
parapeito onde as pessoas podem apoiar-se ou debruçar-se e desfrutar comodamente as vistas que proporcionam,
olhando quer em frente, quer para os lados, quer para cima ou para baixo.
III - Só este conceito de janela se adequa à dupla finalidade da restrição estabelecida no n.º 1 do art.º 1360 do
CC: evitar que o prédio vizinho seja facilmente objecto da indiscrição de estranhos, e impedir a sua fácil devassa com o
arremesso de objectos.

212
IV - O Código actual indica expressamente os requisitos próprios das frestas: localização a, pelo menos, um
metro e oitenta de altura, a contar do solo ou do sobrado, e não terem, numa das suas dimensões, mais de 15 centímetros.
V - Só a estas frestas alude o art.º 1363/1 do CC - só elas são aberturas de tolerância - não ficando sujeitas à
restrição estabelecida para a abertura das janelas, guardando, porém, o vizinho, a possibilidade de levantar a todo o tempo
a sua casa ou contramuro, ainda que as vede.
VI - A abertura de frestas sem as características indicadas na conclusão IV pode originar a aquisição, por
usucapião, de uma servidão predial; e, constituída esta, o respectivo titular adquire o direito, que não tinha até então, de
manter essas aberturas em condições irregulares.
VII - Todavia, o proprietário vizinho não perde o direito de construir mesmo junto à linha divisória, mesmo que
tape as frestas, porque a restrição que cria uma zona non aedificandi, não permitindo edificar no espaço de metro e meio,
medido a partir dos limites do prédio, só é estabelecida pela lei em relação à servidão de vistas regulada no art.º 1362, em
cujo campo de aplicação se não incluem as frestas – Ac. do STJ (Cons.º Santos Bernardino ) de 26-02-2004, no Pr.º
03B3498.

I - Constituída servidão de vistas através de janelas é possível manter-se a mesma no caso de demolição e
reconstrução do imóvel onde se encontra constituída.
II - Porém, as mesmas janelas terão de manter a mesma localização e conservar idênticas dimensões.
III - É ao Autor, titular da servidão que quer ver reconhecida, que incumbe o ónus da prova que as novas janelas,
no imóvel reconstruído, mantêm as mesmas localização e dimensões das anteriores - Col. 00-I-33.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Salvador da Costa) de 26.6.2008, no Pr.º 08B1716:

1. A diferença específica entre as frestas e as janelas envolve, além do seu tamanho em largura e altura, a função
de umas e outras.
2. As frestas regulares são janelas muito estreitas, que permitirem a entrada de luz ou a claridade; e as janelas
propriamente ditas, de maiores dimensões, visam essencialmente permitir a visão pelas pessoas de dentro para fora sobre
os prédios vizinhos.
3. As aberturas inseridas nas paredes dos prédios que excedem a dimensão em largura e altura previstas na lei,
mas estão situadas abaixo da altura a contar do solo a que a lei se reporta, são qualificáveis de frestas irregulares, sem a
função de desfrute de vistas, insusceptíveis de constituir o substrato de aquisição do direito de servidão de vistas, inclusive
por usucapião.

«A lei não refere expressamente o conceito de janela, nem o de fresta, pelo que importa interpretá-la com vista a
determinar os contornos de uma e outra realidade que dela indirectamente decorre.
Ela expressa, por um lado, que existência de janelas em contravenção do que dispõe pode importar, nos termos
gerais, a constituição da servidão de vistas por usucapião (artigo 1362º, nº 1, do Código Civil).
E, por outro, que as frestas não se consideram abrangidas pela referida restrição o vizinho, ainda que as vede,
pode levantar a todo o tempo a sua casa ou contramuro (artigo 1363º, nº 1, do Código Civil).
Mas as aludidas frestas, para o efeito, devem situar-se a não menos de um metro e oitenta centímetros de altura
face a ambos os lados da parede ou muro que as insere, a contar do solo ou do sobrado, e uma das suas dimensões não
pode ser superior a quinze centímetros (artigo 1363º, nº 2, do Código Civil).
Assim, as referidas frestas caracterizam-se por se inserirem a não menos de um metro e oitenta centímetros de
altura a contar do solo ou sobrado, altura essa respeitante a ambos os lados da parede em que se encontram, e não terem,
numa das suas dimensões, mais de quinze centímetros.
São-lhe equiparadas para esse efeito as aberturas de maior dimensão da referida, situadas a mais de um metro e
oitenta centímetros do solo ou do sobrado, com grades fixas de ferro ou outro metal, de secção não inferior a um
centímetro quadrado e cuja malha não seja superior a cinco centímetros (artigo 1364º do Código Civil).

Perante este quadro normativo de referência, em que se não caracterizam os conceitos de janela e de fresta, é
livre ao intérprete considerar que as mencionadas expressões assumem o sentido que lhes é dado na linguagem corrente,
ou seja, no de aberturas nas paredes exteriores dos prédios, a última chamada abertura de tolerância.
Mas a dimensão das mencionadas aberturas não superior a quinze centímetros e a sua localização a não menos
de um metro e oitenta centímetros a contar do solo ou do sobrado, conforme os casos, visa obstar a que por elas ocorra o
devassamento dos prédios vizinhos situados nos limites do seu enfiamento imediato.
A expressão janela, derivada do latim janua, com o sentido de porta ou entrada, que é o comum, traduz-se numa
abertura feita na parede externa das casas, em regra para a entrada de ar e luz no seu interior e para desfrute de vistas.
No âmbito da variedade das janelas, distinguem-se as externas ou de peito - inseridas acima do solo ou do
sobrado, com peitoril ou parapeito, em que se apoiam os braços quando as pessoas nelas se debruçam – e as de sacada,
cujo conceito aqui não releva.

213
Em sentido jurídico, o conceito de janela abrange, além da abertura mencionada, os elementos materiais que a
compõem, por exemplo as vidraças, ou seja, as peças de vidro ou de plástico que se colocam no respectivo vão para que
penetre a luz e se evite a entrada do ar.
Tendo em conta a dimensão máxima prevista na lei para tais aberturas, poder-se-á afirmar, por um lado, que as
frestas, tal como a lei as configura, significam as janelas muito estreitas, de modo a permitirem a entrada de luz ou da
claridade.
E, por outro, que a diferença específica entre as janelas, por um lado, e as frestas, por outro, é o tamanho em
largura e altura e a função de umas e outras, quanto às primeiras, ao invés das últimas, a de permitir a visão pelas pessoas
de dentro para fora.

2.
Continuemos, com a análise da subquestão da qualificação jurídica das aberturas inseridas nas casas dos
recorrentes.
Os prédios dos recorrentes confrontam a nascente com o prédio dos recorridos, e nas suas traseiras, na parede
do rés-do-chão, do lado nascente, cada um dos primeiros insere duas aberturas que deitam directamente para o prédio dos
últimos e distam 50 centímetros do solo.
As suas dimensões variam em largura e altura, respectivamente, nos termos seguintes: 55 centímetros e 30
centímetros; 80 centímetros e 30 centímetros; 1 metro e 52 centímetros; 46 centímetros e 47 centímetros; 50 centímetros e
42 centímetros; e 65 centímetros e 30 centímetros.
Em seis das referidas aberturas existe caixilharia de alumínio e vidros de abrir, e, nas quatro restantes, similar
tipo de caixilharia e vidros de correr.
As aberturas insertas nas paredes dos prédios dos recorrentes, excedem significativamente a dimensão em
largura e altura a que a lei se reporta, mas situam-se muito abaixo da altura a contar do solo legalmente prevista.

As janelas, para efeito de aquisição do direito de servidão de vistas, devem ter sido construídas a fim de propiciar
o desfrute dessa utilidade, a visão de dentro para fora, naturalmente com estrutura, incluindo a de localização, que o
permita.
Embora as aberturas em causa permitam aos recorrentes avistar o prédio dos recorridos, a sua estrutura não é
vocacionada para o desfrute da utilidade das vistas em termos de direito real de servidão a que se reporta o artigo 1362º, nº
1, do Código Civil.
Trata-se, não de janelas com a função que lhe é própria, mas de frestas irregulares, porque têm dimensão
excedente à prevista na lei e se situam a altura inferior ao que ela prescreve.
Assim, embora se trate de aberturas de maiores dimensões do que aquelas que a lei reserva às frestas, e
permitam avistar o prédio dos recorridos, e, porventura, de algum modo, devassá-lo, não foram construídas para o desfrute
das vistas, como, aliás, resulta da sua localização nas paredes traseiras dos prédios e a altura de apenas meio metro em
relação ao solo.

3.
Prossigamos, com a análise da subquestão de saber as referidas aberturas são ou não legalmente susceptíveis
de constituir substrato de aquisição do direito de servidão de vistas.
A regra é no sentido de que não é permitida a constituição, com carácter real, de restrições ao direito de
propriedade, salvo nos casos previstos na lei (artigo 1306º, nº 1, do Código Civil).
Trata-se de um normativo conforme com o que se prescreve noutro passo da lei, segundo o qual o proprietário
goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, nos limites da lei e
das restrições por ela impostas (artigo 1305º do Código Civil).
Nessa conformidade de princípios, o proprietário que no seu prédio levantar edifício ou outra construção não pode
neles abrir janelas que deitem directamente sobre o prédio vizinho sem deixar entre este e aqueles o intervalo de um metro
e meio (artigo 1360º, nº 1, do Código Civil).
Em quadro de restrição ao conteúdo normal do direito de propriedade relativo ao prédio vizinho, a existência de
janelas em contravenção do disposto na lei é susceptível de importar, nos termos gerais, a constituição de servidão de
vistas por usucapião (artigo 1362º, nº. 1, do Código Civil).
É neste quadro legal do conteúdo normal do direito de propriedade que deve interpretar-se a lei no sentido de
determinar se as aberturas em causa, qualificáveis como frestas irregulares, são ou não susceptíveis de justificar a
constituição do direito de servidão de vistas.
A circunstância de o artigo 1364º do Código Civil equiparar às frestas, para o efeito previsto no nº 1 do artigo
1363º daquele diploma, as aberturas gradadas de maior dimensão da prevista no seu nº 2, situadas a mais de um metro e
oitenta centímetros do solo ou do sobrado, não permite a sua interpretação a contrario no sentido de que as aberturas em
causa são susceptíveis de constituir substrato de aquisição do direito real de servidão de vistas por usucapião.

214
Assim, como as referidas aberturas – frestas irregulares –, embora permitam a visão sobre o prédio dos
recorridos, não estão estruturadas em termos de a sua função ser a da devassa por via do desfrute de vistas, a conclusão é
no sentido de que não têm substrato idóneo à aquisição do direito real de servidão de vistas nos termos gerais a que se
reporta o artigo 1362º, nº 1, do Código Civil.

4.
Atentemos agora sobre se os recorrentes adquiriram o direito de servidão de vistas por usucapião.
Se a resposta à subquestão enunciada sob 3 fosse no sentido positivo, importava agora apreciar aqueloutra
subquestão de saber se os recorrentes adquiriram ou não, por usucapião, o referido direito de servidão de vistas.
Todavia, respondeu-se à mencionada subquestão no sentido negativo, ou seja, de que as aberturas inseridas nos
prédios dos recorrentes são em si insusceptíveis de constituir substrato fáctico idóneo à aquisição por eles do direito real de
servidão de vistas, inclusive por usucapião.
Em consequência, prejudicada está a apreciação e decisão da subquestão de direito concernente à mencionada
aquisição pelos recorrentes do direito de servidão de vistas por usucapião (artigos 660º, nº 2, 713º, nº 2, e 726º do Código
de Processo Civil).»

d) - Destinação do pai de família ou do antigo proprietário - art. 1549º - mesmo que os sinais
reveladores da serventia prestada por um prédio ao outro não tenham sido postos, como no direito
anterior se exigia, pelo antigo proprietário ou seu antecessor.
Hoje, comparando o art. 2274º do Cód. de Seabra com o actual art. 1549º, basta que
1 - os dois ou mais prédios ou as fracções do mesmo prédio tenham pertencido ao mesmo
dono, independentemente do tipo de prédio;
2 - existam sinais visíveis e permanentes num ou noutro prédio, não forçosamente em ambos,
(rego, poça, janela, carreiro, portão), mesmo que se não saiba a autoria de tais sinais e
independentemente do conhecimento de todos os interessados, sinais inequivocamente reveladores
de que um dos prédios fornecia serventia ao outro;
3 - os prédios ou as fracções do prédio se separem quanto ao seu domínio e não haja no
documento respectivo nenhuma declaração oposta à constituição do encargo.

I - São, hoje, requisitos fundamentais da existência de servidão por destinação de pai de família:
a) Que os prédios em causa tenham pertencido, unitária ou fraccionadamente, ao mesmo proprietário, de cujo
tempo provenha a servidão;
b) Que, aquando da separação predial, nada se tenha estipulado em contrário;
c) Que existam sinais visíveis e permanentes que revelem a servidão.
II - Exigindo a lei sinal ou sinais, exige elementos incontroversos, a analisar crítica e qualitativamente pelo
julgador e não, necessariamente, completo caminho, se de passagem se trata - BMJ 473-484.

Para que se verifique a constituição de servidão de passagem por destinação do pai de família necessário se
torna que existam sinais, visíveis e permanentes, independentemente de quem os produziu, no momento da transmissão
de tais sinais, conexionados com uma manifes-tação de vontade nesse sentido não desmentida por declaração em
contrário.
Penhorado um dos prédios e arrematado em hasta pública, sendo já antes da penhora visíveis e permanentes os
sinais correspondentes à existência da servidão, e nada tendo sido dito em contrário, tal servidão tem-se como constituída
e eficaz - Col. 96-III-101.

«Dispõe o art. 1549º do C. Civil, no que concerne à constituição de servidão por destinação do pai de família, que
"se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais, visíveis e permanentes,
postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como prova da
servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios ou as duas fracções do mesmo prédio vierem a separar-se, salvo
se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento".
Infere-se do preceito indicado que a constituição da servidão por destinação do pai de família "pressupõe o
concurso dos seguintes requisitos essenciais:
a) - que os dois prédios ou as duas fracções do mesmo prédio tenham pertencido ao último dono;
b) - relação estável de serventia de um prédio a outro ou de uma fracção a outra, corres-pondente a uma servidão
aparente, revelada por sinais visíveis e permanentes - destinação;

215
c) - separação dos prédios ou fracções em relação ao domínio - separação jurídica - e inexistência de qualquer
declaração, no respectivo documento, contrária à destinação".

Nas conclusões do recurso defendem os recorrentes, em primeira análise, que, in casu, não se verifica o segundo
dos pressupostos indicados.
Com efeito, conforme argumentam, os sinais visíveis e permanentes constatados no caminho situado no prédio,
(actualmente) dos réus, confinante com o dos autores, não foram aí colocados por forma a revelar a serventia desse
caminho para acesso e comunicação com o segundo: o citado caminho foi aberto pelos antecessores dos autores e dos
réus com a intenção de assegurar o acesso e comunicação com as oficinas de lavoura da unidade de exploração agrícola
instaladas no prédio agora dos réus, sendo que, antes e depois da partilha efectuada em 26.10.92, sempre foi usado
exclusivamente no acesso e comunicação com as oficinas de lavoura, lojas, cortes viradas ao quinteiro, dependência
situada a norte das casas e espigueiro, situado à margem do mesmo prédio ora dos recorrentes.
Mas não têm, a nosso ver, qualquer razão.
É certo que "os sinais hão-de revelar a serventia de um prédio (ou de uma fracção) para com o outro: isto significa
que hão-de ter sido postos ou deixados com a intenção de assegurar certa utilidade a um, à custa ou por intermédio do
outro".
Por isso se pode afirmar que "tal situação de facto deve evidenciar-se por sinais visíveis e permanentes, de tal
modo que revelariam a existência de uma servidão se os prédios ou fracções fossem de proprietários diferentes".
Afirmação que se coaduna com o conceito de servidão predial do art. 1543º do C. Civil: "o encargo imposto num
prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente".
Com efeito, "não há servidões pessoais. As servidões têm sempre que incidir sobre um prédio em benefício de
outro".
Nas servidões prediais "é essencial que as vantagens ou utilidades proporcionadas pelo prédio serviente se
conexionem com o prédio dominante e possam ser aproveitadas ou usadas através dele, ou seja, que a servidão respectiva
se ligue objectivamente a esse prédio, e não a pessoas, no âmbito do artigo 1540º daquele diploma substantivo".
É, efectivamente, essencial que da servidão resulte uma vantagem para o prédio dominante: a servidão não é um
vínculo meramente formal, tem sempre na base um proveito efectivo, auferível através do prédio serviente. E por esse
prisma o artigo 1544º, estabelecendo que a utilidade pode ser futura ou eventual, veio estabelecer uma das faces do
proveito resultante da servidão, mas de modo algum veio pôr em causa o princípio"."
Ora, "a existência de serventia e por isso, de uma certa destinação ou afectação, não transeunte ou episódica,
das utilidades de um prédio em proveito de um outro, deve poder ser afirmada com base na consideração objectiva dos
aludidos sinais que a lei vigente não exige sejam necessariamente postos pelo proprietário ou seus antecessores, só
relevando que o proprietário actual, ciente da sua existência, os tenha mantido até ao acto da separação".
Sinais esses que, assim, importa apenas que subsistam no prédio serviente à data da separação dos domínios,
não interessando saber quem ergueu os prédios ou que ambos fossem construídos pela mesma pessoa".

Perante a matéria de facto apurada, parece evidente a existência, ao tempo da separação dos domínios dos pré-
dios dos autores e dos réus, de sinais visíveis e permanentes que atestam uma estável relação de serventia do prédio
agora dos réus, através do mencionado caminho e pela porta do barraco que para ele dava directamente, relativamente ao
prédio dos autores.
Outra conclusão não se justifica, apesar de (e aqui assentam, essencialmente, os recorrentes a sua diver gência)
o referido caminho ter sido destinado e usado exclusivamente no acesso e comunicação com as oficinas de lavoura, lojas e
cortes voltadas ao quinteiro, dependência situada a norte das casas e do espigueiro, situado à margem nascente do prédio
ora dos réus.
Na verdade, a constituição da servidão por destinação do pai de família depende, como acima se expendeu, da
simples existência de sinais que, no momento da separação dos prédios, revelem uma situação objectiva de concessão (ou
possibilidade de concessão) de uma utilidade por um em benefício do outro.
Razão pela qual "não é preciso demonstrar a intenção do proprietário no sentido de constituir uma eventual
servidão futura, nem mesmo de criar o condicionalismo de sujeição de um prédio a outro. É suficiente a vontade ou
consciência de criar uma situação de facto estável e duradoura, uma situação que objectivamente corresponda à duma
servidão aparente".
Sendo, em boa verdade, indiferente, a forma como o autor da destinação usava o seu direito de propriedade
sobre os prédios ou fracções que vieram a separar-se - Ac. STJ (A. Barros, Col. Jur. (STJ) 2003-III-145.

Servidão por destinação do pai de família


Pressupostos
Sinais visíveis e permanentes
Meios de prova

216
I - A existência de inequívocos sinais visíveis e permanentes é requisito fundamental da constituição de servidão
predial aparente por destinação do pai de família.
II - Só por si, a existência de uma porta é um sinal equívoco de serventia (para acesso e entrada de luz natural)
de um prédio a favor de outro.
III - A equivocidade dos sinais pode ser destruída pelo recurso a elementos estranhos aos próprios sinais, através
de quaisquer meios de prova.

Ac. do STJ (Cons.º Ferreira Girão) 15-01-2004, Revista n.º 3802/03 - 2.ª Secção

Servidão por destinação do pai de família Constituição


Caducidade Abuso de representação
Liquidatário judicial

I - A servidão por destinação do pai de família constitui-se ope legis, logo que e no momento em que se
preenchem os requisitos legais, não sendo necessária qualquer manifestação de vontade nesse sentido; a manifestação de
vontade só é necessária para obstaculizar à constituição daquela servidão, como se vê pela parte final do art.º 1549 do CC.
II - O estatuto dos direitos obrigacionais é aberto, já que aqui vigora o princípio da liberdade contratual e a regra
do apertus clausus (art.ºs 398, n.º 1, e 405 do CC); o estatuto dos direitos reais é fechado.
III - Assim, só são admitidos os direitos reais que a lei estipula ( numerus clausus - art.º 1305 do CC), constituídos
e extintos segundo os cânones e os modelos legais, a tal ponto que aquilo que não corresponder a esse modelo é remetido
para a esfera do direito obrigacional (art.º 1306, n.º 1, do CC).
IV - Não sendo a caducidade uma forma de extinção das servidões reais prevista na lei, a servidão por destinação
do pai de família não pode caducar, ou seja, não pode extinguir-se por caducidade.
V - O abuso de representação é uma extensão do abuso do direito no exercício dos poderes pelo representante;
assim, o abuso da representação pressupõe que o representante detenha os poderes de representação que exerce
formalmente, mas utilizando-os intencional-mente com violação do fim ou do interesse prosseguido pelo representado.
VI - Se num processo de falência, o liquidatário judicial (que é um mandatário representativo) vender dois prédios
diferentes da falida a compradores diferentes sem ter recebido instruções para introduzir, no momento da separação do
domínio, a cláusula excludente a que a alude o art.º 1549 do CC, e se com aquela separação se tiver constituído uma
servidão por destinação do pai de família, não há abuso da representação por parte daquele liquidatário - Ac. STJ (Cons.º
Noronha Nascimento) de 20-01-2005, na Revista n.º 3748/04 - 2.ª Secção

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Santos Bernardino) de 3.7.2008, P.º 08B1265:



a Relação de Guimarães revogou a sentença recorrida, condenando os réus

- a reconhecerem a existência de servidão de passagem, por destinação do pai de família, em benefício dos
prédios dos recorrentes e incidente sobre a parcela de terreno (caminho) pertencente ao prédio dos recorridos e localizada
na sua confrontação a poente com o prédio dos recorrentes, tal qual está identificada e descrita na acção;
- a restituírem aos recorrentes a posse plena sobre o mesmo caminho, segundo as dimensões, características,
tempo, modo de exercício, finalidade e demais elementos constantes dos autos, de forma a permitir aí o trânsito de
pessoas, animais, tractores, máquinas agrícolas e automóveis, como até à propositura da acção aí se verificava.

«4.1. Está em causa o reconhecimento da existência de uma servidão de passagem, alegadamente constituída
por destinação do pai de família.
Por definição legal, a servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio
pertencente a dono diferente (art. 1543º do CC (1).
Entre as formas de constituição das servidões prediais figura a chamada destinação do pai de família (art.
1547º/1).
A este modo de constituição se refere o art. 1549º, nos termos seguintes:

Se em dois prédios do mesmo dono, ou em duas fracções de um só prédio, houver sinal ou sinais visíveis e
permanentes, postos em um ou em ambos, que revelem serventia de um para com outro, serão esses sinais havidos como
prova da servidão quando, em relação ao domínio, os dois prédios, ou as duas fracções do mesmo prédio, vierem a
separar-se, salvo se ao tempo da separação outra coisa se houver declarado no respectivo documento.

Pela análise do teor literal do preceito transcrito – que reproduz, quase sem alterações, o art. 2274º do Código de
Seabra – verifica-se que são os seguintes os requisitos da servidão por destinação do pai de família:

217
- que os dois prédios ou as duas fracções de um só prédio tenham pertencido ao mesmo dono;
- que haja sinal ou sinais visíveis (aparentes, na formulação do preceito do Código de Seabra) e permanentes, em
um ou em ambos os prédios, que atestem serventia (servidão) de um para com outro;
- que, ao tempo da separação dos prédios ou das duas fracções, outra coisa se não haja declarado no respectivo
documento.

É seguro que, embora a lei fale em «dois prédios do mesmo dono» ou «em duas fracções de um só prédio»,
estas expressões não são para tomar à letra: a servidão por destinação do pai de família pode resultar da divisão do
domínio de mais de dois prédios, ou da divisão de um só prédio em mais de duas fracções.
A razão da fórmula legal é explicada pelos autores: as servidões exigem sempre dois prédios, um que sofre o
encargo e outro que aproveita o benefício, e a aparência da servidão há-de revelar idêntico aspecto. “Neste sentido fala de
dois prédios, porque o sinal revela um serviço que se presta de uma a outra parte e sejam quais forem as unidades reais de
prédios que existam, tem de considerar-se como dois e graduar-se de dois o efeito da servidão” (2).
O «sinal ou sinais» são não só os indícios que revelam a existência de obras destinadas a facilitar ou tornar
visível a servidão, como também as próprias obras e construções.
Além de visíveis e permanentes, os sinais têm que atestar a servidão de um para com outro prédio, ou de uma
para outra fracção, sendo, pois, necessário que sejam inequivocamente demonstrativos de terem sido postos com a
intenção de se transferirem utilidades de um prédio para outro ou de uma fracção para outra do mesmo prédio.
O último dos indicados requisitos é de fácil compreensão. Enquanto os dois prédios ou as duas fracções de um
só prédio pertencerem ao mesmo dono, não pode, rigorosamente, falar-se em servidão, existindo apenas uma situação de
facto sem significado jurídico, só o podendo vir a ter quando ocorrer a separação dos prédios ou das duas fracções de um
só prédio. A separação opera-se, normalmente, por efeito de venda, troca, divisão de coisa comum, partilhas entre co-
herdeiros, etc.; mas a causa da separação não importa – o que é essencial é que os dois prédios, ou as duas fracções de
um só prédio, tenham sido separados, quanto ao seu domínio.
Os sinais visíveis e permanentes serão havidos como prova de servidão, se ao tempo da separação outra coisa
não se declarar no respectivo documento.
Como ensina o Prof. GUILHERME MOREIRA (3), esta declaração pode ser expressa, quanto à não subsistência
dos encargos atestados por sinais visíveis e permanentes, determinando-se directamente que ficam extintas determinadas
servidões, ou pode consistir em alterações que no modo de ser do prédio sejam feitas ou tenham de efectuar-se em virtude
desse título e que pressupunham a supressão de determinados encargos, como sucede, v.g., no caso de haver uma
servidão de passagem de um para outro prédio, pertencentes ao mesmo dono, e declarar-se, no título de separação, que a
servidão será exercida sobre o mesmo prédio, mas por outro local.
Importante é frisar que a declaração em contrário constante do documento há-de ser feita especialmente, de uma
forma clara e terminante, não bastando dizer, quando se aliena o prédio serviente, que este se encontra livre de qualquer
encargo. Permanece inteiramente válida, face ao actual art. 1549º, a afirmação de GONÇALVES RODRIGUES, reportada
ao art. 2274º do Código de Seabra, de que o nosso legislador “estabeleceu uma presunção «juris et de jure», pois, se não
houver no respectivo documento declaração expressa em contrário ao tempo da separação, tal servidão existe de um modo
irrefutável, não sendo admissível prova testemunhal tendente a provar que o proprietário não queria a manutenção e
conservação da dita servidão causal” (4).
A norma do Cód. Civil vigente apenas diverge, no confronto com a correspondente norma do velho Código, no
ponto em que eliminou o requisito, que do citado art. 2274º constava, de ser o sinal ou sinais “postos por ele (dono) ou
pelos seus antecessores”.
Entendeu-se que esta circunstância não relevava como elemento de interpretação da vontade do pai de família.
Importante é que existam sinais, e que eles sejam visíveis e permanentes. Terem sido postos por um proprietário, por um
usufrutuário, ou até por um arrendatário comum, não interessa, desde que o último proprietário deles tinha conhecimento, e
consentiu na sua manutenção à data da separação ou da divisão do prédio.

4.2. Postos estes princípios, e face à matéria de facto que a Relação teve por assente, parece irrecusável que
não merece censura o acórdão recorrido.»

Servidões legais - 1550º a 1563º: de passagem e de águas

I - de passagem: 1550º a 1556º

Como servidão legal que é, concede a lei ao dono de prédio encravado - absoluta ou
relativamente (1550º, nº 2) encravado - a faculdade de exigir a constituição de servidões de passagem
sobre os prédios rústicos vizinhos, pelo modo e lugar menos inconvenientes para os prédios onerados
(1553º) e contra o pagamento da indemnização correspondente ao prejuízo sofrido -1554º.
218
Sobre a possibilidade de constituição de servidão legal de passagem sobre prédios urbanos
decidiu a Relação do Porto, em 26.6.2001:

Da conjugação destas duas normas (art. 1550º e 1551º, nº 1) resulta alguma divergência no ensino e correcto
entendimento do regime legal; enquanto uns afirmam peremptoriamente, a partir da letra do nº 1 do art. 1550º, que sobre
prédios urbanos não permite a lei se constitua servidão legal de passagem - note-se, porém, que a servidão legal só recai
sobre os prédios rústicos, conforme se prescreve na parte final do nº 1 (do art. 1550) 17 -, decidem outros que da conjugação
dos artigos 1550º e 1551º do Código Civil resulta o princípio de que só não podem constituir-se servidões (legais) sobre
prédios urbanos na parte desses prédios respeitantes aos edifícios incorporados no solo. Assim, se a servidão de
passagem incidir sobre os terrenos que sirvam de logradouro dos edifícios, é legítimo o exercício do direito de preferência18.
Visto o conceito de prédio urbano que nos dá o nº 2 do art. 204º, nele se incluindo os terrenos que sirvam de
logradouro ao edifício incorporado no solo, concluimos ser possível constituir servidão legal de passagem sobre os terrenos
adjacentes a prédios urbanos se os donos destes não usarem oportunamente do direito de aquisição do prédio
alegadamente encravado.

Possibilidade de compra do prédio encravado e de indemnização agravada até ao dobro nos


casos previstos nos art. 1551º e 1552º.

Preferência do dono do prédio serviente na venda ou dação em pagamento do prédio


dominante - 1555º - qualquer que tenha sido o título constitutivo da servidão legal de passagem,
mesmo por usucapião.

Comentando desfavoravelmente Ac. do STJ que decidiu em contrário, H. Mesquita escreve na


RLJ 129-224:

Uma servidão de passagem que se constitua por usucapião em benefício de um prédio encravado (e o mesmo se
diga de qualquer outra servidão que possa constituir-se coercivamente) não deixa de ser, para todos os efeitos, uma
servidão legal pelo facto de a passagem se fazer por local diferente daquele que o tribunal escolheria se o encargo
houvesse sido constituído por sentença. Ponto é que a servidão já esteja efectivamente constituída, que o prédio já esteja
onerado com a servidão – Col. Jur. (STJ) 2002-I-134, Ac. de 14.3.2002.

Esta doutrina de H. Mesquita, P. Lima (Reais, 368), Ascensão (Reais, 5ª ed., 1993, 258-260)
foi adoptada pelo STJ em Ac. de 15.12.98, no BMJ 482-241 que, porém, decidiu que desaparecido o
pressuposto que condicionou a constituição da servidão legal de passagem, qual seja, não ter o prédio
comunicação com a via pública (art. 1550º), essa servidão perdeu a sua razão de ser a partir do
momento em que o prédio deixou de ser encravado.
Assim, ainda que o proprietário do prédio serviente não tenha requerido a declaração judicial
da sua extinção por desnecessidade, a servidão deixou de subsistir como legal, apenas permanece
como voluntária e, como tal, o proprietá-rio do prédio serviente deixou de ter preferência legal na
venda do prédio dominante, pois conceder-lhe a preferência nesta situação seria premiar a sua inércia.

Também o STJ decidiu - Col. STJ 94-I-75 - que não goza do direito de preferência o proprietário do prédio
onerado com servidão de passagem constituída por meio de usucapião. Mas na Col. STJ 95-I-60 decidiu-se que sim, que
tinha esse direito, como parece resultar directamente da lei - art. 1555º, n.º 1 - qualquer que tenha sido o título constitutivo.
Para casos de servidão legal de passagem constituída por destinação do pai de família ou usucapião decidiu
afirmativamente, ainda, o Acórdão na Col. 96-V-276.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Alves Velho) de 8.5.2007, no Pr.º 07A767:

O conceito de servidão legal de passagem, para os fins de exercício do direito de preferência na alienação do
prédio encravado, previsto no art. 1555º C. Civil, abrange as servidões constituídas por qualquer título, mas que, se não
17
18

219
fosse a existência desse título, podiam ser judicialmente impostas, e não apenas as que tenham por título a sentença,
concedendo-se o direito de preferência aos proprietários de prédios onerados com o encargo legal de constituição de
servidão, encontrando-se esta efectivamente constituída, qualquer que tenha sido o título, nomeadamente por usucapião

Nada impede que o proprietário do prédio serviente vede a entrada do seu prédio, onerado com servidão de
passagem, desde que entregue uma chave do portão ao titular da servidão, ao dono do prédio dominante - Col. 00-I-201 e
loc. cit.

Outra servidão legal de passagem é a do art. 1556º, de acesso às fontes, poços e


reservatórios públicos, bem como às correntes de domínio público, a favor dos proprietários que não
tenham esse acesso à água para seus gastos domésticos.

II - De águas - 1557º a 1563º

Além das consagradas nos art. 1557º - águas sobrantes - (para gastos domésticos),
complementada pela de passagem para este efeito prevenida no artigo anterior, e da outra para fins
agrícolas do art. 1558º (águas sem qualquer utilização por seu dono) prevê a lei três outras servidões
legais de águas, a saber,

de presa (1559º e 1560º - aproveitamento de águas particulares e públicas),


de aqueduto (1561º - águas particulares e 1562º - aproveitamento de águas públicas) e
de escoamento (1563º).

Precisamente porque o aproveitamento da água se encontra adstrito às necessidades de


gastos domésticos das pessoas que habitam num prédio, é que o respectivo direito, de acordo com a
terminologia aceite pelo Código em matéria de águas, é considerado uma verdadeira servidão.

1 - Servidão legal de presa - 1559º - consiste no direito que tem o titular (dono ou simples
utente) de um direito a água a represar e fazer derivar a água de prédio alheio.
É um acessório do direito à água. Sem direito à água não há, logicamente, direito de servidão
de presa.
O direito à água - em propriedade ou simples servidão de aproveitamento - é pressuposto
desta servidão. Mas pode haver direito à água e não direito de a represar. Neste caso é que tem
cabimento a constituição da servidão de presa.

1.1 - Servidão legal de travamento de presa - 1560º - Também aqui se pressupõe o direito à
água, nos termos das al. d) e e) do nº 1 do art. 1386º ou 1385º para as águas públicas.

2 - Servidão legal de aqueduto - 1561º - Constituída em proveito da agricultura, da indústria ou


para gastos domésticos, igualmente pressupõe o direito à água: ... as águas particulares a que tenham
direito ...

As servidões de presa e aqueduto são um acessório do direito à água: aquelas existem se e


enquanto este existir e extinguem-se se e quando este se extinguir - Col. 86-IV-86.

Inerente a esta servidão de aqueduto, de condução de água, admite-se a existência do direito de passagem por
prédio alheio para acompanhar e vigiar a água, pelo carreiro existente ao lado do rego ou aqueduto – Col. 2005-I-285 e

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Santos Bernardino), de 23.10.2008, no Pr.º 08B2004:

220
1. O direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o uso e conservação da servidão (art. 1565º/1
do CC), englobando a fórmula legal os chamados “adminicula servitutis”, ou seja, todas as faculdades ou poderes
instrumentais acessórios ou complementares que se mostrem adequados ao pleno aproveitamento da servidão.
2. Os “adminicula servitutis” não constituem uma servidão autónoma, ainda que acessória, nem constituem uma
actividade supérflua ou gravosa para o prédio serviente: são poderes ou faculdades acessórias da servidão.
3. A servidão de aqueduto, por rego aberto à superfície, tem como complemento inerente a faculdade ou
adminiculum de entrada e passagem pelo prédio serviente, sem o que não seria possível ou se tornaria muito difícil o seu
exercício.
4. Mas o uso dessa faculdade deve limitar-se ao objecto da servidão e ser exercido da maneira que menos
incómodo causar ao prédio serviente.
5. O dono do prédio serviente pode utilizar o seu prédio livremente, auferindo deste todas as vantagens e
utilidades que ele lhe possa proporcionar, e fazer os melhoramentos, as reparações ou modificações que mais lhe
convierem, desde que não prejudique o exercício normal da servidão.
6. Passando o aqueduto a ser subterrâneo, em vez de por rego aberto à superfície, a faculdade (adminiculum) de
passar pelo prédio serviente, para acompanhar a água seguindo pela margem do aqueduto para a vigiar e conduzir deixa
de ter justificação, e não deve, por isso, ser reconhecida; mas deve reconhecer-se ao proprietário do prédio dominante a
faculdade de acesso ao prédio serviente, quando as circunstâncias o imponham, para inspeccionar o aqueduto através dos
óculos de observação ou caixas de visita, ou para nele fazer a limpeza, em caso de entupimento.

2.1 - Servidão legal de aqueduto de águas públicas - 1562º - só quando tenha havido
concessão e não simples licença.

3 - Servidão legal de escoamento - 1563º - A servidão de escoamento pressupõe a realização


de obras que desviem o curso natural das águas ou que provoquem a derivação de águas que
tenderiam a ficar estagnadas no prédio dominante.
Se as águas decorrem, naturalmente e sem obra do homem, de um prédio superior para um
prédio inferior, nos termos do artigo 1351º, haverá uma simples limitação ao direito de propriedade que
decorre imediatamente da lei, mas não servidão, um encargo excepcional.

EXERCÍCIO DAS SERVIDÕES - 1564º a 1568º

Regra geral e primeira nesta matéria é a de que, no tocante à extensão e exercício das
servidões, deve observar-se o que consta do título - qualquer que ele seja - da sua constituição, tanto
para o dono do prédio dominante como para o do serviente ou terceiros - 1564º, 1ª parte.

Na insuficiência do título observam-se os critérios do art. 1565º: o direito de servidão


compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação.
E em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício, entender- -se-á constituída
a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o
menor prejuízo para o prédio serviente.

No mesmo desejo de equilibrar os interesses dos donos dos prédios serviente e dominante
regula a lei a mudança da servidão, tanto no local como no modo e tempo de exercício da servidão -
1568º - faculdades irrenunciáveis e ilimitáveis por negócio jurídico - nº 4 do art. 1568º.

«Constituída uma servidão por força da usucapião, o seu conteúdo ou extensão e o seu exercício determinar-se-
ão pela posse do respectivo titular, em obediência à máxima latina «tantum prescriptum quantum possessum». Se uma
servidão se inicia com determinado conteúdo (ex.: servidão de vistas apenas com uma janela, servidão de passagem
somente a pé) e, posteriormente, tal conteúdo ou extensão sofre um aumento (duas janelas, passagem de carro), é óbvio
que o novo conteúdo exigirá o vinténio para operar a usucapião.» - BMJ 420-579.

Aqui, um rego a céu aberto daria lugar a uma encanação subterrânea muito mais profunda do que aquele e
situada a seu lado. Claramente que se trata de uma alteração ou modificação da servidão anterior, com manifesto prejuízo
para o prédio serviente, atenta a profundidade da nova conduta -BMJ 457-379.

221
Mas uma servidão de passagem de carro de bois pode ser usada para passagem de um tractor, sem alteração do
exercício da servidão - Col. 88-I-120 e III-183.

Ac. do STJ (Cons.º Salvador da Costa), de 19.10.2006, no P.º 06B3501:

1. Na dúvida sobre a extensão e o modo de exercício da servidão de passagem a pé e de carro sobre o


logradouro de incidência, deve entender-se que os mesmos correspondem ao necessário para a dinâmica da rodagem dos
veículos automóveis e da passagem das pessoas, com a menor onerosidade possível do prédio serviente.
2. Sendo a função dos prédios dominantes a de servirem de armazéns, era razoavelmente previsível para os
outorgantes no contrato de constituição da servidão a necessidade de a eles acederem veículos automóveis em operações
de carga e de descarga de mercadorias.
3. A transformação do armazém em estabelecimento comercial era naturalmente previsível aos outorgantes do
contrato de constituição da servidão, pelo que a utilização do prédio serviente com veículos de carga e descarga e acesso
de clientes insere-se na satisfação de novas necessidades naturais e previsíveis do prédios dominante.
4. O acesso pelo logradouro do prédio serviente ao referido estabelecimento pelo dono deste, clientes e
fornecedores, a pé ou de veículo automóvel, com a necessária carga e descarga de mercadorias, não excede o conteúdo
do aludido direito de servidão.
5. A mera utilização ilícita do prédio serviente, sem qualquer repercussão negativa no património do lesado, de
que não resulte um dano específico, emergente ou na vertente de lucro cessante, é insusceptível de fundar a obrigação de
indemnização no quadro da responsabilidade civil.

As partes declararam que a servidão em causa se consubstanciava no direito de passagem de carro e a pé, em
todo o ano, através de um caminho existente no logradouro do dito prédio da titularidade do recorrente para acesso aos
prédios urbanos por ele alienados ao recorrido.
O prédio serviente, da titularidade do recorrente, é urbano, integrado por um edifício fabril de rés-do-chão, cujos
anexos têm a área coberta de 180 metros quadrados e o logradouro a área de 3 290 metros quadrados.
Entre os prédios dominantes, da titularidade dos recorridos por via da referida aquisição ao recorrente, contam-se
dois prédios urbanos destinados a habitação e três prédios destinados a armazém.

Expressa a lei, a propósito, deverem as servidões ser reguladas, no que respeita à sua extensão e exercício, pelo
respectivo título (artigo 1564º do Código Civil).
É este o princípio geral nesta matéria - conformidade da servidão com o título - do qual resulta ser o regime da
servidão o que constar do respectivo título, designadamente do contrato em que foi estabelecido, ou seja, da respectiva
convenção ou carta constitutiva.
Mas nem sempre resulta do título constitutivo da servidão a plenitude do respectivo regime.
Para essa situação, estabelece a lei que na hipótese de insuficiência do título, o direito de servidão compreende
tudo o que for necessário para o seu uso e conservação e, em caso de dúvida quanto à extensão e modo de exercício,
entender-se-á constituído por forma a satisfazer as necessidades normais do prédio dominante com o menor prejuízo para
o prédio serviente (artigo 1565º do Código Civil).
A primeira regra que resulta do disposto no nº 1 deste artigo, respeitante à extensão do direito de servidão, é no
sentido de que este envolve as faculdades de utilização adequadas ao seu pleno aproveitamento.
A segunda regra, bifronte, que decorre do nº 2 deste artigo a título subsidiário, pressuposta a dúvida sobre a
extensão ou o modo de exercício da servidão, é no sentido de se deverem considerar as necessidades normais e
previsíveis do prédio dominante que importem o menor prejuízo para o prédio serviente.
Trata-se de um normativo motivado pela ideia de equilíbrio dos interesses do proprietário do prédio dominante e
do proprietário do prédio serviente, sem que relevem as necessidades anormais ou imprevistas envolventes deste último
prédio.
A extensão das servidões abrange não só as necessidades do prédio dominante no momento da sua constituição
como também as futuras que naquele momento sejam razoavelmente previsíveis.

5.
Vejamos agora se o exercício da servidão em causa extravasa do seu âmbito, tal como foi convencionado.
O recorrente entende no sentido positivo, argumentando, por um lado, que o conceito de armazém não integra o
conceito de estabelecimento comercial e que o conceito de servidão de passagem de carro e a pé não integra a
possibilidade futura de abertura ao público de estabelecimento comercial nem a ocupação do logradouro do prédio
serviente.

222
E, por outro, não ser normal nem previsível que um prédio designado armazém possa oito anos mais tarde passar
a ser utilizado como estabelecimento comercial aberto ao público com passagem e ocupação permanente do caminho da
servidão e do logradouro onde assenta.
O prédio serviente, englobante do logradouro que constitui o leito da servidão de passagem em causa, donde
derivaram os prédios dominantes, envolve uma unidade industrial.
Face ao título de constituição da servidão em causa, ela envolve o acesso permanente aos prédios dominantes
de pessoas a pé e de carro, ou seja, também em veículos automóveis.
Os factos provados, incluindo os que resultam do instrumento documental que consubstancia o título de
constituição da servidão em causa, não revelam a zona dimensionada do logradouro, isto é, do caminho por onde deve
ocorrer a actividade de passagem.
Por isso, a referida zona de passagem deve corresponder ao necessário para a dinâmica da rodagem dos
veículos automóveis e da passagem das pessoas em termos de menor onerosidade para o prédio serviente.
O vocábulo armazém assume actualmente o significado de local de guarda ou depósito de mercadorias, ou seja,
de elemento integrante de alguma actividade económica do comércio, da indústria ou dos serviços.
Considerando a função dos referidos edifícios, isto é, destinados a armazéns, era razoavelmente previsível para
os outorgantes no contrato de constituição da servidão a necessidade de a eles acederem veículos automóveis em
operações de carga e de descarga de mercadorias.
Os recorridos abriram um estabelecimento de venda de tintas e ferragens que deita directamente para o aludido
logradouro, por este acedendo àquele clientes e fornecedores com veículos.
Os factos provados não revelam, ao invés do que o recorrente alegou, que os recorridos tenham ocupado todo o
logradouro nem que o tenham convertido em estabelecimento comercial a céu aberto.
Considerando a finalidade de três dos prédios dominantes - armazéns, integrados em zona industrial - era
razoavelmente previsível para os outorgantes a futura necessidade em relação aos mesmos da passagem pelo prédio
dominante para acesso a estabelecimento de venda ao público de mercadorias.
Com efeito, a transformação de um armazém em estabelecimento comercial é natural e previsível, pelo que a
utilização mediante veículos de carga e descarga e acesso de clientes insere-se na satisfação de novas necessidades
naturais e previsíveis dos prédios dominantes.
Por isso, ao invés do que o recorrente alegou, não obstante a venda de tintas e ferragens no referido
estabelecimento, não ocorre transformação da servidão em termos de manifesto alargamento do seu conteúdo.
Em consequência, inexiste fundamento legal para a conclusão de que o acesso dos recorridos, de clientes e
fornecedores, a pé ou de veículo automóvel, ao seu estabelecimento, pelo prédio serviente excede a extensão e o modo de
exercício do referido direito de servidão.
Não há qualquer fundamento legal para que o recorrente pretenda o encerramento do estabelecimento dos
recorridos, nem o tribunal da 1ª instância infringiu o disposto nos artigos 1564º e 1565º do Código Civil.»

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Fonseca Ramos) de 18.11.2008, no Pr.º 08A3089:

I) - A servidão exprime uma limitação ao direito de propriedade do prédio que com ela é onerado (prédio
serviente) em favor do prédio que dela beneficia (prédio dominante).
II) – “Conditio sine qua non” para se considerar a existência de uma servidão é que os prédios serviente e
dominante pertençam a donos diferentes, uma vez que é antijurídico que, relativamente à mesma coisa, coexistam o direito
de propriedade e um direito que o restringe como é a servidão – “nemini res sua servit”.
III) – Se os donos dos prédios serviente e dominante, por consenso, acordam em alterar o trajecto da servidão de
passagem que vinha sendo exercida, desde há mais de vinte anos por trajecto antes definido, os AA., (donos do prédio
dominante), ao intervirem nesse acordo, tacitamente invocaram actos de posse exercidos em relação ao trajecto inicial - a
usucapião apesar de ser um direito potestativo nada impede que possa ser exercida, sequer extrajudicialmente, por tal
invocação não estar sujeita a requisito de forma.
IV) – Essa invocação tácita ou implícita da usucapião decorre do facto dos Autores, ao intervirem no consenso
negocial que alterou o trajecto da servidão, se apresentarem como donos do prédio dominante, o que não foi questionado
pelos RR., que com eles acordaram o trajecto do caminho novo.
V) - Tal acordo, feito em 1991, para alteração do trajecto da servidão, não envolveu o início de um novo prazo de
usucapião, por desconsideração e inutilização do prazo de posse exercido em relação ao “caminho velho”
VI) – É ininvocável o princípio da inseparabilidade das servidões – art. 1545º do Código Civil – para recusar que
pudesse ser aproveitado o tempo até aí decorrido, relativamente ao direito adquirido em relação ao “caminho velho”, pelo
facto dos prédios serem os mesmos, não ter havido separação, nem a servidão passar a incidir sobre prédios novos.
VII) – No caso dos autos, houve uma mudança de itinerário e não constituição de servidão nova.
VIII) - Existindo mera alteração consensual do itinerário da servidão preexistente, não era de exigir novo prazo
para aquisição por usucapião do “caminho novo”, não sendo inutilizado o tempo decorrido até 1991.

223
IX) – Mesmo que se defenda que as alterações operadas pela mudança do lugar de exercício das servidões
devam ser levadas ao registo predial, a sua omissão, como no caso sucede, é irrelevante porque, apenas, estão em causa,
agora, direitos dos donos dos prédios dominante e servientes, e não de terceiros.
X) – Incorre em conduta abusiva do direito – venire contra factum proprium – o dono do prédio serviente que,
tendo intervindo e proposto o consenso referido, agora obsta ao exercício da servidão de passagem.

1566º e 1567º

Ac. do STJ (Ex.ma Cons.º Prazeres Beleza) de 15.5.2008, no Pr.º 07B1524:

1. A extensão e o exercício de uma servidão predial são, em primeiro lugar, fixadas pelo respectivo título e, caso
este seja insuficiente, pelas regras constantes do Código Civil.
2. O reconhecimento de um direito de servidão implica o reconhecimento da possibilidade de utilização dos meios
necessários ao seu exercício.
3. O critério de aferição dessa necessidade resulta da combinação entre as exigências da satisfação das
necessidades normais e previsíveis do prédio dominante e o limite de causar o menor prejuízo possível ao prédio serviente.
4. Assim, o proprietário do prédio dominante pode fazer obras no prédio serviente, desde que não torne a
servidão mais onerosa, as realize à sua custa, salvo acordo em contrário, e do modo mais conveniente ao proprietário do
prédio serviente.
5. É à autora que cabe o ónus de provar os factos constitutivos do direito de servidão; sendo invocada a aquisição
por usucapião, a falta de prova de ter decorrido o prazo correspondente implica a improcedência do pedido correspondente.
6. Não tendo decorrido o prazo necessário para essa aquisição na data em que a acção foi proposta, não pode
contabilizar-se o tempo decorrido entre esse momento e a sentença se, nos termos em que a lei o permite, a autora não
alegou posteriormente os factos suficientes para demonstrar que, durante todo esse tempo, se mantiveram os demais
requisitos necessários à aquisição por usucapião.

EXTINÇÃO DAS SERVIDÕES - 1569º A 1575º

O art. 1569º prevê os vários casos de extinção das servidões. Assim,

a) - Confusão - nemine res sua servit.

b) - Não uso durante 20 anos, a contar nos termos do art. 1570º - qualquer que seja o motivo.

Porque lhe são aplicáveis as regras da caducidade - 298º, nº 3 - não se aplicam aqui as
normas da suspensão e da interrupção próprias da prescrição e constantes dos art. 318º a 327º CC.

Notar, porém, o exercício parcial - 1572º - ou por um dos vários donos do prédio dominante -
1570º, nº 3 - que obstam à extinção da servidão mesmo na parte (de pé e carro) não usada e em
relação aos não usadores; e o exercício em época diversa - 1573º - que pode levar à aquisição de
nova servidão mas não impede a extinção da não usada.

Ac. do STJ (Ex.mo Cons.º Ferreira Girão), de 27.4.2005, no Pr.º 05B810:



IV - Enquanto subsistirem os sinais visíveis e permanentes de uma servidão, indiciadores da possibilidade da
continuação do seu uso, a servidão não se pode considerar extinta pelo não uso, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo
1569 do Código Civil.
V - A permanência dos sinais não se confunde com a sua imutabilidade.

224
VI - A servidão de vistas não se exerce com o facto de se desfrutar as vistas sobre o prédio vizinho, mas antes
com a manutenção da obra (porta, janela, varanda, eirado, terraço ou obras semelhantes) em condições de se poder ver e
devassar esse prédio.

c) - Usucapio libertatis - oposição, durante os anos necessários para adquirir por usucapião, ao
exercício da servidão - 1574º.

d) - Renúncia, pura e simples, negócio jurídico unilateral: nº 5 do art. 1569º - não depende de
aceitação do proprietário do prédio serviente.

e) - Decurso do prazo, se temporariamente constituídas.

f) - Desnecessidade judicialmente declarada - para as constituídas por usucapião e para as


legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição - n.os 2 e 3.

Servidão de passagem
Desnecessidade - Critério de avaliação

I - A «desnecessidade de subsistência da servidão para o prédio dominante», como requisito previsto no artigo
1569º, nº 2, do Código Civil para a extinção de uma servidão, afere-se em relação ao momento da introdução da acção em
juízo, não sendo necessária a prova de uma superveniência absoluta da desnecessidade após a constituição da servidão.
II - A lei pretende, essencialmente, uma ponderação actualizada da necessidade de manter o encargo sobre o
prédio, deixando ao prudente critério do juiz avaliar se, no momento considerado e segundo um juízo de prognose de
proporcionalidade subjacente aos interesses em jogo, haverá ou não alternativa que, sem ou com um mínimo de prejuízo
para o prédio encravado, possa ser eliminado o encargo sobre o prédio serviente.
III - O juízo de proporcionalidade terá de ser feito previamente in abstracto na fase declarativa de arbitramento, a
que se seguirá a formulação e definição in concreto das obras necessárias.
IV - Se um prédio pode facilmente e sem excessivo incómodo ou dispêndio obter comunicação com a via pública,
não se justifica a constituição (ou a manutenção) de servidão por força da lei, porque tal prédio não poderá ser considerado
encravado - STJ, 27.5.99, BMJ 487-313.

As servidões voluntárias, nomeadamente as constituídas por contrato e por destinação do pai


de família, extinguir-se-ão pelo não uso; Como se sabe, podem constituir-se por acordo servidões não
estritamente necessárias que podiam ser logo de seguida declaradas extintas (por desnecessidade),
assim se violando o acordado.
Necessária decisão judicial de extinção e restituição total ou parcial da indemnização.

g) - Remissão Judicial - 1569º, nº 4 - as servidões para aproveitamento de água para gastos


domésticos ou fins agrícolas - 1557º e 1558º - podem ser remidas judicialmente ao fim de dez anos
sobre a sua constituição, extinguindo- -se, desde que o dono da água prove que quer doravante fazer
da água um uso justificado, também com restituição total ou parcial da indemnização.

1575º e 1460.º, n. 1 – usufruto

Novembro de 2008

225

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