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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

I PARTE – DIREITOS REAIS EM GERAL -


INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I – CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS
REAIS

6. Características dos direitos reais


6.1. Eficácia absoluta.
Os direitos reais são eficazes erga omnes, o que se traduz, por um lado,
na atribuição ao seu titular do poder de os exercer em face de todos os outros
e, por outro, na imposição a estes de restrições, ou, melhor, da necessidade de
respeitarem o direito que em face deles se apresenta.

É esta eficácia absoluta dos direitos reais uma das razões que levaram à
sua sujeição ao princípio da tipicidade ou numerus clausus (art. 1306º CC). Este
princípio resulta da impossibilidade em que se encontram os particulares de
criar direitos reais de um tipo ou com um conteúdo que não correspondam aos
tipos e conteúdos desenhados na lei. Não há, assim, liberdade de conformação
interna dos direitos reais diversamente do que sucede nos direitos de crédito.

Este princípio da tipicidade surge-nos como uma resposta a uma


exigência derivada da eficácia absoluta dos direitos reais pelas seguintes razões:
em primeiro lugar, se os direitos reais gozam de eficácia real, devem ser
respeitados por todos, o que implica, por sua vez, a sua cognoscibilidade por
todos os restantes membros da coletividade. Por sua vez, esta cognoscibilidade
só é possível se se proceder à tipicização desses direitos. Em segundo lugar, esta
proteção absoluta só deve ser garantida pelo ordenamento jurídico se se
verificar a existência de uma real necessidade nesse sentido, pois vão ser
criadas restrições à liberdade de ação de todos à exceção do titular desses
direitos e isto explica não ser permitida a criação de direitos reais de tipo ou
conteúdo determinados pela sua vontade.

Os tipos dos diferentes direitos reais e respetivos conteúdos devem,


pelas razões expostas, encontrar-se pré-determinados e descritos na lei.

Concluindo, a primeira nota distintiva dos direitos reais em face dos


direitos de crédito resulta da circunstância de aqueles gozarem de uma eficácia
absoluta, enquanto que a destes é meramente relativa.

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6.2 Sequela.
O direito de sequela ou seguimento constitui uma consequência da
eficácia absoluta dos direitos reais. Isto significa que o direito segue a coisa,
acompanha-a, podendo fazer-se valer seja qual for a situação em que a coisa se
encontre. O titular do direito real pode sempre exercer os poderes
correspondentes ao conteúdo do seu direito, ainda que o objeto se encontre no
domínio material ou esfera jurídica de outrem. Está presente na ação de
reivindicação que permite ao titular de um direito real de gozo obter o
reconhecimento do seu direito e a restituição do que lhe pertence.

Se o direito real não envolver um contacto direto com a coisa, a sequela


manifesta-se noutros sentidos. Se estivermos perante uma hipoteca, a sequela
traduz-se na possibilidade de o credor hipotecário fazer vender a coisa, quer
pertença ao proprietário que a constituiu, quer venha a pertencer a um
terceiro. Num caso de um direito real de aquisição, a sequela consiste na
possibilidade de o seu titular adquirir a coisa alienada por quem, num contrato-
promessa com eficácia real, num pacto de preferência também com essa
eficácia, ou por força da lei (p.ex. art. 1380º CC) esteja vinculado a dar
preferência e não cumpre a sua obrigação.

Existem exceções à sequela. Quando se dá a alienação de imóvel (ou de


móvel sujeito a registo), precedida de negócio jurídico cujo vício justifica que
seja declarada a sua invalidade. Declarado nulo ou anulado esse negócio, os
direitos adquiridos por terceiro não são prejudicados, desde que a ação de
declaração de nulidade ou anulação não seja proposta dentro dos três anos
posteriores à conclusão do negócio e o terceiro registe a sua aquisição antes do
registo da ação ou do acordo entre as partes acerca da invalidade do negócio.
Esta solução é um compromisso entre os interesses que justificam a invalidade
do negócio e os legítimos interesses de terceiros e do tráfico.

Outra exceção relaciona-se com a prioridade do registo. A sequela não


existe quando a lei faz depender do registo a eficácia do direito em relação a
terceiros que adquiram um direito real total ou parcialmente incompatível.

Não constitui exceção à sequela a aquisição a non domino de coisa móvel


porque, apesar da boa fé do adquirente, o proprietário pode reivindicá-la. No
direito francês, está consagrado o princípio segundo o qual quem, de boa fé,
adquirir uma coisa móvel a comerciante, torna-se seu proprietário, não lhe

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podendo ser exigida a restituição. Embora o nosso legislador não tenha acolhido
este princípio que se fundamenta na necessidade de proteger os interesses do
comércio, consagrou uma solução que serve de compromisso, não sendo,
mesmo assim, uma exceção à sequela: o proprietário pode exigir a coisa ao
terceiro que, de boa fé, a comprou a comerciante que negoceie em coisa do
mesmo ou semelhante género, desde que lhe restitua o preço prago, gozando
do direito de regresso sobre quem culposamente lhe causou o dano.

6.3. Prevalência.
Prevalência ou preferência consiste na prioridade dos direitos reais sobre
os direitos de crédito e sobre os direitos reais constituídos posteriormente
quando total ou parcialmente incompatíveis com o anterior (prior in tempore,
potior in iure). O art. 408º/1 CC apoia de alguma forma este princípio pois
transferindo-se a titularidade de um direito real, por mero efeito do contrato
(princípio da consensualidade), a sua eficácia absoluta confere
automaticamente preferência sobre qualquer outro direito real incompatível
que tenha por objeto a mesma coisa.

Existe, no entanto, divergência doutrinal quanto à prevalência como


característica dos direitos reais. MENEZES CORDEIRO considera-a como
característica dos direitos reais, enquanto que PINTO COELHO a vê como
característica exclusiva dos direitos reais de garantia, negando a sua existência
fora deles.

Mas a prevalência também se encontra em alguns direitos de crédito.


Caso disso é o privilégio mobiliário geral que não incide sobre coisa certa e
determinada, mas sobre o património do devedor, sendo um direito de crédito
e não um direito real. Mas confere ao seu titular a prevalência sobre os credores
comuns do devedor. Se o titular for o Estado ou autarquia local (como acontece
para garantia de créditos resultantes de determinados impostos – art. 736º CC),
esse privilégio atribui ao credor a preferência mesmo sobre privilégios
mobiliários especiais, que são já direitos reais. Outro caso é a concessão
sucessiva de direitos pessoais de gozo incompatíveis a diferentes pessoas, em
que vai prevalecer o direito mais antigo, sem prejuízo das regras próprias do
registo.

A prevalência tem exceções, pelo que nem sempre o direito real mais
antigo prefere sobre o mais recente. Isto acontece devido à prioridade do

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registo, quando a lei atribui eficácia ao registo perante terceiros, se o primeiro


adquirente não registar a sua aquisição, não prefere sobre o segundo
adquirente que, apesar de posterior, registou a sua aquisição. A última exceção
reside nos privilégios creditórios imobiliários que preferem sobre a consignação
de rendimentos, a hipoteca e o direito de retenção anteriormente constituídos
(art. 751º CC).

6.4. Inerência.
A inerência traduz a ligação íntima dos direitos reais às coisas que
constituem os seus objetos. Por isso, não se pode manter um direito real se o
seu objeto mudar: “não é juridicamente possível transferir o mesmo direito real
de uma coisa para outra; caso semelhante operação fosse tentada, o efeito seria
a extinção do direito real e a constituição de novo direito real”.

6.5. Outras características.


A doutrina refere outras características.

A violação dos direitos reais resulta de um comportamento positivo


(ação; facere), enquanto que a dos direitos de crédito resulta geralmente de um
facto negativo (omissão; non facere). Assim, estes direitos têm por objeto
prestações de facto positivo ou de prestação de coisa, enquanto que aos
direitos reais corresponde uma obrigação passiva.

Considera-se que a maioria dos direitos reais de gozo é suscetível de


aquisição por usucapião, o que não sucede com os direitos de crédito.

Fala-se, ainda, na característica da permanência dos direitos reais, por


oposição à transitoriedade dos direitos de crédito, mas esta ideia deve ser
rejeitada. Se entendermos permanência como perpetuidade, existem direitos
reais temporários, como o direito de usufruto (art. 1439º CC). Se entendermos
permanência como estabilidade, chegamos à conclusão de que esta é
meramente tendencial, visto haver direitos reais que se extinguem pelo seu
exercício, como os direitos reais de garantia e de aquisição. Além disto, a
transitoriedade nem sempre se encontra nos direitos de crédito, visto termos
obrigações de facto negativo e positivo permanentes.

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7. Natureza jurídica do direito real


7.1. Teoria clássica (ou realista).
Segundo a teoria clássica ou realista, o direito real consiste num poder
direto e imediato sobre uma coisa certa e determinada, não havendo
intermediário entre o titular e o objeto deste direito, ao contrário do que se
passa com as obrigações, em que só se atinge o objeto mediato através da
prestação, do comportamento do devedor, que configura o objeto imediato.

Esta teoria era muito defendida até ao século XIX, mas remonta à Idade
Média, às Escolas dos Glosadores e dos Comentadores, baseando-se no
conceito romano de ação real (actio in rem).

A crítica feita a esta teoria considera que a defesa de uma relação entre
uma pessoa e uma coisa só pode ter valor imagético, visto ser o direito um
fenómeno social que só existe por os homens viverem em relação. Defende-se,
ainda, que o poder direto e imediato sobre uma coisa é uma simples
consequência jurídica do poder de impor aos outros uma abstenção. Por outro
lado, existem direitos reais que não conferem qualquer poder direto e imediato
sobre a coisa (hipoteca) e existem ainda direitos que, não tendo caráter real,
atribuem esse poder (direitos pessoais de gozo).

7.2. Teoria personalista.


Esta teoria foi defendida no século XIX pela pandectística alemã e
inspirando-se no pensamento kantiano, defende que a intersubjetividade é um
elemento essencial da relação jurídica. Assim, vê no direito real um poder
atribuído a uma pessoa de excluir todos as outras de qualquer ingerência na
coisa que constitui o seu objeto, desde que incompatível com o seu conteúdo.

Dá-se mais importância à relação do homem com os homens sujeitos a


uma obrigação passiva universal. A crítica incide exatamente neste ponto,
destacando que esta teoria apresenta uma visão jurídica que ignora o conteúdo
do direito e sobrevaloriza o momento sancionatório. Além disto, esta obrigação
não tem conteúdo patrimonial, pelo que não pode ser contrapartida de um
direito real. Ignora que o núcleo da relação real é a soberania do titular sobre a
coisa e, nestes termos, é que surge o dever geral de abstenção, como efeito
dessa soberania.

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7.3. Teorias ecléticas (ou mistas).


Esta teoria surgiu na Alemanha e procura conciliar as teorias anteriores,
mostrando que as suas divergências não são irredutíveis. Para isso, considera
que há nos direitos reais dois lados: o interno, que se traduz no poder direto e
imediato sobre a coisa; e o externo, que se identifica com a relação entre o
titular do direito e as demais pessoas.

Existem divergências no seio desta teoria, havendo quem dê mais


importância ao lado interno e quem, pelo contrário, acentue o lado externo.
Entre nós, HENRIQUE MESQUISTA defende a acentuação do lado interno.

Podem tecer-se críticas a esta teoria. Este compromisso não só não evita
as críticas às doutrinas que procura conciliar, como ainda se podem fazer
outras. Refere-se que não podem haver lados num direito ou numa relação,
sendo a harmonia apenas verbal e aparente.

A nossa posição, apesar das possíveis críticas, é a de que a teoria eclética


é a que retrata com maior fidelidade o regime jurídico dos direitos reais. O lado
interno mostra-nos um poder que incide imediatamente sobre uma coisa e, por
isso, permite distinguir os diversos direitos reais; e o lado externo revela-nos
que a sua tutela é absoluta, dirige-se contra a generalidade das pessoas que
podem interferir com o exercício desse poder.

8. Confronto dos direitos reais com os direitos de crédito


Não é pacifica a distinção entre os direitos reais e os direitos de crédito,
afirmando-se mesmo que não há critério indiscutível para distinguir o direito
real do direito pessoal.

Existem mesmo autores que recusam a distinção, integrando esses


direitos num conceito unitário que enfatiza ora o elemento obrigacional ora o
elemento real.

Dentro das doutrinas da unidade, temos o monismo personalista,


defendido por DEMOGUE que defende não haver distinção, correspondendo a
ambos os direitos uma obrigação passiva universal, uma eficácia erga omnes. A
única diferença seria que o direito real era um direito forte, porque a relação
jurídica é estabelecida diretamente entre o seu titular e as demais pessoas,
enquanto que o direito de crédito é um direito fraco, visto estar apenas o
devedor adstrito à realização da prestação, devendo as demais pessoas abster-

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se de dificultar ou impedir o seu cumprimento. É facilmente refutável, visto o


nosso sistema jurídico não admitir o efeito externo das obrigações.

Temos, ainda dentro das doutrinas da unidade, o monismo realista,


defendido por GAUDEMET que vê nos direitos de crédito direitos reais, porque
são igualmente direitos sobre coisas. Estes incidem sobre coisas determinadas,
enquanto que aqueles têm por objeto o património do devedor. Como
argumento invoca-se a impugnação pauliana, cujos efeitos só aproveitam ao
credor que a requeira (art. 616º CC) e que permite ao credor executar os bens
no património do terceiro adquirente, gozando este direito de crédito da
sequela, tal como um direito real. É criticável visto a impugnação pauliana exigir
a prova da titularidade do crédito e depender de vários requisitos, como a boa
ou má fé das partes.

Existe, finalmente a doutrina eclética (mista), que defende a distinção


entre direitos de crédito e direitos reais. Distinguem-se nos seguintes termos:

1. Os direitos reais são direitos absolutos, i.e., impõem-se a todas as


pessoas que são obrigadas a respeitá-los, gozando, assim, de eficácia
erga omnes; os direitos de crédito são relativos, vinculando pessoas
determinadas (o/os devedor/es).
2. Os direitos reais são direitos de exclusão, traduzem a subordinação
direta e imediata de coisas determinadas ao domínio ou soberania dos
seus titulares; os direitos de crédito são relações de cooperação entre os
seus titulares e os devedores pelas quais passa a satisfação do interesse
dos credores.
3. Os direitos reais têm como objeto coisas corpóreas individualizadas
(certas e determinadas), por isso sendo, em regra, acompanhados de
publicidade; os direitos de crédito têm por objeto prestações, só sendo
conhecidos pelos devedores respetivos.

CAPÍTULO II – CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS REAIS


9. Posse
A posse é definida pelo art. 1251º CC como “o poder que se manifesta
quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de
propriedade ou de outro direito real”.

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Mas será a posse um direito? Ou será um mero facto, uma pura e simples
situação de facto? A nossa posição é a de que estamos perante um direito real
provisório.

É um direito por constituir uma situação jurídica subjetiva que confere


um poder sobre uma coisa e que é tutelada pelo direito objetivo, desde logo na
medida em que é hereditável, alienável e registável e na medida em que ele
confere ao seu titular uma garantia jurídica.

A lei confere vários meios judiciais, como a ação de prevenção, a ação de


manutenção da posse e a ação de restituição da posse, unicamente por ele ser
possuidor e sem averiguar se, por detrás da posse, existe ou não um outro
direito real. Isto acontece por razões de paz jurídica e porque, normalmente, o
possuidor é proprietário e seria muito complicado provar essa propriedade a
tempo de tutelar a posse.

Tudo isto mostra que a posse é um direito e, além disso, um direito real.
Direito real porque goza de eficácia erga omnes, o possuidor pode perseguir a
coisa através das ações mencionadas acima.

Além disso, é provisório. Os seus efeitos são independentes de saber


quem é o titular do direito real sobre a coisa que está na esfera do possuidor. A
proteção possessória é provisória, só atuando enquanto não for definitivamente
apurado quem é o autêntico titular do direito real sobre a coisa.

À pessoa que detém ou frui uma coisa basta provar a posse e se ela for
uma posse de ano e dia (superior a um ano), não tem que se averiguar mesmo
mais nada (art. 1278º/2 CC). Basta, assim, a simples prova desta posse para que
o indivíduo possa exigir a restituição da coisa.

10. Direito de propriedade


O direito de propriedade é o direito real pleno e o direito real mais
importante. Está definido no art. 1305º CC como sendo o poder de que o
proprietário detém de gozar “de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso,
fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e
com observância das restrições por ele impostas. A lei acentua aqui a
propriedade em termos praticamente iguais à classificação romana do “ius
utendi, ius fruendi, ius abutendi”.

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A propriedade pode revestir diferentes formas. A lei indica e regulamenta


separadamente a propriedade de imóveis, visto haver toda uma série de
problemas que só se põem para os imóveis. Só se põe o problema do direito de
demarcação para os imóveis, os móveis estão demarcados por natureza. Só se
põe o problema do direito de tapagem, do direito de edificar valas, muros ou
sebes para os imóveis, tal como os problemas da construção e plantação.

Depois a lei foca em especial a propriedade das águas, que também, pela
sua natureza, põe problemas específicos.

Por último, a lei distingue ainda a compropriedade e a propriedade


horizontal.

11. Direitos reais limitados:


São direitos que não conferem a plenitude dos poderes sobre uma coisa.
Conferem apenas a possibilidade de exercer certos poderes sobre uma coisa,
mas não a plenitude dos poderes correspondentes à clássica tripartição “ius
utendi, ius fruendi, ius abutendi”. São, portanto, direitos obre coisas que em
propriedade pertencem a outrem. São direitos que pressupõem uma
concorrência de direitos. Quando eles existem, incide também sobre a mesma
coisa uma propriedade que é restringida por este direito real limitado (e
limitador). São, portanto, iure in re aliena (direitos sobre coisa alheia) ou, pelo
menos, sobre coisa não própria.

Dentro dos direitos reais limitados distinguem-se os direitos reais de


gozo, os direitos reais de aquisição e os direitos reais de garantia.

Direitos reais de gozo


Os direitos reais de gozo são aqueles que conferem um poder de utilizar,
total ou parcialmente, uma coisa e, por vezes, também o de apropriação dos
frutos que a coisa produza.

No nosso direito, são o usufruto, o uso e habitação, o direito de


superfície e as servidões prediais. Esta enumeração é exaustiva, visto vigorar o
princípio da tipicidade ou numerus clausus.

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No usufruto não há só o poder de utilizar a coisa, mas também o poder


de apropriação dos seus frutos, enquanto, por exemplo, no direito de uso e
habitação há apenas o direito de usar a coisa.

Direitos reais de aquisição


Os direitos reais de aquisição são direitos reais que conferem a
determinado indivíduo a possibilidade de se apropriar de uma coisa, de adquirir
a coisa.

Note-se que estas situações não se identificam com a faculdade geral de


adquirir, que é uma mera emanação da capacidade jurídica. Não é esta
faculdade geral que se está a tratar, mas sim aquelas situações especificas em
que certas pessoas podem exercer uma especial faculdade de, em determinadas
circunstâncias, adquirir uma coisa.

Exemplo de direito real de aquisição é o direito real de preferência, que


confere a pessoas em certas situações a possibilidade de adquirirem uma coisa,
no caso de o proprietário dela a pretender alienar e o preferente estar disposto
a pagar por ela a mesma importância que o terceiro adquirente se propõe
pagar. É, portanto, o direito de fazer suas certas coisas, dando o valor pelo qual
se projeta negociar a coisa.

Este direito real de preferência pode ser legal ou convencional. A


possibilidade de um direito convencional de preferência está referida no art.
421º CC, sendo possível atribuir eficácia real aos pactos de preferência
celebrado entre pessoas em qualquer circunstância. Já o direito de preferência
legal existe nos seguintes casos: art. 1380º; art. 1409º; art. 1535º; art. 1555º;
art. 2130º CC. Fora destas situações não se pode verificar o direito real de
preferência, a não ser que haja um pacto de preferência com eficácia real.

Outro exemplo de direito real de aquisição é o contrato-promessa de


compra e venda com eficácia real.

Direitos reais de garantia


Os direitos reais de garantia são direitos que conferem o poder de, pelo
valor de uma coisa ou pelo valor dos seus rendimentos, um indivíduo obter,
com preferência sobre todos os outros credores, o pagamento de uma dívida de
que é titular ativo.

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Esta distinção entre direitos de gozo e de garantia tem como critério a


função económica do direito real.

Os direitos reais de garantia são o penhor, a hipoteca, os privilégios


creditórios especiais (são todos os privilégios imobiliários e certos mobiliários,
excluindo-se os privilégios mobiliários gerais que não são direitos reais), o
direito de retenção e a consignação de rendimentos.

Já se sustentou entre nós que os direitos reais de garantia não


constituíam verdadeiros direitos reais, mas meros acessórios dos direitos de
crédito. Mas são, indubitavelmente, direitos reais. Há, de facto, uma conexão
funcional entre os direitos reais de garantia e os direitos de crédito. Os direitos
reais de garantia estão ao serviço do pagamento ou da satisfação do interesse
do credor. Quando se extingue o direito de crédito, extingue-se o direito real
que garantia esse crédito.

Mas isto não quer dizer que os direitos reais de garantia não tenham
natureza jurídica própria. Por apresentarem as características dos direitos reais,
nomeadamente, a sequela e o direito de preferência, entendemos hoje serem
direitos reais.

CAPÍTULO III – HIPÓTESES DE QUALIFICAÇÃO REAL


CONTROVERTIDA E FIGURAS LIGADAS AOS DIREITOS REAIS

12. A questão da natureza do direito do locatário.


Uma das questões que suscitou mais o debate é a do direito do locatário.
Será este direito um direito real ou um direito de crédito?

Há uma solução que qualifica o direito do locatário como um direito de


crédito. O locatário não tem um poder direto e imediato sobre a coisa, as suas
possibilidades de gozo da coisa passam pela mediação de um outro sujeito, o
locador. Tem o direito de exigir do locador que lhe proporcione o gozo da coisa,
mas não um direito sobre a coisa em face de todos os outros.

Outros autores defendem estarmos perante um direito real. E existem


ainda outras soluções intermédias, salientando existirem aqui notas típicas dos
dois grandes grupos de relações jurídicas, afirmando a prevalência de uma ou
de outra dessas categorias.

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Para que se trate de um direito real, o direito do locatário terá que


possuir as notas próprias deste grupo de relações. Uma dessas notas, exclusiva
dos direitos reais, é a sequela, i.e., a possibilidade que o titular do direito real
tem de exercer os poderes correspondentes ao conteúdo do seu direito, onde
quer que a coisa se encontre, mesmo que esta entre na esfera jurídica ou
material de outrem.

Ora, o direito de sequela existe na locação, como claramente o revela o


art. 1057º CC CC. Isto significa que o locatário pode continuar a exercer os seus
poderes sobre a coisa, pode continuar a utilizá-la mesmo depois de ter sido
vendida a terceiro. O seu direito tem eficácia perante o novo adquirente da
coisa.

Defendeu-se que esta solução nada tinha a ver com direito de sequela,
por ser uma manifestação da cessão da posição contratual, pelo que a
transmissão da posição do locador verificava-se, do alienante para o adquirente
do prédio arrendado, porque acompanhando a alienação do prédio havia a
cessão da posição do locador. Esta solução não é aceitável porque este efeito é
imperativo, impõe-se mesmo contra a vontade das partes.

Se se tratasse de uma cessão da posição contratual, teria que ser


acordado entre o alienante e o adquirente que este adquiria a posição de
locador e teria que haver consentimento do locatário. Aqui estamos perante um
efeito que a lei liga automaticamente à transmissão do prédio. O adquirente do
prédio fica sub-rogado legalmente na posição do locador.

Concluindo, esta solução imperativa é uma expressão do direito de


sequela. Semelhante é a situação do usufrutuário, pois para a manutenção do
seu direito é irrelevante a alienação da propriedade.

O direito de preferência faz parte das notas características dos direitos


reais, mas neste caso, e para esta distinção, não é decisivo, pois o art. 407º CC
mostra-nos que pode existir também nos direitos de crédito, que confiram o
gozo de uma coisa.

Os defensores do caráter de direito de crédito do direito do locatário


aceitam estas soluções e têm de reconhecer a existência de sequela. Excluem,
contudo, a qualificação desse direito como real por não existir um poder direto
e imediato sobre a coisa. Para eles, o locatário não teria uma ligação direta e
imediata com a coisa, mas apenas mediata, aparecendo o senhorio como
intermediário. O seu poder esgotar-se-ia no exigir do locador que lhe
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proporcionasse o gozo da coisa. No fundo, com isto negam a inerência da coisa


ao seu titular.

Esta afirmação era concretizada através da enunciação de certas


obrigações que cabem ao locador. Este tem certas obrigações especiais,
contrapondo-se à obrigação passiva geral própria dos direitos reais, o que
tornaria o direito do locatário um puro direito de crédito.

Não pode, também, invocar-se como argumento decisivo a favor da


qualificação creditícia do direito do locatário, o facto de este ter de pagar uma
renda ou aluguer, pois isso também acontece em muitas hipóteses de direito
real. Temos o exemplo do direito de superfície, onde se pode ter convencionado
que o superficiário pague uma importância periódica ao proprietário do solo,
em vez de pagar uma importância global. E isto não exclui a classificação real do
direito do superficiário.

Invoca-se ainda que a hipótese concedida ao locatário de usar os meios


de tutela possessória (art. 1037º/2 CC), indicam que não estamos perante um
direito real pois se estivéssemos, esta possibilidade estaria já subentendida e
incluída no direito do locatário. Pode-se contra-argumentar que o legislador
consagrou expressamente esta hipótese por ser duvidoso que se tratasse de um
direito de crédito ou de um direito real, mas não implica uma tomada de
posição decisiva por parte dele.

O que já parece decisivo para a qualificação deste direito é a


possibilidade de aquisição por usucapião. O STJ já se pronunciou no sentido de
que o direito do locatário não se pode adquirir por prescrição aquisitiva ou
usucapião. Esta posição é apoiada por VAZ SERRA.

Esta questão revela-se muito importante nos arrendamentos para fins


comerciais, que será nulo se não for reduzido a escritura pública. Em face do
problema, a corrente maioritária da doutrina portuguesa entende que a
resposta deve ser negativa, i.e., que o arrendatário não pode adquirir por
usucapião a sua posição.

13. O direito do beneficiário de promessa de transmissão com


eficácia em relação a terceiros.
Há quem saliente que não se trata de um verdadeiro direito real, mas sim
de uma espécie de pré-anotação registal, tendo prioridade sobre qualquer outra

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posterior. Apesar de aqui não haver um poder direto e imediato sobre a coisa,
MOTA PINTO defende que a posição deste beneficiário deve ser equiparada à
posição do beneficiário de um direito real de preferência, valendo aqui a
sequela, possivelmente.

14. Pretensões reais.


A pretensão legal é uma relação jurídica decorrente, em regra, da
violação de um direito real, que atribui ao seu titular o poder de exigir uma
determinada prestação (positiva ou negativa). Pode, em determinadas
situações, não resultar de um facto ilícito.

A pretensão real não se confunde com as obrigações reais, pois nestas o


devedor é determinado pela titularidade de um direito real e o credor pode ser
ou não titular de um direito real, enquanto que nas pretensões reais é o credor
que se encontra necessariamente ligado a um ius in rem. Mas pode mesmo
haver uma pretensão real que se fundamente no incumprimento de uma
obrigação real.

Exemplos:

1. A possui ou detém ilegalmente um automóvel que pertence a B;


2. C depositou, sem autorização, materiais de construção num prédio de
D;
3. E passa abusivamente no prédio de F e protesta que continuará a
fazê-lo.

Em todas estas hipóteses, B, D, e F têm pretensões reais contra,


respetivamente, A, C e E, sendo credores de uma prestação.

As pretensões reais mais importantes realizam-se através da ação de


reivindicação e da ação negatória. A primeira utiliza-se quando a violação do
direito real origina uma situação de posse ou de detenção ilegítima por parte do
terceiro demandado: o proprietário exige que a coisa lhe seja restituída. A
segunda é simultaneamente declarativa, reparadora e preventiva: aplica-se em
atos de interferência ou intromissão na coisa, sem que o interferente seja
possuidor ou detentor e visa que seja, judicialmente, declarada a inexistência do
direito que o autor da violação invoca; condenado a eliminar a situação material
criada; e, ainda, se forem receados novos atos de violação, a abster-se de os
realizar.

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Há quem considere que as pretensões reais têm natureza obrigacional,


reconhecendo-se, ainda assim, que a sua origem está nos estatutos dos direitos
reais.

Mas se a proteção de um direito real passa por uma relação obrigacional,


os direitos reais são postos num estado de dependência ou de inferioridade em
relação aos direitos de crédito: não são suficientes, carecem de direitos de
crédito que assegurem a sua proteção.

O sujeito passivo não é o devedor duma relação de crédito, mas o


violador de um direito real e só nesses termos é que nasce a obrigação, pelo
que se entende serem direitos reais.

15. Obrigações reais ou propter rem.


Obrigações reais são obrigações que estão ligadas à titularidade de um
direito real. É um vínculo jurídico em que o titular de um direito real se encontra
adstrito, para com outra pessoa, à realização de uma prestação positiva (dare
ou facere).

Exemplos:

1. Se o proprietário do prédio onerado com uma servidão assumiu,


no título constitutivo desta servidão, a obrigação de pagar as
despesas referentes às obras necessárias ao exercício da servidão,
essa obrigação é real: quem quer que venha a ser proprietário do
prédio onerado (dito serviente) é obrigado a suportar essas
despesas;
2. O titular de um direito de habitação periódica é obrigado a pagar
anualmente ao proprietário do imóvel uma prestação pecuniária
fixada no título constitutivo. Quem quer que seja titular desse
direito real é obrigado a satisfazer aquela prestação;
3. O proprietário de edifício ou obra que ameace ruir é obrigado a
tomar as providências necessárias para eliminar o perigo. Será
devedor da obrigação quem seja o proprietário.

As obrigações reais são estruturalmente verdadeiras obrigações, mas a


sua conexão com os direitos reais impõe alguns desvios ao regime geral das
obrigações. Estas obrigações reais estão subordinadas ao princípio do numerus

15
Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

clausus; a obrigação mantém-se enquanto persistirem os seus pressupostos; a


renúncia liberatória.

É possível o devedor extinguir a sua obrigação, através da renúncia ao


direito real. Para tal, o devedor dirige uma declaração ao credor, manifestando
a sua vontade de renunciar ao direito real, ficando livre da obrigação.
Defendemos que a declaração renunciativa é um negócio não receptício. Trata-
se de um direito potestativo: o credor não pode impedir o seu exercício por
parte do devedor.

Distinguem-se claramente dos direitos reais, mas conectam-se com eles.


A posição doutrinal maioritária é o entendimento de que esta obrigação é parte
constitutiva do direito real.

Considerando que a obrigação real se encontra geneticamente ligada a


um direito real, entende-se que o acompanha sempre que o se titular o
transmita a outra pessoa. A obrigação real tem um caráter ambulatório pois,
estando ligada ao direito real, transmite-se com a transmissão do mesmo.

16. Ónus reais.


Distingue-se da obrigação real o ónus real, no sentido de encargo,
limitação. O ónus real é um encargo especial sobre determinada coisa. A
obrigação é garantida pela própria coisa.

Do lado ativo, o ónus real é constituído por:

1. O direito de exigir, em regra periodicamente, determinada


prestação a quem, na data do seu vencimento, for titular de um
direito real de gozo sobre a coisa onerada;
2. A faculdade de, em sede executiva, obter essa prestação à custa
da coisa onerada, com preferência sobre os respetivos credores
que não disponham de melhor garantia.

Por um lado, temos uma obrigação ligada a um direito real de gozo e, por
outro lado, a própria coisa garante a obrigação. O adquirente responde por
todas as obrigações, inclusive as já vencidas antes da aquisição. O IMI é um
exemplo de ónus real. No direito privado, encontramos um ónus real no crédito
do cônjuge sobrevivo a alimentos da herança do falecido. Quanto às obrigações
anteriores, o adquirente só responde até ao valor da coisa; quanto às
posteriores, responderá com todo o seu património.
16
Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Os ónus reais são direitos reais, não são autónomos a estes, é uma
conjugação de um direito real de garantia com uma obrigação.

CAPÍTULO IV – PRINCÍPIOS ORDENADORES DOS DIREITOS


REAIS
17. Sentido dos princípios ordenadores dos direitos reais
Os direitos reais são um domínio específico do ordenamento jurídico,
uma zona do mundo jurídico. Ora, todo o domínio específico do ordenamento
jurídico assenta sobre determinados princípios fundamentais.

Ora, os direitos reais também estão, portanto, submetidos a certos


princípios, determinados por ideias de caráter ideológico-político, histórico,
económico, etc. e pela técnica jurídica.

Por entendermos ser a teoria eclética a que retrata melhor o regime


jurídico dos direitos reais, defendemos que estes têm dois lados:

a) O lado interno – o lado interno relaciona-se com o facto de um


direito real ser um poder direto e imediato sobre uma coisa.
b) O lado externo – o lado externo liga-se à obrigação geral passiva
de todos os demais sujeitos em relação ao titular do direito real,
com a tutela absoluta destes direitos.

Assim, temos princípios que se relacionam com o lado interno, com o


poder direto e imediato do titular do direito real sobre uma coisa certa e
determinada, e outros que dizem respeito ao lado externo, ou seja, à tutela
absoluta caracterizadora destes direitos.

a) Princípios ligados ao lado interno do direito real:

18. Princípio da coisificação. O problema dos direitos reais sobre


direitos.
O princípio da coisificação é o ponto de partida, i.e., o princípio de que
todo o direito real é um direito sobre coisas, que versa sobre coisas, e não sobre
pessoas ou bens não coisificáveis (prestações, situações económicas não
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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

autónomas). Às coisas stricto sensu não pertencem só as coisas físicas ou


corpóreas, mas igualmente as coisas incorpóreas, designadamente os objetos
da propriedade autoral e industrial e o estabelecimento ou empresa mercantil
(que tem uma incorporalidade sui generis). O art. 1302º CC declara que “só as
coisas corpóreas, móveis ou imóveis, podem ser objeto do direito de
propriedade”. Mas o art. 1303º CC não só admite que pode haver propriedade
para lá da contemplada no código, como o que chama “propriedade
intelectual”, como admite que lhe pode ser estendido subsidiariamente o
regime estabelecido, i.e., admite que sejam direitos das coisas. Além disso,
outras coisas, como o estabelecimento mercantil são passíveis de verdadeira
propriedade. Prova disto são os arts. 94º/3, 1682º-A e 1938º/f), que postulam o
estabelecimento como um objeto passível de alienação e oneração como
qualquer espécie de coisas.

Entende-se que ao falar-se de coisa, se inclui não só a coisa em sentido


estrito (portanto, também as coisas incorpóreas), mas também a coisa em
sentido amplo, ou seja, os próprios direitos (quando passíveis de coisificação).

Concluindo, o princípio da coisificação abrange, em regra, todos os bens


coisificáveis – tanto as coisas em sentido estrito como as coisas em sentido
amplo (direitos) – mas nem todas essas coisas são objeto de todas as situações
reais, variando a área das coisas abrangidas com a situação concreta. A
propriedade e o direito de retenção valem para todas as coisas stricto sensu, e o
usufruto vale para todas as coisas lato sensu (envolvendo os direitos), mas os
outros direitos reais valem apenas para algumas coisas.

O princípio exige a presença de coisas em sentido jurídico, de coisas


como objeto e não de pessoas, de prestações ou de situações económicas não
autónomas.

19. Princípio da especialidade (ou individualização). Exceções.


Referência ao chamado princípio da atualidade (ou imediação). O
dito princípio da totalidade da coisa
O princípio da especialidade ou individualização está consagrado na
nossa lei no art. 408º/2 CC. Não há direitos reais sobre coisas genéricas, sendo
necessária a especificação dessas coisas, que elas se tornem certas e
determinadas, para que sobre elas incida um ius in re. A especificação ou
individualização jurídica não corresponde necessariamente a uma

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

individualização física, mas essa individualização é necessária para que a relação


deixe de ser obrigacional e passe a uma relação real. A individualização não tem
de ser física, pode ser meramente jurídica (como acontece com imóveis,
terrenos e lugares de estacionamento numa garagem em condomínio). Antes de
haver individualização, o direito não incide sobre cada coisa autonomamente;
só no momento da separação se adquire o direito (arts. 204º, 408º/2 in fine,
808º CC).

O mesmo acontece com as coisas relativamente individualizadas – de


algum modo, já certas e determinadas -, mas ainda não separadas ou
autonomizadas de outras coisas. É o caso das partes componentes e partes
integrantes (art.204º/1/e); 204º/3 CC). É o que acontece ainda com os bens
referidos no art. 204º/1/c). São todas elas coisas individuais, mas que se
encontram estreitamente conexas com uma coisa diferente, não sofrendo a
incidência de direitos reais diversos dos que incidem sobre essa coisa a que se
encontram ligadas. Quando se opera a separação é que passam a ser objeto de
um direito real distinto, tendo o negócio que preveja a aquisição deste direito
até esse momento apenas eficácia obrigacional. O regime da acessão (arts.
1325º e ss. CC) está na linha de aplicação deste princípio. A acessão resulta do
facto de uma coisa se confundir com outra, é uma forma de aquisição de
propriedade.

O direito real só incide sobre uma coisa determinada, individualizada. As


coisas corpóreas podem ser objeto de propriedade. Quanto às coisas
incorpóreas, o CC remete para legislação especial, aplicando-se o regime do CC
subsidiariamente. O estabelecimento ou empresa mercantil são coisas
incorpóreas que são objeto de direitos reais. Existem bens que são coisificáveis,
nomeadamente os direitos sobre direitos (art.1439º; art.1676º, 1679º, 1688º/b)
e e)). Esta questão é debatida na doutrina, há autores que defendem que
estamos perante simplesmente transmissão. Há várias situações em que o
direito é visto como um objeto, existe esta coisificação dos direitos.

O facto de o direito recair sobre uma coisa certa e determinada não


exclui a propriedade sobre coisas compostas ou até universalidades. Estamos
perante uma condição da determinação do objeto que permite a sequela e a
preferência.

A individualização diz respeito ao objeto e não ao direito, pelo que


poderão haver direitos sobre a mesma coisa, desde que compatíveis.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Em relação à ideia de atualidade ou imediação, não há direitos reais


sobre bens futuros, apenas sobre coisas presentes, que existam já e em poder
do alienante (no caso de aquisição derivada) (arts. 408º/2 e 211º CC). No fundo,
é um desenvolvimento do princípio da coisificação, pois não existem coisas
enquanto elas não existem ou não estão disponíveis no património do
alienante. Na venda de coisas futuras, o efeito real só se dá aquando da
aquisição pelo alienante.

Por vezes, o princípio da imediação tem de ceder em ordem a coisas só


relativamente futuras (existentes, mas não disponíveis). É o que acontece por
força do instituto do registo ou dos arts. 243º e 291º CC.

Quanto à ideia de totalidade, o direito real abrange todas as partes


integrantes do objeto do direito. Os elementos componentes são aqueles que
não se podem separar sem destruir a coisa (art. 204º/3 CC para os imóveis) e
distinguem-se de elementos acessórios, integrantes, que não estão ligadas à
estrutura da coisa.

20. Princípio da compatibilidade (ou da exclusão). Sentido e


aplicações.
Só pode existir um ius in re sobre determinada coisa na medida em que
ele seja compatível com outro ius in re que recaia sobre ela, i.e., na medida em
que ele não seja excluído por força de um pré-existente ius in re.

O direito real, sendo um poder direto e imediato tende a excluir qualquer


outro poder direto e imediato que atinja as faculdades que ele se reserva sobre
a coisa. Mas isto não obsta à possibilidade de compatibilização entre vários
graus de utilização do objeto, de vários direitos reais diferentes, desde que
sejam distintos poderes diretos e imediatos. Por exemplo, a partir da
propriedade pode ser criado um direito de usufruto e a partir de um usufruto,
uma servidão, etc.

Desde que não se desnature o direito-matriz (que é o que dá acolhimento


ao novo direito), podem a lei ou os interessados estabelecer à custa dele um ius
in re, que é sempre um ius in re aliena. Semelhante acontece com a
compropriedade, contitularidade de direitos reais divisíveis, em que cada direito
de propriedade incide sobre parte do bem. Aqui o objeto dos dois direitos é
distinto, nem sequer se falando em compatibilização.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

No concurso de direitos de preferência pode parecer que o princípio é


posto em causa, mas o conteúdo desses direitos é essencialmente um direito de
aquisição que admite a concorrência de direitos da mesma espécie desde que
exista uma escala ou graduação. E a nossa lei admite esta escala (art. 422º para
os direitos de preferência; art. 686º/1 + 729º para a hipoteca; etc.).

21. Princípio da elasticidade (ou da consolidação). Elasticidade


passiva e elasticidade ativa. Aplicações.
Todo o direito sobre as coisas tende a abranger o máximo de utilidades
que propicia um direito dessa espécie. Isto significa que todo o direito real
tende a expandir-se (ou a reexpandir-se) até ao máximo de faculdades que
abstratamente contém. Isto vale especialmente para o direito de propriedade,
caracterizado como um direito elástico, mas vale para toda a espécie de direito
das coisas que consinta o gravame de um direito mais restrito. Se a partir de um
usufruto se constitui uma servidão, a extinção dessa servidão favorece o
usufruto, que se reexpande automaticamente até ao seu máximo limite.
Acontece o mesmo com um direito de hipoteca sobre um direito de usufruto ou
de superfície.

Na constituição e extinção têm muita importância as figuras,


respetivamente, da aquisição derivada constitutiva e da aquisição derivada
restitutiva.

b) Princípios ligados ao lado externo do direito real:

22. Princípio da tipicidade fechada (taxatividade ou numerus


clausus) dos direitos reais. Fundamento e aplicações. O regime do
artigo 1306.º, n.º 1, do Código Civil.
Os direitos das coisas têm a tendência de se oferecerem em tipos
característicos, aproveitando o Direito as formações consagradas pelos usos ou
criando ele mesmo os tipos normativos que lhe interessem. Estamos perante
“tipos correntes” no primeiro caso, os tipos mais empíricos.

Os tipos são formas de aproveitamento pleno ou limitado das coisas. Não


são conceitos obtidos por abstração generalizante (como os conceitos de direito
subjetivo, direito potestativo, dolo, culpa, etc.), mas sim algo de mais concreto,
21
Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

acarretando o peso de uma experiência comum – quando se trate de tipos


correntes -, ou de uma representação facilmente acessível a um homem
qualquer – no caso dos tipos normativos ou ideais. Os direitos das coisas, mais
do que representações para técnicos, pretendem ser representações para os
leigos, algo acessível e intuível por qualquer um. Assim se explica a sua
conformação em tipos. Há uma relação entre a evolução dos tipos de direitos
reais e os interesses económicos ao longo da história.

Esta característica é de extrema importância pois estes direitos têm


eficácia erga omnes, têm de ser imediatamente acessíveis a uma intuição de
leigos, não técnicos. Tratando-se de um problema de utilização de bens em
grande parte corpóreos, meios materiais de subsistência, suscitam os conflitos
básicos de interesses, pelo que é essencial que estes direitos sejam
imediatamente acessíveis a todos os membros da comunidade.

O direito das coisas não só se apresenta em tipos característicos, mas


numa tipologia taxativa, num elenco fechado de formas ou de direitos. É uma
tipicidade fechada, uma taxatividade, que encontramos nos direitos reais.

No domínio dos contratos, há uma tendência para a estereotipização


(repetição dos tipos de contratos encontrados), mas continua a existir
possibilidade de firmar outros contratos. A tipicidade/numerus clausus diz
apenas respeito aos direitos reais e não aos contratos com eficácia real. O
contrato poderá ser atípico, desde que o direito real seja típico.

Alguns países consagram este princípio expressamente, como é o nosso


caso no art.1306º CC, mas outros não o fazem, apesar de ser doutrina
maioritária que se aplica a este ramo do direito civil. Heck é um dos autores que
se opõe à taxatividade fechada dos direitos das coisas, defendendo o numerus
apertus.

Os tipos admitidos são, porém, tipos abertos (e não tipos fechados como
os do direito criminal), consentindo uma intervenção da vontade que não se
afaste das linhas do tipo. Há mesmo um tipo previsto, a servidão predial, que é
intencionalmente compatível com um número indefinido de concretizações
desse direito.

A criação de direitos reais será nula. Quando há a criação de um direito


real atípico, isto não é oponível a terceiros (art.1306º/1, segunda parte).
Entendemos, com Antunes Varela, que a lei, na última parte do nº1 do art.
1306º CC, estabelece uma presunção iuris tantum de que a conversão
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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

corresponde à vontade hipotética das partes, ficando sempre livre a


possibilidade de prova em contrário.

23. Princípio da transmissibilidade.


Os sistemas de transmissão de direitos (ou em geral de produção de efeitos)
reais: sistema do título e do modo, sistema do modo, sistema do título.
Perspetiva histórica, interesses subjacentes e caracterização desses sistemas.
Para a compreensão deste princípio e dos seguintes, é necessário
verificar as raízes do sistema em que o nosso direito das coisas se insere, quanto
à conciliação dos dois interesses subjacentes ao interesse de estabilidade ou de
estabilização.

Estabilização é a impossibilidade de contestação, o que implica


regularidade da conformação – da produção do direito real considerado – e
indiscutibilidade dessa conformação. Há que conseguir um compromisso entre a
preocupação de regularidade e a preocupação de indiscutibilidade.

Três sistemas estão em confronto: o sistema do título e do modo, o


sistema do modo e o sistema do título. Título tem aqui o sentido de fundamento
jurídico ou de causa que justifica a aquisição, podendo abranger, em princípio,
todas as razões em que se funda a aquisição de um ius in re, quer de trate de lei,
de sentença ou ato jurídico, unilateral ou contratual.

No direito de Roma distinguia-se entre o título – ato pelo qual se


estabelece a vontade de atribuir e de adquirir o direito real – e o modo – ato
pelo qual se realizam efetivamente essa atribuição e aquisição. O título era
insuficiente para a produção do efeito real, exigindo-se o modo, que só por si
também não seria suficiente para a produção do mesmo efeito, necessitando
este de uma justa causa de atribuição. Aqui o compromisso entre os dois
interesses (regularidade e indiscutibilidade) consegue-se através da dupla
dependência do efeito real – dependência de título e de modo – e é ainda hoje
seguido por várias legislações, como a espanhola.

O sistema de modo, consagrado no Código Alemão, caracteriza-se pela


produção do efeito real mediante a tradição ou entrega, para as coisas móveis,
e, para as coisas imóveis, a inscrição no registo fundiário, com o respetivo
acordo de transmissão. Embora estes atos sejam normalmente precedidos de
um contrato prévio em que se manifesta a vontade de atribuir e adquirir o
direito real sobre a coisa, a atribuição e a aquisição não dependem em si
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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

mesmas disso, mas apenas do ato através do qual a atribuição e a aquisição se


efetuam. Ao interesse da indiscutibilidade sacrifica-se o interesse da
regularidade, resolvendo-se o problema através da irrelevância do segundo.

Em França, Portugal, Itália, etc., prevalece o sistema do título, exigindo-se


e bastando para que o ius in re se transmita ou constitua sobre a coisa o ato
pelo qual se estabelece a vontade dessa transferência ou dessa constituição. Ao
interesse da regularidade sacrifica-se, em princípio, o interesse da
indiscutibilidade, ficando a existência do direito em princípio em questão
enquanto estiver em questão o próprio ato que o titula.

Mas nenhum destes sistemas é levado às últimas consequências. O


sistema do modo não desatende por completo às causas de atribuição,
admitindo o recurso à ação por enriquecimento sem causa. O sistema de título,
além das exceções que o aproximam por vezes do sistema do título e do modo,
admite, evidentemente, a usucapião e a proteção de terceiros de boa fé.

Os direitos reais, tal como os outros direitos, podem mudar de titular, são
transmissíveis inter vivos ou mortis causa. Significa isto que a ligação entre os
direitos reais e o seu titular é cindível, pode ser quebrada por vontade do titular
ou por outra causa. Esta característica traduz no fundo a alienabilidade e a
hereditabilidade dos direitos reais, mas não tem carácter absoluto, é uma nota
tendencial que comporta exceções.

O CC não consagra este princípio expressamente, mas pode subentender-


se da faculdade de disposição conferida a todos os direitos reais.

Existem exceções a este princípio. O usufruto pode ser vitalício, mas já


não perpétuo, não é hereditável (art.1444º CC). Outra exceção está presente no
art.1488º, relativamente ao usuário. Este direito de uso tem caráter pessoal,
percebendo-se a ratio desta exceção. O cônjuge sobrevivo tem direito à
habitação da casa do falecido e de uso do seu recheio. As servidões prediais só
são transmissíveis com a transmissão do prédio onerado (arts. 1543º e ss.,
especialmente o art.1545º CC), visto serem caracterizadas por uma imposição
de um encargo a um prédio em benefício de outro. Os direitos legais de
preferência não podem ser transmitidos independentemente da situação a que
se encontram ligados, havendo uma inseparabilidade semelhante à das
servidões prediais. Também há uma exceção na transmissão da hipoteca
(arts.727º e ss. CC).

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Será que é possível uma limitação convencional à transmissão, uma


cláusula de inalienabilidade? Há casos em que a lei o permite, p.ex. no caso das
quotas em sociedades comerciais, cuja transmissão pode necessitar de
autorização. No âmbito obrigacional, é admissível. Mas esta admissibilidade
cessa quando esta cláusula adquira caráter real, por violação do princípio da
tipicidade fechada, pois estaria a ser criada uma restrição ao direito de
propriedade (art. 1306º CC). A regra é, então, que esta cláusula não é oponível a
terceiros.

Mas também a isto existem exceções, como é o caso das substituições


fideicomissárias (art.962º e 2286º CC). Esta cláusula é oponível a terceiros e é
uma exceção ao princípio da transmissibilidade. Outra limitação convencional
reside no art. 959º CC.

24. Princípio da causalidade. Sentido do princípio e exceções.


Ao sistema de modo há de corresponder um princípio de abstração,
abstração esta do efeito real em face do título; ao sistema de título corresponde
o princípio da causalidade.

Enquadrando-se o nosso sistema dentro dos sistemas de título, é


evidente que a constituição ou modificação de qualquer direito sobre as coisas
depende da validade da causa jurídica que precede essas mesmas
consequências, i.e., depende da existência e validade do negócio que operou tal
vicissitude no mundo jurídico-real. Ao contrário do sistema germânico, em que
o efeito real é independente do negócio obrigacional, abstraindo-se deste, nos
sistemas de título o negócio é um e único, obrigacional e real, quanto aos
efeitos. É o que resulta do art. 408º/1 CC. O negócio de efeitos obrigacionais é a
causa jurídica dos efeitos reais, mesmo que a produção destes esteja
dependente de uma ulterior formalidade, como a transmissão da coisa na
doação de bens móveis, não havendo um escrito entre as partes (art. 947º/2
CC).

A vigência da causalidade não postula forçosamente um numerus clausus


das justas causas de atribuição, sendo, pelo contrário, compatível com certa
margem de improvisação dos disponentes. Isto claro não se alterando o
numerus clausus dos direitos reais em vigor e tendo essas causas de atribuição
o mínimo de consistência do ponto de vista dos interesses.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

25. Princípio da consensualidade. O artigo 408.º, n.º 1, do Código


Civil. Sentido do princípio e exceções.
O princípio de que a constituição ou transferência de direitos reais sobre
determinada coisa dá-se por mero efeito do contrato (art. 408º/1 CC) significa,
portanto, que apenas se necessita do mero acordo das partes para produzir os
efeitos reais pretendidos.

O contrato que é fonte de efeitos obrigacionais é a própria fonte dos


efeitos reais, efeitos que só não virão, consequentemente, a produzir-se, não
havendo outra causa de suspensão desses efeitos, se o contrato, como tal, for
inválido.

Não se deve confundir esta consensualidade que vigora nos direitos reais,
com o consensualismo (art. 219º CC), que se opõe ao formalismo e que diz
respeito à ausência de forma do negócio jurídico. Este consensualismo é
importante para a constituição ou atribuição de iura in re – pois a falta de forma
que excecionalmente se exija resulta na irregularidade do título e, por
conseguinte, na violação do princípio da causalidade – não é a aceção rigorosa
do princípio consensual em matéria de direito das coisas, princípio que, de
acordo com o art. 408º/1, se limita a dizer que a produção dos efeitos reais
depende apenas do contrato, formalizado ou não, em que se manifesta a
vontade de produzir esses efeitos.

Se o princípio causal afirma que sem justa causa o efeito real não se
produz, o princípio da consensualidade só adianta que essa condição necessária
é também suficiente, dispensando-se o preenchimento de qualquer outra
exigência não reconduzível ao contrato.

Exceções a este princípio são a doação de bens móveis quando não exista
escrito – exigência de traditio –, na transmissão de títulos ao portador –
exigência também de traditio –, na constituição do penhor de coisas – exigência
de traditio, art. 669º CC –, na constituição de penhor de créditos – exigência de
notificação do devedor – e na constituição de hipoteca – exigência de registo.

26. Princípio da publicidade.


O princípio da consensualidade requer, como compensador, o princípio
da publicidade: o princípio de que, sendo um direito erga omnes, o direito das
coisas deve ser conhecido ou cognoscível das pessoas que virtualmente ele

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

afete, designadamente de terceiros. Se inter partes o efeito constitutivo ou


translativo se produz, em regra, solo consensu, é obvio que o aspeto externo do
direito real tem de exigir uma publicidade suficiente para se dar a conhecer a
terceiros um fenómeno que por definição lhes diz respeito.

Formas de publicidade dos direitos reais, com especial referência ao regime do


registo predial.
Traços fundamentais do direito do registo predial português.
É esta tutela de terceiros que preside aos meios de publicidade
estabelecidos por lei, em especial ao instituto do registo nas suas várias
manifestações: predial, automóvel, de navios e de aeronaves.

Esta exigência de tutela de terceiros sentiu-se principalmente para os


imóveis, não só porque tradicionalmente neles se via a grande base da riqueza
comum, mas ainda porque, correspondendo às maiores unidades de valor, mais
facilmente admitiam a instituição de um sistema particularmente dispendioso
tanto para as finanças públicas como para a economia do indivíduo: a instituição
do registo fundiário ou de inscrição nos livros das conservatórias.

O sistema de registo que vigora entre nós é um registo meramente


declarativo, sendo a única exceção a hipoteca (art. 687º CC). O registo, com
ressalva desta exceção, não é imprescindível à constituição, modificação ou
extinção dos direitos inerentes às coisas – não é, portanto, constitutivo –,
visando apenas assegurar a publicidade em face de terceiros.

A alínea a) do nº1 do art. 2º do Código do Registo Predial refere que


estão sujeitos a registo predial os factos que constituam ou transmitam direitos
reais sobre imóveis. Este registo é obrigatório, mas não é constitutivo, sendo a
sanção ligada à falta de registo pecuniária. O ato continua a ser eficaz. Pelo art.
5º do mesmo código, os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra
terceiros depois da data do respetivo registo. Terceiros, para fins de registo, são
as pessoas que do mesmo autor ou transmitente adquiram direitos
incompatíveis (total ou parcialmente) sobre o mesmo prédio (MANUEL DE
ANDRADE).

27
Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

II PARTE – DIREITOS REAIS EM ESPECIAL

Capítulo I – A posse
27. Noção e distinção da titularidade do direito em cujos termos se
possui.
A noção de posse é dada pelo art. 1251º CC, que a define como “o poder
que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício
do direito de propriedade ou de outro direito real”.

Juridicamente, as noções posse e propriedade diferenciam-se de tal


maneira que a posse pode ou não coincidir com a propriedade.

A posse é admissível em relação a qualquer outro direito real que não a


propriedade, o que significa que pode haver uma posse de uma servidão, de um
usufruto, etc.

Mesmo quando nos referimos a posse como prática de atos


correspondentes ao direito de propriedade, ainda assim posse e propriedade
diferenciam-se.

Muitas vezes, é certo, a posse coincide com a titularidade do direito de


propriedade ou do direito de outro tipo a que corresponde. É o que acontece
quando um proprietário habita o seu prédio, sendo simultaneamente
proprietário e possuidor, não tendo aqui a posse autonomia em relação à
propriedade. Se o proprietário tem o prédio arrendado e recebe as rendas é
igualmente o seu possuidor, uma vez que está a fruir as vantagens económicas
da coisa, na espécie, do seu prédio. Apesar de o prédio ser habitado pelo
locatário, este possui em nome alheio, pois vai pagando as rendas ao
proprietário, sendo este um possuidor por intermediário.

Mas pode não coincidir. É o caso de alguém encontrar coisa perdida ou


furtar um objeto e o guardar, passando a frui-lo, casos em que surge uma
dissociação entre a qualidade de possuidor e proprietário. O proprietário é o
lesado, mas o possuidor será quem furtou o objeto. O mesmo acontece com o
adquirente de venda de coisa alheia. Não se torna proprietário por força do
contrato de compra e venda pois o alienante não possuía nenhum direito, mas
torna-se seu possuidor.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Em todos estes casos, estamos perante situações de posse que não


coincidem com a titularidade do direito real correspondente, uma vez que,
neles, há um indivíduo que detém a coisa em seu poder, mas que não tem a
qualidade de proprietário da coisa.

28. Objeto da posse


Podem ser objeto de posse as coisas que podem ser objeto de
propriedade. Assim, estão excluídos da posse as coisas que estão fora do
comércio, i.e., as coisas integradas no domínio público.

Parece que entre nós estão excluídos da posse os direitos reais de


garantia, apesar de não ser impossível admitir-se a posse para estes, pelo
menos naqueles que conferem um poder de facto sobre uma coisa, como é o
caso do penhor e do direito de retenção.

Os direitos reais de aquisição estão também excluídos da posse. Isto


compreende-se visto estes direitos serem não duradouros, traduzindo-se o seu
exercício num só ato.

Os direitos reais de gozo são suscetíveis de posse. É no seu domínio que


se verifica a posse e não só na propriedade. Também a servidão e o usufruto
podem ser objeto de posse. A posse destes direitos significa praticarem-se
reiteradamente os atos correspondentes ao conteúdo da servidão ou do
usufruto (no caso de usufruto, é fazer seus os frutos).

Quanto ao corpus, a posse do usufruto é igual à posse da propriedade,


mas o animus será diferente. O indivíduo que está na posse como usufrutuário
não atua com o intento de exercer o direito de propriedade, nunca podendo
adquirir o direito de propriedade por usucapião (mas pode adquirir o direito de
usufruto por usucapião!).

Não pode haver posse nas servidões não aparentes, como está previsto
no art. 1280º CC. Os atos correspondentes ao conteúdo das servidões não
aparentes são normalmente atos de tolerância do proprietário da coisa, não
havendo posse.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

29. Função da tutela jurídica da posse (defesa da paz pública,


dificuldade de prova do direito, valor económico)
Poderá parecer estranho que o possuidor seja protegido, podendo este
ser um usurpador ou um adquirente de coisa alheia ou quem furtou, contra o
próprio proprietário. Temos de ter em conta que é sempre uma tutela
provisória visto os meios disponíveis resolverem de imediato, mas não
definitivamente.

Uma das justificações para isto é a defesa da paz pública. A defesa da


posse evita a desordem, garante a paz pública ao não forçar as pessoas à
autotutela dos direitos. Evita-se a anarquia no que toca ao domínio dos bens. Se
não houvessem estes meios ao dispor do possuidor, este iria recuperar a coisa
por suas próprias mãos.

Outra razão, avançada por IHERING para justificar a sua conceção


objetiva (desenvolvido num ponto mais à frente), é a de que a posse permite
facilitar aos autênticos titulares dos direitos a continuação do exercício dos
poderes de facto correspondentes, sem necessidade de prova da existência do
seu direito. A aparência, o facto de se comportarem como proprietários, leva a
que, provisoriamente, sejam tratados como proprietários. Estatisticamente,
são-no na maior parte dos casos. Mediante a simples prova da posse, o
indivíduo que tinha a coisa em seu poder, mantém-na em seu poder, até contra
o verdadeiro proprietário. Mas as hipóteses de proteção possessória do autor
de um furto ou de usurpador são pouco comuns. O caso normal é o do
possuidor ser igualmente proprietário. A prova da existência do direito é, muitas
vezes, muito difícil e demorada, e, se fosse exigida, podia não tutelar a posição
do possuidor em tempo útil.

Finalmente, a última justificação prende-se com o valor económico da


posse. A posse é um elemento importante do ponto de vista da produção e da
economia em geral. A exploração das coisas tem em si um valor económico e
interessa mais à economia geral a exploração da coisa do que a propriedade
inerte, passiva, inativa. Deste ponto de vista, interessa que a posse seja
protegida, designadamente a atribuição ao possuidor de boa fé os frutos da
coisa, etc.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

30. Elementos da posse: doutrinas objetivista e subjetivista; o


elemento material e o elemento psicológico; posição do Código
Civil Português.
Numa situação de posse, distinguem-se dois elementos:

1. O elemento material, corpus, que se identifica com os atos


materiais praticados sobre a coisa, com o exercício de certos
poderes sobre a coisa;
2. O elemento psicológico, animus, que se traduz na intenção de
se comportar como titular do direito real correspondente aos
atos praticados.

O elemento material, ou corpus, pode traduzir-se no exercício de poderes


de detenção, i.e., em guarda a coisa em seu poder, conservá-la, se é móvel,
ocupando-a, se é imóvel. Não é necessário um permanente contacto físico com
a coisa. Basta que a coisa esteja virtualmente dentro do âmbito do poder de
facto do possuidor (p.ex. quando se deixa o automóvel estacionado durante
umas horas, não se deixa de ser seu possuidor).

O corpus pode também traduzir-se em atos de fruição, ou até dos dois


tipos, de detenção e fruição conjuntamente. É o que se verifica quando um
indivíduo recolhe os frutos de um prédio rústico ou recebe as rendas de um
prédio, estando a frui-lo. Nestas hipóteses não tem que haver contacto físico
com a coisa em nenhuma circunstância. Mas nos atos de detenção, não tendo
que haver um contacto físico com a coisa em todos momentos, esse contacto
tem de existir em algum ponto. A própria lei, no art. 1252º CC, fala na posse por
intermédio de outrem.

O outro elemento, o animus, traduz-se num elemento de natureza


psicológica. É necessário, para haver posse, além desta situação material de
exercício de um poder de facto sobre a coisa, a vontade de se comportar como
titular do direito correspondente aos atos realizados. Não tem de ser
necessariamente um animus domini, visto que pode haver posse fora da
propriedade, falando-se sim de um animus possidendi. Pode haver posse de um
direito de usufruto ou de um direito de servidão, sem que o indivíduo que está
na posse destes direitos – usufruto ou servidão – queira comportar-se como
proprietário, mas antes, no caso de usufruto, como usufrutuário. Exemplo é o
caso do locatário, que apesar de praticar em relação à coisa atos equivalentes
ao conteúdo da propriedade, fá-lo por força de um título (contrato) que é

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

permanente reconhecimento de que não é proprietário. Não havendo animus


possidendi (ou animus domini na propriedade), não há posse.

Existem duas conceções da posse, que vêm responder à questão da


necessidade, para existir a posse, da concorrência destes dois elementos: uma
objetiva e uma subjetiva.

A conceção objetiva, defendida por IHERING, considera que basta para


haver posse o elemento objetivo, o corpus, o elemento material. Existindo este,
existe posse. De acordo com esta conceção, o locatário seria possuidor. Para
IHERING, a razão pela qual todos os sistemas protegem a posse seria por causa
da dificuldade de prova do direito definitivo (probatio diabólica).

A conceção subjetiva, com SAVIGNY, entende que são necessários os dois


elementos, só havendo posse quando existam animus e corpus conjuntamente.
Se se perder algum destes elementos, ou os dois, deixa de haver posse. Para
SAVIGNY, o fim e a causa de uma proteção jurídica da posse era a defesa da paz
pública, só fazendo isso sentido quando existisse animus por parte do
possuidor.

A posição legal do nosso Código é a subjetiva, verificando-se que se exige


o corpus e o animus nos arts. 1251º e 1253º CC. Se faltar o animus possidendi,
estamos perante uma mera detenção ou posse precária. Mas foram
consagradas soluções que se aproximam da conceção objetiva, ao ser concedida
a tutela possessória a meros detentores ou possuidores precários (locatário –
art. 1037º/2; comodatário – art. 1133º/2; depositário – art. 1188º/2). Contudo,
não estão equiparados aos possuidores, nomeadamente para efeitos de
usucapião.

A nossa lei exige, então, o animus e o corpus para que se esteja perante
posse e isso implica que se tenha que provar a existência dos dois elementos
para se poder, por exemplo, adquirir por usucapião ou lançar mão das ações
possessórias. A prova do animus pode ser especialmente difícil. Para facilitar, o
legislador estabeleceu uma presunção: em caso de dúvida, presume-se a posse
naquele que exerce o poder de facto (art. 1252º/2 CC). O exercício do corpus,
faz presumir a existência de animus.

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31. Caracteres da posse: titulada e não titulada, pacífica e violenta,


pública e oculta, de boa fé e de má fé. Posse precária e mera
detenção. Outras classificações.
A posse pode, em primeiro lugar, ser titulada ou não titulada, distinção
que importa para efeitos de usucapião, nomeadamente em termos de prazos. O
art. 1259º CC diz-nos que a posse titulada é a que se funda num modo legítimo
de adquirir, ou seja, se funda num modo que segundo o seu tipo geral é idóneo
para provocar uma aquisição, independentemente de, no caso concreto, o
transmitente ter ou não o direito a transmitir e independentemente da validade
substancial do negócio jurídico.

Isto significa que um negócio que, por seu tipo geral, é idóneo para
transmitir um direito, titula a posse, mesmo que haja um motivo substancial de
invalidade, como por exemplo, em caso de venda anulável por dolo ou coação,
erro ou incapacidade.

Mas é necessário que não exista invalidade formal, pois a existir, o título
não é válido, sendo a posse não titulada (p.ex. uma venda verbal de um imóvel).

A posse pacífica é aquela que foi adquirida sem violência (art. 1261º CC),
contrapondo-se-lhe a posse violenta. Esta distinção tem importância
nomeadamente para os efeitos do art. 1297º CC.

A posse pública é a que se exerce de modo a ser conhecida pelos


interessados (art. 1262º CC). Pelo contrário, a posse pode ser oculta. Também
esta distinção interessa para efeitos do art. 1297º CC. Se foi constituída
ocultamente, os prazos para a usucapião só começam a contar-se desde que a
posse se torne pública. Assim, um indivíduo que furtou um objeto e o guardou
por vinte anos não o adquire por usucapião.

Outra distinção que se faz é entre a posse de boa fé e a posse de má fé. A


noção de posse de boa fé encontra-se no art. 1260º CC, donde se infere a
contrario sensu a noção de posse de má fé. Esta distinção também importa para
efeitos de usucapião, em matéria de prazos (arts. 1295º e 1296º CC). Além
disto, os direitos do possuidor de boa fé, quanto a frutos e benfeitorias, são
diversos dos do possuidor de má fé (art. 1270º, 1271º e 1275º CC).

O nosso Código, no art. 1253º, considera que são detentores ou


possuidores precários os que exercem o poder de facto sem intenção de agir
como beneficiários do direito; os que simplesmente se aproveitam da tolerância

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

do titular do direito; os representantes ou mandatários do possuidor e, de um


modo geral, todos os que possuem em nome de outrem. A posição do possuidor
precário ou detentor corresponde à situação de quem, tendo o corpus da posse,
não exerce o poder de facto com o animus de exercer o direito real que lhe
corresponde.

A doutrina ainda avança outras classificações:

1. Posse causal: o possuidor é simultaneamente titular do direito


real a cujo exercício a posse corresponde. Não se trata, então
de uma posse autónoma, mas sim de um reflexo de um direito
real.
2. Posse formal: é a posse autêntica, autónoma, i.e., aquela em
que o possuidor não tem, ou não invoca, a qualidade de titular
de um direito real a que corresponda. É protegida pelo direito
como um bem no presente e um bem para o futuro.
3. Posse efetiva: é a posse que implica um controlo material sobre
a coisa. A lei refere-a, por vezes, ao falar de posse atual (art.
1278º/3 CC).
4. Posse não efetiva: é a posse que se conserva por via
puramente jurídica, sem controlo corpóreo. É exemplo a posse
do esbulhado durante o ano subsequente ao esbulho (art.
1283º CC). Há quem lhe chame posse ficta.
5. Posse imediata: é aquela que se exerce imediatamente, sem
mediador.
6. Posse mediata: é aquela que se exerce através de outrem
(comodatário, locatário, depositário).

32. Aquisição da posse


A aquisição da posse pode ser originária ou derivada.

A aquisição originária decorre duma relação de facto entre o adquirente-


possuidor e a coisa, sem a intervenção do antigo possuidor, não estando a posse
dependente nem quanto à existência nem à extensão da posse anterior. É um
poder ex novo.

Por outro lado, a aquisição derivada caracteriza-se pela transferência da


posse do anterior para o novo possuidor. Exige um negócio jurídico e depende
da existência dos elementos material (corpus) e intencional (animus). Como a

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posse é adquirida com o consentimento do possuidor anterior, o ato material


não tem de ter a mesma intensidade que se exige na aquisição originária: basta
a entrega simbólica da coisa.

Têm capacidade para adquirir a posse todos os que têm uso da razão e
mesmo os que não o tenham, só relativamente às coisas suscetíveis de
ocupação (art. 1266º CC). Há autores, que, defendendo a orientação subjetivista
do código, consideram que a exigência do uso da razão “resulta do facto de o
animus possidendi ser um elemento essencial da posse”, pois “o animus só
pode existir em quem tenha uma vontade e só tem vontade juridicamente
relevante quem tiver o uso da razão”. Só não é exigido em relação às coisas
suscetíveis de ocupação pois estamos perante res nullius, não havendo
interesse de terceiro que importe proteger.

1) Aquisição originária

Segundo ORLANDO DE CARVALHO, a ocupação e a acessão são formas de


aquisição originária da posse, tal como o são relativamente à propriedade.

 Ocupação:

A ocupação é uma forma de aquisição da propriedade de coisas móveis


sem dono, já que nunca o tiveram, já porque foram abandonadas, já que se
perderam ou esconderam, não podendo determinar-se a quem pertencem. As
coisas imóveis são insuscetíveis de ocupação, pois se não tiverem dono
revertem para o património do Estado. Tal como se pode adquirir a propriedade
por ocupação, também se pode adquirir a posse.

A sua apropriação dá-se pela simples operação jurídica de apreensão


material, entrando a coisa na disponibilidade fáctica do sujeito. Se não forem
preenchidos os requisitos dos arts. 1318º e ss. CC, para a aquisição da
propriedade, havendo corpus e animus, estamos perante posse formal ou
autónoma. Esta posse adquirida por ocupação é titulada. Se se entender que
aquela coisa não podia não ter dono, já estaremos perante usurpação.

 Acessão:

É também uma forma de aquisição da propriedade, tanto sobre móveis


como imóveis. Decorre da adjunção, por obra da natureza ou do homem, de
uma coisa (objeto enriquecedor) a outra coisa (objeto enriquecido). Na acessão

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

natural, a entrada do bem adjunto na área de disponibilidade do sujeito


depende de o objeto enriquecedor, que é sua propriedade, estar na sua posse.

No caso da acessão industrial, como esta implica indústria humana, o


adjuntor exerce sempre poder de facto sobre a coisa, ou pelo menos, sobre o
objeto enriquecido, por isso, mesmo que não se preencham os requisitos legais
para a propriedade, se houver intenção de apropriação, haverá corpus e
animus, logo posse.

Só há acessão se o adjuntor não souber que o objeto é alheio ou que o


seu dono não autoriza a adjunção. Caso contrário, não será acessão mas sim
usurpação.

 Usurpação:

Dentro da usurpação, que são formas originárias de aquisição da posse


contra a vontade do possuidor anterior, este autor indica a prática reiterada, a
inversão do título da posse e o esbulho, em situações residuais.

A aquisição originária da posse é referida pelo código através da prática


reiterada, com publicidade, dos atos materiais correspondentes ao exercício do
direito. Quanto a isto:

a. Prática reiterada: não basta a prática de um único ato, embora os


atos possam ser diferentes. No entanto, é possível que um só ato
baste para evidenciar a posse (p.ex. quando se constrói uma casa
num terreno);
b. Publicidade: os atos materiais devem ser suscetíveis de
conhecimento pelos interessados. Assim, não merecem proteção
os atos possessórios clandestinos ou ocultos;
c. Atos materiais: só têm interesse os atos que incidam direta e
materialmente sobre coisa, i.e., atos que traduzam o corpus;
d. Correspondência com o exercício do direito: adverte-se que a
qualificação do direito correspondente à posse nem sempre se faz
com facilidade, porque há muitos atos materiais que se integram
no exercício de direitos reais diferentes (como a propriedade e o
usufruto), podendo ser necessário recorrer ao título (quando o
houver) ou ao animus possidendi.

A inversão do título pode dar-se por oposição do detentor do direito


contra aquele em cujo nome possuía ou por ato de terceiro capaz de transferir a

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posse (art. 1265º CC). Trata-se de conversão de uma situação de posse precária
numa verdadeira posse, de forma que aquilo que se detinha a título de animus
detinendi passa a deter-se a título de animus possidendi. Para ORLANDO DE
CARVALHO, a inversão do título da posse é uma inversão do animus: o animus
não relevante transforma-se em animus relevante.

O primeiro caso, de oposição do detentor do direito contra aquele em


cujo nome possuía, tem como exemplo mais corrente o de o arrendatário se
recusar a pagar a renda, afirmando que o prédio lhe pertence. A intenção do
detentor de atuar como titular do direito tem de ser comunicada (judicial ou
extrajudicialmente) à pessoa em nome de quem possuía e esta oposição não
pode ser contrariada.

Na segunda hipótese, por ato de terceiro capaz de transferir a posse,


estamos perante casos em que o arrendatário, p.ex., compra o prédio a um
terceiro. A compra e venda inverte o título precário de arrendatário, sendo
igualmente necessário que este passe a comportar-se como possuidor, p.ex.,
deixando de pagar a renda ao senhorio. Esta aquisição é originária porque o ato
de terceiro foi justamente desencadeante da aquisição da posse, mas não
causante dessa aquisição (ORLANDO DE CARVALHO).

Finalmente, ORLANDO DE CARVALHO fala na aquisição originária por


esbulho. Fala-se num esbulho residual, que abrange todas as formas de
privações ilícitas da posse de outrem, contra a vontade do possuidor, não
especificamente previstas na lei.

A lei, ao falar de esbulho nos arts. 1267º/2 e 1276º e ss., está a referir-se
não só a esse esbulho residual, mas a todas as formas de usurpação, incluindo
as previstas na lei e referidas acima (esbulho lato sensu).

Não serão ilícitas as privações da posse com consentimento do possuidor,


nem as que traduzam o exercício de um direito.

É necessário o corpus e o animus, neste caso o animus spoliandi por


parte do esbulhador, a intenção de ficar com a posse de outrem.

A posse criada pelo esbulhador originariamente aparece como


antagónica da posse do esbulhado, cabendo no art. 1267º/1/d) CC. O esbulhado
tem um ano para reagir contra a nova posse e se lhe for restituída a sua posse
tem-se como não interrompida e a usurpação como não acontecida (art. 1283º
CC).

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2) Aquisição derivada

 Traditio

O CC refere a tradição material ou simbólica, efetuada pelo anterior


possuidor (art. 1263º/b) CC). Na tradição material há uma atividade exterior que
se traduz nos atos de entregar e receber; na tradição simbólica, tudo se passa a
nível da comunicação humana, sem direta interferência no controlo material da
coisa. A tradição simbólica pode ocorrer por:

a. Traditio brevi manu: realiza a conversão da detenção em posse


por acordo entre o detentor e o possuidor. P.ex., quando o
quando o proprietário-possuidor vende a coisa depositada ao
depositário ou o prédio arrendado ao arrendatário. Esta traditio
tem a vantagem de não ser necessário que o detentor entregue a
coisa ao possuidor para que este lha volte a entregar em seguida;
b. Traditio ficta: consiste na entrega de um símbolo ou realização de
um ato que simboliza a coisa cuja posse se transfere. P.ex.,
quando se entregam as chaves de um armazém, que funciona
como traditio das coisas aí depositadas.

 Constituto possessório

Outra forma de aquisição derivada da posse é o constituto possessório,


que opera solo consensu, i.e., sem necessidade de ato (material ou simbólico)
de entrega da coisa. A posse é atribuída sem a detenção. Segundo ORLANDO DE
CARVALHO, com SAVIGNY, o constituto possessório é, de certo modo, o inverso
da traditio brevi manu: nesta, o detentor passa a possuidor; naquele, o
possuidor passa a detentor, sendo a posse adquirida pelo beneficiário da
operação.

O CC considera duas espécies:

i. O titular do direito real e possuidor transmite o seu direito


a outrem e reserva, para si, a detenção (art. 1264º/1 CC): a
causa possessionis do alienante torna-se causa detentionis;
ii. O possuidor transfere o seu direito a outra pessoa,
mantendo-se o seu detentor: o proprietário-possuidor
vende a coisa depositada e pretende-se que o depósito
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continue; ou um prédio arrendado é vendido, mantendo-se


o arrendamento.

 Sucessão mortis causa

Por morte do possuidor, a posse continua nos seus sucessores desde o


momento da morte, independentemente da apreensão material da coisa (art.
1255º CC). Considera-se que a lei ficciona não só o corpus, mas também o
animus, havendo uma sucessão na posse sem interrupção. Isto implica que a
posse continua nos herdeiros, o sucessor não precisa de praticar qualquer ato
material de apreensão ou utilização da coisa, podendo até ignorar que a posse
existe, a posse continua com os seus caracteres (boa ou má fé, titulada ou não,
pacífica ou violenta) e a continuação da posse não é prejudicada pelo facto de o
sucessor não ter tido a posse da coisa durante o período entre a abertura da
sucessão e a aceitação da herança.

Será que o legatário sucede na posse? Apoiados na letra da lei, PIRES DE


LIMA e ANTUNES VARELA, consideram que não há nenhuma limitação a fazer no
domínio da sucessão mortis causa e que a posse continua sempre no chamado à
sucessão dos bens, seja herdeiro ou legatário. Mas há quem entenda (MENEZES
CORDEIRO) que o legatário, ao contrário do herdeiro, pode aceitar ou recusar a
posse que lhe for legada, e que ao aceitar, mudam-se os seus caracteres. Por
isto, defende que não se poderá falar em sucessão na posse por parte do
legatário e enquanto a coisa lhe não for entregue, não existe posse.

33. Efeitos da posse: efeito probatório, regimes da perda ou


deterioração da coisa, dos frutos, dos encargos e das benfeitorias.
A usucapião.
A posse confere ao seu titular uma série de efeitos favoráveis.

1) Efeito probatório

Em primeiro lugar, o efeito probatório da posse, presente no art. 1268º


CC, estatui que a posse confere a presunção da titularidade do direito. Ou seja,
presume-se que quem está na posse de uma coisa, é titular do direito
correspondente aos atos que se praticam sobre ela. Esta presunção foi uma
opção do legislador e revela grande valor prático. De facto, pode ser difícil ou

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impossível provar diretamente por uma cadeia ininterrupta de transmissões a


titularidade do direito (prova diabólica).

Esta presunção significa, portanto, que numa ação de reivindicação,


quem tem o ónus da prova será o reivindicante e não o possuidor. Assim, pode
ser atribuída a propriedade ao possuidor não porque se provou que ele é
realmente proprietário, mas porque o reivindicante não conseguiu provar que o
possuidor o não era. Em situação de dúvida, favorece-se o possuidor.

2) Frutos

Em relação aos frutos da coisa possuída, os efeitos são diferentes


consoante a posse seja de boa ou de má fé. Se não fossem reconhecidos direitos
aos frutos, o possuidor poderia perder o seu interesse, com grave dano para a
economia e comércio jurídico.

Se o possuidor estiver de boa fé, pertencem-lhe os frutos naturais


colhidos até ao dia em que a boa fé cessar, ou seja, em que souber que está a
lesar, com a sua posse, o direito de outrem. Pertencem-lhe também os frutos
civis correspondentes ao mesmo período (art. 1270º/1 CC). Agindo o possuidor
de boa fé na convicção de que é titular de um direito sobre a coisa, não seria
justo que a lei o obrigasse a restituir os frutos percebidos (ou o seu valor), pois
contava com eles e ordenou nessa base a sua vida (PIRES DE LIMA e ANTUNES
VARELA).

Se a boa fé cessar quando os frutos ainda estão pendentes, estes


pertencem ao titular do direito sobre a coisa, sendo obrigado a indemnizar o
possuidor das despesas que teve, desde que não sejam superiores ao valor dos
frutos colhidos (art. 1270º/2 CC).

Se os frutos tiverem sido alienados pelo possuidor, antes da colheita e


ainda em boa fé, essa alienação subsiste, mas o produto da colheita pertence ao
titular do direito, deduzindo-se a indemnização das despesas ao possuidor (art.
1270º/3 CC).

No caso de colheita prematura de frutos, o possuidor de boa fé deve


restituí-los, se ainda os não consumiu, tendo ainda assim direito à indemnização
referida acima (arts. 214º e 215º CC).

Já se o possuidor estiver de má fé, deve restituir os frutos que a coisa


produziu até ao termo da posse e responde pelo valor dos frutos que um
proprietário diligente poderia ter obtido (art. 1271º CC). Esse proprietário
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diligente é colocado nas circunstâncias em que o possuidor atuou. Deve ser


ressarcido das despesas de cultura não superiores ao valor dos frutos, caso
contrário estaríamos perante um caso de enriquecimento sem causa do
proprietário, pois ele teria que fazer essas mesmas despesas se estivesse na
posse da coisa.

3) Perda ou deterioração da coisa

O possuidor de boa fé é responsável por perda ou deterioração da coisa


se tiver precedido com culpa (art. 1269º CC). A contrario sensu, o possuidor de
má fé responde mesmo que tenha atuado sem culpa. Mas esta solução deve ser
afastada se provar que a perda ou deterioração se teriam igualmente verificado
se a coisa se encontrasse em poder do titular do direito (ORLANDO DE
CARVALHO). A posse de má fé é um ato ilícito que constitui em mora o
possuidor quanto à obrigação de restituir a coisa ao seu titular (art. 805º/2/b)
CC), pelo que se aplica aqui a doutrina aplicada ao devedor em mora (art.
807º/2 CC). Cabe ao possuidor fazer esta prova.

4) Encargos

Os encargos com a coisa objeto de posse são pagos pelo titular do direito
e pelo possuidor, na medida dos seus direitos sobre os frutos no período a que
esses encargos respeitam (art. 1272º CC). São encargos normais que estão
ligados à fruição da coisa (contribuições, juros, etc.).

5) Benfeitorias

Importa distinguir entre benfeitorias necessárias, úteis e voluptuárias:

i. Benfeitorias necessárias: o possuidor de boa ou má fé tem


direito a ser indemnizado (art. 1273º/1 CC). Tem-se em vista
evitar o enriquecimento em causa do titular do direito real
sobre a coisa benfeitorizada porque eram despesas que o
titular teria de fazer, por serem indispensáveis à subsistência
da coisa.
ii. Benfeitorias úteis: o possuidor de boa ou má fé pode levantá-
las, se o puder fazer sem destruir a coisa (não o poderá fazer,
portanto, se forem partes componentes da coisa, mas poderá
se forem partes integrantes ou acessórias). Senão as puder
levantar, tem direito a ser indemnizado segundo as regras do

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enriquecimento sem causa (art. 1273º/2 CC). O possuidor de


boa fé goza do direito de retenção.
iii. Benfeitorias voluptuárias: o possuidor de boa fé pode levantá-
las se não causar detrimento da coisa. Se causar, não as pode
levantar nem tem direito a qualquer indemnização (art.
1275º/1 CC). O possuidor de má fé nunca as poderá levantar
nem tem direito a indemnização (art. 1275º/2 CC). Este
preceito tem um teor punitivo, segundo alguns autores.
6) Usucapião

A usucapião permite que, verificados determinados requisitos, o


possuidor adquira a titularidade de certos direitos reais de gozo (art. 1287º CC).

O nosso CC exige dois elementos: a posse e o tempo. A posse deve ser


pública e pacífica (arts. 1293º/a); 1297º; 1300º/1 CC). O tempo depende do
caráter móvel ou imóvel da coisa possuída e de outras características da posse,
tais como ser de boa ou má fé, titulada ou não e estar ou não registada.

Podem ser adquiridos por usucapião os direitos reais de gozo,


excetuando as servidões não aparentes e o direito de uso e habitação (art.
1293º CC).

À usucapião são aplicáveis as regras relativas à prescrição (art. 1292º CC)


e os seus efeitos retrotraem-se à data de início da posse (art. 1288º CC).

Quanto à capacidade, a usucapião aproveita a todos os que podem


adquirir (art. 1289º/1 CC). Os incapazes podem adquirir por usucapião, por si ou
por intermédio de quem os represente (art. 1289º/2 CC). Devem ter o uso da
razão, i.e., a consciência de que estão a praticar atos materiais de posse (art.
1266º CC). Dispensa-se o uso da razão nas coisas suscetíveis de ocupação pois,
tratando-se de res nullius, a usucapião não suscita problemas em relação a
terceiros.

Os detentores ou possuidores precários não podem adquirir para si, salvo


se o título se achar invertido e o prazo começa a contar dessa inversão (art.
1290º CC). Mas poderão adquirir para a pessoa que representam (art. 1252º/1
CC).

Em relação aos prazos, quanto às coisas imóveis: se existir título de


aquisição e registo, a posse deve durar dez e quinze anos contados da data de
registo, respetivamente se o possuidor estiver de boa ou de má fé (art. 1294º

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

CC); Se não existir título mas houver registo da merda posse, os prazos são de
cinco e dez anos contados da mesma data, respetivamente no caso de boa e de
má fé (art. 1295º CC); quando não exista registo do título (ou quando este falte,
com PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA), os prazos são de quinze e vinte anos,
contados desde o início da posse, respetivamente em caso de boa ou de má fé
(art. 1296º CC).

Na posse obtida por violência ou ocultamente, os prazos só começam a


contar quando a violência cessa ou a posse se torna pública (art. 1297º CC).

Em relação à usucapião de coisas móveis, se forem registáveis aplica-se o


disposto no art. 1298º CC; se forem não registáveis, o art. 1299º CC. Em relação
a estas, continua a proibir-se a usucapião na posse violenta ou oculta (art.
1300º/1 CC), mas se a coisa possuída passar a terceiro de boa fé, o interessado
pode adquirir direitos sobre ela, decorridos quatro ou sete anos a partir da
constituição da posse, consoante seja titulada ou não titulada (art. 1300º/2 CC).
É um caso especial que necessitou de uma solução baseada na equidade.

34. Conservação e defesa da posse.


A posse mantém-se enquanto durar a atuação correspondente ao
exercício do direito ou a possibilidade de a continuar (art. 1257º/1 CC). Além
disso, presume-se que a posse continua em nome de quem a começou (art.
1257º/2 CC).

Mas será que a posse se mantém se o direito real a que correspondem se


extinguir por não uso? A solução prende-se com a conceção de posse adotada:
Segundo SAVIGNY, o possuidor conserva a posse; para IHERING, a posse
desaparece logo que o direito a que corresponde deixar de existir. MANUEL
RODRIGUES E MENEZES CORDEIRO consideram que a posse não pode subsistir
nesses casos, tal como ORLANDO DE CARVALHO. PIRES DE LIMA e ANTUNES
VARELA defendem que enquanto não for declarada a extinção do direito real, o
possuidor pode defender a sua posse.

As ações possessórias.
A posse constitui um bem no presente e um bem para o futuro,
satisfazendo dois interesses fundamentais: um, de organização (ligado à
continuidade da coisa possuída na esfera do domínio em que se encontra);

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

outro, de conhecimento (ligado à presunção de dominalidade que se prende ao


facto da posse). Portanto, deve ser protegida para cumprir a sua função. É uma
tutela rápida e provisória, não tendo o possuidor de fazer prova do direito sobre
a coisa possuída de que se afirma titular: basta-lhe provar que possui (art.
1252º/2 CC).

1) Ação de prevenção

O possuidor, que tiver justo receio de ser perturbado ou esbulhado por


outrem, pode requerer que este seja intimado para se abster de lhe fazer
agravo, sob pena de multa e responsabilidade pelo prejuízo que causar (art.
1276º CC). Este receio deve ser sério, apoiando-se em razões objetivas e os atos
devem ser materiais.

2) Ação de manutenção

Esta ação permite que o possuidor perturbado seja mantido na posse


enquanto não for resolvida a questão da titularidade do direito (art. 1278º/1
CC). Se a posse não tiver mais de um ano, só pode ser mantida contra quem não
tenha melhor posse, sendo melhor posse a titulada ou, na falta de título, a mais
antiga. Se tiverem antiguidade igual, prefere-se a posse atual.

Esta ação supõe que o requerente se encontra na posse da coisa, pois só


se pode manter algo que se conserva. Se já se foi esbulhado, não há lugar a esta
ação, mas sim a uma ação de restituição.

3) Ação de restituição da posse

Está prevista igualmente no art. 1278º CC. O possuidor esbulhado será


restituído enquanto não for resolvida a questão da titularidade do direito. Se a
posse não tiver mais de um ano, o possuidor só pode ser restituído contra quem
não tiver melhor posse, nos mesmos termos da ação de manutenção. Agora
estamos perante uma situação de esbulho que supõe a privação total ou parcial
da posse.

4) Ação de restituição no caso de esbulho violento

Se o esbulho for violento, o possuidor é restituído provisoriamente à sua


posse, sem audiência do esbulhador. Estamos perante um procedimento
cautelar que difere a audiência do esbulhador. A violência pode ser exercida
sobre pessoas e coisas.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

5) Embargos de terceiro

O possuidor pode defender a sua posse, quando esta for ofendida por
penhora ou diligência ordenada judicialmente, mediante embargos de terceiro
(art. 1285º CC). Quando não for parte na causa, o possuidor tem esta faculdade
de fazer valer o seu direito ou posse incompatível com um ato judicial de
apreensão ou entrega da coisa possuída.

35. Natureza jurídica da posse. As posições defendidas na


doutrina, argumentos.
A natureza jurídica da posse tem sido discutida desde a Escola dos
Comentadores. Estamos perante um facto ou um direito?

Uma das doutrinas considera que a posse é um facto jurídico relevante, é


a opinião mais vulgar, sustentando-se mesmo que a própria natureza da posse é
contrária à ideia do direito, pois não há direito que não seja justo e a posse é,
muitas vezes, resultado do dolo, violência e injustiça.

A outra doutrina considera que a posse é um direito real, um direito


subjetivo porque há um poder, um interesse e uma garantia jurídica.

MOTA PINTO acolhe a última doutrina, defendendo que a posse não é


um mero facto porque o seu regime revela ser um verdadeiro direito real
(embora) provisório. É um direito real porque a posse confere um poder sobre
uma coisa em face de todos os outros. Mas é um direito real provisório porque
a sua proteção só se mantém até à ação de reivindicação, se não houver
usucapião.

Capítulo II- A propriedade


Secção I – A propriedade em geral.
36. Noção
O nosso Código Civil não define a propriedade, visto “toda a definição em
direito civil ser perigosa”, referindo-se apenas ao seu normal conteúdo no art.
1305º CC. Observa-se que o gozo não é específico da propriedade e que podem
existir proprietários sem o uso e a fruição (sucede com a nua propriedade, em
consequência da constituição de um usufruto ou uso e habitação) e também

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

sem o direito de disposição (propriedade doada com a reserva de o doador


dispor, por ato mortis causa ou inter vivos, da coisa doada – art. 959º CC).

Tudo depende da situação histórica considerada e entende-se que é


fundamental a delimitação negativa do direito de propriedade. Mesmo assim,
muitos autores avançam definições de propriedade. Para OLIVEIRA ASCENSÃO,
a propriedade é o direito real que outorga a universalidade dos poderes que à
coisa se podem referir. MENEZES CORDEIRO fala de afetação jurídico-privada de
uma coisa corpórea, em termos plenos e exclusivos, aos fins de pessoas
individualmente consideradas.

37. Breve referência histórica; em particular, a controvérsia em


torno da propriedade individual e da propriedade coletiva.
A propriedade é o molde jurídico onde se vaza o poder humano do usar,
gozar ou dispor dos bens de forma plena. Constitui o instrumento, por
excelência, da realização de poderes sobre os bens.

Existe grande controvérsia à volta da questão da titularidade da


propriedade, se individual ou coletiva.

Os defensores da propriedade coletiva foram PLATÃO, ANTERO DE


QUENTAL, MARX E ENGELS. Já ARISTÓTELES, S. TOMÁS DE AQUINO, SAY,
STUART MILL foram defensores da propriedade privada.

Por um lado, como méritos da propriedade individual, argumenta-se com


o estímulo económico por ela representado e o seu valor como garantia de
liberdade individual ou familiar. No lado oposto, liga-se à supressão ou limitação
da propriedade uma autêntica liberdade e critica-se a anarquia económica da
propriedade privada que deveria ser planificada, as desigualdades, etc.

Defende-se a tese da anterioridade da propriedade coletiva sobre a


propriedade individual. Segundo estes autores, numa sociedade primitiva,
passou-se da comunidade de clã para a comunidade de aldeia, da comunidade
de aldeia para a propriedade familiar e desta para a individual. Nas sociedades
arcaicas, há um menor sentido do “tenho” do que nas sociedades posteriores e
há um âmbito mais amplo de apropriação coletiva dos diversos bens nessas
sociedades.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Na Roma clássica encontramos a propriedade individual como regra, mas


também existem indícios de uma propriedade coletiva e de uma propriedade
familiar. A propriedade individual aparece ligada ao chefe de família na
qualidade de paterfamilias, que sobre ela tem um poder absoluto. Esta
propriedade definia-se na qualificação tripartida “ius utendi, ius fruendi, ius
abutendi.

As escolas medievais esforçaram-se no sentido de obter uma definição


de propriedade, nomeadamente Glosadores e Comentadores. A enfiteuse foi
muito importante nesta época, de feudalismo, por força da qual a propriedade
se desmembrava em domínio direto e domínio útil, passando a pertencer,
respetivamente, ao senhorio e ao enfiteuta.

Com a revolução francesa, houve uma superação da estrutura feudal da


propriedade, superando-se todos os encargos, prestações, privilégios do senhor
sobre a terra, emergindo uma terra livre conferida a um proprietário com
plenos e absolutos poderes.

Tudo isto se dirige à implantação de uma propriedade livre e individual,


coincidente com a clássica res in potestas romana. Os países do sistema
capitalista têm na sua base a propriedade privada. Tornam-se necessárias
algumas restrições por razões de interesse público ao direito de propriedade
individual.

Já os sistemas socialistas têm como nota comum a propriedade sobre os


bens por parte do Estado ou das cooperativas, após a nacionalização do solo e
dos meios de produção.

38. Objeto do direito de propriedade.


O Código Civil só regula o direito de propriedade sobre coisas corpóreas,
móveis ou imóveis (art. 1302º CC), determinando que os direitos de autor e a
propriedade horizontal estão sujeitos a legislação especial (art. 1303º/1 CC).

A propriedade de imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à


superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles se contém e não esteja
desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico (art. 1344º/1 CC). Mas o
proprietário não pode proibir os atos de terceiros que, pela altura ou
profundidade a que têm lugar, não haja interesse em impedir (art. 1344º/2 CC).

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Estas disposições seguem a doutrina de IHERING de que a propriedade se


estende até onde houver interesse prático, recusando a doutrina clássica
segundo a qual a propriedade abrange o solo em toda a sua profundidade e
altura.

39. Características do direito de propriedade no direito português.


A doutrina apresenta algumas notas que se inferem do art. 1305º CC,
para caracterizar a propriedade.

Em primeiro lugar, a indeterminação. O proprietário tem poderes


indeterminados, sendo a sua base o “ius utendi, ius fruendi, ius abutendi”. Não
se limitam os poderes do proprietário senão através das concretas restrições
impostas pela lei. No direito de propriedade, o proprietário tem, em princípio,
todos os poderes, ao contrário dos direitos reais limitados, cujo conteúdo é
preciso, determinado pela lei ou fixado pelos particulares em casos
excecionalmente permitidos.

Como segunda nota, a elasticidade. O direito de propriedade é elástico, é


dotado de uma força expansiva. Extinto um direito real que limite a propriedade
da coisa, reconstitui-se a plenitude da propriedade sobre ela, não ficando vago
o somatório dos poderes que se extinguiram. O proprietário limitado recupera a
plenitude do seu direito de propriedade.

Outra nota característica é a exclusividade, i.e., sobre a mesma coisa só


pode haver um direito de propriedade.

Finalmente a perpetuidade diz-nos que a propriedade não se extingue


pelo não uso, pois não usar a propriedade é ainda uma forma de a usar. O
proprietário pode querer estar inativo, possibilidade que cabe no conteúdo do
seu direito. Além disto, esta característica implica também a não existência de
propriedade temporária (art. 1307º/2 CC), apesar de existirem alguns casos
previstos na lei, como na venda com reserva de propriedade.

40. Proteção constitucional da propriedade.


O art. 62º CRP determina que a todos é garantido o direito à propriedade
privada e a sua transmissão, por vida ou por morte. A propriedade aqui referida

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

é um conceito mais amplo daquela que trata o CC, incluindo também a garantia
dos direitos de crédito.

Esta proteção não é absoluta, deixando-se margem de conformação do


regime para o legislador ordinário. A própria CRP admite limitações ao direito
de propriedade, p.ex., no que diz respeito a bens do domínio público.

41. Aquisição do direito de propriedade: aquisição originária por


ocupação, por acessão ou por usucapião.
Os modos de aquisição da propriedade estão referidos nos arts. 1316º e
ss. CC, sendo o contrato, sucessão por morte e usucapião. Mas existem mais
duas formas de aquisição originária, que são a ocupação e a acessão.

1. Ocupação

A ocupação é regulada nos arts. 1318º e ss. Certas categorias de bens


referidos na lei, em certas circunstâncias que variam conforme o tipo de bens
de que se trata, são passíveis de ocupação. A ocupação consiste na apropriação
de uma coisa que não tem ou deixou de ter dono. Foi o principal e mais antigo
modo de aquisição da propriedade. Podem ser adquiridas por ocupação res
nullius (animais e outras coisas móveis que nunca tiveram dono) ou res
derelictae (coisas abandonadas), perdidas ou escondidas pelos seus
proprietários (art. 1318º CC).

A doutrina exige alguns requisitos:

a. Pessoal: o ocupante deve ser uma pessoa com capacidade de


gozo, embora não se exija a capacidade de exercício;
b. Real: a coisa ocupável deve ser res nullius; deve ser móvel, visto
que os imóveis sem dono pertencem ao Estado (art. 1345º CC);
deve ser suscetível de apropriação privada, i.e., estar no comércio
(art. 202º/2 CC);
c. Formal: é a tomada de posse da coisa. A doutrina diverge sobre a
exigência do animus occupandi.

2. Acessão

A acessão é regulada nos arts. 1325º e ss., e acontece quando se une ou


incorpora outra coisa que não lhe pertence na coisa de que se é proprietário.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Pode ser uma acessão natural, como um aluvião; ou industrial, mobiliária ou


imobiliária, quando se dá por ato do homem.

Trata-se de um efeito do princípio de que o direito de propriedade tem,


em si, a virtualidade de absorver tudo o que, por força da natureza ou por ação
do homem, se incorporar na coisa que constitui o seu objeto. O legislador
decidiu não destruir coisas com a sua separação, atribuindo a uma só pessoa a
propriedade do todo constituído pelas coisas unidas.

A doutrina observa que a coisa que se une e incorpora pode ser uma res
nullius ou pertencer a outrem e não se exige a intenção de adquirir (animus
adquirendi), pois a aquisição por acessão resulta da lei.

3. Usucapião

A usucapião pode considerar-se também um modo de aquisição


originária da propriedade, porque o usucapiente adquire o seu direito não por
causa do direito do proprietário anterior, mas apesar dele. (O regime está no
ponto da posse).

42. Aquisição do direito de propriedade (cont.): aquisição


derivada.

1. Contrato

O direito de propriedade adquire-se por contrato (art. 1316º CC) e a


constituição ou transferência do mesmo direito dá-se por mero efeito do
contrato (art. 408º/1 CC).

2. Sucessão por morte

A sucessão mortis causa é também um modo de adquirir a propriedade.


O Código refere-o expressamente no art. 1316º CC, mas isso já resulta da
definição de sucessão do art. 2024º CC.

3. Outros modos de aquisição

O Código determina que a propriedade se adquire através dos demais


modos previstos na lei. São exemplos a aquisição de frutos naturais pelo
possuidor de boa fé (art. 213º CC); a expropriação por utilidade particular; os

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

arts. 1551º/1, 1560º/4 e 1567º/4; todos os casos em que é facultado o direito


de preferência na alienação de bens.

Além disto, será modo de aquisição a renúncia do comproprietário ao seu


direito para se eximir ao encargo de contribuir, renúncia que aproveita a todos
os consortes (art. 1411º/3 CC); renúncia do usufrutuário ao seu usufruto, que
restabelece a plenitude da propriedade por efeito do princípio da elasticidade;
etc.

43. Defesa do direito de propriedade: meios extrajudiciais e meios


judiciais.
A propriedade, como direito que é, está dotada de garantia jurídica. A
sua violação dá direito a indemnização. Está também dotada de uma defesa
específica.

Essa defesa pode ser extrajudicial, por ação direta e legítima defesa, ou
judicial, através da ação de reivindicação, da ação confessória, da ação
negatória e da ação de prevenção contra danos.

1. Ação direta

A ação direta encontra-se no art. 336º CC e pode revestir qualquer das


formas do nº2, incluindo a inutilização ou deterioração de coisa alheia, se for
necessária e adequada para evitar a perda da coisa que o proprietário pretende
salvar.

2. Legítima defesa

Contrariamente à ação direta, o Código não refere expressamente a


legítima defesa, mas o proprietário pode utilizá-la quer para defender coisa
própria como coisa alheia.

3. Ação de reivindicação

Quanto aos meios judiciais, a ação de reivindicação é uma ação


declarativa condenatória que o proprietário pode instaurar contra quem tenha
a posse ou detenção da coisa que lhe pertence, para pedir o reconhecimento do
seu direito de propriedade e a restituição da coisa reivindicada (art. 1311º/1
CC). É um corolário do direito de sequela.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Perante esta ação, o demandado ou prova que a coisa lhe pertence por
um dos títulos legalmente admitidos, que tem sobre ela um direito real que
justifique a sua posse ou que a detém por virtude de um direito pessoal de gozo
que a lei tutela.

Esta ação está sujeita a registo, não produzindo efeitos em relação a


terceiros sem ele.

O proprietário deve provar as aquisições dos sucessivos alienantes até à


aquisição originária de um deles, prova que será facilitada se a propriedade foi
adquirida de forma originária ou pelo registo, cujo titular goza da presunção de
proprietário, invertendo o ónus da prova para o demandado.

É para afastar estas dificuldades que os proprietários recorrem


frequentemente à tutela possessória porque lhes basta provar a posse, prova
que a lei facilita: provado o corpus, presume-se, em caso de dúvida, que existe o
animus possidendi (art. 1252º/2 CC). Provada a posse, goza da presunção de
que é proprietário.

Esta ação não prescreve pelo decurso do tempo, consequência lógica da


perpetuidade do direito de propriedade.

4. Ação confessória

Em relação à ação confessória, esta ação permite ao proprietário obter o


reconhecimento do direito de propriedade que se tornou duvidoso por alguma
circunstância. Entende-se que se trata de uma ação declarativa de simples
apreciação.

5. Ação negatória

É uma ação que permite ao proprietário de uma coisa obter o


reconhecimento de que não existe o direito sobre ela que o demandado invoca,
como o direito de usufruto, servidão, etc. É uma ação declarativa de simples
apreciação.

6. Ação de prevenção contra danos

Para prevenir danos à coisa que lhe pertence, o proprietário pode


instaurar, contra o dono de prédio vizinho, uma ação. Assim pode evitar a
emissão de fumo, fuligem, vapores, cheiros, ruído, etc.; a construção de obras,
instalações ou depósitos de substâncias corrosivas ou perigosas; a abertura de
minas ou poços e escavações que podem provocar desmoronamentos.
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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

44. Extinção do direito de propriedade

1. Expropriação

A expropriação implica a extinção do direito de propriedade sobre o


imóvel em que recaia e constitui um direito a favor da pessoa que tem a seu
cargo a prossecução do fim de utilidade pública que se teve em vista. É uma das
limitações ao direito de propriedade por interesse público.

2. Perda da coisa

A propriedade extingue-se também com a perda absoluta ou total da


coisa porque põe em causa a sua afetação jurídica. Não devemos confundir isto
com a deterioração, a menos que seja tão profunda que torne impossível o
exercício do direito de propriedade.

A perda restringe-se naturalmente a coisas móveis que, tornando-se res


nullius, são suscetíveis de ocupação (arts. 1318º e 1323º CC).

3. Impossibilidade definitiva de exercício

O direito de propriedade extingue-se por impossibilidade definitiva do


seu exercício. É uma exigência da função social a que a propriedade está sujeita.
Invoca-se o exemplo do tesouro que, vinte anos de impossibilidade de exercício
por não se saber onde se encontra escondido, cessa a propriedade da coisa (art.
1324º/2 CC).

4. Abandono

O abandono é também uma causa de extinção do direito de propriedade.


Enquanto que as coisas móveis podem ser abandonadas, tornando-se res nullius
e, assim, suscetíveis de ocupação, nas coisas imóveis o único preceito em que a
propriedade se extingue por abandono é o domínio sobre as águas
originariamente públicas.

5. Renúncia

A renúncia é outra causa de extinção do direito de propriedade. Constitui


uma manifestação da faculdade de disposição reconhecida ao proprietário (art.
1305º CC).

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

É admitida em relação a coisas móveis, dividindo-se a doutrina quanto à


possibilidade de incidir sobre coisas imóveis.

OLIVEIRA ASCENSÃO e MENEZES CORDEIRO defendem que as coisas


imóveis são suscetíveis de renúncia, passando automaticamente a ser bem do
Estado. Já HENRIQUE MESQUITA, considerando esta posição inteiramente
razoável, entende que a interpretação sistemática da lei não fornece apoio para
a livre renunciabilidade do domínio sobre imóveis. Invoca os arts. 1476º/1/c) e
1569º/1/d), que permitem a extinção por renúncia do usufruto e das servidões,
referindo que se isto fosse aplicável à generalidade dos direitos de gozo,
incluindo a propriedade, o legislador não teria sentido a necessidade de reiterar
o princípio em relação ao usufruto e às servidões.

6. Caducidade

A caducidade é uma forma de extinção de direitos reais temporários. Por


isso, não se suscita dúvidas em relação ao direito de usufruto e de uso e
habitação, mas o direito de propriedade levanta algumas dificuldades.

No entanto, sendo a propriedade temporária admitida pela lei “nos casos


especialmente previstos, a caducidade extingue-a. Apontam-se, como
exemplos, a substituição fideicomissária no testamento (art. 2286º CC) e na
doação (art. 962º CC).

7. Não uso

O direito de propriedade extingue-se por não uso “nos casos


especialmente previstos na lei” (art. 298º/3 CC).

Defende-se que o não uso constitui uma forma de uso, mas há autores
que defendem que não se deve manter um direito que não é exercido na esfera
jurídica do sujeito. Por exemplo, a propriedade sobre águas particulares que
eram originariamente públicas caduca pelo não uso, revertendo ao domínio
público (art. 1397º CC).

8. Outras modalidades
i. Contrato

Com a transferência do direito de propriedade, o alienante perde a sua


propriedade que é adquirida pela outra parte (arts. 1316º e 1317º/a)).

ii. Usucapião

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Com a usucapião, extingue-se o direito do proprietário, que o possuidor


adquire.

iii. Acessão

Também através da acessão se extingue o direito sobre a coisa unida e


incorporada noutra.

Secção II – Propriedades de imóveis.


45. Especificidades da propriedade de imóveis.
A propriedade de imóveis é regulada nos arts. 1344º e ss. CC. Esta figura
abrange o imóvel, rústico ou urbano, o espaço aéreo correspondente à sua
superfície, bem como o subsolo ou tudo o que nele se contém e não esteja
desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico. Esta ressalva entende-se
pela existência de normas na CRP que integram no domínio público certas
riquezas subterrâneas.

Esses bens não pertencem ao proprietário do terreno, porque integrados


no domínio público, mas ele tem uma posição especial relativamente a esses
bens, preferência na concessão, se tiver capacidade económica para isso, ou um
direito a receber uma prestação.

O nº2 do art. 1344º limita em certos termos os poderes do proprietário.


Todos os dias as companhias aéreas violam os limites dos prédios, mas é um ato
que o proprietário não tem interesse em impedir.

A propriedade dos imóveis é uma propriedade que existe sempre, não


existem res nullius imóveis. Se um móvel pode ser uma res nullius, pode perder-
se a propriedade sobre ele por abandono, mas o imóvel não fica vacante por se
ter abandonado o direito sobre ele. O art. 1345º CC preceitua que as coisas
imóveis sem dono conhecido consideram-se património do Estado, pelo que
não pode haver ocupação de res nullius imóveis.

A propriedade de imóveis confere certos direitos específicos gerados pela


natureza desses bens, como o direito de demarcação, tapagem, construção,
plantação de arbustos, etc. Mas estes poderes têm limitações, quer de direito
público, quer de direito privado.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

46. Restrições aos poderes do proprietário por razões de interesse


público.
Este tipo de restrições encontra-se em numerosa legislação avulsa. Como
exemplo, não se pode impedir que sejam colocados postes para passagem de
linhas elétricas de alta tensão, de linhas telegráficas, telefónicas, etc.

Há restrições quanto ao direito de construção, por motivos de defesa


militar nas zonas de servidão militar, por motivos de higiene e salubridade, por
razões históricas e artísticas, etc.

A possibilidade de expropriação e de requisição estão referidas na CRP


(art. 49º/8, in fine) e no CC (arts. 1308º e 1309º CC).

47. Restrições aos poderes do proprietário por razões de interesse


privado.
Estas restrições estão, fundamentalmente, reguladas no CC e
normalmente derivam de relações de vizinhança. Por haver proximidade ou
contiguidade entre prédios, o proprietário não é livre de fazer tudo aquilo que
se compreenderia num ilimitado “ius utendi, abutendi e fruendi”, sendo
necessário estabelecer-se restrições derivadas da necessidade de coexistência.

O art. 1346º CC proíbe a emissão de fumos, fuligem, vapores, cheiros,


calor, ruídos, trepidações que importem prejuízo substancial para uso do imóvel
ou que não resultem de uma utilização normal do prédio de onde emanam. Este
preceito parece aplicar-se a qualquer vizinho e não apenas ao contíguo.

O art. 1347º CC refere-se às instalações prejudiciais e o art. 1348º CC às


escavações, preceituando que não se pode escavar no próprio terreno em
termos de provocar riscos de desmoronamento do terreno contíguo.

O art. 1349º CC impõe uma restrição importante, a obrigação de dar


passagem forçada momentânea. O proprietário de um terreno é obrigado a
ceder passagem momentânea, se um vizinho precisar. Aqui não se constitui
uma servidão, mas apenas uma passagem momentânea, ainda que forçada.

O art. 1351º CC preceitua que os prédios inferiores estão sujeitos a


receber as águas que, naturalmente e sem obra do homem, decorram dos
prédios superiores, assim como a terra e entulhos que elas arrastem na sua
corrente. Quando exista um terreno inclinado, o proprietário de parte inferior

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

não pode instalar um dique contra o qual a água de torrente natural ou chuva
fique retida. Isso prejudicaria o proprietário do terreno superior.

Os arts. 1357º e 1359º CC tratam do direito de tapagem, havendo várias


restrições.

O art. 1360º/1 e 2 impõe restrições importantes em relação a abertura


de janelas, portas, sendo necessário deixar um intervalo de metro e meio em
relação ao prédio vizinho, e em relação a varandas e terraços. Não se aplicam
estas restrições nos prédios que estejam dentro da situação prevista pelo art.
1361º CC. Este é o regime geral, mas pode se constituir uma servidão de vistas
por acordo ou usucapião.

O art. 1365º CC refere o problema dos beirais, devendo deixar-se, na


construção, um intervalo mínimo determinado. Também aqui se poderá
constituir uma servidão, de estilicídio, por usucapião ou acordo.

O art. 1366º CC permite a plantação de árvores e arbustos até à linha


divisória dos prédios, sendo lícito ao vizinho arrancar ou cortar as raízes, troncos
e ramos que se introduzam no seu terreno, se o dono do prédio não o fizer
quando notificado para isso.

Estas são as limitações gerais à propriedade derivados das relações de


vizinhança que em princípio existem, mas que podem extinguir-se por negócio
jurídico, constituindo-se uma servidão entre as partes (de estilicídio, de vistas,
inominada, etc.).

Secção III – Compropriedade


48. Noção e características.
O nosso CC considera que existe propriedade em comum ou
compropriedade, quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares
do direito de propriedade sobre a mesma coisa (art. 1403º/1 CC). Além, disso, o
nº2 refere ainda que os direitos dos consortes ou comproprietários sobre a
coisa comum são qualitativamente iguais, embora podendo ser
quantitativamente diferentes. Apesar dessa possibilidade, as quotas presumem-
se quantitativamente iguais, quando não haja indicação diferente no título
constitutivo.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

49. Breve referência histórica.


A compropriedade foi um instituto muito utilizado em Roma, podendo
ser constituída voluntária ou não voluntariamente. Afasta-se a doutrina que
defendia ser este instituto a coexistência de vários direitos de propriedade
sobre a mesma coisa, por não poderem incidir dois direitos de propriedade
sobre a mesma coisa. Podemos afirmar que cada comproprietário tem o direito
de, livre e independentemente, realizar atos jurídicos, agir judicialmente e
adquirir diretamente os frutos.

Ainda no direito romano, cada consorte podia dispor da coisa comum


dentro dos limites da sua quota, alienar, hipotecar, constituir usufruto, etc. Não
podia realizar atos jurídicos que modificassem ou alterassem o direito dos
outros, sem o seu consentimento. E podiam praticar atos materiais enquanto os
outros não o proibissem.

Este era um regime individualista e tolerante, que na época justinianeia


foi substituído pela exigência da adesão prévia, expressa e unânime dos
comproprietários, que era muitas vezes substituída pela decisão do juiz.

Na Idade Média, os povos germânicos consagraram a figura da comunhão


de direito germânico ou comunhão em mão coletiva que se caracteriza por cada
um dos elementos do grupo poder exercer atividades restritas sobre a coisa.
Não tinham a faculdade de dispor cada consorte da sua participação, nem de
provocar a divisão da coisa, tendo que haver mediação do grupo.

A comunhão romana constituiu a regra nos sistemas jurídicos atuais,


nomeadamente no português.

50. Confronto com figuras próximas (sociedade, propriedade


horizontal, comunhão de mão comum).
1. Sociedade

Pode haver, por vezes, dificuldade em distinguir a compropriedade da


sociedade, pondo-se o problema fundamentalmente em relação à sociedade
civil, que não tem personalidade jurídica, segundo o entendimento dominante.
Se a sociedade tiver personalidade jurídica, não haverá qualquer dificuldade
pois estaremos perante uma pessoa jurídica autónoma.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Em matéria do uso da coisa comum, o art. 1406º CC diverge da norma


referente ao uso das coisas sociais, o art. 989º CC.

A sociedade tem, de acordo com o art. 1007º CC, certas causas de


dissolução que não se confundem com o direito de exigir a divisão, meio pelo
qual se põe termo à compropriedade (art, 1412º CC).

A sociedade pressupõe uma atividade económica que não seja de mera


fruição, uma atividade dirigida a potenciar os rendimentos da coisa, não se
bastando com fruir os rendimentos que a coisa dá, mas também atuar sobre ela
de forma a potenciar a sua produtividade. Este parece ser o critério mais
acertado para diferenciar sociedade de compropriedade.

Concluindo, estaremos perante compropriedade se é uma atividade de


mera fruição; perante sociedade se se tratar de uma atividade económica que
vise mais do que a mera fruição.

2. Propriedade horizontal

A propriedade horizontal, ou condomínio (art. 1429º -A CC), caracteriza-


se pela existência de direitos que incidem sobre coisas comuns e sobre frações
distintas e autónomas do mesmo prédio: em relação àquelas, os condóminos
são comproprietários; em relação a estas, cada condómino é proprietário
exclusivo da sua fração.

3. Comunhão de mão comum

A comunhão de mão comum ou propriedade coletiva é um dos casos de


comunhão que se distinguem da compropriedade: desde logo, porque o direito
dos contitulares não incide diretamente sobre cada um dos elementos (coisa ou
crédito) que constituem o património, mas sobre este concebido como um todo
unitário.

Os membros da comunhão individualmente considerados não são


titulares de direitos específicos sobre cada um dos bens que integram o
património global e, portanto, não podem dispor desses bens nem os onerar,
salvo quando o possam fazer na qualidade de administradores. É exemplo disto
o património comum dos cônjuges, o património das sociedades não
personalizadas e a comunhão hereditária.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

51. Constituição.
A compropriedade pode ser constituída por:

1. Negócio jurídico inter vivos ou mortis causa;


2. Disposição legal: como exemplo, o art. 1357º +
1358º; 1359º/2; 1368º; 1324º/1; 1318º; 1286º e
1287º CC;
3. Decisão judicial: como exemplo, o art. 1370º CC.

52. Regime jurídico: atos que podem ser praticados isoladamente


por um dos consortes; atos a praticar pela maioria dos consortes;
atos que exigem a unanimidade dos consortes.
O problema principal aqui é o de saber quais são as possibilidades de ser
praticado um ato sobre a coisa comum, isoladamente, por um comproprietário
ou por um grupo de consortes que não represente a totalidade destes.

A possibilidade que todos têm, por unanimidade, de praticar quaisquer


atos sobre a coisa, não levanta problemas. Todos em conjunto, exercem os
poderes que correspondem aos do proprietário singular (art. 1405º CC)

O problema é saber quais são os poderes dos comproprietários, por


grupos parcelares. Há atos que podem ser praticados isoladamente por um
comproprietário, outros que exigem o acordo da maioria deles e ainda outros
que implicam a unanimidade dos consortes.

1. Atos que podem ser praticados isoladamente por um dos consortes

Cada consorte pode, nos termos do art. 1406º CC, usar a coisa comum na
falta de acordo sobre o seu uso, desde que não a utilize para fim diferente
daquela a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que
têm direito.

Além disso, cada um deles, pode dispor da sua quota na comunhão, ou


de parte dela, podendo igualmente onerá-la ou dá-la em hipoteca (art. 689º/1
CC).

Não poderá isoladamente alienar ou onerar uma parte especificada da


coisa comum, visto que não tem direito a uma parte concreta, individualizada,
enquanto não se proceder à divisão, mas apenas a uma parte ideal. Se o fizer,
aplicam-se as normas sobre a disposição ou oneração de coisa alheia (art.
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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

1408º/2, que remete para os arts. 892º e ss. CC). Isto compreende-se por a
coisa não ser inteiramente sua.

A forma de alienação da sua quota ideal é a forma exigida para a


disposição da coisa, segundo o nº3 do art. 1408º CC.

Nos termos do nº2 do art. 1405º, cada consorte isoladamente pode


reivindicar de terceiro a coisa comum sem que se lhe possa opor que ela lhe não
pertence por inteiro. Cada comproprietário pode exercer a ação de
reivindicação da coisa comum em relação a terceiro que a possua
indevidamente.

Os comproprietários têm direito de preferência sobre as quotas ideais


dos outros consortes (arts. 1409º e 1410º CC), em caso de venda a um estranho,
não se aplicando quando a venda seja feita a outro comproprietário. No caso de
troca, não existe este direito de preferência, por não haver um preço. Também
não existe preferência na doação, o que origina muitas vezes simulações, para
se frustrarem estes direitos de preferência que seriam exercidos em caso de
venda.

2. Atos a praticar pela maioria dos consortes

O art. 1407º remete para o art. 985º CC, estando os atos de conservação
e de normal frutificação da coisa submetidos ao regime de administração. A
administração tanto pode pertencer a todos como a apenas alguns dos
consortes e, não havendo convenção, têm poderes iguais. Mas pode haver
estipulação em como apenas alguns deles possam administrar.

Quando a administração pertence a todos ou a alguns, qualquer dos


administradores tem o direito de se opor ao ato que outro pretenda realizar,
cabendo depois à maioria decidir sobre o valor da oposição. Isto significa que
acaba por ser a maioria a decidir, quando há contestação de um ato da
administração. A maioria não é numérica ou pessoal, mas sim do valor das
quotas, sendo necessário que represente pelo menos metade do valor total das
quotas. Parece que tem de ser a maioria do art. 985º (maioria pessoal), mais a
maioria do valor total das quotas.

Em relação aos encargos, têm de ser suportados com as benfeitorias


necessárias feitas para conservar o objeto. Estes encargos impendem sobre
todos os comproprietários da coisa na proporção das respetivas quotas.
Estamos perante uma obrigação inerente ao seu direito.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Para se eximir destes encargos, cada comproprietário terá de renunciar


ao seu direito, nos termos do art. 1411º CC. No caso de alienar para terceiro,
continua responsável pelos encargos. Ao renunciar, os outros comproprietários
adquirem a sua quota, sendo esta aquisição como que uma compensação pelos
encargos acrescidos que os restantes comproprietários terão nas despesas de
conservação ou nas benfeitorias necessárias.

3. Atos que exigem a unanimidade dos consortes

Nos temos do art. 1408º CC, a disposição de toda a coisa ou de parte


especificada da coisa exige o consentimento de todos os consortes ou
comproprietários.

Não se pode vender, doar, trocar, toda a coisa ou parte especificada dela
sem o consentimento de todos os consortes, não bastando, então, a maioria. O
mesmo se aplica ao arrendamento de prédio indiviso (art. 1024º/2 CC). O
arrendamento de uma coisa comum implica o consentimento de todos os
comproprietários. Só que a lei, neste caso, contenta-se com uma manifestação
posterior do seu assentimento, considerando-se o ato válido. Mas se for exigida
escritura pública para o arrendamento (para fins comerciais ou profissão
liberal), já se torna necessário o consentimento de todos, simultâneo ou
posterior, desde que conste da forma exigida pela lei.

53. Extinção.
A compropriedade por extinguir-se por via negocial, qualquer um dos
comproprietários pode adquirir as quotas de quaisquer dos outros ou de todos.

Como forma de extinção especial, pode citar-se os arts. 1412º e 1413º, a


extinção por divisão da coisa comum. Qualquer dos consortes pode, a qualquer
momento, requerer a divisão da coisa comum, não sendo obrigados a
permanecer na indivisão.

Mas a lei admite as cláusulas de indivisão, havendo interesse em limitar a


possibilidade dos consortes em pedir a divisão da coisa, por determinado
período de tempo. A sua validade está limitada ao máximo de cinco anos. Se
ultrapassar este limite, a cláusula será nula. Para valer em relação a terceiros,
esta cláusula tem de ser registada, nos termos do nº3 do art. 1412º CC. Se não
estiver registada e um dos comproprietários vender a sua quota, o terceiro
adquire-a validamente.

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A divisão amigável da coisa comum, ou seja, extrajudicial, requer a forma


que a lei exige para a alienação onerosa da coisa, p.ex., escritura pública se
estivermos perante uma coisa imóvel.

54. Natureza jurídica.


O problema da natureza jurídica da compropriedade é passível de três
soluções:

a. Uma doutrina tradicional, perfilhada entre autores como MANUEL


RODRIGUES, segundo a qual a compropriedade resulta da
coexistência dos direitos de cada um dos consócios sobre uma
quota ideal ou intelectual do objeto de compropriedade. Cada
comproprietário tem direito a uma fração, uma quota ideal não
especificada do objeto;
b. Para outra doutrina, não se trataria da coexistência de direitos
incidindo cada um deles sobre uma quota ideal, mas tratar-se-ia
da coexistência de vários direitos de propriedade sobre todo o
objeto, que se limitavam reciprocamente. A compropriedade seria
um feixe de direitos de propriedade verdadeiros e absolutos sobre
todo um objeto, mas que, como têm em comum o objeto, se
autolimitam na mesma medida em que também existem outras
limitações da propriedade por outros direitos reais.
c. Uma terceira posição entende que estamos perante um só direito,
um único direito com vários titulares (posição de HENRIQUE
MESQUITA).

Parece-nos que a doutrina tradicional oferece um enquadramento mais


harmonioso do que as posições ulteriores, não se produzindo contra ela
nenhum argumento decisivo.

A possibilidade que cada um dos consortes tem de alienar a sua quota


ideal e de requerer a divisão da coisa comum, quando o quiser, supõe que cada
um dos comproprietários tem um direito autónomo, que não há apenas um
direito para todos, mas que cada um deles tem um direito próprio sobre uma
quota ideal.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Alguns autores invocam contra ela o argumento de que o direito a uma


quota ideal contradiz princípios constitucionais dos direitos reais, argumento
que negamos. Um desses princípios é o de que os direitos reais têm de incidir
sobre coisa determinada, mas neste caso, a coisa encontra-se determinada, é
uma quota ideal daquele objeto, que, potencialmente, incide sobre todo ele,
mas que não é exatamente um direito sobre todo o objeto, mas sobre uma
fração dele.

Parece-nos isto oferecer um grau de determinação suficiente para que o


princípio se considere cumprido.

A segunda posição choca com a ideia de não se poder conceber mais doq
eu um direito de propriedade sobre a mesma coisa, sendo por definição um
direito absoluto que opõe o seu titular a todos os outros.

A última posição não dá expressão às diferenças de regime entre a


compropriedade e a comunhão de mão comum ou património coletivo. Neste
ultimo caso sim, há um só direito com vários titulares porque não se pode pedir
a divisão, dada a afetação especial do património a um fim específico, nem pode
cada um dos contitulares alienar uma quota do objeto. Mas na compropriedade
não é assim, cada um dos contitulares tem certas liberdades para agir
isoladamente.

Secção IV – Propriedade Horizontal


55. Noção e âmbito de aplicação
O CC regula a propriedade horizontal nos arts. 1414º e ss., existindo
legislação avulsa, nomeadamente o Regime da Propriedade Horizontal (decreto-
lei nº 268/94), que o desenvolve.

O nosso Código não define a propriedade horizontal, mas com base nos
arts. 1414º, 1415º e 1420º, podemos defini-la como um conjunto de poderes,
incindivelmente ligados, sobre cada uma das frações autónomas e sobre as
partes comuns do mesmo edifício.

A doutrina realça que cada fração é objeto de um direito de propriedade


singular e as pares comuns de um direito de compropriedade. Estes direitos
estão de tal modo unidos que não é possível aliená-los separadamente, nem se
pode renunciar ao direito às partes comuns para libertação dos encargos
correspondentes (art. 1420º/2 CC).
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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

A propriedade horizontal é a propriedade que incide sobre as várias


frações componentes de um edifício, frações essas que devem estar em
condições de constituírem unidades independentes. Além de independentes,
estas frações devem estar separadas e isoladas, ter saída própria e têm de
pertencer a proprietários diferentes.

É um regime de propriedade, não sobre um edifício na sua estrutura


unitária, mas sobre frações do mesmo edifício que constituam unidades
independentes.

56. Breve referência histórica.


Existem dúvidas quanto à existência da propriedade horizontal no direito
romano.

Em Portugal, as Ordenações Filipinas contemplam a possibilidade de um


edifício ter diferentes proprietários. Também o Código de Seabra o previu.

Depois da 2ª Guerra Mundial, a projeção real destas disposições


começou a aumentar, ao se proporcionar o acesso à propriedade urbana a
população com menos recursos económicos, visto que o custo de cada fração
autónoma num prédio de vários andares é muito inferior ao de um prédio
independente.

57. Constituição.
O CC determina que a propriedade horizontal pode ser constituída por
negócio jurídico, usucapião, decisão administrativa ou decisão judicial proferida
em ação de divisão de coisa comum ou em processo de inventário (art.
1417º/1).

O título constitutivo tem de especificar as partes do edifício


correspondentes a cada fração, individualizando-as e terá, igualmente, de fixar
o valor relativo de cada fração em relação ao valor total do prédio (art.
1418º/1).

Além dessas exigências, o título poderá conter a menção do fim a que


cada fração ou parte comum se destina (art. 1418º/2/a)); o regulamento do
condomínio sobre o uso, fruição e conservação quer das partes comuns quer

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

das frações autónomas (art. 1418º/2/b)); previsão de compromisso arbitral para


a resolução de litígios emergentes da relação de condomínio (art. 1418º/2/c)).

O título constitutivo será nulo no caso de faltar a especificação exigida


pelo nº1 e no caso de não coincidência entre o fim referido na alínea a) do nº2 e
o que foi fixado no projeto aprovado pela entidade pública competente (art.
1418º/3).

A doutrina considera o título constitutivo uma declaração unilateral


através da qual o proprietário do edifício exprime a vontade de sujeitar o imóvel
ao regime da propriedade horizontal, extinguindo o seu direito de propriedade
normal e constituindo um direito real novo: a propriedade horizontal. E entende
que se trata dum ato de mera administração porque não envolve a alienação de
qualquer fração do imóvel. Mas porque a propriedade horizontal pressupõe
uma pluralidade de condóminos, aquela declaração unilateral fica sujeita à
condição suspensiva de alienação de alguma das frações autónomas do edifício.

PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA entendem que se verifica a


pluralidade de condóminos mesmo quando as frações pertençam ao mesmo
proprietário e uma ou algumas estejam oneradas com o direito de usufruto.

O título constitutivo pode ser elaborado em qualquer momento: quando


o edifício já está construído, em fase de construção e mesmo quando só esteja
projetado.

Existem alguns efeitos que o título constitutivo pode produzir, antes de


haver, pelo menos, dois condóminos. Se o proprietário tiver necessidade de
constituir alguma garantia real, poderá onerar apenas uma ou algumas das
frações. Pode também criar uma relação de usufruto ou arrendar frações,
resultando daí o direito de preferir do arrendatário.

Em relação à nulidade do título constitutivo, se o fim fixado pelo projeto


não coincidir com o fim referido no título constitutivo, esta nulidade será
parcial, prevalecendo o fim fixado no projeto aprovado pela entidade pública
competente.

Se a nulidade se dever à falta de individualização devida das frações,


deve admitir-se a possibilidade de conversão em compropriedade, verificando-
se o art. 293º CC.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

No caso de o valor de cada fração não estar fixado, o título constitutivo


pode ser completado em documento autêntico, pelo que a nulidade só
prevalece se não se recorrer a este meio.

A pluralidade de condóminos pode resultar de:

a) Negócio jurídico inter vivos: em regra, será o contrato de


compra e venda, mas pode resultar de doação, partilha
extrajudicial, permuta, dação em cumprimento.
b) Negócio jurídico mortis causa: o proprietário de um edifício
composto de várias frações autónomas pode deixá-las, em
testamento, a diversas pessoas. Com a morte do testador,
surge a propriedade horizontal.
c) Usucapião: ocorre quando a pluralidade de condóminos
assenta numa situação possessória.
d) Decisão judicial: tem lugar em sentença proferida em ação de
divisão de coisa comum ou em processo de inventário, desde
que o prédio tenha os requisitos legalmente exigidos. Segundo
PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, poderá igualmente
constituir-se por sentença quando haja incumprimento de um
contrato-promessa de compra e venda de uma ou mais frações
autónomas e seja possível, nos termos do art. 830º, a execução
específica.
e) Direito de superfície: sucede quando alguém adquire o direito
de construir sobre edifício alheio. Pode existir uma situação de
propriedade horizontal entre o construtor e o dono das frações
autónomas já existentes no prédio (art. 1526º CC).

58. Modificação.
A modificação do título constitutivo pode operar por escritura pública e
acordo de todos os condóminos (art. 1419º/1 CC). Assim, pode ser o
administrador, em representação do condomínio, a outorgar a escritura pública,
desde que o acordo de todos os condóminos conste de ata assinada pelos
mesmos. Se não se verificarem os requisitos do art. 1415º, o acordo é nulo,
podendo essa nulidade ser declarada a pedido das pessoas e entidades do nº2
do art. 1416º (art. 1419º/3).

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Esta nulidade implica o retorno à constituição inicial da propriedade


horizontal ou, se isto não for possível, o prédio ficará sujeito ao regime da
compropriedade (art. 1416º/1 CC).

59. Regime jurídico: direitos e obrigações ou encargos dos


condóminos.
Princípios fundamentais
Cada condómino é proprietário exclusivo da fração que lhe pertence e
comproprietário das partes comuns do edifício (art. 1420º/1 CC). Além disto, o
conjunto dos dois direitos é incindível, o que significa que nenhum deles pode
ser alienado separadamente nem se poderá renunciar à parte comum para se
eximir das despesas necessárias à sua conservação ou fruição (art. 1420º/2 CC).

Entre as várias frações autónomas podem constituir-se relações jurídicas


de natureza real, como se se tratasse de imóveis independentes (servidões de
uma em benefício da outra, por exemplo). Existem limitações que se percebem
em função da natureza das coisas (um condómino não pode demolir a sua
fração porque relativamente às partes comuns tem apenas poderes de
comproprietário, não os podendo exceder).

Limitações
Nas relações entre si, os condóminos estão sujeitos às limitações
impostas aos proprietários e comproprietários de coisas imóveis (art. 1422º/1
CC). Existem ainda outras restrições:

1. Não podem prejudicar a segurança, linha arquitetónica ou o


arranjo estético do edifício, quer através de obras novas quer
por não procederem a reparações (art. 1422º/2/a) CC). Podem
haver autorizações nos termos do nº3, se não for prejudicada a
segurança, quanto a obras relacionadas com a linha
arquitetónica ou o arranjo estético. As limitações à estética só
se aplicam aos elementos da fração visíveis do exterior;
2. Estão proibidos de destinar a sua fração a usos ofensivos dos
bons costumes (art. 1422º/2/b) CC);
3. Não pode ser dado uso diverso do fim a que se destina a fração
(art. 1422º/2/c) CC);

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

4. Finalmente, não podem ser praticados atos ou atividades que


tenham sido proibidos no título constitutivo ou,
posteriormente, por deliberação da assembleia de condóminos
aprovada sem oposição (art. 1422º/2/d) CC). A sanção
correspondente à violação deve ter em conta a natureza da
própria violação (pode haver destruição da obra realizada,
realização coerciva da obra necessária, indemnização de danos,
etc.).

Finalmente, aplicam-se as limitações derivadas das relações de


vizinhança (arts. 1346º, 1347º, 1349º, 1360º CC) e as do regime de
compropriedade sobre as partes comuns (art. 1406º/1 CC).

Direitos de preferência e de divisão


Os condóminos não gozam do direito de preferência na alienação de
frações nem do direito de pedir a divisão das partes comuns (art. 1423º CC).

A justificação deste preceito prende-se com a necessidade de manter a


propriedade horizontal. Por um lado, há vantagens sociais económicas e
políticas que justificam a existência das várias frações. Por outro, o direito de
compropriedade dos condóminos sobre as partes comuns do edifício é um puro
acessório da propriedade exclusiva que recai sobre cada fração (art. 1423º CC).

Mas se os condóminos quiserem dividir as partes não imperativamente


comuns ou atribui-las em exclusivo a um ou alguns ou em compropriedade a
alguns, podem fazê-lo mediante modificação do título constitutivo, observando
as diligências do art. 1415º (art. 1419º CC).

Encargos
Salvo convenção em contrário, as despesas necessárias à conservação e
fruição das partes comuns do edifício e o pagamento de serviços de interesse
comum devem ser pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas
frações (art. 1424º/1 CC). No nº2 do mesmo artigo prevê-se que se possa
estabelecer coisa diferente no regulamento do condomínio.

Mas se as despesas disserem respeito a lances de escadas ou a partes


comuns do prédio que sirvam exclusivamente alguns dos condóminos, devem
ser esses a suportá-las (art. 1424º/3 CC). Nas despesas de elevadores, só

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contribuem os condóminos cujas frações sejam por eles servidas (art. 1424º/4
CC).

O nosso Código não adotou a regra da utilidade na distribuição das


despesas, mas sim o da destinação objetiva das coisas comuns. O que interessa
é o uso que cada condómino pode fazer dessas coisas, que se mede, em
princípio, pelo valor relativo da sua fração e não pelo uso que efetivamente faça
delas. Assim, continuam a ter que contribuir para as despesas de conservação,
mesmo que esses condóminos não utilizem as suas frações, não se servindo
também das partes comuns do prédio. Apesar disto, continua a haver liberdade
dos condóminos para acordarem em sentido diferente.

Se as coisas comuns proporcionarem receitas (p.ex. pelo arrendamento


de uma garagem comum), devem ser repartidas pelos condóminos na
proporção do valor relativo das suas frações, se não lhes for dada outra
afetação (art. 1405º/1 CC).

Inovações
As obras que constituam inovações dependem da aprovação da maioria
dos condóminos, devendo essa maioria representar dois terços do valor total do
prédio (art. 1425º/1 CC). As despesas ficam a cargo dos condóminos nos termos
do art. 1424º CC.

Mesmo que alguns condóminos não tenham aprovado a inovação são


obrigados a concorrer para as respetivas despesas, salvo se a recusa for
judicialmente havida como fundada (art. 1426º/2 CC). Será considerada como
fundada a recusa quando as inovações sejam voluptuárias ou não sejam
proporcionadas à importância do edifício (art. 1426º/3 CC). O condómino que
recuse pode a todo o tempo participar nas vantagens da inovação, bastando,
para isso, pagar a quota correspondente às despesas de execução e
manutenção da obra (art. 1426º/4 CC).

Da remissão para o art. 1424º, resulta que se a inovação servir


exclusivamente certa zona do prédio, só entre os condóminos dessas frações se
fará a repartição dos encargos, na proporção dos seus valores.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Reparações indispensáveis e urgentes


As reparações devem ser feitas, em princípio, pelo administrador como
órgão executivo das deliberações da assembleia dos condóminos ou como
zelador dos bens comuns. Mas o art. 1427º prevê que, na falta ou impedimento
do administrador, essas reparações indispensáveis e urgentes possam ser feitas
por iniciativa de qualquer condómino. As despesas serão repartidas nos termos
do art. 1424º CC.

Destruição do edifício
Existem várias hipóteses:

1. Se a destruição for total ou de parte que represente, pelo menos, três


quartos do seu valor, os condóminos podem exigir a venda do terreno e
dos materiais, pela forma designada em assembleia (art. 1428º/1 CC);
2. Se atingir uma parte menor, assembleia pode deliberar a reconstrução
(art. 1428/2 CC);

Se os condóminos não quiserem participar nas despesas de reconstrução,


podem alienar os seus direitos a outros condóminos, caso em que o alienante
pode escolher a quem pretende transmitir (art. 1428º/3 e 4 CC).

A hipótese de os condóminos se oporem à reconstrução do prédio se a


destruição for total ou de pelo menos três quartos do seu valor, constitui um
regime contrário ao da compropriedade, caracterizado pelo direito de exigir a
divisão do terreno e dos materiais. Pretende-se proteger os condóminos contra
imposições da maioria, que podem envolver um encargo excessivo.

Seguro obrigatório
É obrigatório o seguro contra o risco de incêndio do edifício (art. 1429º/1
CC). Este seguro visa facilitar a reconstrução do prédio, satisfazendo assim o
interesse de todos os condóminos.

Fundo comum de reserva


A constituição de um fundo comum de reserva para custear as despesas
de conservação do edifício ou conjunto de edifícios é obrigatória (art. 4º
decreto-lei nº 268/94). Os condóminos devem contribuir com uma quantia

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

correspondente, no mínimo, a 10% da sua quota-parte nas restantes despesas


do condomínio. É criticado o facto de o valor ser tão baixo.

60. Regime jurídico (cont.): administração das partes comuns do


edifício.
Existem dois órgãos administrativos na propriedade horizontal: a
assembleia de condóminos, com uma função deliberativa; e o administrador,
que cumpre uma tarefa executiva (art. 1430º/1 CC).

Na assembleia, a atribuição de votos faz-se nos termos do art. 1430º/2,


que remete para o art. 1418º. Esta assembleia administra as partes comuns,
devendo reunir-se na primeira quinzena de janeiro para discutir e aprovar as
contas do último ano e aprovar o orçamento das despesas a efetuar durante o
ano (art. 1431º/1 CC). Pode também ser convocada pelo administrador ou por
condóminos que representem, pelo menos, vinte e cinco por cento do capital
investido (art. 1431º/2 CC). Os condóminos podem fazer-se representar por
procurador (art. 1431º/3 CC).

A convocação e funcionamento da assembleia encontra-se previsto no


art. 1432º CC. São obrigatoriamente lavradas atas, redigidas e assinadas por
quem tenha servido de presidente e subscritas por todos os condóminos
participantes (art. 1º/1 do decreto-lei nº 268/94). As deliberações presentes nas
atas vinculam todos os que tenham direitos relativos às frações (condóminos ou
terceiros). Quando tiver sido deliberado o montante das contribuições devidas
ao condomínio ou despesas necessárias à conservação e fruição das partes
comum, isso valerá como título executivo contra o condómino que deixar de
pagar a sua quota-parte, dentro do prazo estabelecido.

As deliberações não podem ser contrárias à lei ou a regulamentos de


condomínio, podendo ser anuladas a requerimento de qualquer condómino que
as não tenha aprovado (art. 1433º/1 CC).

Mas nem todas as deliberações serão anuláveis. Se a assembleia infringir


normas de interesse e ordem pública, essas deliberações devem considerar-se
nulas e, assim, impugnáveis a todo o tempo por qualquer interessado. Se assim
não fosse, estaria no poder dos condóminos derrogar os preceitos legais,
bastando que ninguém impugnasse as deliberações contrárias a eles no prazo
do nº4 do art. 1433º CC.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Se a assembleia deliberar sobre assuntos que não sejam da sua


competência, devem considerar-se essas deliberações ineficazes (PIRES DE LIMA
e ANTUNES VARELA).

Por fim, a assembleia pode estabelecer a obrigatoriedade da celebração


de compromissos arbitrais para a resolução de litígios entre condóminos ou
entre estes e o administrador, entre outros (art. 1434º/1 CC).

O administrador é o órgão executivo das deliberações da assembleia dos


condóminos (art. 1430º/1 CC), que o elege e exonera (art. 1435º/1 CC).

É nomeado pelo tribunal, a requerimento de qualquer dos condóminos,


se a assembleia não o eleger; e pode ser exonerado pelo mesmo se tiver
praticado irregularidades ou agido com negligência no exercício das suas
funções.

O cargo de administrador é remunerável e, salvo estipulação em


contrário, o período de funções é de um ano renovável. Mantém-se em funções
até que seja eleito ou nomeado o sucessor.

A eleição e a exoneração fazem-se nos termos gerais em que a


assembleia delibera, i.e., por maioria dos votos representativos do capital
investido (art. 1432º/3 CC).

As funções do administrador estão definidas na lei, nomeadamente nas


alíneas do art. 1436º CC, além de a assembleia lhe poder atribuir outras.

O administrador tem legitimidade para demandar qualquer dos


condóminos ou terceiro, na execução das suas funções ou se autorizado pela
assembleia (art. 1437º/1 CC), podendo ser demandado nas ações respeitantes
às partes comuns. Se as ações forem relativas a questões de propriedade ou
posse dos bens comuns, só poderá agir em juízo se a assembleia lhe atribuir
poderes especiais.

Dos atos do administrador cabe recurso para a assembleia que pode,


neste caso, ser convocada por qualquer condómino (art. 1438º CC).

61. Natureza jurídica.


A natureza jurídica da propriedade horizontal é muito controversa.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Parece que nos encontramos perante uma situação de natureza dualista.


A propriedade horizontal é integrada por um concurso de dois direitos. Há um
direito de plena propriedade sobre partes privativas (cada condómino é pleno
proprietário de cada uma das frações independentes de que se compõe o
prédio sujeito ao regime da propriedade horizontal), sendo pleno in re potestas,
conferindo os poderes do proprietário. Coexiste com esta plena propriedade,
uma compropriedade das partes comuns. Estão de tal forma ligados que na
alienação do direito de propriedade horizontal vão coenvolvidos a propriedade
sobre a parte privativa e o direito de compropriedade sobre as partes comuns.

Esta compropriedade é uma compropriedade forçada, não é possível sair


da indivisão, ao contrário do que sucede na compropriedade normal, em que é
sempre lícito requerer a divisão da coisa comum. A compropriedade das partes
comuns dum edifício em propriedade horizontal é forçosa, enquanto durar a
propriedade horizontal. Assim, é forçosa e perpétua.

CAPÍTULO III - USUFRUTO, USO E HABITAÇÃO

a) Usufruto
62.Noção e características.
O usufruto é definido no art. 1439º CC como o direito de gozar
temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma
ou substância.

No termo do usufruto (é o direito de gozar temporariamente pelo que


terá um termo), o usufrutuário deve restituir a coisa ao proprietário, sem a sua
substância estar alterada.

Esta definição é de origem romana, do jurista romano PAULUS.


Acentuam-se os poderes de uso e fruição, com ressalva da substância da coisa.

O usufrutuário detém apenas o ius utendi e o ius fruendi, não detendo o


ius abutendi, o poder de dispor da coisa.

Isto significa que onde existe um usufruto limitador de uma propriedade,


tem de existir uma propriedade limitada por esse usufruto (nomeadamente
esvaziada do usus e do fructus). Esta propriedade designa-se nua propriedade
ou propriedade de raiz.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Mas os poderes do usufrutuário e do proprietário de raiz somados não


perfazem os poderes do pleno proprietário. Ninguém possui plenamente o
poder de dispor da coisa. O ius abutendi não abrange apenas o poder de alienar
a coisa, pois isso ambos o podem fazer, na medida dos seus direitos (tanto o nu-
proprietário pode alienar a sua propriedade, como o usufrutuário pode alienar o
seu direito de usufruto.

Nenhum deles poderá destruir a coisa, apesar de ser uma faculdade


abrangida pelo ius abutendi. O usufrutuário não o pode fazer porque tem de
ressalvar a substância da coisa e o proprietário de raiz também não porque
estaria a violar o usufruto.

O usufruto é, então, um ius in re aliena, um direito real sobre coisa


alheia, um direito real integrado pelas faculdades de uso e fruição sobre uma
coisa que, em propriedade, pertence a outrem. Segundo a velha conceção
romanista, era classificado como uma servidão pessoal. Dá-se a um indivíduo
um direito sobre utilidades de prédio alheio, direito esse que não tem de ser
utilizado por intermédio de um prédio dominante.

Da definição legal de usufruto resulta que é um direito:

1. Real de gozo: o usufrutuário pode usar, fruir e administrar a coisa ou


direito como faria um bom pai de família, embora deva respeitar o
seu destino económico (art. 1466º CC). Pode também trespassar a
outrem o exercício do seu direito e onerá-lo, salvo as restrições
impostas pelo título constitutivo ou pela lei (art. 1444º/1 CC), mas
responde pelos danos que as coisas padecerem por culpa da pessoa
que o substituir (nº2).
A cedência do usufruto a terceiro, referida como trespasse a terceiro,
só pode ser efetuada por negócio inter vivos, porque o usufruto
extingue-se com a morte do cedente (arts. 1443º e 1476º/1/a) CC).
2. Não exclusivo: o usufruto implica a existência de outro direito real
sobre a mesma coisa. Esta característica permite compreender boa
parte das obrigações do usufrutuário e distinguir claramente o
usufruto do direito de propriedade.
3. Limitado: o usufrutuário não pode alterar a forma ou substância da
coisa usufruída e deve também respeitar o seu destino económico.
Mas se o usufruto tiver por objeto coisas consumíveis, o seu uso
implica, pela própria natureza das coisas, o seu desaparecimento (art.
1451º/1 CC).
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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

4. Temporário: o usufruto não pode exceder a vida do usufrutuário,


quando se trate de pessoa física; a sua duração máxima é de 30 anos,
se for constituído a favor de pessoa coletiva (art. 1443º CC). Havendo
prazo estipulado, extingue-se no seu termo, exceto se o usufrutuário
falecer antes.
Esta característica tem a sua ratio na finalidade essencialmente
pessoal (intuitu personae) do usufruto que justifica também que se
for trespassado, o usufruto se extinga com a morte do cedente e não
do adquirente.
O usufruto não tem caráter perpétuo por duas razões: a falta de
estímulo para a conveniente exploração económica dos bens; e o
obstáculo à sua circulação.
5. Sobre objeto alheio: a lei refere que o usufruto pode incidir sobre
coisa ou direito alheio. O princípio da coisificação aparece como
obstáculo à possibilidade de o usufruto incidir sobre direitos. Há
autores que entendem que a função económico-social originária do
usufruto (proporcionar alimentos ao beneficiário mediante a fruição
da coisa) pode ser cumprida pela fruição de direitos de crédito, partes
sociais, etc. (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA). Outros entendem
que o usufruto não recai sobre o direito mas sim sobre o seu objeto, a
prestação, considerando-o um direito de crédito (OLIVEIRA
ASCENSÃO).

63. Constituição.
O usufruto pode ser constituído por contrato, testamento, usucapião ou
disposição da lei (art. 1440º CC).

1. Contrato

Através do contrato, a aquisição do usufruto pode realizar-se por duas


vias:

a) Constituição per translationem: o proprietário constitui o usufruto


a favor de determinada pessoa (contraparte ou terceiro), ficando
com a nua propriedade;
b) Constituição per deductionem: o proprietário cede a nua
propriedade sobre uma coisa e reserva, para si (ou para terceiro) o
direito de usufruto.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Esta distinção é importante porque o usufrutuário está dispensado da


prestação da caução se o usufruto tiver sido constituído per deductionem (art.
1469º/1 CC).

A doação é o contrato mais frequentemente realizado, mas nada impede


que a constituição se faça onerosamente.

2. Testamento

O testamento pode ser utilizado para constituir um usufruto sobre a


universalidade da herança, uma quota dela, coisas ou direitos determinados. A
lei qualifica como legatário o usufrutuário, ainda que o seu direito incida sobre a
totalidade do património (art. 2030º/4 CC).

3. Usucapião

Este modo de aquisição do usufruto assinala o reconhecimento da


doutrina considerada mais razoável a decorre naturalmente dos termos amplos
em que é definido o âmbito da usucapião, quando refere “a posse (…) de outros
direitos reais de gozo” (art. 1287º CC).

Houve autores que argumentaram ser a posse de propriedade e de


usufruto idênticas, sendo impossível distingui-las, concluindo que o usufruto
não poderia ser adquirido por usucapião.

Defendemos que o animus possidendi permite distinguir as duas


situações possessórias, sendo perfeitamente concebível a aquisição do usufruto
por usucapião.

Também a nua propriedade pode ser adquirida por usucapião, sendo a


posse exercida por intermédio de outrem (art. 1252º/1 CC).

4. Disposição da lei

Destacava-se o usufruto dos pais sobre os bens do filho menor legítimo e


o usufruto do cônjuge sobrevivo quando a sucessão legítima fosse deferida aos
irmãos ou sobrinhos do de cujus.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

A reforma de 1977 suprimiu estes casos de usufruto legais.

64. Regime jurídico (em particular, direitos e obrigações do


usufrutuário).
Os direitos e obrigações do usufrutuário são regulados pelo título
constitutivo do usufruto. Quando o título seja insuficiente ou no que não
regular, aplicam-se as disposições do Código (art. 1445º CC).

O título constitutivo do usufruto pode ser flexível, desde que se respeite


a estrutura básica do direito definido no art. 1439º, sob pena de se violar a
regra básica da tipicidade dos direitos reais (art. 1306º CC).

É possível estabelecer-se variados poderes, excluir uma ou outra


utilidade, com um limite: o usufruto não pode incidir sobre a fruição de uma só
utilidade. Isto subverteria o princípio segundo o qual não há servidões pessoais.
Fala-se de um tipo relativamente aberto e considera-se que nem todas as
disposições legais têm caráter supletivo, algumas são efetivamente imperativas.

Quando o título constitutivo não o faça, quanto aos direitos e obrigações


do usufrutuário, aplicar-se-ão as normas que definem o conteúdo do usufruto:

1. O art. 1466º dispõe que o usufrutuário pode usar, fruir e administrar a


coisa ou o direito como faria um bom pai de família, respeitando o seu
destino económico. A expressão bom pai de família é intencionalmente
imprecisa: concede a necessária flexibilidade na apreciação contenciosa
para que a decisão judicial se possa adaptar às especificidades do caso
sub judice. O usufrutuário tem, também, de respeitar o destino
económico da coisa, o que não se confunde com a não alteração da
forma ou substância da coisa ou direito (art. 1439º CC). Esta limitação é
uma decorrência da falta do direito de dispor da coisa.
2. O nosso direito determina que é o momento da colheita (perceção) que
assinala o direito à aquisição dos frutos naturais. Compreende-se que o
usufrutuário e o proprietário tenham direito aos frutos colhidos,
respetivamente, durante a vigência do usufruto e depois da sua extinção.
Mas há um tratamento discriminatório: o usufrutuário não é obrigado a
abonar, ao proprietário, as despesas de produção que este fez antes da
constituição do usufruto; mas o proprietário é obrigado a ressarci-lo

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

dessas despesas relacionadas com os frutos que, depois da extinção do


usufruto, vier a colher (art. 1447º CC).
A lei presume que a vontade do instituidor se manifestaria no sentido de
pretender que o beneficiário do usufruto passe, logo após a instituição, a
colher os frutos da coisa, daí o beneficiário não o ter de abonar; para
evitar um locupletamento do proprietário da raiz à custa do usufrutuário,
percebe-se que o primeiro tem de ressarcir o usufrutuário. Além disso,
afasta a possibilidade de o usufrutuário ser inerte com o aproximar do
termo do usufruto (MOTA PINTO).

 Frutos alienados antes da colheita

A art. 1448º dispõe que se os frutos tiverem sido alienados antes da


colheita que só deve ocorrer depois da extinção do usufruto, a alienação
subsiste, mas o produto da alienação pertence ao proprietário que deve
indemnizar o usufrutuário das despesas de produção. Isto deriva do princípio de
que a titularidade dos frutos se determina no momento da colheita; evita o
locupletamento do proprietário à custa do beneficiário do usufruto,
contribuindo para evitar a inércia deste.

 Acessões

O art. 1449º determina que o usufruto abrange as coisas acrescidas e


todos os direitos inerentes à coisa usufruída. Se a acessão amplia a coisa objeto
de propriedade, é natural que o usufruto se amplie também.

 Benfeitorias úteis e voluptuárias

O usufrutuário tem a faculdade de fazer estas benfeitorias na coisa


usufruída desde que não altere a sua forma ou substância nem o seu destino
económico (art. 1450º/1 CC). Aplica-se-lhe o regime do possuidor de boa fé
(nº2). O proprietário não se pode opor a que o usufrutuário introduza
melhoramentos na coisa usufruída, desde que as obras não excedam os limites
dos seus poderes, nem alterem a forma ou substância da coisa nem o seu
destino económico (PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA).

 Coisas consumíveis

O usufrutuário pode servir-se das coisas consumíveis ou aliená-las. No


termo do usufruto, terá de restituir o seu valor, se tiverem sido estimadas, ou

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outras do mesmo género, qualidade e quantidade (podendo optar também por


restituir o valor) se não forem estimadas (art. 1451º/1 CC).

Apesar de as coisas virem a ser consumidas, não se opera a transferência


da propriedade das coisas para o usufrutuário (art. 1451º/2 CC). Assim, o risco
pelo perecimento da coisa antes de ser consumida onera o proprietário da raiz e
este poderá defender o seu direito real contra os credores do usufrutuário
(mediante embargos de terceiro, p.ex.).

 Coisas deterioráveis

O usufrutuário terá de as restituir no estado em que se encontrarem no


fim do usufruto, desde que as tenha utilizado para o fim que lhes era próprio e
não tenha procedido com culpa. Terá de responder pelo valor que tinham na
conjuntura em que o usufruto começou se não as apresentar, a não ser que
tenham perdido todo o seu valor com o seu uso legítimo (art. 1452º/2 CC).

 Outros

Nos arts. 1453º a 1456º CC, a lei dispõe sobre o usufruto de árvores e
arbustos, de matas, árvores de corte, plantas de viveiro. Existem problemas
específicos relacionados com esta matéria, principalmente no tocante ao
usufruto de árvores de corte e matas.

O usufrutuário pode cortar árvores da mata sobre que incide o seu


direito de usufruto, enquanto se possam considerar frutos, mas já não quando
essas árvores revistam a natureza de capital. As árvores que constituam capital
são normalmente as árvores de renovação. Tal como num pomar, o
usufrutuário pode colher os frutos, mas não pode cortar as árvores, porque
constituem capital (vão voltar a dar frutos no futuro).

No art. 1457º CC prevê-se a possibilidade de usufruto sobre a exploração


de minas; no art. 1458º CC, o usufruto sobre exploração de pedreiras.

O art. 1462º CC refere-se ao usufruto incidente sobre universalidades de


animais.

O usufruto também poderá incidir sobre dinheiro, capitais levantados ou


títulos de crédito. O usufrutuário tem direito aos juros correspondentes à
duração do usufruto e à fruição dos prémios ou outras utilidades aleatórias
produzidas pelo título. Além disto, também poderá incidir sobre títulos de
participação. Sobre isto dispõem os arts. 1464º a 1467º CC.

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

 Obrigações do usufrutuário
 Relação de bens e prestação de caução

O usufrutuário deve fazer uma relação de bens onde conste o seu estado
e, se houver móveis, o seu valor (art. 1468º/a) CC). Se o proprietário exigir, deve
prestar caução para garantir a restituição dos bens ou, se forem bens
consumíveis, do seu valor, a reparação das deteriorações devidas a culpa dele e
o pagamento de qualquer outra indemnização ao proprietário (art. 1468º/b)
CC).

A prestação de caução não é exigível se o usufruto tiver sido constituído


per deductionem (art. 1469º CC). E o título constitutivo pode dispensar a
caução, visto não estarmos perante um interesse público.

O usufrutuário pode recusar prestar caução, podendo, neste caso, o


proprietário exigir que os imóveis sejam arrendados ou postos em
administração; os móveis sejam vendidos ou lhe sejam entregues; os capitais e a
importância das vendas sejam dadas a juros ou utilizadas na aquisição de títulos
de crédito nominativos; etc. (art. 1470º/1 CC).

 Obras, melhoramentos e plantações

O proprietário pode fazê-las, desde que não diminuam o valor do


usufruto: ao usufrutuário corresponde uma obrigação de tolerância (art.
1471º/1 CC).

 Reparações ordinárias

O usufrutuário deve fazer as reparações ordinárias indispensáveis à


conservação da coisa. O critério é a finalidade da obra e a normalidade da sua
causa: são ordinárias as reparações indispensáveis à conversação da coisa, salvo
se, no ano em que se tornarem necessárias excedam dois terços do rendimento
líquido desse ano (MOTA PINTO). Além disso, o usufrutuário deve pagar as
despesas de administração (art. 1472º CC). Pode eximir-se a esses encaros
renunciando ao usufruto.

A falta destas reparações pode dar lugar à sua execução específica, à


obrigação de realizar as reparações extraordinárias a que tenha dado causa ou à
indemnização dos danos a que dê causa a negligência do usufrutuário (art.
1473º/1 CC).

 Reparações extraordinárias

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

Estas já são responsabilidade do proprietário, exceto no caso de se


tornarem necessárias por má administração do usufrutuário. Mas este terá o
dever de informar o proprietário da sua necessidade. Se o proprietário, depois
de avisado, não proceder à sua realização e revestirem utilidade real, o
usufrutuário pode fazê-las e exigir o pagamento das correspondentes despesas
ou do valor que tiverem no fim do usufruto se este valor for inferior ao custo
(art. 1473º/2 CC).

 Impostos

O titular do usufruto no momento do vencimento, deve pagar os


impostos e outros encargos anuais que incidam sobre o rendimento dos bens
usufruídos (art. 1474º CC). Mas os impostos que incidam sobre o capital são da
responsabilidade do proprietário. Pode haver estipulação no título constitutivo
no sentido de os impostos e outros encargos serem repartidos entre os
interessados, sem prejuízo das regras de direito fiscal.

 Informações

O usufrutuário é obrigado a informar o proprietário de qualquer facto de


terceiro, sempre que possa lesar os direitos daquele, sob pena de responder
pelos danos que venha a sofrer (art. 1475º C). Também estará obrigado a tomar
outras providências que as circunstâncias imponham para a defesa do direito do
proprietário, de acordo com o modelo de diligência do bom pai de família (art.
1446º CC).

65. Extinção.
As causas de extinção do usufruto vêm referidas no art. 1476º CC.

1. Morte ou decurso do tempo

O usufruto extingue-se por morte do usufrutuário ou no termo do prazo


por que o direito foi conferido, quando não seja vitalício (art. 1476º/1/a) CC).

É a manifestação do caráter pessoal do usufruto. Sendo este constituído


intuitu personae é lógico que, falecido o usufrutuário, se extinga o direito. Se foi
constituído por tempo determinado, extingue-se no seu termo.

2. Confusão

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

O usufruto extingue-se por reunião do usufruto e da propriedade na


mesma pessoa (art. 1476º/1/b) CC). Ocorre uma situação semelhante à
confusão, que se aplica no âmbito dos direitos de crédito. Isto porque não pode
haver encargos sobre coisa própria.

3. Não uso

Pode também extinguir-se pelo não uso, durante vinte anos,


independentemente do motivo (art. 1476º/1/c) CC).

Aqui não se aplica o regime da prescrição extintiva, o que implicaria a


aplicação de causas de interrupção ou suspensão. Isto é assim pela orientação
em sentido do interesse público de termo dos direitos reais limitados. Logo que
não estejam a cumprir a sua função, a lei põe-lhes um termo. Há um interesse
em fazer caducar os ius in re aliena.

4. Perda

O usufruto extingue-se pela perda total da coisa usufruída


(art.1476º/1/d) CC). Já a perda parcial encontra-se prevista no art. 1478º CC,
continuando o usufruto na parte restante.

Mas existe a hipótese, no nº2 do art. 1478º, da rei mutatio, quando a


coisa não se perdeu totalmente, nem parcialmente, mas foi objeto de uma
mutação qualitativa (p.ex. um carro que se transforma num monte de sucata).
Nestas hipóteses, o CC consagrou que o usufrutuário mantém o seu direito
sobre a coisa transformada, mas que agora incide sobre coisa consumível.

5. Renúncia

O usufrutuário pode renunciar ao seu direito (art. 1476º/1/e) CC). Esta


renúncia é um mero negócio jurídico unilateral, que não requer aceitação do
proprietário.

6. Mau uso

Outra causa de extinção do usufruto encontra-se no art. 1482º CC. Em


princípio, o usufruto não se extingue pelo mau uso da coisa, a não ser quando o
abuso se tornar consideravelmente prejudicial ao proprietário, caso em que
este pode exigir que a coisa lhe seja entregue, nos termos desse artigo.

O usufruto não se extingue pelo mau uso, mas pode ser extinguido em
espécie, no momento em que o proprietário exigir a entrega da coisa e ficar

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Ano letivo 2016/2017 Flávia Marques

obrigado a pagar anualmente a importância do respetivo rendimento ao


usufrutuário.

66. Natureza jurídica.


A doutrina divide-se quando à natureza jurídica do direito de usufruto:

Existem autores que defendem que o usufruto é um desmembramento


ou parcelamento da propriedade (teoria do desmembramento da propriedade).

O Código de Seabra parecia aceitar esta doutrina, incluindo o usufruto na


“propriedade imperfeita” (MOTA PINTO).

Critica-se esta doutrina porque a propriedade tem traços qualitativos


específicos que não podem ser divididos.

Já a teoria da propriedade temporária considera que o nu-proprietário e


o usufrutuário são proprietários da coisa, mas com faculdades diferentes. A
crítica considera isto inaceitável.

Finalmente, defendemos que se trata de um direito real autónomo, que


onera a propriedade.

b) Uso e habitação
67. Noção e confronto com o usufruto.
O Código define o direito de uso como a faculdade de se servir de certa
coisa alheia e haver os respetivos frutos, na medida das necessidades quer dele
quer da sua a família (art. 1484º/1 CC). Quando se referir à casa de morada,
chama-se direito de habitação (nº2).

Este direito abrange não só o usus, mas também o fructus, embora a sua
designação possa sugerir o contrário. Mas fá-lo apenas na medida das
necessidades pessoais do seu titular e da sua família.

Isto implica que se o direito de uso incidir sobre uma casa (chamando-se
direito de habitação neste caso), esta não pode ser arrendada, visto que o
direito não engloba os frutos civis dela.

Se já estivermos perante um prédio rústico, aí já se engloba tanto a


possibilidade de o cultivar, como a de colher os respetivos frutos, possibilidades,

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ainda assim, limitadas pela medida das necessidades do titular do direito e da


sua família.

Torna-se importante delimitar o agregado familiar, que a lei faz através


do art. 1487º CC.

Uma nota fundamental do direito de uso e habitação é, então, o de se


pautar pelas necessidades pessoais, diversamente do que se verifica no
usufruto, que concede uma fruição e um uso globais e, em princípio, ilimitados.

Outra diferença reside no facto de, no usufruto, o direito poder ser


trespassado, onerado, arrendado, etc., enquanto que no direito de uso e
habitação isto não é possível (art. 1488º CC).

Os direitos de uso e habitação são diminutivos do usufruto, razão pela


qual se lhes aplica o seu regime, quando conforme à natureza desses direitos
(art. 1490º CC). Excetuam-se as disposições acerca do trespasse, locação e
oneração da coisa.

68. Constituição.
Os direitos de uso e habitação constituem-se pelos mesmos modos que o
usufruto, excetuando-se a usucapião (art. 1485º CC). Ou seja, podem ser
constituídos por contrato, testamento ou disposição da lei.

Em relação à constituição por disposição da lei, são importantes os arts.


2013º-A, 2013º-B e 2013º-C. Também a lei nº6/2001 e a nº7/2001 contêm casos
de direitos de uso e habitação.

69. Regime jurídico.


Os direitos de uso e habitação são regulados pelo título constitutivo e
aplicam-se os arts. 1485º e ss. subsidiariamente. Além disso, são aplicáveis as
disposições que regulam o usufruto, quando sejam conformes à natureza dos
direitos de uso e habitação. Isto significa que o usuário ou morador usuário
pode:

1. Usar, desde que respeite o destino económico da coisa. Está lhe


vedado o gozo indireto, o poder de dispor (trespassar, locar e onerar);

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2. Fruir, mas com um limite: “na medida das necessidades quer do


titular, quer da sua família” (art. 1484º/1 CC).

Quanto às suas obrigações, deve: relacionar os bens e prestar caução, se


lhe for exigida (art. 1468º e ss. CC); efetuar as reparações ordinárias, pagar as
despesas de administração e os impostos e outros encargos anuais que incidam
sobre o rendimento da coisa, na proporção da sua fruição (art. 1489º CC); avisar
o proprietário da prática ou ameaça de atos lesivos da coisa por parte de
terceiro (art. 1475º CC); agir como um bom pai de família (art. 1446º CC);
restituir a coisa, findo o seu direito (art. 1483º CC); e está sujeito, com
adaptações, às providências descritas no art. 1482º se fizer mau uso da coisa.

70. Natureza jurídica.


A natureza do direito de uso e habitação parece ser, no fundo, a afetação
destes direitos à função de satisfazer necessidades pessoais.

c) Direito real de habitação periódica


71. Noção.
Podemos defini-lo como o direito de usar, por um ou mais períodos
certos, em cada ano, para fins habitacionais, uma unidade de alojamento
integrada num empreendimento turístico, mediante o pagamento de uma
prestação periódica ao proprietário do empreendimento ou a quem o
administre. É o chamado time sharing.

Foi um direito inspirado pela prática social concebida e fomentada pelas


empresas imobiliárias do setor turístico, que se tem desenvolvido bastante.

O dono do empreendimento é o proprietário.

72. Fontes do regime jurídico respetivo.


Este direito está previsto e regulado em legislação avulsa,
nomeadamente no decreto-lei nº 275/93, de 5 de agosto

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Capítulo IV – Direito de superfície.


73. Noção e Objeto.
O CC define o direito de superfície como o direito que consiste na
faculdade de construir ou manter, perpétua ou temporariamente, uma obra em
terreno alheio, ou de nele fazer ou manter plantações (art. 1524º).

O titular do direito é o superficiário; o dono do solo, proprietário ou


fundeiro; a coisa implantada, implante.

A doutrina aprofunda a noção dada pelo CC.

Este direito incide sobre solo alheio e compreende a parte necessária à


construção e aquela que, embora não necessária, tenha utilidade para o uso da
obra (art. 1525º CC). Pode também incidir sob solo e sobre edifícios alheios.

O direito de construir sobre edifício alheio (sobreelevação) está sujeito às


limitações impostas à constituição da propriedade horizontal e quando esteja a
obra realizada são-lhe aplicáveis as restantes regras desta propriedade.

74. Constituição.
O direito de superfície pode ser constituído por contrato, testamento,
usucapião e pode resultar da alienação de obra ou árvores já existentes,
separadamente da propriedade do solo (art. 1528º CC).

 Contrato

O contrato pode revestir os mais variados tipos (compra e venda, doação,


sociedade, contrato inominado, etc.).

Deve constar de escritura pública ou de documento particular


autenticado e ser registado.

 Testamento

O testamento permite que o direito de superfície nasça de várias


combinações: legado a certa pessoa o direito de construir ou plantar e legado o
solo a outra; legado a alguém do direito a construir e devolução do direito sobre
o solo aos herdeiros, etc. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA entendem que se o
de cujus for titular do direito de construir, haverá, em princípio, transmissão
mortis causa desse direito, independentemente de testamento.

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 Usucapião

Se a propriedade superficiária já estiver constituída a favor de alguém,


não há dificuldade sobre a possibilidade de um terceiro a adquirir por
usucapião, bastando que possua nos termos necessários.

Mas se o direito de superfície ainda não estiver constituído, em causa


está a aquisição do direito de construir ou plantar apenas em relação ao futuro
e, por isso, muitos autores recusam a possibilidade de aquisição por usucapião.
No entanto, a lei admite a usucapião sem nenhuma limitação.

75. A propriedade do solo.


O direito de superfície (como o direito de propriedade do solo) é
transmissível por ato inter vivos e mortis causa (art. 1534º CC). Todavia, o
proprietário do solo goza, em último lugar, do direito de preferência na venda
ou dação em cumprimento do direito de superfície (art. 1535º/1 CC).

O direito de preferência compreende-se porque, constituindo o direito


de construir ou plantar em terreno alheio, bem como o de aí manter obra ou
árvores uma restrição à propriedade do solo, proporciona a recuperação da sua
plenitude.

76. Direitos e deveres do superficiário e do proprietário do solo.


 Proprietário do solo
O proprietário do solo tem a faculdade de:
1. Usar e fruir a superfície, mas não pode impedir nem tornar mais
onerosa a construção ou plantação (art. 1532º CC);
2. Usar e fruir o subsolo, embora seja responsável pelo prejuízo
causado ao superficiário em consequência da sua exploração (art.
1533º CC);
3. Receber, em dinheiro, uma prestação única ou certa prestação
anual, que pode ser perpétua ou temporária (art. 1530º CC). Se a
prestação for anual, estamos perante uma obrigação real a cargo
de quem for titular do direito de superfície na data do seu
vencimento.

 Superficiário
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O superficiário tem a faculdade de:


1. Fazer construções ou plantações no terreno do proprietário do
solo (no solo ou subsolo, conforme o caso – art. 1524º CC);
2. Construir sobre edifício alheio, com as limitações da propriedade
horizontal (art. 1526º CC);
3. Gozar a obra ou plantação feita (art. 1533º CC);
4. Dispor da coisa construída ou árvores plantadas;
5. Reconstruir ou renovar a plantação, no caso de destruição;
6. Utilizar as servidões necessárias ao uso e fruição da obra ou das
árvores, sobre a restante parte do prédio (art. 1539º/1 CC);
7. Ser indemnizado por caducidade do seu direito, segundo as regras
do enriquecimento sem causa (art. 1538º/2 CC); ou por
expropriação do prédio (art. 1542º CC).

Em relação às suas obrigações, o superficiário deve:

1. Pagar a prestação convencionada no título constitutivo do direito


de superfície (art. 1530º/1 CC), que é sempre em dinheiro (nº3);
2. Dar preferência ao proprietário do solo na venda ou dação em
cumprimento do direito de superfície (art. 1535º/1 CC). Deve dar-
lhe conhecimento do projeto de alienação e das cláusulas do
respetivo contrato;
3. Responder pelas deteriorações da obra ou plantações, quando
haja culpa da sua parte e não houver lugar à indemnização
prevista no art. 1538º/2.

77. Extinção.
O direito de superfície extingue-se:

a) Se o superficiário não concluir a obra ou não fizer a plantação


no prazo fixado, ou, na falta de fixação, dentro do prazo de dez
anos (art. 1536º/1/a) CC);
Esta limitação temporal justifica-se por o superficiário não
mostrar interesse atendível e por um interesse público em
acabar com as restrições ao direito de propriedade.
b) Se, destruída a obra ou as árvores, o superficiário não
reconstruir a obra ou não renovar a plantação dentro dos
mesmos prazos a contar da destruição (art. 1536º/1/b) CC).

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c) Pelo decurso do prazo, se foi constituído por tempo certo (art.


1536º/1/c) CC);
d) Pela reunião, na mesma pessoa, dos direitos de superfície e de
propriedade (art. 1536º/1/d) CC);
e) Pelo desaparecimento ou inutilização do solo (art. 1536º/1/e)
CC);
f) Pela expropriação por utilidade pública (art. 1536º/1/f) CC).

78. Natureza jurídica.


Existem várias posições doutrinais.

Segundo PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, que MOTA PINTO segue, a


posição do superficiário é complexa, sendo necessário distinguir duas faces: em
relação à obra ou plantação, é ou virá a ser o seu proprietário; em relação ao
terreno ou solo, estamos perante um direito real de gozo autónomo.

Capítulo V – Servidões prediais


79. Noção e características.
Uma servidão predial consiste no encargo imposto num prédio em
proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente. Chama-se
serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia (art.
1543º CC).

PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA observam que a servidão predial:

1. É um encargo (constitui uma restrição ou limitação ao direito


de propriedade sobre o prédio dito serviente);
2. Recai sobre um prédio (é uma restrição ao gozo do prédio
serviente, inibindo o proprietário de praticar os atos que
possam prejudicar o exercício da servidão);
3. Beneficia outro prédio dito dominante;
4. Os prédios devem pertencer a donos diferentes.

Apontam-se como características a inseparabilidade (art. 1545º/ CC). A


servidão há de ser gozada através do prédio dominante e, por isso, não pode ser
cedida independentemente do prédio a que respeita.

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Se uma servidão de passagem se deslocar de um prédio para outro, a


antiga servidão extingue-se e constitui-se uma nova (MOTA PINTO).

Outra característica apontada é a indivisibilidade (art. 1546º CC).

A servidão tem um conteúdo atípico (art. 1544º CC). A utilidade que a


servidão proporciona consiste numa vantagem que, muitas vezes, aumenta o
valor económico do prédio dominante. Mas não é forçosamente assim, como no
caso da servidão de vistas ou de não edificação.

A servidão tem necessariamente de incidir sobre um prédio em benefício


do outro. Por isso, se se tratar da fruição de utilidades em benefício pessoal, e
não por intermédio de um prédio dominante, estaremos perante uma relação
obrigacional (ex.: direito de passear em prédio alheio).

80. Breve descrição do regime jurídico: constituição e


modalidades das servidões prediais.
As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento,
usucapião ou destinação do pai de família (art. 1547º/1 CC). Na falta de
constituição voluntária, podem ainda ser constituídas por sentença judicial ou
decisão administrativa (nº2).

As servidões podem ser voluntárias, se forem constituídas por ato


voluntário, ou legais, quando o seu titular tenha um direito potestativo que lhe
confira a faculdade de constituir uma servidão sobre determinado prédio e o
exerça, passando nesse momento a ser uma verdadeira servidão.

Dentro das servidões legais temos servidões de passagem (art. 1550º CC),
que só recai sobre prédios rústicos e não sobre urbanos; servidões de água
(arts. 1557º a 1563º CC).

As servidões podem ser aparentes e não aparentes. Distinguem-se por só


aquelas se revelarem por obras ou sinais exteriores que, além de visíveis, devem
ser permanentes (art. 1548º/2 CC). A visibilidade destina-se a garantir a não
clandestinidade. Esta classificação é importante para efeitos de usucapião, que
só é admissível quanto às servidões aparentes (art. 1548º/1 CC).

Finalmente, as servidões podem ser positivas, negativas e


desvinculativas. As positivas traduzem-se na permissão de atos sobre o prédio
serviente, sendo caso paradigmático a servidão de passagem. As servidões
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negativas impõem uma abstenção ao dono do prédio serviente, como a


servidão de vistas ou de não edificar. Por sua vez, as desvinculativas libertam o
prédio dominante de restrições legais. Serve de exemplo a proibição de emissão
de fumos sobre o prédio alheio (art. 1346º CC), em que os donos dos prédios
acordam em que seja tolerada a emissão de fumos.

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