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Controvérsias

Dentes decíduos remanescentes em


adultos e sua rizólise: implicações
e aplicações clínicas
Alberto Consolaro*

Quando um dente decíduo completa sua formação e e gerar vários fragmentos ou corpúsculos, cada um car-
erupção o mesmo apresentará os tecidos duros minera- regando um pedaço da célula embrulhada em membrana
lizados – como o esmalte, dentina, cemento e osso fas- celular. Este processo é isolado em cada célula, sem que
ciculado – e os tecidos moles - como a polpa, ligamento derrame enzimas ou “incomode” as vizinhas ou, ainda,
periodontal e gengiva. sem que lese outros componentes teciduais. Quando as
Os tecidos duros como o cemento e a dentina serão células vizinhas detectam os fragmentos de células elas
reabsorvidos pelas células clásticas e desaparecerão, en- ajudam os macrófagos da região a fagocitá-los.
quanto o esmalte da coroa será esfoliado no meio bucal, Esta forma de eliminação celular, assintomática e na-
tal como uma folha ou flor seca que cai no chão no outono. tural, foi denominada e é universalmente conhecida como
Daí o uso do termo decíduo para os dentes das crianças, apoptose, um termo originário do grego que significa per-
pois significa aquele que cai. der as folhas, despetalar-se, por analogia às flores e árvo-
Mas o que ocorre com os tecidos moles dos dentes res no outono. Ou simplesmente significa “folhas ou flores
decíduos, suas células, fibras, vasos e nervos? A esfolia- cadentes”. As células perdem pedaços ou “pétalas”, que se
ção dos dentes decíduos faz parte da espécie humana. Na destacam um dos outros. A apoptose também é conheci-
programação de nosso desenvolvimento e crescimento da como morte celular programada ou suicídio celular. Na
este processo foi idealizado para acontecer sem sinto- odontogênese de camundongos e gatos, bem como nos
mas, como um processo natural, ou seja, fisiológico. Com dentes decíduos de gatos e de humanos, conseguimos ob-
o timo e o ducto tireoglosso acontece o mesmo processo servar a apoptose pela primeira vez, em nosso laboratório,
de desaparecimento. nas teses de mestrado e de doutoramento de Lourenço1,2,
Logo após a completa formação dos dentes decíduos, sob nossa orientação.
as células destes dentes são programadas geneticamente A apoptose também é utilizada em outros processos
para liberar ou desreprimir o gene p53, que comanda um no corpo humano como, por exemplo, eliminar as células e
processo bioquímico de desmoronamento celular, asso- tecidos por entre os dedos, individualizando-os. Ou ainda,
ciado a outros genes. O citoesqueleto, a estrutura interna como exemplo, também ocorre com as células e tecidos
de sustentação celular, será quebrado e destruído por en- centrais nos cordões celulares que darão origem a ductos
zimas e a célula, externamente, sofre um severo e gradati- e outros tipos de estruturas ocas em nosso organismo,
vo enrugamento. A síntese protéica ficará limitada e cada estabelecendo os seus lumes por onde circularão as secre-
vez mais restringida. A cromatina nuclear será organizada ções e outros produtos.
em grumos desorganizados. A célula tenderá a quebrar-se A apoptose, portanto, é o mecanismo pelo qual desa-

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parecem dos maxilares as células da polpa e do periodon- da grande quantidade de epitélio: o epitélio reduzido do
to dos dentes decíduos, expondo porém, em um primeiro esmalte e as ilhotas e cordões epiteliais remanescentes
momento, as superfícies interna e externa dos tecidos da lâmina dentária. Desta forma, dentes decíduos em que
mineralizados dos dentes. O processo pelo qual as células uma de suas faces está voltada e próxima de um folícu-
dos dentes decíduos desaparecem é lento, gradual e pode lo pericoronário de dente permanente, sucessor ou não,
demorar muitos meses e até anos. apresentarão, nesta região, uma acentuada aceleração do
As superfícies dentárias mineralizadas, quando expos- processo de rizólise, pela maior quantidade de mediado-
tas, sem proteção ou “revestimento” dos cementoblastos, res indutores e aceleradores da apoptose e mediadores
independentemente de ser dente decíduo ou permanen- indutores de atividade clástica, como o EGF e outros.
te, tendem naturalmente a ser colonizadas por células Qualquer dente decíduo, passado o tempo normal de
clásticas, estabelecendo-se áreas de reabsorção radicular. sua esfoliação, terá inevitavelmente iniciada a sua rizóli-
Nos dentes permanentes submetidos a traumatismo, por se, independentemente da existência ou não de um dente
exemplo, se a área exposta for pequena ou média ocorre- permanente sucessor próximo a ele. A apoptose e reab-
rá por um curto período de tempo a reabsorção radicu- sorção dos dentes decíduos para sua iniciação independe
lar, mas se a região não for contaminada por bactérias e a do dente permanente e seu folículo pericoronário. Mas,
inflamação pós-traumática desaparecer, logo a seguir os se presente o folículo pericoronário próximo ao dente
cementoblastos vizinhos voltarão a “revestir” a superfície decíduo, haverá uma aceleração do processo de rizólise,
radicular, cessando o processo. Para a reabsorção dentária especialmente nas suas faces voltadas ou mais próximas
ocorrer continuadamente, há de se ter estímulos que ad- do dente permanente.
vêm dos mediadores presentes no processo inflamatório Um dente decíduo sem o sucessor poderá, portanto,
e de estresse tecidual resultantes de uma contaminação permanecer nos maxilares por muitos anos, mas a rizóli-
secundária ou trauma oclusal. se teve o seu início desde quando completada a sua for-
Nos dentes decíduos, a apoptose deixa inúmeras micro- mação. A duração de muitos anos sem esfoliar-se indica
áreas de superfícies radiculares expostas, sobre as quais que a rizólise está muito lenta, em decorrência da falta
ocorre a colonização de células clásticas que reabsorvem de mediadores aceleradores do processo, cuja fonte mais
muito lentamente os tecidos dentários duros. Esta lenti- habitual e normal é o folículo pericoronário de dentes per-
dão é determinada pelo baixíssimo nível local de media- manentes.
dores que estimulam a ação das células clásticas, pois não Um questionamento clínico muito comum refere-se à
se tem uma inflamação ou estresse local que acumulam possibilidade de aumento de coroa clínica, via restaura-
estes mediadores em alto nível. Adiciona-se a esta falta ções ou próteses, em dentes decíduos remanescentes em
de mediadores, que não estimula uma reabsorção rápida, adultos com a finalidade estética e até funcional, visto que
o fato dos cementoblastos vizinhos não conseguirem re- ficarão em plano oclusal. A oclusão de um adulto para um
povoar as áreas desnudas da raiz, pois são células geneti- dente decíduo implica em forças que para o ligamento pe-
camente esgotadas, em sua maioria em processo de pré riodontal decíduo são excessivas e traumáticas, gerando
ou plena apoptose, ou seja, sem capacidade proliferativa estresse celular e inflamação no local. O aumento decor-
significante. rente de mediadores no local promoverá uma aceleração
Alguns mediadores, como certas citocinas e fatores de da rizólise e, em poucas semanas ou meses, o dente de-
crescimento, conseguem induzir as células a entrarem em cíduo em questão esfoliar-se-á. O mesmo raciocínio se-
apoptose ou ainda acelerar o processo. Nos dentes decí- gue-se para a possibilidade de movimentação ortodôntica
duos isto acontece com mediadores presentes nos folí- destes dentes decíduos remanescentes em adultos: have-
culos pericoronários dos dentes permanentes vizinhos, rá estresse celular e inflamação com aumento local de me-
especialmente o EGF ou fator de crescimento epidérmi- diadores e aceleração da rizólise e, logo, haverá uma rápida
co, largamente presente nestas estruturas, em função esfoliação do mesmo. Em suma, não se deve “acreditar” e

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Dentes com vitalidade pulpar e lesão periapical: deve-se movimentá-los?

Figura 1 - Dente decíduo remanescente em paciente adulta de 30 anos com preocupação em prolongar o maior tempo possível sua permanência na boca. Para
conseguir este objetivo o profissional deve retirá-lo de oclusão direta com o antagonista e, nos procedimentos de proteção e terapia, procurar induzir a menor agressão
possível aos tecidos pulpares e periodontais, para não acelerar a rizólise pelo aumento de mediadores locais advindos do estresse celular e da inflamação.

planejar procedimentos restauradores e ortodônticos em máximo a agressão aos tecidos periodontais, com decor-
dentes decíduos remanescentes em adultos. rente aceleração da rizólise.
Quando um dente decíduo remanescente em adulto Todos os aspectos podem ter um lado interessante e
requer restauração, a mesma não deve incluí-lo no plano proveitoso e não seria diferente com a rizólise dos den-
oclusal se o objetivo for preservá-lo o maior tempo possí- tes decíduos remanescentes em adultos. Quando perma-
vel na boca (Fig. 1). Se houver necessidade de pulpotomias, necem muito tempo após sua esfoliação, apesar de uma
ou até pulpectomias, a infecção bacteriana deve ser evi- rizólise lenta pela falta do sucessor, os restos epiteliais
tada a todo custo, os produtos bacterianos não devem se de Malassez também entram em apoptose. Sem os restos
estender além da superfície pulpar da dentina, pois induzi- epiteliais de Malassez, o osso naturalmente vai se apro-
rão inflamação no periodonto com estímulo acelerador da ximando do dente e dá lugar à anquilose alveolodentária,
rizólise em andamento, mas lenta. O material intra-pulpar um achado comum na clínica ortodôntica.
a ser utilizado deverá ser o menos agressivo e menos in- Além do tamanho menor, o dente decíduo remanes-
filtrativo possível nas estruturas dentárias, para evitar ao cente em adulto também tende a ficar em infra-oclusão

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e inflamação induzidos, promoverão uma aceleração da


rizólise. Em algumas semanas restará apenas a coroa do
dente decíduo, facilmente removida, sem perder nível ós-
seo e sem procedimentos cirúrgicos.
C Por fim: a indução da rizólise, via apoptose, independe
E dos dentes sucessores e inicia-se logo após a completa for-
M mação do dente decíduo. A aceleração e o aparecimento de
E planos da reabsorção que caracterizam o processo da rizóli-
N se em decíduos são obtidos graças à proximidade e aos me-
T diadores do folículo pericoronário dos dentes permanentes
O sucessores2. Na rizólise sem a proximidade do dente perma-
nente não se observa planos de reabsorção, apenas perda da
nitidez do contorno radicular, perda da homogeneidade do
espaço periodontal e dificuldade de delinear a lâmina dura
como uma linha uniforme e contínua.
A apoptose dos restos epiteliais de Malassez, a decor-
rente anquilose alveolodentária de dentes decíduos rema-
nescentes em adultos e a conseqüente infra-oclusão para
não sobrecarregar seus tecidos periodontais podem ser
compreendidas como mais uma das formas maravilhosas
LIGAMENTO PERIODONTAL e intrincadas que a natureza encontra para compensar
situações: deixar o dente decíduo mais tempo na boca
quando houver anodontia parcial de dentes permanentes
sucessores! Claro que hoje sabemos: próteses, implantes
e movimentação ortodôntica podem fechar estes espaços
Figura 2 - Na superfície do cemento de um dente decíduo humano, os cemen- e clinicamente a intervenção do profissional resultará em
toblastos revelam imunomarcação indicando a ocorrência de apoptose (setas). A melhor resultado para os pacientes anodônticos, mas a
mesma também pode ser observada em células do ligamento periodontal (setas
menores) e no Resto Epitelial de Malassez (círculo). A cor acastanhada no núcleo
natureza não contava com o desenvolvimento da Odon-
indica ocorrência da apoptose pela técnica do TUNEL modificada. tologia quando idealizou o corpo humano!

por apresentar-se anquilosado. Nestes casos, a remoção 1. LOURENÇO, S. Q. C. Apoptose na odontogênese: durante a fragmentação da
cirúrgica poderá promover perda do nível ósseo, dificul- lâmina dentária e da bainha epitelial de Hertwig e no epitélio reduzido o ór-
gão do esmalte. Estudo imunocitoquímico em camundongos. 1997. Disser-
tando, do ponto de vista estético gengival, a colocação de tação (Mestrado)-Faculdade de Odontologia de Bauru, Universidade de São
implantes e até a movimentação dos dentes vizinhos para Paulo, Bauru, 1997.
2. LOURENÇO, S. Q. C. Reabsorção dentária fisiológica: estudo dos mecanismos
o local. Uma das alternativas em que se aproveita o conhe-
(apoptose) e das moléculas desencadeadoras (Bmp4 e Gelatinase B) em den-
cimento biológico para obter-se benefício clínico pode tes decíduos de gatos. 1999. Tese (Doutorado)–Faculdade de Odontologia de
ser a colocação de resinas na oclusal dos dentes decíduos Bauru, Universidade de São Paulo, Bauru, 1999.

remanescentes em adultos para incluí-los na oclusão do


paciente. Com o trauma oclusal representado pelas forças
Alberto Consolaro
mastigatórias de um adulto, os mediadores acumulados Professor Titular em Patologia Bucal pela Faculdade de Odontologia
no ligamento periodontal decíduo, pelo estresse celular de Bauru - FOB-USP - e-mail: alberto@fob.usp.br

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