Você está na página 1de 9

CRIANÇAS VITIMIZADAS: A SÍNDROME DO PEQUENO PODER

INTRODUÇÃO - Heleieth I. B. Saffioti

(AZEVEDO, GUERRA, 1989)


(SAFFIOTI, 1989)

AZEVEDO, M. A., GUERRA, V. N. A. Crianças Vitimizadas: a Síndrome do


Pequeno Poder. São Paulo: Iglu Editora, 1989.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. A síndrome do pequeno poder. In: AZEVEDO, M. A.,
GUERRA, V. N. A. Crianças Vitimizadas: a Síndrome do Pequeno Poder. São
Paulo: Iglu Editora, 1989.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. A exploração sexual de crianças. In: AZEVEDO, M. A.,
GUERRA, V. N. A. (Org.) Crianças Vitimizadas: a Síndrome do Pequeno
Poder. São Paulo: Iglu Editora, 1989.

Negligência no cuidado de crianças, assim como maus-tratos a elas infligidos e a


exploração sexual que delas se faz constituem fenômenos pungentes, que os adultos
tendem a ocultar, seja porque eles seriam passíveis de punição criminal, seja porque a
descoberta do agressor provocaria o desmoronamento de instituições, cuja gigantesca força
deriva, como no caso da família, de seu caráter sagrado. Com efeito, dada a sacralidade de
instituição familiar, a sociedade marginaliza e estigmática aqueles que apontam suas
mazelas. No que tange à vitimização sexual de crianças, há que se agregar outro fator
relevante. Mesmo nos casos em que a criança é sexualmente vitimizada por um agressor
externo ao grupo familiar, estão presentes muitas dificuldades que inibem a iniciativa de se
levar a notícia dos fatos a quem de direito. Não é difícil compreender o porquê desta
conspiração do silêncio que se estabelece em torno de um abuso sexual de crianças. Para o
senso comum, a publicização do fato comprometeria a imagem do adulto que a criança
vitimizada virá a ser, condicionando negativamente suas possibilidades de formar um nova
sagrada família. Convém lembrar que a família constitui o único locus legítimo para o
exercício da sexualidade legítima, com a finalidade de gerar a prole legítima. (SAFFIOTI,
1989, p. 13)

O fenômeno da vitimização de crianças tende a criar um enorme mal-estar nas pessoas.


Embora o processo de vitimização resulte em milhões de crianças abandonadas, no Brasil,
causa mal-estar de menor intensidade, já que a responsável por tal atrocidade é uma
entidade abstrata, ou seja, a sociedade. (SAFFIOTI, 1989, p. 13)

Passa-se, pois, a imputar culpa a entidades abstratas nas quais ninguém se reconhece. O
processo de vitimização, ao contrário, apresenta-se às pessoas em sua dimensão concreta.
Trata-se do pai que seduziu a filha de 8 anos, com ela mantendo relações sexuais durante
anos até que, aos 14 ou 15 anos de idade, a garota engravida. Trata-se do velhote de mais
de 60 anos que, a preços módicos, utiliza-se sexualmente do office-boy da empresa em que
trabalha. Trata-se da senhora de mais de 70 anos, estuprada pelo jovem que assaltou sua
residência. A extrema concretude dos fatos induz as pessoas a pensarem os agressores
como monstros, como exceções, como doentes. (SAFFIOTI, 1989, p. 14)

O objetivo nuclear desta Introdução consiste em mostrar que, tal como o processo de
vitimação, o de vitimização tem suas raízes numa ordem social iníqua, na qual as relações
sociais são permeadas pelo poder. (SAFFIOTI, 1989, p. 14)

Se o abandono material de crianças deriva maciçamente de uma iníqua distribuição de


renda, senda a distância entre o salário mais alto e o mais baixo de milhares de vezes, este
tipo de sociedade funciona através de uma engrenagem dentre cujas funções encontra-se a
da vitimação. Há, pois, a nível social, a produção de vitimas. Trata-se de crianças
vitimadas pela fome, por ausência de abrigo ou por habitação precária, por falta de escolas,
pela exposição a toda sorte de doenças infecto-contagiosas, por inexistência de saneamento
básico. (SAFFIOTI, 1989, p. 15)
Também no caso da vitimização, a engrenagem social responde pela produção de vítimas.
Entretanto, o processo de vitimização não atinge apenas as crianças vitimadas. Estas
últimas têm maior probabilidade de sofrer abusos de toda sorte, uma vez que vivem
sempre, ou grande parte do tempo, nas ruas, expostas à crueldade-exploração dos adultos e
de outras crianças mais velhas. Por outro lado, trata-se de crianças que dominam o espaço
da rua muito mais do que crianças a ela não expostas, habituadas a viver, em grande
medida, em ambientes fechados. No que tange aos maus tratos, à negligência e aos abusos-
exploração de natureza sexual, sobretudo quando tais ocorrências no seio da família, o
agente agressor situa-se em todas as classes sociais, vitimizando não apenas crianças
pobres, mas também crianças de classe média e rica. Desta forma, embora haja uma certa
sobreposição entre crianças vitimadas e crianças vitimizadas, o processo de vitimação
atinge exclusivamente filhos de famílias economicamente desfavorecidas, enquanto o
processo de vitimização ignora fronteiras econômicas entre as classes sociais, sendo
absolutamente transversal, de modo a cortar verticalmente a sociedade. (SAFFIOTI, 1989,
p. 15)
Rigorosamente, a dominação-exploração de muitos por poucos, das classes subalternas
pelas classes dominantes, não constitui o único princípio estruturador das relações sociais.
Na sociedade ocidental em geral e na brasileira em especial estão presentes mais dois
sistemas de dominação-exploração, a saber: o patriarcado, que legitima a assimetria das
relações de gênero, a subordinação-exploração formam um nós górdio, apresentando uma
lógica distinta da lógica que presidiria cada um destes sistemas separadamente. Neste
universo conceitual, o poder define-se como macho, branco e rico. (SAFFIOTI, 1989, p.
16)

No contexto desta Antologia, cabe agregar ao poder o qualificativo de adulto. O caráter


adultocêntrico da sociedade brasileira foi mencionado, deliberadamente, isolado dos
demais atributos que cabia analisar. Efetivamente, a natureza dos sistemas de dominação-
exploração, quer seja tomada de per si, ou vista através da simbiose patriarcado racismo
capitalismo, é contraditória, de antagonismo. Isto equivalente a dizer que os interesses das
classes subalternas não são apenas diferentes dos das classes dominantes, mas opostos. Os
interesses dos negros são antagônicos aos interesses dos brancos. Os homens investem
muitos esforços para preservar o stato quo machista, enquanto os interesses femininos
caminham em sentido contrário. De outra parte, entre adultos e crianças não há
propriamente contradições. Há uma hierarquia, na qual o poder do adulto à sua imagem e
semelhança. (SAFFIOTI, 1989, p. 16)
Há, pois, entre o patriarcado-racismo-capitalismo, de um lado, e o adultocentrismo, de
outro, uma diferença que merece explicitação. Enquanto as relações que se estabelecem
segundo o amálgama referido são de natureza antagônica, as relações entre a criança e o
adulto são hierárquicas. Os interesses dos adultos não são opostos aos interesses da criança
enquanto ser social. (SAFFIOTI, 1989, p. 17)
Em termos de sociedade, cabe ao adulto transformar a criança em pessoa capaz de atuar
com o máximo possível de sociabilidade. (SAFFIOTI, 1989, p. 17)
Em pauta está o papel de socializador desempenhado pelo adulto junto às gerações
imaturas. Em virtude da referida diferença, afirma-se que o adultocentrismo não goza do
mesmo estatuto teórico que o patriarcado-racismo-capitalismo. (SAFFIOTI, 1989, p. 15)
Face ao exposto, não será difícil verificar que as categorias sociais subalternas são, no
Brasil, constituídas por mulheres, negros, pobres e crianças. Nesta hierarquia, o último
lugar é ocupado pela mulher negra, pobre e criança. No topo desta escala de poder está o
macho branco, rico e adulto. Exatamente em virtude da alta concentração de renda em
poucas mãos, são pouco numerosos os homens a desfrutar deste poder que denominarei de
grande poder ou macropoder. Os detentores deste grande poder podem submeter qualquer
pessoa menos bem situada nesta hierarquia. Mas se a vitimização de crianças dependesse
apenas do exercício do macropoder, o número de vítimas seria, certamente, menor. A
vitimização de crianças constitui fenômeno extremamente, disseminado exatamente porque
o agressor detém pequenas parcelas de poder, sem deixar de aspirar ao grande poder. Em
não se contentando com a pequena fatia de poder e sentido necessidade de se treinar para o
exercício do grande poder, que continua a almejar, exorbita de sua autoridade, ou seja,
apresenta a síndrome do pequeno poder. Trata-se do funcionário público de baixo salário,
situado bem aquém da posição hierárquica desejada e, portanto, profundamente insatisfeito
que se atribui um poder extraordinário frente ao usuário que chega ao guichê.
Arrogantemente, o funcionário, ao invés de facilitar a vida do cliente, dificulta-a a mais
não poder. (SAFFIOTI, 1989, p. 17)
As categorias sociais contra as quais se exerce o pequeno poder sob a forma de síndrome
são quantitativamente muito distintas. As mulheres, em geral, só podem entrar em
síndrome do pequeno poder frente a crianças. À síndrome do pequeno poder do homem
estão sujeitas amplas categorias sociais: mulheres, crianças, homens ocupando posições
subalternas. Por se tratar de fenômeno quantitativamente mais importante, a síndrome
masculina do pequeno poder tem consequências mais graves. (SAFFIOTI, 1989, p. 18)

O abuso sexual de meninas e adolescentes constitui um componente importante da


socialização da mulher para submeter-se ao poder do macho. Isto não significa a
inexistência do abusos sexuais de meninos. (SAFFIOTI, 1989, p. 15)

Subjacentemente a este fenômeno reside a idéia de que toda criança deve submeter-se aos
desígnios do macho adulto. Esta sujeição deve ser mais rigorosa no caso da menina, a fim
de que ela não coloque em xeque a dominação masculina. (SAFFIOTI, 1989, p. 18)
Pequeno ou grande, o poder permeia todas as relações sociais, deteriorando-as. A rigor,
relações de poder revelam a desigualdade social entre seus protagonistas. Crianças são
consideradas socialmente inferiores e adultos, mulheres socialmente inferiores a homens,
negros socialmente inferiores a brancos, pobres socialmente inferiores a ricos. (SAFFIOTI,
1989, p. 18)
Ao meu ver, o pequeno poder é potencialmente mais perigoso que o macropoder. Este
último, não obstante castrar possibilidades de prazer, infunde em seu detentor uma
sensação de plenitude. São tão numerosos, e por isso quase sempre massas anônimas, os
adultos sobre os quais se exerce o grande poder, que, via de regra, ele não tem necessidade
de atuar contra crianças a fim de se afirmar. Ao contrário, o pequeno poder, exatamente em
função de sua pequenez, conduz, frequentemente, à síndrome caracterizada pela
mesquinhez. Ao invés de aturar bem-humorada e magnanimamente, a pessoa em síndrome
do pequeno poder age de mau humor e mesquinhamente. Na verdade, consciência de seu
diminuto poder, de seu não poder, trata de ampliá-lo ou criá-lo na relação interpessoal que
estabelece, efêmera ou duradouramente, com outro pessoa. Esta pessoa pode até desfrutar
de mais poder numa outra esfera de vida. Por exemplo, uma mulher pode ocupar uma
posição profissional mais importante que a de seu marido, percebendo um salário mais
alto, e ser vítima da síndrome do pequeno poder de seu marido. (SAFFIOTI, 1989, p. 19)

Todavia, é preciso cautela para não pensá-la como decorrência de atributos pessoais
negativos. Sua natureza não é individual, mas social. A estrutura social fornece todos os
elementos para ocorrência da síndrome do pequeno poder, respaldando amplamente seu
protagonista. (SAFFIOTI, 1989, p. 19)

Na verdade, a exorbitância do pequeno poder, característica da síndrome, revela a extrema


fragilidade de seu ator. Ao tentar agigantar seu poder não faz senão a pequená-lo ainda
mais. Entretanto, a síndrome do pequeno poder tem consequência nefastas para as pessoas
por ela atingidas. Crianças sao espancadas, assassinadas, estupradas por adultos que na
maioria das vezes, têm justamente a função de protegê-las: mães, pais, outros parentes,
responsáveis legais e profissionais da esfera infantil, como babás, professores, médicos etc.
(SAFFIOTI, 1989, p. 19)

Creio que o recurso a este conceito reformalado de síndrome do pequeno poder auxiliará o
leitor a entender o fenômeno da vitimização de crianças e sua transversalidade na
sociedade brasileira. Utilizando-se dele, pode-se compreender que a estrutura social
oferece contradições propícias à perpetuação do status quo em que o poder é macho,
branco, rico e adulto e em que, por conseguinte, a síndrome do pequeno poder acomete
pessoas não idealmente situadas em todas estas esferas. (SAFFIOTI, 1989, p. 20)

Nas relações de gênero, os homens são os dominadores e as mulheres, as dominadas,


geralmente. Nas relações entre adultos e crianças são os primeiros que ditam as regras.
Desta sorte, segundo esta pedagogia da violência que domina a sociedade brasileira,
criança que não obedece ao adulto, não apenas pode, mas deve ser espancada. E “não é de
pequeno que se torce o pepino”? Não há combinatória capaz de tirar a criança da última
posição na escala de poder. (SAFFIOTI, 1989, p. 20)

Lembro, ainda, o filme de Ruy Guerra, baseado em romance de Gabriel García Marques.
Eréndira. Uma mulher obriga a neta prostituir-se, a fim de lhe ressarcir de prejuízos
supostamente de responsabilidade da jovem. Formam-se filas de homens, atraídos pela
beleza de Eréndira (Claudia Ohana), à porta da tenda onde a moça atendia. Mesmo
exangue e febril, depois de haver atendido a dezenas de homens, era obrigada pela avó a
continuar trabalhando. Afinal, havia que trabalhar para saldar sua dívida. Laços de
consanguinidade não asseguram o amor. Há momentos em que outros sentimentos o
esmagam no seio da família. Mais uma vez, não se pode imputar responsabilidades a
fatores de natureza individual, porquanto a sociedade fornece o caldo de cultura propícia
ao desenvolvimento do semamor. (SAFFIOTI, 1989, p. 21)
Para finalizar, relatarei alguns fatos vinculados a um caso de incesto pai-filha, que me
chegou aos ouvidos. O homem mantinha relações sexuais diariamente, ora com a mulher,
ora com a filha, dizia a mãe: “Esta é a vida de mulher: precisa se submeter aos desejos do
homem. Se eu posso aguentar, por que você não pode? Aliás, isto seria demais para mim. É
bom que aprendamos a dividir o fardo. Assim ele ficará mais leve para ambas”.
(SAFFIOTI, 1989, p. 21)

Quanto mais dominada for a mulher, mais difícil lhe será reunir as forças necessárias para
proteger sua ninhada dos ataques do macho. Muitas denunciam o agressor. Mas ter
coragem para tanto pode ser resultado de anos de convivência com o incesto pai-filha ou
padrasto-enteada. A destruição do patriarcado coibiria tais abusos, porque a mulher adulta
seria socialmente igual ao homem adulto. Logo, a mãe estaria capacitada a defender sua
prole. Porém, e a criança que, neste sistema, deve ser domesticada para se transformar em
força de trabalho dócil? Creio que valerá a pena atacar a própria simbiose patriarcado-
racismo-capitalismo, na tentativa de forjar novos valores e novas relações sociais. Se os
valores contiverem a igualdade social entre homens e mulheres, entre brancos e negros e o
respeito pelo ser humano de qualquer idade, a balança nas relações sociais tenderá a pensar
mais do lado do afeto que do poder. Neste novo contexto, talvez os adultos não tenham
necessidade de destruir seu próprio produto. E o abutre dará lugar ao ser humano.
(SAFFIOTI, 1989, p. 21)

CAPÍTULO 1

Se consultarmos o dicionário, constataremos que a palavra vítima envolve duas ideias


complementares: a de sacríficio e a de imposição de dano. O que está implícito em ambas é
que ser vítima não é um estado natural. Para que haja vítima é preciso que tenha existido
um processo de “fabricação” da mesma. Dois são os processos fundamentais de produção
de crianças-vítimas em sociedades como a nossa: - o processo de vitimação cuja resultante
são as que denominamos “crianças de alto risco”; - o processo de vitimização, cuja
resultante são as que denominamos “crianças em estado de sítio”. (AZEVEDO, GUERRA,
1989)
Estas são as crianças-vítimas da vítimas da violência estrutural, características de
sociedades como a nossa, marcadas pela dominação de classes e por profundas
desigualdades na distribuição da riqueza social. São as que, eufemisticamente,
denominamos menor, enquanto categoria designativa da infância em situação irregular, a
reclamar, portanto, intervenção e proteção do Estado. (AZEVEDO, GUERRA, 1989)

A denominação alto-risco refere-se ao fato de que essas crianças têm uma alta
probabilidade de sofrer, cotidiana e permanentemente, a violação de seus direitos humanos
mais elementares: direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à segurança, ao lazer
etc. (AZEVEDO, GUERRA, 1989)
A violação desses direitos faz-se através do processo de violência estrutural característico
de nosso sistema sócio-econômico e político e que se exerce principalmente sobre as
classes subalternas, sobre os “deserdados do sistema”. (AZEVEDO, GUERRA, 1989)
A violência inerente às relações interpessoais adulto-criança. (AZEVEDO, GUERRA,
1989)
Como a história social da infância tem se incumbido de mostrar, essas relações são de
natureza assimètrica. São relações hierárquicas, adultocêntricas, porque assentadas no
pressuposto do poder do adulto (maior de idade) sobre a criança (menor de idade). A
vitimização - enquanto violência interpessoal - constitui uma exacerbação desse padrão.
Pressupõe necessariamente o abuso, enquanto ação (ou omissão) de um adulto, capaz de
criar dano físico ou psicológico à criança. Por essa razão costuma-se considerar abuso-
vitimização como as duas faces da mesma moeda de violência. (AZEVEDO, GUERRA,
1989)
Enquanto violência interpessoal, a vitimização é uma forma de aprisionar a vontade e o
desejo da criança, de submetê-la, portanto, ao poder do adulto, a fim de coagi-la a
satisfazer os interesses, as expectativas ou as paixões deste. (AZEVEDO, GUERRA, 1989)
Como, porém, a violência interpessoal constitui uma transgressão (mais ou menos
consciente) do poder disciplinador do adulto, ela exige que a vítima seja “cúmplice”, num
“pacto de silêncio”. (AZEVEDO, GUERRA, 1989)
Portanto, a vítima tem restringida não apenas sua atividade de ação e reação como também
sua palavra é cassada e passa a viver sob o signo de medo: medo da coação, medo da
revelação… (AZEVEDO, GUERRA, 1989)
Como a vitimização não é um fenômeno isolado mas sim um processo que se prolonga às
vezes por anos, a vítima passa a viver uma situação típica de um estado de sítio, em que
sua liberdade - enquanto autonomia pessoal - é inteiramente cerceada e da qual só se
resgatará, via de regra, recuperando o poder da própria palavra, isto é, tornando pública a
violência privada de que foi vítima (AZEVEDO, GUERRA, 1989)
O abuso-vitimização de crianças consiste, pois, num processo de completa objetalização
destas, isto é, de sua redução à condição de objeto de maus-tratos. (AZEVEDO, GUERRA,
1989)

A literatura registra três formas privilegiadas de abuso-vitimização: a física, a psicológica e


a sexual. (AZEVEDO, GUERRA, 1989)
Todas as três modalidades de abuso-vitimização de crianças têm em comum, além da
própria natureza do processo, as seguintes características básicas suportadas por vasta
literatura nacional e internacional: - trata-se de um fenômeno que não é caudatário do
sistema de estratificação social e do regime político vigente numa dada sociedade. Por
outras palavras: ao contrário do fenômeno da vitimação, não pode ser dito um fenômeno
característicos da pobreza. Já há suficiente evidência empírica para suportar a afirmação de
que não há nenhuma etnia, nenhum credo religioso, nenhuma classe social que esteja
imune a sua ocorrência; - trata-se de um fenômeno que, embora não se restrinja ao lar, tem
nele sua origem e sua ecologia privilegiada; - trata-se de um fenômeno que pode
reproduzir-se em termos de um verdadeiro ciclo de violência tal como se sugere a seguir; -
trata-se de um fenômeno que, embora vitimize meninos, tem na mulher-criança sua vítima
mais frequente. Isso tem a ver com o fato de que a vitimização é um processo que tem sua
raiz no padrão falocrático de relações sociais de gênero.
nesta raiz está o fato de tratar-se de um fenômeno onde o agressor é homem, na quase
totalidade dos casos. (AZEVEDO, GUERRA, 1989)
Vitimação e vitimização são formas de violência. E, por violência entendemos “uma
realização determinada das relações de força, tanto em termos de classes sociais quanto em
termos inter-pessoais. Em lugar de tomarmos a violência como violação e transgressão de
normas, regras e leis, preferimos considerá-la sob dois outros ângulos. Em primeiro lugar,
como conversão de uma diferença e de uma assimetria, numa relação hierárquica de
desigualdade em relação entre superior e inferior. Em segundo lugar, como a ação que trata
um ser humano não como sujeito, mas como uma coisa. Esta se caracteriza pela inércia,
pela passividade e pelo silêncio de modo que, quando a atividade e a fala de outrem são
impedidas ou anuladas, há violência. (AZEVEDO, GUERRA, 1989)
Portanto, tanto num caso quanto no outro, estamos diante de uma relação de poder,
caracterizada num pólo pela dominação e no outro pela coisificação (resultante e
complementar). Como já se mostrou, o que varia é a natureza da relação de poder
envolvida: macropoder, no caso da vitimação; micropoder, no caso da vitimização.
(AZEVEDO, GUERRA, 1989)

CAPÍTULO 2

Do exposto decorre que a sociedade ocidental é androcêntrica e adultocêntrico.


(SAFFIOTI, 1989, p. 50)
O adulto em geral, independentemente de seu sexo, detém poder sobre a criança. Quer se
trate de pai ou mãe, de avô ou avó, independentemente do grau de correção de suas ordens
e argumentos, a criança deve submeter-se aos desígnios dos adultos. Muitas vezes a
criança tem suficiente discernimento para verificar a incorreção da ordem que lhe dá o
adulto. Todavia, segundo as normas sociais, não lhe cabe discutir tal ordem, uma vez que o
adulto pode não ter razão, mas tem sempre autoridade. Quando a criança ousa perguntar o
porquê da ordem que recebe, ouve, geralmente, o seguinte: “porque sou sua mãe”, “porque
sou seu pai”. Na verdade, o adulto não apresenta argumentos de ordem racional, mas
argumentos de autoridade. (SAFFIOTI, 1989, p. 50)
Observando-se a família e também a sociedade em geral, verifica-se que há uma hierarquia
entre categoria de sexo e faixas etárias. Ou seja, o homem domina a mulher que, por sua
vez, domina a criança no dia-a-dia, criando uma auréola em torno do homem. Em virtude
disto, o homem tem seu poder aumentado face à criança e, ao fim e ao cabo, também tem
relação à mulher que o endeusa. Assim, torna-se clara a hierarquia: o homem adulto é o
mais poderos, e a criança é destituída de qualquer poder. À mulher se concede o direito de
dominar crianças, já que a sociedade lhe atribui a função de socializar as gerações
imaturas. (SAFFIOTI, 1989, p. 51)
Sempre que o poder permeie relações humanas compromete seriamente a afetividade. E da
família não se espera que seja o mais perfeito ninho de amor? Não é assim que se retrata a
família? A família toda não se empenha em esconder seus conflitos, em fazer de conta que
tudo está em paz? Assim procedem seus membros adultos. (SAFFIOTI, 1989, p. 51)

Você também pode gostar