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Passa-se, pois, a imputar culpa a entidades abstratas nas quais ninguém se reconhece. O
processo de vitimização, ao contrário, apresenta-se às pessoas em sua dimensão concreta.
Trata-se do pai que seduziu a filha de 8 anos, com ela mantendo relações sexuais durante
anos até que, aos 14 ou 15 anos de idade, a garota engravida. Trata-se do velhote de mais
de 60 anos que, a preços módicos, utiliza-se sexualmente do office-boy da empresa em que
trabalha. Trata-se da senhora de mais de 70 anos, estuprada pelo jovem que assaltou sua
residência. A extrema concretude dos fatos induz as pessoas a pensarem os agressores
como monstros, como exceções, como doentes. (SAFFIOTI, 1989, p. 14)
O objetivo nuclear desta Introdução consiste em mostrar que, tal como o processo de
vitimação, o de vitimização tem suas raízes numa ordem social iníqua, na qual as relações
sociais são permeadas pelo poder. (SAFFIOTI, 1989, p. 14)
Subjacentemente a este fenômeno reside a idéia de que toda criança deve submeter-se aos
desígnios do macho adulto. Esta sujeição deve ser mais rigorosa no caso da menina, a fim
de que ela não coloque em xeque a dominação masculina. (SAFFIOTI, 1989, p. 18)
Pequeno ou grande, o poder permeia todas as relações sociais, deteriorando-as. A rigor,
relações de poder revelam a desigualdade social entre seus protagonistas. Crianças são
consideradas socialmente inferiores e adultos, mulheres socialmente inferiores a homens,
negros socialmente inferiores a brancos, pobres socialmente inferiores a ricos. (SAFFIOTI,
1989, p. 18)
Ao meu ver, o pequeno poder é potencialmente mais perigoso que o macropoder. Este
último, não obstante castrar possibilidades de prazer, infunde em seu detentor uma
sensação de plenitude. São tão numerosos, e por isso quase sempre massas anônimas, os
adultos sobre os quais se exerce o grande poder, que, via de regra, ele não tem necessidade
de atuar contra crianças a fim de se afirmar. Ao contrário, o pequeno poder, exatamente em
função de sua pequenez, conduz, frequentemente, à síndrome caracterizada pela
mesquinhez. Ao invés de aturar bem-humorada e magnanimamente, a pessoa em síndrome
do pequeno poder age de mau humor e mesquinhamente. Na verdade, consciência de seu
diminuto poder, de seu não poder, trata de ampliá-lo ou criá-lo na relação interpessoal que
estabelece, efêmera ou duradouramente, com outro pessoa. Esta pessoa pode até desfrutar
de mais poder numa outra esfera de vida. Por exemplo, uma mulher pode ocupar uma
posição profissional mais importante que a de seu marido, percebendo um salário mais
alto, e ser vítima da síndrome do pequeno poder de seu marido. (SAFFIOTI, 1989, p. 19)
Todavia, é preciso cautela para não pensá-la como decorrência de atributos pessoais
negativos. Sua natureza não é individual, mas social. A estrutura social fornece todos os
elementos para ocorrência da síndrome do pequeno poder, respaldando amplamente seu
protagonista. (SAFFIOTI, 1989, p. 19)
Creio que o recurso a este conceito reformalado de síndrome do pequeno poder auxiliará o
leitor a entender o fenômeno da vitimização de crianças e sua transversalidade na
sociedade brasileira. Utilizando-se dele, pode-se compreender que a estrutura social
oferece contradições propícias à perpetuação do status quo em que o poder é macho,
branco, rico e adulto e em que, por conseguinte, a síndrome do pequeno poder acomete
pessoas não idealmente situadas em todas estas esferas. (SAFFIOTI, 1989, p. 20)
Lembro, ainda, o filme de Ruy Guerra, baseado em romance de Gabriel García Marques.
Eréndira. Uma mulher obriga a neta prostituir-se, a fim de lhe ressarcir de prejuízos
supostamente de responsabilidade da jovem. Formam-se filas de homens, atraídos pela
beleza de Eréndira (Claudia Ohana), à porta da tenda onde a moça atendia. Mesmo
exangue e febril, depois de haver atendido a dezenas de homens, era obrigada pela avó a
continuar trabalhando. Afinal, havia que trabalhar para saldar sua dívida. Laços de
consanguinidade não asseguram o amor. Há momentos em que outros sentimentos o
esmagam no seio da família. Mais uma vez, não se pode imputar responsabilidades a
fatores de natureza individual, porquanto a sociedade fornece o caldo de cultura propícia
ao desenvolvimento do semamor. (SAFFIOTI, 1989, p. 21)
Para finalizar, relatarei alguns fatos vinculados a um caso de incesto pai-filha, que me
chegou aos ouvidos. O homem mantinha relações sexuais diariamente, ora com a mulher,
ora com a filha, dizia a mãe: “Esta é a vida de mulher: precisa se submeter aos desejos do
homem. Se eu posso aguentar, por que você não pode? Aliás, isto seria demais para mim. É
bom que aprendamos a dividir o fardo. Assim ele ficará mais leve para ambas”.
(SAFFIOTI, 1989, p. 21)
Quanto mais dominada for a mulher, mais difícil lhe será reunir as forças necessárias para
proteger sua ninhada dos ataques do macho. Muitas denunciam o agressor. Mas ter
coragem para tanto pode ser resultado de anos de convivência com o incesto pai-filha ou
padrasto-enteada. A destruição do patriarcado coibiria tais abusos, porque a mulher adulta
seria socialmente igual ao homem adulto. Logo, a mãe estaria capacitada a defender sua
prole. Porém, e a criança que, neste sistema, deve ser domesticada para se transformar em
força de trabalho dócil? Creio que valerá a pena atacar a própria simbiose patriarcado-
racismo-capitalismo, na tentativa de forjar novos valores e novas relações sociais. Se os
valores contiverem a igualdade social entre homens e mulheres, entre brancos e negros e o
respeito pelo ser humano de qualquer idade, a balança nas relações sociais tenderá a pensar
mais do lado do afeto que do poder. Neste novo contexto, talvez os adultos não tenham
necessidade de destruir seu próprio produto. E o abutre dará lugar ao ser humano.
(SAFFIOTI, 1989, p. 21)
CAPÍTULO 1
A denominação alto-risco refere-se ao fato de que essas crianças têm uma alta
probabilidade de sofrer, cotidiana e permanentemente, a violação de seus direitos humanos
mais elementares: direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à segurança, ao lazer
etc. (AZEVEDO, GUERRA, 1989)
A violação desses direitos faz-se através do processo de violência estrutural característico
de nosso sistema sócio-econômico e político e que se exerce principalmente sobre as
classes subalternas, sobre os “deserdados do sistema”. (AZEVEDO, GUERRA, 1989)
A violência inerente às relações interpessoais adulto-criança. (AZEVEDO, GUERRA,
1989)
Como a história social da infância tem se incumbido de mostrar, essas relações são de
natureza assimètrica. São relações hierárquicas, adultocêntricas, porque assentadas no
pressuposto do poder do adulto (maior de idade) sobre a criança (menor de idade). A
vitimização - enquanto violência interpessoal - constitui uma exacerbação desse padrão.
Pressupõe necessariamente o abuso, enquanto ação (ou omissão) de um adulto, capaz de
criar dano físico ou psicológico à criança. Por essa razão costuma-se considerar abuso-
vitimização como as duas faces da mesma moeda de violência. (AZEVEDO, GUERRA,
1989)
Enquanto violência interpessoal, a vitimização é uma forma de aprisionar a vontade e o
desejo da criança, de submetê-la, portanto, ao poder do adulto, a fim de coagi-la a
satisfazer os interesses, as expectativas ou as paixões deste. (AZEVEDO, GUERRA, 1989)
Como, porém, a violência interpessoal constitui uma transgressão (mais ou menos
consciente) do poder disciplinador do adulto, ela exige que a vítima seja “cúmplice”, num
“pacto de silêncio”. (AZEVEDO, GUERRA, 1989)
Portanto, a vítima tem restringida não apenas sua atividade de ação e reação como também
sua palavra é cassada e passa a viver sob o signo de medo: medo da coação, medo da
revelação… (AZEVEDO, GUERRA, 1989)
Como a vitimização não é um fenômeno isolado mas sim um processo que se prolonga às
vezes por anos, a vítima passa a viver uma situação típica de um estado de sítio, em que
sua liberdade - enquanto autonomia pessoal - é inteiramente cerceada e da qual só se
resgatará, via de regra, recuperando o poder da própria palavra, isto é, tornando pública a
violência privada de que foi vítima (AZEVEDO, GUERRA, 1989)
O abuso-vitimização de crianças consiste, pois, num processo de completa objetalização
destas, isto é, de sua redução à condição de objeto de maus-tratos. (AZEVEDO, GUERRA,
1989)
CAPÍTULO 2