Você está na página 1de 16

LIBERALISMO POLÍTICO E PENSAMENTO LIBERAL

Prof. Décio Saes

Bloco I
O Estado burguês e seus regimes políticos

Nossa exposição vai abordar uma variedade específica de regime político capitalista, a democracia liberal.
A democracia liberal é um regime político típico da sociedade capitalista; ela não existe noutros tipos de
sociedade de classe, como a sociedade escravista ou a sociedade feudal.
A sua característica central, do ponto de vista institucional, é a participação formal do conjunto da
sociedade capitalista (isto é, tantos membros das classes dominantes quanto membros das classes
dominadas) na escolha do governo.
Na democracia liberal, portanto, é o conjunto das classes sociais que elege formalmente os agentes
encarregados de definir o rumo da política estatal.
Regimes políticos democráticos existiram em modelos da sociedade historicamente anteriores ao
capitalismo.
Por exemplo:
A) Existiu na Grécia Antiga, em plena vigência do modo de produção escravista, um regime
escravista até hoje louvado por muitos cientistas políticos: a democracia ateniense do
século V a.C.;
B) Na Baixa Idade Média, a Europa Ocidental, assistiu a emergência de regimes democráticos
nas cidades comerciais, tanto na Itália (ex.: Florença) quanto no país flamengo (ex.: Bruges).
Mas a democracia antiga e a democracia medieval não foram democracias liberais, nessas variantes de
democracia, só os membros da classe dominante podiam formalmente participar da escolha do governo.
As democracias pré-capitalistas eram democracias classistas, tanto do ponto de vista substantivo, quanto
do ponto de vista formal, institucional.
Já a democracia liberal, própria do capitalismo, é uma democracia classista do ponto de vista substantivo
sociologicamente, é a classe capitalista quem governa. No entanto, uma democracia superclassista e
universal do ponto de vista formal, institucional: as instituições burguesas afirmam que é o povo que exerce
o poder soberano.
A democracia liberal não pode existir nas sociedades pré-capitalistas, pois os Estados pré-burgueses (como
o Estado escravista, o Estado despótico-asiático, o Estado feudal) são abertamente Estados da classe
dominante, vetando toda forma de participação política eleitoral da classe dominada.
Muitos historiadores e cientistas políticos contemporâneos apontaram as virtudes institucionais de certas
democracias pré-capitalistas, sobretudo da democracia escravista ateniense.
2

Porém, apenas alguns poucos estudiosos mostraram a correlação existente entre esses atributos
institucionais (ex.: o papel central do diálogo no processo decisório estatal, a ausência de uma rígida
estrutura hierárquica, verticalizada, dentro do governo) e o caráter numericamente super-limitado do corpo
de cidadãos, reduzido aos membros da classe dominante.
A democracia liberal:
É, portanto, própria das sociedades capitalistas;
Não pode existir em sociedades onde o Estado é, abertamente, classista e representa oficialmente apenas
uma parte da sociedade.
Mas isso não quer dizer que o Estado burguês tenha de assumir, desde o seu nascimento, a forma da
democracia liberal; e que tenha de manter essa fórmula, ao longo da sua evolução.
Na verdade, a democracia liberal é um dos regimes políticos possíveis na vigência do Estado burguês.
Mais ainda:
A possibilidade de instauração de uma democracia liberal é maior, não na fase inicial de vida do Estado
burguês; e sim, na fase histórica em que já se completou a transição econômica para o capitalismo e,
portanto, o novo espectro das classes sociais (capitalistas, proletariado, classe média) está consolidado.
Na verdade, o papel histórico das Revoluções políticas burguesas não foi o de implantar a democracia
liberal; e sim, o de substituir o aparelho estatal aristocrático por uma organização burocrática apoiada
formalmente no princípio da competência; e de substituir do direito feudal-absolutista, que atribuía
condições jurídicas diversas aos indivíduos pertencentes a diferentes classes sociais, pelo direito burguês
moderno, que atribui a todos os indivíduos a condição de sujeitos de direito ( isto é, seres capazes de
praticar atos de vontade).
Esse processo de reorganização do aparelho do Estado e do sistema jurídico, obtido através do emprego
da violência revolucionária, não desaguou imediatamente na instauração do regime democrático-liberal.
Processos revolucionários como a Revolução Holandesa de 1580 (que foi simultaneamente uma luta
contra o domínio da Espanha sobre os países e a luta da burguesia mercantil contra a estrutura feudal do
Estado holandês), a Revolução Puritana de 1640 e a Revolução Gloriosa de 1689, na Inglaterra, e a
Revolução Francesa (1789-1795) instauraram, em termos imediatos, regimes ditatoriais de cunho
revolucionário.
Só uma ditatura apoiada na força armada das classes revolucionárias, teria tido condições políticas de
derrubar o aparelho político e jurídico feudal, substituindo-o por um novo aparelho.
Não há contradição entre a autoproclamação do Estado burguês como instituição universal e o caráter
não-liberal democrático dos regimes políticos instaurados na fase histórica da transição econômica para o
capitalismo.
E isto porque o que garante uma aparência minimamente democrática ao Estado burguês é:
3

A) O caráter socialmente aberto da organização burocrática estatal: todos os indivíduos podem


pleitear um cargo no Estado, devendo para tanto, provar sua competência administrativa através
de concurso público;
B) A extensão da cidadania, nos seus termos mais elementares (isto é, civis) a todos os indivíduos,
declarados sujeitos individuais de direitos.
Um regime político não-democrático caso não seja instrumento de uma reação feudal contra o Estado
burguês:
A) Não anula o caráter socialmente aberto da organização burocrática;
B) Não revoga a dimensão mais elementar da cidadania (direitos civis, como o direito de ir e vir, o
direito de celebrar contratos, a liberdade de trabalho, etc.).
É por isso que muitos Estados burgueses ao adotarem regimes ditatoriais, continuaram a se caracterizar
como Estados democráticos, declarando-se comprometidos com o princípio da cidadania.
O regime ditatorial teve, portanto, um papel-chave na formação dos Estados burgueses modernos; ele
propiciou uma concentração da força material e política, sem a qual, seria impossível a transformação
revolucionária da máquina do Estado.
A ditadura militar de Napoleão Bonaparte talvez seja o melhor exemplo disso: ao longo dos períodos
consulares e imperial Bonaparte logrou substituir o velho aparelho estatal aristocrático, por uma
organização burocrática fundada na competência; e construiu um novo direito, em cujo eixo central
figurava o Código Civil, codificador da visão burguesa sobre a propriedade e o trabalho.
Mas a ditadura pode também surgir noutras fases históricas do capitalismo. Por exemplo:
Em conjunturas históricas em que há conflitos entre frações das classes dominantes, em torno do exercício
da hegemonia política. Exemplo: o II Império bonapartista.
Em conjunturas históricas, em que o movimento político das classes trabalhadoras entra em fase
ascensional, tornando-se necessária a militarização do Estado para conter o movimento das massas. Ex.:
o fascismo e o nazismo.
Em suma:
A) Imediatamente após a Revolução política burguesa em cada país, a ditadura tornou-se uma
necessidade histórica;
B) Noutras fases históricas do capitalismo, a ditadura permanece como uma possibilidade,
dependendo da: I) evolução do conflito interno à classe dominante; II) grau de ascensão do
movimento político das classes populares.
4

Bloco II
Regime Censitário e Democracia Liberal

Mas o regime político mais duradouro na primeira fase da vida dos Estados burgueses do ocidente não
era o regime ditatorial, e sim, o regime censitário.
A) No regime censitário, os governantes;
B) São escolhidos pelo voto: o eleitorado elege parlamentares, dentre os quais serão escolhidos os
membros do gabinete.
C) Porém, ainda não vigora o sufrágio universal. O eleitorado é restrito, e o critério básico de acesso
à condição de eleitor é econômico:
 Nível de propriedade (ser proprietário de casa própria, de certo número de hectares da terra, etc.).
 Nível de renda;
 Condição de pagador de impostos, ou não.
Nos diferentes países ocidentais em transição para o capitalismo, ou se utiliza isoladamente um desses três
critérios econômicos; ou se faz um uso combinado dos três critérios.
O importante, para os proponentes da restrição econômica ao direito de voto, é que esse tipo de restrição
não viola o princípio da cidadania inerente ao Estado Moderno:
A) Essa restrição não tem caráter hereditário, portanto, não é permanente nem, irrevogável;
B) Qualquer indivíduo, se estiver disposto a lutar pela aquisição de propriedades, riqueza monetária
(tudo dependendo do esforço pessoal), poderá superar essa restrição, tornando-se eleitor.
C) O censo baseado me critérios econômicos não é, portanto, uma punição, e sim, um estímulo para
que os pobres conquistem, através do esforço pessoal, a cidadania no plano político.
Outras restrições eleitorais do mesmo tipo (isto é, superáveis através do esforço pessoal dos indivíduos
pobres) se casaram, algumas vezes, com as restrições econômicas, que tenderam a manter sempre a posição
central no sistema censitário.
É o caso das restrições capacitarias ou culturais, que consistiam em reduzir o valor do voto dos indivíduos
carentes de certos atributos ou multiplicar o valor do voto dos portadores desses atributos (voto plural).
Entre as recompensas capacitarias, figuravam os aumentos do peso do voto dos que desempenhavam
certas funções, como as funções típicas da alta burocracia civil ou da lata oficialidade das Forças Armadas.
Entre as restrições culturais, figurava a exclusão do voto do analfabeto, ou os indivíduos sem estudos
primários completos ou incapazes de calcular.
Se, concretamente, os proponentes do regime censitário foram políticos e intelectuais, sociologicamente a
classe social mais empenhada em sua adoção, em toda a Europa Ocidental, foi a burguesia mercantil,
envolvida ou não em atividades manufatureiras.
5

A burguesia mercantil estava envolvida numa luta pela hegemonia política, confrontando-se com a
aristocracia, que buscava restaurar, uma vez encerrada a Revolução política burguesa, uma parte dos seus
privilégios.
Ao mesmo tempo, a burguesia mercantil temia que as classes trabalhadoras usassem o voto como
instrumento para a conquista do poder político e, a seguir, a implantação do socialismo.
Daí todo o esforço da burguesia mercantil, na primeira metade do século XIX, para evitar:
A) Uma volta a uma Monarquia absoluta;
B) A adoção do sufrágio universal e a instauração da liberal-democracia.
É dentro dessa perspectiva que a burguesia mercantil francesa se envolverá na Revolução de 1830, cujo
objetivo é destronar a dinastia Bourbon, representada por Carlos X.
A burguesia mercantil teme a volta da monarquia absoluta na França, o que parece se evidenciar pela
revogação, em 1830, do pacto conciliador inter-classes dominantes de 1814; por isso, ela se dispõe a
participar do movimento revolucionário de deposição da dinastia Bourbon.
Ao mesmo tempo, a burguesia mercantil intui que sua eventual abstenção abrirá espaço para a luta do
proletariado e da classe média pelo sufrágio universal.
O resultado do processo revolucionário corresponde, de modo geral, às aspirações da burguesia mercantil:
A) Deposição da antiga dinastia e ascensão da dinastia Orleans.
B) Nomeação de um ministério onde os representantes ideológicos e políticos da burguesia estão
presentes, como o protestante liberal François Guizot.
C) Manutenção, sob forma atenuada do regime censitário, o que contempla em parte os interesses
das classes médias.
É preciso, nesse ponto, fazer uma breve menção à complexa dialética política em que se envolvia a classe
média urbana emergente, desde a primeira metade do século XIX.
Embora os seus representantes ideológicos e políticos estivessem envolvidos no movimento republicano
(que pregava o advento do sufrágio universal masculino), cada reforma progressista do censo beneficiava
sobretudo a classe média, mas que o proletariado.
A Revolução de 1848, onde a participação política e militar do proletariado foi decisiva, voltou-se contra:
A) O sistema monárquico;
B) O regime censitário.
Sabe-se que a República de 1848 teve duração efêmera, sendo substituída em 1852 pelo II Império
Bonapartista.
Já o sufrágio universal tornou-se uma instituição permanente, embora sem efeitos políticos durante a
segunda ditadura bonapartista.
No fim do século XIX, vai se intensificar, no Ocidente, a dupla luta:
A) Pela instauração da república e a derrubada das numerosas monarquias subsistentes.
6

B) Pela derrubada dos regimes censitários e a implantação do sufrágio universal masculino.


Essa luta se prolongará até o fim da Primeira Guerra Mundial, quando cai a monarquia e suprime-se o
regime censitário em vários países capitalistas.
Podemos, portanto, constatar que, implantando-se após um breve período ditatorial, o regime censitário
acabou funcionando como um longo regime político de transição entre o absolutismo monárquico do
século XVIII e a liberal-democracia do século XX.
O processo de substituição do regime censitário pelo regime liberal-democrático se estende, no mundo
ocidental, da década de 1870 até o fim da Primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Nesse período, a ação política da classe média republicana e a pressão reivindicatória das classes
trabalhadoras levam a duas importantes mudanças políticas:
A) A instauração da liberdade de associação;
B) A implantação do sufrágio universal.
Na França, em plena Revolução Francesa, surgiu, através da Lei Le Chapelier de 1791, a proibição da
constituição de qualquer tipo de associação.
A motivação por trás da lei era aparentemente progressista: os legisladores da Assembleia Nacional
pareciam querer impedir a preservação de corporações de tipo medieval e de caráter elitista.
Na realidade, a Lei Le Chapelier exprimia os desígnios da burguesa mercantil emergente: essa classe social,
que conquistaria a hegemonia política após a fase radical da Revolução (isto é, o período jacobino),
procurava impedir a organização dos trabalhadores da manufatura, e não, a associação dos indivíduos em
geral.
Essa legislação anti-associativa só foi revogada quase um século após a Revolução Francesa; mais
precisamente, no início da década de 1880.
Essa mudança legal teve duas consequências políticas:
A) Uma consequência política quase imediata: a formação do movimento sindical francês, com a
constituição, no início mesmo da década de 1880, da C.G.T. - Conféderation Générale du Travail, de
tendência anarco-sindicalista;
B) Uma consequência política indireta: a formação do primeiro importante partido socialista francês,
SFIO - Seção Francesa da Internacional Operária, onde se destacaram como líderes Jules Guesde
e Jean Jaurès.
Na Inglaterra, a emergência, na década de 1830, de um movimento popular e de classe média por reformas
políticas leva a classe dominante a propor uma legislação que inviabiliza a formação de associações.
Essa legislação só será suspensa no fim do século XIX (década de 1880), o que terá duas consequências
políticas:
A) Consequência política imediata: a formação do sindicalismo inglês (“trade-unions”).
7

B) A constituição, em 1906, do Partido Trabalhista, organizado como federação dos sindicatos, e não
contemplando adesões individuais.
Nesse período também se implanta o sufrágio universal masculino, na França e na Inglaterra.
Na França, a ditadura imperial bonapartista (1852-1870) havia mantido a vigência do sufrágio universal
masculino, instaurado pela Revolução de 1848.
Mas o Imperador havia reservado uma função puramente simbólica ao sufrágio universal: a sua vigência
formal devia convencer as classes populares de que camponeses e operários eram cidadãos da França.
Já a escolha do governo nada tinha a ver com o exercício do direito de voto; o Poder Executivo (isto é, o
Imperador) estabelecia, ele próprio, uma lista única de candidatos ao Poder Legislativo, o que confirma ao
povo o dever cívico de confirmar, sob ameaça, a escolha feita pelo Imperador.
Com a queda do II Império em 1870, uma nova Constituição, aprovada em 1875, instaura o sufrágio
universal como instrumento fundamental de escolha do governo; surge assim, a III República, de caráter
parlamentarista e multipartidário.
Na Inglaterra, o regime censitário se extinguiu através da reforma eleitoral de 1918, vista por alguns
cientistas políticos como um prêmio (na, verdade uma compensação) às classes trabalhadoras pela sua
participação na guerra.
A supressão do censo provocou a entrada de 4 milhões e quatrocentos mil pessoas das classes populares
no contingente eleitoral, o que levou a uma rápida ascensão político-eleitoral do Partido Trabalhista (em
1924, surgiu o 1º Ministério trabalhista, chefiado por MacDonald).
A democracia liberal formou-se, portanto, no mundo capitalista ocidental, um, dois ou três séculos após a
formação do Estado burguês.
Suas características centrais são:
A) Existência de um governo representativo, e não, autodesignado;
B) A vigência do sufrágio universal masculino;
C) A liberdade de organização partidária, que leva, na prática política concreta, ao funcionamento de
sistemas: I) pluripartidários (que exigem a formação de governos de coalização); II) bipartidários
(caracterizado pelo revezamento de dois partidos diferentes à frente do governo); III) de partido
dominante (permanência longa de um único partido à frente do governo, em razão de sua força
eleitoral.
Para que a democracia liberal se mantenha, é sempre necessária a preservação de condições institucionais
mínimas:
- vigência da liberdade civil;
- respeito às liberdades de expressão e de associação.
O desenvolvimento do capitalismo criou, na Europa Ocidental e nos EUA as condições históricas
necessárias ao advento, no início do século XX, da democracia liberal:
8

- Crescimento numérico e aumento da importância econômica da classe média urbana;


- Ascensão do movimento reivindicatório das classes trabalhadoras;
- Intensificação das lutas pela hegemonia política dentro da classe dominante;
- Eclosão de conflitos militares entre as potências capitalistas, obrigando os Estados nacionais a tomar
medidas de compensação política favoráveis às classes populares.
Já em outras áreas do globo, como por exemplo a América Latina, a tendência dominante, nos inícios do
século XX, foi a adoção formal de princípios democrático-liberais, sem que tais princípios fossem
respeitados na prática política concreta.
Os cientistas políticos da América Latina usam a expressão “regime político oligárquico” para designar
essa coexistência entre Constituições liberais e práticas políticas de manipulação do voto das massas rurais
pelos grandes proprietários de terras.
Na verdade, é o atraso do capitalismo nesses países que inviabiliza a concretização, nas primeiras décadas
do século XX, da democracia liberal anunciada nos textos constitucionais.
Com o progresso da urbanização e da industrialização, surge uma população urbana disposta à participação
eleitoral, apoiando partidos que, pela sua componente assistencialista e desmobilizadora, ainda refletem o
atraso econômico e político da região.
A democracia populista é, portanto, uma variante degrada da democracia liberal; ela é institucionalmente
frágil, o que explica os sucessivos golpes militares na América Latina.
A partir dos anos 60, o desenvolvimento do capitalismo na América Latina vai tornando difícil a
manutenção das ditaduras militares, inclusive porque as potências capitalistas centrais passam a considerar
arriscado, a partir da emergência do nasserismo no Egito, o apoio a esse tipo de regime político.
Com a derrocada dos regimes militares, inicia-se na América Latina um ciclo de formação de democracias
liberais pós-populistas, onde partidos trabalhistas de novo tipo podem se organizar e ascender
eleitoralmente (como no Brasil).
Mas, democracias liberais, instauradas num quadro histórico marcado pela má distribuição de renda e pela
ausência de uma Estado de bem-estar social, podem abrir espaço eleitoral para partidos de esquerda
institucionais.
A reação das classes dominantes diante desse quadro político tende a ser o apelo a uma nova forma de
golpe de Estado, vista com bons olhos pelas potencias capitalistas estrangeiras.
Trata-se de um “golpe branco”, incruento: ele consiste na deposição do governo eleito por meios legais,
pseudo-constitucionais, isto é, processos de impeachment, seguidos por novas eleições.
Esse modelo periférico de interrupção do funcionamento da democracia liberal já foi usado com relativo
sucesso em três países da América Latina: Paraguai, Honduras e Brasil.
Provavelmente, a estratégia do golpe branco continuará a ser usada na América Latina, com apoio externo,
sempre que o jogo eleitoral favorecer partidos da esquerda institucional ou coalizões de centro-esquerda.
9

Já no mundo capitalista avançado, após a derrota do nazismo e do fascismo, a democracia liberal se


estabilizou, sendo hoje vista como o regime político dessa área.
10

Bloco III
A evolução do pensamento político liberal

Até agora, vimos que o regime censitário é aquele que predomina, ao longo do século XIX, nos países em
transição para o capitalismo ou já na primeira fase de desenvolvimento do capitalismo.
Agora, temos de analisar se o pensamento político que se apresenta como “liberal”:
A) Faz uma defesa antecipada de um regime político que só vai se instaurar no século XX (a
democracia liberal);
B) Ou, diferentemente, coloca-se em sintonia como o regime político vigente no seu tempo (o regime
censitário), procurando legitimá-lo filosoficamente?
A resposta é que os grandes pensadores políticos liberais do século XX estão em sintonia, não com o ideal
democrático; e sim com o propósito das classes dominantes de manter as classes populares excluídas do
processo eleitoral.
Nesse caso, fica a pergunta: em que consiste o “liberalismo” desses autores? A resposta é que eles não são
liberais no sentido estritamente político; e sim, num sentido mais amplo, que é o sentido filosófico.
Ou seja, esses autores são adeptos do individualismo filosófico. Essa corrente de ideias consiste numa
filosofia social que coloca o indivíduo acima da razão do Estado, dos interesses de grupo e das aspirações
da coletividade.
Em todas as fases da evolução do pensamento político liberal, os pensadores liberais se colocam como
adeptos do individualismo filosófico.
Mas isso não os impede de se envolverem, em sai produção literária, numa operação intelectual bem mais
complexa, típica de todo o processo ideológico:
Num plano mais abstrato, eles formulam um discurso ideológico do tipo teórico: conceituam o indivíduo
em geral como um ser racional, produtor e consumidor, sempre em busca da felicidade;
Num plano mais concreto, eles apresentam sua ideologia prática: propõem fórmulas político-institucionais
que não contemplam as aspirações do indivíduo em geral, e sim os interesses das classes proprietárias.
Mais claramente: fórmulas de exclusão eleitoral das classes populares.
Na verdade, podemos detectar nos textos dos pensadores liberais do século XIX duas camadas de
ideologia:
A) A camada teórica, que se destina a ocultar com abstrações filosóficas a finalidade política prática
do discurso;
B) A camada prática, que se destina a esclarecer qual a posição política que se deve assumir na prática
social.
Quando analisamos o discurso de um autor por esse ângulo, podemos deixar de encarar a diferenciação
dos níveis do discurso como uma mera expressão da “incongruência” desse autor.
11

Primeira etapa do pensamento político liberal: Jeremy Bentham e James Mill

Por volta de 1820, filósofos ingleses da corrente utilitarista começam a se interrogar, filosoficamente e
institucionalmente, sobre o regime político que convêm aos Estados europeus.
Nesse momento histórico, a Inglaterra é sem dúvida o Estado burguês mais avançado do Ocidente, mas
Bentham e Mill:
Não estão escrevendo apenas para os ingleses, e sim para todo o mundo culto;
Estão preocupados com problemas que podem se manifestar até mesmo na política inglesa, para não falar
na política dos demais países europeus.
O primeiro problema político que os preocupa é o da permanência ou da volta do absolutismo.
Na década de 1820, o absolutismo continua existindo em muitas monarquias da Europa central ou do
Leste; mesmo na França, depois da grande Revolução, conheceu uma ditadura imperial e um processo de
restauração monárquica (1814), movida por propósitos absolutistas.
Mas, mesmo monarquias constitucionais da Europa Ocidental podem regredir para a autocracia se o
Gabinete deixar de ser responsável perante a representação política da sociedade para se tornar
exclusivamente responsável perante o Monarca.
Por isso, para ambos o ótimo funcionamento do processo eleitoral desempenha uma função protetora: ele
protege o indivíduo contra os desmandos e excessos do governo.
O indivíduo é um ser racional, e portanto, intrinsecamente bom, enquanto que o governo é um conjunto
de homens que dispõem de meios para o exercício do Poder; e, portanto, intrinsecamente, mau.
Mas como o processo eleitoral deveria ser organizado para que pudesse funcionar como um instrumento
de defesa do indivíduo contra o governo?
Aqui chegamos ao segundo problema político que preocupa Bentham e Mill: embora eles pensem que o
processo eleitoral deve funcionar de modo a proteger o indivíduo em geral contra os desmandos do
governo, concluem paradoxalmente que o contingente eleitoral deve ser socialmente limitado, excluindo
a maioria dos indivíduos concretos.
Que indivíduos devem ser excluídos do processo eleitoral? Basicamente, os membros das classes
trabalhadoras.
Bentham e Mill escreveram mitos textos jurídicos, políticos e filosóficos onde a questão da necessidade da
exclusão eleitoral das classes populares é abordada.
De uma obra para outra varia o critério da exclusão, mas em todos os textos as vítimas da exclusão são os
membros das classes populares.
Os critérios da exclusão eleitoral que se manifestam nos diferentes textos são os seguintes:
– a condição de trabalhador manual;
12

– a condição de não-proprietário;
– a condição de não-pagador de impostos;
– a condição de não-possuidor de casa própria;
– o analfabetismo;
– a carência de instrução.
(esses critérios podem aparecer em diferentes combinações).
O voto feminino não é defendido por Bentham ou Mill; ambos consideram que a mulher é representada,
na sociedade civil e no processo eleitoral, pelo chefe da família.
Aliás, de um modo geral os pensadores políticos liberais do século XIX não se preocupam com a questão
da participação eleitoral da mulher, mesmo que se trate da mulher burguesa.
Essa questão só chegará com força ao debate político e intelectual em inícios do século XX, quando se
coloca em evidência o movimento das sufragistas inglesas.
Portanto, para Bentham e Mill, cabe ao Estado proteger o indivíduo, ao invés de oprimi-lo (o que era feito
pelo Estado absolutista).
Para que o Estado proteja o indivíduo, é preciso que o corpo eleitoral escolha racionalmente os
governantes.
Quem deve integrar esse corpo eleitoral:
A) Não, todo e qualquer indivíduo;
B) Apenas, o indivíduo dotado de uma mentalidade racional: o homem burguês, proprietário, dotado
de alta renda, possuidor de casa própria e pagador de impostos.
Essa conclusão política nos obriga a examinar em detalhe a concepção de ambos segundo a qual a função
do governo, racionalmente escolhido, é proteger o indivíduo.
Essa conclusão política nos obriga a examinar mais em detalhes a concepção de ambos, segundo a qual a
função do governo, racionalmente escolhido, é proteger o indivíduo.
Mas em que consiste “proteger o indivíduo”? Resposta: proteger o indivíduo significa garantir a sua
segurança.
Mas a segurança a ser garantida pelo Estado não é a segurança material das classes populares: alimentação,
habitação, saúde, emprego, etc.
A segurança a que ambos aludam consiste na segurança da propriedade e da riqueza do indivíduo.
Ora, os detentores da propriedade, da riqueza são os membros da classe dominante; e não, o “indivíduo
em geral”.
Aliás, a busca da felicidade individual, que deva ser o objetivo máximo de todo homem depende segundo
os dois autores, da obtenção da propriedade e da riqueza.
13

E, para que não se pense que ele vê o Estado como um necessário defensor da pequena propriedade,
Bentham esclarece que cabe ao Estado garantir o sistema de propriedade tal qual ela existe; isto é, com
toda a sua desigualdade.
Diz Bentham: caso a Lei quisesse igualizar as propriedades individuais, ela acabaria destruindo o incentivo
ao aumento da produtividade.
Dessa forma, ao bloquear a busca do aumento da propriedade e da riqueza, o Estado estaria obstruindo a
busca da felicidade individual, cujos pressupostos são o aumento constante da propriedade e da riqueza.
Ou seja, o Estado estaria atuando contra e não, a favor do indivíduo.
Vê-se, portanto, que o discurso filosófico de Bentham e Mill sobre o “indivíduo em geral” é uma cobertura
teórica (isto é, uma “ideologia de segundo grau”) para a sua intervenção política prática a favor do homem
burguês e contra o homem popular.
Essa coexistência entre duas diferentes camadas de ideologia – individualismo abstrato e inclinação anti-
proletária concreta – é elemento essencial da estrutura do discurso político liberal da primeira metade do
século XIX.

B) A segunda etapa do pensamento político liberal: John Stuart Mill

O contexto histórico que enseja a passagem do pensamento político liberal a uma nova fase é marcado
por:
A) Expansão do parque manufatureiro nalguns países europeus (como a França);
B) Surgimento de sub-regiões propriamente industriais nos países mais avançados tecnicamente
(como a Inglaterra).
Esse duplo processo de expansão econômica leva a:
A) Um crescimento numérico dos trabalhadores manuais urbanos na primeira metade do século XIX;
B) Uma intensificação dos protestos populares contra às más condições de vida e de trabalho nas
áreas manufatureira a industrial.
O pensamento político liberal de meados do século XIX assume um caráter um pouco mais defensivo,
por estar confrontando com uma movimentação popular de diferentes tipos.
Na Inglaterra das décadas de 1830/40, o movimento cartista reúne a classe média e os trabalhadores
manuais urbanos na luta reforma política (contra o “censo alto”) e por reformas sociais.
Na França de 1848, estoura uma Revolução violentam que combina o republicanismo político da classe
média (derrubada da Monarquia) e o republicanismo social do proletariado (formação de cooperativas de
produção e de uma Bolsa do trabalho).
14

John Stuart Mill escreve trabalhos, nas décadas de 1840, 1850 e 1860, onde reafirma uma das teses de
Bentham e Mill: a tese de que o sistema democrático deveria desempenhar uma função protetora: a de
garantir a segurança do indivíduo, neutralizando os desmandos e excessos do governo.
Mas Stuart Mill não pensa, como Bentham e Mill, que a proteção do indivíduo pelo sistema democrático
não implica garantir a segurança da propriedade e da riqueza individuais.
A segunda função que Stuart Mill atribui ao sistema democrático é basicamente prospectiva: a participação
eleitoral tenda promover o desenvolvimento moral e intelectual do indivíduo, levando a sociedade
capitalista a novos patamares civilizacionais.
Vê-se, aqui, a diferença filosófica entre Bentham/Mill, de um lado, e Stuart Mill, de outro:
A) Bentham e Mill se mostram plenamente satisfeitos com o modelo capitalista de sociedade, onde o
indivíduo pode buscar a propriedade e a riqueza, e chegar à felicidade;
B) Stuart Mill é favorável ao modelo capitalista de sociedade, mas não acredita que a busca da riqueza,
da propriedade e dos acréscimos de produtividade seja sinônimo de felicidade.
Para Stuart Mill, a felicidade será o resultado de um desenvolvimento moral e intelectual contínuo dos
indivíduos; e a participação político-eleitoral do indivíduo é um instrumento essencial para a promoção
desse desenvolvimento pessoal.
Ao entrarmos em contato com essa tese prospectiva de Stuart Mill, podemos ficar com a impressão de
que esse autor se inclina para o sufrágio universal e para a defesa da participação político-eleitoral de todos
os indivíduos, convertidos em cidadãos.
No entanto, o seu individualismo filosófico não deságua numa politologia democrática.
Na década de 1850, encontra-se nos textos de Stuart Mill uma defesa da participação eleitoral diferenciada
conforme a classe social.
Stuart Mill defende, nesse momento, o princípio do voto plural, segundo o qual o voto individual das
pessoas da classe alta (empresários, banqueiros, proprietários) de valer mais (2, 3 ou 4 vezes mais) que o
voto individual da classe baixa.
Em governo representativo, da década de 1860 (1861), Stuart Mill joga de modo mais aberto o seu jogo
político:
A) Ele continua afirmando que os membros da classe alta devem gozar de um voto plural;
B) Ao mesmo tempo, ele afirmar que os indivíduos da classe baixa, por terem um baixo nível de
renda, não pagarem impostos diretos e serem iletrados devem ser excluídos “do ofício” do
processo eleitoral, pois se trata de seres que fracassaram na vida econômica e social.
Se não conhecêssemos o caráter tortuoso do processo ideológico, diríamos que há um descaminho no
raciocínio de Stuart Mill:
15

A) Stuart Mill defende que a participação eleitoral tende a estimular o desenvolvimento moral e
intelectual do indivíduo, que deve se colocar como uma meta fundamental para a sociedade
capitalista;
B) Ao mesmo tempo, ele defende a exclusão eleitoral das classes que precisam de incentivos
institucionais para se desenvolverem moral e intelectualmente: as classes populares.
Isso evidencia mais uma vez a coexistência, no discurso político liberal, de uma ideologia “de cobertura”
(o discurso sobre a primazia do indivíduo) e de uma ideologia prática que se exprime nas formulas políticas
(o discurso sobre a necessidade da exclusão eleitoral das classes populares).

C) A última etapa do pensamento político liberal: o modelo elitista da democracia

No século XX, o pensamento político liberal vai se encaminhar para uma postura realista e maquiavélica.
A nova geração de intelectuais liberais constata que a democracia está se realizando no mundo capitalista
sem necessidade da exclusão eleitoral das massas, graças ao fato de que as classes populares não tem
condições de impor os seus candidatos aos partidos que travam o jogo eleitoral.
As massas, felizmente, não dispõem dos recursos políticos (dinheiro, influência sobre a mídia, etc.)
necessários para o acesso à vida partidária.
Na prática, os partidos políticos se configuram como elites, e o jogo democrático se reduz a uma
competição entre elites.
Embora as massas estejam institucionalmente incluídas no processo eleitoral, pois na democracia liberal
pós-censitária não subsiste a exclusão eleitoral das classes populares, elas não participam da dinâmica
partidária, estando, portanto, alijadas do processo de escolha dos candidatos ao governo.
Embora autores como Joseph Schumpeter, em Capitalismo, Socialismo e Democracia (1942), e Robert Dahl,
em Um prefácio à teoria democrática (1956), sugerem que, na democracia liberal o consumidor político (isto é,
o votante) é soberano, na realidade os partidos políticos são dominados por grupos que se auto-escolhem
e impõem os seus candidatos à massa dos votantes.
Os autores elitistas sugerem que, na democracia liberal exista, tal como na economia capitalista, um
equilíbrio entre consumidores políticos (a massa dos votantes) e os produtores políticos (as elites
partidárias).
Ora, esse equilíbrio não existe, mais a massa dos votantes não tem como influenciar a escolha dos
candidatos; essa escolha é um processo partidário interno, inteiramente controlados pelas elites partidárias.
(As candidaturas são forjadas pela elite, e não, impostas pelo povo).
A soberania do consumidor político é, portanto, um mito difundido pela corrente liberal-elitista.
16

É interessante notar que a corrente liberal, a despeito de reservar um lugar-chave para a soberania do
consumidor político no seu modelo, sustenta que a liberal-democracia exige um alto grau de consenso na
sociedade.
Na verdade, esse consenso significa uma dose razoável de conformismo ou de apatia com relação à
situação social e política vigente.
Para os elitistas, não é problemático que o sistema político, ao diferenciar radicalmente elites partidárias e
massas votantes, fomente a apatia política na maioria da população.
O clima de dissenso ou de insurgência é nocivo para a democracia; por isso, a apatia política não é um mal
em si mesmo.
O teórico norte-americano Seymour Lipset chega inclusive a afirmar, em O homem político: o funcionamento
do sistema democrático exige uma dose razoável de apatia, como a que existe nos EUA contemporâneos.
Como nas correntes liberais anteriores, há duas camadas de ideologia no discurso dos elitistas liberais:
A) Num plano mais abstrato: apologia da soberania do consumidor e do equilíbrio político;
B) No plano institucional concreto: defesa do controle autoritário da massa dos votantes pelas elites
partidárias.
Na era da democracia liberal o modelo elitista da democracia é o que mais se ajusta aos objetivos e
estratégias políticas das classes dominantes.
Por isso, ele tende a continuar dominando os círculos oficiais, do Departamento de Estado às grandes
Universidades no mundo capitalista.

Você também pode gostar