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LETRAMENTO E

NUMERAMENTO 2

Aline Azeredo Bizello


Ensino de matemática
e letramento
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Conceituar numeramento a partir da analogia com a definição de


letramento.
 Discutir as abordagens teóricas para o ensino de matemática na pers-
pectiva do numeramento.
 Identificar propostas pedagógicas que desenvolvam o conhecimento
de numeramento.

Introdução
No contexto escolar, é costume que as pessoas enxerguem português e mate-
mática como disciplinas opostas. Atualmente, porém, a noção de letramento
aproximou as duas áreas e as inseriu no universo da prática escolar social.
O letramento apresenta a leitura como a base da alfabetização e do
trabalho das aulas de português. Na matemática, na mesma linha, há o
numeramento, que encara a leitura como base da construção do conheci-
mento matemático.
Neste capítulo, você vai estudar o numeramento a partir da analogia com
o letramento. Além disso, você vai conhecer as abordagens teóricas para o
ensino de matemática na perspectiva do numeramento, bem como as pro-
postas pedagógicas que desenvolvem o conhecimento de numeramento.

1 Numeramento e letramento
Quando se pensa na função inicial da escola, é comum que se afirme que
aprender o básico é aprender a ler, a escrever e a contar. O termo “letramento”
surgiu para dar conta de uma necessidade: auxiliar os alunos no desenvol-
vimento da capacidade de ler e escrever. Essa capacidade envolve aspectos
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que vão além da mera decodificação dos textos. O termo “numeramento”,


por sua vez, surgiu para frisar que contar não é simplesmente quantificar ou
enumerar. Compreender as situações numéricas significa, além de decodificar
os números, considerar o contexto social e compreender as relações com o
uso prático das representações numéricas.
Segundo Soares (2006), o letramento tem uma dimensão individual, asso-
ciada à decodificação das letras, que inclui a alfabetização, e uma dimensão
coletiva, associada à prática social. Com o numeramento, não é diferente:
Danyluk (2002) relaciona o numeramento a uma dimensão individual, chamada
de “alfabetização matemática”. Ela ocorre quando a criança adquire os códigos
do conhecimento matemático escolarizado. Contudo, é preciso enfocar os
aspectos sociais que envolvem a escrita matemática.
Entretanto, há diferentes visões sobre o conceito de numeramento que
impactam o ensino de matemática. Nesse sentido, como no caso do letramento,
para compreender o termo “numeramento”, é preciso resgatar as variadas
concepções de linguagem e constatar a analogia entre letra e número.
No universo das letras, a concepção de linguagem como expressão do pen-
samento se centrava nas características da escrita. No universo dos números,
a centralização no número foi ainda maior. Costumava-se diferenciar quem
sabia de quem não sabia matemática por meio apenas da relação próxima das
pessoas com os números. Aliás, o ensino tradicional de matemática sempre
esteve vinculado ao desenvolvimento das habilidades de raciocínio e de abs-
tração. Segundo Mendes (2007, p. 25):

Ao focalizarmos o numeramento, podemos nos reportar às diversas práticas


sociais, presentes na sociedade, que moldam os eventos de numeramento em
contextos diversos. Na verdade, creio que, talvez, não seja possível identificar
um evento exclusivamente de numeramento, pois de algum modo a escrita e
a leitura podem estar associadas à realização desses eventos. Indo além, as
formas de representação escrita nos diversos eventos de numeramento po-
dem ir além da escrita numérica, abarcando outras formas de representação
como, por exemplo, a visual (leitura de gráficos, representações geométricas,
representações de espaço, etc.).

Portanto, o diferencial básico que o numeramento apresenta é não se associar


a dicotomias, como numerado/inumerado, sabe/não sabe matemática, pois
esse é um pensamento relacionado apenas à matemática formal. A abordagem
social parte do ponto de vista dos vários contextos sociais em que as práticas
matemáticas surgem.
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Com a expansão do pensamento relacionado à pluralidade das práticas


sociais, tanto letramento quanto numeramento ganharam mais espaço, e as
operações com letras e números deixaram de ser vistas como operações cog-
nitivas isoladas. Hoje, sabe-se que essas operações têm finalidades específicas
que estão vinculadas a determinado contexto.
Isso não significa que aprender a contar seja uma questão a se desconsiderar
no ensino de matemática. O ponto fundamental é que a aquisição do código
numérico envolve também o contexto social em que o indivíduo está inserido,
ou seja, esse indivíduo terá de resolver situações-problema, raciocinar para
tomar decisões e ordenar e classificar algo com propósitos. Essas são exigências
da sociedade: é necessário saber aplicar os registros matemáticos nas mais
variadas situações cotidianas, em atividades com contexto social.
Quando essa noção se associa ao ensino de matemática, evidencia-se a
necessidade de vincular o desenvolvimento da aprendizagem não simplesmente
à teoria ou à prática, e sim à linguagem contextual. Nesse sentido, a noção de
numeramento provoca um questionamento: qual papel o ensino de matemática
deve ocupar na atualidade? Veja o que afirmam Fernandes e Santos Junior
(2015, documento on-line):

É difícil discorrer sobre numeramento sem mencionar as habilidades matemá-


ticas e as condições necessárias para aplicá-las nos diversos contextos sociais.
Isso indica que o sujeito, ao se comunicar, ler e escrever estabelece conexão
com conceitos quantitativos e condições plenas para expressar-se sobre, por
meio ou com ele. Compreende-se que o numeramento pode se configurar
como um fenômeno de grande importância, que atém-se ao domínio das
habilidades tanto matemáticas quanto do letramento.

Carvalho (2007) afirma que é necessário um olhar mais atento ao papel


social e ideológico desempenhado pela educação matemática. Veja:

[...] tanto os índices sociais e econômicos, quanto os resultados de pesquisas


estatísticas — que são números, construídos com base em uma determinada
metodologia, interpretados e divulgados seguindo diversos interesses, ge-
ralmente não devidamente explicitados — interferem diretamente em nosso
cotidiano (gastos para nossa sobrevivência), bem como em nossas possibi-
lidades de realizações e ações futuras. Como isso acontece? As decisões
políticas, econômicas e sociais tomadas pelos diversos níveis dos poderes
públicos [...] são legitimadas geralmente por argumentos matemáticos. Con-
sequentemente, conceitos de Educação Matemática, cidadania, democracia
e justiça ou injustiça social e econômica se relacionam por meio de “regimes
de verdades matemáticas” (CARVALHO, 2007, p. 95).
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Essa afirmação vai ao encontro da ideia de que as características das


habilidades matemáticas são diferentes de acordo com os ambientes. Isso
significa que o aprofundamento, a natureza e o nível dessas habilidades podem
ter motivações e necessidades específicas. Daí a importância da relação do
conhecimento matemático com os espaços sociais.
Assim como ocorre no processo de letramento, muitas dessas habilidades
são desenvolvidas fora da escola ou antes de o aluno ser escolarizado. Muitas
dessas capacidades são desenvolvidas no cotidiano, em atividades corriquei-
ras. Portanto, é preciso considerá-las e valorizá-las no ensino de matemática.
Aliás, é comum que as pessoas afirmem que não sabem nada de matemática,
pois associam essa área do saber apenas com contas, números e abstrações,
esquecendo que esse também é um conhecimento construído na prática social.
Vale ressaltar que é justamente na vida diária que surgem conflitos a serem
resolvidos com as habilidades matemáticas. Por essa razão, cada grupo social
pode construir conhecimentos matemáticos específicos. Afinal, o numeramento
tem ligação direta com as experiências de determinado grupo.
Fernandes e Santos Junior (2015, documento on-line) acreditam que:

[...] o numeramento surge como um domínio de capacidades que abrange


um subconjunto de capacidades essenciais tanto da matemática como do
letramento. Para Ferreira (2009), ser numerado envolve o domínio tanto de
algumas habilidades de letramento e matemática, bem como a aptidão para
usá-las em combinação de acordo com o que é requerido para cada situação.

Portanto, é fundamental que a escola ofereça ao aluno situações de apren-


dizagem análogas às práticas sociais de leitura e escrita em todos os âmbitos,
inclusive o matemático. Desse modo, as diversas possibilidades de uso da
matemática como forma de representação (numérica, geométrica, estatística,
etc.) poderão ser trabalhadas e desenvolvidas a fim de potencializar as capa-
cidades dos alunos.

2 Abordagens teóricas
A noção de numeramento nasceu depois de um percurso de tentativas de de-
signar a matemática utilizada no dia a dia. De alguma forma, as correntes que
tratavam do ensino de matemática buscavam se opor ao chamado “movimento
da matemática moderna”, da década de 1960. Esse movimento defendia que
a matemática deveria ser ensinada nas escolas com formalidade e rigor dos
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fundamentos, isto é, com uso de muitos símbolos e linguagem de conjuntos.


Como esse movimento não valorizava o conhecimento prévio do aluno, ou
seja, aquele saber proveniente de seu meio social, educadores matemáticos
passaram a estudar o conhecimento matemático não formal. Daí surgiram
diversos termos para designar esses estudos.
O termo “etnomatemática” foi utilizado pela primeira vez por Ubiratan
D’Ambrosio, em 1985, no seu livro Etnomathematics and its Place in the History
of Mathematics (“Etnomatemática e o seu lugar na história da matemática”).
Nos anos seguintes, esse termo foi se aperfeiçoando e sendo aplicado com
mais intensidade. O termo passou a designar os estudos das relações entre a
matemática e a antropologia cultural. A finalidade desses estudos é entender
o saber e o fazer matemáticos ao longo da história da humanidade e segundo
cada comunidade.

Os termos usados para designar essa matemática diferente foram os seguintes: so-
ciomatemática (Cláudia Zalavski, em 1973); matemática informal (Posner, em 1982);
matemática oprimida (Paulus Gerdes, em 1982); matemática não estandartizada (Gerdes,
Caraher e Harris, em 1987); matemática escondida ou congelada (Gerdes, em 1985);
matemática popular (Mellin-Olsen, em 1986).

Veja a definição de etnomatemática nas palavras de D’Ambrosio (2020):


“Etnomatemática é um programa de pesquisa em história e filosofia da Ma-
temática, com óbvias implicações pedagógicas”. Para o estudioso,

A etnomatemática surge como confluência da matemática e da antropolo-


gia cultural. Em um nível, é o que poderia ser chamado de "matemática no
ambiente" ou "matemática na comunidade". Em outro nível, o de relação, a
etnomatemática é a maneira particular (e talvez peculiar) pela qual grupos
culturais específicos realizam suas tarefas de classificação, ordenação, conta-
gem e mensuração (D’AMBROSIO, 1987, documento on-line, tradução nossa).

D’Ambrosio pretendia também estudar as habilidades de diversos grupos


sociais para identificar outras formas de pensar. Por exemplo: o conhecimento
atual que o ser humano tem sobre a matemática condiz com a visão eurocên-
trica. Nas palavras de Santos (2015, documento on-line):
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É claro que a matemática exerceu e exerce um papel significativo em nosso


espaço social, uma vez que é possível estabelecer conexões de práticas do
cotidiano com conhecimentos matemáticos e se pensarmos em um mundo
sem tecnologia, pode-se pensar em um mundo sem a matemática. Mas será
que não existem outras formas numéricas além destas aprendidas em nossas
relações sociais e escolares?

Esses questionamentos corroboram a ideia de que a matemática produzida


e aplicada no cotidiano tem sua função e deve ser valorizada. Basta você con-
siderar o seu próprio dia a dia para se deparar com situações em que as pessoas
comparam, classificam, verificam a quantidade, explicam, generalizam e fazem
inferências a partir de recursos que são próprios da cultura da sua comunidade.
Uma observação, mesmo que superficial, desse cotidiano permite que você
note o uso de uma matemática não ensinada nas escolas, e sim em ambientes
pessoais, como o familiar e o comunitário. Esses ambientes são compostos
por grupos responsáveis pelo que D’Ambrosio chama de “etnomatemática”.
O prefixo “etno” revela a relação da matemática com a identidade cultural
de um grupo: não apenas a raça, mas também a língua, os códigos, os valores,
as crenças, os hábitos, a alimentação, as vestimentas, os traços físicos, etc.
Para D’Ambrosio (2019), a etnomatemática não se encaixa no sentido esco-
larizado e oficial. Isso ocorre porque os conhecimentos e as lógicas utilizadas
nela foram construídos por meio das necessidades. Portanto, evidencia-se
que o conhecimento oficial não é o que garante a sobrevivência e a vida em
sociedade, pois as pessoas descobrem maneiras de medir e contar, por exem-
plo, sem precisarem de uma instrução formal. Nas palavras de D’Ambrosio
(2019, p. 131):

A Etnomatemática do indígena serve, é eficiente e adequada para coisas muito


importantes. Não há por que substituí-la. A Etnomatemática do branco serve
para outras coisas, igualmente muito importantes. Não há como ignorá-la.
Pretender que uma seja melhor que a outra é uma questão falsa e falsificadora
se removida do contexto.

Como você pode notar, D’Ambrosio utiliza a ideia da sobrevivência humana


como uma das questões centrais da etnomatemática. Claro, todas as espécies
lutam pela sobrevivência, resolvendo conflitos por meio de comportamentos
de resposta imediata. Para tanto, usam suas experiências prévias e os conheci-
mentos impregnados no código genético. Mas os seres humanos transcendem
o instinto. Veja:
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A realidade percebida por cada indivíduo da espécie humana é a realidade


natural, acrescida da totalidade de artefatos e de mentefatos [experiências e
pensares], acumulados por ele e pela espécie [cultura]. Essa realidade, por meio
de mecanismos genéticos, sensoriais e de memória [conhecimento], informa
cada indivíduo. Cada indivíduo processa essa informação, que define sua
ação, resultando no seu comportamento e na geração de mais conhecimento.
O acúmulo de conhecimentos compartilhados pelos indivíduos de um grupo
tem como consequência compatibilizar o comportamento desses indivíduos
e, acumulados, esses conhecimentos compartilhados e comportamentos com-
patibilizados constituem a cultura do grupo (D’AMBROSIO, 2019).

Para o estudioso, todos esses conhecimentos deveriam ser considerados no


estudo escolar da matemática. Entretanto, a consideração de questões culturais
nos currículos escolares é muito recente.

Novos desenvolvimentos industriais implicam um aumento na automação,


com um papel necessário para computadores, e os sistemas de administração
modernos dependem em grande parte de processos de decisão que envolvem
manipulação complexa de grandes conjuntos de dados e processos de simulação
bastante elaborados. O que vemos é que o nível de criatividade necessário para
sobrepor o subdesenvolvimento e ao subemprego depende em grande parte
da escolarização com um componente importante de ciências e matemática.
No entanto, paradoxalmente, a matemática é a principal matéria escolar que
enforca o processo. Nos países do mundo inteiro, a matemática é a principal
responsável pelo alto índice de evasão precoce que é tão frequente nesses
países (D’AMBROSIO, 1987, documento on-line, tradução nossa).

Portanto, o educador matemático tem um papel fundamental: ele precisa


utilizar suas aprendizagens para o humanismo, ou seja, o foco do professor
deve ser o aluno, e não os programas e os conteúdos. Isso significa que na sala
de aula não deve haver uma reprodução da matemática como ciência: os alunos
não são cientistas. Na fundamentação da etnomatemática, está o compromisso
do educador de reconhecer que o conhecimento é dinâmico e que está sempre
sendo elaborado e reelaborado. Esta é uma das bases da etnomatemática: ela
não é uma nova disciplina nem uma nova matemática; é apenas a expressão
do dinamismo e da reelaboração do conhecimento. Considere o seguinte:

A palavra Etnomatemática sugere o corpus de conhecimento reconhecido


academicamente como Matemática. De fato, em todas as culturas encontra-
mos formas de conhecer associadas a processos de comparação, organização,
classificação, contagem, medição, inferência (que são relacionadas e hoje
integradas no que se chama Matemática), geralmente mesclados ou difi-
cilmente distinguíveis de outras formas de conhecer, hoje definidas como
Arte, Religião, Música, Técnicas, Ciências. Em todos os tempos e em todas
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as culturas, Matemática, Artes, Religião, Música, Técnicas, Ciências foram


desenvolvidas com a finalidade de explicar, de conhecer, de aprender, de
saber/fazer e de predizer o futuro (artes divinatórias) (D’AMBROSIO, 2020).

Dessa forma, o programa da etnomatemática pretende se caracterizar


como um estudo das variadas maneiras de explicar e entender a realidade
por meio da matemática. A ideia é analisar as variadas técnicas e habilidades
necessárias para lidar e conviver com os contextos distintos que formam a
realidade. Atente ao fato de que não está em jogo uma nova matemática, e sim
uma forma de observar os fenômenos matemáticos. D’Ambrosio (2020) afirma
que muitas pessoas acreditam que a matemática é apenas aquela originada e
desenvolvida na Europa. Veja:

A disciplina denominada Matemática é na verdade uma Etnomatemática que


se originou e se desenvolveu na Europa, tendo recebido algumas contribuições
das civilizações indiana e islâmica, e que chegou à forma atual nos séculos
XV e XVI, sendo, a partir de então, levada e imposta a todo o mundo. Hoje,
essa matemática adquire um caráter de universalidade, sobretudo devido ao
predomínio da ciência e da tecnologia modernas, que foram desenvolvidas,
a partir do século XVII, na Europa (D’AMBROSIO, 2020).

Não há nenhum problema com as contribuições europeias à matemática. O


problema está em não as vincular a uma história, a um contexto. A historicidade
não pode ser eliminada, tanto do indivíduo quanto de sua cultura. Portanto,
o professor de matemática deve considerar as raízes culturais e a identidade
de seu aluno. Se isso não ocorre, surge a exclusão escolar.

3 Propostas pedagógicas
Os estudos e as discussões sobre as práticas de letramento contribuíram
para a reflexão sobre a função das aulas de diversas disciplinas, entre elas a
matemática. Além disso, esses estudos favoreceram a associação entre texto e
matemática. Nesse sentido, as propostas pedagógicas que desenvolveram o con-
ceito de numeramento contemplam as relações entre linguagem e matemática.
As propostas de pesquisadores e professores põem em cena o trabalho com
intenção discursiva. Isso implica o uso de textos matemáticos ou de outros
textos para ensinar matemática, além do uso de textos cuja leitura depende
da mobilização de conhecimentos matemáticos. Fonseca e Cardoso (2007)
classificam a relação entre matemática e letramento em três tipos: textos de
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matemática no ensino de matemática; textos de outros contextos no ensino de


matemática; e textos que supõem ou mobilizam conhecimento matemático
para o tratamento de questões de outros contextos.
O primeiro tipo é o mais utilizado e o que revela de imediato os problemas
de compreensão dos alunos. Esses problemas aparecem, principalmente, na
dificuldade de interpretação de problemas matemáticos, situação em que textos
são utilizados com mais frequência nas aulas. Quando os docentes detectam
que seus alunos têm dificuldade para compreender o pedido de um enunciado
de atividade ou para interpretar um problema, é comum que busquem ajuda
com os colegas professores de língua portuguesa.
Contudo, é dever do professor da disciplina desenvolver estratégias para
o trabalho com a leitura de textos didáticos e preocupar-se com a leitura de
enunciados de questões e de problemas matemáticos. Afinal, “[...] a presença
de textos dessa natureza é típica em toda prática de ensino de Matemática”
(FONSECA; CARDOSO, 2007, p. 58). Dessa forma, a contribuição do professor
de português será com a leitura de forma geral, porém os alunos precisam de
auxílio para superarem dificuldades específicas com os problemas e com outros
textos matemáticos. Para tanto, é necessária a realização de um trabalho direto
com o texto do problema, pois esse tipo de texto geralmente é escrito de uma
forma específica, envolvendo conceitos e termos da área de matemática. Os
docentes têm de planejar aulas que problematizem os significados dos termos
utilizados, por exemplo, pois eles não fazem parte do dia a dia dos alunos.

Na matemática, são utilizadas palavras como “volume”, “produto” e “diferença”, que


em outros contextos podem ter outros significados. Portanto, é papel do professor
trabalhar esses termos e relacioná-los a conceitos matemáticos.

Como você pode notar, há muitos obstáculos a superar no processo de


compreensão dos problemas, textos e enunciados matemáticos. Portanto, como
enfatizam Fonseca e Cardoso (2007, p. 59), é urgente que:

[...] professores, pesquisadores e formadores dirijam suas atenções para o


delicado processo de desenvolvimento de estratégias de leitura para o acesso
a gêneros textuais próprios da atividade matemática escolar. A leitura e a
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produção de enunciados de problemas, instrução para exercícios, descrições


de procedimentos, definições, enunciados de propriedades, teoremas, demons-
trações, sentenças matemáticas, diagramas, gráficos, equações etc. demandam
e merecem investigação e ações pedagógicas específicas que contemplem o
desenvolvimento de estratégias de leitura, a análise de estilos, a discussão
de conceitos e de acesso aos termos envolvidos [...].

A expressão “texto matemático” designa textos em que, por exemplo,


não há predominância da linguagem verbal. Há muito sinais e inclusive uma
sintaxe própria, o que dificulta a compreensão do contexto. Além disso, os
problemas podem se localizar não só na leitura, mas também na escrita. Veja:

Nesse sentido, duas soluções podem ser apresentadas. A primeira consiste em


explicar e escrever, em linguagem usual, os resultados matemáticos. [...] Uma
segunda solução seria a de ajudar as pessoas a dominarem as ferramentas de
leitura, ou seja, a compreenderem o significado dos símbolos, sinais e notações
(CARRASCO, 2000, p. 192).

Essas soluções podem auxiliar também na compreensão e na explicação


de textos didáticos, tanto os produzidos formalmente para serem publicados
em livros distribuídos por todo o País quanto aqueles produzidos com menos
formalidade pelos professores diariamente nas suas aulas. De qualquer forma,
todos esses textos merecem e exigem uma rotina de leitura. O que isso significa?
Significa que é necessário tornar a leitura desses textos algo mais natural e
cotidiano, isto é, é preciso criar oportunidades de leitura com mais frequência,
e não apenas para que o aluno assimile determinada ideia.
O mais comum nas salas de aula é a produção de textos orais, em que os
docentes buscam orientar os alunos na execução de exercícios ou na assimilação
de macetes. Entretanto, é fundamental fazer mais do que isso: promover a leitura
de textos que tenham como objeto conceitos e procedimentos matemáticos,
isto é, textos que colaborem com a produção de sentidos.
Outro trabalho com textos na aula de matemática refere-se à assimilação
de contextos distintos. É o caso do uso de anúncios, mapas, gráficos, visores
de aparelhos de medida, contas, etc. Embora esses textos costumem aparecer
apenas em problemas matemáticos, há um avanço, pois se pretende contex-
tualizar o ensino a partir da realidade do aluno. Veja o que afirmam Fonseca
e Cardoso (2007, p. 62):
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É na intenção de promover essa contextualização que educadores e livros didá-


ticos, ao proporem atividades didáticas de Matemática, procuram utilizar-se de
situações cotidianas, que seriam possíveis de serem vividas pelo próprio aluno
e /ou pessoas de sua convivência [...] Ao inserir tais textos nos enunciados dos
problemas, esperam envolver contextos significativos para o aluno, tomando
esses textos como textos de Matemática, pretendendo que sejam oportunidades
de dar acesso, explorar ou decifrar linguagens e procedimentos matemáticos
diversos, utilizados no cotidiano.

Não se pode negar que essa inserção do contexto nas aulas de matemática
revela uma aproximação entre as práticas escolares e as sociais. Porém, é
comum a tendência de as práticas sociais serem submetidas às questões
escolares, ou seja, o texto geralmente está a serviço da matemática. O
problema desse tipo de trabalho é que a situação utilizada nos textos
parece superficial e artificial. Contudo, seria fundamental estabelecer
uma “[...] situação própria das leituras sociais, em que o leitor procura no
texto resposta para suas próprias indagações ou necessidades” (FONSECA;
CARDOSO, 2007, p. 64).
Essa limitação do objetivo da leitura faz o leitor enfrentar o texto não
para responder a suas demandas próprias e genuínas, mas para responder a
perguntas formuladas por outrem. Isso inibe a autonomia do leitor e reforça
a concepção de que os objetivos de leitura associados à atividade matemática
limitam-se à identificação de dados (informados ou demandados). Assim, não
se contribui para que os alunos se tornem leitores autônomos em matemática,
adaptados à variabilidade que se poderia atribuir à leitura na atividade mate-
mática (FONSECA; CARDOSO, 2007).
Note que os textos costumam ser transformados para se adaptarem às fina-
lidades escolares. Essa leitura, portanto, embora com intenções significativas
de socializar a matemática, é contaminada pelas estratégias de leitura escolares,
pela didatização. Isso revela que é necessário também rever as práticas esco-
lares de leitura: como aproximá-las da leitura da sociedade contemporânea?
A terceira forma de uso de textos nas aulas de matemática é aquela que
supõe ou mobiliza conhecimento matemático para o tratamento de questões
de outros contextos. Essa maneira de relacionar textos e matemática nas aulas
é mais rara, pois o objetivo não é declaradamente ensinar matemática. Como
afirmam Fonseca e Cardoso (2007, p. 66):
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A abordagem das relações quantitativas como parte integrante da prática de


leitura do texto enseja, pois, um tratamento do conhecimento matemático que
o associa à ideia de que a atividade matemática é necessária para a leitura de
alguns dos textos que estão presentes tanto na escola quanto na sociedade.

Para tanto, é preciso que as propostas de leitura e interpretação de textos


estejam desvinculadas de um objetivo evidentemente matemático, porém essas
propostas podem provocar a mobilização desse tipo de conhecimento. “Dessa
forma, a Matemática é concebida como uma atividade humana e não apenas
como um conjunto de técnicas e conceitos que expressam apenas a visão dos
grupos dominantes” (WANDERER 2001, documento on-line).
Nesse sentido, é preciso aumentar a exposição do aluno a situações rela-
cionadas à sua vida social, o que exige um trabalho interdisciplinar. Veja o
que afirmam Fonseca e Cardoso (2007, p. 68):

O trabalho interdisciplinar pode acontecer porque as práticas de leitura dos


diversos tipos de textos que circulam em nossa sociedade não apenas propor-
cionam aos leitores uma abertura para relacionar o assunto que está sendo lido
com outros já conhecidos, mas também permitem perceber que é necessário
conhecer outros assuntos para compreender o texto [...].

Dessa forma, para que os alunos consigam realizar leituras críticas dos
textos e da realidade, o professor de matemática precisa inserir as práticas
sociais e de leitura nas suas aulas. Trabalhos desenvolvidos a partir dessa
perspectiva exigem o uso de temas ligados ao cotidiano dos alunos. Além disso,
exigem a desvinculação entre os objetivos escolares e a simples necessidade
de desenvolver conhecimentos de uma disciplina, no caso, a matemática.

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