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Ética de Spinoza:

Tratado do
Corpo sem Órgãos
Ricardo Rodrigues Teixeira

março/junho 2010
Livro 1: De Deus

O grande vento calmo... (Delbos)


A invenção do plano fixo... (Deleuze)
A posição de imanência de Spinoza e a desmontagem
do delírio que não é anormal

Primeiras definições:

I. causa de si

II. finito em seu gênero VI. Deus

III. substância VII. livre e necessário

IV. atributo VIII. eternidade

V. modo
Primeiro axioma:

I. Tudo que é, ou é em si, ou é em outra coisa.

substância única,
infinitamente infinita.
MONISMO Tudo que é,
ONTOLOGIA BIMEMBRE ou é em si (é substância),
(DUPLA-ARTICULAÇÃO)
ou é em outra coisa (é modo).
Proposição IV:
Duas ou mais coisas distintas, se distinguem entre si, ou pela
diversidade dos atributos das substâncias, ou pela diversidade
das afecções das mesmas.

A substância sob o A substância sob o


atributo do pensamento atributo da extensão

As idéias são as Os corpos são as


afecções/modificações afecções/modificações
(modos) (modos)
da substância sob o da substância sob o
atributo do pensamento atributo da extensão
Proposição VII:
À natureza de uma substância pertence o existir.

Proposição VIII:
Toda substância é necessariamente infinita.

Escólio I:

ser finito = negação parcial

ser infinito = afirmação absoluta


Proposição XI:
Deus, ou seja, uma substância que consta de infinitos atributos,
cada um dos quais expressa uma essência eterna e infinita,
existe necessariamente.

EXISTIR NECESSARIAMENTE

DISTINÇÃO ENTRE
O QUE É PRODUZIDO POR CAUSAS EXTERNAS E
O QUE É CAUSA DE SI, AQUILO QUE DEVE SUA PERFEIÇÃO
EXCLUSIVAMENTE À SUA NATUREZA, À SUA ESSÊNCIA.
Proposição XIV:
Não se pode dar nem conceber substância alguma exceto Deus.

Corolário I:
Deus é único, só há na natureza uma única substância que é
absolutamente infinita.

Corolário II:
A coisa extensa e a coisa pensante, ou são atributos de Deus, ou
são afecções dos atributos de Deus.

Proposição XV:
Tudo quanto é, é em Deus e sem Deus nada pode ser,
nem ser concebido.

(Escólio importantíssimo!)
Proposição XVI:
Da necessidade da natureza divina devem se seguir infinitas coisas
de infinitos modos (isto é, tudo o que pode cair sob um
entendimento infinito).

De Deus se segue necessariamente

infinitas coisas
infinitos modos
tudo que pode caber num

ENTENDIMENTO INFINITO
Proposição XVII:
Deus age em virtude das únicas leis de sua natureza e não é forçado
por ninguém.

Corolário II: só Deus é causa livre, só Deus existe em virtude da


única necessidade de sua natureza e age em virtude da única
necessidade de sua natureza, portanto, só ele é causa livre...

(Outro Escólio fundamental!)

Proposição XVIII:
Deus é causa imanente, não transitiva, de todas as coisas.

Proposição XIX:
Deus é eterno, ou seja, todos os atributos de Deus são eternos.

Proposição XX:
A existência de Deus e sua essência são uma e a mesma.
Proposição XXIII:
Todo modo que existe necessariamente e é infinito, deve ter se seguido
necessariamente, ou da natureza de algum atributo de Deus considerado
em absoluto, ou a partir de algum atributo afetado de uma modificação
que existe necessariamente e é infinita.

substância infinitamente infinita

substância sob o atributo substância sob o atributo


do pensamento da extensão
intellectus absolute infinitus
modo infinito ordem impessoal de
“essências r(el)acionais”
imediato
(não autoconsciente)

“vontade e intelecto” “movimento e repouso”

intellectus infinitus actu


modo infinito a totalidade atual facies totius universo
mediado do pensamento (humano)
a “face inteira do universo”

intellectus finitus actu


o entendimento particular
modo finito de cada indivíduo (humano)

idéias corpos
(tanto verdadeiras, quanto falsas,
assim com “afetos” de todo tipo)
AFIRMAÇÃO DA EXISTÊNCIA NECESSÁRIA
DE TUDO AQUILO QUE É EM DEUS

Como no escólio da proposição XXV, em que resume:

“em uma palavra: no mesmo sentido em que se diz que Deus é


causa de si, deve-se dizer também que é causa de todas as
coisas, o que constará mais claro ainda com o seguinte Corolário.

Corolário: As coisas particulares não são senão afecções dos


atributos de Deus, ou seja, modos pelos quais os atributos de Deus
se expressam de certa e determinada maneira.”

DEUS SIVE NATURA


Proposição XXVIII:

Na dimensão dos modos, das coisas singulares,

a cadeia causal sempre remete a outras coisas singulares,

e não a Deus tomado “absolutamente” (à substância).

Há um hiato, uma incomensurabilidade


entre
Deus como natura naturans e Deus como natura naturata

No Escólio distingue:

entre coisas produzidas imediatamente por Deus


(que se seguem imediatamente de sua natureza)

e coisas produzidas pela mediação destas primeiras


(que, no entanto, não podem ser nem ser concebidas sem Deus).
Modos produzidos imediatamente por Deus
(modos imediatos infinitos)
RELAÇÕES

Modos produzidos pela mediação destes primeiros


(modos mediados finitos e infinito)
REALIDADE ATUAL
Proposição XXX:
O entendimento finito em ato, ou o infinito em ato, deve compreender
os atributos de Deus e as afecções de Deus, e nada mais.

Proposição XXXI:
O entendimento em ato, seja finito ou infinito, assim como a vontade,
o desejo, o amor etc., devem ser referidos à Natureza naturada, e não
à naturante.

intellectus finitus actu intellectus infinitus actu


(modo finito) (modo infinito mediado)
o entendimento particular a totalidade atual
de cada indivíduo (humano) do pensamento (humano)

intellectus absolute infinitus


(modo infinito imediato)
o sistema modal do pensamento concebido “em Deus”;
ordem impessoal de “essências r(el)acionais”
(não autoconsciente)
Comentário sobre o intellectus infinitus actu:

A lacuna deixada por Espinosa na Carta 64 a Schüller, ao falar na


“hierarquia dos modos”.

Que lugar é esse em que a impessoalidade racional toma


consciência de si?
Civitas: o Estado, que no Tratado Político, Espinosa diz
constantemente ser veluti una mens
(como se fosse uma única mente).
Inteligência Coletiva (IC)? Já que é possível que a
“impessoalidade racional” opere (e, eventualmente, tome
consciência de si) em outros “lugares” além do Estado;
IC designaria genericamente este “lugar” em que podemos ser
veluti una mens e cuja plena realização é a Civitas espinosana...
NEGAÇÃO DA LIVRE VONTADE DE DEUS

Proposição XXXII:
A vontade não pode ser dita causa livre, mas apenas causa necessária.

Proposição XXXIII:
As coisas não poderiam ter sido produzidas por Deus de nenhuma
outra maneira e em nenhuma outra ordem que não aquelas em que
foram.

O entendimento e a vontade são determinados necessariamente,


tão necessariamente como o movimento e repouso.
E determinam o pensamento da mesma maneira que
as “leis da mecânica” determinam a extensão...

Determinados necessariamente por Deus,


não se aplicam a Deus, não se aplicam à própria Natureza naturante,
à substância, enquanto causa sui, enquanto única causa verdadeiramente livre...
Proposição XXXIV:
A potência de Deus é sua essência.

Proposição XXXV:
Tudo o que concebemos que está na potência de Deus,
é necessariamente.

Proposição XXXVI:
Nada existe de cuja natureza não se siga algum efeito.
APÊNDICE DO LIVRO 1

Depois de toda essa afirmação de uma imanência absoluta,


de uma substância infinita que é puramente produtiva,
emissora livre de singularidades,
causa necessária de tudo que é,
demonstra, nas últimas proposições, todo absurdo daqueles que afirmam que
Deus atuaria com vistas a um fim determinado (que seja o bem!).
Será preciso ainda um apêndice para realizar, sinteticamente,
a desmontagem do delírio que não é anormal,
que evidencia o funcionamento de nossa “consciência imediata” das coisas
que é, afinal, o que mais dificulta nosso entendimento
do que Espinosa vem expondo...
A desmontagem do preconceito finalista

Por que tendemos a uma “consciência imediata finalizada”?

Que mecanismos fazem com que a “distorção subjetiva”


seja caracteristicamente finalista ?

A “consciência imediata” exprime o desejo consciente de si próprio,


mas inconsciente do que o determina (da necessidade).
É no plano da “consciência imediata” que os homens se crêem livres, porque
são conscientes de suas ações sem serem conscientes do que as determina.
Sendo apenas conscientes de que desejam e
de que agem orientados por uma finalidade (a utilidade que lhes apetece),
interessam-se apenas em, de tudo, conhecer apenas a causa final.

Denúncia da inversão da cadeia causal !


A desmontagem do antropocentrismo
(finalidade da criação é ser útil ao homem)

A desmontagem do antropomorfismo
(se nem tudo parece favorável ao homem,
é preciso a intervenção de uma vontade superior
– à imagem e semelhança de nossa vontade, humana –,
que intervenha a nosso favor)

Crítica das idéias gerais


(“noções com as quais os homens procuram explicar a natureza das coisas,
tais como Bem, Mal, Ordem, Confusão, Calor, Frio, Beleza, Feiúra...”)

Crítica de todo tipo de substancialismo.


(À maneira de Galileu, postulando/concebendo a homogeneidade da matéria e
a universalidade das leis de movimento e repouso.
À sua própria maneira, emancipando-se do substancialismo através do
conceito de potência)
E a potência se define pelas relações:

relação entre os modos extensos (leis de movimento e repouso):


se a natureza traz a marca da coesão, não é por ordem superior,
mas porque suas partes se ajustam umas às outras,
precisamente porque suas partes são homogêneas e
estão submetidas às mesmas leis (a “estrutura”, a fabrica intima).

relação entre os modos intensos


(aumento e diminuição da potência):
uma coisa só é boa ou má, bela ou feia,
quente ou fria, em relação à outra...
o calor e o frio não são propriedades que pertençam à matéria,
mas uma maneira “subjetiva” de ser afetado por ela

a beleza não é uma qualidade do objeto considerado,


mas um efeito que se produz naquele que o considera

bom, mau, agradável ou desagradável


são somente ressonâncias em nós das modificações,
a expressão de uma conveniência ou discordância

o bem corresponde a uma situação do ser,


uma relação de potência e perfeição que,
para cada ser,
corresponde à afirmação mais potente possível de sua natureza

o bem se define por um crescimento do ser,


ele é a própria utilidade, a ferramenta de nossa conservação
Corolários:

1) A inseparabilidade da ética e da ontologia


Pode-se dizer que a ética exprime o ser,
na medida em que o bem se define por
um crescimento do ser, por um aumento de potência...

2) Espinosa põe o apetite no lugar do fim,


ao afirmar que os homens estão determinados
a buscar o que for útil para sua conservação:
eles são movidos por seus apetites!
Livro 3:
Proposição IX:
A alma, seja quando tem idéias claras e distintas, seja quando as tem
confusas, se esforça por perseverar em seu ser com uma duração
indefinida, e é consciente desse seu esforço.

Escólio: Este esforço, quando se refere apenas à alma, se chama vontade,


mas quando se refere ao mesmo tempo à alma e ao corpo, se chama apetite;
ora, este não é outra coisa senão a própria essência do homem, de cuja
natureza se segue necessariamente aquelas coisas que servem para sua
conservação, coisas que, portanto, o homem está determinado a realizar.
Ademais, entre apetite e desejo não há diferença alguma, exceto a de que o
desejo se refere geralmente aos homens, na medida em que são conscientes
de seu apetite e, por isso, pode-se assim definir: o desejo é o apetite
acompanhado da consciência do mesmo. Assim, pois, fica claro, em virtude
de tudo isso, que nós não intentamos, queremos, apetecemos, nem
desejamos algo porque o julgamos bom, senão que, ao contrário, julgamos
que algo é bom porque o intentamos, queremos, apetecemos e desejamos.
O que vemos em tudo isso é uma redução do valor ao ser.
Uma passagem do qualitativo ao quantitativo.
Do terreno movediço e precário da imaginação à solidez do ser.

Bem, Mal, Belo, Feio, Ordem, Desordem são apenas “modos de imaginar
que não dizem nada sobre a natureza de coisa alguma,
mas tão somente sobre a contextura da própria imaginação.”

A razão (ratio) desmistifica a imaginação,


com a dessubstancialização da realidade sensível,
substituindo as qualidades pelas relações: lê na natureza “equações”!
A natureza em sua homogeneidade profunda
e suas “modificações” internas (relações).
Essas “modificações” engendram modos finitos
que mantêm, uns com os outros, relações de potência.

Cada ser é assim definido pela sua potência,


pelas suas “possibilidades” de agir e padecer,
que se inscrevem no “conjunto das relações de interação”
(agenciamento; “plano do coletivo”).

Perseverar em seu ser (conatus)


implica sempre
a “face inteira do universo” (facies totius universo)
– o agenciamento coletivo: só há desejo num agenciamento!
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Ricardo Rodrigues Teixeira

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