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Entrevista na Revista Veja com Steven Hayes

Não fuja da dor

O psicólogo americano Steven Hayes, em seu livro, "Saia de Sua Mente e Entre em Sua
Vida", publicado em 2005 nos Estados Unidos, rompe com um método em voga na
psicologia há trinta anos: a terapia cognitiva, que instrui pacientes a se livrar de seus
pensamentos e sentimentos negativos. Hayes diz que, ao contrário, é preciso aceitar a
dor e o sofrimento como parte da vida e continuar se comportando de forma a
minimizar os efeitos aversivos e potencializar os positivos. Suas teorias causam especial
impacto no tratamento de distúrbios como a depressão e os transtornos de ansiedade.

Autor de 27 livros e centenas de artigos científicos, nos últimos dez anos Hayes
recebeu mais de 5 milhões de dólares do governo americano para avançar em seus
estudos. Ex-presidente da Associação de Terapias Cognitivas Comportamentais, ele está
há onze anos sem ter um ataque de síndrome do pânico, que o aflige desde os 29 anos.
Hayes concedeu a seguinte entrevista a VEJA de sua casa no estado de Nevada, em
2006, onde mora com a mulher, a psicóloga gaúcha Jacqueline Pistorello, e três de seus
quatro filhos.

Veja – Por que o senhor diz que felicidade não é normal?

Hayes – Muita gente tem um conceito distorcido de felicidade. O mais comum é vê-la
como ausência completa de dor e como uma seqüência de momentos nos quais a pessoa
se sente bem. É fácil preencher a vida com uma série de episódios efêmeros de bem-
estar, como sair com os amigos ou beber um bom vinho. São diversões que podem
trazer satisfação momentânea, mas na manhã seguinte a vida não estará melhor e não
haverá como evitar que aconteçam coisas ruins. Todos sabemos que um dia vamos
morrer, todos nós lembramos da perda de um amigo querido, de algum erro que
cometemos, de dramas, traições ou doenças. A diferença entre o homem e outras
criaturas está na capacidade que ele tem de usar suas habilidades cognitivas para remoer
os erros e infortúnios do passado e temer as incertezas do futuro. Por isso o normal é
sentir dor e sofrer.

Veja – Qual o problema em tentar evitar a dor?

Hayes – Ao fazermos isso, acabamos criando uma série de medos e fobias, que
aumentam ainda mais o sofrimento. O conceito de que felicidade é como a ausência de
sentimentos ruins nos leva a reagir à dor de uma maneira que limita nossa vida. Ou seja,
que só piora as coisas. Isso nos deixa menos abertos a estabelecer novos
relacionamentos, leva-nos a evitar lugares que tragam lembranças do passado ou
situações desagradáveis. Dessa forma, perdemos a oportunidade de um envolvimento
real com o que acontece a nossa volta. Isso também nos impede de ir atrás do que
realmente queremos. Em casos extremos, como na depressão, quem tenta a todo custo
evitar a dor começa a ficar entorpecido. Passa a não sentir nada, apenas um vazio
profundo.

Veja – O suicídio é uma dessas formas de fuga da dor ou essa idéia é apenas um lugar-
comum?

Hayes – Trata-se da explicação mais plausível na maior parte dos casos. Muitos
suicídios são um último esforço para acabar com a própria dor. Em seis de cada dez
casos os suicidas deixam escrito, em bilhetes, que não agüentavam mais sofrer. Há uma
mensagem nisso tudo: evitar os sentimentos dolorosos é rejeitar a própria vida. Aceitá-
los como parte da existência é a melhor atitude. Até onde sabemos, depois de mortos
não sentimos mais nada. E não há vantagem nisso.

Veja – Quando encostamos a mão numa panela quente, o reflexo natural é afastá-la
imediatamente. Não está na natureza humana evitar a dor?

Hayes – Em termos. O problema é que estamos vivendo uma espécie de ditadura da


felicidade. Aceitar a dor sempre fez parte dos costumes e tradições humanas. Hoje, pela
primeira vez na história da humanidade, existem tecnologia, remédios e terapias para
acabar com a dor. Isso não é lá muito sábio. Ao buscar um desses recursos, corre-se o
risco de cometer um erro que tornará aquela dor inevitável, transformando a vida em
uma espiral infinita de sofrimento.

Veja – O senhor pode dar um exemplo?

Hayes – Imagine alguém que tenha sido traído pelo parceiro no passado e, por isso, só
consegue ter relacionamentos superficiais, em que o risco de se magoar é pequeno.
Esses relacionamentos servirão para distrair ou para aplacar a solidão, mas nunca
atingirão o nível de envolvimento e intimidade desejado. Nesse caso, a persistência do
medo de sentir dor acaba tendo um efeito permanente na vida do indivíduo. É como se
sua mente sabotasse sua própria vida.

Veja – Que tipo de felicidade se deve buscar?

Hayes – A pessoa deve definir o que realmente quer da vida a longo prazo, descobrir
quais são seus próprios valores e viver de acordo com eles. Isso é ser feliz. Para alguns,
significa ajudar os outros e sentir-se útil para a sociedade. De nada adianta querer se
sentir feliz o tempo todo. Vamos imaginar uma situação de dor extrema: a morte
iminente da mãe. O filho está a seu lado para dizer quanto a ama e ouvir o que ela tem a
lhe falar. É óbvio que esse não é um momento feliz. Tem, no entanto, um significado
valioso para a vida daquele filho. Imaginemos uma outra cena, de aparente felicidade:
um homem rindo, dançando, tomando um bom drinque e, no fim da festa, indo para
casa com uma loira escultural. À primeira vista, ele está feliz. E se eu disser que essa é a
décima vez que ele se embebeda neste mês? E se disser que ele está bebendo para
esquecer os problemas em casa, que acabou de conhecer a mulher com quem saiu e não
vai se lembrar de nada no dia seguinte? Uma situação aparentemente prazerosa pode ser
destrutiva e não acrescentar nada, em termos emocionais, a seus protagonistas. Nosso
conceito de felicidade está ligado a emoções de curto prazo. Essa correlação nunca foi
verdadeira.

Veja – Como essa idéia pode ser transformada em tratamento psicológico?

Hayes – Uma etapa da terapia de aceitação e comprometimento, que defendo no meu


último livro, consiste em ajudar os pacientes a encontrar seus valores e objetivos. Um
dos exercícios que proponho é que eles escrevam seu próprio epitáfio, uma frase que
considerem digna de ser colocada em seu túmulo. O resultado em geral é algo próximo
de "aqui jaz Sally, que amava muito seus filhos", não "aqui jaz Sally, que tinha uma casa
enorme" ou "aqui jaz Sally, que sofria de ansiedade". Ou seja, queremos que nossa vida
seja lembrada pelos valores que seguimos. As artimanhas que usamos para não sentir
dor nos desviam de nossos objetivos. E é por eles que vale a pena viver. Nosso trabalho
é ir na direção oposta à de nossos medos. Tentamos conseguir, com muito cuidado, fazer
o paciente explorar a tristeza, a depressão e a ansiedade que ele sente, para percebê-las e
observá-las.

Veja – Não é um processo muito arriscado?

Hayes – O que nós propomos não é tentar mudar os pensamentos ruins, mas que eles
sejam aceitos e deixem de influenciar o comportamento do paciente. O processo
consiste em se distanciar aos poucos de todos os pensamentos, tantos os negativos como
os positivos. O resultado é que as obsessões vão se diluindo. Em um caso grave, obtém-
se sucesso quando o paciente começa a ter consciência do que o aflige. Um paciente
psicótico dá sinais de melhora quando muda o pensamento "eu sou a rainha de Sabá"
para "eu estou pensando que sou a rainha de Sabá". O segundo passo é o paciente
descobrir que tipo de vida quer ter e tentar conquistá-lo, sem permitir que o medo de
sentir dor o desvie de seus objetivos.

Veja – Que técnicas o senhor utiliza?


Hayes – Eu ensino os pacientes a identificar seus sentimentos e a tratá-los como se
fossem objetos. Uma das técnicas consiste em resumir os pensamentos ruins em uma
única palavra e dizê-la alto e rápido por 45 segundos. Aos poucos, a palavra perde seu
sentido e o paciente começa a ouvir apenas um ruído. Com isso, ele se dá conta de que
não vale a pena se estressar ou acabar com sua vida por causa daquela palavra, daquele
ruído. Outras vezes, pedimos para o paciente cantar seus pensamentos negativos ou
repeti-los imitando a voz de um personagem de desenho animado. Funciona também na
voz de um político impopular. O propósito não é ridicularizar o paciente, mas fazê-lo
notar que se trata apenas de um pensamento. Essa técnica vale para todo tipo de
problema, desde memórias desagradáveis, medos, traições, culpa até dependência de
substâncias químicas.

Veja – Em quanto tempo os resultados aparecem?

Hayes – Em alguns casos, em poucas horas. Certa vez obtive bons resultados com
psicóticos em apenas três dias. Com pessoas que sofrem de alcoolismo ou dependência
química são necessárias ao menos 25 sessões. Muitas vezes, a mente insiste em não
cooperar. Quando pensamos em algo, a tendência é julgarmos o pensamento como certo
ou errado. O que eu tento fazer é sair desse caminho óbvio. Por isso a mente protesta.

Veja – Quase 20% da população mundial terá depressão em algum momento da vida.
Por que essa doença se tornou tão comum?

Hayes – Não é só a depressão. Nas últimas décadas assistimos ao rápido crescimento de


uma série de doenças psicológicas. Isso inclui desde os transtornos de humor, como a
depressão e o distúrbio bipolar, até os de ansiedade, como a síndrome do pânico, o
transtorno obsessivo-compulsivo e o stress pós-traumático. A explicação é que não
sabemos mais lidar com nossas experiências negativas. Muitos depressivos pioram em
decorrência de um processo que chamamos de rejeição dos sentimentos: você tenta não
sentir o que está sentindo, e o resultado é que sente mais ainda.

Veja – Por que isso ocorre com mais freqüência na atualidade?

Hayes – No mundo moderno esse processo é intensificado por dois motivos. O primeiro
é que, com a tecnologia fazendo tudo mais fácil, somos pressionados a acertar sempre e
a conseguir tudo o que queremos. Com isso, temos dificuldade em lidar com nossos
limites e com os percalços do cotidiano. No passado, as pessoas aprendiam a se
decepcionar e a aceitar suas fraquezas de maneira mais saudável. Basta olhar para as
tradições religiosas que antes tinham grande aceitação: os fiéis jejuavam porque essa era
uma forma de simular a dor dos antepassados ou de um salvador. O segundo motivo é a
ditadura da felicidade superficial, que nada tem a ver com uma vida repleta de sentidos.
Hoje você diz às crianças que elas devem se sentir bem de dia e de noite, e se elas não
conseguem é porque há algo errado. O resultado é que elas se tornam incapazes de lidar
com o desconforto de uma maneira saudável. No futuro, essas crianças serão mais
vulneráveis a problemas de saúde mental.

Veja – O senhor está dizendo que a tendência para querer evitar o sofrimento a qualquer
custo é o único fator de risco para a depressão?

Hayes – Não. O histórico familiar conta muito. A propensão à doença é maior quando
há casos de depressão, transtornos de ansiedade ou alcoolismo na família. Esses três
distúrbios andam juntos, e na raiz de todos eles está a dificuldade em lidar com a dor.
Em geral as mulheres tendem a ter mais depressão que os homens. Por uma questão
cultural e educacional, elas são estimuladas a agir passivamente ao lidar com emoções
negativas.

Veja – Como distinguir depressão de tristeza?

Hayes – Os sintomas da depressão avançam por um período maior, no mínimo por


semanas. Quando está deprimido, o paciente não quer sentir mais nada. A metáfora
usada é a de um buraco que se abre no chão e suga todas as suas emoções e energias.
Um dos principais sintomas é a falta total de interesse na vida. O indivíduo não quer
mais saber de comida, sexo ou qualquer atividade que costumava lhe interessar.

Veja – O que o senhor acha do uso de remédios antidepressivos em combinação com a


terapia?

Hayes – Tenho algumas ressalvas aos remédios que não tiveram sua eficácia
comprovada, como alguns antidepressivos. A indústria faz bilhões de dólares com esses
remédios, e seus resultados muitas vezes são pífios. O Prozac, por exemplo, foi
anunciado como uma revolução no tratamento da depressão. Em uma pesquisa recente,
ele teve nos voluntários um efeito apenas um pouco melhor do que o de placebo. Com
resultados como esses, o melhor seria tomar pílulas de açúcar em vez de
antidepressivos. Outras vezes, combinar remédio e terapia é improdutivo, porque a
droga, além de causar dependência, interfere no que o paciente faz no consultório.
Tranqüilizantes contra a ansiedade, por exemplo, prejudicam os efeitos das terapias de
exposição, aquelas em que o paciente enfrenta situações nas quais é obrigado a vencer
os próprios medos.

Veja – O senhor teve seu primeiro ataque de pânico aos 29 anos. Como isso mudou a
sua vida?
Hayes – Eu tive síndrome do pânico e agorafobia. Tinha medo de lugares e situações em
que não poderia ser socorrido caso passasse mal. Cheguei a um ponto em que não podia
entrar em um elevador, participar de reuniões ou mesmo falar ao telefone. Foi algo
realmente doloroso, porque não podia seguir plenamente a vida que tinha escolhido. Dar
aulas era um suplício. Meu primeiro ataque aconteceu logo depois de me divorciar e,
por isso, não pude ser o pai que gostaria de ter sido para meu filho mais velho. Eu
estava empenhado em uma guerra dentro da minha própria cabeça.

Veja – Como o senhor se curou?

Hayes – Durante dois anos, eu não podia entrar em lugares pequenos nem muito
abertos. Tudo o que eu fazia girava em torno da doença. Foi quando me dei conta de
que, se não reagisse, ela acabaria enterrando minha carreira. Aos poucos, comecei a
aprender a aceitar a dor e a ver meu problema com certo distanciamento. Ter passado
por essa experiência hoje me ajuda a compreender meus pacientes. Faz onze anos que
não tenho uma crise. Quando a última ocorreu, aprendi a nunca dizer nunca. Sempre
digo que ainda não estou curado. Nunca estarei. Sou uma pessoa com síndrome do
pânico em recuperação. É o mesmo que ser um ex-alcoólatra.

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