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LUIZ PEREIRA

e
MARIALICE M. FORÀCCHI

EDUCAÇÃO
E
SOCIEDADE
[Leituras de sociologia da educação)

13? edição

COMPANHIA EDITORA NACIONAL


«m s
lttUOUCl
at toacwi»
BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA
Série 2-a — Ciências Sociais
Volume 16
Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Educaçao e sociedade : leituras de sociologia da edu­


E26 cação / [ organizadas por ] Luiz Pereira e Mariali-
13.ed. ce M. Foracchi. — 13. ed. — Sao Paulo : Editora
Nacional, 1987.
(Biblioteca universitária.
Serie 2, Ciências sociais ; v, 16)

Bibliografia.

1. Sociologia educacional 1. Pereira, Luís,


1933- II. Foracchi, Marialice Mencarini, 1929-1972.
III. Série.

87-1875 cnn-37n.19__
Índices para catálego sistemático:
1. Sociologia educacional 370.19
capa de:
F rancisco G a va Solera

Direitos reservados

COMPANHIA EDITORA NACIONAL


Distribuição e promoção:
R uaJoli, 294 - Fone: 291-2355 fPABXJ
Caixa Postal 5.312 - CEP 03016 - São Paulo, SP - Brasil

1987
Impresso no Brasil
SUMARIO

Apresentação ............................. ............................................................. . . . . . IX

PARTE I

A educação como objeto de estudo sociológico

1. Introdução ............................................................................................ . . . 3
2. Sociologia da educação como "sociologia especial” .(Florestan
Fernandes) ................................................................................................... 6
3. Tendências no desenvolvimento da sociologia da educação (Antonio
Cândido) ....................- ................................................................................ 7
4. Áreas da sociologia da educação (Wilbur B. Brookover) .............. 19
5. Funções das ciências sociais no mundo moderno (Florestan
Fernandes) ............................................................................................ 22

PARTE II

A educação como processo social

1. Introdução .................................. 31
2. A educação como processo socializador: função homogeneizadora e
função diferenciadora (Émile D urkheim) ............................................ 34
3. Condicionamento sociocultural da personalidade (Ralph L inton) 49
4. Formas do processo educacional (José Querino R ibeiro) ................ 70
5. A educação como processo de controle social: função conservadora
e função inovadora (Wilbur B. Brookover) .................................... 80
6. A educação como técnica social (Karl Mannheim) ............................ 88
7. Funções das gerações novas (Karl Mannheim) ................................. 91

PARTE III

O estudo sociológico da escola

1. Introdução ........................................... ...................... : ............................. 101


2. A escola como grupo instituído (Florian Znaniecki) ...................... 104
3. A estrutura da escola (Antonio Cândido) ............................................. 107
4. O subgrupo de ensino (Karl M annheim e W. A. C. Stewart) . . , 129
5. Os sistemas escolares (Fernando de Azevedo) ................................... 138
6. Componentes burocráticos dos sistemas escolares (Peter M. B lau) 150
PARTE IV

Educação e estrutura social:


Sociedades Tradicionalistas

1. Introdução ...................................................... 165


2- A educação numa sociedade tribal (Florestan F ernandes) ........... 168
3. A educação numa sociedade de castas:
a) a sociedade de castas na Índia (TalcottP arsons) ........... 194
b) ocupação e casta (Oliver Cromwell Cox) .................................... 205
4. A educação na sociedade estamental:
a) a sociedade estamental (Hans Freyer) ............. 213
b) a ideologia estamental (Oliver CromwellCox) ............................. 217
c) a educação do jovem na sociedade estamental (Michel de
Montaicne) ................................................................................................... 219

PARTE V

Educação e estrutura social:


Sociedade de Classes

1. Introdução ..................................................................................................... 251


2. Da sociedade estamental à sociedade de classes (Oliver Cromwell
Cox) .............................................................................................................. 257
3. Educação e classe social (C. Wright M ills) ....................................... 268
4. Estrutura social e socialização (Robert K. M erton) ......................... 287
5. A crise da sociedade contemporânea (Karl Mannheim) ................ 321
6. “Planificação democrática’’ e educação (KarlM annheim) ..................343

PARTE VI

Educação e desenvolvimento

1. Introdução ................................................................................................... 359


2. O mundo subdesenvolvido (Gunnar M yrdal) ............................ 364
3. Desenvolvimento e política de desenvolvimento (Celso F urtado) 370
4. Aspectos sociais do desenvolvimento: a educação (Victor L.
U rquidi) ....................................................................................................... 376
5. A educação escolar no Brasil (Anísio T eixeira) ............................... 388
6. O dilema educacional brasileiro (Florestan F ernandes) ................ 414
Índice onomástico ........................................................................................... 445
APRESENTAÇÃO

A organização desta antologia foi norteada por diretrizes


didáticas e científicas que acreditamos necessário esclarecer.
Impunha-se a elaboração de um volume de textos que, por
suas qualidades de clareza e profundidade na abordagem de
temas educacionais, pudessem ser utilizados tanto pelos profes­
sores quanto pelos estudantes de sociologia da educação. É
conhecido e freqüentemente mencionado o fato de que as
dificuldades imediatas encontradas por uns e outros no ensino
e na aprendizagem desta disciplina estão relacionadas, preli­
minarmente, à bibliografia disponível. Os manuais e coletâ­
neas de língua inglesa, por exemplo, geralmente amplos quanto
aos aspectos abordados e com freqüência claros quanto às
posições teóricas dos autores (aqui não discutidas) são, por
vários motivos, inacessíveis ao leitor brasileiro. Os manuais
brasileiros, por sua vez, numerosos mas desiguais quanto ao
nível e à atualização, já não suprem as exigências indispensá­
veis à formação do cientista e do pesquisador em educação.
Demais, nestes últimos não se discutem, com a penetração
ou com a ênfase necessárias, aspectos concretos do problema
educacional. Presos a orientações ortodoxas e tradicionais, que
fazem da educação mais uma perspectiva de análise do que
um objeto de investigação, esses manuais não cuidam suficien­
temente da dimensão brasileira da questão educativa, focali­
zando, de preferência, aspectos sistemáticos muitos gerais. Não
se pode, contudo, menosprezar sua influência formativa que,
no passado, foi considerável, notadamente num país onde os
especialistas eram improvisados. Como contribuição positiva,
cumpriria ressaltar, sobretudo, o cunho de seriedade que, com
base nas posições defendidas nesses trabalhos, se procurou dar
à formação científica do educador.
A persistência dessa orientação e sua flagrante inadequa­
ção às transformações da sociedade brasileira fez, todavia,
com que a educação se convertesse num tema sem atrativos,
incapaz de mobilizar criadoramente o interesse do sociólogo
1

INTRODUÇÃO

C onstitui quase um trijísmo afirmar que uma das primeiras


condições para a análise científica ser bem sucedida consiste
na delimitação rigorosa do campo a investigar. Essa precaução
torna-se imperiosa quando tomamos a educação como objeto
de estudo, dada a diversidade de critérios e de perspectivas
sob os quais ela tem sido focalizada. Firmamos, aqui, a posição
de que a educação consiste num processo inclusivo — anali­
ticamente apreendido como uma dimensão de outros processos
sociais globais — que assume formas múltiplas e se realiza
era dois níveis: sociocultural e psicossocial. Este último nível
ou dimensão é que caberia designar, em sentido estrito, por
socialização. Aquela posição, que continua a esclarecer-se pela
introdução e textos da seção seguinte, fica fundamentada com
o excerto tomado de um estudo de Florestan F ernandes que,
'enquanto sistematização teórica, nega às divisões “tradicionais”
da sociologia o caráter de disciplinas especiais, mas aceita a
preservação de suas denominações apenas tendo em vista esta­
belecer a comunicação do sociólogo com o público.
Não se pode, portanto, conceber a sociologia da educação
como área independente, pois é a educação que deve ser foca­
lizada como objeto de análise sociológica. Compreendendo a
educação como processo social inclusivo, adotamos a linha de
abordagem que nos parece a mais sugestiva e fecunda, mas
não ignoramos ser esta apenas uma das orientações possíveis
no campo da sociologia da educação. Ela apresenta, contudo,
sobre as demais, a vantagem indiscutível de permitir a focali-
zação globalizadora do processo educacional. Isto representa
sem dúvida um progresso, pois, como mostra o ensaio de
Antônio C ândido, boa parte da expansão desta disciplina pro-
cessou-se às expensas de grande, retração temática, tendente a
4 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

reduzi-la a um estudo sociológico da escola. Não se julgue,


porém, que esse desenvolvimento não tenha apresentado as­
pectos positivos. Para mencionar apenas um: o estímulo à
investigação empírica, que então se verificou, resultou num
refinamento técnico capaz de ser incorporado pela abordagem
mais ampla do fato educacional.
O texto de B rookover põe-nos em contato com uma posi­
ção que pretende ser mediadora das divergências de orientação,
uma vez que não reduz e declara não concordar com a redução
da sociologia da educação a uma análise sociológica da escola.
É importante mencionar o fato de que, ao apresentar sua
caracterização das áreas mais exploradas pela sociologia da
educação norte-americana, este autor enfatiza a preocupação
com o estudo da estrutura interna da escola, relacionando-o
com a análise das relações do grupo escola com os demais se­
tores da vida social e insistindo na dimensão socializadora do
processo educacional, tal como se configura na escola. Ainda
que a ênfase colocada seja sobre a situação restrita da convi­
vência escolar, o texto de B rookovf.r nos sugere considerações
de ordem mais geral, coerentes com a orientação que
assumimos.
Para o sociólogo é tão importante conceber a educação
como processo social específico, que se desenvolve na escola,
quanto atentar para as vinculações desta com as demais for­
mas do processo educacional e para as conexões deste processo
com a configuração estrutural da sociedade global. Nesses
termos, quando definimos o campo de investigação da socio­
logia da educação, não perdemos de vista o significado da sua
contribuição para a formação do educador. Enquanto agente
' de um processo, o educador precisa estar consciente da am­
plitude e também das limitações do seu papel e equacioná-lo
às necessidades sociais do mundo moderno, tão agudamente
formuladas na problemática das ciências sociais. Neste par­
ticular, o texto final de Florestan F ernandes adverte, impli­
citamente, que a visão globalizadora formada pelas ciências
sociais constitui requisito de toda atuação consciente e eficaz
— o que a torna indispensável ao educador moderno e impres­
cindível à sociologia da educação, sem o que esta se encami­
nharia para uma espécie de auto-esterilização.

I
A EDUCAÇÃO CO M O O B JE T O DE ESTUDO SOCIOLÓGICO 5

Os textos incluídos nesta seção permitem discutir, de forma


pertinente, o problema inicial de definir a área de investigação
da sociologia da educação. A esse respeito, pensamos que
o processo educacional pode ser focalizado num quadro de
referência grupai, mas em conexão com suas vinculações his­
tórico-sociais, explicitadas em outras seções desta coletânea
pelo recurso a tipos estruturais societários fundamentais.
2

SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO
COMO “SOCIOLOGIA ESPECIAL" (*)

Florestan F ernandes

[ . . . . } a S o c i o l o g i a divide-se em várias disciplinas, que estu­


dam a ordem existente nas relações dos fenômenos sociais de
diversos pontos de vista irredutíveis, mas complementares e
convergentes. Contudo, nada se disse [ até aqui ] sobre as cha­
madas “sociologias especiais", como a Sociologia Econômica,
a Sociologia Moral, a Sociologia Jurídica, a Sociologia do Co­
nhecimento [a Sociologia da Educação], etc. A rigor, essa
designação é imprópria. Como acontece em qualquer ciência,
os métodos sociológicos podem ser aplicados à investigação e
à explicação de qualquer fenômeno social particular sem que,
por isso, se deva admitir a existência de uma disciplina espe­
cial, com objeto e problemas próprios! Essa tendência teve
razão de ser no passado, enquanto pairavam dúvidas sobre as
questões essenciais, relativas ao objeto da Sociologia, à natu­
reza da explicação sociológica e às técnicas de investigação,
recomendáveis no estudo sociológico dos fenômenos sociais. Ela
simplificava o trabalho dos especialistas, confinando o âmbito
da discussão de questões metodológicas e do significado de
suas contribuições. Como nos sugere o estudo de M a n n h e i m
(1956), sobre a Sociologia da Consciência, essa expressão con­
serva, atualmente, um sentido figurado, pois a investigação de
um fenômeno particular com freqüência envolve o recurso
simultâneo às abordagens sociológicas fundamentais. Sob ou­
tros aspectos, o uso mais ou menos livre de tais expressões
facilita a identificação do teor das contribuições, simplificando,
assim, as relações do autor com o público. Isto parece ser
suficiente para justificar o emprego delas, já que carecem de
sentido lógico os intentos de subdividir, indefinidamente, os
campos da Sociologia.

(*) Florestan F ernandes, Çnsaios de sociologia geral e aplicada, Liv. P io­


neira Ed., São P aulo, 1960, pp. 29-30.
3

TENDÊNCIAS NO DESENVOLVIMENTO
DA SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO (*)

Antonio C ândido

A nalisando o desenvolvimento dos estudos sociológicos sobre


a educação discrim inam os três linhas principais, que podem
ser cham adas, conform e a tonalidade dom inante, filosófico-
sociológica, pedagógico-sociológica e p ropriam ente sociológica.
1. A primeira é sobretudo uma reflexão sobre o caráter
social do processo educativo, seu significado como sistema de
valores sociais, sua relação com as concepções e teorias do
homem. É o ponto de partida da sociologia educacional, na
obra de educadores e sociólogos preocupados em fundamentar
do ângulo social uma teoria geral da educação, como D urkheim
e D ew ey .
Esta importância conferida aos aspectos mais gerais da
educação abriu rumos, mas não favoreceu o aparecimento de
uma sociologia especial dos latos educacionais, pois na medida
em que se atém ao esquema geral do relacionamento entre
sociedade e educação, conduz a um ponto de vista, a uma
concepção nova, que mais facilmente se traduz em pedagogia
ou filosofia do que em sociologia.
Fundado naturalmente neste modo de ver — que é uma
etapa de desenvolvimento — G urvitch considera a sociologia
da educação como ramo da sociologia do espírito (1). Tal
incorporação parece inaceitável, pois reduzi-la-ia a um tipo
especial de estudo dos valores e idéias educacionais, aproxi­
mando-a da sociologia do conhecimento e desencorajando as
pesquisas concretas. Todas as vezes que orientamos a atividade*1

( • ) Antônio C ândido, “O papel do estudo sociológico da escola na socio­


logia educacional” , em A n ais do I Congresso Brasileiro de Sociologia, ed. Sociedade
Brasileira de Sociologia, São P aulo, 1955, pp. 117-30.
(1) Georges G urvitch , La vocation actuelle de la sociologie, Presses Uni-
versitaires de France, P aris, 1950, pp. 12-3.
8 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

sociológica para correlações gerais entre um tipo de fatos e o


seu condicionamento social, nós a condenamos a esgotar-se na
própria formidação teórica do problema.
A explicação dada, uma vez por todas, funciona como
chave-mestra, reduzindo as situações particulares aos seus as­
pectos genéricos, sempre interpretados de cima — por assim
dizer — mediante as correlações referidas.
Não se quer dizer com isto que esse tipo de estudo seja
descabido, pois constitui, é claro, fundamento de toda inves­
tigação relativa à função sociocultural dos valores e idéias
educacionais; mas, apenas, acentuar que não esgota o ternário
específico da sociologia da educação e, considerado com ex­
clusividade dos outros, transforma-a numa filosofia sociológica
dos fatos educacionais (2).
2. A linha pedagógico-sociológica desenvolveu-se princi
palmente nos E.U.A., onde se procurou efetuar o estudo dos
aspectos sociais da educação a fim de obter bom funcionamento,
da escola. Intuito imediatamente pedagógico, cuja principal
contribuição consiste, para o sociólogo, na análise das relações
entre,escola e meio social com que mantém contato direto,
tomando como ponto de partida princípios gerais formulados
segundo a primeira linha indicada (3).
É o tópico school-and-community, que se completa pela
indicação geral das relações entre a escola e instituições sociais.
Esta tendência reflete, aliás, a situação educacional reinante
nos E.U.A., onde as escolas são alvo de interferência constante
por parte de grupos interessados — famílias, congregações reli­
giosas, associações instituidoras. Há entre os dois lados uma
corrente de contatos, surgindo a necessidade de assegurar o
respectivo ajuste. Acrescentemos o culto pela eficiência, a fim
de compreendermos que lá a sociologia foi invocada sobretudo

(2) M odernam ente esta “ sociologia g eral” da educação recebeu a contribuição


im p o rtan te de M annheim , a p a rtir justam ente da sua posição em face do conheci­
mento. V. deste au to r Diagnosis of O ur T im e, Londres, 1943, e Freedom, Poiuer
and Democratic P la n n in g , N ova York, 1950.
(3) V. p. ex.: ‘‘A sociologia educacional é o encam inham ento científico para
um a filosofia social da educação” (Jo h n A. K innem an , Society and E ducation,
T h e M acm illan C om pany, Nova York, 1932, p. 48). “A sociologia nos serve para
descobrir quais são os m elhores tipos e níveis de educação a serem utilizados a
fim de que a “ m aior bem p ara o m aior n ú m ero prevalece para homens, m ulheres
e crianças por in term éd io da sociedade” (D avid Snedden , Educational Sociology
for Beginners, T h e M acm illan Company, Nova York, 1934, p. 14).
A EDUCAÇÃO CO M O O B JE T O DE ESTUDO SOCIOLÓGICO 9

como componente da pedagogia e da administração escolar(4).


Daí a relativa debilidade teórica dos seus produtos, a ausência
de pesquisa realmente científica —explicando o fato de a socio­
logia educacional norte-americana ser principalmente um con­
junto de manuais e compêndios, sirigularmente redundantes
quando tomados uns em relação aos outros.
Aliás, ela tem sido cultivada quase apenas por educadores,
como ramo da ciência da educação. Mencionando os seus pro­
gressos, diz P e t e r s : “Muito pouco dessas pesquisas têm sido
feitas por sociólogos declarados. Parece claro que a Sociologia
Educacional estaria no caminho errado se esperasse dos soció­
logos certas generalizações de que necessita para aplicações
educacionais” (5).
Este trecho é significativo do divórcio entre sociólogos e
educadores neste terreno; aqueles, não se interessando pelo
desenvolvimento de uma disciplina intermediária, cuja neces­
sidade se fazia sentir, não contribuíram para a sua funda­
mentação sistemática; estes, entregues aos próprios recursos,
construíram-na, não como seria desejável, mas como foi possí­
vel. Compreendemos, assim, que na sua generalidade, ela tenha
quase sempre permanecido, mais que intermediária, marginal.
3. A terceira linha é devida a sociólogos ou a educadores
de orientação sociológica mais definida, que vêem na sociologia
educacional um ramo da sociologia, não da ciência da educa­
ção. Beneficiada pelo desenvolvimento das duas linhas ante­
riores, delas herdou a tendência filosófica e a tendência prática,
ou seja, a preocupação corn a função social da educação e com
a solução dos problemas educacionais. No entanto, afastou a
especulação de uma e o imediatismo de outra, procurando
definir um sistema coerente de teorias elaboradas segundo as
exigências do espírito sociológico.
Ela aparece sob dois aspectos principais; como um apro­
fundamento sociológico das linhas 1 e 2 e como análise das
situações pedagógicas.
No primeiro caso, vemos desenvolver-se o estudo dos as­
pectos sociais do processo educacional; sistematizar-se o das
conexões entre escola e meio social, obedecendo a um senso
(4) V. a preocupação de utilizar o conhecim ento do meio social para elabo­
rar um currículo adequado, em Charles Clinton P eters, Foundations of Educational
Sociology, edição revista, T h e M acm illan Com pany, Nova York, 1939, cap. V III.
(5) P eters, op. cit., p. IX.
10 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

mais apurado de sua posição na estrutura da sociedade; defi­


nir-se a contribuição da sociologia ante os problemas educa­
cionais. É a orientação que se esboçava num pioneiro da
disciplina, Sm ith , e que se vê amadurecer em Fernando de
A zevedo, R oucek e B r o w n (6).
No segundo caso, vemos uma especialização de interesses,
que se concentra na análise das situações pedagógicas: os
grupos de ensino, os papéis definidos em função do ensino,
a sociabilidade específica decorrente do processo pedagógi­
co. É o que se esboçava em estudos anteriores e vemos de-
senvolver-se nos trabalhos de F ischer, L inpinsel , sobretudo
W aller (7).
Esta terceira linha — de que falaremos adiante com mais
detalhes — representa nítida superação das anteriores, “filo­
sófica” e “pedagógica”, sem contudo repudiar a sua herança.
Com efeito, é tão vivo na sociologia educacional o problema
dos valores e da função social, de um lado, e o da prática,
de outro, que não se saberia como ignorá-los. O importante,
porém, é que ela adquira caráter científico, de modo a poder
encará-los, num segundo tempo, como sociologia aplicada; não,
de imediato, como teoria educacional.
Por isso é que B rookover, assinalando a necessidade de su­
perar a “sociologia educacional” norte-americana, tradicional­
mente um apêndice da pedagogia, propõe o nome “sociologia
da educação”, para registrar os novos rumos que sugere (8).

Conseqüências do exposto
Notemos que a sociologia da educação pouco existe como
teoria e quase nada como pesquisa. No campo teórico avultam
relativamente poucos esforços, como os de W aller e F ischer,
(6) Fernando de A zevedo, Sociologia educacional, Cia. Ed. N acional, São
P aulo, 1940; Joseph S. R oucek. e outros, Sociological Foundations o f E ducation,
T hom as Crowell Co., Nova York, 1942; Francis J. B rown , Educational Sociology,
P rentice Hall, Nova York, 1947.
(7) Aloys F ischer , “ Pädagogische Soziologie” e “ Soziologische P ädagogik” ,
in H andwörterbuch d er Soziologie, herausgegeben von Alfred Vierkandt, F erdinand
Encke Verlag, S tu ttg art, 1931; Elsbeth L inpinsel , “E rziehungslehre, E rziehungs­
praxis und Soziologie” , K ölner VierteIjabrshefte fü r Soziologie, vol. X II, 1934;
“ Pädagogische Soziologie” , Sozialforschung in unserer Z eit, W estdeutscher Verlag,
Köln e O pladen, 1915; W illard W aller , T h e Sociology of Teaching, Jo h n W iley
and Sons, Nova York, 1932.
(8) W. B. B rookover, “ Sociology of E ducation: a D efinition” , Am erican
Sociological R eview , vol. 14, n.° 3, junho de 1949, p. 415.
A EDUCAÇÃO COM O O B JE T O DE ESTUDO SOCIOLÓGICO. 11

que veremos em separado, ou o de Fernando de A zevedo;


no mais a argumentação vai escorregando francamente para
a Filosofia ou a Teoria da Educação. As pesquisas são em
número limitado e de qualidade duvidosa. E as mais das
vezes escapam igualmente à sociologia, rumo às sondagens e
levantamentos administrativos, de um lado, às investigações
psicológicas, de outro. Assim, a sociologia da educação tem-se
apresentado sobretudo como matéria de ensino — e a maioria
absoluta da produção, no gênero, compunha-se até há bem
pouco, e no Brasil ainda se compõe, de compêndios, manuais
e tratados. Encarando, pois, o seu destino — se é possível
dizer assim — devemos abordá-la do ângulo do ensino e da
pesquisa.
No caso brasileiro, que nos interessa, existe como elemen­
to de uma formação técnica — a do professor primário e a do
professor secundário de educação. Isto faz com que sejam
encarados, nela, aqueles aspectos que contribuem para escla­
recer o processo educacional e auxiliar a prática pedagógica.
E assim o mesmo motivo qúê garante a sua existência nos
currículos como disciplina, compromete a sua vitalidade cien­
tífica; o a que assistimos é, quase sempre, no ensino e nos
livros, uma regressão ao aspecto filosófico, ou ao aspecto peda­
gógico. Ao jovem diplomado em Escola Normal, e mesmo
nas Faculdades de Filosofia, ela aparece como contribuição a
um certo modo de encarar a educação, — em cujo proveito
se perde, ou amortece, o caráter especificamente sociológico,
tanto teórico quanto prático.
Entendo que, para dar ao estudante uma base consistente,
assim como para desenvolver a pesquisa, é necessário espe­
cificar a análise das situações de ensino como fundamento da
sociologia da educação, pois a educação moderna, na medida
em que se distingue dos processos gerais de socialização, se
funda no ensino centralizado na escola. Por “situação de
ensino”, entendo o sistema de relações, de papéis, de valores,
determinados no ensino e pelo ensino, manifestando-se prin­
cipalmente na escola, concebida não apenas como agência de
instrução, mas como grupo social complexo, num dado con­
texto social. Numa palavra, trata-se de determinar, com o
devido rigor analítico, os critérios para estudar a estrutura
interna da escola e a posição da escola na estrutura da
sociedade.
12 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

Deste modo, teríamos pontos de reparo concretos para a


pesquisa, determinando, no processo educacional, as situações
específicas em que se envolvem os seus protagonistas. E na
formação do educador, dar-lhe-íamos, não um ponto de vista
sociológico, mas um conhecimento da realidade em que se
insere pelo seu papel social, e que poderá, a partir daí, mani­
pular conforme instrumentos bem mais preciosos de análise,
do que conceitos gerais que o levam para a filosofia de um
lado, condenando-o ao empirismo, de outro.

A análise da escola
Trata-se, pois, de elaborar os instrumentos para análise da
vida escolar, considerada não como todo o processo educacio­
nal, mas como o seu eixo nas sociedades modernas. A presente
comunicação (*) sugere que ela seja efetivamente considerada
como ponto de reparo no estudo e na pesquisa de sociologia
da educação.
Já vimos que o problema das suas relações com o meio
imediato foi considerado, de um ângulo assaz utilitário, pelos
estudos do tipo school-and-community; que a sua função
na sociedade foi estudada pelas correntes sociológicas da
sociologia educacional. Aqui, todavia, quero insistir sobre o
aspecto menos estudado pelo sociólogo, que é a sua estrutura
interna (*9).
Como grupo diferenciado, a escola possui vida própria,
cujas leis escapam em parte à superordenação prevista pela
sociedade. Ela é uma “unidade social”, determinando tipos
específicos de comportamento, definindo posições e papéis,
propiciando formas de associação. As suas relações com as
instituições sociais, e a circunstância de receber estatuto, nor­
mas e valores da sociedade, não nos deve tornar incapazes
de analisar o que nela se desenvolve como resultado da sua
dinâmica própria. Os elementos que integram a vida escolar
são em parte transpostos de fora; em parte redefinidos na
passagem, para ajustar-se às condições grupais; em parte desen­
(*) O presente tex to é um a comunicação do A utor ao I Congresso Brasileiro
de Sociologia (N . dos Orgs.).
(9) V. uma tentativa de guia sociológico para ô estudo da estrutura da
escola em Antonio Cândido, A estrutura da escola, Caderno n. 5, Faculdade de
Filosofia, Ciências e L etras da Universidade de São P aulo, 1953. (T rab alh o repro­
duzido nesta coletânea: N. dos Orgs.)
A EDUCAÇÃO C O M O O B JE T O DE ESTUDO SOCIOLÓGICO 13

volvidos internamente e devidos a estas condições. Longe de


serem um reflexo da vida da comunidade, as escolas têm uma
atividade criadora própria, que faz de cada uma delas um
grupo diferente dos demais;
Esta situação é devida, antes de mais nada, às tensões
existentes entre as gerações no processo educacional geral e,
especificamente, dentro da escola.
Definindo a educação como a “ação exercida pelas gera­
ções adultas sobre as que ainda não estão maduras para a vida
social e (tendo) por objeto suscitar e desenvolver na criança
um certo número de estados físicos, intelectuais e morais dela
exigidos pela sociedade política no seu conjunto e o meio
especial a que se destina particularmente’’ (10) — definindo-a
deste modo, D u r k h e i m estabeleceu as bases de um critério
seguro para se analisar sociologicamente o processo geral da
educação. Mas, por outro lado, criou obstáculos ao entendi­
mento das suas manifestações particulares.
Vista na escala da sociedade, ela se resolve efetivamente,
para cada geração considerada, pela integração do imaturo no
sistema de normas e valores sociais impostos. E o que aparece
é a “ação exercida’’, definindo um processo, que se diria uni­
lateral, que plasma socialmente o indivíduo, criando o ser
social a partir do ser individual, para usar simplificação pouco
significativa de D u r k h e i m . Dir-se-ia que esta. explicação so­
ciológica exprime a ilusão pedagógica, tão comum apesar das
teorias em contrário, segundo a qual a educação é algo que
flui do educador para o educando, envolvendo-o pela ação
tutelar de princípios e valores sancionados pela experiência da
coletividade.
No entanto, encarada como processo particular, que se
dá entre pessoas definidas, num determinado grupo, ela se
traduz em situações marcadas pela resistência do imaturo. No
plano da escola, por exemplo, aparece como resultante dum
sistema de tensões, em que a instrução propriamente dita é
em parte condicionada pela reação do imaturo ante a “ação
exercida pelas gerações adultas”.
Esta luta de gerações dentro da escola nem sempre é
ostensiva, mas nem por isso menos viva e, a seu modo, dra­

(10) É m ile D urkheim , E ducation et sociologie, 2-a ed., Félix Alcan, Paris,
1926, p. 49.
14 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

mática. Do choque entre as determinações sociais, através de


docentes e administradores, e as tendências da sociabilidade
infantil e juvenil, resultam formas várias de competição ou
acomodação, de assimilação ou conflito. Daí as diversas for­
mas de ajustamento do imaturo, em face do adulto, levando
à definição de comportamentos e papéis, à formação de agru­
pamentos e níveis.
Vista, pois, sem simplificações deformantes nem raciona­
lizações, a escola aparece, em virtude da sua dinâmica própria,
como grupo complexo, internamente diferenciado, requerendo
análise adequada. Apenas mediante esta será possível uma
prática pedagógica eficiente, e ela só pode ser fornecida por
uma sociologia que se concentre na análise interna da escola,,
mediante a utilização de conceitos adequados e das técnicas
correntes de pesquisa sociológica. Do contrário, desenvolverá
uma análise global do processo educacional, e da escola como
parcela da sociedade, que, sendo parte indispensável e inte­
grante da sociologia da educação, corre freqüentemente o risco
de amarrá-la à filosofia e à pedagogia.
Esta proposição é o fundamento do presente trabalho,
que se poderia considerar encerrado neste ponto. Convém, no
entanto, fazer algumas considerações sobre os estudos relativos
à sociologia da escola, a fim de sugerir novos rumos aos inte­
ressados.

O estudo da escola como grupo social

Tal estudo se tornou possível quando, na consideração do


processo educacional e na análise institucional da escola, co­
meçaram a especificar-se conceitos que permitem discernir, na
realidade global, aspectos particulares, tornando-se verdadeiros
instrumentos de análise.
Sem poder, nem querer, fixar momentos precisos na histó­
ria da sociologia e das teorias educacionais, lembremos duas
etapas neste sentido: os artigos de F i s c h e r para o Vocabulário
Sociológico de V i e r k a n d t e o livro capital de W a l l e r , já
citados.
Sob sensível influência de S i m m e l , e quiçá de von W i e s e ,
F i s c h e r ressaltou que a relação professor-aluno tem, enquanto
tal, um aspecto nitidamente social, que se destaca do aspecto
pedagógico e determina uma situação interativa definida pelos
A EDUCAÇÃO COM O O B JE T O DE ESTUDO SOCIOLÓGICO 15

respectivos papéis sociais. Foi sem dúvida dos primeiros a


definir sociologicamente professor e aluno como dois tipos
diversos de papéis sociais, configurados segundo a sociedade,
ligados a posições diversas e diversas maneiras de participar
na vida social. Definiu ainda de modo excelente a sociabi­
lidade própria do aluno como fator de organização, dando
lugar à constituição de agrupamentos, correntes, movimentos.
A W a l l e r deve-se a análise, hoje clássica na sociologia
americana, da posição social do professor, que abriu novos
rumos para o estudo das relações entre escola e comunidade.
Deve-se-lhe, ainda, o estudo da “cultura própria da escola”,
onde, pela primeira vez, esta foi claramente definida como
unidade diferenciada pelos seus tipos de comportamento, seus
valores, seu sistema simbólico. Deve-se-lhe, finalmente, a inte­
gração, na teoria sociológica da escola, dos estudos de socia­
bilidade infantil, ao chamar atenção para a variedade dos tipos
de agrupamento escolar.
Graças a W aller , infundiu-se na sociologia norte-ameri­
cana a noção da vida social própria à escola que deve ter
influído no sentido de pautar-lhe as exigências científicas. No
entanto, não se acrescentou posteriormente grande coisa de
novo à sua análise, que tem sido apropriada e repetida
em larga escala. Ainda recentemente, o livro apreciável de
R obbins traz uma parte relativa à vida escolar condensada
de W aller (11). Em 1949 o citado artigo de B rookover,
bastante auspicioso, anunciava o declínio da "sociologia edu­
cacional” e o advento de uma “sociologia da educação”, real­
mente sociológica, comportando a devida atenção ao estudo
da estrutura interna da escola, dentro da orientação de The
Sodology of Teaching.
Na Alemanha, a "Sociologia Pedagógica” apresenta alguns
desenvolvimentos interessantes, no estudo da autoridade e suas
conseqüências sobre a formação de agrupamentos, ou situações
interativas na escola. Depois do estudo de L inpinsel sobre
o papel da análise sociológica na prática pedagógica, cite-se, da
mesma autora, o recente balanço no livro comemorativo do
75.° aniversário de von W iese, já referido.1
(11) Florence Greenhoe R obbins. Educational Sociology, a Study in Child,
Y o u th , School and C om m unity, H enry H olt & Co., Nova York, 1935. T rata-se
dos caps. X II-X III, " T h e School as a ' Social W orld", e X IV , " T h e School’s
C u ltu re”, pp. 281-367.
16 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

Nos E.U.A., na Inglaterra e na Alemanha, o movimento


mais vivo e recente é devido, porém, ao desenvolvimento do
interesse pela teoria e a análise dos pequenos grupos, de que
a sociometria de M o r e n o é a expressão mais ruidosa. A in­
dústria e a educação, ou melhor, a fábrica e a escola são os
campos preferenciais desta tendência, que a muitos parece a
única saída para uma sociologia realmente científica, que lar­
gasse da história para dar as mãos à psicologia. Dois pesqui­
sadores contemporâneos chegam a sugerir que tal sociologia
deve fundir-se nesta para assegurar a precisão do seu trabalho
e das suas conclusões (12).
Ora, o problema é, pelo contrário, desenvolver uma aná­
lise sociológica da escola que, recorrendo embora à psicologia,
pelo princípio da colaboração nos terrenos de encontro, per­
maneça sociologia; à qual interesse menos o estudo de atitudes
ou das formas de interação, que da estrutura grupai como
referência de uma e outros. Além do mais, semelhante análise
se entrosa necessariamente numa visão mais ampla da escola
na sociedade, evitando o que há de porventura estreito na
teoria e na técnica dos pequenos grupos.
Isto posto, não há dúvida que tais estudos abrem para
a disciplina em apreço perspectivas insuspeitadas, e que já
têm sido exploradas, não apenas segundo as diretrizes socio-
métricas, mas, ainda, outras vias(13). Neste passo, deve-se
lembrar que a análise da vida grupai na escola não se deve
restringir aos agrupamentos definidos e evidentes, como a
12) K. S. Sodhi e R. Bergius, N ationale Vorurteile, D uncker & H um boldt.
B erlim , 1935, pp. 10-11.
(13) P ara a aplicação das técnicas sociométricas a situações pedagógicas, v.
—. E. R ichardson, “Classification by Friendship: Sociometric T echniques Applied
to th e teaching of English*' e J. P. H igginbotham , “ Leaderless discussions by
G roups of Adolescents” , am bos em Studies in the Psychology o f Adolescent, ed.
por C. M. Flem ing, Routlcdge & Kegan Paul, Londres, 1951.
P ara estudos de relações de adolescentes e crianças com referência a situa­
ções pedagógicas, m ediante técnicas não-sociométricas, v., entre outros: Clifford
K irkpatrick e T heodore C aplow , “ C ourtship in a G roup of M innesota Students’,’
A m . Journal o f Social., L I, n.° 2, 1945; Bernice L. N eugarten, "Social Class
and F riendship Among School C h ild ren ” , A. J. S., LI, n.° 4, 1946; A lbert E llis ,
"Love and Family R elationships of Am erican College G irls” , A .J .S ., LV, n.° 6,
1950; Samuel H arm an L owrie , "D atin g Theories and Student Responses’’, A m .
Sociol. R eview , 16, n.° 3, 1951; A. T . H immelw eit , A. H . H alsey e A. N.
O ppenheim , " T h e Views of Adolescents on Some Aspects of the Social Class
S tru c tu re” , T h e British Journal o f Sociol., II, n.° 2, 1952; K arl M üller , “Die
G ru ppenm oral d er Schulklasse’*, K ölner ZcHsch. f. Soziologie, II, n.° 1, 1949/50;
Elsbeth L inpinsel , “D er soziale R aum in der Pädagogik” , K . Z. f. Soz., I II , n.° 4,
1950/lr
A EDUCAÇÃO CO M O O B JE T O DE ESTUDO SOCIOLÓGICO 17

sala de aula; mas precisa levar em conta as formas elemen­


tares de sociabilidade, o pré-organizado, que faculta compre­
ensão mais adequada da formação, dos agrupamentos não
visíveis à primeira vista e de toda a dinâmica relacional do
imaturo.

Sugestões finais

Não seria possível, nem desejável, reduzir a sociologia edu­


cacional a uma sociologia da escola; mas parece conveniente
considerá-la como o seu eixo, no estado atual dos problemas
e dos estudos. A palavra eixo exprime a verdade ao colocar
o estudo da escola entre o estudo da educação como sociali­
zação, que o precede, e da sua função social, que o sucede.
Em nossa civilização, o eixo do processo educacional se en­
contra no seu aspecto específico, ou escolar. Tomando-o como
ponto de referência, podemos definir coricretamente os agru­
pamentos, papéis, relações, ligados à educação. Posta entre
estudos de psicologia, de um lado, e de pedagogia, de outro,
a análise sociológica da escola aparece como o terreno pro­
priamente sociológico. Nesta comunicação foi acentuado o
aspecto interno da estrutura escolar, já porque é menos abor­
dado, já porque constitui a base necessária para compreender
a posição e a função da escola na comunidade. Os recentes
trabalhos realizados pela Universidade de Chicago, pelo seu
Comitê de Desenvolvimento Humano, representam, neste sen­
tido, um novo passo que não poderia ter sido dado sem uma
compreensão nítida das “situações pedagógicas’’ encaradas so­
ciologicamente, a partir do conhecimento da escola como grupo
social complexo (14). Nela é que se vêm refletir os valores e
a estrutura da sociedade na medida em que determinam o
processo educativo; atrás dela é que este se ordena e dá lugar
a determinadas formas de ajuste à vida social.
Praticamente, o conhecimento sociológico da escola habi­
lita o educador a compreender a sua função e, sobretudo, a
orientar convenientemente os problemas pedagógicos. Lembre­

(14) Cf. A ugust B. H ollingshead, E lm tow ris Youth: th ’ Im p a ct of Social


Classes on Adolescents, Jo h n W iley an d Sons, Nova York, 1949. Lem brem os o
trab alh o de W arner, L oeb e H avic.hurst , W ho Shall Be E ducated 7, Kegan P aul,
I.ondres, 1946 — revelando novo espírito no estudo das relações en tre estrutura
social e escola, cuja dinâm ica in te rn a está sem pre presente.
18 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

mos apenas, a título de exemplo, a situação de tensão existente


entre adultos e imaturos, entre educadores e educandos, na
medida em que ambos manifestam modos diversos de parti­
cipação na vida social, com diversos interesses. Podemos dizer
que uma visão incompleta do problema dá lugar a duas ati­
tudes pedagógicas extremas. Ou a integração do imaturo nos
valores sociais é considerada como um processo unilateral, e
então temos as formas tradicionais da pedagogia de coerção;
ou é atribuído à sua sociabilidade um poder de organização
autônoma que não deve encontrar pela frente coerção alguma.
É o caso das famosas experiências de Hamburgo em que se
procurou abolir a autoridade na escala (15).
Ora, a tensão não pode ser resolvida pela abolição com­
pulsória de uma das forças; ambas integram necessariamente
a escola como sistema social, e o funcionamento desta depende
da ação de ambas. Se cada escola é um grupo característico,
o educador só poderá agir nele adequadamente se for capaz
de proceder à análise desta situação e traçar as normas con­
venientes de ajustamento social, sem o qual periga a eficiência
pedagógica.
Este simples exemplo aponta a necessidade de considerar-se
a redefinição do estudo da escola na sociologia educacional
como base da atividade do educador. Não menos importante
é esta redefinição para a pesquisa, que encontrará nas situa­
ções pedagógicas um elemento concreto, que permita passar
decididamente da era dos manuais para a da investigação da
realidade.

(15) V. J. R . Schmid, Le maitre-camarade et la pédagogie libertaire,


Éditions D elachaux et Niestlé, N euchâtel, 1936.
1

INTRODUÇÃO

O e s t u d o s o c i o l ó g i c o d a e s c o l a marca uma nova etapa e


também — como se destacou anteriormente — uma das ten­
dências dominantes no desenvolvimento da sociologia da edu­
cação, permitindo-lhe tratar de problemas atinentes ao seu
campo de modo rigoroso e sistemático. Isso não significa,
contudo — dentro da abordagem defendida nesta coletânea
— que esse tema deva ser encarado como uma unidade autô­
noma ou que a análise seja, necessariamente, limitada aos
aspectos internos da escola. Pelo contrário, é da maior impor­
tância compreender a dinâmica do grupo escola através das
conexões que estabelece com outros sistemas sociais, de am­
plitude variável. Assim, a problemática formulada na seção
anterior é, agora, de um lado, tornada restrita, pois os textos
desta seção focalizam sistemas sociais especializados na reali­
zação de uma das formas específicas do processo educacional
— a escolarização; de outro lado, aquela problemática, assim
restringida, fica parcialmente complementada com a investi­
gação de algumas situações concretas. Nos textos que se se­
guem, a força da análise recai sobre processo e mecanismos
internos aos sistemas especificamente escolares, deslocando
para plano secundário as conexões destes com o sistema social
global, que serão o tema de seções subseqüentes, nas quais
aquela problemática também reaparece referida a situações
concretas, porém mais amplas, ou seja, a tipos estruturais so­
cietários historicamente realizados.
O texto inicial de Znaniecki mostra como a escola é, ge­
ralmente, um grupo instituido. De acordo com essa aborda­
gem ficam estabelecidos: 1) a vinculação do sistema, social
escola a outros sistemas “instituidores” ou não; 2) esses outros
sistemas não são especificamente escolares; e 3) as vinculações
estabelecidas nos indicam de que modo a escola opera como
uma agência de controle, servindo-se de mecanismos que po­
dem ser inovadores ou conservadores e que não são por ela
engendrados, mas que reproduzem as orientações dos grupos
que a instituem. Esta representa, sem dúvida, uma maneira
102 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

de conceber as funções da educação, enquanto processo de


controle social, sob ângulo complementar ao exposto na se­
ção anterior. Fica, no trabalho de Znaniecki, suficientemente
ressaltado o fato de que, ao exercer funções de controle, a
educação, quando processada nas escolas, está sendo também
controlada pelos grupos instituidores destas.
Tomando essa caracterização como ponto de partida,
Antonio C ândido procede à análise da estrutura interna da
escola. Nesta, como em outros grupos sociais, a diferenciação
se processa no nível dos agrupamentos (formação de subgru­
pos) e no dos controles internos, de acordo com as peculia­
ridades da dinâmica própria da escola. Dentre tais subgrupos,
sobreleva aos demais, por ser-lhes fundamental, o subgrupo
de ensino. Este se especializa na realização do processo de
escolarização, enquanto uma das formas específicas assumidas
pelo processo educacional, reaparecendo as outras formas desse
processo sobretudo no funcionamento dos demais subgrupos
intra-escolares. Sendo nuclear, o subgrupo de ensino singu­
lariza estruturalmente a escola em face dos demais grupos
sociais, ao envolver o desempenho de dois papéis particulares
à escola: o de professor e o de aluno. O texto seguinte, de
M annheim e Stewart , como que ilustra a parte do trabalho
de Antônio C ândido relativa ao subgrupo de ensino, apreen­
dendo “ao vivo” sua estrutura e funcionamento.
Não se pode, entretanto, compreender alguns dos meca­
nismos que regulam a estrutura e o funcionamento da escola
sem inseri-la no sistema escolar, mais inclusivo e internamente
diferenciado. Essa questão, que não deixa de ser aflorada nos
textos já comentados, vem para primeiro plano no trabalho
de Fernando de A zevedo, onde a escola é claramente caracte­
rizada como subsistema do sistema escolar. Analisa esse autor,
com base na concepção durkheimiana das funções homoge-
neizadoras e diferenciadoras da educação, a integração e a
diferenciação do sistema escolar. Destaca, muito a propósito,
o fato de que o crescimento quantitativo e qualitativo dos
sistemas escolares revela a expansão de uma das formas espe­
cíficas do processo educacional (a escolarização), que deve,
por sua vez, ser explicada em termos das características dinâ­
micas das sociedades urbano-industriais, do que se cuidará na
seção V desta antologia. E chama a atenção para a complexi­
dade das tarefas administrativas impostas pela expansão e
diferenciação dos modernos sistemas escolares.
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DA ESCOLA 103

Expressões usadas nos trabalhos desta seção, como "com­


plexidade crescente das tarefas administrativas”, "organização
formal” da escola e do sistema escolar, “estrutura administra­
tiva” da escola, etc., denotam aspectos fundamentais do pro­
cesso de burocratização, tal como se manifesta no nível dos
sistemas escolares. O problema central é portanto explicitar
os componentes burocráticos dos sistemas escolares e, por ex­
tensão, da escola. Para isso o trabalho de Peter B lau , de
inspiração weberiana, é bastante sugestivo apesar de não se
referir explicitamente à situação escolar e prender-se, demais,
a exemplos que, embora sirvam para esclarecer o ponto de
vista do autor, são de pouco interesse para o leitor brasileiro.
Não obstante, o texto de B lau é conveniente porque relaciona
o processo de burocratização com a complexidade “interna”
(qualitativa e quantitativa) do sistema, encarando-a como fator
de burocratização. Por outro lado, ainda que colocando ênfase
nos chamados fatores “internos” da burocratização, não omite
a vinculação desta a fatores “exteriores” ao sistema parcial
em análise. O processo de burocratização é, assim, apreendido
como manifestação, no nível do grupo e particularmente no
das relações sociais, de processos sociais mais inclusivos como
a democratização do poder, a racionalização, a secularização
da cultura, etc. É claro que só o peso da dimensão didádita
desta antologia justifica que não se tenha selecionado, a pro­
pósito da burocratização, um texto clássico de Max W eber
sobre o assunto (ressalva essa válida para alguns outros textos
reunidos neste volume), mesmo porque B lau , ao criticar
W eber , não levou em devida conta o significado heurístico
da tipologia weberiana das formas de dominação.
106 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

buições particulares dos pais dos alunos — contribuições essas


destinadas a assegurar a condição econômica de que profes­
sores e alunos necessitam para desempenhar as suas respecti­
vas funções. Neste caso, porém, a função principal da escola,
que é a educação, não se apresenta sancionada, nem positiva
nem negativamente, por qualquer outro grupo. A maioria das
escolas, entretanto, é institucionalizada: outrora, por grupos
religiosos; atualmente, por grupos territoriais organizados e
também por grupos culturais nacionais. As exigências impostas
por esses dois tipos de grupos, no que concerne ao ensino
proporcionado por essas escolas, por vezes mostram-se com­
patíveis entre si; outras vezes, contraditórias. Grupos profis­
sionais, classes sociais, grupos econômicos instituem também
em parte ou totalmente, certas escolas. E — seria quase des­
necessário mencionar — muitas escolas fazem parte de escolas
mais amplas. Apesar de tudo, uma escola, enquanto grupo
social, conserva um certo grau de autonomia interna, uma
ordem específica própria, semelhante à de muitas outras esco­
las, mas diferentes da de grupos de uma outra categoria, pois
o papel dos professores e o dos alunos diferem essencialmente
do papel dos membros de qualquer outro grupo. Assim, a
organização e a estrutura da escola não podem ser reduzidas
à organização e à estrutura de nenhum outro grupo. Não se
pode chegar a uma sociologia científica da escola sem que se
tenha renunciado a generalizações vagas, de ordem mais nor­
mativa que científica, relativas às escolas enquanto instituições,
e sem que se empreenda um estudo indutivo das escolas, con­
sideradas como grupos, bem como de suas diversas relações
funcionais com numerosos outros grupos, mais amplos, que as
institucionalizam de maneira mais ou menos efetiva [ ....] .
3

A ESTRUTURA DA ESCOLA (*)

Antonio C ândido

A escola como grupo social:

T rata-se inicialmente de saber qual a contribuição que a


Sociologia pode dar ao educador: é necessário, para isto, esta­
belecer algumas noções preliminares.
1. A estrutura administrativa de uma escola' exprime a
sua organização no plano consciente, e corresponde a uma
ordenação racional, deliberada pelo Poder Público. A estru­
tura total de uma escola é todavia algo mais amplo, compre­
endendo não apenas as relações ordenadas conscientemente
mas, ainda, todas as que derivam da sua existência enquanto
grupo social. Isto vale dizer que, ao lado das relações oficial­
mente previstas (que o Legislador toma em consideração para
estabelecer as normas administrativas), há outras que escapam
à sua previsão, pois nascem da própria dinâmica do grupo
social escolar. Deste modo, se há uma organização adminis­
trativa igual para todas as escolas de determinado tipo, pode-se
dizer que cada uma delas é diferente da outra, por apresentar
características devidas à sua sociabilidade própria.*1
(1) Antonio Cândido, A estrutura da escola, Separata de Educação e C iên­
cias (Boletim do C entro Brasileiro de Pesquisas Educacionais), R io de Janeiro, 1956.
N ota do Autor: O presente trabalho, q u e foi publicado no ano de 1953, em
m u ltilite, pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da U niversidade de Sâo
P aulo, é resum o de p arte dos cursos de Sociologia Educacional que o autor tem
dado naquela escola, desde 1947. Sob a forma por que aparece aqui, visa p rin ­
cipalm ente a sugerir os seguintes pontos ao educador (professor, adm inistrador,
orien tad o r, etc.):
1) O aspecto adm inistrativo, geralm ente considerado, é apenas um elemento
da estrutura to tal da escola;
2) Esta possui vida social in tern a mais complexa do q u e poderia sugerir a
observação desprevenida;
3) O seu conhecim ento é ú til para o exercício da atividade educacional;
4) Ele só pode ser o btido m ediante a análise sociológica adequada
108 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

2. Limitando a sua visão ao ângulo administrativo, o edu­


cador terá, em conseqüência, uma visão limitada; abrangerá
um aspecto importante, e para ele principal, mas que não
exprime a realidade da escola. Com efeito, colocando-se numa
posição em que pode considerar apenas a vida consciente e
racionalizada do grupo, deixa de lado a sua vida profunda,
espontânea, fruto da integração dos seus mjembros e que nem
sempre encontra modos de exprimir-se pelas normas racional­
mente previstas.
3. Caso, porém, seja capaz de apreender a realidade total
da escola, o educador poderá analisar de maneira adequada
a realidade de cada escola, que não lhe aparecerá mais como
“estabelecimento de ensino” a ser enquadrado nas normas
racionais da Legislação Escolar, mas como algo autônomo, vivo
no que tem de próprio e por assim dizer único: que requer
portanto ajustamento correspondente destas normas, visto como
possui outras, que devem ser levadas em conta.
4. O conhecimento adequado desta realidade só pode efe-
tuar-se mediante a análise sociológica, que torna translúcida a
carapaça administrativa, dando acesso à dinâmica das relações
nem sempre reconhecíveis pela observação desprevenida e que
exprimem o que é próprio à vida escolar.
5. A adoção deste ponto de vista alarga e aprofunda a
visão do educador, permitindo-lhe uma ação educacional tam­
bém mais larga e compreensiva.I

II

Isto posto, trata-se de averiguar o modo por que se deve


analisar a estrutura da escola, a fim de completar o ângulo
administrativo pelo sociológico. Já se viu, pelo dito, a neces­
sidade de estudar a escola como grupo social e sob esse aspecto
não saberíamos fazer melhor do que citar os conceitos seguintes
de Z n a n i e c k i : “Todas as escolas são grupos sociais com uma
composição definida e pelo menos rudimentos de organização
e estrutura. Sua existência depende basicamente da atividade
combinada dos seus membros — os que ensinam e os que
aprendem”. “[ . . . . ] cada escola enquanto grupo social man­
tém um certo grau de autonomia interna, uma ordem que lhe
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DA ESCOLA 109

é especifica, similar à de muitas outras escolas, mas diferente


da de outros tipos de grupos, uma vez que os papéis de pro­
fessores e alunos são essencialmente diferentes dos papéis dos
membros de quaisquer outros grupos, e que a organização e
estrutura da escola não podem ser incorporadas às de qualquer
outro grupo” (1).
Por outro lado, a maioria das escolas são instituídas;
regem-se por normas estabelecidas segundo interesse de outros
grupos, e, no caso do Brasil, ajustadas necessariamente às nor­
mas básicas ditadas pelo Poder Público. São, pois, o que
Z naniecki chama “grupos institucionalizados”, isto é, os que
“são essencialmente produto da cooperação dos seus próprios
membros, mas cujas funções coletivas, e posições, são parcial­
mente institucionalizadas por outros grupos sociais" (12).
Estes últimos grupos — religiosos, políticos, de classe, etc.,
— estabelecem para a escola um sistema de normas, em vista
de conformá-la às suas finalidades próprias, lembrando-se sem­
pre que, no Brasil, sobre todas estas normas pairam as que
foram traçadas pelo Legislador. É esta circunstância que leva
a considerar na escola apenas o que ela tem de delegação,
de preestabelecido e legalmente sancionado pela sociedade em
vista das funções que lhe atribui; e a considerá-la, freqüente-
mente, apenas do ponto de vista administrativo, que concretiza
este estado de coisas.
Mas se é um grupo estável, com localização, população,
sistema de normas e finalidade, deve forçosamente apresentar
uma diferenciação interna, apresentando segmentos dispostos
de modo definido. Mais ainda: a sua dinâmica interna dá
lugar a formações específicas, mantidas por um sistema de
normas e valores também internamente desenvolvidos.
É verdade que esta diferenciação da escola depende em
parte da estrutura social externa, de tal forma que as diversas
escolas de uma região, ou país, apresentam similaridades não
apenas da superordenação estabelecida pelos grupos institui­
dores, mormente o Poder Público, mas na própria vida social
internamente desenvolvida. E, num plano mais profundo, to-
(1) Florian Z naniecki, “ Social O rganization and In stitu tio n s", em Georges
G urvitch e W ilbert E. Moore (orgs.), T w entieth Century Sociology, T h e P hilo­
sophical L ibrary, Nova York, 1945, pp. 214-15. H á tradução francesa em dois
volumes, sob o nom e de La sociologie au XX* siècle, Presses U niversitaires de
France, Paris, 1947.
(2) Op. cit., p. 212.
110 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

das as escolas de uma determinada civilização têm muito de


comum na sua “sociabilidade interna”, devido às tendências
comuns da sociabilidade infantil e juvenil.
É por esta, pois, que deve começar o estudo da estrutura
social da escola.
Na verdade, é preciso adquirir noção adequada não
apenas dos aspectos psicológicos do problema, mas do seu
significado sociológico. Não basta estudar o desenvolvimento
da sociabilidade, desde a formação do sentido do real, até a
aquisição de hábitos necessários à vida em sociedade; é pre­
ciso dar atenção ao que há de específico na sociabilidade da
criança e do adolescente em face do adulto; aos tipos de
agrupamento por eles desenvolvidos; ao mecanismo de seleção
dos líderes; ao conflito com os padrões sociais impostos pela
educação, etc.
Os estudantes da Pedagogia não encontrarão nisto maior
dificuldade, graças aos seus estudos de Psicologia Educacio­
nal, onde terão sido encaminhados para a hoje em dia vasta
bibliografia do assunto. Os sociólogos costumam, nesta, des­
tacar os livros de P iaget, G esf.ll e W allon , mas sobretudo
os recentes estudos devidos à colaboração de antropólogos e
psicólogos; ou a antropólogos psicologicamente orientados; ou,
ainda, a psicólogos interessados em Antropologia. Citem-se
no primeiro caso os trabalhos de K ardiner e seus colabora­
dores; os de Margaret M ead e Gregory B ateson, no segundo;
os de E rikson, no terceiro. Para o nosso curso, foi selecionado
o livro de Ruth Frõyland N ielsen, Le développement de la
sociabilité chez 1’enfant, — moderno, prático, breve, claro e
adequado aos interesses pedagógicos.
Neste terreno, o estudante deve preparar-se, sobretudo,
para considerar as resultantes sociais da coexistência de adul­
tos e imaturos. Aqueles exercem um conjunto de pressões que
atendem mais aos interesses da organização social do que aos
interesses destes, e estes reagem a seu modo, procurando dar
expressão à sua sociabilidade própria. Estabelece-se deste
modo uma dupla corrente de sociabilidade: a que envolve o
ajustamento do imaturo aos padrões do adulto, e a que
exprime as suas necessidades e tendências. Na confluência
de ambas situa-se a prática pedagógica, tanto mais satisfatória
quanto melhor conseguir atenuar a tensão das duas correntes.
Esta pode ser latente, limitando-se à concorrência normal dos
grupos de idade, e pode ser conflitual, levando ao desenvol­
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DA ESCOLA 111

vimento de atitudes e normas socialmente reprovadas, que


desviam da organização social, como é o caso dos grupos de
delinqüência infantil e juvenil. Num sentido e noutro, in­
fluem, é claro, as condições do meio.
No caso da escola, considerando-se a presença duma super-
ordenação racional expressa na administração e no ensino, e
de uma população imatura com problemas especfficos de ajus­
tamento, tornà-se evidente que as relações entre ambas dêem
lugar a uma diversificação de relações, atitudes, comportamen­
tos, valores. Por outras palavras, a escola constitui um am­
biente social peculiar, caracterizado pelas formas de tensão e
acomodação entre administradores e professores — represen­
tando os padrões cristalizados da sociedade — e os imaturos,
que deverão equacionar, na sua conduta, as exigências desta
com as da sua própria sociabilidade.
Um dos pontos mais interessantes da Psicologia Social e
da Sociologia é a determinação dos aspectos diferenciais da
sociabilidade do educando conforme o nível de idade. Foi o
que nos levou a incluir nos seminários do curso o livro de
René F au , Les groupes d’enfants et d’adolescents, de grande
interesse para o educador, em vista do período total que a
instrução abrange — teoricamente dos seis aos vinte e três
anos. Quanto aos aspectos próprios à adolescência, adotou-se
o livro de C. M. F leming , Adolescence.
Adquiridas as noções indispensáveis sobre a sociabilidade
da infância e da adolescência, podemos encarar a análise da
escola como agrupamento social dotado de uma estrutura pró­
pria. Para tanto, figuremos um estabelecimento que preencha
as condições seguintes:
a) ciclo primário e. secundário
b) coexistência dos sexos
c) tradição escolar.
Isto posto, poderemos sugerir o seu panorama sociológico
de acordo com o esquema seguinte:
A Escola como Grupo Social
(sua estrutura interna)

I. Formas de agrupamento
1. Grupos de idade
2. Grupos de sexo
112 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

3. Grupos associativos
4. Status
5. Grupos do ensino

II. Mecanismos de sustentação dos agrupamentos


1. Liderança
a) exercida pelo educador
b) exercida pelo educando
2. Normas
a ) que regem o comportamento do educador
b) que regem o comportamento do educando
3. Sanções
a) administrativas
b) pedagógicas
c) grupais
4. Símbolos

I. Formas de agrupamento: 1

1. Grupos de idade

Há na escola uma divisão, desde logo verificável, entre o


grupo adulto dos educadores (professores, administradores, au­
xiliares de administração), de um lado, e educandos, de outro.
A idade, fator biológico, adquire aqui, como noutros grupos,
significado social, ao funcionar como critério de organização.
Notemos que há uma idade social, ajustada mais ou menos
à biologia segundo padrões de cada cultura, ou estádio cul­
tural. Assim é que ter cinqüenta anos não significa a mesma
coisa, nem desperta as mesmas representações, em nossos dias
e no Brasil-Império.
Em nossa civilização, o padrão ideal de professor implica
nítida conotação paternal, que exprime a delegação das “gera­
ções descendentes” e marca a diferença de idade teoricamente
exigida. De tal modo que o professor, por jovem que seja,
é teoricamente maduro, na medida em que a sociedade exige
que ele desempenhe o seu papel social como quem participa
do cabedal de experiência, convencionalmente atribuído às pes­
soas vividas.
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DA ESCOLA 113

Os educadores representam as gerações já integradas nos


valores sociais e se colocam em face do imaturo na atitude
de conformá-los a estes. A idade significa pois, neste caso,
condição de uma investidura por meio da qual a comunidade
atribui a alguns membros especializados a tarefa de preparar
crianças e adolescentes. Daí o seu caráter por assim dizer
simbólico — pois ela é o elemento por meio do qual se pode
reconhecer num educador a qualidade de representante da
experiência sociocultural que importa preservar e transmitir.
A despeito de problemas pessoais de ajustamento — da pouca
idade deste ou daquele educador — o corpo de administrado­
res e professores possui uma unidade funcional devida ao seu
caráter de grupo social de idade, em que se pressupõe uma
experiência de cultura, representativa dos padrões dominantes
na comunidade.
Os alunos, do seu lado, formam um conjunto que, do
ponto de vista da idade, se opõe ao dos adultos pelas formas
diferentes de sociabilidade, como já vimos. Entretanto, ana­
lisando este conjunto, veremos que as diversas idades dão
lugar a fenômenos especiais de comportamento. Numa escola
como a que imaginamos, que vai do Jardim de Infância ao
término do Colégio, podemos observar desde o comportamento
pré-social, caracterizado por reuniões esporádicas e tendência
para a constituição de bandos pouco estruturados, até verda­
deiras organizações, como veremos mais longe. Isto leva a
uma diversificação dos grupos infantis e juvenis, em que o
fator idade tem papel preponderante. Fato que se reflete na
vida administrativa da escola, e leva a divisões tradicionais,
como a de Maiores, Médios e Menores, com direitos e deveres
especiais, segregação de recreio, dormitório, estudo, refeitório,
etc. (3).

2. Grupos de sexo
Assim como a idade, o sexo adquire um aspecto nitida­
mente social na medida em que dá lugar a tipos de agrupa­
mento e organização entre os homens. Também os conceitos
relativos a ele variam segundo a cultura e o estádio cultural.
Sob este ponto de vista deve-se assinalar que o nosso tempo
(3) Cf. R ené H ubert, T raitè de pêdagogie générale, 2.a ed., Presses Uni-
versitaires de France, Paris, 1949, p p. 169 e ss.; R ené F aU, op. cit., pp. 18-28;
N ielsen , op. cit., pp. 43-78.
114 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

tem presenciado um fato único em toda a história, a saber:


o fim da especialização sexual no que se refere à educação,
e, particularmente, à instrução. Até este século (não citemos
as sociedades primitivas), a instrução dos homens e das mulhe­
res preparava-os de modo tão diferentes para papéis sociais
tão diversos, que se diriam duas espécies humanas postas em
presença. A tendência moderna de unificação dos tipos de
ensino encaminhou necessariamente à co-educação, dando lugar
a que os dois sexos convivessem na mesma escola, trazendo
para a organização desta õ reflexo dos seus problemas.
O período escolar coincide com a revolução biológica que
transforma não apenas o nosso còrpo, mas, sobretudo, o nosso
espírito e a nossa sociabilidade. É de prever a importância
apresentada pelo fato de haver nas casas de ensino dois sexos
em presença, não só no que se refere aos dois grupos centrais
de idade, mas, talvez sobretudo, dentro do grupo imaturo.
À medida que ascendemos na escala da idade, a relação
entre os sexos varia de importância como elemento definidor
de posições sociais diferentes — desde a relativa indiferen-
ciação do Jardim da Infância, até a forte ambivalência da
primeira mocidade. No momento em qUe o processo de matu­
ração sexual transforma a visão que temos dos outros e de
nós mesmos, o sexo oposto se torna objeto de atração e repulsa
ao mesmo tempo. Com efeito, a aquisição do status de homem
ou de mulher provoca no púbere e no adolescente — mas
sobretudo naquele — o desenvolvimento de certos tipos de
valorização negativa do sexo oposto, a despeito da atração que
ele passa desde então a exercer. É o momento em que o
menino se torna grosseiro com as meninas, inventando sobre
as colegas ocorrências desairosas, dando crédito fácil ao que
lhes desabonar a conduta.
Do ponto de vista sociológico, trata-se claramente de uma
supervalorização do próprio sexo, a cujo universo específico
o imaturo deseja intensamente integrar-se e, em conseqüên-
cia, rejeitar com veemência qualquer identificação com o sexo
oposto, do qual o seu comportamento bem pouco o diferen­
ciava até então. A integração no grupo de sexo é condição
que o imaturo deve encarar, a fim de participar da posição
conferida socialmente a este, e variável segundo a cultura.
Desta tensão entre os mais profundos imperativos da
espécie e os imperativos sociais, resulta boa parte do compor­
tamento e do próprio modo de ser na escola. A co-educação
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DA ESCOLA 115

vincula o processo educacional à dinâmica das relações entre


os grupos de sexo, trazendo para dentro da escola o problema
da sua competição ou acomodação.

3. Grupos associativos
Os grupos de idade e de sexo fundam-se em fatores biológi­
cos. Estes de que falaremos agora fundam-se na própria ativi­
dade dos educandos e dependem quase sempre da sua adesão
consciente. Mais do que os outros, eles são fruto das condi­
ções específicas da vida escolar e deixam ver com maior clareza
o mecanismo das formas infantis e juvenis de sociabilidade.
No seu estudo — descurado pelos educadores — encontra o
sociólogo um interesse excepcional, pois eles exprimem as várias
maneiras pelas quais pode manifestar-se esta sociabilidade.
Notemos de início que as associações de educandos depen­
dem em boa parte da idade. Assim é que as etapas iniciais
da idade escolar se caracterizam por acentuada instabilidade
social — os agrupamentos esboçando-se e desfazendo-se ao sabor
das circunstâncias, sem envolver as mais das vezes adesão pro­
funda dos seus membros. A partir de certo momento, todavia,
o imaturo tende a se associar, encontrando no grupo um ponto
de referência para a sua atividade.
Estas considerações contribuem para esclarecer a divisão
que se deve estabelecer entre associações infantis e juvenis de
caráter mais ou menos vago, e as que se organizam realmente
com uma estrutura definida. Na vida escolar encontramos uma
gama extensa de ambas, desde os agrupamentos fluidos de
brinquedo até as sociedades secretas e os grêmios literários,
dotados de hierarquia, finalidade durável, divisão de funções.
Poderíamos classificar as associações escolares em 3 tipos
principais: a) recreativas, b) intelectuais, c) cooperativas.
a) Os grupos de brinquedo, as tertúlias, são tipos difusos
de associação recreativa; os teams esportivos são tipos
organizados. A Psicologia tem dedicado aos grupos
lúdicos uma atenção que ainda não encontrou na So­
ciologia o devido eco. Os estudos de formação e
desenvolvimento da sociabilidade aí estão para prová-lo.
Com efeito, toda a teoria e prática da ‘‘escola ativa” nas
suas várias modalidades implica o conhecimento e o reco­
nhecimento da importância dos grupos infantis, sobretudo os
116 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

de jogo. A visão algo abstrata de um educando idealmente


isolado, com que R ousseau deu início, no Emílio, à grande
revolução da Pedagogia moderna, sucedeu, no decurso do
século xix — graças talvez à prática froebeliana — um sentido
mais apurado da vida grupai da criança, que veio encontrar
em nossos dias a devida sistematização.
b) São intelectuais os agrupamentos constituídos em vista
do aprendizado e cultivo geral da inteligência. De
tipo difuso, os grupos de colegas, que se unem para
repetir e esclarecer a matéria; de tipo organizado, os
grêmios e academias. Essas, com função que se pode­
ria dizer para-escolar, ou de extensão escolar. Aque­
las, constituindo parte integrante do aprendizado e
prolongando a atividade da sala de aula, que deste
modo penetra superfícies mais amplas da inteligência
e da sensibilidade, de vez que os alunos se agrupam
aí segundo afinidades mais estreitas, a fim de penetrar
na matéria proposta em bloco à sua turma escolar.
c) São cooperativos — à falta de melhor nome — os
agrupamentos cujos membros, voluntariamente asso­
ciados, concorrem para uma finalidade comum, que,
sendo embora de benefício pessoal, é definida segundo
o interesse geral do grupo. Interesse que pode ser o
prestígio, privilégio, prazer, subversão, mas se subor­
dina a princípios mais ou menos definidos de auxílio
mútuo.
São agrupamentos cooperativos de tipo difuso os círculos
de fumantes, as arruaças, as conjurações visando a transgres­
sões de toda espécie. São de tipo organizado as sociedades
secretas, igualmente com as mais variadas finalidades.
Tais grupos constituem por ventura o aspecto mais inte­
ressante e menos estudado da vida escolar. Sob a aparente
tranqüilidade desta, eles subsistem e agem com uma força
constante, que, por exercer geralmente às encobertas e contra
a superordenação legal, lhes confere um poder integrador
raramente alcançado por outras formas de convivência. Cada
escola os terá desta ou daquela forma, em maior ou menor
número, com atividade mais ou menos eficiente. O fato porém
é que todas os possuem, e neles o educador poderá, não raro,
encontrar a chave para problemas que escapam à observação
superficial — que tende a ver na transgressão um ato quase
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DA ESCOLA 117

sempre pessoal, ou de simples contágio, de caráter excepcional


e solúvel, por medidas disciplinares.
Como a finalidade deste estudo não permite aprofundar
o assunto, lembremos apenas o sentido social do segredo, que
rege a vida de quase todos estes grupos — desde a simples
ocultação de atos ou palavras até o hermetismo absoluto das
associações fundadas em pactos mais ou menos fortes.
A simulação e a tendência conspiratória são traços impor­
tantes na integração dos grupos sociais, quer funcionando
como ajuste às exigências do controle social, quer dando
ensejo à formação de tipos marginais de comportamento, que
podem resultar em reforço ou, mais freqüentemente, subversão
da estrutura. Na vida da escola, elas são um dos modos pelos
quais os imaturos, premidos pela imposição progressiva de
padrões nem sempre condizentes com os seus, procuram forjar
um estilo próprio de vida, em concorrência com as formas
impostas pela geração dominante e aparentemente aceitas na
generalidade. A mentira, a fantasia, a deformação da reali­
dade em geral, agem, como o segredo, neste sentido. E tão
grande é a sua importância como recurso de auto-afirmação,
que ocorrem freqüentemente, nas escolas, grupos de segredo
sem finalidade. Segredo pelo segredo como em certo colégio
da Capital, onde havia um clube cujos membros se vinculavam
por pacto bastante efetivo, e cujo escopo era dar aos colegas,
e à própria administração, impressão de que havia nele uma
finalidade misteriosa e ciosamente oculta, na verdade inexis­
tente.
Os grupos secretos de fumantes, os de anedotas porno­
gráficas, os de debate sexual — por vezes fechados aos não
iniciados — amparam por assim dizer a personalidade do
imaturo, dando-lhe uma orientação de sociabilidade por vezes
tão intensa e efetiva quanto a que lhe quer dar a escola como
instituição.

4. “Status”

O processo de estratificação se manifesta na escola pelo


aparecimento de diferentes status, que,dispõem em níveis di­
versos os membros da sua população.
A primeira diferenciação sob este ponto de vista é a que
superpõe educadores e educandos. Visíveis à primeira vista,
118 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

reconhecida e sancionada, ela constitui o fundamento da hie­


rarquia escolar, de que decorre a disciplina. Não nos esque­
çamos, todavia, de que, por ser mais aparente, não é a única,
nem tampouco (para o sociólogo) a mais importante. Para
ele e para o educador, apresentam relevo singular as diferen­
ças de nível entre alunos, devidas aos fatores já apontados de
diferenciação (sexo, idade), a fatores externos (classe, ideolo­
gia) ou aos traços específicos da sociabilidade escolar, — tanto
os desenvolvimentos por assimilação dos valores sociais, quanto
pela interação dos educandos.
Que a idade confere posições diferentes, é visível pela série
de opressões e sujeições que ela determina entre alunos, ou
mesmo a sua simples divisão em maiores, menores e médios,
já assinalada. Ao aluno mais velho — via de regra mais adian­
tado — asseguravam as “Public Schools” inglesas um direito
de comando sobre os mais moços, os fags, que deveriam servi-lo
à mesa, carregar-lhe os livros, executar toda sorte de trabalhos
de natureza servil.
Notemos, quanto ao sexo, a posição por vezes desprezível
a que os alunos do sexo masculino relegam as suas colegas
em escolas mistas, quando elas são minoria nítida.
Os fatores externos — como a classe de origem — são
geralmente redefinidos no âmbito da escola, de tal forma que
os meninos de melhor posição social podem constituir ver­
dadeira camada de párias numa escola em que predominem
filhos do povo, reagindo estes a seu modo ante os refina­
mentos e confortos de que os outros dispõem. E assim o casõ
contrário.
Fator externo da maior importância neste sentido é a
ideologia educacional do País, ou comunidade: alunos valori­
zados de acordo com o seu rendimento intelectual em certos
casos; segundo a sua capacidade esportiva, noutros.
O que mais influi no sistema de status da escola são,
todavia, os fatores da sua sociabilidade interna. Os alunos
aplicados podem ser alvo da desconsideração geral num grupo
em que predominam os padrões de rebeldia; os grevistas, afoi­
tos ante o professor, podem sofrer a mesma desqualificação
num outro, onde dominam os valores de obediência e dedi­
cação ao estudo. Neste sentido, agem poderosamente as asso­
ciações cooperativas, que de certo exprimem o que há de mais
profundo na vida escolar.
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DA ESCOLA 119

5. Grupos de ensino
As aulas constituem a finalidade principal da escola. São
talvez a espinha 'dorsal da sua organização e o ponto de en­
contro mais característico entre a sociabilidade do imaturo e
a ordenação racional do Legislador. Professores e alunos, em
salas de aula, ou de estudo, constituem o agrupamento por
excelência em que se vêem refletir todos os demais.
Com efeito, as relações determinadas pelo sexo, a idade,
os status, os vários interesses, influem e são poderosamente
influenciados pelas que se tecem nos grupos de ensino, onde
nascem e se desenvolvem quase todas as que têm lugar entre
professor e aluno. Por isso, disse com razão um tratadista
moderno que na relação professor-aluno “se especifica o sen­
tido da atividade pedagógica” (45).
Não é, pois, sem motivo que educadores e psicólogos, na
teoria e na prática, têm sido levados a considerar o grupo
de ensino como o agrupamento por excelência a ser estudado
na vida escolar. Levados por uma simplificação compreensível
dum ponto de vista unicamente didático, tendem a ver nele
um todo complexo e autônomo ou diretamente sujeito às in­
fluências exteriores, de família ou classe, cujos problemas po­
dem ser resolvidos no seu âmbito restrito.
Sociologicamente, o seu interesse provém da circunstância
de que as relações nele formadas e desenvolvidas representam
não apenas conseqüência da atividade nele processada, como o
entrecruzamento das atividades de todos os demais segmentos
de que se compõe a escola, e cuja dinâmica vem refletir-se nele.
Isto posto, o grupo de ensino constitui campo tanto mais
importante de estudo e observação, quanto a sua delimitação
espacial e temporal, bem como as suas normas racionais de
conduta, são facilmente reconhecíveis para o educador e o
pesquisador. Beneficiando-se do interesse crescente pela análise
dos grupos restritos — cuja raiz deve ser buscada em
Sim m el — a sala de aula vem sendo alvo de toda sorte de
investigações, baseadas em grande parte nas modernas técnicas
sociométricas (s).
(4) V. Alfred P etzelt, G rundzüge Systematischer P ädagogik, W . Kolham m er
Verlag, S tu ttg art, 1947, p. 41.
(5) Cf. p. ex. as pesquisas de J. R ichardson e as de J. P. H iggin B otham ,
in C. M. F lem ing (org.). Studies in the Social Psychology o f Adolescence, Routledge
& Kegan P au l, Londres, 1951. P ara o andam ento dos trabalhos m odernos sobre
grupos reduzidos cf, a revista Sociometrics, e George C. H omans, T h e Human
Group, R outledge & Kegan P aul, Londres, 1951.
J 20 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

II. M ecanismos de sustentação dos agrupamentos:

I. Liderança
Este agrupamento vivo e diferenciado em subgrupos que
é a escola, mantém-se estruturado e em funcionamento graças
ao sistema de controle que organiza o comportamento de seus
membros de acordo com os padrões estabelecidos. Estes são
os racionalmente preestabelecidos e os devidos à própria dinâ­
mica interna.
Um dos mecanismos principais do sistema de controle na
escola é a liderança, que M acI ver chamaria de “técnica pes­
soal’’ (°). Este e outros autores consideram sob esta designação
apenas as formas de preeminência pessoal baseada no pres­
tígio, na irradiação insubstituível da personalidade. Entendo
que esta, mais a que se baseia na delegação coletiva, na
faculdade socialmente reconhecida de mandar (autoridade),
constituem os dois aspectos integradores do conceito de lide­
rança. A distinção entre prestígio (pessoal) e autoridade (ins­
titucional) remonta a Sim m e l (67).
No estudo em mira, devemos distinguir dois tipos de
liderança:
a) exercida pelo educador;
b) exercida pelo educando.

a) O Educador é um líder institucional, segundo W aller ,


um líder paternal, segundo G eig er (8). Entendo que a pri­
meira conceituação é mais adequada, visto como a ação
exercida pelo professor independe, para configurar-se, das suas
qualidades de atração pessoal, fundando-se eminentemente na
faculdade socialmente conferida de superimpor aos educandos
um sistema de normas educativas e sociais preestabelecidas.
Ela se funda em três elementos principais: idade, força e po­
sição.
(6) R. M. M acI ver e Charles P age, Society: an Introductory Analysis, R in eh a rt
and Company, Nova York, 1950, p. 146.
(7) Georg Sim m el , Sociologia (trad. cast.), Espasa-Calpe, Buenos Aires, 1939,
vol. I, pp. 138-40.
(8) W íllard W aller , T h e Sociology of Teaching, Jo h n Wiley and Sons, Nova
York, 1932, passim. T h eo d o r G eiger, A tipologia do líder (trad. bras.), São
Paulo, 1942, p. 30.
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DA ESCOLA 121

A autoridade exercida pelo educador depende de fatores


objetivos, pois, mais que dos subjetivos que, interferem como
reforço, mas não como condição da liderança.
Ao penetrar na escola, o educador traz uma série de ca­
racterísticas que concorrem para a formação da autoridade, mas
que vão adquirir significado verdadeiro graças à redefinição
que sofrem na passagem.
Tomemos os três elementos fundamentais da autoridade
do educador: idade, posição e força. A primeira, como sabe­
mos, reveste de significação social que transcende o nível bio­
lógico, e é redefinida dentro da escola em função da posição
ocupada e da possibilidade de exercer coerção. Assim, um
jovem de vinte anos verá as suas atribuições, e as expectativas
em relação à sua idade, reinterpretadas pelos membros do
grupo social escolar, docentes e educandos, e terá de reinter-
pretá-las ele próprio. O simples fato de pertencer — na escola
— a um grupo de idade socialmente considerado portador de
certa soma de experiência cultural, coloca-o acima e à frente
dos alunos, investindo-o da faculdade de coagi-los.
A este, junta-se um elemento mais geral — o status de
professor na comunidade considerada. Embora variável con­
forme tempo e lugar, a autoridade devida a ele implica sempre
considerável ascendência sobre o educando, e é tanto mais
eficiente quanto mais ela for reconhecida nos grupos de ori­
gem do aluno — família, classe, etc.
O exercício da força completa naturalmente o tipo de
dominação magisterial, como a sua manifestação mais tangível,
pois o fato de ter às ordens elementos de repressão e punição
(inclusive física, em certos casos) completa o perfil da sua
autoridade, tornando-a atuante.
A tais elementos pode juntar-se o prestígio — tão neces­
sário ao aspecto .pedagógico e didático das relações educador-
educando. Ele difere da autoridade pelo cunho pessoal, o
requisito intransferível de ascendência individual, que inde­
pende até certo ponto da função social do educador e dos
poderes a ela vinculados. Com efeito, embora os elementos
da autoridade possam contribuir para configurar o prestígio,
ela não lhe é suficiente e nem mesmo necessária. No caso do
educador, o prestígio se forma principalmente pela atitude, a
maneira segundo a qual resolve os problemas oriundos das
suas relações didáticas e sociais com os alunos, equacionan­
122 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

do-os à idade, à posição e à força. Em certos casos, tudo


decorre do magnetismo pessoal, preso aos imponderáveis que
W e b e r estudou, refundindo sociologicamente a velha noção
teológica de carisma.
b) A autoridade do professor define um tipo tacitamente
aceito de controle, em que o prestígio introduz elemento mais
livre, pessoal e imprevisível, não decorrendo necessariamente
do papel como é socialmente definido.» Já a liderança exercida
pelos alunos se baseia principalmente no prestígio, que é,
não elemento, mas condição do seu exercício, e a que vem
eventualmente juntar-se a autoridade conferida, conforme as
escolas, pela idade ou o sexo. Vale dizer que enquanto na
liderança do educádor o elemento institucional envolve e pre­
domina em teoria sobre o elemento pessoal, na liderança de
alunos observa-se o contrário.
Já ficou sugerido antes, que há-nos grupos de imaturos
uma variação de estrutura correlata aos níveis de idade. Nas
idades mais baixas, o tipo de solidariedade define antes bandos
que grupos, e a ação pessoal de controle varia, igualmente,
da ascendência irrefletida e momentânea do meneur à do líder,
organizada e durável (9). O meneur exerce autoridade ocasio­
nal e geralmente limitada a cada ação específica do agrupa­
mento (fuga, assalto ao quintal vizinho, desacato ao bedel,
etc.), deixando de funcionar no intervalo; enquanto o líder
se caracteriza pela duração e a ordenação do mando, bem
como por certa submissão consciente dos liderados.
A liderança de alunos constitui uma das vias principais
de manifestação dos tipos de personalidade, sendo além disso
fator importante de integração grupai, visto como o líder
encarna ou impõe valores ligados à dinâmica da vida social
da escola. A sua conduta sugere aos demais os tipos de
comportamento fundamentais a esta, seja no plano dos agru­
pamentos e das normas oficialmente estabelecidas e sanciona­
dos, seja no plano dos agrupamentos e das normas desen­
(9) A organizaçSo do grupo escolar é ao mesmo tem po autocrática (o m e­
neur), aristocrática (o m eneur tem asseclas), e dem ocrática, este últim o aspecto
se acentuando com a idade dos alunos: H ubert, op. cit., p. 271.
Notemos a propósito desta obra, m erecidam ente m uito divulgada entre nós,
que H ubert sim plifica dem ais o problem a ao reduzir a complicada estru tu ra da
escola ao g rupo (social) escolar, e ao desconhecer, neste, a variação de liderança
que acom panha as variações de organizaçáo. A sua análise acentua devidam ente
o tipo de gregarism o escolar e a em ergência do m eneur, mas desconhece o fenô­
meno p ropriam ente de liderança, tanto do professor quan to dos alunos.
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DA ESCOLA v 123

volvidos à sua margem, ou em oposição a elas. O líder pode


significar um convite ao comportamento institucionalizado,
que reforça a organização administrativa da escola, ou um
convite à rebeldia, que lhe vai de encontro e reforça os grupos
paralelos ou opostos.
Daí a atenção que lhe dá sempre a administração, pro­
curando selecionar líderès de acordo com os seus interesses
e, graças a um sistema de destaque e recompensas, servir-se
deles para os seus desígnios pedagógicos. É antiga a prática
de escolher decuriões, prefeitos, chefes de batalhão, entre os
alunos mais ajustados ao que se poderia chamar a ideologia
oficial da escola, propondo-os ao mesmo tempo como modelos
e como auxiliares da direção e do ensino.

2. Normas de conduta escolar

a) as que regem a conduta do educador;


b) as .que regem a conduta do educando.

a) A conduta do educador se enquadra em determinadas


normas, que correspondem a três ordens diferentes de expec­
tativas: as da comunidade, as do griipo docente e adminis­
trativo, as do educando. Geralmente o sistema de normas a
que atende é resultante das três, definindo em seu conjunto
a conduta imposta ao educador em virtude do papel social que
desempenha.
É sabido que os grupos oferecem aos indivíduos (se for
permitida esta f8rmulação esquemática) certos padrões ideais,
em função dos quais devem ajustar o seu comportamento. No
caso da escola deve-se levar em conta não apenas os valores
gerais da comunidade (probidade, recato sexual, patriotismo,
entre outros), mas os que se originam nela própria. Certo
colégio, de que tive conhecimento, havia desenvolvido uma
tradição de extrema indulgência, facilitando tudo aos alunos,
dentro e fora das normas legais. O professor que nele ingres­
sasse deveria proceder neste sentido, sob pena de inçompa-
tibilizar-se com alunos, colegas e administradores. Não se
tratava propriamente de relaxamento, pois o rendimento não
erá demasiado baixo, e os professores tinham em geral uma
noção adequada dos seus deveres didáticos. Tratava-se real­
124 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

mente de um sistema peculiar de ajustamento, graças ao qual


não havia problemas de disciplina ou conflitos de educadores
e educandos, vivendo os dois grupos numa cordialidade não
raro propícia ao aprendizado.
Há os casos contrários, em que certos estabelecimentos
desenvolvem uma tradição de tal severidade, que os educa­
dores que neles ingressam devem conformar-se a ela, ainda
que violentando o próprio temperamento ou convicções.
Esta realidade se torna muito clara quando se dá o caso
de um educador transgredir o que dele se espera. É o exem­
plo clássico do professor ou chefe de disciplina “camaradas”
em estabelecimento mais ou menos rígido. Aparentemente,
eles deveriam contar com o apoio dos alunos e obter destes
o melhor rendimento — como teoricamente acontece com a
aplicação de indulgência. A experiência mostra, todavia, que,
embora gozando de certa simpatia, se tornam rapidamente
joguetes nas mãos dos educandos, que subvertem por seu in­
termédio todo o arcabouço administrativo que os comprime.
É que o seu comportamento escapa às normas traçadas, no
grupo, para o comportamento do educador.
b) Também o comportamento do aluno se estrutura se­
gundo as três mencionadas ordens de expectativas; e se as
estabelecidas pela comunidade e pela Administração escolar
são importantíssimas, não o são menos as que se desenvolvem
a partir da sua própria sociabilidade.
As breves indicações sobre agrupamentos associativos
devem ter servido para mostrar quanto depende o imaturo
dos grupos a que dá lugar a sua interação. De tal modo que,
se o seu comportamento deve corresponder aos padrões gerais
da comunidade e às normas pedagógicas e administrativas,
deve também ajustar-se ao que dele esperam os demais co­
legas, ou os membros do agrupamento de que faça parte na
escola.
A insubordinação, a desobediência, oficialmente avaliadas
como conduta desorganizada e passível de sanção, podem
exprimir, e na verdade freqüentemente exprimem, a confor­
midade do imaturo com outros padrões, não menos imperiosos
que os inculcados pelo educador. É o “coleguismo”, por
exemplo, a solidariedade de grupo que leva a tudo subordinar
aos interesses deste, e leva não raro a conflitos abertos com
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DA ESCOLA 125

a administração ou os professores. Trata-se aí de ação das


normas grupais, cuja observação é importante para o status
do imaturo em face do consenso dos seus socii, e contribui
para a integração da sua personalidade. A experiência de
cada um mostra que algumas vezes foi muito mais importante,
para o desenvolvimento do nosso senso de solidariedade,
altruísmo, respeito humano e firmeza de caráter, a rebeldia
aberta contra a lei da escola, junto com os nossos companheiros
de greve, transgressão ou o que seja, do que uma conformidade
ideal com os ditames da ética escolar, administrativa e peda­
gogicamente definida.

3. Sanções

Podemos reconhecer na escola três espécies de sanções:

a) administrativas;
b) pedagógicas;
c) grupais.

Enquanto as duas primeiras são preestabelecidas, as


últimas se desenvolvem a partir da interação intra-escolar. As
duas primeiras são sistematizadas, enquanto as últimas são
sistematizadas ou difusas. As três podem reger tanto o com­
portamento dos educadores quanto dos educandos, e podem
ser — para adotarmos a divisão de G urvitch — exclusivas,
corretivas ou prestativas (10). São exclusivas as que excluem
o indivíduo do grupo de modo definitivo (expulsão do colé­
gio) ou transitório (suspensão do aluno); são corretivas as
que agem no sentido de retificar o comportamento desviado
(castigo, reprimenda, reprovação); são prestativas as que im­
põem uma retribuição. (multa, cópia dos erros, submissão ao
professor ofendido).
As sanções administrativas têm por finalidade punir o
comportamento do aluno ou educador que se desvie do que
a Legislação escolar e os regulamentos internos determinam.
É a suspensão do insubordinado, a dispensa do relapso, a
(10) Cf. Georges G urvitch , "Social Control”, em G urvitch e Moore, o f . cit.
126 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

punição do atrasado, á reprovação do que não comparece.


As pedagógicas visam não à conformidade do comportamento
à norma administrativa, mas à aprendizagem. É a suspensão
do desatento, a reprovação do ignorante, a censura do vadio,
o castigo do inaplicado.
A intensidade e a qualidade das sanções variam no tempo
e no espaço; e, numa mesma comunidade, segundo os ideais
educacionais dominantes. A punição corporal, reprovada por
toda a pedagogia moderna, embora ainda discretamente pra­
ticada no curso primário, era há alguns anos reclamada insis­
tentemente por educadores ingleses, como elemento indispen­
sável de ensino. Em certo colégio destinado aos filhos de uma
das colônias estrangeiras da capital de São Paulo, os pais
davam ao diretor ampla liberdade quanto aos castigos físicos,
de uso corrente na sua cultura. Noutro, da mesma cidade,
um professor inglês recém-chegado e pouco afeito aos usos
nacionais, viu-se com surpresa demitido incontinenti, por ter
esbofeteado um adolescente malcriado — o que lhe parecia
admissível dentxo dos padrões de seu país.
Mais interessantes para o sociólogo são, todavia, as san­
ções desenvolvidas dentro do próprio grupo, e mormente as
devidas à interação dos educandos entre si — sanções que
podem dirigir-se ao comportamento de colegas, mas também
ao dg educadores. Exercidas entre alunos, funcionam como
expressão da sua vida grupai e reforço das suas normas, nem
sempre reconhecidas, ou mesmo conhecidas pela Administra­
ção; exercidas sobre educadores, funcionam como resistência
à ordenação mais ou menos rígida imposta pelo adulto.
Tanto umas quanto outras podem ir da vigilância à elimi­
nação, — passando pela restrição, o ridículo, o boicote, a
exclusão. Veja-se o caso do furador de greves, cuja vida pode
ficar intolerável devido às represálias; o do interno pouco
generoso, que não partilha os doces recebidos de casa e se vê
de repente alvo dos assaltos ocultos de uma quadrilha orga­
nizada secretamente para roubar-lhos todos, sistematicamente;
o do menino de fala, maneiras, roupas excêntricas, chacoteado
até ajustar-se aos padrões correntes ou marginalizar-se de todo.
Ó menino diferente dos outros, pela religião, a língua, a
classe, ou a sensibilidade, sofre com freqüência a ação destas
pressões estabilizadoras do grupo, que reage contra o que
ameace a sua integridade.
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DA ESCOLA 127

O mesmo ocorre em relação ao professor diferente, que


pode sofrer as mais variadas restrições — sendo vasta a galeria
daqueles para os quais o magistério se torna verdadeiro
martírio.

4. Símbolos

Mencionemos apenas o papel dos valores simbólicos, das


cerimônias, dos símbolos materiais, como força ponderável de
manutenção dos agrupamentos intra-escolares e da escola na
sua totalidade. Bandeiras e flâmulas de grêmios e clubes es­
portivos, fardas, medalhas, diplomas, colações de grau, festas,
distintivos, sinais cabalísticos de associações secretas.
A importância do sistema simbólico de uma escola, inclu­
sive a sua tradição, se manifesta nitidamente no conjunto de
sanções impostas aos neófitos — os calouros — sujeitos em
todas as partes do mundo a provações que vão da simples
caçoada de meninos às práticas brutais e deprimentes das esco­
las superiores. O grupo, cônscio do seu significado, reforça
a solidariedade entre os próprios membros pelo tributo cobra­
do aos que nele ingressam.

III. Conclusão:

O estudo sociológico da escola foi desenvolvido, na Socio­


logia da Educação, por Willard W aller, cujo livro The
Sociology of Teaching (1932), pouco. divulgado entre nós, é
das contribuições mais importantes a esta disciplina. W aller
mostrou claramente — embora nem sempre com o desejável
rigor sistemático — a existência do que chamou “the separate
culture of the school”, a cultura própria à escola. O presente
resumo procurou sugerir de modo voluntariamente esquemá­
tico a existência, na escola, de uma estrutura social distinta,
cuja análise pode ser feita segundo um roteiro teórico do
tipo que ficou sugerido, e pode ser mobilizado na pesquisa
mediante o ajustamento das técnicas correntes de Sociologia.
Procurou ainda' mostrar que tal análise é importante para o
educador, fornecendo-lhe elementos para uma revisão das ati­
tudes geralmente assumidas em face da educação escolar.
128 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

De fato, parece certo dizer que toda ação educacional


consciente fica prejudicada, dentro da escola, se ele não com­
preender a força de sociabilidade que organiza os imaturos,
segundo critérios tão diversos, e tão diferentes dos que a
administração e o ensino prevêem. O ajustamento adequado
entre as duas correntes de sociabilidade, referidas no princípio
deste estudo, é condição de uma Pedagogia humana e racio­
nal, que abandone o tateio ou o esquematismo, em busca de
uma integração harmoniosa. Esta depende estreitamente dos
sistemas de normas, valores e sanções desenvolvidos pela inte­
ração dos educandos e exprimindo a composição do seu equi­
líbrio em face de uma superimposição nem sempre norteada
pelo conhecimento cabal da realidade escolar.
É claro que não basta ao educador o conhecimento da
estrutura interna da escola, pois ele deve estar igualmente a
par da integração desta na estrutura geral da sociedade, em
que funciona como fator preponderante de controle social.
O nosso estudo deveria completar-se por esta análise que
G urvitch chamaria macrossociológica, e que realmente faço
nos cursos regulares. Ela esclareceria melhor a própria vida
interna da escola, pois, como ficou sugerido em mais dum
passo, esta reelabora, segundo a sua dinâmica interna, as
normas, valores, práticas comunitárias, dando-lhes uma colo­
ração nova, mas nem por isso alheia ao encadeamento geral
da sociedade [ ....] .
4

O SUBGRUPO DE ENSINO (*)

Karl M a n n h e im e W. A. C. Ste w art

Na E u r o p a O c i d e n t a l as escolas têm localização, edifícios,


certa aparência nítida e permanência e, dêste ponto de vista
material, são locais característicos, marcos conhecidos de pronto
e conhecidos como exemplos de construções semelhantes no
condado e no país — na verdade, como um signo de tais
construções em todas as demais regiões. Todavia — apesar de
darmos por estabelecido que as escolas devem ter localização,
edifícios e equipamento — na Austrália, Nova Zelândia, Ca­
nadá e outros lugares há “escolas pelo rádio”, nas quais as
crianças estudam em suas próprias casas, formando grupos
cujos membros se acham separados entre si talvez por centenas
de milhas, e que, não obstante, constituem ainda, em certo
sentido, uma classe escolar seguindo um programa comum.
Em regiões onde a topografia é difícil e grandes as distâncias,
as êscolas-internatos apresentam-se, evidentemente, como uma
solução. Mas os recursos da “escola pelo rádio” e as possibi­
lidades da “escola pela televisão” forçam-nos a reconsiderar
o que seja uma escola.
A escola contém uma população selecionada. Neste país
[Inglaterra], deixando de lado os jardins de infância, as prin­
cipais pessoas encontradas nas escolas são crianças e adoles­
centes de cinco a dezoito anos. Há uma proporção muito
menor de adultos, e estes ocupam posições de maior ou menor
autoridade em relação às crianças: tome-se, por exemplo, a
posição do diretor e dos zeladores de uma escola. Todas as
crianças normais têm que receber, durante o dia todo, edu­
cação de algum tipo. É-lhes imposta, por lei, uma obrigação,
e a educação durante o dia inteiro significa-lhes uma ocupação
para a maior parte do dia, estendendo-se pela maior parte

(* ) K arl M annheim e W. A. C. Stewart , A n Introduction to the Sociology


of E ducation, R outledge Sc Kegan Paul, Londres, 1962, pp. 134-42. T raduçS o de
M aria Cecília F. Donnangelo.
5

OS SISTEMAS ESCOLARES (*)


Fernando de A zevedo

A sociedade [ . . . . ] não apresenta, ainda entre os primitivos,


uma estrutura homogênea, e, em conseqüência, mesmo em
sociedades do tipo arcaico, já se esboça uma educação orga­
nizada que tende a desenvolver-se à medida que, sob a pressão
das formas sociais e de suas variações em volume e densi­
dade, faz progressos a divisão do trabalho. É, de fato, nas
sociedades que atingiram determinado nível de cultura e em
que se produziram divisões de trabalho profissional e cientí­
fico, que tomam impulso e relevo e tendem a crescer em
número as instituições pedagógicas. Mas só muito lentamente
se vão “agregando" as instituições escolares de diversos graus
para constituírem, pela sua coordenação e subordinação num
conjunto, verdadeiros "sistemas” que, supondo sempre grupos
muito largos de unidades heterogêneas, organizadas e centra­
lizadas, começam geralmente a formar-se “de cima para
baixo” (1), acompanhando a evolução social das formas aristo­
cráticas para as formas igualitárias. Podemos, pois, dizer de
modo geral, com B ouglé, que “um sistema pedagógico é o
conjunto das instituições por meio das quais uma sociedade
procura conscientemente e, principalmente, pela palavra, for­
mar as idéias, os sentimentos e os hábitos de seus membros
ainda jovens". Todo sistema pedagógico a rigor implica, já *(I)
(*) Fernando de A zevedo, Sociologia educacional: Introdução ao estudo dos
fenôm enos educacionais e de suas relações com os outros fenóm enos sociais,
2.a edição, Edições M elhoram entos, São Paulo, 1951, pp. 179-84 e 217-21.
( I) É fácil com preender porque os sistemas pedagógicos começam a o rgani­
zar-se laboriosam ente “de cima para baixo”, das escolas superiores para as secun­
d árias e destas para as p rim árias, que som ente do século X IX em dian te tom aram
m aior desenvolvimento. Este fato é registrado na lenta elaboração de todos os
sistemas escolares, nas civilizações antigas, na Idade M édia e nos povos m odernos,
e tem como causas: a) an terio rid ad e das form as aristocráticas sobre as dem ocrá­
ticas; a educação organizada para as classes ou cam adas superiores só se desen­
volve para baixo e em extensão sob a pressão das tendências e dos ideais
democráticos; b) a participação de todas as forças e instituições sociais no
“ processo de integ ração “ a q u e correspondem , nos sistemas pedagógicos, as escolas
de ensino elem entar (p rim árias) e, até certo ponto, as de ensino médio (ginásios,
colégios), en q u an to a “ diferenciação” ou especialização, profissional e científica, é,
pela sua própria natureza, obra de grupos e de poucos; c) o progresso científico
e a divisão do trab alh o : a “ especialização” que, devido ao pequeno volum e de
conhecim entos, se fazia sentir na esfera superior, som ente mais tarde ganhou o
ensino de grau m édio c o ensino elem entar, transferindo tam bém para professores
e meios especiais (escolas) o ensino geral ou com um , qu e passou a te r im portância
capital.
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DA ESCOLA 139

sc vê, uma pluralidade de “organizações”, públicas e parti­


culares, um conjunto mais ou menos complexo de unidades
escolares, de natureza e níveis diferentes, superpostas, hierar­
quizadas e ligadas entre si por suas relações de coordenação
e subordinação, e, portanto, por uma unidade de espírito (es­
truturas organizadas à base de colaboração) e, mesmo em certos
casos, como nos regimes unipartidários ou totalitários, por
uma unidade de direção (estruturas organizadas à base de
dominação) (2). Essas superestruturas organizadas (sistemas
educacionais) que pressupõem, nas sociedades, certo grau de
complexidade e nível de cultura, indispensável à sua estrati­
ficação e ao seu desenvolvimento, estão sempre se formando
sem nunca se formarem de todo, e apresentam, conforme a
sua organização e segundo as condições sociais e históricas,
maior consistência ou mobilidade e maior ou menor acessi­
bilidade às influências de sua infra-estrutura espontânea. Elas
podem, como quaisquer outras superestruturas, “ora ser pro­
fundamente enraizadas na vida social espontânea subjacente
e registrar-lhe todas as oscilações, ora destacar-se cada vez mais
dela e fechar-se à sua influência e ao seu movimento”.
Mas, se os sistemas escolares correspondem às formas
mais evoluídas da sociedade (a Gesellschajt), eles trazem
sempre, na sua estrutura, a marca das diferentes formas sociais,
e, portanto, da densidade das sociedades, de sua heteroge­
neidade, do grau ou da qualidade de sua organização. E se,
de modo geral, “por toda a parte em que são dadas certas for­
mas sociais, as diferentes atividades que se realizam através
delas se acham modificadas em conseqüência”, os sistemas edu­
cacionais, como os econômicos, jurídicos, políticos, variam
também em função das formas de sociedade, pelas quais se
modelam e com que mantêm relações constantes (3). Não é
(2) Segundo a distinção clássica de G ierke a vida social pode organizar-se
segundo o princípio da dom inação (Herrschaft) e o de colaboração (Genossenschaft):
ela é organizada: a) à base de dom inação quando nenhum a g aran tia é prevista
para que ela possa ser penetrada pela vida social espontânea a que se sobrepõe
e, neste caso, a transcendência em relação à infra-estrutura espontânea atinge
o m áxim o: b) à base de colaboração quando comporta todas as garantias possí­
veis de penetração pela vida social subjacente, e, neste caso, abaixa ao m ínim o
aquela transcendência.
(3) A firm ar que os sistemas escolares correspondem a determ inadas formas
de sociedade,, isto é, às form as evoluídas, é apenas constatar um fato social e
não im plica, de form a algum a, a idéia de que representam um “ processo m oral’’
em si mesmos. Para T õnnies, q u e prefere a com unidade (G em einschaft) à
sociedade ( Gesellschajt), a evolução social aparece antes como um a “ regressão
m oral” ; e, para Scheler que, recusando considerar as form as sociais como etapas
históricas do desenvolvimento, afirm a, ao contrário, qu e elas são coexistentes, a
140 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

possível, pois, compreender urn “sistema pedagógico” senão


à luz e em lace do conjunto do sistema social em que teve
origem e desenvolvimento, e em cujas formas de estrutura e
transformações operadas no processo de sua evolução se
devem buscar os caracteres constitutivos e as causas deter­
minantes de um sistema dado. Cada sociedade considerada
em momento determinado de seu desenvolvimento, expõe
D u r k h e i m , “ possui nm sistema de educação que se impõe
aos indivíduos de modo geralmente irresistível. É uma ilusão
acreditar que podemos educar nossos filhos como queremos.
Há costumes com que somos obrigados a nos conformar; se
os desrespeitarmos muito gravemente, eles se vingarão em
nossos filhos. Estes, uma vez adultos, não estarão em estado
de viver no meio de seus contemporâneos, com os quais não
encontrarão harmonia. Que eles tenham sido educados se­
gundo idéias passadistas ou futuristas, não importa; num caso
como noutro, não são de seu tempo e, por consequência, não
estarão nas condições de vida normal. Há, pois, a cada mo­
mento, um tipo regulador de educação, do qual não nos
podemos separar, sem vivas resistências que restringem as
veleidades dos dissidentes”. Não há ninguém, pois, acrescenta
D u r k h e i m mais adiante, “que possa fazer com que uma socie­
dade tenha, num momento dado, outro sistema de educação
senão aquele que está implicado em sua estrutura; da mesma
forma que é impossível a um organismo vivo ter outros órgãos
e outras funções senão os que estejam implicados em sua
constituição”.
Os sistemas educativos, que são função do sistema social
geral cie que fazem parte, não podem, pois, ser compreen­
didos (piando os destacamos do conjunto das instituições de
cada povo. Tudo, efetivamente, se liga na vida social e nada
se compreende senão em relação ao todo. Mas, como a socie­
dade é um resultado de processos de integração e de diferen­
ciação, que têm por base as semelhanças dos indivíduos e
grupos que a compõem, e as dissemelhanças complementares,
os sistemas educativos trazem, na sua estrutura, mais ou menos
rica e complexa, organizações fundamentais destinadas à uni­
ficação e à diversificação. Em toda e qualquer sociedade, a
“ personalidade coletiva com plexa” é o ápice da hierarq u ia das form as sociais, a
encarnação dos rnais altos valores. O ra, como observa G URv itc h , “estabelecendo
um a h ierarquia das form as sociais segundo um a táb u a de valores, não som ente se
m isturam juízos de valor e juízos de realidade, mas se pressupõe uma estabilidade
e um monismo da escala dos valores” (Essais de sociologie, Recueil Sirey, Paris),
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DA ESCOLA 141

coesão social é fundada não só sobre “certa conformidade de


todas as consciências particulares a um tipo comum” (solida­
riedade mecânica ou por semelhança), como sobre a diferen­
ciação de indivíduos e grupos que se completam reciproca­
mente, dando lugar a outro tipo de solidariedade a que
D urkheim chamou “orgânica ou por dissemelhança”. Esses
dois processos, sucessivos e alternativos, coexistem em todos
os grupos; e, se nas sociedades primitivas, em que os indiví­
duos se acham fortemente integrados no grupo e se constata
o mais alto grau de conformismo social, se distinguem nitida­
mente, e às vezes com uma complexidade extrema, a divisão
do trabalho por sexos, por idades e especialização por classes
hereditárias, nas sociedades modernas que parecem ter atin­
gido um maximum de divisão do trabalho por grupos profis­
sionais há um mínimo de semelhança comum que permanece
como condição especial de sua própria existência. Ora, se a
educação tem por fim assegurar a perpetuação de uma dada
sociedade, seja ela qual for, deve, por isto mesmo, realizar
entre os seus membios certa homogeneização (preparação para
o meio social geral) e diferenciá-los em seguida (preparação
para os meios sociais especiais). É que a sociedade, à medida
que se complica, precisa, para manter e perpetuar a sua uni­
dade, da diversificação de funções à base de um ideal comum:
ela uniformiza e diferencia, mas, especializando, coordena, com­
pleta e harmoniza, de modo que, a par das semelhanças essen­
ciais, reclamadas pela vida coletiva, se assegure a persistência
dessas diversidades imposta pela divisão do trabalho social, que
é uma das causas mais ativas da diferenciação dos grupos.
Assim, se tomarmos para análise qualquer dos sistemas
escolares modernos, verificaremos que a sua estrutura, seme­
lhante a “uma pirâmide que o indivíduo percorre da base ao
ápice”, é constituída por uma infra-estrutura de educação
comum (ensino elementar e médio, este, ao menos até certo
nível) sobre a qual se edifica uma superestrutura de educa­
ções múltiplas (escolas superiores e Universidades), em que
há uma preponderância absoluta de especialização. Essas duas
estruturas superpostas, nos sistemas ,pedagógicos, correspon­
dem à dupla exigência da sociedade que, tendo por base da
sua unidade social um mínimo de semelhança dos indivíduos,
grupos e subgrupos que a compõem, tomam como ponto de
partida a homogeneização dos indivíduos (cultura geral,
comum) para as “diversificações” ulteriores, nas escolas espe­
142 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

cializadas. Os sistemas escolares em cuja organização se


refletem os interesses das classes dominantes e as diversas
camadas e modalidades sociais, político-econômicas, de cada
sociedade, tendem, pois, a tornar-se sistemas cada vez mais
complexos (pluralismo vertical e pluralismo horizontal) para
se porem em relação com as diferenciações múltiplas que
impõe a divisão do trabalho social em uma sociedade deter­
minada. Mas, se na educação organizada se encontram “esses
dois, subprocessos da unidade social (integração e diferen­
ciação), combinados em proporções diferentes, segundo o grau
do ensino que vai da unidade à multiplicidade do conheci­
mento”, essas combinações de integração e de diferenciação
se produzem e se exprimem, nos sistemas, em níveis diferen­
tes. Suponhamos que se fizesse um corte vertical de alto a
baixo, em um sistema escolar moderno: encontraríamos três
grandes seções ou camadas superpostas nas estruturas do sis­
tema pedagógico, uma das quais, na base, constituída pelo
conjunto das escolas elementares, destinadas a dar uma edu­
cação comum ou a “estandardizar” os espíritos; a outra seção,
formada pelas escolas do ensino médio (ginásios, colégios) em
que persiste de maneira mais ou menos acentuada essa ten­
dência à homogeneidade, até certo nível (desenvolver e apro­
fundar a cultura geral comum e preparar para as especializações
futuras), e a última, no ápice, composta das universidades cujo
ensino consiste na formação para as profissões intelectuais
(especialização profissional e técnica, superior) e na preparação
de futuros investigadores, nos diversos domínios das atividades
científicas (especialização científica). Na zona fronteiriça entre
as duas seções do ensino elementar e médio acham-se as
escolas de especialização técnica (artes e ofícios), que man­
tendo-se ao nível do ensino elementar ou elevandò-se ao do
ensino médio (ensino médio técnico, profissional e artístico),
se grupam em seções diferentes e nitidamente distintas, segundo
os ofícios e as atividades manuais e mecânicas (4).
À base dos sistemas escolares reside sempre, como se vê,
uma educação comum, variável, na duração e homogeneidade,
(4 ) A superposição hierarquizada de escolas, conform e os graus de ensino
q u e correspondem mais ou m enos às três etapas do crescim ento hum ano (infância,
adolescência, mocidade) ou à sucessão cronológica das idades, que vão dos Jardins
de Infância aos Institutos Superiores e Universidades, constitui a estrutura vertical
do sistema. Mas, em cada um a das seç&es, distribuem -se, no mesmo nível, escolas
ou cursos de espécies diferentes, ainda que do mesmo grau. É o que se poderia
ch am ar estrutura horizontal do sistema.
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DA ESCOLA 143

conforme cada tipo definido de sociedade e as condições de


tempo e de lugar, e destinada a estabelecer todas essas seme­
lhanças essenciais que são a condição da coesão social; e, ao
nível dessa educação comum fundamental e sobreposta a ela,
uma série de educações especiais (escolas de especialização
técnica) correspondentes à divisão do trabalho que consiste
na especialização por grupos e conduz à constituição dos
ofícios e profissões. Mas, nesses sistemas educativos, consti­
tuídos de uma pluralidade de organizações, superpostas e
irredutíveis umas às outras, nas três camadas do plano ver­
tical, a matéria social da educação não se repartiu entre elas
segundo um modelo ou plano racional: como as suas fron­
teiras recíprocas são determinadas sob a influência de causas
as mais contingentes, resultaram daí confusões e distinções,
tão irracionais umas como as outras, mas ligadas às formas
de organização social atuais ou já desaparecidas (5). A espe­
cialização técnica e profissional ora é ministrada nas corpo­
rações (na Idade Média), ora nos sistemas escolares públicos,
como entre nós, ora distribuída, em partes variáveis, pelas
escolas superiores e pelas ordens ou sindicatos profissionais,
como na Inglaterra e outros países, em que a formação pro­
fissional de advogados, por exemplo, iniciada nas Universi­
dades, é completada pela prática forense controlada pela
ordem dos advogados à qual cabe expedir diplomas ou licen­
ças para o exercício da profissão. Em conseqüência da desor­
ganização das corporações do regime feudal, pela maquino-
fatura e pelo desenvolvimento da civilização industrial, o
ensino técnico e profissional (artes e ofícios) que desgarrou da
órbita do sistema corporativo, desmantelado, veio cravar-se nos
flancos dos sistemas escolares públicos, de que tende nova­
(5) A "'distinção de classe” , estabelecida entre escolas prim árias e secun­
dárias, segundo a situação econôm ica; a variedade de categorias escolares de
ensino m édio, fixas, distintas um a das outras e coexistentes no sistem a, como na
A lem anha, antes da reform a escolar do I I I R eich, com seus q u a tro tipos d e esco­
las secundárias; a éxistência de escolas (com o, por exem plo, nas escolas norm ais
de São P au lo , até a reform a de 1933) q u e constituíam verdadeiras “ organizações
fechadas” enquistadas, sem aberturas p ara a circulação de estudantes, dessas
escolas p ara ou tras no mesmo nível ou em nível superior; a divisão, social e
econômica, de sistemas escolares em dois com partim entos quase estanques e inco­
municáveis, como dois sistemas sobrepostos, um p ara a educação po p u lar cons­
titu íd o de ensino prim ário e profissional, de artes e ofícios, e o utro, o ensino
secundário e superior para form ação de elites, em correspondência a duas classes
sociais d istin tàs —, são outros tantos exem plos dessas “ confusões e distinções tão
irracionais um as como o u tras”, m as explicáveis pelo processo de evolução e pelas
form as de estru tu ra social em que tiveram origem , a que correspondem ou a que
sobrevivem (sobrevivências sociais).
144 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

mente a desprender-se para ser repartido entre as escolas


(ensino técnico) e as fábricas (aprendizagem profissional). É
essa a tendência atual, já adotada, em parte, na Bélgica e na
Suíça, em que a educação técnica (de artes e ofícios) é mi­
nistrada mediante entendimento e colaboração entre o governo
e as indústrias que, pela variedade crescente de seus tipos e espe­
cialidades, pela riqueza de suas organizações e pelo aparelha-
mento técnico e material (instrumentos, máquinas, etc.), torna
cada vez mais difícil ao Estado ministrar, em suas escolas defi­
cientes e forçosamente mal equipadas, uma formação técnica de
acordo com as exigências múltiplas das indústrias modernas(6).
A complexidade dos sistemas escolares decorre, pois, da
complexidade das sociedades modernas que, aumentando ex­
traordinariamente em volume e densidade, se dividiram numa
grande variedade de grupos e subgrupos, com suas ocupa­
ções e necessidades particulares. Essa complexidade crescente,
resultante em grande parte da especialização do trabalho
social; o desenvolvimento que adquiriram os sistemas no
sentido vertical e que tende a aumentar, em extensão, sob
a pressão dos ideais democráticos (de massa) e das exigên­
cias culturais, e a sua mobilidade, determinada, sobretudo em
países novos, pelas constantes reformas de adaptação às novas
condições de vida social, não só caracterizam os sistemas es­
colares, mas explicam o esforço desenvolvido por toda parte,
pelo Estado, a fim de lhes manter a coerência e a unidade
interna, constantemente ameaçada por essas forças de desa­
gregação. Mas essas superestruturas educacionais, como aliás
as demais estruturas da vida social, organizadas, hierarquiza­
das, centralizadas segundo planos ou modelos refletidos, não
podem aspirar a exercer exclusivamcnte a função educacional:
em torno dessas superestruturas, por mais completas e efi­
cientes que sejam, se desenvolve, com todas as suas pressões
e influências, a vida social espontânea, que lhes fica sempre
subjacente e nunca se exprime inteiramente nelas. Ainda re-
(6) É im possível alongar-nos no estudo de cada um dêsses problem as sem pre
tão atraentes e às vezes tão discutidos q u e põem ao investigador a form ação c a
evolução dos sistemas educacionais. Mas o que já dissemos é suficiente para lhes
assinalar a im portância e o interesse sociológico. Assistimos, na civilização a tu a l,
à constituição de sindicatos que nos seus pontos m ais im portantes (contratos cole­
tivos, lim itação das horas de trabalho, fecham ento obrigatório dos estabelecim entos
comerciais e in d u striais, etc.) não passam de um regresso à velha organização
corporativa, aos antigos “ corpos de ofícios” . Ao retornarem à vida sob diversas
formas e da ' m aneira mais inesperada, as antigas corporações, a aprendizagem
técnico-profissional tende a desprender-se dos sistem as oficiais de ensino, para
fixar-se novam ente no seio dos grupos profissionais reorganizados.
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DA ESCOLA 145

centeinente, H a u r i o u , aproveitando as sugestões de B e r g s o n


no Le Rire, precisou, lembra G u r v i t c h , o s diferentes graus
de penetração e de tensão entre o patamar organizado (sis­
temas, estruturas) e o “espontâneo” da realidade social, e
demonstrou em particular, por suas análises, que as superes­
truturas organizadas da vida social não podiam ser caracteriza­
das como o “mecânico aplicado ao vivo”, pois as organizações
possuem sua vida própria e são penetradas, em diferentes
graus, pelas camadas espontâneas, mais profundas e imediatas,
da realidade social
A extensão e o desenvolvimento dos sistemas educacionais
nos tempos modernos e principalmente nestes últimos 50 anos,
foram tais e de tamanho vulto que D e w e y , referindo-se ao
sistema escolar norte-americano, exclamava recentemente que
“em vão se buscaria fato semelhante na história do mundo
e pela primeira vez inscrevem seus anais, não como um mero
ideal planejado no papel, senão como realidade viva, a pro­
messa da educação universal”. Nesse sistema escolar, em cujos
extremos se defrontam os jardins de infância e os cursos para
a educação dos pais, as escolas elementares e as Universidades,
e no interior do qual se multiplicaram as escolas primárias,
as high schools ou colégios, as escolas técnicas e profissionais
e escolas especiais de vários tipos (para subnormais, surdos
e mudos, cegos, etc.), observa-se, ao lado desse extraordinário
enriquecimento interno, e paralelamente a ele, a tendência a
projetar, fora da escola, o seu raio de ação por uma série
de associações complementares, ligadas às instituições propria­
mente educativas. Se é certo que poucos países, ainda entre
os mais altamente evoluídos, como a França, a Inglaterra e
a Alemanha, apresentarão a riqueza e a complexidade desse
formidável aparelhamento educacional (7), não é menos ver­
dade que o aumento da população escolar e o crescimento
e a complicação de estrutura constituem, de modo geral, uma
das particularidades características dos sistemas educativos mo-
(7) P ara que se tenha um a idéia do desenvolvimento dos sistemas educativos
m odernos, bastará refletir sobre os seguintes dados estatísticos, de 1932, refe­
rentes ao sistema escolar norte-am ericano, certam ente um dos m ais im portantes e
complexos. A população escolar to tal era calcülada em 30 m ilhões, — “ tantos”,
observava Jo h n D ewey em um a conferência irradiada a 25 de o utubro de 1932,
“ como os que constituíam a população total deste país em tem po presente à m em ó­
ria dos velhos” — e dos dois terços (20 milhões) estavam nas escolas elem en­
tares, cerca de 6 m ilhões, nos colégios e nos estabelecim entos de ensino técnico
e profissional, e 4 m ilhões de jovens de um e o u tro sexo, nas escolas superiores.
As escolas norm ais e as classes preparatórias de professores recrutavam para o
serviço fu tu ro m ais de 250 m il jovens. T o d o esse “considerável exército” era
146 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

dernos. Um confronto das estatísticas relativas aos sistemas


escolares de qualquer dos povos europeus ou americanos não
deixaria dúvidas sobre esse fato do extraordinário desenvol­
vimento que adquiriram os serviços públicos e particulares de
educação. É fácil, pois, compreender que essa expansão quan­
titativa e a complexidade crescente dos serviços de ensino não
podiam deixar de estabelecer os mais graves problemas de
organização e, entre estes, em primeiro plano, os de direção
e de controle técnico, os de coordenação e de orientação, com
a solução dos quais se procura estabelecer uma unidade de
espírito na variedade de instituições e uma síntese das diversas
influências (escolares e extra-escolares), freqüentemente diver­
gentes, exercidas sobre as novas gerações.
Em todos os países, e mesmo nas sociedades de ordem
democrática em que predomina um regime de liberdade de
organização e de ensino, já se realizam esforços no sentido de
dominar do alto esses conjuntos escolares extremamente com­
plexos, ê de entrar mais Ou menos resolutamente no caminho
da “concentração” da obra educacional, disseminada pela
variedade e pelo número de instituições públicas e particula­
res de ensino. Na América do Norte, por exemplo, em que
o grande número de escolas particulares e a administração
municipal das escolas públicas conduziram a uma acentuada
diversidade de método e a sérias desigualdades entre os
estabelecimentos e, portanto, “a uma primazia para as inven­
ções e experiências novas com o perigo de certo caos e con­
fusão”, já se têm feito vários ensaios no sentido de passar
desse regime de descentralização, levado ao extremo, para um
regime de centralização, compatível com o sistema político
federativo. É esse regime, no entanto, predominante nos paí­
ses anglo-saxônicos em que quase todo o ensino superior e,
por larga parte, o ensino secundário ficam assegurados por
organismos privados ou exteriores ao Estado. Certamente, nos
países totalitários, como a Rússia e, nos governos de Hitler
e Mussolini, a Alemanha e a Itália, por força do regime polí­
tico de um despotismo avassalador, a educação, como a econo­
mia tende decididamente à centralização autoritária” (8), aos
dirigido por ura corpo de cerca de um m ilhão de funcionários e mestres. A
dotação financeira, proveniente de impostos e de verbas criadas pela beneficên­
cia popular, responde à grandeza da obra; três bilhões de dólares, ou seja, cerca
de 51 milhões d e contos, em nossa moeda.
(8) Em sua o b ra, que classifica de ensaio histórico e d o u trin ário , A.
D esqueyríVT m ostra, a propósito da idéia do “ d ireito institucional’', qu e os corpos
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DA ESCOLA 147

planos e à subordinação dos interesses e das instituições pri­


vadas ao Estado. Mas não se pode contestar que as sociedades
modernas, democráticas ou não-democráticas, são levadas, pela
força das coisas, a construir edifícios simétricos, tornando, em
umas e outras, fortemente hierarquizada a organização do
ensino, já pelo fato de que as evoluções sociais são “condi­
cionadas pelo desenvolvimento da técnica moderna que sem­
pre transforma o Estado e as suas relações com o público
e as instituições’’, já porque a extensão e complexidade dos
serviços de ensino e os problemas decorrentes de organização,
orientação e controle técnico exigem uma sólida armadura que
permita realizar uma “convergência de esforços” no sentido
de determinada política de educação. Ainda no Brasil em
que o regime de descentralização, estabelecido na república
(1889-1930), favoreceu uma dualidade de sistema de ensino
secundário e superior, mantido ou fiscalizado pela União, e os
diferentes sistemas estaduais constituídos das escolas primárias e
escolas técnicas e profissionais, com instituições e leis próprias,
— a tendência à unificação e à centralização se veio desenvol­
vendo desde 1930, para se tomar fortemente marcada a partir
de 10 de novembro de 1937, com o novo golpe de Estado.
Se examinarmos comparativamente os sistemas escolares,
modernos, num grande número de países, verificamos que há
certas formas e certos princípios de organização quase cons­
tantes nos mais diversos sistemas educativos. Todos apresen­
tam, de fato, em conformidade com as duas necessidades fun­
damentais da sociedade, — assimilação e diferenciação, duas
estruturas hierarquicamente organizadas: a) uma infra-estru­
tura de ensino comum, constituída das escolas primárias e,
até certo nível, das escolas secundárias, que são destinadas
respectivamente a ministrar o ensino geral ou comum e a
elevar ao mais alto nível, para as camadas selecionadas da
população escolar, a cultura geral, sem nenhuma finalidade
profissional; b) e uma superestrutura de especializações pro­
fissionais, sobrepostas à escola primária e ao nível das escolas
secundárias (escolas técnico-profissionais) ou superpostas a
constituídos n o .in te rio r do E stado dão lugar a um “direito vertical au to ritá rio ”
e não se deixam reduzir ao “direito horizontal ig u alitário ” . P ara ele, como aliás
para H auriou , a instituição é um fenômeno social no seio da qual se produz
d ireito , fenômeno social, e o fenôm eno da instituição estatal é “ essencialmente o
mesmo que o direito, fenôm eno social de um a instituição corporativa q ualquer”
(A. D esqueyrat, V in s titu tio n , le droit objectif et la tecnique positive, Sirey,
P aris, 1934).
148 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

estas, neste caso, os sistemas universitários. A preparação para


a utilização das técnicas e as especializações em vista de um
ofício ou de uma profissão constituem essa superestrutura à
qual, em todos os sistemas, fica subjacente a preparação às
assimilações, necessárias elas próprias à vida social. Uma edu­
cação universal não é somente aquela que ministra uma cultura
geral comum e põe ao alcance de todos as suas vantagens,
senão também, como observa justamente D ewey , “a que sa­
tisfaz à imensa variedade das exigências sociais e das necessi­
dades e aptidões individuais”. Nesses sistemas educativos, em
que, por essa* forma, as sociedades assimilam ou uniformizam
para diversificarem, em seguida, em especializações as mais
variadas, e, estabelecendo o que há de “genérico” nos inte­
resses do grupo total ou da nação, atendem à variedade das
necessidades “específicas” dos grupos e dos habitat, verifica-se
ainda certo número de princípios comuns de organização admi­
nistrativa, tais como: a gratuidade e a obrigatoriedade no curso
dos primeiros anos de ensino; a divisão do ensino em diferentes
ordens, segundo a idade dos alunos e os cursos prosseguidos
(ensino primário, médio ou secundário geral, profissional e
técnico, e superior), a gratuidade do sistema de subvenções e
de bolsas no curso das escolaridades secundária e superior; pre­
paração profissional dos professores» e a colação de graus, pelo
Estado, nos diversos institutos. Mas essa semelhança de estru­
tura interna e de princípios fundamentais de organização não
deve fazer esquecer a extrema diversidade de formas que reves­
tem os sistemas educativos “a variedade de soluções que tra­
zem os Estados às questões de princípios que lhes são postas”.
A maior parte dos problemas fundamentais de organiza­
ção prendem-se à necessidade que se manifesta por toda parte
de uma melhor adaptação da escola às novas exigências sociais,
variáveis de um povo para outro e às necessidades e condições
comuns do mundo moderno. Para a solução racional desses
problemas é preciso preliminàrmente examinar a questão em
que ainda nãp se deteve suficientemente a atenção dos soció­
logos e que é “a distinção entre os hábitos e as tendências
gerais da humanidade e as aptidões e as tendências específicas
tais quais são constituídas pelas diversas culturas” — distinção
impossível de se estabelecer com clareza senão mediante o
estudo, pelo método comparativo, das relações do homem com
o mundo orgânico e inorgânico, das relações dos homens entre
si e daquilo que Franz B oas chama “relações condicionadas
O ESTUDO SOCIOLÓGICO DA ESCOLA 149

subjetivamente”, isto é, a atitude do indivíduo diante das pos­


sibilidades que lhe abre ou das necessidades que lhe impõe
a cultura da sociedade em que vive. As constantes trans­
formações intrínsecas e extrínsecas dos sistemas educativos
mostram à evidência não só as modificações de estrutura ou
morfológicas que se têm operado no sistema social mas a gra­
vidade da crise desse estado atual de transição, proveniente
do fato de que, não correspondendo mais às necessidades da
vida atual certo número de concepções ideológicas e morais*
foram elas pouco a pouco abandonadas e não foram ainda
substituídas por outros valores universalmente reconhecidos.
Certamente a intervenção do Estado com que, nos regimes
totalitários, se deslocou o centro de gravidade do sistema edu­
cativo para o sistema escolar público, permite estabelecer ra­
pidamente uma unidade fundamental de espírito e de estru­
tura, soldando, num bloco maciço, a variedade de sistemas e
de tipos de escolas. Mas, não somente essa unidade imposta
pelo Estado é exterior ao sistema e artificial, como também
essa constelação de escolas, passando a gravitar em torno de
um foco (o Estado), num determinado regime político, nem
por isso deixa de sofrer as influências extra-estaduais ou extra-
políticas, internas ou externas a um meio social dado. Acresce
ainda que, consideradas as relações que articulam entre si os
ensinos de diversos graus ou tipos, quaisquer modificações
mais profundas nesse ou naquele domínio de ensino repercytem
imediatamente em outro do sistema educativo (9), que mais do
que nunca “pode ser comparado a um jogo de xadrez em que
o deslocamento de um peão acarreta uma mudança geral da
situação sobre todo o tabuleiro”.
(9) É assim que, como se observa no balanço do m ovim ento educativo em
1935-1936, “ não se podem tom ar, por exem plo, m edidas no dom ínio do ensino
secundário sem encarar as repercussões q u e possam ter no dom ínio profissional.
A necessidade de achar um escoadouro escolar para os alunos aos quais as portas
da escola secundária se fecham , acarretou um a reorganização das escolas profis­
sionais em certos países” . E não foi para levantar um dique contra a corrente
para a escola secundária e refrear esse m ovim ento q u e se tem aperfeiçoado por
toda a p arte o sistema de seleção e se têm m odificado os program as da escola
p rim ária de m aneira a estim ular o interesse por certos ofícios e ensinos profis­
sionais? Os próprios exam es, tão com batidos, não fizeram, apesar disso, a sua
reaparição na cena pedagógica, como tratam ento de urgência, para descongestionar
o ensino secundáriof Esses fatos são suficientes para m ostrar a im portância do
problem a das relações en tre os diversos ensinos e das repercussões e entrechoques
das m edidas tomadas no sistema educativo. Nas próprias reform as totais do
ensino, em preendidas por certos países, em relação com a transform ação radical de
um a políticá geral, m uitas m edidas foram abandonadas e substituídas po r outras,
em v irtu d e de repercussões inesperadas sobre o conjunto do sistem a ou algumas
de suas instituições. (Cf. A nnuaire International de VEnseignem ent, 1937.)
5

A EDUCAÇÃO ESCOLAR NO BRASIL (*)

Anísio T eixeira

N ão É f á c i l d a r , em uma só palestra (**), descrição suficien­


temente exata da situação educacional brasileira e indicar os
principais aspectos que mostram como e quanto ela é pouco
satisfatória. Em todo caso tal é a minha tarefa, hoje, aqui,
e vou buscar- cumpri-la como me for possível. Tornaremos em
cada um dos níveis do ensino — primário, médio e superior
— os fatos que nos parecem mais significativos, buscando in­
terpretá-los à luz de uma compreensão ampla da função de
todo o sistema de educação, a fim de caracterizar-lhe as ten­
dências e indicar as correções acaso mais recomendáveis. A
educação, sendo um processo de cultivo ou de cultura, há
de ser sempre algo em .permanente mudança, em permanente
reconstrução, a exigir, por conseguinte, sempre, novas descri­
ções, análises novas e novos tratamentos. Como a agricultura,
como a medicina, a educação está em permanente transforma­
ção, não só em virtude de conhecimentos novos, como em virtu­
de de mudanças decorrentes da própria dinâmica da sociedade.

A situação educacional brasileira apresenta-se como uma


pirâmide, em que a base não chega a ter consistência e solidez
de tão tênue que é, logo se afilando, mais à maneira de um
obelisco do que mesmo de uma pirâmide. T al aspecto mani­
festa-se desde a escola primária. i
Para uma população escolar de 7 a 11 anos de idade,
num total de 7.595.000, a escola primária acolhe 4.921.986, ou
( • ) Anísio T eix eir a , “ A escola brasileira e a estabilidade social’*, R evista
Brasileira de Estudos Pedagógicos, vol. X X V III, n.° 67, 1957, pp. 3-29.
( • • ) Conferência p ronunciada no Clube de E ngenharia (N . do A.).
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO 389

seja, cerca de 70%. Destes, porém, encontram-se no l.° ano


2.(564.121, quando ali só se deviam encontrar 1.600.000 (grupo
de idade de 7 anos), no 2.°, 1.075.792, quando aí se deviam
achar 1.500.000, no 3.°, 735.116, onde deviam estar outros
1.500.000, no 4.° e 5.° anos, 466.957, quando aí deviam estar
1.480.000; só este fato já afila singularmente a pirâmide, con­
forme se pode ver no gráfico 1 (entre págs. 396/397), que ora
apresentamos, das matrículas por séries nas escolas brasileiras
de nível primário, médio e superior.
O gráfico revela quanto não está sendo cumprida a função
precípua da escola primária, que é a de ministrar uma cultura
básica ao povo brasileiro. O ensino primário vem-se fazendo
um processo puramente seletivo. A ênfase está no puramente.
Com efeito, embora o próprio ensino primário deva contribuir
para uma primeira seleção humana, não é esta a sua finalidade
precípua. Se todo ele passar a ser um processo de seleção, isto
é, de escolha de alguns, destinados a prosseguir a educação em
níveis pós-primários, estará prejudicada a sua função essencial.
Ora, aí temos o primeiro aspecto pelo qual se verifica
como e quanto o ensino primário vem sendo desvirtuado.
Considerando-o puramente preparatório às fases ulteriores da
educação, descuidamo-nos de organizá-lo para efetivamente
atender a todos os alunos, seja qual fór a capacidade intelec­
tual de cada um, e vimos, ao contrário, mantendo a velha
organização seletiva de escola propedêutica. O característico
da organização das escolas para finalidade seletiva é o menos­
prezo às diferenças .individuais, ou a utilização das diferenças
individuais apenas para eliminar os reputados incapazes. A
escola fixa os seus graus ou séries de ensino, os padrões a que
devem atingir os alunos capazes de seguir o curso. Os que não
se revelarem capazes, são reprovados, tornando-se, ou repeten­
tes, ou excluídos. Nessa organização cabe ao aluno adaptar-se
ao ensino e não o ensino ao aluno. Nada mais legítimo, se
a escola visa realmente selecionar alguns alunos para deter­
minados estudos. E nada mais ilegítimo, se a escola se propõe
a dar a todos uma habilitação mínima para a vida, a promover
a formação possível de todos os alunos de acordo com as suas
aptidões. Não será necessário estender-me mais sobre a ma­
téria, pois as reprovações maciças no ensino primário, respon­
dendo peio número de repetentes e, em parte, pelas deserções,
demonstram que esta é, realmente, a organização do ensino
390 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

primário. No próprio Distrito Federal (#), as reprovações, no


ensino primário, chegam a ser de mais de 50%.
A organização da escola primária como escola seletiva e
propedêutica justifica uma porção de fatos, que seriam julgados
pelo menos surpreendentes se tal não fosse a sua organização.
Primeiro, justifica a desordem por idades na matrícula.
A escola primária recebe na primeira série e, depois, nas de­
mais, alunos de todas as idades entre 7 e 14 anos. Se a escola
fosse organizada para a educação básica, todos sentiriam o que
importa não começá-la na época própria, não somente pelo
tempo que o menino terá perdido, como porque as diferenças
de idade prejudicam o tipo de organização da escola primária,
destinada a todos. Esta escola é, mais do que qualquer outra,
e exatamente porque é para todos, uma escola organizada por
idades. Vai, na primeira série, sem impor qualquer padrão
seletivo, educar crianças de 7 anos, com seus interesses, seus
gostos e suas aptidões. Receber, na primeira série, meninos
de 8, 9, e 10 e até mais anos será toda uma desordem, salvo,
repito, se a escola não fosse a escola de educação básica, mas
um curso preparatório a outra escola mais alta.
Como ela se vem fazendo, realmente, um curso prepara­
tório, professores e diretores aceitam, sem discussão, a desor­
dem de idades, que aflige a organização das séries escolares,
prejudicando-a no seu espírito e na sua eficiência.
A segunda conseqüência da organização seletiva da escola
primária é a possibilidade de ser ela reduzida em tempo e
em objetivos educacionais. Desde que seu propósito seja sele­
tivo por um lado, e preparatório por outro, pode-se reduzir
a mesma, cada vez mais, a um adestramentro para os exames
e sobretudo para o exame da entrada na escola seguinte. O
ensino assume, então, cada vez mais, caráter informativo, limi­
tando-se a mínimos de habilidade e a uma esquematização
taxinômica de conhecimentos formais necessários aos exames.
À desordem na matrícula por idade, sucede, assim, a de­
sordem dos horários letivos, reduzidos ao mínimo, com os
turnos, que, em muitos casos, já ascendem a quatro por d ia !
Numa tal escola, está claro, nada mais se faz do que adestrar
os meninos numa alfabetização sumária e, depois, treiná-los(*)

(*) Estado do Eio de Janeiro (N. dos Orgs.).


EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO 391

para os exames de mínimos conhecimentos formais, considera*


dos necessários à promoção seletiva e, por último, ao exame
de admissão ao ensino secundário.
Se não tivéssemos o propósito democrático de dar às massas
uma boa educação prática para a vida, mas, apenas, o de
selecionar os melhores para lhes oferecer uma educação de
elite, diria que a nossa escola primária está procurando cum­
prir a sua missão. E a questão seria, apenas, se o está con­
seguindo. Levam, realmente, os seus métodos à escolha dos
melhores para o ensino médio e superior de que precisamos?
Tenho as minhas sérias dúvidas e, por elas, chego até à con­
vicção do contrário.
Com efeito, o tipo de adestramento, aparentemente inte-
lectualista, que a escola primária experimenta fazer não chega
a ser seletivo sequer das boas inteligências teóricas. Não direi
que tais inteligências não cheguem a aproveitar-se do ensino,
mas, mesmo para este tipo de inteligência, os estudos pura­
mente formais podem ser prejudiciais. Realmente, as inteli­
gências que se ajustam ao ensino formal são as de certo tipo
médio, excessiva mente plástico e passivo. Os verdadeiramente
capazes são desencorajados, e a grande maioria dos de outro
tipo de inteligência — artística, plástica, prática — é destruída.
Assim, creio que a própria capacidade seletiva da nossa escola
primária não é a melhor para o ensino posterior ao primário
de que precisa a nossa sociedade e que o nosso estágio de de­
senvolvimento está a exigir.
Logo, mesmo como escola seletiva, o espírito com que a
escola primária vem buscando selecionar não nos parece o mais
recomendado para a conjuntura que estamos atravessando.
A realidade, porém, é que a escola primária não pode ser
simplesmente seletiva, mas precisa de cuidar seriamente dos
alunos de todos os tipos e todas as inteligências, que a procuram
— e que até obrigatoriamente a devem procurar — para lhes
dar aquele lastro mínimo de educação, capaz de nos estabilizar
e dar à Nação as necessárias condições de gravidade e respon­
sabilidade. Quebrados os óbices à unificação democrática do
povo brasileiro, percorre, com efeito, todas as suas camadas,
e sobretudo as mais baixas, um ímpeto de ascensão social a
que só a educação poderá dar ordem e estabilidade. A ordem
e a estabilidade numa sociedade democrática são mantidas por
critérios conscientes de valor e hierarquia. Tais çritérios não
392 EDUCAÇAO £ SOCIEDADE

se adquirem por meio de adestramento para exames formais,


mas por uma lenta impregnação que a família e a classe pro­
movem, e a escola, quando, como as duas primeiras, se faz
forma de vida em comum, com atividades de participação e
de integração, também pode promover. Ora, como a família
e a classe, em rigor a classe, pois a família é sempre um aspecto
da classe, está vivendo, pelos próprios deslocamentos sociais
causados pelo progresso econômico do país, um período de
intensa mudança, não consegue a classe, por isto mesmo, a
transmissão pacífica dos seus padrões, deixando, assim, de ope­
rar como força estabilizadora suficiente.
Fica, portanto, a escola. Se ela não se fizer a transmissora
de padrões de hábitos, atitudes, práticas e modos de sentir e
julgar, as forças liberadas pelo progresso material lançarão os
indivíduos a uma corrida de ascensão social, tanto mais desor­
denada e caótica, quanto menos preparados tiverem ficado
para tais promoções, situação que não é afinal senão a que
vimos, presentemente, registrando no país.
A escola primária deverá, assim, organizar-se para dar ao
aluno, nos quatro anos do seu curso atual e nos seis a que
se deve estender, uma educação ambiciosamente integrada e
integradora. Para tanto precisa, primeiro, de tempo: tempo
para se fazer uma escola de formação de hábitos (e não de
adestramento para passar em exames) e de hábitos de vida,
de comportamento, de trabalho e de julgamento moral e
intelectual.
#

Uma vez alcançado o tempo necessário, para o que todos


os esforços devem ser feitos, a i^rganização da escola, em termos
de escola-comunidade, com um currículo de aprendizagem por
participação, não é difícil, embora exija abundantemente ma­
terial de ensino e de trabalho e professores preparados de
forma mais acentuadamente profissional — tudo bem diverso
do que vimos atualmente fazendo. A escola se organizará como
um local de atividades adequadas às idades, dentro de três
setores, que se conjugarão entre si, mutuamente complemen­
tares e integrados: o do jogo, recreação e educação social e
física; o do trabalho, em formas adequadas à idade; e o do
estudo, em atividades de classe propriamente ditas.
EDUCAÇAO E DESENVOLVIMENTO 393

Os próprios conjuntos de edificações escolares compreen­


deriam, sempre, prédios para as atividades de classe, ou "escolas-
classe”; para as atividades de recreação e jogos, ou ginásios e
campos de esporte; para as atividades sociais e artísticas, ou
auditórios e salas de música, dança e clubes; e para as atividades
de trabalho, pavilhões de artes industriais; além de bibliotecas
e dos demais espaços necessários à educação integral.
A didática dessa escola obedeceria ao princípio de que as
atividades infantis, predominantemente lúdicas, evoluem na­
turalmente para o trabalho, que é um jogo mais responsável
e com maior atenção nos resultados, e do trabalho evoluem
para o estudo, que é a preocupação mais intelectual de con­
duzir o trabalho sob forma racional, sabendo-se porque se
procede do modo por que se procede, e como se [rode aperfei­
çoar ou reconstruir esse modo de fazer. Quando esse interesse
intelectual se desenvolve bastante para se tornar uma atividade
em si mesma, teremos o intelectual, o cientista, o pesquisador
e o pensador, que irão constituir os corpos especializados da
Nação para o seu desenvolvimento cultural e científico.
Nessa escola primária, a idade é o elemento fundamental
de graduação e classificação, organizando-se as séries com pro­
gramas de atividades escolhidas à luz dos interesses e impulsos
dos vários grupos em cada idade, com as diversificações de­
correntes dos diferentes quocientes intelectuais. Daí consti-
tuírem-se os grupos quase sempre de duas idades: 7/8 na l.a
série, 8/9 na 2.a série, 9/10 na 3.a série, 10/11 na 4.a série,
11/12 na 5.a série ou l.a complementar e 12/13 na 6.a série
ou 2.a complementar.
Estendido o tempo da escola primária pelo dia letivo
completo e pelos -seis anos mínimos de estudos, teríamos a
possibilidade de reorganizá-la para a educação de todos os alu­
nos e não apenas dos poucos selecionados. Para isto seriam
necessários o enriquecimento do currículo pela forma antes
recomendada e a formação de magistério adequado. Temos,
quanto à última tarefa, a da formação do magistério, a expe­
riência das escolas de enfermeiras e das escolas de serviço
social. Deveríamos elevar as escolas normais à categoria pro­
fissional dessas duas escolas, não direi para torná-las de cho­
fre, de nível superior, mas para acentuar-lhes o espírito de
formação nitidamente profissional. Antes, porém, do currículo
novo e do novo professor, teríamos de alterar a própria ordem
394 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

ou estrutura da escola primária a fim de que deixe de ser


apenas seletiva e se faça formadora e educativa.
Para tanto, antes de tudo, importa ordenar e regularizar
a matrícula por série e por idade, a fim de organizar-se o
programa por idade, suspender-se o regime de reprovações e
dar-se o devido número de lugares para os alunos da 5.a série
e, depois, da 6.a série, séries novas pelas quais se estenderá
a escola primária (1).
#

Desse mundo do ensino primário — algo informe e de­


sordenado, compreendendo presentemente escolas estaduais,
congestionadas e funcionando em dois, três e até quatro turnos
de matrículas, escolas municipais, com instalações geralmente
inadequadas e com professores despreparados, e escolas par­
ticulares livres, todas ou de simples alfabetização ou de caráter,
como vimos, propedêutico e seletivo — passamos ao mundo do
ensino médio.
A transição tem algo de um salto. Não é apenas um novo
nível, mas um novo reino, ou, então, a entrada definitiva no
reino da educação seletiva. Como a marcar a violenta trans­
formação, há que registrar o ritualismo que caracteriza a nova
escola. A licença de organização, de programas, de métodos e
de escolha de magistério do ensino primário é substituída pelo
formalismo mais estrito e por verdadeira inflexibilidade de
organização. Distribui-se por cinco ramos esse ensino: o
secundário, de caráter nitidamente intelectualista, o técnico-in­
dustrial, o agrícola, o comercial e o normal ou pedagógico.
Teoricamente, o secundário seria propedêutico ao ensino
superior, e os demais, de caráter profissional, destinados ao
preparo dos quadros de nível médio de técnicos para a in­
dústria, o comércio, a agricultura e o magistério primário. Na
(1) Vide à p. 155 da R evista Brasileira de E studos Pedagógicos, vol.
X X V III, n.° 67, 1957, o docum ento de trabalho elaborado pelo C entro Brasileiro
d e Pesquisas Educacionais, p ara planejam ento desse program a de ordenaç3o e
desenvolvim ento da escola p rim á ria p ara seis anos de estudo. Nota-se, no docum en­
to, q u e o M inistro tom ou um a posição de program ar a educação prim ária para
todos n a zona u rb an a e d e elevar a 70% no m inim o a m atrícu la da zona rural.
D al ap resentar núm eros m ais reduzidos quan to à necessidade de m atricula nas
escolas.
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO 395

realidade, porém, todo esse ensino médio se vem fazendo pro­


pedêutico ao ensino superior, contentando-se com o seu pre­
paro para se iniciar no trabalho ativo apenas aquele grupo
de alunos que, não conseguindo adaptar-se à rigidez dos seus
padrões, acaba por abandonar o curso ou dele ser excluído
pelas reprovações.
Para confirmar essa observação, basta atentar no declínio
progressivo da matrícula ao longo das séries, conforme se vê
no gráfico anteriormente apresentado. Dos 230.000 alunos da
série inicial do primeiro ciclo, atingem o quarto ano 95.000.
E dos 88.000 do primeiro ano de segundo ciclo, apenas 42.000
alcançam a terceira série. Destes, logram atravessar a barreira
do vestibular ao ensino superior pouco mais de 20.000.
No ensino médio, depois do estabelecimento da equiva­
lência dos estudos entre o ramo secundário e os ramos ditos
profissionais, ou seja, comercial, técnico-industrial, agrícola e
normal, temos algumas novas tendências a assinalar. Embora
o secundário continue a ser o ramo dominante, com 537.000
alunos no l.° ciclo e 82.000 no 2.° ciclo, já são 92.000 os que
fazem o l.° ciclo nas escolas médias não secundárias e 110.000
os que nelas fazem o 2.° ciclo, isto é, número superior em cerca
de 30.000 aos matriculados em colégios clássicos ou científicos.
Os segundos ciclos dos cursos comerciais e normais cami­
nham para terem matrícula equivalente à do segundo ciclo do
secundário. Será interessante examinar se esse acréscimo de
matrícula corresponde a um real desejo de realizar o curso
profissional de nível médio, ou se estão apenas procurando tais
cursos porque são mais fáceis do que os de colégio.
Em todo caso, trata-se de uma nova tendência que deve
ser observada com cuidado. Todos os cursos médios profis­
sionais são de natureza mais prática do que os dos colégios,
tendo, a par disto, professores de mais baixo preparo que os
do secundário, podendo, caso a maioria dos seus alunos pro­
curem o ensino superior, ser responsáveis pelo fraco índice de
preparo revelado pelos candidatos nos exames vestibulares.
Chegados, afinal, ao ensino superior, registra-se, então,
algo de surpreendente: cessam quase as reprovações.' Q ensino
superior é o menos mortífero dos períodos escolares. Quase
todos os seus alunos acabam por graduar-se. Não será isto
mais uma coYnprovação do caráter propedêutico de todos os
396 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

graus que o antecedem? A passagem no vestibular equivale


a uma sagração: só com muito “esforço” o aluno daí em diante
escapará à graduação.
Não se diga que assim deve realmente ser e que, assim,
por certo, também acontece nos países já desenvolvidos.
A situação na América do Norte, para citar o país de
nosso continente em que é mais intensa a fé na capacidade
de promoção social pela educação, é bem diversa. Veja-se a
situação norte-americana: em cada mil habitantes dos E.U.A.
de 7 a 13 anos, todos terminam a escola elementar e 910 entram
na escola secundária aos 14 anos, 750 terminam o l.° ciclo de
três anos (Junior High School) aos 16 anos, 620 terminam o
2.° ciclo (Sênior High School) aos 18 anos. Entram na Uni­
versidade 320 e terminam o College (4 anos) 140. Destes, 27
graduam-se “Masters” e 3,5 atingem o doutorado (8 a 9 anos
de estudos universitários).
Pelo gráfico 4 (entre págs. 412/413), pode-se ver quanto
é crescente a aspiração do povo norte-americano por mais
educação. O processo, entretanto, eleva, cada vez mais, o nível
educacional de todo o povo, ficando a função seletiva como
um dos corolários e não o aspecto primacial da educação. Cada
um dos graus se faz, cada vez mais, formador e não apenas
selecionador ou propedêutico.
Com eteito, a educação é um processo de estabilidade
social e apenas secundariamente de ascensão social.
É pelo êxito na sua missão formadora que a educação se
constitui uma força estabilizadora e pela capacidade de enco­
rajar os mais capazes a prosseguir em seus estudos, que se
faz uma fronteira de oportunidades para o progresso indivi­
dual e a ascensão social e, como tal, uma força de renovação.
As duas funções da escola — a de estabilidade e a de renovação
— devem ser cumpridas, mas sem se prejudicarem. O equilíbrio
entre elas é uma condição de boa saúde social.
Seja o ensino primário, seja o médio, seja o superior,
destinam-se, primordialmente, à transmissão de certo nível de
cultura indispensável à vida das diferentes camadas sociais e,
deste modo, a mantê-las estáveis e eficientes. Por outro lado,
porém, como o regime de classes, em uma democracia, é um
regime aberto, com livre passagem de uma classe à outra, a
escola facilita que os mais capazes de cada classe passem à
classe seguinte. É esta, porém, por mais importante que seja,
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO 397

ima função suplementar da escola e não a sua função funda-


nental. Se for desviada deste mais importante objetivo, a
:scola deixará de exercer a sua função primordial, que é a
le ser a grande estabilizadora social, para se fazer até uma
ias causas de instabilidade social.
Poderá parecer isto algo de reacionário. Na realidade não
o é. A educação escolar é uma necessidade, em nosso tipo de
civilização, porque não há nível de vida em que dela não
precisemos para fazer bem o que, de qualquer modo, teremos
sempre de fazer. Deste modo, a sua função é primeiro a de
nos permitir viver eficientemente em nosso nível de vida e
somente em segundo lugar, a de nos permitir atingir um novo
nível, se a nossa capacidade assim o permitir. Se toda educa­
ção escolar visar sempre à promoção social, a escola se tornará,
de certo modo, repito, um instrumento de desordem social,
empobrecendo, por um lado, os níveis mais modestos de vida
e, por outro lado, perturbando excessivamente os níveis mais
altos, levando-lhes elementos que, talvez, não-estejam devida­
mente aptos para o novo tipo de vida que a escola acabou
por lhes facilitar.
Palavras duras essas, sem dúvida, mas temos de dizê-las,
pois os países subdesenvolvidos são os que mais rapidamente
se deixam perder pela miragem da educação como exclusivo
processo de promoção social. E este será, sem dúvida, o mais
grave defeito de todo o nosso sistema escolar. Fazendo-se,
como se vem fazendo, um simples sistema seletivo, a escola,
ajudada pelo caráter democrático de nossa população, se está
constituindo um processo de desorganização da vida nacional,
deixando nas atividades fundamentais da sociedade somente
os que não se podem educar e levando todos os que logrem
qualquer êxito em seus cursos, mais formais do que eficientes,
a condições de vida em que não vão ser mais produtivas, mas
apenas conduzir existências mais amenas, senão parasitárias.
Temos examinado, em nossos estudos, este aspecto da escola
brasileira sob vários ângulos. Hoje, desejamos apresentá-lo,
mais uma vez, à luz da verdadeira finalidade da escola. Há
como que o esquecimento da função por excelência estabili­
zadora da educação e o exagero da função de promotora do
progresso individual.
Como explicar tal fenômeno em uma sociedade, sob outros
aspectos, tão conservadora como a sociedade brasileira?
398 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

Para entrarmos na análise mais aprofundada desse fenô­


meno, devemos apreciar certos fatos fundamentais do ensino
brasileiro e acompanhar a sua evolução nos últimos 30 anos.

Até as alturas de 1925, o ensino brasileiro caracterizava-se


por um ensino primário de razoável organização, embora de
proporções reduzidas, atendido em sua maior parte pela pe­
quena classe média do país, seguido de modesto ensino secun­
dário, predominantemente de organização privada, e de umas
poucas escolas superiores divididas, como a escola secundária,
mas em proporção bem diversa desta última, entre o patro­
cínio oficial e o privado. O Estado ou o Poder Público man­
tinha o ensino primário, escolas-padrões de ensino secundário,
escolas técnico-profissionais, destinadas aos poucos elementos
do povo que atendiam ao ensino primário, e algumas escolas
superiores profissionais.
Para dar idéia das proporções desse ensino bastará indicar
as matrículas globais em 1927: no ensino primário, para uma
população em idade escolar estimada em 4.700.000, encontra-
vam-se nas escolas cerca de 1.780.000; no secundáiio, para uma
população em idade escolar de 4.350.000, o número de alunos
não excedia de 52.500; no ensino técnico-profissional, os alunos
atingiam à cifra de 42.000 (2); e no superior, em todo o país,
estudavam cerca de 12.500.
Como se vê, a educação escolar existente não penetrava
profundamente nenhuma grande camada popular e se caracte­
rizava, perfeitamente, como uma educação da elite, eufemismo
pelo qual significamos o fato de a educação não atingir senão
os filhos de pais em boa situação econômica na sociedade.
Toda sociedade sobrevive à custa de um nínimo de edu­
cação que permite aos pais de certo nível social manter nesse
nível social os próprios filhos. No início deste século, embora
o patriarcado rural já se achasse em desagregação, a nova socie­
dade mercantil emergente e que o sucedera, guardava ainda
os moldes velhos de educação para as profissões liberais, que
(2) Note-se a alta m atrícu la relativa nesse ensino em com paração com a
m atrícula referida à p. 395.
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO 399

vinham, de certo modo, satisfazendo as suas ambições ainda


eivadas do vitorianismo caboclo do tempo da monarquia. Na
década de 20 é que começa a ebulição política e social, que
deflagra, afinal, na revolução de 30, e com a qual ingressamos
em um período de mudança, mais caracterizadamente represen­
tado pelo desenvolvimento da industrialização na vida nacional.
Como se comportou, durante o referido período, o nosso
sistema educacional ? Até que ponto se modificou para atender
às novas necessidades do país? Estas têm sido as questões que
agitaram e continuam a agitar o debate em torno dos proble­
mas do ensino brasileiro.
Dois pontos poderão nortear a nossa análise: caráter ou
natureza do ensino necessário ou bastante para a sobrevivência
da sociedade agrário-mercantil de antes de 30; e reconstrução
indispensável desse ensino para atender aos imperativos do
novo estágio da vida nacional, assegurando-lhe a estabilidade
e o progresso. Desejaríamos mostrar como não bastaria ex­
pandir o sistema arcaico e ornamental do ensino de antes de
20, mas reconstruí-lo em novas bases, para atender, não já
apenas a imperativos de sobrevivência de uma elite, e sim,
a imperativos de formação de todo um povo em vigoroso
processo de mudança de civilização.
Que temos feito, entretanto, até hoje? Temos, dominan­
temente, expandido o sistema velho de educação, destinado
originariamente à formação de uma elite letrada ou profis­
sional liberal para a vida política, burocrática e profissional
do país e, só acidentalmente, temos atendido às exigências do
novo tipo de vida da nação brasileira.
Sem desejar estender-nos sobre matéria que já examina­
mos em outros trabalhos, vejamos rapidamente os fundamentos
dessa afirmação.
Antes de 30, o sistema educacional da elite brasileira, como
já acentuamos, era um sistema particular de ensino secundário,
de caráter acadêmico e intelecttialista, com veleidades de imi­
tação do sistema francês de ensino, seguido das grandes escolas
de profissões liberais, estas, em sua maioria, públicas e gra­
tuitas. Para o povo, havia uma certa quantidade de lugares
nas escolas primárias públicas, de onde poderiam estes poucos
alunos dirigir-se às escolas normais e técnico-profissionais, estas
mantidas, em sua quase totalidade, pelo poder público e, por-
400 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

tanto, gratuitas. Com estas escolas, por assim dizê-lo, popu­


lares, o Estado reconciliava a sua consciência democrática,
ferida pela gratuidade do ensino superior, destinado quase
exclusivamente à elite.
Ao entrar o país em sua fase de mudança correspondente
à industrialização, o renascimento de energias e de esperanças,
que acompanha tais processos de transformação, deflagrou uma
procura insofrida por educação escolar, pois essa educação se
fazia indispensável às novas oportunidades de trabalho que
a vida entrou a oferecer, não só diretamente, em virtude de
novos tipos de trabalho industrial inaugurados, como sobre­
tudo, pelos novos serviços que o enriquecimento público veio
a criar, com o surto industrial e urbano e o crescimento con-
seqüente da classe média.
Para atender à busca assim intensificada de educação, não
estava o país aparelhado, pois o modesto sistema existente não
se propunha resolver o problema da formação das novas classes
de trabalho, emergentes do surto industrial, mas, apenas, a
ilustrar com certas tinturas profissionais os elementos já per­
tencentes às pequenas classes superiores e médias e que encon­
travam em suas próprias classes todos os estímulos e condições
necessárias à sua formação propriamente dita.
Por isto mesmo, a educação secundária e, sobretudo, a
superior, era uma educação de tempo parcial, servida de pro­
fessores eminentes, mas, em sua maioria, de cultura geral, rela­
tivamente pouco especializados, o que dava às próprias escolas
superiores profissionais um ar de academias de cultura do
espírito, um tanto ornamentais e um tanto divagantes e ver-
balísticas, salvas as poucas exceções de expoentes destacados,
tanto na cátedra, quanto na prática profissional, nos setores
de medicina e engenharia.
Tomada de imprevisto e sem os recursos necessários para
o novo empreendimento educacional, a sociedade brasileira não
se apercebeu de que a alternativa à sua negligência seria a
expansão, para as novas camadas em ascensão social, do sistema
existente, destinado às suas reduzidas classes média e superior,
sistema satisfatório, talvez, para a sociedade estabilizada senão
estagnada da década de 30, mas absolutamente inadequado às
novas condições sociais.
Tal sistema tinha a seu favor, para uma expansão ime­
diata, a vantagem de ser um sistema de educação de custeio
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO 401

pouco dispendioso. Não visando senão à cultura geral, ou, se


quiserem, teórica, isto é, uma cultura da palavra, da enun­
ciação verbal de problemas e soluções, tal educação se pode
fazer por meio do professor e do livro de texto, e em tempo
parcial. A essa vantagem de custeio módico, acrescenta-se a
de possuir o sistema a grande motivação de “classificar” social­
mente o aluno, dando-lhe aquilo que mais seduz na educação,
que é a capacidade de consumir mais do que a de produzir.
De nada valeu existirem realmente dois sistemas: um de
educação superior, pública e gratuita, para as classes mais
altas, antecedido de uma escola secundária privada e paga, de
caráter propedêutico, para o acesso à superior (o número de
ginásios públicos era diminuto); e outro, de escolas primárias
públicas e escolas públicas técnico-profissionais para o povo.
Poderia parecer que a impotência do Estado em arcar com os
novos problemas de educação não viesse a quebrar esse dua­
lismo e continuasse o Poder Público a esforçar-se, dentro dos
limites de nossas possibilidades, por melhorar as escolas pri­
márias e médias (normais e profissionais) para o povo, dei­
xando à iniciativa privada a educação de caráter secundário
e superior, no aspecto em que buscavam apenas a conservação
de status social ou a conquista deste status.
Acredito mesmo que tal fosse o pensamento dos “refor­
madores” da educação em 1930. A realidade, porém, é que
a expansão do sistema educacional brasileiro frustrou os in­
tuitos porventura concebidos.
O chamado sistema de educação da elite, compreendendo
o ensino secundário de caráter propedêutico ao superior e o
ensino superior gratuito expandiram-se fora de todas as pro­
porções, e o sistema popular, compreendendo o ensino primário
e o técnico, não somente não se expandiu nas mesmas propor­
ções, como se vem também tornando propedêutico ao ensino
superior, meta final a que todos aspiram, sem nenhuma cons-
’ ciência do que representa o custo dessa educação, logo que
deixa de ser de cultura geral para se fazer, como é necessário
que se faça, de cultura especializada e profunda.
A modesta sociedade brasileira do princípio deste século
podia dar-se ao luxo de uma escola superior gratuita para a
sua diminuta classe de lazer — gratuidade apenas aparente,
pois, localizada em alguns poucos e grandes centros urbanos,
obrigava as famílias a deslocar e manter seus filhos nessas
UFR&S
■IBtmUCA StTOIXL 0 [ e m c íc H
402 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

poucas cidades servidas de ensino superior. Mas a nova socie­


dade brasileira só poderia fazer tal com o sacrifício dos seus
deveres com a educação efetiva e generalizada do povo bra­
sileiro. Esse sacrifício é o que se fez, como podemos agora ver
em toda a sua extensão.
Está o país a despender, presentemente, pouco mais de
14 bilhões de cruzeiros com o seu sistema educacional (1956).
Como vimos, no gráfico apresentado, o sistema acolhe
cerca de 5 milhões de crianças no e"hsino primário, logrando
dar o nível equivalente ao quarto grau ou ano escolar somente
a pouco mais de 450.000 crianças. O déficit desse ensino, aceito
que bastasse o mínimo de quatro anos de estudos — é de mais
de 1.200.000 crianças, que também deveriam chegar ao quarto
grau 'e que deixam a escola sem o correspondente aproveita­
mento. Pois bem: com essa má e deficiente escola primária,
destinada a 5 milhões de alunos, despende a nação pouco mais
de 6 bilhões de cruzeiros, à razão de 1.200 cruzeiros por
criança.
No ensino médio, primeiro e segundo ciclos, acolhe o sis­
tema apenas cerca de 800.000 adolescentes, despendendo com
os mesmos 4 bilhões e 300 milhões de cruzeiros, numa média
por aluno de 5.300 cruzeiros. No ensino superior, acolhemos
cerca de 70.000 estudantes, despendendo um total de 3 bilhões
e 700 milhões de cruzeiros, com um custo médio anual por
aluno de 52.000 cruzeiros.
Estudos recentes realizados pela capes e pelo Banco do
Desenvolvimento Econômico revelam que a tendência se vem
afirmando, cada vez mais, no sentido de drenar os recursos
públicos para os dois mais elevados níveis do ensino, com
sacrifício cada vez mais patente do ensino primário e da for­
mação popular.
Nas despesas globais com o ensino, em todo o país, a
cota com o ensino elementar era em 1948 de 60,3% e chega
em 1956 a ser apenas de 43,2%. As despesas com o ensino
médio de 27,3% do total de despesas com o ensino sobem
a 30,8% em 1956. Nesse rateio, entretanto, o caso do ensino
superior é o mais espetacular: correspondendo a 12,4% do
total em 1948, atingem as suas despesas em 1956 a 26%, ou
seja, a mais do dobro em oito anos.
Demonstra isto a exacerbação da tendência — já mani­
festa, mas de certo modo controlada no período anterior a
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO 403

30 — de buscar a classe superior do país obter a sua educação


à custa dos cofres públicos. Com o crescimento da classe média,
está a mesma também buscando obter do Estado recursos não
só para conservar o seu status social, como para poder ascender
gratuitamente ao nível da classe média, superior, à maneira da
velha e menor classe aristocrática do país, criadora do mau
exemplo de educar-se às custas do Estado.
O que está acontecendo não é somente prejudicial à nação,
por lhe retirar recursos para a educação do povo, mas, sobre­
tudo, por deformar todo o espírito da educação brasileira. A
forte motivação social que a inspira — ascender no escalão das
classes sociais — contribui, não sei se irremediavelmente, para
afastar da escola os critérios de eficiência em relação ao seu
real esforço educativo e dar-lhe critérios falsos de eficiência,
fundados no objetivo secundário de promoção social. A edu­
cação se faz ritualista, mais de aparência do que de realidade,
pois não visa tanto a preparar efetivamente os alunos quanto
a titulá-los, diplomá-los para o seu novo status social.
Não era isto que fazia ela ao tempo da velha sociedade
estabilizada de antes de 30? Por que não há de continuar a
fazer com a nova sociedade-fluida e dinâmica de uma nação
em expansão industrial?
Há, com efeito, a observar que o desenvolvimento no
século xix e princípios deste século se fez, nos E.U.A. e, em
pequena parte, no Brasil, com a importação de elementos edu­
cados que se encarregavam da produção, deixando às classes
médias e superiores nativas as vantagens do consumo da riqueza
produzida. E, enquanto isto fosse possível, não seria pelo menos
totalmente desastrosa uma educação de formação do consu­
midor que é, no final das contas, a educação do tipo da que
vimos examinando.
Alteradas, porém, tais condições, sendo praticamente im­
possível a importação de educação do Çipo necessário ao estágio
industrial, temos de produzi-la aqui no país e este tipo de
educação não se faz em escolas de educação formalística e ver­
bal, mas em escolas de real eficiência no preparo do homem
para as diversíssimas formas de trabalho inteligente e técnico,
que caracterizam a civilização industrial.
Toda sociedade tem seus processos instintivos de defesa e
de conservação. O Brasil, como país agrário e pobre, havia
404 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

desenvolvido um sistema de educação muito engenhoso para


a sobrevivência de suas classes altas. Com a decadência do
latifúndio, a fronteira que se abria às famílias empobrecidas
era a da educação para as funções do Estado, a política e as
profissões liberais. Um sistema público, universal e gratuito de
educação não conviria, pois abriria as portas a uma possível
deslocação das camadas sociais. Uma escola pública primária
gratuita, mas pouco acessível, com espírito marcadamente de
classe média, poderia servir às classes populares, sem com isso
excitá-las demasiado à conquista de outros graus de educação.
Como válvula de segurança, escolas normais, e técnico-profis­
sionais se abririam à continuação dos estudos pelos mais ca­
pazes. No nível médio, pois, criar-se-ia dois tipos de escola:
o secundário ou propedêutico aos estudos superiores, a ser mi­
nistrado em escolas particulares pagas e destinado às classes
de recursos suficientes para custear, nesse nível, a educação dos
filhos e a escola normal e a técnico-profissional, em número
reduzido, públicas e gratuitas, para o povo. Criados tais óbices
para o acesso ao ensino superior, poderia o mesmo ser público
e gratuito. E foi o que se fez, ficando deste modo assegurada
às classes dominantes, mas em parte já empobrecidas do país,
a oportunidade de dar a seus filhos a educação necessária às
car/eiras burocráticas e liberais, com que as boas famílias bra­
sileiras contavam superar as dificuldades da desagregação da
classe agrária.
Tivemos, assim: o ensino primário gratuito, mas de opor­
tunidades reduzidas: o ensino secundário pago, para servir de
estrangulamento a qualquer rápido desejo generalizado de as­
censão social; e o ensino superior gratuito, para atender aos
filhos dos “pobres envergonhados” em que se transformou a
elite rural do país. Com esse sistema, assegurou-se a estabilidade
social e começamos a marcha para a sociedade de “funcionários
e doutores” que sucedeu ao nosso patriarcado rural.
Ao fazer estas observações, costumo acrescentar que o ins­
tinto de defesa da sociedade não ficou completamente tran-
qüilo com um tal sistema. A gratuidade do ensino superior
havia sempre de oferecer algum perigo. Não seria, então, de
todo mau que tal ensino não se esforçasse demasiado em ser
eficiente. Os filhos-famílias que principalmente o freqüenta-
vam eram pessoas bem nascidas, com razoável oportunidade de
educação em suas casas, podendo, portanto, suprir as possíveis
EDUCAÇAO E DESENVOLVIMENTO 405

deficiências da educação escolar, pela aquisição de bons livros,


alguma viagenzinha de estudos ou de aperfeiçoamento no es­
trangeiro, inclusive cursos pagos lá fora.
Não só a possível seriedade desses cursos superiores gratui­
tos poderia constituir-se um óbice a que o fizessem os filhos
pouco inteligentes de nossas melhores famílias, como poderia,
criar rivais demasiado poderosos por entre os poucos elemen­
tos populares que, devido à gratuidade, acabariam por ingressar
no ensino superior, como, de fato, e cada vez mais passaram
a ingressar.
Talvez seja demasiado cerebrina essa interpretação. .. Mas
eu a ensaio, porque confesso julgar necessário achar-se uma
explicação para o caráter extremamente ineficiente, em regra,
do nosso ensino superior, até período muito recente. A hipó­
tese que aqui lanço é a de que a ineficiência seria um modi­
ficador da gratuidade, infelizmente necessária devido à pobreza
da classe dominante, mas reconhecida,ou instintivamente pres­
sentida como arriscada pela sociedade medrosa e estacionária
que sucedeu à emancipação dos escravos.
Foi este modesto sistema de segurança educacional, man­
tido em razoável funcionamento até 30, que se viu, dessa data
em diante, tomado de assalto pelas camadas em ascensão social
e transformado no tumultuado acampamento educacional dos
dias de hoje.
Organizado com o objetivo de servir à periclitante esta­
bilidade social anterior a 30, está agora a servir, com a sua
expansão desordenada, dentro de critérios ainda mais graves
de ineficiência, a uma verdadeira demagogia educacional, for­
mando, no nível superior, turmas cada vez mais numerosas
de diplomados de duvidoso preparo para engrossar as fileiras
dos candidatos ao emprego público, o que obriga ao Estado,
como patrão quase exclusivo dessa massa de pseudo-educados,
a alargar cada vez mais os seus campos de emprego.
A velha república de “funcionários e doutores” estava
longe de supor que seu engenhoso sistema de segurança edu­
cacional viria a produzir, com a ruptura dos freios tão bem
imaginados, a dissolução educacional, graças à qual se vêm
multiplicando os estabelecimentos de ensino superior gratuitos,
a fim de poderei» acolher todos os que logrem atravessar a
barreira, cada vez mais fácil, do ensino médio em geral e não
mais do secundário propriamente dito.
406 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

Longe de ter assegurado a sobrevivência da elite tradi­


cional, o ensino superior gratuito está servindo para forjar
uma falsa elite diplomada e para aumentar até o ponto de
perigo a inflação burocrática do país.
Cumpre-nos fazer essa advertência, em que outras implí­
citas se encerram, sob pena de não podermos defender, perante
a parte lúcida da nação, a necessidade de recursos abundantes,
para a educação. Se esta se faz, não a fonte de preparo de
elementos produtivos para o país, mas de elementos impro­
dutivos ou apenas semiprodutivos, antes aumentando o ônus
de despesas improdutivas da nação do que lhe socorrendo as
forças de produção, por que há de a sociedade fazer o esforço
financeiro necessário a custeá-la?
Porque, já aqui, cabe mostrar que, ao contrário da edu­
cação para o consumo de uma classe já rica e que precisa de
escola para manter o seu status social e aprender a gastai* com
gosto a sua fortuna, e consumir, com espirito, a sua vida, a edu­
cação para a produção não pode ser nem barata nem ineficiente.
Não quero dizer que toda a educação para o lazer seja
custosa e até custosíssima. Acredito, porém, que se compreenda
que, sendo a educação para o lazer, a ineficiência possa não
ser punida com conseqüências demasiado desastrosas, pois o
educado já se sustenta, ou vai ter quem o sustente, estando
sendo educado tão-somente para usar melhor os bens que usu­
fruía ou venha a usufruir.
Já a educação para a produção é, naturalmente, mais exi­
gente. Por que, se não for eficiente, haverá destruído o seu
objetivo e, o que é mais grave, haverá transformado o educado
em um passivo e não em um ativo da sociedade, a qual com
ele despendeu os seus recursos com o propósito de reavê-los
e com juros, por isto e só por isto podendo aplicar em sua
educação o dinheiro do povo.
Essas duas escolas de ensino eficiente e de ensino inefi­
ciente são bem conhecidas entre nós. Para exemplificar as
primeiras, isto é, as eficientes, temos as escolas médias técnico-
industriais, as escolas superiores de engenharia, as escolas de
medicina. Todos sabemos o seu custo. Um médico da Facul­
dade de Medicina de S. Paulo custa ao Estado nada menos
de 2 milhões e 500 mil cruzeiros. Um aluno de uma escola
técnico-industrial não deve custar, com o curso completo, hoje
de sete anos, menos de 1/2 milhão de cruzeiros. Os alunos de
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO 407

escolas agrícolas médias andam a custar uma média de 50 mil


cruzeiros por ano.
Concordaria que certos estudos exigem despesas menores
de equipamento, mas todos os estudos são caros, só podendo
ser baratos rápidos adestramentos de tipo muito especial. A
própria chamada cultura geral, quando verdadeiramente mi­
nistrada, é das mais caras. Exige estudos demorados, contatos
prolongados com professores do mais alto nível, bibliotecas
imensas e tempo, muito tempo para o estudante se concentrar
na lenta e contínua absorção da cultura passada e presente.
Todos os estudos, aliás, de verdadeira e autêntica formação
para o trabalho, seja o trabalho intelectual, científico, técnico,
artístico ou material, dificilmente podem ser' estudos de tempo
parcial, dificilmente podem ser feitos em períodos apenas de
aula, exigindo além disto, e sempre, longos períodos de estudo
individual — e para tal grandes bibliotecas, com abundância
de livros e de espaço para o estudante — longos períodos de
prática em laboratórios, salas-ambientes, ateliers, etc., e longos
períodos de convivência entre os que se estão formando e os
seus professores. Somente com professores de tempo integral
e alunos de tempo integral poderemos formar esses trabalha­
dores de nível médio e o mesmo devemos dizer do ensino
superior, na preparação dos intelectuais, técnicos, cientistas e
professores de alto nível. Toda simplificação só é possível se
não visarmos verdadeiramente preparar os estudantes, mas
obrigá-los apenas a algumas atividades formais como condição
para lhes dar certos títulos de valor preestabelecido.
Ora, não será possível, em face do alto custo, a expansão
do ensino superior, em condições adequadas, sem a descoberta
de novas fontes de receita para o autêntico preparo neste nível.
Vejamos, sumariamente, qual vem sendo a expansão em
particular do ensino superipr.
Possuíamos, em 1936, 173 instituições de ensino superior,
sendo 160 escolas profissionais, 3 escolas de filosofia, 8 de
economia, 1 de educação física e 1 de sociologia e política.
Apenas vinte anos após, em 1956, eleva-se o total a 346, sendo
208 escolas profissionais, 45 de filosofia, 38 de economia, 8
de educação física, 8 de biblioteconomia, 22 de serviço social,
8 de jornalismo e mais 9 outras diversas.
Pode-se ver que a grande expansão foi de escolas de filo­
sofia e de economia que subiram de 11 a 83, de educação
408 EDUCAÇÃO E SOCIEDADE

física de 1 para 8 e as novas pequenas escolas de biblioteco­


nomia, serviço social, jornalismo, etc., que, inexistentes em
1936, chegaram a 47 em 1956.
No campo profissional propriamente dito, o crescimento
é um tanto menor: 160 em 1936, 208 em 1956. Incluímos
nesse campo o direito, a engenharia, a medicina, a farmácia,
a odontologia, a agronomia, a arquitetura, a química indus­
trial, a veterinária e as belas-artes. Trata-se da formação do
quadro de profissionais de nível superior. Concluíram o curso
em 1936 nesse campo 3.990 alunos e, em 1956, concluíram
8.469. O crescimento maior é o de engenheiros que, de 220
em 1936, ascendem em 1956 a 1.225. Já os médicos, em 1936,
eram 1.376 e em 1-956, 1.465, aumentando apenas de 80, isto
é, cerca de 6%. Já os bacharéis em direito, mais do que do­
bram, passando de 1.213 a 2.810. Interessante é o caso das
belas-artes. Cresce o número de escolas de 4 para 10, con­
cluindo o curso, nas 4, em 1936, 12 alunos e nas 10, em 1956,
53 alunos, à razão de 3 e 5,3 alunos diplomados por escola.
1’ode-se bem avaliar o custo desses diplomados!
Tomados todos os 11.348 diplomados em todas as escolas
superiores em 1955 e considerando-se que o ensino superior
está a despender 3 bilhões e 665 milhões de cruzeiros por ano,
a média do custo de um diplomado de nível superior seria de
322.000 cruzeiros, cifra muito pouco expressiva, pois a média
é de custos demasiado heterogêneos, sendo comparação exem­
plar a do custo de formação de um médico com a de um
bacharel em direito ou em economia.
O problema que toda essa expansão suscita é o de como
custeá-la.
Não parece justa a gratuidade do ensino superior, salvo
se já estivessem plenamente resolvidos os problemas da edu­
cação popular primária e os do preparo de nível médio, na
proporção e qualidade consideradas necessárias ao desenvolvi­
mento do país. Todo o ensino, gratuito deve ser universal. No
caso de estudos acessíveis apenas a alguns, devem os mesmos
ser pagos pelo interessado. Quando o Estado for o interessado,
que se organize um sistema de bolsas, concedidas mediante
concurso apropriado à justa seleção dos bolsistas.
Outro não é aliás o princípio consagrado pela Constitui­
ção: o ensino primário será gratuito e o posterior ao primário
gratuito para todos os que provarem insuficiência de recursos.
EDUCAÇÃO Ê DESENVOLVIMENTO 409

T al princípio deixa claramente subentendido que o ensino pos­


terior ao primário somente seja acessível aos a que a ele se
habilitem mediante alguma forma de concurso. Para que este
concurso tenha valor para o Estado e possa prover ao custeio
dos estudos dos alunos por ele selecionados, seria necessário
que tal concurso fosse feito por meio de exames de Estado. De
qualquer modo, o ensino posterior ao ensino primário, pela
Constituição, só deve ser gratuito para os que provarem insu­
ficiência de recursos, justificando-se, assim, a instituição de
taxas para todos os demais, o que viria- a criar-lhe uma nova
fonte de recursos e limitar a> sua expansão indiscriminada.
A necessidade de educação no Brasil se mede pelo quadro
constante do gráfico entre págs. 412/413. O nosso déficit no
ensino primário que é da ordem cie 1.200.000 crianças, em
números redondos, para assegurar 4 graus escolares a todas as
crianças de 7 a 11 anos de idade.
Considerando-se que esse mínimo já não é satisfatório e
que precisamos elevar a escolaridade obrigatória a 6 anos, te­
mos que o déficit sobe a 3.668.000, incluindo-se os alunos de
12 e 13 anos. Somente este déficit não poderá ser coberto por
menos de 4 bilhões e 401 milhões, à razão de Cr$ 1.200,00 por
aluno, custo médio atual do aluno primário em todo o Brasil.
Se admitirmos que, no ensino médio, devemos elevar a
matrícula nos dois últimos anos do l.° ciclo pelo menos ao
dobro da atual, teremos que receber, nas duas séries, mais
223.000 adolescentes, que importarão no mínimo em mais 1
bilhão e 160 milhões de cruzeiros, a.C rf 5.200,00 por aluno,
custo médio atual.
Resta o aumento a ser previsto para o curso de colégio ou
segundo ciclo do ensino médio e £>ara o ensino superior. Para
o segundo ciclo, o aumento mínifhp seria de 50% da matrícula
atual, o que elevaria os atuais 192.000 a 250.000, com uma
despesa mínima de mais de 300 milhões de cruzeiros.
No ensino superior, a expansão ter-se-ia de fazer em obe­
diência a um sistema de prioridades; em que se assegurasse
às escolas de engenharia e aos estudos científicos o necessário
desenvolvimento.
Para expansão dessa grandeza e assim disciplinada (vide
gráficos 1, 2 e 3) não podem bastar os recursos orçamentários,
embora estes tenham de ser elevados ao máximo da resistência
da nação.
410 EDUCAÇAO E SOCIEDADE

Tomando-se a renda total da nação, que foi em 1956 de


691,2 bilhões, e considerando-se que em 1953 a nação des­
pendeu com educação 2,8% dessa renda, teremos que não seria
impossível a despesa em 1956 de 19 bilhões e 353 milhões.
Como apenas despendemos 14 bilhões e 65 milhões, teríamos
a margem possível de 5 bilhões e 288 milhões, o que daria
para o aumento de ensino primário e do ensino médio, com
exceção do segundo ciclo. Isto, sem onerar a sociedade mais
do que foi ela onerada no ano de 1953.
Admitindo-se que este não seja o máximo, pois os pró­
prios E.U.A. despendem 3% de sua renda total no custeio
da educação e nós apenas 2,8%, no ano em que mais gastamos,
proporcionalmente, poderiam ser criadas taxas de matrículas,
a partir do ensino médio, a serem pagas por todos os alunos,
para cobrir as despesas do ensino acima da média das despesas
atuais, o que daria margem ao melhoramento do ensino. Os
alunos que não pudessem pagar receberiam bolsas de estudos,
a serem custeadas pelos interessados no preparo ministrado
pelas escolas, de acordo com o nível de estudos e os seus dife­
rentes ramos. O Estado, o comércio, os bancos, a indústria,
os serviços públicos se associariam na constituição desses fun-,
dos para bolsas de estudo, de acordo com os seus interesses
particulares, seja no ensino médio, seja no superior.
Estabelecido que fosse o regime do ensino pago pelo aluno,
acima de um mínimo básico a ser custeado pelo Estado, em
cada curso, melhorar-se-ia o tom de seriedade de todos os
estudos, professores e alunos tornando-se responsáveis pela sua
eficácia e pelo seu resultado. A gratuidade generalizada de
hoje concorre, indiscutivelmente, para certa irresponsabilidade
reinante no campo do ensino.
Outro aspecto a considerar no ensino superior é o do
trabalho remunerado do estudante. É evidente que devemos
admiti-lo, mas somente no próprio estabelecimento de ensino.
Trabalhos de secretaria, de dactilografia, de asseio, de auxílio
técnico, de biblioteca, todas as funções suscetíveis de serem
organizadas na base de tempo parcial devem ser postas à
disposição dos alunos, que, deste modo, ganharão para sua
subsistência e para o pagamento das taxas de matrículas. Or­
ganizadas as escolas no regime de tempo integral, com refeições,
estudos, esportes, recreação, aulas, trabalhos de laboratório e
exercícios práticos, muita função remunerada poderá ser criada
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO 411

para os estudantes, assegurando-lhes deste modo certa renda


para custeio das despesas dos estudos.

Conclusão

Nesta análise, talvez longa, mas na realidade sumária, da


situação educacional brasileira, procuramos mostrar duas ten­
dências muito acentuadas e que nos parecem graves e até pe­
rigosas para o adequado desenvolvimento brasileiro.
Vimos como a expansão educacional obedece à tendência
de alargar as oportunidades de educação seletiva para a classe
média e a superior e à de custeá-la com recursos públicos
subtraídos à educação popular e à educação de formação para
o trabalho produtivo.
As duas tendências são sobrevivências do modesto sistema
educacional de antes de 30, destinado a uma sociedade em
estado de relativa estagnação, com reduzidíssima classe média
e também pequena classe superior.
A exaltação dessas tendências numa sociedade em trans­
formação acelerada, com um operariado crescente e crescente
aumento da classe média, corre o perigo de prejudicar a distri­
buição regular das classes sociais no Brasil, impedindo o desen­
volvimento adequado do operariado e incentivando, na classe
média, um falso espírito de privilégio. É da natureza da classe
média não ser uma classe privilegiada. O vigor moral dessa
classe está exatamente em não se sentir privilegiada e buscar,
com certa nobre gratuidade, sustentar os padrões de dignidade
e decência que constituem os seus pontos de honra.
Os nossos deveres para com o povo brasileiro estão, assim,
a exigir que demos primeiro a educação adequada às classes
populares, a fim de lhes aumentar a produtividade e com ela
o seu nível de vida. Somente depois de darmos estas opor­
tunidades educativas básicas — que a todos devem ser obri­
gatoriamente dadas — poderemos passar à educação da classe
média e da superior, pedindo-lhes, então, que socorram o
Estado, assumindo parte do custo dessa educação em retribuição
à manutenção do status social que lhes é, e muito justamente,
tão precioso. Como a educação da classe média e superior é
também essencial ao Estado, devé este custear parcela substan-
412 F.DUCAÇAO E SOCIEDADE

ciai dessa educação, mas sem que isto importe em sacrificar a


educação popular, pois esta, mais do que aquela, assegura a
estabilidade social, no estágio de consciência popular em que
vamos ingressando.
Custeando-a, assim, em parte, o Estado terá o direito e o
poder de impor o sistema aberto de classes, e permitir que
os mais capazes possam ascender às classes superiores seguintes.
Isto também concorrerá para a estabilidade social. Mas se
criarmos, ao invés disto, como vimos fazendo, um sistema re­
gular de ascensão social pela educação, não ministrando a
educação adequada às classes populares e suprimindo das clas­
ses médias e superiores o senso do sacrifício e do esforço ne­
cessário para nelas se manterem, o que equivale a torná-las
privilegiadas, estaremos criando o fermento das grandes inquie­
tações sociais e favorecendo um estado de coisas de desfecho
pelo menos imprevisto.
A educação sempre se apresentou com a alternativa para
a revolução e a catástrofe, mas, para isto, é necessário que
não se faça ela própria um caminho para o privilégio ou para
a manutenção de privilégios.
Façamos do nosso sistema escolar um sistema de formação
do homem para os diferentes níveis da vida social. Mas com
um vigoroso • espírito de justiça, dando primeiro aos muitos
aquele mínimo de educação, sem o qual a vida não terá signi­
ficação nem poderá sequer ser decentemente vivida, e depois,
aos poucos, a melhor educação possível, obrigando, porém, a
estes poucos a custear, sempre que possível, pelo menos parte
dessa educação, e, no caso de ser preciso ou de justiça, pelo
valor do estudante, dá-la gratuita, caracterizando de modo in-
disfarçável a dívida que está ele a assumir para com a socie­
dade. A educação mais alta que assim está a receber não lhe
dá direitos nem o faz credor da sociedade, antes lhe dá deveres
e responsabilidade, fá-lo o devedor de um débito que só a sua
produtividade real poderá pagar.
Bem sei quanto é difícil criar, entre nós, um tal espírito.
Muitos dirão que será mesmo impossível. Persisto em crer o
contrário. Os nossos jovens das escolas superiores podem não
possuir a consciência perfeitamente nítida de quanto são pri­
vilegiados. Mas, é indiscutível que os agita um certo senso de
dever social. Esclarecimentos como estes que estive aqui a
procurar prestar justar-se-ão a outros, até que se forme a cons-
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO 413

ciência necessária para as duas reformas indispensáveis: a reo-


rientação da escola para que a mesma se faça uma escola de
trabalho e de preparo real e não apenas de atividades rituais
para o diploma, e a redistribuição dos recursos para a educação,
estabelecendo-se a prioridade da gratuidade do ensino popu­
lar universal e o custeio do ensino pós-primário e superior em
parte com recursos públicos e em parte com recursos do estu­
dante, salvo se lhe não assistirem condições para tal e houver
obtido a matrícula em concurso público feito em escolas oficiais.
Com estas duas reformas, teremos corrigido, acredito, as
duas tendências menos promissoras e de certo modo graves
do nosso sistema educacional e, ao mesmo tempo, aberto um
novo caminho para a sua expansão que se vem fazendo e sa
há de fazer cada vez maior e mais ampla, constituindo cada
desenvolvimento a base sólida para um novo desenvolvimento
e não um progresso ilusório, destinado tão-somente a criar ama­
nhã problema ainda maior para a escola e para a sociedade.
EDUCAÇÃO E DESENVOLVIMENTO 413

ciência necessária para as duas reformas indispensáveis: a reo-


rientação da escola para que a mesma se faça uma escola de
trabalho e de preparo real e não apenas de atividades rituais
para o diploma, e a redistribuição dos recursos para a educação,
estabelecendo-se a prioridade da gratuidade do ensino popu­
lar universal e o custeio do ensino pós-primário e superior em
parte com recursos públicos e em parte com recursos do estu­
dante, salvo se lhe não assistirem condições para tal e houver
obtido a matrícula em concurso público feito em escolas oficiais.
Com estas duas reformas, teremos corrigido, acredito, as
duas tendências menos promissoras e de certo modo graves
do nosso sistema educacional e, ao mesmo tempo, aberto um
novo caminho para a sua expansão que se vem fazendo e se
há de fazer cada vez maior e mais ampla,, constituindo cada
desenvolvimento a base sólida para um novo desenvolvimento
e não um progresso ilusório, destinado tão-somente a criar ama­
nhã probkma ainda maior para a escola e para a sociedade.
GRAFICO 1

DEMONSTRAÇÃO DO C A R Á T E R S E L E T I V O
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