Você está na página 1de 4

Não há nada mais carioca do que pedras portuguesas.

Elas já estavam na Praça Tiradentes quando um Rolls-


Royce preto conversível parava as suas rodas brancas com
calotas prateadas ao lado da calçada para que um homem
baixinho e rechonchudo descesse do carro rumo a uma
escada estreita no número sete da rua Dom Pedro I.
Lá em cima, as pernas de Virgínia Lane esperavam
Getúlio Vargas num camarote reservado perto do palco.
Do outro lado do salão, o comunista do Mário Lago,
um tricolor que estudou no Pedro II e se formou em
Direito, podia falar maravilhas sobre uma tal Amélia para
um tipo vindo de Miraí - interior de Minas - chamado
Ataulfo Alves. Esse escurinho compôs o “Bonde de
São Januário” - samba muito desaforado que mudou de
letra com o Estado Novo - com um mulato de 1 metro e
sessenta e cinco, feições finas e cabelos ondulados, que
sofre tanto para escrever Wilson Batista quanto tem a
maior facilidade de fazer samba. Todos frequentadores
A do Salão Thalia, templo da arte das 8 bolas vulgarmente
i n cr í v el conhecida como sinuca. Lar de toda essa gente e do ébrio
história do compositor Vicente Celestino, sucesso no cinema e na varanda, onde
toca um tango que o Oscarito lá debaixo pode ouvir, já que
de belos sambas da
nunca teve coragem de subir - mesmo quando encenava
Praça Tiradentes que sem
Morangos ao Leite no Carlos Gomes em 1932. O relato é
ÉF IRO AV dinheiro e com muito de José Moreira, advogado e proprietário do atual Bilhar e
S Z talento se tornou o maior
O bar Guanabara.
desenhista erótico
ID

O bilhar era a casa do malandro e a rapaziada se divertia


L
OU C AR

DE
A

do Brasil. assim naquele tempo quando numa noite boêmia de 1956,


SECRETA

OCULTO numa mesa com pelo menos um copo de conhaque de


A alcatrão - bebida preferida de Nelson Cavaquinho - um
homem qualquer escreveu num pedaço de papel:
CULT
A

Tire seu sorriso do caminho


NH

AL I E que eu quero passar com a minha dor...


M
CIDES CA Essa é a história deste homem qualquer.
História contada por um sargento da PM Alcides casou-se aos 25 anos com Dona Serrat
aposentado há 14 anos que já levou três tiros e em 1946. Na casa que desenhou e construiu com
come uma pizza de calabresa com cebola num Dico na Rua Cardoso de Castro em Anchieta, ele
shopping em Vicente de Carvalho, subúrbio era um típico funcionário público. Pai de cinco
do Rio. Junto de Reinaldo está o primo Hélio, filhos, daqueles que se irrita quando passam em
botafoguense e professor de história. Entre frente à TV quando ele está assistindo ou estão no
goles de cerveja, as lembranças vão surgindo no banheiro quando ele quer usar, que come muitas
entardecer. frutas após as refeições que a vida toda só faz com
O pai de Reinaldo nasceu na Rua Bella, no bairro o mesmo par de talheres pesados do tempo do
de São Cristóvão, em 26 de setembro de 1921. hospital do Galeão.
Na escola, Alcides Aguiar Caminha só desenhava Mas capaz também de fazer balões do tamanho
navios e caravelas para as exposições de fim de da casa, ventiladores e trabalhos de escola que
ano. Entretanto, não chegou a completar o curso os professores dos filhos não querem devolver
ginasial. “Sua primeira profissão foi marceneiro”, de tão bem feitos, de cantar “Meus tempos de
lembra Dico - apelido de família de Reinaldo. criança” nas festas de família cheio de saudades
“Depois, foi até cantor de circo”, completa. da professorinha que lhe ensinou o bê-a-bá, além
_ Respeitável público, ele: Gil Duarte! – seu de uma canção de amor de quase dez minutos
nome no picadeiro. Alcides foi ainda goleiro do que Hélio não lembra - mas também não esquece
seu time do coração - o São Cristóvão -, estatístico – e levar Jamelão ao Sport Club Anchieta nos
e desenhista no hospital do Galeão, funcionário tempos em que era diretor. Capaz de saber tudo de
do Departamento Nacional de Imigração e história, ler muito, desenhar muito e não desistir
datiloscopista no Ministério do Trabalho. de nada. E essa seria sua vida, não fosse um “bico”
Às cinco da tarde, quando acabava o serviço, estranho que Alcides aceitou e que lhe renderia
Alcides batia ponto no Salão Thalia na Praça mais dinheiro do que os sambas e muito menos
Tiradentes. Lá, fez letras para sambas como “A fama – como o novo ofício, aliás, exigia.
Flor e o Espinho” – aquele do sorriso no meio Tudo por conta da lei 1711, de 28 de outubro
do caminho - e “Capital do Samba” em 1956. de 1952, ratificada pelo Estatuto do Funcionário
“Notícia”, foi feito dois anos antes para uma Público, de 1º de novembro de 1952, que no
amante sua que morava em Quintino, como conta capítulo V - artigo 207, inciso III - previa a
Hélio - que ficou sabendo da história por um irmão demissão de funcionários públicos em casos de
de maçonaria... incontinência pública e escandalosa.
Não se sabe ao certo como tudo começou. Hélio Era 10 de junho, dia de um 3x2 do Brasil em
Brandão – o “Gordo” , primeiro editor e distribuidor cima da Romênia em que Rivelino não jogou
- contava que as reuniões aconteciam à noite, numa e Pelé fez um gol de falta aos 20 minutos.
loja em cima do Cine Presidente, na Editora Ouro. Enquanto isso, a Polícia Federal prendia “Gordo”
Lá, discutiam-se os roteiros e eram feitas duas com 50 mil catecismos na capital federal -
histórias por semana. Segundo Alcides, a ampliação suficientes para fazer a alegria de um estádio
de revistas eróticas italianas a pedido do Caldas, um Jalisco inteiro. Tudo acabou bem, mas Hélio
motorista do hospital do Galeão, foi o início de tudo. Brandão nunca mais editou Carlos Zéfiro.
As versões não importam. Sobre um roupeiro velho Três anos depois, era Alcides quem se mudava
no quarto, nascia Carlos Zéfiro. para capital por questões de trabalho com Serrat
Um esquema de gráficas de subúrbio, editores e Cid – o filho mais novo. Ofereceram-lhe um
e mascates levava as revistinhas para todo país. apartamento em Brasília, mas ele só conseguia
“Havia outros desenhistas eróticos, mas nenhum viver em casa. Na primeira noite em Sobradinho,
tão conhecido como Carlos Zéfiro”, conta Adda Di ficou vagando pelo cerrado vazio com um
Guimarães, dona de uma banca de revistas antigas revólver em punho.
em Ipanema. Nas páginas dos catecismos – nome “Brasília acabou com meu pai”, conta Dico.
paulista para as revistas em formato de quarto de O diabetes, as revistas coloridas européias, o
papel-ofício -, a lenda devorava mulheres apetitosas e fim da era de ouro de Carlos Zéfiro. De bom, o
safadinhas do fim dos anos 40. diploma de conclusão do curso ginasial em 1979.
Moças que por 20 anos se recusaram a se entregar à “Dava aula para o chefe no trabalho”, esnoba o
primeira vista para logo se desfazerem em desmaios filho orgulhoso do pai autodidata, capaz de fazer
após transas intensas em 862 revistas com tiragem sozinho os sapatos cavalos-de-aço que via na
média de cinco mil exemplares – best-sellers, como televisão.
Aventuras de João Cavalo, um capiau bem-dotado Porém, Alcides ainda escondia seu lado Zéfiro.
que demora a encontrar um chinelo velho para seu pé Ele temia pela sua aposentadoria. Tudo por
cansado, alcançaram 30 mil exemplares. causa da lei 1711, de 28 de outubro de 1952...
Contos guardados na memória afetiva de quatro “Ele tinha ela guardada em casa”, lembra Dico.
gerações ávidas por se lambuzar com o herói das Catecismos podiam ser “incontinência pública e
cabines de banheiro, seja no Brasil, Uruguai ou escandalosa”.
Argentina – para onde as revistas que deram mais Enquanto isso, intelectuais que colecionavam as
dinheiro foram exportadas (sem legendas, pois revistinhas, como Ivan Lessa e Marcos Nanini,
Alcides não sabia castelhano) – e “até na França e na especulavam sobre quem poderia ser o autor.
Espanha, onde já foram encontradas”, conta Hélio. “Quem chegou mais perto foi o Sérgio Augusto,
Zéfiro virou mito: digno de inquérito militar durante que disse que devia ser um velhinho, pai de
a Copa de 70 para esclarecer quem era o subversivo família, cheio de netinhos em volta...”, reconhece
da moral e dos bons costumes. Hélio.
Era 1991, um domingo na casa de Anchieta com Numa sexta, 3 de julho de 1992, ele recebeu para que A Cena Muda, banca de Adda Di
direito a Fantástico, mesa posta e família reunida. o prêmio HQ Mix pelas décadas de trabalho no Guimarães, se interessasse em voltar a publicar
“Como vocês querem que eu faça?”, Juca Kfouri mundo dos quadrinhos. No domingo, Alcides os catecismos.
pergunta. “Lê você mesmo”, respondem. Ele sentiu um mal-estar numa festa de aniversário. Ela me diz que os distribuiu para 150 bancas
começa. É uma história bonita sobre um homem Ele morreu a caminho do hospital Carlos Chagas do Rio de Janeiro. Mas reclama, dizendo que os
com medo. Dona Serrat começa a chorar. O em Marechal Hermes com bem vividos 70 anos, jornaleiros misturavam os catecismos a “revistas
homem fuma. Seus filhos, netos e noras ouvem nove meses e sete dias. Mas Carlos Zéfiro, nojentas” - “Eles não entendem o seguinte:
atentos. Juca termina de ler. Aplausos. esse continuaria vivo na lembrança de meninos Carlos Zéfiro é cult!”
Logo chegava às bancas a edição de novembro eternamente gratos às suas lições. Cult! Cult como o filme a ser rodado em 2012
da Playboy, nº 196, com Ísis de Oliveira e Os desenhos logo voltariam, ilustrando e “Os catecismos segundo Carlos Zéfiro” - peça
chamada de capa que acabava com um mistério Barulhinho Bom, disco de Marisa Monte de exibida no Solar de Botafogo sobre a história
de 30 anos: revelada a verdadeira identidade de 1996. Dois anos depois, o trabalho estava nas de sua vida. Cult como tudo aquilo que além da
Carlos Zéfiro, o lendário autor de quadrinhos vinhetas da MTV. Em 1999, Anchieta ganha moda, está no campo da devoção. Cult como o
eróticos que enlouqueciam o país! Seguiu-se uma lona cultural com o nome de um de seus samba, o sexo e as pedras portuguesas, que ainda
a isso uma série de entrevistas, premiações e anônimos mais conhecidos. “Já teve até sandália hoje repousam discretas e ocultas na vida em
homenagens ao ilustríssimo desconhecido. Para querendo os desenhos e cervejaria imitando preto e branco da Praça Tiradentes.
Dico, homenagens tantas que o pai não resistiu. na cara dura”, resmunga Dico. Não demorou

Você também pode gostar