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S268 Jornal de Pediatria - Vol. 75, Supl.

2, 1999
0021-7557/99/75-Supl.2/S268
Jornal de Pediatria
Copyright © 1999 by Sociedade Brasileira de Pediatria

ARTIGO DE REVISÃO

Abordagem em criança politraumatizada


Inicial care in severe pediatric trauma
Sulim Abramovici1, Renato Lopes de Souza2

Resumo Abstract
Objetivos: Apresentar de forma objetiva e prática a abordagem Objectives: To present objectively the therapeutic aspects for
terapêutica da criança vítima de trauma. the management of child victim of trauma.
Métodos: Foram revisados artigos da literatura, selecionando- Methods: The most relevant articles about the management of
se aqueles que tratam das questões envolvendo a abordagem e o acute trauma were selected.
tratamento da criança com trauma. Results: Children possess great potential for recovery after a
Resultados: A criança apresenta grande potencial de recupera- trauma, however, inappropriate resuscitation is the major cause of
ção, porém a ressuscitação inadequada é considerada a maior causa death preventable.
de óbitos por trauma passível de prevenção. Cuidados na abertura Care in the opening and maintenance of the airways, adequate
e manutenção da via aérea, na oferta adequada de fluido para a input of fluid to the child victim of politrauma or burns as well as
criança vítima de politraumatismo e queimaduras, assim como no prompt diagnosis and effective management to internal bleeding has
diagnóstico precoce e tratamento efetivo de hemorragias internas improved prognosis and can reduce mortality considerably. Initial
melhoram o prognóstico e reduzem drasticamente as taxas de assessment and management of the injured child requires immediate
mortalidade. procedures towards respiratory failure, shock and life-threatening
O atendimento inicial da criança vítima de politraumatismo thoracic injuries in order to provide efficient ventilation, oxyge-
exige imediato tratamento da falência respiratória, do choque e das nation and perfusion until definitive treatment is performed. Con-
lesões de tórax com risco de vida para assegurar efetividade de comitantly, the cervical spine should be protected against new
ventilação, oxigenação e perfusão até o tratamento definitivo. injuries or progression of established injury.
Simultaneamente, a coluna cervical deve ser protegida de possível Conclusions: Effective actions in order to prevent accidents
lesão já existente ou aparecimento de futura lesão. and rigorous laws to protect children and adolescents, associated to
Conclusões: Medidas efetivas de prevenção de acidentes, leis training and practice of specific procedures to the politraumatized
rigorosas de proteção à criança e ao adolescente, associadas ao child could surely reduce the unacceptable morbi-mortality in our
treinamento no atendimento ao politraumatismo reduziriam signi- country.
ficativamente os preocupantes índices de morbi-mortalidade em
nosso país.
J. pediatr. (Rio J.). 1999; 75 (Supl.2): S268-S278: politrauma, J. pediatr. (Rio J.). 1999; 75 (Supl.2): S268-S278: pediatric
criança politraumatizada, trauma, queimaduras. injury, pediatric trauma, injured child, polytrauma, burns.

Introdução prevenção, deverá se transformar em uma tragédia mais


Trauma é a doença do século XX e pode ser classifi- intensa no início do novo milênio.
cada corretamente como uma epidemia que, se não forem Podemos definir violência como o evento representado
tomadas medidas eficazes para um programa nacional de por ações realizadas por indivíduos ou grupos que oca-
sionam danos físicos, emocionais, morais ou espirituais a
outros ou a si próprios. Acidente é definido como evento
1. Presidente do Departamento de Emergências da Sociedade de Pedia- não intencional e evitável, causador de todos os tipos de
tria de São Paulo. Supervisor do Pronto-Socorro Pediátrico do Hospital lesões no ambiente doméstico ou nos outros espaços
Santa Marcelina. Pediatra da Unidade de Primeiro Atendimento do
Hospital Israelita Albert Einstein.
sociais como trabalho, trânsito, escola, esportes e lazer1.
2. Assistente da Unidade de Cuidados Intensivos Pediátrica da Universi- Na década de 80, as mortes por acidentes e violência
dade Federal de São Paulo. Intensivista da Unidade de Terapia Intensiva passaram a responder pela segunda causa de óbitos no
do Hospital Santa Catarina. Preceptor da Unidade de Terapia Intensiva
do Hospital Infantil Candido Fontoura. quadro de mortalidade geral, ensejando a discussão de que

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se tratava de um dos mais graves problemas de saúde Terceiro pico - Mortes tardias representam as pessoas
pública a ser enfrentado. A partir de então, essas mortes que morrem dias ou semanas após o trauma. Em quase
representavam cerca de 15% dos óbitos registrados no 80% dos casos, a morte é causada por infecção ou falência
país, perdendo apenas para as doenças do aparelho circu- dos múltiplos órgãos.
latório2. Em 1996, os acidentes e violências foram respon- A regionalização e a hierarquização do atendimento
sáveis por aproximadamente 120.000 óbitos. médico, associadas à criação de Centros de Trauma são de
As causas externas (acidentes e violências) represen- importância vital para a redução da morbidade e mortali-
tam em nosso país, a principal causa de morte nas crianças dade, representando a melhor forma de oferecer tratamen-
e adolescentes na faixa etária de 5 a 19 anos. Contribuem to contínuo desde o evento até a reabilitação.
com 57% do total de mortalidade na faixa de 0 a 19 anos, As crianças que morrem logo após o acidente têm
segundo dados do Ministério da Saúde de 1995, publica- como principais mecanismos de morte os seguintes: com-
dos em 1998, sendo que os acidentes de transporte prometimento das vias aéreas, choque hipovolêmico e
representaram 30% deste total. A região sudeste do país lesão do sistema nervoso central. A abordagem das vias
contribui com o maior número de mortos devidos a esta aéreas é o componente mais crítico da reanimação inicial
causa, seguida da região nordeste. de uma criança traumatizada. No trauma craniencefálico
Os principais traumas que levam à morte em nosso país é de suma importância a ventilação e a oxigenação
são os atropelamentos, quedas, afogamentos etc., mas as adequadas para minimizar lesões cerebrais.
violências (homicídios, suicídio) na faixa da adolescência Os acidentes no Brasil custam, sem considerar o
assumem importante papel, sobrepondo-se às demais aspecto humano, as quantias fabulosas de 2 bilhões de
causas. Infelizmente muitas dessas crianças apresentam dólares em perdas materiais e outros 2 bilhões de dólares
traumatismo craniano, a despeito de leis recentes que em perdas sociais, ou seja, 4 bilhões de dólares ao ano e
tornam obrigatório o uso de cintos de segurança nos mais o imensurável valor em sofrimento. O custo financei-
automóveis e das campanhas de prevenção de acidentes3. ro desse crescente problema é imenso e causa intensa
As quedas são outra causa comum de traumatismo na sobrecarga a um sistema de assistência à saúde já claudi-
infância e, em geral, ocorrem em crianças menores. A cante.
vitimização é outro problema significativo, que exige Estima-se que, para cada óbito, ocorrem 4 casos que
atenção dos pediatras que atendem crianças acidentadas no sobrevivem com seqüela graves8.
ambiente doméstico4. O impressionante aumento de cri- A mortalidade no Brasil por causas externas em
mes violentos nas grandes cidades resultou em um aumen- crianças abaixo de um ano ocupa o 8º lugar, passando a
to do número de traumatismos penetrantes em crianças. 3º lugar entre 1 e 4 anos, e acima de 5 anos ocupa o 1º
Atualmente sete em cada dez adolescentes morrem por lugar.
causas externas5.
Os coeficientes indicam a existência de um número
O impacto dessas mortes pode ser analisado ainda por muito alto de acidentes fatais, cujas características eviden-
meio do indicador relativo a Anos Potenciais de Vida ciam a necessidade de medidas que evitem que as crianças
Perdidos (APVP). Por incidirem com elevada freqüência e adolescentes permaneçam tão vulneráveis, e também
no grupo de adolescentes e adultos jovens, os acidentes e deixam patente a necessidade de se tentar melhorar a
violências são responsáveis pelo maior número de anos assistência às vitimas de trauma.
potenciais de vida perdidos. No Brasil, o indicador de
Politrauma é definido como o conjunto de lesões
APVP aumentou 30% em relação a acidentes e violências
traumáticas simultâneas em diversas regiões, órgãos ou
entre 1981 e 1991, enquanto que para as causas naturais
sistemas do corpo, em que pelo menos uma das lesões pode
os índices encontram-se em queda6,7.
colocar o paciente em risco de vida. Em grande número de
A morte por trauma apresenta uma distribuição trimo- casos ocorre, também, trauma craniencefálico.
dal: quando o índice de mortalidade é plotado em função
Este capitulo aborda a ressuscitação inicial, caracterís-
do tempo após lesão, aparecem três picos:
ticas anatômicas e fisiológicas em crianças, prioridades na
Primeiro pico – Mortes imediatas que ocorrem na ressuscitação, transporte com eficiência e o tratamento
primeira hora e invariavelmente são causadas por lacera- definitivo.
ções do cérebro, tronco cerebral, medula espinal, coração
e grandes vasos.
Segundo pico – Mortes precoces que ocorrem nas Suporte de vida
primeiras 4 horas e são geralmente causadas por hemor- O atendimento inicial da criança politraumatizada
ragia intensa resultante das lesões no sistema respiratório, obedece à seqüência “ABCDE”, segundo rotina do curso
órgãos abdominais e sistema nervoso central. Quase todas Suporte Avançado de Vida em Pediatria, da American
as lesões deste grupo são consideradas tratáveis pelos Heart Association9.
procedimentos médicos disponíveis atualmente. O inter-
A = “airway” = vias aéreas
valo entre a lesão e a terapêutica definitiva é crítico para
B = “breathing” = respiração
a recuperação.
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C = “circulation” = circulação uma pessoa. Se isso não ocorre, a criança está agitada ou
D = “disability” = avaliação neurológica se existem dúvidas da efetividade da imobilização cervi-
E = “exposure” = exposição cal, uma pessoa deve estabilizar o pescoço e outra deve
proceder à intubação.
A – Vias aéreas A intubação deve sempre ser precedida por ventilação
A criança apresenta diferenças anatômicas quando com bolsa-máscara e oxigenação. Se a criança está cons-
comparada ao adulto, que tornam mais difíceis a manuten- ciente, a administração de bloqueador neuromuscular de
ção das vias aéreas permeáveis e a intubação traqueal10. ação curta com sedação ou anestesia pode ser necessária,
A cavidade oral é pequena e a língua é grande em para evitar concomitante aumento de pressão intracrania-
relação à orofaringe. na.
Em crianças vítimas de traumatismo, a cricotireoido-
O ângulo da mandíbula é maior (140o no lactente e 120o
tomia pode ser necessária na presença de traumatismo
no adulto).
facial grave ou em pacientes com lesão instável de coluna
A epiglote tem mais forma de “U” que o adulto. cervical.
A laringe está em posição mais cefálica (glote em C3 A via aérea deve ser mantida totalmente permeável,
em lactentes e C5 e C6 em adultos). enquanto a coluna cervical é imobilizada em posição
O anel cricóide é a parte mais estreita das vias aéreas neutra. Tração e movimento do pescoço devem ser evita-
em crianças abaixo de 10 anos. dos após manutenção da via aérea e estabilização da coluna
A traquéia é mais curta (em recém-nascidos, 4 a 5 cm cervical. Um colar semi-rígido deve ser aplicado.
e aos 18 meses, 7 a 8 cm). As indicações para intubação endotraqueal da criança
vítima de politraumatismo são as seguintes: parada respi-
O estabelecimento de via aérea permeável com prote- ratória, falência respiratória (hipoventilação, hipoxemia
ção simultânea da coluna cervical é muito difícil na criança arterial apesar da suplementação de oxigênio e acidose
vítima de politraumatismo. As vias aéreas são facilmente respiratória), obstrução de vias aéreas, escala de coma de
obstruídas por corpos estranhos como sangue, muco e Glasgow menor ou igual a 8 e necessidade de suporte
fragmentos de dente, e devem ser limpas e aspiradas com ventilatório prolongado (lesões torácicas ou necessidade
cuidado, eventualmente com pinças adequadas. de exames diagnósticos).
A lesão de coluna cervical é menos comum em criança,
comparando-se com os acidentes de adultos, porque a B – Respiração
coluna é mais elástica e móvel do que a do adulto, e as A efetividade da ventilação e da oxigenação deve ser
vértebras, menos rígidas, são menos predispostas a fratu- continuamente avaliada, observando-se expansibilidade
ras. Apesar disso, o risco é grande, porque as crianças simétrica e ausência de cianose.
estão sujeitas a maiores forças inerciais aplicadas ao A criança traumatizada deve receber oxigenação su-
pescoço durante o processo de aceleração-desaceleração, plementar na maior concentração possível por meio de
que ocorre principalmente em acidentes automobilísticos máscara. Se a respiração não for eficaz, instituir ventila-
e quedas de altura. O risco aumenta, porque a cabeça da ção assistida com bolsa-máscara com reservatório para
criança é proporcionalmente maior do que a cabeça do oferecer oxigênio a 100%. Essa assistência deve, eventu-
adulto e tem efeito de impulsionar a criança. Podem almente, ser seguida por intubação endotraqueal.
ocorrer, então, traumatismo craniano e lesão medular A hiperventilação é freqüentemente necessária durante
simultâneos. a estabilização na criança politraumatizada por reduzir a
O comprometimento da coluna cervical pode ser ana- pressão intracraniana associada ao fluxo sangüíneo central
tômico ou funcional. A alteração anatômica está associada aumentado.
à alteração óssea vertebral, enquanto a alteração funcional A ventilação da criança pode estar comprometida por
consiste de comprometimento da medula espinal sem distensão gástrica, diminuindo a mobilidade do diafragma
anormalidade radiológica (spinal cord injury without ra- e aumentando o risco de vômitos e aspiração. Uma sonda
diographic abnormality–SCIWORA)11. SCIWORA é re- nasogástrica deve ser introduzida tão logo seja controlada
conhecida como importante causa de lesão de medula a ventilação. Entretanto, sonda orogástrica deve ser usada
espinal em crianças, podendo ser responsável por um em crianças com traumatismo craniofacial grave, fratura
grande número de óbitos pré-hospitalares antes atribuídos de base de crânio ou maxilofacial para evitar a migração
ao traumatismo craniano. intracraniana do tubo12.
A intubação endotraqueal na criança vítima de poli-
traumatismo pode ser difícil, porque o pescoço deve C – Circulação
permanecer em posição neutra e não pode ser hiperesten- A manutenção da circulação em crianças politrauma-
dido durante o procedimento. tizadas requer controle de hemorragias externas, suporte
Se a criança está adequadamente imobilizada e com da função cardiovascular e perfusão sistêmica, restaura-
colar cervical, a intubação endotraqueal pode ser feita por ção e manutenção de volume sangüíneo adequado13.
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Uma intervenção cirúrgica pode ser necessária para E - Exposição


resolução de hemorragias internas. A retirada da roupa é essencial para permitir um exame
A transfusão de sangue tem fundamental importância completo de todos os segmentos corpóreos e facilitar a
na estabilização inicial do paciente traumatizado que realização dos procedimentos.
apresentou perda significativa, a fim de restaurar o trans- A criança, principalmente o lactente, sofre rápida
porte de oxigênio e o volume intravascular. perda de calor por ter uma maior superfície corpórea em
A falta de diagnóstico e tratamento de sangramentos relação ao peso, exigindo a monitorização da temperatura.
internos é a principal causa da morte passível de ser A queda da temperatura leva ao aumento do consumo do
evitada em criança politraumatizada. oxigênio e vasoconstrição periférica. Adequada tempera-
O controle de hemorragia externa pode ser feito com tura ambiente e utilização de calor radiante ou cobertores
aplicação de compressas sob pressão diretamente sobre os elétricos são importantes durante o atendimento.
ferimentos.
O acesso vascular deve ser providenciado rapidamente
na criança politraumatizada. Dois cateteres de grosso Trauma torácico
calibre devem ser colocados, preferencialmente em mem-
Mecanismo de lesão
bros superiores.
A caixa torácica da criança é mais complacente,
A via intra-óssea é uma forma de acesso vascular em
permitindo no trauma maior transferência de energia para
crianças menores de 6 anos, se uma via venosa não pode
as estruturas intratorácicas. Com isso, devemos suspeitar
ser obtida rapidamente.
de contusões pulmonares ou hemorragias, mesmo sem
Se essas tentativas não forem conseguidas com suces-
qualquer lesão aparente ou fratura de costelas, dependen-
so, a passagem percutânea de cateteres através de veias
do do tipo de acidente.
femural, subclávia ou jugular, ou a dissecção, devem ser
realizadas de acordo com a experiência da equipe no Na suspeita de lesão torácica, os pacientes devem ser
atendimento. divididos em dois grupos: os com lesões que envolvem
Se a perfusão sistêmica é inadequada, mas a pressão risco iminente de vida (deterioração rápida dos sinais
sangüínea é normal (choque compensado), está ocorrendo clínicos) e, portanto, necessitam tratamento emergencial
hipovolemia leve a moderada. A conduta é reposição de (se necessário até interrompendo as manobras de reanima-
volume com bolus de 20ml/kg de solução cristalóide (soro ção), e os com lesões potencialmente letais, que devem ser
fisiológico ou Ringer lactato). Repetição de bolus de observados com avaliações clínicas repetidas e monitori-
20ml/kg pode ser necessária, se não houver melhora da zação.
perfusão. No exame clínico devemos observar sinais de descon-
Se sinais de choque persistem após infusão de dois forto respiratório (freqüência respiratória, freqüência car-
bolus de solução cristalóide, deve-se indicar transfusão de díaca, padrão respiratório), simetria da parede torácica,
sangue. retrações de fúrcula, intercostal ou subcostal, ausculta
A presença de hipotensão (choque descompensado) pulmonar e percussão torácica, níveis de oxigenação
indica a perda de 25 a 30% ou mais de volume, com através da oximetria de pulso (hipoxemia com saturação
necessidade de reposição de sangue. parcial de O2 menor de 90 %). É imprescindível nestes
A transfusão urgente também é necessária se a criança pacientes a suplementação de oxigênio com frações inspi-
não responde à administração de 50ml/kg de solução radas de 100%. Lesões torácicas com risco iminente de
cristalóide isotônica, podendo a intervenção cirúrgica ser vida (ver Tabela 1).
necessária.
Sangue deve ser administrado em bolus de 10ml/kg de Outras lesões torácicas (potencialmente letais)
concentrado de hemácias alternados com solução fisioló- Contusão pulmonar
gica à temperatura do corpo. Também podem ser adminis- Lesão com poucas alterações ao exame clínico inicial
trados bolus de 20ml/kg de sangue total, até melhora da e mínimas alterações radiológicas. Na suspeita, estes
perfusão sistêmica. Se o choque persiste, apesar do pacientes devem ser monitorizados, com atenção para
controle de hemorragias externas e da reposição de volu- taquicardia, taquipnéia, hemoptise e queda da saturação
me, é provável a existência de hemorragias internas. de oxigênio.

D - Avaliação neurológica
Contusão miocárdica
A avaliação do estado neurológico é o passo seguinte.
A contusão miocárdica pode ocorrer por trauma cardí-
Deve-se fazer um exame sumário das pupilas quanto ao
aco não penetrante, porém é rara em crianças. Os pacien-
tamanho, simetria e resposta à luz. O estado de consciên-
tes podem permanecer estáveis hemodinamicamente nas
cia é avaliado através da correlação com a escala de coma
primeiras 48 horas; quando ocorrer diminuição de perfu-
de Glasgow. Índices iguais ou menores que 8 estão
são periférica, ou a hipotensão ou aparecimento de sopro
relacionados com mortalidade de 40% e seqüelas neuro-
cardíaco, é indicada realização de ecocardiografia e dosa-
lógicas graves.
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Tabela 1 - Lesões com risco de vida no trauma torácico

Lesão Manifestações / diagnóstico Tratamento

Obstrução das vias aéreas Insuficiência respiratória Aspiração, manobras para anteriorização
Retração/estridor da mandíbula e queixo, intubação
Hemotórax Diminuição dos murmúrios vesiculares, Drenagem torácica, reanimação fluídica, cirurgia.
Macicez à percussão, Rx tórax Caso não haja comprometimento grave da oxigenação/
ventilação proceder antes a reanimação fluídica
Tórax flutuante Assincronismo no movimento da Decúbito do paciente para o lado da lesão (fraturas)
parede respiratória, Rx tórax para estabilizar o tórax, VPM com PEEP
caso persista a insuficiência respiratória
Tamponamento cardíaco Abafamento das bulhas, distensão venosa Tem de ser drenado. Ver algoritmo de
cervical, hipotensão (Tríade de Beck) e tamponamento cardíaco (Figura 2)
pulso paradoxal. Choque do tipo obstrutivo;
Rx tórax e ECG
Pneumotórax aberto Ferimento aberto em tórax, sinais de Oclusão do ferimento com gaze vaselinada em
pneumotórax descritos abaixo três lados e curativos estéreis, além da drenagem do
hemitórax atingido, sendo o local de inserção do dreno
diferente do da lesão
Pneumotórax hipertensivo Diminuição dos MV unilateral ou bilateral, Aliviar inicialmente com drenagem com agulha
ou Pneumotórax bilateral desconforto respiratório, distensão venosa ou em crianças menores com “scalp” em selo d’água,
cervical, timpanismo à percussão do seguido de drenagem definitiva do hemitórax afetado
hemitórax envolvido, desvio do ictus
cordis, desvio traqueal; Rx tórax

gem de enzimas cardíacas. Os principais achados são: das lesões necessitam tratamento cirúrgico). Raramente
regurgitação mitral e tricúspide, comunicação interventri- em crianças pode ocorrer pseudo-aneurisma de artéria
cular, efusão pericárdica, anormalidades do sistema de hepática pós-traumático, com trauma fechado ou pene-
condução e contusões. A maioria das crianças melhora trante. Os sinais16 podem ser imediatos ou aparecer até
apenas com tratamento conservador14. dois meses após o trauma, e a hipótese diagnóstica é feita
através de tomografia computadorizada e confirmada com
Trauma abdominal angiografia. O tratamento de escolha é a embolização
O início dos sintomas no trauma abdominal pode ser através de cateter.
rápido (hemorragias maciças) ou apresentar uma evolução Baço
mais lenta. O diagnóstico é realizado pelo exame clínico Dor nos ombros ou hemitórax esquerdo acompanhada
do abdome serialmente, tomografia e mais raramente em de esforço respiratório, náusea, vômito (sinal de Kehr).
crianças através do lavado peritoneal. Deve ser mantida em observação seriada com ultra-
sonografia e tomografia e dosagem de hematócrito. Perda
Intestinal
de 40% da volemia indica tratamento cirúrgico; na maioria
A incidência de lesão intestinal na criança em trauma
dos casos, o tratamento é conservador.
abdominal fechado é de 1,4%, e, segundo Jerby15, o
diagnóstico pode ser feito em 94% das crianças através do Pâncreas
exame físico. Os principais sinais são de irritação perito- A lesão pancreática ocorre em até 10% de todos os
neal: abdome em “tábua”, paracentese positiva para casos de trauma abdominal em pediatria e é a causa mais
conteúdo fecal ou alimento, e o tratamento geralmente é comum de pancreatite na criança. A criança apresenta dor
cirúrgico. abdominal difusa e vômitos. Massa epigástrica pode estar
presente; a relação amilase urinária/clearence de creatini-
Fígado na é mais adequada para se fazer diagnóstico; entretanto,
Dor no ombro direito, hipersensibilidade dolorosa em sua sensibilidade é baixa. Em trabalho de Arkovitz17, a
quadrante abdominal superior direito e aumento de enzi- realização de tomografia com duplo contraste mostrou-se
mas hepáticas (transaminases). O tratamento é conserva- mais sensível que a ultra-sonografia. O tratamento é
dor na maioria das vezes; internação em UTI e observação conservador com aspiração contínua em sonda nasogástri-
seriada com tomografia e ultra-sonografia; tratamento ca e nutrição parenteral prolongada. Em grande casuística
cirúrgico para os casos com choque refratário (apenas 4% relatada por Keller18, a maioria das lesões pancreáticas
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sem lesão ductal ou deterioração clínica do paciente Nos pacientes em que o mecanismo do trauma foi
resolveu-se com tratamento conservador; apenas 10% explosão ou desaceleração é imperativa a imobilização
necessitaram de procedimento cirúrgico para drenagem de cervical.
pseudocisto. Respiração: Queimaduras circunferenciais de tórax
Gênito-urinário podem ocasionar restrição na ventilação necessitando
escarotomia. A diminuição na oxigenação pode ocorrer
O trauma gênito-urinário pode variar desde uma sim-
por inalação de fumaça ou por intoxicação por monóxido
ples contusão até ruptura do pedículo renal com hematoma
de carbono.
perinéfrico e perda completa de função renal. Os pacientes
Circulação: Proceder dois acessos venosos calibrosos
apresentam hipersensibilidade dolorosa e defesa local,
e, se houver sinais de choque ou de hipoperfusão, admi-
distensão abdominal, massa em flancos; podendo haver ou
nistrar 20 ml/kg de soro fisiológico ou Ringer lactato.
não hematúria. A hematúria macro ou microscópica pode
estar associada a lesão renal, porém não é específica e
2. Avaliação da área queimada
também não identifica anatomicamente o nível da lesão.
As alterações do exame físico e a presença de hematúria Extensão da lesão (porcentagem de área corporal
macro ou microscópica, associadas com sinais de choque queimada) e profundidade (Superficial- 1o grau, Parcial
ou outras lesões significantes, identificam a maioria dos superficial - 2o grau, Parcial profunda - 2o grau ou Total
pacientes com lesão renal. Na suspeita de traumatismo do - 3o grau). Deve ser feita limpeza com soro fisiológico
trato gênito-urinário, são recomendadas a urografia excre- morno e proteção para minimizar perda de calor (inicial-
tora (UGE) e a tomografia com contraste intravenoso. Dos mente não utilizar antibioticoterapia tópica).
pacientes com lesão na UGE, 80% têm conduta expectan-
te. Opta-se por conduta cirúrgica nos casos de queda do 3. Reanimação fluídica
hematócrito e hemoglobina, choque refratário, distensão A infusão de líquidos nas primeiras 24 horas é feita
vesical por coágulos19. com 5.000 ml/m2 de superfície corpórea queimada com
Ringer lactato e manutenção de 2.000 ml/m2 de superfície
corpórea. Administrar metade do volume nas primeiras 8
Queimaduras horas da queimadura e o restante nas próximas 16 horas.Nas
Aproximadamente 2,5 milhões de pessoas são vítimas 24 horas seguintes, a velocidade de infusão é reduzida para
de queimaduras anualmente, com 100.000 hospitalizações 3.750 ml/m2 de superfície corpórea queimada e a manu-
e 12.000 mortes nos EUA. A causa mais comum de tenção de 1.500 ml/m2 de superfície corpórea.
queimaduras na infância é o escaldo (25%). Anualmente, Ajustar a infusão de líquidos para manter o débito
nos EUA, a incidência de lesões por fogos de artifício urinário de 1ml/kg/hora. A sobrecarga hídrica pode pro-
corresponde a 3,1-9,7 por 100.00021. No Brasil, um duzir edema pulmonar e cerebral24.
estudo mostra que 50% dos casos envolveram crianças e
4. Avaliação secundária
que a queimadura com álcool foi responsável por 40% dos
acidentes com crianças de 7 a 11 anos, o grupo mais História: mecanismo de lesão, horário e ambiente do
atingido entre os pacientes pediátricos22. acidente.
Durante o resgate deve-se retirar as vítimas do local, Exame físico seriado e exame neurológico cuidadoso.
sempre suspeitar de lesão inalatória e fornecer 100% de Atenção para palpação dos pulsos periféricos das extremi-
oxigênio com cuidado para não se tornar também uma dades com queimaduras circunferenciais; na ausência ou
vítima, retirar anéis, cintos que possam reter calor ou ter diminuição destes, fazer escarotomia com urgência.
efeito de torniquete e remover as roupas para não continu- Exames laboratoriais: hemograma, eletrólitos, glice-
ar o processo de queimadura. mia, uréia, creatinina, gasometria arterial, carboxihemo-
globina e Rx tórax.
1. Avaliação inicial Controle de temperatura: manter o paciente seco e
Vias aéreas: Verificar se o paciente esteve exposto a aquecido.
gases ou a inalação de fumaça. A queimadura direta ou Controle da dor: dor intensa, utilizar morfina 0,03 mg/
ação do calor nas vias aéreas pode causar edema e até kg/dose cada 2 a 4 horas ou fentanil, preferencialmente
obstrução. Devemos sempre suspeitar de lesão por inala- contínuo de 0,5 a 2 mcg/kg/hora. Dor moderada, utilizar
ção de fumaça quando houver queimadura facial, das paracetamol na dose de 10 a 15 mg/kg via oral cada 4 a 6
vibrissas nasais, escarro carbonáceo e taquipnéia. A horas. Nunca devemos administrar medicação intramus-
mortalidade é predominantemente determinada pela su- cular ou subcutânea.
perfície corpórea queimada e pela lesão inalatória freqüen- Imunização anti-tetânica: as crianças com mais do que
temente não reconhecida. Uma revisão retrospectiva de 10% de superfície corpórea queimada devem receber 0,5
4.551 crianças queimadas mostrou lesão inalatória diag- ml de toxóide tetânico; se o paciente não recebeu imuni-
nosticada clínica e confirmada endoscopicamente e pós- zação anteriormente ou se o reforço foi há mais de 10 anos
morte em 97 pacientes (2,2%). A intubação, que deve ser deve receber 250 a 500 unidades de imunoglobulina anti-
precoce nestes casos, foi necessária em 50% deles23. tetânica, por via intramuscular.
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Figura 1 - Avaliação e conduta no trauma abdominal fechado

Outros fatores importante na morbidade e mortalidade corporal, produzindo maior perda de calor. Os acessos
que merecem atenção especial são: tratamento cirúrgico vascular e de vias aéreas são mais difíceis26.
(que deve ser precoce), suporte nutricional (nutrição
enteral contínua e parenteral) e a prevenção e controle das Criança vitimizada
infecções. Maus tratos constituem uma exorbitância dos direitos
Os critérios de internação e cuidados intensivos da da sociedade no sentido de controlar, disciplinar e punir as
criança são diferentes dos critérios para o adulto devido às crianças, enquanto a negligência representa o fracasso no
características especiais do paciente pediátrico. Pela mai- desempenho das funções sociais, incluindo as de supervi-
or superfície corporal em relação ao seu peso, as crianças são, alimentação e proteção.
perdem proporcionalmente maior quantidade de líquidos Na sociedade ideal, em que os pais tivessem os
pelas lesões do que os adultos, o que obriga a uma recursos e os preparos necessários para uma criação
reposição intravenosa em queimaduras, inclusive, de 10% eficiente de seus filhos, o abuso físico para influenciar o
de superfície corpórea (SC). No paciente pediátrico a comportamento das crianças seria desnecessário27. O
reposição fluídica deve ser bem monitorizada para evitar castigo corporal, porém, é um método de disciplina antigo
sobrecarga de volume, alterações eletrolíticas ou altera- e estabelecido na maioria das sociedades.
ções do equilíbrio ácido-básico25. Os critérios de interna- Para exercer o papel de defensores de crianças, os
ção em unidade de queimados são os seguintes: 1. Quei- pediatras devem suspeitar do diagnóstico e estar prepara-
maduras de 2o e 3o graus em 10% da SC em crianças com dos para relatar os achados clínicos ao juízo competente.
menos de 10 anos, 2. Queimaduras de 2o e 3o graus em A identificação de uma discrepância entre a avaliação
20% da SC em qualquer idade, 3. Queimaduras com risco médica da lesão e a história fornecida pelo responsável já
funcional ou estético (face, mãos, pés, períneo ou articu- é uma razão de peso para suspeita e comunicação do fato
lações), 4. Queimaduras elétricas, 5. Suspeita de lesão à autoridade.
inalatória, 6. Pacientes com doenças pré-existentes. Quando suspeitar de abuso físico28: deve-se suspeitar
O prognóstico dos lactentes é pior que o de crianças quando a história referida pelos parentes não é compatível
maiores e adultos porque o sistema imunológico é imaturo, com a gravidade das lesões encontradas, decorre muito
a espessura da pele é menor e as lesões se aprofundam tempo entre o referido acidente e a procura do serviço
mais. A superfície corpórea é maior em relação à massa médico, a história é conflitante entre diferentes parentes.
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Figura 2 - Abordagem do grande queimado

Lesões físicas de diferentes “idades”, múltiplas lesões, As queimaduras correspondem a aproximadamente


assimétricas, não justificáveis por um único trauma, o 10% dos casos de abuso físico em crianças. Não se trata
acidente referido não é compatível com o desenvolvimento de espancamento propriamente dito, mas podem ajudar no
motor da criança e a presença de lesões específicas diagnóstico etiológico do politrauma em determinadas
também levam à suspeita. crianças.

Manifestações clínicas mais comuns Osteoarticulares


Pele As fraturas ósseas correspondem à segunda manifesta-
As lesões cutâneas são as manifestações mais comuns ção mais comum de abuso físico em crianças29.
de abuso físico em crianças. As equimoses são as lesões Para distinguir se determinada fratura é acidental ou
mais freqüentes, seguidas das queimaduras. não deve-se levar em consideração a idade da fratura, o
Algumas características como localização, padrão, tipo de lesão e a correlação desses dois fatores com a
presença de múltiplas lesões de “idades” diferentes e história referida.
desaparecimento de novas após internação ajudam a dife- As fraturas metafisárias de ossos longos são conside-
renciar se as lesões são acidentais ou não. radas específicas de espancamento em crianças pequenas,
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sendo causadas por torção ou tração violenta das extremi- Transporte da criança politraumatizada
dades. No entanto, este mesmo tipo de fratura pode O objetivo básico do serviço de transporte é fornecer
ocorrer acidentalmente em crianças maiores, que já deam- atendimento médico adequado, dentro do menor tempo
bulam. possível, respeitando as condições de segurança, assegu-
A mesma situação ocorre em relação às fraturas em rar a permeabilidade das vias aéreas, acesso venoso
espiral de ossos longos em crianças pequenas. Estas apropriado, monitorizar parâmetros vitais e evitar deteri-
também dependem de grande força de torção, podendo ser oração clínica do paciente. Portanto, deve estar capacitado
ocasionadas por acidente em crianças maiores e adultos, a reanimar, estabilizar, transportar e preparar o paciente
mas sugerem lesão não-acidental em crianças pequenas. para o tratamento definitivo32.
As fraturas bilaterais de costela em crianças pequenas
Iniciar o atendimento no local do acidente e colocar,
(menores de 2 anos) devem ser consideradas como inten-
com a maior rapidez e segurança possíveis, a vítima em
cionais até que se prove o contrário. Estas são geralmente
condições de receber o tratamento definitivo é a premissa
posteriores e causadas pela violenta compressão ântero-
para reduzir a morbidade e mortalidade dos politraumati-
posterior do tórax.
zados. Nas crianças, cerca de 40% das mortes violentas
A identificação de várias fraturas de idades diferentes
que ocorrem no período entre o acidente e sua chegada ao
sugere espancamento.
hospital apresentam causas tratáveis. Estas mortes seriam
Cabeça e sistema nervoso central evitadas com uma atuação em tempo hábil e com particular
Lesões do segmento cefálico podem ser identificadas ênfase aos cuidados com as vias aéreas e controle da
em couro cabeludo, como equimoses, lacerações, edema, hemorragia em nível pré-hospitalar33.
alopécia traumática (cabelo partido em diferentes compri- O transporte de pacientes de emergência é classificado
mentos) e céfalo-hematoma por tração extensa dos cabe- em resgate e remoção inter-hospitalar. O resgate refere-se
los, separando o couro cabeludo da calota craniana. ao atendimento no local do acidente e o encaminhamento
Fraturas múltiplas ou complexas, afundamento de calota para o hospital. A remoção destina-se às crianças atendi-
craniana ou associação de lesão intracraniana sugerem das em hospitais primários e, após sua avaliação inicial, se
espancamento30. faz necessária sua transferência para um hospital terciário,
a fim de receber o tratamento definitivo.
Lesões viscerais
Traumatismos abdominais e intratorácicos são menos Resgate da criança politraumatizada
freqüentes que as lesões ósseas e neurológicas descritas Está voltado a prestar atendimento rápido, realizar
anteriormente. Ao contrário das lesões já descritas, as medidas de suporte básico e avançado da vida no local do
lesões viscerais ocorrem principalmente em crianças mai- acidente e durante o transporte. O resgate também é
ores de 2 anos. O trauma mecânico abdominal é a causa responsável em transportar a criança para um local mais
mais freqüente de lesão visceral. apropriado. Todos os fatores envolvidos são avaliados e
A região mesogástrica é a mais vulnerável ao trauma dimensionados previamente para que se efetue de forma
direto, resultando em compressão das vísceras epigástri- adequada.
cas fixas contra a coluna, levando à lesão duodenal A primeira preocupação é definir e conhecer a região.
mesentérica e pancreática. Dessa forma, pode ocorrer O raio de ação, as condições das vias públicas e as
hematoma intramural de duodeno e jejuno proximal, com características geográficas são os parâmetros que determi-
quadro clínico de espectro variável que pode atingir nam o tempo consumido pela equipe de resgate para o
obstrução intestinal completa acesso ao local do acidente e o início do tratamento pré-
hospitalar. Permite, ainda, estabelecer quais veículos
Conduta legal serão úteis e sua distribuição na organização do resgate na
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente31, região.
título VII, Capítulo II, artigo 245, “constitui infração O hospital para o qual a vítima deve ser levada depende
administrativa deixar o médico, professor ou responsável da gravidade do acidente, tipos de procedimentos e recur-
por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino sos necessários para melhor restabelecimento. A magnitu-
fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à auto- de do trauma deve ser expressa em termos objetivos. Esta
ridade competente os casos de maus tratos contra a criança quantificação tem fundamental importância, pois permite
ou adolescente”. fazer a triagem dos pacientes mais graves, além de avaliar
Em tais casos, a criança não poderá ser entregue a a qualidade do serviço prestado. A Escala de Trauma
qualquer pessoa, nem mesmo a seus pais, a não ser após pediátrico (ETP)34,35, desenvolvida unicamente para di-
emitida autorização judicial e à pessoa que for autorizada mensionar as lesões traumáticas em crianças, tem-se
a retirar a criança. demonstrado eficaz para graduar a gravidade.
Nos casos de lesões leves e que não denotem maior Todo serviço de transporte, que se dispõe a realizar
gravidade e perigo para o menor, este poderá ser devolvi- resgate, deve ter equipe de médicos e paramédicos dispo-
do aos próprios pais ou responsáveis legais. níveis 24 horas por dia, habilitados a realizar manobras de
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ressuscitação nas condições mais inesperadas. Considera- politraumatizado é da responsabilidade dos profissionais
se 3 minutos, a partir da solicitação, o tempo máximo para solicitante e solicitado desde o desencadeamento até o final
a equipe iniciar o resgate. do processo.

Tabela 2 - Escala de traumatismo pediátrico (ETP) Recursos para o transporte


Características Pontos Centro de comunicação
dos pacientes +2 +1 -1 É imprescindível uma central de comunicação para o
serviço de transporte. Sua principal característica é a
Peso(kg) >20 10-20 <10 agilidade em receber a solicitação e distribuir as informa-
Via aérea Normal Permeável Não permeável ções para os diversos profissionais envolvidos.
Pressão sistólica >90 50-90 <50
(mmHg) Tipos de veículos
Sistema Nervoso Consciente Confusa Coma O veículo adequado é o que permite instalação do
Central equipamento, atuação da equipe e posição satisfatória do
Ferimento aberto Nenhum Pequeno Grande paciente. A escolha está relacionada às condições clínicas
da criança, patologia, distância, condições de acesso,
Traumatismo Nenhum Fechado Múltiplos,
esquelético abertos necessidade de suporte e custo, com o objetivo de perma-
necer o menor tempo possível em trânsito36.
As crianças acidentadas necessitam, em algum mo-
Tabela 3 - Escala de trauma revisada (ETR) mento, de transporte para um ambiente hospitalar. O meio
Escala de coma Pressão Freqüência Pontos utilizado para o transporte varia desde o próprio veículo da
de Glasgow sistólica respiratória família até sofisticadas aeronaves, sendo a maioria trans-
(mmHg) (resp/minuto) portada por ambulâncias. Os veículos devem ter espaço
amplo, controle de temperatura, segurança e possuir
13-15 >89 10-29 4
fontes de energia. Variam amplamente de acordo com o
9-12 76-89 >29 3
6-8 50-75 6-9 2
serviço, a região geográfica e os seus propósitos.
4-5 1-49 1-5 1
3 0 0 0
Tabela 4 - Vantagens e desvantagens dos veículos utilizados no
transporte pediátrico

Remoção inter-hospitalar Veículo Vantagem Desvantagem


Paciente grave com ETP<8 requer tecnologia avança- Ambulância Disponibilidade/Pronto uso Tráfego
da e pessoal especializado, que estão disponíveis no centro terrestre Área física planejada Tempo X Distância
de trauma pediátrico. O médico de um hospital primário Qualquer distância
deve conhecer suas limitações e as da instituição. Identi- Permite paradas e desvios
Independe de outro veículo
ficar os pacientes graves e transferi-los para um hospital
adequado é responsabilidade de todo profissional médico Helicóptero Rápido Não opera à noite
que assiste um politraumatizado. A partir do momento em Fácil acesso Depende do clima
que se tomou a decisão de transferir o paciente, providên- Terreno montanhoso Ruído excessivo
Não depende do aeroporto Não pressurizado
cias nessa direção são tomadas, e os exames radiológicos Baixo custo até 150 km Trepidação
e de laboratórios não devem retardar a transferência, Permite paradas e desvios Espaço interno
exceto os que podem mudar os cuidados imediatos. Autonomia = 400 km
O médico requerente é o responsável em indicar o
Bimotor Vôo à baixa altitude Depende do clima
processo de transferência e, ao contrário do que acontece Pista curta Turbulência
habitualmente, essa responsabilidade não pode ser delega- Pista não pavimentada Depende de outro veículo
da a outro profissional. Contato direto com o hospital e a Maior espaço interno
equipe que fará a remoção é essencial para realizar o Rapidez
planejamento, preparar os equipamentos e estabelecer a Turbo-hélice Pista curta Pouco estável
equipe adequada para a remoção. Pista não pavimentada Turbulência
Conhecer a situação clínica do paciente é responsabi- Maior espaço interno Depende de outro veículo
Rapidez
lidade do médico que recebe a solicitação da remoção.
Deve opinar sobre qual é o meio e a condição mais segura Jato Maior autonomia Pista pavimentada
para o transporte, detalhar para a equipe de remoção as Vôo internacional Pista longa
necessidades de suporte básico e avançado e manter-se em Estabilidade em vôo Porta estreita
Maior espaço interno Depende de outro veículo
contacto com o encaminhador e a equipe desde o início até Rapidez
o término da operação. Portanto, a transferência do
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Escolha do veículo 12. Fletcher AS, Henderson LT, Miner ME, Jones JM. The success-
ful surgical removal of intracranial tubes. J Trauma 1987;
A escolha do meio de transporte é determinada por: 27:948-52.
1. Tempo ideal a ser gasto na transferência inter-hospita- 13. American College of Surgeons. The Committee on Trauma:
lar, indicado pela gravidade e natureza das condições Advanced Trauma Life Support Course. Chicago: American
clínicas. College of Surgeons, 1993.
14. Bromberg BI, Mazziotti MV, Canter CE, Spray TL, Strauss AW,
2. Disponibilidade de veículos e pessoal.
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Desses fatores, o primeiro reveste-se de maior impor- children: the role of the physical examination. J Pediatr Surg
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tância, pois em situações clínicas críticas, mesmo peque-
16. Sidhu MK, Shaw DW, Daly CP, Waldhausen, JH, Coldwell D.
nos ganhos de tempo podem ser decisivos para a sobrevi- Post-traumatic hepatic pseudoaneurysms in children. Pediatr
da. Dessa maneira, esse tipo de situação deve ser atendido Radiol 1999;29:46-52.
com o meio de transporte mais rápido à disposição. 17. Arkovitz MS, Johnson N, Garcia VF. Pancreatic trauma in
Existem vantagens e desvantagens para cada um dos children: mechanisms of injury. J Trauma 1997;42:48-53.
meios de transporte e não há estudos comparativos conclu- 18. Keller MS, Stafford PW, Vane DW. Conservative management of
pancreatic trauma in children. J Trauma 1997;42:1097-100.
sivos sobre segurança e eficácia. A escolha adequada 19. Abou-Jaoude WA, Sugarman JM, Fallat ME. Indicators of
dependerá sempre de muitas variáveis que envolvem genitourinary tract injury or anomaly in cases of pediatric blunt
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A escolha dos membros da equipe é baseada nas
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habilidades técnicas e conhecimento das emergências 22. Rossi LA, Barruffini RCP, Garcia TR, Chianca TCM. Queima-
pediátricas. duras: características dos casos tratados em um hospital escola em
Todos os membros deveriam ter um programa de Ribeirão Preto (SP), Brasil. Rev Panam Salud Publica 1998;
treinamento em transporte aéreo e terrestre de crianças, 4:401-4.
23. Whitelock-Jones L, Bass DH, Millar AJW, Rode H. Inhalation
onde seriam administrados tópicos sobre as responsabili-
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dades dos cuidados e monitoração durante o transporte, 24. Mlcak R, Cortiella J, Desai MH, Herndon DN. Emergency
técnicas de procedimentos requeridos na emergência, management of pediatric burn victims. Pediatr Emerg Care
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