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A Práxis do Psicólogo Comunitário:

Desafios e Possibilidades
Autor: Géssica da Silva Cardoso | Publicado na Edição de: fevereiro de 2012
Categoria: Psicologia Comunitária

Resumo: As discussões acerca dos trabalhos realizados em Comunidades


têm se expandido e novas demandas tem sido apresentadas a esses
profissionais de Psicologia de tal maneira que o habilitem a dar conta das
questões tanto de ordem coletiva quanto social. Diante dessas demandas essas
questões tem se revelado cada vez mais freqüentes. Durante o início das
décadas de 40 e 50 os primeiros trabalhos comunitários foram realizados no
Brasil com um forte cunho assistencialista oriundo de práticas norte-
americanas. O Psicólogo nesse período realizava trabalhos em projetos
educacionais com a finalidade de auxiliar a população a um novo modelo
econômico que emergia no Brasil. Com o passar dos anos, essas práticas
assistencialistas foram modificadas a partir de reflexões feitas pelos psicólogos
relacionadas à metodologia aplicada na época. Este artigo traz algumas
considerações sobre as formas de atuação do psicólogo comunitário, bem como
uma proposta de reflexão e as possibilidades e desafios encontrados por este
profissional na atualidade. Por esta razão, utilizamos a pesquisa bibliográfica a
partir de outros artigos, textos e periódicos. Autores com pensamento teórico
que forneça auxílios relacionados ao tema proposto. Foram estudados os
escritos posteriores ao período da consolidação da Psicologia Social Comunitária
no decorrer desses anos.
Palavras-chave: psicologia social comunitária, psicologia social, comunidade.

Introdução

Falar de Comunidade é falar sobre vida cotidiana, vida em comum,


coletividade. Segundo Campos, (1994, p. 9) “é na Comunidade que grande
parte da vida do sujeito é vivida”. Durante muito tempo desde o golpe militar
no Brasil, o conceito de Comunidade esteve distante do discurso psicológico,
mas por volta dos anos 70, surge um interesse sobre essa temática dentro da
Psicologia Social, é neste momento que ela denomina-se Comunitária (SAWAIA,
1994, p 35).

A Profissão de Psicólogo foi reconhecida no Brasil em 1962, dois anos antes


do golpe militar que impôs ao país um regime ditatorial. A prática psicológica
neste período baseava-se em intervenções desenvolvimentistas oriundas de
uma repressão política, o que resultou em um modelo individualizado de
atuação. O pensamento ideológico desenvolvimentista causava na população
brasileira, mais especificamente na classe média, um comportamento
consumista e um posicionamento conformista frente ao sistema político.
Predominava-se o individualismo que afetava as práticas psicológicas e a
produção de novos conhecimentos.

Nessa época, os movimentos sociais eram impedidos pelo controle e


repressão da ditadura, e isto fazia com que os cidadãos não tomassem um
“posicionamento crítico em relação à realidade vivida” (SCARPARO,
GUARESCHI, 2007, p.8).

Durante a ditadura, os trabalhos dos psicólogos eram direcionados pelo


modelo clinico, intervenções aconteciam em escolas e trabalhos eram feitos na
área de recrutamento e seleção. Nesse período ditatorial a psicologia estava
sendo refém de necessidades políticas e econômicas geradas pelo governo
militar. O Brasil estava sujeito a um modelo de governo que privava o indivíduo
dos seus direitos básicos, tais como: moradia, educação, emprego. A partir
desse processo social, vários profissionais começaram a atuar junto à
população (CRUZ; FREITAS; AMORETTI, 2010).

Os primeiros cursos de psicologia aqui no Brasil sofreram grande influência


norte-americana, professores e alunos de graduação desejavam desenvolver
trabalhos junto aos setores desfavorecidos, com o propósito de construir um
saber ligado com as necessidades socais,tornando a psicologia mais próxima do
povo (CRUZ, 2010).

Sendo assim, é neste cenário de deselitização da Psicologia, da


preocupação com as questões sociais, com as formas de relações de
desigualdades que conseqüentemente dava margem ao autoritarismo, que
surgem base para a consolidação e fundamentação da Psicologia Social
Comunitária (AMORETTI; CRUZ; FREITAS, 2010).

Dessa forma, ia se criando uma nova forma de pensar sobre a prática


psicológica, isso acontecia em um contexto de repressão que a sociedade
estava vivenciando. As intervenções de forma individualizantes não conseguiam
da conta de questões que eram de ordem macro social. Essa mudança de
enfoque que ocorreu na America Latina em relação aos modelos tradicionais de
formação acadêmica na área possibilitou uma postura diferenciada dos
profissionais que “maximizava a saúde dos cidadãos e que essa saúde só
poderia ser alcançada com a educação, a cultura, a habitação, ao lazer” (CRUZ;
FREITAS; AMORETTI, 2010, p. 78). O propósito disso era atingir relações mais
justas e igualitárias. Como sinalizam as autoras citadas acima:
[...] Podemos dizer que o período histórico que viveu a America Latina reuniu condições de
possibilidades para que emergisse um novo olhar psicológico, comprometida com a
realidade do cotidiano dessas populações, maximizando á saúde dos cidadãos [...] CRUZ,
FREITAS, AMORETTI, 2010, p.77

Um dos primeiros passos para a mudança das práticas psicológicas era


pensar sobre elas, o outro era fundamentar esse novo olhar fora do
pensamento original. No entanto, nos Estados Unidos que surge a
nomenclatura “Psicologia Comunitária”, referindo-se a profissionais que
trabalhavam com populações desfavorecidas, esses trabalhos possuíam um
forte caráter assistencialista, contudo sem uma análise crítica, o que gerou
poucos resultados (LANE, 1996, p. 18).

Breve Histórico da Psicologia em Comunidades


(Anos 60, 70, 80 e 90)
a) Anos 60 – Regularização da Profissão e a Inserção do
Psicólogo

Durante as décadas de 40 e 50 um novo modelo de produção foi


ingressado no Brasil do agropecuário ao agroindustrial, o que demandou uma
nova preparação para a população trabalhadora, o Estado desenvolveu projetos
na área educacional para essas populações, com o intuito de prepará-los para
esse novo modelo econômico. Esses trabalhos realizados junto à classe
trabalhadora eram chamados de “trabalhos comunitários.”

Esse projeto de educação era realizado por um interesse econômico do


Estado, e os profissionais que estavam integrados neste projeto de educação
eram “provenientes das ciências humanas e sociais” (FREITAS, 1996, p. 57).
Diante desse desenvolvimento econômico, o país passa para a década de 50
com projetos Comunitários realizados em vários lugares, no entanto, esses
trabalhos ainda tinham um foco paternalista.

Nos anos 60 surgem movimentos de resistência frente ao modelo


capitalista que não davam conta das necessidades primárias dos populares.
Dessa maneira, tanto a população urbana como a população rural
reivindicavam melhores condições relacionadas às suas necessidades básicas.
Neste período, “o custo de vida torna-se insuportável para a classe
trabalhadora” como sinaliza FREITAS (apud FREIRE, 1979, p 57) “[...] as greves
espalham-se em vários setores da população e dos serviços, o desemprego
atinge números assustadores, e a inflação e o custo de vida torna-se
insuportáveis para as classes trabalhadoras e para população em geral”.
Com essa crise, o Brasil, nos primeiros anos da década de 60, procura
intervenções na área educacional, com o objetivo de desenvolver na população
uma consciência crítica, a fim de que a mesma pudesse tomar o seu lugar de
sujeito ativo. Conforme Freitas (1996, p. 57), trabalhos de educação popular
foram realizados utilizando método de Paulo Freire, esses trabalhos tinham um
compromisso de fazer com que o individuo resgatasse seu papel como agente
histórico e social. (FREITAS apud FREIRE, 1979, p. 57).

O Pensamento Freiriano é o de conscientizar a comunidade para que esta


possa conhecer seus direitos e deveres. Segundo o mesmo autor, uma
comunidade desconscientizada “prefere viver como Deus quiser a reivindicar
seus direitos” (FREIRE, 1980, p. 59). Os trabalhos desenvolvidos no nordeste
por profissionais duraram pouco tempo, esses trabalhos começou a gerar na
população uma vontade lutar por seus direitos, lutar por melhores condições de
vida, no entanto, o Estado impedia o fortalecimento da população.

Sendo assim, algumas reivindicações populares acontecem neste período,


como a caminhada dos camponeses por condições melhores no plantio; os
operários por melhores condições salariais dentre outros. Em Março de 1964,
instaura-se a ditadura no país, que obriga a população a viver no regime ainda
pior, a miséria e a pobreza eram assustadores (FREITAS, 1996, p.58).

Diante disso, perto das indústrias estavam as casas e casebres que iam
crescendo de forma desajeitada, sem segurança alguma. Essas moradias eram
construídas próximas dos locais onde as pessoas podiam trabalhar. “As pessoas
que habitavam nessas casas, vilas, bairros eram trabalhadores destas fábricas,
hospitais, indústrias e mansões” (FREITAS, 1996, p.59).

Oficialmente o reconhecimento da profissão de Psicólogo no Brasil foi em


27 de agosto de 1962, os primeiros cursos tinham o seu arcabouço teórico
oriundo dos Estados Unidos. A Psicologia baseou a sua prática a partir de
trabalhos realizados em consultórios, ambientes escolares e nas organizações,
essas práticas eram especialmente na década de 60.

Em meados dos anos 60, em alguns lugares dá-se a entrada do profissional


de psicologia nos setores desfavorecidos com a preocupação de tornar essa
prática próxima do povo, com o intuito de deselitizar a profissão. Essas práticas
ganharam forças. Nesse período, surge a primeira turma de psicologia no
Brasil. Em um contexto de desespero da população com o descuido do Estado e
diante de vários conflitos sociais que o psicólogo é desafiado a atuar.

O termo psicologia na comunidade é utilizado quando alguns estudantes,


psicólogos e professores de graduação começam a desenvolver trabalhos em
comunidade de baixa renda no estado de São Paulo. Na década de 70, no
estado de Belo Horizonte na Universidade Federal de Minas (UFMG), a disciplina
Psicologia Comunitária começa a fazer parte do currículo acadêmico. O
psicólogo trabalhava de maneira voluntária, convicto do seu compromisso
político e social junto a essas populações carentes (FREITAS, 1996, p.60).

Os Psicólogos utilizaram referencias da Sociologia, Antropologia, entre


outras áreas das Ciências Humanas para o desenvolvimento de seus trabalhos
em comunidades (FREITAS, 1996, p.62) A preocupação desses profissionais
eram desenvolver atividades que permitissem à Psicologia estar mais próxima
do povo, auxiliando práticas para que a população pudesse se organizar de
forma política e reivindicasse por melhores condições de vida.

Devido ao contexto histórico que o Brasil estava vivendo, quaisquer


práticas eram bem recebidas na Comunidade, contando que fossem com o
objetivo de prestar algum tipo de assistência. As reflexões levantadas em
relação aos instrumentos utilizados nesse período eram pouco discutidas, haja
vista que existiam pouco psicólogos disponíveis para atuar neste campo (CRUZ;
AMORETTI, 2010, p. 72).

b) Anos 70 – Psicólogo junto a Movimentos Populares

O Brasil ainda estava sob o regime militar, a população criava meios de


mobilização, através de movimentos sociais. Geralmente, essas mobilizações
ocorriam em associações de moradores, nas comunidades eclesiais de base,
nos órgãos de defesa do cidadão. Profissionais de vários saberes se uniam a
esses setores populares com o objetivo de contribuir com os movimentos
populares que iam crescendo, embora timidamente (FREITAS, 1996, p. 63).

Foi junto a esses movimentos populares, que se iniciou a prática da


Psicologia Social Comunitária, com características de se voltar para diferentes
problemáticas, além daquelas com que se trabalhava anteriormente. Segundo
Freitas (1996, p.64), o interesse desses intelectuais e profissionais nestas
questões sociais era devido a uma extrema miséria que essa população estava
vivendo, por isso tamanho envolvimento.

Os profissionais participavam dos movimentos populares com a crença de


colaborar para uma sociedade mais justa e igualitária. Para tanto, os
profissionais de psicologia começaram a marcar espaço, saindo das escolas,
consultórios e, indo para os bairros, favelas, associações de moradores.

O modelo clínico se mostrava, portanto, inadequado, visto que não se


tratava apenas de uma mudança geográfica da prática clínica. As atividades
que eram realizadas pelos profissionais de Psicologia junto com outras Ciências
Sociais e Humanas aconteciam a partir de reuniões para discutir as questões
que a população estava vivenciando, fazia-se um levantamento de
necessidades; descrições das condições de vida; do modelo educacional e suas
deficiências; discutiam sobre a saúde da população e, a partir disso, ofereciam
serviço psicológico gratuito. A ação conjunta acontecia em passeatas, abaixo-
assinado ou qualquer forma de resistência frente a precariedade das condições
de vida da população (FREITAS, 1996, p.65).

Como os trabalhos em comunidade, a princípio, eram voluntários, os


profissionais como forma de sobrevivência investiram na docência. Questões
em relação à inserção do psicólogo na comunidade foram discutidas nas
universidades, iniciaram-se debates acerca da postura deste profissional nas
comunidades. Existiam trabalhos já publicados por professores e alunos que
desenvolveram trabalhos na Zona Leste de São Paulo em uma comunidade de
baixa renda e na UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais já existia a
disciplina que discutia questões ligadas à ecologia humana e movimentos
populares (AMORETTI; CRUZ; FREITAS, 2010, p. 78).

c) Anos 80 – Criação da Associação Brasileira de Psicologia


(ABRAPSO)

Nos anos 80, a denominação da palavra psicologia comunitária passa a ser


mais freqüente, profissionais se apropriam desse termo em debates e
discussões. Em fins dos anos 70 e começo dos anos 80, reflexões são feitas em
relação aos trabalhos desenvolvidos em comunidade, questiona-se o seu
caráter voluntário e os modelos de intervenções utilizados pelos psicólogos que
atuam neste campo. Trabalhos em Psicologia Social Comunitária são
publicados, neste período pessoas como Sílvia Lane, a pioneira em psicologia
social no Brasil e outros autores trazem em suas publicações questões
referentes ao desenvolvimento do trabalho do psicólogo em comunidades
(FREITAS, 1996, p.65).

Em meados dos anos 80, surge a necessidade de se criar um espaço de


discussões e debates para delimitar a atuação do profissional de psicologia que
atua nas comunidades. Esse espaço é criado em julho de 1980 e é chamado de
ABRAPSO (Associação Brasileira de Psicologia Social)

Através da ABRAPSO, uma Psicologia Social crítica foi construída,


comprometida com a realidade obscura da população. Em cada região do país,
são criados núcleos, para se realizar encontros regionais em torno das
problemáticas desenvolvidas pela Psicologia Social.
Em São Paulo em um dos primeiros encontros regionais, aborda-se o tema
Psicologia na Comunidade, onde os profissionais discursam sobre as suas
práticas comunitárias com mulheres nas periferias, em centros de educação
popular, e em creches (FREITAS, 1996, p.68). Encontros e mais encontros
regionais são realizados com a intenção de se pensar sobre novas práticas,
discutir as temáticas relativas ao bem-estar da população.

d) Anos 90 – Expansão do trabalho do Psicólogo Comunitário

No início da década de 90, expandiram-se os trabalhos dos psicólogos com


os populares. Estes trabalhos baseavam-se em variadas práticas, com
diferentes referenciais teóricos, é freqüente neste período ouvir a denominação
psicologia da comunidade (FREITAS, 1996, p.69).

As práticas desenvolvidas pelos psicólogos estavam ligadas basicamente


aos postos de saúde, órgãos ligados às questões familiares, instituições penais.
Em se tratando de instituições, sabe-se que a atuação do psicólogo se
desenvolve a partir da demanda solicitada pela própria instituição.

Com o envolvimento dos profissionais de psicologia nas questões ligadas á


saúde coletiva, a sua postura, portanto, é de um trabalhador social dentro
desse movimento de saúde. A Psicologia passa a ser vista como uma profissão
da área de saúde. Esses primeiros anos da década de 90 foram marcados por
uma diversidade teórica e metodológica no desenvolvimento desses trabalhos
em comunidades.

Após a saída dos militares do governo, o país passou por uma série de
dificuldades, muitas mudanças e transformações ocorreram na administração
pública. Abriram-se oportunidades para os profissionais da área de humanas,
com o objetivo de prestar serviços à população. A psicologia começa a ser
reconhecida como profissão que presta serviços aos setores desfavorecidos,
vários profissionais começam a trabalhar em bairros, postos de saúde, agora de
uma maneira não mais clandestina.

Distinções Práticas e Nominativas de Psicologia na Comunidade, Psicologia


da Comunidade e Psicologia Social Comunitária

Escutamos as expressões “Psicologia na Comunidade, Psicologia da


Comunidade e Psicologia Social Comunitária, que aparentemente parecem que
são símiles, contudo não são só meras distinções nominativas é também uma
questão de prática. A expressão “Psicologia na Comunidade” (FREITAS, 1996,
p.62) surgiu durante um período onde o objetivo era tornar a prática da
psicologia acessível ao povo.
A postura dos profissionais de psicologia era deselitizar a profissão e, para
isso, ser possível, era importantíssimo desenvolver a sua prática na
Comunidade, fora das escolas e consultórios. Durante as décadas de 60 e 70
confundiam-se as expressões “Psicologia na Comunidade” com “Psicologia da
Comunidade”.

A partir dos anos 90, torna-se freqüente o termo “Psicologia da


Comunidade” que refere-se às práticas da Psicologia ligadas as questões da
Saúde, e atividades ligadas a uma instituição, ou órgãos públicos que
prestavam serviços à população onde o psicólogo trabalhava. O intuito disso
tudo era defender uma psicologia menos academicista, menos intelectual e
mais ligada às questões do povo (FREITAS, 1996, p.72).

Por último, surge a expressão Psicologia Social Comunitária que carrega


sua prática de maneira não paternalista, presente nos modelos trazidos dos
Estados Unidos. O seu arcabouço teórico é oriundo da Psicologia Social, tendo
como foco o trabalho grupal, como o objetivo de desenvolver uma consciência
crítica na população e “uma construção de uma identidade social e individual
orientadas por preceitos eticamente humanos”(FREITAS, 1996, p.73).

[...] A Psicologia (social) Comunitária utiliza-se do enquadre teórico da psicologia social,


privilegiando o trabalho em grupo, colaborando para a formação da consciência crítica e
para a construção de uma identidade social e individual orientadas por preceitos
eticamente humanos [...] (FREITAS, 1996, p.73).

Comunidade: Mito ou Realidade?


Quando ouvimos a palavra Comunidade surge um pensamento de um lugar
harmonioso, aconchegante ou até mesmo um lugar difícil de encontrar. Um
lugar onde os relacionamentos duram, todos são solidários uns com os outros,
lugar onde não existem invejas, que todos dividem o pão, praticamente um
“Éden”. (BAUMAN, 2003, p.12)

Durante certo período, o termo Comunidade não era um assunto tão


interessante de ser analisado, esse interesse surgiu nos anos 70 quando a
Psicologia Social se autodeclara Comunitária. A Psicologia Social não é a única
ciência que se debruça a analisar questões referentes a essa temática, as
ciências humanas e sociais nos anos 70 e 80 também se despertaram em
relação a esse tema, a partir de uma avaliação crítica dos modelos empregados
pela ciência em questões referentes à população.

Nas ciências humanas, especificamente na Psicologia Social, o conceito de


Comunidade, tornou-se sinônimo de qualquer atividade de cunho profissional
realizada fora de instituições, fora de escolas e consultórios, com a perspectiva
de uma prática comprometida com o povo. Comunidade para alguns aparece
como mito, oriundo de um processo globalizado que impede a vida em comum
e harmoniosa, um mito que remete-se ao passado, como se algo fosse perdido
pelo homem e o que ele vivesse agora não seria de fato uma Comunidade.

Criam-se modelos de Comunidade como um lugar ideal, um local onde as


pessoas são inclinadas à prática do bem. Existem diversos significados e
interpretações em relação à palavra Comunidade, e cada pessoa possui o direto
de empregar o termo no sentido que queira. Guareschi (2009), afirma que
parte-se de um pressuposto que cada pessoa percebe o mundo de uma forma,
que cada pessoa possui uma história de vida e, por isso, a importância de
perguntá-las o que elas querem dizer mesmo quando falam sobre Comunidade.

Comunidade “aparece e desaparece” nas reflexões sobre questões ligadas


ao homem e sociedade. Os iluministas associavam comunidade ao regime
feudal, por essa razão ocorreu um movimento anticomunitário com objetivo de
destruir a opressão causada pelo sistema feudal. Para eles, comunidade
impedia o progresso, pelas inúmeras tradições que carregavam. Os iluministas
acreditavam que o homem só poderia ser livre e progredir através da razão, do
conhecimento.

Eles valorizavam o individualismo, acreditavam no ser humano como único


e suficiente em si, que não tinham nada a ver com os outros e não
necessitavam do outro para se constituir. Essa concepção adotada pela
modernidade sufocou a idéia de Comunidade.

No entanto, nesse mesmo período houve uma recuperação do conceito de


comunidade como “modelo de boa sociedade, ameaçado pelo individualismo e
racionalismo” (SAWAIA, 1996, p.38). A partir desse renascimento do conceito
de comunidade começam a surgir os debates, de um lado, punida como
tradicional e conservadora que impedia o progresso e, de outro, protótipo de
coisas boas que a modernização destruiu.

As expressões de comunidade podem ser encontradas na família, religião,


raça, nação, sua delimitação pode ser local ou global, o que importa mesmo é
comunhão de objetivos.

O Conceito de Comunidade sempre esteve no pensamento político,


filosófico e teológico, entretanto a sociologia -ciência que surge no século XIX-
torna comunidade uma categoria analítica e isso se estabelece a partir da
análise das diferenças entre comunidade e sociedade.

Comunidade e Sociedade
Esse debate sobre Comunidade e Sociedade partiu da sociologia alemã.
Segundo Sawaia (1996), a Comunidade é diferente da sociedade por três
aspectos: o sangue, o lugar, o espírito, o sangue como símbolo de vínculo e
crença comuns. Na Comunidade são encontrados sentimentos nobres como a
honra, amizade e o amor, a relação em Comunidade é baseada no sentimento
do pertencer, estar ligado e implicado com o outro.

Já na Sociedade do ponto de vista moral não há nada positivo, os homens


não estão vinculados, estão divididos. A sua base é troca e o dinheiro, não
existe cumplicidade.

No século XX, Comunidade tornou-se referencial de análise que permite


olhar a sociedade do ponto de vista do vivido, “sem cair no psicologismo
reducionista” (SAWAIA, 1996, p.41). Neste período há uma explosão de
estudos pela sociologia em relação à Comunidade. O pensamento Marxista em
relação a sociedade e Comunidade,influenciou várias áreas das Ciências
Humanas, uma delas foi a Sociologia. Marx acreditava que a sociedade não
tinha harmonia, e sim, conflitos, enquanto que Comunidade deveria ser várias
pessoas, de vários lugares lutando por ideal. (SAWAIA, 1996).

Comunidade e Psicologia Social


Antes da década de 70 não se encontraram nos referenciais teóricos de
Psicologia Social o conceito de Comunidade. O conceito de Comunidade só
aparecia para explicar questões referentes aos homens em sociedade,
comunidade era sinônimo de sociedade. Nas pesquisas de Wundt em 1904, o
conceito de Comunidade aparece como interação coletiva, e essa interação que
mantém a unidade de seus participantes. Alguns autores, inclusive Freud em
1976, consideravam a Comunidade injusta e negativa, por considerar todos os
homens com as mesmas necessidades e desejos, negando a sua
individualidade.

A Psicologia Social dedica-se a analisar e investigar, grupos e interação


social, nem mesmo na Psicologia Social, comunidade aparece como centro de
investigação. Esse interesse por grupos e questões grupais foi oriundo dos
modelos de uma psicologia norte americana, onde o profissional de psicologia
deveria ajustar a integração de grupos e indivíduos a uma sociedade que fora
vitima de guerras (SAWAIA, 1996, p. 44).

É a partir desse arcabouço teórico que o conceito de Comunidade torna-se


um referencial analítico para Psicologia Social. Comunidade penetrou na
Psicologia no seio de um corpo teórico pelo método experimental, com objetivo
de transformar atitudes de indivíduos e grupos pela integração. A princípio
Comunidade foi introduzida na área clínica, com o intuito de humanizar o
atendimento ao que sofria mentalmente, trabalhava-se em Comunidades com o
objetivo de desenvolver habilidades individuais, coletivas e grupais, para
integrar a população aos programas de modernização e para prevenir doenças.

As primeiras experiências estiveram associadas à educação popular, à


medicina psiquiátrica social sob orientação do Estado. Comunidade era
compreendida como unidade de consenso, ou seja,quando as pessoas que
nelas estão envolvidas aceitam todas as condições, havendo um consenso
(SAWAIA, 1996).

Os psicólogos que trabalhavam em Comunidades se inspiravam em teorias


psicológicas que mais se aproximavam do social e das questões sobre
subjetividade. Na década de 70 começou a pensar nos destinatários, e nas
intencionalidades dessa prática na Comunidade, a intenção era a mesma:
tornar a Psicologia próxima do povo (SAWAIA, 1996).

Antes, o psicólogo era confundido como um educador popular, com o


assistente social, ou como um clinico fora dos consultórios devido ás práticas
primárias nas Comunidades. Agora ele é considerado um militante com o
objetivo de promover e desenvolver uma consciência critica na população, para
que estes possam batalhar por suas causas. Neste contexto Comunidade é
entendida com um lugar que reúne a classe trabalhadora (SAWAIA, 1996).

Na visão da Psicologia Comunitária norte americana o entendimento de


mudança estava ligado com a adaptação dos setores pobres e atrasados ao
capitalismo avançado, já na Psicologia Comunitária latino-americana a
transformação é compreendida como a mudança de uma sociedade explorada,
pela revolução socialista (SAWAIA, 1996).

Psicólogo e Comunidade: Possibilidades e


Desafios
A Psicologia Comunitária opera com a base teórica em Psicologia Social, e
seu estudo baseia-se em entender a constituição da subjetividade dos seres
humanos numa Comunidade (NEVES; BERNARDES, 1993). O foco da Psicologia
Comunitária baseia-se em práticas grupais, a intervenção grupal torna-se
necessária em Comunidades para o desenvolvimento da consciência, no qual
um componente do grupo se descobre no outro, percebendo-se conjuntamente
(LANE, 1996).
Para se atuar numa realidade social, é importante conhecer o contexto
histórico em que essa realidade se desenvolve, diante disso, surge um desafio
de intervenção social, visto que vivemos em uma sociedade em transformações
constantes, as coisas vão mudando e mudam cada vez mais rápido. Como diz
Casas (2005,p.8), “[...] A complexidade das dinâmicas sociais dificulta
tentativas de previsão [...] tais mudanças penetram mais do que nunca em
nossos lares, e exercem influências extraordinárias em nossas vidas cotidianas”.

É fundamental, para os psicólogos, levar em conta as questões


psicossociais do contexto, sobretudo do ponto de vista macrossocial. Na maioria
das vezes, alguns psicólogos se definem como atuantes de uma esfera
microssocial, fazendo uma delimitação de sua atuação. É como se as relações
existentes nos níveis micro não fizessem parte da ordem macro. Os níveis micro
e macrossocial estão interligados, e o profissional necessita ter uma
compreensão em relação a essa questão.

O trabalho em Comunidades não é um trabalho que dicotomiza esses


níveis, as questões referentes ao nível micro estão inseridas no nível macro, é
necessário compreender o sujeito integralmente. Sabemos que existem
questões individuais que se manifestam durante uma intervenção na
Comunidade, entretanto, é a partir de uma relação conjunta que o sujeito
poderá transpor as suas questões individuais. Mesmo em grupo, o sujeito
poderá preservar sua singularidade, mas necessitando do outro para sua plena
realização (GUARESCHI, 1996).

A questão referente à entrada do psicólogo na Comunidade pressupõe


necessariamente uma relação que se estabelece entre o psicólogo e a
Comunidade, essa relação é essencial para se pensar em um modelo de
intervenção.

De um lado existe o psicólogo que possui sua formação, seus


conhecimentos, e sua metodologia de trabalho, sua percepção sobre o mundo e
homem. Do outro lado, existe a Comunidade com suas características próprias,
com o seu modo de funcionamento, vivendo um momento histórico
determinado. Os profissionais e a Comunidade possuem modos de ações
diferentes, manifestados através das visões de mundo que, muitas vezes, não
são conciliáveis (FREITAS, 1986).

Modos de Inserção do Psicólogo nas


Comunidades
Os trabalhos realizados nessas últimas décadas em Comunidades têm
revelado diferentes modos de inserção do psicólogo, essa inserção também tem
gerado preocupações, principalmente devido ao fato de se trabalhar com
metodologias e instrumentos poucos utilizados por outras áreas da Psicologia.
Há que se ressaltar, contudo, que a metodologia da pesquisa participante – tão
comum em trabalhos de Psicologia Comunitária – é ilustrativa desse modelo em
que sujeito e objeto são ativos na pesquisa.

O interesse da inserção do Psicólogo em Comunidades na década de 70 foi


devido à repressão política que o país estava vivendo: a intervenção era
caracterizada pela militância e pela participação política. Nas décadas de 80 e
90, houve um reconhecimento maior acerca da participação do Psicólogo nas
Comunidades, trabalhos em Psicologia Social Comunitária começaram a ser
reconhecido academicamente. (FREITAS, 1996, p.65)

Houve e existem atualmente profissionais que oferecem atendimento


psicológico gratuito em Comunidades como forma de conhecer e se aproximar
mais daquela população. Entretanto, tal como citado na introdução deste
trabalho, esta modalidade de intervenção ainda repete um modelo desigual em
que, de um lado tem a Comunidade que “precisa” de um atendimento
psicológico e, de outro, está o psicólogo oferecendo ajuda, interessado em criar
intervenções, para adequar a população ao um sistema, achando que, com
isso, minimizará seus desesperos. A sua inserção baseia-se em atendimento
psicológico aos desfavorecidos (FREITAS, 1996).

Existem também outras formas do profissional de Psicologia entrar numa


Comunidade como, por exemplo, quando motivados pelo simples fato de querer
conhecer esse campo que para ele é desconhecido ou então, por simples
curiosidade, alguns estudantes, profissionais se inserem em um ambiente
comunitário com intuito de estudá-los. Essa inserção baseia-se em curiosidade
cientifica (SAWAIA, 1995).

Existe, por fim, outro tipo de inserção que é baseada na proposta de


intervenção da Psicologia Social Comunitária, essa inserção é orientada pela
responsabilidade de que o trabalho realizado pelos psicólogos deve promover
uma mudança das condições vividas pela população, sendo que esta que
estabelece os caminhos a serem percorridos para mudança. Acredita-se no
homem protagonista da sua história, no homem em movimento. Essa inserção
baseia-se na possibilidade de uma mudança social e na construção do
conhecimento da área (FREITAS, 1996).

Os trabalhos baseados na perspectiva social comunitária partem de um


levantamento de necessidades, e situações enfrentadas pela população
investigada, principalmente as situações que dizem respeito à saúde e à
educação. Após essas investigações, procura-se trabalhar com grupos,
utilizando métodos e processos de conscientização, para que eles,
progressivamente, assumam seu papel de sujeitos (CAMPOS, 1996). Em
Comunidade busca desenvolver condições para o exercício pleno da cidadania,
da igualdade.

O Psicólogo que deseja trabalhar em Comunidades necessita de um


conhecimento da teoria da Psicologia Social e, mais, especificamente da área
comunitária. Faz-se necessário, sobretudo, ter um embasamento teórico nos
pressupostos da Psicologia Social Comunitária. Os psicólogos que realizam
trabalhos em Comunidades fazem “uso de uma técnica que permite
compreender as interações dos indivíduos em grupo” (GUARESCHI; ROCHA;
MOREIRA, 2010, p.188)

A técnica de intervenção por meio de Grupos Focais se utiliza da “interação


focalizada” para pesquisa qualitativa de um grupo (GUARESCHI, 2010, p.189).
A técnica objetiva buscar uma pluridade de ideias e não apenas uma única idéia
no grupo. Por meio desta técnica, pode-se observar uma quantidade maior de
interações, em um tempo limitado, pode-se também perceber as prioridades
nos temas suscitados que partem da interação grupal. (GUARESCHI; BOECKEL;
ROCHA, 2010, p.189).

O grupo Focal, segundo os autores Guareschi, Rocha, Moreira e Boeckel


(2010, p.190) “[...] É caracterizado por ser um espaço acessível, os assuntos
discutidos são de interesse comum, as diferenças de status entre os
participantes não é considerada e a discussão é fundamentada em um debate
racional [...]”.

Uma das abordagens teóricas da Psicologia que vem oferecendo


possibilidades de trabalho nas Comunidades é o Psicodrama (NEVES;
BERNADES, 1998), que foi criado por Moreno e é definida como uma ciência
que explora a verdade por meios dramáticos. Drama é uma palavra de origem
grega e significa ação ou algo que acontece, o berço do psicodrama é o teatro
(NEVES, 1998).

A medotologia do Psicodrama leva em conta três realidades: grupal, social,


dramático. O contexto da realidade social impõe ao sujeito os papéis que ele
deve desempenhar, o contexto grupal é formado pelos integrantes do grupo, o
vínculo formado significa mútua percepção íntima dos indivíduos (NEVES;
BERNADES, 1998).
Ainda segundo as mesmas autoras (1998), ”o contexto dramático é
formado pelo produto do ator principal, esse protagonista é o paciente /grupo,
egos auxiliares são aqueles que contracenam com o protagonista e fazem parte
da equipe terapêutica”. O diretor/terapeuta é o responsável pelo Psicodrama, e
o auditório é o conjunto de pessoas que estão no contexto grupal. O tema da
cena quem traz é o protagonista.

Em uma Comunidade, o drama do protagonista é da vontade do grupo, ele


é o porta-voz do sofrimento coletivo ao criar conjuntamente cenas
psicodramáticas, o protagonista está sendo influenciado por uma espécie de
inconsciente social (NEVES, 1998). O Psicodrama acredita que a inversão de
papéis, possibilite ao individuo assumir o papel de outro, e recompor o sentido
da identidade e do pertencimento ao grupo (BERNARDES; NEVES, 1998).

O Psicodrama começou nas Comunidades, a partir de 1993, em serviços da


rede municipal do Estado de Porto Alegre, em um projeto de Educação Social e
Escola Aberta (BERNARDES, 1998) O propósito desse projeto originou-se
devido às situações de risco enfrentadas pelas crianças e adolescentes, e o
nome do projeto pedagógico é “Jovem Cidadão”, e foi desenvolvido em nove
Comunidades (NEVES, 1998). Com a finalidade de assistir á população de baixa
renda, com base no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente).

O Conselho Tutelar encaminhava jovens envolvidos em situação de roubo,


violência, drogadição aos Centros para que recebessem atendimento
socioeducativo (NEVES; BERNARDES, 1998). A participação da Psicologia
acontecia nas oficinas de Psicodrama, o trabalho que era feito pelos psicólogos
era a socialização de crianças e adolescentes em situação de risco a partir da
visão dos integrantes quanto ao seu mundo de relações interpessoais, e
aprendizado e desempenho de papéis sociais frente a sua realidade (NEVES,
1998).

Essa proposta de intervenção psicossocial tinha por objetivo, auxiliar essas


crianças a tomarem uma nova posição, de sujeitos mais autônomos e menos
submissos, o modelo de intervenção proposto era trabalhar com a matriz de
identidade, que segundo Neves (apudMORENO, 1978) é um dos primeiros
processos de aprendizagem da criança, no qual ela se relaciona com pessoas e
objetos, sendo a família a base principal para a constituição de papéis.

A conscientização dos papéis desempenhados psicodramaticamente , seja


na fantasia ou no contexto grupal, desenvolveria nas crianças uma nova
postura, uma nova posição e uma mudança na qualidade das relações, dentro e
fora do contexto grupal (BERNARDES, NEVES, 1998).
Outra abordagem da Psicologia que tem se feito presente nas
Comunidades, é abordagem psicanalítica. O referencial psicanalítico tem como
técnica a escuta, e essa escuta faz o profissional assumir uma postura de “não
saber” para não criar na Comunidade uma expectativa achando que o
profissional de psicologia seja “aquele que tem para dar” figura de um modelo
assistencialista (JÚNIOR; RIBEIRO, 2009, p.91).

No trabalho com Comunidades se o psicólogo se mantiver em uma posição


de mestre, irá interromper o desenvolvimento de um processo onde a
Comunidade possa identificar quais sejam verdadeiramente as suas
necessidades, e não esperar ações do profissional, que “certamente efeitos
alienantes sobre a Comunidade” (JÚNIOR; RIBEIRO, 2009, p.92). Sabemos que
para se realizar uma intervenção na Comunidade, é fundamental conhecê-la
antes de intervir, levando em conta os conhecimentos adquiridos ao longo da
vida das pessoas, suas subjetividades. Segundo Júnior, Ribeiro (2009, p.93),
“[...] É de suma importância que o profissional consiga distinguir entre aquilo
que a Comunidade está solicitando diretamente daquilo que, de fato, constitui o
desejo que a move [...]”.

Diante disso “é essencial trazer o conceito de demanda e desejo, entende-


se por demanda um apelo que o sujeito faz em busca de um complemento”
(JÚNIOR, RIBEIRO 2009apud QUINET, 2000,). Já o desejo é a busca por aquilo
que nunca se viu, ou existiu e por o sujeito nunca encontrar aquilo que ele
deseja verdadeiramente, ele fica em constante movimento (JÚNIOR; RIBEIRO,
2009).

Alguns trabalhos foram realizados na capital Paulista e um dentre eles foi


um trabalho realizado junto a técnicos do governo que trabalhavam com
pessoas que moravam em barracos, áreas consideradas de risco pela Defesa
Civil, essa Comunidade era assistida por um projeto de moradia do Estado
(JÚNIOR; RIBEIRO, 2009). Os técnicos contaram aos psicólogos que não
compreendiam os moradores que recebiam as casas novas pelo Estado e ao
invés de morar, alugavam, vendiam ou devolviam. Segundo os técnicos eram
poucas as pessoas que chegavam a morar nas casas, e perguntavam-se aos
psicólogos o porquê dessas atitudes.

Durante as conversas, os técnicos chegavam a dizer que a Comunidade é


“mal agradecida” e que “continuariam na pobreza” (JÚNIOR; RIBEIRO, 2009,
p.94). Os profissionais perceberam que essa tentativa de ajuda foi pensada
para a Comunidade e não com a Comunidade, o que resulta em uma ação
assistencialista, colocando os membros da Comunidade em uma posição
vitimizada, o fato de estarem sem casa.
A partir desse exemplo percebemos que não é levada em consideração a
questão do desejo/demanda, cabe ao profissional instruído pela teoria
psicanalista estar atento às questões relacionadas entre o que é de ordem do
desejo e da demanda, necessariamente não precisa responder à demanda,
visto que ela é insatisfeita por “natureza” o profissional necessita escutar a
demanda, trabalhá-la e perceber o que está além dela – o desejo (JÚNIOR;
RIBEIRO, 2009). Diante do exemplo citado acima em relação as casas para a
Comunidade, era fundamental questionar a Comunidade em relação a essa
própria ação. Segundo Júnior, Ribeiro, (2009, p.92) seria mais ou menos assim:
“[...] O que vocês imaginam que vai acontecer se vocês tiverem uma casa? [...]
A que essas casas vão servir? [...] Como vocês imaginam que essas casas
poderão mudar a vida de vocês? [...]”.

Por mais que pareça óbvio, essas indagações são essenciais, pois através
dessas indagações muitas questões poderão vir à tona. Ninguém procurou
interrogar a Comunidade, questioná-la, pelo contrário, levou em consideração
algo externo – a moradia precária, no entanto a Comunidade mesmo com essa
necessidade externa, mostrou-se contrária. Se o profissional que atua em
Comunidades levar em consideração o que a Comunidade solicita e o que ela
realmente deseja, ele terá grandes chances de viabilizar uma mudança de
posição dessa Comunidade (JÚNIOR; RIBEIRO, 2009).

Alguns desafios são encontrados pelos psicólogos comunitários que surgem


como um ponto de reflexão que são as diferenças socioeconômicas entre o
psicólogo e a Comunidade, problemas referentes à resistência da Comunidade
diante de uma intervenção externa (BONFIM; FREITAS, 1989). Definição da
especificidade do papel do psicólogo nas Comunidades (BONFIM; 1989).
Dificuldades em relação aos modelos institucionais paternalistas que desafiam
os trabalhos realizados pelos psicólogos comunitários, pois impedem que os
sujeitos possam tomar uma postura de autores da sua história.

Por parte da Comunidade, existe uma expectativa de que o psicólogo


resolva suas questões pessoais ou questões relacionadas à saúde, educação,
moradia (ANSARA; DANTAS, 2010). E essa expectativa da Comunidade
continua obscurecendo a proposta do trabalho comunitário, pois, na maioria
das vezes as pessoas não entendem como funciona o trabalho do psicólogo nas
Comunidades. O trabalho realizado pelos psicólogos Comunitários não é: Um
trabalho clínico individualizado; não se configura de forma assistencial –
paternalista; não se mantém em uma relação de dominação, pelo contrário
promove uma relação de igualdade.

Considerações Finais
Ao analisar e compreender o desenvolvimento da Psicologia Social
Comunitária no Brasil percebeu-se uma mudança dos enfoques metodológicos
da práxis do psicólogo comunitário no decorrer desses anos. Visto que no início
de sua profissão o psicólogo atuava de forma individualizada e assistencialista,
sem se preocupar com a questão da autonomia do sujeito. Considerando essa
análise entendeu-se o amadurecimento da Psicologia (Social) Comunitária no
decorrer de toda a sua história, esse amadurecimento pode ser percebido a
partir da criação da ABRAPSO (Associação Brasileira de Psicologia Social) das
pesquisas e trabalhos divulgados da prática do psicólogo em Comunidades. Das
reuniões anuais da ABRAPSO, com o intuito de refletir sobre as práticas da
psicologia social no contexto social, inclusive o Comunitário.

O trabalho em Comunidades é bastante complexo, o profissional que


deseja trabalhar nesse campo necessita se “despir” do pensamento que já sabe
tudo, sendo esse um dos desafios enfrentados pelos profissionais de psicologia.
A Comunidade já possui um saber próprio, que não é necessariamente um
saber científico, contudo não deixa de ser um saber. E é a partir desse “saber
comunitário” que as intervenções se iniciam. O psicólogo não fica em uma
posição de ajudador da Comunidade, pelo contrário, ele auxilia a Comunidade a
identificar seus problemas e solucioná-los, por isso o trabalho em grupo.

O trabalho grupal permite aos integrantes da Comunidade perceber uns


aos outros, e a se identificar cada um com a história de vida do outro, o
psicólogo nesse momento pode se apresentar como aquele que facilita a
comunicação entre a Comunidade.

Apesar dos repletos desafios enfrentados no trabalho em Comunidades, a


experiência, contudo, é rica, permitindo ao profissional repensar e refletir sobre
a sua prática. Como já citamos anteriormente ao longo do artigo, se a
Comunidade não fizer parte do processo de intervenção, os resultados serão
pouquíssimos. As intervenções, por sua vez, devem ser com a Comunidade e
não para a Comunidade modelo de uma prática assistencialista.

Descobrimos também a importância da devolutiva, após o trabalho nas


Comunidades, levando em consideração que a opinião da Comunidade é
necessária para percebemos como se configurou as intervenções e quais foram
os resultados obtidos. Essa devolutiva não é só por parte da Comunidade, o
psicólogo por questões éticas necessita esclarecer algumas informações
colhidas durante os trabalhos realizados para que a Comunidade não se sinta
um objeto “usado”.

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