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MEDIDA CAUTELAR EM RECURSOS

EXTRAORDINÁRIOS: COMPETÊNCIA
Adroaldo Furtado Fabrício

Desembargador aposentado e ex-presidente do TJRS


Professor Titular de Direito Processual Civil na UFRGS
Membro da International Association of Procedural Law
Advogado em Porto Alegre
MEDIDA CAUTELAR EM RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS: COMPETÊNCIA
Adroaldo Furtado Fabrício

Sumário: 1. Justificação e escopo do processo cautelar em geral. 2. Processo


cautelar e processo principal. 3. O emprego das medidas cautelares
em apoio a recursos extraordinários. 4. A posição do STF quanto à
competência: análise crítica. 5. O “destrancamento” dos recursos retidos e
a competência. 6. Conclusão.

1. JUSTIFICAÇÃO E ESCOPO DO PROCESSO CAUTELAR EM


GERAL.

F
az-se conveniente, ainda que sob certo risco de eventualmente
repetir obviedades do pleno domínio dos operadores do Direito,
rememorar algumas linhas básicas sobre a natureza, função e
justificação teórico-prática do processo cautelar, visto, tal como se o vê
no estatuto processual civil pátrio, como tertium genus, apartado das
ações de conhecimento e das executórias em estrito sentido.1

1
Sobre ser a da lei, essa é a perspectiva predominante entre os especialistas brasileiros, que no particular
seguem a maioria da doutrina italiana. Em rigor de técnica, parece mais adequado dizer-se que a tutela
jurisdicional de cautela se contrapõe à satisfativa, esta englobando a função de conhecimento e a de
execução: cf. BARBOSA MOREIRA, O processo cautelar – estudos sobre um novo código de processo
civil, p. 230 (Rio, 1974). Em sentido semelhante ensinava PIERO CALAMANDREI, Introdução ao
estudo sistemático dos procedimentos cautelares, p. 97 (trad. Carla Roberta Andreasi Bassi, Campinas,
2000). As recentes alterações legais concernentes ao “cumprimento de sentença” não alteram o quadro,
certo que a tutela jurisdicional de execução continua a existir e, mesmo no respeitante a títulos executivos
sentenciais, mais se modifica a nomenclatura do que a substância.
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Independentemente da existência ou não no sistema legislado dessa


figura específica, a todo momento se impõe ao julgador a evidência de que
os objetivos do processo em geral não se poderão realizar com segurança
sem o apoio de medidas que evitem, entre a propositura e o julgamento
da demanda, ocorrências capazes de comprometer a efetividade daquilo
que por fim se venha a decidir. Sendo o processo (de pro cadere) um ir
para a frente, um movimento, não pode prescindir jamais do tempo, mais
ou menos dilatado, que se há de alongar entre aqueles dois momentos,
o da postulação inicial e o da decisão final. Essa inelutável realidade
implica a possível ocorrência, no curso dele, de modificações do estado
de fato, atos e fatos (inclusive os da natureza) que podem transformar
em tal grau a situação existente ao tempo do aforamento que já nada
se ache sobre que possa incidir o provimento final, quando ele chegar.
Pode ser, de resto, que o estado de litigância gere entre as partes um tal
grau de hostilidade mútua que se apresente a necessidade de conjurar o
risco de violência a coisas ou a pessoas.
Encontrando dois filhos a disputar sobre a posse de um brinquedo,
o primeiro que a um pai prudente ocorrerá fazer é retirar a ambos
a detenção física do objeto, seja em benefício da preservação da
integridade dele mesmo, seja no escopo de impedir o agravamento da
contenda – até que apure e decida qual dos dois há de ficar com ele.2
Semelhantemente, o juiz que percebe o risco de danificação ao bem da
vida em disputa no processo, de perturbação da paz social ou da alteração
da situação de fato a ser tutelada por simples decurso do tempo, precisa
dispor de meios que lhe permitam afastar esses perigos, seja mediante o
emprego de um processo cautelar como tal estruturado, seja por via de
simples provimentos incidentais emitidos ao longo de sua atuação no
procedimento declarativo ou executório.3

2
Se lhe parecer suficientemente claro que razão assiste a um e não ao outro, poderá entregar desde
logo àquele o brinquedo, sem prejuízo de uma investigação mais detida, ulterior, da controvérsia. Mas
a essa situação corresponderia, no processo, a antecipação de tutela e não a medida cautelar. Sobre
essa distinção, cf.nosso artigo “Breves notas sobre provimentos antecipatórios, cautelares e liminares”, no
volume Ensaios de Direito Processual, (Rio, 2003) – com outras publicações anteriores.
3
O que vem de ser exposto desde logo adianta a nossa convicção de que o requisito verdadeiramente
inafastável da cautela é o periculum in mora, certamente mais importante do que o outro que se lhe
costuma agregar, o do fumus boni iuris. Ele corresponde aos interesses públicos da pacificação e da
asseguração do resultado útil do processo; a aparência de bom direito diz mais propriamente com o
interesse privado da parte que tem ou aparenta ter razão. Foi, de resto, o que chamou a atenção dos
primeiros sistematizadores da tutela cautelar, v. g., CHIOVENDA, Instituições de Direito Processual
Civil, vol. 1, p. 334 (trad. Paolo Capitanio, Campinas, 1998).

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Daí que se costuma destacar o papel eminentemente instrumental do


processo cautelar: ele só existe e cumpre sua finalidade em contemplação
do resultado de outro processo, existente ou com existência futura
suposta, cujo resultado prático se destina aquele a garantir. Ora, como o
processo mesmo, qualquer que ele seja, é instrumento (de realização do
direito material), resulta que as ações e medidas cautelares apresentam
um caráter de dupla instrumentalidade, ou instrumentalidade “ao
quadrado”, eis que se cuida de instrumento do instrumento.4 O Direito
todo, e o Processual não faz exceção, precisa precatar-se contra os efeitos
deletérios do inexorável passar do tempo, e com esse objetivo precisa
construir mecanismos que os amenizem ou compensem, dado que não
os podem suprimir.
A tutela cautelar alicerça-se sobre a perspectiva do tempo que
é inexorável à tutela jurisdicional satisfativa. É pelo fato de os
processos de cognição ou de execução necessitarem de razoável
espaço temporal para se desenvolverem até atingir seu objetivo,
e, pela constatação de que, nesse período, possam ocorrer
determinados fatos a ponto de prejudicar a pretensão material
deduzida antes que seja satisfeita, que se lança mão de uma tutela
acautelatória com o objetivo de afastar os danos decorrentes
justamente dessa demora natural, assegurando a incolumidade de
possível resultado positivo da ação satisfativa.5

Assim se vê que, se a função jurisdicional, em geral, objetiva a


tutela dos direitos, sua modalidade cautelar volta-se à tutela do próprio
processo. Por via dos provimentos cautelares, o que se busca de forma
imediata não é ainda o dar a cada um o que é seu, mas garantir que,
ao chegar o momento de fazê-lo, a solução a ser dada à lide seja ainda
possível e útil na ordem prática.

A tutela cautelar é, em comparação com a do direito substancial,


uma tutela mediata: mais do que fazer justiça, serve para garantir
o eficaz funcionamento da justiça.6
4
Assim, CALAMANDREI, obra cit., p. 41. Também, mais recentemente, ANDRÉA PROTO PISANI
e REMO CAPONI, Lineamenti di diritto processuale civile, p. 303 (Napolis, 2001). Entre nós, apenas
exemplificativamente, HUMBERTO THEODORO JR., Curso de direito processual civil, vol. II, p. 346,
n. 975 (34ª ed., Rio, 2003).
5
MÁRCIO LOUZADA CARPENA, Do processo cautelar moderno, pp. 21/2 (Rio, 2003).
6
CALAMANDREI, Introdução ao estudo... cit, p. 42.

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A instrumentalidade “de segundo grau” que aí se identifica consiste


precisamente em que, ao invés de prestar-se à efetivação dos direitos
no plano material, a função jurisdicional cautelar serve à garantia dos
resultados da atividade processual.7 Para essa finalidade, fixa-se uma
regulação judicial provisória de determinada situação de fato relacionada
à lide (mas não da própria lide!), a fim de preservá-la íntegra no curso do
processo.8
É nesse sentido – só nesse – que cabe falar-se de uma litisregulação
de uma determinada situação de fato pelo deferimento da cautela.
Tenha-se bem claro que essa litisregulação é estritamente processual, em
nada afetando o futuro julgamento da lide principal nem representando
qualquer antecipação do convencimento judicial. Não se trata, pois,
do fenômeno a que aludia CARNELUTTI, em uma das visões que
teve da função cautelar, como “composição provisória da lide”, depois
abandonada.9
Independentemente do que disponha cada sistema jurídico, portanto,
com respeito aos procedimentos acautelatórios específicos, voltados a
atender necessidades igualmente diferenciadas de segurança do processo,
e posta de parte a disputa em torno da chamada e discutida autonomia
do processo cautelar, impõe-se a necessidade da adoção, pelas razões que
vêm de ser aludidas, de um poder de cautela atribuído ao juiz para fazer
face às exigências de segurança que escapem à casuística porventura
incluída nos textos. Não por acaso, antes mesmo de se introduzirem
nos conteúdos normativos regras sobre o processo e os procedimentos
cautelares, o que só ocorreu em era relativamente recente, a doutrina já
identificava essa necessidade: as citações usualmente feitas dos maiores
processualistas italianos do século passado referem-se, em grande parte,
a escritos anteriores à institucionalização dos temas no direito legislado
peninsular.
No caso do processo civil brasileiro, cuja disciplina legal optou
claramente pela autonomia10 e onde também se vêem elencados vários

7
Depois de formular sucessivamente diversas teorias, das quais viria a abjurar, sobre a natureza do
processo cautelar, FRANCESCO CARNELUTTI fixou-se por fim nessa posição: Instituições do processo
civil, vol. I, p. 90 (Campinas, 1999); Diritto e processo, pp. 355 e s. (Nápolis, 1958).
8
Nesse sentido, JOSÉ MARIA ROSA TESHEINER, Elementos para uma teoria geral do processo, p. 155
(São Paulo, 1993).
9
Sistema de direito processual civil (trad. Hiltomar Martins Oliveira, vol. I, p. 53 (São Paulo, 2000).
10
Cf. ALFREDO BUZAID, Exposição de Motivos do Código de Processo Civil, n. 11, com remissão ao

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tipos de procedimentos cautelares diferenciados, a consagração do


poder geral de cautela não foi negligenciada, aparecendo com notável
ênfase no art. 798 do Código de Processo Civil. Com uma singularidade
importante, que parece confortar nossa convicção no sentido da primazia
do pressuposto da periclitação: nenhuma referência aí se faz ao fumus
boni iuris ou a idéia equivalente, mas sim e somente àquele outro
requisito, verbis, “...quando houver fundado receio de que uma parte,
antes do julgamento da lide, cause ao direito da outra lesão grave e de
difícil reparação.”11
Certo, a análise integrada e a interpretação sistemática dos textos
pertinentes apontam para a exigência de concorrerem os dois pressupostos,
como é de doutrina corrente. Nem é de excluir-se, aliás, que em
determinadas situações haja de preponderar o requisito da visibilidade
do bom direito, até, quiçá, com dispensa do outro.12 O que pensamos
haver demonstrado é que, em regra, prevalece o escopo de proteção ao
direito ou interesse periclitante, a ponto de que a denominação genérica
mais difundida dos provimentos dessa ordem seja a de “medidas de
urgência”.

2. PROCESSO CAUTELAR E PROCESSO PRINCIPAL.

A instrumentalidade qualificada, de segundo grau ou elevada ao


quadrado da função jurisdicional precautória, a que já se fez menção,
significa necessariamente que seu exercício pressupõe, ao menos em
estado potencial, a existência de outro processo, à preservação de cujo
resultado útil aquela se volta e se destina. Isso fica mais claro quando se
abstrai da instrumentalidade do processo em geral, como fazem alguns
autores: desconsiderada a realidade de ser toda atividade processual

texto ultimamente citado de CARNELUTTI.


11
GALENO LACERDA, Comentários ao CPC, vol. VIII, tomo I, p. 99, (10ª ed., Rio, 2007) identifica
aí uma das mais delicadas e exigentes atribuições do juiz, dada a largueza e até discricionariedade com
que esse “poder cautelar geral” lhe é atribuído. Adiante, caracteriza essa atuação como “o momento mais
alto e amplo de criação do direito em concreto pela jurisprudência, em sistema codificado, de direito
continental, como o nosso.” (p. 114)
12
Demonstrou-o LUIZ FUX em excelente trabalho acadêmico depois editado em livro: Tutela de
segurança e tutela da evidência, São Paulo, 1996, passim. De resto, as hipóteses legais de concessão da
tutela antecipada (espécie diversa, mas em regra submetida a pressupostos iguais ou semelhantes), hoje,
incluem casos de dispensa do requisito do perigo (CPC, art. 273, inc. II e § 6º). Sobre isso, cf. também
CARPENA, Do processo cautelar... cit., p. 101.

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necessariamente instrumental (no sentido de que serve de ferramenta


à realização do direito material), ainda assim permanece claramente
instrumental a medida cautelar, qualquer que ela seja (no sentido de
que busca preservar o resultado útil de outro processo existente ou
antevisto).13
Quando se afirma, pois, que o processo cautelar é autônomo, como
em geral afirmam os especialistas, o que se quer significar é a sua
independência como entidade jurídica diversa de outras modalidades
de tutela jurisdicional, sobretudo pela finalidade,14 sem que se afirme,
por isso, a possibilidade de sua existência desvinculada do pressuposto
de outro procedimento judicial à garantia de cujo resultado ele sirva de
instrumento. O aforamento do pedido cautelar pressupõe um outro
processo existente, futuro ou no mínimo previsto.
Não é de acolher-se a objeção de DINAMARCO, no sentido de que o
vínculo a outro processo é meramente eventual, dado que este pode não
existir ao tempo do ajuizamento da cautelar nem vir a existir no futuro.15
O que importa não é isso: é que, no momento da propositura da ação
cautelar, ela só se justifica (e só pode ser admitida) na contemplação de
outro processo, que se há de apontar, no mínimo, como esperado. Se ele
ainda não existe (caso em que a cautela é dita antecedente na terminologia
em geral seguida pela doutrina),16 supõe-se que virá a existir. Certo, pode
dar-se que essa eventualidade não se concretize no plano dos fatos – v.
g., porque as partes intercorrentemente se compõem, ou a denegação
liminar da cautela esvazia de utilidade a ação principal, ou o titular do
direito vem a abdicar dele – mas nenhuma das hipóteses que se possam
imaginar apaga esta evidência: a cautela fora pedida na suposição de que
o outro processo, dito acautelado, sobreviria. Aliás, a confirmação disso

13
Nesse sentido, JOSÉ FREDERICO MARQUES, Manual de direito processual civil, vol. 4, p. 333 (São
Paulo, 1974): “A prestação jurisdicional é, por esse motivo, instrumental, porque é provisória; instrumental
porque se destina a assegurar o resultado de outro processo; provisória, porque a composição definitiva do
litígio no processo principal substitui e extingue a prestação jurisdicional cautelar.”
14
Assim, CARNELUTTI, Diritto e processo cit., p. 359, n. 236, nota 1. Na doutrina nacional, por todos,
pela clareza da síntese, HUMBERTO THEODORO JR., Curso e vol. cits., p. 348, n. 978.
15
CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, sem favor um dos maiores processualistas brasileiros, ponderou
que a ação cautelar só apresentará essa característica “se e quando houver necessidade do processo
principal” (A instrumentalidade do processo, p. 372 – São Paulo, 1987).
16
Cf. GALENO LACERDA, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. VIII, tomo I, p. 14 (10ª ed.,
Rio, 2007). Por certo, o adjetivo antecedente expressa com maior precisão a idéia do que o preferido pela
lei, “preparatória”, pois acautelar previamente nem sempre será sinônimo de preparar.

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está nos textos legais que exigem ao autor da cautelar antecedente que
indique “a lide e seu fundamento”, obviamente referindo-se àquela que
será conteúdo do processo acautelado (CPC, art. 801, III e parágrafo
único), assinalam prazo para o ajuizamento da “ação principal” (art. 806
do mesmo Código); determinam que sejam entre si apensados os autos
de um e outro processo (art. 809), entre outros.
Com efeito, só se poderia cogitar de processo cautelar a que não
correspondesse um outro, principal, acautelado, na medida em que
se admitisse a freqüentemente mencionada mas nem por isso menos
absurda categoria da cautelar satisfativa. Essa categoria, de que a doutrina
e a jurisprudência têm cuidado com alguma insistência, encerra uma
invencível contradição em termos, cuja absurdez – alhures já escrevemos17
– não é menor do que a da expressão gelo quente. Na verdade, o que
temos é, de um lado, a classe das medidas judiciais satisfativas, de
cognição ou de execução, e, de outra banda, a das assecuratórias, que
são as cautelares.18
Alguns aspectos legais, doutrinários e jurisprudenciais perturbam
a clareza dessa realidade. A primeira e maior culpa é do legislador,
que incluiu entre os procedimentos tratados no Livro III do Código de
Processo Civil alguns que, definitivamente, não são cautelares. Assim,
os protestos, notificações e interpelações, a posse em nome de nascituro
e vários outros. Ao que tudo indica, o propósito do legislador foi o de
aproveitar, para determinadas atuações judiciais que aparentavam alguma
similitude com os provimentos acautelatórios, o modelo procedimental
das verdadeiras ações cautelares, mas teria sido bem melhor que o
explicitasse no texto legal.19 Essa clara impropriedade topológica fornece,

17
“Breves notas sobre provimentos antecipatórios, cautelares e liminares”, cit., p. 187.
Recorde-se, a propósito, a já mencionada e muito razoável dicotomia sugerida por BARBOSA
18

MOREIRA (retro, nota 1).


19
Correta, no particular, a observação de CARPENA, obra cit., p. 65. Usando as tintas fortes do seu
estilo, o inspirado e saudoso CALMON DE PASSOS verberou a opção do Código, sobretudo pelos
resultados a que conduziu, no artigo “Até quando abusarás, ó Cátila? Cautelares e liminares – catástrofe
nacional”, na Revista de Processo n. 71, p. 231. Escreveu o irreverente jurista baiano: “Porque ele” (Buzaid)
“não queria um código sem adequação à ‘cientificidade’ do processo, sistematizou-o com vistas à trilogia
clássica – processo de conhecimento, de execução e cautelar – ficando em palpos de aranha para situar no
CPC alguns procedimentos rebeldes, que nem poderiam ser postos como de conhecimento, seja no rito
sumaríssimo, seja no rito ordinário ou no especial, nem cabiam no processo de execução. Empurrou-os,
então, no Livro do Processo Cautelar. Eu os chamo de procedimentos ‘topologicamente’ cautelares. São
‘cautelares’ (passe a heresia) porque estão no Livro III. E só por isso. Em verdade, tem função específica,
diversa da do cautelar, muitos, inclusive, com eficácia nitidamente no campo do direito material.”

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talvez, a primeira explicação para o infeliz surgimento da contraditória


expressão “cautelar satisfativa”.
Ocorreu, de resto, que um dos nossos mais publicados e prestigiados
especialistas em processo cautelar, crítico rigoroso do procedimento
comum e inconformado com a inexistência no sistema de lugar para
provimentos diferenciados capazes de dar solução a situações de
urgência, acolheu, mesmo deixando claro que o fazia a contragosto,
a sugerida categoria das cautelares satisfativas, como remédio único
possível para encher o hiato legislativo.20 A própria jurisprudência
enveredou por esse rumo, de certo modo estimulando a deformação do
processo cautelar que, emergencialmente e à falta de melhor solução,
passou a ser farta e abusivamente empregado com a finalidade de obter
provimentos claramente satisfativos, com resultados que chegaram a
ser qualificados de catastróficos, como na já citada e particularmente
veemente passagem de CALMON DE PASSOS. Assim explicou o
fenômeno, em linguagem mais comedida mas ainda veemente, outro de
nossos grandes processualistas:

Para tentar contornar a inadequação do processo tradicional


e superar a irritante e intolerável lentidão da Justiça, muitos
operadores do Direito encontraram na ação cautelar uma válvula
para se alcançar algum tipo de aceleração na tutela jurisdicional e
alguma forma de antecipar efeitos da solução de mérito esperada
para a causa.21

Ora, é bem de ver que as razões dessa deformação teleológica do


processo cautelar deixaram de existir a partir da introdução no sistema,
como figura geral, da possibilidade de antecipação da eficácia da
sentença, com a nova redação do art. 273 do Código de Processo Civil.
Desde então, já não subsistem motivos para a utilização abusiva da ação
cautelar na busca de resultados que não lhe são próprios, assim como
desapareceu o pretexto que poderia explicar a presença na doutrina e na
jurisprudência nacionais da teratológica “medida cautelar satisfativa”.22

20
Falamos de OVÍDIO BAPTISTA DA SILVA, especialmente no artigo Teoria da ação cautelar, na Revista
de Processo n. 59, pp. 187 e s.
21
HUMBERTO THEODORO JR., Tutela antecipatória e tutela cautelar, na Revista dos Tribunais, n.
742, p. 42.
22
Cf. NELSON NERY JR., Atualidades sobre o processo civil, p. 15 (São Paulo, 1995).

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Com efeito, aquele expediente, que sempre foi ilegal, mais injustificável
se fez após a introdução no sistema, como figura geral, da antecipação
da tutela.
Estamos, pois, em que, invariavelmente, os procedimentos
cautelares são instaurados na suposição da existência (atual, futura ou
pelo menos esperada) de um outro processo que não o próprio processo
precautório. É àquele, aliás, que a legislação pertinente a todo momento
se refere como “ação principal” ou “processo principal”, para designar o
acautelado, aquele a cuja segurança de resultados se volta o provimento
acautelatório, para determinar a referência recíproca entre ambos, para
ordenar o apensamento de um a outro, para marcar prazo ao aforamento
do acautelado, para definir a competência e assim por diante. Sempre
haverá, pelo menos virtualmente, um processo principal (acautelado); se
não houver, o suposto processo cautelar só terá dele o nome, ainda que
sob essa qualificação se apresente, submeta-se ao procedimento prescrito
para o gênero e inclua-se na casuística legal correspondente.
Não se há de exigir, por certo, que o processo dito principal se
apresente em sua inteireza como objeto da tutela cautelar. Pode dar-
se que a proteção seja dispensada apenas a uma determinada série de
atos ou limitada a aspectos particulares do procedimento, desde que
seja suficiente para as finalidades de garantia a que se destina. Assim,
pode dar-se que a cautela apenas obste alguns e não outros aspectos
de uma execução em curso ou por ajuizar-se; pode igualmente ocorrer
que o escopo assecuratório só se evidencie necessário em fase recursal e
mediante influência sobre o próprio objeto do recurso e seus efeitos.23 A
essa questão passa-se a dedicar atenção específica.

3. O EMPREGO DAS MEDIDAS CAUTELARES EM APOIO A


RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS.

É norma de direito expresso que não se atribua aos recursos


excepcionais (especial e extraordinário stricto sensu) eficácia
suspensiva, de tal sorte que sua interposição, só por si, não faz
23
Conquanto exponha linha extremamente restritiva quanto a essa admissibilidade de cautela ligada a
recursos interpostos ao Supremo Tribunal Federal (com argumentos que se aplicariam igualmente àqueles
dirigidos ao Superior Tribunal de Justiça), Galeno Lacerda admite a possibilidade: Comentários..., vol. e
tomo cits., pp. 73 e s. Barbosa Moreira, na mesma coleção de Comentários, vol. V, limita-se a registrar a
posição dos tribunais superiores sobre o tema, sem posicionar-se: pp. 607 e 610/11 (14ª ed., Rio, 2008).

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empeço à instauração ou ao prosseguimento da execução,24 ainda


que provisória, do julgado recorrido (CPC, arts. 497 e 542, § 2º).
Ora, é bem sabido que dita execução, mesmo provisória, pode acarretar
prejuízos de extrema gravidade para a parte vencida, em muitos casos
irreversíveis ou de reparação dificílima e incerta. Certas execuções, nada
raras na experiência forense, carregam em si um tamanho potencial de
dano que sua “provisoriedade” resulta apenas teórica – situação que se
faz mais grave e preocupante na sistemática inovada de “cumprimento
da sentença” segundo Lei n. 11.232/2005, cujo rigor (para não dizer
rancor) em face do devedor é extremado.
Igualmente possível é que a matéria envolvida no recurso apresente
um grau de plausibilidade capaz de apontar como provável o acolhimento
da manifestação de inconformidade e conseqüente reversão dos efeitos
que o provimento hostilizado acaso haja produzido nas instâncias
ordinárias. Por outras palavras, pode ser que se apresentem conjugados
os requisitos genéricos da tutela cautelar, geralmente designados como
periculum in mora e fumus boni iuris.
A partir dessa consideração, e com apoio legal no parágrafo único
do art. 800 do Código de Processo Civil, cedo perceberam os operadores
do processo a necessidade e cabimento de medida cautelar capaz de
preservar o status quo até o julgamento do apelo excepcional. Cumpre
assinalar que a admissibilidade de provimento cautelar dessa natureza
começou a ser reconhecida tanto no Supremo Tribunal Federal quanto
no Superior Tribunal de Justiça ainda antes da alteração introduzida
no aludido parágrafo do art. 800, que, sob certos aspectos, era menos
favorecedor dessa solução na sua redação primitiva.25 Com efeito, ao
menos em leitura literal, há um lapso temporal considerável entre os
momentos de “interpor o recurso” e “estar no Tribunal” o processo.
Aliás, pode-se supor tenha sido intenção do legislador da reforma
suprimir divergências que se manifestavam a respeito do momento
a partir do qual se fixava a competência do tribunal ad quem para o
fim considerado. Cumpre deixar desde logo claro, porém, que se trata
24
Sem embargo das inovações terminológicas e sistemáticas impostas pela Lei n. 11.232/2005, essa
continua a ser a palavra empregada pelo art. 497 do CPC, que cuida do tema.
25
Reza o atual parágrafo, com o teor resultante da Lei n. 8.952/1994: “Interposto o recurso, a medida
cautelar será requerida diretamente ao tribunal”. Na redação original, o texto era o seguinte: “Nos casos
urgentes, se a causa estiver no tribunal, será competente o relator do recurso”.

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realmente de ação cautelar, autônoma, a ser processada segundo as


normas processuais que a disciplinam, e não de mero incidente no
processamento do recurso, como por vezes sugeriu a jurisprudência mais
antiga.26
A tal respeito, aliás, as discrepâncias constatadas diziam justamente
com o período – em geral, consideravelmente longo – entre a interposição
do recurso excepcional e seu julgamento. A questão apresenta algumas
complicações decorrentes de que o juízo de admissibilidade se exerce
em dois momentos distintos e em sedes jurisdicionais diferentes – dado
que se pode considerar comum aos recursos em geral, mas que assume
particular realce quando se cuida dos extraordinários.27
A concessão de cautela para esse efeito, por certo, deve limitar-se
a necessidades excepcionais de tutela dessa ordem, sem perder-se de
vista que, em regra, os recursos de que falamos – que constituem, para o
caso, o “processo acautelado” – carecem de eficácia suspensiva. Mas não
pode ser singelamente negada como tese, sob pena de quebra da garantia
constitucional da prestação jurisdicional útil. Há lição de doutrina que
merece transcrição:

Temos, é certo, dispositivo de lei a dizer que o recurso


extraordinário e o recurso especial não impedem a execução da
sentença (art. 497, CPC), mas temos também dispositivo de
lei a dizer que em casos excepcionais o relator pode suspender-
lhe a execução (art. 559, CPC). O Direito há de ser visto como
sistema, e a supremacia constitucional há de ser efetiva. Temos
de fazer valer lição antiga, de valia inquestionável no plano teórico
mas infelizmente pouco praticada, segundo a qual não se deve
interpretar nenhum dispositivo de lei isoladamente. Temos de

26
No sentido do texto, TEREZA CELINA ARRUDA ALVIM, Medida cautelar, mandado de segurança e ato
judicial, p. 22 (São Paulo, 1994). Quanto à competência, cf. GIOVANI MANSUR SOLHA PANTUZZO,
Prática dos recursos especial e extraordinário, p. 101 (Belo Horizonte, 1998). Os tribunais superiores, em
regra, usam a denominação “medida cautelar”, como que revelando certa reserva em admitir que se trata,
sim, de ação cautelar.
27
Tenha-se presente que o sistema soluciona facilmente os problemas dessa ordem quanto aos recursos
de decisões de primeiro grau, mediante agravo de instrumento (quando o recurso principal é de apelação)
ou por via da concessão de tutela antecipada recursal no âmbito do agravo de instrumento. Por vezes,
a soutrina refere a “bipartição” do juízo de admissibilidade como dado caráterístico dos recursos
extraordinários (v. g., RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO, Recurso extraordinário e recurso especial,
pp. 174 e s., n. 2.4 (10ª ed., São Paulo, 2007), o que não é exato, embora o fenômeno tenha aí suas
peculiaridades.

365
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - DOUTRINA - EDIÇÃO COMEMORATIVA - 20 ANOS

interpretar as leis de tal sorte que sejam por elas realizados os


princípios constitucionais.28
A doutrina e a jurisprudência sobre o tema precisaram tomar em
conta a existência de diferentes situações ocorrentes no lapso temporal
entre o julgamento impugnado e o do apelo excepcional: (a) desde o
julgamento no tribunal a quo até a interposição do recurso excepcional;
(b) desta interposição até a decisão do Presidente (ou Vice-Presidente)
do tribunal a quo admitindo a processamento o recurso; (c) desde a
negativa de seguimento ao extraordinário até o julgamento do agravo
que dessa decisão seja interposto e (d) depois da admissão do recurso
no juízo de origem, ou do provimento do agravo que o manda subir. Por
vezes, tomou-se por objeto de exame, ainda, o período em que sequer a
publicação do julgado a ser impugnado fora feita, hipótese que reclama
atenção especial. Importa salientar que, em alguns momentos desse
interregno possivelmente longo, podem ocorrer verdadeiros ou aparentes
hiatos, vazios de jurisdição durante os quais nenhum órgão julgador tem
vínculo claramente visível com o processo principal – que, repita-se, vem
a ser o do recurso excepcional, sem surpresa alguma quando se sabe,
como já mencionado, que a cautela poderá ligar-se a apenas uma parte
ou fase do processo dito principal.
O problema, com efeito, não apresenta maiores dificuldades quando
o recurso interposto, tendo superado a fase de admissibilidade no
tribunal a quo, esteja distribuído no tribunal de destino. A cautela há
de ser requerida diretamente “ao tribunal”, na dicção da lei, e o relator
do recurso será competente para o deferimento ou não, a título liminar,
da medida, com ulterior submissão do decisório ao colegiado ao qual
couber o julgamento do próprio recurso. Desde os albores da vigência
do Código, há notícia de medidas cautelares concedidas em semelhantes
circunstâncias29 e, para o caso, não assume relevância maior a alteração
legislativa aludida. As outras situações que referimos, antecedentes a
esta última, é que podem gerar alguma perplexidade e estabeleceram
certo dissídio nos pretórios, resultando em vacilações jurisprudenciais
acentuadas e ainda não de todo ultrapassadas.
28
HUGO DE BRITO MACHADO, “Medida cautelar nos recurso especial e extraordinário”, Revista
Jurídica, n. 248, p. 7.
29
V. g., sob denominação de “proposta de medida preventiva”, foi deferida cautela dessa ordem pelo
Supremo Tribunal Federal, no RE n. 85.222, 2ª Turma, Relator Ministro Xavier de Albuquerque, julg. em
27.04.1976, in RTJ 77/357.

366
MEDIDA CAUTELAR EM RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS: COMPETÊNCIA

A mais espinhosa das hipóteses figuradas, aquela em que sequer existe


recurso excepcional interposto (caso em que, segundo algumas opiniões,
a competência para a cautelar seria do magistrado que a detém para
dar ou negar passagem ao futuro recurso especial ou extraordinário),30
merece mais detida atenção, dada a quantidade e diversidade das
variáveis envolvidas no raciocínio. Certo é que, mesmo nessa hipótese,
têm sido admitidas medidas cautelares manejadas junto aos tribunais
superiores (que mereceriam, na terminologia já lembrada, a qualificação
de antecedentes), ainda que em casos dados como excepcionalíssimos.
A referência é pertinente e oportuna porque indica a prevalência e a
força do princípio segundo o qual a jurisdição não deve sofrer hiatos, e o
jurisdicionado não pode ficar à mercê de ocasionais mas escandalosamente
freqüentes retardamentos na tramitação dos feitos, inclusive quanto à
publicação dos acórdãos, gerando autênticos vazios de jurisdição. Veja-se
o que decidiu, por exemplo, o STJ, naquela hipótese extrema de acórdão
a ser recorrido mais ainda sequer publicado:

Processual Civil. Medida cautelar. Efeito suspensivo a recurso


especial ainda não interposto. Ação de busca e apreensão.
Alienação fiduciária. Liminar concedida.
I - Possibilidade, em tese, de ser concedida a suspensão da
execução de ato judicial, mesmo não publicado o acórdão. A ser
de modo diverso não haveria tribunal competente para tutelar o
direito ameaçado.
II - Defere-se efeito suspensivo a especial quando, na concessão
de liminar para tal, verifica-se que, dos fatos documentalmente
comprovados e contidos nos autos da cautelar, afiguram-se
presentes os pressupostos fumus boni juris e periculum in mora.
III - Liminar concedida a referendada pelo colegiado.31

Em igual sentido:

Cautelar. Recurso especial. Possibilidade, em tese, de ser concedida


a suspensão da execução de ato judicial, mesmo não interposto

30
Assim, ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, Recurso especial, agravos e agravo interno, p. 113 (5ª ed., Rio,
2008).
31
MC n. 835-SC, 3ª Turma, Relator Ministro Waldemar Zveiter, julg. em 05.08.1997, DJU de 27.10.1997,
p. 54.784.

367
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - DOUTRINA - EDIÇÃO COMEMORATIVA - 20 ANOS

ainda o especial, uma vez que não publicado o acórdão. A ser


de modo diverso não haveria tribunal competente para tutelar o
direito ameaçado.32

Solução similar vinha sendo dada pela mesma Corte – por idênticas e
até mais fortes razões – aos casos em que o recurso, já interposto, pende
ainda de apreciação de sua admissibilidade pela autoridade competente
no tribunal a quo. Nesse caso, aliás, a solução posta tem por si a letra
do tantas vezes citado parágrafo do art. 800. Pode ser lembrada uma
ementa deveras ilustrativa:

Processual Civil. Medida cautelar. Art. 790 do CPC. Conhecimento.


Conferimento de efeito suspensivo a recurso especial interposto,
mas ainda em processamento no tribunal de origem. Comunicação
de efeito suspensivo.
A só e só circunstância de ainda não ter sido lançado juízo sobre
a admissibilidade ou não do recurso especial no tribunal a quo,
não é óbice para o conhecimento de medida cautelar promovida
com a finalidade de comunicar efeito suspensivo ao apelo nobre
pode-se conferir, em caráter absolutamente excepcional, efeito
suspensivo a recurso especial para garantir a utilidade e a eficácia
de uma decisão que nele possa ser favorável ao recorrente, desde
que presentes os indispensáveis pressupostos do fumus boni juris
e do periculum in mora.
Medida cautelar conhecida e deferida.33

Discorrendo sobre o tema em sede de doutrina, outro eminente


membro daquela Corte mostrava-se avesso à idéia de admissão do
pedido cautelar quando ainda não interposto o recurso, aparentemente
fechando a questão quanto ao ponto; aceita-a, de outra banda, em caráter
de absoluta excepcionalidade, quando o recurso, já interposto, aguarde
no tribunal a quo o primeiro juízo de admissão. Ouçamo-lo:

32
MC n. 488-PB, 3ª Turma, Relator Ministro Eduardo Ribeiro, julg. em 14.05.1996, Revista Forense,
vol. 337, p. 229.
33
MC n. 136-SP, 1ª Turma, Relator Ministro Cesar Asfor Rocha, julg. em 03.05.1995, RSTJ vol. 77, p.
77. Este e os dois anteriores acórdãos vêm citados em texto de doutrina do Ministro Antônio de Pádua
Ribeiro, “Medidas de urgência e sua cassação”, no volume Direito processual – inovações e perspectivas
(Estudos em homenagem ao Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira), coord. por ELIANA CALMON e UADI
LAMMEGO BULOS, pp. 25 e s. (São Paulo, 2003). O autor concorda com a tese, embora entendendo
que se deve limitar a casos excepcionais.

368
MEDIDA CAUTELAR EM RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS: COMPETÊNCIA

Voltando-se ao fio da meada, e pedindo perdão pela insistência,


para dotar o recurso especial de efeito suspensivo, há necessidade,
inicialmente, de existir recurso interposto e, em segundo plano,
de já ter ocorrido o correlato juízo de admissibilidade. Sem o
preenchimento da interposição, afigura-se-me inviável a cautelar;
sem o preenchimento do segundo requisito, de regra, não se
deve também admiti-la. Mas, quanto a esse segundo requisito,
em determinados casos, deve-se abrir exceções, sob pena de, em
nome de um princípio, sacrificar outro maior, pois é de bom alvitre
sempre lembrar que o direito processual é instrumental e não fim
em si mesmo.34
Por acaso em julgamento do qual participou esse insigne e saudoso
magistrado, o STJ teve oportunidade de confirmar seu entendimento sob
a ementa seguinte:

Processual Civil.Agravo regimental. Medida cautelar. Competência.


Efeito suspensivo a recurso especial ainda não admitido na origem.
Agravo retido. Destrancamento. Possibilidade.
1. A Constituição Federal reservou ao Superior Tribunal de
Justiça a missão, indeclinável, de zelar pela inteireza do direito
positivo federal infraconstitucional (art. 105, inciso III), razão por
que a ele cabe a última palavra no que se refere à interpretação
das normas processuais, procedimentais e recursais insculpidas
no Código de Processo Civil.
2. O STJ, em caráter excepcional, tem admitido o efeito suspensivo
a recurso especial, ainda que pendente do juízo de admissibilidade
na origem, o mesmo ocorrendo no que concerne à utilização de
medida cautelar para determinar o processamento do recurso
especial retido nos autos, nos termos do art. 542, § 3º, do CPC.
3. Cabe à lei federal disciplinar o funcionamento das instituições
financeiras.
4. Caracterizados os pressupostos do fumus boni iuris e do
periculum in mora, há de ser concedida a medida liminar.
5. Agravo regimental provido.35

34
DOMINGOS FRANCIULLI NETTO, Concessão de efeito suspensivo em recurso especial, na coletânea
citada à nota anterior, p. 196 (artigo iniciado à p. 189).
35
AgRg na MC n. 7.328-RJ, 2ª Turma, Relator para o acórdão Ministro João Otávio Noronha, julg. em

369
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - DOUTRINA - EDIÇÃO COMEMORATIVA - 20 ANOS

4. A POSIÇÃO DO STF SOBRE A COMPETÊNCIA: ANÁLISE


CRÍTICA.

Verdade é que, em tempos mais recentes, sob o poderoso influxo da


jurisprudência sumulada do Pretório Excelso sobre o tema, o egrégio
Superior Tribunal de Justiça vem-se mostrando mais restritivo na
concessão de efeito suspensivo, mediante medida cautelar, a recursos
especiais ainda não submetidos ao juízo de admissibilidade no tribunal
de origem.36 A tendência, pois, é a de recusar o Tribunal Superior sua
competência enquanto inexistente decisão admissória do especial, como
se pode ilustrar com julgado assaz recente:

Administrativo. Fornecimento de medicação. Processual Civil.


Medida cautelar. Atribuição de efeito suspensivo a recurso especial
ainda não admitido na origem. Incompetência do STJ.
1. Não compete ao STJ conceder medida cautelar para conferir
efeito suspensivo a recurso especial ainda não admitido na origem.
É do tribunal local, portanto, a competência para eventuais medidas
cautelares. Incidência das Súmulas n. 634 e 635 do STF.
2. Agravo regimental a que se nega provimento.37

Entretanto, não fechou de todo a porta a postulações dessa ordem,


consoante se pode ver, inclusive, de cautelares concedidas em casos em
tudo e por tudo idênticos ao do exemplo antes colacionado, bastando que
o órgão julgador identifique na espécie examinada ilegalidade manifesta
(por vezes dita “teratológica”) como o desta ementa:

(...)
3. Em casos excepcionais, o egrégio STJ tem deferido efeito
suspensivo a Recurso Especial ainda não interposto, com o escopo
de evitar teratologias, ou, ainda, obstar os efeitos de decisão
contrária à jurisprudência pacífica desta colenda Corte Superior,

02.12.2003, publ. DJ 21.06.2004, p. 178.


36
Súmula n. 634-STF - Não compete ao Supremo Tribunal Federal conceder medida cautelar para dar
efeito suspensivo a recurso extraordinário que ainda não foi objeto de juízo de admissibilidade na origem.
Súmula n. 635-STF - Cabe ao Presidente do Tribunal de origem decidir o pedido de medida cautelar em
recurso extraordinário ainda pendente do seu juízo de admissibilidade.
37
AgRg na MC n. 14.272-RS, 1ª T., Relator Ministro Teori Zavascki, em 24.06.2008, DJ de 1º.07.2008.

370
MEDIDA CAUTELAR EM RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS: COMPETÊNCIA

em hipóteses em que demonstrado o perigo de dano irreparável ou


de difícil reparação.38

Boa exemplificação da regra predominante e da exceção pode ser


encontrado na ementa a seguir:

I - Esta Corte não tem competência para deferir efeito suspensivo


a recurso especial que ainda pende do exame prévio de
admissibilidade pelo Tribunal de origem. Incidem as Súmulas 634
e 635 do Supremo Tribunal Federal.
II - Este Tribunal tem admitido em situações excepcionalíssimas a
concessão de efeito suspensivo a recurso especial, a fim de evitar
decisões teratológicas, o que não se verifica no presente caso.39

De resto, uma certa indefinição tem conduzido até mesmo a julgados


internamente contraditórios. Leia-se a ementa a seguir:

Processual Civil. Medida cautelar. Competência do STJ não


instaurada. Art. 800, parágrafo único, do CPC. Súmulas n. 634 e
635-STF. Processo extinto.
1. Em se tratando de medida cautelar ajuizada com o objetivo
de agregar efeito suspensivo a recurso desprovido de tal eficácia,
a competência da Corte Superior somente se instaura com a
interposição do apelo, nos termos do que dispõe o art. 800,
parágrafo único, do CPC.
2. “Cabe ao Presidente do Tribunal de origem decidir o pedido de
medida cautelar em recurso extraordinário ainda pendente do seu
juízo de admissibilidade” (Súmula n. 635-STF).
3. Agravo regimental desprovido.40

Fácil é perceber que as proposições sob 1 e 2 formulam regras


colidentes: afirma-se, primeiro, que a competência do tribunal superior
para a medida cautelar se inicia com o só fato da interposição do apelo

38
MC n. 11.603-SP, 1ª T., Relator Ministro Luiz Fux, em 12.02.2008, DJ de 07.04.2008.
39
AgRg na MC n. 14.623-MT, 3ª T., Relator Ministro Sidnei Beneti, em 16.10.2008, DJ de 28.10.2008.
40
AgRg na MC n. 14.133-TO, 4ª T., Relator Ministro João Otávio de Noronha, em 02.10.2008, DJ
28.10.2008.

371
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - DOUTRINA - EDIÇÃO COMEMORATIVA - 20 ANOS

raro; a seguir, na linha da Súmula do Pretório Excelso, que ela só se


inaugura com a admissão do recurso. Trata-se, é claro, de momentos
distintos, e nem sempre muito próximos entre si.
Como quer que seja, no Supremo Tribunal Federal, o tratamento da
questão em tese tomou rumos diversos, conduzindo a resultado que não
condiz com os princípios nem merece o respaldo da melhor doutrina. Com
efeito, a pretexto de que, antes do exercício do juízo de admissibilidade
no tribunal a quo, careceria o Supremo de jurisdição sobre o processo em
causa, fixou-se a jurisprudência daquela Excelsa Corte no sentido de que,
enquanto não exercitado o juízo de admissibilidade, à autoridade que o
deverá emitir compete a concessão ou denegação de medida cautelar.
Argumenta-se em alguns julgados, também, que, se concedida cautela
em tais circunstâncias pelo tribunal ad quem, o presidente (ou vice-
presidente) da corte de origem ver-se-ia constrangido a dar seguimento
ao recurso, por uma questão de hierarquia judiciária.
A primeira objeção que se há de fazer a esse entendimento é esta:
ele afronta a literalidade do disposto no art. 800, parágrafo único, do
Código de Processo Civil, segundo o qual é o fato da interposição do
recurso que desloca a competência para o exame das medidas cautelares.
E é significativo anotar, sobre o tema, que o dispositivo legal em foco foi
alterado no curso da reforma processual em andamento (especificamente,
pela Lei n. 8.952/1994), ao que tudo indica, para eliminar as dúvidas que
anteriormente se manifestavam quanto ao exato momento da translação
da competência para o exame dos pedidos cautelares. O texto anterior
deixava margem a interpretações variáveis, ao referir-se, de modo
aparentemente restritivo, a processo (acautelado) que já se encontrasse
no tribunal ao qual era dirigido o recurso.41
De resto, essa é a solução cientificamente mais ajustada aos
princípios. Salvo exceção expressa em contrário, posta na lei (caso da
ação de atentado, art. 880, parágrafo, do CPC), o juízo da ação cautelar
é o da principal – seja que esta já se ache aforada ou que seu ajuizamento
esteja previsto. Ora, tendo o tribunal a quo julgado o recurso ordinário que
lhe estivera afeto, exauriu a jurisdição (mais até do que a competência)
relativamente ao feito e, por não mais deter atribuição legal para nele

41
Recorde-se: o texto do parágrafo rezava, sem o grifo: Nos casos urgentes, se a causa estiver no tribunal,
será competente o relator do recurso”.

372
MEDIDA CAUTELAR EM RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS: COMPETÊNCIA

prover, não a pode ter igualmente para as ações cautelares a ele conexas,
sejam quais forem. Tudo o que resta para decidir da “causa” é da
competência do tribunal ad quem, não se podendo conceber que retenha
consigo aquele outro o poder de acautelar o resultado daquele resíduo.
Essa solução não cria qualquer embaraço para o magistrado ao qual
caiba, na origem, o juízo de admissibilidade. Para o efeito de que se
cuida, importa apurar, tão-somente, quem há de decidir o “processo
principal”, que vem a ser, para o caso, o recurso extraordinário lato sensu.
O que determina a translação da competência é o haver-se esgotado o
ofício jurisdicional do juízo recorrido, fenômeno esse anterior até mesmo
à interposição do recurso, eis que resulta de se haver já decidido o que
havia para decidir relativamente à lide. A apreciação da admissibilidade,
no juízo recorrido, da impugnação manifestada nenhuma relação guarda
com essa questão de competência: trata-se apenas de atividade mais
administrativa do que jurisdicional, a de apuração de requisitos postos
em lei para que o recurso possa ter trânsito ou não. Semelhantemente, a
competência para conhecer de ações cautelares vinculadas a processo no
qual tenha sido interposto recurso de apelação, é do tribunal de segunda
instância, não do juiz singular.42
Especioso, de resto, o argumento segundo o qual, se atribuída dita
competência ao Tribunal Superior, resultaria impedido o magistrado
ao qual toca o primeiro juízo de admissibilidade de negar seguimento
ao recurso, sob pena de quebra da “hierarquia jurisdicional”. As duas
decisões têm objetos radicalmente diversos e inconfundíveis. Em uma,
examinam-se as condições de admissibilidade extrínsecas ao mérito do
recurso (forma, tempestividade, prequestionamento etc.); em outra, a
plausibilidade das razões pelas quais o recorrente busca nova decisão.
A raiz do equívoco, tal como se pode constatar da leitura de alguns
acórdãos que consagram a tese equivocada, está em supor-se que o juízo
de admissibilidade integra necessariamente a apreciação do fumus boni
iuris, quando, na verdade, este diz com a substância mesma do apelo.
De resto, a temida vinculação ou submissão do presidente da
corte a quo àquilo que tenha decidido em sede cautelar o tribunal de
destino não haveria de ocorrer de modo algum, porque atuam ambos em
campos que não se interpenetram e também porque o próprio sistema

42
Cf., detalhadamente, MÁRCIO CARPENA, Processo cautelar moderno cit., pp. 242 e s.

373
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - DOUTRINA - EDIÇÃO COMEMORATIVA - 20 ANOS

recursal circundante não o permitiria.43 De fato, o primeiro juízo de


admissibilidade, exercido no tribunal de origem, opera uma simples
filtragem preliminar da massa de recursos, a fim de simplificar e reduzir
o colossal volume de trabalho que aflui às cortes superiores; o recurso
de agravo dessa decisão, contudo, assegura à parte recorrente, sempre,
um segundo exame das mesmas questões no tribunal de destino, mesmo
quando inadmitido na origem o apelo excepcional. Também por isso,
não há temer que algum constrangimento ou condicionamento viesse a
resultar para aquele do exame de admissibilidade ou mesmo de mérito
da cautela que a Corte Superior tivesse já manifestado. É simples: se
for admitido, o recurso estará acautelado; se não, caducará a cautela
como em qualquer outro caso em que o processo principal não chegue
a existir.
Importa muito lembrar, de outra banda, que entre juízos e tribunais
não existe propriamente uma relação hierárquica, salvo no sentido de que
os de grau “inferior” não se podem rebelar contra os julgados de instância
“superior” sobre questão idêntica. A sobreposição só existe nesse limitado
sentido, de sorte que as esferas competenciais não se interpenetram nem
interferem umas sobre as outras. A decisão do mais humilde juiz da
roça, tornando-se irrecorrível, assume autoridade idêntica àquela de um
julgado da Corte Suprema.
É deveras instrutivo assinalar que o próprio Supremo Tribunal
Federal, em tempos, em composição plenária, consagrara por inteiro a
doutrina aqui defendida, pondo em destaque com singular veemência,
aliás, que o presidente do tribunal a quo cometeria inaceitável invasão de
competência se tomasse a si o exame da cautelar, verbis:

Tendo em vista que o juízo de admissibilidade, exercido em


instância inferior, resume-se à verificação dos pressupostos
genéricos e específicos de recorribilidade do apelo extremo, não
há dúvida de que a concessão de efeito suspensivo ao recurso
extraordinário não se insere nos limites jurídico-processuais da
atuação jurisdicional da Presidência do Tribunal a quo.

43
Em grande parte, esse problema se prende ao fato de que, usualmente, os tribunais ordinários têm
dificuldade em distinguir com precisão os limites do juízo de admissibilidade, que lhes compete, e mal o
resolvem invadindo a competência das instâncias excepcionais. É o que diuturnamente se vê quando a
decisão de admissibilidade aprofunda a discussão quanto a ter ou não ter ocorrido afronta a textos legais
ou constitucionais – não apenas in status assertionis, como caberia, mas com profunda roçadura na seara
do mérito.

374
MEDIDA CAUTELAR EM RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS: COMPETÊNCIA

Age ultra vires, com evidente excesso no desempenho de sua


competência monocrática, o Presidente de Tribunal inferior que,
ao formular juízo positivo de admissibilidade, vem a outorgar,
ao arrepio da lei, efeito suspensivo a recurso extraordinário,
interferindo, desse modo, em domínio juridicamente reservado,
com exclusividade absoluta, a atividade processual do Supremo
Tribunal Federal.44

Com efeito, a atribuição do exame da ação cautelar à autoridade


que, em juízo monocrático, tem a exclusiva competência, claramente
fixada em lei, para aquilatar da admissibilidade do recurso, mediante
exame dos seus requisitos formais extrínsecos, sobre afrontar o disposto
no parágrafo do art. 800 do estatuto processual, dilarga ilegalmente
essa competência para o sopeso de questões que não se situam na faixa
daquele juízo de admissibilidade – eis que, por óbvio, a investigação do
fumus boni iuris, em regra, envolve também aspectos ligados ao mérito
do recurso, e a apuração do periculum in mora, decididamente, nenhuma
correlação guarda com os requisitos de admissibilidade.
O julgado que vem de ser lembrado, inigualável na aplicação da lei e
dos princípios, assim como a orientação que nele se cristalizava, tinham,
a mais, a virtude de melhor atender aos interesses da economia e da
efetiva e expedita solução das controvérsias.45
Não sendo, pois, admissível a existência de vazios jurisdicionais, ou
hiatos durante os quais não haja autoridade judiciária competente para
certa atuação prevista em lei – como reconhece e proclama a jurisprudência
dos próprios tribunais superiores, com sólida base doutrinária – e, de
outra banda, não se podendo identificar fomento jurídico para atribuição
dessa competência a qualquer órgão do tribunal a quo, dita competência
só pode pertencer ao tribunal de destino, desde a interposição do recurso
extremo, como disposto no citado parágrafo do art. 800.
Situação diversa é aquela em que a interposição do extraordinário
lato sensu ainda não ocorreu, talvez até por não haver sido publicado
o acórdão a ser recorrido, se é que cabe, em hipótese tal, a impetração

44
Rcl n. 416, Pleno, Relator Ministro Celso de Mello, in RTJ 144/718.
45
No mesmo sentido é o parecer de ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, Recurso especial, agravos e agravo
interno, p. 114: “.. à eficiência e celeridade do processo melhor conviria, inclusive no âmbito dos tribunais
superiores, o pleno acatamento à norma do art. 800, parágrafo único, do CPC.” (5ª ed., Rio, 2008).

375
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - DOUTRINA - EDIÇÃO COMEMORATIVA - 20 ANOS

da cautela.46 Aí, não cabe invocar aquele parágrafo, e a competência


do tribunal a quo perdura intocada, até mesmo tendo-se em conta a
possibilidade de embargos declaratórios. Nesses casos, tem sido a
competência atribuída à presidência do tribunal de origem, sem maiores
divergências. Há interessante argumento, utilizado em julgado do STJ,
em apoio da tese: a decisão que o tribunal superior porventura proferisse
em circunstâncias tais forneceria subsídios, quiçá valiosos, para a
elaboração do arrazoado recursal, com quebra da “paridade de armas”
que se deve assegurar às partes.47

5. A RETENÇÃO E A POSSÍVEL LIBERAÇÃO DO RECURSO


RETIDO.

Por força do disposto no art. 542, § 3º, do Código de Processo Civil


(introduzido no texto pela Lei n. 9.756/1998), os recursos excepcionais,
em determinadas hipóteses, devem ficar retidos no tribunal de origem,
diferidos seu exame e decisão para o momento em que, si et quando,
suba recurso de igual natureza relativo ao julgamento final, mediante
reiteração da anterior manifestação de inconformidade.
Como era de prever-se, fracassou a tentativa de encerrar-se em
uma casuística fechada, por exclusão, as hipóteses de subida imediata
dos recursos. Numerosas são as situações que a prática judiciária tem
mostrado como impositivas do “destrancamento” do recurso: questões
relativas à competência, à antecipação de tutela, nomeação ou destituição
de inventariantes, administradores ou testamenteiro, levantamento de
dinheiro e entrega de coisas móveis48 e tantas outras situações em que, a
aguardar-se a decisão “final’’ do litígio, o provimento judicial pretendido
cairá na total inutilidade.

Impõe-se neste passo uma observação. Há situações em que


a retenção do extraordinário e/ou do especial, nos termos do §
3º, trará mais prejuízo que benefício. Certos pontos duvidosos

46
Estamos pondo de lado, com certa relutância, nossa restrição a essa possibilidade, sobretudo quando o
acórdão a ser hostilizado sequer foi publicado. Fazemo-lo em nome da imperiosa necessidade de existência
de um juízo competente e da excepcionalíssima urgência que certos casos podem revestir.
47
AgRg na MC n. 13.123-RJ, 3ª T., Relatora Ministra Nancy Andrighi, em 20.09.2007, DJ de 08.10.2007,
p. 259.
48
Exemplos de ATHOS CARNEIRO, obra ult. cit., p. 138.

376
MEDIDA CAUTELAR EM RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS: COMPETÊNCIA

precisam ser enfrentados e esclarecidos quanto antes, sob pena de,


se os deixarmos para mais tarde, nascer o risco de dano irreparável,
ou de inoportuno desperdício de atividade jurisdicional.49

Com efeito, é praticamente impossível arrolar todas as eventualidades:


a inesgotável e imprevisível variedade da vida de relação sempre há de
criar hipóteses novas. Não se perca de vista, inclusive, a possibilidade
de uma exigência de prova difícil, demorada e onerosa cuja inutilidade
ressaia gritante dos autos, ou, na via inversa, a dispensa de alguma outra
sem a qual se faça evidente a impossibilidade de um correto julgamento
de mérito.
Cumpre assinalar, mais, que, à parte essas hipóteses extraordinárias
que excepcionam a incidência do tão citado § 3º, não se podem perder
de vista, de outra banda, aqueles casos em que a autoridade competente,
na origem, haja mal aplicado a regra legal, determinando o trancamento
do recurso em fattispecie que não o comportaria.50
O que ficou dito sobre a competência dos tribunais superiores para as
medidas cautelares destinadas a conferir efeito suspensivo aos recursos
há de valer no relativo às medidas de igual natureza voltadas ao objetivo
de fazer subir de pronto os recursos que, nos termos do dispositivo em
foco, deveriam permanecer retidos. Como a experiência tem mostrado,
revelaram-se deveras freqüentes os casos em que a retenção poderia
ocasionar prejuízos graves e de incerta ou difícil reparação, donde a
necessidade de ser o recurso alçado de pronto ao tribunal ad quem. A
decisão tem de ser deste tribunal, pela incidência da citada regra do
art. 800, parágrafo, e pelas demais razões que vêm de ser expostas –
desde a interposição do recurso e ainda antes do exame primeiro de sua
admissibilidade.51
À primeira vista, poderia parecer que essa deliberação estaria mais
ligada ao juízo de admissibilidade, já que se trata de decidir se o recurso

49
BARBOSA MOREIRA, Comentários e vol. cit., p. 610.
50
O STF surpreendeu um desses casos na AC-MC n. 1.838-RJ, 1ª T. , Relatora Ministra Cármen Lúcia,
em 20.11.2007, DJe 06.12.2007.
51
É importante, lembrar: para o caso, já decidiu o STJ, por sua Corte Especial, que tanto se admite
o emprego da medida cautelar quanto a do agravo de instrumento (sem divergência), e que também a
“simples petição” é admissível para o efeito (por maioria, cf. ATHOS CARNEIRO, Recurso Especial...
cit., p. 136.

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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - DOUTRINA - EDIÇÃO COMEMORATIVA - 20 ANOS

sobe ou não.52 Mas não é assim. O que se envolve nessa decisão é o


exame da excepcional necessidade de ser quebrada a regra da retenção
para o fim de evitar danos graves ou irreparáveis, tema absolutamente
estranho ao dos requisitos de admissibilidade. Afigura-se-nos a medida
cautelar como a via mais adequada, à luz do sistema, para o objetivo em
foco; todavia, não parece prudente fechar questão em matéria de tamanha
valia e repercussão. No STJ, como se pode ver de sua jurisprudência,
a questão é controvertida, sendo freqüente a utilização do agravo ou
da cautelar, mas sem excluir-se a reclamação ou a mera petição. Não
são raros os casos em que, utilizada a cautelar ou o agravo, ou ainda
a reclamação, o relator, de sua própria iniciativa, preferiu conhecer do
pedido como “simples petição”.53 Em todo caso, porém, qualquer que
seja o instrumento empregado, a função é nitidamente cautelar.
Em todo caso e qualquer que seja a medida mais adequada ao pedido
de destrancamento do recurso retido – que entendemos ser mesmo a
medida cautelar, admitida a flexibilização preconizada pelo STJ –, para
essa hipótese não têm os tribunais superiores como deixar de render-se à
evidência de que a simples interposição do recurso instaura a competência
deles. É claro: se o recurso está retido, isso resulta de uma deliberação
do presidente do tribunal a quo, que, por força mesmo da retenção, não
terá examinado a admissibilidade. Mas, ainda assim, não se duvida de
que a liberação para subida imediata deve ser requerida, como tem sido,
ao tribunal ad quem, o que parece respaldar a tese nossa segundo a qual
é a interposição e não a admissão que inaugura a competência deste
para tudo o que diga respeito ao recurso, particularmente no relativo às
medidas cautelares.
Não é nada raro que a determinação de destrancamento do recurso
– quando deferida, como é da hipótese, antes de exercer o presidente do
tribunal a quo o juízo inicial de admissibilidade – venha acompanhado da
ressalva seguinte: a essa autoridade apenas se determina que de pronto

52
Esse o raciocínio seguido no julgamento, pela 3ª T. do STJ, da MC n. 2.361, em 08.02.2000, quando o
relator, Ministro Nilson Naves, chegou a afirmar que “não existe diversidade ontológica entre ‘não admitir’
e ‘reter’ o recurso.”
53
V.g., Rcl n. 727, 2ª Seção, Relator Ministro Waldemar Zveiter, Relator designado Ministro Barros
Monteiro, em 10.05.2000, DJ de 11.06.2001, p. 89; REsp n. 264.193, 4ª T., Relator Ministro Ruy Rosado,
DJ de 27.11.2000; AgRAg n. 292.734, 3ª T., Relator Ministro Ari Pargendler, DJ de 27.08.2001; Rcl n.
781-SP, 2ª Seção, Relator Ministro Ari Pargendler, em 12.06.2002, RSTJ 159/292. Mais recentemente,
MC n. 7.530-MT, 1ª T., Relator Ministro Luiz Fux, em 09.03.2004, DJ de 05.04.2004.

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MEDIDA CAUTELAR EM RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS: COMPETÊNCIA

decida da admissibilidade, livremente, sem qualquer condicionamento


ao teor do decidido pela instância ad quem.54
Como se vê, essa realidade dificilmente se pode conciliar com a
idéia presente na jurisprudência sumulada do Pretório Excelso, segundo
a qual a competência daquela Corte (ou do STJ, quando seja o caso)
relativamente ao recurso excepcional só se instaura a partir da decisão
de admissibilidade primeira proferida por quem de direito na tribunal a
quo. Aliás, a Suprema Corte precisou desembaraçar-se desse dilema no
espécime jurisprudencial citado à nota 50, caso em que as duas cautelas
eram postuladas, tendo decidido não conhecer do pedido no alusivo à
concessão de efeito suspensivo e deferir o de destrancamento.
Essa posição implica admitir que, para alguns efeitos, a competência
da Corte Superior só se instaura a partir da decisão admissória na origem,
mas, para outros, acha-se já afirmada antes desse ato processual.

6. CONCLUSÕES.

A função jurisdicional cautelar caracteriza-se pelo escopo de


assegurar o resultado útil de outro processo, dito principal, que tanto
pode existir já ao tempo do pedido precautório (cautelar incidente)
quanto estar apenas antevisto no futuro (cautelar antecedente), caso em
que o pedido de cautela deve desde logo identificá-lo. Assim, ainda que
autônomo no sentido procedimental, o processo cautelar acha-se sempre
e umbilicalmente ligado a outro processo, dito principal, existente ou
previsto – ainda que, por razões diversas, este possa não chegar a existir
concretamente. Também por isso, e não apenas pela função (acautelatória
ao invés de satisfativa) ele se distingue das antecipações de eficácia da
sentença que possam ocorrer no processo não-cautelar.
Os recursos extraordinário stricto sensu, carecendo de eficácia
suspensiva, não asseguram desde logo ao recorrente a posição de vantagem
por ele perseguida, entrando a vigorar com restrições mínimas o julgado
por qualquer deles hostilizado. Deste, ocasionalmente podem defluir
conseqüências deveras gravosas para o vencido, cuja esfera jurídica pode
ser intensamente afetada por decorrências que continuarão a atuar sobre

54
V. g., STF, Pet-MC n. 3.284-SP, 1ª T., Relator Ministro Carlos Britto, em 16.12.2004, DJ de 10.06.2005,
p. 51; STJ, MC n. 13.357-RJ, 1ª T., Relator Ministro Luiz Fux, em 16.10.2008, DJe de 03.11.2008.

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SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - DOUTRINA - EDIÇÃO COMEMORATIVA - 20 ANOS

ela sem embargo da pendência do recurso, cujo julgamento, como é de


todos sabido, costuma tardar consideravelmente. Cumpre a medida
cautelar, então, a função de outorgar ao recurso raro, no todo ou em
parte, a eficácia suspensiva que, de regra, ele não tem.
A necessidade remédio dessa ordem resulta de que o eventual
provimento de algum desses recursos corre o risco da inutilidade, por
encontrar a situação de fato já tão profundamente alterada pelo decurso
do tempo ou pela própria eficácia da decisão recorrida que já não
seja possível a restituição das coisas ao estado que deveria resultar do
julgamento. A fim de conjurar essa indesejável ocorrência, pelo menos
nos casos em que se possa antever a probabilidade dela, é possível buscar
providências de acautelamento que afastem ou reduzam o inconveniente
apontado, medidas tipicamente cautelares, que, aliás, tanto encontram
previsão e amparo no Código de Processo Civil quanto nos regimentos
internos dos tribunais aos quais se destinam aqueles recursos. Seu
objetivo é, em termos práticos, o de conferir eficácia suspensiva ao
recurso que, de regra, não o tem.
Parece correto afirmar-se que um recurso começa a existir a
partir de sua interposição. Entretanto, nos extraordinários, mais do que
nos outros – por tratar-se de recursos de fundamentação vinculada –,
assume particular importância o ato de admissão inicial pela autoridade
a quem esteja cometida essa atribuição (em regra, o presidente ou vice-
presidente do tribunal recorrido). A diferença está em que esse exame de
admissibilidade se traduz necessariamente em decisão fundamentada, na
qual são sopesados todos os requisitos formais de admissibilidade, vale
dizer, a conformidade da interposição à previsão constitucional que lhes
dá vida; a ajustabilidade dela à moldura desenhada na Constituição.
Sem embargo da importância desse ato, impende ter-se presente
que sua prática não condiciona a existência nem o teor do recurso,
intuitivamente definidos pela interposição. Inexiste, pois, razão para
que se condicione a admissão da ação cautelar tendente a outorgar-lhe
excepcional eficácia suspensiva a esse ato de passagem do recurso pelo
primeiro crivo de admissibilidade, exercido no tribunal a quo.
Também não há bom fomento jurídico para erigir-se o ato de
admissão na origem a divisor de águas da competência para o exame das
medidas cautelares a ele pertinentes. O recurso já interposto ou cuja

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MEDIDA CAUTELAR EM RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS: COMPETÊNCIA

interposição se espera e promete, no que diz respeito às providências de


acautelamento, tem de ser visto como o processo acautelado, de tal sorte
que a competência para conhecer e decidir daquelas medidas acha-se
submetido à regra do art. 800, parágrafo, do Código de Processo Civil.
No particular, portanto, a jurisprudência sumulada do Pretório Excelso
que só dá por inaugurada essa competência dos tribunais superiores com
a admissão do recurso no tribunal a quo, com a mais respeitosa vênia,
não corresponde à melhor solução, seja do ponto de vista dos princípios,
seja à luz do direito positivo nacional. Tampouco explica a distinção
estabelecida arbitrariamente, para o efeito, entre a cautela que busca
agregar efeito suspensivo e a que objetiva liberação do recurso retido.
As conclusões que vêm de ser expostas aplicam-se, por
idênticas razões, às medidas tendentes a liberar da retenção os recursos
excepcionais que a ela se hajam submetido segundo o art. 542, § 3º, do
Código de Processo Civil. Também essas são, em princípio, medidas
cautelares, mas não há inconveniente maior em que se liberalizem para
o mesmo efeito outras providências – postuladas, em qualquer caso, ao
tribunal ad quem. Aliás, a pacífica aceitação dessa competência pelos
Tribunais Superiores, sem cogitar de que o recurso já esteja ou não
admitido na origem (certo que, por hipótese, não estará) dificilmente se
compatibiliza com o espírito da jurisprudência sumulada, que recusa a
mesma competência enquanto não haja o recurso passado pelo primeiro
juízo de admissibilidade.

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