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Gerzilio Lourenço Mahumane/ Maputo-Moçambique – Junho 2022

EXPERIÊNCIA E A RAZÃO COMO FUNDAMENTOS DO


CONHECIMENTO CIENTÍFICO
2.1 Experiência

Experiência é a acção e o efeito de experimentar (realizar acções destinadas a descobrir ou


comprovar determinados fenómenos). O procedimento é bastante habitual no âmbito dos
trabalhos científicos com o propósito de averiguar uma hipótese.

o conceito de experiência em geral, está intimamente relacionado com o conjunto dos


sentidos (tato, audição, paladar, visão, olfato) e que estes, por sua vez, interagem com a
cognição de um agente. Para Dewey (1959, p. 34), este conceito vai um pouco mais além,
colaborando com a instauração ou manutenção de hábitos . Experiência, nesta perspectiva,
passa a ter relevância nas atividades de um agente no plano da ação cotidiana.

Mas a idéia de que a experiência é relevante no agir nem sempre foi bem aceita; foi visto na
seção anterior que esta noção foi alvo de críticas contundentes, tais como as de Descartes.
Quando mencionada, a experiência desempenha seu papel de modo discreto até mesmo em
sua interação com a Natureza.

A realização de uma experiência implica a manipulação de diferentes variáveis que, segundo


presumem os cientistas, constituem a causa do fenómeno que se pretende confirmar. Graças
às experiências, as teorias tendem a encontrar apoio fáctico e explicações causais.

De acordo com Costa e Melo (1999, p. 345) a base de uma experiência reside na manipulação
das variáveis consideradas relevantes, no controlo das variáveis estranhas e na randomização
das restantes. No entanto, as experiências adquirem características bastante diferentes de
acordo com cada ciência. A tarefa de um especialista em química difere da experiência que
possa realizar um sociólogo, por exemplo.

A base de uma experiência reside na manipulação das variáveis consideradas relevantes, no


controlo das variáveis estranhas e na randomização das restantes. No entanto, as experiências
adquirem características bastante diferentes de acordo com cada ciência.

O resultado de uma experiência fornece validade (ou não) a uma teoria. Cada vez que a
experiência é replicada (reproduzida) por outros cientistas e que se obtêm os mesmos
resultados, essa validade é reforçada.
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Cabe destacar que, por mais que as experiências sejam atrativas para muitas pessoas que
tenham curiosidade e que desejem descobrir coisas novas, algumas delas só
podem ser realizadas por peritos e em lugares apropriados. Determinadas substâncias podem
ser perigosas se forem manipuladas por mãos inexperientes.
Certas escolas filosóficas ignoram a relação experiência/conhecimento desvalorizando o
papel da experiência nas acções cotidianas. Em contrapartida, extrapolam a fronteira do
mundo físico, recorrendo a respostas em um plano além do físico para explicar a dinâmica da
acção de um agente no plano físico. Defensores destas escolas filosóficas elaboram um
conjunto de leis universais ou relegam a explicação da interacção mente/corpo a uma
entidade supra-sensível que engendraria as acções.
Por este caminho, fica complicada a tarefa de examinar as acções do plano comum; acções
práticas do cotidiano ficariam desconexas das tentativas de explicações elaboradas por teorias
filosóficas transcendentes. Uma das dificuldades encontradas nesta proposta explicativa entre
leis ou entidades metafísicas reguladoras das acções resulta na dicotomia entre agente e
substância pensante criando uma segregação do agente no plano de suas acções.

Dentro de uma visão naturalista esta mesma visão é adoptada pelo filósofo John Dewey a
experiência toma um papel importante nas acções de um agente orientando, modificando e
interferindo nas acções humanas. Assim, a experiência não é uma fonte de sensações
enganosas que operam como barreiras a serem superadas através de uma razão ou actividade
puramente intelectual. Na proposta deweyana a experiência não tem começo nem fim
apresentando-se como um todo, um fluxo apreendido através de nossos sentidos em um
movimento de estabelecer e expandir certos padrões nas acções.

Um ponto comum e importante para começar nossa investigação é discorrer sobre a teoria
cartesiana acerca da experiência. O objectivo não é detalhar qual a função da mesma em
Descartes devido a dois motivos. O primeiro é que há diversos artigos escritos sobre este
tema no mesmo autor e não é o caso de aumentar a lista.
O segundo é que a própria experiência não opera fundamentalmente na cognição de um
sujeito dentro da filosofia cartesiana. Mas ao discutir o conceito de experiência na filosofia
deweyana, é útil adoptar Descartes como referência para melhor compreender as críticas
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dirigidas à dicotomia corpo/mente. Assim, a proposta é examinar com poucas palavras o que
Descartes propôs a respeito da natureza da experiência e porque esta estaria subordinada a
alma. Apesar de fazer injustiça pressupor cobrir toda a extensão de seu pensamento em tão
poucas linhas, será necessário retomar alguns aspectos de sua tese acerca da cognição com
vistas a evidenciar as diferenças entre a proposta cartesiana e deweyana.
Esse dualismo entre o corpo e mente, tem como uma de suas principais implicações dividir os
processos cognitivos em dois: a experiência sensível que está suscetível a erros ou ilusões por
um lado, e o pensamento racional através do qual é possível conhecer com clareza e
distinção, de outro.
O raciocínio demonstra, no entender de Descartes, a real possibilidade de existir algo
indubitável e simultaneamente sugere existir uma substância (mente ou alma) responsável
pelo refino do conhecimento. E esta substância mais especificamente a rés cogitas pode tomar
o lugar de única fonte de conhecimento excluindo qualquer possibilidade de concordância ou
participação do corpo. E por que exclui o corpo? É ele quem, na visão cartesiana, nos
apresenta as sensações que nos enganam induzindo-nos ao equívoco.
Tudo o que recebi, até presentemente, como o mais verdadeiro e seguro,
aprendi-o dos sentidos: ora, experimentei algumas vezes que esses sentidos
eram enganosos, e é de prudência nunca se fiar inteiramente em quem já nos
enganou uma vez (DESCARTES, 1973, pp. 93-94).

As contribuições filosóficas acerca da relação entre natureza e experiência têm levado, na


visão de Dewey a separar ambos os conceitos. Nesta linha de raciocínio, experiência nos
afasta da natureza criando um obstáculo a ser superado de forma transcendental. Neste
sentido, Dewey (1929, p. 19) quer contestar tal proposta metafísica da relação entre natureza
e experiência. Para ele, tais conceitos o de natureza e experiência merecem um respaldo
maior, sendo que ambos os conceitos não serão concebidos como inimigos ou invasores.
Experiência é a ferramenta para os seres humanos adentrarem e examinarem continuamente a
natureza; não é uma singela observação à distância dos objetos da natureza, mas sim uma
forma de nos aproximar a ela, sentindo-a por completo.

A crítica deweyiana acerca das propostas metafísicas sobre a noção de experiência, questiona
os filósofos contestadores do papel da experiência; tais filósofos ignoram o fato de que
trabalham com palavras destituídas de contexto histórico e significativo. Desta forma,
arquitetam um trabalho penoso de compreensão dos princípios adotados para a análise da
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experiência. Em outros termos, esvaziam o conteúdo conceitual de experiência e de natureza


tornando-as improfícuas ao campo filosófico, enquanto que em outras áreas ou nas ciências
em geral, ocorre exatamente o inverso.

De acordo com Dewey (1929, p. 22) a experiência é uma condição sine qua non tanto para
seus métodos quanto seus resultados. Analisemos o exemplo oferecido pelo autor acerca das
ciências naturais. Aqui o filósofo mostra que a interação experiência/natureza é fundamental
para as teorias científicas, suas práticas e seus resultados. Nestes tipos de ciências, a
experiência é muito bem-vinda e, sem ela, não se pode afirmar que uma teoria ou prática é, de
fato, científica. Assim, conforme

Nas ciências naturais há uma união entre experiência e natureza que não é acolhida como
monstruosidade; pelo contrário, o pesquisador deve usar o método empírico em suas
descobertas para que sejam tratadas como genuinamente científicas. O investigador assume
como procedimento padrão que a experiência, controlada de maneira específica, é a avenida
que direciona aos fatos e leis da natureza.

Ainda na percepção Deweyiana prossegue examinando mais profundamente a natureza da


experiência. Há coisas em comum que são fontes de experiência para todos os seres humanos
e não apenas para os cientistas, ainda que estes tenham objetivos e critérios para análise
distinta do homem leigo.“Desta forma, além de servir como base aos métodos propostos para
as ciências, a experiência permite uma compreensão da natureza extraindo de seus planos
mais profundos suas características ainda não reveladas” (DEWEY, 1929, p.23).

Estes lugares comuns assumem um significado quando a relação da experiência para a


formação de uma teoria filosófica da natureza está em questão. Eles indicam que a
experiência, se a inquirição científica se justifica, não é uma camada fina ou o primeiro
camada da natureza, mas penetra nela, alcançando em sua profundidade, de tal modo que
seus domínios são capazes de expansão; cava túneis por todas as direções e, ao fazer, traz à
tona coisas que antes estavam escondidas assim como os mineiros emergem à superfície
tesouros do subsolo.

Ainda nesta linha argumentativa, o filósofo demonstra um outro exemplo ainda mais
detalhado. A geologia, ciência da terra, trabalha com períodos de tempo excessivamente
grandes que em princípio, parece impossível conceber a experiência como ferramenta de
estudo. No entanto, uma observação atenta de determinadas coisas podem ser experienciadas
hoje, tal como a interação da água, fogo, pressão na formação estrutural da terra; junto delas,
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dados da astronomia complementam dados que fornecem aos geólogos informações


relevantes para suas teorias.

Assim, se um geólogo coleta uma pedra, analisa e diz que ela pertence a uma determinada
era, não se trata de uma tentativa ou uma suposição vaga. Há uma coleta e comparações de
dados observáveis as ações da água, fogo, temperatura, ambiente e etc. no mundo inteiro que,
organizados, indica ao cientista uma determinada era.

Ora, estes elementos que constituem a experiência como as pedras, plantas, objetos, calor,
seqüência de acontecimentos e etc. interagem umas com as outras e não somente fazem parte
da experiência como são a experiência: “coisas interagindo de certas formas são a
experiência; elas são aquilo que é experienciado” (DEWEY, 1929, p. 40). Por consequência,
nosso autor conclui que há uma propriedade que podemos extrair do conceito de experiência.
Ao realizar a exploração da natureza, atingindo em profundidade seus limites, a experiência
se amplia indefinidamente sendo assim, elástica; sua elasticidade constitui as inferências.

Portanto, Dewey (1929, p. 41) ressalta que a experiência aasim percorre o fundo para dentro
da natureza; ela tem profundidade. E também possui abrangência para uma indefinida
extensão elástica. Estende-se. Esta extensão constitui em inferência. Um exemplo bem
singelo que podemos apresentar é o da criança que começa a sentir o mundo ao redor. Cada
objeto, som, textura, etc., apresentam-se como um todo sem começo nem fim, mas um fluxo
que é apreendido através de nossos sentidos em um movimento de estabelecer e expandir
certos padrões em suas ações.

Ao tecer estas linhas gerais sobre o conceito de experiência em John Dewey, foi evidenciada
sua contribuição para o modo de operar conceitos na filosofia. Foi explorada a noção de
experiência e sua aplicabilidade no campo das ciências em geral, não havendo, pois, grandes
problemas estendê-la à filosofia. Se uma experiência é elástica, com fronteiras indefinidas,
não há erro inferir que as experiências estão vinculadas e dependentes de outras em uma 'teia'
de relações imersas em um contexto.

É neste contexto que se propõe que voltemos a atenção; a relação causal das ações refletidas
em um meio pode ser um caminho para orientar as ações de maneira geral. Sendo assim, a
alma ficaria obsoleta e sem papel a desempenhar na constituição cognitiva de um agente
sendo desnecessária para o refinamento da experiência: elaprópria é responsável por se
desenvolver e aprimorar.
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2.2 Razão
Razão, no sentido geral, é a faculdade de conhecimento intelectual próprio do ser humano, é
um entendimento, em oposição à emoção. É a capacidade do pensamento dedutivo, realizado
por meio de argumentos e de abstracções. É a faculdade de raciocinar, de ascender às ideias.
Pode ser visto igualmente como a consciência moral que orienta as vontades e oferece
finalidades éticas para a ação. Para muitos filósofos, a razão é a capacidade moral e
intelectual dos seres humanos e também a propriedade ou qualidade primordial das próprias
coisas.

A palavra razão tem origem na palavra latina, ratio e na palavra grega logos, que significam
reunir, juntar, medir, calcular, portanto, razão significa pensar, falar ordenadamente, com
medida, com clareza e de modo compreensível. A palavra razão é usada em muitos sentidos,
pode significar a habilidade para fazermos uma avaliação da maneira correta, em que
prevalece o bom senso, e a prudência, em que nos sentimos seguros de algo ou que sabemos
com certeza alguma coisa.

A modernidade inventou o conceito de razão prática como faculdade subjetiva,1 e ao fazê-lo


transpôs os conceitos da razão prática aristotélica para o paradigma do sujeito. Com isso, a
razão prática entendida nos moldes da filosofia clássica, como anteriormente apontado,
desprende-se das encarnações da vida cultural e das ordens políticas.

Mesmo confirmando as alterações na concepção do sujeito desde o Cogito de Descartes ao


Eu penso de Kant, até a suprassunção hegeliana da consciência no saber Absoluto, com o que
o século XIX acrescenta aos conceitos oriundo do século anterior a dimensão histórica, o que
implica reconhecer que tanto Hegel como Aristóteles destacam que a “sociedade encontra sua
unidade na vida política e na organização do Estado” (HABERMAS, 1990, p. 17), este
denuncia o desmoronamento da razão prática por efeito da filosofia do sujeito.

A implosão da razão prática não permite mais fundamentar o normativismo do direito


racional na teleologia da história, na constituição do ser humano ou nas tradições
bemsucedidas. Tal estado de coisas, permite compreender o fascínio da opção, ainda aberta: o
caminho dramático da negação de toda a razão (caminho da crítica pós-nietzscheana), ou a
opção à maneira do funcionalismo das ciências sociais” que elimina a razão prática, como no
caso da teoria sistêmica de Luhmann, através da autopoiese de cada sistema. Pode-se
acrescentar às opções acima a via comunitarista5 que aposta nas tradições bemsucedidas.
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Diante de tal quadro pouco atrativo, Habermas explicitamente opta por outra solução. Afirma
que “por esta razão, eu resolvi encetar um caminho diferente, lançando mão da teoria do agir
comunicativo: substituo a razão prática pela comunicativa. E tal mudança vai muito além de
uma simples troca de etiqueta” (HABERMAS, 1989, p. 19). Para os efeitos da reflexão
proposta, pretendo fornecer alguns aportes necessários à,

 configuração da teoria do discurso enquanto discurso de fundamentação; tentar


 estabelecer nos termos da teoria habermasiana a relação entre moral e direito; mostrar
 que a razão transposta para o médium lingüístico instaura direitos básicos
inelimináveis; e por fim, caracterizar
 a relação entre faticidade e validade, na concepção de Habermas.

A razão é uma construção histórico-social. Não é possível pensar, questionar e refletir além
dos limites do homem ou da sociedade em que se insere, podendo- -se, portanto, falar da
multiplicidade da razão, cada qual relacionada a seu contexto. Assim, pode-se falar em razão
grega, relacionada aos pensadores gregos antigos, como Sócrates, Aristóteles e Platão, e em
razão filosófico-cristã, com São Tomás de Aquino e Santo Agostinho, entre outros. Cada
sociedade em sua determinidade histórica, sua vivência e suas condições materiais e
espirituais específicas cria sua forma de compreensão da ealidade, baseada em entendimentos
compartilhados e em pressupostos coletivamente aceitos.

Em cada período histórico destacam-se pensadores ou um conjunto de ideias que


rompem com a forma tradicional de conceber a realidade, naquilo que Bachelard
(2006,p. 47) chama de “ruptura epistemológica”, o que não implica uma renúncia por
completo das ideias e dos pressupostos antigos que forneciam sustentação para
compreensão daquela realidade. Essa mudança não é gratuita, pois, a consciência do
indivíduo não é formada sem que haja relação com o mundo concreto vivido. Não é
possível, ainda, deixar de reconhecer que um estado de consciência coletiva negue a
história passada em favor de um novo entendimento do presente, uma vez que este só se
afirma porque a história o produziu.

Nesse sentido, o Iluminismo ou o Esclarecimen- to, tal como traduzido em Dialética do


Esclarecimento (ADORNO; HORKHEIMER, 1985) deve ser entendido como “tendência
intelectual, não limitada a qualquer época específica, que combate o mito e o poder a par-
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tir da razão”. Dessa forma, “[...] o Iluminismo é uma tendência trans-epocal, que cruza
transversalmente a história e que se atualizou pela Ilustração, mas não começou com ela,
nem se extinguiu no século XVII” (ROUANET, 1987, p. 28).
Assim, as principais carac-
terísticas do Iluminismo são os de “livrar os homens do medo e de investi-los na posição
de senhores” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 19), superar a superstição, imperar
sobre a natureza, ter a técnica como essência do saber, destruir a intuição mítica e
compreender a realidade por meio da abstração.

A Ciência Moderna é consequência das trans-formações históricas que se


potencializam com o advento do Iluminismo. Tal período é consequência de
transformações econômicas e sociais vivenciadas por mudanças concretas. Para
Horkheimer (1990, p. 7), a ciência é força produtiva, é um fator do processo histórico que
exige uma nova compreensão da reali-dade, sobretudo da produção, que tem como
objetivo atender às necessidades de consumo dos indivíduos e, sobretudo, auxiliar o
homem a dominar a natureza.

No entanto, a razão inerente à Ciência Moderna apresenta contradições, porque se tornou


mero “ instrumento útil para os fins da vida diária, que deve emudecer, entretanto, frente
aos grandes problemas e ceder lugar às novas forças mais substanciais da alma.”
(HORKHEIMER, 1990, p. 8) A crise da ciência tem sua origem antes mesmo da ascensão
do Iluminismo, pois,
[...] o processo histórico trouxe consigo um aprisionamento da ciência
como força produtiva [...] Além disso, a ciência, [se entendida] como meio de
produção, não está sendo devidamente aplicada. A compreensão da crise da
ciência depende da teoria correta sobre a situação atual, pois a ciência
como função social reflete no presente as contradições da sociedade.

(HORKHEIMER, 1990, p. 12).


A razão que o Iluminismo cria, no entanto, não se consolida apenas na Ciência Moderna,
pois a filosofia fundamenta o pragmatismo, mas tam-bém o empirismo, o neopositivismo e a
concepção dos enciclopedistas, os quais solidificaram a razão atual Há uma crise de ordem
filosófica, que se apresen-ta como crise da razão e que se manifesta pela ascen-são do
irracionalismo, da renúncia da ordem moral, das posturas autoritárias, da primazia dos
interesses econômicos sobre os sociais.
Todos esses exemplos aderem à afirmação da Razão Tradicional, norteadora das ações e
das regras que regulam a sociedade pela valorização apaixonada do utilitarismo, pela
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razão instrumental, pelo cálculo quantitativo e pelo fetiche do progresso. O que é


vivenciado, desse modo, é um Eclipse da Razão, em que esta é reduzida à “[...] faculdade
de classificação, inferência e dedução, não importando qual o conteúdo específico dessas
ações: ou seja, o funcionamento abstrato do mecanismo do pensamento” (HORKHEIMER,
2000, p. 36). Essa razão, denominada razão subjetiva está relacionada a meios e fins e
consolida-se como racionalidade técnica e racionalidade instrumental.
Por estar inserido no mundo economicista das transformações aparentes e superficiais, “ ao
ser pressionado para dar uma resposta, o homem médio dirá que as coisas racionais são as
que se mostram obviamente úteis, e que se presume que todo homem racional é capaz de
decidir o que é útil a ele” (HORKHEIMER, 2000, p. 13). Essa concepção pragmatista-
utilitarista, contudo, desconsidera que o indivíduo racional é expressão estanque da não
reflexão social. As críticas tornam-se previsíveis e, muitas vezes, meras reproduções de
pensamentos expostos por uma autoproclamada mídia crítica, interessada em suas próprias
elaborações com fins propriamente políticos. O crédito na imagem do outro passa a ser a
moeda das relações críticas sociais. A razão, dessa forma, passa a ser mais uma mercadoria,
como outras quaisquer.

A Razão Tradicional, expressa na racionalidade técnica, vem a ser elemento essencial na


formação da concepção de progresso aceita e valorizada na sociedade. “O progresso da
civilidade ocorrido desde o século XVIII até o início do XX foi obtido preponderantemente
ou em sua totalidade sob a influência do Iluminismo” (HOBSBAWM, 1998, p. 270). O
discurso predominante aponta esse conceito de progresso como o único meio de “guiar” a
evolução dos indivíduos e da sociedade, ainda que impregnado de ilusões, tal como a crença
incondicional de que as ciências podem explicar tudo.

As ciências são fontes de respostas, mas, ao mesmo tempo em que respondem a uma
indagação, criam outras tantas que necessitam ser respondidas. A proposição da Teoria da
Relatividade por Einstein trouxe respostas significativas para a física; entretanto, suas
descobertas questionaram princípios fundamentais da física quântica, aceitas quase que
inquestionavelmente antes dessa teoria. E mesmo a teoria de Einstein vem sendo questionada
a partir dos experimentos no laboratório de acelerador de partículas

O progresso é “ a crença de que os acontecimentos históricos desenvolvem-se no sentido


desejável, realizando um aperfeiçoamento crescente” (ABBAGNANO, 2000, p. 799). O
desejável, que em tese deveria corresponder ao consenso coletivo como orientador do
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processo histórico, é apropriado por poucos. O destino social, portanto, não é uma escolha
social ampla, mas uma condição imposta pelas elites que dominam a técnica e,
consequentemente, condiciona sua utilização

O emprego da técnica, no fomento crescente da tecnologia, é incorporado nas ações sociais e


no sentido de progresso. A cada nova descoberta, a tecnologia é contemplada com discursos
proféticos de soluções para os problemas humanos. Todavia, essa tecnologia expressa,
somente, o desenvolvimento de técnicas com o intuito de dominar a natureza e sua utilização
é condicionada à aplicação como instrumento, denominando, assim, a chamada racionalidade
instrumental. A razão engendrada nesses avanços técnicos é de natureza formal, baseada nas
leis e aplicações que destituem o questionamento coletivo das consequências que levam à sua
utilização ou à apropriação desses conhecimentos por alguns poucos. Assim,

A tecnologia, como modo de produção, como a totalidade dos instrumentos,


dispositivos e invenções que caracterizam a era da máquina, é assim, ao
mesmo tempo, uma forma de organizar e perpetuar (ou modificar) as
relações sociais e uma manifestação do pensamento e dos padrões de
comportamento dominantes, um instrumento de dominação e controle.
(MARCUSE, 1999, p. 74)

Como a sociedade encontra-se seduzida pelo fetiche do progresso, à medida que novos
produtos são apresentados aos consumidores, a esperança de que possam satisfazer seus
desejos é renovada. Todavia, não é o consumidor quem escolhe as mercadorias a serem
produzidas e tampouco a forma como o são, mas o inverso. Muitas das técnicas atuais de
marketing são desenvolvidas com o objetivo de colocar no mercado determinados produtos
para serem consumidos por públicos alvos específicos. Esse processo separa aqueles que não
possuem renda compatível para a compra de determinadas mercadorias, daqueles a quem
estas são destinadas, em um movimento de inclusão e exclusão das possibilidades de
consumo.

Assim, a sociedade de produtores e consumidores, consequência das relações de produção


atuais, é importante para acentuar as diferenças sociais. Aqueles que, por exemplo, não têm
renda suficiente para pagar tratamentos genéticos sofisticados, manter a alimentação saudável
ou mesmo ter o tempo necessário de descanso para o seu bem-estar social, se não forem
subsidiados por políticas públicas específicas, são banidos dos ganhos obtidos pelos avanços
científicos.
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A razão que justifica e legitima esse sistema econômico insere-se mais propriamente em uma
racionalidade superficial, em que o pressuposto básico é antes a separação da sociedade em
classes de produtores e consumidores do que para um sistema capaz de prover a igualdade
entre os indivíduos através do consumo social de mercadorias

A produção em massa necessita da tecnologia para promover o ganho de produtividade e


eficiência na produção. No entanto, o uso dessa tecnologia, baseada na racionalidade técnica,
nem sempre traz benefícios que atinjam, democraticamente, a todos. Todo discurso que
apresenta a tecnologia como solução para os problemas do homem está em conformidade
com o princípio da técnica como elemento central na evolução material dos meios de
produção; entretanto, não corresponde totalmente à necessidade do avanço material da
sociedade.

A evolução material por sua vez, limita-se ao uso da técnica nos meios de produção, todos os
fatores dele decorrentes são excluídos da análise mais crítica das possíveis consequências
trazidas pela racionalidade técnica, ou seja, a técnica incrementa a melhora da produtividade,
da eficiência, do gerenciamento, da redução de desperdício; todavia, todos os problemas
causados por essas melhoras, tais como a precarização do trabalho e sua intensificação e o
incremento aumento de doenças psicossomáticas no trabalho, não são colocados nos debates
cotidianos senão pela crítica. Por esse motivo,

O progresso [no sentido ideal da palavra] não é doação espontânea da técnica, mas uma
construção intencional, pela qual os homens decidem o que deve ser produzido, como e para
quem, “evitando ao máximo os custos sociais e ecológicos de uma industrialização selvagem.
Esse progresso não pode depender nem de decisões empresariais isoladas nem das diretrizes
burocráticas de um Estado centralizador, e sim, de impulsos emanados da própria sociedade”
(ROUANET, 1987, p. 31-32).

O sistema capitalista faz da ciência mais uma das várias mercadorias comercializáveis. Os
trabalhadores encontram-se alienados dos resultados de sua produção, inclusive dos
conhecimentos que conseguiram gerar nos processos de trabalho, como já se sabe desde o
advento da Organização Científica do Trabalho

As apropriações dessas descobertas são e foram utilizadas para atender a


interesses particulares, muitos deles representando a barbárie humana. A
construção da bomba atômica, das armas químicas e das armas de fogo
utilizadas nas guerras e a elaboração de planejamentos táticos para se vencer
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as batalhas são apenas alguns dos exemplos do uso da razão técnica para a
barbárie. hoje as sociedades humanas estão falindo, mas sob condições em
que os padrões de conduta pública permanecem no nível a que foram
reduzidos nos períodos anteriores de barbarização. Até agora não deram
nenhum indício significativo de estarem novamente se elevando
(HOBSBAWM, 1998, p. 271).

É com essas reflexões, acerca da Teoria Tradicional, que Horkheimer chega à afirmação de
que a sociedade capitalista tende a ser totalitária. Esse sistema reduz as possibilidades
daqueles que não querem se submeter à sua lógica, levando-os, quase que inevitavelmente, à
escassez material e econômica. A ideologia, fundamentada nos meios de produção impostos
por condições materiais de existência, submete os indivíduos a pensarem que só há uma
possibilidade para obter o progresso, que é a adoção dos princípios capitalistas de produção e
consumo.

Essa ideia pode ser facilmente verificada pela observação de que muitas sociedades
reduziram seu sentido de felicidade ao simples ato de produzir e consumir. As implicações
dessa forma de ver o mundo excluem os indivíduos de relações mais solidárias. O
individualismo valoriza-se frente à individualidade e ganha novo status de valor moral. As
relações impessoais intensificam e engendram a tolerância das diferenças sociais. Para serem
mantidos como sistema dominante, alguns discursos devem ser fundamentalmente ilusórios.
Entre os discursos possíveis, o que mais se destaca, na atualidade, é a relação que se faz entre
tecnologia e progresso.
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BIBLIOGRAFIA
DESCARTES, R. (1973). Meditações. Discurso do método. Meditações. Objeções e
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