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I – A EPISTEMOLOGIA DA
ALFABETIZAÇÃO

OBJETIVO GERAL DA UNIDADE


Analisar os fundamentos epistemológicos das ciências relacionadas
às metodologias de pesquisa que orientam o desenvolvimento do
processo de alfabetização, distinguindo as diferentes propostas
metodológicas, os limites e as possibilidades de aplicação.
2

Sumário
I - OS FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS, CIENTÍFICOS E OS IDEAIS DE CIÊNCIA 3
1 – AS CONCEPÇÕES DE CIÊNCIAS 5
1.1 - A concepção racionalista 5
1.1.1 O racionalismo e a questão da aprendizagem 6
1.2 - A concepção empirista 6
1.2.1. A aprendizagem na visão empirista 7
1.3 - A concepção construtivista 7
1.3.1. A aprendizagem na perspectiva construtivista 8
1.4 -A concepção histórico-cultural 9
2 – O PROBLEMA DO CONHECIMENTO NO CAMPO DAS CIÊNCIAS
HUMANAS 10
2.1 – O positivismo 10
2.2- O relativismo 11
2.3 - O método compreensivo 11
2.4 –A concepção fenomenológica 11
2.5 -A concepção estruturalista 12
2.6 – A concepção do materialismo histórico 13
2.7 – As concepções de ciências e s questão da alfabetização 14
3. OS FUNDAMENTOS LINGUÍSTICO COMO BASE PARA COMPREENSÃO DO
PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO 22
3.1 – Saussure e a linguística geral 22
II – PIAGET E VIGOTSKY: PENSAMENTO E LINGUAGEM NA CRIANÇA 26
I - PREFÁCIO – UMA VISÃO GERAL DA OBRA 26
3. A ESTRUTURA DO LIVRO 26
3.4. ALGUNS BREVES ASPECTOS DA OBRA 27
4. O PROBLEMA DA ABORDAGEM 27
4.1.3. A herança histórica nas investigações e estudos sobre as relações entre
pensamento e linguagem 28
4.1.4. Sobre os métodos de análise das relações pensamento e linguagem 29
4.1.4.3.O ponto de vista segundo 30
4.1.4.4.A posição de Vygotsky sobre o método: análise em unidades 31
III. CHAUÍ – CONVITE A FILOSOFIA – 35
1. Purificar a linguagem: resumo de Chauí (convite a filosofia) 35
2.Crítica ao empirismo e ao intelectualismo 35
3.A linguística e a linguagem 36
4. A partir do século XX, 37
5.A experiência da linguagem 39
6.A linguagem: 41
7. Linguagem simbólica e linguagem conceitual 41
8.A perspectiva fenomenológica 43
5. As concepções empirista e intelectualista, 43
6. Críticas a visão dos intelectualistas 44
3

I - OS FUNDAMENTOS FILOSÓFICOS, CIENTÍFICOS E OS IDEAIS DE


CIÊNCIA

Ao iniciar o texto sobre a Linguagem, Chauí (2001) menciona Aristóteles, que na


abertura da sua obra “Política” diz que o homem é um “animal político”, isto é, social e
cívico, porque somente ele é dotado de linguagem. Os demais animais, diz Aristóteles,
possuem voz (phone) e com ela exprimem dor e prazer, mas somente o homem possui a
palavra (logos) e, com ela, exprime o bom e o mal, o justo e o injusto: “Exprimir e possuir
esses valores é o que torna possível a vida social e política e, dela, somente os homens são
capazes”1.
Continuando o passeio pela Filosofia da Linguagem, Rousseau, no primeiro
capítulo da obra Ensaio sobre a origem das línguas, diz: “A palavra distingue os homens e os
animais; a linguagem define as nações entre si. Não se sabe de onde é um homem antes que ele
tenha falado”2.
A linguagem nasce de uma profunda necessidade de comunicação. Gestos e vozes
na busca da expressão fizeram surgir a linguagem. Hjelmslev considera a linguagem
inseparável do homem, segue-o em todos os seus atos. Ela, conforme o autor, é o
[...] instrumento graças ao qual o homem modela seus pensamentos, seus sentimentos, suas
emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças ao qual ele influencia
e é influenciado, a base mais profunda da sociedade humana3.
Para este autor, a linguagem é um recurso indispensável: “[..] seu refúgio nas horas
solitárias em que o espírito luta contra a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do
poeta e na meditação do pensador”4.
Assim, a linguagem não é só o simples acompanhamento do pensamento, mas,
como menciona Chauí: é “[...] um fio profundamente tecido na trama do pensamento”5. Ela
é, assim, a forma propriamente humana de comunicação.
Antes, porém, de chegarmos a conclusões mais definitivas sobre a linguagem é
preciso que se saiba que as discussões sobre elas ainda não estão terminadas: há polêmicas
e divergências entre os estudiosos sobre diversas questões, que tiveram seu início em
épocas remotas: por que falamos? Qual a origem da linguagem? Língua e linguagem
significam a mesma coisa?
Sobre as duas primeiras questões, durante muito tempo a filosofia preocupou-se em
definir a origem e as causas da linguagem e as primeiras divergências surgiram na Grécia
principalmente em torno da seguinte questão: a linguagem é natural aos homens? Isto é,
existe por natureza ou é uma convenção social? Ora, se a linguagem for natural, as palavras
possuem um sentido próprio e necessário, determinados em si mesmos, e, se a linguagem
for convencional, as palavras são decisões consensuais da sociedade, e neste caso, são
arbitrárias, a sociedade poderia escolhido outras palavras, diferentes das que usamos, para
designar as coisas6.

1
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia, editora Ática, SP, 2002, p.136-137.
2
Idem, Ibidem.
3
Idem, Ibidem
4
Idem, Ibidem
5
Idem, Ibidem
4

Dos debates sobre a origem da linguagem, de acordo com as opções sobre uma e
outra proposição, surgiram várias teorias sobre a linguagem e, em todas elas, questões as
centrais para a compreensão do problema da linguagem estão presentes nos debates sobre
pensamento e linguagem na criança e sobre as metodologias da alfabetização. A pergunta
sobre a origem levantou uma série de hipóteses que, de alguma forma são contempladas
nos textos dos estudiosos do tema:
 “a linguagem nasce por imitação: os humanos imitam, pela voz, os sons da Natureza
(animais, rios, ventos, trovão, etc.). A origem seria, então, a onomatopéia;
 a linguagem surge por imitação dos gestos: nasce como uma espécie de pantomima
(encenação), na qual o gesto indica um sentido. Pouco a pouco os gestos foram
acompanhados de sons e, posteriormente, em palavras que substituíram os gestos;
 a linguagem nasce da necessidade: a fome, a sede, a necessidade de abrigar-se e de
proteger-se; a necessidade do homem reunir-se em grupo para proteger-se levaram à
criação das palavras que tornaram-se numerosas e complexas, transformando-se
numa língua;
 a linguagem nasce das emoções fortes (descarga emocional), particularmente do
grito (medo, surpresa, alegria), do choro e do riso (dor/prazer, medo/bem-estar,
felicidade/tristeza)”.7
Ao tentar responder a estas questões outros enunciados importantes sobre as teorias
da linguagem foram surgindo, levando à formulação de algumas hipóteses importantes que
fazem parte das polêmicas do nosso tempo:
 “a linguagem é um sistema, isto é, uma totalidade estruturada, com princípios e
leis próprios, sistema esse que pode ser conhecido;
 a linguagem é um sistema de sinais ou de signos, isto é, os elementos que formam a
totalidade lingüística são um tipo especial de objetos, os signos, ou objetos que
indicam outros, designam ou representam outros, como por exemplo: a fumaça é um
signo ou sinal de fogo? A cicatriz é um signo ou sinal de ferida? No caso da
linguagem, os signos são as palavras e os componentes das palavras (sons ou letras);
 a linguagem indica coisas, isto é, os signos lingüísticos (as palavras) possuem uma
função indicativa ou denotativa, ao apontar para os significados das coisas;
 a linguagem tem uma função comunicativa, isto é, por meio das palavras entramos
em relacionamento com outros, dialogamos, argumentamos, persuadimos, relatamos,
discutimos, amamos e odiamos, ensinamos e aprendemos, etc;
 a linguagem exprime pensamentos, sentimentos e valores. Isto é, a linguagem
possui uma função de conhecimento e de expressão, sendo neste caso denotativa, ou
seja, uma mesma palavra pode exprimir sentidos ou significados diversos e diferentes,
dependendo do sujeito que a emprega”8.
Um bom exemplo dado por Chauí (2001) sobre a função denotativa é o uso da
palavra água:
 Se a palavra água for usada numa aula de química, conotará o elemento
químico H2 O;
 Se for empregada por um poeta pode conotar rios, chuvas, lágrimas,
líquido, pureza, etc: “As águas rolaram sobre a minha face”.

6
Cf. Ídem, Ibidem
7
CHAUÍ, 2002, op. cit. p.140-141
8
Cf. Ibidem, p.141
5

 Se for usada por uma criança que chora pode estar indicando uma
carência ou necessidade.
Todas as questões enunciadas sobre a origem e a definição da língua e da linguagem
demonstram que ao longo da história dos conceitos inúmeras teorias foram desenvolvidas,
distintas e contraditórias. Essas teorias não estão desligadas das concepções de ciência que
marcaram cada época ao longo do processo histórico.

1 – AS CONCEPÇÕES DE CIÊNCIAS

Na história há inúmeras concepções de ciência, de verdade e de modos de


investigação científica que marcaram épocas. As três principais concepções que permitem
caracterizar as questões agendadas nos debates de diferentes épocas são: as concepções
racionalistas, as concepções empiricistas, as concepções construtivistas, as concepções
histórico-cultural, o estruturalismo e as concepções do materialismo histórico.
Essas concepções constituem as bases para os debates sobre os problemas da
aprendizagem, particularmente relacionados à alfabetização.

1.1 - A concepção racionalista

Esta concepção, que tem suas raízes desenvolvidas pelos gregos e se estendeu até o
século XVII, afirma que a ciência é um conhecimento racional dedutivo e demonstrativo,
como as verdades matemáticas e, que, somente ela, a matemática, é capaz de provar as
verdades universais a partir dos seus enunciados e resultados. O racionalismo parte de
alguns pressupostos que são importantes para distinguir as diferentes teorias sobre a língua
e a linguagem:
 O racionalismo considera que a realidade é racional e inteligível em si
mesma, portanto a língua é uma realidade racional em si.
 As experiências científicas são realizadas apenas para verificar e confirmar as
demonstrações teóricas e não para produzir o conhecimento do objeto, pois
esse é conhecido exclusivamente para o pensamento.
 O racionalismo considera que o objeto científico é matemático, porque a
realidade, como por exemplo, a língua, possui estruturas organizadas por
axiomas9 semelhantes ao pensamento matemático, como disse Galileu: “o
grande livro da Natureza está escrito em caracteres matemático”. Neste caso,
a língua também é uma realidade Natural.
 A ciência é uma interpretação dos fatos baseada nas informações e
experimentos que permitem estabelecer induções (método hipotético-
dedutivo)10: define-se o objeto e suas leis e disso deduz-se as propriedades, tal
como ele se apresenta em si mesmo.

9
Evidência cuja comprovação é dispensável por ser óbvia; princípio evidente por si mesmo. Expressão que
contém um sentido moral ou geral; provérbio, máxima ou sentença. [Matemática] Noção comum; afirmação
geral aceita sem discussão: "a parte é menor que o todo" é um exemplo de axioma.
10
O Método hipotético-dedutivo consiste na construção de conjecturas, ou seja, premisas com alta
probabilidade e que a construção seja similar, baseada nas hipóteses, isto é, caso as hipóteses sejam
verdadeiras, as conjecturas também serão.
6

 A ciência é uma espécie de raio x da realidade: uma cópia da realidade


refletida no pensamento humano.

1.1.1 O racionalismo e a questão da aprendizagem

O desafio agora é responder como é compreendido o ato de aprender na perspectiva


racionalista?
O pensamento racionalista, seguindo alguns filósofos, indagavam se os saberes das
pessoas são inatos, isto é, se as pessoas quando nascem trazem consigo conhecimentos,
valores e formas de pensar como assim investigaram alguns filósofos.
PLATÃO, por exemplo, firmou posição a favor das ideias congênitas, isto é,
defende a tese de que a alma precede o corpo e que, antes de encarnar, tem acesso ao
conhecimento. Indo mais longe, Platão diz que as pessoas nascem com certas características
físicas que justificam a posição que ocupa na sociedade. O apto para governar ou trabalhar
uma vontade divina.
SÓCRATES, afirmou que conhecer é relembrar, pois a pessoa já domina certos
conceitos desde que nasce, carregam certas aptidões, habilidades, conceitos e qualidades
em sua bagagem hereditária.
Essa concepção deu origem a um tipo de teoria da aprendizagem fundamentada na
ideia de que o educador deve interferir o mínimo possível para trazer o saber à consciência,
organizando-o e levando a criança ou o aluno a procurar respostas para as suas inquietações
e curiosidades.

O pensamento NATUREZA
nada mais é do HOMEM
que uma cópia
SOCIEDADE
da realidade

HOMEM MUNDO

1.2 - A concepção empirista


ARISTÓTELES tinha um modo de compreender diferente de Platão. Afirmava que
embora as pessoas nasçam com a capacidade de aprender, elas precisam de experiências ao
longo da vida para que as capacidades se desenvolvam. Afirmava também que a fonte do
conhecimento são as informações captadas do meio exterior pelos sentidos. As ideias de
Aristóteles impulsionaram uma outra forma de compreender a aprendizagem: a corrente
empirista, favorável a um ensino pela imitação, memorização pela repetição e a cópia.
7

O empirismo surge com a medicina grega e Aristóteles e se estende ao século XIX;


afirma que a ciência é uma interpretação dos fatos, baseada nas observações e
experimentos que permite estabelecer induções e que, ao serem completadas, oferecem a
definição do objeto, suas propriedades e leis de funcionamento. A teoria científica resulta
da observação e dos experimentos, de modo que a experiência não tem o simples papel de
verificar e confirmar os conceitos, mas tem a função de produzir conhecimento.
 Dos métodos utilizados nas observações e experimentos dependem a
formulação da teoria e a definição da objetividade investigada.
 O método é hipotético-indutivo, isto é, apresenta-se suposições sobre o objeto
(hipóteses), realiza-se a observação e o experimento e chega-se à definição
dos fatos, as suas leis, as suas propriedades, os seus efeitos e suas previsões.

O pensamento
aproxima-se da
realidade por NATUREZA
induções- hipóteses HOMEM
SOCIEDADE
O método deve ser rigoroso e dele
depende a investigação

HOMEM MUNDO

1.2.1. A aprendizagem na visão empirista

Os empiristas acreditavam que as informações se transformavam em conhecimento


quando se tornam hábitos da pessoa. A mente humana é como uma tábula rasa, um espaço
vazio a ser preenchido.
Essa teoria ganha força nos séculos XVI e XVII, na idade Moderna. Filósofos
associados a perspectiva empiristas foram Francis Bacon (1561-1626), Thomas Hobbes
(1588-1679) e John Locke (1632-1704). Do ponto de vista da aprendizagem, caberia ao
educador formar o sujeito capaz de julgar e agir segundo os critérios da razão, substituindo
as ideias erradas absorvidas pela religião e por certas ideias validadas pelos meios
científicos.
O inatismo (racionalista) e o empirismo apontam para lados opostos. No século XX
nasce uma tentativa mediana para explicar o
aprendizado, como veremos a seguir

1.3 - A concepção construtivista

Inicia-se no século XX e considera a


ciência uma construção de modelos
explicativos da realidade e não uma
representação dela. O cientista combina dois procedimentos: um vindo do racionalismo e
outro vindo do empirismo. A esses dois elementos é acrescentado um terceiro, que vê o
conhecimento apenas como aproximativo da realidade, portanto, corrigível. Assim:
8

 Como os empiristas, os construtivistas exigem que a experimentação guie e


modifique os axiomas, os postulados, as definições e as deduções feitas pelo
observador sobre o objeto pesquisado;
 Consideram o objeto pesquisado como uma construção lógica e intelectual e
como uma construção experimental feita em laboratório;
 O cientista não espera que seu trabalho apresente a realidade tal como ela é,
em si, mas ofereça estruturas e modelos de funcionamento da realidade
explicando os fenômenos observados;
 Os construtivistas não esperam apresentar uma verdade absoluta e si uma
verdade aproximada que pode ser corrigida, modificada, abandonada por
outra mais adequada aos fenômenos.

Formula novas
Elabora novos hipóteses
problemas Experimentação

O pensamento
aproxima-se da
realidade por
induções- hipóteses

NATUREZA
Do rigor do método continua a HOMEM
depender os resultados da
investigação. SOCIEDADE

HOMEM MUNDO
Confirma ou nega as
hipóteses e teorias verificação

1.3.1. A aprendizagem na perspectiva construtivista

Admite que o sujeito tem potencialidades e características próprias para conhecer,


julgar e agir, mas o meio deve favorecer o seu desenvolvimento, fornecendo objetos, e
abrindo espaços que ele realize suas experiências. O conhecimento deve ser adquirido e a
ação sobre os objetos, modelando-o e transformando-o é de importância vital para que o
aprendizado se realize. A construção do conhecimento é como a construção de uma casa,
que deve ser feita utilizando materiais próprios e ação para que seja erguida.
Jean Piaget (1896-1980), cientista suíço que denominou essa nova maneira de ver o
conhecimento de construtivismo, que muitos estudiosos colocam na vertente estruturalista
(construção de estruturas). Suas ideias influenciaram o pensamento educacional d Educação
Popular de Paulo Freire (1921-1997), o ensino da Matemática de Constance Kamil11, sobre

11
Filha de pai japonês e mãe estadunidense, viveu no Japão até os 18 anos, transferindo-se depois para
os Estados Unidos, onde em 1955 bacharelou-se em sociologia. Mestra em educação e doutora em educação
9

a ética Yves de la Taille e sobre a psicogênese da língua escrita de Emília Ferreiro e Ana
Teberosky.
Na visão construtivista o educador deve criar contextos, desenvolver ações e
desafiar os alunos para que a aprendizagem ocorra; o conhecimento pressupõe atividades da
parte de quem aprende. Deve também considerar as demandas dos alunos, isto é, considerar
os conhecimentos já existentes, propor desafios, observar seus interesses.

1.4 -A concepção histórico-cultural

Toda e qualquer ciência é humana, porque resulta da atividade humana de


conhecimento. No conjunto das ciências, a expressão ciências humanas refere-se àquelas
ciências que tem o próprio ser humano como objeto, no caso particular da alfabetização, o
objeto principal é o aprendizado da língua e da linguagem.
A situação das ciências humanas é muito especial porque:
 O homem como objeto científico foi uma ideia que surgiu apenas no século
XIX. Até então, tudo quanto se referia ao ser humano era estudado pela
filosofia.
 As ciências humanas surgiram depois das ciências matemáticas e naturais, e
estas ciências já haviam definido a ideia de cientificidade, os métodos e ideal
de verdade e de conhecimento científico quando surgiram as ciências
humanas.
 De modo que, as ciências humanas, por essa razão, inicialmente foram
levadas a imitar e copiar o que havia sido estabelecido no campo das ciências
naturais e matemáticas. Em outras palavras, trataram o homem como coisa
natural, a língua e a linguagem como coisas naturais, matemática e
experimental.
Mas, na verdade, não era possível realizar uma transposição integral e perfeita dos
métodos, das técnicas e das teorias naturais para tratar das questões humanas: as ciências
naturais lidam com fatos observáveis, isto é, com seres e acontecimentos que, em condições
especiais de laboratório, são objetos de experimentação.
A transposição dos métodos de investigação das ciências naturais para as ciências
sociais impôs alguns problemas que chamaram a atenção dos cientistas:
 Como observar e experimentar, por exemplo, a consciência humana,
individual, que seria o objeto da Psicologia? Ou a sociedade, como objeto da
Sociologia? Ou uma época passada, objeto da História? Ou a Língua, algo
complexo e subjetivo?
 As ciências naturais buscam leis objetivas e gerais, universais e necessárias
aos fatos. Como estabelecer leis objetivas para o que é essencialmente
subjetivo, como o psiquismo humano? Como estabelecer leis universais para
algo que é particular, como é o caso da sociedade humana, suas formas de

e psicologia, pela Universidade de Michigan. Kamil foi aluna e colaboradora de Jean Piaget, tendo feito
diversos cursos de Pós-Doutorado relacionados com a epistemologia genética, e com outras áreas
educacionais pertinentes tanto à teoria piagetiana como de outros pesquisadores. Atualmente é professora
da Universidade do Alabama.
10

expressão? Como estabelecer leis necessárias para o que acontece uma única
vez, como é o caso do acontecimento histórico?
 As ciências naturais operam por análise (decomposição de um fato complexo
em elementos simples) e síntese dos elementos (recomposição do fato
complexo por seleção de elementos simples, distinguindo os essenciais dos
acidentais). Como analisar e sintetizar o psiquismo humano, uma sociedade e
um acontecimento histórico?
 As ciências lidam com fatos regidos pela necessidade causal ou pelo princípio
do determinismo universal. O homem é dotado de razão, vontade e liberdade,
é capaz de criar valores, de escolher entre várias opções possíveis. Como dar
a explicação científica necessária àquilo que, por essência, é contingente, pois
é livre e age por liberdade?
 As ciências naturais lidam com fatos objetivos, isto é, com fenômenos que
foram purificados de todos os elementos subjetivos, de todas as qualidades
sensíveis, de todas as opiniões e de todos os instrumentos, de todos os dados
afetivo e valorativo. Ora, o humano é justamente subjetivo, sensível, afetivo,
valorativo e opinativo. Como transforma-lo em objetividade, sem destruir sua
principal característica, a subjetividade.

Como se pode ver, a questão do método, seja de investigação e de formulação de


propostas para responder às questões relacionadas com a aprendizagem, em qualquer
circunstância, envolve problemas de natureza complexa como as que foram levantadas.
Não é possível estar inteirado desses problemas sem compreender as relações que a
metodologia da alfabetização, por exemplo, tem com o ideal de cientificidade proposto para
cada época, principalmente no campo das ciências humanas.

2 – O PROBLEMA DO CONHECIMENTO NO CAMPO DAS CIÊNCIAS


HUMANAS

Embora as ciências humanas sejam recentes, a percepção de que os seres humanos


são diferentes das coisas naturais é antiga. Foi no do início do século XV, com a ideia
renascentista de dignidade do homem colocou o homem no centro do Universo, que
surgiu o tratamento diferenciado do estudo sobre o homem entre as demais ciências. Essas
ideias tiveram seu curso nos séculos XVI e XVII, afirmando o homem como agente moral
político e técnico-artístico, destinado a controlar a Natureza e a Sociedade. Chegando no
século XVIII, essas ideias foram afirmadas no conceito de civilização, que admitiu o
homem dotado de razão com capacidade de aperfeiçoar-se e progredir temporalmente
através das instituições sociais e políticas e do desenvolvimento das artes, das técnicas e
dos ofícios.
Mas, o humanismo, no primeiro momento do desenvolvimento das ciências
humanas, não separa o Homem da Natureza. Considera o Homem um ser natural diferente
dos demais, manifestando-se essa diferença como ser racional e livre, agente ético político,
técnico e artístico.
2.1 – O positivismo
11

No século XIX, vemos surgir, com Augusto Comte, uma outra concepção de
ciências humanas, baseada em um postulado positivista, foi uma das mais poderosas
correntes de pensamento. Essa ideia de ciência influenciará a concepção de homem e a
própria teoria da linguagem. Veremos nos enunciados de Saussure, que esta corrente não se
esgota no século XIX, ela influencia o pensamento científico de todo o século XX.
Ainda no final do século XIX e início do século XX, das obras de Dilthey, filósofo e
historiador alemão, surge uma outra ideia fundada na concepção historicista das ciências
humanas que foram herdadas por Kant, Fichte, Schelling e Hegel. Essa concepção insiste
na existência de diferenças profundas entre Homem e Natureza e, por conseguinte, entre as
ciências naturais e humanas. As ciências humanas são chamadas por Dilthey “ciência do
espírito e da cultural”. Os fatos humanos são históricos, dotados de valor e de sentido, de
significação e de finalidade e devem ser estudados com essas características que os
distinguem dos fatos naturais. Nas pesquisas sobre as ciências do espírito e da cultura não
deveriam ser utilizados os métodos experimentais, mas deveriam ser criados métodos de
explicação-compreensão dos sentidos dos fatos humanos, procurando encontrar a
causalidade histórica que os governam.
Acredita-se que o fato humano é histórico ou temporal. Isto é, surge no tempo e se
transforma no tempo. Em cada época histórica, os fatos psíquicos, sociais, políticos,
religiosos, econômicos, técnicos, artísticos e, portanto, a própria língua possui as mesmas
causas gerais, os mesmos sentidos e seguem os mesmos valores, devendo ser
compreendidos simultaneamente, como peculiaridades históricas ou visões de mundo
específicas ou autônomas e como etapas ou fases do desenvolvimento geral da humanidade
e de um processo causal universal que é o progresso.
2.2- O relativismo
Desta concepção, que norteia o historicismo, resultou em dois problemas que não
puderam ser resolvidos pelos seus adeptos: o relativismo, numa época em que as ciências
humanas buscavam a universalidade dos seus conceitos e métodos e a subordinação das
ciências humanas a uma Filosofia da História, época em que as ciências humanas
pretendiam separar-se da Filosofia.
2.3 - O método compreensivo
Para superar esse problema e escapar das contradições apontadas, o sociólogo
alemão Max Weber propôs que as ciências humanas – no caso a sociologia e a economia –
trabalhassem os seus objetos como tipos ideais e não como fatos empíricos. O tipo ideal,
como o próprio conceito remete, oferece construções “puras”, que permitem compreender e
interpretar os fatos observáveis. Assim, por exemplo, o Estado, se apresenta sob uma forma
de dominação social e política que expressam vários tipos ideais de suas épocas: dominação
carismática, dominação pessoal e burocrática, etc., cabendo ao cientista verificar sob qual
tipo ideal se encontra o caso particular investigado.
Os debates sobre as possibilidades de existência das ciências humanas não findaram
e a constituição das ciências humanas como ciências específicas só se consolidou a partir de
três correntes de pensamento, que entre os anos 20 e 50 (século XX), provocaram uma
ruptura epistemológica e uma revolução no pensamento científico que foi a concepção
fenomenológica.
2.4 –A concepção fenomenológica
A concepção fenomenológica introduziu a noção de essência ou significação como
um conceito que permite diferenciar internamente uma realidade (Natureza) de outra
12

(Homem), encontrando seu sentido, sua forma suas propriedades e sua origem: a esfera ou
região da essência da Natureza; e a esfera e região da essência do Homem.
A essência do Homem foi na fenomenologia também diferenciada em essências
diversas: psiquismo, social, histórico e cultural. Assim diferenciada, o estudo sobre a
essência humana abrangeria vários campos de investigação: psicologia, sociologia, história,
antropologia, linguística, economia.
Há diferenças significativas entre as concepções positivistas e as concepções da
fenomenologia. Essa diferença pode ser visualizada com bastante clareza no campo da
psicologia:
O positivismo, recusando a perspectiva metafísica que se referia ao psiquismo em
termos de alma e de interioridade, voltou-se para o estudo dos fatos psíquicos diretamente
observáveis, radicalizando as próprias concepções positivistas, que compreendia o
psiquismo como a soma de elementos físicos, químicos, anatômicos e fisiológicos, de sorte
que não havia, propriamente falando, um objeto científico denominado psíquico, mas
efeitos psíquicos provocados por causas não-psíquicas (físicos, químicos, anatômicos). Por
isso a psicologia considerava-se uma ciência natural próxima da biologia, tendo como
objeto o comportamento como um fato externo, observável e experimental.
Como veremos mais adiante, essa posição, que a psicologia marcou para si no
campo das ciências, terá também consequência no estudo da língua e da linguagem uma
vez que esses estudos sofrem implicações diretas advindas da psicologia, como no caso das
teorias associativistas, que buscam respaldo nas teorias da percepção e principalmente da
teoria da Gestalt. Assim, a Psicologia, como ciência humana do psiquismo, só se tornou
possível a partir do momento em que um conjunto de fatos internos e externos ligados à
consciência (sensação, percepção, motricidade, linguagem) foi definido e dotado de
significação própria, como sugere a fenomenologia.
Retomando a perspectiva da Filosofia Histórica, que considerava as sociedades
etapas culturais e civilizatórias de um processo histórico universal, a Sociologia voltou-se
para os fatos sociais observáveis (positivismo) assim como a Psicologia. Inspirando-se nos
métodos das ciências naturais, a Sociologia positiva também fazia da sociedade uma soma
de ações individuais e tomava cada indivíduo, como veremos Saussure fazer no campo da
linguística, como elemento observável e como causa social primeira. Assim considerando,
não havia sociedade como objeto de estudo, a sociedade seria resultado das ações
psicológicas dos indivíduos, ela só existiria como soma de individualidades ou de
indivíduos.
Somente quando se percebe que a sociedade é algo diferente do plano
essencialmente psíquico de cada indivíduo em essência e significação, como sugere a
fenomenologia, que surge a sociologia propriamente dita. Essa descoberta ganha corpo no
campo da linguística, modificando seus referentes e suas proposições analíticas sobre a
língua e a linguagem.
Resumidamente, antes da concepção da fenomenologia, cada uma das ciências
humanas (a linguística, a economia, a psicologia, a sociologia, a antropologia, etc.)
desfazia-se de seus objetos e os apresentavam agregados às leis e princípios considerados
universais. Essas leis e princípios ora eram ditados pela Natureza, ora pela metafísica.
2.5 -A concepção estruturalista
A psicologia, a linguística e a antropologia social foram as primeiras a transformar-
se radicalmente a partir da noção de estrutura, utilizando-se, nas pesquisas, do método
estrutural.
13

A concepção estruturalista veio mostrar que os fatos humanos assumem a forma das
estruturas, isto é, de sistemas que criam seus próprios elementos, dando-lhes um sentido
pela posição e função que ocupam no todo.
As estruturas são totalidades organizadas segundo princípios internos que lhes são
próprios e que comandam seus elementos ou partes, seu modo de funcionamento e suas
possibilidades de transformação temporal ou histórica. Nelas, o todo não é a soma das
partes, nem um conjunto de relações causais entre elementos isoláveis, como assim fazia
crer os postulados positivistas.
Como veremos nas críticas de Vygotsky, não há como compreender o pensamento,
ou a unidade da consciência partindo do estudo isolado das partes. O estruturalismo sugere
a existência de um princípio ordenador, diferenciador e transformador ao considerar a
estrutura como uma totalidade dotada de sentido.
Essa concepção, básica para a formulação da teoria da Gestalt, modificou a
interpretação positivista que estava apoiada na ideia de progresso e de atraso,
principalmente quando interpretava as sociedades denominadas primitivas.
Foi o pensamento estruturalista que permitiu que cada uma das ciências humanas
criasse seu método específico para o estudo dos seus respectivos objetos, livrando-se das
explicações mecanicistas de causa e efeito. No estudo das sociedades primitivas, tão
importantes para o campo da linguística, Lévi-Strauss, desmistificando a condição de atraso
daquelas sociedades, mostrou que as estruturas dessas sociedades são baseadas no princípio
do valor ou da equivalência, que permite a troca e a circulação de certos seres, de maneira a
constituir o todo da sociedade, organizando todas as relações sociais: a troca ou circulação
das mulheres (estruturas de parentesco, como sistema social de alianças), a troca ou
circulação de objetos especiais (estrutura do dom como sistema social da guerra e da paz); e
a troca ou circulação da palavra (estrutura da linguagem como sistema do poder religioso e
político).
De um modo geral, o estruturalismo mostra como cada um desses sistemas ou
estruturas parciais se organiza e se relaciona com outros, define a estrutura geral e
específica de uma sociedade, que pode, desse modo, ser compreendida cientificamente.
2.6 – A concepção do materialismo histórico
Se a fenomenologia permitiu a definição e a delimitação dos objetos das ciências
humanas e o estruturalismo uma metodologia que esclarece sobre as leis que regem os
fatos humanos, utilizando procedimentos diferentes das ciências naturais, como assim havia
feito o positivismo, o marxismo, permitiu compreender que os fatos humanos são
historicamente determinados e que a historicidade, longe de impedir que sejam conhecidos,
garante a interpretação racional deles e o conhecimento de suas leis.
O marxismo permitiu compreender que os fatos humanos são instituições sociais e
históricas produzidas não só pelo espírito (pensamento) e pela vontade livre dos indivíduos,
mas pelas condições objetivas nas quais o pensamento humano e a linguagem se realizam.
Os fatos humanos mais originários ou primários são as relações do Homem com a
Natureza na luta pela sobrevivência, e essas relações são as relações de trabalho, que deram
origem às primeiras instituições sociais: a família (divisão sexual do trabalho), o pastoreio e
a agricultura e a indústria (divisão social do trabalho), e a troca e comércio (distribuição
social dos produtos do trabalho).
Para o marxismo, então, a primeiras instituições são de natureza econômica e, para
mantê-las, o grupo social cria também instituições de poder que sustentam as relações
sociais, as ideias e os valores produzidos. As ideias e sentimentos, valores e símbolos
14

aceitos por todos servem para justificar ou legitimar as instituições de poder assim como,
para conserva-las e dar-lhes sustentação pela força ou pela lei.
Com essas proposições, o marxismo permitiu às ciências humanas compreender as
articulações necessárias entre o plano psicológico e social e o das instituições humanas;
permitiu também compreender o significado do plano econômico e suas funções de
determinação sobre as instituições políticas e sociais, assim como sobre o conjunto das
ideias e práticas que uma sociedade produz.
A concepção marxista também permitiu compreender que as mudanças históricas
não resultam das ações súbitas e espetaculares de alguns indivíduos ou grupos de
indivíduos, mas dos lentos processos sociais, econômicos e políticos, de acordo com a
forma assumida pela propriedade dos meios de produção e pelas relações de trabalho.
A materialidade da existência econômica comanda outras esferas da vida social, da
espiritualidade, incluindo a linguagem e suas formas de expressão, e todos os processos
históricos. O fenômeno humano, como expressão, é resultado das contradições sociais, de
lutas e conflitos sócio-políticos determinados pelas relações econômicas que podem se
apresentar com base na exploração ou da cooperação.

2.7 – As concepções de ciências e s questão da alfabetização

Resta agora saber o que tudo isso tem a ver com a disciplina em questão: “A
metodologia da Alfabetização”. Na verdade, tem tudo a ver!
Sem compreender as concepções de Homem e de Natureza e as concepções de
ciência constituídas ao longo do tempo, as formas como foram historicamente construídas,
é impossível compreender os fundamentos que explicam a nossa conduta no
desenvolvimento do processo pedagógico e, também, toda a complexidade dos problemas
se acha escondido nas ideias que se tornaram, magicamente, o foco de atenção dos
pedagogos: os métodos de ensino-aprendizagem.
O método é muito mais do que uma lista de procedimentos aleatoriamente
escolhidos, como numa receita de bolo, para se alcançar os resultados finais, indicados
aprioristicamente pelo professor. Refletir sobre o método é, obrigatoriamente, refletir sobre
os fundamentos (as concepções de ciência, o corpo teórico) que dão sustentação a esses
métodos. Se assim não for, só resta a recorrência a um didatismo vazio, ocupado na
reprodução dos limitados conhecimentos do senso comum ou nos padrões de conduta
apontados por uma burocracia pedagógica, que tem seus receituários sob o controle dos
agentes do sistema, imbuídos em suas funções de cristalizar valores e garantir a
normalidade de comportamentos, que devem estar compatíveis com aquilo que dá
funcionalidade à argamassa positivista da própria estrutura escolar burocratizada e distante
do movimento da realidade.
Recorrer à ciência, identificar e avaliar como historicamente como suas concepções
influíram sobre o método que se utiliza – alguns sem saber de onde veio - e como ele se
situa entre outros, é, de certo modo, romper com os receituários e desburocratizar o ato
pedagógico, tornando-o significativo, tanto para quem exerce a função de ensinar como
para aquele que se dispõe a aprender.
Uma rápida revisão dos métodos utilizados nos processos de alfabetização mostrar,
de imediato, as estreitas relações que eles têm com as concepções de cientificidade expostas
anteriormente.
15

De início, cabe uma observação crítica sobre as polêmicas que até recentemente
eram travadas em torno da questão da alfabetização, principalmente na sociedade brasileira.
Como já foi mencionado anteriormente, o foco de atenção dos educadores estava voltado
para o “método em si”, identificando este com as práticas ou procedimentos operativos,
sem o debate sobre as questões fundamentais, que lhe dá origem.
Historicamente, as condutas metodológicas12 vêm sendo definidas, mesmo que isso
não faça tradicionalmente parte da agenda de discussão daqueles que exercem as práticas
pedagógicas, pelas concepções que nortearam a ideal cientificidade de uma época.
O mais antigo método utilizado na realização dos processos de alfabetização, o
denominado método sintético, parte dos elementos menores da palavra, o alfabeto. Esse
método insiste na correspondência perfeita entre o oral e o escrito, entre o som e a grafia,
buscando estabelecer essa correspondência a partir dos elementos mínimos, como se fosse
possível estabelecer uma precisão racional e matemática entre um e outro elemento. Os
elementos mínimos da palavra escrita são as letras regidas, a sua composição, pelas regras
de sonorização da escrita no idioma correspondente.
Este método que é utilizado da Antiguidade até meado do século XVII, tem mais de
2000 anos e não podemos dizer que ele desapareceu. Se visitarmos algumas escolinhas
sejam públicas ou particulares, estas criadas por pessoas que, para sobreviver, transformam
sua residência em local de ensino, lá encontraremos, ainda, esse método sendo utilizados,
sem mesmo as pessoas saberem a sua origem.
Conforme Barbosa13, a concepção de linguagem escrita que o método encerra funda-
se na ideia de que a escrita é um objeto externo ao aprendiz que,
[...] a partir daí, realiza uma análise puramente racional de seus elementos.
A instrução procede do simples para o complexo, racionalmente
estabelecido: num processo cumulativo, a criança aprende as letras, depois
as sílabas, as palavras, frases e finalmente, o texto completo. Estabelece-
se como regra geral que a instrução não deve avançar no processo sem
que todas as dificuldades da fase precedente sejam dominadas14.
As letras são como números que somados, a partir da adição, mediante algumas
regras simples, as letras formam vocábulos, que juntos, compõe os textos mais complexos.
A alfabetização é, portanto, um processo que cresce em complexidade. O método, chamado
sintético, vai tecendo racionalmente, fio por fio a teia da linguagem inteligível em si. Ela
deve ser uma fotografia, cópia fiel, da linguagem oral de forma que haja uma harmonia
perfeita nas relações entre os sons desta com a linguagem escrita, assim como a ciência, de
modo geral, deve ser uma espécie de cópia, um raio x da realidade refletida no pensamento
humano.
[...] o aprendiz deveria dominar o alfabeto, nomeando cada uma das letras,
independente do seu valor fonético e de sua grafia. O aprendiz aprendia
repetindo em coro, soletrando15.
O aprendiz aperfeiçoa inicialmente a acústica e, após um longo período de
treinamento, se lhes apresentava a grafia das letras e,

12
A sistematização das condutas metodológicas da alfabetização foi apresentada por FERREIRO, Emília e
TABEROSKY, Ana. Psicogênese da Língua Escrita, Editora Artmed, Porto Alegre, 1999.
13
BARBOSA, Juvêncio. Alfabetização e Leitura. Cortez, SP, 1990, p, 46 a 48.
14
Barbosa, op. cit. P. 46-47
15
Ibidem, p. 47
16

[...] numa primeira síntese, apresentavam-se as sílabas, sistematicamente e


em ordem. Em seguida, eram introduzidas as palavras mais simples
(monossílabas) e, depois, as mais longas, consideradas de pronúncia mais
difícil16.
A leitura, segue Barbosa, estava estreitamente ligada à aprendizagem da oratória e o
ato de ler era um penoso exercício de articulação, como se fosse um treinamento da
estrutura natural dos órgãos às convenções estabelecidas. Como uma intensa ortopedia
articular, esse treinamento visava eliminar os defeitos da lingual oral e seu registro
correspondente nas formas ornamentalmente desenhadas das grafias. Os textos, menciona o
autor, não tinham pontuação, pois a ortografia não estava normalizada, e todas as
dificuldades visuais levavam o leitor a recorrer à oralização como estratégia de leitura. Diz-
se que o aprendiz, a duras penas, somente começava a ler após quatro anos de exercício
penoso e, somente depois iniciava a escrita. (Cf. Idem, Ibidem)
Esse método predomina na Europa em toda a Antiguidade e também na Idade
Média, com um agravante: na França, as crianças inicialmente aprendiam a ler em Latim,
para depois dominar o uso da língua materna.
Sobre esse método se pode tecer as seguintes considerações:
1) Este método prioriza, na aprendizagem, o ato de ler: a oratória é a forma
fundamental de expressão numa sociedade onde a imprensa não havia se
desenvolvido. A transmissão cultural, predominantemente oral empresta à
oratória um status entre os intelectuais da época;
2) Como decorrência da posição de prestígio da linguagem oral, toda a grafia
deveria utilizar-se dela como referencial para a escrita, o que criava inúmeras
dificuldades para o desenvolvimento desta e do ato de ler;
3) Como até então a Psicologia não havia se desenvolvido, os referentes utilizados
para a compreensão da aprendizagem das crianças eram os mesmo que os de um
adulto, a criança era um adulto em miniatura. O simples para a criança era o
mesmo que era considerado simples para o adulto.
Barbosa informa que somente na segunda metade do século XVIII, Viard e
Cherrier, dois autores de metodologias, propõem abandonar a soletração e colocam como
ponto de partida a leitura da sílaba. No início do século XIX, o método sintético se
aperfeiçoa, mudando a ênfase do nome para o som da letra. Em 1928, M. de Laffore propõe
que a arte da leitura deve consistir na pronúncia dos sons dos signos do alfabeto, um após
outro. Primeiro ensina-se os sons das vogais, depois os sons das consoantes simples e,
depois, os sons dos encontros consonantais. Após isso, conforme Laffore, era suficiente
acelerar o ritmo da emissão sonora (o ritmo da oralização) para a criança ler. O problema se
coloca no fato de que uma letra pode ter vários sons e um fonema pode ter várias grafias e
novas regras de correspondência som-grafia são buscadas, além de sobrar o problema de
como lidar com as várias exceções a essas regras.
Ora, os problemas contidos no método sintético seguem o curso das próprias
dificuldades enfrentadas tanto pela Psicologia como pelos linguistas no desenvolvimento
desta ciência. Como nas demais ciências humanas, a Linguística também é uma ciência
recente. Em outras palavras, as proposições do método sintético podem ser remetidas às
dificuldades inicial do desenvolvimento desta ciência.

16
Idem, ibidem
17

Inaugurada pelos gregos e continuada pelos franceses, o primeiro momento do


estudo da Língua e da Linguagem, denominado por Saussure17 como a “fase da
gramática”, é marcada por uma lógica desprovida de qualquer visão científica. Há, na
verdade, um desinteresse pela língua e o que interessa aos estudiosos são as regras que
permitem distinguir as formas corretas e incorretas de falar. A preocupação inicial,
portanto, é apenas de interesse normativo.
Um segundo momento, que Saussure caracteriza como filológica18, embora a língua
não tivesse sido o único objeto da filologia. A finalidade principal era a de compreensão
dos textos e documentos no sentido de interpreta-los e, assim, os primeiros estudos se
ocuparam da história literária, dos costumes, das instituições e da cultura de modo geral.
Quando são abordadas as questões linguísticas, os estudiosos o fazem somente para
comparar textos de diferentes épocas, determinar a língua peculiar de cada autor e explicar
as inscrições redigidas.
As preocupações sobre as condições da língua, os elementos que nelas estão
implicados, somente tem início em 1870 (século XIX), quando se observou o limite dos
métodos comparativo e se fez distinções mais precisas entre a língua e a linguagem:
observou-se que a língua não poderia ser confundida com a linguagem, esta é somente uma
parte determinada e essencial da língua.
É, justamente, no final do século XIX e início do século XX, com base nos
trabalhos dos linguistas e da Psicologia, que começam a ser formuladas as críticas ao
método sintético, principalmente sob influência da Psicologia Genética e dos defensores
dos métodos analíticos agrupados em torno das teorias associacionistas. Esses estudos, de
caráter empirista, consideram a linguagem como um conjunto de imagens corporais e
mentais formadas pela associação e repetição que constituem as imagens verbais (as
palavras).
As imagens corporais são de dois tipos: motoras e sensoriais. As imagens motoras
são as que adquirimos quando aprendemos a articular o som (falar) e as letras (escrever),
graças a mecanismos anatômicos e fisiológicos. As imagens sensoriais são aquelas que,
graças aos nossos sentidos, à fisiologia do nosso sistema nervoso, sobretudo o nosso
cérebro, aprendemos a ouvir (compreender sons e vozes) e a reconhecer a grafia dos sons
(ler).
As imagens verbais são aprendidas por associações, em função da frequência e
repetição dos sinais externos que estimulam nossa capacidade motriz e sensorial. A palavra
ou imagem verbal é uma síntese de imagens motoras e sensoriais armazenadas em nosso
cérebro.
O método analítico, também denominado método global, inspirou-se no trabalho
dos pedagogos alemães, cujo método ficou conhecido como método Schüler, que partiam
de palavras-chave.
O precursor do método analítico que viria a ser sistematizado no século XX,
conforme Barbosa, foi Radonvilliers (1786), que fez severas críticas ao método sintético.
Mas é Nicholas Adam (1787) que lança as bases do novo método. Na verdade, essa teoria
tem como base uma série de estudos que vinha sendo desenvolvido pela Psicologia desde

17
SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Lingüística Geral, editora Cultrix, SP, 1995
18
O estudo da língua em toda a sua amplitude, baseado em documentos. Já na Alexandria, em época antiga,
havia uma escola de filologia. O termo filologia foi criado por Friedrich Augusto Wolf (1777).
18

os primórdios da psicologia experimental, onde estão incluídos Hermann von Helmholtz,


Ernst Weber, Gustav Theodor Fachner e Wilhelm Wundt, todos alemães.
Nesta mesma época, final do século XVIII e início do século XIX, o pensamento
científico progredia na maioria dos países da Europa Ocidental, mas foi na Alemanha,
como menciona Schultz19 , que os estudos de fonética, linguística, lógica e crítica literária,
entre outros, teve um curso mais decisivo no campo da Psicologia levaram à formulação de
novas propostas metodológicas de ensino.
O trabalho de Helmholtz, sobre a óptica fisiológica (Manual de Óptica Fisiológica,
1856-1866) e sobre os problemas acústicos (Sobre as Sensações Tonais1863) enfocando os
processos psico-fisiológicos foram de grande importância para esclarecer os circuitos desde
a estimulação de um órgão dos sentidos até a resposta motora resultante. Mas, a maior e
mais duradoura contribuição de Helmholtz foi sobre a audição, isto é, a percepção de tons
combinados e individuais, e a natureza da harmonia e da dissonância.
Entre o conjunto de estudos desenvolvidos, que terminam por gerar de forma mais
acabada, mais tarde, as teorias da percepção que vão dar sustentação às propostas
associacionistas da aprendizagem, destacam-se os trabalhos de Wundt (1832-1920).
Recorrendo aos métodos experimentais das ciências naturais, Wundt tinha como objeto de
estudo a consciência. Segundo Wundt, os elementos da consciência são ativos e não
entidades estáticas ligadas por algum processo mecânico de associação. A consciência era
mais ativa na organização de seu próprio conteúdo. Assim, os estudos isolados dos
elementos da consciência só forneceriam o começo da compreensão dos processos
psicológicos.20
Como é possível constatar, percebe-se dois momentos na construção das teorias que
vão dar os fundamentos das teorias associacionistas de aprendizagem: um, marcadamente
empirista, fundado nas concepções que tem como base os estudos de caráter fisiológico dos
aspectos isolados da percepção sensorial; e um outro momento, que se aproxima do
estruturalismo, que, como pode ser visto na formulação de Wundt, busca compreender as
estruturas do pensamento, embora não abandone os métodos empiristas. Essa mesma crítica
na condução dos métodos de pesquisa da Psicologia, guardadas as especificidades de cada
um dos autores é feita por Vygostky, quando critica os métodos da psicologia no seu estudo
sobre o pensamento e a linguagem.
À capacidade auto-organizadora da mente, conforme Wundt, era um sistema da
consciência, ou seja, era volitivo, dependia da vontade humana. Em outras palavras, isto
quer dizer que a consciência tem o poder e a vontade de organizar, de forma ativa, os
conteúdos da mente em processos de pensamento de nível superior, ao mesmo tempo em
que reitera o poder mental de sintetizar elementos dos processos cognitivos. Wundt
reconhecia o caráter básico dos elementos da consciência e afirmava que sem esses
elementos, nada haveria para a mente organizar.
Conforme Wundt, são as experiências que oferecem informações para a mente. Ele
distingue experiências mediatas das imediatas. As mediatas, segundo ele, nos oferecem
informações ou conhecimentos sobre as coisas, uma maneira usual de adquirir
conhecimento do mundo: quando olhamos para uma flor dizemos: A flor é vermelha, “essa

19
SCHULTZ, P. Duane e SCHULTZ, Sudney Ellen. História da Psicologia Moderna, editora Cultrix, SP,
2000, p. 60.
20
Cf. SCHULTZ, OP. CIT. P. 81.
19

afirmação implica que nosso interesse primordial é a flor, e não o fato de passarmos para
a experiência do vermelho”21.
Já na experiência imediata o olhar para a flor, não está no objeto em si, mas na
experiência de uma coisa vermelha. O que parece é que o olhar mediato está dirigido ao
objeto em si, enquanto que o imediato observa a qualidade desse objeto. São essas
experiências básicas, como a experiência imediata, que formam o estado de consciência ou
os elementos mentais que a mente organiza ativamente ou sintetiza.
O objeto principal dos estudos de Wundt é a experiência consciente, que ele estuda
através de um método que envolve a observação da experiência. Nesse método, que ele
denominou de introspecção, só a pessoa que tem essa experiência pode observa-la. Consiste
no exame do próprio estado mental, da percepção interior que os indivíduos observados têm
de si mesmo, relatando a observação que fez da sua própria condição interior. Foi a partir
desses experimentos que ele inferiu informações sobre os elementos dos processos
conscientes.
Concluiu que, de acordo com os resultados obtidos por esse método, o problema da
psicologia podia ser organizado no seguinte tripé: 1) analisar os processos conscientes até
chegar aos seus elementos básicos; 2) descobrir como esses elementos são sintetizados e
organizados; 3) determinar as leis de conexão que governam sua organização.
Entre os elementos da consciência, as sensações, uma das formas elementares de
consciência, são suscitadas sempre que um órgão sensorial é estimulado e os impulsos
resultantes chegam ao cérebro. Ele classificou essas sensações segundo a modalidade do
sentido envolvida (visão, audição, etc.), com a intensidade e com duração. A respeito, de
acordo com os resultados de seus experimentos, considerou a mente e o corpo sistemas
paralelos, mas não Inter atuantes, da mesma forma, que mais tarde, o sistema de
aprendizado da língua e da escrita vão ser considerados sistemas paralelos, no processo de
alfabetização.
Já os sentimentos, para Wundt, são outra forma elementar de experiência, mas
sensações e os sentimentos são simultâneos na experiência imediata. Os sentimentos são
complementos subjetivos das sensações, mas surgem diretamente de um órgão do sentido
(visão, audição, etc.). As sensações são sempre acompanhadas por certas qualidades de
sentimento e, quando se combinam para formar um estado complexo, geram uma qualidade
de sentimento.
A partir disso, Wundt desenvolveu uma teoria tridimensional do sentimento,
utilizando-se de suas informações do método introspectivo. Concluindo que parte da
experiência de qualquer padrão desses sentimentos é um sentimento subjetivo de prazer ou
desprazer. Aos estados de tensão segue-se um estado de alívio, assim, um contínuo prazer-
desprazer, os sentimentos tinham uma dimensão de tensão e alívio. As emoções são
combinações complexas que incluem três dimensões independentes do sentimento: prazer-
desprazer, tensão-relaxamento e excitação-depressão. Desses sentimentos elementares as
emoções se transformam em conteúdos mentais conscientes. Essas formulações vão dar
significado às teorias da aprendizagem, que esclarecem complicados postulados enunciados
por Vygotsky e Piaget, sobre as relações pensamento e linguagem.
Mas, entre os conceitos desenvolvidos por Wundt um dos mais importantes para a
compreensão das teorias associacionistas diz respeito ao que ele denominou “doutrina da
apercepção”. Wundt reconhecia que, quando olhamos para os objetos do mundo real,

21
Ibidem, p.82
20

vemos uma unidade ou síntese de percepções. Por exemplo, olhamos uma árvore como
unidade, e não como cada uma das variadas sensações (olfato, visão, audição, tato, etc). A
nossa experiência visual abrange a árvore como um todo, e não como cada um dos
numerosos sentimentos e sensações elementares que podem constituir a nossa percepção
sobre a árvore. À essa experiência, Wundt denominou de apercepção: experiências
conscientes unificadas: o processo real de organização dos vários elementos numa unidade
como princípio da síntese criativa. Nesse processo, as combinações psíquicas não são, de
modo nenhum, a soma das características dos seus elementos. Algo novo é a resultante,
com novas propriedades distintas de cada um dos elementos que fez parte do processo.
Ora, depois de todo esse rodeio, o que isso tem a ver com os métodos analíticos de
alfabetização? É justamente aí, na teoria de Wundt, que estão as formulações mais originais
do método proposto pelas teorias associacionistas, que mais tarde, sob argumentos mais
bem formulados vão ser reforçados pelos linguistas.
A palavra não é percebida por parte, e tão pouco as partes são percebidas primeiro,
antes da totalidade apontada pelo conceito de apercepção. Ninguém apreende os objetos
que estão no mundo pelas suas partes. A primeira visão que dele se tem é da sua totalidade:
a palavra, diferente das letras do alfabeto, é esta síntese criativa, que se apropria dos objetos
do mundo no plano do pensamento.
Foi, em parte, nesse conceito que se apoiou Nicholas Adam (1787) quando,
refutando o método sintético, utilizou-se de uma metáfora para explicar o seu ponto de
vista:
[...] quando se quer mostrar um caso para uma criança, não se começa
dizendo e mostrando separadamente a gola, depois os bolsos, os botões, a
manga do casaco. O que se faz é mostrar o casaco e dizer para a criança:
‘isto é um casaco’22.
Assim argumentando, Adam diz que é assim que a criança aprende a falar e
pergunta: “ por que não usar o mesmo método para faze-la aprender a ler? Ele propunha,
então, que fossem escritas palavras significativas para criança em pedaços de papel de
diferentes formatos e acreditava que com esta pequena ajuda a criança seria capaz de
reconhecer as palavras significativas. Após um certo tempo essas palavras seriam escritas
em pedaços de papel de formatos idênticos e, aos poucos, a criança não precisaria de ajuda
e reconheceria as palavras escritas. Quando isso ocorresse e a criança já tivesse dominado
um certo número de palavras, então passaria a escrever frases e logo estaria lendo.
Esse método que prima pelos fundamentos ideovisuais, prima pelos que ele
denominou significativo: o sentido do texto tem mais importância que o som do texto. Isto
é, a estimulação visual tem mais importância do que a auditiva. A aprendizagem parte da
palavra com significados afetivos (sentimentos) e efetivo (experiência) para a criança.
Essas ideias que tiveram seus fundamentos formulados, como vimos anteriormente,
nos primórdios das teorias perceptivas pelos empiristas alemães, porém, não vingaram no
seu tempo (século XIX). Foi necessário esperar, como afirma Barbosa23, a virada do século
(portanto, no século XX) para que essas formulações ganhassem expressão. Era preciso,
diria, mais explicações não só de natureza psicológica, mas também linguística, para que as
proposições feitas pelo método analítico obtivessem reconhecimento científico.

22
Barbosa, op. cit, p. 50
23
Idem, Ibidem.
21

As bases teóricas de sustentação do método analítico serão dadas pela Psicologia da


Forma ou Gestalt e, não se pode deixar de reconhecer, pelos avanços das teorias
linguísticas, dadas por Saussure (1906-1913)24, quando já se anunciava, desde o final do
século XIX, o triunfo dos paradigmas estruturalistas.25
O conceito de estrutura deriva-se do latim, structura, do verbo struere, que no
começo teve um sentido arquitetural. A palavra estrutura designa a maneira como um
edifício é construído. Nos séculos XVII-XVIII, o sentido do termo estrutura modifica-se e
amplia-se, por analogia, aos seres vivos: tanto o corpo como a psique são percebidas como
uma construção, assim, também a língua e a linguagem. O termo assume então o sentido da
descrição, ou seja, maneira como as partes integrantes de um ser concreto organizam-se
formando uma totalidade, tal como formulou Wundt, na sua doutrina da apercepção. Assim,
pode-se abranger múltiplas explicações: estrutura anatômica, psicológicas, geológicas
matemáticas, linguísticas, etc.
No campo da educação, é com Claparède que noção estrutura, encerrada na noção
de sincretismo, adquire um sentido pedagógico. Conforme ele,
A visão de conjunto, a percepção da fisionomia geral das coisas, é um fato
marcante nas crianças que merece denominação especial. Propus o nome
sincretismo, como aquele que designa a primeira visão, geral,
compreensiva, porém obscura, inexata em que tudo se amontoa sem
distinção, típica do homem primitivo26.
Ele observa que para uma pessoa que aprendeu o mecanismo da linguagem escrita,
a letra é mais simples do que a sílaba e a sílaba mais simples do que as palavras. Mas, a
criança que vê pela primeira vez um texto isso não é verdade. Para ela, a palavra, ou mesmo
a frase, forma um desenho cuja fisionomia geral (sincrética) a cativa muito mais que o
desenho de uma letra isolada, por isso é melhor começar pela palavra ou texto do que pela
letra isolada.27 Em outras palavras, é melhor começar pela unidade estrutural, mesmo
sincreticamente percebida, do que pelas partes.
O estruturalismo identificar-se-á mais precisamente com um homem: Claude Lévi-
Strauss em uma época em que a divisão do trabalho intelectual está limitada a um saber
cada vez mais fragmentário. Lévi-Strauss aposta na realização de um equilíbrio entre o
sensível e o inteligível no qual suas grandes sínteses apoia-se em modelos inspirados nas
partituras musicais, seguindo uma tradição familiar de músicos.
Conjugando arte e natureza Lévi-Strauss abre caminhos para a interpretação do
mundo social, particularmente no campo da etnologia com a edição de sua obra Triste
Trópicos”, após ficar no Brasil por um longo tempo. É ele que traça os parâmetros de uma
antropologia estruturalista (As estruturas elementares de parentesco: 1943), mais próxima
do marxismo que do empirismo e do funcionalismo que caem na armadilha da
singularidade e da descontinuidade, confundindo estruturas sociais com relações sociais.
Lévi-Strauss, no desenvolvimento de seus estudos, deu ênfase a um aspecto que nos
interessa mais de perto, quando se ocupou da natureza inconsciente dos fenômenos
culturais e a colocação das leis da linguagem no centro da inteligibilidade da estrutura

24
Aqui as datas referem-se à primeira vez que ministrou na Universidade de Genebra o Curso de Linguística
Geral e ao ano de sua morte, 1913.
25
Cf. DOSSE, Françoise. História do Estruturalismo, editora Ensaio, Campinas, SP, 1993, p.13.
26
CLAPARÈDE, apud Barbosa, op. cit., p.50
27
Cf. idem, Ibidem.
22

inconsciente, impulsionando os estudos no campo da linguística, a partir de 1911. Ele


transpôs para o campo da antropologia o modelo linguístico, avançando além da
antropologia física, dominante na época e situando a antropologia no plano da cultura e não
no campo das ciências da natureza.
Como já foi mencionado, o modelo que permitirá Lévi-Strauss operar esse salto é o
da linguística estrutural. O desenvolvimento da fonologia deu à linguística um corpo de
doutrina deu à Lévi-Strauss o eixo principal do seu método:
Tal como os fonemas, os termos de parentesco são elementos de
significação; como eles só se adquirem essa significação sob a condição
de se integrarem em sistemas28.
É interessante observar que o que o autor procura, ao aproximar a linguagem às
formas sociais, é o afastamento de todo e qualquer recurso à consciência do sujeito falante,
logo, a preponderância dos fenômenos inconscientes tanto da estrutura social como da
linguagem. Isso se confirma quando o autor afirma que essas orientações são válidas tanto
para a fonética quanto para a antropologia. As duas disciplinas aproximando-se da
realidade concreta, o fizerem em proveito de um formalismo sistemático onde, na
fonologia, os fonemas são vistos com parte de um sistema que colocam em evidência a
estrutura da linguagem. A antropologia estruturalista acompanha a linguística nesse
caminho traçado pela linguística estrutural.
Os sistemas de parentescos - bases das organizações sociais, para Lévi-Strauss -,
assim como os sistemas de linguagem organizam-se a partir de regras, tão arbitrárias quanto
o sistema de signo de Saussure.
Esses são, de modo geral, os pressupostos que dão as bases dos métodos analíticos
da alfabetização que devem ser aprofundados a partir da compreensão da linguística
estrutural que lhe serve de suporte. Porém, uma coisa importante a ser observada é que,
filiado ao estruturalismo, o método analítico aproxima a aprendizagem da linguagem à
problemática cultural e da sociedade.

3. OS FUNDAMENTOS LINGUÍSTICO COMO BASE PARA


COMPREENSÃO DO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO
A adoção da linguística estrutural na compreensão de outros campos das ciências
sociais e a busca os fenômenos do inconsciente importante para a organização das
estruturas aprofunda os estudos das relações entre pensamento e linguagem e sobre a língua
e a sociedade. Nesta direção, Saussure, como já foi mencionado, teve uma importância
fundamental e torna-se difícil dar continuidade ao debate sobre a questão dos métodos de
alfabetização sem ter alguma noção da Linguística Geral29 de Saussure e dos debates que
são travados a partir dele até os nossos dias.
3.1 – Saussure e a linguística geral
Conforme Saussure a ciência que estuda a língua passou por três fases distintas
antes de identificar o seu objeto de estudo:

28
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural, p.40-41, op. cit. DOSSE, François, História do
Estruturalismo, v.I, o campo do signo, 1945/1966, editora ensaio, editora da Universidade Estadual de
Campinas, SP, 1993, p.43.
29
SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Lingüística Geral, editora Cultrix, SP, 1995
23

A primeira fase, inaugurada pelos gregos e continuada pelos franceses está baseada
na lógica e é desprovido de uma visão científica sobre a língua. A gramática é o centro das
preocupações. Visa-se apenas a reformulação das regras para distinguir as formas corretas e
incorretas de falar, observando os aspectos normativos da língua.
A segunda fase, que enfatiza os estudos filológicos, busca-se compreender a língua
em sua amplitude a partir dos documentos escritos. A língua é apenas um entre outros
objetos de estudo. A filologia se ocupa em estudar a história literária, os costumes e as
instituições e trata das questões linguísticas somente para comparar textos de diferentes
épocas ou diferentes autores, assim como explicar as inscrições redigidas numa língua.
No terceiro momento, as investigações que estavam limitadas ao estudo das línguas
indo-europeias. A linguística que se desenvolveu tinha um caráter exclusivamente
comparativo (gramática comparada) e bastante naturalista. A língua era vista como parte da
Natureza, fazendo parte de um quarto reino entre os demais (animal, vegetal, mineral).
A linguística propriamente dita nasceu dos estudos das línguas germânicas e
românicas, que contribuíram para delimitar como maior precisão o campo da linguística e
seu objeto de estudo ao acentuar o seu caráter histórico. Mas, é somente em 1870 (século
XIX) os estudiosos começaram a indagar-se sobre as condições gerais de vida da língua,
observando que a correspondência entre as línguas nada mais era que aspectos fenomênicos
do fenômeno linguístico. A comparação era nada mais que um método de reconstituição
dos fatos relacionados aos problemas linguísticos.
Uma série de estudos desenvolvida pelos românicos e pelos germânicos indicou que
a matéria da linguística seria constituída por todas as manifestações de linguagem humana,
tanto dos povos selvagens como das nações civilizadas, tanto das épocas arcaicas como da
época clássica e posteriores. Isto é, a matéria da linguística envolve todas as formas de
expressão. Como essas formas de expressão escapam à observação dos linguistas, os textos
escritos tornam-se importante para a compreensão dos idiomas passados ou distantes de
nossa época.
Qual a tarefa principal da Linguística?
Conforme Saussure, uma das tarefas principais da linguística é a de fazer a
descrição e a história de todas as línguas que puder abranger: a história da família de
línguas. É, portanto, preocupação do linguista a reconstrução, quando possível, das línguas
mães de cada uma das famílias das línguas, além da identificação de suas leis universais de
funcionamento.
Para realizar tal tarefa, a linguística mantém estreitas relações com outras ciências
ao mesmo tempo em que delas empresta e fornece material. Essa troca não impede que se
faça nítidas distinções entre os limites da linguística como campo específico de estudo e as
demais ciências com ela conexas.
É indiscutível a importância da linguística para a etnografia, onde o conhecimento
da língua é importante para a compreensão de documentos históricos. Entre a linguística e a
antropologia, como já foi visto anteriormente, a adoção do método linguístico por Lévi-
Strauss, foi de grande importância para o desenvolvimento desta última ciência e para o
consequente avanço da corrente de pensamento estruturalista.
Como para Saussure a linguagem é um fato social, os estudos da linguística estão
incorporados na sociologia que dele se ocupa. Entre a linguística e a Psicologia Social, é
este campo do conhecimento que, conforme o autor, oferece tudo que é psicológico na
língua. Mas, entre a linguística e a fisiologia, aquela pede desta somente esclarecimento,
mas nada lhe oferece em troca.
24

Depois de todos esses esclarecimentos a respeito do campo da linguística, qual é,


propriamente a utilidade da linguística?
De modo geral, a linguística interessa a todos os historiadores que tem que manejar
textos e documentos históricos. Sua importância para a cultura é inestimável na vida de
todos os indivíduos e da sociedade uma vez que todos dela se ocupam. Para os educadores,
que se ocupam com a construção dos sistemas de representação ela ganha uma importância
vital em todos os níveis e campos de atuação.
Apesar da visibilidade desse campo de estudo, qual o objeto da linguística. Se a
língua, como mencionou Saussure, é o seu principal objeto, como ele se define?
Há distintas concepções e pontos de vistas sobre a definição da língua como objeto
da linguística uma vez que o fenômeno linguístico apresenta sempre, conforme Saussure,
duas faces que se correspondem e das quais uma não tem validade sem a outra. O exemplo
dado por Saussure mostra com maior nitidez essas duas faces:
 As sílabas que se articulam são questões acústicas percebidas pelo
ouvido, mas os sons não existiriam sem os órgãos vocais;
 Assim um n, por exemplo, existe pela correspondência de dois
aspectos: PERCEPTOR e o ÓRGÃO EMISSOR.
Desse modo, não se pode reduzir a língua ao som nem a separas da articulação
vocal, assim como não se pode definir os movimentos dos órgãos vocais sem considerar as
impressões acústicas. Não é o som que faz a linguagem. O som nada mais é do que um
instrumento do pensamento e não existe por si.
Essa condição de existência do som dá origem a uma outra correspondência:
O som, unidade complexa acústico-vocal, forma com a ideia uma unidade
complexa, ao mesmo tempo fisiológica e mental30.
Para Saussure, na interlocução, a língua tem um lado individual e um lado social,
onde também não é possível conceber um sem o outro. Isto quer dizer que a cada instante, a
linguagem implica ao mesmo tempo um sistema estabelecido e uma evolução, isto é, ela é
uma instituição atual e um sistema passado. O problema está em distinguir entre um e outro
momento.
A relação entre o que a linguagem é e o que ela foi é, de certo modo inseparável e as
indagações sobre esta questão levaram a estudos sobre a origem da linguagem entre os
povos primitivos e aos estudos sobre a linguagem na criança. Saussure, porém, considera
falsa a ideia de que os problemas das origens são diferentes dos problemas das condições
permanentes da linguagem.
Qualquer que seja a perspectiva de abordagem da questão da língua em nenhuma
dela se pode ter a visão integral do objeto da linguística. Sempre o linguista se encontra
diante do seguinte dilema: ou se propõe a estudar a linguagem em todos os seus aspectos ou
se define por estudar um aspecto específico dentro do campo da Linguística.
Mas, conforme Saussure, tentar abranger o problema em as perspectivas, abre-se
inúmeras portas impossível de ser abarcada pelo pesquisador. O resultado parecerá um
conglomerado confuso de coisas sem liames entre si onde várias ciências estão envolvidas:
a psicologia, a antropologia, a gramática normativa, a filologia, separadas claramente da
linguística.

30
SAUSSURE, op. cit.
25

O caminho mais prudente para o autor é o de colocar-se no terreno da própria


língua, a língua tomada como norma de todas as manifestações da linguagem, ou como
ponto de apoio satisfatório a todas as manifestações do espírito.
A língua não se funde com a linguagem. A linguagem é somente uma parte da
língua.
A língua é, ao mesmo tempo, um produto social da faculdade da
linguagem e um conjunto de convenções necessárias adotadas pelo
corpo social para permitir o exercício da faculdade dos indivíduos
(falar).
Tomada como um todo, a linguagem é multiforme e heteróclita, isto é: cavaleiro de
diferentes domínios: físico, fisiológico e psíquico; individual e social. A linguagem segue
Saussure, não se deixa classificar em nenhuma categoria dos fatos humanos, pois não se
realiza como unidade. Ao contrário, a língua, é um todo em si mesmo, um princípio de
classificação. Ela é situada por Saussure em primeiro plano, isto é anterior, situa-se em
primeiro lugar entre os fatos da linguagem não se prestando a nenhuma classificação
porque ela é o próprio princípio de classificação.
Ao colocar essas condições da língua, o que Saussure opõe-se à ideia de que a
linguagem repousa numa faculdade natural e que a língua, ao contrário, se constitui como
algo adquirido e convencional, subordinada ao instinto natural em vez de preceder a ele.
Ao atribuir à língua o primeiro lugar no estudo da linguagem, Saussure vale do
argumento de que a faculdade, natural ou não, de articular palavras não se exerce senão
com a ajuda da coletividade e por isso não é ilusório dizer que é a língua que faz a unidade
da linguagem. Não é a linguagem que é natural ao homem, mas a faculdade de constituir
uma língua, isto é: a capacidade de constituir sistemas de significações distintos,
correspondentes a ideias distintas.
Há, conforme Saussure, acima dos órgãos, uma faculdade mais geral que comanda
os signos. Esta seria a faculdade da Linguística por excelência.
No estudo da linguagem qual seria, então, a esfera que corresponde à língua? Qual
seria, por assim dizer, o embrião da linguagem?
Para responder a esta questão Saussure toma como referência a língua como ato
individual na perspectiva de reconstituir o circuito da fala. Esse ato individual supõe, de
imediato, pelo menos a existência de dois indivíduos, mínimo exigido para que o circuito
seja completo:
O ponto de partida do circuito se situa no cérebro de uma delas, A, por exemplo. É
aí onde o fato da consciência, que Saussure chama de conceitos, se acham associados às
representações dos signos linguísticos ou imagens acústicas que servem para exprimi-los.
Em outras palavras, os signos linguísticos, ou imagens acústicas servem para exprimir
conceitos, sistemas de representações.
Se um dado conceito suscita no cérebro uma imagem acústica correspondente é um
fato ou fenômeno inteiramente psíquico, seguido de um processo fisiológico: o cérebro
transmite aos órgãos da fonação um impulso correlativo da imagem, depois, as ondas
sonoras se propagam pela boca de A aos ouvidos de B. Esse processo de propagação é um
fenômeno inteiramente físico.Se B responde a A, um novo ato se seguirá, do cérebro de A

CONVERSAM

PESSOA A PESSOA B
26

para a fonação, a propagação e atinge B, assim sucessivamente no processo de


comunicação, formando um circuito assim configurado por Saussure;

FATOS DA CONCEITO
CONCIÊNCIA

ASSOCIAÇÃO
SIGNOS PSÍQUICA
LINGÜÍSTI
CO
EMISSÃO

CÉREBRO: FISIOLOGI

IMAGEM ACÚSTICA Ondas sonoras OUVIDO: IMAGEM


ACÚSTICA

PONTO DE PARTIDA A RECEPTOR B


EMISSÃO

II – PIAGET E VIGOTSKY: PENSAMENTO E LINGUAGEM NA CRIANÇA


TEXTO II - RESUMO TEMÁTICO
PENSAMENTO E LINGUAGEM VYGOTSKY

I - PREFÁCIO – UMA VISÃO GERAL DA OBRA


1.. Este livro aborda o estudo de um dos mais complexos problemas da psicologia — a
inter-relação entre o pensamento e a linguagem.
2.. As análises teóricas e críticas são uma condição prévia necessária e um complemento da
parte experimental e, por isso, ocupam uma grande parte do nosso livro.
2.1. Houve que basear as hipóteses de trabalho que serviram de ponto de partida ao
nosso estudo nas raízes genéticas do pensamento e da linguagem
2.2. Como seria inevitável, a nossa análise invadiu alguns domínios que lhe eram
chegados, tais como a linguística e a psicologia da educação

3. A ESTRUTURA DO LIVRO
3.1. O primeiro capitulo põe o problema e discute o método.
3.2. Os segundo e terceiro capítulos são análises críticas das duas mais influentes teorias
da linguagem e do pensamento, a de Piaget e a de Stern.
3.3. No quarto capítulo tenta-se detectar as raízes genéticas do pensamento e da
linguagem; este capítulo serve de introdução teórica à parte principal do livro, as duas
investigações experimentais descritas nos dois capítulos seguintes
3.3.1. O primeiro estudo (capítulo 5o.) trata da evolução genérica geral dos
significados durante a infância;
27

3.3.2. O segundo (capítulo 6o.) é um estudo comparativo do desenvolvimento dos


conceitos “científicos” e espontâneos da criança.
3.3.3. O último capítulo tenta congregar os fios das nossas investigações e
apresentar o processo total do pensamento verbal tal como surge à luz dos nossos
dados

3.4. ALGUNS BREVES ASPECTOS DA OBRA


3.4.1. Fornece provas experimentais de que os significados das palavras sofrem
uma evolução durante a infância e definimos os passos fundamentais dessa evolução;
3.4.2. Descobre a forma singular como se desenvolvem os conceitos “científicos”
das crianças, em comparação com os conceitos espontâneos e formulamos as leis que
regem o seu desenvolvimento
3.4.3. Demonstra a natureza psicológica específica e a função linguística do
discurso escrito na sua relação com o pensamento
3.4.4. Clarifica por via experimental a natureza do discurso interior e as suas
relações com o pensamento

4. O PROBLEMA DA ABORDAGEM
4.1. O estudo do pensamento e da linguagem é uma das áreas da psicologia em
que é particularmente importante ter-se uma compreensão clara das relações
interfuncionais existentes
4.1.1. Enquanto não compreendermos a inter-relação entre o pensamento e
a palavra, não poderemos responder a nenhuma das questões mais específicas
deste domínio, nem sequer levantá-las.
4.1.2. Por mais estranho que tal possa parecer, a psicologia nunca estudou
sistematicamente e em pormenor as relações, e as inter-relações em geral nunca
tiveram até hoje a atenção que merecem.
4.1.2.1. Os modos de análise atomísticos e funcionais predominantes durante
a última década tratavam os processos psíquicos de uma forma isolada.
4.1.2.2. Os métodos de investigação desenvolvidos e aperfeiçoados tinham
em vista estudar funções separadas, mantendo-se fora do âmbito da
investigação a interdependência e a organização dessas mesmas funções na
estrutura da consciência como um todo.
4.1.2.3. É verdade que todos aceitavam a unidade da consciência e a inter-
relação de todas as funções psíquicas; partia-se da hipótese de que as funções
isoladas operavam inseparavelmente, numa ininterrupta conexão mútua.
4.1.2.4. Mas na velha psicologia, a premissa inquestionável da unidade
combinava-se com um conjunto de pressupostos tácitos que a anulavam para
todos os efeitos práticos.
4.1.2.5. Tinha-se como ponto assente que a relação entre duas determinadas
funções nunca variava: aceitava-se, por exemplo, que as relações entre a
percepção e a atenção, entre a atenção e a memória e entre a memória e o
pensamento eram constantes e, como constantes, podiam ser anuladas e
ignoradas (e eram-no) no estudo das funções isoladas
28

4.1.2.6. . Como as consequências das relações eram de fato nulas, via-se o


desenvolvimento da consciência como determinado pelo desenvolvimento
autônomo das funções isoladas.
4.1.2.7. No entanto, tudo o que sabemos do desenvolvimento psíquico indica
que a sua essência mesma é constituída pelas variações ocorridas na estrutura
interfuncional da consciência.
4.1.2.8. A psicologia terá que considerar estas relações e as variações
resultantes do seu desenvolvimento como problema fulcral, terá que centrar
nelas o estudo, em vez de continuar pura e simplesmente a postular o inter-
relacionamento geral de todas as funções.
4.1.2.9. Para se conseguir um estudo produtivo da linguagem e do
pensamento torna-se imperativo operar esta modificação de perspectiva.

4.1.3. A herança histórica nas investigações e estudos sobre as relações entre


pensamento e linguagem
4.1.3.1. Uma revisão sobre os resultados de anteriores investigações do pensamento
e da linguagem mostrará que todas as teorias existentes desde a antiguidade até aos
nossos dias, cobrem todo o leque que vai da identificação, da fusão entre o
pensamento e o discurso num dos extremos, a uma quase metafísica separação e
segregação de ambos, no outro.
4.1.3.2. Quer sejam expressão de um destes extremos na sua forma pura, quer os
combinem, quer dizer, quer tomem uma posição intermédia, sem nunca
abandonarem, contudo, o eixo que une os dois polos, todas as várias teorias do
pensamento e da linguagem permanecem dentro deste círculo limitativo.
4.1.3.3. Podemos seguir a evolução da ideia da identidade entre o pensamento e o
discurso desde as especulações da linguística psicológica, segundo a qual o
pensamento é “discurso menos som”, até as teorias dos modernos psicólogos e
reflexionistas americanos, para os quais o pensamento é um reflexo inibido do seu
elemento motor.
4.1.3.4. Em todas estas teorias a questão da relação existente entre o pensamento e o
discurso perde todo o seu significado. Se são uma e a mesma coisa, não pode surgir
entre eles nenhuma relação.
4.1.3.5. Aqueles que identificam o pensamento com o discurso limitam-se a fechar a
porta ao problema.
4.1.3.6. À primeira vista, os partidários do ponto de vista oposto parecem estar em
melhor posição. Ao encararem o discurso como simples manifestação externa, como
simples adereço que reveste o pensamento e ao tentarem libertar o pensamento de
todas as suas componentes sensoriais, incluindo as palavras (como faz a escola de
Wuerzburg), não se limitam a pôr o problema das relações existentes entre as duas
funções, como tentam, também, à sua maneira, resolvê-lo.
4.1.3.7. Na realidade, contudo, são incapazes de colocar a questão de uma maneira
que permita dar-lhe uma solução real. Tendo tornado o pensamento e o discurso
independentes e “puros” e tendo estudado cada uma destas funções isoladamente, são
forçados a ver as relações entre ambas como uma conexão mecânica, externa, entre
dois processos distintos,
29

4.1.3.8. A análise do processo do pensamento verbal em dois elementos separados e


basicamente diferentes impede todo e qualquer estudo das relações intrínsecas entre o
pensamento e a linguagem.
4.1.3.9. O erro está, pois, nos métodos de análise adotados pelos investigadores
precedentes. Para tratarmos com êxito da questão da relação entre o pensamento e a
linguagem teremos que começar por nos perguntar a nós próprios, antes do mais, que
método será mais suscetível de nos fornece uma solução.

4.1.4. Sobre os métodos de análise das relações pensamento e linguagem


4.1.4.1. Dois métodos essencialmente diferentes de análise são possíveis no estudo
das estruturas psicológicas. Parece-nos que um deles é responsável por todos os
fracassos com que se defrontaram os anteriores investigadores do velho problema
que, por nosso turno, estamos começando a abordar e que o outro método é a única
via correta para perspectivar a questão.
4.1.4.2. Os métodos que induz ao fracasso (críticas aos empiristas)
Para os empiristas (Resumo Chauí – Um convite a Filosofia) a linguagem é um
conjunto de imagens corporais e mentais formadas por associação e repetição e que
constituem imagens verbais (as palavras).
 As imagens corporais são de dois tipos: motoras e sensoriais.
 As imagens motoras são as que adquirimos quando aprendemos a articular sons
(falar) e letras (escrever), graças a mecanismos anatômicos e fisiológicos.
 As imagens sensoriais são as que adquirimos quando, graças aos nossos
sentidos, à fisiologia de nosso sistema nervoso, sobretudo a de nosso cérebro,
aprendemos a ouvir (compreender sons e vozes) e a reconhecer a grafia dos sons
(ler).
 As imagens verbais são aprendidas por associação, em função da frequência e
repetição dos sinais externos que estimulam nossa capacidade motriz e sensorial.
A palavra ou imagem verbal é uma síntese de imagens motoras e sensoriais
armazenadas em nosso cérebro.
O que levou a essa concepção empirista da linguagem foi o estudo médico de
“perturbações da linguagem”:
 a afasia (incapacidade para usar e compreender todas as palavras disponíveis na
língua);
 a agrafia (incapacidade para escrever ou para escrever determinadas palavras);
 a surdez verbal (ouvir as palavras sem conseguir compreendê-las) e a cegueira
verbal (ler sem conseguir entender).

Os médicos que estudaram essas perturbações concluíram que estavam relacionadas


com lesões no cérebro e que, portanto, a linguagem era um fenômeno físico (anatômico e
fisiológico) do qual não temos consciência (desconhecemos suas causas), mas de cujos
efeitos temos consciência, isto é, falamos, ouvimos, escrevemos, lemos e compreendemos o
sentido das palavras.
A linguagem seria uma soma de causas físicas e de efeitos psíquicos cujos átomos
ou elementos seriam as imagens verbais associadas.
30

4.1.4.2.1.O primeiro método analisa os conjuntos psicológicos complexos em


elementos.
4.1.4.2.2. Pode ser comparado à análise química da água em hidrogênio e oxigênio,
elementos que, cada um de per si não possuem as propriedades do todo e possuem
propriedades que não existem no todo.
4.1.4.2.3.O estudante que utilizar este método na investigação de uma qualquer
propriedade da água — por exemplo qual a razão por que a água apaga o fogo —
verificara com surpresa que o hidrogênio arde e que o oxigênio alimenta o fogo.
4.1.4.2.4. Estas descobertas não lhe serão de grande utilidade na resolução dos
problemas.
4.1.4.2.5.A psicologia enfia-se na mesma espécie de beco sem saída quando analisa o
pensamento verbal nos elementos que o compõem — a palavra e o pensamento — e
estuda cada um deles em separado.
4.1.4.2.6.No decurso da análise as propriedades originais do pensamento verbal
desapareceram. Nada resta ao investigador, senão indagar a interação mecânica dos
dois elementos na esperança de reconstruir, de forma puramente especulativa, as
evocadas propriedades do todo.
4.1.4.2.7. Este tipo de análise desloca o problema para um nível de maior
naturalidade; não nos fornece nenhuma base adequada para estudarmos as
multiformes relações concretas entre o pensamento e a linguagem que surgem no
decurso do desenvolvimento e do funcionamento do discurso verbal em todos os seus
aspectos
4.1.4.2.8. Em vez de nos permitir examinar e explicar casos e frases específicas e
determinar regularidades que ocorrem no decurso dos acontecimentos, este método
produz generalidades relativas a todo e qualquer discurso e a todo e qualquer
pensamento.
4.1.4.2.9. Além disso, induz-nos em sérios erros ao ignorar a natureza unitária do
processo em estudo, pois cinde em duas partes a unidade viva entre o som e o
significado a que chamamos palavra e parte da hipótese de que essas duas partes só se
mantêm unidas por simples ações mecânicas.

4.1.4.3.O ponto de vista segundo


4.1.4.3.1.O som e o significado são dois elementos separados com vidas separadas
afetou gravemente o estudo de ambos os aspectos da linguagem, o fonético e o
semântico.
4.1.4.3.2.O estudo dos sons da fala como simples sons, independentemente da sua
conexão com o pensamento, por mais exaustivo que seja, pouco terá a ver com a sua
função como linguagem humana, na medida em que não dilucida as propriedades
físicas e psicológicas específicas da linguagem falada, mas apenas as propriedades
comuns a todos os sons existentes na natureza.
4.1.4.3.3. Da mesma forma, se se estudarem os significados divorciados do discurso,
aqueles resultarão forçosamente num puro ato de pensamento que se desenvolve e
transforma independentemente do seu veículo material.
4.1.4.3.4. Esta separação entre o significado e o som é grandemente responsável pela
banalidade da fonética e da semântica clássicas.
4.1.4.3.5. Também na psicologia infantil, se tem estudado separadamente os aspectos
fonético e semântico do desenvolvimento da linguagem.
31

4.1.4.3.6. Estudou-se com grande pormenor o desenvolvimento fonético; no entanto,


os dados acumulados, fracos contributos trouxeram à nossa compreensão do
desenvolvimento linguístico enquanto tal e a relação entre eles e as descobertas
relativas à genética do pensamento continuam a ser essencialmente nulas.

4.1.4.4.A posição de Vygotsky sobre o método: análise em unidades


4.1.4.4.1. Na nossa opinião, o outro tipo de análise, que podemos chamar
análise em unidades, e a via correta a seguir.
4.1.4.4.2. Entendemos por unidade o produto da análise que, ao contrário dos
elementos, conserva todas as propriedades fundamentais do todo e que não
pode ser subdividido sem que aquelas se percam: a chave da compreensão
das propriedades da água são as suas moléculas e não a sua composição
atômica. A verdadeira unidade da análise biológica é a célula viva, que
possui todas as propriedades básicas do organismo vivo.
4.1.4.4.3. Qual é a unidade do pensamento verbal que satisfaz estes requisitos
fundamentais? Cremos que podemos encontrá-la no aspecto interno da
palavra, no seu significado.
4.1.4.4.4. Até à data, realizaram-se muito poucas investigações sobre o
aspecto interno da linguagem, e as que se realizaram pouco nos podem dizer
sobre o significado das palavras que não se aplique na mesma medida a
outras imagens e atos do pensamento.
4.1.4.4.5. A natureza do significado enquanto tal não é clara; no entanto, é no
significado que o pensamento e o discurso se unem em pensamento verbal.
4.1.4.4.6. É no significado, portanto, que poderemos encontrar a resposta às
nossas perguntas sobre a relação entre o pensamento e o discurso.
4.1.4.4.7. A nossa investigação experimental, bem como a analise teórica nos
indicam que, tanto a psicologia da Forma (Gestalt), como psicologia
associacionista, tem seguido direções erradas na investigação da natureza
intrínseca do significado das palavras.
4.1.4.4.8. Uma palavra não se refere a um objeto simples, mas a um grupo ou
a uma classe de objetos e, por conseguinte, cada palavra é já de si uma
generalização.
4.1.4.4.9. A generalização é um ato verbal de pensamento e reflete a
realidade duma forma totalmente diferente da sensação e da percepção.
4.1.4.4.10. Esta diferença qualitativa a se encontra implicada na proposição
segundo a qual há um salto qualitativo não só entre a total ausência de
consciência (na matéria inanimada) e a sensação, mas também entre a
sensação e o pensamento.
4.1.4.4.11. Temos todas as razões para supor que a distinção qualitativa entre
a sensação e o pensamento é a presença no último de um reflexo generalizado
da realidade, que é também a essência do significado das palavras e de que,
por conseguinte, o significado é um ato de pensamento no sentido completo
da expressão.
32

4.1.4.4.12. Mas, simultaneamente, o significado é uma parte inalienável da


palavra enquanto tal, pertencendo, portanto, tanto ao domínio da linguagem
como ao do pensamento.
4.1.4.4.13. Uma palavra sem significado é um som vazio, já não fazendo
parte do discurso humano.
4.1.4.4.14. Como o significado das palavras é, simultaneamente, pensamento
e linguagem, constitui a unidade do pensamento verbal que procurávamos.
4.1.4.4.15. Portanto, torna-se claro que o método a seguir na nossa indagação
da natureza do pensamento verbal é a análise semântica — o estudo do
desenvolvimento, do fundamento e da estrutura desta unidade, que contém o
pensamento a linguagem inter-relacionados.
4.1.4.4.16. Este método combina as vantagens da análise e da síntese e
permite adequado estudo dos todos complexos.
4.1.4.4.17. Em jeito de ilustração tomemos outro aspecto ainda do nosso
objeto de estudo, que também foi muito descurado no passado.
4.1.4.4.17.1. A função primordial da linguagem é a comunicação,
intercâmbio social.
4.1.4.4.17.2. Ao estudar-se a linguagem por meio da análise em
elementos, dissociou-se também esta função da função intelectual do
discurso.
4.1.4.4.17.3. Tratava-se ambas como se fossem duas funções separadas,
embora paralelas, sem prestar atenção às suas inter-relações estruturais
e evolutivas; contudo, o significado das palavras é unidade de ambas as
funções da linguagem.
4.1.4.4.17.4. É axioma da psicologia científica que a compreensão entre
espíritos é impossível sem qualquer expressão mediadora.
4.1.4.4.17.5. Na ausência de um sistema de signos, linguísticos ou não,
só é possível o mais primitivo e limitado tipo de comunicação.
4.1.4.4.17.6. A comunicação por meio de movimentos expressivos,
observada sobretudo entre os animais não é tanto comunicação, mas
antes uma difusão de afeto.
4.1.4.4.17.7. O ganso atemorizado que de súbito se apercebe dum
perigo e alerta todo o bando com os seus gritos não está dizendo aos
restantes o que viu, antes está contaminando os outros com o seu medo.
4.1.4.4.17.8. A transmissão racional, intencional de experiências e de
pensamentos a outrem exige um sistema mediador, que tem por
protótipo a linguagem humana nascida da necessidade do intercâmbio
durante o trabalho.
4.1.4.4.17.9. Segundo a tendência dominante, a psicologia descreveu
esta questão de uma forma demasiado simplificada, até muito
recentemente.
4.1.4.4.17.10. Partiu da hipótese de que o meio de comunicação era o
signo (a palavra ou o som); de que, pela ocorrência simultânea, um som
poderia ir-se associando com o conteúdo de qualquer experiência,
passando a servir para transmitir o mesmo conteúdo a outros seres
humanos.
33

4.1.4.4.17.11. No entanto, um estudo mais aturado da gênese do


conhecimento e da comunicação nas crianças levou à conclusão de que
a comunicação real exige o significado — isto é, a generalização —
tanto quanto os signos.
4.1.4.4.17.12. Segundo a penetrante descrição de Edward Sapir, o
mundo da experiência tem que ser extremamente simplificado e
generalizado antes de poder ser traduzido em símbolos. Só desta forma
se torna possível a comunicação, pois a experiência pessoal habita
exclusivamente a própria consciência do indivíduo e não é
transmissível, estritamente falando.
4.1.4.4.17.13. Para se tornar comunicável terá que subsumir-se em
determinada categoria que, por convenção tácita, a sociedade humana
encara como uma unidade.
4.1.4.4.17.14. Pesquisar a verdadeira comunicação humana pressupõe
uma atitude generalizadora, que constitui um estádio avançado da
gênese do significado das palavras.
4.1.4.4.17.15. As formas mais elevadas do intercâmbio humano só são
possíveis porque o pensamento do homem, reflete a atualidade
conceitualizada.
4.1.4.4.17.16. É por isso que certos pensamentos não podem ser
comunicados às crianças mesmo quando estas se encontram
familiarizadas com as palavras necessárias a tal comunicação.
4.1.4.4.17.17. Pode faltar o conceito adequado sem o qual não é
possível uma compreensão total.
4.1.4.4.17.18. Nos seus escritos pedagógicos, Tolstoy afirma que as
crianças experimentam amiúde certas dificuldades para aprenderem
uma palavra nova não pelo seu som, mas devido ao conceito a que a
palavra se refere
4.1.4.4.17.19. Há quase sempre uma palavra disponível — quando o
conceito se encontra maduro.
4.1.4.4.17.20. A concepção do significado das palavras como unidade
simultânea do pensamento generalizante e do intercâmbio social é de
um valor incalculável para o estudo do pensamento e da linguagem.
4.1.4.4.17.21. Permite-nos uma verdadeira análise genético-causal, um
estudo sistemático das relações entre o desenvolvimento da capacidade
intelectiva da criança e do seu desenvolvimento social.
4.1.4.5. Vygotsky considera como objeto de estudo secundário a relação
mútua entre a generalização e a comunicação.
4.1.4.5.1. Virá talvez, a propósito mencionar aqui alguns dos problemas
da área da linguagem que não exploramos especificamente no nosso
estudo.
4.1.4.5.2. O mais importante de todos é a relação entre o aspecto
fonético da linguagem e o significado.
4.1.4.5.3. Estamos em crer que os recentes e grandes passos em frente
da linguística se ficam em grande medida a dever a alterações operadas
nos métodos de análise empregues no estudo da linguagem.
34

4.1.4.5.4. A linguística tradicional, com a sua concepção do som como


elemento independente da linguagem, usava o som isolado como
unidade de análise em resultado disto, centrava-se na fisiologia e na
acústica mais do que na psicologia do discurso.
4.1.4.5.5. A linguística moderna utiliza o fonema, a mais pequena
unidade fonética indivisível pertinente para o significado, unidade essa
que, portanto, é característica da linguagem humana distinta dos outros
sons.
4.1.4.5.6. A sua introdução como unidade de análise beneficiou a
psicologia tanto como a linguística. Os benefícios concretos a que se
chegou com a aplicação deste método provam terminantemente o seu
valor. Este método é essencialmente semelhante ao método de análise
em unidades, distintas dos elementos, que utilizamos na nossa
investigação.
4.1.4.5.7. A fertilidade do nosso método pode ficar patente também
noutras questões relativas às relações entre as funções, ou entre a
consciência como um todo e as suas partes.
4.1.4.5.8. Uma breve referência a pelo menos uma destas questões
indicará uma direção que o nosso estudo poderá vir a tomar futuramente,
e assinalar o contributo do presente estudo.
4.1.4.5.9. Estamos a pensar na relação entre o intelecto e o afeto. A sua
separação como objetos de estudo é uma importante debilidade da
psicologia tradicional pois que faz com que o processo de pensamento
surja como uma corrente autônoma de “pensamentos que pensam por si
próprios”, dissociada da plenitude da vida, das necessidades e interesses,
das inclinações e dos impulsos pessoais de quem pensa.
4.1.4.5.10.Tal pensamento dissociado terá que ser considerado quer
como um epifenômeno sem significado, que não poderá alterar de
maneira nenhuma a vida e a conduta de uma pessoa, quer como uma
espécie de força primeira que influenciaria a vida pessoal de uma forma
inexplicável, misteriosa.
4.1.4.5.11.Fecha-se assim a porta à questão da causa e da origem dos
nossos pensamentos, visto que a análise determinista exigiria uma
clarificação das forças motrizes que orientam o pensamento por esta ou
aquela via.
4.1.4.5.12.Pela mesma razão, a velha abordagem impede qualquer
estudo frutuoso do processo inverso: a influência do pensamento sobre o
aspecto e a vontade.
4.1.4.5.13.A análise por unidades aponta a via para a resolução destes
problemas de importância vital. Ela demonstra que existe um sistema
dinâmico de significados em que o afetivo e o intelectual se unem,
mostra que todas as ideias contêm, transmutada, uma atitude afetiva para
com a porção de realidade a que cada uma delas se refere.
4.1.4.5.14.Permite-nos, além disso, seguir passo a passo a trajetórias
entre as necessidades e os impulsos de uma pessoa e a direção específica
tomada pelos seus pensamentos, e o caminho inverso, dos seus
pensamentos ao seu comportamento e à sua atividade.
35

4.1.4.5.15.Este exemplo deveria bastar para mostrar que o método


utilizado neste estudo do pensamento e da linguagem é também uma
ferramenta promissora para investigar a relação entre o pensamento
verbal e a consciência como um todo e entre aquele e as outras funções
essenciais desta última.

III. CHAUÍ – CONVITE A FILOSOFIA –

1. Purificar a linguagem: resumo de Chauí (convite a filosofia)

Uma dessas correntes filosóficas desenvolveu-se no século passado com o nome de


positivismo lógico. Os positivistas lógicos distinguiram duas linguagens:
 A linguagem natural, isto é, aquela que usamos todos os dias e que é imprecisa,
confusa, mescla de elementos afetivos, volitivos, perceptivos e imaginativos;
 A linguagem lógica, isto é, uma linguagem purificada, formalizada (ou seja, com
enunciados sem conteúdo e avaliadores do conteúdo das linguagens científicas e
filosóficas), inspirada na matemática e sobretudo na física.
 Essa linguagem obedecia a princípios e regras lógicas precisas e funcionava
por meio de operações chamadas cálculos simbólicos (semelhantes às
operações da matemática), que permitiam avaliar com exatidão se um
enunciado era verdadeiro ou falso.
 Dava-se ênfase à sintaxe lógica dos enunciados, que asseguraria a verdade
representativa e indicativa da linguagem. A conotação foi afastada.
 A linguagem lógica era uma metalinguagem, isto é, uma segunda linguagem
que falava sobre língua natural e sobre linguagem científica para saber se os
enunciados delas eram verdadeiros ou falsos.
 Assim, por exemplo, na linguagem comum e diária dizemos: “O livro é de
autoria de José Antônio Silva” e, na metalinguagem lógica, diremos: “A
proposição ‘O livro é de autoria de José Antônio Silva’ é uma proposição
verdadeira se e somente se forem preenchidas as condições x, y, z”.
 No entanto, descobriu-se, pouco a pouco, que havia expressões lingüísticas
que não possuíam caráter denotativo nem representativo, e, apesar disto, eram
verdadeiras.
 Descobriu-se também que havia inúmeras formas de linguagem que não
podiam ser reduzidas aos enunciados lógicos e tipo matemático e físico.
 Descobriu-se, ainda, que a linguagem usa certas expressões para as quais não
existe denotação. Por exemplo, as preposições e as conjunções só têm
existência na linguagem e não na realidade.
 Além disso, descobriu-se que a redução da linguagem ao cálculo simbólico
ou lógico despojava de qualquer verdade e de qualquer pretensão ao
conhecimento a ontologia, a literatura, a história, bem como várias ciências
humanas, isto é, todas as linguagens que são profundamente conotativas, para
as quais a multiplicidade de sentido das palavras e das coisas é sua própria
razão de ser.
36

2.Crítica ao empirismo e ao intelectualismo

As concepções empiristas e intelectualistas também sofreram sérias críticas dos estudiosos


da linguagem no campo da psicologia.
Os psicólogos Goldstein e Gelb fizeram estudos aprofundados da afasia e
descobriram situações curiosas.
Por exemplo, ordena-se a um afásico: “Coloque nesta pilha todas as fitas azuis que
você encontrar nesta caixa”. O afásico inicia a separação. Ao encontrar uma fita azul-claro
ele a coloca na pilha das fitas azuis, conforme lhe foi dito, mas também passa a colocar ali
fitas verde-claro, rosa claro e lilás-claro. Os dois psicólogos observaram, assim, que a
palavra azul não formava uma categoria ou uma ideia geral para o afásico e que, portanto,
seu problema de linguagem era também um problema de pensamento.
No entanto, do ponto de vista cerebral ou anatômico, a parte do cérebro destinada à
inteligência estava perfeita, sem nenhuma lesão. Com isso, compreendeu-se que os
empiristas estavam enganados e que a linguagem não é um mero conjunto de imagens
verbais, mas é inseparável de uma visão mais global da realidade e inseparável do
pensamento.
Esses estudos, porém, não reforçaram a concepção intelectualista, como poderíamos
supor. De fato, basta tentarmos imaginar o que seria um pensamento puro, mudo, silencioso
para compreendermos que não seria nada, não pensaria nada. Não pensamos sem palavras,
não há pensamento antes e fora da linguagem, as palavras não traduzem pensamentos, mas
os envolvem e os englobam.
É justamente por isso que a criança aprende a falar e a pensar ao mesmo tempo,
pois, para ela, uma coisa se torna conhecida e pensável ao receber um nome. Como
escreveu Merleau-Ponty, a linguagem é o corpo do pensamento.

3.A linguística e a linguagem

 Durante o século XIX, o estudo da linguagem ou linguística tinha como


preocupação encontrar a origem da linguagem e das línguas, considerando o estado
presente ou atual de uma língua como resultado ou efeito de causas situadas no
passado.
 A linguagem era estudada sob duas perspectivas: a da filologia, que buscava a
história das palavras pelo estudo das raízes, com o propósito de chegar a uma única
língua original, mãe ou matriz de todas as outras; e a da gramática comparada, que
estudava comparativamente as línguas existentes com o propósito de encontrar
famílias linguísticas e chegar à língua-mãe original.
 Nesses estudos, retomava-se a discussão sobre o caráter natural ou convencional da
linguagem. Também era comum aos filólogos e gramáticos a ideia de que as línguas
se transformam no tempo e que as transformações eram causadas por fatores
extralinguísticos (migrações, guerras, invasões, mudanças sociais e econômicas,
etc.). Tais estudos, porém, viram-se diante de problemas que não conseguiam
resolver. Um desses problemas foi o aparecimento do estudo das flexões (tempos
verbais, maneira de indicar o plural e o singular, aumentativos e diminutivos,
declinações), revelando que as línguas mudavam por razões internas e não por
fatores externos.
37

 Essa descoberta teve resultados curiosos. Um deles, aparecido na Alemanha,


tomava as flexões como prova de que cada povo tem uma língua diferente porque
esta exprimiria o caráter ou o espírito do povo. Haveria línguas doces e propícias
aos sentimentos profundos (como a alemã); línguas rudes e mais voltadas para a
prosa e a guerra (como o latim), etc. Em suma, cada estudioso inventava o “caráter
da língua” segundo as fantasias e ideologias de sua nação e dos nacionalismos da
época.

4. A partir do século XX,

Uma nova concepção da linguagem foi elaborada pela linguística e seus pontos principais
são:
 A linguagem é constituída pela distinção entre língua e fala ou palavra: a língua é
uma instituição social e um sistema, ou uma estrutura objetiva que existe com suas
regras e princípios próprios, enquanto a fala ou palavra é o ato individual de uso da
língua, tendo existência subjetiva por ser o modo como os sujeitos falantes se
apropriam da língua e a empregam. Assim, por exemplo, temos a língua portuguesa
e a palavra ou fala de Camões, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Guimarães
Rosa, a sua e a minha;
 A Língua é uma totalidade dotada de sentido no qual o todo confere sentido às
partes, isto é, as partes não existem isoladas nem somadas, mas apenas pela posição
e função que o todo da língua lhes dá e seu sentido vem dessa posição e dessa
função. Assim, por exemplo, os signos r e l só existem nas línguas onde a diferença
desses sons tem uma função importante para diferenciar sentidos, motivo pelo qual
não operam significativamente em chinês e em japonês (ou seja, os chineses usam l
indiferentemente para todas as palavras, sejam elas em l ou r; os japoneses usam r
indiferentemente para todas as palavras, sejam elas em l ou r). Os signos são os
elementos da língua; são valores e não coisas ou entidades, isto é, são o que valem
por sua posição e por sua diferença com relação aos demais signos;
 Numa língua, distinguem-se signo e significado, ou significante e significado: o
signo é o elemento verbal material da língua (r, l, p, b, q, g, por exemplo), enquanto
o significado são os conteúdos ou sentidos imateriais (afetivos, volitivos,
perceptivos, imaginativos, evocativos, literários, científicos, retóricos, filosóficos,
políticos, religiosos, etc.) veiculados pelos signos; o significante é uma cadeia ou
um grupo organizado de signos (palavras, frases, orações, proposições, enunciados)
que permitem a expressão dos significados e garantem a comunicação;
 A relação dos signos ou significantes com as coisas é convencional e arbitrária,
mas, uma vez constituída a língua como sistema de relações entre
signos/significantes e significados, a relação com as coisas indicadas, nomeadas,
expressadas ou comunicadas torna-se uma relação necessária para todos os falantes
da língua. Assim, por exemplo, a distinção entre pa e ba, pata e bata é convencional,
mas uma vez fixada pela língua, torna-se necessária e inquestionável;
 Como as partes (signos ou significantes) de uma língua recebem seu sentido e sua
função pelo lugar que o todo da língua lhes confere, essas partes distinguem-se
umas das outras apenas por suas diferenças, e a língua é uma estrutura constituída
38

por diferenças internas ou por oposições pertinentes entre os signos. Por exemplo,
em português, existem os signos p e b, d e t porque suas diferenças são pertinentes
para o sentido das palavras (dizer pata e bata, dente e tente é dizer sentidos
diferentes); também existe a oposição pertinente entre o r e o l, mas tal oposição ou
diferença não existe em japonês e em chinês e por isso, como vimos, tais signos não
existem nessas línguas. Por relação com sua própria língua, quando um japonês fala
o português, é levado a usar sempre o r (que corresponde a um som ou signo
diferencial existente em japonês, isto é, faz sentido em japonês) e a substituir o l por
r. Quando um chinês fala o português ocorre exatamente o contrário, prevalece o l
porque este som e signo tem relação com o todo da língua chinesa, e o r não. Em
inglês, não existe o signo-som ão e, assim, quando um inglês fala o português, tende
a usar an e am porque são signos-sons que fazem sentido em inglês.
 A língua, portanto, é feita dessas diferenças internas e por isso se diz que os signos
são diacríticos e que a língua é uma estrutura diacrítica;
 A língua é um código (conjunto de regras que permitem produzir informação e
comunicação) e se realiza através de mensagens, isto é, pela fala/palavra dos
sujeitos que veiculam informações e se comunicam de modo específico e particular
(a mensagem possui um emissor, aquele que emite ou envia a mensagem, e um
receptor, aquele que recebe e decodifica a mensagem, isto é, entende o que foi
emitido);
 O sujeito falante possui duas capacidades: a competência (isto é, sabe usar a língua)
e a performance (isto é, tem seu jeito pessoal e individual de usar a língua); a
competência é a participação do sujeito em uma comunidade linguística e a
performance são os atos de linguagem que realiza;
 A língua se realiza em duas dimensões: a sincronia, ou seja, o todo da língua
tomado na simultaneidade ou no seu estado atual ou presente; e a diacronia, ou seja,
a língua vista sucessivamente, através de suas mudanças no tempo ou de sua
história;
 A língua é inconsciente, isto é, nós a falamos sem ter consciência de sua estrutura,
de suas regras e seus princípios, de suas funções e diferenças internas; vivemos nela
e com ela e a empregamos sem necessidade de conhecê-la cientificamente.

Alguns exemplos poderão ajudar-nos a compreender todos esses pontos.

Uma língua é como um jogo de xadrez: é um todo no qual cada peça tem seu sentido, seu
lugar e sua função por diferença ou por oposição às demais peças. O jogo é uma convenção
ou um código com suas regras próprias, princípios e leis, e cada partida é a maneira como
jogadores individuais usam e interpretam as regras, leis e princípios gerais do jogo (a
diferença entre os jogadores e os sujeitos falantes é que estes falam a língua respeitando o
código, mas sem conhecê-lo conscientemente, enquanto os jogadores precisam conhecer o
código para poder jogar).
O jogo existe antes e depois de cada partida. Cada partida rearranja o tabuleiro e chega a
resultados diferentes, mas as regras do jogo são sempre as mesmas. Em cada partida, os
jogadores podem jogar porque conhecem o código e porque sabem interpretar os lances um
do outro, respondendo a cada um deles.
39

A linguística veio mostrar algo muito interessante e que explica por que falar uma língua
estrangeira ou traduzir um texto estrangeiro não são coisas simples como julgavam os
intelectualistas.
Por exemplo, em inglês, é possível dizer “The man I love ”. Quando traduzimos para o
português temos: “O homem que amo”. Observamos que, em inglês, parece “faltar” uma
palavra: o “que”. Notamos também que em inglês parece “sobrar ” uma palavra: o “I”, o
“eu”, que não usamos na frase em português. Para um inglês, evidentemente, não falta e
nem sobra nada.
Este sentimento de falta ou sobra mostra que a diferença entre o inglês e o português não é
de vocabulário, mas de estrutura linguística. No caso da tradução da palavra inglesa cheese
e da palavra francesa fromage para o português, queijo, temos a impressão de que passamos
sem problema de uma língua para outra. Mas não é o caso.
Quando um inglês usa cheese, ele está se referindo ou a algo leitoso e cremoso, quase sem
gosto, ou a algo mais duro e forte, que se pode comer sem outra coisa. O francês, por seu
turno, ao dizer fromage estará pensando em queijos muito diferentes, dependendo da região
onde mora, da hora e do dia em que vai comer o queijo, sempre acompanhado de pão e
vinho.
Para um inglês e para um francês, queijo jamais poderia ser imaginado junto com um doce,
enquanto para nós, brasileiros, queijo (de Minas, prato, requeijão baiano) vai bem com
goiabada ou com doce de leite, com o pão com manteiga e o café com leite. Assim dizer
cheese não é dizer fromage nem queijo; dizer fromage não é dizer cheese nem queijo; dizer
queijo não é dizer cheese nem fromage.

Esse segundo exemplo explica o que os lingüistas querem dizer quando afirmam que o
momento da criação de um signo (cheese, fromage, queijo) é arbitrário ou convencional,
mas, uma vez criado, passa a ter um sentido necessário naquela língua (cheese é cheese e
não é fromage nem queijo).
Esse exemplo nos mostra também que uma língua é algo social, histórico, determinado por
condições específicas de uma sociedade e de uma cultura.

5.A experiência da linguagem

Dizer que somos seres falantes significa dizer que temos e somos linguagem, que
ela é uma criação humana (uma instituição sociocultural), ao mesmo tempo em que nos cria
como humanos (seres sociais e culturais).
A linguagem é nossa via de acesso ao mundo e ao pensamento, ela nos envolve e
nos habita, assim como a envolvemos e a habitamos. Ter experiência da linguagem é ter
uma experiência espantosa: emitimos e ouvimos sons, escrevemos e lemos letras, mas, sem
que saibamos como, experimentamos sentidos, significados, significações, emoções,
desejos, ideias.
Após o caminho feito até aqui, podemos voltar à definição inicial que demos da linguagem
e nela fazer alguns acréscimos.
Em primeiro lugar,
 Teremos que especificar melhor que tipo de signo é o signo linguístico. Por que
uma palavra é diferente, por exemplo, da fumaça que indica fogo? Ou, se se
40

preferir, qual é a diferença entre a fumaça-signo-de-fogo, que vejo, e a palavra


fumaça, que pronuncio ou escuto?
 A fumaça é uma coisa que indica outra coisa (fogo). A palavra fumaça, porém, é um
símbolo, isto é, algo que indica, representa, exprime alguma coisa que é de natureza
diferente dela.
 O símbolo é um análogo (a bandeira simboliza a nação, por exemplo) e não um
efeito da coisa indicada, representada ou exprimida. O símbolo verbal ou palavra
me reenvia a coisas que não são palavras: coisas materiais, ideias, pessoas, valores,
seres inexistentes, etc.
 A linguagem é simbólica e, pelas palavras, nos coloca em relação com o ausente.
 Linguagem é, pois, inseparável da imaginação.
 Em segundo lugar, temos que especificar melhor as várias funções que atribuímos à
linguagem (indicativa ou denotativa, comunicativa, expressiva, conotativa) e para
isso precisamos indagar com o que a linguagem se relaciona e nos relaciona.
 Evidentemente, diremos que a linguagem nos relaciona com o mundo e com os
outros seres humanos. Mas como se dá essa relação? Essa pergunta, como vimos,
era central para o Positivismo Lógico.
 Por seus erros e acertos, ele foi responsável pelo surgimento de uma nova disciplina
filosófica, a Filosofia da Linguagem, intimamente ligada às investigações lógicas,
transformando-se com elas e graças a elas.
 A grande preocupação da Filosofia da Linguagem resume-se numa pergunta: As
palavras realmente dizem as coisas tais como são? Descrevem e explicam
verdadeiramente a realidade?
 Tradicionalmente, dizia-se que a linguagem possuía a forma de uma relação binária,
isto é, entre dois termos:
 Signo verbal <-> coisa indicada (realidade)
 Signo verbal <-> idéia, conceito, valor (pensamento)
 No entanto, é possível perceber que essa relação binária não nos explica por que
uma palavra ou um signo verbal indica alguma coisa ou alguma ideia, pois, se ele
fosse simplesmente denotativo ou indicativo e dual, não poderia haver o fenômeno
da conotação, isto é, uma mesma palavra indicando coisas e ideias diferentes.
 Tomemos um exemplo a que já nos referimos várias vezes em outros capítulos e
que foi muito trabalhado pelo filósofo alemão Frege. “Estrela da manhã” e “estrela
da tarde” indicam Vênus. Mas falar na estrela d’alva, na estrela da tarde, na estrela
matutina e na estrela vespertina não é a mesma coisa, ainda que todas essas
expressões se refiram a Vênus. Em cada uma dessas expressões, o sentido de Vênus
muda e esse sentido é expresso pelas palavras que se referem ao mesmo planeta.
 Assim, as palavras indicam-denotam alguma coisa, mas também a conotam, isto é,
referem-se aos sentidos dessa coisa.
 Imaginemos ou recordemos a leitura de um romance. Começamos a ler entendendo
tudo o que o escritor escreveu porque referimos suas palavras a coisas que já
conhecemos, a ideias que já possuímos e ao vocabulário comum entre ele e nós.
Pouco a pouco, porém, o livro vai ganhando espessura própria, percebemos as
coisas de outra maneira, mudamos ideias que já tínhamos, vemos surgir pessoas
(personagens) com vida própria e história própria, sentimos que as palavras
41

significam de um modo diferente daquele com o qual estamos habituados a usá-las


todo dia.
 Uma realidade foi criada e penetramos em seu interior exclusivamente pelas mãos
do escritor. Como isso é possível? Como as palavras poderiam criar um mundo, se
elas apenas fossem sinais para indicar coisas e ideias já existentes?
 Com o romance descobrimos que as palavras se referem a significações, inventam
significações, criam significações.
 Imaginemos ou recordemos um diálogo. Quantas vezes conversando com alguém,
dizemos: “Puxa! Eu nunca tinha pensado nisso!”, ou então: “Você sabe que, agora,
eu entendo melhor uma ideia que tinha, mas que não entendia muito bem?”, ou
ainda: “Você me fez compreender uma coisa que eu sabia e não sabia que sabia”.
 Como essas frases são possíveis? É que a linguagem tem a capacidade especial de
nos fazer pensar enquanto falamos e ouvimos, nos faz compreender nossos próprios
pensamentos tanto quanto os dos outros que falam conosco. Ela nos faz pensar e nos
dá o que pensar porque se refere a significados, tanto os já conhecidos por outros
quanto os já conhecidos por nós, bem como os que não conhecíamos por estarmos
conversando.
 Esses exemplos nos levam a considerar a linguagem sob uma forma ternária:
palavra ou signo significante <-> sentido ou significação; significado <-> realidade
ou mundo (coisas, pessoas) e instituições sociais, políticas, culturais O mundo
suscita sentidos e palavras, as significações levam à criação de novas expressões
linguísticas, a linguagem cria novos sentidos e interpreta o mundo de
maneiras novas. Há um vai-e-vem contínuo entre as palavras e as coisas, entre elas e
as significações, de tal modo que a realidade, o pensamento e a linguagem são
inseparáveis, suscitam uns aos outros e interpretam-se uns aos outros.

6.A linguagem:
 Refere-se ao mundo através das significações e, por isso, podemos nos relacionar
com a realidade através da palavra;
 Relaciona-se com sentidos já existentes e cria sentidos novos e, por isso, podemos
nos relacionar com o pensamento através das palavras;
 Exprime e descobre significados e, por isso, podemos nos comunicar e nos
relacionar com os outros;
 Tem o poder de suscitar significações, de evocar recordações, de imaginar o novo
ou o inexistente e, por isso, a literatura é possível.
• A linguagem revela nosso corpo como expressivo e significativo,
os corpos dos outros como expressivos e significativos, as coisas
como expressivas e significativas, o mundo como dotado de
sentido e o pensamento como trabalho de descoberta do sentido.
• As palavras têm sentido e criam sentido. Como escreve Merleau-
Ponty: A palavra, longe de ser um simples signo dos objetos e das
significações, habita as coisas e veicula significações. Naquele
que fala, a palavra não traduz um pensamento já feito, mas o
realiza. E aquele que escuta recebe, pela palavra, o próprio
pensamento.
42

• A linguagem não traduz imagens verbais de origem motora e


sensorial, nem representa ideias feitas por um pensamento
silencioso, mas encarna as significações.

7. Linguagem simbólica e linguagem conceitual

 A diferença entre linguagem simbólica e linguagem conceitual é o que deve


interessar-nos agora.
 Fundamentalmente, a linguagem simbólica opera por analogias (semelhanças
entre palavras e sons, entre palavras e coisas) e por metáforas (emprego de
uma palavra ou de um conjunto de palavras para substituir outras e criar um
sentido poético para a expressão).
 A linguagem simbólica realiza-se principalmente como imaginação.
 A linguagem conceitual procura evitar a analogia e a metáfora, esforçando-se
para dar às palavras um sentido direto e não figurado ou figurativo. Isso não
quer dizer que a linguagem conceitual seja puramente denotativa. Pelo
contrário, nela a conotação é essencial, mas não possui uma natureza
imaginativa ou imagética.
 A linguagem simbólica (dos mitos, da religião, da poesia, do romance, do
teatro) e a linguagem conceitual (das ciências, da filosofia) diferem sob os
seguintes aspectos:

 a linguagem simbólica é fortemente emotiva e afetiva, enquanto a linguagem


conceitual procura falar das emoções e dos afetos sem se confundir com eles e sem
se realizar por meio deles;
 a linguagem simbólica oferece sínteses imediatas (imagens), enquanto a linguagem
conceitual procede por desconstrução analítica e reconstrução sintética dos objetos,
fazendo com que acompanhemos cada passo da análise e da síntese;
 a linguagem simbólica nos oferece palavras polissêmicas, isto é, carregadas de
múltiplos sentidos simultâneos e diferentes, tanto sentidos semelhantes e em
harmonia, quanto sentidos opostos e contrários; a linguagem conceitual procura
diminuir ao máximo a polissemia e a conotação, buscando fazer com que cada
palavra tenha um sentido próprio e que seus diferentes sentidos dependam do
contexto no qual é empregada;
 a linguagem simbólica leva-nos para dentro dela, arrasta-nos para seu interior pela
força de seu sentido, de suas evocações, de sua beleza, de seu apelo emotivo e
afetivo; a linguagem conceitual busca convencer-nos e persuadir-nos por meio de
argumentos, raciocínios e provas.
 a linguagem simbólica fascina e seduz; a linguagem conceitual exige o trabalho
lento do pensamento;
 a linguagem simbólica nos dá a conhecer o mundo criando um outro, análogo ao
nosso, porém mais belo ou mais terrível do que o nosso, mais justo ou mais violento
do que o nosso, mais antigo ou mais novo do que o nosso, mais visível ou mais
oculto do que o nosso; a linguagem conceitual busca dizer o nosso mundo,
decifrando seu sentido, ultrapassando suas aparências e seus acidentes;
43

 a linguagem simbólica, privilegiando a memória e a imaginação, nos diz como as


coisas ou os homens poderiam ter sido ou poderão ser, voltando-se para um possível
passado ou para um possível futuro; a linguagem conceitual busca dizer o nosso
presente, fala do necessário, determinando suas causas ou motivos e razões; procura
também as linhas de força de suas transformações e o campo dos possíveis, como
possibilidade objetiva e não apenas desejada ou sonhada.

RESUMINDO
A linguagem em sentido amplo (isto é, englobando língua, fala e palavra) é constituída por
quatro fatores fundamentais:
1. fatores físicos (anatômicos, neurológicos, sensoriais), que determinam para nós a
possibilidade de falar, escutar, escrever e ler;
2. fatores socioculturais, que determinam a diferença entre as línguas e entre as línguas
dos indivíduos. Assim, o português e o inglês correspondem a sociedades de culturas
diferentes, bem como a linguagem de Machado de Assis e de Guimarães Rosa
correspondem a momentos diferentes da cultura no Brasil;
3. fatores psicológicos (emocionais, afetivos, perceptivos, imaginativos, lembranças,
inteligência) que criam em nós a necessidade e o desejo da informação e da comunicação,
bem como criam nossa capacidade para a performance linguística, seja ela cotidiana,
artística, científica ou filosófica;
4. os fatores linguísticos propriamente ditos, isto é, a estrutura e o funcionamento da
linguagem que determinam nossa competência e nossa performance enquanto seres capazes
de criar e compreender significações. Esses fatores nos dizem por que existe linguagem e
como ela funciona, mas não nos dizem o que é a linguagem.

8.A perspectiva fenomenológica

que nos orienta para sabermos não só o que é a linguagem, mas também qual é seu papel
fundamental no conhecimento:
1. a linguagem não é mecanismo psicomotor (os fatores 1 e 3 apresentam as condições
biológicas e psicológicas para haver linguagem, mas não qual é a natureza da experiência
da palavra);
2. a linguagem não é simples relação binária entre signo e coisa, signo e ideia, mas é
uma relação ternária, na qual os signos são símbolos que veiculam significações;
3. a linguagem não traduz pensamentos, mas participa ativamente da formação e
formulação das ideias e dos valores;
4. a linguagem é uma forma de nossa experiência total de seres que vivem no mundo e
com outros; é uma dimensão de nossa existência;
5. a linguagem, como a percepção e a imaginação, pode comprazer-se no já dado, já
dito e já pensado, no instituído e estabelecido, ficando escrava dos preconceitos e das
ideologias, pois, como disse Platão, ela pode ser remédio, veneno e máscara. Pode bloquear
nosso conhecimento e pode produzir desconhecimento (mentira, desinformação). É, assim,
nosso meio de acesso ao mundo, aos outros e à verdade, mas também o instrumento do
engano, do falso e da mentira;
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6. a linguagem cria, interpreta e decifra significações, podendo fazê-lo miticamente ou


logicamente, magicamente ou racionalmente, simbolicamente ou conceitualmente.

5. As concepções empirista e intelectualista,


Apesar de suas divergências, possuem dois pontos em comum:
 Ambas consideram a linguagem como sendo fundamentalmente indicativa ou
denotativa, isto é, os signos linguísticos ou as palavras servem apenas para indicar
coisas;
 Ambas consideram a linguagem como um instrumento de representação das coisas e
das ideias, ou seja, as palavras têm apenas uma função ou um uso instrumental
representativo.
 Esses dois pontos de concordância fazem com que, para as duas correntes
filosóficas, os aspectos conotativos ou a função conotativa da linguagem seja
considerada algo perturbador e negativo.
 Em outros termos, o fato de que a comunicação verbal se realize com as palavras
assumindo sentidos diferentes, dependendo de quem fala e ouve, escreve e lê, do
contexto e das circunstâncias em que as enunciamos, é considerado perturbador
porque, afinal, as coisas são sempre o que elas são e as ideias são sempre o que elas
são, de modo que as palavras deveriam ter sempre um só e mesmo sentido para
indicar claramente as coisas e representar claramente as ideias.
 Por esse motivo, periodicamente, aparecem na Filosofia correntes filosóficas que se
reocupam em “purificar” a linguagem para que ela sirva docilmente às
representações conceituais. Tais correntes julgam que a linguagem perfeita para o
pensamento é a das ciências e, particularmente, a da matemática e a da física.

6. Críticas a visão dos intelectualistas


Os intelectualistas, porém, apresentam uma concepção muito diferente desta.
Embora aceitem que a possibilidade para falar, ouvir, escrever e ler esteja em nosso corpo
(anatomia e fisiologia) afirmam que a capacidade para a linguagem é um fato do
pensamento ou de nossa consciência.
 A linguagem, dizem eles, é apenas a tradução auditiva, oral, gráfica ou visível de nosso
pensamento e de nossos sentimentos.
 A linguagem é um instrumento do pensamento para exprimir conceitos e símbolos,
para transmitir e comunicar ideias abstratas e valores.
 A palavra, dizem eles, é uma representação de um pensamento, de uma ideia ou de
valores, sendo produzida pelo sujeito pensante que usa os sons e as letras com essa
finalidade.
 O pensamento puro seria silencioso ou mudo e formaria, para manifestar-se, as
palavras. Duas provas poderiam confirmar essa concepção da linguagem: o fato de que
o pensamento procura e inventa palavras; e o fato de que podemos aprender outras
línguas, porque o sentido de duas palavras diferentes em duas línguas diferentes é o
mesmo e tal sentido é a ideia formada pelo pensamento para representar ou indicar as
coisas.
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 A grande prova dos intelectualistas contra os empiristas foi a história de Helen Keller.
Nascida cega, surda e muda, Helen Keller aprendeu a usar a linguagem sem nunca ter
visto as coisas e as palavras, sem nunca ter escutado ou emitido um som.
 Se a linguagem dependesse exclusivamente de mecanismos e disposições corporais,
Helen Keller jamais teria chegado à linguagem.
 Mas chegou. E chegou quando compreendeu a relação simbólica entre duas expressões
diferentes: numa das mãos, sentia correr a água de uma torneira, enquanto a outra mão,
na qual segurava uma agulha, guiada por sua professora, ia traçando a palavra água;
quando se tornou capaz de compreender que uma mão traduzia o que a outra sentia,
tornou-se capaz de usar a linguagem. Assim, a linguagem, longe de ser um mecanismo
instintivo e biológico, seria um fato puro da inteligência, uma atividade intelectual
simbólica e de compreensão, uma pura tradução de pensamentos.

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