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17.6.2022

BOLSONARO
CÚMPLICE
11
SE AS DECLARAÇÕES
PAVOROSAS JÁ NÃO
HAVIAM SIDO SUFICIENTES,
O PRESIDENTE JAIR
BOLSONARO DARÁ MAIS
UMA DEMONSTRAÇÃO DE
QUE POUCO SE IMPORTOU
COM OS ASSASSINATOS DO
JORNALISTA DOM PHILLIPS
E DO INDIGENISTA BRUNO
PEREIRA NA AMAZÔNIA.
NO SÁBADO (18), ELE
PARTICIPA DE UMA
MOTOCIATA EM MANAUS.
/ Editorial
4 | O presidente que se diverte com a
morte de Dom e Bruno é o mesmo cujo
herói sempre foi Ustra, por Renato Rovai

/ Capa
BOLSONARO CÚMPLICE
edição #11

6 | “Bolsonaro tem responsabilidade


política”
10 | Assassinato de Dom e Bruno
confirma “hondurização” do Brasil, por
conteúdo |

Cynara Menezes
18 | O caso de Bruno e Dom e o legado
de Pinochet a Bolsonaro, por Soraia Mendes

/ Eleições 2022
27 | Pré-programa do PT arquiva luta anti-
imperialista por Mauro Lopes
/ Política
34 | Lava Jato: o pixuleco de R$ 30
milhões, por Miguel do Rosario
/ Economia
38 | Novo aumento dos combustíveis
/ Meio ambiente
41 | A Amazônia não é só do Brasil, por
Leonardo Boff
/ Saúde
48 | STJ autoriza cultivo de maconha para
fins medicinais
/ Especial
52 | Série O futuro de Bolsonaro, parte 4:
Direitos Humanos, por Henrique Rodrigues

69 / Expediente
EDITORIAL
Renato Rovai

O presidente que se diverte


com a morte de Dom e
Bruno é o mesmo cujo
herói sempre foi Ustra

Bolsonaro não era um outsider da política


quando se lançou candidato a presidente em
2018. Ele já estava na Câmara Federal como
deputado há 28 anos. Era um veterano. E
destilava neste período todo tipo de ataque à
democracia e aos direitos humanos.
Bolsonaro defendia o coronel Brilhante Ustra
em suas incursões midiáticas desde sempre. Ele
não o fez apenas no impeachment da presidenta
Dilma, quando dedicou seu voto ao torturador.
Bolsonaro não começou a atacar os
indígenas e nem a defender os madeireiros e
garimpeiros agora.
Durante toda a sua vida política ele fez isso.
Mas parte da mídia parece ter descoberto
isso agora quando ocorre o bárbaro assassinato
de Dom Phillips e Bruno Araújo.
A verdade é que muitos veículos de
comunicação trataram as manifestações do atual
presidente como sendo parte do folclore político.
Se esqueceram que quando não se
combate o fascismo com todas as forças
pessoas morrem, direitos são destruídos e a
democracia é sufocada.
Não adianta chorar a morte de Dom Phillips
e Bruno Araújo e não fazer uma avaliação
rigorosa de quanto certos grupos foram
cúmplices de tudo o que o Brasil vem vivendo,
incluindo a destruição da Amazônia, a morte de
quase 700 mil pessoas na pandemia e crimes
bárbaros como os de Dom e Bruno.
Não dá mais pra fazer de conta que os
casos são isolados. Eles são parte de uma
história cuja banda passou na porta avisando
antes o que seria.
Aos eleitores podia ser permitida a
ingenuidade. Aos jornalistas e meios de
comunicação, entre tantos outros setores
sociais, não. Por isso é hora também de
fazer o ajuste de contas sobre quem por
silêncio ou conveniência levou Bolsonaro e
sua necropolítica ao poder. Porque esses
também de alguma forma têm as mãos sujas
de sangue.w
Capa

Foto Palácio do Planalto


Dom e Bruno

“Bolsonaro tem
responsabilidade
política”
O historiador Lucas Pedretti destacou que a
promoção da violência pelo projeto bolsonarista
se dá pelo incentivo de grupos criminosos e
pelo desmonte de órgãos de controle
por Lucas Rocha

E
m meio às discussões sobre o grau de
responsabilidade política que o governo
Jair Bolsonaro (PL) tem sobre as mortes
do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno
Pereira, destaca-se o desmonte promovido
pela atual gestão em matéria de fiscalização e
controle na região da Amazônia e os constantes
ataques do presidente a ativistas de direitos
humanos e do meio ambiente.
Bolsonaro chegou a dizer que Dom Phillips
era “malvisto” na região enquanto as buscas
ainda eram realizadas, demonstrando seu
desprezo pelo jornalista e pelo indigenista.
Do exterior essa responsabilidade parece
mais evidente. Em entrevista ao jornalista
Jamil Chade, do portal Uol, a eurodeputada
Anna Cavazzini, vice-presidenta da delegação
do Parlamento Europeu para o Brasil,
responsabilizou o presidente pelas mortes:
“Estes assassinatos são também uma
consequência da difamação dos ativistas
humanos e ambientais pelo presidente
Bolsonaro e do desmantelamento da legislação
ambiental e de direitos humanos”.
Para o historiador Lucas
Pedretti, pesquisador
do Núcleo de Memória
e Direitos Humanos do
Colégio Brasileiro de Altos
Estudos (CBAE/UFRJ),
não se pode negar que há
responsabilidade política
de Bolsonaro. “Independente do que vem
a ser comprovado sobre os mandantes do
duplo assassinato - e a gente precisa cobrar
até o final para que sejam revelados os
mandantes -, o fato é que a gente não pode
ignorar a responsabilidade política do governo
Bolsonaro”, apontou, em entrevista à Fórum.

“RESPONSABILIDADE NÃO SÓ SOBRE


ESSAS MORTES, MAS SOBRE TUDO QUE
VEM ACONTECENDO TANTO NA AMAZÔNIA,
EM RELAÇÃO AOS POVOS INDÍGENAS,
QUANTO NAS CIDADES, EM RELAÇÃO AO
EXTERMÍNIO DA JUVENTUDE NEGRA, À
VIOLÊNCIA NAS FAVELAS. ESSAS SÃO DUAS
FACES DA MESMA MOEDA, QUE É A LÓGICA
BRUTAL DA VIOLÊNCIA QUE ORGANIZA
A IDEOLOGIA DO BOLSONARO E DO SEU
GOVERNO”, COMPLETOU.

Segundo o historiador, a lógica de violência


está diretamente relacionada “ao incentivo
que o governo faz a um conjunto de práticas
criminosas”. No caso da Amazônia, do garimpo,
da invasão ilegal de terras indígenas, enquanto
nas cidades, no incentivo às milícias. Mas
não fica apenas no incentivo. Para Pedretti,
há uma dimensão dessa lógica violenta que
atinge diretamente a estrutura do estado para
possibilitar a ação de grupos criminosos.
“Essa dimensão ilegal do projeto bolsonarista
tem como contrapartida uma dimensão que
atua por dentro da estrutura do Estado,
aparentemente de forma legal. O desmonte da
Foto Gustavo Basso
Garimpo ilegal na Amazônia: desmonte da Funai, do Ibama e de setores da
Polícia Federal pelo governo Bolsonaro só piorou a situação

Funai, por exemplo, que tem na exoneração do


Bruno uma das suas expressões, a exoneração
de servidores da Polícia Federal e de outros
órgãos de controle que tentavam de alguma
maneira impedir o avanço sobre as terras
indígenas. No caso das cidades, essa dimensão
se apresenta a partir da autorização que as
polícias têm para matar, do enfraquecimento de
órgãos que tentam combater milícias, grupo de
extermínio... O projeto bolsonarista sempre tem
essas duas dimensões.”
“Você só entende o avanço das milícias no
Rio de Janeiro, por exemplo, se você entende
como as polícias são incentivadas a matar, da
mesma forma que você só entende o avanço do
garimpo ilegal, da grilagem ilegal, do ataque às
terras indígenas, na Amazônia, se você entende
o desmonte da Funai, do Ibama e de setores da
Polícia Federal”, finalizou.w
Capa

Ilustração Cris Vector


Opinião

Assassinato
de Dom e
Bruno confirma
“hondurização”
do Brasil
Diziam que com o PT o país ia “virar
Venezuela”, mas com Bolsonaro virou
Honduras: um dos lugares mais perigosos do
mundo para jornalistas e ativistas
por Cynara Menezes
D
iziam que o PT ia transformar o Brasil
“numa Venezuela”, mas o que está
acontecendo desde o golpe contra Dilma
Rousseff, em 2016, é o nosso país caminhando
velozmente para virar Honduras. O bárbaro
assassinato do jornalista britânico Dom Phillips
e do indigenista Bruno Pereira, esquartejados
e queimados, só confirma isso. O Brasil é
considerado hoje o segundo país mais perigoso
do mundo para jornalistas (só perde para o
México) e o quarto mais perigoso para ativistas
ambientais (já ultrapassou Honduras, aliás).
Desde que o país da América Central
inaugurou, em 2009, a sequência de “golpes
constitucionais” na América Latina (depois
viriam Paraguai em 2012, Brasil em 2016 e
Bolívia em 2019), nada melhorou por lá, pelo
contrário. Honduras é hoje, 13 anos após o
golpe que arrancou Manuel Zelaya do poder, um
país dominado pela violência e pela impunidade.
As estatísticas hondurenhas são alarmantes:
país campeão em homicídios, campeão em
assassinatos de ativistas ambientais, campeão
em feminicídios, campeão em migração para
os EUA... É inegável que o Brasil de Bolsonaro
segue o mesmo caminho.
Honduras continua a ostentar o triste título
de país mais letal da América Central e um dos
Honduras ostenta o título de país mais letal
da América Central e um dos mais violentos
do mundo, com 38,9 mortes violentas a
cada 100 mil habitantes

mais violentos do mundo, com 38,9 mortes


violentas a cada 100 mil habitantes em 2021,
ano em que aconteceram 53 massacres, ou um
massacre por semana. O Brasil, embora tenha
menos homicídios proporcionalmente (18,5
mortes violentas a cada 100 mil habitantes), foi
o campeão latino-americano no ano passado
em número total de assassinatos, à frente do
México, da Colômbia e... da Venezuela.
Os números da violência no Brasil, ao
contrário do que diz o governo Bolsonaro, estão
em curva ascendente. E, também ao contrário
do que dizem os bolsonaristas, o aumento
do número de armas não deixou a população
mais segura, exatamente como aconteceu
em Honduras. Desde o golpe de 2009, se
multiplicou o número de armas de fogo no
país e falharam até agora as tentativas de
estabelecer algum controle: é possível a cada
cidadão hondurenho possuir cinco armas e as
exigências para adquiri-las são mínimas. Numa
casa com cinco pessoas, portanto, é possível
haver 25 armas de fogo.
Essa é uma das principais razões para
Honduras ter se tornado um país perigoso para
defensores do meio ambiente: os inimigos do
ecossistema passaram a andar ainda mais
armados. Na verdade, como num filme de
faroeste, todo mundo em Honduras tem uma
pistola. “A forte militarização do país levou
a uma onipresença, não apenas da polícia
armada, mas também das forças militares
armadas. O pessoal de segurança armado
privado também pode ser visto em frente a
lojas, lojas de departamentos, grandes hotéis,
bancos e às vezes também casas particulares,
e é por isso que os sinais de ‘armas proibidas’
podem ser vistos em espaços públicos, piscinas
e bares”, relatou a ONG suíça Peace Watch.
O mesmo está acontecendo no Brasil de
Bolsonaro: em agosto passado, a Polícia
Federal autorizou que cada cidadão possa
comprar até quatro armas de fogo. O resultado
deste lobby descarado dos fabricantes de
armas é que, em um ano, o país duplicou o
número de armas registradas – e o número de
mortes violentas também cresceu. Segundo o
último levantamento do Anuário Brasileiro de
Foto Peace Watch Suíça
Aviso de “proibido armas” em restaurante de Tegucigalpa, capital de Honduras

Segurança Pública, cerca de 40 mil brasileiros


foram mortos por armas de fogo em 2020, um
aumento de 4% em relação ao ano anterior.
Desde que Bolsonaro empoderou os
garimpeiros em terras indígenas e as
plantações de soja nas florestas, as ameaças
e atentados contra lideranças e defensores do
meio ambiente explodiram. “70% dos mortos
estavam trabalhando para defender as florestas
do desmatamento. No Brasil e no Peru, a
maior parte dos atentados aconteceu na região
amazônica. Cerca de 30% estavam ligados
à exploração de recursos naturais (madeira,
mineração e agroindústria), usinas hidroelétricas
e outras obras de infraestrutura”, diz um
relatório da ONG Global Witness divulgado em
setembro passado.
Em Honduras como no Brasil, a disputa
pela propriedade da terra termina em conflitos
sangrentos onde apenas uma parte é vitimada:
indígenas, camponeses e os seus defensores.
Não bastassem os assassinatos, há ainda a
manipulação da Justiça em favor de empresas
e contra os ativistas hondurenhos. Em fevereiro
deste ano, seis defensores do meio ambiente
foram condenados em primeira instância por
organizar um acampamento para tentar deter as
obras de uma mineradora no Parque Nacional
de Tocoa e que irá contaminar os rios Guapinol
e San Pedro, fontes de água para uso humano
e animal. Se confirmada a sentença, podem
pegar penas de até 14 anos de prisão.
”As autoridades hondurenhas precisam
parar de usar o sistema de justiça para
criminalizar, intimidar e assediar defensores dos
direitos humanos”, declarou Erika Guevara-
Rosas, diretora da Anistia Internacional para
as Américas. “É extremamente grave que,
apesar da falta de diligência nas investigações
do Ministério Público, seis dos presos de
consciência de Guapinol estejam enfrentando
penas de prisão. Os defensores são vítimas
de detenção arbitrária e processos criminais
infundados, decorrentes apenas de seu trabalho
legítimo de defesa do direito à água e a um
meio ambiente saudável em Honduras.”
Outro ponto de encontro entre Honduras e
Brasil são os feminicídios. O país da América
Central possui a taxa mais alta de assassinatos
Foto HANDOUT AGENCIA ANADOLU
Manifestação pela libertação dos defensores do meio ambiente
condenados em primeira instância pela justiça hondurenha

de mulheres por questões de gênero da


América Latina (4,7 por 100 mil habitantes em
2020), e 90% ficam impunes. Entre nós, desde
que uma mulher foi arrancada da presidência
sem cometer crime de responsabilidade, os
feminicídios não param de crescer. Em 2021, o
Brasil teve um estupro a cada 10 minutos e um
feminicídio a cada 7 horas; em Honduras, uma
mulher foi assassinada a cada 23 horas.
O Brasil também está na cola de Honduras
no que tange ao número de imigrantes ilegais
tentando entrar nos EUA e sendo barrados pela
polícia de fronteira. Durante os 11 primeiros
meses de 2021, 46.280 brasileiros foram presos
na fronteira com o México, de acordo com
dados oficiais do governo norte-americano,
contra 17.893 em todo o ano de 2019; o
aumento foi de 1100% desde que Bolsonaro
assumiu o poder. Os brasileiros são a sexta
nacionalidade em número de imigrantes ilegais
presos e o segundo fluxo que mais cresceu em
2021 depois do Equador.
Em janeiro deste ano, centenas de
hondurenhos partiram da cidade de San Pedro
Sula, uma das mais violentas do mundo, no
norte de Honduras, em uma nova caravana de
migrantes para tentar entrar nos EUA, como
aconteceu em 2018. Mas, embora tenha
ajudado a dar o golpe no país, o governo norte-
americano não quer hondurenhos entrando
nos EUA, assim como apoiou o golpe contra
Dilma e tampouco quer brasileiros fugindo
para lá: em outubro, a Casa Branca cobrou o
governo Bolsonaro para que tente frear a onda
de imigrantes ilegais. O filho do presidente, o
deputado federal Eduardo Bolsonaro, sempre
tratou a Venezuela pela alcunha de “narco-
Estado” e chama o presidente do país, Nicolás
Maduro, de “narcoditador”. E o Brasil que seu
pai “governa”, como pode ser chamado, após
mais uma barbárie que nos envergonha diante
do mundo? Honduras do Sul?
Os hondurenhos, pelo menos, corrigiram a
rota, elegendo em 2021 Xiomara Castro, esposa
de Manuel Zelaya, para presidenta e impondo
uma derrota ao Partido Nacional, que dominava
o país desde o golpe. Os brasileiros terão a
chance de mudar seu destino em outubro. Será
nossa forma de fazer Justiça a Dom Phillips e
Bruno Pereira.w
Opinião
Soraia Mendes

Foto Reprodução

O caso de Bruno
e Dom e o legado
de Pinochet a
Bolsonaro

E
m 16 de outubro de 1998, Augusto
Pinochet foi preso em Londres. Na época,
aos 82 anos de idade, o ex-ditador chileno
era senador vitalício e, nesta condição, gozava
de imunidade diplomática.
A detenção foi efetivada em uma clínica
onde ele se encontrava para a realização de
uma cirurgia na coluna. Tratava-se, portanto,
de uma viagem particular, da qual o governo
do Reino Unido sequer havia sido informado.
E foi com essa brecha que o então juiz
espanhol Baltazar Garzón emitiu um mandado
internacional solicitando a extradição de
Pinochet para a Espanha, a fim de que
respondesse criminalmente por sua participação
na chamada Operação Condor.
Pinochet permaneceu 503 dias sob
custódia. E, ao final, o Reino Unido não
autorizou a transferência do tirano para o
Estado espanhol. Mas a batalha jurídica travada
neste ínterim não foi em vão. O caso se tornou
um marco para o reconhecimento da justiça
universal com importantíssimas consequências.
Um dos frutos daquela ação corajosa
das vítimas e da firmeza do juiz Garzón veio
em maio de 2000, apenas dois meses após
Pinochet retornar ao Chile, com a aprovação
pela Corte de Apelações de Santiago de sua
destituição como senador vitalício. Abria-se
ali o caminho para que ele fosse investigado e
processado pela Justiça local por seus crimes.
Além desse, outro resultado positivo
foi em relação à doutrina internacional de
direitos humanos e o direito humanitário, até
ali ignorados pelos tribunais chilenos, e que
passaram a ser observados com seriedade para
a punição de crimes da mesma espécie dos
praticados pelo ex-ditador.
Por certo haverá quem diga que os tempos
são outros. Que os porões e as casas da morte
ficaram no passado. Ou que não se pode
mais imaginar a recapitulação de episódios
“clássicos” de supressão total da democracia
pela violência.
Penso que depende muito do que se
entende por democracia e do que se considera
um porão. Hoje até mesmo o porta-malas de
uma viatura policial é à luz do dia transformado
em câmara de gás. Enfim...

SE, DIFERENTEMENTE DOS ANOS DE


CHUMBO, EM QUE HAVIA UMA ESPÉCIE
DE DISCURSO LINEAR DE COMBATE AO
INIMIGO IDENTIFICADO GENERICAMENTE
COMO O “COMUNISMO” E, COM ISSO,
SE SUSTENTAVA A BRUTALIDADE DAS
PRISÕES, TORTURAS, DESAPARECIMENTOS
E MORTES; NOS DIAS DE HOJE, A
SELVAGERIA PERMANECE A MESMA,
SÓ QUE PULVERIZADA SOBRE MUITOS,
DIFERENTES E NOVOS ESPAÇOS DA VIDA.
E, ESCANCARADAMENTE, SOBRE MUITAS,
DIVERSAS E NOVAS PERSONAGENS DA
CENA DEMOCRÁTICA.

A “versão 4.0” de ataques aos direitos


humanos é direcionada, ao mesmo tempo,
à cultura, ao meio ambiente, às relações de
trabalho, ao livre exercício da sexualidade, à
autonomia dos corpos e aos correspondentes
e variados inimigos que podem ser lgbts,
comunistas, indígenas, feministas, quilombolas,
professores, jornalistas, artistas, ambientalistas,
e por aí afora.
Repaginada, mas tal como antes, a violência
é um “combo macabro” que não tem outro
objetivo do que a corrosão do processo
democrático. Só que, atualmente, ela é levada a
cabo pelo que precisamos compreender como
criminalidade organizada.
Dizer que o crime organizado surge na
ausência do Estado é somente uma meia
verdade. Não existe criminalidade organizada
sem a ação de agentes estatais em todos os
níveis (todos!).
O vácuo deixado pelo Estado por si só não
é o suficiente para que redes criminais nasçam,
cresçam e se desenvolvam. É necessário que
ele seja parte, diretamente, em ações concretas
e/ou no campo discursivo.
Assim, independentemente de seus
objetivos mais imediatos, as violações
promovidas pelas diferentes ramificações da
organização criminosa fazem parte do conjunto
cujo propósito final é impedir o desenvolvimento
do projeto democrático. Isto é, o de eliminar
qualquer possibilidade de construção
democrática na medida em que esta representa
Foto Reprodução
Casos como o de Dom e Bruno não se tornam emblemáticos por sua dimensão
individualista, mas por se constituírem o catalisador de muitos outros cometidos
em períodos de clara suspensão do processo democrático, como o atual

a conciliação entre a igualdade e a liberdade


mediante o reconhecimento da existência das
contradições materiais que impulsionam a
busca contínua e constante por direitos (civis,
políticos, econômicos, sociais e culturais) por
seus e suas protagonistas.
Sob esse prisma é possível entender a
leniência estatal nas buscas pelo indigenista
Bruno Pereira e pelo jornalista inglês Dom
Phillips, enquanto forma de expressão direta e
clara de cumplicidade com poderes paralelos
violentos capazes de qualquer crime para
garantir seus interesses.
Narcotráfico, milícias, garimpeiros,
madeireiros... perseguições, torturas e mortes
de ambientalistas, indígenas, quilombolas...
e toda sorte de crimes ambientais que temos
acompanhado compõem o modus operandi
da criminalidade organizada para a qual os
discursos governamentais operam como o
“salve” para a liberação da barbárie.

ATAQUES AOS DIREITOS HUMANOS SÃO


ATAQUES AO PROJETO DEMOCRÁTICO.
E, NESSE CONTEXTO, MUITO POUCO
IMPORTA IDENTIFICAR PRECISAMENTE
QUAL “DEPARTAMENTO, SEÇÃO OU SETOR”
CRIMINOSO FOI O EXECUTOR DA SENTENÇA
APLICADA CONTRA BRUNO E DOM. MAS,
SIM, COMPREENDÊ-LA, SEJA LÁ O QUE A
VERDADE DOS FATOS VENHA A REVELAR
SOBRE O QUE ACONTECEU, COMO UM
CRIME CONTRA OS DIREITOS HUMANOS.

Uma das mais importantes conquistas no


processo histórico de afirmação normativa dos
direitos humanos foi o reconhecimento de que
todos eles devem ser considerados em sua
universalidade, indivisibilidade, interdependência
e interrelação. Ou seja, com o devido respeito
às especificidades e antecedentes históricos,
culturais e religiosos de cada povo, desde
1993, como consta na chamada Declaração
e Programa de Ação de Viena (1994) compete
aos Estados, independentemente dos seus
sistemas político, econômico e cultural,
promover e proteger todos os direitos humanos
e liberdades fundamentais.
A outra face desta moeda – como o
caso de Dom e Bruno escancaram – é que,
ao longo das últimas décadas, também
os crimes contra os direitos humanos se
aperfeiçoaram. Em paralelo, reservadas, por
óbvio, as devidas proporções, elas também
passaram a se desenvolver em parâmetros
universais, indivisíveis, interdependentes e
interrelacionados.
O desaparecimento e/ou execução de Bruno
e Dom tem tomado repercussão internacional
cada vez maior. Havendo quem entenda, em
tom de crítica, que a notícia só tem ecoado em
razão de o jornalista ser um cidadão europeu.
De fato, episódios de violações aos direitos
humanos de jornalistas e indigenistas não são
raros no Brasil.
Casos como este, entretanto, não se tornam
emblemáticos por sua dimensão individualista.
Mas, pelo contrário, por se constituírem, ao seu
tempo e lugar, o catalisador de muitos outros
cometidos em períodos de clara suspensão do
processo democrático, como é o atual entre nós.
Em uma macabra semelhança ao cenário de
tragédia que vivemos é importante lembrar que a
detenção de Pinochet, ordenada por Garzón, se
deu inicialmente pela morte e tortura de cidadãos
espanhóis durante seu mandato (1973-1990).
Coloquemos atenção a este ponto.
Foto Agência Brasil
Que o legado de Pinochet a Bolsonaro seja também o merecido banco dos réus
em um tribunal onde a justiça, a verdade e a memória prevaleçam

Fazer “do luto a luta”, infelizmente,


ainda é nossa alternativa. Por isso, sem
ocultar ou desprezar a dor de quem os
perdeu, precisamos de estratégia para que
a repercussão deste caso atinja o ponto
nevrálgico em nível interno e internacional. E aí
está a missão de recolocar o que se entende
por democracia e também pelo lugar do Estado
em crimes contra os direitos humanos em sua
dimensão de criminalidade organizada. Quem
sabe assim, na hora certa e precisa, quiçá, no
Brasil também se instaure, verdadeiramente,
uma justiça de transição.
Aguardemos os acontecimentos.
Preparemos nossos argumentos. E Oxalá
permita que o legado de Pinochet a Bolsonaro,
que o aclama pelas torturas, desaparecimentos
e mortes, seja também o merecido banco dos
réus em um tribunal onde a justiça, a verdade e
a memória prevaleçam.w
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum
ACESSE PARA
SABER MAIS
veneta.com.br/produto/
como-derrotar-o-fascismo/
Eleições 2022

Foto Ricardo Stuckert


Opinião

Pré-programa do
PT arquiva luta
anti-imperialista e
privilegia democracia
e inclusão
Campanha Lula/Alckmin tem como eixo
combate às políticas pós-golpe de Temer
e Bolsonaro; transição econômico-ecológica
é prioridade; na arena internacional,
o tema é a soberania de todos os povos e
reconstrução das relações
por Mauro Lopes
O
pré-programa da chapa Lula-Alckmin
com as diretrizes para o que será o
“Programa de Reconstrução do Brasil”
vazou à imprensa no último dia 6. É uma versão
de lavra petista que foi submetida e ajustada
com os demais integrantes da frente ampla que
está se constituindo ao redor da chapa.
Na terça (14), os sete partidos da
aliança PT, PCdoB, PV, PSB, PSOL, REDE
e SOLIDARIEDADE chegaram a um acordo
sobre as diretrizes, depois de analisar 124
emendas apresentadas por todos os partidos
ao texto-base original. A programação é que
ele seja lançado publicamente na próxima
semana em um evento com a presença de Lula,
Alckmin, presidentes de partidos, intelectuais,
representantes da sociedade civil, movimentos
sociais, centrais sindicais e ambientalistas.
O texto elaborado originalmente pela
Fundação Perseu Abramo, do PT, dá
indicações claras do ponto de partida. E chega
a surpreender.
Apesar de segmentos da mídia
conservadora terem falado em “mesmice”, o
programa tem formulações originais em relação
ao passado e abre-se aos temas cruciais do
tempo presente-futuro.
Para desgosto de segmentos
Foto Mauro Pimentel/AFP
O eixo do texto é o combate às políticas pós-golpe de Temer
e Bolsonaro e não a luta contra os EUA

conservadores-tradicionalistas da esquerda,
o eixo do texto é o combate às políticas pós-
golpe de Temer e Bolsonaro e não a luta contra
os EUA. A bandeira da luta anti-imperialista
está arquivada. A prioridade é a democracia e
a inclusão e a transição econômico-ecológica.
Na arena internacional, o tema é a soberania
de todos os povos e a reconstrução das
relações internacionais.
As causas das maiorias são o centro do
projeto: pobres, pessoas negras, mulheres,
jovens, indígenas (uma maioria histórica),
gentes LGBTQI+ (pensando o rompimento
da heteronormatividade como jornada das
maiorias, ainda que submetida a intensa
repressão). As florestas compõem também
estas maiorias que são foco do programa.
A ideia de desenvolvimento econômico tal
como elaborada no século 20 e mantida mais
ou menos incólume nos dois primeiros governos
Lula está igualmente arquivada. “O Brasil
precisa construir sua trajetória de transição
ecológica”. A defesa da Petrobras não orienta
o documento para pensar o país tendo como
fonte exclusiva ou primordial os combustíveis
fósseis. O texto fala em “ampliação da oferta
de energia, aprofundando a diversificação da
matriz, com expansão de fontes renováveis a
preços compatíveis com a realidade brasileira.
Além disso, é necessário expandir a capacidade
de produção de derivados no Brasil,
aproveitando-se da grande riqueza do pré-sal
com preços que levem em conta os custos de
produção no Brasil”.
O texto afirma taxativamente uma visão
inovadora sobre a política industrial: “A principal
missão da política industrial será promover
o engajamento da indústria na transição
tecnológica, ambiental e social. Para isso,
a política industrial deve manter o foco nas
prioridades do país e se voltará para o fomento
à inovação. Será também estimulada pelo
poder de compra governamental em complexos
industriais estratégicos como saúde, energia,
alimentos e defesa”. A rigor, trata-se de uma
política praticamente pós-industrial.
O discurso bolsonarista sobre a Amazônia,
que encontra eco em segmentos da esquerda,
sobre uma oposição entre o “interesse nacional”
e o interesse do “globalismo” ou “imperialismo”
também não tem abrigo no texto: “É imperativo
defender a Amazônia da política de devastação
posta em prática pelo atual governo. Nos
nossos governos, reduzimos em quase 80%
o desmatamento da Amazônia, a maior
contribuição já realizada por um país para a
mitigação das mudanças climáticas entre 2004
e 2012. Já nos comprometemos com o futuro
do planeta, sem qualquer obrigação legal, e
faremos novamente.

COMBATEREMOS O CRIME AMBIENTAL


PROMOVIDO POR MILÍCIAS, GRILEIROS,
MADEIREIROS E QUALQUER ORGANIZAÇÃO
ECONÔMICA QUE AJA AO ARREPIO DA
LEI. NOSSO COMPROMISSO É COM A
RECONSTRUÇÃO E PRESERVAÇÃO DOS
BIOMAS E ÁREAS DEGRADADAS DO PAÍS”.

Da mesma maneira, o olhar do texto para


a política e para as relações internacionais
do Brasil supera as dicotomias do passado e
reafirma o desejo de Lula de protagonismo,
altivez e diálogo, com ênfase na formação de
um bloco regional: “Defender a nossa soberania
é defender a integração da América do Sul, da
América Latina e do Caribe, com vistas a manter
a segurança regional. É fortalecer novamente o
Mercosul, a UNASUL, a CELAC e os BRICS. É
Foto Ricardo Stuckert

É sob a ótica da democracia que se orienta o pré-programa do PT: “Temos


inarredável compromisso com defesa da democracia, da soberania e da paz”

estabelecer livremente as parcerias que forem


melhores para o país, sem submissão a quem
quer que seja. É trabalhar pela construção de
uma nova governança global comprometida
com o multilateralismo, a paz, a inclusão social
e a sustentabilidade ambiental que contemple
as necessidades e os interesses dos países em
desenvolvimento, com novas diretrizes para o
comércio exterior, a integração comercial e as
parcerias internacionais”.
É sob a ótica da democracia que se orienta
o pré-programa do PT ofertado aos demais
partidos: “Temos inarredável compromisso
com a defesa da democracia, da soberania e
da paz, com o respeito ao resultado das urnas,
com a qualificação da representação política,
a humanização do governo, a ampliação da
representatividade, da participação popular e a
reinserção do Brasil como protagonista global pela
democracia, paz e desenvolvimento dos povos”.
Mais ainda, é um manifesto em defesa
da institucionalidade: “É preciso superar o
autoritarismo e as ameaças antidemocráticas.
Para sair da crise e voltar a crescer e a se
desenvolver, o Brasil precisa de normalidade e
respeito institucional, com observância integral
à Constituição Federal, que estabelece os
direitos e obrigações de cada poder, de cada
instituição, de cada um de nós”.
Um programa inovador, amplo e, ao mesmo
tempo, radical.w
Política

Foto Divulgação
Bomba!
O pixuleco de R$ 30 milhões
para Carlos Fernando dos
Santos Lima
O TCU descobriu que a empresa criada por
Lima, a W Faria, recebeu R$ 28 milhões da
Eletrobras como pagamento de serviços de
compliance. Nada menos que 100% desses
valores, segundo o TCU, foram irregulares,
ou superfaturados
por Miguel do Rosario

“Se gritar pega ladrão, não fica um meu


irmão”.
Os versos imortalizados por Bezerra da Silva
se aplicam bem aqui.
Carlos Fernando dos Santos Lima era um
dos principais ideólogos da “República de
Curitiba”.
Era um dos procuradores que mais davam
entrevistas à grande imprensa, assim como
também um dos mais agressivos contra
qualquer um que ousasse criticar a operação.
Qualquer mínima crítica era logo classificada,
por ele, como defesa da corrupção.
Lima ajudou a articular os fundamentos
teóricos da operação que destruiu o sistema
nacional de construção civil e engenharia,
devastou a classe política, e pavimentou o
caminho para o golpe de 2016 e a eleição de
Bolsonaro em 2022.
Após Bolsonaro assumir o governo e Sergio
Moro conquistar o Ministério da Justiça, Lima
decidiu se aposentar aos 55 anos.
Por que alguém largaria um emprego público
que está no topo da cadeia alimentar dos
profissionais liberais do país?
Fácil: para ganhar mais dinheiro na
famigerada “indústria de compliance”.
E agora a bomba.
O TCU descobriu que a empresa criada
por Lima, a W Faria, recebeu R$ 28 milhões
da Eletrobras como pagamento de serviços de
compliance.
Nada menos que 100% desses valores,
segundo o TCU, foram irregulares, ou
superfaturados.
Em linguagem popular, Lima teria recebido
um pixuleco de quase 30 milhões de reais.
O modus operandi de Lima foi seguido por
vários outros procuradores da Lava Jato, além
do juiz Sergio Moro.

OS PROCURADORES DESESTABILIZARAM
GRANDES EMPRESAS NACIONAIS, E
DEPOIS SE ORGANIZARAM PARA LUCRAR
COM OS DESPOJOS DE GUERRA,
VENDENDO “SERVIÇOS DE CONSULTORIA
EM COMPLIANCE” PARA AS MESMAS
COMPANHIAS OU PARA ESCRITÓRIOS DE
ADVOGADOS QUE AS REPRESENTAVAM.

O relatório também envolve a ex-ministra


do STF, Ellen Grace, representante da
empresa Hogan Lovells, que recebeu R$
81 milhões da Eletrobras, dos quais 83%,
segundo investigação do TCU, teriam sido
superfaturados. A história da ex-ministra Ellen
Grace é igualmente bizarra, mas fica para outra
reportagem.
Moro também é investigado pelo TCU,
por conta de seus negócios milionários com a
Alvarez Marsal, empresa americana que passou
a gerir a massa falida de algumas empresas
afetadas pela Lava Jato, como a Odebrecht.
Diante de mais esse escândalo, não é mais
possível dizer que a Lava Jato foi a “ maior
operação de combate à corrupção da história”.
O contrário é mais verdadeiro.
A Lava Jato, e isso fica mais claro a cada dia
que passa, foi uma operação essencialmente
ilegal, que atropelou princípios constitucionais
básicos, e que terminou com seus membros
arrancando milhões de reais (ou dólares) das
mesmas empresas que eles investigaram,
desestabilizaram, desossaram e, em alguns
casos, destruíram.
Se gritar pega ladrão...w
Economia

Foto Alan Santos/PR


Petroleiros criticam
aumento dos combustíveis:
“Bolsonaro debocha dos
brasileiros”
Para a FUP, a política de preços da Petrobras
deveria ter sido combatida desde o início
do governo, caso Bolsonaro realmente se
importasse com os aumentos
por Lucas Rocha

A
Federação Única dos Petroleiros (FUP)
criticou o novo aumento nos preços dos
combustíveis anunciado pela Petrobras
na sexta-feira (17). Para os petroleiros, o
anúncio expõe a contradição entre o discurso
eleitoreiro de Jair Bolsonaro (PL) e a política de
preços adotada pela companhia.
“O novo aumento
do diesel e da gasolina
é mais um descaso do
governo Bolsonaro com
o trabalhador brasileiro, a
maior vítima da disparada
dos preços dos derivados
e descontrole da inflação”,
disse Deyvid Bacelar,
coordenador-geral da FUP.
“Bolsonaro debocha dos brasileiros com
seu discurso eleitoreiro contra reajustes de
combustíveis, enquanto mantém a política de
preço de paridade de importação (PPI), com
aumentos baseados no preço internacional
do petróleo, variação cambial e custos
de importação, mesmo o Brasil sendo
autossuficiente em petróleo, com custos em
real. E, agora, a quatro meses das eleições,
Bolsonaro se diz contrário às altas dos
derivados, as quais deveria ter combatido
desde o início de seu governo”, completou.
Apesar de Bolsonaro ter criticado os
aumentos, o Ministério da Economia defende a
manutenção da PPI.
Com esses novos aumentos, no governo
Bolsonaro - entre janeiro de 2019 e 17
de junho de 2022 - o diesel nas refinarias
subiu 203%, a gasolina, 169,1%, e o GLP,
119,1%, segundo dados elaborados pelo
Aumento dos combustíveis nas
refinarias durante o governo Bolsonaro
(Jan/2019 a Jun/2022):

Diesel 203,0%
Gasolina 169,1%
GLP 119,1%,

Departamento Intersindical de Estatística e


Estudos Socioeconômicos (Dieese/seção FUP).
Enquanto isso, o salário mínimo aumentou
21,4% no período.
O aumento foi anunciado na mesma
semana em que foi aprovado no Congresso
Nacional o Projeto de Lei Complementar (PLP
18), que reduz o ICMS sobre combustíveis.
O projeto foi bastante criticado pela oposição
e por economistas por não apresentar uma
medida firme para controlar os preços, apenas
um paliativo.w
Opinião
Leonardo Boff

Foto imazon.org.br/

A Amazônia não
é só do Brasil: é
um bem comum
da Terra e da
humanidade
T
odos estamos chorando o provável
assassinato do renomado indigenista
Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom
Phillips. Crimes semelhantes estão ocorrendo
com frequência na Amazônia, especialmente
contra lideranças indígenas, como decorrência
do total descaso com que o presidente trata
a questão ambiental. Estupidamente nega
os dados científicos mais sérios e ameaça
as reservas indígenas, entregando-as às
mineradoras nacionais e estrangeiras e ao
garimpo ilegal.
O desmonte feito pelo ex-ministro Ricardo
Salles, dos principais organismos de proteção
da floresta, das terras indígenas e da vigilância
do avanço descontrolado do agronegócio sobre
a mata virgem, agravou ainda mais a situação.
O próprio Papa Francisco advertiu no
Sínodo Querida Amazônia “que o futuro da
humanidade e da Terra está vinculado ao futuro
da Amazônia; pela primeira vez, se manifesta
com tanta claridade que desafios, conflitos e
oportunidades emergentes em um território,
são a expressão dramática do momento que
atravessa a sobrevivência do planeta Terra
e a convivência de toda a humanidade”. Na
encíclica Fratelli Tutti (2021) adverte: “estamos
no mesmo barco, ou nos salvamos todos ou
Fotos Reprodução
Na Amazônia vivem 390 povos indígenas, que falam 240 idiomas da rica matriz de
49 ramos linguísticos, um fenômeno inigualável na história da linguística mundial

ninguém se salva” (32).


São palavras graves, desconsideradas pelas
grandes corporações depredadoras, porque, se
tomadas a sério, deveriam trocar de modo de
produção, de consumo e de descarte, coisa que
não estão dispostas a fazê-lo. Preferem o lucro
do que a salvaguarda da vida humana e terrenal.
Consideremos alguns dados gerais sobre o
bioma amazônico por muitos desconhecidos:
ele cobre uma extensão de 8.129.057 Km2
com nove países: Brasil (67%), Peru (13%),
Bolívia (11%), Colômbia (6%), Equador (2%),
Venezuela(1%), Suriname, Guiana e Guiana
francesa (0,15). Vivem aí 37.731.569 habitantes,
sendo que 2,8 milhões são indígenas de 390
povos distintos falando 240 idiomas, da rica
matriz de 49 ramos linguísticos, um fenômeno
inigualável na história da linguística mundial.
Existem três rios amazônicos: o visível,
da superfície, o aéreo, os chamados “rios
volantes”(cada copa de árvore com 15
metros de extensão produz entre 800 a 1000
litros de umidade) que vão levar chuvas
para o Cerrado, para o sul, até o norte da
Argentina; o terceiro invisível é o rio “rez do
chão”(não confundir com o lugar turístico
Rez do Chão), um rio subterrâneo que corre
debaixo do atual Amazonas.
O rio Amazonas, segundo as mais recentes
pesquisas, é o rio mais longo do mundo,
com 7.100 quilômetros, cujas nascentes se
encontram no Peru, entre os montes Mismi
(5.669 m) e Kcahuich (5.577 m), ao sul da
cidade de Cusco. De longe é também o mais
volumoso, com uma vazão média de 200.000
metros cúbicos por segundo.
É importante saber que geologicamente
o proto-Amazonas durante milhões de anos
formava um gigantesco golfo aberto para o
Pacífico. A América do Sul ainda estava ligada
à África. Há 70 milhões de anos, os Andes
começaram a soerguer-se e por milhares e
milhares de anos bloquearam a saída das
suas águas para o Pacífico. Toda a depressão
amazônica ficou paisagem aquosa até forçar
uma saída para o Atlântico como ocorre
atualmente. (cf.Soli,H. Amazônia, fundamentos
da ecologia da maior região de florestas
tropicais, Vozes, Petrópolis 1985, 15-17).
O maior patrimônio genético se oferece
na Amazônia. Como dizia um dos melhores
estudiosos, Eneas Salati: “Em poucos hectares
da floresta amazônica existe um número de
espécies de plantas e de insetos maior que
em toda a flora e fauna da Europa” (Salati,
E., Amazônia: desenvolvimento, integração,
ecologia, Brasiliense/CNPq, S.Paulo 1983).

PRECISAMOS AFIRMAR, CONTRA A


ARROGÂNCIA DO PRESIDENTE, QUE TODO
O BIOMA AMAZÔNICO NÃO PERTENCE SÓ
AO BRASIL E AOS DEMAIS NOVE PAÍSES
AMAZÔNICOS. CONSTITUI UM BEM COMUM
DA TERRA E DA HUMANIDADE. NA VISÃO
DOS ASTRONAUTAS ISSO É EVIDENTE: DA
LUA OU DE SUAS NAVES ESPACIAIS, TERRA
E HUMANIDADE FORMAM UMA ÚNICA
ENTIDADE. O BRASIL PERTENCE
A ESTE TODO.

Agora, na fase planetária, todos nos


encontramos numa mesma e única Casa
Comum. O tempo das nações está passando;
agora é o tempo da Terra, administrada por um
corpo multipolar e orgânico para atender aos
problemas da única Casa Comum e de seus
habitantes. A pandemia mostrou a urgência
de uma governança global. Temos que nos
organizar para garantir os meios que sustentarão
A irresponsabilidade de Bolsonaro é de tal monta que juristas mundiais cogitam
acusá-lo de ecocídio, crime reconhecido pela ONU em 2006

a nossa vida e a da natureza. Ninguém é dono


da Terra. Ela é o nosso maior Bem Comum.
Todos têm direito de andar por toda ela, como
já em 1795 afirmava Immanuel Kant em seu livro
Para uma Paz Perpétua. Como a Amazônia é
parte da Terra, ninguém pode considerar só seu
o que é um Bem de todos.
O Brasil, no máximo, possui a administração
da parte brasileira (67%) e o faz de forma
irresponsável. Caso a Amazônia fosse
totalmente abatida, todo o sul do Brasil
até o norte da Argentina e do Uruguai se
transformariam lentamente numa savana e até,
em alguns lugares, num deserto. Daí a vital
importância desse bioma multinacional.
A irresponsabilidade de Bolsonaro é de tal
monta que juristas mundiais cogitam acusá-
lo de ecocídio, crime reconhecido pela ONU
em 2006 e levá-lo ao tribunal adequado.
Derrubar a floresta é desregular o regime
das chuvas. A água é um bem natural, vital,
comum e insubstituível. Sem água não há vida.
Bolsonaro se faz ecocida com suas políticas
retrógradas de mineração e de extrativismo de
riquezas da floresta. Tempos difíceis o esperam
e bem os merece pelos males que praticou
contra a vida.w
Saúde

Foto Reprodução
STJ autoriza cultivo
de maconha para
fins medicinais
A decisão inédita permite extração do óleo
canabidiol para uso próprio, sob prescrição
médica, no tratamento de ansiedade, estresse
pós-traumático e fobias sociais
por Lucas Vasques

P
or unanimidade, a Sexta Turma do
Superior Tribunal de Justiça (STJ)
concedeu, pela primeira vez na história,
na terça-feira (14), salvo-conduto para cultivo
artesanal de maconha (cannabis sativa) com
fins medicinais.
A autorização permite a extração do óleo
canabidiol para uso próprio, sob prescrição
médica, no tratamento de ansiedade, estresse
pós-traumático e fobias sociais.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária
(Anvisa) já autoriza a importação de produtos
derivados de maconha para tratamentos de
saúde. O plantio caseiro, no entanto, mais
acessível, ainda não foi regulamentado.
Os ministros analisaram recursos
de pacientes e familiares que utilizam
regularmente produtos à base de maconha.
Eles pediram autorização para o plantio
da cannabis sem correr o risco de serem
enquadrados na Lei das Drogas.
A decisão, a princípio, vale apenas para
os casos analisados. Porém, deve direcionar
julgamentos similares em instâncias inferiores,
de acordo com o Estadão.
Já o ministro Rogerio Schietti, relator de
um dos recursos, disse que o tema está
contaminado por um “discurso moralista,
baseado em dogmas e estigmas”.
“Ainda temos uma negativa do Estado
brasileiro, quer pela Anvisa quer pelo Ministério
da Saúde, em regulamentar essa questão. Nós
transcrevemos decisões da Anvisa transferindo
ao Ministério da Saúde essa responsabilidade
e o Ministério da Saúde eximindo-se dessa
responsabilidade, dizendo que é da Anvisa.
E, assim, milhares de famílias continuam à
Foto Reprodução
Autorização permite a extração do canabidiol para uso próprio, sob prescrição
médica, no tratamento de ansiedade, estresse pós-traumático e fobias sociais

mercê da omissão, inércia e desprezo estatal


por algo que, repito, implica a saúde e o bem-
estar de muitos brasileiros, a maioria deles
incapacitados de custear a importação dessa
medicação”, destacou.
Schietti ressaltou, ainda, que é função do
Judiciário garantir que os pacientes não sejam
tratados “como se fossem traficantes de drogas.
Essas questões surgem quando o Estado, aqui
referido como um Estado Policial, e eu tenho que
concordar, deixa de tratar a questão como uma
questão de saúde pública e resolve tratá-la como
uma questão criminal”, acrescentou.w
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SÉRIE
Especial O FUTURO DE BOLSONARO

Foto Agência Brasil


Parte 4
“Legado”

“SE CONTRAPÕE
A TUDO QUE
SIGNIFICA DIREITOS
HUMANOS”
Na 4ª e última parte da série que procurou
prever como serão os dias do presidente
Jair Bolsonaro quando deixar o cargo,
especialistas em Direitos Humanos falaram
sobre o “legado” de horror que ficará na área
por Henrique Rodrigues
A
última parte da série “O Futuro de
Bolsonaro” tratará do “legado” que o
presidente ultrarreacionário deixará no
campo dos Direitos Humanos. Figura sinistra
e declaradamente entusiasta da tortura, pena
de morte, execuções extrajudiciais e todo
tipo de violação às garantias fundamentais
dos cidadãos, além de fã de ditadores cruéis,
genocidas e de carrascos com o coronel Carlos
Alberto Brilhante Ustra, sanguinário repressor
da Ditadura Militar (1964-1985), o atual
ocupante do Palácio do Planalto tem deixado
um rastro de devastação em assuntos da área,
protagonizando um governo que massacra seu
próprio povo.
Para tratar do tema, a reportagem da
Fórum foi ouvir três especialista que atuam na
defesa dos Direitos Humanos em importantes
órgãos do Brasil e do exterior. O advogado
Dimitri Sales, doutor em Direito Constitucional
pela PUC-SP e presidente do Condepe
(Conselho Estadual de Defesa dos Direitos
da Pessoa Humana de São Paulo), acredita
que Jair Bolsonaro será sempre lembrado e
mencionado como o mandatário que quebrou
as bases garantidoras da dignidade humana da
Constituição Federal de 1988.
“Sob o ponto de vista dos Direitos Humanos,
Bolsonaro será lembrado como aquele que
rompeu o ‘contrato social’ em defesa da
dignidade da pessoa humana instituído pela
Constituição Federal de 1988. Sua gestão
é marcada por desconsiderar as diferenças
humanas como elementos que constituem,
singularizam e valorizam as pessoas. São elas
que nos tornam singulares e indispensáveis
à construção de uma sociedade plural. No
entanto, o governo Bolsonaro esvaziou as
iniciativas estatais de promoção do respeito
à pessoa humana, abandonando políticas
públicas já estruturadas e eficientes, deixando
de desestimular atos de preconceito e,
ainda, descumprindo deveres de defesa de
iniciativas que combatam as desigualdades.
Como exemplo, temos o esvaziamento da
política para a promoção da cidadania LGBT,
no momento em que deveríamos consolidar
os poucos direitos conquistados, fazendo
avançar iniciativas que enfrentem, enquanto
política de Estado, e todas as formas de
manifestação de ódio e intolerância às
diferenças sexuais e de gênero. Pelo contrário,
Bolsonaro, na condição de chefe do poder
Executivo da União, verbalizou preconceitos
e intolerâncias, dando ares de oficialidade a
posturas violentas, estimulando atos de ódio
e discriminação. Destaca-se, ainda, a atuação
Dimitri Sales,
advogado,
presidente do
Foto Divulgação

Condepe

durante a pandemia da Covid-19, em que a


política de saúde pública foi menosprezada,
dando espaço à adoção de ações criminosas
contra a vida da população brasileira. No futuro,
Bolsonaro será lembrado como o presidente
que desprezou o respeito ao seu povo e instituiu
políticas genocidas, que exaltaram a morte, em
detrimento do pacto em defesa da dignidade de
todas as pessoas”, falou Sales.
O jurista afirma que o rastro deixado pelo líder
de extrema direita é a prova de que o fascismo
segue existindo e é uma ameaça ao Brasil,
sobretudo quando é imposto pelas mãos daquela
que seria a maior autoridade do Estado brasileiro.
“O principal legado, negativo, claro, que
deixará Bolsonaro na área de Direitos Humanos
é a percepção de que, sim, é possível que
um governante adote políticas genocidas
que estrangulem Direitos Humanos e exaltem
a morte e o ódio como referências de sua
atuação. Ao contrário do que podíamos supor,
o fascismo ainda está bem vivo, ameaçando
constantemente os valores civilizatórios em
nosso país. Tudo isto exigirá de nós a defesa
incansável do Estado Democrático de Direito”,
completou o presidente do Condepe.
Sales se diz esperançoso de que um novo
governo restabeleça o papel do Estado no
cumprimento de suas obrigações relacionadas ao
tema, e que especialmente recoloque o país no
cenário internacional como garantidor, fiscalizador
e promotor do respeito aos Direitos Humanos.
“Sob um novo governo, o Estado
brasileiro deverá assumir o compromisso
de reestabelecer políticas de participação
social, retomando espaços de diálogos
institucionais entre governo e sociedade
civil, como as conferências de direitos, bem
como reestabelecendo o funcionamento
de conselhos de direitos, assegurando
sua autonomia. Ainda, será indispensável
a mudança da política internacional no
âmbito dos organismos de proteção aos
Direitos Humanos, reestabelecendo relações
diplomáticas que reconheçam autonomia
de mecanismos externos e assegurem o
cumprimento de obrigações internacionais.
O Estado brasileiro poderá contribuir para a
responsabilização daqueles que praticaram
crimes contra a humanidade, submetendo-
se às jurisdições de Cortes internacionais. A
retomada dos mecanismos de participação
social contribuirá para fortalecer a correlação
política do novo governo federal na defesa
dos Direitos Humanos, já que certamente
teremos que travar fortes disputas com setores
conservadores em torno das políticas nesta
área, o que contribuirá para a atuação do
Estado brasileiro nos organismos internacionais,
reestabelecendo o diálogo integral em torno
da defesa da dignidade da pessoa humana,
consolidando a jurisdição internacional e seu
impacto propositivo no direito interno”, disse.
O presidente do Conselho Estadual de
Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de
São Paulo vê na conduta de nações vizinhas
o exemplo que deve ser seguido pelo Brasil
daqui para frente, quando as insanidades de
Bolsonaro tiverem fim. Isso, de acordo com
ele, é fundamental para que novas ameaças e
tragédias como a atual não se repitam no futuro.
“A forma como países como Argentina,
Chile e Uruguai trataram de seus passados
autoritários, marcados pela quebra da
democracia e adoção de políticas genocidas,
deve servir como exemplo ao Brasil. Tanto
a adoção de Comissões da Verdade como
responsabilização daqueles que cometeram
crimes contra a humanidade, por meio da
chamada Justiça de Transição, contribuíram
para o fortalecimento das suas democracias.
Estas experiências, fragilmente adotadas no
Brasil, não chegaram a criar uma cultura de
pleno respeito ao Estado Democrático de Direito
e integral valorização dos Direitos Humanos.
Teremos pela frente o desafio de estabelecer
a Justiça de Transição para tratar de crimes
contra a humanidade praticados por Bolsonaro
e seus auxiliares, em especial contra os povos
indígenas e durante a condução da política de
saúde durante a pandemia. Será indispensável
a instituição de mecanismos de apuração,
responsabilização e reparação às vítimas e
seus familiares da política genocida que levou
quase 700 mil brasileiras e brasileiros à morte,
por conta de ações (e mesmo omissões)
irresponsáveis ocorridas na vigência da
pandemia da Covid-19. No entanto, essa tarefa
dependerá de uma efetiva opção política do
novo governo, que só se sustentará caso haja
respaldo da própria sociedade. Certamente,
ocorrerão disputas com os diferentes setores
da sociedade em torno da responsabilização
e reparação dos crimes contra a humanidade
praticados durante o governo Bolsonaro. Neste
contexto, será indispensável que consigamos
assegurar a ideal correlação de forças em favor
destas medidas. A defesa da democracia passa
por responsabilizar por atos antidemocráticos
e crimes contra a humanidade aqueles que, no
exercício de suas tarefas de Estado, violaram a
dignidade humana do povo brasileiro. Sem isto,
haverá sempre o risco de governos genocidas
voltarem a aterrorizar o Estado Democrático de
Direito e estimular o desrespeito aos direitos
humanos”, finalizou Sales.
Soraia Mendes, ex-coordenadora nacional
do Comitê para América Latina e o Caribe de
Defesa dos Direitos das Mulheres (CLADEM),
que é jurista e doutora em Direito, Estado e
Constituição pela Universidade de Brasília
(UnB), com pós-doutorado em Teorias Jurídicas
Contemporâneas pela Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), também conversou com
a Fórum. Para ela, que foi também parecerista
da Federação Internacional de Direitos
Humanos (FIDH), Bolsonaro apenas consolidou
uma percepção totalmente equivocada do
senso comum sobre o que são os Direitos
Humanos e isso ocorreu por meio de uma série
de atitudes de sua gestão.
“De regra, quando falamos em Direitos
Humanos, a imagem mental para a maioria
das pessoas é a que esboça somente uma
parcela do que fomos acumulando desde o
pós-Segunda Guerra em tratados e convenções
internacionais neste tema. Os Direitos Humanos
dizem respeito à segurança alimentar, ao
direito ao trabalho, à saúde, à educação, ao
meio ambiente e por aí vai. Por isso tudo, não
Soraia Mendes,
ex-coordenadora
do Comitê para
América Latina
e o Caribe de
Defesa dos Direitos
Foto Divulgação

das Mulheres
(CLADEM)

há dúvidas de que o legado bolsonarista é


de fome, de miséria, de milhares de mortes
evitáveis por Covid-19, de desmantelamento
da cultura, de apagamento da história
indígena e negra, de devastação ambiental,
de militarização de escolas e outras ações e
violações aos Direitos Humanos econômicos,
sociais, culturais e ambientais. De outro lado,
o autoritarismo que vive nas entranhas do
Estado brasileiro desde seu nascimento e que é
alimentado e retroalimentado pela grande mídia
e seus programas sensacionalistas construiu
uma limitação ainda maior na compreensão
sobre o que são Direitos Humanos com a
deturpação que se resume em expressões do
tipo ‘direitos humanos é direito de bandidos’.
Visto deste modo, não há aspecto sob o qual se
analise o governo Bolsonaro e a ‘figura política’
de Bolsonaro em que se encontre algum ponto
positivo a ficar de herança”, explicou Soraia.
A especialista usou ainda como exemplos
os dois últimos casos de gravíssima violação
aos Direitos Humanos ocorridos recentemente,
a chacina resultante de uma operação policial
na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, que deixou
23 mortos, e o assassinato cruel de um homem
de 38 anos com esquizofrenia que foi asfixiado
com gás lacrimogêneo por agentes da PRF
dentro de uma viatura, em Sergipe, para retratar
o que espera para o futuro de Jair Bolsonaro
fora do Palácio do Planalto.
“Por uma macabra coincidência realizamos
essa entrevista na imediata sequência do
massacre da Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro,
em 25 de maio, e a execução de Genivaldo
Santos, ontem, 26 de maio, em Sergipe. Algo
saudado por Bolsonaro e sua horda. Não há
na história brasileira uma personagem política
que tenha reunido em si a contraposição a
tudo (absolutamente tudo) o que significam os
Direitos Humanos em sua integralidade, como
direitos civis, políticos, econômicos, sociais,
culturais, ambientais. Ele é avesso ao amor,
à solidariedade, à felicidade, à vida digna.
Analisando tudo isso, confesso esperar muito
que no epitáfio de Jair (e também espero que
ele viva muito) conste: ‘aqui jaz um genocida,
feminicida, lgbtifóbico, aporofóbico, neoliberal,
megalômano que, a seu tempo, foi processado,
julgado e condenado por todos os seus crimes
contra o povo brasileiro’”, disparou Soraia.
Com relação ao próximo governo, a doutora
em Direito, Estado e Constituição deseja que
não se use de arranjos e “negociações” com
quem tanto mal fez ao povo brasileiro, e diz
aguardar uma posição clara e firme.
“Espero muito que o novo governo não seja
o da mesa de negociação com os violadores
dos Direitos Humanos que citei. Espero também
(e quero muito acreditar nisso) que o novo chefe
de Estado, nos limites de sua competência,
se digne a usar o rótulo de ‘maior liderança da
esquerda na América Latina’, dentro de seu
próprio país, e assuma a responsabilidade por
um chamamento nacional para a justiça, a
verdade, a memória e a reparação”, rogou.
Diante de todo o cenário construído por
Jair Bolsonaro em seu caótico governo, Soraia
pondera que não foi o atual presidente que
inventou ou gerou nosso sistema violento e
sistematicamente avesso ao respeito aos Direitos
Humanos, visto que o problema é antigo no Brasil.
“Bolsonaro não é o criador da cultura
de tortura e morte que pulsa no interior das
polícias brasileiras. Quem conhece o mínimo
da história recente brasileira sabe disso. A
‘abertura democrática’, pactuada com o silêncio
sobre os crimes da Ditadura e de costas para
a justiça, a verdade, a memória e a reparação,
no campo da segurança e das Forças Armadas,
nos legou uma fachada democrática, não uma
verdadeira democracia. Por isso, na trilha de
nossos vizinhos da América Latina, repito:
espero muito que o próximo presidente se digne
a usar seu prestígio de ser a ‘maior liderança da
esquerda na América Latina’ para que, dentro
de seu próprio país, conduza o início de um
processo que com justiça, verdade, memória e
reparação construa as condições para que um
dia possamos realmente falar em democracia
algum dia”, concluiu.
Uma outra autoridade da área dos Direitos
Humanos ouvida pela Fórum foi Ariel de Castro
Alves, um advogado especialista no tema e
em Segurança Pública, que é membro do
Movimento Nacional de Direitos Humanos e
presidente do Grupo Tortura Nunca Mais. Para
ele, Bolsonaro será sempre mencionado como
um presidente que valorizou violações cruéis, e
não só de seu governo.
“Ele será lembrado por exaltar uma ditadura
que torturou, matou e desapareceu com
milhares de brasileiros, além de ter mantido
esquemas de corrupção que não podiam ser
investigados e nem noticiados. Pelo genocídio
de mais de 660 mil pessoas na pandemia,
gerado pelo boicote do governo às medidas de
distanciamento social e à vacinação, por insuflar
pessoas a se contaminarem e disseminarem o
vírus em nome de uma fantasiosa imunidade
de rebanho, e por ter propagado remédios
que agravavam o quadro dos doentes, em vez
de curá-los, e ainda dava a sensação falsa de
que existiam medicamentos capazes de curar
os doentes. Também será lembrado por criar
factoides para viver em evidência, obsessivo em
aparecer, por manter esquemas de corrupção
familiares, por gastos excessivos dele e dos
militares que o cercam em mordomias e orgias,
já que o governo tem gastado milhões em
Viagra, próteses penianas, bebidas, comidas
caras, entre outros produtos, para abastecer
a corte do reinado militaresco bolsonarista,
enquanto o povo morre e passa fome com
a pandemia, a crise econômica e social, a
alta de preços e a inflação, além dos salários
defasados, preços absurdos dos combustíveis
e alimentos, desemprego e miséria. Ele vai
deixar um país devastado e destruído, com
legiões de pessoas famintas e miseráveis, e
um Brasil desmoralizado internacionalmente,
com fugas de empresas e investidores e alvo
de chacotas dos demais líderes mundiais.
Também será lembrado pelas manifestações de
racismo, ataques à democracia e ao Judiciário,
por tentativa frustrada de golpe de Estado,
por xenofobia, homofobia, machismo, falso
cristianismo, pela destruição do meio ambiente,
principalmente da Amazônia e do Pantanal, pela
disseminação do armamentismo que tira vidas,
Ariel de Castro
Alves, advogado,
presidente do
Grupo Tortura
Nunca Mais
Foto Divulgação

por perseguição aos indígenas, apoio às milícias


e aos policiais corruptos, assassinos e violentos,
e por falso moralismo”, listou Castro Alves.
O presidente do Grupo Tortura Nunca
Mais ainda falou da hipocrisia e demagogia
com que o líder de extrema direita trata os
temas relacionados ao respeito à dignidade
humana, sempre com uma religiosidade falsa
e um conjunto nauseabundo de moralismos.
Tudo, sem deixar de mencionar que outras
autoridades e instituições foram coniventes com
seus arroubos incivilizados.
“Na área de Direitos Humanos, apesar
da propaganda de defesa da família e das
crianças, ele acabou, enfraqueceu ou tirou
recursos dos programas de enfrentamento às
violências contra crianças e adolescentes, o
que fez também com relação aos programas
e serviços de enfrentamento ao racismo,
violência contra mulheres, e os voltados aos
idosos e pessoas com deficiência. Além de ser
um governo que defende ditaduras, torturas e
desaparecimentos forçados, que são as mais
terríveis e abomináveis violações de Direitos
Humanos. O governo Bolsonaro se notabilizou
por colocar os algozes nos ministérios e
demais funções de governo. Quem é contra os
direitos da mulher e os Direitos Humanos no
Ministério da Mulher e dos Direitos Humanos,
quem defende a destruição do Meio Ambiente
no Ministério do Meio Ambiente, quem quer
desmontar o Sistema Único de Saúde e
favorecer pandemias e gerar doenças e mortes
no Ministério da Saúde, quem quer acabar com
a educação pública no Ministério da Educação,
e assim por diante. Nos governos anteriores
o Ministério do Desenvolvimento Social tinha
visibilidade e importância. Esse governo acabou
com o Ministério do Desenvolvimento Social e
criou um Ministério da Cidadania inexpressivo
e desconhecido. Outras autoridades ficarão
marcadas pela conivência, omissão e por
serem os fiadores desse desgoverno que
destrói o país, gerando mais injustiças e
exclusão social, de saúde e educacional, como
os presidentes da Câmara e do Senado e o
procurador (prevaricador) geral da República.
Esperamos que sejam julgados num Tribunal
Penal Internacional pelos crimes e violações
aos direitos humanos que eles cometeram junto
com o Bolsonaro”, recordou o advogado.
Ao final da entrevista, Castro Alves retomou
a lista de personalidades e organismos estatais
que não podem ficar de fora de uma futura
responsabilização pelos absurdos levados
a cabo pelo presidente ultrarreacionário, e
destacou sua sanha insaciável por tentar impor
uma nova ditadura ao Brasil, contando com
vários setores sociais que o apoiam.
“De fato, Bolsonaro organiza uma tentativa
de golpe de Estado, desqualificando o processo
eleitoral, angariando apoios entre os oficiais das
Forças Armadas, com cargos, salários altos e
regalias, com apoio de parte dos parlamentares
federais, com muito dinheiro via emendas
secretas parlamentares, com apoio de parte
dos policiais militares estaduais e armando
seus seguidores e apoiadores com a facilitação
do acesso às armas de fogo. Muitos grupos
bolsonaristas estão se organizando por meio
de alguns clubes de tiro, que tiveram muitos
benefícios no atual governo. Para a tentativa
de golpe, eles também contam com as milícias
de ex-policiais, de setores da segurança
privada e dos grupos de extermínio. Também
não podemos nos enganar, apesar dos
constantes ataques do Bolsonaro ao Judiciário,
como ao STF e TSE, que muitos aliados do
Bolsonaro estão nos Judiciários, no Federal,
mas principalmente dos estados, e também
nos Ministérios Públicos. Bolsonaro também
conta com apoios de setores do empresariado
e muitos parlamentares estaduais, municipais e
de alguns prefeitos. São setores historicamente
de elite que enxergam nele alguém que manterá
o elitismo e os privilégios desses setores.
Precisaremos seguir os caminhos traçados
por países como Uruguai, Argentina e Chile
para responsabilizarmos os violadores de
Direitos Humanos do regime militar, exaltado
e defendido pelo Bolsonaro, e também para
punirmos os violadores de Direitos Humanos
atuais, como o próprio Bolsonaro e muitos de
seus apoiadores e colaboradores”, finalizou o
especialista.w
REVISTA

expediente | edição #11

Diretor de Redação
_ Renato Rovai

Editora executiva
_ Dri Delorenzo

Textos desta edição:


_ Lucas Rocha
_ Cynara Menezes
_ Soraia Mendes
_ Mauro Lopes
_ Miguel do Rosario
_ Leonardo Boff
_ Lucas Vasques
_ Henrique Rodrigues

Designer
_ Marcos Guinoza
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