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A QUESTÃO DO
AMOR e SEXO
J. KRISHNAMURTI

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[...] PERGUNTA: Considera um pecado que um homem ou
uma mulher se gozem de relações sexuais ilegítimas? Um jovem
quer livrar-se de tal felicidade ilegítima que ele considera errada.
Tenta continuamente controlar a sua mente, mas não consegue.
Poderia mostrar-lhe uma maneira prática de ser feliz?
Krishnamurti: Em coisas assim não há “maneiras práti-
cas”. Mas consideremos a questão; tentemos compreendê-la,
embora não do ponto de vista de determinado ato ser pecado ou
não ser pecado. Para mim não existe tal coisa como o pecado. Por
que é que o sexo se tornou um problema na nossa vida? Porque
há tantas distorções, perversões, inibições, repressões? Não será
porque estamos esfomeados mental e emocionalmente, porque
estamos incompletos em nós próprios, porque apenas nos torna-
mos máquinas imitativas, e a única expressão criativa deixada
para nós, a única coisa na qual podemos encontrar felicidade, é a
coisa a que chamamos sexo? Como indivíduos, deixamos de o ser
mental e emocionalmente. Somos apenas máquinas na sociedade,
na política, na religião.
Nós, como indivíduos, fomos absolutamente, implacavel-
mente, destruídos através do medo, através da imitação, através
da autoridade. Não libertamos a nossa inteligência criativa através
de canais sociais, políticos e religiosos. Por isso, a única expressão
criativa que nos foi deixada como indivíduos é o sexo, e a isso
atribuímos naturalmente uma tremenda importância, nisso colo-
camos uma enorme ênfase. Eis porque o sexo se tornou um pro-
blema, não é? Se puderem libertar o pensamento criativo, a emo-
ção criativa, então o sexo deixará de ser um problema. Para liber-
tar completamente, integralmente, essa inteligência criativa, têm
que questionar o próprio hábito do pensamento, têm de questio-
nar a própria tradição em que vivem, essas mesmas crenças que
se tornaram automáticas, espontâneas, instintivas. Através do
questionamento entram em conflito, e esse conflito e a sua com-
preensão despertarão a inteligência criativa; nesse questionamen-
to gradualmente libertarão o pensamento criativo da imitação, da
autoridade, do medo.

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Esse é um lado da questão. Também há outro lado para
essa questão, que diz respeito à comida e ao exercício, e ao amor
ao trabalho que fazem. Perderam o amor ao seu trabalho. Torna-
ram-se empregados de escritório, escravos de um sistema, traba-
lhando por quinze rupias ou por dez mil rupias, não por amor ao
que fazem. Com respeito à relação sexual ilegítima, consideremos
primeiro o que querem dizer com casamento. Na maioria dos
casos, o casamento é apenas a santificação da possessividade,
pela religião e pela lei. Suponham que amam uma mulher; que-
rem viver com ela, possuí-la. Ora, a sociedade tem inúmeras leis
que os ajudam a possuir, e várias cerimônias que santificam essa
possessividade. Um ato que teriam considerado pecaminoso antes
do casamento, consideram-no legal após essa cerimônia. Isto é,
antes da lei legalizar e da religião santificar a sua possessividade,
consideram o ato da relação sexual ilegal, pecaminoso. Onde há
amor, amor verdadeiro, não há qualquer problema de pecado, de
legalidade ou ilegalidade. Mas a menos que realmente pensem
profundamente sobre isso, a menos que façam um esforço real
para não interpretar mal o que eu disse, isso os levará a todas as
espécies de confusão. Temos medo de muitas coisas. Para mim, a
cessação dos problemas do sexo não reside na mera legislação,
mas em libertar essa inteligência criativa, em ser completos na
ação, não separando mente e coração. O problema só desaparece
vivendo completamente, integralmente.
[...] PERGUNTA: Quais são as regras e princípios da sua vi-
da? Uma vez que, presumivelmente, estão baseados na sua pró-
pria ideia de amor, beleza, verdade, e Deus, qual é essa ideia?
Krishnamurti: Quais são as minhas regras e princípios de
vida? Nenhuns. Por favor, acompanhem o que eu digo, crítica e
inteligentemente. Não objetem “Não devemos ter regras? Caso
contrário, a nossa vida seria um caos”. Não pensem em termos de
opostos. Pensem intrinsecamente em relação ao que estou dizen-
do. Por que querem regras e princípios? Por que os querem, vocês
que têm tantos princípios pelos quais moldam, controlam, orien-
tam as suas vidas? Por que querem regras? “Porque”, respondem

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vocês, “não podemos viver sem elas. Sem regras e princípios farí-
amos exatamente as coisas que quiséssemos fazer; poderíamos
comer demais ou abusar do sexo, possuir mais do que devería-
mos. Temos que ter princípios e regras pelas quais orientar as
nossas vidas”.
Por outras palavras, para se refrearem sem compreensão,
têm que ter esses princípios e regras. Essa é toda a estrutura arti-
ficial das suas vidas – restrição, controle, refreamento –, porque
por trás dessa estrutura está a ideia de ganho, de segurança, de
conforto, que causa medo. Mas o homem que não está à procura
de aquisitividade, o homem que não está aprisionado na promes-
sa de recompensa ou na ameaça do castigo, não necessita de re-
gras: o homem que tenta viver e compreender cada experiência
completamente não precisa de princípios e regras, pois só as
crenças condicionantes requerem conformidade. Quando o pen-
samento estiver liberto, incondicional, conhecer-se-á então como
eterno. Querem controlar o pensamento, moldá-lo e dirigi-lo,
porque estabeleceram uma meta, uma conclusão em direção à
qual desejam ir, e essa finalidade é sempre o que desejam que ela
seja, embora a possam chamar Deus, perfeição, realidade. Per-
guntam-me a respeito da minha ideia de Deus, da verdade, da
beleza, do amor. Mas eu digo: se alguém descrever a verdade, se
alguém lhes disser a natureza da verdade, tenham cuidado com
essa pessoa. Porque a verdade não pode ser descrita; a verdade
não pode ser medida em palavras. Acenam as suas cabeças em
assentimento, mas amanhã estarão de novo tentando medir a
verdade, tentando encontrar uma descrição dela. A sua atitude
com respeito à vida baseia-se no princípio de criar um molde, e
depois se enquadrarem nesse molde. O Cristianismo oferece-lhes
um molde, o Hinduísmo oferece outro, o Maometanismo, o Bu-
dismo, a Teosofia oferecem ainda outros. Mas, para que querem
um molde? Por que prezam ideias preconcebidas? Tudo o que
podem conhecer é a dor, o sofrimento e as alegrias transitórias.
Mas querem fugir deles; não tentam compreender a causa da dor,
a profundidade do sofrimento. Viram-se antes para o seu oposto

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para se consolarem. No seu sofrimento, dizem que Deus é amor,
justiça, e moldam-se segundo esse padrão. Mas só podem com-
preender o amor quando deixarem de ser possessivos; da posses-
sividade surge todo o sofrimento. Contudo, o seu sistema de pen-
samento e emoção está baseado na possessividade; assim, como
podem saber do amor?
Portanto, a sua primeira preocupação será a de libertar a
mente e o coração da possessividade, e só podem fazer isso
quando essa possessividade se tornar um veneno para vocês,
quando sentirem o sofrimento, a agonia que esse veneno causa.
Agora estão tentando fugir desse sofrimento. Querem que eu lhes
diga qual é o meu ideal de amor, o meu ideal de beleza, para que
possam fazer dele outro padrão, outra norma, ou para comparar o
meu ideal com o seu, esperando desse modo compreender. A
compreensão não chega através da comparação. Eu não tenho
nenhum ideal, nenhum padrão. A beleza não está separada da
ação. A verdadeira ação é a própria harmonia de todo o seu ser. O
que é que isso significa para vocês? Nada significa a não ser pala-
vras vazias, porque as suas ações são desarmoniosas, porque pen-
sam uma coisa e fazem outra. Somente podem encontrar liberda-
de duradoura, verdade, beleza, amor, que são uma e a mesma
coisa, quando deixarem de procurá-la. Por favor, tentem compre-
ender o que estou dizendo. O que quero dizer só é sutil no sentido
de que pode ser levado a cabo infinitamente. Eu digo que a sua
própria procura está destruindo o seu amor, destruindo o seu
sentido de beleza, de verdade, porque a sua procura é apenas
uma fuga, uma evasão do conflito. E a beleza, o amor, a verdade,
essa divindade da compreensão, não se encontram fugindo do
conflito; residem no próprio conflito.
Palestras em Adyar, Índia


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[...] O QUE É O EGO? O que é essa consciência a que de-
nominamos o “eu”? Eu vos direi o que ela é e, por favor, conside-
rai o que digo; não o rejeiteis. Estais aqui para compreender o que
estou dizendo, não para criardes uma barreira entre vós e mim,
mediante vossa crença. O que é o “eu”, este ponto focal que de-
nominamos “eu”, essa consciência de que a mente está continu-
amente se tornando apercebida? Isto é, quando é que sois consci-
entes de vós mesmos como “eu”? Somente quando sois frustra-
dos, quando sois impedidos, quando há uma resistência; de outro
modo sois supremamente inconscientes de vosso pequeno ser
como “eu”. Não é assim? Somente sois conscientes de vós pró-
prios quando há um conflito. Portanto, como sempre vivemos em
conflito, estamos conscientes dele, a maior parte do tempo; e
portanto, temos esta consciência, este conceito que nasce do
“eu”. O “eu”, neste conflito, nada mais é que a consciência de vós
próprios como forma, com um nome, com certos preconceitos,
com certas idiossincrasias, com certas tendências, faculdades,
ansiedades, frustrações; pensais que isto precisa continuar, cres-
cer e alcançar a perfeição. Como pode o conflito alcançar a perfei-
ção? Como pode esta consciência limitada alcançar a perfeição?
Ela pode expandir-se, pode crescer, porém não será a perfeição,
por mais ampla, por toda incluente que seja, porque os seus ali-
cerces são conflito, falta de compreensão, impedimentos. Assim,
dizeis a vós próprios: “tenho que viver como uma entidade além
da morte, portanto, tenho que volver a esta vida até alcançar a
perfeição.”
Assim, direis agora: “se eliminardes esta concepção do
“eu”, qual será o ponto focal da vida?” Espero que estejais acom-
panhando o que eu digo. Dizeis: “eliminai, libertai a mente desta
consciência de mim mesmo, como um “eu”, e, então, o que per-
manece? O que resta quando sois supremamente felizes, criati-
vos? O que permanece é esta felicidade. Quando realmente sois
felizes, ou quando muito amais, não existe “tu”. Existe este admi-
rável sentimento de amor ou este êxtase. Digo que isto é o real.
Tudo o mais é falso.

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[...] há o mal da sociedade tal como ela é. É uma opressiva
máquina organizada, para controlar os seres humanos. Vós pen-
sais que se os seres humanos ficassem livres dela, tornar-se-iam
perigosos, praticariam toda sorte de horrores; por isso, dizeis:
“Controlemo-los socialmente, por meio da tradição, da opinião,
pela limitação da moral'’; e economicamente há a mesma cousa.
Assim, estes males tornam-se gradualmente aceitos como nor-
mais e sãos. Certamente, é evidente como, mediante a educação,
fazem adaptarmo-nos a um sistema em que jamais se pensa na
vocação individual. Sois educados para vos adaptardes a um certo
trabalho; e deste modo criamos uma vida dual, durante a nossa
existência: a dos negócios, das 10 às 5, ou coisa semelhante, a
qual nada tem a ver com a outra, e a nossa vida particular, social,
no lar. Assim, vivemos, continuamente, em (contradição, indo
ocasionalmente à igreja, se vos interessa, para sustentar a moda,
a evidência. Investigamos a realidade, investigamos sobre Deus
nos momentos de angústia, de opressão, quando há uma derro-
cada. Dizemos: “deve haver uma realidade. Por que vivemos?”
Assim, gradualmente, criamos em nossas vidas uma dualidade e,
por isso, tornamo-nos tão hipócritas. Portanto, para mim, existe
um mal. É o mal da exploração engendrada pelos indivíduos, em
virtude da sua ansiedade pela autosegurança, pela autoconserva-
ção, a todo o custo, sem compreensão pelo conjunto dos seres
humanos; e nisto não há afeto nem amor verdadeiro, porém, sim-
plesmente, essa possessividade a que chamamos amor.
Palestras por Krishnamurti em Auckland

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[...] PERGUNTA: Qual é sua verdade?
Krishnamurti: Não pode haver sua verdade e minha ver-
dade. Só existe verdade, e você só pode compreender sua quali-
dade ímpar quando a mente está livre do “seu” e do “meu”. O
“você” e o “eu” são apenas memórias, baseadas na reação auto-
protetora e acumulativa contra a inteligência. Quando a mente
está livre desse sentido de “meu”, então existe vida, existe verda-
de. Só existe amor, mas quando você o aprisiona nas paredes da
possessividade, então ele se torna “seu”, e sua beleza definha.
[...] Interrogante: O que você tem a dizer sobre o proble-
ma sexual?
Krishnamurti: Por que o sexo se tornou um problema? É
um problema porque perdemos essa força criativa que chamamos
amor. Porque não existe amor, o sexo se torna um problema. O
amor se tornou mera possessão, e não aquele supremamente
inteligente ajustamento à vida. Quando perdemos esse amor e
meramente dependemos da sensação, então amor e sexo se tor-
nam um problema cruel. Para compreender esta questão profun-
damente e viver grandemente com amor, a mente deve estar livre
do desejo de possuir. Isto requer grande inteligência e discerni-
mento.
Não há remédios imediatos para estes problemas vitais.
Se você realmente quer resolvê-los inteligentemente, deve alterar
as causas fundamentais que criam estes problemas. Mas se você
trata deles apenas superficialmente, então a ação nascida deles
criará maiores e mais complicados problemas. Se você compreen-
der profundamente o significado da possessividade – em que há
crueldade, opressão, indiferença – e a mente se libertar dessa
limitação, então a vida não é um problema, nem uma escola em
que se aprende; é uma vida para ser vivida completamente, na
totalidade do amor.
Interrogante: Como você pode falar de sofrimento huma-
no quando você mesmo nunca o experimentou?

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Krishnamurti: Nós queremos julgar os outros. Em vez de
basear sua compreensão do que digo em se eu sofri ou não, fique
consciente de seu próprio sofrimento, e, então, veja se o que digo
tem algum valor. Se não tiver, então se eu sofri ou não, não tem
qualquer significado. Quando a mente entende e se liberta da
causa de seu próprio sofrimento, então uma vida sem exploração,
uma vida de amor profundo é possível.
[...] Onde existe um desejo de ser guiado, de buscar segu-
rança na autoridade, a vida inevitavelmente será um grande so-
frimento e um grande vazio. A riqueza da vida, a profundidade da
compreensão, a alegria do amor só pode surgir com o discerni-
mento do falso, daquilo que é ilusório.
[...] Para compreender o que o verdadeiro amor é, deve-
mos compreender nossa presente atitude, pensamento e ação em
relação ao amor. Se você verdadeiramente pensasse sobre isto,
veria que nosso amor se baseia na possessividade, e nossas leis e
ética estão assentadas neste desejo de manter e controlar. Como
pode haver amor profundo quando existe este desejo de possuir,
de manter? Quando a mente está livre da possessividade, então
existe esse encanto, a alegria do amor.
[...] Se você realmente compreendesse a verdade, se co-
nhecesse o amor, estaria livre de crenças e religiões organizadas.
Não pode haver “sua religião” e “a religião do outro”, suas crenças
e doutrinas contra as dos outros.
[...] Um homem que fica tentando se apaixonar nunca co-
nhecerá o amor.
[...] Pessoas que acumulam riqueza dependem, para sua
felicidade, do poder que o dinheiro dá. Quando esse poder é re-
movido, elas ficam face a face com seu próprio vazio completo.
Enquanto a pessoa está buscando poder, seja pelo dinheiro ou
pela virtude, deve haver vazio, e para esse vazio não há remédio,
pois o poder em si mesmo é uma ilusão nascida da limitação ego-
cêntrica, do medo. A compreensão só pode chegar no discerni-

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mento da falsidade do poder em si, e isto exige constante vigilân-
cia da mente, não uma renúncia depois da acumulação. Se existe
este sentido de ganância, que destrói o amor, a caridade, então
há um vazio, uma superficialidade, uma frustração da vida. Nisso
não existe realização.
[...] Interrogante: Que tipo de ação você pensa que seria
útil para o mundo?
Krishnamurti: Uma ação que nasce sem medo e, portanto,
da inteligência, é inerentemente verdadeira. Se sua ação se baseia
no medo, na autoridade, então tal ação deve criar caos e confu-
são. Libertando a ação de todo medo, há amor, inteligência.
[...] Interrogante: O problema sexual não é uma real es-
cravidão para o homem?
Krishnamurti: Se nós, meramente, lidamos com este pro-
blema superficialmente, não podemos encontrar solução para ele.
Emocionalmente e mentalmente somos, na maior parte do tem-
po, frustrados pela autoridade e o medo. Nosso trabalho, que
deveria ser a expressão de nossa realização, se tornou mecânico e
cansativo. Somos meramente treinados para encaixar num siste-
ma, e assim há frustração, vazio. Somos forçados a ter uma profis-
são particular devido à necessidade econômica, então somos con-
trariados em nossa verdadeira expressão. Pelo medo nos força-
mos a aceitar as muitas superstições e ilusões da religião. Nossos
desejos, contrariados e limitados, tentam nos expressar por meio
do sexo, que se torna assim um problema devorador. Porque ten-
tamos resolver isto exclusivamente, separado do resto dos pro-
blemas humanos, não podemos encontrar solução para ele. Por-
que destruímos o amor com possessividade, com simples sensa-
ção, o sexo se tornou um problema. Onde existe amor, sem o
sentido de possessividade ou apego, o sexo não pode se tornar
um problema.
[...] Interrogante: Ouvi dizer que você é contra o amor?
Você é?

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Krishnamurti: Se eu fosse, seria muito estúpido. A posses-
sividade destrói o amor, e sou contra isso. Para ajudá-lo a possuir,
você tem leis que são chamadas moral e que o estado e a religião
apoiam. O amor é restringido pelo medo, que destrói sua beleza.
[...] Interrogante: Você é fundador de uma nova religião
universal?
Krishnamurti: Se com religião você quer dizer novos dog-
mas, credos, outra prisão para segurar o homem e criar mais me-
do nele, então certamente não sou. Quando você perde o sentido
de divindade, o sentido de beleza, aí você se torna religioso ou se
junta a uma seita religiosa. Eu desejo despertar essa inteligência
que, só ela, pode ajudar o homem a se realizar, viver felizmente,
sem sofrimento; mas depende de vocês se haverá mais seguidores
e, portanto, destruidores, ou se haverá amor e unidade humana.
Krishnamurti no Uruguai e Argentina

[...] NA BUSCA DESSA SEGURANÇA está implícito haver


conflito entre o que chamamos o indivíduo e o grupo, os exageros
do indivíduo contra o grupo, levando a atrito constante, luta e
sofrimento. Você pode ver que esta busca por segurança física se
expressa em posses, com todas as suas crueldades, explorações, e
as terríveis coisas estúpidas como nacionalismo, luta de classes,
ódio racial. Também, emocionalmente, o amor se tornou posses-
sividade. Ele perdeu seu êxtase criativo. Ele é uma série de confli-
tos possessivos. Sua ternura, sua grande profundidade, sua quali-
dade eterna, seu profundo êxtase são destruídos por este desejo
de posse.

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[...] EXISTE TAL COISA como desejo verdadeiro? O desejo
essencial e o desejo não essencial? Um dia você quer um chapéu,
no outro dia um carro, e assim por diante, satisfazendo seus an-
seios. Contudo, no outro dia você quer alcançar a mais elevada
verdade ou Deus. Você passa por toda uma série de desejos. O
que é o essencial em tudo isto? Coisas são essenciais; amor é es-
sencial; a compreensão da verdade é essencial. Então por que
separar o desejo em falso e verdadeiro, importante e não impor-
tante? Você não pode olhar para ele diferentemente, encontrar o
desejo inteligentemente? Suas mentes estão tão mutiladas com
valores contraditórios que vocês não podem discernir verdadei-
ramente.
Fico me perguntando se estou explicando isto. Suponha
que você é possessivo. Não diga para si mesmo “Bem, eu ouvi esta
tarde que não devo ser possessivo, então vou me livrar desse de-
sejo”. Não desenvolva uma resistência contraditória. Se você é
possessivo, esteja completa e integralmente consciente disto;
então você verá o que acontece. A mente deve se libertar deste
desejo contraditório, o desejo comparativo que é realmente uma
reação de autoproteção contra o sofrimento; então você irá dis-
cernir toda a significação da avidez. Você só pode compreender a
avidez, ou qualquer outro problema, em seu isolamento, não o
trazendo para comparação, para oposição. Quando não existe
desejo contraditório ou oposto, só então há o discernimento do
verdadeiro significado do desejo. A contínua contradição no dese-
jo cria medo, e onde há medo deve haver fuga. E daí resulta uma
incessante batalha entre desejo, razão, o impulso de realização, e
seus opostos. Nessa batalha, inteligência, realização verdadeira,
está completamente perdida. Enquanto a mente estiver presa no
conflito dos opostos, só pode haver uma fuga, uma substituição
como o essencial e o não essencial, o falso e o verdadeiro. Nisso
não há felicidade criativa.
Palestras em Nova Iorque


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[...] PERGUNTA: Qual a vossa atitude em face do proble-
ma do sexo, que desempenha papel tão preponderante em nossa
vida diária?
Krishnamurti: Isso só se tornou um problema pelo fato de
não haver amor. Não é assim? Quando realmente se ama, não
existe problema, há um ajustamento, um entendimento. Só quan-
do perdemos o senso do verdadeiro afeto, desse profundo amor
no qual não há sentimento de posse, é que o problema do sexo
surge; é só quando, por completo, nos entregamos à mera sensa-
ção, que os múltiplos problemas relativos ao sexo vêm à existên-
cia. Como a maioria das pessoas já perdeu a alegria do pensar
criador, voltam-se, naturalmente, para a mera sensação decorren-
te do sexo, que se torna então um problema que lhes devora a
mente e o coração. Enquanto não principiardes por investigar e
compreender o significado do ambiente, dos múltiplos valores
que haveis criado ao redor de vós para a proteção individual, e
que esmagam o pensar fundamental, criador, naturalmente tereis
que recorrer a muitas formas de estímulo. Daí surgem inúmeros
problemas para os quais não há outra solução que não seja a fun-
damental e inteligente compreensão da própria vida.
Por favor, fazei experiências com o que estou dizendo.
Principiai por descobrir o verdadeiro significado da religião, do
hábito, da tradição, de toda essa questão de moral que, continu-
amente, vos está forçando, orientando-vos em determinada dire-
ção; principiai perquirindo seu inteiro significado, sem preconcei-
tos. E, então, começareis a despertar esse pensamento criador
que vem a ser o dissolvente dos múltiplos problemas nascidos da
ignorância.
[...] A MORAL, a disciplina que agora possuís, baseia-se na
busca individual da salvação própria, da segurança, pela explora-
ção religiosa e econômica. Talvez faleis de amor e fraternidade
aos domingos, porém às segundas-feiras explorais os outros ao
exercerdes as vossas várias ocupações. Portanto, religião, moral,
disciplina são coisas que apenas atuam como capas da hipocrisia.

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Semelhante moral, do meu ponto de vista, é imoral. Do mesmo
modo por que, violentamente, buscais a segurança econômica, da
qual nasce uma adequada moral a esse propósito, assim também
criastes religiões por todo o mundo, as quais vos prometem a
imortalidade mediante as suas peculiares disciplinas e sistemas
acanhados de moral. Enquanto esta moral estreita existir, haverá
guerras, haverá exploração, não haverá o real amor humano. Esta
moral e esta disciplina acham-se realmente baseadas no egoísmo
e na violenta busca da segurança individual. Quando a mente se
liberta deste centro de consciência limitada, que se baseia no
engrandecimento próprio, vem então o delicado e esquisito ajus-
tamento à vida, que não exige regras nem regulamentos, porém
que é consumadamente inteligente, a si próprio expressando,
integralmente, em ações de verdadeiro discernimento.
[...] O HOMEM que está profundamente enamorado não
busca amor ou felicidade. O homem, porém, que não está enamo-
rado, que não é feliz, que está sofrendo, busca o oposto daquilo
que o prende. Achando-vos presos da desgraça, em grande vacui-
dade, em desespero, começais a procurar um meio de sair deste
estado, uma escapula. A esta fuga chama-se a busca da realidade,
a verdade, ou qualquer outro nome que vos agrade dar-lhe. As-
sim, a maioria das pessoas que dizem buscar a felicidade estão,
realmente, tentando evadir-se, fugir ao conflito, à desgraça, à
vacuidade em que se acham presos. Faltando-nos a certeza do
amor, do pensamento - pois amor e pensamento estão constan-
temente buscando certezas nas quais possam ancorar - toda a
nossa busca se dirige para as certezas e satisfações. Essas coisas
são chamadas realidades, felicidade e pesquisas da imortalidade.
Vós quereis assegurar-vos de que existe algo perdurável, algo
mais do que esta confusão e miséria.
[...] AGORA, estamos preocupados com o viver, e o viver
implica não somente pão, abrigo, roupas e trabalho, como tam-
bém amor e pensamento. Não nos é possível compreender ple-
namente o significado de viver, se considerarmos isoladamente o
problema do trabalho, do amor ou do pensamento. Como esses

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problemas são interdependentes e absolutamente inseparáveis,
devem ser tomados e compreendidos como um todo. Só os bem
instalados na vida seguem um padrão ou sistema tradicional e se
esforçam para separar o viver do trabalho, esperando vencer o
conflito que surge desta divisão, considerando-o por modo exclu-
sivo.
Há muitas pessoas, pretensamente espirituais, que consi-
deram o trabalho uma ocupação algo materialista, apenas tolerá-
vel. Preocupam-se somente com a Verdade e Deus. Há outras,
ainda, que apenas se preocupam em reorganizar a sociedade, no
sentido do bem-estar do conjunto. Se quisermos compreender a
ação, que é vida, temos que tomá-la como um todo, não a divi-
dindo por maneira exclusivista, como o faz a maioria das pessoas.
Viver é a ação harmoniosa do pensamento, da emoção e do traba-
lho; e, quando estas coisas estão em contradição umas com as
outras, é então que sobrevém o sofrimento, o conflito e a desar-
monia. Tentamos viver harmoniosamente - não é verdade? - viver
integralmente, em nossas ações, buscando completa satisfação.
Para que tal aconteça, porém, é indispensável a mais completa
inteligência, isenta de temor, de exploração e do desejo de re-
compensa. Daí nasce a liberdade renovadora da ação. Fundamen-
talmente, cada indivíduo tenta esforçar-se por viver nessa ação,
porém, ao desvendar o harmonioso movimento da vida, frequen-
temente o transviam certos assuntos destituídos de importância,
tais como o sistema a que deve seguir, se os Mestres são uma
realidade, se a Verdade existe, ou se existe Deus. Por que razão
não vivemos essa ação inteligente, harmoniosa? Se a tanto pu-
dermos chegar, a vida tornar-se-á então simples, natural, criadora
e repleta de supremos propósitos. Sendo assim, porque é que nós,
que buscamos esse viver harmonioso - pelo menos é o que muitos
constantemente afirmam - não o realizamos? Um dos principais
motivos é tomarmos os múltiplos problemas da vida, consideran-
do-os isolada e exclusivamente, como já procurei explicar. Desta
divisão surge o pensar errôneo que cria a exploração no trabalho,
e múltiplas complicações e confusões em torno do amor. Os so-

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frimentos daí decorrentes só podem resolver-se e compreender-
se pelo pensamento reto.
Agora, para chegarmos à compreensão do que é o pen-
samento reto, procuremos, em primeiro lugar, descobrir o que há
de falso em nosso próprio raciocínio; se chegarmos a averiguar o
que é falso em nosso pensamento, então conheceremos, sem
coação, naturalmente, o que é reto. Através da massa das ideias
falsas, através da cortina das ilusões múltiplas, não pode dar-se a
percepção do que é reto. Portanto, devemos nos esforçar por
descobrir o que é falso. Ora, o nosso pensamento baseia-se no
hábito, hábito secular, ao qual se acostumou. Quer se trate de um
padrão ou de um sistema, molda-se de conformidade com um
ideal que estabeleceu, com o intuito de se evadir do conflito do
presente. Esforcei-me para explicar isto na minha ultima palestra.
Enquanto o pensamento estiver seguindo um sistema, um hábito,
ou meramente conformando-se com uma tradição estabelecida,
com um ideal, será pensamento falso. Seguis um sistema ou vos
amoldais à conformidade de um padrão porque tendes medo do
bem e do mal, estabelecido de acordo com a tradição, oriunda de
um sistema. Se o pensamento meramente funcionar dentro do
sulco de um padrão, sem compreensão do significado do ambien-
te, tem que haver temor, seja ele consciente ou inconsciente, e tal
pensamento inevitavelmente conduzirá à confusão, à ilusão e à
ação falsa. O modo de pensar tradicional, relativamente ao traba-
lho, visa à segurança econômica individual, à garantia e ao confor-
to. Desenvolvemos, por esse modo, no mundo inteiro, um sistema
em virtude do qual a exploração se tornou coisa justa e em que se
honra o espírito de aquisição. Daí surge, naturalmente, o conflito
de classes, o nacionalismo e as guerras bárbaras. O próprio alicer-
ce do nosso amor é o espírito de posse, do qual surgem os ciúmes,
os complexos e os problemas de sexo. Ora, tentar resolver qual-
quer destes problemas de modo exclusivo, e não como parte de
um todo, é criar e perpetuar o conflito e o sofrimento, de que
surgem a ilusão e o pensamento errôneo. Enquanto o pensamen-
to buscar e seguir um modelo, amoldando-se ao ambiente que ele

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não compreendeu, agindo meramente pelo hábito, tem que haver
conflito e desarmonia.
Portanto, a primeira coisa a fazer, se quiserdes realmente
compreender a beleza do viver, a sua riqueza, é estardes aperce-
bidos desse ambiente, quer do passado quer do presente, ao qual
a mente se apegou; e, ao compreender as ilusões que criou para
sua própria proteção, brotará naturalmente, sem que a mente
necessite buscá-la, essa ação espontânea, inteligente, que é a
mais alta consumação da vida. Tudo isto se aplica àqueles que
desejam compreender e viver supremamente, não aos que ape-
nas buscam o conforto nem aos que se acham satisfeitos com
explicações; as explicações nada mais são que poeira nos olhos.
Portanto, se assim almejais viver, necessitais de purificar a mente
por meio da dúvida, e isso significa a compreensão profunda das
tradições, dos ideais, o dissipar das múltiplas ilusões criadas pela
mente na busca da autoproteção.
Assim, quando houver verdadeiro discernimento, dar-se-á
o êxtase do imensurável, o qual não pode ser imaginado nem
preconcebido, porém experimentado e não expresso por palavras.
[...] PERGUNTA: Têm os ensinamentos atribuídos a Gran-
des Mestres - Cristo, Buda, Hermes e outros mais - valor para o
atingimento do direto caminho para a Verdade?
Krishnamurti: Se me não entendêsseis mal eu diria que os
ensinos dados perdem o seu valor, por ser a mente humana tão
cheia de sutilezas, tão ardilosa em seus desejos de autoproteção,
que torce esses ensinos para adaptá-los aos seus propósitos pes-
soais, criando sistemas e ideais que são meios de escapula, dos
quais surgem igrejas petrificadas e sacerdotes exploradores. To-
das as religiões do mundo, despojadas das trapaças de suas explo-
rações organizadas, fundamentalmente ensinam o homem a
amar, a pensar e a viver salutar e inteligentemente.
Como poderia haver um sistema que vos ensinasse a amar
e a pensar desinteressadamente? Como não desejais fazer isto,

19
como não quereis viver completa, integralmente, com a mente e o
coração vulneráveis, haveis criado um sistema que se tornou vos-
so mestre, um sistema que é contrário e destruidor do pensamen-
to e do amor. Portanto, é completamente inútil multiplicar os
sistemas. Se a mente se libertar da ilusão de suas exigências e
desejos de autoproteção, então haverá amor, inteligência, então
não mais existirá esta divisão de religiões e crenças, o homem não
mais se levantará contra o homem.
[...] SE PUDERMOS compreender a vida e vivê-la, suprema
e inteligentemente, com amor, no presente, aqui neste mundo,
então a religião tornar-se-á completamente vã e inútil. É por não
podermos fazer isto - pelo menos nos tem sido dito, constante-
mente, pelos exploradores, que o não podemos - que necessita-
mos de um sistema para seguir; isto é, eles, sem ajudarem o ho-
mem a libertar-se das limitações de um sistema, estimulam-no e
mantêm-no, por meio do medo, prisioneiro da autoridade que o
guiara através dos vários conflitos e perplexidades da vida.
Palestras no Brasil

[...] Não se pode viver sem se estar em relações com pes-


soas, com o ambiente, com a tradição, com o fundo do passado.
Ser, é viver em relação. Podeis tornar as relações vitais, fortes,
expressivas, harmoniosas, ou transformá-las em conflito e sofri-
mento. É o sofrimento que vos força a vos retirardes das relações,
e como não podeis existir sem estardes em relação com alguma
coisa, começais a cultivar o desapego, uma reação autoprotetora
contra a tristeza. Se amardes, estareis em verdadeira relação com
o ambiente, porém, se o amor se transforma em ódio, em ciúme,
e produz conflito, então as relações tornam-se pesadas e penosas
e começais o processo artificial de vos desapegardes daquilo que
vos causa dor. Podeis criar intelectualmente uma barreira auto-
protetora de desapego e viver nessa prisão autocriada que lenta-
20
mente destrói a plenitude da mente-coração. Viver é estar em
relação. Não pode haver ralação vital e harmoniosa se houver
quaisquer desejos e reações autoprotetores que produzam triste-
za e conflito.
[...] PARA AMAR o próximo, supondes que deveis perten-
cer a qualquer nacionalidade; para amar a realidade, pensais ser
necessário pertencer a alguma, religião organizada. Como não
temos capacidade para discernir a verdade por entre as muitas
ilusões que saturam a nossa mente, enganamo-nos a nós mesmos
pensando que o falso, bem como o verdadeiro, que o ódio, assim
como o amor, são partes essenciais da vida. Onde há amor não
pode existir ódio. Para compreenderdes a realidade não necessi-
tais de passar por todas as experiências da ilusão.
[...] PERGUNTA: Como poderemos resolver o problema do
sexo?
Krishnamurti: Onde há amor não existe problema do se-
xo. Isso só se torna um problema quando o amor é substituído
pela sensação. Portanto, a questão realmente é: como controlar a
sensação. Se existisse a chama vital do amor, o problema do sexo
cessaria. Atualmente o sexo tornou-se um problema devido á
sensação, ao hábito e ao estimulo, pelos muitos absurdos da mo-
derna civilização. A literatura, os cinemas, os anúncios, a palestra,
o vestuário — tudo isso estimula a sensação e intensifica o confli-
to, o problema do sexo não pode ser resolvido separadamente,
sozinho. É fútil procurar compreende-lo pela moral cientifica ou
do procedimento. Às restrições artificiais podem ser necessárias
mas só podem produzir uma vida árida e superficial.
Todos nós possuímos a capacidade para um amor profun-
do e abrangente, porém, pelo conflito e pelas falsas relações, pela
sensação e pelo habito destruímos sua beleza. Pelo espírito de
posse com suas múltiplas crueldades, por toda essa fealdade da
exploração reciproca, extinguimos lentamente a chama do amor.
Não podemos manter a chama artificialmente acesa, mas pode-
mos despertar a inteligência, o amor, pelo constante discernimen-

21
to das múltiplas ilusões e limitações que presentemente dominam
a nossa mente-coração, todo o nosso ser. Portanto, o que temos
de compreender é: não que espede de restrições, cientificas ou
religiosas, deveriam ser impostas às carências e sensações, mas
sim como produzir profundo e perdurável preenchimento. Somos
frustrados por todos os lados; o temor domina a nossa vida moral
e espiritual, forçando-nos a imitar, a nos conformarmos a falsos
valores e ilusões. Não ha expressão criadora de todo o nosso ser,
seja no trabalho, seja no pensamento. Assim, a sensação torna-se
monstruosamente importante e os seus problemas tornam-se
avassaladores. A sensação é artificial, superficial e se não pene-
trarmos profundamente na carência e não compreendermos seu
processo, nossa vida será superficial e completamente vã e mise-
rável. A mera satisfação da carência ou a mudança contínua na
carência destroem a inteligência, o amor. Só o amor pode libertar-
vos dos problemas do sexo.
[...] O PROCESSO do “eu” é auto-mantenedor pelas suas
próprias atividades volitivas de ignorância e carência. Enquanto o
processo do “eu” continuar tem que haver conflito, temor, e dua-
lidade na ação. Pondo termo às atividades volitivas, há a felicida-
de, o amor do verdadeiro. Quando sofreis, não considerais a causa
de todo o processo do sofrimento, mas apenas desejais escapar
para uma ilusão a que chamais felicidade, realidade, Deus. Se toda
a ilusão é percebida e há profundo discernimento da causa do
sofrimento, que desperta o reto esforço, então há o imensurável,
o incognoscível.
[...] NÃO PENSO que necessiteis esperar pelo incitamento
do sofrimento para mudardes radicalmente. Vós estais sofrendo
agora. Podeis estar inconscientes do conflito e da tristeza, mas
estais sofrendo. O que produz mudança superficial é o pensamen-
to que busca remédios superficiais, escapulas e segurança. A pro-
funda mudança de vontade só pode produzir-se quando há pro-
funda compreensão do processo do “eu”. Somente nisto existe a
plenitude de inteligência e amor.

22
[...] A GUERRA é o problema da humanidade. Como ha-
vemos de acabar com as barbaridades individuais e em massa?
Para despertar a ação em massa contra os horrores, cru-
eldades e absurdos da presente civilização, tem que haver com-
preensão individual.
Começai por vós mesmos. Desarraigai os preconceitos e
carências horrivelmente cruéis e conhecereis um mundo feliz.
Desarraigai as vossas ambições pessoas e sutis explorações, o
espirito de aquisição e a ânsia do poder. Então tereis um mundo
inteligente e ordenado. Enquanto houver crueldade e violência no
individuo, enquanto houver ódio coletivo, o patriotismo e a luta
têm de continuar.
Ao realizardes a vossa responsabilidade individual na
ação, haverá a possibilidade da paz e do amor e das relações har-
moniosas com o vosso próximo. Então haverá a possibilidade de
finalizar o horror da luta, o horror do homem matando o homem.
Palestras em Ommen, Holanda

[...] ONDE HÁ AMOR, não há a consciência das relações


mútuas. É só em um estado de resistência que pode haver esta
consciência, que é apenas um ajustamento entre conflitos em
oposição. [...] Quando defrontamos este problema profundamen-
te, há um novo despertar, um estado que pode ser chamado
amor.
[...] A VONTADE de satisfação fraciona a mente em muitas
partes, cada uma em conflito com a outra, e esta vontade não
pode ser destruída por outra superior, que é apenas nova forma
da vontade de satisfação. Este círculo de ignorância rompe-se, por
assim dizer, como que vindo do interior, somente quando a mente
cessa de ser aquisitiva.

23
A vontade de satisfação destrói o amor.
[...] NA CHAMA do amor, todo o medo é consumido.
[...] É AMOR isso, que sofre quando é frustrado, e quando
há amargor, quando há vacuidade? O que fere é ver exposta a
pequenez do nosso amor.
[...] O AMOR não é uma relação mútua, nem um ajusta-
mento; é de uma qualidade inteiramente diferente.
Poderá esta luta nas relações mútuas cessar um dia? Não
podemos, através da mera experiência, produzi-las sem luta. A
experiência é uma reação a um condicionamento prévio, que, nas
relações mútuas, produz conflito. O simples domínio do ambiente
com os seus valores sociais, os seus hábitos e pensamentos, não
pode produzir relações mútuas que estejam isentas de luta.
Há conflito entre as influências condicionantes do desejo e
a corrente rápida, vivente, das relações mútuas. Não são, como a
maioria das pessoas pensa, as relações mútuas que limitam, mas o
desejo é que condiciona. É o desejo, consciente ou inconsciente,
que está sempre causando atrito nas relações mútuas.
O desejo surge da ignorância. Ele não pode existir inde-
pendentemente; precisa alimentar-se do condicionamento prévio,
que é ignorância.
A ignorância pode ser dissipada. É possível. A ignorância
consiste de muitas formas de medo, de crença, de querer e de
apego. Estas criam o conflito nas relações mútuas.
Quando estivermos integralmente apercebidos do proces-
so da ignorância, voluntária, espontaneamente, há o começo des-
sa inteligência que defronta todas as influências condicionantes.
Estamos interessados no despertar dessa inteligência, desse amor,
o único que pode libertar da luta a mente e o coração.
O despertar dessa inteligência, desse amor, não é o resul-
tado de uma moralidade disciplinada, sistematizada, nem um

24
resultado que se possa buscar, mas é um processo de apercebi-
mento constante.
[...] É A AÇÃO apenas hábito? Se a ação é o resultado de
simples hábito mecânico, deve conduzir à confusão e à tristeza.
Do mesmo modo, se as relações mútuas são apenas con-
tato entre dois hábitos individualizados, então, toda a relação de
tal espécie é sofrimento. Mas infelizmente, reduzimos todo conta-
to com outrem a um modo tedioso e fatigante, pela incapacidade
de ajustamento, pele medo, pela falta de amor.
[...] PODERÃO EXISTIR verdadeiras relações mútuas quan-
do a mente apenas segue um padrão? Quando se está apercebido
desse estado a que se chama amor, há relações mútuas dinâmicas
que não proveem de um padrão, que estão além de todas as defi-
nições e cálculos mentais. Mas através da influência condicionan-
te do temor e do desejo, tais relações mútuas são reduzidas à
mera satisfação, ao hábito, à rotina. Tal estado não constitui as
verdadeiras relações mútuas, mas uma espécie de morte e deca-
dência. Como poderá haver verdadeiras relações mútuas entre
dois padrões individualizados, embora haja resposta mecânica de
cada um?
[...] QUANDO O RACIOCÍNIO não tiver mais a capacidade
de proteger-vos com explicações, fugas, conclusões lógicas, então,
quando houver completa vulnerabilidade, desnudamento absolu-
to de todo o vosso ser, haverá a chama do amor.
Somente a verdade libertará cada um da tristeza e da con-
fusão da ignorância.
[...] PODEIS conhecer-vos somente quando amardes com-
pletamente. Isto, novamente, constitui todo o processo da vida,
não para ser colhido em alguns momentos, de algumas palavras
minhas. Não podeis ser vós mesmo quando o amor é dependente.
Não há amor quando há apenas a auto-satisfação, ainda que seja
mútua. Não há amor quando há restrição; não há amor quando
apenas se trata de um meio para atingir a um fim; quando há

25
apenas sensação. Não podeis ser vós mesmo quando o amor está
sob o jugo do medo; há então medo, não amor, que se está ex-
pressando por vários modos, embora possais disfarçá-lo, chaman-
do-o amor. O medo não vos permite ser vós mesmo. O intelecto
apenas guia o medo, controla-o, porém jamais pode destruí-lo,
porque o intelecto é a própria causa do medo.
[...] NÃO É O NACIONALISMO, realmente, um falso amor
do homem? Aquele que é nacionalista de coração nunca poderá
ser um ser humano completo. Para o nacionalista, o internaciona-
lismo é uma mentira. Muitos insistem que se pode ser nacionalis-
ta e ao mesmo tempo não pertencer a nenhuma nação; isto é
uma impossibilidade e apenas uma astúcia da mente.
Apegar-se a uma determinada parte da terra, impede o
amor pelo todo. Tendo criado o falso e artificial problema do na-
cionalismo, procuramos resolvê-lo com argumentos astutos e
complexos em favor da sua necessidade e manutenção por meio
de armamentos, ódio e divisão. Todas estas respostas têm de ser
inteiramente insensatas e falsas, pois o problema em si mesmo é
uma ilusão e uma perversão. Compreendamos esta questão do
nacionalismo, e a este respeito, pelo menos, permaneçamos sãos
em um mundo de arregimentação e insânia brutais.
Não é o amor organizado do próprio país, com seus ódios
e afeições arregimentados, cultivados e impostos através da pro-
paganda, dos condutores, meramente um interesse rendoso? Não
existe esse pseudo-amor pela pátria porque alimenta o egoísmo
individual por caminhos tortuosos? Toda compulsão e gratificação
devem inevitavelmente criar hábitos mecânicos que constante-
mente entram em conflito com a integridade e as afeições indivi-
duais. Preconceito, ódio, temor, têm de criar divisão, que inevita-
velmente produz a guerra; não apenas a guerra no íntimo do pró-
prio indivíduo, mas também entre os povos.
[...] PODE A PAZ ser conseguida através de etapas lentas?
O amor não é uma questão de educação ou de tempo.

26
[...] SE PENSAIS que estais procurando a verdade, ou cri-
ando no mundo relações humanas verdadeiras, o nacionalismo
não é o meio; nem pode esta relação humana de afeição, de ami-
zade, ser estabelecida por meio de canhões. Se amais profunda-
mente, não há o um nem os muitos. Há apenas esse estado de ser
que é amor, em que pode existir o único, mas não é a exclusão
dos muitos. Mas se vos dizeis que pelo amor de um haverá o amor
dos muitos, então não estais em absoluto considerando o amor,
porém apenas o resultado do amor, o que é uma forma do medo.
[...] INTERROGANTE: Não será possível formar-se um há-
bito de amor, sem perder a espontaneidade?
Krishnamurti: O hábito provém da mente, da vontade, cu-
ja ação é apenas a de dominar o medo sem destruí-lo. As emoções
são criativas, vitais, novas, e portanto, não podem ser transfor-
madas em hábitos, por mais que a vontade tente dominá-las e
controlá-las.
É a mente, a vontade, com os seus apegos, desejos, temo-
res, que cria o conflito entre si e a emoção. O amor não é a causa
da miséria; são os temores, os desejos, os hábitos da mente que
criam a dor, a agonia do ciúme, a desilusão. Tendo criado o confli-
to e o sofrimento, a mente, com a sua vontade de satisfação, en-
contra razões, desculpas, fugas, que são chamadas por vários no-
mes — desapego, amor impessoal, e assim por diante. Devemos
compreender todo o processo do mecanismo formador de hábi-
tos, e não indagar qual seja a disciplina, o padrão ou o ideal me-
lhor. Se a disciplina é coordenação, então não pode ser realizada
pela compulsão, por meio de qualquer sistema. O indivíduo deve
compreender a sua própria profunda complexidade e não apenas
procurar um padrão para preenchimento.
Não pratiqueis disciplinas, nem sigais padrões ou meros
ideais, mas estai apercebido do processo da formação dos hábi-
tos. Tende consciência dos velhos sulcos por onde a mente tem
corrido, e também do desejo de formar outros novos. Experimen-
tai isto seriamente; talvez possa haver maior confusão e sofrimen-

27
to, porque a disciplina, as leis morais, têm apenas atuado no sen-
tido de conter os desejos e propósitos ocultos. Quando estiverdes
integralmente apercebido, com todo o vosso ser, desta confusão e
sofrimento, sem qualquer esperança de fuga, então surgirá es-
pontaneamente o que é real. Porém deveis amar, ficar entusias-
mado pela própria confusão e sofrimento. Tendes de amar com o
vosso próprio coração, não com o de outrem.
Se principiardes a experimentar convosco mesmo, vereis
ocorrer uma curiosa transformação. No momento da maior confu-
são há claridade; no momento do maior medo há amor. Tendes
de chegar a isto espontaneamente, sem o esforço da vontade.
Sugiro seriamente que experimenteis com o que venho di-
zendo e então começareis a ver o modo pelo qual o hábito destrói
a percepção criativa. Mas isto não é coisa que possa ser desejada
ou cultivada. Não se pode tatear à procura dela.
Acampamento em Ommen, Holanda

[...] PORQUE HÁ conflito entre pessoas? Qual a razão des-


te conflito, mesmo entre aqueles que dizem amar-se uns aos ou-
tros? Ora, não são todas as relações mútuas um processo de auto-
revelação? Isto é, nesse processo de relação, estais vos revelando
a vós próprios, estais descobrindo todas as condições do vosso
ser, o feio e o agradável. Se estais apercebido, as relações são
como um espelho, refletindo mais e mais os vários estados dos
vossos pensamentos e sentimentos. Se compreendermos profun-
damente que as relações mútuas são um processo de auto-
revelação, então elas terão um significado diferente. Mas não
aceitamos as relações como processo de revelação, pois não que-
remos que nos mostrem como somos e, por isso, há conflito cons-
tante. Nas relações mútuas procuramos satisfação, prazer, confor-
to, e se houver qualquer oposição profunda a isto, procuramos

28
mudar nossas relações. Assim, as relações, em vez de serem uma
ação progressiva de constante apercebimento, tendem a tornar-
se um processo de auto-isolamento. O caminho do desejo conduz
ao auto-isolamento e à limitação.
Quando procuramos meramente satisfação nas relações
mútuas, o apercebimento crítico torna-se impossível, todavia é
somente neste apercebimento vigilante que é possível qualquer
ajustamento ou compreensão. A responsabilidade nas relações
mútuas, então, não se baseia na satisfação, mas na compreensão
e no amor. Não encontrando satisfação nas relações humanas,
muitas vezes procuramos estabelecê-las no reino das teorias,
crenças, conceitos. O amor, então, torna-se meramente uma
emoção, uma sensação, uma concepção ideal, e não a realidade
para ser compreendida nas relações humanas. Como nas relações
humanas há atrito, dor, tentamos idealizar o amor e chamá-lo
cósmico, universal, o que é apenas uma fuga à realidade. Para
amar completamente, sem temor, sem sentimento de posse, é
imprescindível um intenso apercebimento e compreensão, o que
só pode ser realizado nas relações humanas quando o pensamen-
to está liberto da ansiedade e do sentimento de posse. Somente
então pode haver o amor ao todo.
Se compreendermos, sem medo, a causa do conflito e da
tristeza em nossas relações, nasce uma qualidade de plenitude
que não é meramente expansão nem agregação de muitas virtu-
des. Esperamos amar o homem através do amor de Deus, mas se
não soubermos como amar o homem, como podemos amar a
realidade? Amar o homem é amar a realidade. Julgamos que amar
outrem é tão doloroso, tantos problemas complexos estão envol-
vidos nisto, que consideramos ser mais fácil e mais satisfatório
amarmos um ideal, o que é emocionalismo intelectual, não amor.
Dependemos da sensação para a continuidade do assim
chamado amor, e quando essa satisfação é negada, procuramos
encontrá-la em outrem. Assim, o que, na maior parte das vezes,
procuramos é a satisfação do desejo nas nossas relações huma-

29
nas. Sem compreender a ansiedade não pode haver plenitude do
amor. Também isto requer constante e intenso apercebimento.
Para compreender esta plenitude, este estado integral, precisa-
mos começar a estar apercebidos do desejo como ganância e pos-
sessividade. Então entenderemos a complexa natureza do desejo
e assim haverá não somente libertação da ganância mas também
plenitude, que ultrapassa o intelecto e suas resistências. Se for-
mos capazes de fazer isto em relação às coisas, então talvez nos
seja possível perceber uma forma muito mais complexa do que-
rer, que existe nas relações humanas. Precisamos começar não do
mais alto grau de aspiração, esperança e visão, mas pelas coisas e
pessoas com quem estamos diariamente em contato. Se formos
incapazes de compreender profundamente as coisas e pessoas,
não compreenderemos a realidade, pois a realidade está na com-
preensão do ambiente, das coisas e das pessoas. Este ambiente é
o produto de nossas relações com coisas e pessoas; se esse pro-
duto estiver baseado no desejo e sua satisfação, como está agora,
escapar dele e procurar a realidade é criar outras formas de satis-
fação e ilusão. A realidade não é produto da ansiedade; aquilo que
é criado pela ânsia é transitório; aquilo que é eterno pode ser
compreendido somente através do perdurável.
[...] INTERROGANTE: Para se estar completamente aper-
cebido, para ser flexível, precisa haver sempre um grande senti-
mento de amor. Então o que fazer, se não é possível, pelo esforço,
sentir amor, nem nos tornarmos completamente apercebidos?
Krishnamurti : Agora, o que é o esforço implícito na com-
preensão, por exemplo, de nossos desejos psicológicos e necessi-
dades naturais? Para compreender profundamente que toda a
dependência psicológica, seja de coisas ou pessoas, cria conflito e
tristeza, não somente social mas pessoal, para compreender as
causas complexas do conflito e o desejo de livrar-se dele, é preci-
so não somente vontade de ser livre, como também apercebimen-
to constante na nossa vida diária. Se este apercebimento é o re-
sultado do desejo de chegar a um determinado fim, então o esfor-
ço de estar apercebido produzirá somente maior resistência e

30
conflito. O apercebimento surge quando há interesse em compre-
ender, mas o interesse não pode ser criado pela simples vontade e
controle. Se derdes valor verdadeiro às coisas somente para não
haver conflito, estais vivendo num estado de ilusão, pois então
não compreendereis o processo do desejo que cria conflito e dor.
[...] CONSIDERAREMOS agora o problema das relações en-
tre indivíduos. Se entendermos a causa do atrito entre indivíduos
e, portanto, com a sociedade, essa compreensão auxiliará a pro-
duzir a libertação da possessividade. As relações mútuas estão
agora baseadas na dependência, isto é, um depende do outro
para sua satisfação psicológica, felicidade e bem estar. Geralmen-
te não compreendemos isto, mas se o conseguirmos, pretende-
remos não ser dependentes de outrem, ou tentaremos nos de-
sembaraçar artificialmente da dependência. Aqui, novamente,
abordemos este problema experimentalmente.
Ora, para a maioria de nós, as relações com outrem estão
baseadas na dependência econômica ou psicológica. Esta depen-
dência cria temor, gera em nós possessividade, dá lugar a atrito,
suspeita, frustração. A dependência econômica de outrem pode
talvez ser eliminada pela legislação e organização adequada, mas
refiro-me especialmente àquela dependência psicológica de ou-
trem, que é a manifestação da ânsia pela satisfação pessoal, feli-
cidade e etc. Nestas relações mútuas sentimo-nos possessivos,
enriquecidos, criativos e ativos; sentimos que a flamulazinha do
nosso próprio ser é aumentada por outra e, assim, afim de não
perder esta fonte de plenitude, tememos a perda de outrem e por
este motivo surgem temores possessivos com todos os seus pro-
blemas resultantes. Deste modo, nas relações mútuas de depen-
dência psicológica, deve sempre haver temor consciente ou in-
consciente, suspeita, frequentemente ocultos sob a capa de pala-
vras que soam agradavelmente. A reação desse temor conduz
sempre à procura, por vários meios, da segurança e do enriqueci-
mento, ou para nos isolarmos em ideias e ideais, ou para procu-
rarmos substitutos à nossa satisfação.

31
Se bem que sejamos dependentes de outrem, há ainda o
desejo de ser inviolável, de ser completo. O problema complexo
nas relações mútuas é: como amar sem dependência, sem atrito e
sem conflito; como dominar o desejo de nos isolarmos, de fugir da
causa do conflito. Se dependermos de outrem para nossa felicida-
de, da sociedade ou do ambiente, estes se tornam essenciais para
nós; apegamo-nos a eles e nos opomos violentamente a qualquer
alteração, porque deles dependemos para nossa segurança psico-
lógica e conforto. Posto que possamos perceber, intelectualmen-
te, que a vida é um contínuo processo de fluxo, de mutação, ne-
cessitando de mudança constante, apegamo-nos ainda, emocional
ou sentimentalmente, a valores estabelecidos e reconfortantes;
assim há um constante combate entre a mudança e o desejo de
permanência. É possível pôr um fim a este conflito?
Não pode haver vida sem relações mútuas, mas nós as
tornamos tão cruéis e hediondas por baseá-las no amor pessoal e
possessivo. Podemos amar e, ainda assim, não possuir? Encontra-
reis a verdadeira resposta, não na fuga, nos ideais e nas crenças,
mas na compreensão das causas da dependência e da possessivi-
dade. Se pudermos compreender profundamente este problema
das relações entre nós e outrem, então talvez compreendamos e
resolvamos os problemas de nossas relações com a sociedade,
pois que a sociedade é somente uma extensão de nós mesmos. O
ambiente a que chamamos sociedade é criado pelas gerações
passadas; aceitamo-lo, porque nos ajuda a manter nossa ganân-
cia, possessividade, ilusão. Nesta ilusão não pode haver unidade
ou paz. Mera união econômica, realizada por compulsão e legisla-
ção, não pode impedir a guerra. Enquanto não compreendermos
as relações individuais, não poderemos ter uma sociedade pacífi-
ca. Desde que as relações mútuas se baseiam no amor possessivo,
precisamos nos tornar apercebidos, em nosso íntimo, de seu nas-
cimento, suas causas, sua ação. Ao ficarmos profundamente aper-
cebidos do processo da possessividade, com sua violência, temo-
res, reações, vem um entendimento que é integral, completo.
Somente esta compreensão libertará o pensamento da depen-

32
dência e possessividade. É no íntimo do nosso ser que a harmonia
nas relações mútuas pode ser encontrada, não em outrem, nem
no ambiente.
Nas relações mútuas, a causa primária do atrito está em
nós próprios, no eu que é o centro da ansiedade unificada. Se,
porém, pudermos compreender que o mais importante não é
como outrem age, mas como cada um de nós age e reage, e se
essa reação e ação podem ser fundamental e profundamente
compreendidas, então as relações mútuas sofrerão uma mudança
profunda e radical. Nestas relações mútuas com outrem, há não
somente o problema físico mas também o do pensamento e sen-
timento em todos os níveis, e podemos estar em perfeita harmo-
nia com outrem somente quando estamos integralmente em
harmonia conosco mesmos. Nas relações mútuas o que tem im-
portância para termos em mente não é outrem, mas nós mesmos,
o que não significa que precisamos nos isolar, mas que devemos
compreender profundamente, em nós mesmos, a causa do confli-
to e da tristeza. Enquanto dependermos de outrem para nosso
bem estar psicológico, intelectual ou emocionalmente, esta de-
pendência deve, inevitavelmente, criar temor, do qual provém a
tristeza.
Para compreendermos a complexidade das relações mú-
tuas é preciso haver paciência refletida e zelo. As relações mútuas
são um processo de auto-revelação no qual descobrimos as cau-
sas ocultas da tristeza. Esta auto-revelação é somente possível nas
relações mútuas.
Estou insistindo sobre as relações mútuas porque, ao en-
tendermos profundamente sua complexidade, estamos criando
compreensão, a qual transcende a razão e a emoção. Se basear-
mos nossa compreensão meramente na razão, então nela haverá
isolamento, orgulho, ausência de amor, e se a alicerçarmos ape-
nas na emoção, então nela não haverá profundeza, haverá so-
mente uma sentimentalidade que logo se evaporará, e não amor.
Somente nesta compreensão pode existir plenitude de ação. Esta

33
compreensão é impessoal e não pode ser destruída. Não está
mais no domínio do tempo. Se não pudermos obter a compreen-
são com os problemas diários do desejo e de nossas relações mú-
tuas, então, a busca de semelhante compreensão e amor em ou-
tros reinos da consciência, equivale a vivermos na ignorância e
ilusão.
Sem compreendermos profundamente o processo da ga-
nância, cultivar somente a bondade, a generosidade, é perpetuar
ignorância e crueldade; sem compreendermos integralmente as
relações mútuas, cultivar apenas a compaixão, perdão, é levar a
efeito o auto-isolamento e entregarmo-nos a sutis formas de or-
gulho. Compreendendo profundamente a ansiedade, há compai-
xão, perdão. Virtudes cultivadas não são virtudes. Esta compreen-
são requer apercebimento constante e vigilante, um vigor que é
flexível; o simples controle com seu treino peculiar tem seus peri-
gos, pois, por um lado é incompleto e, portanto, superficial. O
interesse traz sua própria concentração natural, espontânea, na
qual há o florescimento da compreensão. Este interesse é desper-
tado pela observação, inquirindo as ações e reações da existência
de todo dia.
Para abranger o complexo problema da vida com seus
conflitos e tristezas, precisamos realizar a compreensão integral.
Isto pode ser feito somente quando entendermos profundamente
o processo da ansiedade que é agora a força central em nossa
vida.
[...] TODAS AS VIRTUDES cultivadas não são mais virtudes.
Compreensão e amor são de primacial importância, e as virtudes
são de importância secundária. Dever, coragem, caridade, como
virtudes, são iguais aos seus próprios opostos, e, portanto, sem
compreensão e amor, podem ser mal empregadas e tornar-se
fonte de grave perigo. Tomai, por exemplo, o dever como uma
virtude. Este pode ser e está sendo brutal e tragicamente mal
empregado. Sem compreensão e amor, as virtudes podem tornar-
se instrumentos de barbaridade e crueldade. Nós, em maioria,

34
temos sido condicionados pelas virtudes, e como elas não prove-
em de pensamento e compreensão profundos, aqueles de nós,
que estão assim limitados, são explorados por pessoas astutas e
ambiciosas. Sem compreender a natureza da ganância, a cultura
exclusiva do seu oposto não nos liberta dela. O que nos liberta da
ganância é a compreensão do processo da ansiedade e, ao fazê-lo
verificaremos que as virtudes começam a surgir naturalmente, O
que é de primária importância, portanto, é a compreensão, que é
seguida pela compaixão.
[...] POSSESSIVIDADE não pode ser amor, ela é o resultado
do medo. Medo e tristeza penetram o nosso ser, devido ao não
apercebimento do processo da ansiedade. O desejo pelo prazer e
satisfação necessita a posse de outrem, assim criando e mantendo
o medo e a tristeza. Onde há medo não pode haver compreensão,
compaixão. Enquanto não resolvermos este problema individual
das relações mútuas, não podemos solver nosso problema social,
pois a sociedade é somente a extensão do indivíduo, seus pensa-
mentos e atividades.
Assim, o desejo se expressa pela cobiça às coisas munda-
nas e pelo amor possessivo. Quando o pensamento é limitado
pela ganância, por aquele desejo possessivo a que chamamos
amor, seguramente deve haver tristeza e conflito; e, afim de es-
capar deste conflito e tristeza inventamos várias crenças e espe-
ranças que imaginamos serem perduráveis e, assim, sejam satisfa-
tórias, desapercebidos de que são ainda a criação da ânsia e, por-
tanto, transitórias.
[...] SE TIVERDES ÓDIO em vosso íntimo, respondereis ao
ódio de outrem, e como sois o mundo, fatalmente reagireis a seus
temores, ignorância e ganância. Certamente tendes de odiar, agir
vingativamente, se vosso pensamento está limitado ao próprio eu.
A ambição e o amor possessivo têm de gerar má vontade e, se o
pensamento não se livra deles, deve haver a constante ação de
ódio e violência. Como apontei, nossas crenças e esperanças são o
resultado da ansiedade, e quando a dúvida se projeta sobre elas,

35
surge a raiva e o ressentimento. Compreendendo a causa do ódio,
nasce o perdão, e a bondade. O amor e a compreensão surgem
pelo apercebimento constante.
[...] Interrogante: Não é natural amar os Mestres, sabendo
instintivamente, sem analisar, que sua resposta vivifica nosso
amor, porque somos um? Isto não é um esforço para expandir,
pois o amor é a própria vida.
Krishnamurti: Há dois tipos de gurus, mestres ou instruto-
res: aqueles com quem o aluno está diretamente em contato nes-
te plano de existência e aqueles com quem o aluno supõe estar
em contato indiretamente. O instrutor com o qual o aluno está
em contato diretamente, fisicamente, observa o aluno enquanto o
ajuda e guia. Isto é bastante exaustivo e difícil para o aluno. Ora,
os “Mestres” não estão em contato direto, físico, com o aluno,
exceto, aparentemente, com aqueles que proclamam ser seus
intermediários. Nestas relações mútuas, que têm suas próprias
recompensas e ansiedades, a mente pode enganar-se ilimitada-
mente.
Ora, o interrogante quer saber se nosso amor por um
Mestre não vivifica nosso amor? Porque procurais um Mestre
para amar, quando não sabeis como amar seres humanos? Por
que reclamais unidade com os Mestres, e não com seres huma-
nos? Amar um ideal, um Mestre, um Deus, um Estado, é mais
fácil, não é verdade? Pois eles podem ser criados como nós imagi-
namos, de acordo com as nossas esperanças, temores, ilusões. É
mais conveniente, se bem que talvez exigente, de outro modo, ter
um ideal, uma longínqua imagem para amar, pois entre ela e nós
não pode haver nenhuma reação pessoal desagradável, que causa
tanto sofrimento nas relações mútuas humanas. Tal amor não é
amor, mas uma criação intelectual chamada amor. Não estando
diretamente em contato com um Mestre precisamos depender ou
dum intermediário, ou de nossa chamada intuição. A dependência
de um intermediário destrói a compreensão e o amor e, além

36
disso, condiciona a mente; e a chamada intuição tem seus graves
perigos, pois ela pode ser somente um desejo auto-enganador.
Mas, porque desejais depender de um mediador ou de
uma intuição? Para aprender a não ser ganancioso, para não ter
má vontade, para ser compassivo? Porque precisamos olhar para
um ideal distante quando a compreensão e o amor podem ser
despertados somente através das relações mútuas humanas?
Quando amamos outrem, nossas paixões, nosso amor possessivo
e os ciúmes são despertados; encontramos tristeza e conflito nes-
tas relações mútuas, e porque não podemos resolver este mal
aqui, tentamos fugir dele.
Porque não sabemos como amar seres humanos, amamos
Mestres, ideais, Deuses. Todavia, poderíeis dizer que amar um
Mestre é também amar a humanidade, amar o mais alto é amar
também o inferior. Mas isto geralmente não acontece. Não é isto
esquisito, complicado e artificial? Se não podemos amar outrem
sem possessividade, sem constante conflito e dor, com o que es-
tamos todos tão familiarizados, se não compreendemos isto, co-
mo podemos esperar compreender e amar alguma coisa mais,
especialmente quando nesse algo há uma grande possibilidade de
auto-decepção? Onde deve começar o amor, com Deuses, Mes-
tres e ideais, ou com seres humanos? Como pode haver amor
quando nos orgulhamos dos nossos preconceitos individuais, an-
tagonismos raciais, ódios nacionais, e conflitos econômicos? Como
podemos amar outrem quando estamos interessados principal-
mente na nossa própria segurança, no nosso próprio crescimento,
com o nosso próprio bem-estar? Este chamado amor a ideais,
Mestres, Deuses, é romântico e falso; penso que não vedes a bru-
talidade disto. A adoração de Mestres, ideais, é idolatria e destrói
a compreensão e o amor.
Amar e compreender não são produtos do intelecto. O
amor não é para ser dividido artificialmente em amor de Deus e
amor do homem. O amor assim dividido, não é mais amor. Amai
completamente, inteiramente, sem pensar no eu, e, por esse

37
meio, libertai-vos verdadeiramente do temor que necessita de
várias formas de fuga e de esquecimento.
[...] ORA, ONDE há escuridão não pode haver luz, onde há
ignorância não pode haver compreensão ou amor.
[...] O CONHECIMENTO é totalmente sem valor se não se
referir à vossa vida diária. Se formos mundanos, dependendo
psicologicamente de coisas para nossa felicidade pessoal, se nosso
amor é possessivo e nosso pensamento estropiado por crenças e
temores, então a vida se torna uma tristeza crescente. No alegre e
extremo apercebimento o pensamento se liberta de suas limita-
ções; da autoconfiante e exercitada compreensão vem a paz.
[...] COMO INDIVÍDUOS, devemos dirigir nosso pensa-
mento para aquela libertação em que não há o sentimento do eu,
a libertação do eu. Esta libertação do eu só pode ser alcançada
quando compreendermos o processo da ânsia como aquisitivida-
de, amor possessivo e imortalidade pessoal. Pois o mundo é a
extensão ou projeção do indivíduo, se o indivíduo espera da auto-
ridade e legislação para produzir uma mudança drástica em si
mesmo, será aprisionado num círculo vicioso de irreflexão, do
qual não há libertação.
O pensamento, por meio de um apercebimento constante
e alerta, deve libertar-se do mundanismo e discernir entre ganân-
cia e necessidade; o pensamento precisa liberta-se do amor pos-
sessivo e amar completamente, sem temor e sem lembrar-se de si
mesmo; o pensamento deve libertar-se do desejo de imortalidade
pessoal, através da propriedade, família, raça ou da continuação
individual do eu. Enquanto a ansiedade, expressando-se por estes
três modos complexos, for o motivo da ação, a paz e a unidade
humana não podem ser realizadas. Quando o pensamento não
está condicionado pela aquisitividade, amor possessivo e pelo
desejo de continuação pessoal, há o verdadeiro desinteresse que,
só ele, pode produzir uma ordem social mais feliz e mais sensata.
Isto depende de cada um de nós, e cada um de nós tem de tornar-

38
se ativa e discernidamente apercebido das expressões do eu, e
assim libertar o pensamento de sua escravidão.
[...] A SIMPLES concentração sobre uma ideia, uma ima-
gem, uma virtude, sem o verdadeiro discernimento, conduz à
esterilidade do pensamento e à destruição do amor. O discerni-
mento vem pelo constante apercebimento do nosso pensamento,
conversa e ação diários; sem este verdadeiro elemento corretivo a
meditação se torna uma fuga, uma fonte de decepção. Sem com-
preensão e amor, qualquer amor, qualquer forma de meditação
deve conduzir à ilusão; sem o verdadeiro apercebimento, qual-
quer forma de meditação é uma fuga à realidade.
[...] O AMOR está envolto pelo medo, pela possessividade,
pelo ciúme e por tendências peculiares herdadas ou adquiridas.
Temos de nos tornar apercebidos de todas estas barreiras e só
podemos fazê-lo, mais eficaz e significativamente, nas relações
mútuas, tanto superficiais como profundas. Nas relações mútuas,
o eu geralmente forma o centro de onde a ação se irradia. Não
pode haver compaixão se o pensamento está pervertido pelo par-
tidarismo, pelo ódio, pelos preconceitos de classe, de religião, de
raça, etc.
Todas as relações mútuas tornam-se, se o permitirmos,
um processo de auto-revelação; mas, nós, em maioria, não nos
permitimos descobrir o que somos, porque isto envolve sofrimen-
to. Em toda relação mútua há o eu e o outro; o outro pode ser um
ou muitos, a sociedade, o mundo.
[...] AS RELAÇÕES MÚTUAS constituem um processo de
auto-revelação e libertação. Enquanto estivermos encerrados
dentro do círculo da limitação é vão inquirir sobre a alma, a reali-
dade, Deus, imortalidade, pois que todas estas palavras, imagens
e ideias pertencem ao mundo do ódio, da ganância, do temor e da
ansiedade. Quando nos libertarmos da sociedade, grupo, raça,
família, e de todos os condicionamentos separativos, e nos tor-
narmos um ser indivisível e integral, os problemas que agora
atormentam os cidadãos pertencentes às condições particulariza-

39
das terão perdido completamente sua significação. Enquanto o
homem pertencer a grupos particulares, classes, credos, deve
haver antagonismo, guerra e não pode haver amor.
[...] O AMOR é a única e permanente resposta para os
nossos problemas humanos. Não devemos dividir o amor artifici-
almente, em amor de Deus e amor do homem. Há somente amor,
mas o amor está cercado por várias barreiras. Compaixão, benig-
nidade, generosidade e bondade não podem existir se não houver
amor. Sem amor todas as virtudes tornam-se cruéis e destrutivas.
Ódio, inveja e má-vontade impedem a plenitude do pensamento-
emoção, e somente nesta plenitude pode haver compaixão e es-
quecimento.
As relações mútuas agem como um espelho refletindo to-
dos os estados do nosso ser, se o permitirmos; mas não consen-
timos nisso porque queremos ocultar-nos a nós mesmos; a reve-
lação é dolorosa. Nas relações mútuas, se estivermos apercebidos,
ambos os estados, o consciente e o inconsciente, são revelados.
Esta auto-revelação cessa quando nos “utilizamos” das pessoas
como necessidades, quando “dependemos” delas, quando “as
possuímos”. Na maioria das vezes, as relações mútuas são utiliza-
das para encobrir nossa pobreza interior; tentamos enriquecer
esta pobreza psicológica apegando-nos uns aos outros, adulando-
nos uns aos outros, limitando o amor uns aos outros, e assim por
diante. Há conflito nas relações mútuas, mas ao invés de compre-
endermos a sua causa e, assim, transcendê-la, procuramos esca-
par dela buscando uma satisfação em qualquer outra parte.
Usamos nossas relações com as pessoas, com a sociedade,
como usamos as coisas, para encobrir nossa superficialidade. Co-
mo vencer esta superficialidade? Vencer somente nunca é trans-
cender, pois o que é vencido apenas toma outra forma.
A pobreza do ser revela-se quando tentamos vencê-la re-
vestindo-a com possessões, com o culto do sucesso e, mesmo,
com virtudes. Assim, as coisas, a propriedade, passam a ter gran-
de significação; a classe, a posição social, o país, o orgulho de raça,

40
assumem grande importância e devem ser mantidos a todo o
custo; visto que se tornam vitais o nome, a família e a sua conti-
nuidade.
Ou então tentamos encher este vácuo com ideias, cren-
ças, credos e fantasias; pois a opinião, a boa vontade e a experi-
ência dos outros tomam poderosa importância; assim, as cerimô-
nias, os sacerdotes, mestres, salvadores tornam- se essenciais e
destroem a autoconfiança; por isso a autoridade é cultuada.
Deste modo, o temor do que somos cria ilusão, e a pobre-
za do ser continua. Mas, se nos tornarmos intensamente aperce-
bidos destes indícios em nós mesmos, tanto no consciente como
no inconsciente, então, mediante intenso discernimento, surge
um estado diferente que não tem relação com a pobreza do ser.
Dominar a superficialidade é continuar a ser superficial.
[...] SEPARATIVIDADE é uma ilusão e uma vaidade. Pensar
de mim mesmo como um ser separado, diferente em consciência,
é identificar-me com a ignorância fundamental; apegar-me aos
meus sucessos, ao meu trabalho, à minha alma, é continuar na
ilusão. O que somos? Somos o resultado de nossos pais que foram
iguais a seus pais, influenciados e limitados pelo clima e pelos
valores sociais e psicológicos baseados na ignorância, no temor é
na ansiedade. Nossos pais nos transmitiram estes valores. Somos
o resultado do passado; nossos pensamentos são as crenças, idei-
as e esperanças dos nossos antepassados, em combinação com a
ação e reação presentes. Nutrimos ilusão e tentamos achar uni-
dade, esperança, amor nela. A ilusão jamais pode criar a união
humana nem despertar aquele amor, o único que pode trazer paz.
O amor não pode ser transmitido, mas podemos experimentar sua
imensidade se pudermos libertar-nos dos nossos preconceitos,
temores, ganância e ansiedade.
[...] O TRÊMULO e flutuante pensamento é difícil de fixar-
se; o simples controle não conduz à compreensão. Só o interesse
cria domínio e ajustamento natural, espontâneo. Se o pensamen-
to estiver apercebido de si próprio, observará que vai de um inte-

41
resse superficial para outro, e que o simples fato de retirar-se de
um para tentar concentrar-se em outro não conduz à compreen-
são e ao amor. O pensamento precisa ficar apercebido das causas
de seus vários interesses, e, ao compreendê-los, surge um interes-
se concentrado e natural, que é mais inteligente e verdadeiro.
O pensamento move-se de certeza para certeza, do co-
nhecido para o conhecido, de uma substituição para outra, e, as-
sim, nunca está tranquilo, sempre prosseguindo, sempre errante;
esta versatilidade da mente destrói a compreensão criadora e o
amor, porém estes não podem ser desejados. Eles nascem quando
o pensamento se torna apercebido de seu próprio processo, de
suas ansiedades, temores, substituições, justificações e ilusões.
Pelo constante e judicioso apercebimento, o pensamento torna-
se, naturalmente, criador e tranquilo. Nesta tranquilidade há in-
comensurável bem-aventurança.
Palestras por Krishnamurti em Ojai e Sarobia

[...] PERGUNTA: É mais fácil estar livre do desejo sexual do


que das ambições sutis: porque a individualidade busca a autoex-
pressão, a cada alento. Estar livre do egotismo significa uma com-
pleta revolução do pensar. Como pode um indivíduo permanecer
neste mundo, depois dessa reviravolta mental?
Krishnamurti: Porque desejamos permanecer no mundo,
neste mundo tão atroz, ignorante e luxurioso? Temos de viver
nele, mas a existência só se torna penosa quando pertencemos a
ele. Quando somos ambiciosos, quando há inimizade, quando os
valores dos sentidos adquirem suma importância, estamos então
perdidos e o mundo nos prende. Não poderemos viver sem ga-
nância no meio de gananciosos, contentando-nos com pouco?
Não poderemos viver saudavelmente entre enfermos? O mundo
não está separado de nós, pois nós somos o mundo; nós o fizemos

42
tal como ele é. A sua mundanidade ele adquiriu por nossa causa, e
para o deixarmos, urge alijarmos a mundanidade. Só assim pode-
mos viver com o mundo, sem ser do mundo.
A isenção de desejo sexual e de ambições não tem signifi-
cação alguma sem o amor. A castidade não é produto do intelec-
to; quando a mente planeja ser casta, já não é casta. Só o amor é
casto. Sem o amor, a mera condição de estar livre da luxúria é
estéril e é a causa de lutas e sofrimentos sem fim.
[...] JÁ QUE CADA UM de nós é responsável pelo caráter
da atual civilização, se não tratarmos, individualmente, de nos
transformar, radicalmente, de que maneira poremos termo a este
mundo brutal e às suas tendências? Será responsável cada indiví-
duo por essas tragédias e desastres, por essas torturas e bestiali-
dades, enquanto sentir e pensar em termos de nações, de grupos,
ou enquanto se considerar como hinduísta ou budista, cristão ou
muçulmano. Se um “estrangeiro” é morto, na Índia, por um naci-
onalista, por esse assassínio sou também responsável, se sou na-
cionalista; mas não sou responsável, se não penso e sinto em ter-
mos de nações, de grupos ou classes, se não sou lascivo, se não
sou malevolente nem mundano. Só assim nos eximimos à respon-
sabilidade do homicídio, da tortura e da opressão.
Perdemos o sentimento de humanidade; reconhecemo-
nos responsáveis somente perante a classe ou grupo a que per-
tencemos; sentimo-nos responsáveis perante um nome, um rótu-
lo. Perdemos a compaixão, o amor ao todo, e sem essa vivificante
chama da vida, volvemo-nos para os políticos, para os sacerdotes,
para determinado plano econômico, para nos darem a paz e a
felicidade. Em nada disso há esperança. Só no interior de cada um
de nós reside a compreensão criadora, a compaixão, tão necessá-
ria para o bem-estar do homem. Os meios justos criam os fins
justos; os meios errôneos só podem trazer o vazio e a morte, não
a paz e a alegria.

43
Pergunta: Pode encontrar-se Deus numa trincheira?
Krishnamurti: Um homem que procura Deus, não está
numa trincheira. Como são falsos os rumos de nosso pensar! Cri-
amos uma situação falsa e nela esperamos achar a verdade; no
falso, queremos encontrar o real. Feliz daquele que vê no falso o
falso e no verdadeiro o verdadeiro.
Estamos pervertidos nas normas de nosso pensar-sentir.
No sofrimento, desejamos encontrar a felicidade; mas é só com o
abandono da causa do sofrimento, que existe alegria. Vós e o mili-
tar criastes uma civilização que vos obriga a assassinar e a ser
assassinado, e em meio a tanta crueldade, desejais achar o amor.
Se procurais a Deus, não estareis numa trincheira; mas, se lá esti-
verdes e O procurardes, sabereis como proceder. Justificamos o
homicídio e na própria ação de assassinar queremos achar o
amor. Criamos uma sociedade baseada, essencialmente, no valor
material, na mundanidade, cujo resultado inevitável é a trincheira.
Nós justificamos e aprovamos a trincheira e depois, na trincheira
ou no bombardeio, esperamos encontrar a Deus, encontrar o
amor. Sem modificarmos profundamente a estrutura de nosso
pensamento-sentimento, não é possível encontrar-se o Real. En-
quanto somos invejosos, ávidos e ignorantes, queremos ser pacífi-
cos, tolerantes e sábios; com uma das mãos assassinamos e que-
remos, com a outra, pacificar. É essa contradição que cumpre
compreender-se; não podeis ter simultaneamente avidez e paz, a
trincheira e Deus; não podeis justificar a ignorância e ao mesmo
tempo nutrir esperanças de esclarecimento.
A própria natureza do “ego” é estar em contradição; e
somente quando o pensamento-sentimento se liberta, a si mes-
mo, de seus próprios desejos antagônicos, é que pode haver tran-
quilidade e alegria. Essa liberdade, com as suas alegrias, se mani-
festa pela percepção profunda do conflito do desejo. Quando vos
tornais cônscios do processo dualista do desejo e ficais passiva-
mente vigilantes, encontra-se a alegria do Real, alegria que não é
produto da vontade nem do tempo.

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Não podeis fugir da ignorância num dado momento; ela
tem de ser dissipada pelo vosso próprio despertar; ninguém pode-
rá despertar-vos, senão vós mesmos. Pela vossa própria autovigi-
lância é que deixará de existir o problema que vós mesmos crias-
tes.
[...] Somos ambiciosos de posse, de aquisição e criamos,
por isso, uma estrutura social que, progressivamente, torna inevi-
táveis as explorações e agressões desapiedadas. Esse “vir a ser”
aquisitivo cria o oposto correspondente, tornando-se, assim, o
ataque e a defesa uma parte de nossa existência diária. Nenhuma
solução se encontrará, enquanto pensarmos e sentirmos em ter-
mos de defesa e ataque, que só servem para nutrir a confusão e a
luta.
É possível pensar-sentir sem defesa nem ataque ? Só será
possível tal coisa quando haja o amor, quando cada qual abando-
ne a cupidez, a malevolência, a ignorância, que se expressam pelo
nacionalismo, pela ambição de poder e outras formas de crime e
crueldade. Se deseja o indivíduo resolver permanentemente esse
problema, é claro que o pensamento-sentimento deve libertar-se
de toda ânsia de posse e de todo o temor. A atitude de ataque e
defesa é cultivada em nossa vida cotidiana e redunda, por fim, na
guerra e outras catástrofes. A dificuldade reside em nossa própria
natureza contraditória; almejamos a paz e entretanto cultivamos
as causas que conduzem à guerra e à destruição. Almejamos a
felicidade e a liberdade, ao mesmo tempo que nos entregamos à
lascívia, à malevolência e à irreflexão; imploramos compreensão e
entretanto a negamos em nossa vida de cada dia; queremos des-
frutar os dois opostos e por isso vivemos confusos e perdidos.
Se desejais pôr cobro a essa onda de crueldade, de medo-
nha destruição e miséria, se desejais salvar vosso filho, vosso ma-
rido, vosso próximo, é preciso que pagueis o preço disso. Essas
misérias não são produto de determinado grupo ou raça, mas de
cada um de nós; deve cada um, pois, abandonar, refletidamente,
as causas que provocam essas calamidades e desgraças indizíveis.

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Deveis desembaraçar-vos completamente de vosso nacionalismo,
de vossa avidez e malevolência, de vosso anseio de poder e rique-
zas, e de vossa aderência a preconceitos religiosos organizados, os
quais, proclamando a unidade do homem, atiçam o homem con-
tra o homem. Só então haverá paz e felicidade.
Por que razão parecemos incapazes de viver uma vida fe-
cunda e feliz, sem nos entredestruirmos? Não é porque de tal
sorte estamos condicionados pelas nossas próprias paixões, pela
nossa malevolência e estupidez, que somos incapazes de viver
contentes e serenos? Precisamos de romper o nosso condiciona-
mento e ser qual o nada. Temos medo de não ser nada, e por essa
razão nos evadimos, alimentando assim o nosso temor com a
avidez, o ódio e a ambição. O problema não é a maneira de nos
defendermos, mas, sim, a maneira de transcendermos o desejo de
expansão pessoal, o anseio de vir a ser. Só os indivíduos que
abandonarem as suas paixões, seus anseios de fama e imortalida-
de pessoal, poderão concorrer para uma paz e felicidade fecun-
das.
[...] O PROBLEMA das relações não é fácil de compreen-
der, requerendo paciência e flexibilidade da mente-coração. O
mero ajustamento ou aquiescência a um sistema de conduta não
nos faz compreender a vida de relação; tal ajustamento e aquies-
cência obscurecem a compreensão e intensificam a luta. Se dese-
jamos compreender profundamente a vida de relação, devemos
estudá-la cada dia como coisa nova, sem nos deixarmos influenci-
ar pelas lembranças de experiências anteriores. Os conflitos que
ocorrem na vida de relação constituem uma muralha de resistên-
cia contínua e, em vez de promoverem união mais vasta e profun-
da, geram insuperáveis dissídios e desunião.
Assim como leríeis um livro interessante sem saltar uma
página, assim deveis estudar e compreender a vida de relação. A
solução ao problema das relações não se encontra fora delas,
porém dentro delas. A resposta não se encontra no fim do livro,
senão na maneira pela qual estudais a vida de relação. A maneira

46
de ler-se o livro da vida de relação é muito mais importante do
que a resposta, ou do que superar a luta que nela se trava. Esse
estudo deve ser encetado cada dia novamente, sem a carga da
véspera. É essa libertação do passado, do tempo, que nos traz a
compreensão criadora.
Ser é estar em relação; nada existe no isolamento. A vida
de relação é um conflito interior e exterior; o conflito interior,
generalizando-se, torna-se conflito mundial. Vós e o mundo não
estais separados; vosso problema é o problema do mundo; tendes
o mundo em vós mesmos; sem vós, o mundo não existe. Não há
insulação e não há objeto que não esteja relacionado. Esse confli-
to deve ser compreendido não como um problema da parte, po-
rém como um problema do todo.
Sabeis que na vida de relação existe conflito, que existe
luta constante entre vós e outrem, entre vós e o mundo. Porque
existe esse conflito? Não resulta ele da ação recíproca da depen-
dência e da aquiescência, do desejo de domínio e do desejo de
posse? Nós aquiescemos, dependemos, possuímos, porque existe
em nós uma insuficiência interior, que dá origem ao temor. Não
conhecemos esse temor nas relações íntimas? A vida de relação é
uma tensão, sendo necessária percepção profunda para compre-
endê-la.
Por que motivo ansiamos possuir ou dominar? Não é pelo
temor à insuficiência? Por sermos tímidos, ansiamos segurança;
sentimental e mentalmente desejamos estar abrigados e firme-
mente ancorados nas coisas, nas pessoas, nas ideias. Interiormen-
te, desejamos a segurança que se traduz exteriormente em de-
pendência, submissão, anseio de posse, etc. É esse vazio sufocan-
te e aparentemente ilimitado, que nos impele a buscar um refú-
gio, uma esperança, na vida de relação, e esse impulso a nos fur-
tarmos à angústia da solidão confundimos com o amor, o dever, a
responsabilidade.
Mas, qual é o verdadeiro significado da vida de relação?
Não é ela um processo de auto-revelação? Não é a vida de relação

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um espelho, no qual, estando vigilantes, podemos observar, sem
deformação, nossos secretos pensamentos e motivos, nosso esta-
do interior? Na vida de relação revela-se o processo sutil do
“ego”, e só mediante vigilância imparcial é possível transcender-se
a insuficiência interior. O conflito extingue-se na solidão da Reali-
dade. Esse transcender é o amor. O amor não tem móvel; ele é a
sua própria eternidade.
[...] A TENDÊNCIA AQUISITIVA, sob qualquer forma que
seja, gera a desigualdade e a brutalidade. Tal divisão e conflito
entre os homens não podem ser abolidos por uma simples refor-
ma dos efeitos e valores externos. A igualdade de posses não é a
saída pela qual nos livraremos das tribulações e da estupidez que
em escala tão vasta nos circundam e envolvem. Revolução alguma
pode libertar o homem do espírito de exclusividade. Despojai-o de
seus bens, mediante a legislação pela revolução, e vê-lo-eis ape-
gar-se à exclusividade nas suas relações ou crenças. O espírito de
exclusividade, nos seus diferentes planos, não pode ser abolido
mediante reforma exterior, nem mediante compulsão ou discipli-
namento. É, todavia, esse espírito de exclusividade que gera desi-
gualdade e dissenção. A tendência aquisitiva não lança o homem
contra o homem? Pode implantar-se a igualdade e a compaixão
por qualquer meio concebido pela mente? Não é necessário pro-
curá-las em outra parte? Não cessa a exclusividade, apenas,
quando reina o Amor, quando reina a Verdade?
A unidade humana só pode encontrar-se no amor, no es-
clarecimento que nos traz a Verdade. Essa unidade do homem
não pode estabelecer-se mediante simples ajustamento econômi-
co e social. O mundo está perenemente ocupado nesse superficial
ajustamento; está sempre tentando reordenar os valores, dentro
do padrão da vontade aquisitiva; quer assentar a segurança na
base insegura do desejo e, com isso, só atrai desastres. Contamos
que uma revolução externa, uma reforma exterior dos valores,
transformem o homem. Embora, sem dúvida, essas coisas produ-
zam certos efeitos no homem, a sua vontade aquisitiva, encon-
trando satisfação em outros planos, continua a existir. Essa ativi-

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dade aquisitiva, infinita e vã, não pode em tempo algum trazer a
paz ao homem, e é só quando o indivíduo está livre dela que pode
haver o estado criador.
A aquisição cria a divisão dos que estão à frente e dos que
ficam atrás. Deveis de ser simultaneamente Mestre e discípulo na
busca da Verdade; deveis de investigar diretamente, sem o confli-
to de oposição entre modelo e imitador. É preciso haver persis-
tente autovigilância, e quanto mais fordes diligentes e ardorosos,
tanto mais se libertará o pensamento dos vínculos por ele próprio
criados.
O egoísmo e o problema da paz

[...] NÃO É POSSÍVEL a existência no isolamento. Ser é es-


tar em relação. Sem relação, não se concebe a existência. A vida
de relação é desafio e reação. A relação de uns com os outros
constitui a sociedade; a sociedade não está independente de vós;
a coletividade não é uma entidade separada, porém, sim, o produ-
to de vós e de vossas relações com outros. Mas, em que se basei-
am essas relações? Direis que estão baseadas na interdependên-
cia, no auxílio-mútuo, etc.; mas, não levando em consideração
essa cortina sentimental que suspendemos à frente uns dos ou-
tros, em que se funda, na realidade, a vida de relação? Na satisfa-
ção mútua, não é verdade? Se eu não vos agrado, vós vos desem-
baraçais de mim por diferentes maneiras; e se eu vos agrado, vós
me tomais para esposa, vizinho, amigo, ou “guru”. Este é que é o
fato real, não achais? Mantemos relações onde encontramos sa-
tisfação mútua, mútuo aprazimento; e, quando não o encontra-
mos ou não nô-lo dão, substituímos as nossas relações: recorre-
mos ao divórcio ou, resignando-nos à situação, saímos à procura
de satisfação em outras partes; ou trocamos de “guru”, ide mes-
tre, ou nos filiamos a outra organização. Passamos de uma organi-
zação para outra, até encontrarmos o que buscamos, que é a sa-
49
tisfação, a segurança, o conforto, etc. Ao procurardes satisfações
na vida de relação, é sempre certo o conflito. Quando, na vida de
relação, se busca a segurança, sempre fugaz, surge a luta pela
posse, pelo domínio, e as penas da inveja e da incerteza. As exi-
gências egoístas, a ânsia de possuir, o desejo de segurança e con-
forto psicológicos, tudo isso é a negação do amor. Podeis falar do
amor como responsabilidade, dever, etc., mas o fato é que não
existe, não é perceptível o amor na estrutura da moderna socie-
dade. A maneira como tratais vossos maridos e esposas, vossos
filhos, vizinhos e amigos, é bem indicativa da ausência do amor na
vida de relação.
Qual é então o significado da vida de relação? Se obser-
vais a vós mesmos, nas vossas relações, não descobris que expri-
mem um processo de auto-revelação? O vosso contato com ou-
tros não revela, se estais atentos, o vosso próprio modo de ser? A
vida de relação constitui um processo de auto-revelação, de auto-
conhecimento; quando ela nos revela pensamentos e ações desa-
gradáveis e inquietantes, dá-se uma fuga dessas relações para
outras mais cômodas e confortantes. Tornam-se muito pouco
significativas as nossas relações, quando baseadas na mútua satis-
fação, mas, por outro lado, se tornam altamente significativas
quando nos revelam a nós mesmos. O amor prescinde de rela-
ções. É somente quando a outra parte se torna mais importante
do que o amor, que começam as relações de prazer e de dor.
Quando nos abandonamos total e completamente, quando ama-
mos realmente, não existem então relações de satisfação mútua
ou como processo de auto-revelação. No amor, não há recompen-
sas. Um tal amor é algo maravilhoso. Não há nele atritos, mas
uma completa integração, um estado de êxtase. Esses momentos
raros, de suprema ventura e alegria, ocorrem ao existir o amor, a
comunhão completa. O amor se retrai quando o seu objeto assu-
me maior importância; declara-se então um conflito de posse, de
temor, de despeito; e por isso se retrai o amor; e quanto mais se
retrai, tanto mais cresce o problema das relações, perdendo estas
seu valor e significado. Não se pode fazer nascer o amor por meio

50
da disciplina ou outro meio qualquer, nem pela compulsão inte-
lectual. É um estado que se apresenta depois de cessarem as ati-
vidades do ego. Essas atividades não devem ser suprimidas pela
disciplina, nem reprimidas ou evitadas, porém compreendidas. É
necessário percebimento e: portanto, compreensão das ativida-
des do ego, em todas as suas diferentes camadas.
Sem autoconhecimento, não é possível o pensar correto.
Só pode aparecer o correto pensar estando cada um cônscio de
seus pensamentos, sentimentos e atividades de cada dia. Nessa
percepção, na qual não pode haver condenação, justificação ou
identificação, pode cada pensamento completar-se e ser compre-
endido. Desse modo, nessa percepção isenta de escolha, começa
a mente a libertar-se dos empecilhos e das sujeições que ela
mesma criou. Só nessa liberdade é possível o aparecimento da
realidade.
Nosso problema, pois, não consiste em nos ligarmos a
qualquer sistema de pensamento, político ou religioso, mas, sim,
no despertar do indivíduo para o seu próprio conflito, confusão e
sofrimento. Quando se torna cônscio o indivíduo da luta e da dor
de sua existência, a reação imediata é a fuga através das crenças,
das atividades sociais, dos entretenimentos, ou de sua identifica-
ção com as atividades políticas, seja da direita ou da esquerda.
Mas a confusão e o sofrimento não se dissipam com a fuga, que
só faz recrudescer a luta e o sofrer. As fugas que nos oferecem as
organizações religiosas como meio de dissolver essa confusão, são
evidentemente indignas de um homem refletivo; porquanto o
Deus que oferecem é o Deus da segurança, e não o entendimento
da confusão e da dor em que o homem vive.
A idolatria, o culto das coisas fabricadas pela mão ou pela
mente, só redunda no incitamento do homem contra o homem; o
que ela favorece não é a dissolução do sofrer humano, porém,
antes, uma fuga cômoda, uma distração insensibilizadora da men-
te e do coração. Da mesma natureza são os sistemas políticos;
neles encontra o homem fáceis vias de evasão da existência atual.

51
Porque nessas coisas o presente é sacrificado ao futuro. Mas o
presente é a única porta através da qual a compreensão pode
despontar. O futuro é sempre incerto e só o presente pode ser
incessantemente transformado pela compreensão plena e pro-
funda da realidade. Nessas condições, nem as religiões organiza-
das, nem os sistemas políticos são capazes de resolver tal confu-
são e sofrimento do homem.
É o próprio homem, sois vós mesmos que tendes de en-
frentar essa confusão, deitando fora todos os sistemas e todas as
crenças e procurando compreender o que realmente se passa em
vosso interior. Porquanto o que sois o mundo é; e não é possível
promover-se a transformação do mundo sem prévia transforma-
ção de vós mesmos. Assim sendo, cumpre-nos insistir não na sim-
ples transformação do mundo, mas na transformação do próprio
indivíduo, de vós mesmos; porque vós sois o mundo, e o mundo
não existe sem vós. Para realizar-se essa transformação, o guia,
espiritual ou secular, torna-se um empecilho, um fator de degene-
rescência na civilização. Só poderá realizar-se essa regeneração
quando vós, afastando todos os empecilhos, tais como o naciona-
lismo, as religiões organizadas, as crenças organizadas, e aqueles
obstáculos que incitam o homem a lutar com o homem — os pre-
conceitos de casta e de raça, os sistemas, etc. — compreenderdes
a vós mesmos mediante a percepção de vossos pensamentos,
sentimentos e ações de cada dia.
É só quando o pensamento está libertado dos valores ma-
teriais criados pela mão ou pela mente, que nos é dada a visão da
verdade. Não há senda conducente à Verdade. Tendes de navegar
por mares sem roteiros para a encontrardes. A Realidade não
pode ser comunicada a outro; porquanto o que se comunica é o
que já se sabe, e o que é sabido não é o Real. Não reside a felici-
dade na multiplicação de projetos ou sistemas, nem nos valores
oferecidos pela civilização atual; ela reside, antes, naquela liber-
dade que a virtude nos traz; a virtude não é, por si só, um fim,
mas é essencial; porque só nessa liberdade se manifesta a Reali-
dade. A mera procura e a simples multiplicação dos valores mate-

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riais só pode conduzir-nos a uma confusão maior, uma angústia
maior, a novas guerras e desastres.
Só será possível a paz e a ordem no mundo quando vós,
como indivíduos, pelo autoconhecimento e, pois, pelo pensar
correto, o qual não se encontra nos livros nem nos é transmitido
por mestre algum, alijardes aqueles valores que geram a luta e a
confusão. A finalidade do homem não é essa luta e sofrimentos
contínuos, mas sim, aquele amor e aquela ventura que nascem
com a Realidade.
[...] O IDEAL da não violência consiste em evitar a com-
preensão da violência. O idealista que aspira à não violência, evita,
com isso, a transformação fundamental da violência. A não vio-
lência é mera ideia, mas o que se observa como um fato real é a
violência. A violência é suscetível de ser compreendida e trans-
formada, quando afastado o ideal ilusório da não violência. A ideia
do oposto torna-se um obstáculo à realidade. O oposto da violên-
cia é também violência, não é o Amor, que é a própria Eternidade.
O idealista, que busca o oposto, jamais conhecerá esse Amor. O
seu empenho se resume, sempre, em tornar-se não violento, o
que representa sempre a expressão do ego, em sentido positivo
ou negativo. Cumpre abandonarmos o ideal, a fim de resolvermos
o processo do sofrimento.
[...] A VIOLÊNCIA predominante em todo o mundo não
poderá ser vencida por meio de padrões de ação, seja da direita
ou da esquerda. A violência denota vácuo interior, o qual não
pode ser preenchido nem pela violência nem pela não violência,
uma vez que a própria luta para preencher esse vácuo conduz a
violência ainda maior. Para ficarmos livres da violência, precisa-
mos compreender esse vácuo. Isso acontecerá quando estivermos
sós, mas não em isolamento. O estar solitário é estar livre da
crença, sob qualquer forma que seja, livre de todos os estorvos
que entulham a nossa vida. É só nessa liberdade que se nos mos-
tra a Realidade. A Realidade é a plenitude da compreensão e do
amor.

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Esse Amor não nasce da repressão do ódio e da violência.
Só quem olhou de frente a violência, sem voltar o rosto, sem en-
cobri-la com um ideal, o que também é violência, tanto na inten-
ção como nos resultados, só esse conhecerá aquele Amor. O Amor
não é o alvo, a meta longínqua de uma jornada penosa; ele está
contido na aceitação do que existe de fato, do que é Real. No
amor à vida reside a Verdade, e não no ideal, que é violência para
com a Verdade. Só a Verdade pode fazer-nos livres, e só na liber-
dade pode existir o Amor à humanidade.
Essa liberdade não é independência, porquanto esta é pu-
ro isolamento. Essa liberdade não conhece fronteiras marcadas
pela mão dos homens. É a liberdade da mente, nascida da com-
preensão compassiva. Essa liberdade é sempre individual, nunca
política ou econômica. Ela é sempre uma revelação interior. Nin-
guém no-la pode dar, nem tão pouco é ela o resultado de luta. Ela
vem por si, silenciosa e pronta, quando a mente contempla as
suas próprias limitações com humilde compreensão.
Só essa liberdade é capaz de renovar o mundo. Aqueles
que a viram nascer em si próprios são os únicos verdadeiramente
não violentos, porquanto são não violentos para com a Verdade.
São eles os precursores da maior revolução de todas — a revolu-
ção do Real.
[...] SÓ O AMOR pode transformar o mundo. Sistema al-
gum, seja da esquerda, seja da direita, por mais sabiamente, por
mais convincentemente que esteja concebido, pode trazer a paz e
a felicidade ao mundo. O amor não é um ideal; ele surge onde
existe o respeito e a compaixão de todos para com todos. Deve-
mos mostrar a todos esse respeito e compaixão. Esse modo de ser
se apresenta com a riqueza da compreensão. Onde existe a cupi-
dez e a inveja, onde existe a crença e o dogma, não pode haver o
amor. Onde há nacionalismo ou apego aos valores materiais, não
pode haver amor. Entretanto, só o amor é capaz de resolver todas
as nossas humanas dificuldades. Sem o amor, é a vida rude, cruel
e vazia. Mas, para que possa ver a verdade do amor, deve cada

54
um estar livre dos processos pelos quais o indivíduo se encerra a si
mesmo e que estão destruindo o indivíduo e desintegrando o
mundo. A paz e a felicidade se apresentam quando a mente e o
coração não estão atravancados por aquelas maneiras de vida que
promovem constantemente o insulamento.
O amor e a verdade não podem ser encontrados em ne-
nhum livro, Igreja ou Templo. Vêm à existência com o autoconhe-
cimento. O autoconhecimento é um processo árduo, porém não
difícil; só se torna difícil quando estamos tentando alcançar um
resultado. Mas o estar cônscio, simplesmente, a todos os momen-
tos, das tendências de nossos pensamentos, sentimentos e ações
sem condenar nem justificar, traz uma liberdade, uma libertação
na qual tão somente se pode encontrar a bem-aventurança da
Verdade. Esta Verdade é que trará a paz ao mundo. Esta Verdade
é que fará de cada um de nós uma fonte de alegrias e felicidades
nas nossas relações.
A guerra catastrófica que agora parece iminente, não po-
de ser evitada mediante convulsivos esforços diplomáticos, nem
pelo jogo das conferências. Nem os pactos nem os tratados serão
capazes de deter a guerra. O que pode pôr cobro a essas guerras
periódicas é a boa vontade. As ideologias são, por sua própria
natureza, causadoras de conflito, antagonismo e confusão, e delas
resulta a destruição da boa-vontade.
Assumem as ideologias excepcional importância quando o
indivíduo e sua felicidade interior são negados. Tornamo-nos,
então, vós e eu, meros peões no tabuleiro dos ambiciosos de
mando, e existindo a fome de mando, quer individual, quer coleti-
vo, é inevitável o derramamento de sangue e o sofrimento.
É simples o caminho da paz. É o caminho da Verdade e do
Amor. Ele começa no próprio indivíduo. Onde o indivíduo admite
a sua responsabilidade pela guerra e pela violência, encontra a
paz um ponto de apoio. Para chegar longe, deve o indivíduo partir
de si próprio, pois as primeiras ações devem ser interiores. As
nascentes da paz não estão fora de nós, e o coração do homem

55
está sob a guarda dele próprio. Para pôr termo à violência deve
cada um libertar-se, voluntariamente, das causas da violência,
lançar-se, diligentemente, à tarefa da transformação de si mesmo.
Nossas mentes e corações precisam de ser simples, precisam de
estar fecundamente vazios, precisam de estar vigilantes. Só então
poderá o Amor surgir na nossa existência. Só o amor pode trazer a
paz ao mundo, e só por ele virá o mundo a conhecer a imensurá-
vel felicidade do Real.
[...] A ATUAL DESORDEM e miséria social há de chegar ao
seu desfecho. Mas vós e eu devemos enxergar a verdade que está
na vida de relação, dando início, por essa maneira, a uma nova
forma de ação não baseada na necessidade e na satisfação mú-
tuas. A mera reforma da presente estrutura da sociedade, sem se
alterar fundamentalmente a natureza de nossas relações, é puro
retrocesso. Uma revolução que mantenha a utilização do homem
em vista de um fim, por mais promissor que pareça esse fim, uma
tal revolução é um fator de novas guerras e de sofrimentos ine-
narráveis. O fim a que visamos é sempre a projeção de nosso pró-
prio condicionamento. Por mais promissor, por mais utópico que
seja, o fim só pode representar um meio de criar mais confusão e
mais sofrimento. O que é relevante, nisso tudo, não são os novos
padrões, não são as modificações superficiais, porém, antes, a
compreensão do processo integral do homem, que sois vós mes-
mo.
No processo de compreender a vós mesmo, não no isola-
mento mas no estado de relação, observareis como se opera uma
transformação profunda e perdurável, na qual a utilização de ou-
tro como meio para atingirdes vossa própria satisfação psicológi-
ca, deixa de existir. O que realmente importa não é a maneira de
agir, não é o padrão que se deva seguir ou a ideologia que pareça
a melhor, porém a compreensão de vossas relações com outro.
Essa compreensão é a única revolução verdadeira, e não a revolu-
ção que se baseia numa ideia. Toda revolução baseada em ideolo-
gia tende a manter o homem como um meio, apenas.

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Visto que o interior sempre prepondera sobre o exterior,
se não compreenderdes o processo psicológico, no seu todo, não
tereis base alguma para pensar. Todo pensamento que produz um
padrão de ação só poderá dar em mais ignorância e maior confu-
são.
Só há uma revolução fundamental. Essa revolução não é
produto de ideia, nem se baseia em padrão de ação. Verifica-se
essa revolução ao desaparecer a necessidade de nos utilizarmos
uns dos outros. Tal transformação não é coisa abstrata, ou uma
aspiração, mas, sim, uma realidade possível de experimentar-se
logo que começamos a compreender a natureza de nossas rela-
ções. Essa revolução fundamental pode chamar-se amor. É o úni-
co fator criador, o único capaz de operar a transformação de nós
mesmos e, consequentemente, da sociedade.
O caminho da vida

[...] SE TIVÉSSEMOS AMOR, se tivéssemos caridade em


nossos corações, não faríamos o menor caso de títulos — e isso é
que é religião. Porque os nossos corações estão vazios, enchem-se
de coisas pueris... a que chamais questões momentosas! Franca-
mente, isso é falta de maturidade.
[...] É SOBREMODO DIFÍCIL compreender os meandros e
as complexidades das relações humanas. Mesmo quando temos
muita intimidade com uma pessoa, é muitas vezes dificílimo e
quase impossível conhecer-lhe os verdadeiros sentimentos e pen-
samentos. Isso se torna menos difícil quando há afeição, quando
há amor entre duas pessoas, porque há então comunhão imedia-
ta, simultânea e no mesmo nível; mas essa comunhão é negada,
quando ficamos apenas a discutir ou a ouvir no nível verbal. É
dificílimo estabelecer essa comunhão entre vós e mim, porque
não há comunhão, não há verdadeiro entendimento entre nós. A

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comunhão deixa de existir quando há temor ou preconceito, por-
que nesse caso entra em funcionamento o mecanismo de defesa.
[...] PARA O HOMEM que busca a verdade, não há divi-
sões. Buscar a verdade é estar ativo, é ter sabedoria, é conhecer o
amor. O homem que esta seguindo por um determinado caminho
não pode nunca conhecer a verdade, porque esse caminho é, para
ele, exclusivo.
[...] O SOFRIMENTO não pode ser compreendido se fugi-
mos dele, mas, sim, se o amamos e compreendemos. Compreen-
demos uma coisa, quando a amamos. Compreendeis vossa esposa
quando a amais, compreendeis vosso próximo quando o amais —
o que não significa deixar-se arrebatar pela palavra “amor”. A
maioria de nós foge ao sofrimento por meio dos inúmeros artifí-
cios engenhosos da mente. O sofrimento só pode ser compreen-
dido quando estamos frente a frente com ele, e não quando bus-
camos incessantemente fugir-lhe.
[...] SÓ QUANDO O HOMEM estiver livre das suas fugas,
dissolverá a causa do sofrimento. Para o homem feliz, o homem
que ama, não há divisões; ele não é brâmane, nem inglês, nem
alemão, nem hindu. Para esse homem não há divisões de “altos” e
“baixos”. É porque não amamos que temos todas essas odiosas
divisões. Quando amais, tendes um sentimento de riqueza que
vos perfuma a vida e estais pronto a dividir o vosso coração com
outro. Quando está cheio o coração, as coisas da mente fenecem.
[...] QUE VOS IMPORTA o homem comum? Interessa-vos
realmente o homem comum? Duvido muito. Se sentísseis interes-
se pelo homem comum, não teríeis idolatria por sistema nenhum,
não haveria partido político, nem da esquerda nem da direita. Um
sistema se torna importante quando não amais o homem comum,
mas só amais o sistema, uma ideologia, pela qual estais dispostos
a assassinar e destruir o homem comum. Afinal, o homem comum
sois vós e sou eu. Qual a dificuldade que há em compreender o
que digo? A primeira dificuldade é que não quereis compreender.
Se compreendêsseis haveria em vós uma revolução, que vos per-

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turbaria, que escandalizaria vosso pai, vossa mãe, vossa esposa;
por isso dizeis: “O que ensinais é muito complexo.” Por outras
palavras, senhor, quando não quereis compreender uma coisa,
vós a fazeis complexa. Quando desejais compreender uma coisa,
vós a amais; e quando amais, a vida se torna simples. É porque
não tendes amor por vossa esposa ou por qualquer coisa, que isto
se torna uma filosofia complicada, que achais dificílima. Quando
amais a um, amais a outros, há cordialidade para com todos. Sois
então sensível, flexível. Porque nos falta essa afeição flexível, cor-
dial, vivemos de palavras, sustentamo-nos com palavras. Adora-
mos um sistema, com suas horríveis distinções de classe e de raça,
suas fronteiras econômicas, porque nossos corações estão vazios.
Para compreenderdes, precisais ter amor em vossos corações. O
amor não é coisa para ser cultivada; ele nasce, pronta e imedia-
tamente, quando não é impedido pelas coisas da mente. Estão
vazios os nossos corações, e é por isso que não existe comunhão
entre vós e eu. Escutamos, temos palavras, temos discussões, mas
não há comunhão entre nós, porque entre nós não existe amor.
Quando há amor — cordialidade, generosidade, afabilidade, com-
paixão — não se necessita de filosofia alguma nem de instrutores;
porque o amor é a própria verdade.
[...] PERGUNTA: Quais são os deveres de uma espôsa?
KRISHNAMURTI: Não sei quem teria feito essa pergunta,
se a esposa, se o marido. Se a esposa a formulou, ela requer uma
certa resposta, se o marido, a resposta deverá ser outra. Neste
país, o marido é o patrão; ele é a lei, o senhor, porque economi-
camente dominante, e é ele quem diz quais são os deveres de
uma esposa. Uma vez que a esposa não predomina e é economi-
camente dependente, o que ela diz não são deveres. Podemos
considerar o problema do ponto de vista do marido ou da esposa.
Se consideramos o problema da esposa, vemos que, porque não é
livre, economicamente, a sua educação é limitada ou suas capaci-
dades de raciocínio podem ser inferiores ; e a sociedade lhe impôs
regras e modos de conduta estabelecidos por homens. Portanto,
ela aceita o que se convencionou chamar os direitos do marido; e

59
como este é quem domina, por ser economicamente livre e ter
capacidade para ganhar dinheiro, quem dita a lei é ele. Natural-
mente, onde o matrimônio é um objeto de contrato, não há limite
às suas complicações. Existe então o “dever” — palavra burocráti-
ca que nada significa nas relações. Quando se estabelecem regras
e se começa a inquirir sobre os direitos e deveres do marido e da
esposa, isso não tem mais fim. Sem dúvida, a vida de relação, em
tais condições, é horrível, não achais? Quando o marido exige os
seus “direitos” e quer uma esposa “cumpridora dos seus deveres”
(o que quer que isso signifique) a relação entre os dois não passa
evidentemente de mero contrato mercantil. É de grande impor-
tância compreender esta questão; porque, certamente, há de
haver um modo diferente de considerá-la. Enquanto as relações
estiverem baseadas em contrato, em dinheiro, em posse, autori-
dade ou dominação, elas serão, forçosamente, uma questão de
direitos e deveres. É evidente a extrema complexidade das rela-
ções, quando elas resultam de um contrato, em que se estipula o
que é correto, o que é incorreto e o que é dever. Se sou vossa
esposa e exigis de mim certos atos, como não sou independente,
terei naturalmente de sucumbir aos vossos desejos, já que tendes
as rédeas nas mãos. Impondes à vossa esposa certas regras, direi-
tos e deveres, e as relações com ela se tornam, por conseguinte,
uma simples questão de contrato, com todas as respectivas com-
plexidades.
Mas não haverá uma outra maneira de considerar este
problema? Isto é, quando, há amor, não há nenhum dever. Quan-
do amais vossa esposa, vós lhe dais participação em tudo — na
vossa propriedade, nas vossas tribulações, vossas ansiedades, e
vossas alegrias. Não a dominais: não sois o homem e ela a mulher,
para ser usada e posta de parte, uma espécie de máquina procria-
dora, para perpetuar o vosso nome. Quando há amor, a palavra
“dever” desaparece. Só o homem que não tem amor no coração
fala de direitos e deveres, e neste país direitos e deveres tomaram
o lugar do amor. As regras se tornaram mais importantes do que o
calor da afeição. Quando há amor, o problema é simples; quando

60
não há amor, o problema se torna complexo. Quando um homem
ama sua esposa e seus filhos, jamais pensará em dever e em direi-
tos. Senhores, examinai vosso coração e vossa mente. É claro que
isso vos faz rir — esta é uma das artimanhas dos que não gostam
de pensar: rir de uma coisa é afastá-la para o lado. Vossa esposa
não tem participação em vossa responsabilidade, nem em vossa
propriedade, ela não tem a metade das coisas que tendes, porque
considerais a mulher menos importante do que vós, como uma
coisa para ser guardada e usada sexualmente, segundo vossa con-
veniência, quando vosso apetite o exige. Por isso, inventastes as
palavras “direitos” e “dever”; e quando a mulher se revolta, ati-
rais-lhe estas palavras. É uma sociedade estática, uma sociedade
em decomposição, a que fala de dever e de direitos. Se examinar-
des ao justo o vosso coração e a vossa mente, verificareis que não
tendes amor. Se tivésseis amor, não teríeis feito esta pergunta.
Sem amor, não percebo a utilidade de se ter filhos. Sem amor
criamos filhos feios, imaturos, incapazes de pensar; e assim serão
eles toda a vida porque nunca se lhes deu afeição, porque só ser-
viram de brinquedo e de divertimento, e para conservar o vosso
nome. Para que venha a existir uma nova sociedade, uma nova
civilização, não deve evidentemente haver dominação nem por
parte do homem nem por parte da mulher. A dominação existe
em virtude da pobreza interior. Psicologicamente pobres, que
somos, desejamos dominar, descompor a criada, a esposa ou o
marido. Certamente, só o sentimento afetuoso, o calor do amor,
pode implantar uma nova condição, uma nova civilização. O culti-
vo do coração não é um processo da mente. A mente não pode
cultivar o coração; mas, quando é compreendido o processo da
mente, surge então o amor. O amor não é uma mera palavra. A
palavra não é a coisa. A palavra “amor” não é amor. Quando em-
pregamos essa palavra e procuramos cultivar o amor, isso é me-
ramente um processo da mente. O amor não pode ser cultivado ;
mas assim que percebermos que a palavra não é a coisa, então a
mente, com suas leis e suas regras, seus direitos e deveres, deixa-
rá de intervir, e só então teremos a possibilidade de criar uma
nova civilização, uma nova esperança, um mundo novo.
61
[...] SEM COMPREENDERMOS a nós mesmos, não pode
haver ordem no mundo; sem explorarmos a fundo o processo do
pensamento, do sentimento e da ação, em nós mesmos, nunca
haverá possibilidade de paz mundial, de ordem e segurança. Por
conseguinte, o estudo de si mesmo é de importância primordial e
não constitui um processo de fuga. Esse estudo de si mesmo não é
mera inação. Pelo contrário, requer uma percepção extraordinária
em tudo que fazemos, uma percepção na qual não haja julgamen-
to, condenação, censura. Essa percepção do processo total de si
mesmo, na vida diária, não é limitativa, mas sempre expansível,
sempre iluminativa; e desse percebimento surge a ordem, primei-
ro em nós mesmos, depois externamente, em nossas relações.
O problema, pois, é de relação. Sem relações, não há exis-
tência; ser é estar em relação. Se apenas faço uso das relações,
sem compreensão de mim mesmo, aumento a desordem e con-
tribuo para maior confusão. A maioria das pessoas não parece
perceber este fato: que o mundo são as minhas relações com ou-
tras pessoas, com uma só ou com muitas. Meu problema são as
minhas relações. O que sou, eu projeto; é óbvio que se não me
compreendo a mim mesmo, toda a vida de relação é só confusão,
a estender-se em círculos cada vez mais amplos. Nessas circuns-
tâncias, as minhas relações assumem extraordinária importância,
não as relações com a chamada "massa", mas no mundo de minha
família e meus amigos, por pequeno que ele seja — minhas rela-
ções com minha esposa, meus filhos, meu vizinho. Num mundo de
vastas organizações, vastas mobilizações de indivíduos, movimen-
tos de massa, temos medo de agir em escala pequena, temos
medo de ser pessoas insignificantes, ocupadas em limpar o seu
próprio pedacinho de terra. Dizemos para nós mesmos: "Pessoal-
mente, que posso fazer? Preciso aderir a um movimento coletivo,
a fim de promover a reforma.” Pelo contrário, a verdadeira revo-
lução não é realizável pelos movimentos coletivos, e sim por uma
interior reavaliação das relações — só isso constitui verdadeira
reforma, revolução radical e contínua. Receamos começar em
escala modesta. Por ser tão vasto o problema, pensamos que de-

62
vemos enfrentá-lo junto com multidões de pessoas, com uma
grande organização, com movimentos coletivos. Ora, precisamos
começar a resolver o problema em escala pequena, e essa escala
pequena é o “eu” e o “vós”. Quando compreendo a mim mesmo,
compreendo a vós, e dessa compreensão nasce o amor. O amor é
o fator que está faltando — há falta de afeição, de cordialidade,
nas relações; e porque falta esse amor, essa ternura, essa genero-
sidade, essa compaixão, em nossas relações, escapamo-nos para a
ação em massa, que produz maior confusão e maior miséria. En-
chemos os nossos corações de planos para a reforma do mundo,
desprezando o único fator solucionador, que é o amor. Não im-
porta o que façais, sem o elemento regenerador do amor, tudo o
que fizerdes há de produzir mais caos. A ação do intelecto não
produzirá solução alguma. Nosso problema são as relações, e não
qual o sistema, qual o plano que devemos seguir, que espécie de
Organização de Nações Unidas devemos formar; o problema é a
falta total de boa vontade nas relações — não com a humanidade,
que não sei bem o que significa — é a falta total de boa-vontade e
amor nas relações entre duas pessoas. Já verificastes como é ex-
traordinariamente difícil trabalhar com outra pessoa, estudar um
problema a dois ou a três? Se não podemos estudar problemas
em companhia de dois ou três, como os podemos estudar com
uma multidão? Só podemos estudar problemas juntos, quando
existe aquela generosidade, aquela benevolência, aquela cordiali-
dade do amor, em nossas relações; mas rejeitamos o amor e pro-
curamos achar a solução no árido terreno da mente.
As relações, pois, são o nosso problema; e se não compre-
endemos as relações e nos pomos em atividade, produziremos
maior confusão e maiores sofrimentos. Ação é relação ; ser é estar
em relação. O que quer que faça uma pessoa, quer se retire para
uma montanha ou se instale numa floresta, não pode ela viver no
isolamento. Só é possível viver em relação, e enquanto as nossas
relações não forem compreendidas, não pode haver ação correta.
A ação correta vem da compreensão das relações, as quais reve-
lam o processo de nós mesmos. O autoconhecimento é o começo

63
da sabedoria, é um campo de afeição, cordialidade e amor, e por
conseguinte um campo rico de flores.
PERGUNTA: A instituição do matrimônio é uma das prin-
cipais causas do conflito social. Cria uma ordem ilusória à custa de
terrível repressão e sofrimento. Há outra maneira de resolver o
problema do sexo?
KRISHNAMURTI: Todo problema humano exige muito es-
tudo, e para se compreender o problema, não deve haver rejeição
ou aceitação. O que condenamos, não compreendemos. Precisa-
mos, portanto, examinar o problema do sexo muito atentamente,
muito amplamente e com todo o cuidado, passo a passo — como
pretendo fazê-lo agora. Não vou preceituar o que se deve e o que
se não deve fazer, pois isso é insensato, denota um pensar sem
madureza. Não se pode estabelecer um padrão para a vida, encai-
xar a vida num quadro de ideias; e porque a sociedade, inevita-
velmente, põe a vida no quadro da ordem moral, a sociedade está
sempre a engendrar desordem. Nessas condições, para se com-
preender esse problema, não devemos nem condenar nem justifi-
car, mas estudá-lo por maneira inteiramente nova.
Pois bem, qual o problema? O sexo é um problema? Con-
sideremo-lo juntos — não espereis uma resposta minha. Se é um
problema, por que o é? Fizemos da fome um problema? A penúria
se tornou um problema? As causas evidentes da penúria e da
fome são o nacionalismo, as divergências de classe, as fronteiras
econômicas, os governos separados, os meios de produção nas
mãos de poucos, os fatores religiosos separativos, etc. Se tenta-
mos eliminar os sintomas sem desarraigar as causas, se ao invés
de atacar a raiz nos limitamos a podar os ramos, porque é muito
mais fácil isso, continua a existir o mesmo problema antigo. Do
mesmo modo, por que o sexo se tornou um problema? Para re-
frear o impulso sexual, conservá-lo dentro de uns certos limites,
criou-se a instituição do matrimônio; e no matrimônio, a portas
fechadas, entre quatro paredes, pode cada um fazer o que quiser,
conservando, ao mesmo tempo, uma fachada respeitável. Fazen-

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do uso de vossa esposa para satisfação sexual, podeis transformá-
la numa prostituta, e isso é perfeitamente respeitável. Sob o dis-
farce do matrimônio, podeis ser piores do que um animal; e sem o
matrimônio, não tendo um freio, não conheceis limites. Desse
modo, a fim de traçar um limite, estabelece a sociedade certas leis
morais, que se tornam tradição, e dentro desse limite podemos
ser imorais e ignóbeis à vontade; e essa incontinência sem peias, a
vida sexual transformada em hábito, é considerada perfeitamente
normal, salutar e moral. Mas, por que é o sexo um problema?
Para um casal, o sexo é problema? Absolutamente. Tanto o ho-
mem como a mulher têm uma fonte garantida de prazer constan-
te. Quando se tem uma fonte de prazer constante, quando se tem
uma renda certa, que acontece? Tornamo-nos embotados, fatiga-
dos, vazios, exaustos. Já não notastes que pessoas cheias de vita-
lidade, antes do casamento, depois de casarem se tornam embo-
tadas? Todas as fontes de vitalidade secaram, nelas. Já não notas-
tes isso em vossos próprios filhos e filhas? Por que se tornou o
sexo um problema? É um fato patente que quanto mais intelectu-
al a pessoa é, tanto mais sexual. Já o não notastes? E que quanto
mais sentimento, afabilidade, afeição, existe, tanto menos há de
sexo? Porque toda a nossa cultura social, moral e educativa está
baseada no cultivo do intelecto, o sexo se tornou um problema
cheio de confusão e de conflito. Por conseguinte, a solução do
problema sexual reside na compreensão do cultivo do intelecto. O
intelecto não é o instrumento da criação, e a criação não depende
do funcionamento do intelecto; pelo contrário, só há criação
quando o intelecto está em silêncio. Só quando há criação, tem
significação o funcionar do intelecto; mas, sem criação, sem afei-
ção criadora, o mero funcionar do intelecto cria, obviamente, o
problema do sexo. Como os mais de nós vivemos cerebralmente,
como os mais de nós vivemos de palavras, e palavras são produto
da mente, a maioria das pessoas não é criadora. Estamos inteira-
mente ocupados com palavras, sempre fabricando palavras novas
e readaptando as velhas. Isso, por certo, não é criação. Visto que
não somos criadores, a única possibilidade de expressão criadora
que nos resta é o sexo. No ato sexual há esquecimento, e é só no
65
esquecimento que há criação. O ato sexual, por uma fração de
segundo, nos dá a libertação daquele “eu”, que é a mente, e é por
isso que ele se tornou um problema. Indubitavelmente, só há
possibilidade de criação na ausência de pensamento, que perten-
ce ao “eu”, ao “meu”. Não sei se já notastes que em momentos de
grande crise, em momentos de grande felicidade, a consciência do
“eu” e do “meu”, que é produto da mente, desaparece. Nesse
momento de dilatada apreciação da vida, de intensa alegria, há
criação. Expressando-o de maneira simples: quando ausente o
“eu”, há criação; e uma vez que vivemos no árido terreno do inte-
lecto, não encontramos, aí, momentos de ausência do “eu”. Pelo
contrário, nesse terreno, nessa luta para ser, há uma exagerada
expansão do “eu”, e, portanto, não há criação. Por conseguinte, o
sexo se torna o único meio de criar, de experimentar a ausência
do “eu” ; e logo que o mero ato sexual se torna um hábito, torna-
se também fatigante e dá mais força à continuidade do “eu”; e
assim se converte o sexo num problema.
Para se resolver o problema do sexo, cabe-nos considerá-
lo, não num determinado nível de pensamento, mas de todos os
lados, sob todos os aspectos — emocional, educacional, religioso
e moral. Quando jovens, temos um forte sentimento de atração
sexual, e casamo-nos — ou somos dados em casamento pelos
nossos pais, como acontece aqui no Oriente. Aos pais só interessa,
muitas vezes, ficar livre dos filhos e filhas, e o casal, o jovem e a
jovem, nenhum conhecimento possui de assuntos sexuais. Pela lei
sagrada da sociedade, pode o marido oprimir a esposa, destruí-la,
dar-lhe filhos cada ano, e tudo isso está muito bem. Sob o disfarce
da respeitabilidade, pode ele tornar-se uma pessoa completamen-
te imoral. Cumpre compreender e educar o rapaz e a rapariga — e
isso exige uma inteligência extraordinária por parte do educador.
Infelizmente, nossos pais, mães e preceptores, todos necessitam
desta mesma educação: são eles tão insípidos como água de lava-
gem, só sabem “o que se deve” é “o que se não deve” fazer, só
conhecem tabus, falta-lhes inteligência para este problema. Para
ajudar o jovem e a jovem necessita-se de um preceptor novo,

66
verdadeiramente educado. Mas, pelo cinema e pelos anúncios,
com suas raparigas seminuas, suas mulheres lascivas e casas sun-
tuosas, e por vários outros meios, a sociedade está estimulando
os valores sensuais, e que se pode esperar dai? Se é casado, o
homem se satisfaz à custa da esposa; se é solteiro, vai procurar
alguém, às ocultas. É um problema difícil o de despertar a inteli-
gência do jovem e da jovem. Por toda a parte entes humanos
exploram-se uns aos outros, pelo sexo, pela propriedade, nas re-
lações; e religiosamente, não há nada, nada mesmo, de criador.
Muito ao contrário, a constante meditação, os ritos e pujas são
puros atos mecânicos com certas reações; mas isso não é pensar
criador, não é viver criador. Religiosamente, somos meros tradici-
onalistas, e por isso não há nenhuma investigação fecunda, para o
descobrimento da realidade. Religiosamente, estais subordinados
a uma disciplina, e onde há disciplina, seja no sentido militar, seja
no sentido religioso, não pode, decerto, haver ação criadora; por
isso, buscais a expressão criadora no sexo. Libertai a mente da
ortodoxia, de ritos, disciplinas e dogmatismos, para que ela possa
ser criadora, e o problema do sexo deixará de ser tão grande ou
tão dominante.
Há um outro aspecto deste problema; nas relações sexu-
ais entre homem e mulher não há amor. A mulher é utilizada ape-
nas como um meio de satisfação sexual. Positivamente, senhores,
o amor não é produto da mente; o amor não é resultado do pen-
samento; o amor não é o fruto de um contrato. Aqui neste país, o
jovem e a jovem casam-se quase sem se conhecerem, e têm rela-
ções de sexo. Aceitam um ao outro, dizendo: “Tu me dás isto e eu
te dou aquilo” ou “Tu me dás o teu corpo e eu te dou segurança,
te dou minha afeição calculada.” Quando o marido diz “amo-te”,
isso é pura reação da mente; pelo fato de proporcionar à esposa
uma certa proteção, espera e obtém concessões da parte dela.
Essas relações de cálculo chamam-se amor. Isso é um fato paten-
te: posso desagradar-vos por expressá-lo tão brutalmente, mas
este é o fato real. Essa espécie de casamento dizem que se faz por
amor, mas não passa de mera troca mercantil: é um casamento

67
mercador, revelando a mentalidade de feira. Por certo, nesse ca-
samento não pode haver amor, pode? O amor não é coisa da
mente; mas, visto que cultivamos a mente, empregamos a palavra
“amor”, abrangendo a esfera da mente. Ora, decididamente, o
amor nada tem que ver com a mente, ele não é produto da men-
te; o amor é de todo independente de cálculo, de pensamento.
Quando não existe amor, então a estrutura do casamento como
instituição se torna uma necessidade. Quando há amor, o sexo
não é problema; é a falta de amor que faz dele um problema. Não
o sabeis? Quando amais alguém verdadeiramente, profundamen-
te — não com o amor da mente, mas com aquele amor que vem
do coração, vós lhe dais, a ele ou a ela, de tudo o que tendes, não
só o corpo, mas tudo. Na vossa tribulação, pedis-lhe ajuda, e ela
vo-la dá. Não há divisão entre homem e mulher quando amais
alguém, mas existe um problema sexual quando não conheceis
esse amor. Nós só conhecemos o amor do intelecto; o pensamen-
to o produziu, e um produto do pensamento é sempre pensamen-
to, nunca amor.
O problema do sexo, pois, não é simples e não pode ser
resolvido no seu próprio nível. Querer resolvê-lo biologicamente,
apenas, é absurdo; abeirar-se dele pela religião, ou tentar resolvê-
lo como se ele fosse mera questão de ajustamento físico, de fun-
cionamento glandular, ou cercá-lo de tabus e condenações, é mui-
to pueril e estúpido. Este problema exige inteligência de ordem
superior. A compreensão de nós mesmos, em nossas relações
com outras pessoas, requer inteligência muito mais ágil e sutil do
que o compreender a natureza. Mas queremos compreender, sem
ter inteligência; queremos ação imediata, solução imediata, e o
problema se torna cada vez mais grave. Já não vistes um homem
que tem o coração vazio — como o seu rosto se enfeia e como
produz filhos feios e imaturos? E porque não se lhes dá afeição,
permanecem eles imaturos toda a vida. Olhai vossos rostos ao
espelho: vede como são sem forma, vagos! Tendes cérebro para
investigar e estais na dependência do cérebro. O amor não é mero
pensamento: os pensamentos são só a ação superficial do cére-

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bro. O amor é mais profundo, muito mais profundo; e a profunde-
za da vida só pode ser descoberta no amor. Sem amor, a vida não
tem significação — e esse é o lado doloroso da nossa existência.
Envelhecemos sem ter amadurecido; nossos corpos se tornam
velhos, obesos e feios, e permanecemos incapazes de pensar.
Lemos e falamos acerca do perfume da vida, sem nunca chegar-
mos a conhecê-lo. Só cuidar de ler e de verbalizar, isso indica total
ausência daquele ardor de coração, que enriquece a vida; e sem
essa qualidade que se chama amor, podeis fazer o que quiserdes,
ingressar em qualquer sociedade, criar qualquer lei, não consegui-
reis resolver o problema. Amar é ser casto. O mero intelecto não é
castidade. O homem que se esforça, pelo pensamento, para ser
casto, é incasto, porque não tem amor. Só o homem que ama é
casto, puro, incorruptível .
[...] SEM DÚVIDA, só teremos uma sociedade decente,
quando os indivíduos — vós e eu — não mais estiverem em busca
do poder, em nenhum sentido — pela riqueza, por meio das rela-
ções ou de uma ideia. É a busca de poder que é a causa deste
desastre, desta desintegração da sociedade. Nossa existência,
atualmente, é toda feita de política de força, domínio na família
pelo marido ou pela mulher, de domínio por meio de uma ideia. A
ação baseada numa ideia é sempre um fator de separação e nun-
ca de compreensão; e a busca de poder, seja pelo indivíduo, seja
pelo Estado, denota expansão, cultivo do intelecto, em que não
existe amor. Quando amais alguém, sois muito cuidadoso, organi-
zais espontaneamente, não é verdade? Sois vigilante, sois eficien-
te no ajudar a este ou àquele. É quando não existe amor, que
nasce a organização como instrumento de poder. Quando amais o
próximo, quando sois cheio de afeto e generosidade, então as
organizações têm significação inteiramente diversa, conservando-
se em seu nível próprio. Mas quando a posição do indivíduo as-
sume a máxima importância, quando há ânsia de poder, as orga-
nizações são utilizadas como o meio de se alcançar esse poder - e
a força e o amor não podem coexistir. O amor é sua própria força,
sua própria beleza, e é porque os nossos corações estão vazios

69
que os enchemos com as coisas da mente; e as coisas da mente
não são coisas do coração. Porque os nossos corações estão chei-
os das coisas da mente, interessamo-nos pelas organizações como
meios de promover a ordem, de promover a paz mundial. Não são
as organizações, mas só o amor que pode implantar a ordem e a
paz no mundo; não são os planos de alguma Utopia, mas só a boa-
vontade que pode efetuar a conciliação entre indivíduos. Porque
não temos a chama do amor, dependemos das organizações; e no
momento em que temos organizações sem amor, os espertos e os
astutos galgam o posto mais alto e tiram proveito delas. Funda-
mos uma organização para o bem-estar da humanidade, e antes
de darmos fé já alguém tomou conta dela para seus próprios fins.
Desencadeamos revoluções, revoluções sangrentas e desastrosas,
para promover a ordem mundial, e antes de o sabermos, o mundo
já se acha nas mãos de uns poucos maníacos do poder, que se
tornam uma nova e poderosa classe, um novo grupo dominante
de comissários, com sua polícia secreta, — e o amor é enxotado
para fora.
Senhores, como pode o homem viver sem amor? Só pode
existir; e a existência sem amor significa controle, confusão e so-
frimento — e é isso o que a maioria de nós está criando. Organi-
zamo-nos para a existência e aceitamos o conflito como inevitá-
vel, porque nossa existência é uma busca constante de poder.
Sem dúvida, quando amamos, a organização tem o lugar que lhe
compete, seu lugar próprio; mas, sem amor, a organização se
torna pesadelo, coisa puramente mecânica e eficiente, tal como
um exército. Quando houver amor, não haverá mais exércitos;
mas como a sociedade moderna está baseada na mera eficiência,
temos de ter exércitos, e a finalidade de um exército é gerar guer-
ras. Mesmo durante a chamada paz, quanto mais intelectualmen-
te eficientes somos, tanto mais cruéis, mais brutais, mais insensí-
veis nos tornamos. Eis porque há confusão no mundo, eis porque
a burocracia se torna cada vez mais poderosa, porque mais e mais
governos se vão tornando totalitários. Sujeitamo-nos a tudo isso
como inevitável, porque vivemos pelo cérebro e não pelo coração,

70
e é por isso que não existe amor. O amor é o mais perigoso e mais
incerto elemento de nossa vida; e porque não desejamos estar na
incerteza, porque não desejamos estar em perigo, vivemos pela
mente. O homem que ama é perigoso, e não desejamos viver
perigosamente, queremos viver apenas dentro do molde da orga-
nização, pensando que as organizações trarão ordem e paz ao
mundo. As organizações nunca trouxeram a ordem e a paz. Só o
amor, só a boa-vontade, só a caridade pode trazer a ordem e a
paz, no final de tudo, e, portanto, agora.
PERGUNTA: Por que tem a mulher a propensão de se dei-
xar dominar pelo homem? Porque se sujeitam as comunidades e
nações ao mando de um chefe ou fuehrer?
KRISHNAMURTI: Ora, meu Senhor, porque fazeis esta
pergunta? Porque não estudais a vossa mente para descobrir por-
que quereis ser dominado, porque dominais, e porque procurais
um chefe? Porque dominais a mulher ou o homem? E essa domi-
nação é também chamada amor, não é exato? Quando o marido
domina, a mulher gosta disso e considera-o afeição; e quando a
esposa governa o marido, ele também gosta disso. Por quê? De-
nota isso que a dominação proporciona um certo sentimento de
maior proximidade, nas relações. Se minha mulher me domina,
sinto-me muito perto dela, e se não domina, penso que é indife-
rente. Temeis a indiferença por parte de vossa esposa ou de vosso
marido, por parte da mulher ou do homem. Estais pronto a aceitar
qualquer coisa, contanto que não sintais que alguém é indiferen-
te. Sabeis como desejais estar bem próximo do vosso guru; estais
disposto a tudo — a sacrificar vossa esposa, a sinceridade, tudo —
só para estar perto dele, porque desejais sentir que ele não é indi-
ferente para convosco. Isto é servimo-nos das nossas relações
como um meio de auto-esquecimento; e enquanto as relações
não nos mostram o que somos realmente, estamos satisfeitos. Eis
porque aceitamos o domínio de outra pessoa. Quando minha
mulher ou meu marido me domina, isso não revela o que sou,
sendo uma fonte de satisfação. Se minha mulher não me domina,
se é indiferente e eu descubro o que realmente sou, isso causa

71
muita perturbação. Que sou eu? Um ente vazio, rígido, confuso,
com certos apetites — e tenho medo de enfrentar todo esse va-
zio. Por isso aceito o domínio de minha esposa ou de meu marido,
porque me faz sentir muito perto dele ou dela, e não desejo ver-
me tal qual sou. E esse domínio dá um sentimento de relação,
esse domínio gera o ciúme: se não me dominais, é porque estais
com os olhos noutra pessoa. Por isso, tenho ciúmes, porque vos
perdi; e não sei como livrar-me do ciúme, o qual está também no
plano do cérebro. Senhor, o homem que ama não é ciumento. O
ciúme é coisa do cérebro, mas o amor não pertence ao cérebro; e
onde há amor não há domínio. Quando amais alguém, não sois
dominante, sois parte dessa pessoa. Não há separação, mas com-
pleta integração. É o cérebro que separa, e cria o problema da
dominação.
“Por que se sujeitam comunidades e nações ao mando de
um chefe?” Que são comunidades e nações? Um grupo de indiví-
duos que vivem juntos. Por outras palavras, a sociedade, a comu-
nidade, a nação, sois vós, o indivíduo, em vossas relações com
outro indivíduo; isso é um fato patente. Por que procurais um
chefe? Vós o fazeis, evidentemente, porque estais confuso, não é
verdade? Um homem lúcido, íntegro, não precisa de chefe. Para
ele um chefe é uma coisa molesta, um fator de desintegração na
sociedade. Procurais um chefe porque estais confuso; não sabeis
o que fazer, e desejais que vos digam o que deveis fazer, e por
isso procurais métodos de conduta, social, política e religiosa.
Confuso, como estais, procurais um chefe — vede bem o que isso
subentende. Se, quando estais confuso, buscais um chefe para vos
tirar da confusão, significa isso que não estais em busca da clari-
dade, não estais interessado na causa da confusão, mas só quereis
que vos levem para fora dela. Mas, visto que estais confuso, esco-
lhereis um chefe também confuso (risos). Não riais, mas vede bem
a importância que isso tem. Não ireis procurar um chefe que vê
claro, porque ele vos dirá que deveis olhar para a vossa confusão,
em vez de fugir da mesma; dir-vos-á que a causa da confusão está
em vós mesmo. Mas não é isso que quereis; quereis um chefe que

72
vos tire da confusão; e porque vossa mente está confusa, procura-
reis um que esteja também confuso. Como pode a mente confusa
guiar outra mente para fora da confusão? A mente que está con-
fusa há de ter um guia também confuso; por conseguinte, todos
os guias são inevitavelmente confusos, visto que nós os criamos
por causa de nossa confusão — é importantíssimo se compreenda
isso. Ao compreenderdes esse fato, não ireis procurar um chefe,
mas vos tornareis responsável pela eliminação de vossa confusão.
É só o homem confuso que, não sabendo como agir, procura um
chefe para ajudá-lo a agir; mas o chefe está também confuso, e é
por isso que os chefes são um fator de desintegração em vossa
vida. O chefe é “projetado” pela vossa própria confusão, e por
conseguinte ele outro não é senão vós mesmo, sob forma diferen-
te, como também o são os vossos governos. É a “auto-projeção”
que cria o chefe: um herói nacional é uma exteriorização, uma
duplicata de vós mesmo. O que sois, ou o que desejais ser, assim é
o vosso chefe; esse chefe, portanto, não pode tirar-vos do caos. A
solução do caos está em vossas próprias mãos, e não nas mãos
alheias. A regeneração é produto da compreensão de vós mesmo,
e não do seguimento de alguém, porque esse alguém sois vós
mesmo, mais eloquente, mas igualmente confuso, igualmente
tirânico, igualmente tradicionalista.
O problema, portanto, não é o chefe, mas, sim, como de-
sarraigar a confusão. Pode alguém ajudar-vos a afastar a confu-
são? Se procurais alguém para afastar a vossa confusão, ele só
poderá ajudar-vos a aumentá-la, porque a mente que está confu-
sa é incapaz de escolher o que é claro; visto que está confusa, só
pode escolher o que é confuso. Se desejais libertar-vos radical-
mente da confusão, tereis de pôr em ordem a vossa mente e o
vosso coração e de considerar as causas responsáveis pela confu-
são. Só surge a confusão quando não há autoconhecimento.
Quando não me conheço a mim mesmo e não sei o que
fazer ou o que pensar, naturalmente estou envolvido no torveli-
nho da confusão. Mas quando me conheço a mim mesmo, o pro-
cesso integral de mim mesmo — o qual é extraordinariamente

73
simples quando temos a intenção de nos conhecer a nós mesmos
— então, dessa compreensão nasce a claridade, dessa compreen-
são resulta a conduta correta. É pois de suma importância deixar-
se de seguir o guia, e compreender a si mesmo. A compreensão
de si mesmo traz amor e traz ordem. O caos só existe em relação
com alguma coisa, e enquanto não compreendemos essa relação
há de haver confusão. Compreender as relações é compreender a
mim mesmo, e compreender a mim mesmo é fazer nascer aquela
qualidade de amor, na qual existe bem-estar. Se sei amar minha
esposa, meus filhos ou meu próximo, sei amar a todo o mundo.
Visto que não amo a ninguém, estou permanecendo apenas no
nível intelectual ou verbal com relação à humanidade. O idealista
causa enfado: ama a humanidade com o cérebro, não a ama com
o coração. Quando amais, não há nenhuma necessidade de chefe.
São os vazios de coração que procuram o chefe, para encher esse
vazio com palavras, com uma ideologia, com uma Utopia do futu-
ro. O amor só está no presente, não no tempo, não no futuro.
Para quem ama, a eternidade é agora; porque o amor é sua pró-
pria eternidade.
[...] ESTÁ MAIS DO QUE VISTO que as crianças necessitam
de uma vida regular; na tenra idade, quando se estão desenvol-
vendo fisicamente, necessitam da exata medida de sono, da ali-
mentação adequada, e dos desvelos convenientes. São necessida-
des óbvias na vida de uma criança. Mas vós não amais a criança;
brigais com vossa esposa e vos desforrais (ou ela se desforra) no
vosso filho. Quando voltais tarde para casa, desejais encontrar
vosso filho desperto, para vosso divertimento. O filho se torna um
brinquedo, e um meio de transmitir o vosso nome. Não sentis
interesse pela criança, mas só por vós mesmo. Senhor, se houves-
se interesse da vossa parte, haveria uma revolução amanhã; se
realmente amásseis a criança, haveríeis de quebrar o atual siste-
ma educativo, o atual ambiente social. Procuraríeis saber o que
ela come, se tem uma vida regular, o que lhe irá acontecer no
futuro, se ira servir de carne para canhão. Estudaríeis as causas da
guerra, não apenas citando outras, e estabeleceríeis um padrão

74
de ação. Se de fato amásseis a criança, não teríeis governos sepa-
rados, nacionalidades isoladas, religiões separadas, com suas ce-
rimônias e dogmas organizados. Se amásseis deveras a criança,
todas essas coisas se modificariam da noite para o dia, vós as evi-
taríeis, porque elas levam ao caos, à destruição, à aflição e ao
sofrimento. Mas não amais a criança; pouco vos importa o que lhe
aconteça quando crescer e se tornar o arrimo de vossa velhice ou
o continuador do vosso nome. Só isso vos interessa, não a criança.
Se ela vos interessasse, não teríeis tantos filhos: teríeis apenas um
ou dois e cuidaríeis de que desenvolvessem a inteligência e a cul-
tura adequada. O deplorável, senhores, é que a culpa não cabe ao
sistema educativo, mas a nós mesmos: nossos corações estão tão
vazios, tão insensibilizados! Não conhecemos o amor. Quando
dizemos “amo-te”, a uma pessoa, esse amor é puramente um
meio de satisfazer-nos: é prazer sexual, ou o orgulho de possuir,
de ser dono. O mero prazer e o orgulho da posse não é amor, está
visto. Mas é só dessas duas coisas que cuidamos; não fazemos
caso dos nossos filhos, não fazemos caso do nosso próximo. O
mendigo que encontramos ao descer a rua nenhum auxílio rece-
be, mas falamos muito alto sobre a necessidade de socorrer os
desvalidos. Ingressais em grupos, aderis a sistemas, e o necessita-
do continua de mãos vazias. Se verdadeiramente tivésseis interes-
se, vossos corações seriam ricos de sentimento e estaríeis dispos-
tos a agir e a transformar o sistema da noite para o dia.
Assim, alimentação conveniente e regularidade são neces-
sárias não só à criança, mas a cada um de nós. Para se verificar o
que é necessário, precisamos investigar, precisamos experimen-
tar, primeiro em nós mesmos e não na criança. Podemos pelo
menos dar-lhe alimentos puros e cuidar de que tenha horas regu-
lares de sono e de repouso. É porque nunca pensamos nisso que a
maioria das crianças são pequenas, atrofiadas e subnutridas. Es-
tou certo de que estais escutando muito atentamente; depois
voltareis a casa, fazendo barulho, gritando para ver se a criança
está dormindo, e lhe enchereis a boca de doces, para mostrar
quanto a amais! Não creio que saibais o que estais fazendo —

75
essa é que é a lástima. Não temos consciência das nossas ações,
não temos consciência das palavras que empregamos, não temos
consciência da importância da alimentação: apenas vivemos, mo-
vemo-nos, procriamos filhos e morremos. Quando estamos com
um pé na sepultura falamos de Deus, porque queremos garantir o
nosso desembarque "no outro lado”; vivendo uma vida execrável,
monstruosa, feia, esperamos uma vida cheia de beleza, no final. A
beleza consiste em viver uma vida rica, em amar a realidade do
começo ao fim. Não há beleza numa vida de exploração, de ga-
nância e de ódio, de acumulação de títulos e posses; o curioso é
que acrescentais mais um objeto às vossas acumulações: Deus. O
que estais fazendo é tão feio que se não pode expressar por pala-
vras, não tem significação, não tem profundidade. A maioria de
vós vive de palavras, e naturalmente o vosso filho é a mesma coi-
sa e crescerá igual a vós. Só pode haver regeneração com a trans-
formação da mente e do coração.
[...] QUANDO TEMOS a fraternidade no coração, não pre-
cisamos entrar em nenhuma sociedade ou organização. A impor-
tância que atribuís à organização e às sociedades mostra que não
sois fraternal; quereis furtar-vos ao fato real, que é a vossa falta
de fraternidade, e por essa razão as organizações se tornam im-
portantes e fazeis parte delas. A dificuldade é ser fraternal, ser
bom, ser benevolente, ser generoso; e isso é impossível, enquanto
só pensarmos em nós mesmos. Estais pensando em vós mesmos
quando atribuís a máxima importância ao vosso filho como um
meio de vos proporcionar felicidade, como um meio de conservar
o vosso nome, a vossa religião, vossas perspectivas, vossa autori-
dade, vossa conta no banco, vossas joias.
Quando um homem está interessado só em si mesmo e no
prolongamento de si mesmo, como pode ele ter amor no coração,
como pode ter boa vontade? Será boa vontade uma simples ques-
tão de palavras? É isso o que acontece no mundo, quando todos
esses eminentes, inteligentes e eruditos políticos se reúnem: não
têm boa vontade nenhuma, muito longe disso. Representam os
seus países, que são eles mesmos e vós. Como eles, também nós

76
queremos poder, posição e autoridade. Senhor, um homem de
boa vontade não tem autoridade, não pertence a nenhuma socie-
dade, não pertence a religião organizada, não adora a riqueza e os
títulos. O homem que não pensa em si criará por certo um mundo
novo, uma nova ordem, e é para esse homem que devemos volver
os olhos, se queremos a felicidade, se queremos um novo estado
de civilização, e não para os ricos ou aqueles que adoram a rique-
za. A boa vontade, a felicidade, a bem-aventurança, só virá quan-
do houver a busca do real. O real está perto, não distante. Esta-
mos cegos, obcecados pelas coisas, e é isso que nos impede de ver
o que está perto. A verdade é a vida, a verdade está nas vossas
relações com vossa esposa, a verdade se encontra na compreen-
são da falsidade de qualquer crença. Precisais começar com o que
está perto, para chegardes longe. A ação não deve ter motivo, não
deve ser a busca de um fim; e a ação que não busca um fim só
pode vir quando há o amor. O amor não é coisa difícil. Só há amor
quando o intelecto compreende a si mesmo, quando o processo
de pensamento, com suas hábeis manobras, seus ajustamentos,
com sua busca de segurança, deixa de funcionar; descobrireis
então que vosso coração é rico, cheio, abundante de felicidade,
porque descobriu aquilo que é eterno.
[...] A VIDA DA MAIORIA de nós é algo inerte, como águas
paradas; é monótona, sombria, feia, e insípida; e alguns de nós,
percebendo esse fato, entregam-se inteiramente a atividades
sociais, políticas e religiosas, pensando que com isso enriquecem a
vida. Mas tal ação, sem dúvida, não é enriquecimento, visto que
nossas vidas continuam vazias; embora falemos de reforma políti-
ca, nossas mentes e corações continuam embotados. Podemos
andar muito ativos, socialmente, ou dedicar nossas vidas à reli-
gião; todavia, o significado da virtude continua a ser uma coisa de
ideias, mera ideação. Por isso, não importa o que façamos, vemos
que nossas vidas são monótonas, não têm muita significação;
porque a mera ação, sem compreensão, não traz o enriquecimen-
to ou a liberdade. Assim, se me é permitido, desejo falar um pou-
co sobre o que é o tempo; porque creio que o enriquecimento, a

77
beleza, e o significado daquilo que é atemporal, daquilo que é
verdadeiro, só podem ser experimentados quando compreende-
mos, no seu todo, o processo do tempo. Afinal, todos nós estamos
procurando, cada um a seu modo, um estado de felicidade, de
enriquecimento. Por certo, uma vida que tem significação, que
contém as riquezas da verdadeira felicidade, não pertence ao
tempo. Como o amor, a vida é intemporal; e para compreender
aquilo que é intemporal, não devemos procurar atingi-lo através
do tempo, mas, ao contrário, compreender o tempo. Não deve-
mos servir-nos do tempo como meio de atingir, de conhecer, de
apreender o atemporal. Mas é isso, precisamente, o que estamos
fazendo, na maior parte das nossas vidas : consumindo tempo, na
tentativa de apreender o que é atemporal.
[...] QUAL A RELAÇÃO que tendes com a natureza — com
os rios, as árvores, as aves ligeiras, os peixes na água, os minerais
no seio da terra, as cataratas e as águas pouco profundas? Qual a
relação que tendes com essas coisas? A maioria das pessoas não
tem consciência dessa relação. Nunca olhamos para uma árvore, e
se o fazemos é com o propósito de nos utilizarmos dela: sentar-
nos à sua sombra, ou cortá-la para fazer tábuas. Em outras pala-
vras, olhamos as árvores com propósitos utilitários; nunca vemos
uma árvore, sem “projetarmos” a nós mesmos, para tirarmos
proveito dela. Pela mesma maneira tratamos a terra e os seus
produtos. Não há amor à terra, só há exploração da terra. Se re-
almente amássemos a terra, haveria maior moderação no uso que
fazemos das coisas da terra. Isto é, senhor, se compreendêssemos
as nossas relações com a terra, seríamos muito cuidadosos na
utilização das coisas da terra. A compreensão das nossas relações
com a natureza é tão difícil como a compreensão das nossas rela-
ções com nossos vizinhos, nossas esposas, nossos filhos. Mas não
temos aplicado nosso pensamento a isso, nunca nos sentamos
para contemplar as estrelas, o luar, ou as árvores. Estamos ocu-
pados demais com as nossas atividades sociais ou políticas. Essas
atividades, obviamente, são fugas de nós mesmos; e prestar culto
à natureza é também uma fuga de nós mesmos. Estamos sempre

78
fazendo uso da natureza, quer como meio de fuga, quer para fins
utilitários — nunca paramos um pouco, para amar a terra e as
coisas da terra. Nunca os deleitamos, contemplando os campos
exuberantes, embora nos utilizemos deles para alimentar-nos e
vestir-nos. Não gostamos de trabalhar a terra com nossas próprias
mãos, achamos humilhante trabalhar com as mãos. Dá-se uma
coisa extraordinária, quando lavramos a terra com nossas próprias
mãos. Mas esse trabalho é feito pelas castas inferiores; nós, os
das classes superiores, somos muito importantes, ao que parece,
para fazer uso de nossas próprias mãos! Perdemos, assim, a nossa
ligação com a natureza. Se chegássemos a compreender essa rela-
ção, seu verdadeiro significado, não dividiríamos a propriedade,
em “vossa” e “minha”; embora qualquer de nós possuísse um
pedacinho de terra e nele edificasse a sua casa, ela não seria nem
“minha” nem “vossa”, no sentido exclusivo — seria mais um meio
de nos abrigarmos. Porque não amamos a terra e as coisas da
terra, mas apenas as utilizamos, somos insensíveis à beleza de
uma catarata, perdemos o contato da vida; nunca estivemos sen-
tados, recostados num tronco de árvore; e visto que não amamos
a natureza, não sabemos amar os seres humanos e os animais. Saí
à rua, para ver como são tratados os animais, vede os bois, com
suas caudas completamente deformadas. Meneais a cabeça, di-
zendo “muito triste!” Perdemos o sentido da ternura, aquela sen-
sibilidade, aquela reação às coisas da beleza; e é só na renovação
dessa sensibilidade, que podemos ter a compreensão do que é a
verdadeira relação. Essa sensibilidade não se manifesta com o
mero pendurar de alguns quadros na parede, com o pintar uma
árvore ou prender algumas flores no cabelo; a sensibilidade só
vem quando pomos de parte esse ponto de vista utilitário. Não
quero dizer que não possais utilizar-vos da terra, mas deveis utili-
zá-la como deve ser utilizada. A terra existe para ser amada, para
ser cuidada com desvelo, e não para ser dividida como “vossa” e
“minha”. É insensato plantar uma árvore num terreno cercado e
chamá-la “minha”. Só quando uma pessoa está livre do exclusi-
vismo há possibilidade de se ter sensibilidade, não apenas com

79
relação à natureza, mas também com relação aos seres humanos
e aos incessantes desafios da vida.
[...] PERGUNTA: Dizeis todos os dias que a causa funda-
mental de nossa tribulação e da fealdade de nossa vida é a ausên-
cia do amor. Como achar a pérola do amor verdadeiro?
KRISHNAMURTI: Para responder a esta pergunta de ma-
neira completa, temos de pensar negativamente, porque o pensar
negativo é a forma mais alta do pensar. O mero pensar positivo
significa ajustamento a um padrão, e portanto não é pensar — é
adaptação a uma ideia, e toda ideia é apenas produto da mente e,
por conseguinte, irreal. Assim, para examinarmos este problema
de maneira completa, integral, temos de aplicar-nos a ele negati-
vamente — o que não significa negação da vida. Não salteis a con-
clusões, tende a bondade de acompanhar-me passo a passo. Se
seguirdes esta “experiência”, profundamente e não apenas ver-
balmente, então, no correr desta nossa investigação, descobrireis
o que é o amor. Vamos investigar o que é o amor. Simples conclu-
sões não são amor; a palavra “amor” não é amor. Comecemos
bem perto de nós, para chegarmos muito longe. Ora, vós chamais
amor, quando nas relações com vossa esposa existe a posse, o
ciúme, o temor, recriminação constante, opressão e imposição.
Pode chamar-se amor, isso? Quando possuís uma pessoa, e criais,
desse modo, uma sociedade que vos ajuda a possuí-la, chamais
isso amor? Quando usais alguém para vossa conveniência sexual,
ou em qualquer outro sentido, chamais isso amor? Isso, eviden-
temente, não é amor. Isto é, quando existe ciúme não existe
amor, onde existe posse não existe o amor. Podeis chamá-lo
amor, mas não é amor. O amor, certamente, não admite discórdia
ou ciúme. Quando possuís, há sempre temor; e ainda que o cha-
meis amor, está isso muito longe do amor. “Experimentai”, senho-
res e senhoras, enquanto vamos prosseguindo. Sois casados e
tendes filhos, tendes esposas ou maridos, que possuís, de quem
vos utilizais, de quem tendes medo ou ciúme. Ficai bem cônscios
disso, e vede se é amor. Vedes por acaso um mendigo na rua,
dais-lhe uma moeda e expressais uma palavra de comiseração.

80
Isso é amor? Comiseração é amor? Que significa isso? Pelo fato de
dar uma moeda ao mendigo, de manifestardes comiseração pelo
seu estado, resolvestes o problema? Não estou dizendo que não
devais ser compassivos — nós estamos investigando a questão do
amor. É amor dar uma moeda a um mendigo? Tendes algo para
dar, e quando o dais, isso é amor? Isto é, quando estais cônscios
da ação de dar, isso é amor? É bem evidente que quando dais
conscientemente, vós é que sois importante, e não o mendigo.
Assim, quando dais e manifestais comiseração, sois muito impor-
tante, não é verdade? Por que é que tendes algo para dar? Vós
dais uma moeda ao mendigo; o multimilionário também dá, e tem
sempre muita comiseração pela pobre humanidade. Qual a dife-
rença entre vós e ele? Tendes dez moedas e dais uma; ele tem
moedas sem conta, e dá umas poucas mais. Seu dinheiro, ele o
juntou com o adquirir, multiplicar, revolucionar, explorar. Quando
ele o dá, chamais isso caridade, filantropia; dizeis “como é nobre!”
Isso é nobre? (risos). Não riais, senhores, porque também desejais
fazer a mesma coisa. Quando tendes, e dais um pouco, isso é
amor? Por que é que vós tendes e outros não têm? Dizeis que é
por culpa da sociedade. Mas quem criou a sociedade? Vós e eu.
Por conseguinte, para atacar a sociedade, precisamos começar
por nós mesmos.
Vossa comiseração, pois, não é amor. E é amor o perdão?
Vamos examinar bem esta questão, para verdes. Espero que este-
jais “experimentando”, ao mesmo tempo que vou falando, e não
apenas escutando as minhas palavras. O perdão é amor? Que está
implicado no perdão? Vós me insultais e eu fico ressentido e
guardo isso na lembrança; depois, ou por motivo de força maior
ou por arrependimento, eu digo “perdoo-vos”. Primeiro guardo, e
depois rejeito. Que significa isso? Sou eu ainda a figura central. Eu
é que sou importante, sou eu que estou perdoando a alguém. Por
certo, enquanto houver a atitude de perdoar, sou eu que sou im-
portante, e não o homem que, supostamente, me insultou. Assim,
quando acumulo ressentimento e depois rejeito esse ressenti-
mento — o que chamais perdoar — isso não é amor. Um homem

81
que ama não guarda inimizade, sendo indiferente a todas essas
coisas. Assim, a comiseração, o perdão, o ciúme e o temor — nada
disso é amor. São todos coisas da mente, não é verdade? Enquan-
to a mente é o árbitro, não há amor; porque a mente só arbitra
segundo o interesse de posse, e a sua arbitragem representa
sempre o interesse de posse sob formas diversas. A mente só
pode corromper o amor, não pode dar a beleza. Podeis escrever
um poema a respeito do amor, mas isso não é amor. A mente,
pois, é o produto do tempo, e o tempo existe quando se nega o
amor; o amor, por conseguinte, não pertence ao tempo. O amor
não é moeda para se distribuir. Dar alguma coisa, dar satisfação,
dar coragem para lutar — tudo isso pertence à esfera do tempo,
que é coisa da mente. A mente, por conseguinte, destrói o amor.
É porque nós, os ditos civilizados, cultivamos o intelecto, a expres-
são verbal, a técnica, que não existe o amor; e é porque, existe
esta confusão, que se multiplicam as nossas tribulações e os nos-
sos infortúnios. É porque estamos procurando uma solução pela
mente, que não encontramos solução para nenhum dos nossos
problemas, que as guerras se sucedem umas às outras e temos
catástrofes e mais catástrofes. A mente criou esses problemas e
procuramos resolvê-los no seu nível especial, que é o nível da
mente. Portanto, é só quando a mente cessa que há o amor; e é
só o amor que resolverá todos os nossos problemas, como o sol
dissipa a escuridão. Não há relação alguma entre a mente e o
amor. A mente é do tempo, o amor não é do tempo. Podeis pen-
sar numa pessoa que amais, mas não podeis pensar no amor. O
amor não pode ser pensado; embora possais identificar-vos com
uma pessoa, com um país, uma igreja, no momento em que pen-
sais no amor, o que pensais não é amor, é mero produto da men-
te. O que é susceptível de pensar-se não é amor; e há vazio no
coração, sempre que a mente está sumamente ativa. Estando
ativa, a mente enche o coração com as coisas que produz; e com
essas coisas da mente nós nos entretemos, criando problemas.
Esse entreter-se com problemas é o que chamamos atividade, e as
nossas soluções para os problemas são sempre da mente. Podeis
fazer o que quiserdes, construir igrejas, inventar novos partidos,
82
seguir chefes novos, adotar lemas políticos, mas essas coisas nun-
ca resolverão os nossos problemas. Os problemas são produtos da
mente, e para que a mente possa resolver o seu próprio proble-
ma, tem ela de cessar; porque só quando a mente cessa há amor.
O amor não é susceptível de pensar-se, não pode ser cultivado,
não pode ser praticado. A prática do amor, a prática da fraterni-
dade, está sempre no terreno da mente, e por conseguinte não é
amor. Quando tudo isso tiver cessado, virá então o amor, sabereis
então o que é amar. O amor, então, não é quantitativo, mas quali-
tativo. Não dizeis “amo o mundo inteiro”; mas, quando souberdes
amar a um, sabereis amar a todos. Porque não sabemos amar a
um só, o nosso amor à humanidade é fictício. Quando amais, não
há um só nem muitos: só há amor. É só quando há amor que to-
dos os nossos problemas podem ser resolvidos, e conheceremos,
então, as suas bênçãos e a sua felicidade.
[...] A REALIDADE só pode ser compreendida no viver, e
não no fugir. Quando buscais uma finalidade da vida, estais na
verdade fugindo, e não compreendendo o que é a vida. A vida é
relação, a vida é ação em relação; e quando não compreendo as
relações, ou quando elas são confusas, procuro então um signifi-
cado mais completo. Por que são tão vazias as nossas vidas ? Por
que somos tão solitários, tão frustrados? Porque nunca nos pers-
crutamos, para nos compreendermos a nós mesmos. Nunca admi-
timos para nós mesmos que esta vida é tudo o que conhecemos e
que ela deve, portanto, ser compreendida plena e completamen-
te. Preferimos fugir de nós mesmos, e é por isso que procuramos
uma finalidade da vida longe das relações. Mas, se começarmos a
compreender a ação, que é a nossa relação com pessoas, com a
propriedade, com crenças e ideias, veremos, então, que as rela-
ções trazem consigo a sua própria recompensa. Não há necessi-
dade de procurar. É como se quiséssemos procurar o amor. Pode-
se encontrar o amor, procurando-o? O amor não pode ser cultiva-
do. Só encontrareis o amor nas relações, e não fora das relações;
e é porque não temos amor, que desejamos uma finalidade da

83
vida. Quando existe o amor, que é a sua própria eternidade, não
há então a busca de Deus, porque o amor é Deus.
[...] COMO VEDES, não amamos; empregamos a palavra
“amor”, mas é uma palavra sem conteúdo nem sentido. Usamos a
palavra, sem lhe darmos um “referente”, sem lhe atribuirmos
substância, vivemos meramente da palavra; por isso, continua a
existir o complexo problema, temos de fazer-lhe frente. E não
digais que não vos mostrei a maneira de resolvê-lo. A maneira
está em vós mesmo e em vossas relações com vossos filhos, vossa
esposa, vossa sociedade. Em vós está a luz e a esperança; outro
caminho não existe, absolutamente.
[...] PERGUNTA: O matrimônio é uma parte necessária de
qualquer sociedade organizada, e, no entanto, pareceis contrário
à instituição do matrimônio. Que dizeis? Explicai também o pro-
blema do sexo. Porque se tornou ele, afora a guerra, o mais ur-
gente problema dos nossos dias?
KRISHNAMURTI: Fazer uma pergunta é fácil; difícil é estu-
dar muito atentamente o próprio problema, que contém a solu-
ção. Para compreendermos este problema, precisamos perceber a
sua vasta significação. Isso é difícil, porque nosso tempo é muito
limitado, e tenho de ser breve; assim, se me não seguirdes bem de
perto, podeis ficar impossibilitados de compreender. Investigue-
mos, pois, o problema, e não a solução, porque a solução está no
problema, e não fora dele. Quanto mais compreendo o problema,
tanto mais claramente vejo a solução. Se buscais, meramente,
uma solução, não a encontrareis, porque buscais a solução fora do
problema. Consideremos o casamento, não teoricamente ou co-
mo um ideal, que é coisa um tanto absurda; não idealizemos o
matrimônio, porém, antes, o consideremos tal como é, porque só
assim poderemos fazer alguma coisa. Não o façais cor-de-rosa,
porque, nesse caso, é impossível agir; mas, se o considerardes e o
virdes exatamente como é, então, talvez, estareis habilitado para
agir.

84
Pois bem, que é que acontece realmente? Quando uma
pessoa é jovem, o impulso biológico, o impulso sexual é muito
poderoso, e para impor-lhe um limite, temos a instituição que se
chama o matrimônio. O impulso sexual existe em ambas as partes;
por isso vos casais e tendes filhos. Ligais-vos a um homem ou a
uma mulher para o resto da vida, e fazendo-o, contais com uma
fonte permanente de prazer, uma segurança garantida e o resul-
tado é que começais a vos desintegrar; ficais vivendo num ciclo de
hábito, e o hábito é desintegração. O compreender o impulso
biológico, o impulso sexual, requer grande dose de inteligência,
mas nós não somos educados para ser inteligentes. Habituamo-
nos a viver com o homem ou a mulher com quem temos de mo-
rar. Caso-me aos vinte ou vinte e cinco anos, para passar o resto
da vida ao lado de uma mulher a quem até então não conhecia.
Desconheço inteiramente essa pessoa, e entretanto exigis que eu
viva com ela o resto da minha vida. É isso que chamamos casa-
mento? Tornando-me mais maduro e observando-a melhor, veri-
fico que ela é inteiramente diferente de mim, que seus interesses
são diferentes dos meus; ela se interessa por clubes e eu tenho
interesse em coisas sérias, ou vice versa. E, todavia — coisa extra-
ordinária! — temos filhos. Senhores, não olheis para as senhoras
sorrindo; é vosso problema. Estabeleci, pois, um estado de relação
cujo significado ignoro, pois nunca o descobri nem compreendi.
É só para os poucos, os pouquíssimos que amam, que as
relações matrimoniais têm significação; então, elas são inquebrá-
veis, não representam mero hábito ou conveniência, nem estão
baseadas na necessidade biológica, na necessidade sexual. Nesse
amor, que é incondicional, as identidades se fundem, e em tais
relações há remédio, há esperança. Mas para a maioria de vós não
há fusão nas relações matrimoniais. Para que haja a fusão de duas
entidades separadas, tendes de vos conhecer a vós mesmo, e ela
tem de se conhecer a si mesma. Isso significa amar. Mas não exis-
te amor — esse é um fato evidente. O amor é sempre viçoso,
sempre novo, não é mera satisfação, mero hábito. Ele é incondici-
onal. Não tratais vosso marido ou vossa esposa por essa maneira,

85
não é verdade? Vós viveis no vosso isolamento, e ela vive no seu
isolamento, e estabelecestes, os dois, os vossos hábitos de prazer
sexual garantido. Que acontece a um homem que tem uma renda
certa? Degenera, por certo? Já o não notastes? Observai um ho-
mem que tem sua renda certa, e logo descobrireis como a sua
mente se está estiolando rapidamente. Ainda que ocupe um posto
importante, que tenha uma reputação de homem muito arguto,
nele se extinguiu a alegria exuberante da vida.
De modo idêntico, tendes um casamento em que possuís
uma fonte permanente de prazer, um hábito, um casamento em
que não há compreensão, em que não há amor, e sois obrigado a
viver nesse estado. Não vou dizer-vos o que deveis fazer; mas
examinai primeiramente o problema. Pensais que isso está direi-
to? Não estou dizendo que devais expulsar de casa a vossa mu-
lher, e perseguir outra. Que significação têm essas relações? Por
certo, amar é estar em comunhão com alguém; mas estais em
comunhão com vossa esposa, salvo fisicamente? Vós a conheceis,
exceto fisicamente? Ela vos conhece? Não estais isolados, os dois,
cada um ocupado com os seus próprios interesses, suas próprias
ambições e necessidades, cada um buscando no outro a satisfa-
ção, a segurança econômica ou psicológica? Tais relações não são
relações de espécie alguma; são um processo egocêntrico, de
parte a parte baseado na necessidade psicológica, biológica e
econômica; e a consequência óbvia é o conflito, o sofrimento, as
implicâncias, o corrosivo temor possessório, o ciúme, etc. Pensais
que essas relações podem produzir alguma coisa a não ser filhos
feios e uma civilização feia? Importante é que vejamos todo o
processo, não como uma coisa feia, mas como um fato real, que
se passa bem diante de nossos olhos. Percebendo esse fato, que
devemos fazer? Não podeis, simplesmente, deixá-lo como está;
mas como o não quereis examinar, dais para beber, vos entregais
à política ou à primeira mulher que encontrais, a qualquer coisa,
enfim, que vos leve para longe de casa e daquela mulher ou mari-
do impertinente — e pensais que o problema fica resolvido. Tal é
a vossa vida, não é verdade? Consequentemente, é necessário

86
que façais alguma coisa, isto é, tendes de fazer frente à situação e,
se necessário, dissolver o lar; porque, quando um pai e uma mãe
só vivem brigando, pensais que isso nenhum efeito tem nos fi-
lhos? E já estivemos apreciando, na pergunta anterior, a questão
da educação dos filhos.
Assim, o matrimônio, como um hábito, como cultivo do
prazer habitual, é um fator de deterioração, porque no hábito não
há amor. O amor não é coisa de hábito; o amor é algo glorioso,
criador, novo. Por consequência, o hábito é o contrário do amor;
mas, sois presa do hábito, e, naturalmente, as vossas mútuas rela-
ções, fundadas no hábito, são relações mortas. Vemo-nos assim
de volta ao ponto fundamental, que é o de que a reforma da soci-
edade depende de vós e não da legislação. A legislação só pode
contribuir para a formação de outros hábitos, ou para o confor-
mismo. Consequentemente, vós, como indivíduo responsável, em
relação com outros, tendes de fazer alguma coisa, tendes de agir,
e só se pode agir quando há o despertar da mente e do coração.
Vejo alguns de vós a acenar assentimento, mas o fato óbvio é que
não desejais assumir a responsabilidade da transformação, da
reforma; não desejais enfrentar a convulsão que se verifica no
descobrir a maneira de viver corretamente. E, nessas condições, o
problema subsiste, continuais a brigar e a viver juntos, até morrer,
e quando um morre o outro chora, não pelo morto, mas por causa
de sua própria solidão. Continuais a viver, sem modificação algu-
ma, e pensais que sois entes humanos capazes de legislar, de ocu-
par altos postos, de falar a respeito de Deus, de encontrar a ma-
neira de pôr côbro às guerras, etc. Nenhuma dessas coisas tem
valor, porque não resolvestes nenhum dos problemas fundamen-
tais.
Consideremos, agora, a outra parte do problema: o sexo,
e porque ele se tornou tão importante. Por que adquiriu esse
impulso tamanho poder sobre vós? Já pensastes nele a fundo?
Ainda não o fizestes, porque vos tendes deixado levar por ele. Não
indagastes ainda porque existe esse problema. Senhores, porque
existe este problema? E que acontece quando reprimis comple-

87
tamente o impulso sexual? Vós bem conheceis o ideal de Brahma-
charya, — que acontece? O impulso continua a existir. Sentis res-
sentimento contra alguém que vos fala de uma mulher, e pensais
que conseguireis refrear completamente o impulso sexual em vós,
e, por essa maneira resolver o problema; mas ele continua a per-
seguir-vos. É como se, morando numa casa, guardásseis num de-
terminado aposento todos os objetos de que não gostásseis: eles
continuariam a existir. Assim, a disciplina não resolverá este pro-
blema — sendo disciplina: sublimação, refreamento, substituição
— porque já experimentastes e ela não vos deu nenhuma solução.
Qual é então a solução? A solução é compreender o problema, e
compreender significa não condenar e não justificar. Considere-
mos, pois, a questão dessa maneira.
Porque se tornou o sexo um problema tão importante na
vossa vida? Entendeis o que quero dizer? Nesse ato há fusão
completa; nesse momento há uma cessação completa de todo
conflito, sois sumamente feliz, porque já não sentis a necessidade,
como entidade separada, e não estais consumido de temores. Isto
é, por um momento, extingue-se a consciência individual, a cons-
ciência do “eu”, e sentis a claridade do auto-esquecimento, o júbi-
lo da abnegação. O sexo se torna importante porque, a todos os
demais respeitos, viveis uma vida de conflito, de auto-
engrandecimento e de frustração. Senhores, considerai a vossa
vida — política, social, religiosa: estais sempre lutando por vos
tornardes alguma coisa. Politicamente, desejais ser alguém, ser
poderoso, ter posição, prestígio. Não olheis para outras pessoas,
não penseis nos ministros. Se vos dessem tudo isso faríeis a mes-
ma coisa. Assim, politicamente, viveis lutando por vos tornardes
alguém, estais-vos expandindo, não é verdade? Por conseguinte,
continuais criando conflitos, pois não há negação do “eu”. Pelo
contrário, o que há é acentuação do “eu”. O mesmo processo se
verifica em vossas relações com as coisas, que é a posse de have-
res, e também na religião que seguis. Não tem significação o que
fazeis, não têm significação os vossos exercícios religiosos. Credes,
apenas — estais ligados a rótulos e palavras. Se observardes, ve-

88
reis que, também a esse respeito, não estais libertado da consci-
ência do “eu”, como centro. Embora vossa religião diga “Esquecei-
vos de vós mesmos”, vosso processo é exatamente de afirmação
do “eu”, pois sois sempre a entidade importante. Podeis ler o Gita
ou a Bíblia, mas continuais a ser o mesmo sacerdote, o mesmo
explorador, sugando o povo e edificando templos.
Em todos os campos, em todas as atividades, estais satis-
fazendo e acentuando a vossa pessoa, vossa importância, vosso
prestígio, vossa segurança. Por conseguinte, existe apenas uma
fonte de auto-esquecimento, que é o sexo, e é por isso que o ho-
mem ou a mulher se torna da máxima importância, é por isso que
tendes de possuí-lo ou possuí-la. Edificais, por conseguinte, uma
sociedade que consolida essa posse, que vos garante essa posse;
e, naturalmente, o sexo se torna o problema supremo, quando em
tudo o mais o “eu” é sempre a coisa mais importante. E pensais,
senhores, que se pode viver num tal estado, sem contradição, sem
sofrimento, sem frustração? Mas quando, honesta e sinceramen-
te, não existe asserção do “eu”, seja na religião, seja na atividade
social, então o sexo tem significação muito diminuta. É porque
temeis ser qual o nada, politicamente, socialmente, religiosamen-
te, que o sexo se torna um problema; mas, se em todas essas coi-
sas vós vos deixásseis diminuir, ser de importância menor, veríeis
como o sexo deixaria de ser um problema.
Só há castidade quando há amor. Quando existe o amor,
não existe mais o problema do sexo; se não temos amor, o seguir
o ideal de Brahmacharya é um absurdo, porque todo ideal é irre-
al. O real é aquilo que sois; e se não compreendeis a vossa própria
mente, o funcionamento de vossa própria mente, não compreen-
dereis o sexo, porque o sexo é uma coisa da mente. O problema
não é simples. Requer, não meros exercícios formadores de hábi-
tos, mas enorme soma de pensamento e de investigação das vos-
sas relações com as pessoas, com a propriedade e com ideias.
Senhor, isso significa que tereis de submeter vosso coração e vos-
sa mente a uma intensa busca, da qual resultará uma transforma-
ção em vosso interior. O amor é casto; e quando existe o amor, e

89
não a mera ideia da castidade, criada pela mente, então o sexo já
não é um problema e tem significação inteiramente diversa.
[...] O QUE TEM IMPORTÂNCIA não é o instrutor, não é o
símbolo, não é a explicação, mas sois vós, que estais em busca da
verdade. Procurar pela maneira correta significa dar atenção, não
a Deus, não à verdade, visto que os não conheceis, mas, sim, ao
problema das vossas relações com vossa esposa, vossos filhos,
vosso semelhante. Quando estabeleceis as relações adequadas,
então, amais a verdade; porque a verdade não é uma coisa que se
possa comprar, a verdade não surge pela auto-imolação ou pela
repetição de mantras. Só surge a verdade quando existe o auto-
conhecimento. O autoconhecimento traz a compreensão e quan-
do há compreensão não existem mais problemas. Quando não
existem mais problemas, então está a mente quieta, não está
mais enredada em suas próprias criações. Quando a mente não
está criando problemas, quando compreende com presteza cada
problema que surge, então está de todo tranquila, sem a termos
forçado a ficar tranquila. Esse processo, no seu todo, constitui o
percebimento, e traz um estado de tranquilidade livre de pertur-
bação, tranquilidade que não é produto de nenhuma disciplina, de
nenhum exercício ou controle, mas, sim, o resultado natural da
compreensão imediata de cada problema que surge. Os proble-
mas só surgem no estado de relação; e quando há compreensão
das nossas relações com coisas, com pessoas e com ideias, não há
perturbação de espécie alguma, na mente, e o processo do pen-
samento está em silêncio. Nesse estado não existe nem pensante
nem pensamento, nem observador nem objeto observado. O pen-
sante, pois, desaparece, e a mente já não está ligada ao tempo; e
quando não há o tempo, vem o atemporal. Mas o atemporal não
pode ser pensado. A mente que é produto do tempo não pode
pensar no que é atemporal. O pensamento não pode conceber
nem formular o que está além dos seus limites. Quando o faz, a
sua formulação faz parte ainda do pensamento. A eternidade, por
conseguinte, não é coisa da mente; só conhecemos a eternidade
quando temos amor, porque o amor, em si, é eterno. O amor não

90
é uma coisa abstrata, susceptível de pensar-se; o amor só pode
ser encontrado nas relações com vossa esposa, vossos filhos, e
vossos semelhantes. Quando conhecerdes esse amor, que é in-
condicional, que não é produto da mente, virá então a realidade,
e esse estado é a suprema bem-aventurança.
[...] A PAZ NÃO é uma ideia oposta à guerra. A paz é uma
maneira de vida; porque só haverá paz quando compreendermos
o viver de cada dia. É só essa maneira de vida que pode eficaz-
mente reagir ao desafio da guerra, da classe, e do contínuo pro-
gresso técnico. Essa maneira de vida não nasce do intelecto. O
culto do intelecto, em oposição à vida, conduziu-nos à nossa atual
frustração, com suas inumeráveis vias de fuga. Essas vias de fuga
se tornaram muito mais importantes do que a compreensão do
próprio problema. A presente crise nasceu do culto do intelecto, e
foi o intelecto que dividiu a vida numa série de ações opostas e
contraditórias; foi o intelecto que negou o fator de unificação que
é o amor. O intelecto encheu o nosso coração, que estava vazio,
com as coisas da mente; e só quando a mente está cônscia do seu
próprio raciocinar é capaz de se transcender a si mesma, só então
haverá o enriquecimento do coração. Só o incorruptível enrique-
cimento do coração pode trazer a paz a este mundo louco e cheio
de lutas.
A arte da libertaçã o (do medo, do anseio, do ciúme, etc)

[...] A VIDA É TÃO RICA, tem tantos tesouros, mas chega-


mos a ela com os corações vazios; não sabemos encher os nossos
corações com a abundância da vida. Interiormente somos pobres
e, quando as riquezas da vida nos são oferecidas, nós recusamo-
las. O amor é uma coisa “perigosa”, só ele traz a única revolução
que proporciona felicidade. São poucos os que são capazes de
amar, e tão poucos os que querem o amor. Amamos segundo as
nossas próprias condições, fazendo do amor uma coisa de merca-
91
do. Temos mentalidade mercantil, mas o amor não é comerciali-
zável nem é um negócio de troca. O amor é um estado de ser, no
qual todos os problemas humanos se resolvem. Vamos ao poço
com um dedal e assim a vida torna-se uma coisa sem qualidade,
insignificante e limitada.
Que encantador lugar a Terra poderia ser, pois há tanta
beleza, tanta magnificência, tanta maravilha imperecível. Anda-
mos aprisionados na dor e não nos esforçamos por sair dela, até
mesmo quando alguém nos aponta um caminho de saída.
Não sei, mas o amor incendeia-me. É uma chama inextin-
guível. Tenho tanto disso, que quero dá-lo a todos, e dou. É como
um grande rio, que alimenta e rega cada vila e aldeia; ele vai sen-
do poluído, desagua nele a porcaria do ser humano, mas depressa
as águas se purificam a si próprias, e rapidamente segue em fren-
te. Nada pode estragar o amor, pois todas as coisas se dissolvem
nele - o bom e o mau, o feio e o belo. O amor é algo que é a sua
própria eternidade.
[...] SABEMOS POUCO DO AMOR, da sua extraordinária
ternura e poder. Muito facilmente usamos a palavra “amor”; o
militar usa-a, o carniceiro usa-a, o homem rico usa-a, assim como
o rapaz e a rapariga. Mas sabemos pouco do amor, da sua vasti-
dão, da sua imortalidade, da sua profundidade. Amar é ter consci-
ência da eternidade.
O relacionamento é uma coisa estranha; muito facilmente
caímos na habituação a um relacionamento particular, onde as
coisas são tomadas como garantidas, com a situação aceite, não
se tolerando qualquer variação; não se considera nenhum movi-
mento em direção à incerteza, mesmo por um segundo. Tudo é de
tal modo regulado, tornado “seguro”, bem amarrado, que não há
qualquer hipótese de frescura, de um respirar revivificador. A isto,
e a muito mais, se chama relacionamento. Se observarmos de
muito perto, verificamos que o verdadeiro relacionamento é mui-
to mais sutil, mais rápido do que o relâmpago, mais vasto do que
a Terra, pois ele é vida. A vida é conflito. Queremos fazer do rela-

92
cionamento uma coisa grosseira, rígida, manipulável. Deste modo,
ele perde a sua fragrância, a sua beleza. Isto surge porque não
amamos, e o amor é certamente a maior das coisas, pois nele
acontece o completo abandono de nós mesmos.
É a qualidade da frescura, do novo, que é essencial, caso
contrário, a vida torna-se uma rotina, um hábito; e o amor não é
um hábito, não é uma coisa aborrecida. A maioria das pessoas
perdeu todo o sentido de maravilhamento. Elas tomam tudo co-
mo garantido, e esse sentido de “segurança” destrói a liberdade e
o maravilhamento da incerteza.
Projetamos um longínquo futuro, bem longe do presente.
Contudo, a atenção para compreender está sempre no presente.
Na atenção há sempre um sentido de agora. Sermos claros nas
nossas próprias intenções é uma tarefa árdua; a intenção é como
uma chama impelindo-nos sem cessar na direção da compreen-
são. Sê clara nas tuas intenções e acabarás por ver, as coisas aca-
barão por dar certo. Sermos lúcidos no presente é tudo o que
precisamos, mas não é tão fácil como parece. Cada um tem de
limpar o campo para deitar a semente e, uma vez plantada, a sua
própria vitalidade e força gerarão o fruto. Exteriormente, a beleza
não perdura; ela é sempre desfigurada se não houver alegria inte-
rior. Cultivamos o que é exterior, dando pouca atenção àquilo que
está no interior da pele; mas é o que está dentro que predomina
sempre sobre o exterior. A maçã é destruída pela lagarta que tem
dentro.
É preciso grande inteligência para um homem e uma mu-
lher se esquecerem de si mesmos, para poderem viver juntos, não
se rendendo um ao outro ou não sendo dominados um pelo ou-
tro. O relacionamento é a coisa mais difícil da vida.
[...] A MAIORIA DAS PESSOAS é apanhada pela ânsia de
ser reconhecida, de se realizar, de alcançar. E o fracasso é então
inevitável, o qual vem acompanhado pela infelicidade. Estarmos
libertos do sucesso e do fracasso é que é importante. Logo desde
o princípio, não procurar o sucesso, o resultado; devemos fazer

93
aquilo que amamos, e o amor não tem prêmio nem punição. Tudo
isto se torna de fato uma coisa simples se houver amor.
Prestamos pouca atenção às coisas que nos dizem respei-
to, não as observamos, não as consideramos. Somos muito ego-
cêntricos, muito ocupados com as nossas preocupações, com os
nossos próprios benefícios; não temos tempo para observar e
compreender. Esta ocupação torna a mente embotada, esgotada,
frustrada e sofredora, e queremos fugir desse sofrimento. En-
quanto o “eu” estiver ativo, tem de haver embotamento e frustra-
ção. As pessoas são apanhadas numa corrida louca, na agonia do
sofrimento egocêntrico. Este sofrimento é resultado de uma pro-
funda falta de atenção. As pessoas sérias, cuidadosas e atentas
estão libertas do pensamento.
[...] ESTAR REALMENTE SÓ, sem as memórias e problemas
do ontem, mas estar só e feliz, estar só, sem qualquer compulsão
interior ou exterior, é permitir que a mente não seja tocada. Estar
só. Ter a qualidade de amor de uma árvore, protetora e só. Esta-
mos a perder a relação com as árvores e, assim, estamos a perder
o amor pelos seres humanos. Quando não amamos a natureza,
não somos capazes de amar os humanos. Os nossos deuses torna-
ram-se pequenos e mesquinhos; foi isso que também aconteceu
ao nosso amor. Estamos mergulhados em mediocridade, mas
existem as árvores, o céu aberto e as inesgotáveis riquezas da
terra.
[...] TUDO NA VIDA, exceto algumas poucas coisas, é em
segunda, terceira ou quarta mão - os deuses, os poemas, a políti-
ca, a música. Desse modo, a nossa vida é vazia. Estando vazios,
tentamos preencher-nos com música, com deuses, com “amor”,
com formas de escape, e esse mesmo preencher é esvaziamento.
A beleza não pode ser comprada. Apenas poucos querem a beleza
e a bondade, e o homem satisfaz-se com coisas em segunda mão.
Atirar tudo isso fora é a única e verdadeira revolução; só então
acontece a criatividade da Realidade.

94
É estranho como o homem insiste na continuidade de to-
das as coisas, nas relações, nas tradições, na religião, na arte. Não
há quebra, para dar lugar a um novo começo. Se não tivéssemos
um livro, um líder, alguém para copiarmos, para seguirmos como
exemplo, se estivéssemos completamente sós, afastados de todo
o conhecimento, teríamos de começar do início. Claro que este
completo desnudamento de si mesmo tem de ser global e intei-
ramente espontâneo e voluntário, de outro modo fica-se louco ou
cai-se numa qualquer espécie de neurose. Como apenas poucos
parecem ser capazes dessa completa solitude, o mundo continua
em frente com a tradição - na arte, na música, na política, nos
deuses -, o que alimenta constantemente a infelicidade. Isto é o
que está a acontecer no mundo atualmente. Não há nada que seja
realmente novo, existe apenas oposição e contra-oposição - na
religião continua a velha fórmula do medo e do dogma; nas artes
há o esforço para encontrar algo novo. Mas a mente não é nova, é
sempre velha, enredada na tradição, no medo, nos conhecimen-
tos, nas experiências, esforçando-se por encontrar o novo. É a
própria mente que deve desnudar-se a si mesma, totalmente,
para que aconteça o novo. Esta é a verdadeira revolução.
Cartas à uma jovem amiga

[...] QUANDO PERTENCEIS a uma religião organizada, esse


fato mesmo gera conflito entre um homem e outro homem; e
quando a crença se torna mais forte do que a afeição, mais forte
do que o amor, quando a crença é mais importante do que a hu-
manidade,– e toda a vossa estrutura é de crença; crença em Deus,
numa ideologia, no comunalismo; ou no nacionalismo – sois sem
dúvida a verdadeira causa da destruição.
Não sei se percebeis a extraordinária importância disso –
de pensar no assunto, com toda a profundeza e lucidez, sem nos
escondermos atrás de palavras.
95
E existe, ainda, o fato muito evidente da divisão pela pro-
priedade, pela tendência à aquisição. A propriedade em si tem
muito pouca significação: só podeis dormir num quarto e numa
cama; mas o desejo de posição, a ânsia de adquirir, o desejo de
estardes em segurança quando todos em torno de vós estão inse-
guros – certamente, esse senso de posse, esse senso de proprie-
dade, é uma das causas da aterradora miséria que vai pelo mun-
do. Não é que devemos rejeitar a propriedade, precisamos, po-
rém, ficar cônscios da sua significação, do seu sentido, na ação; e
quando uma pessoa está cônscia disso, abandona naturalmente
todas essas coisas. Não é difícil renunciar, não se requer um esfor-
ço sobre humano para abandonar a propriedade, ao perceberdes
diretamente que vossa relação com ela conduz ao sofrimento, não
de uma só pessoa, mas de milhões; e que lutais por causa da pro-
priedade.
Isso não são meras palavras, como vereis, se as analisar-
des; a propriedade e a crença são na realidade as duas causas
principais do conflito. A propriedade, como meio de engrandeci-
mento pessoal, a propriedade como meio de permanente conti-
nuidade pessoal dá-vos posição, poder, prestígio. Sem a proprie-
dade, nada sois, obviamente; por essa razão, por essa razão a
propriedade se torna tão importante, e por ela estais prontos a
matar a mutilar, e a destruir os vossos semelhantes. O mesmo se
dá com as religiões organizadas e as ideologias políticas, que im-
plicam a crença. A crença se torna muito importante; porque sem
a crença, que sois? Sem chamardes a vós mesmo por um nome
comunalista, que vos isola, onde ficais? Ficais perdido, não é ver-
dade? Assim, sentindo-vos ameaçados, vós vos identificais com a
crença, com a propriedade, com as ideologias, etc., o que inevita-
velmente acarreta destruição. Por quantas maneiras diferentes
procurais isolar-vos uns dos outros! Esse isolamento é a causa real
do conflito e da violência. Assim, sois responsáveis – senhores e
senhoras – com os vossos belos sáris e vossos elegantes vestidos.
Este acontecimento também tem um significado mundial.
Justificamos e aceitamos o mal como um meio para se chegar ao

96
bem. Justifica-se a guerra porque, dizemos, vai trazer-nos a paz –
o que, obviamente, é servir-se de um meio errado para atingir a
um fim correto. Mas a tendência do mundo está nessa direção;
grupos de pessoas, nações inteiras, estão-se preparando para o
choque decisivo e destruidor – como se depois dele fossem tor-
nar-se pacíficos! Esse acontecimento é na realidade um indício da
tendência dos seres humanos a sacrificarem o presente pelo futu-
ro. Criaremos um mundo maravilhoso, mas no ínterim vamos
massacrar-vos; vamos liquidar-vos, a bem do futuro. Vós não ten-
des importância; o que importa é a ideia, o futuro – o que quer
que isso signifique. Afinal de contas o futuro quer rumemos para a
direita, quer para a esquerda, é tão incerto para mim, como o é
para vós; o futuro é variável, modificável, e estamos sacrificando o
presente por um futuro desconhecido. Esta é a maior das ilusões,
não achais? Mas é uma das tendências do mundo; e é isso o que
está acontecendo agora. Isto é, temos um futuro ideológico, em
prol do qual se estão sacrificando seres humanos: para salvar o
homem, estamos matando o homem. E nós estamos à mercê des-
sa tendência – vós estais à mercê dessa tendência. Desejais segu-
rança futura, e por ela destruís a segurança presente. Positiva-
mente, a compreensão só se encontra no presente e não no futu-
ro. A compreensão existe agora e não amanhã.
Ora, essas duas tend ências extraordinárias que preva-
lecem no mundo da época atual, indicam – não é verdade? – uma
total ausência de amor – não o misterioso amor do Supremo, e
todas as bobagens desse gênero, mas o amor puro e simples, en-
tre dois seres humanos. Quem viaja pelo mundo pode notar uma
total ausência do senso do amor nos seres humanos. Há sensa-
ções em abundância, sensações sexuais, intelectuais, ou ambien-
tais, mas a verdadeira afeição por alguém, o amar alguém com
todo o nosso ser – tal coisa não existe, pela razão muito clara de
que temos cultivado o intelecto. Sois maravilhosos nos exames,
no tecer teorias, no especular na bolsa, no ganhar dinheiro – sen-
do tudo isso indicações da supremacia do intelecto. E quando o
intelecto se torna supremo, temos inevitavelmente o desastre,

97
porque o coração está vazio; e por isso nós o enchemos com pala-
vras e com as elucubrações do intelecto. É o que se nota em esca-
la extraordinária, no mundo de hoje. Não estais cheios de teorias
esquerdistas ou direitistas sobre a maneira de resolver o proble-
ma mundial? Entretanto vosso coração está vazio, não é verdade?
E, por certo, o problema é muito simples, se o encarardes de fato.
Enquanto estiverdes identificados com a propriedade, com o no-
me, com a casta, com um determinado governo, comunidade,
ideologia, crença, estais fadado, inevitavelmente, a produzir des-
truição e misérias no mundo. Assim, pois, vós é que sois o verda-
deiro causador desse assassínio; fostes vós que levastes um ho-
mem a matar outro homem. Vós aceitais, como meio justo, o as-
sassínio organizado em grande escala – a guerra – mas quando é
praticado numa só pessoa, ficais horrorizado. Não é verdade, se-
nhor, que como indivíduo perdestes totalmente a sensibilidade,
perdestes de todo o senso dos valores reais e do significado da
existência? Para compreender essa questão, temos de nos trans-
formar radicalmente, porque é isso o que se necessita para revo-
lucionar de maneira absoluta o nosso modo de pensar, de sentir e
de proceder. Desejais promover uma revolução meramente na
ação, o que não tem sentido algum; porque, sem uma revolução
em vós mesmo e no vosso sentimento, não podeis produzir uma
revolução na ação; não podeis produzir revolução alguma, a não
ser individualmente. Já que sois responsável, já que sois o causa-
dor desse assassínio, e para evitar futuros assassínios, tendes de
modificar-vos radicalmente – não é verdade? – em vez de ficardes
a falar de deuses e teorias, de karma e reencarnação. Tendes de
ficar de fato cônscios do que se está passando dentro de vós
mesmos. Mas, como é demasiado árduo estar cônscio, concebeis
teorias, buscais refúgio na propriedade, no nome, na família, e em
todos os demais absurdos causadores de destruição. Visto que
sois responsável por esse assassínio, e pelos assassínios passados
e futuros, quer de uma pessoa, quer de milhões, tendes de modi-
ficar-vos. Tendes de transformar-vos, e deveis começar com o que
está muito perto, e não com o que está longe de vós, observado
as tendências do vosso pensar e sentir e agir em cada dia. Essa é,
98
sem dúvida – a única maneira de se produzir uma transformação
não é verdade? Mas se, emocionalmente, ficais excitado pelos
acontecimentos, se estivestes narcotizado por arengas políticas
durante tantos anos, a vossa reação, é natural, será fraca. Mas
quer vos agrade, quer não, sois responsável pelas misérias exteri-
ores, porque, dentro de vós, sois infeliz, confuso, ansioso, desa-
moroso.
[...] O AMOR NÃO É MEMÓRIA. O amor é um “estado de
ser”, não é uma continuidade. Ele só se torna continuidade quan-
do não há amor. Assim, não há continuidade, quando não há me-
mória.
[...] A MEMÓRIA É TEMPO, e o tempo não é a porta a rea-
lidade; através do tempo, nunca chegareis ao eterno. Deve haver,
por conseguinte, um fim, o que significa que para se encontrar o
real, deve haver morte a todos os minutos, morte para as vossas
posses, para a vossa posição, mas não para o amor.
[...] PERGUNTA: Pode-se amar a verdade sem amar o ho-
mem. Pode-se amar o homem sem amar a verdade. Que vem
primeiro?
KRISHNAMURTI: Por certo, senhor, o amor vem em pri-
meiro lugar. Porque, para amar a verdade, precisamos conhecer a
verdade; e conhecer a verdade é negá-la. O que conhecemos não
é a verdade, porque o que conhecemos já está encaixado no tem-
po; portanto, não é mais a verdade. A verdade está em constante
movimento e, por conseguinte, não pode ser medida no tempo
nem nas palavras; não pode ser contida na vossa mão. Assim,
pois, amar a verdade é conhecer a verdade; não podemos amar
uma coisa que não conhecemos. Mas a verdade não pode ser
encontrada nos livros, na idolatria, nos templos. Ela é encontrada
na ação, no viver, no pensar; e como o amor vem em primeiro
lugar, o que é bem óbvio, a procura do desconhecido é o próprio
amor, e não podeis buscar o desconhecido sem estar em relação
com outros. Não podeis procurar e encontrar a realidade, Deus,
ou como quiserdes chamá-lo, recolhendo-vos ao isolamento. Só

99
podeis encontrar o desconhecido em vossas relações. Ele só se
encontra quando o homem está em relação com o homem. Por
conseguinte, amar o homem é buscar a realidade. Sem amar o
homem, sem amar a humanidade, não pode haver busca do real;
porque, quando eu vos conheço, pelo menos quando procuro
conhecer-vos na vida de relação, nessa relação estou começando
a conhecer-me a mim mesmo. A vida de relação é um espelho em
que me descubro a mim mesmo – não o meu “eu” superior, mas o
todo, o processo total de mim mesmo. O “eu” superior e o “eu”
inferior estão ainda dentro do campo da mente; e sem compre-
ender a mente, o pensante, como posso transcender o pensamen-
to e descobrir algo. A própria vida de relação é a busca do real,
porque constitui o único contato que tenho comigo mesmo; por
consequência, a compreensão de mim mesmo, nas minhas rela-
ções, é de certo o começo da vida. Se não sei amar-vos, a vós, com
quem estou em relação, como posso procurar o real, como posso
amar o real? Sem vós, eu não existo, existo? Não posso existir
separadamente de vós, não posso viver no isolamento. Por conse-
guinte, nas nossas relações, nas relações entre vós e mim, estou
começando a compreender a mim mesmo; e a compreensão de
mim mesmo é o começo da sabedoria, não é verdade? Por conse-
guinte a procura do real é o começo do amor, na vida de relação.
Para amar alguma coisa, precisais conhecê-la e compreendê-la,
não é exato? Para amar-vos, preciso conhecer-vos, preciso inda-
gar, preciso descobrir, preciso estar receptivo para todas as vossas
disposições, vossas modificações, e não apenas encerrar-me em
minhas ambições, ocupações e desejos; e no conhecer-vos estou
começando a descobrir a mim mesmo. Sem vós, não posso ser; e
se não compreendo essa relação entre vós e mim, como pode
haver amor? E, por certo, sem amor, não há busca, há? Não se
pode dizer que uma pessoa dever amar a verdade; porque, para
amar a verdade, é preciso conhecer a verdade. Conheceis a ver-
dade? Sabeis o que é a realidade? No momento em que conheceis
algo, está tudo acabado, não é exato? Isso passa para o domínio
do tempo e, por conseguinte deixa de ser verdade.

100
Nosso problema, portanto é: Como pode um coração ári-
do, um coração vazio, conhecer a verdade? Não pode. A verdade,
Senhor, não é algo distanciado. Ela está muito perto, mas não é
sabemos procurá-la. Para tanto precisamos compreender a vida
de relação, não somente com o homem, mas também com a na-
tureza, com as ideias; preciso compreender a minha relação com a
terra, a minha relação com as ideias, bem como minha relação
convosco; e para compreendê-la preciso, certamente, estar recep-
tivo. Se desejo compreender-vos, devo estar aberto para vós, re-
ceptivo, não devo guardar nada em reserva; não pode haver pro-
cesso de insulamento. Por conseguinte, na compreensão está a
verdade, e para compreender é preciso haver amor; porque, sem
amor, não pode haver compreensão. Assim, não é o homem ou a
verdade que vem em primeiro lugar, mas, sim, o amor; e o amor
só vem à existência quando se compreende a vida de relação, o
que significa que a pessoa está aberta para a vida de relação e,
por conseguinte, aberta para a realidade. A verdade não pode ser
invocada; ela deve vir a vós. Procurar a verdade é negar a verda-
de. A verdade vem vós quando estais aberto, completamente
desprovido de barreiras, quando o pensante não mais está pen-
sando, produzindo, manufaturando, quando a mente está muito
tranquila – mas sem ter sido forçada, narcotizada, hipnotizada por
palavras, pela repetição. A verdade tem de vir; e quando o pen-
sante sai em busca da verdade, está apenas procurando seu pró-
prio bem. Por isso a verdade se esquiva a ele. O pensante só pode
ser observado na vida de relação; e para compreender, há neces-
sidade de amor. Sem amor, não há busca.
[...] O AMOR NÃO É RESÍDUO (da memória), o amor não é
experiência: é um “estado de ser”. O amor é eternamente novo.
[...] Sem dúvida, o amor não é hábito, não é memória; o
amor é sempre novo. Só temos possibilidade de enfrentar o novo,
quando a mente é nova; e a mente não é nova, enquanto existe o
resíduo da memória.

101
[...] PERGUNTA: Dizeis que o amor é casto. Referis-vos ao
celibato?
KRISHNAMURTI: [...]Nesta pergunta está contida toda a
complexa questão do sexo. Os instrutores religiosos, os sistemas
tradicionais proíbem as relações sexuais, dizendo que impedem o
homem de encontrar a realidade suprema, que o homem precisa
ser celibatário para achar Deus, a verdade, ou como quer que se
chame. Ora, por tradição, é esse o preceito geralmente admitido.
Mas, se desejamos achar a verdade contida num problema, nada
significam a tradição e a autoridade. Pelo contrário, tornam-se um
obstáculo – o que não quer dizer que o homem deva ser licencio-
so. A verdade não se encontra no oposto, porque um oposto é
sempre o prolongamento do seu próprio oposto. A antítese é o
prolongamento da tese, sob forma diferente. Logo, para, encon-
trar a verdade contida nesta questão, precisamos considerá-la
com muito cuidado, sem o preconceito da tradição, sem o temor à
autoridade, e sem o insidioso prazer da complacência. Precisamos
observá-la e perceber o seu significado integral.
Em primeiro lugar, por que razão se tornou o sexo um
problema para a maioria de nós? Por que razão, na época atual,
praticamente em todas as partes do mundo – e esse é um dos
fatos mais extraordinários – homens e mulheres estão à mercê do
prazer sensual? Porque se tornou ele um problema tão imenso e
cadente? Se não o compreendemos, nós ou o condenaremos ou a
ele cederemos. Não vou dizer o que é certo ou o que é errado;
isso seria uma maneira estúpida de tratar o problema. Precisamos
ser celibatários porque os livros o preceituam? Devemos levar
uma vida desregrada, porque outros livros o recomendam? Para
estudarmos o problema profundamente, precisamos pensar nele
por maneira nova; e para pensar nele de maneira nova; precisa-
mos abandonar as sendas muito conhecidas do velho. O proble-
ma, portanto, é: por que o sexo se tornou um problema tão can-
dente? Em primeiro lugar, obviamente, porque ele é estimulado
por todos os meios possíveis na sociedade moderna; todos os
jornais, todas as revistas, os cinemas e os quadros, estimulam o

102
erotismo. O negociante emprega uma mulher para atrair a vossa
atenção, para vos fazer comprar um par de sapatos, ou sabe Deus
o que. Vivemos debaixo do contínuo bombardeio de estímulos
sexuais. Isto é um fato. E a sociedade, a civilização, na época atual,
é essencialmente o resultado do valor sensorial. As coisas, as coi-
sas mundanas, se tornaram extraordinariamente importantes nas
nossas vidas; a posição, a riqueza, o nome, assumiram vital signifi-
cação, porque são meios para se alcançar o poder, para se alcan-
çar a chamada liberdade. Os valores sensuais se tornaram predo-
minantemente significativos nas nossas vidas, e essa é também
uma das causas desse avassalador problema do sexo. No pensa-
mento, no sentimento, vós deixastes de ser criadores; sois simples
máquinas de imitação, não é verdade? Vossa religião é mero hábi-
to; seguir a autoridade, a tradição, cultivar o temor, copiar o livro,
observar a regra, o exemplo, o ideal. Ela se tornou uma rotina. A
religião se tornou um mero murmurar de palavras, ir ao templo,
ou praticar uma disciplina, sendo que tudo isso implica um pro-
cesso de repetição, cópia, imitação, formação de hábito. E que
acontece à vossa mente e ao vosso coração, quando apenas sois
imitadores? Murcham, naturalmente, não é verdade? A mente,
que precisa ser ágil, que precisa ser capaz de profunda penetra-
ção, profunda compreensão, transforma-se em simples máquina,
num toca-discos, – imita, copia, segue. Deixou de ser uma mente,
e a religião se tornou matéria de crença. Por essa razão, emocio-
nalmente, interiormente, não há criação, não há reação criadora;
só há monotonia, só o vazio. O mesmo se pode dizer com relação
ao pensamento. Que é o vosso pensar, que é a vossa existência?
Uma rotina oca, vazia, não é verdade? – ganhar dinheiro, jogar
cartas, ir ao cinema, ler livros baratos ou tratados eruditos. Mas,
que é isso? Não é exatamente uma maquina a funcionar, sem
profundeza, sem pensamento, sem compaixão, sem receptivida-
de? Como pode ser criadora uma mente em tais condições? As-
sim, que acontece, à vossa vida? Sois estéril, privado de pensa-
mento, privado de mente, um imitador, um copista; em tais con-
dições é natural, o único prazer que vos resta é o sexo, que se
torna a vossa fuga. Por conseguinte, sendo ele o vosso único alí-
103
vio, estais encerrado na sua prisão e existe, por isso, a eterna
questão de como sair dessa prisão. E vossas ideias, vossas discipli-
nas, não vos darão a possibilidade de sair. Vós podeis refreá-lo,
podeis contê-lo, mais isso não é viver criadoramente, não é ser
feliz, puro, nobre; é viver em constate temor. O sexo é um dos
meios de auto-esquecimento; no sexo vos esqueceis momentane-
amente de vós mesmos; e porque viveis tão na superfície, tão
emprenhados na imitação, o sexo é a única coisa que vos resta, e
se torna por isso um problema. E, é claro, quando o sexo é a única
coisa que resta, não há vida.
Não estamos tentando resolver o problema; só queremos
compreendê-lo; e quando o compreendermos integralmente des-
cobriremos a solução. Para os muitos problemas sérios da vida
não existem soluções categóricas – sim ou não; mas quando se
compreende o próprio problema, encontra-se a sua solução. E a
resposta que teremos é que o problema existirá enquanto não
tivermos capacidade criadora, enquanto não estivermos livres da
imitação, do hábito, enquanto a mente permanecer presa no pro-
cesso da repetição, no processo de ganhar dinheiro, que implica
uma existência cruel. No mero repetir, no mero recitar não há
possibilidade de criação. Só há criação quando libertarmos o pen-
samento criador, o ser criador, a existência criadora, o que signifi-
ca promover uma revolução radical em nossa vida; não uma revo-
lução verbal, mas uma revolução interior, uma completa trans-
formação de nossas vidas. Só então este problema adquirirá um
significado diferente; só então terá a própria vida um significado
diferente. Os que lutam para ser celibatários, como meio de al-
cançar a realidade, de alcançar Deus, não são castos; são ignóbeis,
porque o seu coração é árido. Por certo, sem o amor não há pure-
za, e se um coração puro pode encontrar a realidade; um coração
disciplinado, um coração refreado, um coração deturpado nunca a
encontrará. Só a encontrará um coração que sabe o que é amar.
Mas, não podeis amar, se estais prisioneiro de um hábito, seja
religioso, seja físico, psicológico ou sensual. Assim, o homem que
luta para ser celibatário, nunca pode compreender a realidade;

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porque, no seu caso, o celibato é mera imitação de um exemplo,
de um ideal; e a imitação de um ideal é simples copiar, e portanto
estéril. Todavia, o homem que sabe amar, que sabe ser bondoso,
generoso, que sabe consagrar-se completamente a uma coisa,
sem pensamento egoísta, esse homem conhece o amor; e esse
amor é casto. Onde existe esse amor, deixa de existir o problema.
[...] PERGUNTA: Não há gurus perfeitos que nada ofere-
cem aos que buscam sofregamente a segurança eterna, mas que,
visível ou invisivelmente, guiam um coração cheio de amor?
KRISHNAMURTI: Ora, esta pergunta sobre se alguém ne-
cessita de um guru, é repetida constantemente, sob formas dife-
rentes. Senhores, a vasta maioria de vós tendes gurus; esta é uma
das coisas mais extraordinárias neste país. Assim, por esta noite
pelo menos, ponde-os de lado, e investiguemos o problema. O
interrogante pergunta: “Um coração amante necessita de um
guia?” – Estais compreendendo? Por certo, um coração amante
não tem necessidade de guia algum; porque o verdadeiro amor é
o real, é o eterno. O coração amante é generoso, bondoso, sem
reservas, nada retendo, e esse coração conhece o real; conhece
aquilo que não tem princípio nem fim. Mas a maioria de nós não
tem um coração assim. Nossos corações estão secos, vazios, e
fazem muito alarido. Nossos corações estão cheios das coisas da
mente. E porque estão vazios os nossos corações, dirigimo-nos a
outra pessoa para os encher. Procuramos outra pessoa, em busca
daquela eterna segurança que chamamos Deus; procuramos outra
pessoa, para achar aquela permanente satisfação que chamamos
realidade. Porque nossos corações estão vazios, procuramos um
guru, para os encher. Pode alguém, visível ou invisível, encher o
vosso coração? Vossos gurus vos prescrevem disciplinas, exercí-
cios; não vos dizem como pensar, mas o que pensar. E que acon-
tece? Vós vos exercitais, vós meditais, vós vos disciplinais, vós vos
conformais, e entretanto vosso coração continua insensível, vazio
sem amor; disciplinais a vós mesmo e tiranizais a vossa família.
Pensais que pela meditação, pela disciplina, conhecereis o amor?
Senhor, sem o amor não se pode achar a realidade. Se não temos

105
ternura, brandura, consideração para com os outros, como pode-
mos conhecer o real? E pode alguém ensinar-nos a amar? Ora, o
amor não é um técnica. Por meio da técnica não chegareis a co-
nhecê-lo, não é verdade? Chegareis a conhecer qualquer coisa,
menos o amor. Assim, pois, jamais conhecereis a realidade pela
disciplina, pelo exercício, pelo conformismo: porque o conformis-
mo a disciplina, o exercício, são repetição, que embrutece a men-
te e congela o coração; entretanto, é isso o que desejais. Quereis
embrutecer a vossa mente porque ela está agitada, dispersiva,
ativa, em luta incessante; e como não compreendeis esse mente
agitada, quereis sufocá-la, discipliná-la de acordo com o vosso
padrão, forçá-la de acordo com um conjunto ele regras e precei-
tos, e por essa maneira estrangulais a mente, a tornais embrute-
cida em extremo. É isso que está acontecendo não é verdade?
Considerai a vossa mente: como está ela embrutecida, insensibili-
zada, porque tendes seguido os gurus por tanto tempo! Tornou-se
hábito, tornou-se rotina andar de um guru para outro. Cada guru
vos manda fazer alguma coisa, e vós a fazeis até descobrir que ela
é insatisfatória, passando então para outro guru, esgotando a
vossa mente com esta constante aplicação; porque o que se usa
constantemente, se gasta. O que na realidade buscais de um guru
não é a compreensão, mas a satisfação, a segurança permanente,
que chamais o eterno, Deus, o real, verdade ou como quiserdes. E
uma vez que procurais satisfação, encontrais afinal um guru, que
vos satisfaz; mas o que ganhais não é a compreensão, não é a
felicidade, não é o amor. Pelo contrário, destruís o amor. O amor
é algo novo, eterno, de momento em momento. Nunca é o mes-
mo, nunca é como foi antes; e sem o seu perfume, sem a sua be-
leza, sem sua bondade, procurar com a ajuda de um guru, aquilo
que podeis achar por vós mesmo, é de todo inútil. Nosso proble-
ma, portanto, não é se um guru, visível ou invisível nos ajudará,
mas, sim, como fazer nascer aquele “estado de ser” no qual co-
nhecemos o amor. Porque o amor é virtude, e a virtude não é um
exercício, mas dá-nos a liberdade. E é só quando há liberdade que
o eterno pode vir à existência. Nossa questão, portanto, é a se-
guinte: Como pode uma mente embrutecida, um coração vazio,
106
chegar a amar, a ser sensível, a conhecer a beleza, a riqueza do
amor? Em primeiro lugar, precisais ficar cônscio de que a vossa
mente está embrutecida, de que o vosso processo de pensamento
não tem significação alguma. Precisais estar cônscio de que vosso
coração está vazio, sem procurardes escusas para isso, sem o jus-
tificar nem o condenar. Ficai somente cônscios, experimentando,
senhores. Ficai cônscios, e vede se vossa mente não está embru-
tecida, se vosso coração não está vazio; embora sejais casado,
embora tenhais filhos e bens, não está vazio o vosso coração? Vós
não estais vazios? Vossa mente está embrutecida, embora conhe-
çais todos os livros religiosos; ainda que vossa mente seja uma
enciclopédia, repleta de conhecimentos, ela está embrutecida,
cansada, exausta. Ficai cônscios, apenas, ficai passivamente aten-
tos, sem condenar, sem justificar. Permanecei abertos, para des-
cobrirdes como vossa mente está embrutecida, está cansada,
como o vosso coração está vazio, solitário, cheio de penas. Não
vos estou hipnotizando; ficai cônscios de tudo isso, apenas, e ve-
reis, se ficardes passivamente atentos, como se opera uma trans-
formação, uma reação velocíssima; e nessa reação conhecereis o
que é amar. Nessa reação há tranquilidade, há quietude; e nessa
quietude encontrareis o indescritível, o inefável.
KRISHNAMURTI: Eu disse que há progresso técnico, mas
que a outros respeitos não há progresso algum – o que vemos,
obviamente, no mundo que nos circunda. Há progresso, constante
progresso na técnica, da simples roda a essa coisa extraordinária
que e o aeroplano, o avião a jato; mas há progresso de nossas
mentes, de nossos corações? Vós amais? Positivamente, senhor, a
ação que integra, a ação que é completa, só pode realizar-se onde
existe o amor, onde existe a caridade; e sem a caridade, sem
amor, todo progresso técnico conduz à destruição, à desintegra-
ção. É o que está acontecendo no mundo, na época atual. Esta-
mos progredindo para o caos, porque não estamos progredindo
na caridade – o que suscita um problema vastíssimo, o qual acho
que não teremos tempo de examinar a fundo nesta noite. É este:
Existe coisa tal como progresso, evolução? Eu sei que há o pro-

107
gresso técnico, a evolução de máquinas mais perfeitas, etc.; mas
nos evoluímos – vós e eu? Que é que evolve, e para onde evolve?
A ignorância não pode evoluir para a sabedoria, a avidez não pode
evoluir para o que não é avidez. Avidez será sempre avidez, embo-
ra progrida, embora evolva. Através do tempo, nunca a ignorância
se tornará sabedoria. A ignorância precisa cessar, para a sabedoria
surgir; precisa cessar a avidez, para que nasça o que não é avidez.
Assim, quando falais de evolução, de progresso, vós entendeis “vir
a ser alguma coisa”; vos sois isto e vos tornareis aquilo, sois escri-
turário e vos tornareis gerente; sois padre e vos tornareis bispo;
sois pobre, mas vos tornareis rico; sois mau, mas com o tempo vos
tornareis bom. É esse vir a ser que chamais progresso, evolução;
mas ele é apenas a continuidade, sob forma modificada, daquilo
que é. “Vir a ser” significa continuidade do que é, sob forma modi-
ficada, e por esse motivo não pode haver uma modificação fun-
damental nisso a que chamais progresso. Trataremos deste assun-
to noutra ocasião, pois requer um exame muitíssimo cuidadoso.
No “vir a ser”, na continuidade, poderá haver evolução,
pode haver progresso? Só no terminar há renascimento, não na
continuidade. Mas o progresso, naturalmente, só pode existir no
domínio tecnológico, pois não se pode “progredir” na caridade –
isto é, no sentido comparativo de uma pessoa se tornar mais,
caridosa, mais amorosa. O amor não admite graus de compara-
ção. Não sabeis disso? Quando amais alguém, vós amais, vós vos
dais completamente – o “vós” é inexistente. Enquanto perdura o
“vós”, há o desejo de “vir a ser”, e no “vir a ser” não há renasci-
mento. “Vir a ser” é apenas continuidade modificada, e o que
continua declina; o que continua, conhece a morte; mas o que
termina está livre da morte.
PERGUNTA: Sabemos que o pensamento destrói o senti-
mento. Como sentir sem pensar?
KRISHNAMURTI: De certo, sabemos que o racionalizar, o
calcular, o negociar, destrói o sentimento, o amor, a afeição. Já
notastes que quanto mais racionalizais, quanto mais negociais,

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quanto mais explorais, quanto mais usais a mente, tanto menos
sentimento existe? Porque o sentimento é muito perigoso, o sen-
tir é muito perigoso, não é verdade? Sentir muito intensamente
poderia conduzir ao que chamais caos, confusão, desordem; por
consequência, vós o controlais pela racionalização, e, racionali-
zando, deixais de ser generoso. Vosso sentimento é destruído,
quando há o processo do pensamento, que é dar nome, dar de-
signação. Tendes um sentimento de dor, de prazer, de cólera, e ao
dar-lhe designação, ao dar-lhe nome, o que significa pensar a res-
peito dele, vós o modificais e com isso reduzis o sentimento. Não
o sabeis? Quando sentis que sois generoso, quando desejais es-
pontaneamente dar a vossa camisa a outro, vossa mente intervém
e diz: “Que acontecerá”? Começais a racionalizar o vosso senti-
mento, e vos tornais então caridoso através de organizações, não
diretamente – o que significa evitar a ação. Os sentimentos fortes
são perigosos, o amor é muito perigoso; por conseguinte, come-
çais a pensar no amor, o que amesquinha o amor, destruindo-o
aos poucos.
Consideremos a outra questão: “É possível sentir sem
pensar?” Que entendeis por “pensar”? Pensar, meramente, é
reação da memória, seja de dor, seja de prazer. Isto é, não há
ação de pensar, sem o resíduo da experiência; e o sentimento –
quando emprego a palavra sentimento quero dizer “amor”, e não
“desejo”, não “emocionalismo”, não essa putrefação que chamais
sentimento – o sentimento, o amor, não pode ser trazido para os
domínios do pensamento. Assim sendo, quanto mais reagis à
memória – chamando-a “pensar” – tanto menos amor existe. O
amor é ardente, nunca está quieto, existe de momento em mo-
mento, sempre criador, sempre alegre, sempre alegre; por isso ele
é muito perigoso na sociedade, na vida ele relação. Por essa razão,
o pensamento, que é reação da memória, intervém e modifica o
amor, controla-o, domestica-o, legaliza-o, coloca-o fora de perigo.
E pode então viver com ele. Não o sabeis? Quando amais alguém,
amais toda a humanidade – não amais uma só pessoa, amais o
homem. E é perigoso amar o homem, não é verdade? Porque

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então não existe barreira, não existe nacionalidade, não existe a
ânsia do dinheiro, de posição, de coisas – e um homem assim é
perigoso para a sociedade, não achais? Mas todos vós desejais
muitas coisas; desejais a fama e edificais em torno de vós um
abrigo de ideias, de exclusões. Eis por que um homem que ama é
perigoso para a sociedade, e por que a sociedade, que sois vós,
começa a elaborar um processo de pensamento que não tarda a
destruir o amor. Para que o amor exista, a memória com todos os
seus complexos processos, tem de terminar. Isto é, a memória só
surge quando a experiência não é compreendida plena e comple-
tamente. A memória é apenas o resíduo da experiência; a memó-
ria é o resultado de um desafio não compreendido integralmente.
A vida é um processo de desafio e reação; sendo o desafio sempre
novo e a reação sempre velha. Assim sendo, um indivíduo precisa
compreender a reação antiga, a reação condicionada, o que signi-
fica que o pensamento deve libertar-se do passado, do tempo, de
ontem; deve viver cada dia, cada minuto, da maneira mais com-
pleta, mais plena, e mais nova possível. E isso fazeis quando ama-
is, quando vosso coração está repleto; não o podeis fazer com
palavras, com coisas feitas pela mente, mas, tão só, amando. En-
tão a memória; o pensamento, que é mera reação da memória,
cessa; então, cada minuto é um minuto novo, cada movimento
um renascimento, e amar a um só é amar ao todo.
[...] PERGUNTA: O impulso sexual desaparecerá se não lhe
dermos nome?
KRISHNAMURTI: Acho que esta pergunta requer conside-
rável explanação. Ela foi, ao que parece, provocada pelo que dis-
cutimos ontem de noite. Ora bem; o processo de dar nome, de-
signação, constitui problema muito complexo, que precisamos
examinar com muito cuidado e exatidão; isto é, precisamos com-
preender o processo da consciência. Lamento que esta pergunta,
embora formulada de maneira muito simples, encerre tanta coisa;
e se eu a responder muito direta e concisamente, aqueles que não
assistiram à discussão de ontem estão arriscados a compreender-

110
me mal. Cabe-me, portanto, entrar na questão com muito cuida-
do, desvendando-lhe todo o conteúdo.
Pois bem; que entendemos por consciência? Esta não é
uma pergunta sem cabimento, pois está em relação direta com o
problema. Que entendemos por consciência? A consciência, sem
dúvida, é desafio e reação, e, portanto, experiência. Tal é o come-
ço da consciência: desafio, reação, e experiência. A experiência
recebe um nome, uma designação, pomos-lhe um rótulo agradá-
vel ou desagradável, e em seguida ela é registrada, guardada na
mente. A consciência, pois, é um processo de experimentar, dar
nome e registrar. Embora complexa, ela é muito simples. Por fa-
vor, não a compliqueis desnecessariamente. Sem esses três pro-
cessos, que em realidade constituem um processo unitário – o
experimentar, dar nome ou designação, registrar, classificar, ar-
mazenar a experiência na memória – sem esse processo não exis-
te consciência. Ora bem; este processo está em constante funcio-
namento, em níveis diferentes, sendo instantâneo, e isso é o que
se chama consciência. A canção é repetida em diferentes estados
emocionais com temas diferentes – profundamente, isto é nas
camadas profundas do inconsciente, ou superficialmente, à super-
fície da consciência, na nossa vida de cada dia; mas é sempre o
mesmo processo de desafio e reação, experiência, denominação e
registro na memória. Este é o tema, este é o disco que esta tocan-
do. Ora, que aconteceria se o processo intermediário, que é o dar
nome ou designação não se realizasse, isto é, se o processo inter-
mediário fosse eliminado? Porque damos designação, porque
atribuímos um nome a um sentimento ou a uma experiência,
chamando-a agradável ou desagradável, chamando-a cólera, vio-
lência, bem, mal etc.? Porque damos nome a uma experiência?
Para alguns de vós, isso poderá parecer técnico. Não é tal.
É muito simples, embora requeira um pouco de concentração.
Estamos quase todos habituados a ouvir conferências políticas,
habituados a que nos digam o que fazer ou o que pensar, e pode
parecer-nos difícil acompanhar passo a passo, com calma, um

111
pensamento desta natureza; mas como não se trata de uma con-
ferência política, temos de concentrar-nos um pouco.
Assim, a consciência é um processo de experimentar, dar
nome e registrar; e por que razão damos nome a uma experiência,
a um sentimento? Damos-lhe nome, ou com o fim de comunicá-lo
a outra pessoa, ou como fim de fixá-lo na memória, isto é, dar-lhe
continuidade. Se não há continuidade, não existe mente, não exis-
te consciência. Eu preciso dar continuidade a uma experiência,
pois, do contrário, a consciência desaparece. Por isso preciso dar
um nome à experiência. O dar nome a um sentimento, a uma
experiência, é uma coisa instantânea; porque a mente, que é o
“registrador”, a memória, põe rótulo no sentimento para dar-lhe
substância, para dar-lhe continuidade, para poder examiná-lo – o
que significa dar continuidade ao pensamento. Afinal de contas, o
pensante é o pensamento; e sem o processo de pensamento, não
há permanência para o pensante. Assim, o dar nome a um senti-
mento, a uma experiência, dá permanência ao pensante, ao “re-
gistrador” que é a mente. Isto é, dais nome a um sentimento, a
uma experiência, e dessa maneira lhe dais continuidade; e disso a
mente se nutre, sente que existe. Tomai qualquer experiência,
qualquer sentimento ou sensação que tiverdes – cólera, ódio,
amor; dando-lhe nome, vós estabilizais o sentimento, o incorpo-
rais à vossa estrutura de referências. Assim, a natureza mesma do
dar nome e do experimentar é dar continuidade à consciência, ao
“eu”. Esse processo está em constante funcionamento, sendo tão
rápido que não o percebemos. Este disco está sendo tocado inces-
santemente, em níveis diferentes, com letras diferentes, com
palavras diferentes, durante o sono e a vigília.
Ora bem: que acontece se não dais designação, se não
dais nome a uma experiência? Se não dais nome às várias sensa-
ções, se nada tendes guardado, onde fica o “vós”? Isto é, quando
não se lhe dá nome, o sentimento ou a experiência se extingue,
não tem continuidade. Experimentai em vós mesmo, para ver
como é assim. Se tendes um sentimento nacionalista muito forte,
que acontece? Vós lhe dais um nome, surge o pensamento do

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idealismo, amor, “minha pátria”; quer dizer, vós lhe dais nome e
com isso lhe dais continuidade. É muito difícil deixar de denomi-
nar, porque o processo de dar nome é automático, instantâneo.
Mas suponhamos que não deis nome a um sentimento, que acon-
tece a esse sentimento? Certamente, o “registrador” não pode
identificar-se com esse sentimento. Não lhe dá substância, não lhe
dá força, não lhe dá vitalidade. Por isso, o sentimento se extingue.
A primeira vez que sentirdes a sensação que chamais “irritação”,
não lhe deis nome. Não digais: “Estou irritado”, não designeis a
sensação por um termo, e vede o que acontece. Vereis acontecer
uma coisa extraordinária. A mente se perturba, porque lhe desa-
grada ver-se em estado de incerteza. A perturbação torna-se,
então, mais importante do que o sentimento, e o sentimento é
esquecido e a perturbação fica. Mas a mente não gosta de estar
perturbada, perplexa; por conseguinte ela exige segurança, e bus-
ca a segurança, a certeza, no seu registro, na memória, com o que
fortalece o “registrador”.
É uma coisa verdadeiramente fascinante observar o pro-
cesso de nossa própria consciência. Mas nada disso se aprende
num livro. Nenhum livro pode ensiná-lo, e o que um livro ensina
não paga a pena aprender. Só se pode repetir o que um livro ensi-
na; mas se experimentais e descobris por vós mesmo, então sois
ao mesmo tempo mestre e discípulo, e não necessitais mais de
gurus, nem de livros, nem de nada. Sabeis então como atacar o
problema, como atacar qualquer problema que surge, por vós
mesmo. Sendo a um mesmo tempo mestre e discípulo, conheceis
os modos como funciona a vossa própria consciência. Descobris
que, quando não dais nome a uma sensação, esse sentimento,
essa sensação se extingue.
Assim, sois capaz de dizer: “Aprendi um ótimo truque. Já
sei como fazer com os sentimentos desagradáveis, como lhes por
fim, rapidamente: não lhes darei nome”. Mas, faríeis a mesma
coisa com relação aos sentimentos agradáveis? Parece-me que
não. Porquanto desejais que os sentimentos agradáveis continu-
em, desejais dar substância aos sentimentos agradáveis, desejais

113
conservá-los. Por essa razão continuareis a dar nome aos mesmos.
Mas isso de nada adianta; pois no momento em que dais nomes,
em que aplicais um termo a um sentimento que achais agradável,
estais inevitavelmente criando o oposto, e por conseguinte tereis
sempre o conflito dos opostos. Mas se não dais nome, se não ro-
tulais uma sensação, quer agradável, quer desagradável, tanto
uma como outra se desvanecerão; e, por conseguinte, o pensante,
que é o criador dos opostos, se extingue. Só então saberemos o
que é amor, porque amor não é sensação. Podeis dar-lhe nome,
mas quando o denominais estais designando a sensação do amor,
que não é amor. Quando amais alguém, que acontece? Quando
pensais em alguém, que acontece? Estais, na realidade, ocupado
com a sensação de tal pessoa; estais interessado nessa sensação,
e quanto mais importância atribuis à sensação, tanto menos amor
existe.
Ora, a pergunta é: “O Impulso sexual desaparecerá se lhe
não damos nome?” Desaparecerá, é claro; mas se não compreen-
deis todo o processo da consciência como expliquei muito cuida-
dosamente, o simples fato de pordes fim a um determinado im-
pulso, agradável ou desagradável, não faz surgir aquela qualidade
eterna do amor. Sem amor, o simples fato de pordes fim a um
impulso nenhuma significação tem, pois isso vos tornará tão ári-
dos como o idealista, cujas paixões são mantidas debaixo do mais
rigoroso controle. Porque se não compreendeis todo o processo
da consciência, as paixões estarão sempre presentes, ainda que
não lhes deis nomes. A compreensão de todo o processo é muito
difícil. Podeis ter compreendido as expressões verbais do que
acabo de explicar, mas o seu significado vivo, o seu significado
íntimo, só compreendereis pela experimentação. Como já tive
ocasião de dizer, quando há amor, há castidade. O homem, o
idealista, que deseja ser casto, que deseja ser desapaixonado –
esse homem nunca conhecerá o amor, porquanto só lhe interessa
tornar-se alguma coisa, o que representa uma outra forma de
egoísmo. Está empenhado unicamente nesta luta por atingir, al-
cançar o seu ideal, que é inexistente. Por isso, esse homem tem

114
um coração vazio, e esse coração vazio ele enche com as coisas da
mente. E como pode ele conhecer o amor, com o coração impreg-
nado de ideal, que é coisa feita pela mente?
Constitui pois um problema muito complexo e sutil essa
questão de dar designação, dar nome; mas vós a compreendereis,
se experimentardes. Há riquezas extraordinárias, há uma profun-
didade extraordinária na compreensão desse processo de dar
nome a um sentimento, a uma sensação. Uma vez tenhais aberto
as suas portas, descobrireis tesouros imensos; mas, para desco-
brir, necessitamos de liberdade para experimentar, e a liberdade
vem com a virtude – não no nos tornarmo-nos virtuosos, mas no
sermos virtuosos.
[...] SOU O PROCESSO TOTAL DO MUNDO; se me modifi-
co, se me transformo, opero uma transformação radical na socie-
dade; contudo, ser livre de ideologia, ser livre de crença – que
separa o homem do homem, sendo um hinduísta e outro muçul-
mano, um cristão o outro budista ser livre do instinto de aquisi-
ção, ser livre da inveja é coisa dificílima. E se um homem deseja
compreender todo o significado da existência, precisa compreen-
der a si mesmo – não como indivíduo oposto, à sociedade ou à
massa, mas como um processo total. Quer dizer: tem de estar
cônscio de cada pensamento, cada sentimento, cada ação; e, com
a compreensão do processo da avidez – que, como já expliquei, é
não dar nome, não pensar a respeito da avidez – ele põe fim à
avidez. Um homem assim conhecerá o amor; libertado dos ele-
mentos geradores de antagonismo – a crença, o nacionalismo, a
aquisição – será um fator que cooperará para a transformação
mundial.
[...] UM HOMEM QUE TEM um problema e com ele se
preocupa continuamente, durante anos, está morto, para ele não
há renovação: é um morto vivo, e apenas continua. Todavia, no
momento em que termina o problema, vem a renovação. Do
mesmo modo, onde há um findar, há renascimento, criação; mas
onde há continuidade não há criação. Apreciai, Senhores, esta

115
beleza, esta verdade: no findar, há amor. O amor é novo de mo-
mento em momento. Não é continuo, não é repetitivo. Esta a sua
grandeza, esta a sua verdade. Um homem que busca a continui-
dade, achá-la-á, sem dúvida, porque ele se identifica com uma
ideia, e a ideia ou memória continua: todavia, na mera continui-
dade não há renovação. Só na morte, só no findar há renovação, e
não na continuidade.
[...] ENCHEMOS NOSSAS VIDAS e nossas mentes de sím-
bolos, porque não possuímos “o outro”. Se amamos, não necessi-
tamos, por certo, do símbolo do amor, ou do exemplo do amor –
amamos, pura e simplesmente. Mas o homem que conserva na
sua mente um exemplo, um símbolo, uma imagem, um ideal, não
está evidentemente num estado de amor. Os símbolos, os exem-
plos, são, por conseguinte, empecilhos, e esses empecilhos se
tornam tão importantes que estamos matando os nossos seme-
lhantes e mutilando as nossas mentes e corações, por causa deles.
Porque, não apreciais as coisas diretamente? Amamos uma pes-
soa, uma árvore, não por causa daquilo que ela representa, não
porque seja uma manifestação da realidade, da vida, ou de qual-
quer coisa, pois isso é apenas uma explicação cômoda. Amamos,
apenas. Se amamos a vida, por ela própria, e não porque seja a
manifestação da realidade, então, nesse próprio amor pela vida,
encontramos o que é real. Mas, se tratais a vida como uma mani-
festação de outra coisa, então abominais a vida; desejais fugir da
vida, ou fazeis dela uma coisa medonha, que vós obriga a fugir da
realidade. Além disso, a mente presa aos símbolos não é uma
mente simples. E, necessita-se de uma mente muito simples, mui-
to clara, impoluta, incorruptível, para se encontrar o real. Uma
mente que está colhida na rede das palavras, das frases, dos man-
tras, dos padrões de ação, jamais compreenderá o que é real. Tem
que despojar-se de tudo para ser livre, e só então, por certo, pode
o real despontar.
[...] SE VÓS, COMO PAI, desejais realmente compreender
o vosso filho, vós o observais através da cortina de um ideal? Ou o
estudais, simplesmente, com amor no coração? Vós o observais,

116
observais o seu temperamento, as suas idiossincrasias. Porque
tendes amor, vós o estudais. É só quando não temos amor, que
temos um ideal. Observai a vós mesmos e o notareis. Quando nos
falta o amor, temos esses monstruosos exemplos e ideais, que
queremos impor à criança. Mas quando temos amor, nós a estu-
damos, nós a observamos e deixamos livre para ser o que ela é,
nós a guiamos e ajudamos, não para o ideal, não em conformida-
de com um determinado padrão de ação, mas, sim, para fazê-la
ser o que é.
Nesta questão vem à tona o problema do chamado “me-
nino terrível” – se posso usar a palavra para definir, rápida e ex-
pressivamente, um determinado ponto. Para fazê-lo deixar de ser
“terrível”, não necessitamos por certo de ideal algum. Se o meni-
no é mentiroso, não é necessário dar-lhe o ideal da verdade. De-
vemos averiguar porque mente. Pode haver várias razões – prova-
velmente tem medo ou deseja evitar alguma coisa. Não precisa-
mos examinar as várias razões do mentir. Mas, evidentemente,
quando uma criança mente, o obrigá-la a moldar-se por um pa-
drão de verdade não a ajuda a libertar-se das causas da mentira.
Precisamos estudá-la, precisamos observá-la, e, para tal necessita-
se muito tempo; requer-se paciência, desvelo, amor; e porque
isso vos falta, forçais a criança num padrão de ação a que chamais
ideal. Evidentemente, um ideal constitui uma fuga muito barata. A
escola que tem ideais ou o preceptor que segue ideais, é obvia-
mente incapaz de tratar com uma criança.
[...] Evidentemente é muito mais fácil seguir um ideal do
que observar, do que desvelar-se, do que despertar o amor pelas
crianças e pela humanidade. E esta é uma, das calamidades da
moderna educação: o chamado ideal, o fim em vista, seja uma
ideologia da extrema esquerda, seja da direita, se tornou um pa-
drão de ação, e produziu a presente catástrofe mundial.
[...] PERGUNTA: A discussão da experiência sexual não
constitui uma parte necessária da educação? Não é ela a única
solução racional para as perturbações ela adolescência?

117
KRISHNAMURTI: Senhor, a compreensão do sexo requer
inteligência, e não o ideal disto ou daquilo; e esta é, uma matéria
extremamente difícil, como qualquer outro problema humano. Se
o próprio educador não houver compreendido esse problema,
como pode educar outro indivíduo? Se ele próprio está colhido na
rede, na agitação, no extraordinariamente complexo problema do
sexo, como pode instruir outras pessoas. E porque é o sexo um
problema para ele? Evidentemente, porque ele próprio é incapaz
de criar. O sexo se torna então mero instrumento de prazer, uma
experiência que proporciona momentâneo deleite, momentânea
ausência do “eu”; e por isso se torna ele um problema. Enquanto
que, para ficar livres dele, precisamos investigar os vários empeci-
lhos que estão obstando à criação. Um dos fatores, sem dúvida, é
a imitação, a compulsão social para nos tornarmos alguma coisa
na sociedade. Seguir um ideal é decerto uma forma de compulsão,
uma forma de imitação: por essa razão não há pensar criador. Em
última análise, quando pensamos de maneira realmente criadora,
quando temos forte sensibilidade, o sexo é de muito pouca impor-
tância. É só quando não estamos atentos para todo o significado
da existência, para o movimento das aves, para as árvores, os
sorrisos, as alegrias do viver, quer sejamos ricos, quer pobres, – é
só então que o sexo se torna um problema.
Há outras coisas compreendidas nesta pergunta. Pode-se
transmitir a um adolescente o significado da experiência sexual?
Ele, naturalmente, tem curiosidade, quer saber o que significa
tudo isso. Isso depende também do preceptor ou dos pais. Em
geral eles próprios sentem vergonha e acanhamento, com relação
a este assunto, de modo que a coisa se torna, verdadeiramente
absurda. São sórdidas as suas mentes. Senhores, observai a vós
mesmos, como olhais para as pessoas, como olhais para homens e
mulheres. E pensais que sois capazes de esclarecer os adolescen-
tes a respeito deste assunto!
E há ainda outro problema: damos suma importância aos
valores sensuais, aos valores dos sentidos, sendo que a esse res-
peito o rádio, o cinema e as revistas exercem considerável in-

118
fluência. Apanhai qualquer revista ou jornal; todos os anúncios
vos atraem, vos despertam sensações. Assim, por um lado estimu-
lamos a sensação, o sexo, à sensualidade; e, por outro lado, dize-
mos: “Não, isso é feio; deveis ser puros, deveis seguir o ideal do
celibato”. É tudo absurdo. Criais a contradição em vosso espírito e
em tal estado de contradição ficais incapazes de compreender o
que quer que seja. Mas, se, considerardes o problema diretamen-
te, por vós mesmos, como um fato biológico evidente, pondo de
parte todas as imputações, todas as tradições, toda á fealdade
que lhe tem sido atribuída, podeis então, com a vossa compreen-
são do mesmo, prestar uma útil ajuda.
Como disse na resposta anterior, a criação não é o mero
ato sexual; ela é muito mais significativa e profunda. E só é possí-
vel a criação quando a mente não está empenhada com todas as
suas energias em proporcionar satisfações a si mesma. Senhores,
quando amamos, o amor é casto; e quando não há amor, o sexo
se torna um problema, um mau hábito. Assim, temos dificuldade
no tocante a todas estas questões, por que já nos tornamos em-
brutecidos, já estamos cansados. A vida nos tem imposto esforços
excessivos. Queremos ser confortados, queremos ser amados.
Sendo insuficientes, sendo interiormente pobres, de que maneira
poderemos, nós, os educadores, ministrar educação adequada?
Está bem claro, pois, como já manifestei, que o problema; em
primeiro lugar, é o professor, o educador, e não meramente a
educação do discípulo. Senhores, nossos corações e nossas men-
tes necessitam de purificar-se, para que sejamos de fato capazes
de educar outros seres. Podeis dizer que tudo isso são conselhos
melífluos, sem nenhum valor prático; mas, se o instrumento que
ensina está torto, como pode ele ministrar um bom ensino, os
conhecimentos corretos, a verdadeira sabedoria e a verdadeira
compreensão?
[...] PERGUNTA: Qual o lugar da disciplina na educação?
KRISHNAMURTI: Eu diria; nenhum. Um minuto, vou expli-
car-me. Qual é a finalidade da disciplina? Que se entende por

119
disciplina? Vós, que sois professor, quando disciplinais que acon-
tece? Forçais, compelis; há compulsão, ainda que sutil, ainda que
suave, o que significa, conformidade, imitação, temor. Mas, direis:
“Como pode uma grande escola funcionar sem disciplina?” Não
pode. É por esta razão que as grandes escolas deixam de ser insti-
tuições educativas. São instituições lucrativas, para o patrão ou
para o governo, para o diretor ou o proprietário. Senhor, se amais
o vosso filho, vós o disciplinais? Vós o compelis? Vós o forçais num
molde de pensamento? Vós o observais, não é verdade? Procurais
compreendê-lo, descobrir quais são os motivos, os impulsos, as
influências que estão atrás dos seus atos e, compreendendo-o,
criais o ambiente adequado, determinais a quantidade adequada
de sono, a quantidade adequada de recreações. Tudo isso é o que
se subentende, quando amamos uma criança; mas nós não ama-
mos nossos filhos, porque nos nossos corações não há amor. Nós
apenas criamos filhos. E naturalmente; quando temos muitos,
precisamos discipliná-los, e a disciplina se torna um meio muito
fácil de resolver a dificuldade. Disciplina, afinal de contas, significa
resistência. Vós criais uma resistência àquele que estais discipli-
nando. Pensais que a resistência produzirá compreensão, pensa-
mento, afeição? A disciplina só pode levantar muralhas em torno
de vós. A disciplina é sempre exclusiva, ao passo que a compreen-
são é inclusiva. A compreensão vem quando investigamos, quan-
do indagamos, quando perscrutamos, e isso requer zelo, conside-
ração, pensamento, afeição. Numa grande escola tais coisas não
são possíveis, e só o são numa escola pequena. Mas as escolas
pequenas não são lucrativas para o proprietário particular ou para
o governo; e visto que vós, que sois responsáveis pelo governo,
não estais de fato interessados nos vossos filhos, que importa
isso? Se amásseis os vossos filhos, não como simples brinquedos
que vos distraem por momentos e depois vos aborrecem, se deve-
ras amasseis os vossos filhos, permitiríeis que continuasse a haver
tais coisas? Não, desejaríeis saber o que comem, onde dormem, o
que fazem durante o dia, se lhes batem, se os esmagam, se os
destroem? Isso, porém, implica investigação, consideração por
outros, seja vosso filho, seja o filho do vizinho; e vós não tendes
120
consideração nem pelos vossos filhos, nem por vossa esposa ou
vosso esposo.
Assim, o problema está em vossas mãos. Não está nas
mãos de governo ou sistema algum. Se todos nós cuidássemos
verdadeiramente das crianças, teríamos uma nova sociedade
amanhã; mas nós, em verdade, não cuidamos, e por isso não te-
mos tempo. Temos tempo para praticar o puja, para ganhar di-
nheiro para frequentar os clubes, temos tempo para diversões,
mas não nos sobra tempo para pensar ou cuidar da criança. Não
me estou fazendo retórica. Este é um fato, e vós não desejais
olhá-lo de frente. Porque olhar o fato de frente significa que de-
veis abandonar os vossos divertimentos e distrações; e quereis
dizer que ides abandoná-los? De certo que não. Assim, jogais os
filhos nas escolas, e o professor não se importa mais com eles do
que vós. Porque deveria importar-se? Ele está lá porque é seu
emprego, para ganhar o seu dinheiro, e assim continuam as coi-
sas; e nos reunimos numa tarde, aqui, para discutir sobre educa-
ção! É mesmo maravilhoso este nosso mundo. Um mundo tão
superficial, tão falso, se olhamos atrás da cortina, e ficamos a
adornar à cortina, esperando que atrás dela tudo esteja muito
bem. Senhores, não creio que vós, educadores e pais, percebeis
como as coisas estão sérias. A catástrofe que assola este país é
bem evidente, mas vós não desejais desnudá-la e começar de
novo, por maneira nova. Desejais fazer reformas e remendos, e
por isso surgem todas estas questões. Senhores, urge começar de
novo, não pode haver reforma de remendos; porque o edifício
está ruindo, as paredes estão cedendo, e um incêndio o está des-
truindo. Tendes de abandonar, o edifício, e começar de novo nou-
tra parte, com outros valores, sobre outros alicerces. Mas os que
estão auferindo lucros da educação, seja o Estado, seja o indiví-
duo, continuarão do mesmo modo, porque estão cegos para a
destruição, a decomposição, a degradação. Já os que realmente
percebem a catástrofe, não apenas em alguns pontos, mas no
mundo inteiro, têm de despojar-se de tudo e começar de novo.
Não quero dizer que se despojem do conhecimento exterior, do

121
conhecimento técnico. Sei que desse ninguém pode despojar-se;
mas podeis despojar-vos interiormente, ver a vós mesmos tais
como sois, ver vossa fealdade, vossa brutalidade, vossa crueldade,
vossas falsidades, vossa desonestidade, vossa absoluta falta de
amor. Percebendo tudo isso, podeis começar de novo, tornando-
vos honestos, claros, simples, diretos. Positivamente, só então é
possível nascer um mundo novo e uma ordem nova. A paz não
vem com reformas de remendos. A paz não vem com o mero ajus-
tamento das coisas, tais como estão. A paz vem quando compre-
endemos o que é, além do superficial. Só pode nascer a paz,
quando a onda de destruição, que é a onda de nossa própria ação,
for detida. Senhores, como podemos ter amor? Não pelo cultivo
do ideal do amor, mas, tão só, quando não temos ódio, quando
não temos avidez, quando há consideração, quando há generosi-
dade; um homem que está ocupado com explorar, que tem avi-
dez, que tem inveja, nunca conhecerá o amor. Quando há amor,
os sistemas se tornam de importância diminuta. Quando há amor,
há consideração, não só para com as crianças, mas para com to-
dos os seres humanos.
[...] PERGUNTA: Tenho muito dinheiro. Podeis informar-
me qual é a verdadeira utilidade do dinheiro? Só peço que não me
aconselheis a desbaratá-lo em esmolas aos pobres. O dinheiro é
um instrumento de trabalho que deve ser utilizado e não uma
coisa incômoda de que devemos livrar-nos.
KRISHNAMURTI: Senhor, em primeiro lugar, como ganhais
dinheiro? Como acumulais dinheiro? Evidentemente pela explora-
ção, pela crueldade, pela barbaridade. No mundo moderno, em
que predomina a mentalidade de “cada um por si”, o homem tem
de ser hábil, astucioso, desonesto, para acumular dinheiro. Não
nos enganemos a esse respeito; ser rico implica crueldade. Se-
nhor, não sabeis que o rico não pode entrar no reino dos céus? É
mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha. Depois de
acumulardes dinheiro, que acontece? Desejais saber como em-
pregá-lo; ou vos tornais filantropo, ou desejais gastá-lo correta-
mente. Isto é, acumulais dinheiro incorretamente e depois quereis

122
gastá-lo corretamente. (Risos). Senhores, o caso não é para rir. É
isso que estamos fazendo. Não deveis rir dos ricos. Também vós
quereis ser ricos. Vós acumulais e depois quereis saber como em-
pregar o dinheiro corretamente. Como é possível isso?
Suponhamos, contudo, que me tenham deixado dinheiro
– o que graças a Deus não aconteceu – suponhamos que me dei-
xaram algum dinheiro. Que vou fazer com ele? Que devo fazer
depois de entrar na posse do dinheiro, como devo empregá-lo?
Este é o problema. Devo dá-lo todo aos pobres e ficar também
pobre, na dependência de outros? Devo guardar um pouco e dar o
resto? Devo empregá-lo como um meio correto, para um fim cor-
reto? Devo pô-lo a render? Meu problema, pois é este: tendo
adquirido ou herdado essa coisa que se chama dinheiro, que devo
fazer com ele? Senhor, isso depende do coração e não da mente;
a mente que acumulou dinheiro nunca é generosa. É uma mente
endurecida, e em tais condições é incapaz de lidar com coisas
materiais fora do seu nível próprio. Por conseguinte, só um cora-
ção que conhece o amor pode resolver este problema, e não a
mente, nem sistema algum. Se tendes amor no coração, sabereis
o que fazer com dinheiro – ou dá-lo todo, porque é incômodo, ou
proceder de outra maneira, de acordo com os ditames do vosso
coração. Todavia, conhecer os ditames de um coração afetuoso, é
dificílimo, em particular aos ricos, porque nunca pensaram em tais
termos de ação. Habituaram-se à crueldade, à dureza; e encarar o
problema com afetuosa consideração é dificílimo. Assim, mais
importante do que o dinheiro é o amor; e se tendes dinheiro mas
não tendes amor, ai de vós! Se tendes dinheiro e percebeis que
vosso coração está vazio, o problema não é, nesse caso, o dinhei-
ro, mas o de despertar as energias, o perfume, a beleza do cora-
ção; e quando os houverdes despertado, sabereis como agir. Sem
amor, tornar-se filantropo, meramente, constitui outra forma de
exploração. Quando se tem amor, então o amor mostrará o cami-
nho, tanto ao rico como ao pobre. Porque, Senhor, o amor é a
única solução: o amor é o único caminho pelo qual poderemos
sair desta contradição de ser rico e saber o que fazer com a rique-

123
za. Sem amor, o simples cogitar sobre o que fazer com a riqueza
se torna outra forma de fuga de nossa miséria, nossa luta, nosso
vazio.
[...] PERGUNTA: O efeito direto da vossa personalidade
não ajuda a compreender os vossos ensinamentos? Não assimila-
mos melhor o ensino quando amamos o instrutor?
KRISHNAMURTI: Não, Senhor. Compreendeis melhor
quando amais todas as pessoas, quando amais o vosso próximo e
não quando amais o instrutor. Quando amais vossa esposa, vosso
filho, vosso vizinho, branco ou de cor – porque no amor não há
distinções de classe – quando há um perfume, uma canção no
vosso coração, tereis compreensão. É claro que quando estais a
ouvir-me, as minhas explanações ajudam; porque eu me estou
expressando muito claramente, e vós me ouvis com atenção. Sois
forçado a escutar durante umas horas, querendo ou não queren-
do. Estais aplicando a vossa mente e o vosso coração a descobrir
algo; não viríeis aqui se não desejásseis descobrir. Há por conse-
guinte um esforço mútuo. Vós vindes procurar, e eu vos ajudo.
Pois, se não estivésseis procurando, não estaríeis aqui, não me
prestaríeis ouvido. Por certo, Senhor, quando uma pessoa com-
preende uma coisa claramente, e vós conversais com essa pessoa;
vossa mente se torna também clara. Mas se fazeis dessa pessoa
vosso guru, e a amais, se apenas amais o vosso instrutor, tereis
desdém por vosso servo. Não notastes, senhores, como sois res-
peitosos para comigo e como sois cruéis para com vosso servo,
vossa esposa, vossos vizinhos? Não é isso um estado de contradi-
ção? Quanto a mim, pouco se me dá que sejais respeitosos ou
insolentes para comigo; não tem muita importância isso. Mas tem
enorme importância a maneira como tratais a vossa esposa, o
vosso servo. Se quando respeitais um, negais igual respeito a to-
dos os demais, estais num estado de hipocrisia; esse respeito ofe-
recido a um e negado a outros nunca vos conduzirá à verdade. O
que traz a compreensão é o respeito para com o homem, o amor
pelo homem. Quando vosso próprio coração está cheio, procurais
então a verdade em toda a parte, escutais o canto dos pássaros,

124
as gotas de chuva, vedes os sorrisos e as tristezas do homem. Em
cada folha, numa folha morta, encontra-se aquilo que é eterno;
mas nós não sabemos procurá-lo, porque as nossas mentes estão
tão cheias de outras coisas, alheias a essa busca.
Assim, o mero respeito por um só é de muito pouca signi-
ficação, se não tendes respeito pelos demais – respeito no signifi-
cado de afeição, bondade, consideração; mas, quando há amor,
consideração, generosidade, que não causam inimizade, já estais
muito perto. Estais então em estado de sensibilidade, e o que é
sensível é capaz de receber. Não podeis ir à verdade, não podeis ir
ao desconhecido; a verdade o desconhecido, têm de vir a vós.
Mas não podem vir a vós se a vossa mente está carregada, pesa-
da, se ela é forçada, se é impiedosa, dura. Assim, se quando me
escutais, sois meramente estimulados pelo ouvido, isso não terá
significação alguma, pois todo estímulo é sensual. Só pode ter
significação na vossa ação diária, nas vossas relações com as pes-
soas, com as ideias, com as coisas. Descobrireis, então, Senhor, se
qualquer dessas coisas tem significação – e não ouvindo-me du-
rante umas horas. O que importa é como sois diante de vosso
servo, de vossa esposa, de vosso marido, de vosso vizinho; por-
que, no momento em que há pensamento, em que há pesquisa
atenta, inteligente, nesse momento há devotamento; porque a
busca da verdade é devotamento. E onde há devotamento, há
amor, há compreensão.
[...] PERGUNTA: O casamento é necessidade ou luxo?
KRISHNAMURTI: Examinemos este problema, esta per-
gunta. Porque nos casamos? Em primeiro lugar, naturalmente, por
força da necessidade biológica, do impulso sexual, que a socieda-
de legaliza pelo casamento. A sociedade deseja proteger a prole,
não deseja que ela seja ilegítima, porque a sociedade tem horror
aos filhos ilegítimos. Por isso, legaliza-se o casamento. De certo,
não é esta a única, razão por que nos casamos. Casamo-nos tam-
bém por exigência psicológica. Preciso de um companheiro ou
companheira, alguém que eu possua, e domine, e chame “meu”

125
ou “minha”. Posso fazer de minha mulher o que quiser, ela está
subordinada – no nosso país; na América, não. Aqui o sistema
matrimonial faz da mulher uma escrava, para ser protegida, do-
minada, governada, possuída. Não olheis para vossos vizinhos,
senhores; vós todos estais compreendidos nisso. A mulher é uma
coisa que se possui; assim como possuo bens, assim também,
possuo minha mulher. Possuo-a sexualmente e a domino exteri-
ormente. Psicologicamente, a posse me da conforto, me dá segu-
rança; minha propriedade, minha esposa, meus filhos – todo esse
horror. Tratamos seres humanos como tratamos as coisas maté-
rias, sem consideração alguma; porque, no momento em que vos
possuo legalmente, estais sob o meu domínio. Assim, a sociedade
legaliza o casamento com o fim de perpetuar a raça, mantendo-a
dentro de certos limites; mas psicologicamente, interiormente,
posso fazer o que bem entender. E vós bem conheceis as coisas da
vida, os horrores, as agonias, os sofrimentos dos que são casados
e não se amam. Como pode haver amor quando há instinto de
posse? E se não vos casais, que acontece? Tenho visto isso em
vários países; há o que se chama união livre. Não vos mostreis
chocados. A união livre, sem amor, constitui uma maneira muito
fácil de satisfazer o apetite sexual, com isenção de responsabili-
dades. Assim, sem o amor, tanto uma como outra coisa são horro-
rosas. Mas à sociedade não importa em absoluto se há amor ou
não. Como, na maioria, vivemos tão concentrados, tão absortos
em nossas atividades comerciais, em ganhar dinheiro, ou no que
quer que seja; como somos impiedosos no comercio e cruéis no
mundo, como é possível ter amor por alguém no lar? Não podeis,
de um lado, explorar o vosso próximo, fazê-lo morrer de fome,
sugar-lhe o sangue, e depois ir para casa e mostrar afeto para com
vossa esposa. Não, Senhores, não podeis fazer as duas coisas. No
entanto, é o que quereis fazer, e por isso não tendes amor. É por
isso que o casamento, no mundo inteiro, é uma coisa horrenda.
O casamento também é uma forma de perpetuação do
“eu”. Desejo a continuidade; através dos meus filhos. Por conse-
guinte, os filhos se tornam muito importantes, não por eles pró-

126
prios, mas por causa de minha continuidade – meu nome, minha
classe, minha casta. Vós conheceis muito bem essa história. E,
naturalmente, quando utilizais os vossos filhos só para a vossa
continuidade própria, não existe amor. Como pode haver, se ten-
des mais interesse na vossa continuidade através deles, do que
em amá-las, sejam eles o que forem. Por conseguinte, a tradição e
o nome se tornam importantíssimos, porque são os meios de vos
perpetuardes através de vossos filhos.
Assim para compreendermos este problema, descobrir-
mos o que ele encerra, cumpre estudá-lo, examiná-lo. Com o es-
tudo surge a inteligência, e só a inteligência e o amor podem re-
solver este problema, e nunca a legislação. Possuir uma pessoa é
como prostituí-la, isto é, a pessoa se torna importante, não por si,
mas porque, dentro em mim, estou vazio, faminto, sou mau, insu-
ficiente, pobre, e por isso utilizo outra pessoa – minha mulher,
meu patrão ou qualquer outro – para cobrir o meu vazio interior.
Por conseguinte, a pessoa possuída se torna importante como
meio de fuga da minha própria solidão; e naturalmente torno-me
ciumento, invejoso, quando a pessoa que me ajuda a fugir de mim
mesmo, olha para outra. Assim, para compreender todo, esse
processo humano, que é extremamente complexo e sutil, requer-
se inteligência. Inteligência é também amor, e não apenas intelec-
to; e não podemos ter amor se, por um lado, procedemos cruel-
mente em nossos negócios, na vida quotidiana, e por outro lado,
procuramos ser ternos, meigos e bondosos. Não podeis fazer as
duas coisas, não podeis ser um homem rico e ambicioso e ao
mesmo tempo amorável e carinhoso. Não podeis ser um magnata
da indústria ou um político inteligente, e ao mesmo tempo com-
passivo. As duas coisas não andam juntas. Só quando há amor,
compaixão – que é inteligência, a forma mais elevada de inteli-
gência – é que pode ser resolvido este problema. Somos entes
humanos, homens e mulheres; somos seres vivos, sensíveis, não
somos capachos para sermos pisados, para sermos utilizados se-
xualmente ou mentalmente, para satisfação egoísta. No momento
em que nos considerarmos uns aos outros como seres humanos,

127
como indivíduos, não como algo para ser possuído, teremos então
a possibilidade de compreender e de transcender esse conflito
existente entre dois cônjuges.
[...] PERGUNTA: O apego é a matéria-prima de que somos
feitos. Como podemos ficar livres do apego?
KRISHNAMURTI: De certo, o problema não é a capacidade
de apegar-nos. Porque vos apegais e porque desejais vos desape-
gar? Porque esta luta constante ente apego e desapego? Vós sa-
beis o que significa apego: o desejo de possuir uma pessoa, o de-
sejo de possuir coisas. Senhor, porque tendes apego? Que acon-
teceria se não tivésseis apego? O apego, sem dúvida, se torna um
problema quando há o desejo de desapego, quando o que está
apegado não é compreendido. Consideremos um exemplo: Se
examinardes a vós mesmo, qual a razão do vosso apego por vossa
esposa, vosso marido, vosso dinheiro, vossa casa, vossa proprie-
dade, vossas ideias? Qual a razão? A razão é que, sem essa pes-
soa, estais perdido, ficais vazio; sem propriedade, sem nome, na-
da sois; e que sois vós, sem vosso depósito no banco, sem as vos-
sas ideias? Uma concha vazia, não é assim? Então, como tendes
medo de ser nada, apegai-vos a alguma coisa; e tendo esse apego
– com todos os seus problemas, seus temores, suas crueldades,
suas ansiedades e frustrações – procurais desapegar-vos; tentais
renunciar à propriedade, renunciar à família, renunciar às vossas
ideias. Mas não resolveis realmente o problema, que é o medo de
ser nada – pois é por isso que vos apegais. Afinal, vós sois nada.
Despojai-vos de vossos títulos, de vossos diplomas, de vossas pro-
fissões e das vossas pequenas qualidades, de vossas casas e pro-
priedades, de vossas poucas joias, e tudo o mais – o que resta de
vós? Sabendo, interiormente, da existência de um extraordinário
vazio, um vácuo, um nada, e temendo-o, vós vos apegais, vós pos-
suís; e nessa posse há uma crueldade medonha. Não vos interessa
o bem do outro, só vosso próprio bem interessa, etc. – e isso
chamais amor. Porque tendes medo, porque existe o temor àque-
le vazio, estais pronto a matar o semelhante, a destruir a humani-
dade. Então, porque não reconhecer o fato óbvio; que não sois

128
nada? – o que não quer dizer que deveis ser nada, mas sim, que
realmente nada sois. Senhor, quando reconheceis esse fato, não
há renuncia, nem apego, nem desapego. Vós não possuis, sim-
plesmente – e há então beleza, riqueza, uma bênção, que de mo-
do nenhum podeis compreender enquanto temerdes o vazio. A
vida é então cheia de significação, a vida se torna então um ver-
dadeiro milagre. O homem que teme o vazio, que teme o ser na-
da, é um homem apegado; e com apego surge o conflito do desa-
pego, o conflito da renúncia e todo o medonho sofrimento e cru-
eldade inerentes ao apego e à dependência. O homem que é nada
conhece o amor, porque o amor é o nada.
[...] PERGUNTA: Que entendeis por amor?
KRISHNAMURTI: Aqui também, vamos descobrir pela
compreensão o que o amor não é; porque, uma vez que o amor é
o desconhecido, só nos podemos aproximar dele se abandonar-
mos o conhecido. Por certo, o desconhecido não pode ser desco-
berto por uma mente cheia do conhecido. Nessas condições, o
que vamos fazer é descobrir os valores do conhecido, examinar o
conhecido; e depois de o considerarmos com simplicidade, sem
condenação, a mente estará livre do conhecido, e saberemos en-
tão o que é o amor. Assim, devemos considerar o amor negativa-
mente, não positivamente.
Que é pois o amor, para a maioria de nós? Quando dize-
mos que amamos alguém, que queremos dizer? Queremos dizer
que possuímos essa pessoa. Dessa posse nasce o ciúme, porque,
se eu perco a pessoa que amo, que acontece? Fico vazio, perdido.
Por conseguinte, legalizo a posse. Retenho a posse no meu poder.
Do reter, do possuir a pessoa, resultam ciúmes, temores e a infi-
nidade de conflitos inerentes à posse. Positivamente, essa posse
não é amor, é? Não me deis assentimento com a cabeça; porque
se concordais comigo estais de acordo apenas no nível verbal e tal
maneira de concordar não tem significação alguma. Só podereis
concordar, quando não possuirdes a vossa propriedade, à vossa
esposa, as vossas ideias.

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O amor, é evidente, não é sentimento. Ser sentimental,
ser emotivo, não significa ter amor, porque o sentimentalismo e a
emoção são meras sensações. O indivíduo religioso que chora por
causa de Jesus ou de Krishna, por causa do seu guru ou outro
qualquer, é apenas sentimental, emotivo. Está entregue à sensa-
ção, que é um processo de pensamento, e o pensamento não é
amor. O pensamento é resultado, da sensação. Por isso mesmo a
pessoa sentimental, emotiva, não pode em absoluto conhecer o
amor. Com efeito, não somos emotivos e sentimentais? O senti-
mentalismo, a emotividade, são puras formas de auto-expansão.
Estar cheio de emoção não significa ter amor, porque uma pessoa:
sentimental pode tornar-se cruel quando os seus sentimentos não
são correspondidos, quando não consegue dar expansão aos seus
sentimentos. A pessoa emotiva pode ser incitada ao ódio, à guer-
ra, à carnificina. E o homem, sentimental, lacrimoso por sua reli-
gião, esse homem, positivamente, não tem amor. É óbvio que não
há amor quando não existe o verdadeiro respeito, quando não
respeitais o vosso semelhante, seja vosso servo ou vosso amigo. Já
notastes que não sois respeitosos, bondosos, generosos para com
vossos servos, para com as pessoas que – como se costuma dizer
– estão “abaixo” de vós? No entanto, tendes respeito aos que
estão acima; ao vosso patrão, ao milionário, ao homem que pos-
sui um palacete e um título, ao homem que pode dar-vos um em-
prego melhor, àquele de quem podeis ganhar alguma coisa. Mas
tratais a pontapés os que vos estão subordinados, tendes uma
linguagem especial para eles. Logo, onde não há respeito, não há
amor; onde não há compaixão, piedade, perdão, não há amor. E
como quase todos nós nos achamos nesse estado, não temos
amor. Não somos nem respeitosos, nem compassivos. Temos a
paixão pela posse, abundamos em sentimentos e emoções, que
podem ser voltados tanto para um como para o outro lado: para o
assassínio, a carnificina, ou para a unificação em prol de alguma
intenção estulta e ignorante. Como, em tais condições haver
amor? Só podereis amar quando essas coisas todas houverem
cessado, acabado, quando não mais possuirdes, não mais fordes
sentimentais vossa devoção a um objeto. Essa devoção é uma
130
suplica, é buscar alguma coisa, de maneira diferente. O homem
que reza não sabe o que é amor. Visto que tendes a paixão da
posse, visto que buscais um fim ou resultado; com a vossa devo-
ção, com as vossas preces – o que vos faz sentimentais – natural-
mente não há amor; e, evidentemente, não existe amor quando
não existe respeito. Podeis dizer que tendes respeito, mas vosso o
vosso respeito é para o superior, é apenas o respeito proveniente
do desejo de alguma coisa, ou o respeito do temor. Se realmente
sentísseis respeito, seríeis respeitosos tanto para com os ínfimos
dos vossos semelhantes como para os que estão mais “alto”, co-
mo se costuma dizer; e visto que não tendes este respeito, não há
amor em vós, Quão poucos de nós somos generosos, indulgentes,
compassivos! Só somos generosos, quando compensa, só somos
compassivos, quando podemos ver alguma retribuição. Assim,
quando desaparecerem essas coisas, quando elas não mais vos
ocuparem a mente, e quando as coisas da mente não mais enche-
rem os vossos corações, tereis então o amor; e só o amor é capaz
de transformar a loucura e a insânia que dominam o mundo de
hoje – não os sistemas, nem as teorias, da esquerda ou da direita.
Só amais deverás quando não possuis, quando não sois invejosos,
nem áridos, quando sois respeitosos, quando tendes piedade e
compaixão quando tendes consideração para com vossa esposa,
vossos filhos, vosso vizinho, vossos desditosos servos, que não
têm um dia de folga, que se tornaram vossos escravos. Quando
fordes respeitosos para com todos e não apenas para com os vos-
sos gurus, para com o homem que vos é superior conhecereis o
amor. Só esse amor pode transformar o mundo, só ele pode en-
cher o mundo de compaixão e da beleza. Mas se encheis os vos-
sos corações com as coisas feitas pela mente ou pela mão, não há
amor; e viveis numa batalha constante uns com os outros. Mas se
perceberdes, se estiverdes cônscios dessas coisas todas, sem en-
trardes em conflito com elas, haverá então uma liberdade, e nessa
liberdade se encontra o amor que não é teórico. Podeis sentir o
amor com todas as suas benção, seu perfume, sua delicadeza,
mas só se “vós” deixardes de existir, só se “vós” deixardes de que-

131
rer alcançar ou de querer tornar-vos alguma coisa. Só esse amor
pode transformar o mundo.
Da insatisfaçã o à felicidade

[...] PERGUNTA: A família é o arcabouço do nosso amor e


nossa avidez, do nosso egoísmo e nossa divisão. Que lugar tem ela
no vosso esquema das coisas?
KRISHNAMURTI: Senhores, eu não tenho esquema das
coisas. Vede de que maneira absurda pensamos na vida! A vida é
uma coisa viva, uma coisa dinâmica, ativa, não podeis encerrá-la
num arcabouço. São os intelectuais que põem a vida num molde,
que têm um esquema para sistematizá-la. Está visto, pois, que não
tenho esquema algum. Vamos agora olhar os fatos. Em primeiro
lugar, temos o fato de nossas relações com os outros, uma espo-
sa, um marido ou um filho — as relações a que chamamos família.
Examinemos o fato que é, e não o que gostaríamos que fosse.
Qualquer um pode enunciar ideias precipitadas acerca da vida
familiar; mas se podemos olhar, examinar, compreender o que é,
então, talvez sejamos capazes de transformá-la. Mas se, pura e
simplesmente, cobrimos o que é, com uma coleção de palavras
bonitas — responsabilidade, dever, amor — fazemos coisa sem
significação alguma. O que vamos fazer é examinar aquilo que
chamamos família. Porque, Senhores, para compreendermos uma
coisa, precisamos examinar o que é, e não cobri-la com frases de
som agradável.
Pois bem, que é isso a que chamamos família? Trata-se,
obviamente, de uma relação de intimidade, de comunhão. Ora,
em vossa família, em vossas relações com vossa esposa, vosso
marido, há comunhão? Isso é, por certo, o que se entende por
relação, não é verdade? Relação significa comunhão sem temor,
liberdade de mútua compreensão, de comunhão direta. Relação,

132
obviamente, significa isto: estar em comunhão com outra pessoa.
Vós estais? Estais em comunhão com vossa esposa? Talvez este-
jais, fisicamente, mas isso não é relação. Vós e vossa esposa viveis
dos lados opostos de uma muralha de isolamento, não é verdade?
Tendes os vossos alvos e ambições próprios, e ela os seus. Viveis
atrás da muralha e de vez em quando olhais por cima dela — a
isso chamais estar em relação. Isso é um fato, não? Podeis ampliá-
lo, suavizá-lo, introduzir uma nova coleção de palavras para o
descrever, mas esse é o fato real — que vós e alguém viveis no
isolamento, e chamais relação essa vida no isolamento.
Ora, se existem relações reais entre duas pessoas, o que
significa que existe comunhão entre elas, o que isso implica é de
extraordinária significação. Porque então não há isolamento, há
amor, e não responsabilidade ou dever. São as pessoas que vivem
isoladas atrás de suas muralhas que falam de dever e responsabi-
lidade. Um homem que ama, porém, não fala de responsabilidade
— ele ama. Por isso partilha com alguém a sua alegria, a sua tris-
teza, o seu dinheiro. São assim as nossas famílias? Há comunhão
direta com vossa esposa, com vossos filhos? Evidentemente não
há, senhores. Por conseguinte, a família não passa de um pretexto
para continuardes o vosso nome e a vossa tradição, para dardes a
vós mesmo o que desejais, sexual ou psicologicamente. A família,
portanto, se torna um meio de autoperpetuação, transmissão do
vosso nome. Isso já é uma espécie de imortalidade, uma espécie
de permanência. A família serve também como meio de satisfa-
ção. Fora de casa, exploro os outros impiedosamente, no mundo
dos negócios, no mundo político ou social, e em casa procuro ser
afetuoso e generoso. Que absurdo! Ou, o mundo é insuportável
para mim, desejo paz, e refugio-me no lar. Sofro no mundo e ten-
to achar conforto no lar. Desse modo, sirvo-me das minhas rela-
ções como meio de satisfação, o que significa que não desejo ser
perturbado pelas minhas relações.
Então, Senhores, não é isso o que está acontecendo? Em
nossas famílias o que há é isolamento, e não comunhão; logo, não
há amor. Amor e sexo são duas coisas diferentes, de que tratare-

133
mos noutra ocasião. Podemos criar, em nosso isolamento, uma
espécie de abnegação, de devoção, de bondade, mas isso está
sempre atrás da muralha, porque temos maior interesse em nós
mesmos do que noutros. Se tivésseis interesse pelo próximo, se
estivésseis em real comunhão com vossa esposa, com vosso mari-
do, e estivésseis, por conseguinte, aberto para o vosso próximo, o
mundo não estaria nesta desgraça. Eis porque as famílias que
vivem em isolamento se tornam um perigo para a sociedade.
Como, então, quebrar esse isolamento? Para quebrarmos
esse isolamento, precisamos estar cônscios dele, não devemos
dissociar-nos dele, ou dizer que ele não existe. Ele existe, é um
fato evidente. Tomai nota da maneira como tratais a vossa espo-
sa, vosso marido, vossos filhos, notai a insensibilidade, a brutali-
dade, as asserções tradicionais, a falsa educação. Quereis dizer,
Senhores e Senhoras, que se amásseis vossa esposa ou vosso ma-
rido teríamos este conflito e esta miséria que vão pelo mundo? E
por não saberdes amar vossa esposa, vosso marido, não sabeis
amar a Deus.
Desejais Deus como mais um meio de isolamento, de se-
gurança. Deus, afinal de contas, é a segurança final; mas isso não
é uma busca de Deus, é tão somente, um refúgio, uma fuga. Para
achardes Deus, precisais saber amar não a Deus mas os seres hu-
manos em derredor de vós, as árvores, as flores, os pássaros. Só
quando souberdes amá-los, sabereis deveras o que é amar a Deus.
Se não amardes ao próximo, se não souberdes o que significa
estar em perfeita comunhão com alguém, não estareis em comu-
nhão com a verdade. Não pensamos no amor, não nos interessa
estar em comunhão com alguém. Queremos segurança, na famí-
lia, na propriedade, ou nas ideias; e a mente que busca segurança,
jamais conhecerá o amor. O amor é a coisa mais perigosa que
existe, pois quando amamos a alguém somos vulneráveis, esta-
mos abertos; e não queremos estar abertos. Não queremos ser
vulneráveis. Queremos estar fechados, queremos ter mais confor-
to dentro de nós.

134
Mais uma vez, senhores, produzir uma transformação em
nossas relações não é um caso de legislação, de compulsão de
acordo com Shastras, etc. Para produzirmos uma transformação
radical na vida de relação, cumpre começar por nós mesmos. Ob-
servai a vós mesmos, como tratais vossa esposa e vossos filhos.
Vossa esposa é uma mulher, e tanto basta para servir-vos de ca-
pacho! Não olheis para as senhoras, olhai para vós mesmos. Se-
nhores, não me parece que compreendeis o estado catastrófico
do mundo no momento presente, pois do contrário não vos mos-
traríeis tão despreocupados. Estamos à beira de um precipício —
moral, social e espiritual. Não vedes que a casa está ardendo, e
vós morais nela. Se soubésseis que a casa está em chamas, se
soubésseis que estais na beira do abismo, trataríeis de agir. Mas,
por desventura, estais em comodidade, tendes medo, tendes con-
forto, estais embotados, moles, quereis satisfação imediata. Dei-
xais as coisas ao sabor da corrente, e eis que se aproxima a catás-
trofe mundial. Não se trata de simples ameaça, é uma realidade.
Na Europa, a guerra já está em marcha — guerra, guerra, guerra,
desintegração, insegurança. Afinal de contas, tudo o que atinge
aos outros atinge a vós mesmos. Sois responsáveis pelos outros,
não podeis fechar os olhos e dizer “estou bem seguro aqui em
Bangalore”. Esta é evidentemente uma ideia muito míope e muito
tola.
Vemos, pois, que a família se torna um perigo quando há
isolamento entre marido e mulher, entre pais e filhos, porque em
tal caso a família induz ao isolamento geral; mas, quando são der-
rubadas as muralhas de isolamento, na família, estais em comu-
nhão, não só com vossa esposa e vossos filhos, mas também com
o vosso próximo. Aí, a família já não é uma coisa fechada, limita-
da, já não é um refúgio. O problema, portanto, não é de outra
pessoa mas nosso.
[...] PERGUNTA: Que função tem o poder em vosso es-
quema das coisas? Pensais que os negócios humanos podem ser
governados sem compulsão?

135
KRISHNAMURTI: Mas que quereis dizer com “vosso es-
quema das coisas”? Evidentemente, vós pensais que eu tenho um
padrão no qual estou encaixando a vida. (Risos). Por favor, isso é
muito importante, não riais. Os mais de nós temos um esquema,
um plano de como a vida deveria ser, de acordo com Marx, com
Buda, Cristo, ou Sankara, ou de acordo com as Nações Unidas, e
forçamos a vida neste molde. Dizemos: “É um plano maravilhoso,
ajustemo-nos a ele” — o que é um absurdo. Cuidado com o ho-
mem que tem um esquema de vida! — quem o segue, está se-
guindo a confusão e o sofrimento. A vida é muito mais vasta do
que qualquer plano que qualquer ser humano seja capaz de in-
ventar. Portanto, não falemos mais nisso.
“Qual a função do poder...? Pensais que os negócios hu-
manos podem ser governados sem compulsão?”. Ora, que enten-
deis por “poder”? Há o poder que nos dão as riquezas, o poder
que a ciência nos trás, o poder de uma ideia, o poder do técnico.
Qual é o poder que temos em mente? É óbvio que é o poder de
controlar, de dominar. Isso é o que entendemos por poder, não é
verdade? O poder que cada um deseja é o poder que exercemos
em casa sobre nossa mulher ou nosso marido — mas queremos
um poder maior, para controlar, para dominar os outros. Há tam-
bém o poder que colocamos nas mãos do chefe. Porque estamos
confusos, entregamos aos chefes as rédeas da autoridade, e ele
começa a guiar-nos e a controlar-nos; ou talvez vós mesmo dese-
jais ser o chefe, etc. etc. E há o poder do amor, da compreensão,
da bondade, da piedade, o poder da realidade. Pois bem, preci-
samos esclarecer qual o poder a que nos referimos. Há o poder de
um exército, esse poder monstruoso, que destrói, que mutila, que
trás horrores à humanidade; e há o poder de um governo forte,
de uma personalidade forte. Ter poder é relativamente fácil. O
poder implica domínio; e quanto mais poder temos, piores fica-
mos — o que se tem provado repetidamente, na história. O poder
de dominar, de moldar, de afeiçoar, de controlar, de forçar outros
a pensarem o que as autoridades desejam que pensem — este,
positivamente, é um poder absolutamente maléfico, um poder

136
sinistro e estúpido. Assim também é o poder do homem rico que
ostenta em sua fábrica, e o poder do homem ambicioso, nos ne-
gócios do Estado. Tudo isso, evidentemente, é poder na forma
mais estúpida, porque domina, controla, molda, desfigura seres
humanos.
E há o chamado poder do amor, poder da compreensão. O
amor é um poder? O amor domina, contorce, molda o coração
humano? Se o faz, não é amor. O amor, a compreensão, a verda-
de, tem sua qualidade própria; não constrangendo, não se acha
no mesmo nível que o poder. O amor, a verdade, ou a compreen-
são, surge depois de cessarem todas essas ideias de compulsão,
autoridade, dogmatismo. A humildade não é o oposto da autori-
dade ou do poder. O cultivo da humildade não é mais do que um
desejo disfarçado de autoridade e de poder.
Bem, que é que está acontecendo no mundo? O poder
dos governos, dos estados, o poder dos chefes, dos oradores e
escritores talentosos, está sendo usado cada vez mais para moldar
o homem, para constranger o homem a pensar numa determina-
da direção, ensinar-lhe, não a pensar, mas o que pensar. Esta se
tornou a função dos governos, com seu enorme poder de propa-
ganda — que é a incessante repetição de uma ideia; e toda repeti-
ção de uma ideia ou de uma verdade, se transforma em mentira.
Porque existe confusão e sofrimento em nossas mentes e cora-
ções, criamos chefes para nos controlarem, para nos moldarem, e
é isso o que fazem os nossos governos. Pelo mundo todo há con-
formidade aos ditames dos militares, e o ambiente social nos in-
duz ao conformismo; e pensais que a compreensão ou o amor
nasce da compulsão? Pode haver boa vontade por meio de com-
pulsão? Se eu fosse um ditador, poderia compelir-vos, à compul-
são? Assim, a compulsão que resulta do pormos imensos poderes
nas mãos daqueles que são capazes de manejá-los, não une os
homens.
Como eu estava explicando, a compulsão é o resultado de
uma ideia. Não há dúvida de que o homem que está ébrio de uma

137
ideologia, é intolerante, e cria a tortura da compulsão. É bem evi-
dente que nunca pode haver compreensão, amor, comunhão,
quando há compulsão; e não se pode construir sociedade alguma
na base da compulsão. Tal sociedade poderá florescer tecnica-
mente, superficialmente, durante um certo tempo; mas, interior-
mente, haverá a angústia da compulsão, e, por conseguinte, tal
como um prisioneiro encerrado em quatro paredes, haverá sem-
pre a busca de um meio de libertação, de fuga, a procura de uma
saída. Assim, um governo ou uma sociedade que constrange, que
molda, que força o indivíduo, exteriormente, acabará criando
desordem, caos e violência. É isso exatamente o que está aconte-
cendo no mundo.
Outrossim, nós nos obrigamos a moldar-nos a um padrão,
chamando isso disciplina, que significa repressão, e a repressão
nos confere um certo poder. Mas em qualquer dos dois extremos,
em qualquer dos dois opostos, não existe estabilidade: a mente
humana oscila entre um e outro, fugindo à serena estabilidade da
compreensão. A mente que é compelida, a mente cativa do po-
der, nunca poderá conhecer o amor; e sem o amor, não há solu-
ção para os nossos problemas. Podeis adiar a compreensão, inte-
lectualmente podeis evitá-la, podeis construir pontes, com muita
habilidade, mas tudo isso será temporário; sem a boa vontade,
sem a generosidade, sem a benevolência, haverá, necessariamen-
te, miséria e destruição em escala cada vez maior, porquanto a
compulsão não é o cimento que une os seres humanos. A compul-
são sob qualquer forma, interior ou exterior, só pode gerar mais
confusão e mais sofrimento. O que se torna necessário nos negó-
cios mundiais atualmente não são mais ideias, mais planos, chefes
maiores e melhores, mas, sim, boa vontade, afeição, amor, bon-
dade. Por conseguinte necessária é a pessoa que ama, que é bon-
dosa; e essa pessoa sois vós, e nenhuma outra. O amor não é a
adoração de Deus; podeis adorar uma imagem de pedra, ou vossa
concepção de Deus, e isso representa uma fuga maravilhosa do
vosso marido brutal ou da vossa implicante esposa, mas não re-
solve nossa dificuldade. O amor constitui a única solução, e amor

138
é benignidade para com vossa esposa, para com vosso filho, para
com vosso próximo.
[...] PERGUNTA: Amais as pessoas às quais falais? Amais a
turba apática e repulsiva, os rostos sem expressão, a atmosfera
mal cheirosa de desejos petrificados, de lembranças pútridas, a
decadência de vidas inúteis? Ninguém pode amá-las. Que é que
vos impele a essa labuta de escravo, a despeito da vossa repug-
nância tão evidente quão compreensível?
KRISHNAMURTI: Não, senhores, não há essa repugnância
que dizeis óbvia e compreensível. Não sinto repulsa alguma. Vejo
tudo isso simplesmente como um fato. Um fato nunca é feio. En-
quanto falais muito seriamente, um homem pode estar coçando a
orelha ou balançando as pernas, ou olhando em torno de si. Vós
notais esse fato, simplesmente, e não ficais revoltado por sua
causa. Não desejais evitá-lo, nem o detestais. Um cheiro é um
cheiro: nós o percebemos, simplesmente. É de suma importância
compreender esse ponto. Perceber um fato como um fato é uma
importante realidade. Mas no momento em que o lamento, em
que o evito, em que lhe dou um nome, um conteúdo emocional,
há naturalmente repugnância, há o desejo de evitá-lo, e surge a
resistência. Ora, tal não é absolutamente a minha atitude e pare-
ce-me que o interrogante me conhece mal. É como ver uma pes-
soa com um sari vermelho ou um casaco branco; mas, se damos
um conteúdo emocional ao vermelho e ao branco, dizendo que
este é belo e aquele é feio, somos então repelidos ou atraídos.
A parte essencial desta pergunta é: porque falo? Porque
me sacrifico, se não amo as pessoas de “rostos inexpressivos, de-
sejos petrificados, lembranças pútridas etc.”? E o interrogante diz
que ninguém as pode amar. Ora, nós amamos as pessoas, ou exis-
te o amor? O amor é independente das pessoas e por isso ama-
mos as pessoas, ou estamos em “estado de amor”? Entendeis o
que quero dizer? Se digo “amo as pessoas” e trabalho como es-
cravo, e me sacrifico, fazendo conferências, então as pessoas se
tornam muito importantes, e não o amor. Isto é, se tenho a inten-

139
ção de vos converter a uma determinada crença e trabalho nesse
sentido como um escravo, da manhã à noite, porque penso que
sereis felizes se crerdes na minha fórmula, é então a fórmula, a
crença, que eu amo, e não a vós. Suporto então com paciência
toda a fealdade, “os desejos petrificados e a atmosfera mal chei-
rosa” e digo que isso faz parte dos meus misteres; torno-me um
mártir do meu credo, que creio benéfico para vós. Nesse caso,
amo a minha crença; e como a minha crença é minha própria pro-
jeção, amo a mim mesmo. Afinal de contas, o homem que ama
uma crença, uma ideia, um plano, identifica-se com essa fórmula,
que é uma projeção de si próprio. Nunca esse homem se identifica
com uma coisa que não aprova. Se gosta de si, esse mesmo gostar
é sua própria projeção.
Agora, se me é possível dizê-lo sem ser pessoal, o meu ca-
so é de todo diferente. Não estou procurando converter-vos, ca-
tequizar-vos, não estou fazendo propaganda contra nenhuma
religião. Estou apenas expondo os fatos, porque me parece que
basta a compreensão desses fatos para ajudar um homem a viver
mais feliz. Quando amais uma coisa, quando amais uma pessoa,
qual é o vosso verdadeiro estado? Amais a pessoa, ou estais em
“estado de amor”? Por certo, a pessoa só vos atrai ou repele,
quando não vos achais naquele estado. Quando estais naquele
“estado de amor” não existe repugnância. Ele é como uma flor
que exala o seu perfume: perto dela uma vaca pode ter deixado a
sua marca, mas a flor continua a ser uma flor, a exalar perfume.
Mas vem um homem e, vendo o excremento da vaca ao lado da
flor, considera-o de, modo diferente. Senhor, nesta pergunta está
contido todo o problema da atração e da repulsão. Queremos ser
atraídos, isto é, identificar-nos com aquilo que é agradável, e evi-
tar aquilo que é feio. Mas se simplesmente consideramos as coi-
sas como elas são, o fato em si nunca é repelente: é simplesmente
um fato. Um homem que ama está todo entregue ao seu amor,
não lhe importando se as pessoas têm “rostos inexpressivos, de-
sejos petrificados e lembranças pútridas”. Não o sabeis, senhores?
Quando amais alguém, em verdade o seu aspecto não importa

140
muito, não importa se tem um rosto inexpressivo ou um rosto
belo. Quando há amor, isso é de somenos importância. Embora
observeis os fatos, os fatos não vos repugnam. Não é o amor,
mas, sim, o coração vazio, o espírito árido, o intelecto endurecido,
que é repelido ou atraído. E quando uma pessoa ama não há es-
cravização. Há sempre uma renovação, uma fresca vitalidade, uma
alegria não no falar, não no emitir uma porção de palavras, mas
naquele próprio estado. É quando não amamos que essas coisas
assumem importância — se a pessoa é atraente ou repelente, se
seu rosto é disforme ou belo, etc. etc.
Assim, pois, não importa saber por que razão “labuto co-
mo um escravo”. Nosso problema resulta de que não temos amor.
Porque os nossos corações estão vazios, as nossas mentes embo-
tadas, cansadas, procuramos encher o coração vazio com as coisas
feitas pela mente ou pela mão; ou recitamos palavras, mantras, e
praticamos pujas. Mas essas coisas não nos encherão o coração;
pelo contrário, o esvaziarão de tudo o que porventura contenha.
O coração só pode encher-se quando a mente está tranquila.
Quando a mente não está criando, fabricando, quando não está
cativa das ideias, só então o coração está vivo. Sabemos então o
que significa possuir aquele calor, a plenitude que há em segurar a
mão de outra pessoa.
PERGUNTA: Toda carícia não é sexual? O sexo não é todo
uma forma de revitalização, pela interpretação e o intercâmbio? A
simples troca de olhares amorosos é também um ato sexual. Por-
que verberais o sexo, associando-o ao vazio das nossas vidas? As
pessoas vazias conhecem o sexo? Só conhecem a descarga.
KRISHNAMURTI: Receio que só as pessoas vazias conhe-
cem o sexo, porque o sexo, para elas, é uma fuga, um mero alívio.
Chamo vazia a pessoa que não tem amor; e para ela o sexo se
torna um problema, uma questão importante, uma coisa que se
deve evitar ou satisfazer. O coração está vazio, quando a mente
está repleta de suas próprias ideias, invenções e mecanizações.
Porque a mente está cheia o coração está vazio; e é só o coração

141
vazio que conhece o sexo. Senhores, ainda não o notastes? Um
homem afetuoso, um homem cheio de ternura, de bondade, con-
sideração, não é sexual. É o homem intelectual, o homem cheio
de saber — pois o saber é diferente da sabedoria — o homem que
tem planos, que quer salvar o mundo, que está cheio de intelecto,
cheio de produtos da mente — é esse homem que é dominado
pelo sexo. Porque sua vida é superficial e seu coração vazio, o
sexo cresce de importância: é o que está sucedendo, na civilização
atual. Cultivamos em excesso o intelecto, e a mente ficou presa às
suas próprias criações, como o rádio, o automóvel, os divertimen-
tos mecanizados, o saber técnico, e os vários gostos a que a men-
te se entrega. Para a mente assim cativa, só há uma possibilidade
de libertação, que é o sexo. Senhores, considerai o que se passa
dentro de cada um de vós; não olheis para outra pessoa. Examinai
as vossas próprias vidas, e vereis como estais envolvidos neste
problema, como é extraordinariamente vazia a vossa vida. Que é a
vossa vida, senhores? Árida, vazia, monótona, enfadonha, não é
verdade? Frequentais os vossos escritórios, executais as vossas
tarefas, recitais os vossos mantras, praticais os vossos pujas. No
escritório, sois homens embotados, tendes de obedecer a uma
rotina; estais mecanizados pela vossa religião, que é mera aceita-
ção da autoridade. Assim, religiosamente, no mundo dos negó-
cios, em vossa educação, em vossa vida cotidiana, que está acon-
tecendo realmente? Não há “estado de ser” criador. Não sois feli-
zes, não tendes vitalidade, não tendes alegria. Intelectual, religio-
sa, econômica social e politicamente, sois entes embotados, arre-
gimentados, não é verdade? Essa arregimentação é produto de
vossos próprios temores, de vossas próprias esperanças, vossas
próprias frustrações. E como para o ser humano assim cativo não
há possibilidade de libertação, ele naturalmente recorre ao sexo,
como meio de libertação: nele pode satisfazer- se, nele pode bus-
car a felicidade. Torna-se assim o sexo, automaticamente, um
hábito, uma rotina, um processo de embrutecimento. Tal é a vos-
sa vida, na verdade, se a considerardes devidamente, se não pro-
curardes evitá-la, se não procurardes escusá-la. O fato real é que

142
não sois criador. Podeis ter filhos, numerosos filhos, mas isso não
é ação criadora, é mera ação acidental da existência.
Assim, como pode ser criadora uma mente que não está
vigilante, que não tem vitalidade? Como pode ser criador um co-
ração que não é afetuoso, que não está cheio? E como não sois
criadores, buscais estímulo no sexo, nos divertimentos, nos cine-
mas, nos teatros, vendo, os outros representarem e permanecen-
do espectadores; outros pintam os cenários ou dançam, e vós não
passais de meros observadores. Isso não é criação. Analogamente,
tantos livros se imprimem no mundo, porque vós só ledes, não
sois criadores. Quando não há criação, a única libertação é através
do sexo, e, consequentemente, aviltais a vossa esposa ou o vosso
marido. Senhores, não tendes ideia do que tudo isso subentende,
da maldade, da crueldade, que há nisso. Sei que não vos dá con-
forto o que estou dizendo. Não estais pensando a fundo na ques-
tão. Estais fechando o vosso espírito e por esta razão o sexo se
tornou um problema imenso na moderna civilização — ou a pro-
miscuidade, ou o hábito mecânico da libertação pelo sexo, no
matrimônio. O sexo continuará a ser um problema, enquanto não
houver “estado de ser” criador. Podeis praticar o controle de nas-
cimentos, podeis adotar métodos vários, mas não estais livres do
sexo. Sublimação não é liberdade, supressão não é liberdade,
controle não é liberdade. Só há liberdade quando há afeição,
quando há amor. O amor é puro, e quando ele falta, o esforço
para vos purificardes pela sublimação do sexo é pura estupidez. O
fator que purifica é o amor, não é o desejo de ser puro. Um ho-
mem que ama é puro, ainda que seja sexual; e sem o amor, o sexo
há de ser sempre o que hoje é nas nossas vidas — uma rotina,
uma prática feia, uma coisa que devemos evitar, ignorar, afastar,
ou satisfazer.
O problema do sexo continuará, portanto, a existir, en-
quanto não vier a libertação criadora. Religiosamente, não pode
haver libertação criadora, se aceitais a autoridade, seja a da tradi-
ção, seja a dos livros sagrados ou dos sacerdotes; porque a auto-
ridade constrange, desfigura, perverte. Onde há autoridade, há

143
compulsão, e vós aceitais a autoridade, porque esperais alcançar a
segurança pela religião; e enquanto a mente andar em busca da
segurança, intelectual ou religiosamente, não haverá compreen-
são criadora, não haverá libertação criadora. É a mente, o meca-
nismo da mente que está sempre em busca de segurança, que
sempre deseja a certeza. A mente está em perene movimento do
conhecido para o conhecido; e o mero cultivo da mente, do inte-
lecto, não traz a libertação. Pelo contrário, o intelecto só é capaz
de apreender o conhecido, e nunca o desconhecido. Por conse-
guinte, o mero cultivo da mente, pela aquisição de mais e mais
conhecimentos, mais e mais técnica, não é criador. A mente que
deseja ser criadora, deve pôr de parte o desejo de estar em segu-
rança, que implica o desejo de autoridade. A verdade só pode
surgir quando a mente está livre do conhecido, quando a mente
está livre da ideia da segurança, do desejo de certeza. Mas consi-
derai nosso sistema de educação: fazer exames para conquistar
empregos, para antepor algumas letras ao nosso nome. A educa-
ção se tornou sobremodo mecânica, um mero cultivo da mente,
que é memória. Por esse caminho, tão pouco, não alcançaremos a
liberdade.
Vemos, pois, que, socialmente, religiosamente, de todas
as maneiras, estais presos. Por conseguinte, se um homem deseja
resolver o problema do sexo, precisa desembaraçar-se dos pen-
samentos por ele próprio criados; nesse estado de liberdade, há
força criadora, que é a compreensão nascida do coração. Quando
um homem ama, há castidade; é a falta de amor que é impura, e
sem o amor nenhum problema humano pode ser resolvido. Mas,
em vez de procurarmos compreender os obstáculos ao amor,
procuramos apenas sublimar, reprimir o apetite sexual, ou para
ele buscamos um substituto, e á substituição, à sublimação, ou à
repressão chamamos o meio de atingir a realidade. Ao contrário,
onde há repressão não existe compreensão; onde há substituição,
há ignorância. Nossa dificuldade resulta de que estamos presos a
esse hábito de conter, de reprimir, de sublimar. Positivamente,
temos de considerar esse hábito, tomar pleno conhecimento do

144
seu significado, não por uns poucos momentos, mas pela vida
toda. Precisamos perceber que estamos aprisionados na máquina
da rotina; e para nos libertarmos dela é necessária a compreen-
são, o autoconhecimento. Por conseguinte, importa que compre-
endamos a nós mesmos. Mas essa compreensão se torna sobre-
modo difícil se não temos a intenção de estudar e compreender a
nós mesmos. O problema do sexo, atualmente tão importante,
em nossos dias, tão vasto, em nossas vidas, perde o seu significa-
do, quando existe a ternura, o calor, a bondade, a compaixão do
amor.
[...] DESEJAIS SABER PORQUE continuo em atividade? É
porque sinto que tenho algo para dizer. E há também a natural
afeição por alguma coisa, o amor à verdade. Uma pessoa que ama
está sempre ativa; e o amor não é um mito. Podeis construir um
mito em torno do amor, mas para o homem que conhece o amor,
o amor não é mito. Pode estar só num quarto, ou sentado numa
cátedra, ou cavando num jardim — para ele é tudo a mesma coi-
sa, porque seu coração está cheio. É como termos um poço em
nosso jardim, sempre cheio de água fresca, água que mitiga a
sede, água que purifica, água que lava a corrupção; e um tal amor
não é mera rotina mecânica, não é ir de reunião para reunião, de
discussão para discussão, de entrevista para entrevista. Isso seria
fastidioso, e eu não poderia fazê-lo. Fazer uma coisa que se trans-
forma em rotina e autodestruição. Senhores, quando amardes,
quando vosso coração estiver cheio, sabereis o que significa pele-
jar sem esforço, viver sem conflito. A mente que não ama, é sen-
sível à lisonja, deleita-se com a adulação e evita o insulto — essa
mente necessita das multidões, de uma tribuna, de confusão; mas
a mente, o coração em tais condições nunca conhecerá o amor.
Para o homem cujo coração está cheio das coisas da mente, o seu
mundo é um mundo de mito, e de mitos ele vive; mas o homem
que está livre dos mitos, esse conhece o amor.
[...] QUE ACONTECE, quando não existe temor? Existe
amor, não é? É só no estado negativo que o amor pode existir, e
não no estado positivo. O estado positivo é a continuidade do

145
pensamento na direção de um fim, e enquanto houver esse esta-
do, não haverá amor.
Deseja também saber o interrogante o que acontece ao
amor quando a morte lhe quebra a continuidade. O amor não é
uma continuidade. Se observardes a vós mesmos, se observardes
o vosso próprio amor, vereis que o amor existe momento por
momento. Não há a ideia de que ele deve continuar. O que conti-
nua é um obstáculo ao amor. Só o pensamento pode continuar, e
não o amor. Podeis pensar no amor, e esse pensamento pode
perdurar; mas o pensamento sobre o amor não é o amor — e aí é
que está a vossa dificuldade. Pensais no amor e desejais que esse
pensamento continue; por isso perguntais: “Que acontece ao
amor quando vem a morte?”. Mas não estais interessados no
amor; estais interessados no pensamento do amor, que não é
amor. Quando amais, não há continuidade. É só o pensamento
que deseja que o amor continue, mas o pensamento não é amor.
Senhor, isso é importantíssimo. Quando amais, quando realmente
amais alguém, não estais pensando, não estais calculando; todo o
vosso coração, todo o vosso ser está aberto. Mas quando apenas
pensais no amor, ou na pessoa que amais, o vosso coração está
árido — e por isso já estais morto. Quando há amor, não há temor
da morte. O temor da morte é mero temor de não continuar, e
quando há amor não há senso de continuidade. Há um “estado de
ser”. Pergunta ainda o interrogante “Que acontece à morte,
quando o amor reclama os seus direitos?”. Senhores, o amor não
tem direitos para reclamar, e essa é a beleza do amor. Aquilo que
constitui o mais alto estado de negação não tem direitos para
reclamar, não tem exigências: é um “estado de ser”. E quando há
amor, não há morte. Só há morte quando intervém o processo do
pensamento. Quando há amor não há morte, porque não há te-
mor. E o amor não é um estado contínuo — o que, repetimos, é
processo do pensamento. O amor é, simplesmente, momento por
momento. Logo, o amor é sua própria eternidade.
Novo acesso à vida


146
[...] PERGUNTA: É necessária a continência ou a castidade
para se alcançar a libertação?
KRISHNAMURTI: A pergunta está mal formulada. Para se
alcançar a libertação nada é necessário. Ela não se obtém em tro-
ca de alguma coisa, pelo sacrifício, pela eliminação; não é coisa
que se possa comprar. Se assim procederdes, obtereis uma mer-
cadoria que não é o real. A verdade não pode comprar-se; não há
meio algum para se chegar à verdade; se há o meio, o fim não é a
verdade, porque o meio e o fim são um só, não estão separados. A
castidade como meio de libertação, como meio de se chegar à
verdade, é negação da verdade. A castidade não é uma moeda,
com a qual se possa comprar a verdade. Não podeis comprar a
verdade com moeda alguma, não podeis comprar a castidade com
moeda alguma. Só podeis comprar as coisas que conheceis, mas
não podeis comprar a verdade, porque não a conheceis. A verda-
de só se manifesta quando a mente está tranquila, serena; o pro-
blema, pois, é inteiramente diferente, não achais?
Por que pensamos que é essencial a castidade? Por que se
tornou o sexo um problema? Esta é que é a verdadeira questão,
não achais? Compreenderemos o que é ser casto, quando com-
preendermos esse pernicioso problema do sexo. Verifiquemos por
que razão o sexo se tornou um fator tão importante em nossa
vida, um problema maior do que a propriedade, o dinheiro, etc.
Que entendemos por sexo? Não só o ato, mas também o pensar
nele, o sentir com relação a ele, a expectativa, a fuga — este é que
é o problema. Nosso problema é a sensação, o desejo de mais e
mais. Olhai para vós mesmos, e não para o vosso vizinho. Porque
estão os vossos pensamentos tão ocupados com o sexo? A casti-
dade só pode existir quando há amor e sem amor não há castida-
de. Sem amor, a castidade é simples luxúria sob outro aspecto.
Tornar-se casto é o mesmo que se tornar outra coisa; é a mesma
coisa que um indivíduo se tornar poderoso, alcançar bom êxito
como advogado, político preeminente, ou outra coisa qualquer —
a modificação está no mesmo nível. Isso não é castidade, mas,
sim, apenas o resultado final de um sonho, o produto da resistên-

147
cia contínua a um determinado desejo. Nosso problema, pois, não
consiste em saber como nos tornarmos castos, ou como descobrir
quais são as coisas necessárias para a libertação, mas sim o de
compreender o chamado “problema do sexo”. Porque se trata de
um problema imenso, ao qual não podemos aplicar-nos com con-
denação ou justificação. Naturalmente, é muito fácil isolar-vos
dele — mas, nesse caso, criareis um novo problema. Esse impor-
tantíssimo, absorvente e destrutivo problema do sexo só pode ser
compreendido quando a mente se liberta de suas amarras. Pensai
nele a fundo; não o afasteis para o lado. Enquanto estiverdes liga-
do, pelo temor, pela tradição, a uma determinada ocupação, ati-
vidade, crença, ideia, enquanto estiverdes condicionado por essas
coisas e a elas preso, tereis esse problema do sexo. Só quando a
mente é livre de temor, existe o insondável, o inexaurível; só en-
tão este problema assume suas verdadeiras proporções. Podeis
então atender a ele de maneira simples e eficaz, porque já não é
um problema. Assim, a castidade deixa de ser um problema,
quando há amor. A vida não é então um problema, a vida é para
ser vivida, de maneira completa, na plenitude do amor; e essa
revolução criará um mundo novo.
Nosso único problema

[...] NÃO SE PODE PENSAR NO AMOR. Mas nós o fazemos,


a maioria de nós, e por isso ele é mera sensação. E, se limitamos a
vida de relação a uma ideia baseada na sensação, repudiamos o
amor e enchemos os nossos corações com as coisas da mente.
Ainda que tenhamos a sensação e a chamemos amor, não é amor.
Positivamente, o amor é algo que está além do processo do pen-
samento, mas que só pode ser descoberto depois de compreen-
dermos o processo do pensamento na vida de relação; o que não
significa devamos negar o processo do pensamento, mas, sim, que

148
devemos estar cônscios do significado de nosso processo mental e
de nossas ações na vida de relação.
[...] O HOMEM QUE TEM DINHEIRO é o dinheiro. O ho-
mem que se identifica com a propriedade, é a propriedade, a ca-
sa, os imóveis. O mesmo acontece com relação às ideias ou às
pessoas; e onde há o sentimento de posse, não há o estado de
relação. Mas, a maioria de nós tem posses, porque, se as não te-
mos, nada somos. Somos quais conchas vazias, se não temos pos-
ses, se não enchemos a nossa vida com peças de mobília, com
música, com conhecimentos, com isto ou aquilo. E essa concha faz
muito barulho, e esse barulho chamamos viver — e tanto basta
para nos satisfazer. E se se interrompe abruptamente esse baru-
lho, sobrevém então o sofrimento — porque descobrimos, então,
a nós mesmos, como somos: uma concha vazia, sem muita signifi-
cação. Assim, pois, o estar cônscio de todo o conteúdo da vida de
relação é ação; e em virtude dessa ação dá-se-nos a possibilidade
de uma verdadeira vida de relação, possibilidade de descobrirmos
a sua grande profundeza, o seu magno significado, e de sabermos
o que é o amor.
[...] PERGUNTA: É verdade que as ideias separam, mas
que também unem as pessoas. Não é isso a expressão do amor,
que torna possível a vida comunal?
KRISHNAMURTI: Eu gostaria de saber se, ao fazerdes uma
tal pergunta, percebeis realmente que as ideias, as crenças, as
opiniões separam as pessoas; que as ideologias fracionam, que as
ideias inevitavelmente produzem desintegração. As ideias não
unem as pessoas, ainda que tenteis aproximar entre si pessoas
pertencentes a ideologias diferentes e contrárias. Nunca podem
as ideias unir as pessoas; isso é bem óbvio. Porque as ideias estão
sempre sujeitas à posição e à destruição pelo conflito. Afinal de
contas, as ideias são imagens, sensações, palavras. Palavras, sen-
sações, pensamentos podem unir as pessoas? Ou necessita-se
coisa de todo diferente para unir as pessoas? Vê-se que o ódio, o
temor e o nacionalismo unem os indivíduos. O temor junta as

149
pessoas. Um ódio comum junta às vezes pessoas que são adversá-
rias entre si, assim como o nacionalismo une pessoas de grupos
contrários. Essas coisas, por certo, são ideias. E o amor é uma
ideia? Podeis pensar no amor? Podeis pensar na pessoa que ama-
is, ou no grupo que amais. Mas isso é amor? Quando há pensa-
mento de amor, isso é amor? O pensamento é amor? Mas, sem
dúvida, é só o amor que pode unir as pessoas, e não o pensamen-
to, não um grupo oposto a outro grupo. Onde há o amor, não há
grupo, não há classe, não há nacionalidade. Precisamos, pois, veri-
ficar o que entendemos por amor.
Já sabemos o que entendemos por ideias, opiniões, cren-
ças, coisas essas de que já tratamos suficientemente nas últimas
semanas. Que entendemos, pois, por amor? É coisa da mente? Ele
é coisa da mente, quando as coisas da mente nos enchem o cora-
ção. E, na maioria dos casos, é isso o que acontece: Enchemos o
coração com as coisas da mente, que são opiniões, ideias, sensa-
ções, crenças; e nisso e em torno disso nós vivemos. Mas isso é
amor? Podeis pensar no amor. Quando amais, está funcionando o
pensamento? O amor e o pensamento não estão em oposição e,
portanto, não os separemos como opostos.
Quando uma pessoa ama, há nisso ideia de separação, de
junção, dispersão, ou afastamento de pessoas? Certo, aquele es-
tado que é o amor só pode experimentar-se, quando não está
funcionando o processo do pensamento — o que não significa que
precisemos tornar-nos dementes, desequilibrados. Pelo contrário,
requer-se a mais alta expressão do pensamento para se ir mais
além.
O amor, pois, não é coisa da mente. É só quando a mente
está de fato quieta, quando já não está a esperar, a pedir, exigir,
procurar, possuir, quando já não está cheia de ciúmes, temores,
ansiedades — é só quando a mente está de fato quieta, só então
há a possibilidade de existir o amor. Quando a mente já não está a
projetar-se, a ocupar-se de suas especiais sensações, exigências,
impulsos, temores ocultos, a buscar o preenchimento, no cativeiro

150
da crença — só então é possível o amor. Mas a maioria de nós
julga que o amor pode existir lado a lado com o ciúme, com a am-
bição, com a perseguição de nossos desejos e ambições pessoais.
Certamente, quando essas coisas existem, não existe o amor. De-
vemos, pois, preocupar-nos, isto sim, com as coisas que estão
impedindo o amor, sem que o busquemos especialmente, deve-
mos preocupar-nos, não com o amor, que se manifesta esponta-
neamente, as coisas da mente que se projetam e criam uma bar-
reira. Eis porque é importante, antes que possamos saber o que é
amor, conhecer-se o processo da mente, que é a sede do “eu” . E
eis porque é importante entrarmos cada vez mais profundamente
na questão do autoconhecimento; em vez de nos limitarmos a
dizer: “Devo amar”, ou “O amor une as pessoas”, ou “As ideias
desunem”, o que seria uma mera repetição de coisas que ouvistes
e, portanto, completamente inútil. As palavras embaraçam. Mas
se somos capazes de compreender inteiramente as tendências de
nossos pensamentos, as tendências de nossos desejos, é-nos da-
da, então, a possibilidade de termos ou compreendermos aquilo
que é o amor. Mas tal coisa exige uma compreensão extraordiná-
ria de nós mesmos. Quando há abnegação, total esquecimento do
“eu”, não intencional, porém espontânea — esse esquecimento
de nós mesmos, essa abnegação que não é produto de uma série
de exercícios e disciplinas, que só podem limitar — é então possí-
vel o amor. Torna-se existente essa abnegação depois de compre-
endido todo o processo do “eu”, tanto consciente como inconsci-
entemente, tanto em despertos como sonhando. Compreende-se
então o processo total da mente, tal como ele se desenrola, nas
relações, em cada incidente, em cada reação a cada estímulo que
temos. Compreendendo-se isso, e, por consequência, libertando-
se a mente de seu próprio processo de afirmação do “eu” e limi-
tação egoísta, é possível o amor. O amor não é sentimento, não é
romantismo, não depende de coisa alguma; e tal estado é dificíli-
mo de ser compreendido ou alcançado. Porque as nossas mentes
estão sempre a interferir, a limitar, a perturbar o seu funciona-
mento; e, por conseguinte, releva compreender-se em primeiro
lugar a mente e o seu processo; pois, do contrário, ficaremos pre-
151
sos a ilusões, presos a palavras e sensações de pouca significação.
E visto que, para a maioria das pessoas, as ideias, que se tornaram
crenças, só servem de refúgio, de fuga, elas naturalmente impe-
dem o viver completo, a ação completa, o pensar correto. Só é
possível pensar-se corretamente, viver-se livre e inteligentemen-
te, quando há autoconhecimento cada vez mais profundo e mais
amplo.
A conquista da serenidade

[...] PERGUNTA: Não sou amado e desejo ser amado, por-


que sem isso a vida não tem significação. Como posso preencher
esse anseio?
Krishnamurti: Espero que não estejais meramente escu-
tando palavras, porque em tal caso estas reuniões serão apenas
uma outra espécie de distração, um desperdício de tempo. Mas se
estais de fato "experimentando" as coisas que estamos discutindo,
terão elas um significado extraordinário; porque, embora com a
mente consciente presteis atenção a palavras, se estais experimen-
tando o que se diz, o inconsciente também toma parte nessa ati-
vidade. Se se lhe dá uma oportunidade, o inconsciente revelará
todo o seu conteúdo, fazendo assim surgir uma compreensão
completa de nós mesmos. Assim, pois, espero que não estejais
meramente escutando outra pessoa falar, porém experimentando
realmente as coisas, enquanto vamos prosseguindo.
Deseja saber o interrogante como se ama e como se é
amado. Não é esse o estado da maioria de nós? Todos desejamos
ser amados e, também, dar amor. Muito se fala a esse respeito.
Todas as religiões todos os pregadores, falam disso. Vejamos,
pois, o que se entende por amor. O amor é sensação? O amor é
coisa da mente? Pode-se pensar no amor? Podeis pensar no obje-
to do amor, mas não podeis pensar no amor, não é verdade? Pos-

152
so pensar na pessoa que amo, posso ter um retrato, uma imagem
dessa pessoa e evocar as sensações e as lembranças de nossas
relações. Mas é o amor sensação, memória? Quando digo "quero
amar e ser amado", isso não é puramente pensamento, reflexo da
mente? O pensamento é amor? Pensamos que é, não pensamos?
Para nós, o amor é sensação. Tal é a razão por que temos retratos
das pessoas que amamos, por que pensamos nelas e a elas nos
apegamos. Tudo isso é um processo de pensamento, não é verda-
de?
Ora, o pensamento, vendo-se frustrado em diferentes
sentidos, diz: "Encontro a felicidade no amor, portanto necessito
de amor". É por isso que nos apegamos à pessoa amada, por isso
que possuímos a pessoa, psicológica bem como fisiologicamente.
Criamos leis para proteger a posse do que amamos, quer seja uma
pessoa, um piano, uma casa, quer seja uma ideia, uma crença;
porque, no possuir, com todas as suas complicações de ciúme,
medo, suspeição, ansiedade, nós nos sentimos seguros. Por essa
maneira tornamos o amor uma coisa da mente; e com as coisas da
mente enchemos o nosso coração. Porque o coração está vazio, a
mente diz; "Preciso desse amor" — e procuramos preencher-nos
com nessa mulher, com nosso marido. Por meio do amor pro-
curamos tornar-nos alguma coisa. Isto é, o amor torna-se uma
coisa útil, servirmo-nos dele como um meio para alcançar um fim.
Fizemos, pois, do amor uma coisa da mente. A mente se
torna o instrumento do amor, e a mente é toda sensação. O pen-
samento é a reação da memória à sensação. Sem o símbolo, a
palavra, a imagem, não há memória, não há pensamento. Conhe-
cemos a sensação disso que se chama amor, e ficamos apegados a
ela; e quando ela nos falta desejamos uma outra expressão da-
quela mesma sensação. Assim, quanto mais cultivamos a sensa-
ção, quanto mais cultivamos o que chamamos conhecimento, que
é simples memória, tanto menos amor existe.
Enquanto estivermos a procurar o amor, tem de haver um
processo de auto-reclusão. Amor implica vulnerabilidade, amor

153
implica comunhão; e não pode haver comunhão, não pode haver
vulnerabilidade, enquanto houver o processo de auto-resclusão
pelo pensamento. O próprio processo do pensamento é temor; e
como pode haver comunhão com outra pessoa quando existe o
temor, quando utilizamos o pensamento como um meio de exci-
tamento renovado?
Só pode haver amor quando se compreende o processo
integral da mente. O amor não é coisa da mente, e não se pode
pensar no amor. Quando dizeis "desejo amor", estais pensando
nele, estais ansiando por ele, e isso é sensação, é um meio para se
alcançar um fim. Per conseguinte não é amor o que quereis, po-
rém excitação; desejais um meio pelo qual possais preencher-vos,
seja esse meio uma pessoa, um emprego, uma determinada exci-
tação, etc. Isso, por certo, não é amor. O amor só pode existir
quando ausente o pensamento do "eu", e o libertar- nos do "eu"
só se consegue pelo autoconhecimento. Com o autoconhecimen-
to vem-nos a compreensão; quando o processo total da mente for
revelado e compreendido por maneira completa e plena, sabereis
então o que é amar. Vereis, então, que o amor nada tem que ver
com os sentidos, e que ele não ê um meio de preenchimento. Então,
o amor existe por si mesmo, sem resultado algum. O amor é um mo-
do de ser, e nesse estado, o "eu", com as suas identificações, suas
angústias, e suas posses, está ausente. Não pode existir o amor, en-
quanto as atividades do "eu", tanto as conscientes como as in-
conscientes, subsistirem. Eis porque importa compreender o proces-
so do "eu", o centro do reconhecimento, que é o "eu".
[...] PERGUNTA: Amo o meu filho. Ele pode ser morto na
guerra. Que devo fazer?
Krishnamurti: Pergunto-me a mim mesmo se amais real-
mente o vosso filho. Se realmente o amásseis, haveria guerra?
Não trataríeis de evitar a guerra, sob qualquer forma, se realmen-
te amásseis o vosso filho? Não cuidaríeis de que houvesse uma
educação correta — uma educação que não estivesse identificada
nem com o Oriente nem com o Ocidente? Se realmente amásseis
o vosso filho, não cuidaríeis de que crença alguma pudesse dividir
154
os entes humanos, de que nenhuma fronteira nacional se er-
guesse entre os homens?
Tenho para mim que não amamos os nossos filhos. "Amo
o meu filho" é apenas uma frase costumeira. Se amássemos os
nossos filhos, haveria uma revolução fundamental na educação,
não é verdade? Porque, na atualidade, atendemos apenas ao cul-
tivo da técnica, da eficiência, e quanto maior a eficiência, maior a
crueldade. Quanto mais nacionalistas e separatistas nós somos,
tanto mais rapidamente se desintegra a sociedade. Estamos divi-
didos pelas nossas crenças, pelas nossas ideologias, pelas nossas
religiões e dogmas, e há inevitavelmente conflito não apenas entre
sociedades diferentes, mas também entre grupos de uma mesma
sociedade.
Assim, pois, embora digamos amar os nossos filhos, não
estamos, evidentemente, muito interessados neles, visto que
somos nacionalistas, visto que estamos apegados às nossas pos-
ses, que estamos presos e condicionados pelas nossas crenças
religiosas. São esses os fatores desintegrantes da sociedade, que
conduzem inevitavelmente à guerra e à desgraça extrema; e se de
fato desejamos salvar os nossos filhos, cabe-nos a nós, como indi-
víduos, promover uma transformação fundamental em nós mes-
mos. Significa isso que temos de avaliar de novo toda a estrutura
da sociedade. Como se trata de uma empresa muito complexa e
difícil, nós a entregamos aos especialistas religiosos, econômicos e
políticos, Ora, o especialista não pode compreender aquilo que
exorbita na sua especialização. O especialista nunca é uma pessoa
"integrada"; e a integração é a solução única para o nosso pro-
blema. É necessária uma integração total de nós mesmos, como
indivíduos, e só então seremos capazes de educar o nosso filho
para se tornar um ente humano "integrado"; e não pode, eviden-
temente, haver integração, enquanto existirem preconceitos raci-
ais, nacionais e políticos. Enquanto não alterarmos tudo isso fun-
damentalmente, em nós mesmos, teremos fatalmente a guerra —
e podeis dizer o que quiserdes do vosso amor por vosso filho, isso
não porá termo à guerra. O que porá termo à guerra é a profunda

155
compreensão de que o indivíduo precisa ficar livre dos fatores
desintegrantes responsáveis pela guerra. É só então que poremos
fim à guerra. Infelizmente, porém, a maioria de nós não está inte-
ressada em tal coisa. Queremos um resultado imediato, uma solu-
ção imediata.
A guerra, afinal de contas, é a projeção espetacular e san-
grenta de nossa vida cotidiana; em vez de alterarmos a estrutura
fundamental de nossa própria existência, ficamos à espera de
que, por obra de algum milagre, as guerras se acabem. Ou, então,
lançamos a culpa sobre outra sociedade: dizemos que um outro
grupo nacional é responsável pelas guerras. A responsabilidade é
nossa, e de ninguém mais. E os que de fato se interessam por esta
questão, que não andam à procura de explicações fáceis, saberão
como agir, tendo em consideração toda essa estrutura das causas
da guerra.
Quando de fato amarmos os nossos filhos, a estrutura da
sociedade será alterada fundamentalmente; e quanto maior o
nosso amor, tanto maior será a nossa influência na sociedade.
Importa, por conseguinte, compreendermos o processo de nós
mesmos; mas nenhum especialista, nenhum general, nenhum
professor pode dar-nos a chave dessa compreensão. O autoco-
nhecimento é produto de nossa própria intensidade, nossa pró-
pria lucidez, nossa própria vigilância na vida de relação; e as nos-
sas relações não são apenas com as pessoas, mas também com a
propriedade e as ideias.
[...] PERGUNTA: Desejo ajudar os outros. Qual a melhor
maneira de o fazer?
Krishnamurti: Eu quisera saber por que desejais ajudar os
outros. É porque amais o próximo? E se o amais, precisais pergun-
tar qual é a melhor maneira de ajudá-lo? Há diversas maneiras de
"servir" os nossos semelhantes, não é verdade? O comércio serve
as pessoas; o médico, o advogado, o cientista, o lavrador — todos
estão "servindo" os outros, não é exato? O desejo de servir ao
próximo tornou-se profissão, e esse desejo está sempre ligado a

156
uma recompensa. O desejo de servir organizou-se em grupos efi-
cientes, e cada grupo se acha em antagonismo com outro grupo.
Todos querem servir, todos querem ajudar; e todos vivem em
competição uns com os outros e se tornam cada vez mais eficazes
e, portanto, cada vez mais cruéis.
Assim, pois, quando dizeis que desejais "ajudar" os outros,
que significa essa palavra? Como podeis ajudar os outros? Em que
nível desejais ajudar os outros? No nível econômico, ou no cha-
mado nível espiritual ou psicológico? Alguns se contentam em
ajudar os outros apenas no nível econômico, no nível social ime-
diato. Seu interesse, portanto, é promover a reforma social. Mas,
uma simples reforma cria sempre a necessidade de outra reforma,
e nunca se acabará de reformar. E há os que desejam ajudar os
outros psicológica ou espiritualmente. Mas, para ajudar ao próxi-
mo no sentido psicológico ou espiritual, não será preciso, primei-
ro, que compreendais a vós mesmo? É muito fácil dizer "Posso
ajudar alguém", muito fácil ter o desejo, a vontade, a ânsia de
ajudar; mas no processo mesmo de ajudar, podeis ocasionar a
confusão.
Assim sendo, se desejais ajudar ao próximo num nível
qualquer, não será importante perceber a necessidade, não de
uma reforma de remendos, mas de uma revolução fundamental?
E pode uma revolução fundamental basear-se numa ideia? Uma
revolução é realmente revolução, quando nascida do pensa-
mento? Porque as ideias são sempre limitadas, são reações condi-
cionadas, não é verdade? O pensamento é sempre reação da
memória e, por conseguinte, é sempre condicionado. Nenhuma
revolução baseada numa ideia pode oferecer-nos uma transfor-
mação fundamental. Quanto mais revoluções houver, baseadas
em ideias, tanto mais separação e desintegração haverá. Porque
as ideias, as crenças, os dogmas, sempre separam as pessoas,
nunca podem uni-las, a não ser em grupos que se excluem mutu-
amente e que vivem em conflito uns com os outros. Constituem
elas uma base altamente desastrosa para se construir uma socie-
dade, porque elas criam, inevitavelmente, inimizade.

157
Ora bem; em vista de tudo isso, se realmente desejais
promover uma revolução fundamental na estrutura da sociedade,
precisais, sem dúvida, começar no nível psicológico, isto é, em vós
mesmo. E se realmente lograis uma revolução fundamental em
vós mesmo, estareis então capacitado para ajudar os outros a não
continuarem a criar dogmas, crenças e jaulas para prender outras
pessoas. Em tal caso, vosso desejo de ajudar ao próximo não terá
nascido de nenhuma convicção, de nenhum cálculo, de nenhuma
crença. Ajudareis os outros porque os amais, porque vosso cora-
ção transborda. Mas vosso coração nunca poderá transbordar, se
é a mente que o alimenta; e os mais de nós temos os corações
repletos das coisas da mente. E só quando estão repletos os nos-
sos corações das coisas da mente, é que desejamos saber a ma-
neira de ajudar os outros; mas, quando o coração está vazio das
coisas da mente, e por isso mesmo cheio, tem-se então a possibi-
lidade de ajudar. Quando realmente amamos, ajudamos. Mas o
amor não é coisa da mente. O amor não é sensação. Não se pode
pensar no amor. Se pensais no amor, estais pensando apenas na
sensação, que não é amor. Quando dizeis "amo uma pessoa", não
estais pensando no amor, mas, sim, na sensação, na imagem, no
retrato daquela pessoa.
O pensamento, pois, não é amor. O amor é algo que não
pode ser capturado pela mente. A mente só pode captar a sensa-
ção, e então a sensação nos enche o coração; e dessa sensação
resulta o desejo de ajudar os outros, tornando-os melhores, re-
formando-os, etc. Enquanto nossos corações estão cheios das
coisas da mente, não existe amor; e, quando há amor, não há que
pensar sobre a maneira de ajudar os outros. A própria ação de
amar, livre da interferência da mente, ajuda os outros; mas, en-
quanto a mente intervém, não pode haver amor.
[...] PERGUNTA: Como posso livrar-me permanentemente
do desejo sexual?
Krishnamurti: Porque desejamos ficar permanentemente
livres de um desejo? Vós o chamais sexual, outro o chama apego,

158
temor, etc. Porque desejamos ficar livres de algum desejo, per-
manentemente? Porque esse desejo nos está perturbando, e nós
não queremos ser perturbados. Tal é, no seu todo, o processo do
nosso pensar, não é verdade? Queremos viver fechados, livres de
perturbações, quer dizer, desejamos o isolamento; mas nada po-
de viver no isolamento. Em sua busca de Deus, a pessoa religiosa
está em verdade buscando um isolamento completo no qual nun-
ca seja perturbada; mas não é realmente religiosa, essa pessoa,
achais que é? Os verdadeiros religiosos são aqueles que compre-
endem plena e completamente a vida de relação e que, por con-
seguinte, não têm problemas nem conflitos. Mas isso não significa
que nunca sejam perturbados, senão que, não estando em busca
da certeza, eles compreendem a perturbação e não existe, por-
tanto, nenhum processo de auto-reclusão criado pelo desejo de
segurança.
Ora, esta questão requer grande dose de compreensão,
visto que se trata de compreender a sensação, que é pensamento.
Para a maioria das pessoas o sexo se tornou um problema extra-
ordinariamente importante. Como somos incapazes de criar, co-
mo vivemos fechados, interceptados em todas as outras direções,
o sexo é a única coisa na qual a maioria das pessoas encontra de-
safogo, o único ato no qual o "eu" está momentaneamente ausen-
te. Nesse breve estado de abnegação, no qual o "eu", com todas
as suas perturbações, confusões, e preocupações, está ausente,
encontra-se grande felicidade. Pelo esquecimento do "eu", vem-
nos uma sensação de quietude, de alívio; e visto que somos esté-
reis, religiosamente, economicamente, e a todos os outros respei-
tos, torna-se o sexo um problema esmagadoramente importante.
Na vida diária somos meros discos de gramofone, a repetir frases
aprendidas; religiosamente somos autômatos, que seguem meca-
nicamente o sacerdote; econômica e socialmente estamos atados,
estrangulados pelas influências ambientes. Achamos alívio ai? Não
achamos, por certo. E quando não há alívio, tem de haver frustra-
ção. Tal é a razão por que o ato sexual, no qual se encontra alívio,
se tornou um problema vital para a maioria de nós. E a sociedade

159
o encoraja e estimula, pelos anúncios, pelas revistas, pelo cinema,
etc.
Ora bem: enquanto a mente, que é o resultado, o ponto fo-
cal da sensação, considerar o sexo como meio de desafogo, o sexo
será forçosamente um problema; e esse problema perdurará en-
quanto não tivermos a capacidade de criar compreensivamente,
totalmente, e não apenas numa dada direção. A capacidade de
criar é independente da sensação. O sexo é coisa da mente, e a
criação não é coisa da mente. A criação nunca é produto da men-
te, produto do pensamento; e, assim compreendido, o sexo, que é
sensação, nunca pode ser criador. Poderá produzir prole, mas
isso, evidentemente, não significa capacidade criadora. Enquanto,
para nos desafogarmos, dependermos da sensação, do estímulo,
sob qualquer forma, há de haver frustração, porquanto a mente
se torna incapaz de compreender o que é a ação criadora.
Este problema não pode ser resolvido por disciplina algu-
ma, nem por tabus, decretos ou sanções sociais. Só pode ser re-
solvido quando compreendemos o processo integral da mente;
porque é a mente que é sexual. São as imagens, as fantasias, as
representações da mente, que a estimulam à sexualidade; e como
a mente é o resultado de sensação, só pode tornar-se cada vez
mais sensual. Essa mente não pode, jamais, ser criadora, porque
criação não é sensação. É só quando a mente não busca estímu-
los, sob qualquer forma, quer externos, quer internos, é só então
que pode ela estar completamente tranquila, completamente livre;
e só nessa liberdade existe a criação. Fizemos do sexo uma coisa
feia, porque é a nossa única sensação privada; toda as outras são
públicas, ostensivas. Mas, enquanto nos servirmos da sensação,
sob qualquer forma, como meio de desafogo, ela só aumentará os
problemas, a confusão e a perturbação; porque nunca pode haver
alívio quando se busca um resultado.
O interrogante deseja pôr termo ao desejo sexual perma-
nentemente, porque tem a ideia de que ficará então num estado
no qual todas as perturbações terão desaparecido; é por isso que

160
ele o procura, esse estado. O próprio esforçar-se por alcançar esse
estado o está impedindo de ficar livre para compreender o pro-
cesso da mente. Enquanto a mente estiver apenas em busca de
um estado permanente, livre de toda perturbação, estará fechada
e, por conseguinte, incapacitada para criar. É só quando a mente
está livre do desejo de vir a ser alguma coisa, de alcançar um re-
sultado, por consequência livre do temor, só então pode ela ficar
de todo tranquila; só então dá-se a possibilidade da criação, que é
a realidade.
Por que nã o te satisfaz a vida?

[...] PERGUNTA: Por que não alimentais os pobres, em vez


de falar?
KRISHNAMURTI: É muito importante estar judiciosamente
atento, mas nunca formular um julgamento; porque no instante
em que formulamos um julgamento, já temos uma conclusão. Vós
não estais judiciosamente atento. No momento em que chegais a
uma conclusão, está morta a vossa capacidade de observação
judiciosa. Pois bem, o autor da pergunta dá a entender que ele
está alimentando os pobres, e eu não. Será mesmo que está ali-
mentando os pobres? Estou tentando conhecer a mentalidade do
interrogante. Ou ele critica porque deseja descobrir, e neste caso
tem toda a liberdade para criticar, para investigar; ou está criti-
cando munido de uma conclusão, e nesse caso já não é judicioso,
mas deseja apenas impor a sua conclusão; ou, se o interrogante
está de fato alimentando os pobres, então a sua pergunta se justi-
fica. Mas, vós alimentais os pobres? Tendes conhecimento da
existência dos pobres? Em média, morre-se na Índia aos 27 anos;
na América e na Nova Zelândia aos 64-67 anos. Se tivésseis co-
nhecimento dos pobres, tal estado de coisas não perduraria na
Índia.

161
Agora, o interrogante quer saber porque falo. Já lhe digo.
Para que os pobres sejam alimentados necessita-se uma revolu-
ção completa; não uma revolução superficial, da esquerda ou da
direita, mas uma revolução radical; e só poderemos ter uma revo-
lução radical quando não houver mais ideias. Uma revolução ba-
seada em ideia não é revolução; pois qualquer ideia é mera rea-
ção a determinado condicionamento, e a ação baseada em condi-
cionamento não pode produzir modificação fundamental. Pois
bem, eu falo com o intuito, não de produzir uma modificação su-
perficial, mas uma transformação fundamental. Não se requer
aqui a invenção de novas ideias. Só quando vós e eu estivermos
livres de ideias, sejam elas da esquerda ou da direita, poderemos
produzir uma revolução radical, interiormente, e, portanto, exte-
riormente. Não se trata de ricos nem pobres. O que há é a digni-
dade humana, o direito de trabalhar, oportunidade e felicidade
para todos. Não há, então, ninguém que tem de mais, para dar de
comer aos que têm de menos. Não há diferenças de classes. Isso
não é apenas uma ideia; não é uma utopia. Será uma realidade,
quando houver aquela radical revolução interior, quando houver
uma transformação fundamental dentro de cada um de nós. Não
haverá então nem classes, nem nacionalidades, nem guerras, nem
separatismo destrutivo; e isso só poderá verificar-se quando hou-
ver amor em vosso coração. A revolução real só poderá realizar-se
quando houver amor, e não antes. O amor é a única chama sem
fumo; mas, infelizmente, enchemos os nossos corações com as
coisas da mente, e por isso os corações estão vazios e as mentes
cheias. Quando encheis o coração de pensamentos, o amor não
passa de mera ideia. O amor não é ideia, pois quando pensais no
amor, não há amor, mas sim mera projeção de pensamento. Para
purificar a mente, requer-se plenitude do coração ; mas o coração
precisa ser desocupado das coisas da mente, para poder encher-
se — e essa é uma revolução extraordinária. Todas as outras revo-
luções não são mais do que a continuação de um estado modifi-
cado.

162
Senhor, quando amais alguém — não pela maneira como
costumamos amar ao próximo, que consiste apenas em pensar
nesse próximo — quando amais completamente, totalmente, não
há nem rico nem pobre. Não tendes consciência de vós mesmos.
Existe aquela chama isenta da fumaça do ciúme, da inveja, da
avidez, da sensação. Só uma revolução dessas pode alimentar o
mundo — e ela depende de vós, não de mim. Mas nós, pela maio-
ria, já nos habituamos a ouvir conferências e a viver de palavras.
As palavras se tornaram importantes para nós, porque somos
leitores assíduos dos jornais, ouvintes habituais de conferências
políticas, cheias de palavras sem muita significação. Nutrimo-nos
de palavras, e vivemos de palavras; e a maioria de vós está ouvin-
do estas minhas conferências apenas no nível verbal, e por isso
não há em vós uma revolução real. Mas depende de vós a realiza-
ção dessa revolução — não a revolução sangrenta, que ó apenas
continuidade modificada, à qual, erradamente, chamamos revolu-
ção — mas aquela revolução que se efetua quando a mente já não
está enchendo o coração, quando o pensamento já não toma o
lugar da afeição, da compaixão. Mas não se pode ter amor, quan-
do a mente predomina. Os mais de vós não sois cultos, sois ape-
nas muito lidos; e viveis do que tendes aprendido. Essa sapiência
não produz revolução, não produz transformação. O que produz
transformação é a compreensão dos conflitos de cada dia, das
relações de cada dia. Quando o coração está vazio das coisas da
mente, só então se acende a chama da realidade. Mas precisamos
estar aptos para recebê-la; e para recebê-la não devemos ter ne-
nhuma conclusão baseada em conhecimento nem em determina-
ção. A mente assim em paz, que está livre de ideias, é capaz de
receber o infinito, e por conseguinte de produzir revolução, não
só para alimentar os pobres, ou para dar-lhes empregos, ou para
dar poder aos que o não têm; — será um mundo inteiramente
diferente, de valor diferente, não baseado na satisfação monetá-
ria.
Assim, com palavras não se mata a fome de ninguém. As
palavras são para mim sem importância; sirvo-me delas apenas

163
como meio de comunicação. Podemos empregar quaisquer pala-
vras, quando nos compreendemos mutuamente; e eu não vos
estou dando ideias, não vos estou nutrindo com palavras. Falo
com o intuito de fazer-vos ver claramente, por vós mesmos, o que
sois, para poderdes, com esse percebimento, agir com clareza,
com precisão, resolutamente. Só aí existe a possibilidade de ação
cooperativa. Falar só para nos divertirmos não tem valor algum;
mas falar com o intuito de compreendermos a nós mesmos e rea-
lizar, assim, a transformação, isso é essencial.
[...] QUANDO NOSSOS CORAÇÕES estão vazios, enchemo-
los com as imagens de Mestres, o que significa que não existe
amor. Quando amamos alguém, não temos o sentimento de
igualdade ou desigualdade.
[...] A desigualdade só pode ser transcendida quando
compreendemos a nossa atitude perante ela. Enquanto resistir-
mos ao feio e nos identificamos com o belo, será inevitável toda
esta miséria. Mas se consideramos a desigualdade com uma ati-
tude isenta de condenação, de identificação, ou de julgamento,
então nossa reação é de todo diferente. Experimentai-o, e vereis
como se opera uma extraordinária transformação em vossa vida.
A compreensão do que é traz o contentamento — que não é o
contentamento da estagnação, o contentamento causado pela
posse de bens, pela posse de uma ideia, de uma mulher. O con-
tentamento é o estado em que procuramos conhecer o que é, tal
como é, sem nenhuma barreira de permeio. Só então existe amor,
o amor que destrói a noção de desigualdade; e esta é a única coi-
sa que é revolucionária, o único fator de transformação. Uma vez
que não possuímos aquela chama da revolução, enchemos os
corações e as mentes com ideias de revolução da esquerda ou da
direita, de modificação do que foi. Daí nada há que esperar. Quan-
to mais reformamos, maior se torna a necessidade de novas re-
formas. Não é de importância saber a maneira de entrar em con-
tato com os Mestres, porque eles nenhuma significação têm na
vida. O que importa é compreendermos a nós mesmos, pois o
Mestre é uma ilusão. Pela vossa falta de compreensão própria,

164
estais criando cada vez mais infelicidade no mundo. Olhai o que
está acontecendo no mundo, e vede a estreiteza espiritual que
ostentam os zelosos devotos da paz, dos Mestres, do amor e da
fraternidade. Estais todos empenhados em vosso próprio provei-
to, embora o disfarceis com belas palavras. Desejais que os Mes-
tres vos ajudem a vos tornardes mais glorificados e mais egocên-
tricos.
[...] PERGUNTA: Tendes falado das relações baseadas na
utilização de outra pessoa, para satisfação própria, e tendes alu-
dido frequentemente a um estado que se denomina amor. Que
entendeis por amor?
KRISHNAMURTI: Sabemos o que são as nossas relações —
satisfação e utilização mútuas, ainda que as disfarcemos com o
nome de amor. Na utilização de uma coisa há ternura para com
ela e o cuidado de protegê-la. Protegemos nossas fronteiras, nos-
sos livros, nossa propriedade; de modo idêntico, temos o cuidado
de proteger nossas esposas, nossos filhos, nossa sociedade, por-
que, sem eles, ver-nos-íamos sós, perdidos. Privados do filho,
ficam os pais desolados; o que não sois, vosso filho será, e vosso
filho se torna, assim, um instrumento de vossa vaidade. Conhe-
cemos as relações de necessidade e de utilização. Necessitamos
do estafeta dos correios, e ele necessita de nós, — mas não dize-
mos que amamos o estafeta dos correios. Mas dizemos que ama-
mos nossas esposas e nossos filhos, embora nos sirvamos deles
para nossa satisfação pessoal e estejamos prontos a sacrificá-los à
vaidade de sermos chamados patriotas. Conhecemos muito bem
esse “processo” — e, evidentemente, isso não pode ser amor. O
amor que utiliza, que explora, e que depois se lamenta, não pode
ser amor, porque o amor não é uma coisa da mente.
Vamos, pois, “experimentar” e descobrir o que é o amor;
descobrir, não apenas verbalmente, mas “experimentando” real-
mente aquele estado. Quando vos servis de mim como vosso gu-
ru, e eu me sirvo de vós como meus discípulos, há exploração de
parte a parte. De modo idêntico, quando vos utilizais de vossa

165
esposa e vossos filhos, para conveniência própria, há exploração.
Isso, sem dúvida, não é amor. Quando há utilização, há posse; a
posse, invariavelmente, gera o temor, e com o temor vem o ciú-
me, a inveja, a suspeição. Quando há utilização, não pode haver
amor, porque o amor não é coisa da mente. Pensar numa pessoa
não significa amar essa pessoa. Pensais numa pessoa só quando
ela não está presente, quando morreu, quando fugiu do vosso
lado, ou quando não vos dá o que dela desejais. É aí que a vossa
insuficiência interior põe em operação o “processo” da mente.
Quando aquela pessoa está perto de vós, não pensais nela; pensar
nela, quando presente, significa estar perturbado; e, por isso,
consideramos a sua presença como coisa muito natural. O hábito
é um meio de esquecer, de se estar em paz, a salvo de perturba-
ções. A utilização, pois, conduz invariavelmente à invulnerabilida-
de, e isso não é amor.
Que estado é aquele em que a utilização — que é “proces-
so” de pensamento, como meio de encobrir a insuficiência interi-
or, positiva ou negativamente — não existe? Que estado é aquele
em que não existe o intuito de satisfação? A busca de satisfação é
a própria natureza da mente. O sexo é sensação, criada, pintada,
pela mente; e então a mente age ou se abstém de agir. A sensa-
ção é um processo de pensamento, que não é amor. Quando a
mente predomina e tão importante é o processo do pensamento,
não existe amor. Esse “processo” de utilização, de pensar, imagi-
nar, prender, fechar, rejeitar, é só fumo; e quando não existe o
fumo, está viva a chama do amor. Às vezes temos essa chama,
rica, cheia, completa; mas a fumaça volta, porque não podemos
viver muito tempo com a chama, que não nos dá nenhum senti-
mento de proximidade, seja de um só, seja de muitos, pessoal, ou
impessoal. Quase todos nós temos conhecido ocasionalmente o
perfume do amor e a sua vulnerabilidade; mas a fumaça do uso,
do hábito, do ciúme, da posse, do contrato e da quebra do contra-
to — se tornou importante para nós, e por isso não existe a chama
do amor. Quando existe a fumaça, não existe a chama; mas quan-
do compreendemos a verdade sobre a utilização, a chama existe.

166
Servimo-nos de um outro, porque, interiormente, somos pobres,
insuficientes, mesquinhos, pequenos, solitários; e esperamos,
com a utilização de outra pessoa ter uma possibilidade de fuga.
Do mesmo modo, servimo-nos de Deus como meio de fuga. O
amor de Deus não é o amor da verdade; amar a verdade é um
simples meio de nos servirmos dela para alcançarmos alguma
outra coisa que conhecemos, e por conseguinte há sempre o re-
ceio pessoal de perdermos algo que conhecemos.
Conhecereis o amor quando vossa mente estiver muito
tranquila e livre da busca de satisfação e das fugas. Em primeiro
lugar, a mente precisa acabar de todo. A mente é resultado do
pensamento, e o pensamento é simples passagem, meio que con-
duz a um fim. Quando a vida é mera passagem para alguma coisa,
como pode existir o amor? Nasce o amor quando a mente está
quieta, naturalmente, e não quando a fizemos quieta, — quando
percebe o falso como falso e o verdadeiro como verdadeiro.
Quando a mente está tranquila, então, tudo o que sucede é ação
do amor, não é ação do conhecimento. Conhecimento é mera
experiência, e experiência não é amor. A experiência não pode
conhecer o amor. Vem o amor à existência, quando compreen-
demos o processo total de nós mesmos, e a compreensão de nós
mesmos é o começo da sabedoria.
[...] PERGUNTA: Nossas vidas são vazias de todo impulso
genuíno de bondade, e procuramos preencher esse vazio com a
caridade organizada e a justiça compulsória. O sexo é a nossa vida.
Podeis lançar alguma luz nesta questão desagradável?
KRISHNAMURTI: Traduzindo a pergunta: Nosso problema
é que nossas vidas são vazias e não conhecemos o amor; conhe-
cemos sensações, conhecemos propaganda, conhecemos exigên-
cias sexuais, mas amor não existe. E como há de ser transformado
esse vazio, como havemos de encontrar aquela chama sem fuma-
ça? A questão é esta, de certo — não achais? Vamos, pois, ver se
descobrimos juntos a verdade nela contida.

167
Por que são vazias as nossas vidas? Embora vivamos muito
ativos, embora escrevamos livros e visitemos os cinemas, embora
joguemos, e amemos, e frequentemos o escritório, são vazias as
nossas vidas, enfadonhas, pura rotina. Por que são tão sem valor,
tão vazias e pouco significativas as nossas relações? Conhecemos
suficientemente as nossas vidas, para saber que nossa existência
tem muito pouca significação; citamos frases e ideias aprendidas
— o que fulano disse, o que disse o mahatma, o que disseram os
santos mais modernos, o que disseram os antigos santos. Se não é
um guia religioso, é um guia político ou intelectual que seguimos,
— Marx, Adler, ou o Cristo. Somos discos de gramofone, repetin-
do sempre, e essa repetição chamamos “saber”. Aprendemos,
repetimos, e nossas vidas continuam as mesmas: desvaliosas,
enfadonhas, sem beleza. Por quê? Por que é assim? Se vós e eu
fizermos realmente esta pergunta a nós mesmos, não encontra-
remos a resposta? Por que temos atribuído tanto valor às coisas
da mente? Por que se tornou a mente tão importante em nossas
vidas — a mente, isto é, as ideias, o pensamento, a capacidade de
racionalizar, de pesar, equilibrar, calcular? Por que temos atribuí-
do tanta importância à mente? — o que não significa que nos
tornemos emotivos, sentimentais e lacrimosos. Conhecemos esse
vazio, conhecemos esse extraordinário sentimento de frustração;
e por que existe em nossas vidas essa falta de profundidade, esse
sentimento de negação? Isso, de certo, só podemos compreender
pela vigilância, nas relações.
Que está sucedendo realmente em nossas relações? Nos-
sas relações não são auto-isolamento? Toda atividade da mente
não é um processo de proteger, de buscar segurança, de isola-
mento ? Aquele mesmo pensar que chamamos coletivo não é
também um processo de isolamento? Toda ação, em nossa vida,
não é um processo de auto-enclausuramento? Podeis observá-lo
pessoalmente, em vossa vida diária, não podeis? A família se tor-
nou um processo de isolamento; e, estando isolada, só pode exis-
tir em oposição. Assim, todas as nossas ações conduzem ao auto-
isolamento, o qual gera o sentimento de vazio; e, vazios que es-

168
tamos, tratamos de preencher o vácuo com programas de rádio,
com barulho, tagarelice, mexericos, com leituras, estudos, com a
respeitabilidade, o dinheiro, a posição social, etc. etc. Mas tudo
isso faz parte do processo de isolamento, e por essa razão só tor-
na mais forte o isolamento. Assim, para a maioria de nós, a vida é
um processo de isolamento, de negação, resistência, conformida-
de a um padrão; e, naturalmente, nesse processo não há vida, e
daí o sentimento de vazio, o sentimento de frustração. Ora, amar
uma pessoa é estar em comunhão com ela, não num determinado
nível, mas de maneira completa, integral, profusa; mas nós não
conhecemos tal amor. Só conhecemos o amor como sensação —
meus filhos, minha esposa, minha propriedade, meu saber, minha
realização; e isso, mais uma vez, é um processo de isolamento,
não achais? Nossa vida conduz à exclusão, em todos os sentidos, é
um movimento de auto-envolvimento, do pensamento e do sen-
timento, e só esporadicamente estamos em comunhão com ou-
tro. Eis porque existe esse enorme problema.
Bem, é esta a condição atual de nossas vidas — respeitabi-
lidade, posses, e vazio — e a questão é de como transcender esse
estado. Como havemos de transcender essa solidão, esse vazio,
essa insuficiência, essa pobreza interior? Não me parece que de-
sejamos isso, os mais de nós. Estamos satisfeitos com o que so-
mos; dá muito trabalho procurar uma coisa nova, e por isso prefe-
rimos ficar como estamos — e aí é que está a verdadeira dificul-
dade. Temos tantas garantias, levantamos muralhas em torno de
nós, com as quais estamos satisfeitos; e ocasionalmente ouve-se
um murmúrio do lado de fora da muralha, ocasionalmente sobre-
vêm um terremoto, uma revolução, uma perturbação que logo
abafamos. Nessas condições, não desejamos, os mais de nós, sair
do “processo” de auto-enclausuramento; o que procuramos é só
substituição, a mesma coisa de forma diferente. Nossa insatisfa-
ção é tão superficial; queremos uma coisa nova que nos traga
satisfação, uma nova garantia, uma nova maneira de proteger-nos
— o que, mais uma vez, é o “processo” do isolamento. Estamos,
com efeito, procurando não sair do isolamento, mas fortalecer o

169
isolamento, torná-lo permanente e à prova de perturbações. Só
muito poucos indivíduos se dispõem a romper e a ver o que existe
fora dessa coisa que chamamos vazio, solidão. Os que buscam um
substituto para o seu velho abrigo ficarão satisfeitos com a desco-
berta de algo que lhes ofereça uma nova segurança; mas há de
haver alguns que desejarão sair desse estado, prossigamos, pois,
em sua companhia.
Ora, para se sair do estado de solidão, de vazio, precisa-
mos compreender todo o processo da mente, não achais? Que é
isso que chamamos solidão, vazio? Como sabemos que é vazio
esse estado, como sabemos que é solitário? Qual a medida pela
qual verificamos que ele é “isto” e não “aquilo”? Compreendeis o
problema? Quando dizeis que ele é solitário, que ele é vazio, qual
a vossa medida? Como sabeis que é vazio? Só o podeis saber pela
medida do velho. Dizeis que ele é vazio, dais-lhe nome, e pensais
tê-lo compreendido. O dar nome a uma coisa não é justamente
um obstáculo à sua compreensão? Ora, senhores, os mais de nós
sabemos o que é essa solidão, não é verdade? — essa solidão da
qual estamos sempre procurando um meio de fugir. Os mais de
nós estamos cônscios dessa pobreza interior, dessa insuficiência
interior. Ela não é uma reação incompleta, é um fato, e com lhe
darmos um nome qualquer, não podemos dissolvê-la — ela conti-
nua a existir. Pois bem, como conhecer o seu conteúdo, como
conhecer a sua natureza? Conheceis alguma coisa com lhe dar um
nome? Vós me conheceis, chamando-me por um nome? Só podeis
conhecer-me, observando-me, estando em comunhão comigo;
mas o chamar-me por um nome, o dizer que eu sou isto ou aquilo,
isso, evidentemente, põe fim à comunhão comigo. De modo idên-
tico, para se conhecer a natureza daquela coisa chamada solidão,
é preciso haver comunhão com ela; e a comunhão não é possível
se lhe dais nome. Para se compreender algo, a primeira coisa de
que devemos desistir é o dar nome. Se desejais compreender o
vosso filho verdadeiramente — do que duvido — que fazeis? Vós
o olhais, o vigiais, quando brinca, o observais, o estudais, não é
verdade? Por outras palavras, vós amais aquilo que desejais com-

170
preender. Quando amais uma coisa qualquer, naturalmente há
comunhão com ela; mas o amor não é uma palavra, um nome, um
pensamento. Não podeis amar aquilo que chamais solidão porque
não estais plenamente cônscio dela, vós vos aproximais com me-
do — não dela, mas de outra coisa. Ainda não pensastes a respei-
to da solidão, porque não desejais saber realmente o que ela é.
Senhores, não sorriais, isto não é um argumento sutil. Experimen-
tai a coisa, enquanto falamos, e vereis a sua significação.
Assim, aquilo a que chamamos o vazio é um processo de
isolamento, o qual é o produto das relações de cada dia; porque,
nas relações, estamos sempre, consciente ou inconscientemente,
buscando a exclusividade. Desejais ser o dono exclusivo de vossa
propriedade, de vossa esposa ou marido, de vossos filhos, desejais
dar à coisa ou à pessoa o nome de “meu”, o que obviamente sig-
nifica aquisição exclusiva. Esse processo de exclusão deve inevita-
velmente conduzir a um sentimento de isolamento, e uma vez
que nada pode viver no isolamento, existe conflito; e desse confli-
to tentamos fugir. Todas as formas concebíveis de fugir — ativida-
des sociais, o beber, a busca de Deus, o puja, a execução de ceri-
mônias, a dança e outros divertimentos — estão no mesmo nível;
e se percebemos, na vida diária, esse processo total da fuga do
conflito, e desejamos sair dele, precisamos compreender as nos-
sas relações. Só quando a mente não está fugindo, de alguma
maneira, é possível estar em comunhão direta com aquela coisa a
que chamamos solidão; e para entrarmos em comunhão com ela,
há necessidade de afeição, há necessidade de amor.
Por outras palavras: precisamos amar a coisa, para a com-
preendermos. O amor é a única revolução; e o amor não é uma
teoria, não é uma ideia, ele não segue nenhum livro nem nenhum
padrão de conduta social. Nestas condições, a solução do proble-
ma não pode ser encontrada em teorias, que só servem para criar
mais isolamento; ela só pode ser encontrada quando a mente,
que é pensamento, não está procurando uma fuga da solidão. A
fuga é um processo de isolamento, e a verdade contida na ques-

171
tão é que só pode haver comunhão quando existe o amor; e só
então é que o problema da solidão está resolvido.
[...] NÃO TENHO INTERESSE algum em vos hipnotizar ou
influenciar, porque se ficais hipnotizado ou influenciado, consci-
ente ou inconscientemente, vós vos tornareis meu seguidor; e
tornando-vos seguidor, destruís a vós mesmo e a mim, e, por con-
seguinte, não existe amor entre nós. Quando há amor, não há
hipnose, não há seguidor nem instrutor, nem homem nem mu-
lher; só há a chama do amor. É esse amor que estabelece a comu-
nhão entre nós.
[...] PERGUNTA: Conhecemos o sexo como uma inelutável
necessidade física e psicológica, e ele parece ser uma causa pro-
funda do caos na vida pessoal de nossa geração. Inspira ele horror
às mulheres jovens, que caem vítimas da lascívia dos homens.
Tanto a repressão como a transigência são igualmente ineficazes.
Como resolver este problema?
KRISHNAMURTI: Por que logo transformamos num pro-
blema tudo quanto tocamos? Fizemos de Deus um problema,
fizemos do amor um problema, fizemos das relações, do viver, um
problema, e fizemos do sexo um problema. Por quê? Por que tudo
o que fazemos é um problema, uma coisa medonha? Por que so-
fremos? Por que se tornou o sexo um problema? Por que nos
sujeitamos a viver cheios de problemas, e por que não lhes pomos
termo? Por que não morremos para os nossos problemas, em vez
de os levarmos conosco, dia por dia, ano por ano? O sexo, sem
dúvida, é uma questão relevante, da qual me ocuparei mais adian-
te. Existe, porém, uma questão primária: Por que fazemos da vida
uma problema? O trabalho, o sexo, ganhar dinheiro, pensar, sen-
tir, experimentar, enfim, todo o nosso viver — por que tudo isso é
problema? Não é, essencialmente, porque nós sempre pensamos
de um determinado ponto de vista, de um ponto de vista fixo?
Estamos sempre pensando de um centro para a periferia; mas a
periferia constitui o centro, para a maioria de nós, e por isso qual-
quer coisa que tocamos é superficial. Mas a vida não é superficial,

172
ela exige que a vivamos completamente, e porque estamos viven-
do apenas superficialmente, só conhecemos a reação superficial.
Tudo o que fazemos na periferia há de criar, inevitavelmente, um
problema, e tal é a nossa vida: vivemos à superfície e nos conten-
tamos com viver nela, com todos os seus problemas. Assim, exis-
tem problemas enquanto vivemos superficialmente, na periferia,
sendo essa periferia o “eu” e suas sensações, o qual pode ser ex-
teriorizado ou subjetivado, o qual pode ser identificado com o
universo, com a nação, ou com outra coisa qualquer feita pela
mente. Enquanto vivermos dentro da esfera da mente, haverá
complicações, haverá problemas; e é só isso o que sabemos. A
mente é sensação, a mente é o resultado de sensações, de rea-
ções acumuladas, e qualquer coisa que ela toca há de criar, neces-
sariamente, sofrimento, confusão, um problema infinito. A mente
é a causa real dos nossos problemas, a mente que funciona meca-
nicamente, noite e dia, consciente e inconscientemente. A mente
é uma coisa sobremodo superficial e levamos gerações, levamos
toda a nossa vida a cultivar a mente, tornando-a cada vez mais
eficaz, cada vez mais sutil, cada vez mais astuta, mais desonesta e
solerte, — sendo tudo isso muito evidente, em todas as atividades
da nossa vida. A própria natureza da mente é o ser desonesta,
solerte, incapaz de enfrentar os fatos; e essa é a coisa que cria
problemas, e ela própria, essa coisa, é o problema. Agora, que
entendemos, quando falamos de “problema do sexo”? É o ato ou
é o pensamento a respeito do ato? Evidentemente, não é o ato. O
ato sexual não é problema algum, tampouco o é o comer; mas se
ficamos a pensar o dia inteiro a respeito do comer ou de qualquer
outra coisa, ela se torna um problema para nós (risos). Não riais e
não olheis uns para os outros, essa é a vossa vida. Qual é então o
problema: o ato sexual, ou o pensamento relativo ao ato? E por
que pensais a esse respeito? Por que dais desenvolvimento a esse
pensamento, como evidentemente fazeis? Os cinemas, as revis-
tas, os contos, a moda feminina, tudo isso alimenta o vosso pen-
sar a respeito do sexo, — e por que o entretém a mente, por que
pensa a respeito do sexo? Por que, senhores e senhoras? Este
problema vos concerne. Por quê? Por que se torna ele um pro-
173
blema central na vossa vida? Quando há tanta coisa a solicitar, a
exigir a vossa atenção, vós a dais, toda inteira, ao pensamento do
sexo. Que se passa, por que estão as vossas mentes tão ocupadas
com ele? — Porque ele constitui um meio de fuga, não é verdade?
Um meio de completo auto-esquecimento. Temporariamente,
pelo menos, podeis esquecer-vos de vós mesmos — e não há ou-
tro meio de esquecerdes a vós mesmos. Tudo o mais que fazeis na
vida confirma o “eu”. Vossa ocupação, vossa religião, vossos deu-
ses, vossos guias, vossas ações políticas e econômicas, vossas fu-
gas, vossas atividades sociais, vossa adesão a um partido e rejei-
ção de outro — tudo isso está confirmando e reforçando o “eu”.
Isto é, senhores, só existe ato no qual não há afirmação do “eu”, e
por esta razão esse ato se converte num problema, não é verda-
de? Quando só existe uma coisa, em vossa vida, que constitui uma
via suprema de fuga, de completo esquecimento de vós mesmos,
ainda que por alguns segundos, vós lhe ficais apegados, por ser o
único momento em que sois felizes. Qualquer outra coisa com que
vos ocupais se torna um pesadelo, uma fonte de angústia e de
dor, e por isso estais apegados à única coisa que vos proporciona
completo auto-esquecimento, a que dais o nome de felicidade.
Mas, por causa desse apego, ela se torna um pesadelo, e quereis
então ficar livre dela, não desejais ser seu escravo. E inventais,
assim, mais uma vez pela ação da mente, a ideia da castidade, do
celibato, e procurais ser celibatário, ser casto, por meio de refrea-
mento, de negação, de meditação, por meio de esforços religiosos
de toda espécie, sendo todas essas coisas operações da mente no
sentido de desvencilhar-se do fato. Isso, também, dá especial
relevo ao “eu”, que tenta tornar-se alguma coisa, e de novo caí-
mos nas garras da tribulação, da perturbação, do esforço, da dor.
O sexo, nessas condições, se torna um problema em extremo difí-
cil e complexo, enquanto não se compreende a mente que pensa
a respeito do problema. O ato, em si, nunca pode ser um proble-
ma, mas o pensamento relativo ao ato cria o problema. O ato,
esse tendes o cuidado de ressalvar, e viveis libertinamente, ou
tomais uma esposa e fazeis dela uma prostituta, — e tudo isso,
aparentemente, é muito respeitável; e ficais satisfeitos com as
174
coisas como estão. O problema, naturalmente, só pode ser resol-
vido ao compreenderdes todo o processo e estrutura do “eu” e do
“meu”: minha esposa, meu filho, minha propriedade, meu carro,
minha “realização”, meu bom êxito; e enquanto não compreen-
derdes e resolverdes tudo isso, continuará a existir o problema do
sexo. Enquanto fordes ambiciosos, politicamente, religiosamente,
ou por qualquer outra maneira, enquanto estiverdes a reforçar o
“eu”, o pensante, o “experimentador”, alimentando-o de ambi-
ções, seja em vosso próprio nome, como indivíduo, seja em nome
da pátria, do partido, ou de uma ideia a que chamais religião —
enquanto houver essa atividade de expansão do “eu” , tereis um
problema sexual. Por certo, estais criando, nutrindo, expandindo
o vosso “eu”, por um lado, e por outro lado diligenciais esquecer-
vos de vós mesmo, ainda que seja por um momento. Como po-
dem coexistir as duas coisas? Vossa vida, portanto, é uma contra-
dição: afirmação do “eu” e esquecimento do “eu”.
O sexo não é problema: o problema é esta contradição
existente na nossa vida; e a contradição não pode ser conciliada
pela mente, porque a mente, ela própria, é contradição. Só pode
ser compreendida a contradição compreendendo-se plenamente
todo o ‘‘processo” da existência diária. O frequentar os cinemas,
para contemplar mulheres, na tela, a leitura de livros que estimu-
lam o pensamento, as revistas cheias de gravuras semi-nuas, vos-
sa maneira de olhar para as mulheres, os olhares furtivos que vos
fascinam — todas essas coisas estimulam a mente, por vias tortu-
osas, a afirmar o “eu”; e ao mesmo tempo procurais ser bondoso,
delicado, terno. As duas coisas não podem andar juntas. O ho-
mem ambicioso, espiritualmente ou a outros respeitos, nunca
pode estar sem um problema, porque os problemas só terminam
quando o “eu” foi esquecido, quando o “eu” é inexistente; e esse
estado de não existência do “eu” não é um ato de vontade, não é
mera reação. O sexo se torna uma reação; e quando a mente pro-
cura resolver o problema, só o torna mais confuso, mais pertur-
bador, mais doloroso. Assim, não é o ato o problema, mas a men-
te é que é o problema, a mente que diz que precisa ser casta. A

175
castidade não é coisa da mente. A mente só pode reprimir as suas
atividades, mas repressão não é castidade. A castidade não é uma
virtude, a castidade não pode ser cultivada. O homem que está
cultivando a humildade, não é, de certo, um homem humilde; ele
pode chamar o seu orgulho humildade, mas é um homem orgu-
lhoso, sendo por isso que procura tornar-se humilde. O orgulho
nunca pode tornar-se humilde, e a castidade não é coisa da mente
— não podeis tornar-vos casto. Só conhecereis a castidade quan-
do houver amor, e o amor não é da mente, nem coisa da mente.
Assim, o problema do sexo, que tortura a tantas pessoas,
no mundo inteiro, não pode ser resolvido enquanto a mente não
for compreendida. Não podemos fazer cessar o pensar; mas o
pensamento cessa logo que cessa o pensante, e o pensante só
pode cessar quando há compreensão de todo o ‘"processo”. Vem
o medo à existência, quando há divisão entre pensante e pensa-
mento; quando não há pensante, só então não há conflito no pen-
samento. O que é implícito não requer nenhum esforço para ser
compreendido. O pensante nasce em consequência do pensamen-
to e se esforça, então, por moldar, por controlar os seus pensa-
mentos e fazê-los cessar. O pensante é uma entidade fictícia, uma
ilusão da mente. Quando há conhecimento real do pensamento
como um fato, não há necessidade de se pensar no fato. Se há
percebimento simples, sem escolha, então o que está implícito no
fato começa a revelar-se. Por conseguinte, o pensamento, como
fato, deixa de existir. Vereis então que os problemas que nos de-
voram o coração e a mente, os problemas de nossa estrutura so-
cial, podem ser resolvidos. Então, o sexo já não é um problema,
tem o seu lugar próprio, não é nem uma coisa impura nem uma
coisa pura. O sexo tem o seu lugar próprio, mas quando a mente
lhe atribui o lugar predominante, então ele se torna um problema.
A mente atribui ao sexo um lugar predominante, porque não pode
viver sem um pouco de felicidade, e por isso o sexo se torna um
problema; mas logo que a mente compreende, de modo integral,
o seu próprio processo e deixa, assim, de existir, isto é, logo que
cessa o pensar, há então criação, e é essa criação que nos faz feli-

176
zes. Achar-se nesse estado de criação é felicidade suprema, por-
que ele é auto-esquecimento, no qual não há reação procedente
do “eu”. Não é esta uma solução abstrata ao problema diário do
sexo: é a única solução. A mente nega o amor, e sem amor não
existe castidade; e é porque não existe amor que fazeis do sexo
um problema.
[...] PERGUNTA: O amor, como o conhecemos, é uma fu-
são entre duas pessoas, ou entre os componentes de um grupo;
ele é exclusivo e, nele, há simultaneamente sofrimento e alegria.
Quando dizeis que o amor é a única solução para os problemas da
vida, dais à palavra uma significação que provavelmente nunca
experimentamos. Pode um homem comum, como eu, conhecer o
amor no vosso sentido?
KRISHNAMURTI: Senhor, qualquer um pode amar; mas só
conhecereis o amor quando souberdes olhar os fatos com clareza,
sem resistência, sem justificação, sem explicações — olhar as coi-
sas de perto, observá-las clara e minuciosamente. Ora, que coisa é
essa a que chamamos amor? Diz o interrogante que ele é exclusi-
vo e que, nele, conhecemos dores e alegrias. O amor é exclusivo?
Veremos, ao examinar isso que chamamos amor, isso que o dito
homem comum chama amor. Não há homem comum. Só há o
homem, que sois vós e eu. O homem comum é uma entidade
fictícia inventada pelos políticos. Só há o homem, que sois vós e
eu, que vivemos na aflição, na dôr, na ansiedade e no temor. Ora,
que é a nossa vida? Para averiguarmos o que é o amor, comece-
mos com o que conhecemos. Que é o nosso amor? No meio do
sofrimento, do prazer, sabemos que ele é exclusivo, pessoal: mi-
nha mulher, meus filhos, minha pátria, meu Deus. Sabemos que é
uma chama que arde no meio do fumo, conhecemo-lo pelo ciúme,
conhecemo-lo pelo desejo de domínio, de posse, conhecemo-lo
na perda, quando o ente amado se foi. Nessas condições, conhe-
cemos o amor como sensação, não é verdade? Quando dizemos
que amamos, conhecemos o ciúme, conhecemos o temor, conhe-
cemos a ansiedade. Quando dizeis que amais alguém, tudo isso
está implícito: inveja, desejo de posse, de domínio, medo de per-

177
der, etc. A tudo isso chamamos amor, e não conhecemos amor
sem temor, sem inveja, sem posse; verbalizamos, meramente,
aquele “estado de amor” que é sem temor, chama-mo-lo impes-
soal, puro, divino, ou sabe Deus o que mais; mas o fato é que so-
mos ciumentos, temos a ânsia de domínio, de posse. Só conhece-
remos aquele “estado de amor” depois que cessar o ciúme, a in-
veja, a ânsia de posse e de domínio; e enquanto possuirmos, não
amaremos. A inveja, a posse, o ódio, o desejo de dominar a pes-
soa ou coisa que chamo “minha”, o desejo de possuir e ser possu-
ído — tudo isso é processo de pensamento, não é verdade? Mas é
o amor processo de pensamento? É o amor coisa da mente? Na
realidade, para a maioria de nós, é. Não digais que não é — seria
insensato dizê-lo. Não negueis o fato de que o vosso amor é uma
coisa da mente. Ele o é, não é verdade? Do contrário, não possui-
ríeis, não dominaríeis, não diríeis “meu”. E visto que o dizeis, o
vosso amor é uma coisa da mente; o amor, para vós, portanto, é
um processo de pensamento. Podeis pensar na pessoa amada;
mas, pensar na pessoa amada — isso é amor? Quando pensais na
pessoa que amais? Pensais nela, quando partiu do vosso lado,
quando ausente, quando vos deixou só. Mas quando ela não vos
causa agitação, quando dizeis “é minha”, então não precisais pen-
sar nela. Não precisais pensar nos vossos móveis; eles são parte
de vós mesmos — o que é um processo de identificação, visto que
tem o fim de evitar perturbações, evitar incômodos, ansiedades,
aflição. Assim sendo, só sentis falta da pessoa que dizeis amar,
quando estais agitado, quando estais sofrendo; e enquanto pos-
suirdes essa pessoa, não precisais pensar nela, porque na posse
não há perturbação. Mas quando a posse é perturbada, começais
a pensar, e então dizeis “Amo essa pessoa”. Assim, o vosso amor é
mera reação da mente, não é verdade? — o que significa que o
vosso amor é mera sensação, e sensação, por certo, não é amor.
Pensais na pessoa, quando estais ao seu lado, senhores e senho-
ras? Quando a possuis, quando a tendes em vossas mãos, quando
a dominais, controlais, quando podeis dizer “é meu” ou “é mi-
nha”, não há problema algum. Enquanto estais seguro, na vossa
posse, não há problema. E a sociedade, e tudo o que construístes
178
ao redor de vós, vos ajuda a possuir sem serdes perturbado, sem
terdes necessidade de pensar a respeito da coisa que possuis. 0
pensar vem quando estais agitado — e, inevitavelmente, estareis
agitado enquanto o vosso pensar for isso que chamam “amor”.
Positivamente, o amor não é coisa da mente. E porque as coisas
da mente encheram os nossos corações, não temos amor. As coi-
sas da mente são: ciúme, inveja, ambição, o desejo de ser alguém,
de lograr bom êxito. Essas coisas da mente encheram os nossos
corações, e por isso dizeis que amais; mas como podeis amar,
quando tendes dentro em vós todos esses elementos geradores
de confusão? Quando há fumaça, como pode haver uma chama
pura? O amor não é coisa da mente; e o amor é a única solução
para os nossos problemas. O amor não é da mente, e o homem
que acumula dinheiro ou conhecimento, nunca pode conhecer o
amor, porque ele vive com as coisas da mente; suas atividades são
da mente, e tudo o que ele toca, disso ele faz um problema, uma
confusão, uma miséria.
Portanto, o que chamamos o nosso amor é uma coisa da
mente. Olhai a vós mesmos, senhores e senhoras, e vereis a ver-
dade do que estou dizendo. Se assim não fosse, nossas vidas, nos-
so casamento, nossas relações, seriam inteiramente diferentes,
teríamos uma nova sociedade. Ligamo-nos a outra pessoa, não
por fusão, mas por contrato, a que chamamos amor, casamento.
O amor não funde, não ajusta — não é nem pessoal nem impes-
soal — é um “estado de ser” . O homem que deseja fundir-se com
algo maior, que deseja unir-se com outrem, está evitando o sofri-
mento, a confusão; mas a mente continua em separação, quer
dizer, em desintegração. O amor não conhece nem fusão nem
difusão, não é nem pessoal nem impessoal, é um “estado de ser”,
que a mente não pode atingir; pode ela descrevê-lo, dar-lhe uma
designação, um nome, mas a palavra, a descrição não é amor. Só
quando a mente está tranquila conhecerá o amor, e esse estado
de tranquilidade não é coisa cultivável. O cultivar é ainda ação da
mente, a disciplina é ainda um produto da mente, e a mente que
é disciplinada, controlada, subjugada, a mente que está resistindo,

179
explicando, não pode conhecer o amor. Podeis ler sobre o amor,
podeis escutar o que outra pessoa diz a respeito, mas isso não é
amor. Só quando pondes de parte as coisas da mente, só quando
os vossos corações estão vazios das coisas da mente, há o amor.
Sabereis então o que é amar, sem separação, sem distância, sem
tempo, sem temor — e isso não está reservado para os poucos. O
amor não conhece hierarquia, é só amor. Só há “os muitos” e o
“um”, só há exclusividade, quando não há amor. Quando amais,
senhor, não há nem “vós” nem “eu”; nesse estado só há uma
chama sem fumaça.
[...] PERGUNTA: Não sois contrário ao matrimônio como
instituição?
KRISHNAMURTI: Peço-vos prestar bastante atenção e ou-
vir inteligentemente, e não apenas levantar oposição ou resistên-
cia. É tão fácil ser contra alguma coisa, tão estúpido resistir sem
compreender. Ora bem, a família é exclusiva, não é verdade? A
família é um processo de identificação particularista; e quando a
sociedade está baseada nessa ideia da família como uma unidade
exclusiva, em oposição a outras unidades exclusivas, uma tal soci-
edade, inevitavelmente, há de produzir a violência. Usamos a fa-
mília como um meio de segurança para nós mesmos, para o indi-
víduo, e onde há a busca de segurança individual, de felicidade
individual, tem de haver exclusão. Essa exclusão é chamada
“amor”, e nesse chamado estado de família ou de matrimônio,
existe realmente amor? Ora, examinemos o que a família de fato
é, em vez de nos atermos a uma teoria a seu respeito. Não esta-
mos considerando o ideal do que ela deveria ser, mas vamos
examinar com precisão o que é a família, tal como a conhecemos.
Entendeis por “família”, vossa esposa e vossos filhos, não é verda-
de? É uma unidade em oposição a outras unidades, e nessa uni-
dade sois vós quem tem importância — não a vossa esposa, nem
os vossos filhos ou a sociedade, mas somente vós, que estais em
busca de segurança, de nome, de posição, de poder, tanto na
família como fora dela. Dominais a vossa esposa, e ela vos é sub-
serviente; vós ganhais e gastais o dinheiro, ela é vossa cozinheira

180
e a progenitora dos vossos filhos (risos). Criais, assim, a família,
que é uma unidade exclusiva em oposição a outras unidades; mul-
tiplicando-vos por milhões, produzis uma sociedade na qual a
família é uma entidade exclusiva, que se isola a si mesma, que se
separa, em antagonismo e oposição a outras. Todas as revoluções
tentam abolir a família, mas sempre malogram, porque o indiví-
duo está constantemente em busca de sua própria segurança,
pelo isolamento, pela exclusão, pela ambição e pela dominação.
Assim, a família, que criastes como uma unidade separativa, se
torna um perigo para o coletivo, que é também o resultado do
indivíduo. Por conseguinte não pode haver reforma do coletivo
enquanto vós, como indivíduo, fordes exclusivista e buscardes o
auto-isolamento em cada uma de vossas ações, limitando o vosso
interesse a vós mesmo.
Ora, esse processo de exclusão não é, de certo, amor. O
amor não é criação da mente. O amor não é pessoal, impessoal ou
universal — essas palavras são só da mente. O amor é algo que
não pode ser compreendido enquanto existir o pensamento, que
é exclusivista. O pensamento, que é a reação da mente, nunca
pode compreender o que é amor; o pensamento é invariavelmen-
te exclusivista, separatista, e quando o pensamento procura des-
crever o amor, tem, necessariamente, de encerrá-lo em palavras,
que também são exclusivas. A família, como a conhecemos, é
invenção da mente, e por isso ela é exclusivista, é um processo de
engrandecimento do “eu”, que é resultado do pensamento; e na
família, à qual nos apegamos com tanta constância, com tanto
desespero, não há amor, há? Empregamos a palavra “amor”, pen-
samos que amamos, mas de fato não amamos, não é verdade?
Dizemos que amamos a verdade, que amamos a esposa, o esposo,
os filhos; mas essa palavra está rodeada pelo fumo do ciúme, da
inveja, da opressão, da dominação, e da batalha constante. A fa-
mília se torna um pesadelo, torna-se um campo de batalha entre
os dois sexos, e, por conseguinte, a família, invariavelmente, fica
em oposição à sociedade. A solução reside, não na legislação para
abolir a família, mas na vossa própria compreensão do problema;

181
e o problema só é compreendido, e por conseguinte desaparece,
quando há o verdadeiro amor. Quando as coisas da mente não
enchem o coração, quando a ambição individual, o bom êxito
pessoal, não predominam, quando não têm lugar nenhum no
vosso coração, só então conhecereis o amor.
O que estamos buscando?

[...] PERGUNTA: S ou muito rancoroso. Ensinai-me o amor.


KRISHNAMURTI: Por que rides? Não achais ser esta uma
pergunta muito triste? Prestai atenção a esta pergunta. O interro-
gante está perfeitamente cônscio disso que ele é — o que não
acontece com a maioria de nós. Em geral, vivemos inconscientes
de nós mesmos. Vós também odiais, estais também cheios de
inveja, malevolência e perene descontentamento. Mas, o interro-
gante, por felicidade ou infelicidade dele, está cônscio disso e diz:
“ensinai-me a amar”.
Pode-se ensinar o amor? Pode-se ir à escola para apren-
der a amar? Pode-se ensinar a sabedoria — embora haja escolas
de sabedoria? Tende a bondade de prestar atenção. Pode-se
aprender sabedoria? Pode-se aprender o amor? Podeis procurar
alguém para aprender o que é o amor? Esta pergunta não é de
arrancar lágrimas dos olhos? Não me estou fazendo patético, nem
vos hipnotizo para pôr-vos num estado de emotividade. Vede-vos
como sois, senhores — interiormente vazios e, por isso, perene-
mente em busca da sabedoria, do amor, da benevolência e da
compreensão. Andais de escola em escola, de autoridade em au-
toridade, para serdes ensinados, porque, interiormente, sois vazi-
os e desejais preencher o vosso vazio com palavras sem muita
significação.
O amor não vos pode ser ensinado; nem a sabedoria, tão
pouco. Nasce a sabedoria quando a mente está livre da experiên-
182
cia. Escutai o que estou dizendo. Quando a mente está livre da
experiência, há sabedoria. Mas, enquanto existir a mente que
busca a experiência, tem de haver o “experimentador” para ter a
experiência; essa mente jamais pode ser sábia. Analogamente, um
coração que busca preencher-se com o amor só se encherá de
palavras pouco significativas — palavras ocas, sem significação ou
conclusão. Mas um homem odeia; tal é a realidade. Um homem
sofre; tal é a realidade; é invejoso; tal é o fato. Como devo aten-
der ao fato? Se sei que odeio, é muito importante que eu saiba
como atender a este fato; se sei atender ao fato, existe então a
possibilidade de sua dissolução. Mas se não o sei, nesse caso, po-
de haver apenas recalcamento do fato, o que faz surgir outro fato.
O importante, pois, é compreender-se o fato; e não se pode com-
preender o fato, se o condenamos, se o julgamos. Só podeis com-
preender vosso filho, quando não o condenais; tendes de estudá-
lo, o que significa: não condená-lo, jamais julgá-lo, ou identificá-lo
com vós mesmo. Se desejais compreender o ódio, a ambição,
necessitais de um percebimento livre de escolha, livre de julga-
mento; e isto é dificílimo, porque o nosso condicionamento nos
leva a julgar, a condenar, a rejeitar, a fim de nos apoderarmos de
algum outro fator. Por conseguinte, o que fazemos perenemente
é só isto: procuramos um substituto para o que é.
Só quando se é livre do ódio, livre da ambição, pode- se
saber o que é o amor. Então, pode-se também conhecer a sabe-
doria; porque — talvez — amor é sabedoria. Assim como não se
pode aprender de um outro o que é o amor, assim também não se
pode aprender o que é a sabedoria. Nenhuma escola, nenhum
livro, nenhum mestre vô-lo pode ensinar. O amor nasce, quando
conhecemos todos os arcanos do nosso coração, o que só é possí-
vel quando a mente está tranquila.
[...] PERGUNTA: Que significa o “amor de Deus”, conforme
o advogam tantos livros e Mestres?
KRISHNAMURTI: Que aconteceria, se não houvesse livros
e instrutores? Seríeis ignorante? Estais livre da ignorância se sois

183
capaz de citar, de comparar? Por certo, a mente, que é pensa-
mento, deixa de funcionar, quando não está enredada numa con-
clusão, fica inativa quando não está aprisionada numa definição.
Desejais saber o que é o amor de Deus, conforme o advo-
gam os livros e os instrutores. Pois bem. Suponhamos que não
tivésseis nenhum “advogado”; desejaríeis saber o que é o amor?
— não o amor de Deus, porque, para nós, amor a Deus é ódio aos
homens. Rides, senhor! Mas isto é um fato. Se realmente amás-
seis a Deus e aos homens, não teríeis tantas religiões absurdas,
tantos ritos e templos. Isto não é amor a Deus. Porque não sabeis
o que é o amor, adorais a Deus. Adornais de flores e adorais uma
imagem esculpida, ofereceis sacrifícios a essa imagem feita pela
mão ou pela mente; e a isso chamais ‘‘amor a Deus”. Isto não é
amor: é medo. Rezar para se ser feliz neste mundo e no outro
mundo é sinal de mediocridade. Mas, amor a Deus é amor pelo
homem; temos de começar pelo amor ao homem; mas como não
conhecemos este amor, voltamo-nos para uma certa coisa miste-
riosa que chamamos “Deus” e procuramos descobrir o que é o
amor. Nunca o descobrireis, porque não amais o vosso próximo;
não sabeis o que é o amor; não amais os vossos filhos. O amor,
por certo, tem de começar com o que está mais próximo, e não
com o que está “lá longe”; e a dificuldade de quase todos nós é
que somos muito intelectuais, muito “verbais”, muito condiciona-
dos no nosso pensar, que dizemos “intelectual”.
Temos cultivado o intelecto, e nunca demos atenção ao
nosso coração. Enchemos a mente de palavras, e queremos en-
cher o nosso coração com a palavra “amor”. Sem dúvida, se que-
remos compreender o que é o amor — que não é meramente o
amor do homem ao homem, à mulher, à criança, mas que ultra-
passa tudo isso — temos de começar com o que está perto de
nós, não é verdade? Se não compreendo a mim mesmo, o meu
espírito, como posso compreender o que é muito mais complexo,
mais extraordinário, mais misterioso? Procuramos o misterioso e
lhe atribuímos toda espécie de significação. Se pudermos com-
preender o mistério de nós mesmos, veremos como ele nos leva

184
ao mais maravilhoso de todos os mistérios da vida, ao mistério
supremo, que é Deus, a Verdade. Esta verdade, porém, este Deus,
não pertence à mente. Surge quando eu compreendo a mim
mesmo, quando já não há ódio, quando já não há medo. É só pelo
completo desaparecimento do ódio e não pela transformação do
ódio em amor, que existe a possibilidade de a mente ser livre do
ódio e do medo; então, só então, é possível saber o que é esse
amor que não é meramente sensualista — amor dos sentidos.
Mas essa ação exige autoconhecimento e meditação.
A meditação do coração é o começo da sabedoria. O me-
ditar, porém, requer essencialmente a compreensão do “medita-
dor” — que sois vós, o “pensador”. O autoconhecimento, por
conseguinte, é essencial — deveis conhecer a vós mesmo, no vos-
so falar, conhecer todos os vossos “motivos”, todas as vossas pa-
lavras, nas vossas relações; deveis saber o que sois, a cada mo-
mento que passa. Eis o que é meditação, o começo da meditação.
Sem ela, podeis fazer o que quiserdes: concentrar-vos, transpor-
tar-vos para “além”, executar toda a sorte de artifícios, — nada
disso é meditação; são fugas da Realidade, conducentes à ilusão.
O começo da meditação, pois, é o autoconhecimento — que é
sabedoria.
O problema da revoluçã o total

[...] PERGUNTA: Qual o verdadeiro valor da igualdade. É a


igualdade um fato ou uma ideia?
KRISHNAMURTI: Para o idealista, é uma ideia; para o ho-
mem que observa, um fato. Existe a desigualdade: vós sois muito
mais inteligente do que eu; tendes capacidades maiores; amais, e
eu não amo; pintais, criais, pensais, e eu sou um simples imitador;
tendes riquezas, e eu sou pobre, no meu ser. A desigualdade exis-
te, é um fato, quer vos agrade, quer não. Há também a desigual-

185
dade de função; mas, infelizmente, nós transportamos a desigual-
dade de função ao nível da desigualdade de estado. Não tratamos
a função como função, mas nos servimos dela para conquistar
poder, posição, prestígio — o que vem a ser estado — e estamos
sempre mais interessados no estado do que na função. Por isso,
continuamos a ter a desigualdade.
Existe não só a desigualdade psicológica, mas também a
evidente desigualdade exterior. Tudo isso são fatos. Não há quan-
tidade de leis que possa apagar a desigualdade. Entretanto, se se
compreender que, psicologicamente, é necessário estar cada um
completamente livre de todo e qualquer conceito autoritário (to-
da e qualquer filosofia autoritária), terá então a desigualdade,
parece-me, um significado todo diferente. Se for o indivíduo capaz
de apagar completamente a desigualdade psicológica que em si
mesmo criou através de sua condição pessoal, sua capacidade,
suas ideias, desejos, ambições; se houver a completa eliminação
dessa luta psicológica para se ser alguma coisa, haverá então a
possibilidade de se conhecer o amor. Mas, enquanto estou lutan-
do, enquanto, psicologicamente, estou usando a função como
meio de me tornar alguém, enquanto houver um “vir a ser” do
“eu”, existirá sempre a desigualdade do espírito. Consequente-
mente, existirá sempre uma diferença entre mim e o “Salvador”,
existirá sempre um hiato entre “o que sabe” e “o que não sabe”; e
existirá também a luta para alcançar aquele estado. Nessas condi-
ções, enquanto, não houver liberdade, o “vir a ser” será sempre
um meio de fortalecer a desigualdade existente e que é tão des-
trutiva.
Senhor, como pode um homem ambicioso conhecer a
igualdade ou o amor? Todos somos ambiciosos e pensamos ser
muito honroso este estado. Desde pequeninos educam-nos para
sermos ambiciosos, termos sucesso, tornar-nos alguém; por con-
sequência, interiormente, desejamos a desigualdade. Vede a ma-
neira como tratamos as pessoas, como respeitamos a uns e des-
prezamos a outros. Se fizerdes um exame interior de vós mesmo,
vereis que esse senso de desigualdade cria o Mestre, o guru, de

186
quem vos tornais discípulo, seguidor, imitador, o que “quer vir a
ser”. Interiormente criais a desigualdade e a dependência de ou-
tro; por essa razão, não há liberdade. Há sempre a divisão entre o
homem e o homem, porque cada qual só quer sucesso, só quer
ser alguém.
Só quando, interiormente, sois “como o nada”, por serdes
um ente livre, encontra-se a possibilidade de não se fazer uso da
desigualdade para engrandecimento próprio, para implantar a
ordem e a paz. Mas “ser como nada” não é uma simples frase;
temos de sê-lo completamente, interiormente; e isso só é possível
quando a mente não está entregue ao “vir a ser”.
[...] DESEJO, SE POSSÍVEL, estar em comunhão convosco.
Emprego propositadamente a palavra “comunhão”, porquanto
acho que não estamos aqui para uma simples troca de ideias, nem
temos o desejo de persuadir alguém sobre um determinado ponto
de vista ou de estabelecer um programa de ação. “Estar em co-
munhão” é uma coisa de todo diferente, porque todas as partes
devem estar interessadas no assunto, ao mesmo tempo e no
mesmo nível. É impossível a comunhão se, quando nos falamos,
vós estais interessados numa coisa e eu, noutra; não há então
comunhão; só é possível a comunhão quando todos nós, vós e eu
juntos, estamos — ao mesmo tempo e no mesmo nível — interes-
sados não apenas em ouvir a expressão verbal, mas também em
comungar uns com os outros num nível mais profundo da consci-
ência, a respeito de coisas que não podem ser expressas em me-
ras palavras. Isso requer muita compreensão e muita penetração.
Não há possibilidade de comunhão quando se está obstruindo a
inteira significação das palavras com uma série de “cortinas de
proteção”, objeções, ideais ou preconceitos.
Só há comunhão quando amamos, juntos, ao mesmo
tempo e no mesmo nível; mas esse amor não é; possível se per-
manecemos no nível da expressão verbal ou no nível argumenta-
tivo. Temos de usar de palavras para nos comunicarmos. Acho
que é possível, se temos verdadeiro interesse, se amamos a coisa

187
sobre que falamos, acho que é possível ultrapassarmos a expres-
são verbal e comungarmos a respeito de coisas de vital importân-
cia. Essa comunhão, então, não é nem vossa nem minha; ela é
compreensão ou percebimento daquilo que é real, verdadeiro,
que não é pessoal, coletivo, nacional, Ocidental ou Oriental.
Creio muito importante saber “comungar”, principalmen-
te em questões de tanta monta e significação. Não há comunhão
se não amamos a coisa sobre que falamos, se não dedicamos toda
a nossa mente e coração à coisa que estamos investigando. Esse
amor não exige nenhum esforço de atenção; o que ele requer é
aquele “estado de amor” espontâneo e livre, aquela atenção que
damos a uma coisa em que nos deixamos absorver. Tratamos
neste momento, de um problema que acho de alta significação; a
comunhão, pois, é: essencial. Mas não é possível a comunhão se
cada um de nós está obstruindo a comunicação com uma série de
objeções, aceitações, recusas ou resistências.
[...] PERGUNTA: Sou um homem de negócios. Tenho-vos
ouvido e acho que devo fazer alguma coisa em beneficio dos meus
empregados. Que devo fazer?
KRISHNAMURTI: Senhor, este é o “nosso mundo”, não é
verdade? É a nossa Terra, e não a Terra do homem de negócios ou
a Terra do pobre. É a nossa Terra. Não é um mundo comunista,
nem o mundo capitalista, mas um mundo nosso, para nele viver-
mos, folgarmos e sermos felizes. Esta é a primeira necessidade:
ter esse sentimento — que não é uma atitude mental, mas uma
realidade em que há o amor, o sentimento de “nosso”. Sem esse
sentimento, a mera legislação, ou as Associações de Classe (Sindi-
catos), ou o trabalho para o Estado — que é outra espécie de pa-
trão — tudo isso pouco significa; somos então meros empregados
do Estado ou do negociante. Mas quando existe o sentimento de
que esta é a nossa Terra, não haverá então empregador e empre-
gado, não haverá o sentimento de que um é “o patrão” e outro “o
empregado”. Mas nós não temos esse sentimento de “nosso”;
cada um só cuida de si; cada nação, cada grupo, cada partido,

188
cada religião só cuida de si. Somos entes humanos, a viver sobre
esta Terra; esta é nossa Terra, que devemos amar, criadoramente,
de que devemos cuidar com carinho. Sem termos esse sentimen-
to, queremos criar um mundo novo. E, assim, têm-se feito experi-
ências de toda ordem — participação nos lucros, trabalho com-
pulsório, Associações de Classe, legislação, compulsão, enfim toda
sorte de coerção e de persuasão.
A mim me parece que a coisa primária é que se tenha o
sentimento de que todos somos entes humanos, e não homens de
negócios ou empregados. Eis porque é importante tenhamos uma
revolução religiosa, e não apenas uma revolução econômica. A
revolução deve começar no centro e não na periferia. Direis ser
isso impossível, uma Utopia, que tal coisa nunca pode ser posta
em prática, etc. Mas, senhor, esta é a coisa mais exequível do
mundo. Vós a declarais impraticável, insensata, descabida, porque
a apreciais de um ponto de vista particular, em que não estais
interessado no desenvolvimento total do homem. O homem de
negócios pergunta: “Que posso fazer?” Se ele tiver aquele senti-
mento, poderá fazer centenas de coisas; poderá fazer ricos os
pobres, dando-lhes participação nos ganhos, dando aos emprega-
dos participação no negócio, tornando o seu negócio uma socie-
dade cooperativa. Há tantos meios! Se não temos, porém, aquele
sentimento extraordinário de que somos uma só humanidade, de
que esta Terra é nossa, a mera legislação e compulsão, ou a per-
suasão, só poderá levar à destruição e à miséria em escala maior
ainda.
[...] O PROBLEMA é o problema da luta, do conflito, da lu-
ta incessante entre “o que eu sou” e “o que deveria ser”, e confli-
to entre “o que é” e “o que poderia ser. A mente está sempre e
sempre a forcejar, a lutar, acomodar, ajustar, controlar, em con-
formidade com “o que deveria ser”. Isto é tudo o que sabemos.
“O que deveria ser” é para nós mais importante do que “o que é.”
Temos esses padrões ideológicos a que o espírito se está constan-
temente ajustando. Esse ajustamento é ação da vontade, median-
te compulsão, persuasão. E daí resulta luta, e a luta produz frus-

189
tração. Isto não é simplificação exagerada, é o que de fato aconte-
ce com cada um de nós: “eu sou isto, e no futuro deverei ser aqui-
lo”. Mas o futuro, o que deveria ser, o ideal, é um oposto, uma
contradição do que é. A mente percebe que eu odeio e diz “devo
amar”; a mente, por isso, fica perenemente ocupada em ajustar-
se, forçar-se, disciplinar-se, para alcançar um estado a que ela
chama amor. Eu não conheço o amor, mas a minha mente está
perseguindo o que ela pensa ser o amor, e que é só uma ideia, o
oposto daquilo que eu sou. A projeção de uma ideia do que seja o
amor não é o amor e, sim, uma reação daquilo que eu sou, que é:
“eu odeio”. Na minha luta para apoderar-me daquele amor, eu
sou violento e tenho a ideia da não violência; e, assim, faço exer-
cícios, disciplino, controlo, moldo a minha vida, segundo aquela
ideia, aquele padrão, mas nunca chego a preencher o padrão. Isso
acontece porque, quando o alcanço, logo a minha mente inventa
outro padrão. E assim prossegue, a mudar de padrão continua-
mente. Por essa razão, a minha vida é uma série de frustrações,
sofrimentos e lutas por uma coisa após outra. É, pois, a minha
vida uma sucessão de lutas e desditas, que é só o que eu conheço.
O importante não é “o que deveria ser” mas “o que é”. “O
que é”, o que eu conheço, este é que é o fato. A outra coisa não
existe. Se minha mente puder dar toda a atenção ao que é, sem
criar o oposto, descobrirá então o que é o amor — não o amor
como oposto do ódio. Mas o problema de compreender o que é o
ódio requer percebimento sem condenação. Porque, no momento
em que o condeno, estou odiando, já criei o oposto. Espero esteja
expondo a questão com clareza e simplicidade. Quando se pode
ver essa coisa, isto, com efeito, é uma extraordinária libertação de
todas as frustrações que temos criado.
Somos um povo infeliz; nossa religião é infeliz, sendo pro-
duto da infelicidade, da luta, da frustração; nossos deuses e até a
nossa cultura resultam dessa frustração. Temos, pois, de compre-
ender, não apenas verbalmente, intelectualmente, mas mui pro-
fundamente o fato que diz respeito ao que “eu sou”, “o que é”. O
fato é este: “eu odeio; eu seu violento” — só isso. Mas a mente

190
não quer aceitar esse fato e, por essa razão, cria o oposto; isto é,
condena o fato, criando, assim, o oposto. Essa condenação é jus-
tamente o processo de criação da dualidade. Mas se eu puder
perceber que a minha mente condena e que pela condenação eu
crio o oposto e, portanto, dou origem à luta, essa própria com-
preensão do fato de que a condenação cria o oposto e, conseguin-
temente, o conflito, esse próprio percebimento põe fim ao pro-
cesso da condenação — não pela compulsão, mas simplesmente
pelo percebimento do fato. Tenho, pois, diante dos olhos só o fato
de que odeio, sem nenhuma projeção mental do oposto.
Compreendeis, senhores, que liberdade extraordinária é
esta, quando não temos nenhum oposto? Pode-se então apreciar
o fato. E então a coisa que eu chamava “ódio” — visto que não a
condeno mais — já não é ódio. Mas eu condeno o ódio e desejo
transformá-lo em amor, porque minha mente tem sua raiz crava-
da no passado. Essa avaliação é o julgamento proveniente do pas-
sado; e com esse “fundo” é que eu aprecio o ódio e desejo trans-
formar esse ódio naquilo que chamo amor; isso produz conflito,
luta, com todas as suas disciplinas, controles e supostas medita-
ções.
Ora, pode haver um estado livre do passado? Pode haver
um estado livre do pensamento que se projeta no futuro? Eu
odeio; esse ódio é o resultado do passado, uma reação; e o pen-
samento, então, o condena, e o projeta no futuro, assim formula-
do: “devo amar”. Eis como o pensamento se enraíza no passado e
no futuro, tornando-se contínuo; e nessa continuidade há a luta
para prosseguir, na forma do oposto. O que estou procurando
averiguar é se a mente pode em algum tempo ser totalmente
livre, e não ter raiz alguma. Quando a mente tem raiz, ela tem de
“projetar-se”, estender-se; esse estender-se é o oposto; por isso o
pensamento é contínuo, nunca chega a um fim; ele é a continui-
dade de meu condicionamento, do meu “fundo”, estendida para o
futuro; e por essa razão não há liberdade. Estou procurando ave-
riguar se é possível a mente achar-se num estado em que se não
esteja enraizando mediante as experiências. Sem se achar naquele

191
estado, a mente não é livre, vendo-se sempre em conflito. Por
conseguinte, para a mente que tem raiz, há sempre frustração; e,
não importa qual seja a sua atividade — social, cultural, religiosa
— essa atividade é sempre produto da frustração; não é, por con-
seguinte, a verdadeira transformação religiosa, em que há a ces-
sação de todas as projeções do pensamento que se enraízam na
mente.
Pode a mente existir, sem raiz alguma? O mais que se po-
de fazer é averiguar, ver se a mente pode existir sem raiz — viver,
existir, como o mar, sem raiz alguma, sem estar firmada num de-
terminado lugar, numa determinada experiência, num determina-
do pensamento. Senhor, só a mente que não tem raiz pode co-
nhecer o Real. Porque, no momento em que a mente experimenta
e instala a experiência na memória, esta memória se torna a raiz,
o passado; e esta memória, então, fica a pedir mais e mais experi-
ências; por esta razão, há a constante frustração do presente. A
frustração implica — não é verdade? — a condenação do estado
da mente, tal como ela é. A mente, tal como é, está cheia da tra-
dição, do tempo, de lembranças, ódio, ciúme. Pode-se compreen-
der essa mente, sem condenação — isto é, sem se criar o oposto?
No momento em que condenamos “o que é”, não o compreen-
demos. A compreensão do que é só pode ocorrer quando não há
condenação; só então se pode estar livre do que é.
Para mim, a mente que não tem a luta da dualidade é que
é a mente verdadeiramente religiosa, e não a que está lutando
para vencer a cólera, não a mente que está lutando para se tornar
não violenta; esta só está vivendo na luta do oposto. É só a mente
verdadeiramente religiosa que não tem o conflito do oposto; ela
não conhece a frustração; não luta para se tornar alguma coisa; é
“o que é”. Com a compreensão do que ela realmente é, a mente
já se não está enraizando na memória.
Tende a bondade de escutar o que estou dizendo, não im-
porta se verdadeiro ou falso — procurai descobrir o fato por vós
mesmos. A mente que tem continuidade na memória, estará

192
sempre frustrada, estará sempre a lutar para ser algo. “Vir a ser” é
enraizar-se — numa ideia, numa pessoa, num objeto. Quando a
mente se enraíza, surge o problema: “Como poderá ela libertar-
se?”. A sua libertação assume então a forma do oposto, e daí re-
sulta a luta para achar a maneira como libertá-la. Se se perceber,
porém, se se compreender, se se estiver cônscio de como a mente
está sempre a enraizar-se em cada experiência, em cada reação,
então, nesse percebimento, não há escolha, não há condenação,
por conseguinte não há a criação do oposto, consequentemente
não há luta. Então, a mente não tem nenhuma raiz, mas está viva;
não tem continuidade, mas se acha num “estado de ser” em que
não existe o tempo. Parece-me importante compreender isto, não
apenas verbal ou intelectualmente, mas vendo, de fato, como a
mente está criando a luta e o processo dual.
A ação da mente sem raiz é criadora, porque essa mente
já não se acha num estado de frustração, de onde pinta, escreve,
ou busca a Realidade. Essa mente não busca, o buscar supõe a
dualidade; o buscar é luta, é estender o pensamento do passado
para o futuro e deixá-lo firmar-se na raiz do futuro. Se a mente
puder perceber esse fato, estar cônscia desse fato, dar-se-á uma
extraordinária libertação de tudo quanto é luta; por consequên-
cia, haverá felicidade e bem-aventurança; e essa felicidade e bem-
aventurança não é o oposto do sofrimento, da desgraça ou da
frustração. Isto não são meras palavras; falo de estados diretos de
que a mente se apodera, instalando- se na experiência; estados
que, com efeito, não podem ser conhecidos por uma mente que
luta para se tornar o oposto.
Tudo isso requer — não é verdade? — o percebimento do
processo mental. Refiro-me ao percebimento do processo total da
existência: sofrimento, dor, amor, ódio, sentimento, ilusões —
pois tudo isso constitui a mente. Não e, pois, importante ver como
a vossa mente funciona, ver como opera, como “projeta”, como
se apega ao passado, à tradição, às inumeráveis experiências,
impedindo assim a experiência da Realidade? Estar cônscio disso
tudo não é saber o que dizem os modernos ou antigos instrutores,

193
ou os psicólogos, ou os gurus. Nenhum valor tem estar-se infor-
mado sobre o que outros disseram, porque cada um tem de des-
cobrir por si mesmo o processo de sua própria mente. Esse desco-
brimento não é possível se nos retiramos para uma caverna nas
montanhas, mas sim no viver de dia para dia. É preciso também
perceber que aquilo que descobrimos já se pode ter tornado a raiz
que determina as nossas ações; isto é, temos de descobrir como a
mente pode servir-se dos seus próprios descobrimentos como
uma experiência que determina o que ela pensa, de modo que
essa experiência se torna o nosso obstáculo, levando-nos à frus-
tração. Ver tudo isso é percebimento. Esse percebimento só pode
ocorrer quando não há condenação — o que, com efeito, significa
a quebra completa de todo o condicionamento da mente, para
que a mente possa achar-se num estado em que já não crie raízes,
sendo por conseguinte uma mente sem âncora e havendo, por-
tanto, a experiência real. Só esta mente é capaz de ver e conhecer
aquilo que é eterno.
[...] ORA, O HOMEM QUE DIZ que sabe, está na verdade
se recusando a admitir que se acha confuso. Mas aquele que ad-
mite que está confuso e, por conseguinte, é incapaz de saber al-
guma coisa, é um homem sincero. Quando digo que não sei, no
sentido mais profundo da palavra, estou admitindo que me acho
confuso; por conseguinte, há um estado de humildade. Não me
tornei humilde, mas há um estado de humildade, e esse próprio
estado é ação, e essa ação é ação real. Porque reconheço que
estou confuso, os guias perdem toda a importância; não seguirei
ninguém e minha mente estará tranquila. Minha mente já não
estará certa; achar-se-á num estado de humildade. O ser que é
realmente humilde acha-se num estado de amor. Esse amor não é
uma coisa susceptível de cultivar-se. Sem esse amor, não tem a
vida nenhum significado.
[...] PARECE-ME VERDADEIRAMENTE importante viver
completamente cada dia, com tanta plenitude, tão criadoramen-
te, tão ricamente, que nunca tenhamos um amanhã. Isso, afinal, é
amor, não achais? O amor não conhece amanhã. O amor não é

194
produto da mente. Como só estamos cultivando a mente, não
sabemos amar; e a continuidade que damos à memória impossibi-
lita qualquer forma de amor; e esta é uma das nossas dificulda-
des.
Só conhecemos infelicidade, sofrimento e frustrações; e
daí parte a nossa ação, criando mais infelicidade e mais sofrimen-
to. Portanto, certamente, precisamos estar livres do conhecido,
para que o desconhecido possa ser. “O conhecido” é a mente e
suas ocupações. A mente só é capaz de raciocinar, e a razão é
produto da memória, do conhecido. A razão não pode conduzir ao
desconhecido, por mais ativos que estejamos — praticando o
perdão, sacrifícios, ritos, meditação. Enquanto a mente tiver suas
raízes no “conhecido”, não poderá existir o desconhecido.
[...] SOMOS INFELIZES SERES HUMANOS, que queremos
escapar da nossa infelicidade por meio de atividades de toda or-
dem; somos entidades solitárias, e queremos encher a nossa soli-
dão com conhecimentos, atividades, divertimentos, Escrituras;
mas esse vazio não pode ser preenchido e só será possível acabar
com ele quando a mente compreender que está solitária, e não
tentar disfarçar a sua solidão ou dela fugir. É necessário passar-
mos por essa solidão, para alcançarmos a tranquilidade; então,
por certo, se manifestará a ação criadora da Verdade.
As ilusões da mente

[...] PERGUNTA: Quando observo os meus semelhantes,


seja no ônibus, seja no trem subterrâneo, acho todos eles — in-
clusive minha própria pessoa — medíocres e vulgares. Como tole-
rar essa fealdade da vida de cada dia?
KRISHNAMURTI: Nós mesmos somos medíocres; nós mes-
mos somos feios. Não precisamos olhar para os nossos semelhantes;
não preciso observar a mulher ou o homem que se, senta no banco

195
fronteiro, no trem subterrâneo ou no ônibus. Já perdemos toda a
vitalidade, todo o gosto, toda a capacidade de real apreciação da
vida. Nossa vida é uma rotina, uma maçada, uma coisa que real-
mente não tem muita significação. Nessas condições, reconhecen-
do-nos feios e medíocres, qual é a nossa reação? Quando reco-
nheço que sou feio, medíocre, que minha vida tem muito pouca
significação, sendo meramente uma rotina que tenho de continu-
ar a aguentar; quando reconheço esse fato, qual é a minha reação
imediata? Condeno-o, não é verdade? Condeno a mediocridade;
desejo ser mais belo, desejo adquirir uma qualidade diferente,
desejo uma alegria, um sentimento de liberdade. Por isso, me
apego à beleza, não é verdade? Quero ter a beleza. Assim, cultivo
a beleza e condeno o medíocre, o feio. Esta é a nossa reação nor-
mal, não é exato?
E — depois cie condená-lo — compreendi-o, modifiquei-
me de alguma maneira, ocorreu algo novo? O que me interessa é
só o cultivo ida beleza. Desejo-a; desejo ser sensível à beleza, e
afastar de mim o feio. Mas o repelir o feio e apegar-me ao belo me
torna insensível, não é verdade? Compreendei bem isso, por fa-
vor. Quando rejeito o feio, quando o condeno, quando procuro
afastá-lo de mim, não me estou tornando menos sensível à bele-
za? Esse é um modo de proceder semelhante ao de amputar um
braço porque é feio, e dedicar-me a cultivar a beleza de outras
partes.
Não é importante que sejamos integralmente sensíveis, e
não meramente sensíveis a uma dada coisa? E a sensibilidade é
produzida pela condenação daquilo que acho feio? Se condeno a
inveja, dizendo-a feia, torno-me sensível àquele estado em que
não existe inveja? Não devo ser totalmente sensível — tanto à
inveja, como ao estado "não-invejoso?" O importante, por conse-
guinte, é a sensibilidade, não achais? — e não o ser mais belo ou
mais virtuoso, como evitar o feio, os aspectos repelentes da vida
de cada dia; devemos ser sensíveis a uma e outra coisa. Não posso
ser sensível se condeno uma coisa e me apego a um determinado
pensamento, ideia, ou imagem que me parece bela. Se percebo

196
isso, então já não condeno, já não digo "Isto é feio, medíocre".
Reconheço, então, que a própria palavra tem força sugestiva, neu-
rológica: ela atua em mim, tal como o faz a palavra "beleza".
Importa, pois, sejamos sensíveis tanto ao feio como ao be-
lo. Há então possibilidade de observação, podemos dar atenção
ao feio, sem condená-lo. E dessa sensibilidade pode nascer algo
novo, uma qualidade emanada do amor. Mas o amor não é coisa
cultivável; manifesta-se apenas quando somos capazes de com-
preender todo aquele nosso acervo mental (background) que nos
impele à condenação. Toda sociedade, toda religião, toda civiliza-
ção condena; somos educados para condenar, julgar, pesar, dizer:
"Isto está certo, isto está errado" — (não quero dizer com isso,
que não exista "certo" e "errado"). Nossa reação instintiva é con-
denar e isso é uma forma de resistência; e na resistência não pode
haver sensibilidade nem para o belo nem para o feio.
Mas se não condenamos, talvez nos venha um novo alen-
to, uma nova vitalidade, um sentimento de amor, capaz de trans-
formar, de dar uma perspectiva diferente à nossa feia existência
de cada dia.
PERGUNTA: Como pode o nosso precário atuar humano
tornar-se incorruptível?
KRISHNAMURTI: Pode uma coisa que é corruptível tornar-
se não corruptível? Pode o feio tornar- se belo? Pode o estúpido
tornar-se inteligentíssimo? Posso eu, reconhecendo que sou estú-
pido, lutar para tornar-me inteligente? A própria luta, com o fim
de nos tornarmos inteligentes, não é uma coisa estúpida? Porque,
fundamentalmente, eu sou estúpido; embora possa aprender
toda a sorte de artifícios, continuo, em essência, estúpido. De
modo idêntico, se meu amor ó corruptível, desejo torná-lo puro,
incorruptível. Acho que isso não é possível. O próprio "tornar-se
"vir a ser", é uma forma de corrupção. O mais que posso fazer é
estar cônscio de tudo o que esse amor implica: seus despeitos,
ciúmes, ânsias, temores, sua escravidão, sua dependência. Sabe-
mos o que é isso; sabemos o que se entende quando dizemos que

197
amamos, conhecemos o enorme "pano de fundo" sobre o qual
esta palavra se destaca. E desejamos todo esse fundo se torne
incorruptível — o que mais uma vez significa que a mente quer
dar uma certa feição ao amor, emprestar ao atemporal uma qua-
lidade temporal. E isso é possível?
Vede bem isso, por favor. Conhecendo os tormentos do
amor — ânsias, incertezas, separação, temor, morte — a mente
supõe que deve modificá-lo, transformá-lo em algo que se não
possa corromper.
O próprio desejo de modificar o amor não o converte nu-
ma coisa de natureza mental, de natureza sensível? A mente não
pode transformar uma coisa que já está corrompida, numa coisa
nobre; e isso é o que estamos sempre tentando fazer, não é ver-
dade? Sou invejoso e desejo ser não-invejoso; e, assim, entro em
luta, porque a mente, sentindo o tormento da inveja, deseja
transformá-la. Sou violento, e isso é doloroso; por conseguinte, a
mente deseja transformar a violência em não-violência, transfor-
mação essa que está compreendida, ainda, na esfera do tempo. E
por essa razão nunca me vejo livre da violência, da inveja, da cor-
rupção do amor. Enquanto a mente estiver fazendo do amor algo
de natureza temporal, há de haver sempre corrupção.
Não é possível, então, o amor humano? Isso pode desco-
brir-se se compreendermos deveras que a mente corrompe o
amor. É a, mente, que destrói. O amor não é corrupto. Mas a
mente que sente não estar sendo amada, que se sente isolada,
que está condicionada, essa mente é que destrói o amor. Amamos
com nossas mentes e não com nossos corações. Temos de desco-
brir o que isso significa. Temos de investigá-lo, examiná-lo, e não
apenas repetir palavras.
Mas não compreenderemos essa coisa enquanto não
compreendermos integralmente o significado da função da men-
te. Temos de alcançar a compreensão da consciência do "eu", na
sua totalidade, esse "eu" que tanto teme não ser amado ou que,
se ama, procura conservar, ansiosamente, esse amor que depen-

198
de de outro para sustentar-se. Tudo isso faz parte da mente. O
"eu" que diz "preciso amar a Deus, à Verdade", e cria, dêsse mo-
do, o símbolo, e começa a ir à igreja todos os dias, ou uma vez por
semana, ou sei lá, quantas vezes — êsse "eu" faz parte também
da mente. Tudo o que a mente toca, com sua memória mecânica,
seu saber mecânico, tudo o que a mente toca, corrompe.
Nessas condições, é importantíssimo, quando nos vemos
em presença de um problema desta natureza, descobrir como
devemos aplicar-nos a ele. Só podemos resolver este problema e
fazer nascer aquela qualidade que é incorruptível, quando a men-
te, conhecendo a sua função, deixa de existir. Só então, por certo,
o amor é incorruptível.
[...] PERGUNTA: Sou dependente, sobretudo psicolo-
gicamente, de outras pessoas. Desejo libertar-me dessa depen-
dência. Tende a bondade de indicar-me a maneira de ser livre.
KRISHNAMURTI: Psicologicamente, interiormente, somos
dependentes, não é verdade? Dependemos de ritos, de ideias, de
pessoas, de coisas, de propriedades. Somos dependentes; e dese-
jamos livrar-nos dessa dependência, porque ela nos causa dor.
Enquanto essa dependência é satisfatória, enquanto encontro fe-
licidade nela, não desejo ser livre. Logo, porém, que ela começa a
fazer-me sofrer, quando o ente de quem dependo me foge, ou
morre, ou perde o seu frescor, então quero tornar-me livre.
Mas quero ser livre totalmente, livre de toda e qualquer
dependência psicológica, ou apenas desejo livrar-me da depen-
dência que, me causa dor? Evidentemente, só desejo libertar-me
das dependências e lembranças que me fazem sofrer. Não desejo,
tornar-me inteiramente livre de todas as dependências; quero
livrar-me só de uma determinada dependência. Busco, assim, mei-
os e modos de me libertar. E peço a outros que me ajudem a li-
bertar-me de uma determinada dependência que me causa dor.
Não quero libertar-me do "processo total" da dependência.

199
Todavia pode outra pessoa ajudar-me a ficar livre da de-
pendência, parcial ou total? Posso eu indicar-vos a maneira de vos
libertardes? — sendo a "maneira" a explicação, a palavra, a técni-
ca. Se vos indico a "maneira", a técnica, se vos dou uma explica-
ção, vos tornarei livre? Continuais com o problema, não é verda-
de? — continuais a sofrer por causa dele. Por mais que eu vos
mostre a maneira de proceder, por mais que converseis comigo
sobre o problema, não vos libertareis da vossa dependência. Que
se deve então fazer?
Notai bem a importância que isso tem. Estais pedindo um
método que vos liberte de uma determinada dependência ou da
dependência total. O método representa uma explicação, não é
verdade? — uma explicação, de acordo com a qual vos ides exer-
citar e viver, a fim de vos libertardes. O método transforma-se,
desse modo, numa outra forma de dependência.
Mas se estais interessado na libertação total, na libertação
de todas as dependências psicológicas; se isso vos interessa real-
mente, não pedireis então nenhum método, nenhuma "maneira".
Fazeis, nesse caso, uma pergunta muito diferente, não é verdade?
Perguntais então se podeis ter a capacidade de vos libertardes
daquela dependência, se há possibilidade de vos libertardes dela,
A questão, pois, não é de como libertar-me da dependência, mas,
sim, se posso ter a capacidade de libertar-me de todo o problema.
Se tenho a capacidade, nesse caso não dependo de ninguém mais.
É só quando afirmo não ter a capacidade, que peço: "Tende a
bondade de indicar-me uma maneira". Mas se tenho a capacidade
de libertar-me de um problema de dependência, então não peço a
ninguém que me ajude a resolvê-lo.
Espero esteja-me fazendo claro. Porque considero muito
importante que se não pergunte "como?" mas sim: "posso ter a
capacidade de libertar-me do problema?" Pois se sei atender ao
problema, fico então livre dele. Por conseguinte, não perguntarei
mais por um método ou uma "maneira", mas, sim; "posso ter a
capacidade de resolver o problema da dependência?"

200
Agora, psicologicamente, quando fazeis a vós mesmo a
pergunta, que acontece? Quando fazeis conscientemente a per-
gunta: "Posso ter a capacidade de libertar-me dessa dependência?
— que aconteceu, psicologicamente? Já não estais livre da depen-
dência? Psicologicamente estáveis dependente; e agora dizeis:
"tenho a capacidade de libertar-me?" É óbvio que, no momento
em que fazeis seriamente essa pergunta a vós mesmo, já vos
achais libertado daquela dependência.
Espero estejais não apenas acompanhando verbalmente,
mas também experimentando realmente a questão que estamos
examinando. Porque esta é a arte de escutar: não apenas escutar
as minhas palavras, mas também "escutar" o que realmente se
está passando na vossa mente.
Quando sei que posso ter aquela capacidade, então o
problema deixa de existir. Entretanto, porque não tenho a capaci-
dade, quero ser ensinado. E crio, assim, o Mestre, o guru, o Salvador,
uma pessoa que irá libertar-me, salvar-me. E dessa pessoa fico de-
pendente. Mas se, ao contrário, eu tiver a capacidade de resolver, de
compreender a questão, então a coisa é muito simples: já não sou
dependente.
Isso não significa esteja eu cheio de presunção. A confian-
ça que procede do "eu" não conduz a parte alguma. Mas a própria
pergunta: "posso ter a capacidade de descobrir a Realidade?" —
dá-nos um extraordinário discernimento e uma força extraordiná-
ria. Essa pergunta não significa que tenha eu a capacidade — por-
que não a tenho — pois o que pergunto é: "posso ter a capacida-
de?" Então, eu saberei abrir a porta que a mente está fechando
constantemente, com suas dúvidas, ansiedades, temores, suas
experiências e seu saber.
Dessa forma, percebido o processo na sua inteireza, a ca-
pacidade existe. Mas essa capacidade não pode ser achada por
intermédio de um determinado padrão de ação. Não posso com-
preender o todo por meio da parte. Pela análise particular de um
problema especial, não compreenderei o todo. Posso pois ter a

201
capacidade de perceber o todo, compreender não apenas um
determinado incidente, uma determinada ocorrência, mas, sim, o
"processo" total da minha vida, com seus pesares, suas dores e
alegrias, e a perene busca de conforto? Se posso fazer essa per-
gunta, muito seriamente então a capacidade se torna existente.
E, com a capacidade, posso tratar de todos os problemas
que surgem. Haverá sempre problemas, sempre incidentes e rea-
ções; tal é a vida. Como não sei atender a esses problemas, recor-
ro a outros, a fim de esclarecer-me, a fim de perguntar-lhes a ma-
neira de atendê-los. Quando, porém, faço a pergunta "posso ter a
capacidade?" — isso já é o começo daquela confiança que não é a
confiança procedente do "eu", do "ego", que não é a confiança
nascida da acumulação, mas, sim, a confiança que se renova cons-
tantemente; a confiança que não resulta, de determinada experi-
ência ou incidente, mas da compreensão, da liberdade, de modo
que a mente está apta a encontrar o Real.
Poder e Realizaçã o

[...] INTERPELANTE: O amor, a afeição espontânea depen-


de do “fundo”?
KRISHNAMURTI: Senhor, sabemos o que é o amor espon-
tâneo? Conhecemos, vós e eu, o amor que não é produto de con-
dicionamento, de um dado “motivo”, de uma certa moral social,
de um sentimento de dever ou responsabilidade? Conhecemos
amor isento de apego? Ou será que temos lido a respeito de tal
estado e desejamos entrar nesse estado?
Voltando ao ponto principal: Estamos cônscios, vós e eu,
de que a nossa mente é tão complexa, tão condicionada, que não
há em nós nada original, se posso empregar esta palavra sem ser
mal compreendido? Somos capazes de uma compreensão original,
de experimentar alguma coisa não contaminada, virgem, pura, ou
202
não passamos de meros discos de gramofone, repetindo o que
temos lido ou aquilo que o nosso fundo mental nos insufla? O
medo e o desejo não nos estarão ditando alguma fantasia, alguma
imaginação ou esperança? E pode um indivíduo ficar livre de tudo
isso? Pode, indubitavelmente, mas só quando está cônscio de que
as suas visões, suas esperanças e crenças são produtos de seu
próprio desejo e se baseiam no seu próprio condicionamento.
[...] INTERPELANTE: Por que é que o amor nos parece uma
carga?
KRISHNAMURTI: É sobre isto que estamos discutindo? Por
favor, senhores, se pudermos compreender pelo menos este as-
sunto que estamos considerando, então estas nossas palestras
terão sido úteis e não tereis perdido tempo vindo aqui, apesar da
chuva. Podemos perceber claramente que não há instrutor, nem
guru, nem disciplina; que o guru, o método, a disciplina, só exis-
tem por causa da divisão entre o que é e o que deveria ser? Se a
mente puder perceber a ilusão de todo este processo, então ha-
verá liberdade; não liberdade para se ser alguma coisa, mas liber-
dade, pura e simples.
INTERPELANTE: Nós não somos entes ideais. Temos de
aprender a amar.
KRISHNAMURTI: Senhor, o amor, a bondade, ou a beleza,
é uma coisa que tem de ser alcançada por meio de esforço? Pen-
semos com simplicidade a este respeito. Se sou violento, se odeio,
como posso ter amor no meu coração? Ter-se-á amor, mercê de
esforço, do tempo, pelo dizermos: “Tenho de praticar o amor,
tenho de ser bondoso para com os outros”? Se não tendes amor
hoje, podeis alcançá-lo, pela prática, daqui a uma semana ou um
ano? Isto fará nascer o amor? Ou o amor só nasce quando “aquele
que faz esforço” deixa de existir, isto é, quando já não existe a
entidade que diz: “Sou mau e preciso tornar-me bom”? A própria
noção de que “sou mau” e o desejo de ser bom são idênticos, uma
vez que emanam da mesma fonte — o “eu”. E pode esse “eu”,
que diz “Eu sou mau e preciso ser bom”, chegar a seu fim, imedia-

203
tamente, e não através do tempo? Isto significa: não ser “alguma
coisa”, não tentar “ser alguma coisa” ou “coisa nenhuma”. Se se
pode reconhecer claramente esta coisa, este fato simples, ter uma
percepção direta dele, então tudo o mais é falácia. Poder-se-á ver,
então, que o desejo de tornar permanente este estado é também
ilusão, porque esse desejo implica também esforço. Se se com-
preende profundamente o desejo de permanência, a ânsia de
continuidade, se se percebe o seu caráter ilusório, ocorre então
um estado completamente novo, que não é “o oposto”.
Assim, pode-se ter a percepção direta, sem interferência
do tempo? Não há dúvida de que esta é a única revolução. Não
pode haver revolução pela via do tempo, desse martírio de dese-
jar perpetuamente ser “alguma coisa”. É isso o que está fazendo
todo aquele que anda a buscar. Está encerrado na prisão do so-
frimento, a empurrar perseverantemente as paredes, a dilatar e
decorar a prisão; mas, apesar de tudo, continua encarcerado,
porque, psicologicamente, está obedecendo ao desejo de ser, de
“vir a ser alguma coisa”. E não é possível perceber-se a verdade a
este respeito e, consequentemente, “ser nada”? Não é questão de
se dizer: “Tenho de ser nada” e em seguida perguntar como se
pode ser nada, o que é uma ideia muito grotesca, infantil, imatu-
ra; trata-se isso sim de perceber o fato diretamente e não através
do tempo.
[...] Pergunta: Sempre vivi, para minha felicidade, na de-
pendência de outras pessoas. Como posso desenvolver a capaci-
dade de só depender de mim mesmo?
KRISHNAMURTI: Porque dependemos de outro para nos-
sa felicidade? Será porque estamos interiormente vazios que re-
corremos a outro para preencher esse vazio? E esse vazio, essa
solidão, esse sentimento opressivo de limitação, pode ser supera-
do pelo exercício de alguma capacidade? Se esse vazio tem de ser
superado por qualquer sistema ou capacidade ou ideia, nesse caso
ficareis na dependência dessa ideia ou desse sistema. Agora, por-
ventura, estou dependendo de uma pessoa. Sinto-me vazio, só,

204
num isolamento completo, dependo de alguém. E, se crio ou te-
nho um método que me ajudará a superar essa dependência,
ficarei então dependendo de tal método. Apenas terei substituído
a pessoa por um método. O que é importante, pois, neste caso, é
descobrirmos o que significa “estar vazio”. Em última análise, de-
pendemos de alguém, para nossa felicidade, porque em nós
mesmos não somos felizes. Não sei o que é amar, e por isso de-
pendo de outra pessoa, de seu amor. Ora, posso sondar esse vazio
em mim existente, esse sentimento de completo isolamento,
completa solidão? Já nos pusemos alguma vez frente a frente com
ele? Ou ele nos infunde terror e faz-nos fugir? Mas esse “proces-
so” de fuga ao vazio, é precisamente, o fator da dependência.
Assim sendo, pode a minha mente perceber a verdade de que
qualquer espécie de fuga ao que é cria dependência, da qual re-
sultam desventuras e aflições? Posso compreender, exatamente,
isto: que dependo de outrem para minha felicidade, porque em
mim mesmo estou vazio? Este é que é o fato: estou vazio, e por
isso dependo. Esta dependência causa-me sofrimento. A fuga, sob
qualquer forma, ao vazio, não é solução — não importa se como
meio de fuga nos servimos de uma pessoa, de uma ideia, de uma
crença, de Deus, da meditação, etc. Nada adianta fugirmos ao fato
de o que é. Em nós mesmos há insuficiência, pobreza do ser. No
perceber, simplesmente, este fato e no “permanecer com ele” —
sabendo- se que todo movimento da mente para alterar o fato é
outra forma de dependência — nesse percebimento há liberdade.
Afinal de contas, por mais experiência que tenhamos, por
mais conhecimentos, crenças, ideias, se observamos bem, vemos
que a mente, em si, é vazia. Podemos manter-nos numa atividade
incessante, encher-nos de ideias, de distrações, de hábitos; mas
no momento em que cessa tal atividade, tornamo-nos cônscios de
que nossa mente está totalmente vazia. Ora, podemos permane-
cer “em companhia desse vazio?” Pode a mente encarar de frente
esse fato e “permanecer com ele”? Isto é muito difícil, porquanto
a mente está muito habituada à distração, foi muito bem treinada
para fugir ao que é — ligar o rádio, abrir um livro, conversar, ir à

205
igreja, comparecer a uma reunião, enfim qualquer coisa que a
habilite a fugir do fato central: a mente, em si, está vazia. Por mais
que lute para dissimular esse fato, a mente, em si, continua vazia.
Uma vez perceba esse fato, esse estado, pode a mente permane-
cer nele, sem fazer movimento algum?
Creio que a maioria de nós está cônscia — talvez raramen-
te, apenas, visto que quase todos andamos terrivelmente ocupa-
dos e ativos — creio que a maioria de nós está cônscia, às vezes,
de que a mente está vazia. E quando estamos cônscios, tememos
o vazio. Nunca investigamos esse estado de vazio, nunca o exami-
namos a fundo; temos-lhe medo e fugimos dele. Damos um nome
a esse estado, dizemos que é “vazio”, que é “terrível”, que é “do-
loroso”; e esse próprio fato de lhe dar nome já criou uma reação
na mente, um temor, um impulso para evitar, fugir. Pode a mente
desistir de fugir desse estado e não lhe dar nome, não lhe atribuir
a significação de uma palavra, tal como “vazio”, que nos desperta
lembranças de prazer e de dor? Podemos encarar o vazio, pode a
mente estar cônscia dele, sem lhe dar nome, sem fugi-lo, sem
julgá-lo, e “ficar com ele”? Porque, então, o vazio é a mente. Não
há então um observador a observá-lo; não há censor a condená-
lo; há só o estado de vazio, com que todos estamos muito bem
familiarizados, mas que todos evitamos, tentando preencher com
atividades, devoções e rezas, com o saber e toda espécie de ilusão
e excitamento. Mas, ao cessar a ilusão, a excitação, o medo, a
fuga, e quando não mais estamos dando nome à coisa (e portanto
condenando-a) é o observador então diferente da coisa observa-
da? Sem dúvida, pelo dar nome, pelo condenar, a mente cria um
censor, um observador, fora dela própria. Mas quando a mente
não dá nome, não condena, não julga, então não há mais obser-
vador e, sim, só um estado a que chamamos “vazio”.
Isso talvez pareça abstrato. Mas, se penetrardes o que
acabo de dizer, estou bem certo de que encontrareis um estado
que se pode chamar “vazio”, mas que não provoca temores, fugas
ou a tentativa de encobri-lo. Tudo isso cessa, se nos dispomos
verdadeiramente a investigar. Então, se a mente já não lhe dá

206
nome, já não o condena, existe “vazio”? Tornamos-nos então
cônscios de que somos pobres e portanto dependentes, de que
somos infelizes e por isso estamos exigindo alguma coisa ou ape-
gados a alguém? Se já não estamos pondo um rótulo, um nome, e
portanto condenando o estado percebido, é ele então, ainda,
“vazio”, ou coisa totalmente diferente?
Se vos aprofundardes nisso muito seriamente, encontra-
reis um estado em que não há mais dependência — nem de pes-
soa, nem de crença, nem de experiência, ou tradição. E então o
que se encontra além do vazio é a ação criadora da Realidade; não
atividade criadora de um talento ou capacidade, mas a ação cria-
dora daquilo que está além de todos os temores, todas as exigên-
cias, todos os artifícios da mente.
Austrália e Holanda, 1955

[...] PERGUNTA: Sou muito "apegado", e sinto ser muito


importante cultivar o desapego. Como alcançarei esse sentimento
de liberdade do apego?
Krishnamurti: Nosso problema é o desapego? Ou será o
apego? Ser "apegado" causa sofrimentos, e, por conseguinte,
desejamos tornar-nos desapegados. Se pudermos considerar o
inteiro processo do apego, não superficialmente apenas, mas
compreendendo o seu verdadeiro significado, penetrando-o até o
fundo, então é bem possível que se apresente algo muito diferen-
te daquilo que chamamos “desapego". Porque somos tão apega-
dos a alguma coisa: nossos haveres, pessoas, ideias, crenças? Bem
sabeis quantas formas de apego existem e a quantas coisas vive-
mos apegados. Porque somos tão apegados? Não há um senti-
mento de temor se não estamos apegados a alguma coisa, se não
estou apegado a meu amigo, a uma ideia, uma experiência já aca-
bada, um filho, irmão, mãe, uma esposa morta? Não nos conside-

207
ramos desleais, desamorosos, se não somos apegados? E não há
também, em nosso apego, um medo estranho de não sermos
alguma coisa? O problema é este, e não como cultivar o desape-
go. Se cultivo o desapego, este próprio cultivo se torna um pro-
blema.
Vede, por favor: eu sou apegado; meu apego resulta de
temor, de variadas formas de solidão, de vazio etc. Estou cônscio
disso e conheço as penas que o apego me impõe; consequente-
mente procuro cultivar o desapego. E assim a minha mente se
mantém ocupada com o desapego e sobre como alcançar tal es-
tado; e esse processo mesmo se torna um problema, não é verda-
de? Desejo conquistar o desapego e, assim, a mente, ocupando-se
com o resultado, com uma ideia chamada "desapego", cria o pro-
blema da consecução do "desapego"; nasce então o conflito - sou
apegado e devo ser desapegado -, e esse conflito gera sofrimento.
E vem daí uma luta constante para se alcançar certo estado isento
de sofrimento e de temores. Mas, se sou capaz de encarar o ape-
go, estar cônscio dele, sem perguntar como libertar-me da penosa
luta para compreender tudo o que o apego implica, se sou capaz
de estar simplesmente cônscio dele, como se está cônscio do céu -
vendo-o nublado ou escuro, carregado de chuva ou todo azul -,
não há então problema algum e a mente não está mais ocupada
com a questão do apego ou com seu oposto, o desapego.
Quando a mente está assim vigilante, cônscia, pode então
perceber o inteiro significado do apego. Mas não se pode discernir
todo o significado interior do apego se há qualquer forma de con-
denação, comparação, julgamento, avaliação. Se "experimentar-
des" o que estou dizendo, vereis claramente a sua significação. O
mero cultivar do desapego torna-se uma coisa por demais superfi-
cial. Suponhamos que fiqueis desapegados - e daí? Mas, quando
há percebimento, pode-se ver que onde há apego não há amor;
onde há apego, há desejo de permanência, de segurança, de con-
tinuidade pessoal - o que não significa que devamos aspirar à au-
todestruição. E, percebendo-se isso, o problema do apego se tor-
na extraordinariamente significativo e amplo. Se nos limitamos a

208
fugir do apego, por causar-nos tanto sofrimento, essa fuga só
pode levar-nos a um amor superficial, um pensar superficial. E a
maioria dos que estamos praticando a virtude - a virtude do desa-
pego, da não avidez, da não violência - levamos na realidade uma
vida superficial, vida de ideias, de palavras. Se estamos bem côns-
cios do problema do apego, em todos os seus aspectos, começa-
remos a descobrir as suas extraordinárias profundezas, o quanto a
mente está apegada à experiência de ontem, com a dor ou o pra-
zer que a acompanharam, o quanto está presa a essa experiência.
Não será possível ficarmos livres da experiência, tanto de prazer
como de dor, enquanto não estivermos verdadeiramente vigilan-
tes. Nessa vigilância ou percebimento, em que não há escolha
nem reação alguma, a mente pode descer a grandes profundida-
des. A mera prática de qualquer virtude só pode conduzir à res-
peitabilidade, que é o que a maioria das pessoas deseja, pois a
respeitabilidade identifica-nos com a sociedade. Todos desejamos
ser reconhecidos como "algo", grande ou pequeno, isto ou aquilo;
e a esta ideia temos apego. Podemos desejar desapegar-nos de
pessoas, porque tal apego nos causa dor, ao passo que a ideia a
que estamos apegados não nos é dolorosa. Mas, para compreen-
dermos verdadeiramente o problema do apego - apego à tradição,
à nacionalidade, aos costumes, ao hábito, ao conhecimento, à
opinião, a um Salvador, a toda sorte de crenças e não crenças-,
não devemos contentar-nos com arranhar a superfície, nem pen-
sar termos compreendido o problema do apego pelo fato de es-
tarmos cultivando o desapego. Mas se, ao contrário, não procu-
rarmos cultivar o desapego - cultivo que apenas se torna mais um
problema -, se pudermos simplesmente observar, com toda a
clareza, o apego, seremos então, talvez, capazes de descer a uma
grande profundidade e descobrir algo completamente diferente,
algo que não é apego nem desapego.
[...] PERGUNTA: Sou artista, e preocupa-me sumamente a
técnica de pintar. É possível que esta própria preocupação consti-
tua um obstáculo à genuína expressão criadora?

209
Krishnamurti: Eu quisera saber por que é que a maioria de
nós, inclusive os artistas, tanto se preocupa a respeito de técnica.
Todos perguntamos "como?" - como poderei ser mais feliz, como
poderei achar Deus, como poderei ser um artista melhor, como
poderei fazer isto ou aquilo? Todos andamos cheios de cuidados a
respeito do "como". Se sou violento, desejo saber como ser não
violento. Por termos tanto interesse na técnica e como o mundo
não nos oferece outra coisa, estamos presos nessa rede. Cultiva-
mos a técnica, porque desejamos resultados. Quero ser um gran-
de artista, grande engenheiro, grande músico, alcançar fama, no-
toriedade. Minha ambição me impele à busca do método. Pode
um artista, ou qualquer ente humano, cultivando uma técnica,
tornar-se um verdadeiro artista? Mas, se amamos a coisa que
estamos fazendo, não somos então artistas? Entretanto, não
compreendemos a significação desta palavra - amor. Posso amar
uma coisa por ela própria, se sou ambicioso, se desejo tornar-me
conhecido? Se desejo ser o melhor pintor, o melhor poeta, o mai-
or dos santos, se estou em busca de um resultado, posso amar
realmente uma coisa, por ela própria? Se sou invejoso, imitativo,
se há medo, se há competição, posso amar aquilo que estou fa-
zendo? Se amo uma coisa, posso então aprender a técnica - como
misturar as tintas, etc. Mas, atualmente, não possuímos esse sen-
timento de verdadeiro amor por uma coisa. Estamos cheios de
ambição, de inveja; desejamos ser "um sucesso". E, assim, esta-
mos aprendendo técnicas e perdendo a coisa real - "perdendo",
não, pois nunca a tivemos. Por ora, a nossa mente só está aplicada
em adquirir uma técnica que nos leve a alguma parte. Se amo o
que estou fazendo, então, por certo, não há problema, não existe
competição, não é exato? Estou fazendo o que gosto de fazer, e
não porque isso me dará popularidade, pois tal coisa não é impor-
tante para mim. O importante é amarmos totalmente o que es-
tamos fazendo, e esse próprio amor será o nosso guia. Se o pai
deseja que o filho siga nas suas pegadas, que se torne "alguma
coisa", se os pais procuram preencher-se nos filhos, não há então
amor, e, sim, mera autoprojeção. O próprio amor ao filho trará
sua cultura própria, não achais? Mas, infelizmente, nós não pen-
210
samos em tal direção. E por isso temos este enorme problema e
este espantoso desenvolvimento técnico.
[...] NÓS SABEMOS - não é verdade? - que estamos ape-
gados. Dependemos de pessoas, de ideias. Faz parte da natureza
do nosso ser o depender de alguém. E a essa dependência cha-
mamos amor. Agora, pergunto a mim próprio, e talvez pergunteis
também a vós mesmos, se é possível libertar a mente, psicologi-
camente, interiormente, de toda dependência, pois percebo que,
por causa da dependência, surgem problemas e mais problemas,
um nunca acabar de problemas. Por essa razão, pergunto a mim
mesmo se é possível ficarmos num estado de percebimento tal
que esse próprio percebimento faça consumir-se o sentimento de
dependência, de outrem ou de uma ideia, de modo que a mente,
com o total desaparecimento da dependência, não mais se veja
isolada.
[...] PORQUE, SE MEU AMOR depende de outra pessoa,
não tenho amor. E desejo descobrir que estado é esse a que cha-
mamos "amor". Ao tentar descobri-lo, é possível que desapareça
completamente a disposição para a dependência, para a seguran-
ça, nas relações, que desapareça toda exigência, todo desejo de
permanência; e posso então ver-me em presença de um fato
completamente diferente. E, assim, pelo investigar, pelo examinar
a mim mesmo, posso chegar àquela coisa a que chamo "solidão".
Agora, posso "ficar" com ela? Com "ficar", quero dizer: não inter-
pretá-la, não avaliá-la, não condená-la, mas só observar o estado
de solidão, sem nenhum movimento de recuo. E se minha mente
é capaz de "ficar" com esse estado, esse estado é então diferente
da minha mente? É possível que a minha mente esteja, ela pró-
pria, solitária, vazia, e que não haja um estado de vazio, que a
mente observa. Minha mente observa a solidão, e a evita, foge
dela. Mas, se não fujo à solidão, há então divisão, há separação,
há um observador que observa a solidão? Ou só há um estado de
solidão - a minha mente vazia, solitária, e não um observador que
sabe que há solidão?

211
[...] PORQUE DEPENDEMOS de nossos filhos? E, além dis-
so, amamos os nossos filhos? Se há amor, como pode haver de-
pendência, como pode haver sofrimento? Nossa ideia de amor é
que devemos sofrer por outros. É amor, sofrer? Ou o fato é que
eu dependo de meus filhos, que busco através deles a imortalida-
de, o preenchimento, etc.? Por isso, desejo que meus filhos sejam
algo; e, se não o são, sofro. Bem pode ser que o problema não
sejam os filhos, absolutamente, mas eu próprio. E repetimos: tal-
vez não saibamos o que é amar. Se amássemos os nossos filhos
impediríamos todas as guerras futuras, é claro. Não condicionarí-
amos os nossos filhos. Eles não seriam nem ingleses, nem hindus,
nem brâmanes, nem não brâmanes; seriam crianças. Mas, como
não amamos, dependemos dos nossos filhos; através deles espe-
ramos preencher a nós mesmos. E, assim, quando nosso filho, por
meio de quem queremos preencher-nos, faz algo que não é aquilo
que queremos, sentimos pesar, e há conflito. Fazer simplesmente
uma pergunta e esperar a resposta tem pouca significação. Mas se
pudermos observar por nós mesmos o "processo" desse apego, o
"processo" dessa busca de preenchimento por meio de outro, o
que é dependência e deve, inevitavelmente, criar sofrimentos, se
pudermos percebê-lo por nós mesmos, como um fato, poderá
surgir uma coisa diferente, quiçá amor. E tal relação produzirá
então uma sociedade diferente, um mundo muito diferente.
Transformaçã o fundamental

[...] KRISHNAMURTI: É possível a mente transformar-se


imediatamente e ficar num "estado de amor"?
[...] Não estou nada certo disso. O problema é este: per-
cebo que sou ambicioso e, se estou suficientemente alertado, se
sou inteligente e me conservo vigilante, percebo também quanto
é absurdo e destrutivo esse estado. A ambição, inclusive a ambi-
ção espiritual, implica um estado em que não existe amor. O dese-
212
jo de ser alguém, espiritualmente, o desejo de ser não-violento, é
sempre ambição. Percebendo-se bem isso, é possível apagar ins-
tantaneamente a ambição, abandonando essa luta perene, de
inquirição, análise, disciplina, "idealização", e tudo o mais? Pode a
mente apagar de pronto a ambição e ver-se no "outro estado"? É
possível isso? Não concordeis, senhores, pois isso não é questão
de concordar ou discordar. Já pensastes nisso?
INTERPELANTE: Nossa mente está sempre tentando modi-
ficar o nosso condicionamento.
KRISHNAMURTI: Atende-vos ao ponto de que estamos
tratando, se ele representa um problema para vós. Ou sou eu que
estou fazendo dele um problema e portanto não se trata de pro-
blema vosso? Qual é a vossa reação?
INTERPELANTE: Gostaríamos de saber como se pode fazer
isso.
KRISHNAMURTI: Este cavalheiro pergunta como se pode
fazer isso; é justamente nisso que consiste a questão. Considerai
primeiramente a própria questão: o como. Sou ambicioso e desejo
ver-me num estado de amor; cumpre-me, por conseguinte, afas-
tar a ambição, e como fazer isso? Acompanhai o que estou dizen-
do. A questão, em si mesma, envolve tempo, não? No momento
em que perguntais "como?", está criado o problema do tempo -
tempo para lançar uma ponte sobre o intervalo, tempo para atin-
gir o estado chamado "amor"; por essa razão, nunca podeis atingi-
lo. Compreendeis, senhores?
[...] Estou cônscio de ser ambicioso, cruel, estúpido, ou o
que seja, e em geral se admite, com apoio nos livros sagrados, nos
rituais, na crença nos Mestres, na evolução e outras coisas que
tais, que mediante um lento e gradual processo de esforço, pode-
rei transcender o que sou e alcançar algo transcendental. Percebo
o que isso implica: o sujeito que faz esforço, o esforço, e o objeto
para o qual está fazendo esforço - sendo tudo isso um processo
mental. Percebendo-o, digo de mim para mim: "É-me possível

213
abandonar completamente a ambição e achar-me naquele estado
que se pode chamar "amor"? Não vou descrever o que é aquele
estado. O problema é que sou violento; e, tenho alguma possibili-
dade de abandonar completamente, imediatamente, a violência?
INTERPELANTE: A possibilidade é uma questão de acaso
ou de esforço?
KRISHNAMURTI: Considerai bem isso, senhor. Se há es-
forço, estais de novo no velho terreno da "gradualidade". Se se
trata de mero acaso, questão de "boa sorte" - isso não tem senti-
do algum. Se me permitis dizê-lo, não estais realmente fazendo
esta pergunta a vós mesmo.
Eu sou agressivo, ambicioso, e vejo que toda a sociedade
corrupta que me circunda é também ambiciosa e agressiva em
diferentes graus. Tudo nela é aparatoso, estúpido, vão e, no en-
tanto, me vejo preso nas suas malhas; é-me possível largar com-
pletamente a ambição, abandoná-la e nunca mais ter contato com
ela? Compreendeis minha pergunta, senhor? Mas não se trata de
uma pergunta minha, e sim de uma pergunta que vos deveis fazer,
se tendes vontade de resolver este problema. Ou preferis dizer:
"Sou ambicioso e me libertarei da ambição aos poucos, amanhã
ou na próxima vida, à força de disciplina, pela prática do mantra
adequado, da adequada vigilância - enfim, toda a lista de absur-
dos? Este problema vos toca, senhor? Se não, nenhuma intenção
tenho de vo-lo inculcar. Mas se é um problema vosso, que ides
fazer?
Vede, senhor, os mais de nós não temos amor, o que quer
que seja essa qualidade. Podemos ter um temporário sentimento
que chamamos "amor", o qual, entretanto, é muito aparentado
com o ódio, e não pode ser aquela coisa extraordinária. É possível
que uns poucos possuam essa florescência, essa coisa alentadora,
criadora, mas em geral nos achamos num estado de confusão e
aflição. Ora, pode uma pessoa abandonar, simplesmente, tudo
isso e tornar-se "a outra coisa", sem passar pelas tremendas com-
plicações inerentes ao "tentar vir a ser alguma coisa", sem discus-

214
sões sobre se o sujeito que percebe está separado do objeto per-
cebido, etc.?
[...] ONDE EXISTE O AMOR, não existe desigualdade. Tem
de haver amor, quando buscamos; e não estamos buscando
quando consideramos um outro como discípulo ou como guru.
Para a investigação da verdade, é necessária a cessação de todo o
conhecimento. Onde há amor, há igualdade; não existe o homem
que está no alto e o homem que está em baixo.
[...] O APRENDER não aproximará de vós a Verdade. É só a
mente que se acha numa jornada de descobrimento constante, a
mente que não está acumulando, que está morta para tudo o que
ontem acumulou e está, portanto, nova, purificada, livre - só essa
mente é capaz de descobrir o verdadeiro e promover uma revolu-
ção neste mundo. Só ela é capaz de amor e compaixão - e não a
mente que está praticando o amor e a compaixão, cultivando a
virtude por um certo padrão - pois aí só há interesse egoísta.
[...] AMAI, E AGIREIS. Mas, sem amor, não importa o que
façais - praticando, disciplinando, reformando - o coração nunca
se esclarecerá. E é isto que está acontecendo no mundo. Temos
exemplos, disciplinas, técnicas maravilhosas e, no entanto, os
nossos corações estão vazios, porque repletos das coisas da men-
te. E quando vazios os nossos corações, as nossas soluções para
tantos problemas são também vazias. Só a mente capaz de aten-
ção completa sabe amar, porque esta atenção é ausência do "eu".
[...] O AMOR É SEM "MOTIVO". Se eu vos amo e desejo
algo de vós, isto não é amor o amor é sem "motivo". Se eu vos
amo e desejo algo de vós, isto não é amor — embora eu lhe dê
esse nome — porque, aí, há "motivo". A atividade social ou religi-
osa baseada em "motivo", ainda que a denominemos "serviço",
não é serviço porém, sim, autopreenchimento — embora eu lhe
dê esse nome — porque, aí, há "motivo". A atividade social ou
religiosa baseada em "motivo", ainda que a denominemos "servi-
ço", não é serviço porém, sim, autopreenchimento.

215
Pode-se descobrir o que é amar sem "motivo"? Isso é uma
coisa que se precisa descobrir e que não pode ser praticada. Se
disserdes: "Como alcançarei esse amor?" - estareis fazendo uma
pergunta sem significação, porque o desejo de alcançá-lo já é um
"motivo". Se empregais um método, para alcançar esse amor,
esse método só tornará mais forte o "motivo", que é "vós". Vós
sois então importante, e não o amor.
[...] VOSSA VIOLÊNCIA indica que não há amor em vós - e
isso é um fato.
[...] A REFORMA SOCIAL é necessária, mas há muita gente
trabalhando pela reforma social. E qual a razão dessa atividade? É
por amor que a ela se entregam? Ou essa atividade, a que cha-
mam reforma social, é um meio de essas pessoas se preencherem
a si mesmas? Notar o mendigo na rua, ver a aterradora pobreza e
a degradação existente nas aldeias, e sentir isso, ter amor, com-
paixão, pelo mendigo, pelo aldeão, isso não é o mesmo quê nos
preenchermos numa atividade de reforma social mesmo quando
exerçamos atividades desta natureza. Mas quando a vossa pessoa
se torna importante, numa atividade social, isto não acontece
porque vos estais preenchendo com tal atividade? E quando isso
acontece, já não amais; e o amar, o ter compaixão, o ser sensível
ao belo e ao feio, isso é muito mais importante do que nos preen-
chermos num certo trabalho ostensivo, a que chamamos reforma
social.
[...] A MENTE QUE SE OCUPA em preencher a si mesma,
nunca descobrirá o desconhecido. Só a mente que se acha com-
pletamente desocupada, pode descobrir e compreender o eterno,
e essa mente produzirá sua ação peculiar, na sociedade.
[...] QUANDO EXISTIR, dentro em nós, esse sentimento de
paz e boa-vontade, ele criará o seu mundo próprio. Mas, infeliz-
mente, â maioria de nós não interessa criarmos juntos esse sen-
timento. O que em geral nos une, não é o amor, não é a simpatia,
não é a compaixão, porém o ódio, em virtude de nossa identifica-
ção com um grupo que está oposto a outro grupo. Quando nosso

216
grupo se vê ameaçado de destruição por outro grupo, nisso que se
chama a guerra, esta ameaça nos faz unir-nos; mas tão logo desa-
parece a ameaça tornamos a separar-nos - e isso nos é provado
todos os dias, pelos fatos.
[...] SE DESEJAMOS realmente implantar, juntos, a paz e a
boa-vontade, precisamos de amor - não o amor ideal, mas o sim-
ples amor, a bondade, a compaixão - e isso torna necessário, nos
libertarmos de uma certa comunidade e lançarmos fora todos os
nossos preconceitos nacionais, raciais e religiosos. Nós somos
entes humanos, vivendo juntos sobre esta Terra, esta Terra que
nos pertence. E para se sentir esta verdade, precisamos ser ver-
dadeiramente humildes. Para se poder sentir uma coisa profun-
damente, é necessária a humildade. Mas a humildade deixa de
existir, se perseguimos o ideal.
[...] SÓ DEPOIS DE LIBERTARMOS a mente de seu condici-
onamento, será possível conhecermos o amor, a compaixão; mas
enquanto permanecermos indianos, maharastrianos, ou seja o
que for, é puro disparate falar de Deus, de Verdade, de amor, de
compaixão.
[...] QUANDO SEI QUE NÃO TENHO AMOR, e não finjo
amar; quando estou consciente do fato de não ter compaixão, e
não me ponho a perseguir o ideal, o que é puro contrassenso -
então, com o encarar do fato, surge uma qualidade diferente; e é
esta qualidade que pode salvar o mundo, e não uma certa religião
organizada, ou uma ideologia inventada pelos mais sabidos. É
quando o coração está vazio, que as coisas da mente o enchem; e
as coisas da mente são as explicações desse vazio, as palavras que
descrevem as suas causas.
Assim, se desejais realmente pôr fim às guerras, se dese-
jais realmente pôr fim ao conflito existente na sociedade, deveis
encarar com o fato de que não amais. Podeis ir a um templo e
oferecer flores a uma imagem de pedra, mas isso nunca dará ao
coração aquela extraordinária qualidade que é a compaixão, o
amor, e que só vem quando a mente está tranquila, e não é ávida,

217
invejosa. Quando percebeis o fato de que não tendes amor, e não
fugis dele por meio de uma explicação ou procurando-lhe a causa,
então esse próprio percebimento começa a atuar; ele traz delica-
deza de sentimentos, compaixão. Há então a possibilidade de se
criar um mundo todo diferente, sem esse existir brutal e caótico a
que atualmente chamamos vida.
[...] SE AMÁSSEMOS NOSSOS FILHOS, não haveria guer-
ras, porquanto nossa educação seria toda diferente e haveríamos
de criar uma sociedade de espécie completamente diferente;
mas, visto que há guerras e que nossa sociedade vive com um
perpétuo conflito em seu próprio seio, cada homem contra cada
homem, isso indica que não amamos os nossos filhos. Foi isso o
que eu disse domingo último, e considero-o um fato. Dizeis pro-
fundo e grande o vosso amor por vossos filhos; mas o fato é que
vos estais a enganar mutuamente. Existe ambição, e quando um
homem é ambicioso, não existe amor em seu coração; quando ele
estimula seu filho a galgar os degraus do sucesso e alcançar o
cimo da escada, é bem evidente que o está estimulando a ser
cruel. Sem dúvida, tudo isso indica que não existe amor, não
achais?
Em verdade, como pais sois também mestre, porque vos-
so filho vive em vossa companhia; vós o amestrais, ele vos obede-
ce e se forma segundo vossa imagem. A criança tem seu mestre
na escola, mas em casa sois vós o mestre, que lhe ensina o que é
permitido e o que não é permitido, impelindo-o a imitar-vos, a
copiar-vos, a seguir nas vossas pegadas, para tornar-se alguém na
sociedade. O que vos interessa é unicamente a segurança de vos-
so filho, que é vossa própria segurança; desejais que ele se torne
respeitável, que aprenda a ganhar o seu sustento e a ajustar-se às
exigências da presente ordem social. A isso chamais amor; mas é
amor? Que significa amar a um filho? Por certo, não significa en-
corajá-lo a tornar-se uma miniatura de vossa própria imagem,
moldada pela sociedade, pela chamada cultura; significa, ao con-
trário, ajudá-lo a crescer livre. Ele adquiriu certas tendências, her-
dou de vós certos valores e, portanto, não pode ser livre no come-

218
ço; mas amá-lo é ajudá-lo desde o começo, a libertar-se constan-
temente, para que se torne um autêntico indivíduo e não mera-
mente uma máquina imitativa.
Se amais vosso filho, não o educareis para se ajustar à so-
ciedade, porém, sim, para criar sua própria sociedade, a qual pode
ser completamente diferente da atual; não o ajudareis a ter uma
mente tradicionalista mas, sim, uma mente capaz de investigar a
significação de todas as influências que a cercam, influências cul-
turais, sociais, religiosas e nacionais, sem se deixar prender por
nenhuma delas, de modo que sua mente esteja livre para desco-
brir o que é verdadeiro. Tal é, por certo, a educação correta. Por-
que, com ela, a criança se tornará um ente humano livre, inde-
pendente e capaz de criar seu mundo próprio, uma sociedade de
espécie toda diferente; dotado de, confiança e da capacidade de
construir o seu próprio destino, ele não desejará vossa proprieda-
de, vosso dinheiro, vossa posição, vosso nome. Mas atualmente é
o inverso disso que se observa; esperais que vosso filho leve avan-
te vossa propriedade, vosso dinheiro, vosso nome, e a isso é que
chamais amor.
[...] A MENTE DEVE DE SER SENSÍVEL não só para o que
lhe parece belo mas também para o feio; sensível, ao mesmo
tempo, para as aldeias sórdidas, os casebres miseráveis, os palá-
cios, as árvores belas. Se só é sensível ao belo, não tem sensibili-
dade nenhuma. Para ser sensível, deve a mente estar aberta tanto
para o feio como para o belo. Isto é uma verdade evidente. Buscar
o belo e rejeitar o que não é belo, torna a mente insensível. Para
se sentir o que é feio (que pode não ser feio) e o que é belo (que
pode não ser belo) necessita-se de sensibilidade - sensibilidade
para a pobreza, para o homem esquálido que se senta ao nosso
lado no ônibus, para o mendigo, o céu, as estrelas, a lua que co-
meça a nascer.
Ora, como pode tornar-se existente essa sensibilidade?
Ela só pode tornar-se existente, quando há passividade - não a
passividade calculada, mas a passividade que vem quando não

219
existe autopreenchimento. Compreendei que não pode haver
passividade sem austeridade - mas não a austeridade disciplinada
do asceta, porque o asceta está em busca de poder, sendo, por
conseguinte, incapaz de passividade. Só pode existir passividade,
quando existe amor; e só pode nascer o amor, quando o "ego"
deixou de dominar. A mente, por conseguinte, deve ser muito
simples, "inocente"; não tornar-se inocente. A "inocência" da
mente não é um estado que se produz pela disciplina, pelo con-
trole, por compulsão ou repressão de qualquer espécie que seja.
A mente só pode ser nova, "inocente", quando já não está repleta
das memórias confusamente amontoadas através de muitos sécu-
los; e isso, naturalmente, supõe extraordinária sensibilidade, não
unicamente para uma parte da vida chamada o belo, mas também
para as lágrimas, o sofrimento, os risos, os casebres dos pobres, e
a amplidão dos céus - quer dizer, sensibilidade para o todo da
vida.
[...] A FELICIDADE, COMO O AMOR, é coisa de que a men-
te nunca pode estar cônscia. No momento em que a mente se
torna cônscia de amar, não existe mais amor. É muito estranho e
muito interessante verificar que, quando a mente se esforça deli-
beradamente para experimentar algo, perde todo o perfume da
vida. Isso não é uma frase poética, que se pode varrer para o
lado, porém, antes, um fato que cumpre perceber.
Da solidã o à plenitude humana

[...] POR CERTO, O HOMEM AMBICIOSO não pode ser re-


ligioso. O homem ambicioso não conhece o amor, ainda que fale a
respeito dele. No sentido mundano, pode alguém não ser ambici-
oso, mas se deseja tornar-se um santo, uma personalidade espiri-
tual, ou alcançar um certo resultado no outro mundo, então essa
pessoa é realmente ambiciosa. Assim, a mente precisa não só
despojar-se de todas as cerimônias, crenças e dogmas, mas tam-
220
bém estar livre da inveja. A liberdade total do homem está na
revolução religiosa, porque só então será ele capaz de considerar
a vida de maneira inteiramente diferente e deixar de criar pro-
blemas e mais problemas.
[...] EXISTE O HÁBITO DO SEXO com tudo o que implica.
Há secreções glandulares — e isso é uma função do corpo — e há
necessidade de lhes dar vazão. Que acontece então? A mente
guarda como lembrança o prazer do ato sexual. Ora, a secreção
glandular é um hábito, ou o hábito só surge quando a mente en-
contra prazer em ressuscitar a lembrança do ato sexual e, dessa
maneira, se torna escrava dessa lembrança? Estais-me acompa-
nhando?
O hábito, por certo, é a repetição de um prazer baseado
na lembrança de ontem. Segui isto, senhores, porque se seguirdes
atentamente, vigilantemente, não apenas minhas palavras, mas
também vossa própria mente, vereis que a mente cria o hábito
com a exigência de prazer. Hábito não é a natural exigência da
fome, por exemplo, porém a exigência de prazer e a repetição
desse prazer baseado na memória. Um corpo que tem fome ne-
cessita de alimento, mas o hábito surge quando ele exige que o
alimento tenha determinado sabor, ou seja a repetição do prazer
que antes experimentou. O hábito, pois, é a lembrança de um
prazer que a mente experimentou e cuja constante repetição de-
seja.
[...] A mente busca a repetição de um certo prazer, sexual
ou outro qualquer, e enquanto está a exigir esse prazer funciona
na rotina do hábito. Isso é um fato. A mente diz então: “Preciso
ficar livre deste hábito” — fica sempre a resistir, a lutar, e procura
cultivar outro hábito diferente. Que aconteceu, pois? A mente
está em conflito, deseja um certo prazer e ao mesmo tempo pro-
cura repelir aquilo que deseja. Não estou dizendo que ela deva ou
não deva ceder ao prazer; não é este o problema. Vê-lo-emos
mais adiante.

221
[...] Quando repelimos o prazer num terreno e o mante-
mos noutro, estamo-nos tornando insensíveis. Compreendeis?
Isso é como a mente dizer: “Só quero estar cercada de coisas be-
las; portanto, vou fechar a janela para não ver essa aldeia sórdi-
da”. A vida é tanto o feio como o belo, mas nós só queremos uma
coisa e não a outra; e a rejeição do feio nos torna insensíveis.
Assim, quando vos vedes entregues a um hábito e a ele
resistis a fim de adquirirdes outro hábito que considerais melhor,
estais cultivando a insensibilidade. O hábito se baseia no prazer e
na repetição desse prazer; mas, se desejais destruir o prazer, co-
mo o fazem os swanis, os iogues e tantos outros, então não deveis
sequer viver, porque o prazer é parte integrante da vida. Ao ver-
des uma nuvem, um sorriso, uma lágrima, ao observardes uma
criança, uma mulher, ou um homem, tudo isso é a vida, e, se ne-
gais alguma parte da vida, vos tornais insensível. O homem sensí-
vel não tem hábito nenhum. Prestai atenção. Se dizeis: “Não devo
ter prazer nenhum”, então deveis também rejeitar o amor. Não?
Pois foi isso o que fizestes. Quando a mente está dominada pelo
hábito e, por conseguinte, insensibilizada, como pode haver
amor? — amor puro e simples, não amor divino e amor físico.
Percebeis o que quero dizer? Estou falando do amor, e isso signifi-
ca amar o ente humano, a flor, o animal, e não pensar em si mes-
mo e nos próprios prazeres, vaidades, ambições. A mente deve
ser sensível ao amor; deve ser “vulnerável” ao amor. Mas, como
pode ser vulnerável ao amor, se possui hábitos, bons ou maus?
Segui isto, senhores, para perceberdes por vós mesmos a
sua verdade. Por certo, uma mente insensível não pode saber o
que é a beleza. Como poderia? E, se é insensível à beleza, não há
austeridade. Um iogue, um swami ou mahatma que só possui
uma tanga e pratica toda sorte de austeridades, não é austero.
Austeridade é ser sensível à beleza, ao amor. Não podeis ser aus-
tero, se não sois simples. E simplicidade não é questão das roupas
que usamos ou não usamos — pois isso é apenas um modo imatu-
ro de pensar. Ser simples é ser interiormente sem ambição, sem
resistência, o que significa ser completamente vulnerável, total-

222
mente sensível. Não se pode ser sensível, se há conflito; por con-
seguinte, um homem que está negando, resistindo, lutando para
cultivar um bom hábito, oposto a um hábito mau, não é sensível.
Sua mente jamais conhecerá o amor, porquanto só se interessa
em seu próprio progresso, suas próprias ideias, não importa quão
nobres sejam. Quem não ama não sabe o que é ser austero; con-
sequentemente, não sabe o que é ser simples.
Assim, com esta total compreensão vereis que a mente
que está em conflito, que forceja por “vir a ser” algo, nunca será
sensível; e o que quer que ela faça e por mais que se esforce para
reformar o mundo, só será capaz de causar maiores males, maio-
res danos. Só a pessoa sensível, que sabe o que é amor e, por
conseguinte, está livre da ambição, da inveja, do desejo de poder,
posição, prestígio — só ela pode ser útil à humanidade.
[...] A PALAVRA “AMOR” pode ser comunicada. Vós e eu
conhecemos esta palavra. Agora, se alguma vez provastes o amor,
podeis falar dessa experiência (baseado) no passado; mas se es-
tais “vivendo”, se estais “experimentando” o amor, vós podeis
comunicar isso, e esse é um estado inteiramente diferente do
outro, que consiste em experimentar e depois comunicar. Se
compreendeis isso, se realmente percebeis a falsidade de um
estado e a verdade do outro, então vossa mente se encontra num
estado de contínuo experimentar, que não consiste em experi-
mentar uma coisa e depois comunicá-la. A realidade é uma coisa
viva, que não pode ser reconhecida por meio de experiência e
depois comunicada por meio de palavras. Se estais sentindo uma
coisa intensamente, vivendo-a, a comunicação é significativa, mas
nenhum significado tem quando tivestes uma experiência e repe-
tis a experiência de memória.
[...] RELIGIÃO É ALGO inteiramente diverso do condicio-
namento social da mente. Um homem que é hinduísta, budista,
ou cristão, e que por esse caminho busca a Realidade, nunca a
encontrará. Não há caminho para Deus. Os caminhos foram inven-
tados pelo homem por sua própria conveniência, e por mais dili-

223
gente que siga o caminho para o qual sua mente foi condicionada,
nunca encontrará ele a Realidade, porque seu pensar é parcial; e é
por isso que ele desconhece a essência do amor. O amor não é
coisa da mente, e só se pode compreender a sua totalidade quan-
do a mente é capaz de encarar a vida como um todo e não como
parte.
[...] A MENTE PEQUENINA não pode ver o imensurável. O
que pode fazer é só libertar-se de sua pequenez — quer dizer,
deixar de ser ambiciosa. Um homem ambicioso pode falar a res-
peito de Deus, mas isso é mera artimanha política do explorador.
É só quando deixamos de ser invejosos, ávidos, quando temos o
amor real e não ideias relativas ao amor — só então existe uma
clareza não relacionada com o que é pequeno. Compreendeis,
senhores? Como pode uma mente insignificante, uma mente con-
fusa, contraditória, ambiciosa, vã, insensata, medíocre, compre-
ender aquilo que é imenso, ilimitado? Temos ocasionais vislum-
bres de algo amplo, cheio, rico, e dizemos: “Como posso relacio-
nar esse estado com minha mente pequenina?” Ao fazermos uma
pergunta incorreta, teremos uma resposta incorreta; e nossa vida
está cheia de respostas incorretas, porque estamos sempre fa-
zendo perguntas errôneas.
[...] CONSIDERAI, POR EXEMPLO, o complexo problema
do amor. Ainda que eu seja casado e tenha filhos, a menos que
exista aquele senso de beleza, a profundeza e claridade do amor,
a vida é superficial, sem significação; e eu me acerco da questão
do amor com uma mente bem limitada. Desejo saber o que é ele,
mas tenho suposições de toda espécie a seu respeito, já lhe vesti
as roupagens de minha mente pequenina. O problema, pois, não é
de como compreender o que é o amor, porém de libertar de sua
própria vulgaridade a mente que se acerca do problema; e a men-
te da maioria das pessoas é vulgar.
[...] O AMOR PRECISA DE UMA CAUSA? E se há causa, é
amor?

224
[...] HAVENDO AMOR, há atenção completa. Não há ne-
cessidade de nenhum “motivo”, nenhum objetivo, nenhuma com-
pulsão: ama-se, simplesmente isso. Só quando há amor, há inteira
atenção e, por conseguinte, ação total com referência aos pro-
blemas políticos, religiosos e sociais. Mas nós não temos amor;
tampouco os líderes políticos, os reformadores sociais e religiosos
estão-se importando com o amor. Se estivessem, não falariam de
meras reformas, nem criariam novos padrões de pensamento. O
amor não é sentimentalidade, não é emocionalismo, nem devo-
ção. É um “estado de ser” lúcido, são, racional, incorrupto, do qual
procede a ação total, a única que pode dar a verdadeira solução a
todos os nossos problemas. É por não terdes amor que procurais
uma falsa transformação; na periferia fazeis reformas, mas o co-
ração está vazio. Só sabereis atuar totalmente quando souberdes
o que significa amar. Senhores, desenvolvemos a nossa mente,
somos o que se chama “intelectuais”, e isso significa que estamos
cheios de palavras, de explanações, de técnicas. Somos polemis-
tas, sutis argumentadores e controversistas. Enchemos o coração
com as coisas da mente, e eis por que nos achamos num estado
de contradição. Mas o amor não é facilmente encontrável. Tendes
de trabalhar muito para o alcançardes. O amor é difícil de com-
preender — difícil no sentido de que, para compreendê-lo, é pre-
ciso saber onde é necessária a razão, e acompanhar a razão até
onde seja possível, e ao mesmo tempo conhecer-lhe as limitações.
Isso significa que, para alcançar o que é o amor, necessita-se de
autoconhecimento — não o conhecimento de Sankara, Buda ou
Cristo, que se colhe em certos livros. Esses livros são apenas livros,
e não revelações divinas. A revelação divina só se verifica no auto-
conhecimento; e podeis conhecer-vos não pelo padrão de certo
psicólogo, mas tão-só pela observação de como está funcionando
o vosso pensamento, isto é, pela observação de vós mesmo, mo-
mento por momento, quando entrais num ônibus, quando con-
versais com vossos filhos, vossa esposa, vosso criado.
Assim, se vos conhecerdes, sabereis o que significa amar,
e daí procede a ação total, a única ação verdadeiramente boa.

225
Nenhuma outra ação é boa, por mais inteligente, mais vantajosa e
mais reformadora que seja. Mas, para amar, necessita-se de
imensa humildade — e isso significa ser humilde, apenas, e não
cultivar a humildade. Ser humilde significa ser sensível a tudo cm
derredor, não só ao belo mas também ao feio; ser sensível às es-
trelas, à calma do entardecer, às árvores, às crianças, à aldeia
sórdida, ao criado, ao político, ao motorneiro. Vereis então que
vossa sensibilidade, que é amor, tem solução para os muitos pro-
blemas da vida, porque o amor é a solução de todos os problemas
criados pela mente.
O amor pode ser encontrado por cada um de nós, direta-
mente, e não aos pés de um guru, ou dentro de um livro. Achamo-
lo quando estamos sós, porque ele é incorrupto, puro, e para al-
cançá-lo devemos estar despojados da avidez, da inveja, de todas
as coisas estúpidas da sociedade, que tornaram a mente pequeni-
na, vulgar. Há então uma ação total, e essa ação total é a solução
dos problemas humanos, pois nenhuma solução trazem as ativi-
dades separadas do reformador, do planejador e do político.
[...] REPRIMIR OS SENTIDOS, tornar- se insensível a tudo o
que é tempestuoso, contraditório, causador de conflitos e afli-
ções, como insistentemente recomendam todos os swamis, io-
gues, e todas as religiões, é negar a profundeza, a beleza, a glória
da existência. Para compreenderdes a verdade, necessitais de
sensibilidade completa. Compreendeis, senhores? A realidade
exige todo o vosso ser; deveis chegar-vos a ela com vosso corpo,
mente e coração, como ente humano total, e não com uma mente
paralisada e tornada insensível pela disciplina. Vereis então que
não há necessidade de temer os sentidos, porque sabereis como
servir-vos deles, e eles não vos desviarão do “bom caminho”.
Compreendereis os sentidos, ama- los-eis, percebereis todo o seu
significado e, então, não mais vos torturareis a reprimir e contro-
lar. Não percebeis isso, senhores?
Amor não é “amor divino”, ou “ amor conjugal”, ou “amor
fraternal” — e outros rótulos que bem conheceis. Amor é sim-

226
plesmente amor — sem lhe aplicarmos uma significação nossa.
Quando amais uma flor com todo o vosso ser — e isso não é ape-
nas dizer “que bela!” e passar adiante; ao amardes a pleno um ser
humano, com toda a vossa mente, coração e corpo, vê-se então
que aí não há desejo, portanto não há conflito, nem contradição.
É o desejo que cria a contradição, o sofrimento, o conflito entre o
que é e o que deveria ser, o ideal. O homem que consegue repri-
mir os sentidos, tornando-se insensível, não sabe o que é amor;
por conseguinte, ainda que fique meditando por mais dez mil
anos, nunca encontrará Deus. Só quando vosso ser se torna sensí-
vel a tudo, à profundeza de vossos sentimentos, a todas as extra-
ordinárias complexidades de vossa mente, e não apenas àquilo
que chamais “Deus”, só então o desejo deixa de ser contraditório.
Entra, então, em ação um “processo” completamente diferente, o
qual não é “processo de desejo”. O amor é “sua própria eternida-
de”, e tem ação própria.
[...] COMO SE PODE AMAR quando a mente nunca está si-
lenciosa, se está pensando sempre em si? Amar uma pessoa com
todo o vosso ser, vossa mente, coração e corpo, requer grande
intensidade; e, quando o amor é intenso, o desejo logo desapare-
ce. Mas a maioria de nós nunca teve intensidade em relação a
coisa alguma, a não ser quando se trata de nossa própria vanta-
gem, consciente ou inconscientemente. Jamais procuramos abei-
rar-nos de coisa alguma sem procurar extrair proveito dela. Po-
rém, só a mente que tem essa intensa energia é capaz de seguir o
célere movimento da Verdade. A Verdade não é estática; é mais
veloz do que o pensamento, e a mente não tem nenhuma possibi-
lidade de concebê-la. Para compreender a Verdade, requer-se
essa imensa energia, que não pode ser conservada ou cultivada.
Essa energia não nasce da renúncia, da repressão; pelo contrário,
exige completo “abandono” — e não podeis abandonar-vos ou
abandonar tudo o que tendes, se apenas quereis um resultado.
É possível viver sem inveja, neste mundo que se baseia na
inveja, na aquisição, na busca de poder e posição; mas isso requer
extraordinária intensidade, clareza de pensamento e compreen-

227
são. A não ser que comeceis com “vós mesmos”, o que quer que
façais, nunca encontrareis o fim do sofrimento. A purificação da
mente é meditação — purificação da mente que só por si se inte-
ressa. Tendes de compreender-vos — e poderíeis “entreter-vos”
um pouco com isso, todos os dias. O homem que se “entretém”
com a compreensão de si próprio perceberá muito mais do que
aquele que prega aos outros.
[...] A MENTE QUE ESTÁ INVESTIGANDO não contém
acumulação, sua investigação não é “aditiva”, não há nela acumu-
lação de conhecimento. Entendeis, senhores? Se estou investi-
gando o que é o amor, não posso dizer que o amor é espiritual,
divino, efeito de karma etc., pois isso é simplesmente um “proces-
so” de pensar. Nunca descobrirei o que é o amor por meio do
pensar, porquanto o pensamento é condicionado, o pensamento
é resultado do tempo. O pensamento “projeta” ideias sobre o
amor, mas o que ele projeta não é amor. Para investigar o que é o
amor, a mente deve estar livre de informações, ideias, pensamen-
tos. Ao perceber esta verdade, minha mente se torna tranquila;
não tenho de perguntar como torná-la tranquila. O importante é a
correta investigação, isto é: investigar de modo que a mente este-
ja livre do conhecimento acumulado, através da experiência, pelo
“experimentador”.
[...] SABE A MENTE O QUE É AMAR? Conheceis a qualida-
de, o sentimento de amor? Não se trata daquilo que amais, mas,
sim, do próprio sentimento. Ou o sentimento está sempre associ-
ado ao objeto? E, se não há objeto, existe o sentimento indepen-
dente de objeto? Se o sentimento depende de objeto, se só surge
com o percebimento dele, então, obviamente, não se trata de
amor mas apenas da sensação produzida pelo objeto e geradora
de conflito.
Ora, por favor, investigai comigo, pensai junto comigo, e
senti junto comigo. É possível a mente ter o sentimento do amor
sem objeto ou independente de objeto? É possível a mente pres-
tar atenção sem objeto de atenção?

228
[...] É possível, pois, a mente perceber tudo, o belo e o
feio, sem se despertar o desejo? E quando a mente não está ocu-
pada com um objeto de desejo, não há sentimento nenhum? Por
favor, investigai vós mesmos. Não existe sentimento, se não há
objeto? Não existe amor sem objeto?
[...] QUANDO AMAIS O QUE FAZEIS, não sois ambicioso,
não sois ávido, não buscais a fama, porque o próprio amor ao
vosso trabalho é em si suficiente. Nesse amor não há frustração,
porque não buscais preenchimento.
[...] PERGUNTA: Para vós, é o amor que dissolve todos os
problemas humanos. Eu não amo, e, entretanto, tenho de viver.
Mas o amor não pode ser cultivado. Significa isso que meus pro-
blemas nunca serão resolvidos?
KRISHNAMURTI: Só se pode sentir o que é o amor ao
compreendermos a maneira como vivemos. A maioria de nós de-
seja uma definição do amor, ou buscamos aquele estado que
chamamos “amor universal”, “cósmico”, “divino”, etc. etc., sem
compreender nossa existência diária. Não conhecemos, na vida
cotidiana, nenhuma espécie de amizade, bondade, delicadeza?
Nunca somos generosos, compassivos? Jamais temos o sentimen-
to de ser espontaneamente bons para com alguém, ou em que
revelamos grande humildade? Tudo isso não são expressões do
amor? E, quando amamos alguém, não há então um sentimento
total em que o “eu” é inexistente?
O que geralmente acontece é que nos identificamos com
uma pessoa, uma família, uma nação, um partido, uma ideologia,
e, nessa auto-identificação com algo, encontro grande intensidade
de sentimento, de ação; mas não nos esquecemos realmente de
nós mesmos. Pelo contrário, com a identificação nos expandimos.
O movimento, o partido, a ideologia, a igreja, ou o que quer que
seja com que se identificou a mente, é um prolongamento do
“eu”. O homem que, consciente ou inconscientemente, se identi-
ficou com algo, não tem amor, ainda que fale de amor. Quando
falais sobre vosso amor à pátria, isso não significa que amais a

229
pátria, constituída de pessoas, de entes humanos; o que amais é
puramente a ideia de pátria, com a qual vos identificastes e pela
qual estais dispostos a matar e a morrer.
Assim sendo, consciente ou inconscientemente, a mente
se identifica com alguma coisa — um movimento, um partido,
uma ideologia, uma família, uma religião, um guru — e essa men-
te é incapaz de amar; afigura-se-me importante compreender
isto, porque muita gente boa se perde por causa da identificação,
por não perceber sua falsidade. E se a identificação, a que cha-
mamos “amor”, não é amor, que é então o amor?
Sem dúvida, o amor é o estado de espírito em que o “eu”
perdeu toda a sua importância. Amar é ser amistoso. Compreen-
deis, senhores? Quando amais, não tendes inimizade e não cau-
sais inimizade. E vós causais inimizade ao pertencerdes a religiões,
nações, partidos políticos. Se possuís muitas terras, imensas ri-
quezas, enquanto outro, pouco ou nada tem, causais inimizade,
ainda que frequenteis os templos, ou mandeis construir templos
com vossas riquezas. Não tendes afabilidade quando estais em
busca de posição, poder, prestígio.
Sim, todos vós acenareis com vossas cabeças e concorda-
reis comigo, mas continuareis por vossos velhos caminhos; e a
tragédia é, não a vossa falta de amor, porém, a falta de compre-
ensão de vosso modo de vida, o não-percebimento do significado
da maneira como realmente estais vivendo. Se realmente sentís-
seis isso, seríeis generosos. Por certo, a generosidade da mão e do
coração é o começo da afabilidade; e onde há afabilidade não se
necessita de justiça por força da Lei. Existindo afabilidade, há
bondade, compaixão espontânea. Ocasionalmente, tendes sido
amistosos, afáveis, sem pensardes em vós mesmos, sem estardes
preocupados a respeito de vossa pátria, de vossos problemas. E
quando transcendemos tudo isso, surge algo completamente di-
verso — um estado em que a mente é compassiva e, todavia, “in-
diferente”.

230
Conhecemos a indiferença no sentido de “desapego”,
sendo este o resultado de cálculo, um ato concebido pela mente,
a fim de proteger-se contra a dor. Conhecemos também a indife-
rença da mente que diz: “Passei por muitas penas e angústias, e
agora vou ser indiferente.” Ora, isto é também ação da vontade.
Mas eu me refiro a uma indiferença totalmente desligada da indi-
ferença intelectual concebida pela mente que deseja resistir ao
sofrimento. Há uma indiferença originada da compaixão; a mente
é compassiva e, todavia, “indiferente”. Já tivestes alguma vez tal
sentimento? Ao verdes um ser a penar, tratais de socorrê-lo e,
entretanto, sois “indiferente” nesse próprio processo de socorrer.
Mas, em geral, que fazemos nós? Apiedamo-nos porque vemos
sofrimento, e desejamos alterar as coisas, promover uma reforma
e, desse modo, nos lançamos de corpo e alma à ação; mas a men-
te de tal maneira está empenhada em produzir um resultado, que
perde o “senso” da compaixão.
Assim, se observardes o funcionamento de vossa própria
mente, vereis que todas essas coisas se passam no cotidiano viver.
Conheceis momentos de compaixão, momentos de amor, de ge-
nerosidade, porém eles são bem raros. Todas as nossas ações
calculadas se baseiam nesse processo de “vir a ser” algo impor-
tante, e só a mente que esta livre do “vir a ser” pode conhecer
aquele amor que dissolve nossos numerosos problemas.
O homem livre

[...] AMOR NÃO É APEGO. O amor não gera sofrimento.


Ele desconhece o desespero ou a esperança. É impossível tornar o
amor respeitável ou ajustá-lo ao esquema social. Em sua ausência,
toda forma de agonia se instala. Possuir e ser possuído são consi-
deradas formas de amor. A ânsia de possuir uma pessoa ou um
objeto não é apenas uma das exigências sociais e das circunstân-
cias, mas brota de uma fonte bem mais profunda. Surge das pro-
231
fundezas da solidão. Cada um procura preencher esta solidão de
diferentes modos: bebendo, seguindo uma religião, adotando
uma crença ou exercendo uma atividade qualquer. Apesar dessas
fugas, a solidão permanece.
Ao comprometer-se o homem com alguma organização,
crença ou atividade, deixa-se ele possuir por elas, negativamente;
e, positivamente, isso significa possuir. A posse, tanto negativa
como positiva, é considerada uma ação que visa ao bem, que se
destina a transformar o mundo, e que representa o pretenso
amor. Controlar ou moldar alguém, em nome do amor, exprime a
ânsia de possuir; é o desejo de encontrar segurança e conforto
psicológico numa pessoa. Buscar o auto-esquecimento mediante a
identificação com outra pessoa, ou alguma atividade, conduz ao
apego. Nisto só existe dor e desespero, com a consequente reação
do desapego. Desta contradição entre o apego e o desapego nas-
cem o conflito e a frustração.
Não podemos fugir da solidão; ela é um fato, e a fuga ao
fato cria confusão e sofrimento.
Entretanto, nada possuir, nem mesmo uma ideia e muito
menos uma pessoa ou uma coisa, é um estado extraordinário.
Sempre que a ideia ou o pensamento criam raízes existe a posse,
e daí nasce a luta pela libertação. Mas esta liberdade não é liber-
dade nenhuma, mas, sim, mera reação. O processo de reação se
instala com suas raízes, que se alastram pelo solo da nossa exis-
tência. Cortar as raízes, uma por uma, seria um absurdo psicológi-
co, isso não é possível. O relevante é ver o fato da solidão; diante
disso, tudo desaparece.
[...] O PROCESSO SE PROLONGOU por quase toda a noite;
foi bastante intenso. É espantosa a resistência do corpo! O corpo
inteiro tremia, e esta manhã, ao acordarmos, a cabeça balançava.
A singular presença inundava o quarto esta manhã. Cada
recanto de nosso ser foi invadido por aquela força poderosa que a
tudo purificava com sua ação sagrada. A outra pessoa também o

232
sentiu. Eis a coisa pela qual todos anseiam e, por a desejarem
tanto, ela lhes escapa. O monge, o sacerdote, o “sanyasi” tortu-
ram seu corpo e sua natureza no anseio de encontrá-la, mas ela
igualmente lhes escapa. É que isto não pode ser adquirido; ne-
nhum sacrifício, virtude ou oração poderá suscitar este amor. Esta
vida, este amor, não existirão se a morte for o meio de alcançá-
los. Toda súplica, toda busca devem cessar.
Não existe lógica na verdade. A verdade não pode ser me-
dida, avaliada. Só se pode medir e dimensionar aquilo que não é
vivo.
[...] ESTRANHA COISA O AMOR, que se tornou tão respei-
tável: o amor a deus, o amor ao semelhante, o amor à família.
Primorosamente demarcado como sacro e profano, como dever e
responsabilidade, como disciplina e sacrifício, tanto os padres
como os generais, ao planejarem as guerras, invocam o amor. Os
políticos e as donas-de-casa sempre se queixam dele. O ciúme e a
inveja alimentam o amor, que serve de prisão a toda forma de
relacionamento. Ele está nas telas dos cinemas, nas páginas das
revistas, e cada estação de rádio e televisão o apregoa. Ao findar o
objeto do amor, surge a foto emoldurada na parede, ou a imagem
cultivada pela memória ou pela crença. Esses valores passam de
geração a geração, sem que o sofrimento tenha fim.
A continuidade do amor resulta no prazer, sempre acom-
panhado da aflição; apegados ao prazer, lutamos para nos des-
vencilhar da dor. Através da continuidade se busca a permanência
e a certeza nas relações.
Ao evitar-se qualquer mudança nas relações, fica-se enre-
dado na sensação opressiva da segurança e na agonia do hábito.
E, tachando de amor esse fluxo incessante de prazer e dor, tor-
namo-nos prisioneiros daquela obsessão. Para escapar ao tédio
buscamos refúgio na religião e no romantismo, variável de acordo
com as pessoas, que, em verdade, é uma fuga eficaz perante o
fato do prazer e da dor. Sem esquecer, é claro, deus, o maior ape-

233
lo e a derradeira esperança da humanidade, e o qual se tornou
tão respeitável e lucrativo.
Nada disto é amor. Não há continuidade no amor; ao con-
trário da memória, ele ignora o amanhã ou o futuro. As recorda-
ções nascem das cinzas do passado, mas o amor é livre do jugo do
tempo e desconhece a promessa, a esperança ou o desespero. O
cérebro não pode conceber o amor pois este não pertence a ne-
nhuma crença, símbolo ou sentimento. De sua eterna morte e
ressurreição advém a destruição definitiva, o aniquilamento do
conhecido, os quais são o próprio amor.
[...] O DESEJO DE PERFEIÇÃO, exterior ou interior, nega o
amor, e sem amor, não importa o que se faça, haverá sempre
frustração e sofrimento. O amor não é perfeito nem imperfeito; é
só quando ele está ausente que surgem estes dois opostos. O
amor jamais busca a perfeição. Ele é a chama que arde sem pro-
vocar fumaça; o desejo de atingir a perfeição serve apenas para
formar fumaça; deste modo, a perfeição está no esforço, que é
mecânico e que se efetiva no hábito, na imitação e no medo cres-
cente. Educa-se para a competição e para o sucesso; assim, o ob-
jetivo adquire primordial importância. O amor à coisa em si desa-
parece. E o instrumento musical deixa de ser utilizado por amor à
melodia, mas por aquilo que ele representa em termos de fama,
dinheiro, prestígio e poder.
[...] É NECESSÁRIO CONVIVER COM A MORTE para conhe-
cê-la. O medo impede que ela se revele. É preciso amá-la para
desvendar-lhe o mistério. De nada serve o acúmulo de conheci-
mentos: há sempre um limite para o conhecimento, mas não para
a morte. Amar não significa estarmos familiarizados com a morte;
não podemos habituar-nos com a destruição. Para nós, é impossí-
vel amar o desconhecido. Na verdade, nada conhecemos, nem
mesmo nossas mulheres, nosso patrão e muito menos um total
estranho. Mesmo assim, é preciso amar o desconhecido. Somente
amamos aquilo que nos traz segurança e conforto. Detestamos a
incerteza e o desconhecido. Podemos apreciar o perigo, sacrificar

234
a própria vida por alguém, até mesmo matar em defesa da pátria,
mas isso não é amor. Há sempre, nessas ações, o desejo de re-
compensa. Apesar do sofrimento que encerra, adoramos o suces-
so. Curiosamente, o amor e a morte estão sempre juntos, insepa-
ráveis, e nada lucramos em conhecê-la. Presente em todo gesto
de ternura, a morte é a própria essência do amor.
Sabemos nós o que é o amor? Conhecemos a sensação, a
emoção, o desejo, o sentimento e o processo mecânico do pen-
samento, mas nada disso ainda é o amor. Dizemos amar nosso
marido, nossos filhos; odiamos a guerra ao mesmo tempo em que
a exercemos. Nosso amor contém o ódio, a inveja, a ambição e o
medo; porém isso não significa amar. Admiramos o poder e a fa-
ma, esse mal que corrompe. O amor é o desconhecido com sua
extraordinária beleza. Viver nesse desconhecido não equivale a
permanecer na dúvida ou cair no desespero. É morrer para o pas-
sado e, portanto, viver na total incerteza do amanhã. O amor e a
morte desconhecem a continuidade. Somente a memória e o
quadro na parede têm continuidade, mas isso, como acontece em
todas as coisas mecânicas, produz desgaste, dando lugar a novos
quadros e memórias. Continuidade é deterioração, e esta não
contém a morte. O amor e a morte são inseparáveis e definitivos
em sua ação revolucionária.
[...] PARA OS PRETENSAMENTE RELIGIOSOS, a sensibili-
dade é sinônimo de pecado, mal próprio de pessoas mundanas.
Para elas, ser religioso é resistir à tentação do belo, esse mal que
desencaminha seus seguidores. A boa ação não substitui o amor
e, sem o amor, toda ação conduz ao sofrimento. A sensibilidade é
a essência do afeto e, sem ela, toda idolatria é fuga ao real. O
monge e o “sanyasi” temem os sentidos, mas não o pensamento,
que serve ao deus de sua escolha. Todavia, o pensamento perten-
ce aos sentidos. O tempo é criação do pensamento, que transfor-
ma a sensibilidade em pecado. A virtude surge ao transcendermos
o pensamento, virtude que é extrema sensibilidade, e o próprio
amor. Amemos, porquanto no amor não há pecado; amemos, e
estaremos livres do sofrimento.

235
[...] A COMPREENSÃO DA CARÊNCIA PSICOLÓGICA é de
vital importância. É imprescindível a satisfação das necessidades
básicas de alimento, roupa e abrigo. Mas, existirão outras neces-
sidades? Ainda que presos no conjunto das exigências psicológi-
cas, questionamos-lhe a validade. Será inevitável vivermos sob a
pressão constante das exigências de sexo, da busca de preenchi-
mento, da compulsória ambição, da inveja, da avidez? Através dos
tempos, o homem fez disso a sua vida e esse padrão de existência
é exaltado pela sociedade e pela igreja. Condicionados que somos,
aceitamos esta maneira de viver, resistindo debilmente à corren-
teza, fracos e amedrontados. E a fuga tornou o lugar da realidade.
As carências interiores constituem um mecanismo de defesa pe-
rante um desafio de significado mais profundo. A busca de preen-
chimento, a necessidade de ser alguém brotam do medo do des-
conhecido. A identificação com um país, um partido ou crença,
como forma de autopreenchimento, é fuga da própria nulidade,
do vazio, da solidão e das atividades egocêntricas. São inúmeras
as exigências psicológicas que se multiplicam e constantemente se
renovam. Eis por que todo desejo, é contraditório e premente.
O desejo é inevitável; variam os objetos do desejo, mas o
desejo está sempre presente. Débil ou forte, controlado, tortura-
do, negado, aceito, reprimido, livre ou aniquilado, ele está sempre
lá. Que há de errado no desejo? Qual o motivo dessa guerra cons-
tante? Mesmo causando desordem, sofrimento, dor, não conse-
guimos dominá-lo. Compreendê-lo sem desfigurá-lo através da
repressão ou disciplina, é entender as exigências psicológicas.
Essas exigências e o desejo são inseparáveis, bem como o desejo
de preenchimento e a frustração. A essência do desejo é o confli-
to, e é falso classificá-lo como nobre ou vil. Do eremita ao líder
político, todos somos consumidos pela voracidade do desejo. Na
compreensão das exigências físicas e psicológicas, ele deixa de ser
uma tortura. Então, transforma-se, ao superar o conteúdo do
pensamento e do sentimento, sua carga de emoções, mitos e
ilusões. Dessa compreensão, a tortura do desejo se transforma na
chama da vida criadora, na qual se consome toda a mesquinhez

236
humana. Nessa chama estão contidos o amor, a morte e a beleza,
cuja infindável energia é a própria vida.
Diário de Krishnamurti

[...] CONSIDERE-SE A QUESTÃO de ser amado ou de amar.


É possível a mente ambiciosa amar ou ser amada? O funcionário
que deseja tornar-se chefe, o chamado “santo que aspira a reali-
zar Deus”, são ambiciosos, porque estão interessados no próprio
aperfeiçoamento; e a mente deles, é óbvio, não pode conhecer o
amor. A mente desejosa de compreender a natureza da palavra
“amor” deve, sem dúvida, estar totalmente livre daquele desejo
de segurança, pois assim nos tornamos essencialmente vulnerá-
veis, sensíveis. É possível, pois, nos tornarmos verdadeiramente
livres do medo?
[...] O AMOR NÃO É VIRTUDE — a virtude que conhece-
mos. E onde existe esse amor, não existe pecado; o homem pode
então fazer o que quer; está fora do alcance dos tentáculos da
sociedade e de todos os horrores da respeitabilidade.
[...] MUITO SE FALA A RESPEITO de paz, de amor, e por aí
além. Todo político, em qualquer parte do mundo, proclama in-
cessantemente o seu deus, sua paz, seu amor. E pode a mente
que ainda não compreendeu o inteiro significado do desejo saber
o que é amor? E as pessoas religiosas consideram o desejo como
coisa má — exceto, é claro, o desejo de Deus, de Jesus, ou de al-
guém; e os mosteiros estão cheios de tais pessoas. Pode a mente
dessas pessoas ver a imensidão dessa coisa que ocultamos debai-
xo da palavra “amor”?
[...] O AMOR NÃO É ACUMULAÇÃO. É sempre coisa nova.
Não é coisa nascida da lembrança; de modo nenhum se relaciona
com o retrato colocado sobre a lareira. Assim, talvez, se puder-
mos, com cuidado e inteligência, compreender o que significa
237
aprender, estaremos então aptos a investigar a questão do tempo
e da morte e, quiçá, também descobrir o que significa amar.
[...] NÃO SEI SE JÁ ALGUMA vez experimentastes — ainda
que por divertimento — morrer para todas as coisas conhecidas.
Direis, então: “Se morro para todas as minhas lembranças, para
minha experiência, meu saber, meus retratos, meus símbolos,
meus apegos e ambições, que resta?” Nada. Mas, para saber o
que é a morte, a mente, por certo, deve estar reduzida a nada.
Consideremos uma coisa. Já experimentastes morrer, não só para
o sofrimento, mas também para o prazer? Desejamos morrer para
o sofrimento, para as lembranças desagradáveis; mas morrer
também para o prazer, as alegrias, as coisas que vos conferem um
extraordinário senso de vitalidade — já experimentastes isto? Se o
fizerdes, vereis que se pode morrer para o passado. Morrer para
todas as coisas, de modo que, ao dirigir-vos para vosso escritório,
para vosso trabalho, tenhais a mente nova — por certo, isto é
amor e não coisas lembradas.
[...] O AMOR NÃO É SENSUAL; nenhuma relação tem com
a emoção; não é reação ao medo; não é amor materno, amor
conjugal etc.
Segui bem isso, por favor, penetrai-o, sem nada aceitar,
nem rejeitar, pois estamos jornadeando juntos. Direis, talvez: “Um
tal amor, um tal estado mental não baseado em lembrança, é
impossível”. Mas eu acho que ele pode ser encontrado. Encon-
tramo-lo por vias obscuras, ao investigarmos no seu todo o pro-
cesso do pensamento, as peculiaridades da mente. É um poder
existente por si só; é energia não causada. Difere inteiramente da
energia gerada pelo “eu” em sua ânsia de alcançar as coisas que
deseja. E aquela energia existe, mas só será encontrada pela men-
te livre, não vinculada ao tempo e ao espaço. Nasce aquela ener-
gia quando o pensamento — como experiência, conhecimento,
como “ego”, centro — o “eu” — gerador de sua própria energia,
volição e concomitantes pesares, aflições etc. — se dissolve. Dissi-

238
pado esse centro, manifesta-se aquela energia, aquela força que é
o amor.
[...] APARTE: Podeis falar-nos um pouco mais sobre o que
é o amor?
Krishnamurti: Isto supõe duas coisas, não? — A definição
verbal, de acordo com o dicionário, a qual, evidentemente, não é
o amor. Essa é a primeira coisa, que envolve todos os símbolos,
palavras, ideias, concernentes ao amor. A outra coisa é que só se
pode encontrar o amor por meio da negação; ele só pode ser des-
coberto pela negação. E, para descobrir, a mente deve primeira-
mente libertar-se da escravidão das palavras, ideias e símbolos.
Isto é, para descobrir o amor, a mente precisa varrer tudo o que já
sabe a respeito do amor. Não é necessário “varrer” tudo o que é
conhecido para se poder descobrir “o desconhecido”? Não é ne-
cessário varrermos todas as nossas ideias, por mais que nos delei-
tem, todas as nossas tradições, por mais nobres que sejam, para
descobrir o que é Deus, descobrir se existe Deus? Deus, aquela
imensidão, deve ser incognoscível, não mensurável pela mente.
Assim, precisamos cortar completamente o processo de medição,
de comparação, e o processo de reconhecimento, para podermos
descobrir.
Do mesmo modo, para saber, experimentar, sentir o que é
o amor, a mente deve estar livre para descobri-lo; estar livre para
senti-lo, para “viver com ele”, sem a divisão entre observador e
coisa observada. Precisa ultrapassar as limitações da palavra; per-
ceber tudo o que a palavra sugere: amor pecaminoso e amor divi-
no; amor nobre e amor ignóbil — todos os preceitos e sanções e
tabus sociais com que temos cercado esta palavra. E isso repre-
senta empreendimento dificílimo, não? — amar um comunista,
amar a morte. E o amor não é o oposto do ódio, porque todo
oposto é parte do outro oposto. Amar, compreender a brutalida-
de que impera no mundo, a brutalidade dos ricos e dos podero-
sos; ver o sorriso no rosto do pobre por quem passais na estrada e
participar da felicidade dessa pessoa — experimentai isso uma

239
vez, para verdes o que sucede. Amar requer uma mente que este-
ja sempre a purificar-se das coisas que conhece, que experimen-
tou, recolheu, acumulou, e às quais se apegou. Sendo assim, não
há possibilidade de descrever esta palavra; só podemos senti-la
em sua totalidade.
Aparte: Por outras palavras, nesse momento o indivíduo é
amor.
Krishnamurti: Infelizmente, acho que não, meu senhor,
porque não há um momento reconhecível como “esse momento”.
Não há “processo” de reconhecerdes que sois amor. Já não sentis-
tes raiva, já não odiastes alguém? Dizeis então “Eu sou isso (a
raiva, o ódio etc.)? Não há “um momento” reconhecível, há? Vós
sois a coisa, completamente. Só então a mente é capaz de desco-
brir o que é verdadeiro, porquanto a mente livre pode seguir o
fato. Para seguirdes o fato de que odiais, não necessitais de auto-
ridade alguma; necessitais de uma mente livre de medo, livre de
opiniões, e que não condena. Tudo isso exige muito trabalho. Para
se “viver” com uma coisa bela ou com uma coisa feia, requer-se
intensa energia. Já notastes que o aldeão, o montanhês que “vive”
com uma majestosa montanha, nem sequer a vê, pois se acostu-
mou com ela? Mas para “viver com uma coisa” e nunca se acos-
tumar com ela, necessita-se de muita intensidade, daquela extra-
ordinária energia. E essa energia se manifesta quando a mente é
livre, quando não há medo, quando não há autoridade.
[...] COMO SABEIS, para a maioria de nós “estar só” é uma
coisa terrível. Não me refiro aqui à solidão, que é coisa diferente.
Refiro-me ao “estar só”: estar só com alguém ou com o mundo:
estar só com um fato. Só, no sentido de que a mente não está
sujeita a influências, já não se acha presa ao passado, nem tem
futuro, nem busca, nem teme: está só. O que é puro está só; a
mente que está só conhece o amor, porque já não se enreda nos
problemas do conflito, do sofrimento e do preenchimento. Só
essa mente é uma mente nova, uma mente religiosa. E, talvez, só
ela pode curar as feridas deste mundo caótico.

240
[...] É ÓBVIO QUE A MENTE INVEJOSA, ambiciosa, egocên-
trica, não pode ver a plenitude da beleza; não pode conhecer o
amor. Um homem pode ser casado, ter filhos, possuir casas e per-
petuar o seu nome; mas a mente que é invejosa e ambiciosa não
pode conhecer o amor. Ela conhece sentimento, emoção, apego;
mas apego não é amor.
[...] O AMOR NÃO TEM AMANHÃ e não pensa no passa-
do; e isso significa que o intelecto não atua sobre o amor. Não sei
se já observastes isto: como o intelecto interfere no amor, diz que
ele deve ser respeitável, divide-o como divino e pecaminoso, está
sempre a moldá-lo, controlá-lo, guiá-lo, ajustando-o ao padrão da
sociedade ou da própria experiência.
Há, porém, estado de afeição, de amor, no qual não inter-
fere o intelecto; e esse amor talvez possa ser encontrado. Mas,
por que comparar? Por que dizer “ele é assim ou assado”?
[...] O AMOR NÃO É FRAGMENTÁRIO; ele não pode ser
dividido em divino e profano, ou posto em várias categorias de
respeitabilidade. O amor é coisa total, e a mente que disseca o
amor nunca saberá o que é o amor. Para se sentir, compreender o
amor, não devemos considerá-lo de maneira fragmentária.
[...] O AMOR NUNCA AJUSTA. Só o desejo, o medo, a es-
perança, ajustam. Eis por que o amor é uma coisa destrutiva, pois
se recusa a adaptar-se, a ajustar-se a qualquer padrão.
[...] NÃO SE ME AFIGURA POSSÍVEL separar a beleza do
amor. Como sabeis, para a maioria de nós o amor é coisa doloro-
sa, porque é sempre acompanhado do ciúme, do ódio e dos ins-
tintos de posse. Mas esse amor de que falamos é um estado em
que se acha presente a chama sem fumo.
A mente religiosa, pois, conhece essa destruição comple-
ta, total, e sabe o que significa achar-se num estado de criação,
estado que não se pode comunicar. E nela existe o sentimento da
beleza e do amor, que são inseparáveis. O amor não é divisível em
amor divino e amor físico. É Amor. E não é necessário dizer que

241
ele se acompanha, naturalmente, de um sentimento de paixão.
Não se pode ir muito longe sem paixão — paixão, que é intensi-
dade. Não a intensidade do desejar alterar algo, fazer algo, a in-
tensidade que tem causa, de modo que se se remove a causa a
intensidade desaparece. Não é um estado de entusiasmo. A bele-
za só pode existir quando há a paixão, que é austera; e a mente
religiosa, encontrando-se nesse estado, tem uma força de quali-
dade peculiar.
[...] COMO PODE HAVER AMOR quando há apego, ciúme,
inveja, ambição e todas as hipocrisias que acompanham esta pa-
lavra? Mas, se tivermos passado por aquele vazio — que é uma
realidade e não um mito nem uma ideia — veremos que o amor e
o desejo e a paixão são uma mesma coisa. Se se destrói uma, des-
trói-se a outra; se se corrompe uma, corrompe-se a beleza. Para
se penetrar tudo isso requer-se, não uma mente desapegada,
dedicada ou uma mente religiosa, mas uma mente disposta a in-
vestigar, uma mente nunca satisfeita, que está sempre a olhar, a
vigiar, a observar a si própria — a conhecer a si mesma. Sem o
amor, nunca será possível descobrir o que é a verdade.
[...] QUE É O SEXO? É o ato ou as imagens agradáveis, os
pensamento, as lembranças que o rodeiam? Ou é simplesmente
um fato biológico? E existe lembrança, imagem, excitação, neces-
sidade, quando existe amor — se posso empregar esta palavra
sem a desvirtuar? Acho necessário compreender o fato físico,
biológico, Esta é uma coisa. Todo o romantismo e excitação, o
sentimento de nos termos dado inteiramente a outra pessoa,
nossa identificação com ela nessa relação, o desejo de continui-
dade, de satisfação — tudo isso é outra coisa. Quando o que nos
concerne é realmente o desejo, que papel tem o sexo e qual a sua
importância? É ele uma necessidade psicológica, tanto quanto
uma necessidade biológica? Requer-se um intelecto muito claro,
muito penetrante, para diferençar entre a necessidade física e a
necessidade psicológica. O sexo implica muitas coisas, e não sim-
plesmente o ato. O desejo de esquecimento de si mesmo noutra
pessoa, a continuidade dessa relação, os filhos, o buscar a imorta-

242
lidade através dos filhos, da esposa, do marido, a ideia de “nos
darmos” a outrem, com todos os problemas do ciúme, do apego,
do medo — a agonia inerente a tudo isso — é amor isso? Se não
houver compreensão da necessidade, basicamente, completa-
mente, no mais profundo de nosso ser, nos obscuros recessos de
nossa consciência, então o sexo, o amor e o desejo causarão de-
vastações em nossa vida!
[...] A MAIORIA DE NÓS DEFINHA, mas isso não é morrer.
Morrer é conhecer o amor. O amor não tem continuidade, não
tem amanhã. O retrato de uma pessoa na parede, a sua imagem
em vossa mente — isso não é amor, é só memória. Assim como o
amor é o desconhecido, assim também a morte é o desconhecido.
E para ingressarmos no desconhecido — que é a morte e o amor
— precisamos, primeiramente, morrer para o conhecido. Só então
a mente está nova, jovem, “inocente”; e nela não existe a morte.
Se vos observardes, assim como vos mirais num espelho,
vereis que nada mais sois que um feixe de lembranças, não é ver-
dade? E todas essas lembranças pertencem ao passado; são coisas
passadas e acabadas, não é mesmo? Assim, não se pode morrer
para tudo isso, instantaneamente? Tal é possível, mas exige muita
investigação de si mesmo, percebimento de cada pensamento,
cada gesto, cada palavra, para que não haja acumulação. Por cer-
to, isso se pode fazer. Pode-se então saber o que significa morrer
todos os dias; e talvez saibamos então o que é amar todos os dias,
e, não, conhecer o amor apenas como lembrança. Tudo o que
agora conhecemos é só fumo — o fumo do apego, do ciúme, da
inveja, da ambição, da avidez, etc. Não conhecemos a chama que
está a arder por trás da fumaça. Mas, se pudermos dissipar com-
pletamente o fumo, descobriremos então que viver e morrer são
a mesma coisa, não teoricamente, mas de fato. Afinal de contas,
tudo o que continua, que não chega a um fim, não é criador. O
que tem continuidade nunca pode ser novo. Só na destruição da
continuidade encontra-se o novo. Não me estou referindo à des-
truição social ou econômica, que é muito superficial. E se pene-
trardes isso bem fundo, não apenas no nível consciente, mas ain-

243
da nas profundezas existentes além dos limites do tempo, além da
consciência — a qual está sempre contida na estrutura do pensa-
mento — descobrireis então que morrer é uma coisa extraordiná-
ria. O morrer é, então, criação. Não é criação escrever poemas,
pintar quadros, inventar novidades mecânicas. A criação só pode
vir depois de morrermos para todas as técnicas, todo o saber,
todas as palavras.
A morte, pois, como a concebemos, é medo. E quando
não existe medo, porque estamos acolhendo a morte a cada mi-
nuto, então cada minuto é uma coisa nova; ele é novo porque,
interiormente, “o velho” foi destruído. E para destruir não deve
haver medo, porém, tão só, o sentimento de completa solidão; a
possibilidade de estar completamente só, sem Deus, sem família,
sem nome, sem tempo. Mas isso não significa desespero. A morte
não é desespero. Pelo contrário, ela é viver cada minuto comple-
tamente, totalmente, sem as limitações do pensamento. Desco-
bre-se então que a vida é morte, e que a morte é criação e amor.
A morte, que é destruição, é criação e amor; essas três coisas es-
tão sempre juntas, são inseparáveis. Ao artista só preocupa a ex-
pressão, coisa muito superficial, e ele não é criador. A criação não
é expressão, transcende o pensamento e o sentimento, é livre da
técnica, livre da palavra e da cor. E essa criação é amor.
Pergunta: Como poderão viver as futuras gerações, se o
indivíduo morrer a cada minuto?
Krishnamurti: Parece-me, se permitis dizê-lo, que enten-
destes mal. Preocupa-vos realmente o que irá acontecer às gera-
ções vindouras? O amor é incompatível com o gerar filhos? Sabeis
o que significa amar realmente alguém? Não me refiro à concu-
piscência. Nem à identificação completa, de um com outro, em
que a pessoa se sente arrebatada, enlevada. Isso é relativamente
fácil quando somos impelidos pela emoção. Não é disso que estou
falando. Refiro-me àquela chama que existe quando vós e o outro
finais completamente. Mas parece que mui poucos de vós tendes
conhecido esse estado; muito poucos de vós tendes findado, ain-

244
da que por um momento. Se sabeis realmente o que isso significa,
não há questão nenhuma relativa às gerações futuras. Em verda-
de, se as ulteriores gerações vos preocupassem realmente, teríeis
escolas diferentes, uma espécie de educação completamente
diversa, sem emulação e sem todas as outras coisas que tolhem.
[...] PERGUNTA: Como podem as pessoas, inclusive eu
próprio, ter esse amor da realidade?
Krishnamurti: Vós não o podeis ter, senhor; não o podeis
comprar. Para os que não conhecem o amor, não há sacrifício ou
barganha que o traga. Como se obtém o amor? Por meio de exer-
cício, de esforço, da ordem de amar, dia após dia, ano após ano?
A simples amabilidade não é amor; mas o amor inclui a amabili-
dade, a delicadeza, a consideração para com outro. Vede, o amor
não é um resultado final; e no amor não há apego. Só vem o amor
quando não há medo. Um homem pode ser casado, viver com sua
família, e amar sem apego. Mas isso é incrivelmente difícil; requer
vigilância de todas as horas.
[...] A MENTE RELIGIOSA É DESTRUTRIVA e, por ser des-
trutiva, é criadora. Criação é destruição.
E não há criação quando não há amor. Para nós, o amor é
uma coisa estranha. Vós dividistes o amor em paixão, concupis-
cência, amor carnal e amor divino, amor da família, amor da pá-
tria, e continuais por aí além a dividi-lo e tornar a dividir. E na
divisão, há contradição, conflito e sofrimento.
O amor, para a maioria de nós, é paixão, concupiscência; e
neste próprio processo de identificação com outro há contradição,
conflito, e o começo do sofrimento. E, para nós, o amor se extin-
gue. O fumo (criado por esse processo) — o ciúme, o ódio, a inve-
ja, a avidez — destrói a chama. Mas onde está o amor, aí está a
beleza e a paixão. Deveis ter paixão, mas não traduzais pronta-
mente esta palavra em “paixão sexual”. Por “paixão” entendo a
“paixão da intensidade”, essa energia que de pronto percebe as
coisas, claramente, ardentemente. Sem paixão, não há austerida-

245
de. A austeridade não é mera renúncia, nem o possuir restrito, ou
autocontrole, pois tudo isso é sem importância, insignificante. A
austeridade vem com o desprendimento, e no desprendimento,
há paixão e, por conseguinte, beleza. Não a beleza criada pelo
homem; não a beleza artística, embora eu não queira dizer que aí
não haja beleza. Mas refiro-me a uma beleza que transcende o
pensamento e o sentimento. E esta só pode surgir quando há alta
sensibilidade intelectual, bem como corpórea e mental. E não
pode haver sensibilidade dessa natureza e qualidade quando não
há completo desprendimento, quando o intelecto não se está
abandonando inteiramente à totalidade daquilo que a mente per-
cebe. Porque só com esse abandono há paixão.
Diário de Krishnamurti

[...] PERGUNTA: O Amor e a Verdade não são uma só e a


mesma coisa?
Krishnamurti: O Amor e a Verdade são uma só e a mesma
coisa? Como sabeis, devemos desconfiar de todas as semelhanças
— mas existem semelhanças. Considere-se a palavra “amor”. O
general que se prepara para matar, que está planejando matan-
ças, fala de seu amor à Pátria, seu amor à esposa e filhos, e até de
seu amor a Deus. Os políticos fazem o mesmo: falam de “voz inte-
rior”, de Deus, de amor. Como se descobre o que é o amor, o que
é a Verdade? Não se trata de saber se são semelhantes ou desse-
melhantes, mas, sim, de saber o que é amar, o que isso significa.
Já não nos sobra tempo para entrarmos a pleno nesta questão.
Para se descobrir o que é o amor, necessita-se de sensibilidade.
Para a maioria de nós, amor é sexo, desejo. Por causa da tradição,
por causa das sucessivas “ondas” de santos que têm percorrido
este pobre e desafortunado país, o amor desapareceu. Pregam o
amor divino, o amor humano; entretanto, são homens terrivel-
mente duros, totalmente insensíveis — eles, os santos que vene-
246
rais. Nega-se a Beleza: Não olhes para uma árvore, não olhes para
uma mulher; foge dela, trata-a como a um leproso, ou manda-lhe
rapar a cabeça. De quantas tretas somos capazes, quando somos
insensíveis! Dessa forma, precisamos ser sensíveis, pois então
saberemos o que é o amor. Para ser deveras sensível, impende
romper com o passado, libertar-se de todos os heróis e santos.
Digo-o seriamente. Se os seguis, estais imitando; e a mente imita-
dora não é sensível. Pergunto-me a mim mesmo, esgotada esta
hora de palestra e de respostas, que efeito terá ela produzido em
vossa mente — não de maneira teórica ou ideológica, porém re-
almente. Tornastes-vos mais sensíveis?
Aquela jovem diz que está com a mente sobremodo per-
turbada. Muito folgo com isso. Deixai-vos ficar perturbada para o
resto da vida. A perturbação é apenas o começo. Mas que efeito
real tem isso — estar perturbado? Só os jovens são suscetíveis de
perturbar-se. Os velhos não se perturbam, pois já se acham por
demais “comprometidos”; têm seu puja, seus santos, seus deuses,
seus “caminhos da salvação”, seus métodos de salvar a sociedade,
etc. Estão “comprometidos”, tão cheios de deveres e obrigações
que não há mais lugar para o amor.
[...] O MUNDO NECESSITA de entes humanos que não es-
tejam mecanizados. O mundo necessita de homens que tenham
verdadeiramente adquirido um novo intelecto, uma mente nova.
Há milhares de entes mecanizados, mas, por certo, torna-se ne-
cessária uma mente nova para resolver os inumeráveis problemas
existentes no mundo, problemas que se multiplicam e crescem
continuamente. Nessas condições, se assim me posso expressar,
averiguai se a casa está sendo demolida, ou se apenas a estais
reformando.
[...] PERGUNTA: O amor é um sentimento?
Krishnamurti: Pergunta esse cavalheiro: O Amor é um
sentimento? Que é sentimento? O sentimento é como o pensa-
mento. Sentimento é sensação. Vejo uma flor e “reajo” a essa flor:
gosto ou não gosto dela. O “gosto” ou o “não gosto” é ditado por

247
meu pensamento, e o pensamento é reação do fundo de memó-
ria. Assim, digo: “Gosto daquela flor” ou “Não gosto daquela flor”;
“Gosto deste sentimento” ou “Não gosto daquele sentimento”.
Ora, o amor está em relação com o sentimento? Qual é vossa
resposta? Vede o que minha pergunta significa. Escutai-a! O amor
é um sentimento? Sentimento é sensação, evidentemente — sen-
sação de gosto e desgosto, de bom e de mau, de sabor agradável,
etc. Esse sentimento está relacionado com o amor? Eis a questão.
E que significa para vós o amor?
Associais o amor à mulher ou ao homem, associais o amor
ao sexo? Vós o fazeis, por certo, porque negaste a beleza; todos
os vossos santos negaram a beleza. E a beleza está associada à
mulher. Assim, dissestes: “Fora com o sentimento!” — e ficastes
cultivando uma personalidade áspera, um “eu” rude, negador da
beleza. Já observastes a rua em que morais, a maneira como vi-
veis em vossas casas, vossa maneira de sentar, vossa maneira de
falar? E, também, já observastes os santos que cultuais? Para eles,
paixão significa “sexo”, portanto negam a paixão, negam a beleza
— “negam-nas” neste sentido: afastam-nas para o lado. Assim,
junto com a sensação, jogastes fora o amor, porque, dizeis: “A
sensação fará de mim um prisioneiro, um escravo do desejo sexu-
al; por conseguinte, tenho de extirpá-la”. Dessa maneira, tornas-
tes o sexo um problema imenso. O sexo é problema para todos
vós; e todos os vossos deuses, aos quais desejais unir-vos, vos
mandam ser sem sentimento, nunca olhar para uma mulher, nun-
ca olhar para um homem, nunca olhar para uma árvore, para o
rio, para as belezas da Terra. Bem, o amor é um sentimento? De-
pois de compreenderdes o sentimento, completa e não parcial-
mente, depois de o compreenderdes realmente, em sua totalida-
de, sabereis o que é o amor. Quando puderdes ver a beleza da
árvore, quando puderdes ver a beleza de um sorriso, quando pu-
derdes ver o Sol a deitar-se atrás dos muros da cidade — ver to-
talmente — sabereis então o que é o amor.
[...] A MENTE AFLITA NÃO TEM AMOR. Poderá ter com-
paixão, mostrar-se bondosa e terna para com outros; mas, ela não

248
tem amor porque só está interessada em si própria e porque tem
o problema do penar. Só quando a mente não sofre pode haver
amor. Estando dominada pelo sofrimento, não importa o que ela
faça, não há amor — não o amor de Deus e o amor das ideias;
nada disso é amor, é só ideação, sem nenhum significado. O amor
não é abstração. Ele é vitalidade extraordinária, espantosa ener-
gia, de excepcional profundeza, a qual vem ao compreendermos o
sofrer.
[...] A INVEJA TEM DE CESSAR completamente, totalmen-
te. Também a ambição tem de cessar por inteiro, porque o ho-
mem ambicioso não tem amor. Aqueles que, impelidos pela ambi-
ção, buscam posição, prestígio, poder, não têm amor, ainda que
falem de paz e de fraternidade. Poderão ter compaixão, piedade,
capacidade organizadora para a ação social; mas, amor não têm.
A pessoa invejosa, que compara, que deseja, que busca
poder, posição, autoridade, não tem amor. Pode-se ler a respeito
do amor no Gita, nos Upanishads e outros livros; mas o amor não
vem por meio dos livros. Só vem o amor se deixastes de ser inve-
joso, ambicioso, se já não buscais o poder, se já não sois escravo
da moralidade social. À moralidade social só uma coisa interessa:
o sexo. Não interessa à sociedade a compreensão da avidez, da
ambição, da inveja, nem a razão por que seguimos isto ou aquilo.
[...] A MORTE, O AMOR E A BELEZA, andam sempre jun-
tos. Essa coisa que chamamos amor não é o amor; é mera memó-
ria. O que amais é o vosso interesse pessoal. Vossa família é a
continuidade de vós mesmo; vossa família é vossa pertença. E,
bem o sabeis, quando morreis, acabou-se a família; nada mais
existe.
[...] Para nós, a beleza é uma coisa construída pela mente.
Para nós, beleza é a mulher ou o homem, é assistência social, é
um edifício, um quadro, uma peça de cerâmica, ou uma ideia. Mas
há uma beleza que transcende o pensamento e o sentimento, que
não é construída pela mente. E essa beleza é o amor. Sem esse
amor, a vida se torna inteiramente vazia — como o é a vida da

249
maioria das pessoas; embora tenham famílias, embora tenham
virtudes, embora tenham empregos, sua vida é vulgar, superficial,
vazia.
Mas, quando tiverdes morrido para tudo, psicologicamen-
te, quando tiverdes alcançado esse ponto, vereis que do morrer
surge um viver — um viver que não tem significação, comparado
com o presente viver. Esse viver é o estado de criação, e essa cria-
ção não conhece o tempo. É o imenso, o imensurável, o incognos-
cível. E só a mente que morreu para si própria e para todas as
coisas conhecidas conhecerá o Incognoscível.
[...] JÁ ALGUMA VEZ EXAMINASTES a questão da depen-
dência psicológica? Se a tiverdes examinado a fundo, deveis saber
que a maioria de nós está terrivelmente só. Em regra temos a
mente tão superficial, tão vazia! De ordinário, não sabemos o que
significa o amor. E, assim, por causa dessa solidão, dessa insufici-
ência, dessa privação de vida, estamos ligados a alguma coisa,
estamos apegados à família; dela dependemos. E quando o mari-
do ou a esposa vos volta às costas, tornamo-nos ciumentos. Ciú-
me não é amor; mas o amor que a sociedade reconhece, na famí-
lia, é considerado respeitável. Essa é uma outra forma de defesa,
uma outra forma de fuga a nós mesmos. Como vemos, toda forma
de resistência cria dependência. A mente dependente nunca pode
ser livre.
[...] A AUTORIDADE E O AMOR nunca poderão coexistir, e
tampouco podem coexistir o apego e o amor. Mas, vós sois ape-
gados — não sois? — a vossas famílias, vossas ideias, vossos gu-
rus, vossas visões, vossos rituais, vosso dinheiro. E ainda falais de
amor! Para vós, amor é segurança. E como pode a mente que
impõe a obediência, que está ensinando todo mundo a ajustar-se,
que só se mostra empenhada na aquisição de conhecimentos
mundanos, técnicos — como pode essa mente amar? O que dese-
jais é só segurança, para vós mesmos e para vossos filhos. Só nisso
estais interessados, e em levá-los a ajustar-se. Ora, amor não é
apego. O amor nenhum motivo tem; e o amor é árduo, exige tra-

250
balho ingente, trabalho psicológico — e não que fiqueis sentado à
sombra de uma árvore, ou que pratiqueis ritos ou disciplinas. Isso
não é trabalho, é falta de madureza, pura infantilidade.
Mas, para vos investigardes profundamente, tereis de le-
var vossa investigação até o fim. E, então, dessa liberdade, surgirá
o amor. Mas, vede, a maioria de nós se satisfaz com amar superfi-
cialmente; em geral nos satisfazemos com ganhar nosso sustento,
se conseguimos um modesto emprego, onde nos deixamos estio-
lar. Em geral, estamos satisfeitos com nossa conta bancária, se
somos ricos; e gostamos de tagarelar a respeito de Deus, rituais,
etc. etc.
Mas nossos corações estão vazios, tornaram-se vazios sob
a influência de uma mente embotada, estúpida, que só pensa em
termos de autoridade e obediência. Assim, a destruição da estru-
tura da sociedade, que é vosso cérebro, que sois vós, é uma abso-
luta necessidade para o homem verdadeiramente interessado em
descobrir o imensurável, em descobrir se existe essa coisa chama-
da “O Imensurável”.
Desse modo, a autoridade, que engendra o poder, é coisa
má. O homem poderoso, o homem de posição, de prestígio, é tão
terrível e tão venenoso como uma serpente; a mente religiosa
nada tem que ver com tais pessoas. Nenhum homem rico chegará
a saber o que é o amor, enquanto o dinheiro for o seu Deus. Neste
país, infelizmente, os poderosos, os ricos, estão moldando as
mentes dos demais. Ninguém trata de libertar-se dessa estrutura.
Tornaram-se todos “conformistas”, todos dizem “sim”, ninguém
diz “não”. E o dizer “não” não é revolta, porém compreensão psi-
cológica de toda a estrutura da atual sociedade.
O homem, pois, que deseja ser livre, que deseja compre-
ender o Real, tem de libertar-se da estrutura psicológica da socie-
dade; esta é a primeira coisa que tem de fazer — e, não praticar
ritos, frequentar igrejas, etc. — coisas que perderam todo o valor
e nas quais não se pode confiar.

251
Deveis estar completamente só. Há beleza neste estar só,
que é amor.
Só nessa solitude se encontra a possibilidade de descobrir
o indenominável, o imensurável.
[...] O AMOR REQUER UMA MENTE LIVRE, uma mente
imaculada. Mas nossa mente não é imaculada. Nós não somos
livres, não sabemos o que significa o amor. Sabemos o que signifi-
ca concupiscência, sabemos o que significa o apego “possessivo” à
família; mas isso não é amor. E quando a mente está cheia de
problemas, dilacerada por tantos “casos” não resolvidos — nunca
poderá amar. Nossos sentimentos estão mortos. E foram os pro-
blemas que mataram toda a nossa beleza, que esmagaram nossas
reações instintivas, naturais, espontâneas, a “presteza” de nosso
coração.
[...] SEM HUMILDADE, NÃO HÁ AMOR, e o amor não é
uma coisa que tem raízes na mente, raízes no pensamento. Assim,
só desse extraordinário sentimento de humildade resulta o senti-
mento de exatidão compassiva, e a clareza da mente. É só então
que o medo deixa de existir. E quando o medo deixa de existir,
quando o medo finda, não há mais sofrimento.
[...] IMPORTA COMPREENDER A BELEZA. A mente que
não é bela, que não se encanta com uma árvore, uma flor, um
belo rosto, um sorriso; que não se detém à beira do mar a con-
templar as vagas inquietas; que não tem nenhum senso de beleza
— essa mente nunca, descobrirá o amor, a verdade. Essa beleza
vos foi negada porque ela exige paixão, exige toda a vossa ener-
gia, requer atenção completa, não dividida; e essa atenção com-
pleta, não dividida, é negação, um estado de negação.
[...]A beleza não está no rosto, por mais delicados que se-
jam os seus traços. Não é produto da atividade humana. Nem
resulta do pensamento, do sentimento. Beleza é aquela comu-
nhão com todas as coisas, sem reação alguma, comunhão com o

252
feio e com o chamado “belo”. Essa comunhão sai do nada; nesse
estado há aquela beleza que é Amor.
[...] VEDE, NÓS NÃO AMAMOS. Só vem o amor quando
nada mais resta, depois de negardes completamente o mundo —
não essa coisa enorme chamada “o mundo”: o pequeno mundo
em que viveis — a família, o apego, as disputas, o domínio, vossos
êxitos, vossas esperanças, vossos “pecados”, vossas obediências,
vossos deuses e vossos mitos. Quando negais esse mundo intei-
ramente, quando nada mais resta de vossos deuses, esperanças,
desesperos; quando nada mais buscais — então, desse grande
vazio, surge o Amor, que é uma singular realidade, um fato extra-
ordinário não provocado pela mente que tem “continuidade”
mediante a família, o sexo, o desejo.
E, se vos falta o amor — que, na realidade, é o “desconhe-
cido” — não importa o que façais, o mundo permanecerá no caos.
Só com a total negação do “conhecido” — o que sabeis, vossas
experiências, vosso conhecimento (não vosso conhecimento téc-
nico, porém o conhecimento de vossas ambições, de vossas expe-
riências, de vossa família), só quando tiverdes negado totalmente
o “conhecido”, o tiverdes apagado de todo, “morrido” para ele,
vereis que restará um vazio extraordinário, um extraordinário
espaço em vossa mente. Apenas nesse espaço sabemos o que é
amar. Nele apenas é possível a criação — não a criação consisten-
te em gerar filhos ou em espalhar tintas sobre uma tela: aquela
Criação que é a energia total, o Incognoscível. Mas, para a alcan-
çardes, deveis morrer para tudo o que conheceis. Nesse morrer há
grande beleza, inesgotável e vital energia.
[...] PARA A MENTE RELIGIOSA é o amor que integra toda
ação. Porque vê cada verdade, momento por momento, a mente
religiosa possui aquela qualidade de amor que integra a ação. Não
sei se alguma vez já amastes alguém, se amastes com todo o vos-
so ser, com vosso coração, vossa mente, vosso corpo, vosso pen-
samento, vosso sentimento, com tudo o que tendes. Se já amas-
tes tão completa e totalmente, sabereis, então, em virtude desse

253
estado, que em cada ação — qualquer que ela seja, nenhum con-
flito há, nenhum problema. Cada ação é integral, não provém de
ideia alguma, não se adapta a nenhum princípio vosso. Porque só
a mente religiosa compreende a totalidade da existência, que tão
terrivelmente temos fracionado. Só a mente religiosa possui essa
qualidade de amor e, por conseguinte, pode viver neste mundo.
E o amor é que é capaz de destruição. Vós deveis destruir
— destruir a sociedade; mas isso não significa destruir edifícios,
jogar bombas sobre governantes e políticos; estes têm seu próprio
destino: deixai-os nas mãos dele. Mas a destruição, a destruição
psicológica de tudo o que a sociedade fez de vós, essa é necessá-
ria. E só podeis destruir completamente quando existe a qualida-
de da compaixão. Só se torna existente a compaixão com a total
compreensão da vida. Sem essa compreensão, podeis ser muito
atenciosos, muito bondosos, muito delicados; mas, delicadeza,
gentileza, bondade, não é amor; faz parte do amor, mas não é o
amor. Não tem amor a mente que não é atenta, que não olha
para si mesma e para o meio em que vive. O amor não é uma pa-
lavra, porém um estado real. Se não há amor, não podeis destruir;
só podeis tornar-vos um reformador.
O amor e a destruição estão sempre unidos, e essa união
é criação. Estas três coisas — criação, findar ou morrer, e amor —
estão sempre unidas, são inseparáveis. Essa criação — que não
significa pintar quadros ou gerar filhos — é energia sem motivo.
Essa morte está fora do tempo. E com ela vem o amor. — Só en-
tão se pode ver o que existe além do tempo, além de todo o pen-
samento. Só então é a mente capaz de ver, “num relâmpago”,
aquilo a que se não pode dar nome. E há, então, o Eterno que não
é invenção da mente, invenção do Gita, da Bíblia. Tendes de pôr
de parte todos os livros, todas as ideias, todos os ideais, todas as
tradições; ficar completamente nu, vazio, sozinho. Só então se
pode ver aquela Realidade.
A mutaçã o Interior


254
[...] O AMOR É O OPOSTO DO ÓDIO? E o amor é emoção,
sensação, sentimento prolongado pela memória? Sabemos o que
significa amar? Sabemos realmente? Falamos de “amar a Deus”,
amar nossas esposas, nossos maridos, dizemos que amamos nos-
sos animais; e em cartazes de propaganda lê-se: “Lovely bear”.
Isso é amor? Amamos realmente nossas famílias? Coisa extraordi-
nária, a família! A família se tornou uma coisa terrível, porque lhe
ficamos apegados, nela “empatamos dinheiro”, por ela nos sacrifi-
camos e damos continuidade a nós mesmos através do nome da
família; ela somos “nós mesmos”, prolongados e perpetuados.
Mas, podemos ter família sem nenhuma dessas complicações e
fealdade.
Ora, que entendemos por amor? O amor, por certo, não é
memória. Isso nos é muito difícil de compreender, porque para a
maioria o amor é memória. Quando dizeis que amais vossa esposa
ou marido, que quereis dizer com isso? Amais o que vos dá pra-
zer? Amais aquilo com que vos identificastes e que reconheceis
como coisa que vos pertence? Notai, por favor, que tudo isso são
fatos, e que nada estou inventando; portanto, não vos mostreis
horrorizados.
Ao dizermos que amamos, que significa isso? O amor é
questão de tempo? Pode o amor existir se há apego, ou se possuís
outra pessoa? Quando dizeis: “Ela é minha mulher”, “Ele é meu
marido” — existe amor nessas relações? Existe amor quando sois
ciumento? O sentir-vos só, infeliz, agoniado, porque vossa esposa
ou marido vos abandonou, isso é amor? E é amor a Deus o “ouvir
missa” todos os dias ou uma vez por semana e executar todas as
devoções correspondentes?
Para amar uma coisa é preciso “estar com ela” completa-
mente, vosso coração, vossa mente, todo o vosso ser deve “estar
com ela”, de modo que não haja “observador e coisa observada”.
Isso não significa identificação, que é simplesmente um artifício.
Quando vos identificais com vossa família, isso não é amor, abso-

255
lutamente. É o “prolongamento” de vós mesmo que estais aman-
do.
É a imagem, o símbolo de “minha mulher” ou “meu mari-
do” que amamos ou julgamos amar, e não o ser vivente. Não co-
nheço minha mulher ou meu marido, absolutamente, e nunca
conhecerei essa pessoa enquanto conhecimento significar reco-
nhecimento. Porque o reconhecimento baseia-se na memória —
memória de prazer e de dor, memória das coisas para as quais
tenho vivido, pelas quais tenho sofrido agonias, das coisas que
possuo e a que estou apegado. Como posso amar quando há me-
do, sofrimento, isolamento, a sombra do desespero? Como pode
um homem ambicioso amar? E todos somos muito ambiciosos,
ainda que honradamente...
Assim, para se descobrir realmente o que é o amor, de-
vemos morrer para o passado, para todas as nossas emoções,
boas e más — morrer sem esforço, assim como “morreríamos”
para uma coisa venenosa, uma vez compreendida.
[...] O APEGO, EVIDENTEMENTE, NÃO É AMOR. Tendes
apego a vossa esposa ou a vosso marido. Por quê? Em primeiro
lugar, porque vos sentis só e encontrais prazer na companhia de
outrem; isso vos dá alegria, conforto, sentimento de segurança,
etc. Porque lhe tendes apego, dizeis que amais a pessoa; e se a
pessoa se vira para outro, sentis ciúme, inveja, sofreis. O amor
causa sofrimento?
Assim, para estarmos conscientes de nosso apego e para
ele morrermos, precisamos de treino? Dizeis que sim, porque não
desejais abandonar vosso apego e pensais que podeis libertar-vos
dele gradualmente.
[...] Eu digo que apego não é amor; e que, para poderdes
descobrir o que é o amor, deveis morrer para o apego. Isso requer
treino? Precisais cursar um sistema de disciplina para morrerdes
para o apego? Psicologicamente, o descobrir porque credes em
certas coisas e, depois desse descobrimento, olhar para essa cren-

256
ça, morrer para ela — isso requer treino? Precisais submeter-vos a
várias formas de treino para descobrirdes o que é o amor?
[...] O MEDO, O SOFRIMENTO e aquilo que chamamos
amor andam sempre juntos. Se não compreendemos o medo, não
podemos compreender o sofrimento, nem tampouco conhecer
aquele estado de amor isento de contradição e atrito. Extinguir o
sofrimento é dificílimo, porque o sofrimento está sempre conos-
co, numa ou noutra forma. Desejo, pois, aprofundar este proble-
ma; mas pouco significarão minhas palavras se cada um de nós
não examinar o problema dentro de si próprio, sem concordar
nem discordar, porém simplesmente observando o fato. Se o pu-
dermos fazer, realmente e não apenas teoricamente, então talvez
nos seja possível compreender o imenso significado do sofrimento
e, dessa maneira, pôr-lhe fim.
Através dos séculos o amor e o sofrimento sempre anda-
ram de mãos dadas, predominando ora um, ora outro. Aquele
estado a que chamamos “amor” depressa passa e de novo nos
vemos enredados em nossos ciúmes, nossas vaidades, nossos
temores, nossas angústias. Sempre houve essa batalha entre o
amor e o sofrimento; e, antes de examinar a questão de pôr fim
ao sofrimento, impende compreender o que é paixão.
[...] Ora, a menos que compreendamos a paixão, acho que
não seremos capazes de compreender o sofrimento. A paixão é
algo que mui poucos de nós realmente já experimentaram. Pode-
remos ter experimentado entusiasmo, que significa envolver-se
completamente num estado emocional a respeito de alguma coi-
sa. Nossa paixão é sempre por alguma coisa: pela música, pela
pintura, pela literatura, por um país, por uma mulher ou um ho-
mem; é sempre o efeito de uma causa. Quando vos apaixonais por
alguém, sempre ficais num estado de grande emoção, o qual é o
efeito daquela causa; e a paixão de que falo é paixão sem causa. É
estar apaixonado por tudo, e não simplesmente por uma certa
coisa; nós em geral nos apaixonamos por uma certa pessoa ou
coisa; e acho necessário perceber claramente esta distinção.

257
No estado de “paixão sem causa” há uma intensidade livre
de todo apego; mas, quando a paixão tem causa, há apego, e ape-
go é o começo do sofrimento. Em geral, temos apego — a uma
pessoa, um país, uma crença, uma ideia — e quando o objeto de
nosso apego nos é retirado ou, ainda, quando perde o seu signifi-
cado, vemo-nos vazios, incompletos. Esse vazio nós procuramos
preenchê-lo apegando-nos a outra coisa, a qual por sua vez se
torna o objeto de nossa paixão.
[...] Quando a paixão tem causa, torna-se luxúria. Quando
há paixão por alguma coisa — por uma pessoa, por uma ideia, por
uma certa espécie de preenchimento — então, dessa paixão re-
sulta contradição, conflito, esforço. Lutais para alcançar ou para
conservar um certo estado, ou para recuperar outro estado que
existiu e se foi. Mas a paixão a que me refiro não dá nascimento à
contradição, ao conflito. Não está em relação com nenhuma causa
e, por conseguinte, não é um efeito.
[...] Há, na maioria de nós, pouquíssima paixão. Podemos
ser lascivos, podemos estar ansiando por alguma coisa, desejando
fugir de alguma coisa, e tudo isso nos confere uma certa intensi-
dade. Mas, se não estamos despertos e não buscamos acesso a
essa chama da “paixão sem causa”, nunca seremos capazes de
compreender aquilo que chamamos sofrimento. Para compreen-
der algo precisamos de paixão, da intensidade da atenção comple-
ta. Onde há paixão por alguma coisa, a qual produz contradição,
conflito, não pode existir aquela chama pura da paixão; e aquela
chama pura da paixão precisa existir, para que possamos pôr fim
ao sofrimento, dissipá-lo completamente.
[...] Ora, nós nunca enfrentamos o próprio sofrimento;
sempre tratamos de racionalizá-lo, explicá-lo; ou temos um dog-
ma, um padrão de crença que nos satisfaz, que nos dá momentâ-
neo conforto. Alguns tomam uma certa droga, outros dão para
beber ou para rezar — qualquer coisa que sirva para diminuir a
intensidade, a agonia do sofrimento. O sofrimento e a perpétua
luta para fugirmos dele — eis o fado de todos nós. Jamais pensa-

258
mos em extingui-lo, de modo que a mente nunca se prenda na
rede da autocompaixão, nunca se veja nas sombras do desespero.
Não encontrando possibilidade de terminar o sofrimento, passa-
mos, se somos cristãos, a divinizá-lo, em nossas igrejas, simboliza-
do nas agonias do Cristo. E, se vamos à igreja para adorar o símbo-
lo do sofrimento, ou se tentamos racionalizá-lo ou esquecê-lo
tomando uma bebida — tudo é a mesma coisa: estamos fugindo à
realidade de que sofremos. Não me refiro à dor física, que a ciên-
cia moderna pode debelar com relativa facilidade. Refiro-me à de
natureza psicológica, que impede a clareza, a beleza, que destrói o
amor e a compaixão. É possível eliminar o sofrimento?
Acho que essa eliminação depende da intensidade da pai-
xão. Só pode haver paixão quando há total abandono do “eu” .
Nunca poderá uma pessoa “apaixonar-se” se não houver a com-
pleta ausência disso que chamamos “pensamento”. Como já vi-
mos, o que chamamos pensamento é a reação de vários padrões e
experiências da memória, e onde existe essa reação condicionada,
não há paixão, não há intensidade. Só pode haver intensidade
com a completa ausência do “eu”.
Há um sentimento da beleza que não está ligado ao que é
belo e ao que é feio. Não quero dizer que a montanha não seja
bela ou que não haja edifícios feios; mas há uma beleza que não é
o oposto do feio, há um amor que não é o contrário do ódio. E a
renúncia de que falo é aquele estado de beleza sem causa, o qual,
por essa razão, é um estado de paixão. E pode-se transcender o
que resulta de causa?
[...] Que é sofrimento? Ao ouvirdes esta pergunta, como
respondeis? Vossa mente trata logo de explicar porque sofremos,
e essa busca de explicação desperta lembranças de passadas afli-
ções. Dessa maneira, reverteis sempre, verbalmente, ao passado
ou saltais para o futuro, num esforço para explicar a causa do
efeito que chamamos sofrimento. Julgo, porém, que devemos
ultrapassar tudo isso.

259
Bem sabemos o que nos faz pensar: pobreza, doença,
frustração, não ser amado, etc. E, quando terminamos de explicar
as várias causas do sofrimento, não lhe pusemos fim; não apreen-
demos realmente a extraordinária profundeza e significação do
sofrimento, e muito menos compreendemos aquele estado que se
chama amor. A meu ver, as duas coisas se relacionam mutuamen-
te — o sofrer e o amor. E, para compreendermos o que é o amor,
precisamos sentir a imensidade do sofrimento.
Os antigos falavam a respeito da terminação do sofrimen-
to, tendo estabelecido um método de viver com que supunham
extingui-lo. Muitos têm praticado esse “método de viver”. Mon-
ges do Oriente e do Ocidente o têm praticado, apenas com o re-
sultado de terem endurecido a si próprios; a mente e o coração
deles se fecharam. Vivem atrás das paredes de seu próprio pen-
samento ou atrás de paredes de tijolo e pedra, mas, realmente, eu
não creio que eles tenham “passado além”, para sentir a imensi-
dade dessa coisa que se chama sofrimento.
Deixar de sofrer é enfrentar o fato de nossa própria soli-
dão, de nosso apego, de nossas vulgares exigências de fama, nos-
sa ânsia de sermos amados; é estar livre do interesse egocêntrico
e da puerilidade da autocompaixão. E, depois de isso ultrapassar-
mos, e, talvez, de superarmos o sofrimento pessoal, resta ainda o
imenso sofrer coletivo, o sofrer do mundo. Uma pessoa pode pôr
fim à própria amargura, enfrentando em si mesma o fato e a cau-
sa do sofrimento — e isso deve ocorrer à mente que deseja ser
completamente livre. Mas, uma vez terminado isso, há ainda o
sofrimento oriundo da ignorância existente no mundo — ignorân-
cia que não é falta de instrução, de conhecimentos tirados dos
livros, porém a ignorância que o homem tem de si próprio. A falta
de autocompreensão é a essência da ignorância, causadora do
imenso penar da humanidade. E que significa, em verdade, so-
frer?
As palavras não podem definir o sofrimento, assim como é
impossível explicar verbalmente o que é o amor. O amor não é

260
apego, o amor não é o oposto do ódio, o amor não é ciúme. E
quando uma pessoa acabou com o ciúme, com a inveja, com o
apego, com todos os conflitos e agonias que sofreu, pensando
amar — quando tudo isso terminou, resta ainda saber o que é o
amor, resta ainda saber o que é o sofrimento.
Só se pode descobrir o que é o amor e o que é o sofrimen-
to quando a mente rejeitou todas as explicações e já não está
imaginando, já não está buscando a causa, já não se está entre-
tendo com palavras ou rememorando prazeres e dores passados.
A mente deve achar-se completamente quieta, sem uma só pala-
vra, um único símbolo, uma única ideia. Descobre-se então — ou
ele virá por si — o estado em que aquilo que chamávamos amor,
aquilo que chamávamos sofrimento, aquilo que chamávamos
morte, são a mesma coisa. Já não haverá divisão entre o amor, o
sofrimento e a morte; e, não havendo divisão, haverá beleza. Mas,
para compreendermos, para nos acharmos nesse estado de êx-
tase, necessita-se daquela paixão resultante do total abandono do
“eu”.
[...] PERGUNTA: Dissestes que o sofrimento é uma coisa
bela e, no entanto, dizeis que devemos livrar-nos do sofrimento.
KRISHNAMURTI: Eu nunca disse que devemos livrar-nos
do sofrimento. O que eu sempre acentuei é que devemos olhar o
sofrimento, penetrá-lo, compreendê-lo. Não podeis livrar-vos
dele, não podeis “jogá-lo fora”. Quando é que sofremos? Se amais
alguém e essa pessoa não corresponde ao vosso amor, sofreis. Por
quê? Por que deveis sofrer? Que significa o vosso sofrer? Significa
que estais pensando em vossa própria pessoa — eis o fato real. E
enquanto só pensardes em vossa insignificante pessoa, desejando
ser amado e temendo não ser amado — com todos os desagrados
que isso implica — naturalmente tereis de ter isso a que chamais
“sofrimento”. De modo idêntico, se desejo ser um homem famo-
so, e não o sou, sofro, inevitavelmente; e se me satisfaz permane-
cer nesse estado, então está certo. Mas, se desejo compreender
meu sofrimento e transcendê-lo, começo então a olhá-lo; exami-

261
no rigorosamente o impulso psicológico para ser famoso, o qual é
extremamente superficial, imaturo! — e vem então uma compre-
ensão do sofrimento, a qual é o começo de sua própria extinção.
E, como disse, depois de transcender essa amargura, descubro
que o amor, a aflição e a morte são a mesma coisa. Esse é um
estado de grande beleza — beleza não formada pelo homem ou
pela natureza.
[...] PERGUNTA: Não existe amor sem paixão?
KRISHNAMURTI: Que entendeis pela palavra “paixão” e
pela palavra “amor”? Não importa se sois homem ou se sois mu-
lher, se sentis amor por outra pessoa, não tendes paixão, pelo
menos durante os dois primeiros anos, ou outro período qual-
quer? Depois, vos acostumais um com o outro e começais a enfas-
tiar-vos. Com aquela paixão, embora a chamemos amor, há luxú-
ria, apego, ciúme, ambição, avidez, e tudo o mais. Ela é como uma
chama em meio de densa fumarada. E que acontece? Gradual-
mente, morre essa chama, e só vos resta fumaça. Mas se desapa-
recer o apego, a luxúria, o ciúme, e todos os outros elementos
que mantêm o conflito e a fumaça produzida por isso que cha-
mamos “paixão” — se tudo isso desaparece, não por ação do
tempo ou do hábito, mas, sim, porque nós o penetramos, o com-
preendemos, vimos-lhe as profundezas e alturas, então o amor
pode ser paixão sem causa. Não me refiro à paixão do missionário
que, com seu amor a Jesus, sai pelo mundo a converter os pagãos;
não é esta a paixão a que aludo. Pelo contrário, a paixão de que
falo é a negação de tudo isso, sem nenhum motivo. E dessa nega-
ção desponta aquela chama límpida e clara.
PERGUNTA: É possível a um ente humano achar-se em
permanente estado de compreensão?
KRISHNAMURTI: Importa compreender o que se entende
pela palavra “permanente”. Não acho que possais “achar-vos
permanentemente” em coisa alguma. Se permaneceis em alguma
coisa, estais morto. E isso é o que em maioria desejamos: quere-
mos que certas coisas — o amor, a paixão, a compreensão, Deus

262
— continuem perenemente. E isso significa o quê? Que não dese-
jamos ser perturbados, que não desejamos ser sensíveis, estar
vivos. Como já expliquei, a verdade ou a compreensão vem num
clarão, e esse clarão não tem continuidade, não se acha na esfera
do tempo. Vede isso por vós mesmo. A compreensão é nova, ins-
tantânea, não é a continuidade de algo que antes existiu. O que
teve existência anterior não pode trazer-vos nenhuma compreen-
são. Enquanto buscamos uma continuidade — desejando a per-
manência nas relações, no amor, na ânsia de encontrar a paz du-
radoura, etc., etc., — estamos perseguindo uma coisa que se acha
na esfera do tempo e que, por conseguinte, não pertence ao eter-
no.
O homem seus desejos em conflito

[...] O PENSAMENTO NÃO É COMPAIXÃO; seria totalmen-


te absurdo pensar tal coisa. Não se pode cultivar a compaixão,
tampouco o amor. Não importa o que façais, não podeis "produ-
zir" amor com a mente, não podeis "fabricá-lo" com o pensamen-
to.
[...] ENQUANTO EXISTIR essa coisa chamada ego - com
todas as suas futilidades, aspirações, "intuições", todos os seus
impulsos e compulsões, e seu desejo de preenchimento - haverá
inevitavelmente medo; e em tal estado é bem óbvio que não pode
haver amor. Para a maioria de nós, o amor é um estado atormen-
tado. Vemo-nos atenazados pelo ciúme, a inveja, o apego, a afli-
ção. Temos medo de ficar sós, de perder alguém, de não sermos
amados - sabeis por quantas coisas passamos. Isso é o que cha-
mamos amor - mas faz parte do medo.
[...] SE EXISTE, ATRÁS DO AMOR, algum motivo, isso é
amor? Por favor, não concordeis comigo: observai-vos, apenas.
Por certo, não deve haver motivo algum, se desejo compreender

263
o sofrimento, se desejo descobrir a profundeza plena e a significa-
ção do sofrimento - ou do amor, pois os dois andam sempre jun-
tos. A morte, o amor e o sofrimento são inseparáveis, estão sem-
pre juntos, e também os acompanha a criação; mas, esta é outra
questão, que examinaremos noutra oportunidade. Se desejo
compreender profundamente, completamente, o fato do sofri-
mento, não posso ter um motivo a ditar minha reação ao fato. Só
posso viver com o fato e compreendê-lo, quando nenhum motivo
tenho.
[...] Se vos "amo" porque podeis dar-me alguma coisa -
vosso corpo, vosso dinheiro, vossa lisonja, vossa companhia, o
que quer que seja - isso, por certo, não é amor, é? É claro que
também vós obtendes algo de mim, e essa permuta, para a maio-
ria de nós, se chama "amor". Sei que encobrimos isso com pala-
vras bonitas, mas, atrás dessa fachada, está a ânsia de ter, possuir,
ser dono.
[...] QUE DIZER DO PESAR que sentimos pelo sofrimento
de outrem? Quando vedes alguém a sofrer, não sofreis também?
Quando vedes um cego, um homem que não tem o que comer ou
não tem quem o ame, todo envolvido em agonia, luta, confusão,
não sofreis com ele? Sei que é coisa sancionada, tradicional, res-
peitável, o dizer: "Eu sofro juntamente convosco". Mas, porque
deveis sofrer? Se tendes pouco, dais desse pouco. Dais vossa
compaixão, vossa afeição, vosso amor. Mas, porque sofrer? Se
meu filho contrai poliomielite e está à morte, porque devo sofrer?
Sei que isso vos parecerá terrivelmente cruel. Se fiz todo o possí-
vel por alguém, se lhe dei meu amor, minha compaixão, trouxe-
lhe o médico, forneci-lhe os remédios, se fiz sacrifícios (trata-se
realmente de "sacrifício"? É esta a palavra justa?), se fiz tudo o
que pude, porque devo sofrer? Quando sofro por alguém, isso é
sofrimento? Refleti nisto, profundamente; não aceiteis simples-
mente o que estou dizendo. Quem vai à Índia e a outros lugares
do Oriente, vê imensa pobreza - pobreza de que não se faz a mais
ligeira ideia no Ocidente.

264
Quando anda pelas ruas, roça com pessoas cobertas de
lepra ou portadoras de outras doenças. Pode uma pessoa fazer
tudo o que estiver a seu alcance, mas que necessidade tem de
sofrer? O amor sofre? Oh! deveis considerar bem tudo isso. O
amor, decerto, nunca sofre
[...] VEDE, HÁ MUITO POUCO AMOR em nossas vidas;
com efeito, não sabemos o que isso significa. Conhecemos o cha-
mado "amor", sempre acompanhado de ciúme, inveja, irritação,
confusão, aflição. Esse, todos nós conhecemos bastante. Mas, não
sabemos de fato o que significa achar-se num estado de amor,
não é verdade? Podemos amar alguém em particular, mas não
conhecemos aquele "estado de ser" extraordinariamente vivo e
lúcido, que é o amor. A maioria de nós tem muito pouco amor no
coração, e é por isso que o pedimos a outrem. Por não termos
amor, encontramos em geral um meio de aliviar-nos, seguindo
uma certa via de "autopreenchimento", que pode ser sexual, inte-
lectual, ou de ordem neurótica; de maneira que nossos problemas
crescem e se tornam mais e mais agudos.
[...] SEM AMOR, VIVEMOS NO SOFRIMENTO, na aflição,
em conflito perene. E o amor, por certo, é sem conflito. Direis,
porventura: "Isto é apenas uma ideia, um ideal, um estado teori-
camente perfeito" - mas estais enganado. Nasce o amor ao come-
çarmos a compreender realmente a totalidade de nosso próprio
ser. Assim, o importante é o indivíduo descobrir por si mesmo,
que se acha enredado em palavras, em ideias. Somos escravos das
fórmulas, dos conceitos, e a percepção desse fato altera a própria
natureza da ação. Na mutação da ação, há paixão, que é energia;
e, com essa energia, que faz parte do amor, que faz parte da cria-
ção, tem a mente a possibilidade de ingressar num estado jamais
concebido ou formulado por ela própria, num estado desconheci-
do.
Experimente um novo caminho


265
[...] O AMOR QUE CONHECEMOS É CIÚME, geralmente
cercado de ódio, ansiedade, desespero, aflição, conflito; e nada
disso é amor. O amor é coisa eternamente nova, irreconhecível;
ele nunca é o mesmo, e, por conseguinte, é o supremo estado de
incerteza. E só no “estado de amor” pode a mente compreender
essa coisa extraordinária chamada “criação” — que é Deus, ou
outro nome que lhe quiserdes dar. Só a mente que compreendeu
as limitações do conhecido e, consequentemente, dele ficou livre
— pode achar-se naquele estado criativo em que não existe fator
de deterioração.
[...] O AMOR NÃO É UMA TEORIA, e tampouco um ideal.
Ou uma pessoa ama, ou não ama. Ele não pode ser ensinado. Não
podeis tomar lições para aprender a amar, nem nenhum método
existe mediante cuja prática diária chegueis a saber o que é o
amor. Mas, eu acho que se pode chegar ao amor, natural, fácil,
espontaneamente, quando se compreende realmente o significa-
do do tempo, a extraordinária profundeza do sofrimento, e a pu-
reza que vem com a morte. Assim, talvez possamos considerar —
realmente, e não teórica ou abstratamente — a natureza do tem-
po, a natureza ou estrutura do sofrimento, e essa coisa extraordi-
nária que chamamos “a morte”. Essas três coisas não são separa-
das. Se compreendermos o que é o tempo, compreenderemos o
que é a morte, bem como o que é o sofrimento. Mas, se conside-
rarmos o tempo como coisa separada do sofrimento e da morte, e
tentarmos ocupar-nos dele isoladamente, nosso acesso será en-
tão fragmentário e, por conseguinte, nunca perceberemos a ma-
ravilhosa beleza e a vitalidade do amor.
[...] Como disse, considerar a vida fragmentariamente é
viver em constante confusão, contradição, aflição. Tendes de ver a
totalidade da vida; e só se pode ver essa totalidade quando há
afeição, quando há amor. O amor é a única revolução que produ-
zirá a ordem. É inútil adquirir constantes conhecimentos de Ma-
temática, Medicina, História, Economia, e depois reunir todos

266
esses fragmentos; isso não resolverá coisa alguma. Sem o amor, a
revolução só conduz ao endeusamento do Estado ou à adoração
de uma imagem, ou a inumeráveis e tirânicas perversões, e à des-
truição do homem. Do mesmo modo, quando a mente, medrosa
que é, põe a morte à distância, separando-a do viver diário, tal
separação só serve para gerar mais medo, mais ansiedade, e uma
multiplicidade de teorias a respeito da morte. Para se compreen-
der a morte, é necessário compreender a vida. Mas a vida não é
continuidade do pensamento, continuidade essa responsável por
todas as nossas aflições.
[...]Para compreendermos a beleza e a extraordinária na-
tureza da morte, precisamos livrar-nos do conhecido. No morrer
para o conhecido, está o começo da compreensão da morte, por-
que a mente então se torna fresca, nova, e nenhum medo existe;
por conseguinte, pode-se entrar naquele estado que se chama “a
morte”. Assim, do começo até o fim, a vida e a morte são insepa-
ráveis. O sábio compreende o tempo, o pensamento e o sofrimen-
to, e só ele é capaz de compreender a morte. A mente que morre
a cada instante, que não armazena experiência, é imaculada e, por
conseguinte, se acha num perene estado de amor.
PERGUNTA: Qual a diferença entre o vosso pensar e o
pensamento cristão sobre o amor?
KRISHNAMURTI: Sinto não poder dizê-lo. Eu não penso no
amor. Não se pode pensar no amor; se o fazeis, não se trata de
amor. Como deveis saber, há enorme diferença entre o sexo, e o
pensamento a respeito do sexo, que estimula a sensação. A mente
que se ocupa da mera satisfação sexual, que pensa no sexo, que
se excita por meio de imagens, de figuras, de pensamentos, é de
qualidade destrutiva. Já “a outra coisa” (o amor) difere muito:
sentimo-la sem a interferência do pensamento. Analogamente,
não se pode pensar a respeito do amor, de acordo com o padrão
de nossa memória ou conforme o que tendes ouvido dizer: que
ele é bom, profano, sagrado, etc. Porque esse pensar não é amor.
O amor não é cristão nem hinduísta, não é oriental nem ocidental,

267
não é vosso nem meu. Só quando uma pessoa se liberta de todas
essas ideias de nacionalidade, raça, religião, etc. — só então sabe-
rá o que é amar.
A mente sem medo

[...] PARA COMPREENDER cada incitamento do desejo,


temos de ter espaço, e de não tentar preencher esse espaço com
os nossos pensamentos ou lembranças, ou com a preocupação de
como satisfazer ou destruir esse desejo. Dessa compreensão nas-
ce, então, o amor. Geralmente, não temos amor, não sabemos o
que ele significa. Conhecemos o prazer, conhecemos a dor. Co-
nhecemos a inconsistência do prazer e, provavelmente, a conti-
nuidade da dor. E conhecemos o prazer sexual e também o prazer
de alcançar fama, posição, prestígio, e o prazer de exercer um
enorme domínio sobre o próprio corpo, como os ascetas, de man-
ter um “record”... Conhecemos todas estas coisas. Falamos inter-
minavelmente acerca do amor; mas não sabemos o que ele signi-
fica, porque não compreendemos o desejo, que é o começo do
amor.
Sem amor não há verdadeira moralidade; o que há é ajus-
tamento a um padrão, social ou supostamente religioso. Sem
amor não há virtude, integridade. O amor é espontâneo, real,
vivo. E a bondade não é uma coisa que se possa criar pelo exercí-
cio constante; é espontânea, como o amor. A virtude não é uma
lembrança de acordo com a qual funcionamos como ser humano
“virtuoso”. Se não temos amor, não somos bondosos. Podemos
frequentar templos, levar uma vida familiar extremamente respei-
tável, seguir as regras da moral social, mas não somos bondosos.
O nosso coração é estéril, vazio, está embotado, entorpecido, por
não compreendermos o desejo. A vida, portanto, torna-se um
constante campo de batalha e o esforço só termina com a morte.
Só termina com a morte, porque só sabemos viver com esforço.
268
Assim, para compreender o desejo precisamos de com-
preender, de escutar, cada movimento da mente e do coração,
cada alteração, cada mudança do pensamento e do sentir, preci-
samos de observar o desejo, de nos tornarmos sensíveis, desper-
tos a ele. Não podemos tornar-nos sensíveis ao desejo se o con-
denarmos ou se o compararmos. Temos de estar muito atentos ao
desejo, porque ele nos dará uma compreensão imensa. E dessa
compreensão nasce a sensibilidade. Somos então sensíveis - e não
só fisicamente sensíveis - à beleza, à sujidade, às estrelas, ao sorri-
so ou às lágrimas, e sensíveis também a todos os murmúrios, a
todos os sussurros que nos povoam a mente, aos nossos secretos
medos e esperanças.
E desse escutar, desse observar, vem a paixão, esta paixão
igual ao amor. Só neste estado se é capaz de cooperar. E, porque
se é capaz de cooperar, também só neste estado se pode saber
quando não se deve cooperar. Assim com esta profunda compre-
ensão e vigilância, a mente torna-se eficiente, lúcida, cheia de
vitalidade e de vigor; e só uma mente assim pode viajar para mui-
to longe.
[...] PORQUE NÃO SOMOS INDIVÍDUOS, não sabemos o
que significa amar. Conhecemos apenas aquele “amor” em que há
ciúme, ódio, inveja e todos os males que o pensamento é capaz de
produzir. Observai, se o desejardes, aquilo a que chamais afeição -
observai-vos a vós mesmos, a vossa afeição pela pessoa com
quem casastes e pela vossa família. Não há a chama do amor, há
uma união em que existe corrupção, apego, dor, ciúme, ambição e
domínio. Pode-se gerar filhos, mas isso não é amor; é prazer. E
onde há prazer, há dor. E um homem que quer compreender aqui-
lo a que se chama amor, tem de compreender primeiro o que é
ser livre.
Há ainda a questão do sexo, que esse tornou um grande
problema no mundo. Uns podem estar “de fora”, devido à idade,
ou porque se forçam a si mesmos - não têm vida sexual porque
querem encontrar Deus. Receio bem que, assim, não se encontre

269
Deus. Deus quer um homem livre, um ser humano que viveu, que
sofreu, e que é livre. É preciso, assim, compreender este problema
do sexo.
Além disso, emocionalmente, cada um não está livre para
se expressar. Também aí, está bloqueado retraído, contido. Nunca
se maravilha com o pôr-do-sol; nunca contempla uma árvore ou
está em comunhão com ela, no total encantamento daquela bele-
za plena.
E quando o sexo se torna “a única coisa” cria devastação
na vida de cada um. Também ele se torna uma coisa repetitiva,
levando a várias formas de dominação de compulsão, e tornando-
se, assim, uma agonia no relacionamento. Também ele leva a
brutalidade ao embotamento da mente - quando se torna um
prazer repetitivo. Dessa maneira, não existe amor, não existe be-
leza na nossa vida, nem liberdade emocional. E, assim, só resta
aquilo a que se chama “sexo”.
O despertar da sensibilidade

[...] NÓS, NA REALIDADE, não temos amor; é terrível re-


conhecer isso. Com efeito, não temos amor; temos sentimento,
temos emotividade, sensualidade, sexualidade; temos lembranças
de algo que pensávamos ser amor. Porque ter amor significa não
haver violência, nem medo, nem competição, nem ambição. Se
tivésseis amor, nunca diríeis: “Esta é minha família”. Podeis ter
uma família e dedicar-lhe todos os desvelos, porém não será
“nossa família”, contraposta ao resto do mundo. Se amais, se há
amor, há paz. Se amásseis, haveríeis de educar vosso filho para
não ser nacionalista, para não ter simplesmente uma dada ocupa-
ção técnica e cuidar unicamente de seus pequeninos interesses;
não teríeis nacionalidade. Não haveria divisões religiosas, se
amásseis. Mas, como essas coisas existem de fato — não teorica-

270
mente, porém brutalmente — neste mundo tão feio — elas indi-
cam que não tendes amor. Mesmo o amor da mãe pelo filho não
é amor. Se as mães amassem realmente os filhos, achais que o
mundo seria como é? Cuidariam de que tivessem alimentação
adequada, educação correta, fossem entes sensíveis, amantes da
beleza, não ambiciosos, ávidos, invejosos. Não, a mãe, por mais
que pense amar o seu filho, não o ama.
Desconhecemos aquele amor. Ele, decerto, não pode ser
cultivado. Cultivá-lo é como cultivar a humildade; só o homem
vaidoso, arrogante, poderá cultivar a humildade — uma capa para
cobrir-lhe a vaidade. Assim como a humildade não pode cultivar-
se, assim também não se pode cultivar o amor. Mas, nós temos de
tê-lo, o amor. Se não o tendes, não podeis ter virtude, não podeis
ter ordem, não podeis viver com paixão (podeis viver com lascívia,
como todos bem sabemos). Repito, pois, que se não tendes amor,
não tendes virtude; e, sem a virtude, só há desordem.
Ora, como alcançar o amor? Compreendeis o problema?
Vós necessitais do amor, assim como necessitais de água quando
sentis sede. Como alcançá-lo? Por meio do tempo? Futuramente
— na vida futura de amanhã ou na próxima vida, quando morrer-
des? Ou daqui a um segundo, que é ainda futuro? O tempo pode-
rá dar-vos aquele amor que é desvelo, que é beleza? O amor e a
beleza andam juntos, nunca estão separados. Infelizmente, para a
maioria de nós, beleza significa sensualidade, sexualidade. Vossas
Escrituras, vossos santos, vossos gurus, vossos sanyasis — foram
todos eles que fizeram de vós o que sois, que vos fizeram sem
sentimento, sem beleza, sem amor. Não sei se percebeis esta
grande tragédia.
E visto que, como ente humano, tendes de ter amor —
que ireis fazer? Não há tempo. Não podeis dizer: “Ora, não posso
tê-lo. E, se vivo há dois milhões de anos sem amor, poderei viver
outros dois milhões de anos sem amor — quer dizer, mais dois
milhões de anos de contínuo sofrimento! Que podeis fazer, en-
tão? Entendeis agora minha pergunta? O sofrimento não pode ser

271
afastado ou eliminado por meio do tempo, e tampouco podemos
receber o amor por meio do tempo. E tempo é daqui a dez dias,
daqui a um minuto, daqui a um segundo. Que ireis fazer? Entre-
gar-vos ao desespero? Se ainda não encontrastes o amor, já estais
no desespero. E vós tendes de encontrá-lo, como tendes de en-
contrar comida. Trata-se de coisa muito mais premente, muito
mais urgente, e que exige intensa vitalidade.
Que ireis fazer, pois? Se dizeis: “Por favor, mostrai-me o
que devo fazer” — ficareis parado, no mesmo lugar. Tendes de ver
a importância, a imensidão, a urgência desta questão, não ama-
nhã ou no dia subsequente, nem na próxima hora; tendes de ver
isso agora, aí sentados como estais. E, para ver, necessita-se de
energia. Vede imediatamente. O catalisador que converte o líqui-
do em sólido ou imediatamente o vaporiza, nenhuma ação exerce
se se lhe concede tempo, um segundo sequer. Toda a nossa exis-
tência, todos os nossos livros, todas as nossas esperanças estão
relacionados com o amanhã — sempre e sempre amanhã! Essa
admissão do tempo constitui a maior das tragédias.
A questão, pois, está nas vossas mãos, e não nas do ora-
dor, de quem esperais a resposta. Não há resposta, e nisso é que
consiste sua beleza (da questão). Podeis ficar sentados de pernas
cruzadas, a respirar corretamente, ou com a cabeça no chão e as
pernas para o ar, durante os próximos dez mil anos, mas, se não
tiverdes feito a vós mesmo aquela pergunta (Que fazer, para al-
cançar o amor?), ficareis a viver com o problema por dois milhões
de anos — dois milhões de anos que podem significar apenas
“amanhã”. Vê-se, pois, que os problemas e o tempo estão inti-
mamente relacionados.
Assim, já que por meio do tempo não se pode eliminar o
sofrimento ou tornar existente o amor, qual o estado de vossa
mente ao fazer aquela pergunta? Qual o estado de vossa mente?
— pergunto eu. Mas, se a fizerdes a vós mesmo — não indiferen-
temente, não esporadicamente, quando tiverdes um tempinho de
folga — se a fizerdes com intensidade, com vitalidade e energia —

272
tereis necessidade de esperar resposta? Se a esperais, então tudo
se repetirá de novo. Isto é, se pedis a resposta a alguém, tornareis
a encontrar-vos na mesma situação de antes: alguém sabe, e vós
não sabeis, e esse alguém vos dirá o que deveis fazer. E nada mais
terrível se pode impor a alguém ou a vós mesmo: ser ensinado a
respeito de uma coisa que ninguém vos pode ensinar. Eu posso
dizer-vos que deveis amar, dizer-vos que o amor não é cultivável.
Se se cultiva o amor, ele se tornará caridade, benevolência, assis-
tência social e outras frioleiras desse gênero; isso é tão bom como
frequentar a igreja — mas não será amor. E nós necessitamos de
amor.
Uma nova maneira de agir

[...] SE AMAIS ALGUMA COISA — escutais; se amais vossa


esposa, vosso filho — escutais. Mas, provavelmente não os amais
e, portanto, não sabeis o que é escutar. Se amais alguém, se amais
a árvore, o pássaro — se amais intensamente — estais pronto a
escutar, pronto a escutar todos os sussurros, escutar o vento,
“escutar” cada movimento da folha e o esvoaçar da folha. Se ama-
is vosso filho, estais pronto a observar todas as suas disposições
de espírito, seu temperamento, suas insubordinações, suas brin-
cadeiras, sua alegria, curiosidade, inteligência. Por conseguinte,
aprender é amar — não amanhã, não depois de tomardes notas e
voltardes para casa, para estudar vossas notas. O amor está sem-
pre no presente; não é lembrança; não é a fotografia que tendes
no quarto e a que ocasionalmente dais um olhar; isso não é amor:
é a lembrança morta de coisas idas. Só podeis escutar ilimitada-
mente. E para escutar ilimitadamente é necessário haver aquela
afeição, aquela chama que destrói o passado.
[...] A MENTE QUE ESTÁ LIVRE DO TEMPO — que é pen-
samento, que é desejo — essa mente conhece o amor. Para a
maioria de nós, o amor é sexual. Observai-o em vós mesmo. Para
273
a maioria de nós, amor é ciúme — uma contradição composta de
ódio e de amor. Não sabemos, com efeito, o que é o amor. Co-
nhecemos a comiseração, a piedade, talvez também a liberalidade
— contanto que não nos custe muito dinheiro... Não riais! Tudo
isso está à vossa frente — estais vendo a vós mesmo. Não podeis
rir. Se podeis rir de vós mesmo, isso tem, sem dúvida, uma certa
significação. Mas, não riais dos fatos, pois com isso estais a fugir
deles. Só conheceis o amor sob o aspecto de contradição, dor e
prazer, angústia e ciúme — a dor, a brutalidade, a violência do
ciúme! — Não sabeis o que é o amor, porque não sabeis o que é a
beleza. Se não conheceis a beleza, jamais conhecereis o amor —
não a beleza de uma mulher ou de um homem, não o sexo: a Be-
leza!
Fostes amestrados para negar a beleza, que sempre vos
foi mostrada associada ao prazer; e o prazer (conforme vos ensi-
naram) é o homem, a mulher! Sempre vos disseram, principal-
mente os santos, que se quereis achar Deus, não deveis possuir
mulher, não deveis ter prazer; por isso negais a beleza. E, negan-
do-a, negastes também o amor. A beleza não é prazer; a beleza
está presente em todas as coisas. Senhores, observai-vos; obser-
vai aquela folha; observai a beleza do crepúsculo, a beleza da ter-
ra, da colina e de suas curvas, das águas correntes; a beleza de
uma mente pura, de uma mente boa; a beleza de um rosto, a be-
leza de um sorriso. Tudo isso tendes negado, porque para vós a
beleza está associada ao prazer, e o prazer ao sexo, ao chamado
“amor”.
A beleza, absolutamente não é isso — algo meramente re-
lacionado com o prazer. Para compreender a beleza, precisamos
de uma mente sobremodo simples, mente não anuviada pelo
pensamento e capaz de ver as coisas como são, de ver o pôr do
sol com todas as suas cores, seu encantamento e luminosidade —
vê-lo sem verbalização, em contato, em comunhão com ele —
sem a palavra, sem o gesto, sem a memória — sem vós e o objeto
que estais contemplando.

274
Essa extraordinária comunhão, sem objeto, sem pensador
e pensamento, nem objeto e experiência — essa consciência de
um espaço imenso — é a beleza.
E é também o amor. Se não há amor, o que quer que fa-
çais — podeis tomar parte em obras sociais, promover reformas
sociais ou um governo parlamentarista, casar, ter filhos — sem o
amor, nunca encontrareis a solução para os problemas da vida.
Com o amor, podeis fazer tudo o que desejardes: com o amor, há
virtude e há humildade.
[...] SÓ QUANDO A MENTE sabe morrer para si própria,
existe o amor. E o amor é muito simples. Só ele traz harmonia à
vida, pois nenhum argumento intelectual, nenhuma filosofia, ne-
nhum livro sagrado ou profano pode trazê-la. A mente que com-
preendeu tudo aquilo, que por tudo aquilo passou, e tudo enfren-
ta a cada minuto do dia — só essa mente pode conhecer o amor.
E, quando há amor, tudo o que se faz é virtude, bondade, beleza.
[...] NA VIDA DA MAIORIA DE NÓS, há tão pouca beleza e
tão pouco amor! Vemos coisas, como árvores, e sordidez, e po-
breza, e fome; vemos a fealdade, a estreiteza, a vulgaridade de
nossa própria vida, a batalha que se trava num limitado setor de
nossa mente. E desconhecemos inteiramente a profundeza e a
vastidão do amor. Conhecemos a comiseração; às vezes nos tor-
namos cônscios de uma grande e desinteressada afeição por outra
pessoa; conhecemos também a generosidade, a bondade, a corte-
sia; mas essas palavras não abrangem todo o significado da pala-
vra “amor”. As práticas que iremos considerar, as virtudes que
incessantemente procuramos cultivar e praticar, e as reformas
sociais e as opiniões e características dos indivíduos considerados
“santos” — todas essas coisas e pessoas carecem dessa virtude
essencial que se chama “amor”. Sem ele, a vida nenhuma signifi-
cação tem, é quase sem importância.
[...] O amor, por sua própria natureza, é cooperação. Só
conhecemos uma espécie de cooperação: a cooperação por inte-
resse na recompensa ou medo de punição — quer dizer, coopera-

275
ção por necessidade. Só esta espécie de cooperação conhecemos.
A cooperação consistente em trabalhar em conjunto visando a um
certo resultado, essa só se efetua pelo desejo de ganho ou medo
de perda, em obediência à autoridade — autoridade representada
por um ideal, pela tirania de uma pessoa, por um certo modelo
etc. Tal é a cooperação que conhecemos. Se vos observardes,
vereis que, quer no escritório, quer em qualquer parte onde vá-
rios indivíduos têm de trabalhar juntos, há sempre essa coopera-
ção determinada pela ideia de recompensa e punição, ou pela
necessidade. Tal cooperação é, em verdade, muito primitiva; não
é cooperação, absolutamente.
Devemos cooperar, pois, de contrário, não podemos exis-
tir. Não há sociedade, não há estado de relação, sem cooperação.
É isto o que está acontecendo neste país: não existe cooperação;
cada grupo, cada parte da nação só pensa em si. E essa fragmen-
tação com que estamos bem familiarizados, ou seja o “tribalis-
mo” ou nacionalismo, é decerto um estado de não-cooperação e,
por conseguinte, de desintegração, destruição, deterioração. Só
se pode viver quando há cooperação, trabalho em conjunto.
É possível trabalharmos juntos, sem medo de punição,
sem esperança de recompensa, sob nenhuma compulsão? Parece-
me que, pela própria natureza e significado da palavra, a verda-
deira cooperação só existe quando há afeição, quando há amor.
Ela cessa, no momento em que há interesses para proteger, em
que há “atividades tribais” por parte de uma mente vulgar, condi-
cionada por determinada língua, determinado país, determinada
facção. E, assim, a maioria de nós, que tanto falamos de coopera-
ção, somos gente muito primitiva, porquanto nossa cooperação
baseia-se no medo, na necessidade, no desejo de ganho, na dor.
E, parece-me, a verdadeira cooperação, o trabalho em conjunto,
exige grande soma de afeição, uma boa porção dessa palavra ge-
nérica que temos tanto medo de empregar: “amor”.
Vamos, pois, investigar, descobrir por nós mesmos o esta-
do da mente que conhece o significado e a natureza daquela pala-

276
vra. Porque só esse conhecimento pode libertar o homem, só ele
pode operar a completa mutação. Esse sentimento de afeição,
esse amor, essa capacidade não é cultivável, não pode ser produ-
zida; deve ser tão natural como o respirar, tão plena de alegria e
de deleite como o pôr do sol.
[...] O AMOR ALTERA imediatamente todas as ações da
vida. É ele o único “catalisador”, só ele e nada mais promoverá a
mutação total da mente. Nós necessitamos dessa mutação, por-
que o homem já vive há tanto tempo com sua aflição, a diária
tortura da existência, a incerteza, a confusão, o conflito e a supos-
ta insignificância da vida. Mas, o viver tem extraordinária signifi-
cação. É o viver altamente significativo quando sabemos observá-
lo, quando com ele sabemos relacionar-nos. Pôr-nos em contato
com o viver, conhecê-lo, ver toda a sua beleza — isso só é possível
quando há silêncio, quando há espaço e amor. E isso é a Verdade,
a única coisa que importa na vida. Revelam-se-nos então todos os
céus e todos os infernos. Não é mais necessário procurar Deus.
Nem tampouco ir a nenhum templo ou igreja; já não é preciso ser
escravo de nenhum sacerdote, de nenhum livro, de nenhuma
autoridade. Só há, então, Luz — e essa Luz é Amor e Silêncio.
[...] AMOR É: MORRER CADA DIA. Amor não é memória,
amor não é pensamento. Não é uma coisa que tem continuidade,
duração no tempo. E, mediante a observação, devemos morrer
para toda espécie de continuidade. Porque, então, há amor; e
com o amor vem a criação.
A criação é uma das coisas mais difíceis de compreender.
O homem que escreve um poema — que pode ser muito belo,
julga-se criador. O homem e a mulher que geram filhos pensam
também ser criadores. Mas, criação é muito mais do que isso. Não
é criador o homem que meramente escreve um livro ou se preen-
che numa certa ambição sem importância. Criação não é nenhu-
ma estrutura construída pelo homem, nenhuma tecnologia nem
resultado de conhecimentos tecnológicos — pois isso é só inven-
ção. Criação é algo de atemporal: sem amanhã, nem ontem; é —

277
vida eterna. E ela se alcança muito naturalmente, quando se com-
preende o problema da existência.
A mente religiosa, pois, é tudo isso; e, também, conhece,
melhor, vive num estado de criação, de momento em momento. É
uma mente sempre ativa, graças àquele extraordinário estado de
vazio.
Como sabeis, um tambor está sempre vazio, e quando o
percutimos, ele dá o som adequado. Entretanto, está vazio. Nossa
mente nunca está vazia, porém sempre repleta. Nossa ação, por
conseguinte, emana sempre daquele terrível barulho gerado pelo
pensamento, a memória, o desespero; por conseguinte, ela é
sempre contraditória, e conducente a enorme aflição.
Mas, a mente de todo vazia — vazia, porque se acha num
estado de observação, de silêncio, por conseguinte, de amor, e
compreensão da morte — a mente totalmente vazia é criadora. A
mente criadora está sempre vazia; desse vazio provém a sua ação,
as palavras que pronuncia. Por conseguinte, essa mente é sempre
verdadeira e, portanto, jamais criará ilusões dentro de si mesma.
Só essa mente religiosa pode resolver os problemas e aflições
deste mundo.
[...] APRENDER É DISCIPLINAR. As relações são uma forma
de disciplina, constituem elas um movimento. Não há relações
estáticas, e todas as relações exigem constante aprender. Ainda
que estejais casado há quarenta anos e tenhais estabelecido rela-
ções agradáveis, firmes, respeitáveis, com vossa esposa ou espo-
so, se tais relações se estabeleceram na forma de um padrão, não
estais aprendendo. As relações são um movimento; não são está-
ticas. Demandam um constante aprender, porquanto as relações
estão sempre em constante mutação, em contínuo movimento;
do contrário, não há verdadeiras relações. Podeis pensar que vos
achais em relação; mas, na realidade, estais em relação com a
imagem que tendes da outra pessoa ou das experiências que com
ela tivestes em comum. A imagem, o símbolo, a ideia, é com isso
que entrais em contato com outra pessoa e, por conseguinte,

278
tornais as relações uma coisa morta, estática, sem vida, sem vigor,
sem paixão. Só a mente que está aprendendo é apaixonada.
Não emprego a palavra “paixão” no sentido de “prazer
exaltado”, porém antes em referência àquele estado da mente
que está sempre a aprender e, por conseguinte, sempre ardorosa,
viva, em movimento, nova, e portanto apaixonada. Bem poucos
de nós se apaixonam. Temos prazeres sensuais, luxúria, diversões;
mas o sentimento de paixão, esse a maioria de nós não tem. Sem
paixão, no elevado sentido ou significado da palavra, como se
pode aprender, como se podem descobrir coisas novas, como se
pode investigar, como podemos mover-nos com a celeridade que
a investigação requer?
E a mente apaixonada está sempre em perigo; mas nós
nunca somos apaixonados. Somos respeitáveis, ajustamo-nos,
aceitamos, obedecemos. Há “respeitabilidade”, “deveres”, e ou-
tras palavras de que nos servimos para sufocar o ato de aprender.
O ato de aprender, dissemos, é disciplina. Nessa disciplina
não há ajustamento de espécie alguma e, por conseguinte, nunca
há repressão; porque, quando estais aprendendo a respeito de
vossos sentimentos, a respeito de vossa cólera, de vossos apetites
sexuais e outras coisas mais, nunca há necessidade de refrear nem
de ceder. E essa é uma das coisas mais difíceis, porque todas as
nossas tradições, todo o passado, todo o conjunto de lembranças
e de hábitos, fixaram-nos a mente numa rotina, que estamos mui-
to dispostos a seguir e de modo nenhum desejamos ser perturba-
dos e atraídos para fora dela. A disciplina, por conseguinte, é para
a maioria de nós mero ajustamento, repressão, imitação, que,
mais cedo ou mais tarde, nos levam a uma vida muito respeitável
— se isso se pode chamar “vida”. O homem que ficou cativo na
estrutura da respeitabilidade, da repressão, da imitação, do ajus-
tamento — esse homem não está vivendo, absolutamente; tudo o
que aprendeu, tudo o que adquiriu é mero ajustamento a algum
padrão; e a disciplina que ele seguiu o destruiu.

279
Mas, estamo-nos referindo ao ato de aprender que só se
verifica quando há intensidade, paixão; estamos falando da disci-
plina que é ato de aprender. O ato de aprender se verifica a cada
minuto; não significa que aprendeis e aplicais o que aprendestes
ao próximo incidente — pois, assim, deixastes de aprender. Essa
espécie de disciplina a que nos referimos é necessária, porque,
como dissemos, toda relação constitui um movimento que requer
disciplina e, portanto, aprender. E essa disciplina que é o ato de
aprender em cada minuto, é essencial para se investigar qualquer
coisa que exija muita penetração e compreensão.
O prazer, para a maioria de nós, é de suma importância, e,
todos os nossos valores, e ânsias, e buscas, visam a mais prazer. E,
prazer não é amor. A compreensão do prazer — não o rejeitá-lo,
porém o aprender a respeito dele — requer que o consideremos
com uma mente nova. Prazer é gozo, deleite; também fruição
sexual. Quando numa certa tarde vedes uma nuvem resplande-
cente, isso vos proporciona grande deleite. Se alguma vez olhais
para o céu — se não estais todo enredado em vossas diárias preo-
cupações, diversões e mágoas — encontrais deleite no olhar
aquela nuvem, aquele céu, aquela luz refletida na água; há deleite
em ver um belo rosto todo iluminado de sorrisos e de inocência. E
há também o prazer sensual, o gozo sensual — fazer um bom
repasto, ouvir boa música — as sensações do paladar, do sexo,
das ideias, etc. — Em tudo isso há prazer intelectual, prazer emo-
cional, prazer físico. Mas, o amor é coisa muito diferente. Talvez
possamos considerá-lo nesta tarde.
Em primeiro lugar, para compreender o prazer, dele nos
devemos abeirar para aprender, e não para reprimi-lo e tampouco
para satisfazê-lo. Esse aprender é uma disciplina que não nos
manda ceder, nem rejeitar. Começa o aprender no momento em
que se compreende que todo esforço de repressão, rejeição, con-
trole, impede o aprender. Por conseguinte, para compreender por
inteiro o problema do prazer, a ele deveis chegar-vos com uma
mente nova. Porque, para nós, o prazer é sumamente importante.
Fazemos coisas por causa do prazer que nos proporcionam. Fugi-

280
mos de tudo quanto é doloroso, e tudo avaliamos pelo estalão do
prazer. O prazer, pois, desempenha importantíssimo papel em
nossa vida, e o próprio ideal do homem que renuncia à chamada
“vida mundana”, para ingressar numa vida diferente, está ainda
baseado no prazer. Ou, quando um homem diz “Preciso ajudar os
necessitados” e se entrega a trabalhos de reforma social, isso é
ainda um ato de prazer; podemos procurar disfarçá-lo com pala-
vras tais, como “serviços”, “caridade”, etc. — mas trata-se do
mesmo movimento da mente que está a buscar o prazer ou a fugir
de tudo que possa causar uma perturbação a que chama “dor”. Se
vos observardes, vereis ser isso o que estais fazendo todos os dias,
a todo momento. Gostais de alguém porque essa pessoa vos lison-
jeia, e de outra não gostais porque diz certas verdades que vos
desagradam e despertam antagonismo. Viveis, assim, em perene
batalha.
Muito importa, pois, compreender essa coisa denominada
“prazer”. Por “compreender o prazer” entendo aprender sobre
ele. Há muito que aprender, porquanto todas as nossas reações
sensoriais, todos os valores que temos criado, tudo o que de nós
se exige — o chamado auto-sacrifício, a rejeição, a aceitação — se
baseiam nesta coisa extraordinária: o prazer, em forma requinta-
da ou grosseira. Os vários movimentos a que nos ligamos — co-
munistas, socialistas, etc. — têm esta mesma base. Porque pen-
samos que, identificando-nos com determinada atividade, deter-
minada ideia, determinado padrão de vida, daí nos advirá mais
prazer, mais vantagens; e esses valores, essas vantagens se basei-
am em nossa identificação com uma certa forma de atividade que
dá prazer.
Não estais meramente ouvindo as palavras que pronun-
cio; estais escutando com o fim de descobrir a verdade ou a falsi-
dade do que se está dizendo. Trata-se de vossa própria vida, de
vossa vida de cada dia. A maioria de nós desperdiça essa coisa
maravilhosa que se chama “vida”. Já vivemos quarenta, ou ses-
senta anos, exercendo uma profissão, devotando-nos a obras
sociais, fugindo de várias maneiras; e, no fim, o que nos resta é

281
uma vida vazia, monótona, estúpida — uma vida perdida! Por isso
é que tanto importa — se desejamos começar uma vida nova —
compreender a questão do prazer. Porque a repressão ou rejeição
do prazer não resolve este problema. Os indivíduos chamados
“religiosos” refreiam toda forma de prazer — pelo menos o ten-
tam — e o resultado é se tornarem entes humanos embotados e
inanes. A mente deles é árida, entorpecida, insensível, totalmente
incapaz de compreender o real.
Releva, pois, compreender as atividades do prazer. Olhar
uma bela árvore, é muito agradável, é um grande deleite; que mal
há nisso? Mas, olhar com prazer para uma mulher ou um homem
— isso é taxado de imoral, porque para vós o prazer está sempre
associado ou relacionado com uma coisa só: o homem ou a mu-
lher; ou é, também, fuga às relações dolorosas, e, portanto, bus-
cais em qualquer parte o prazer, numa ideia, numa fuga, numa
certa atividade.
Ora, o prazer criou o atual padrão social. Encontramos
prazer na ambição, na competição, na comparação, na aquisição
de saber, na conquista de poder, posição, prestígio. E essa busca
de prazer por meio da ambição, da competição, da avidez, da
inveja, da posição, do domínio, do poder, é considerada respeitá-
vel. É feita respeitável por uma sociedade que só tem um único
conceito: que vivamos uma vida moral, quer dizer, respeitável.
Podeis ser ambicioso, ávido, violento, competidor, ser um ente
humano cruel; e a sociedade aprova isso, porque, no fim de vos-
sas atividades ambiciosas, ou sois o que se chama “um homem de
sucesso”, cheio de dinheiro, ou sois um “fracassado”, um ente
humano frustrado. A moralidade social, portanto, é imoralidade.
Continuai, por favor, a escutar sem concordar nem discor-
dar — vendo o fato. E, para verdes, isto é, compreenderdes o fato,
não formeis ideias ou opiniões a seu respeito. Estais aprendendo.
E, para aprender, a vossa mente deve estar disposta a investigar,
ser apaixonada, ardorosa, por conseguinte, nova. A moralidade,
que é convenção, que é hábito, é considerada respeitável, e o

282
indivíduo é “moral” enquanto se mantém dentro do padrão, en-
quanto o respeita. Indivíduos há que se revoltam contra o padrão;
isso está sempre acontecendo. Toda revolta é reação contra o
padrão. Esta reação assume várias formas — os beatniks, os bea-
tles, os teddy-boys, etc. — mas permanece dentro do padrão. Ser
verdadeiramente moral é coisa muito diferente. E esta é a razão
por que precisamos compreender a natureza da virtude e a natu-
reza do prazer. Nossas convenções, nossos hábitos, tradições e
relações sociais, estão todos baseados no prazer. Não emprego a
palavra “prazer” num sentido restrito, limitado, porém em seu
mais amplo sentido. Nossa sociedade baseia-se no prazer, e nele
estão também baseadas todas as nossas relações: sois meu ami-
go, enquanto satisfaço os vossos gostos, enquanto vos ajudo a
obter melhores negócios; mas, no momento em que vos critico ou
censuro, deixais de ser meu amigo. Isso é um fato evidente e es-
túpido!
Sem a compreensão do prazer, nunca tereis a possibilida-
de de compreender o amor. Amor não é prazer, porém coisa intei-
ramente diversa. E, como disse, para compreenderdes o prazer,
deveis aprender a seu respeito. Ora, para a maioria de nós, para
todo ente humano, o sexo é um problema. Por quê? Escutai! Ven-
do-se incapaz de resolver este problema, o indivíduo foge dele. O
sanyasi foge por meio do voto de celibato, pela negação. Vede o
que então acontece à mente. Com a negação de uma parte de
nossa estrutura — glândulas, etc. — com essa repressão, o indiví-
duo faz de si mesmo um ente árido, e em seu interior trava-se
incessante batalha.
Como já dissemos, parecemos pensar que só há duas ma-
neiras de resolver um problema: reprimi-lo, ou fugir. Reprimir o
problema é, com efeito, a mesma coisa que fugir dele. E temos
uma verdadeira rede de vias de fuga — das atividades mais com-
plicadas, mais intelectuais, mais emocionais, às atividades comuns
de cada dia. Há várias formas de fuga, sobre as quais não deseja-
mos estender-nos agora. Mas este problema existe. O sanyasi
foge de uma certa maneira, mas não o resolveu; reprimiu-o por

283
meio de um voto, e o problema está todo inteiro, a ferver, em seu
interior. Poderá o sanyasi exibir simplicidade, mas o problema é
tão sério para ele como o é para o homem que vive uma vida co-
mum.
Como resolver esse problema? Vós tendes de resolvê-lo. É
um ato de prazer. Tendes de compreendê-lo. Como resolvê-lo? Se
não o resolverdes, ficareis escravizado a um hábito, a uma rotina;
vossa mente se tornará embotada, estúpida, lerda; e é só ela que
possuís. Tendes, pois, de resolver o problema. Em primeiro lugar,
não o condeneis, pois ides aprender sobre ele. É por esta razão
que estamos falando acerca, do aprender. Quando, intelectual-
mente, emocionalmente, estais asfixiado, vossa mente só é capaz
de repetir. Só sabeis copiar e imitar o que outros disseram ou
fizeram, citar interminavelmente o Gita ou o Upanishads ou um
certo livro sagrado; intelectualmente, sois indigente, vazio, embo-
tado. No emprego, copiais e imitais, intelectualmente, dia após
dia, fazendo sempre a mesma coisa; e o que quer que façais em
casa é, sempre e só, a mesma repetição. Dessa maneira, o intelec-
to, que deveria ser vigoroso, claro, racional, sadio, livre, está asfi-
xiado; nele, não há possibilidade de expressão, de ação criadora. E
emocionalmente — esteticamente — é total a vossa indigência;
porque negais a emoção e, com ela, a sensibilidade — sensibilida-
de à beleza, sensibilidade aos encantos de uma tarde; sensibilida-
de para olhar uma árvore e estar em íntima comunhão com a
natureza. Que vos resta, pois? Tendes uma única coisa de vosso,
na vida, e essa coisa se torna um problema imenso.
Assim, a mente que deseja compreender este problema
deve atacá-lo imediatamente, porque qualquer problema que
continua existente dias após dia embrutece o espírito, embrutece
a mente. Já não vistes o que acontece quando a mente tem um
problema e é incapaz de resolvê-lo? Que acontece a essa mente?
Ou ela foge e vai cair noutro problema, ou o reprime e se torna
neurótica — “neurose lúcida”, como se diz, mas sempre neurose.
Assim sendo, todo problema, não importa de que natureza —
emocional, intelectual, físico — tem de ser resolvido imediata-

284
mente, e não ser transferido para “amanhã” — porque “amanhã”
tereis outros problemas para enfrentar.
Por conseguinte, tendes de aprender. Mas, não podeis
aprender, se não resolvestes os problemas de hoje e simplesmen-
te os transferistes para amanhã. Assim, cada problema, por mais
complicado e difícil e trabalhoso que seja, deve ser resolvido no
mesmo dia e no mesmo instante em que surge. Vede quanto isso
é importante. A mente que deixa um problema criar raízes, por
não poder resolvê-lo, por não possuir a capacidade, a intensidade,
o ardor, necessários ao aprender — essa mente, como se pode ver
neste mundo, se torna insensível, medrosa, feia, interessada só
em si mesma, egocêntrica, brutal.
Por conseguinte, cumpre resolver o chamado “problema
do sexo”. E para resolvê-lo inteligentemente — sem dele fugir,
sem reprimi-lo, sem fazer um certo voto idiota e, também, sem
ceder — é necessário compreender o problema do prazer. E im-
porta, ainda, compreender outro problema, ou seja, que os entes
humanos, em maioria, não são originais. Muitos são capazes de
recitar o Gita às avessas, mas são entes humanos “de segunda
mão”, sem nada de original, nada de espontâneo, de real — nem
intelectual, nem estética, nem moralmente. Só uma coisa lhes
resta: o apetite, não só do estômago, mas também do sexo. Não
há moderação nem no comer nem no sexo. Tendes visto pessoas
a comer, a ingurgitar-se — e a mesma coisa se observa no domí-
nio sexual.
Assim, para compreenderdes este problema, que é tão
complexo, pois abrange a beleza, a afeição, o amor, tendes de
compreender o prazer, espedaçar esse condicionamento de vossa
mente, que só repete o que outros disseram há séculos ou há dez
anos. É uma esplêndida maneira de fugir, essa, de citar Marx, Sta-
lin, Lenine; e outra esplêndida maneira de fugir é citar o Gita —
como se o tivésseis compreendido... Vós tendes de viver, e para
viver, não deveis ter problemas.

285
Por conseguinte, para compreenderdes este problema do
sexo, deveis libertar a mente, o intelecto, a fim de poderdes olhar,
compreender, estar sempre em movimento; e também, emocio-
nalmente, esteticamente, olhar as árvores, as montanhas e os
rios, e a sordidez de uma rua imunda; e deveis prestar atenção a
vossos filhos — como estão sendo educados, como se vestem,
como lhes falais. Tendes de ver a beleza de uma linha, de um edi-
fício, de uma montanha, da curva de um rio; ver a beleza de um
rosto. Tudo isso é libertar energia, não mediante a repressão, não
mediante a identificação com uma certa ideia: é o libertar de
energia em todas as direções, de modo que, estética e intelectu-
almente, vossa mente se mantém ativa, racional, lúcida, e percebe
as coisas como são. A beleza de uma árvore, de uma ave que voa,
da luz refletida na água, e de tantas outras coisas da vida — quan-
do de nada disso estais cônscio, o que tendes é só o problema
sexual.
A sociedade vos diz que deveis ser moral; e essa morali-
dade é a família. A família se torna uma influência mortal quando
oposta à coletividade, à sociedade; é aí que se inicia o processo
destrutivo. A virtude, pois, nada tem que ver com a respeitabili-
dade. A virtude é como uma flor que se abre; não é um estado
alcançável mediante esforço. Conheceis a bondade; não se alcan-
ça a bondade, nem a humildade, mediante esforço. Só o homem
vão luta para se tornar humilde. Uma pessoa ou é boa, ou não é.
Ser não é vir a ser. Ninguém pode vir a ser bom, ninguém pode vir
a ser humilde. Assim é a virtude. A estrutura moral de uma socie-
dade baseada na imitação, no medo, em feios interesses e ambi-
ções pessoais, na avidez, na inveja — não é virtude. Virtude é a
ação espontânea do amor — espontânea. Não é uma coisa calcu-
lada e cultivada, chamada “virtude”. Ela deve ser espontânea; do
contrário, não é virtude. Como pode ser virtude, se é coisa calcu-
lada, exercitada, mecânica?
Tendes, pois, de compreender o prazer; e também de
compreender a natureza e significado do prazer e do sofrimento;

286
talvez tratemos destas questões noutra ocasião. E cumpre igual-
mente compreender a virtude e o amor.
Ora, o amor é algo que não se pode cultivar. Não se pode
dizer “aprenderei, praticarei o amor”. A maioria dos idealistas, a
maioria dos que fogem de si mesmos por meio de atividades inte-
lectuais, emocionais, não tem amor. Poderão ser maravilhosos
reformadores sociais, excelentes políticos — se pode existir “polí-
tico excelente” — mas não tem amor nenhum. O amor é coisa
inteiramente diferente do prazer. Não podemos encontrar-nos
com o amor sem o profundo discernimento da paixão. Não pode-
mos encontrar-nos com ele, se o negamos, dele fugimos, porém
só se o compreendemos. Há um grande deleite na beleza do pra-
zer.
O amor, pois, não pode ser cultivado. O amor não pode
ser dividido em amor divino e amor físico; só há Amor — não,
amor por muitos ou por um só. Por isso, é absurda a pergunta: “E
vós, amais a todos?” — Uma flor perfumosa não tem preocupa-
ções sobre quem a cheira ou quem a despreza. Assim é o amor. O
amor não é uma lembrança. Não é coisa da mente ou do intelec-
to. Ele nasce naturalmente, como a compaixão, quando o proble-
ma da existência — o medo, a avidez, a inveja, o desespero, a
esperança — foi compreendido e resolvido. O homem ambicioso é
incapaz de amar. O homem apegado à família não tem amor. E
tampouco o ciúme está ligado ao amor. Quando dizeis “Amo mi-
nha mulher”, não estais dizendo a verdade, porque no próximo
momento tendes ciúme dela.
O amor implica a mais ampla liberdade — mas não para
cada um fazer o que bem entender. Mas o amor só vem quando a
mente está muito silenciosa, desinteressada, não concentrada em
si própria. Não estou tratando de ideais. Se não tendes amor, não
importa o que fizerdes — sair em busca de todos os deuses possí-
veis e imagináveis, entregar-vos a toda espécie de atividade social,
tentar melhorar as condições de vida do pobre, reformar a políti-
ca, escrever livros, escrever poemas — sois um ente humano mor-

287
to. E, sem o amor, os vossos problemas crescerão e se multiplica-
rão, infinitamente. Com o amor, podeis fazer o que quiserdes,
sem receio de perigo, de conflito. Porque o amor é a essência da
virtude. E a mente que não se acha no “estado de amor” não é
religiosa, absolutamente. Só a mente religiosa está livre de todos
os problemas e conhece a beleza do Amor e da Verdade.
A suprema realizaçã o

[...] VIVEMOS NESTE MUNDO num estado de relação —


relações entre o homem e a mulher, entre amigos, entre nós e
nossas ideias, nossas posses, etc. A vida exige relações, e estas
não podem existir quando a mente está a isolar-se em todas as
suas atividades. Observai esse "processo" em vós mesmos. Quan-
do existem atividades egocêntricas, não há relações. Não importa
se estais dormindo com outra pessoa na mesma cama, ou viajan-
do num ônibus repleto de passageiros, ou contemplando uma
montanha, se vossa mente está toda empenhada em atividades
egocêntricas, é claro que só poderá levar-nos ao isolamento; por-
tanto, não há estado de relação.
Ora, é por causa da agitação decorrente dessa atividade
egocêntrica que a maioria de nós começa a investigar o que é o
amor, uma vez que toda atividade egocêntrica se baseia na busca
do prazer e no evitar a dor. Enquanto estivermos investigando de
um centro que existe para seu próprio prazer, será inteiramente
inútil e vã a vossa investigação. Para a verdadeira investigação,
precisamos estar livres dessa atividade egocêntrica — e isso é
dificílimo. Requer grande inteligência, muita compreensão e pene-
tração, e, por conseguinte, uma mente lúcida: uma mente que
não seja sentimental nem emocional, que não se deixe arrebatar
pelo entusiasmo, porém que esteja muito clara, vigilante, sensível

288
a tudo o que a rodeia. Só essa mente pode começar a investigar
isso que chamamos "amor".
Ora, que é o amor para a maioria de nós, que é ele real-
mente, e não como gostaríamos que fosse? O que gostaríamos
que fosse o amor é uma mera ideia, um conceito, uma fórmula e,
consequentemente, uma coisa sem validade alguma. Devemos
começar com o que é, e não com o que deveria ser. Devemos
começar com o fato, e não com opiniões e conclusões. Conclu-
sões, opiniões, fórmulas, são absolutamente desorientadoras e
destrutivas. Uma maravilhosa utopia, concebida ou formulada por
alguns espíritos engenhosos, sagazes, poderá deformar e destruir
as vidas de milhares e milhões de indivíduos, porque de boa men-
te estarão dispostos a matar ou se deixarão matar em defesa des-
sa ideia. E a mesma coisa fazemos, interiormente, com nós mes-
mos. Temos uma fórmula, um sentimento, uma crença em que,
para amar, devemos ser isto ou aquilo, e torturamos as nossas
vidas, vivemos em agonia, porque queremos ajustar o fato — o
que somos — ao ideal — o que deveríamos ser que é pura ilusão,
mera invenção da mente e, portanto, sem nenhuma realidade.
Assim, vamos agora investigar, não partindo do que de ve-
ria ser, porém do que é. Que é realmente o nosso amor? Nele, há
prazer, dor, ansiedade, ciúme, apego, ânsia de posse, de domínio,
e o medo de perdermos o que possuímos. Há o amor existente
nas relações entre duas pessoas, e há o amor a uma ideia ou fór-
mula, quer relativa à pátria, quer a uma utopia ou Deus. Mas,
falando a respeito de amor, só nos estamos referindo ao amor
existente nas relações, e não àquela coisa venenosa chamada
"amor à pátria", a esse nacionalismo patriótico tão explorado pelo
político e o sacerdote. Referimo-nos ao fato — ao amor realmente
existente entre os entes humanos. Nesse amor há dor, há a tortu-
ra da incerteza, o ciúme, o medo da solidão e, por conseguinte, a
ânsia de possuir, de dominar, prender. Tudo isso são fatos, não?
Por essa razão, há o casamento legal, instituído pela sociedade
para a proteção da prole. Mas a família, como unidade, está opos-
ta a cada uma das outras "unidades" ou famílias. "Minha família"

289
está em competição com todas as outras famílias do mundo. E no
seio da própria família trava-se uma batalha incessante: o desejo
de possuir, dominar, e daí, o medo, o ciúme, a ansiedade, sobre se
somos amados ou se não somos amados, etc. É isso que chama-
mos "amor". E, embora a pessoa deva ter família, procura de vá-
rias maneiras fugir àquelas torturas: por meio de atividades soci-
ais, ou tornando-se fanaticamente religiosa e ingressando em
alguma pequena e insípida organização em que se cultiva a crença
numa dada fórmula a respeito de Deus, de Jesus, de Buda, etc.
Ou, ainda, interpretando as relações de família como algo muito
superficial, uma passageira carga que teremos de suportar, e, por
conseguinte, determinamo-nos a levá-la até o fim.
Isso é o que chamamos "amor". Ao nos tornarmos in-
satisfeitos com o chamado amor à família, passamos ao amor a
Deus, o amor à humanidade, ou o amor ao próximo. Não sabemos
realmente o que é o amor, mas amamos a Deus, amamos ao pró-
ximo — pelo menos o dizemos. E ao mesmo tempo estamos des-
truindo o nosso semelhante com impiedosa ambição, por meio de
astutas práticas comerciais e de todas as formas de competição
existentes na moderna sociedade. Há também o chamado amor
dos pais aos filhos — e bem conheceis a verdadeira estrutura, as
torturas desse jogo em que predomina o instinto de posse.
Agora, se somos sensíveis, vigilantes, se sentimos e obser-
vamos, sabemos de tudo isso. Disso estamos íntima e dolorasa-
mente cônscios e, por essa razão, perguntamos se é possível um
indivíduo ter vida de família, viver com sua mulher ou marido,
com seus filhos, livre dessa tortura. Se é capaz disso, o indivíduo
começa, então, talvez, a descobrir o que é o amor. O amor, com
efeito, exige que vejamos a realidade de nossa vida cotidiana, não
é verdade? Os insignificantes e diários incidentes correntes na
família, no emprego, no ônibus, no carro, na estrada; o desrespei-
to que sentimos pelos outros — cientes que estamos de todas
essas torturas, existe possibilidade de pormos tudo isso à mar-
gem, realmente e não apenas teoricamente? É possível não ter-
mos apego, não querermos possuir, dominar ou ser dominados?

290
Se vosso esposo ou esposa deseja ir para a companhia de outrem,
há possibilidade de não sentirdes ciúme, ódio, antagonismo? Por
certo, só então se tornará possível a vinda de algo desconhecido.
O amor que temos é o conhecido, com todos os seus so-
frimentos e sua confusão; nele, há a tortura do ciúme, os horrores
e penas de violência, o prazer sexual. É só isso que conhecemos, e
não temos vontade de enfrentar este fato inegável.
Como sabeis, podemos viver com a beleza daquelas mon-
tanhas, e a ela nos habituarmos inteiramente. Ao cabo de uma
semana ou de dez dias, já não a notaremos sequer. Tornar-nos-
emos como os aldeões, que não olham para as montanhas nem
por um segundo, de tal maneira se acostumaram com elas. Acos-
tumamo-nos com a beleza, assim como nos acostumamos com a
fealdade; o importante não é a beleza nem a fealdade porém o
fato de nos habituarmos com qualquer coisa. Acostumamo-nos
com nossa vida, nossas torturas, nossas tribulações, nosso banal
ambiente doméstico, com toda a fealdade de nossa mente estrei-
ta, vulgar. Não queremos ver mais longe, romper as cadeias desta
confusão, descobrir e, assim, nos acostumamos com tudo. E,
quando nos acostumamos com qualquer coisa que seja — beleza,
tortura, ansiedade, fealdade — nossa mente se torna embotada,
insensível, desatenta, e, nesse estado, começa a ocupar-se com
coisas de todo o gênero: Deus, religião, entretenimento, trabalho
social, tagarelice, acumulação de conhecimentos, ou televisão.
O importante, pois, é estarmos cônscios dos fatos de nos-
sa vida, de suas torturas, da ânsia de posse e de domínio, do con-
flito, das constantes correções, críticas, exigências — que vivamos
com tudo isso sem nos acostumarmos; que de tudo isso esteja-
mos cientes em vez de simplesmente o aceitarmos. Não quero
dizer que devamos suportar essas coisas, abraçar-nos com elas,
porém, sim, que cumpre olhá-las e nunca evitá-las, nunca fugir
delas. Devemos encarar os fatos de nossas relações diárias sem
apresentar as razões de como devem ser as coisas. Considerar os
fatos da vida dessa maneira requer muita energia, e essa energia

291
só a temos quando não estamos fugindo desses fatos, por meio
de crença, de explicações, da busca de sua causa, ou de outro
modo. Se estamos completamente cônscios do que é, ou seja se
percebemos todas as suas complicações e sutilezas, se nos famili-
arizamos com o conhecido em todos os seus aspectos, então, tal-
vez, teremos a possibilidade de libertar-nos dele.
Se não sabemos o que é o amor, nunca saberemos o que é
a morte. Já nos acostumamos com a morte. Centenas de homens
estão sendo mortos no Vietnã. Tivemos duas horrorosas guerras
mundiais, e inúmeros milhares de seres humanos foram mortos
na Rússia por causa de ideias. Já nos acostumamos com esses
morticínios, e com a fome, a pobreza e a degradação reinantes na
Ásia, e existentes lado a lado com a prosperidade da Europa e da
América. Habituamo-nos com essa coisa chamada "morte", com
ela nos conformamos. Dizemos que a morte é o fim inevitável do
homem — velhice, doença, e, por fim, o túmulo ou o crematório,
conforme as preferências. Não nos revoltamos contra a morte
porque não podemos; ela se vem aproximando, dia por dia, à me-
dida que vamos envelhecendo. Temos abusado do organismo
físico e, por isto, existem doenças. Um indivíduo pode morrer
jovem, ou morrer velho, mas num e noutro caso, há doença, dor,
tortura. Dado o desejo geral de boa saúde, poderemos chegar a
viver 150 ou mesmo 200 anos, mas, no outro extremo, a morte
está sempre à nossa espera.
Sabendo inevitável a morte, a maioria de nós tem fé na
reencarnação, na ressurreição, ou noutra forma de continuidade
após a morte, porque o que desejamos é só continuidade; assim
sendo, a crença, a fórmula, a esperança, o dogma têm, por sua
vez, enorme influência em nossa vida. Não estamos interessados
no fato que é a morte, porém só nos interessa saber se há vida
após a morte. Dizemos: "Que adianta lutar, cultivar a virtude, ten-
tar tornar-nos divinos (sabeis com quantas ninharias nos ocupa-
mos) para acabar morrendo?" Por esta razão, dizemos que algo
deve existir além desta vida.

292
Ora, que é este algo que desejamos continue a existir?
Compreendeis? Com palavras diferentes, em diferentes esferas,
esperanças de variada natureza, etc., as religiões de todo o mun-
do prometem uma certa espécie de continuidade após a morte.
Mas, abstraindo de tudo isso, que é que desejamos continue a
existir? Nossa vida de cada dia, não? A vida que conhecemos. E
que é essa vida que conhecemos? É a vida de companhia, a vida
de torturas, incertezas, esperanças, de cada dia; a agonia do iso-
lamento, as disputas, a assiduidade ao escritório, dia após dia,
durante trinta ou quarenta anos; a pequenina mente que possuí-
mos, a vida condicionada, o prazer de viajar e ver coisas novas; a
doença, a dor, o vazio, o tédio de nossa existência — eis tudo o
que conhecemos. Agora também sabemos como atingir e fotogra-
far Marte. Conhecemos cada vez melhor as coisas externas.
Ora, que é isso a que estamos tão desesperadamente
apegados? É, evidentemente, a memória das coisas passadas.
Mas, não é horrível percebermos que estamos apegados a algo já
passado, ido, acabado, morto? É só isso o que conhecemos e por
isso lhe estamos apegados. Estamos apegados ao conhecido. Nos-
so caráter, nossos livros, os quadros que pintamos, as experiên-
cias, os prazeres e ansiedades que tivemos, nossos velhos senti-
mentos de culpa — tudo isso pertence ao passado, a que estamos
aferrados. É só o que conhecemos e queremos subsista após a
morte. Se perdi minha mulher, desejo reencontrá-la no além, etc.
O que tememos, pois, é perder o conhecido, ou seja o passado —
o passado, que atravessando o presente, cria o futuro; a isso é
que estamos apegados.
Prestai atenção, por favor. Não estou fazendo propaganda
de coisa nenhuma, porém apenas apontando os fatos.
Ora, quando nos apegamos a uma coisa passada, já estão
mortos a nossa mente, o nosso coração, o nosso ser inteiro. Ainda
que se trate de um profundo deleite, um intenso prazer, se a isso
nos apegamos, nossa mente se torna uma coisa pequenina e feia,
incapaz de viver realmente. Assim é nossa vida. Porque tememos

293
o findar desta nossa chamada "vida", inventamos ou esperamos
uma continuidade após a morte. Mas, quando uma pessoa está
consciente de tudo isso e de não mais fugir; quando está olhando,
observando, escutando, percebendo, sem escolha, tudo o que se
passa em seu interior — vê-se, então, frente-a-frente com a ques-
tão da morte, que, em verdade, é o desconhecido. Não conheceis
a morte; a seu respeito só tendes meras ideias. Tendes ideias,
temores, ansiedades, e o terrível sentimento de solidão, de isola-
mento. E a pessoa que bem percebe isso pergunta a si própria:
"Posso morrer para tudo o que é conhecido, morrer para o passa-
do, não a pouco e pouco, não conservando o que é agradável e
rejeitando o desagradável, porém morrer tanto para o prazer co-
mo para a dor, quer dizer, pôr fim ao passado sem discussão?
Ao chegar a morte, não há discutir, não há dizer-lhe: "Dai-
me alguns dias mais." Em chegando a morte, vós partis. Da mes-
ma maneira devemos esvaziar nossa mente de todo o pretérito.
No esvaziar da mente, de bom grado, com naturalidade e sem
esforço, estamos, então, talvez, libertados do conhecido, haven-
do, assim, a compreensão do desconhecido.
A maioria de nós não sabe o que é o amor. Conhecemos a
dor e o prazer de amar, mas não vemos o fato que é o amor como
vemos o fato que é uma montanha; dessa forma, o amor é, para
nós, algo desconhecido, tal como a morte. Mas, com a mente livre
do conhecido apresenta-se-nos aquilo que não se pode conhecer
mediante palavras, experiência, visões, qualquer forma de expres-
são. Se não conhecemos o amor, se não conhecemos a extraordi-
nária plenitude e riqueza da morte, jamais saberemos o que é
viver sem tortura, sem ansiedade, sem as aflições de cada dia.
O descobrimento do amor

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