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31/03/2022
Agradecer meus Mestres e Mestras, esses que, mesmo nas discordâncias, na crítica
dura e nas rupturas, me formaram Angoleiro, me formaram um Capoeira.
…
A minha licença à essas minhas pessoas mais velhas, pra tomar momentaneamente
seu espaço pra falar de Capoeira, e, particularmente, de Capoeira Angola.
E é a partir dessas contradições duras e concretas que quero falar hoje de Capoeira.
Não falar da minha história de Capoeira, mas sim da Capoeira e do seu
desenvolvimento histórico no Brasil.
Reconstituir historicamente a Capoeira como Luta real e concreta contra opressões e
explorações, ainda tão reais na nossa sociedade atual.
E hoje a gente consegue entender melhor estes grupos entravam em conflito por causa
do controle do território e dos locais de trabalho, que eram espaços onde se mostrava a
exclusão social do Negro no meio urbano.
Os conflitos que aconteciam nos chafarizes, nos cantos dos carregadores, nas praças,
nos comércios, eram formas de disputar espaco com outros Negros ou com as classes
proprietárias brancas portuguesas e européias, que desejavam esses Negros fora dos seus
domínios.
E a gente entende que esses conflitos existiam por um problema fundamental da
questão do Negro no Brasil:
que é a questão do não acesso à terra pra poder produzir sua subsistência. O não
acesso à uma reforma agrária que resolvesse o problema da exclusão do Negro ao acesso à
terra, à educação, à participaão política, à mobilidade econômica e social…
…
A Capoeira, a partir do Estudo profundo, desmistifica a historia do Negro enquanto
um problema social, e recoloca o Negro enquanto resultado do problema imposto pelas
classes dominantes de um capitalismo nascente.
Tira o Negro do papel da culpa e coloca ele como fruto da exploração e da exclusão.
E pra que essa exploração e exclusão aconteça, o racismo não cumpre outro papel
senão manter o negro excluido e mais explorado, e sobre o controle econômico, social,
político e cultural, pra justificar essa exclusão.
O verdadeiro problema do Negro no Brasil se encontra na exclusão dele do trabalho e
do acesso à terra. Da exclusão do acesso a propriedade privada dos meios de produção, em
um Brasil escravagista… situação que permanece também depois da abolição.
O Negro e a Capoeira produzida pelos Capoeiras daquele tempo historico foram corpo
de Resistência. Coletivo e estratégico.
Nesse sentido, a Capoeira se funda, na sua origem, como um movimento rebelde dos
Negros. Esses mesmos Negros que nunca foram cordiais nem coniventes com sua
escravização, como a historia do dominador escreveu.
Pelo contrário, o Capoeira se utiliza da Capoeira, assim como outros grupos Negros se
utilizaram da sua rebeldia pra se organizar e produzir Levantes, Insurreições, Revoltas e
Rebeliões, buscando se libertar de uma opressão e se emancipar da escravidão.
Mas a repressão contra o Negro não se deu somente na violência ao corpo físico. Nem
somente na subjetividade desse sujeito.
A violência se deu na desumanização e na inferiorização, através do racismo, pra
justificar a escravidão. Mas se deu, acima de tudo, na exploração da força de trabalho dos
Negros, também dos indígenas no Brasil.
Além da exploração das riquezas e da terra. Seja do continente americano, seja do
Continente Africano. Onde todas as riquezas produzidas eram enviadas pra Europa, formando
a acumulação capitalista naquele local, e transformando o mundo na sua colônia.
O Negro foi o proprio produtor das condições pro seu movimento abolicionista, a
partir do momento que causou violência, morte de senhores e dos feitores, terror no meio
urbano, abandono das fazendas, fugas pras matas pra construção dos Quilombos.
A abolição ocorreu com apoio do sujeito branco só quando a pressão internacional ja
se somava com a própria pressão do Negro no Brasil.
E nesse movimento se incluía a Capoeira, o Capoeira.
Além disso, muito importante, e’ que a Republica Velha, fundada através de um golpe
militar, destitui a monarquia, mas manteve a mesma estrutura anterior, da grande posse de
terras, os latifundios, pras classes ricas que vão se manter no mesmo lugar, agora, ajudando a
implantar o capitalismo, que já se amadureceu na Europa, aqui dentro do Brasil.
Depois da República em 1889 e da criminalização da Capoeira no código penal de
1890, se antes existia a perseguição dos Capoeiras, das maltas, a partir das decadas de 1920,
1930, essa perseguição vai continuar, até que estes grupos vão desaparecendo.
E agora, depois de muitas tentativas de cooptação pelo Estado, que buscou tomar a
Capoeira pra ser sua “gymnástica Nacional”, o estado vai tomando, a partir de decada de
1930 a Capoeira, pra um movimento de fortalecimento de uma ideologia do nacionalismo,
pra fortalecer uma ideia do brasileiro trabalhador, que seria contra a vagabundagem, contra a
vadiagem, e obviamente, contra o corpo Negro.
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No plano econômico, do período das oligarquias da República Velha em 1889 até a
instituição da revolução do Estado Novo em 1930 com Getúlio Vargas, em mais um golpe na
nossa história, a propriedade da terra continuou na mão das classes dominantes, enquanto pro
Negro continuaram restarando as ações de imobilismo social.
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Nesse momento, a Capoeira, a partir de Bimba, se mercadoriza. O ensino da Capoeira
se torna mercadoria e se adequa às necessidades de controle social do Estado. Uma Capoeira
pra formar o trabalhador, disciplinado.
Vira uma prática sistematizada, até mesmo parecida com uma estrutura militarizada,
por exemplo no caso dos treinamentos da especialização da capoeira regional, nas matas, que
lembravam táticas de guerrilhas.
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Mas guerrilhas diferentes daquelas dos Escravizados do século XIX.
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E ai, entre o período da Ditadura do Estado Novo (1937-1945), que controlou a
producao da cultura e cooptou as manifestações tradicionais como o Samba, o Candomble e a
Capoeira;
até o período da Ditadura Militar de 1964, a Capoeira enquanto mercadoria, enquanto
Luta de ringue, enquanto método da educação física, vai se desenvolvendo.
Enquanto o Estado eleva o discurso do “trabalho, que dignifica o homem”, vai servir
da sua força de trabalho pra enriquecer o “andar de cima”,
E nesse sentido, também se vai também se modificando a prática da Capoeira pra ser
aceita pela sociedade, e enquanto também vai embranquecendo ela, e transformando em mero
produto, em método.
Método que a partir de agora vai estar nas quadras das competições, nas escolas, nas
universidades, sempre servindo aos interesses ideológicos do capital, enquanto deixa de
servir às massas socialmente excluídas e vilipendiadas.
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A Capoeira, pela mão dos fundadores das federações, que contavam com o apoio do
Estado militar da ditadura, que financiava tais atividades de competição, esportivização,
padronização, regramento, regulamentação, sistematização e expansão, deixa de ser o ponto
de aglutinação, iniciação e formação crítica da Luta Negra e passa a incluir o Negro no sonho
de poder ascender na vida a partir da mercadorização da Capoeira, que percorre toda a década
de 1970 e depois, de 1980, com o movimento de redemocratização e expansão da Capoeira
no exterior.
E não vai ser raro ver capoeiristas desse período histórico da esportivização
defenderem que o período da ditadura militar foi bom, pra si e pra a Capoeira. Além de
continuarem defendendo a esportivização da Capoeira ainda hoje. Inclusive capoeiristas
Negros.
O mesmo Negro que não vai deixar de sofrer com o racismo e com o controle social
no Brasil
…
Passando pela década de 1980, e já avançando a década de 1990 e anos 2000, as
relações não parecem mudar. Enquanto o Movimento Negro toma folego e buscou se centrar
nas políticas afirmativas pro reparo histórico do vilipêndio ao Negro, vao nascendo os
grandes grupos de capoeira.
Surge a internet, os cursos de formação, os workshops, a tentativa de tomada da
Capoeira pelo sistema da educação física dos CREFs e CONFEF, inclusive com apoio de
dirigentes de ligas, federações e confederações que, na verdade querem manter o controle do
mundo do trabalho da Capoeira pra si…
A Cada dia, a Capoeira, que ta na mão dos agora capoeiristas, especialistas em
educação e esporte, se distancia do povo mais pobre e Negro, e, na assanha de fazer dinheiro,
ocupando todos os espacos possíveis, se consolida como entretenimento, como folclore,
como esporte, como campo de trabalho, emprego e renda.
A Luta toma outro rumo, e agora, auxilia o próprio modelo capitalista a se reproduzir.
- Recebendo menos que o sujeito branco, nos mesmos cargos. Sendo menos ainda,
caso seja uma mulher Negra;
- Principal vítima do homicídio policial, segundo os dados do Atlas da Violência;
- Maioria entre o número de desempregados, em trabalhos precários, no trabalho
informal sem direitos trabalhistas, subempregados e trabalhando menos do que poderia e
gostaria;
- E, fundamentalmente: Não é dono das posses de terras, nem pra sua moradia, nem
pro seu trabalho, nem pra sua subsistência;
Também não é possuidor dos meios de produção, como as fábricas, a ciência, os
meios de mídia, as universidades, os mecanismos financeiros…
O Negro, que antes era o principal representante do Ser social Capoeira, nao foi, nem
é hoje maioria representado nos cargos políticos, nos cargos do judiciário, nem do legislativo,
portanto, continua não tendo suas demandas representadas;
O Negro até hoje não vê atendidas suas demandas e, aquelas duramente conquistadas,
como as cotas, por exemplo, possivelmente seriam facilmente destrúidas por essa
representação política atual,
Assim como por exemplo a imposição contínua da discussão da pauta da diminuição
da maioridade penal, que vai encarcerar mais do mesmo: uma massa Negra, majoritariamente
sem precedentes, e que agora, serve também de mão de obra de um sistema carcerário
capitalista.
O Negro não recebeu nenhum tipo de reparação, de reforma agrária. E assim também
são os Quilombolas, os Indígenas…
Estes, pelo contrário, tem suas demarcações de terras diariamente ameaçadas, além de
estarem continuamente morrendo na mão dos ruralistas, dos grandes proprietários de terra,
que querem expandir ainda mais suas terras e seu lucro, matando quem estiver à sua frente, e
com ajuda primordial do Governo Federal e de outras instâncias políticas, judiciárias e
empresariais.
E ainda pior, mesmo quando o discurso atual de ditos mestres e mestras se faz em
cima da discussão da capoeira como “instrumento de libertacao”.
A Roda, que se formava e ainda se forma nas ruas, hoje nas escolas de capoeira. Que
tem um grande potencial de aglutinação, de organização de massas e de discussão dos
problemas que atingem a gente.
A Roda de Capoeira que, como foi antes, em tempos passados, pode hoje ser lugar de
politização, de ganho de consciência coletiva pra gente buscar sair da situação em que a gente
ta.
A Roda de Capoeira que, naquele momento, permitiu a gente se reunir, se
inconformar, se revoltar, faz a gente hoje poder sair momentaneamente do domínio das redes
sociais, da indústria cultural, e retornar pra um caminho de subversão e ação.
Mas, pra isso, é preciso que Mestres e Mestas de fato, atualizem seu saber, pois o
Negro historicamente não deixou de saber qual era a sua situação, pra buscar encontrar
saídas. Em todo o período de formação do país.
A historia de um Negro ignorante não encontra fundamento na história das Revoltas,
dos Levantes e das Revoluções que eses Negro produziu.
A Capoeira pode se reatualizar, a partir dos Capoeiras, sujeitos sociais e politizados de
hoje, a partir da consciência de onde a gente se encontra. Ganhar novamente seu papel social,
dentro das contradições que o capitalismo nos impõe.
Ou seja, mesmo que a gente precise ganhar dinheiro a partir da Capoeira, a gente não
pode perder de vista a continuidade da construção da Luta popular, que toque nos assuntos
históricos fundamentais pra nossa real autonomia e liberdade, que é a destruição completa
desse modelo de produção e reprodução da vida que se chama capitalismo. E assim, poder
retomar a busca de um modo de produção e reprodução da vida que seja de igualdade de
acesso às oportunidades pra todas as pessoas.
E essa é uma questão histórica, que precisa ser construída em conjunto, mas que
precisa ser discutida a partir da ideia da abolição de uma sociedade de classes e da
mercadorização de tudo e também da própria força de trabalho, da vida.
E essa é a maior homenagem que a gente poderia prestar ao Mestre Moa do Katende.
Homem Negro, militante, produtor da Cultura, orientador dos saberes tradicionais
Afro Brasileiros.
E foi por este saber que ele, politizado, bucando informar outro homem Negro, foi
assassinado!
O bolsonarismo e sua ignorância fez com que dois iguais pudessem impor violência
sobre o outro.
Moa do Katende não foi assassinado apenas pelo bolsonarismo. Mas pela ideologia
das classes sociais racistas e sexistas, que orientam esse pensamento.
Ideologia que forma uma classe política, que coloca na TV que o Agro é pop; que quis
fazer a gente acreditar durante uma pandemia, que a gente devia escolher entre viver,
podendo ser auxiliado pelo poder público eleito, ou ter que sair para trabalhar e morrer.
Afinal, os dados estatísticos mostram hoje que a grande massa de mortos pelo
COVID-19 foram motoristas do transporte público, caminhoneiros, trabalhadores da
construção civil e empregadas domésticas. E a gente pode imaginar quem racialmente
representa a maioria nesses cargos…
Honrar a memória de Mestre Moa do Katendê é buscar uma Capoeira que retorne ao
seu papel social enquanto Luta rebelde concreta contra um modelo de vida que nos explora
pra poder continuar enriquecendo a poucos.
É reaprender, a partir da Luta dos nossos antepassados, que a Luta deles foi contra o
escravismo no Brasil, que estruturava o capitalismo nascente na Europa. O mesmo
capitalismo que precisou do racismo pra criar desigualdades pra poder explorar e escravizar
os Negros de um continente Africano inteiro.
Então, enquanto existir no mundo o racismo e o capitalismo, a Luta da Capoeira tá
mais viva do que nunca! E precisa ser feita!
Volta do mundo!