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Resumo

A FUNÇÃO DOS PRINCÍPIOS NA ORDEM JURÍDICA CONSTITUCIONAL

A partir das primeiras décadas do século XX, diante de experiências


concretas que demonstraram os riscos inerentes ao formalismo e o
absolutismo legislativo, instala-se lentamente uma crise no modelo de Estado
de Direito. O problema não se restringia somente ao expediente técnico-jurídico
do Estado legislativo, mas à dimensão axiológica que o fundamentava.
A lei como norma geral e abstrata pressupunha uma sociedade
homogênea de homens iguais e livres. Só neste contexto social era possível
uma regulação integral da vida jurídica com poucas normas, preferencialmente
codificadas. A emergência de múltiplas e heterogêneas pretensões sociais e a
separação entre Direito, sociedade e mercado, determinaram a superação
dessa imagem de homogeneidade e causaram a lenta erosão do Estado de
Direito, em decorrência desse fenômeno, um novo paradigma que há muito
vinha sendo delineado começa a fortalecer-se e ganhar contornos definidos,
não se afigurando apenas como uma espécie de transição, mas, sobretudo,
como uma transformação que afeta profundamente a concepção de Direito.
Nesse contexto, é a Constituição que figura como o centro de onde
emanam as demais normas, ou seja, com o atributo de ordem jurídica
fundamental do Estado e da sociedade, que possui uma validez jurídica formal
de natureza superior às demais normas.

A primazia da Constituição sobre a lei exige uma configuração normativa


aberta que não contemple apenas regras, mas sobretudo, princípios. Como
normas derivadas de valores consagrados na sociedade, frequentemente já
materializadas nas legislações infraconstitucionais internas ou internacionais,
os princípios ingressam nas constituições com um caráter de normatividade,
outrora inexistente.
Por essas razões, apesar de recorrente, a temática dos princípios
merece ser revisitada, especialmente quando se trata de obra cujo objetivo é
essencialmente proporcionar subsídios de pesquisa aos acadêmicos de Direito.
Para compreender como os princípios projetam-se na Constituição, cabe
inicialmente contextualizá-la, identificando, sobretudo, o seu conceito e o que
deve conter uma Constituição material.
A ideia de Constituição já existe desde a mais remota antiguidade. Pelo
menos desde o mundo grego e Romano pode-se detectar a idealização de que
em toda comunidade política deveria existir um conjunto de normas superiores
ao direito ordinário, cujo objeto seria garantir a continuidade da organização
comunitária. Apesar de presente no período de esplendor da democracia
ateniense e da república romana, somente ressurge na Idade Média sob a
forma da chamada «constituição estamental» e continua na Idade Moderna
através da noção de lex fundamentalis. Contudo, a Constituição somente vai
apresentar-se num sentido moderno a partir do século XVIII, na Europa
continental, como uma genuína forma política que vem substituir o anterior
Estado absoluto.

Será no século XVIII, em especial, que o conceito de Constituição


adquire o sentido atual de um acordo fundado segundo a ideia de um contrato
social, na qual estão contidas as normas fundamentais da Sociedade e do
Estado.
A proposta que parte da ideia geral de um pacto, como modelo
hipotético para explicar a origem da Sociedade e a posterior formação do
Estado, apesar da sua aparente superação, segundo Peña Freire, permite
manter viva sua utilidade, dadas suas constantes possibilidades de atualização.
O pacto é, de certo modo, um instrumento válido para justificar em cada
momento histórico a inclusão de novas pretensões e aspirações sociais
sentidas como vitais. Assim entendido, o pacto social guarda uma considerável
analogia com o momento constituinte, valorando a formação da Constituição e
dando-lhe legitimidade.

A ideia do pacto está em consonância com o significado que Lassalle


confere à Constituição, como sendo uma lei que representa o verdadeiro
fundamento das outras leis, irradiando sua força jurídica através das normas
comuns da nação, de modo que todas devem refletir a sua imagem. A seu ver,
a essência da Constituição provém da soma dos fatores reais do poder que
regem um país, de tal forma que quando escritos em uma folha de papel
transformam-se em verdadeiro Direito. Porém, a Constituição escrita será
respeitada e defendida quando corresponder efetivamente aos anseios dos
poderes constituídos. Eis que a sua essência não é jurídica, mas política, de
modo que se o documento chamado Constituição, não expressar as relações
de poder, não passará de um pedaço de papel. A verdadeira Constituição,
aquela que reflete a vontade das forças provenientes da Sociedade, é
resultado de um pacto de consentimento, sem o que se afigura como ilegítima.
Considerando as suas consequências, para Hesse, a concepção de
forças reais de poder como delineada por Lassalle implica que, entre a norma
fundamental estática e racional e a realidade fluida e irracional, existe uma
tensão necessária e imanente que não se deixa eliminar. Para essa
concepção, a ideia de uma vinculação determinante da Constituição real não
significa outra coisa senão a própria negação da Constituição jurídica, pois esta
fica cotidianamente sujeita a sucumbir diante das variações das forças reais de
poder. Essa doutrina afigura-se desprovida de fundamento quando se admite
que a Constituição é possuidora, ainda que de forma limitada, de uma força
própria, motivadora e ordenadora da vida do Estado.
Na opinião de Hesse, há que se avaliar a ordenação jurídica e a realidade
político-social em seu inseparável contexto e no seu condicionamento
recíproco.

A análise isolada e unilateral, separando o ser do dever, conduz


invariavelmente a extrema de uma norma despida de qualquer elemento da
realidade ou de uma realidade esvaziada de qualquer elemento normativo. A
essência da Constituição reside tanto na norma jurídica que está nela contida
como compreende também a realidade com suas forças político-sociais que a
constituíram.
Assevera ainda o autor que a Constituição adquire força normativa na
medida em que logra realizar as suas aspirações normatizadas. Por isso, a
Constituição jurídica, para não permanecer estéril, não deve procurar construir
o Estado de forma abstrata e teórica, mas deve ser o resultado das forças
sociais, políticas e econômicas, visando materializar-se na realidade. Porém,
não há normas superiores indefinidamente. É necessária uma última norma, a
norma fundamental, que é pressuposta, visto que como norma mais elevada
não pode ser posta por uma autoridade, cuja competência teria que se fundar
numa norma ainda mais elevada. Portanto, o fundamento de validade de uma
ordem jurídica é a norma fundamental, como representação do ponto de
partida da criação do Direito positivo.
Deste modo, a norma fundamental não é uma norma material, pois o seu
conteúdo é pressuposto.
Se queremos conhecer a natureza da norma fundamental, devemos
sobretudo ter em mente que ela se refere imediatamente a uma Constituição
determinada, efetivamente estabelecida, produzida através do costume ou da
elaboração de um estatuto, eficaz em termos globais.

A Constituição é uma derivação da norma fundamental, materializada


em normas positivas, que atua, especialmente, na ordenação do sistema
jurídico, garantia dos direitos fundamentais e separação dos poderes. Em
síntese, a ideia da Constituição foi sendo amoldada para configurar-se como o
fundamento de validade das demais normas jurídicas, como reguladora dos
poderes estatais e como repositório de normas diretamente invocáveis pelos
legisladores.
Entretanto, como se afirmou, essa conformação não surgiu do mesmo
modo e no mesmo período. Nos Estados Unidos, como a Constituição de 1787
foi também o ato constitutivo da União, muito cedo foi lhe atribuído o caráter de
norma fundadora do Estado e de todo o sistema jurídico. O mesmo não ocorreu
na Europa, onde a preocupação voltou-se, sobretudo, para a reestruturação e
controle do poder político, aliada à cultura prevalente de que a lei os princípios
são normas jurídicas impositivas e compatíveis com variado grau de
concretização, enquanto que as regras prescrevem imperativamente uma
exigência os princípios suscitam problemas de validade e peso; as regras
apenas questões de validade.
Uma variante dessas abordagens, e que se entende como a mais
adequada é adotada por Streck, ao sustentar que as regras fundamentam-se
nos princípios. Em outras palavras, o princípio atua como o componente
jurídico que institucionaliza e, ao mesmo tempo, delimita o campo de aplicação
da regra, ainda que nela esteja encoberto. Em vista disso, torna-se impraticável
interpretar uma regra sem considerar o seu princípio instituidor.

Do estabelecimento de um liame indissolúvel entre princípios e regras


resulta que, diante de um caso concreto, uma regra deve ser interpretada de
acordo com as diretrizes do princípio que lhe dá fundamento, não sendo
possível efetuar-se uma confrontação com base em outro princípio que não
possui com ela vínculo. Considerando essa conformação como a que
adequadamente harmoniza princípios e regras, não há que se cogitar eventuais
conflitos entre ambos, quando se encontram no mesmo nível hierárquico, como
bem explica Ávila.
Entende-se equivocada, portanto, a posição doutrinária de que os
princípios sobrepõem-se às regras quando colidem. Se fosse aceitável a tese
da possibilidade de ocorrerem conflitos dessa natureza, os efeitos seriam
funestos e gerariam insegurança jurídica.
Feitas essas ponderações, é necessário ainda analisar o sentido que os
princípios jurídicos apresentam no Direito Constitucional. Os princípios
constitucionais são os princípios gerais do Direito alçado à norma suprema, o
que aparentemente tem sido uma tendência no Constitucionalismo atual, ao
positivar aqueles dotados de maior densidade e amplitude normativa.
Ao analisar os princípios no texto constitucional, Canotilho estabelece um
escalonamento de acordo com a posição que ocupam. A articulação de
princípios e regras, de diferentes tipos e características, ilumina a compreensão
da Constituição como um sistema interno assente em princípios estruturantes
fundamentais que, por sua vez, assentam em subprincípios e regras
constitucionais concretizadoras desses mesmos princípios.
Procura com isso demonstrar o modo como se concretizam, de forma
que os princípios mais abstratos vão sendo densificados por outros de menor
grau. Os princípios estruturantes que se constituem em indicativos das ideias
diretivas básicas de toda a ordem constitucional são o Princípio do Estado de
Direito, o Princípio Democrático e o Princípio Republicano. Assim, por exemplo,
o Princípio do Estado de Direito é densificado através de uma série de
subprincípios como o da constitucionalidade, da legalidade e da separação dos
poderes.
Neste paradigma, tem-se então uma estruturação escalonada em que os
Princípios estruturantes espraiam as ideias mestras por toda a Constituição,
em razão da força densificadora que emanam. A seguir, colocam-se os
princípios constitucionais gerais, dotados ainda de uma abstração e abertura
que lhes permite dar sustentação e ligação às regras constitucionais para
complementar todo o arcabouço jurídico e lhe dar uma consistência uniforme.
Não resta dúvida de que a adoção de um sistema em que coabitam princípios e
regras, possibilita a compreensão e melhor adequação das normas aos
anseios de uma Sociedade em constante evolução, do contrário, um modelo
forjado apenas sob regras exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e
completa, sem qualquer espaço livre para a complementação, característica
natural dos sistemas abertos.
É possível perceber, portanto, que as regras possuem uma estrutura em que,
tradicionalmente, concretizam-se pela descrição de um fato, proibindo ou
permitindo determinada conduta, ao que se acrescenta a elas sanções, em se
tratando de regras proibitivas. Os princípios, por seu turno, não se reportam a
um fato específico, que se possa precisar, podendo mais ser entendidos como
delimitadores do campo de abrangência das regras.
Nessa linha, as regras são como normas que descrevem determinadas
situações jurídicas em que, preenchidos os pressupostos por elas descritos,
exigem, proíbem ou permitem algo concretamente, enquanto que os princípios
expressam uma diretriz, sem descrever objetivamente uma situação jurídica,
nem se reportar a um fato particular. Por possuírem um maior grau de
abstração, irradiam-se por diferentes partes, fundamentando e informando a
compreensão das regras, dando unidade e harmonia ao sistema normativo.
Porém, ressalta-se que esse paradigma deve estar configurado de modo que
as regras sejam interpretadas e aplicadas de acordo com os princípios que lhes
dão sustentação, sob pena de enfraquecimento da ordem interna do sistema
jurídico constitucional.

Compreender a configuração que os princípios alcançaram nas


constituições é fundamental para uma adequada interpretação das normas
jurídicas.
No Brasil, o texto constitucional conferiu ênfase a alguns valores,
inserindo-os no seu preâmbulo, mas desprovidos de força normativa. Em
sentido diverso, os princípios constitucionais foram dotados de um grau de
efetividade, com a função de guiar o legislador no momento da elaboração das
normas infraconstitucionais e o Poder Judiciário no exercício do poder
jurisdicional.
Contudo, se os valores se materializam em princípios, e estes
fundamentam as regras, não cabe utilizá-los em desconformidade com essa
lógica, sob o risco de produzir uma instabilidade jurídica, especialmente
quando utilizados para a resolução de conflitos na via judicial. Como se
asseverou, a abrangência de uma regra é delimitada pelo princípio que lhe
confere legitimidade, tornando-se impraticável interpretar uma regra sem
considerar o seu princípio instituidor.
Diante do exposto, é inegável que na sua acepção hodierna, as
constituições convergiram para um viés predominantemente principiológico,
transformando-se em irradiadoras de uma nova concepção do Direito, em que
os valores são a fonte dos princípios e estes o fundamento das regras.
Entretanto, apesar de os princípios desempenharem uma função fundamental
para dar concretude às complexas situações que se apresentam ao Direito,
não se pode olvidar que não lhes cabe, e nem poderia, servir de álibi para
justificar quaisquer decisões no exercício do poder jurisdicional, amparadas
numa aparente discricionariedade do juiz. Do mesmo modo, não podem ser
utilizados pelo Poder Legislativo, na elaboração das leis, e mesmo pelo Poder
Executivo no exercício da sua competência administrativa, para justificar
decisionismos e arbitrariedades.

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