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A mentira, a ambiguidade e o silêncio na

perspectiva levinasiana
Lilian Neves Mise (apresentação USP 27/04/11)

S: A arte do debate contraditório não se encontra restrita apenas


aos tribunais e assembleias publicas, mas também, ao que parece,
esta será uma arte - se é que há - que se relaciona a tudo aquilo
que é dito, pelo modo como um homem é capaz de formar uma
outra semelhança a partir de tudo o que pode ser tornado
semelhante; e de trazer a luz, quando outra pessoa produz
semelhanças entre coisas e a disfarça. (Fedro 261d10-e4)

Emmanuel Levinas é um filosofo da ética [...] (Philippe Nemo na


apresentação do livro de Levinas, Ética e Infinito)

Talvez possa parecer estranho que ao se escolher um filósofo que anuncia


ser a ética a filosofia primeira tenhamos escolhido temas como a mentira, a
ambiguidade, o silêncio para nosso projeto. Mais curioso talvez será constatar que
Levinas, longe de condenar a mentira como um mal moral, anunciará ser este um
dos aspectos que possibilita o diálogo, o aprendizado, a justiça:
O discurso não é simplesmente uma modificação da intuição (ou do
pensamento), mas uma relação original com o ser exterior. [...] É a presença
franca de um ente que pode mentir, quer dizer, dispõe do tema que ele oferece,
sem poder dissimular sua fraqueza de interlocutor, que luta sempre de rosto
descoberto [...] A alternativa da verdade e da mentira, da sinceridade e
dissimulação, é privilégio de quem se mantém na relação de absoluta franqueza,
na absoluta franqueza que não se pode esconder. (LEVINAS, 2008, p. 54)
Nossa pesquisa tomará como fio condutor estas possibilidades da
linguagem. Um ponto de partida é a possibilidade da mentira como condição
essencial para a produção do conhecimento. Levinas trata deste aspecto ao
acompanhar a meditação cartesiana; lembremos o passo no qual é introduzido o
gênio maligno:
Eis por que penso que as usarei [as antigas opiniões] mais
prudentemente se, tomando partido contrário, emprego todos
meus cuidados em enganar a mim mesmo, fingindo que todos
esses pensamentos são falsos e imaginários. [...] Suporei, pois,
que há não um Deus, que é soberana fonte de verdade, mas um
certo gênio maligno, não menos astuto e enganador que poderoso,
que empregou toda sua industria em enganar-me.(DESCARTES,
2000, pag. 37-38)
Descartes introduz o argumento do gênio maligno, apesar de parecido com
o argumento anterior [do Deus pleno que deseja enganar] e realizar a mesma
tarefa de por em dúvida os elementos simples e gerais, é diferente, pois não é
uma opinião antiga da tradição, que parecia verdadeira e clara como a de um
Deus perfeito, mas uma opinião fictícia, criada, artificial, e sem nenhuma
necessidade que possa ser justificada racionalmente. Mas se ela cumpre o
mesmo papel que o argumento anterior, porque inseri-la? A justificativa dada por
Descartes é que este seria um recurso da memória. Outro que podemos deduzir ,é
a demonstração que Descartes faz a sua investigação em plena liberdade,
podendo inclusive manipular suas próprias opiniões para que colaborem em sua
investigação. Com ou sem um Deus pleno, Descartes comprova sua liberdade,
pois “por mais poderoso e astuto que seja, [este gênio maligno] jamais poderá me
impor nada.” (DESCARTES, 2000, p. 38)
Este argumento cartesiano parece então ter uma dupla função, por uma
lado parece permitir o mergulho no abismo da dúvida, por outro lado exprime a
total liberdade na qual a investigação será conduzida. O artifício de Descartes
prevê o engano como algo que poderia interditar o conhecimento, porém como
este mesmo chega a conclusão, a possibilidade de engano apenas o encaminha o
encontro de um fundamento. Por outro lado, na terceira meditação após encontrar
o Cogito, Descartes descobe uma idéia da qual, pela ordem das razões, ele não
pode ser fundamento, a idéia de infinito. Desta forma o Cogito fundamentado na
negatividade que se controi em torno e a partir de alteridades criadas ,deus
enganador e gênio maligno, que possibilitam a dúvida hiberbólica, encontra seu
fundamento também fora de si, na idéia de um deus positivo (perfeito e pleno), ou
infinito positivo. Levinas nos dá uma nova leitura do gênio maligno, este não é
aquele que engana, mas aquele que não se manifesta: “o gênio maligno não se
manifesta para dizer a sua mensagem; mantém-se como possível, por detrás das
coisas que têm todo o ar de se manifestar deveras.” (LEVINAS, 2008, p. 80). “[...]
o mundo silencioso seria anárquico, O saber não poderia aí começar. Mas ja como
anárquico – no limite do sem-sentido – a sua presença na consciência está na sua
expectativa da palavra que não vem” (LEVINAS, 2008, p. 84). O silêncio de
Levinas é a falta de qualquer resistencia que possibilite uma ação, manifestação,
fenomeno. Essa ausência é a consciencia da impossibilidade de conhecimento
sem uma alteridade que conceda teto ou solo para o desenvolvimento do da ação
e do pensamento.
Inserida nesta leitura que Levinas faz de Descartes apresenta-se um crítica
a Hurssel quanto a questão da objetividade e o entendimento de intencionalidade.
Levinas no informa que para Hurssel “conhecer objetivamente seria pois, constituir
o meu pensamento de tal maneira, que ele contenha já uma referência ao
pensamento dos outros (p.206). Desta forma a intencionlidade, de reconhecida
importancia para nosso filósofo por quebrar o dualismo tanto subjetivista quanto
objetivista da relação sujeito-objeto; apresenta uma consequencia curiosa que é
expressa, de forma explicita da função da linguagem Husseliana: “Curioso
resultado: a linguagem consistiria em suprimir o Outro, pondo-o em acordo com o
Mesmo!”. Em outras palavras o pensamento, maravilhado com a inteligibilidde do
mundo destrói a diversidade.
Levinas põe então esta questão, será que está capacidade de operar
sinteses, determinar sistemas, que se encontra o sentido de inteligibilidade?
Descartes não chega ao Cogito pela sintese, mas pela diferenciação a qual
concede espaço quando, de modo artificioso poe em questão sua própria
capacidade de saber verdades a partir de si. Não é desta forma um genio maligno,
com sua mentira, que revela a Descartes o si mesmo. É a negação da capacidade
de afirmação de verdades que permite que a meditação cartesiana tenha
movimento e encontre a idéia de infinito.
Porém, é constatado que a linguagem, enquanto instrumento de nomeação
do mundo faça parte do nosso cotidiano. A noção de ciência e aprendizado se
referem, de modo geral, a capacidade intelectual de investigar os fenomenos e
poder, a partir de nós, emitir enunciados universalmente aceitáveis. Para Levinas,
o cientificismo com a pretensão de conhecer o outro através da investigação do
seu ser, ou categorização por meio das obras – encaixando em categorias pré-
definidas do cientista - é uma invasão da interioridade onde o outro é exposto sem
a chance de se justificar (LÉVINAS, 2008, p.55). Definir o outro por meio da
ciência é desnudar e fragilizar, retirando toda a sua grandiosidade e capacidade
de defesa, é um ato violência. Da mesma forma o discurso retórico, da
publicidade, da persuasão, da pedagogia investe na supressão o outro, desejando
colocá-lo em acordo com o estabelecido. O outro não fala, reproduz o dito –
palavras que não revelam nada de si, desprovidas de significado. Esse discurso
não apenas mata a vida de quem ouve, mantém escravo de si mesmo a quem
pronuncia (LÉVINAS, 2008, p.62).
Desta forma a linguagem pode naturalmente servir enquanto instrumento de
dizer o conhecido, e assim, contra intuitivamente não estaria realizando aquilo que
espera-se da linguagem, transmitir e comunicar, ao contrário Levinas evidencia
que trata-se de formar sistemas que incorporam a alteridade ao reduzi-las ao já
conhecido.
Para Levinas, a linguagem enquanto diálogo, ou seja, na função
comunicativa, só é possível entre termos diferentes e separados: nem o que é
igual, nem o que está unido – mesmo pela oposição, precisa se comunicar.
Diálogo é a linguagem (logos) entre (dia) mim e o outro. A linguagem oferece a
possibilidade da abertura para a exterioridade. A utilização de signos não se limita
ao acréscimo de um intermediário entre “mim” e “as coisas”; abre a possibilidade
de partilhar-las entre mim e os outros. A palavra pelo qual designo as coisas me
permite desprender do que possuo e ser recebida por outrem, modifica minha
relação de posse (LÉVINAS, 2008, p.204). Ao dizer não sou mais dono daquilo
signifiquei, me abro a outra possibilidade de interpretação, à perspectiva de
outrem.
Esta diferença porém não é ontológica, afirma Levinas: “As diferenças entre
mim e o outro não dependem de propriedades diferentes que seriam inerentes ao
ao eu, por um lado, e outrem, por outro, nem por disposições psicológicas
diferentes que tomariam o espírito [...]. Tais diferenças têm a ver com a conjuntura
do Eu-Outrem, com orientação inevitável do ser “a partir de si” para “Outrem”.
Porém como vimos, também em Husserl é a partir de si que enunciamos
pensamentos que já existem em outrem, uma relação indiferenciada. Então qual
seria a diferença entre Husserl e Levinas? Podemos compreender através do
modo como o conceito de intencionalidade é recebido por Levinas. Para Levinas a
consciência busca de forma ativa uma passividade, desta forma embora a
orientação da linguagem se de a partir de si para Outrem, ela se dá na forma de
receptividade, no modo como a consciência se abre para a recepção da
diversidade. Conseqüentemente o silêncio se torna o verdadeiro gênio maligno,
pois o disfarce e a mentira permitem um solo no qual se estabeleça o embate do
contraditório gerando o diálogo e aprendizado, o silencio por outro lado abandona
ao vazio, ao abismo da dúvida, a angústia que pela destruição da linguagem,
destrói o próprio fenômeno.
A consciência passional levinasiana é entendida como uma espécie de
fenomenologia erótica:
A possibilidade para Outrem de aparecer como objeto de uma
necessidade conservando ao mesmo tempo a sua alteridade, ou
ainda, a possibilidade de fruir de outrem, de se colocar ao mesmo
tempo além e aquém do discurso, esta posição em relação ao
interlocutor que ao mesmo tempo o atinge e o ultrapassa, a
simultaneidade da necessidade e do desejo, da concupiscência e
da transcendência, tangência do confessável e inconfessável,
constituem a originalidade do erótico que, nesse sentido, é
equivoco por excelência. (p. 244)
A linguagem nasce ambígua, entre o desejo do diferente e a necessidade
de manutenção daquele que se insinua. Esta ambigüidade, que como Platão
aponta no Fedro, é perigosamente mascarada pelos discursos de grande forçar
lógico-persuasuva, nos discursos claros e distintos, é o que constitui a força
comunicativa da linguagem. Sua expressão máxima é o embate do contraditáro,
não a erística sofistica que exibe orgulhosamente os poderes da técnica
discursiva, mas uma luta: “Discurso que não é, portanto, desenvolvimento de uma
lógica interna prefabricada, mas constituição de verdade numa luta entre
pensadores, com todas as vicissitudes da liberdade” (LÉVINAS, 2008, p.63). É
portanto, partindo desta concepção de linguagem, que podemos entender em que
sentido Levinas afirma ser a Ética a filosofia primeira:
A existência não está condenada à liberdade, mas é investida com
liberdade. A liberdade não está nua. Filosofar é remontar aquém
da liberdade, descobrir a investidura que liberta a liberdade do
arbitrário. O saber como crítica, como subida aquém da liberdade,
só pode surgir em um ser que tem uma origem aquém de sua
origem, que é criado. (p.74)
A liberdade, continuamente encoberta pelo discurso, só é possível diante da
consciência de sua impossibilidade.

Partindo desta dupla visão a respeito do processo de conhecimento (a


cartesiana na qual a reflexão sobre a linguagem é dispensável, e a de Levinas que
toma a linguagem como indispensável para a verificação da produção de
conhecimento), nossa investigação tem como proposta inicial as seguintes etapas:
a. Investigar os pontos de convergência e divergência quanto ao
aspecto da linguagem/logos entre Levinas e Platão, usando como referencias os
próprios comentários de Levinas a Platão, em especial ao Fedro.
b. Investigar a ligação de Levinas à fenomenologia, em especial
Husserl, para caracterizar mais claramente o modo como Levinas opera o método
fenomenológico.
c. Por meio das etapas anteriores, inserir a reflexão sobre o papel do
Eros não apenas na linguagem, mas como necessidade para a produção
filosófica, resgate realizado por Levinas por meio do conceito de ambiguidade.

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