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A noite das mil prisões

Há 60 anos, na madrugada de 11 de maio de 1962, perto


de mil estudantes foram detidos na Cidade Universitária.
Foi a maior operação policial da ditadura e o auge da
crise académica, que abalou o regime e marcou o
despertar político de toda uma geração

texto Joana Pereira Bastos

O prazo esgotara-se às 19h45. Era essa a hora-limite do


ultimato para abandonarem a cantina que desde a
véspera ocupavam em protesto. O braço de ferro,
semana a semana mais tenso, arrastava-se há quase
dois meses e culminava ali, naquele impasse, sem que
ninguém arredasse pé. Com o avançar da noite,
juntaram-se cada vez mais. Chegaram raparigas, saídas
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de casa às escondidas, com os sapatos na mão para não
fazerem barulho no corredor. E muitos jovens, ainda
estremunhados, acordados pelos telefonemas de
colegas. A partir das cabinas do Campo Grande, a
‘convocatória’ tinha-se espalhado. Corria que podia
haver prisões e só uma multidão conseguiria evitá-lo. Ao
início da madrugada, já eram cerca de 1000.
Acotovelavam-se nas galerias, junto às mesas, sentados
no chão. Não havia um metro livre. O objetivo tinha sido
conseguido. Pensavam que era impossível prender tanta
gente. Mas não. Eram 3h30 quando a polícia chegou, de
metralhadora na mão e ordem para cortar pela raiz a
inédita revolta dos estudantes. Nunca se tinha visto
nada assim.

“Parecia um cenário de guerra”, recorda Helena Pato,


que à época integrava a direção da Associação de
Estudantes (AE) da Faculdade de Ciências. Secundado
por uma força de 300 homens que montara cerco à
cantina, o capitão da PSP, Horta Veiga, “entrou de
rompante, todo emproado, de bota alta e pingalim
militar, determinado a levar toda a gente”. Mas não
estava à espera daquela multidão. As dezenas de
carrinhas da polícia de choque estacionadas à porta
nunca chegariam para todos. A solução, ali improvisada,
foi mandar vir autocarros da Carris.

“Os senhores estão presos”, gritou. Os estudantes,


porém, estavam determinados a não lhe facilitar a vida.
Jorge Sampaio, então finalista de Direito e líder da
Reunião Inter-Associações (RIA), que juntava delegados
de todas as AE, recordou-lhe, com outros colegas, que a
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lei não previa prisões coletivas. Para cumprir a
legalidade, teria de dar ordem de detenção a cada um,
individualmente. Irritado, o capitão não teve alternativa.
“O senhor está preso, acompanhe-me. A senhora está
presa, acompanhe-me. O senhor está preso,
acompanhe-me”, foi obrigado a repetir, centenas de
vezes.

A revolta dos estudantes teve eco na imprensa


estrangeira, mas em Portugal pouco foi noticiado. Foi aí
que muitos jovens se aperceberam, pela primeira vez,
da censura

O processo, inevitavelmente moroso, levaria horas. “O


comandante reunia um grupo de cinco ou seis, dava a
ordem de detenção a cada um e os estudantes
começavam a segui-lo. Mas assim que ele virava costas,
os últimos da fila voltavam a sentar-se no chão,
misturando-se entre os colegas. Quando o homem
chegava à porta, já só levava um ou dois atrás dele.
Tinha de dar meia-volta e começar tudo de novo. Nós
ríamo-nos à brava. Foi um gozo monumental”, recorda
Helena Pato. O objetivo não era simplesmente
desobedecer ou provocar a chacota, mas retardar o mais
possível a operação policial até que o dia nascesse e a
cidade acordasse, para que mais gente se apercebesse
das detenções em massa dos universitários. Não eram
detenções como quaisquer outras. À época,
praticamente só a elite chegava ao ensino superior. Ali,
levados pela polícia, estavam os jovens da alta
burguesia, oriundos das famílias que tradicionalmente
formavam a base social de apoio à ditadura.
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Já raiava o sol quando a polícia conseguiu finalmente
encher os autocarros com todos os detidos. Enquanto se
arrastavam as detenções, vários tinham escrito nos
blocos papéis com a frase “1200 estudantes presos”.
Arrancaram as folhas, dobraram-nas e esconderam-nas
no bolso, com a intenção de, sorrateiramente, as
atirarem pela janela, assim que seguissem viagem.
Mandada sentar na última fila da camioneta, onde não
havia janelas, Helena Pato não conseguiu mandar o que
tinha escrito e guardado no casaco. Mas recorda-se dos
papelinhos a voar, atirados por algumas das 86 outras
raparigas presas na cantina que, com ela, seguiam
viagem pelas ruas de Lisboa e atravessavam a Baixa até
aos calabouços do Governo Civil. Os rapazes, em muito
maior número, tinham um destino diferente. Seguiriam
pela Marginal até ao quartel da brigada móvel da PSP,
em Oeiras, onde ficariam detidos, às centenas.

A demissão de Marcello Caetano

A noite das mil prisões foi o culminar da crise que


começara em março, quando o regime proibiu de
véspera as comemorações do Dia do Estudante,
agendadas para 23 a 25, em Lisboa. Nada o fazia prever.
O programa dos festejos era em tudo idêntico ao que se
realizara, pacificamente, no ano anterior: um colóquio
aparentemente inócuo sobre a integração do estudante
na universidade, um festival desportivo, um sarau
cultural e um jantar de confraternização na cantina da
Cidade Universitária, inaugurada pouco tempo antes.
Mas alguma coisa mudara entretanto. Em fevereiro de
1962, dirigentes associativos das Universidades de
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Lisboa, Porto e Coimbra, as únicas então existentes no
país, tinham-se reunido na capital com a intenção de vir
a criar uma União Nacional dos Estudantes Portugueses,
que nos últimos anos se batiam cada vez mais pela
autonomia universitária e contra o decreto-lei 40900,
que limitava fortemente a atuação das AE. “Havia sinais
crescentes de descontentamento entre os estudantes,
como a vitória, em 1961, de Carlos Candal para a
direção da Associação Académica de Coimbra,
tradicionalmente um feudo da direita, e de Jorge
Sampaio para a Associação Académica da Faculdade de
Direito de Lisboa. A vitória dessas duas listas de
esquerda, nas vésperas da crise de 1962, era sintoma
de que algo estava a mudar profundamente”, explica o
historiador Fernando Rosas.

Preocupado com o crescimento do movimento


estudantil, o regime decidiu agir preventivamente. No
sábado, 24 de março, encerra a cantina onde deveria
realizar-se o jantar de convívio e manda a polícia de
choque ocupar a Cidade Universitária, o que nunca antes
acontecera. Ao final da manhã, os estudantes
concentram-se em protesto e uma delegação de
dirigentes associativos, composta por Jorge Sampaio,
Medeiros Ferreira, Vítor Wengorovius e Eurico
Figueiredo, dirige-se a casa de Marcello Caetano, então
reitor da Universidade de Lisboa, para o convencer a
interceder junto do Governo. Marcello, que mantinha
boas relações com os alunos e também defendia a
autonomia universitária, aceita ligar ao ministro do
Interior, pedindo-lhe que retire a polícia. Ele próprio leva

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os quatro jovens de volta à Cidade Universitária, no seu
Citroën ‘boca de sapo’, convencido de que o problema
está sanado. Mas a polícia continuava lá.

Os estudantes convocam então um plenário para o


Estádio Universitário, onde estava previsto decorrer o
festival desportivo. Num país amordaçado, sem espaço
para a discussão pública, a realização de um plenário
com milhares de pessoas era um inédito exercício de
democracia, visto inevitavelmente como uma ameaça ao
regime. Mas foi o primeiro de muitos, nos meses que se
seguiriam. Disfarçados entre a multidão de jovens,
agentes da PIDE, com o nome de código “Mocho” e
“Indústria”, registaram tudo, anotando os dirigentes e
os oradores que mais se destacavam “na instigação” dos
protestos. Depositada no arquivo da polícia política
guardado na Torre do Tombo, está uma fotografia de
alguns dos líderes da RIA tirada naquela tarde pelos
informadores, que apontaram numa legenda o nome dos
que estavam sentados na tribuna do estádio, como Jorge
Sampaio, para que sobre eles viesse a montar-se uma
apertada vigilância.

A tensão não parava de crescer com a presença hostil


da polícia de choque, que não desmobilizava. “Quando
começaram a avançar para nós, sentámo-nos todos no
chão a cantar ‘A Portuguesa’, o que os deixou confusos
e perplexos, sem saber o que fazer”, recorda Fernando
Rosas, então dirigente da Pró-Associação dos Liceus,
que se solidarizara ao protesto dos mais velhos.
Estudantes de Coimbra que entretanto se tinham feito à
estrada em vários autocarros para participar nos
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festejos em Lisboa foram barrados pela guarda e
forçados a voltar para trás. Os que seguiam de comboio
foram obrigados a sair da composição e a regressar a
casa em carros da polícia.

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REPRESSÃO A 24 de março de 1962, a polícia de choque
ocupou a Cidade Universitária para impedir a celebração
do Dia do Estudante. Milhares de jovens manifestaram-
se em protesto FOTOGRAFIAS D.R.

Em Lisboa, o ambiente era cada vez mais tenso. Para


serenar os ânimos, Marcello Caetano deslocou-se ao
estádio, onde foi longamente ovacionado pelos jovens.
A partir do seu carro, o reitor pediu calma aos
estudantes e convidou todos para jantar, a expensas da
universidade, no restaurante Castanheira de Moura, no
Lumiar, uma vez que a cantina tinha sido encerrada. A
ideia era retirar a multidão dali para impedir que o
impasse descambasse em violência, como acabou por
acontecer. A caminho do restaurante, a polícia carregou
sobre os estudantes com inaudita brutalidade. “Saímos

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do Estádio Universitário e começámos a andar para o
Lumiar, mas quando chegámos ao Campo Grande houve
uma carga policial fortíssima. Bateram a sério, foi uma
coisa nunca vista. Foi a primeira vez que apanhei uma
coronhada. Um polícia, que me parecia ter uns dois
metros de altura, bateu-me com a coronha da
espingarda e eu fui a rebolar uma data de metros. Na
relva e nos cafés em torno do Campo Grande só se via
gente de cabeça partida e sangue a escorrer”, conta
Fernando Rosas.

Em repúdio por esses acontecimentos, a RIA decreta,


por unanimidade, dois dias de greve às aulas, a que
chama luto académico porque a palavra greve era
proibida. O protesto, em que os estudantes de Coimbra
também alinham por solidariedade, tem uma adesão
maciça. Pressionado pelo êxito da paralisação, o
ministro da Educação aceita receber uma delegação de
jovens e acaba por autorizar as comemorações do Dia
do Estudante, remarcadas para o primeiro fim de
semana de abril, com o mesmo programa que antes fora
proibido. A greve é levantada e o problema parecia
resolvido. Mas Salazar não estava disposto a aceitar a
cedência. Reúne o Conselho de Ministros, o que só
raramente acontecia, e interpela diretamente o ministro
da Educação, perguntando-lhe se tinha mesmo
autorizado o Dia do Estudante. Lopes de Almeida
titubeia e acaba por mentir, garantindo que não. “Era
isso que Salazar queria ouvir. E responde ao ministro:
‘Fez Vossa Excelência muito bem em não ter autorizado,
senão daqui a dez anos seriam eles a estar aqui

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sentados.’ Salazar percebeu que era aquela elite de
jovens que ia mandar no país. E só se enganou em dois
anos…”, conta o historiador Fernando Rosas.

A nova proibição das celebrações é publicada numa nota


oficiosa, que volta a apanhar todos de surpresa,
incluindo Marcello Caetano. Sentindo-se uma vez mais
desautorizado, o reitor demite-se. “Perdi a confiança que
tinha de ter no Governo (...) A minha resolução é
irrevogável”, escreveu, numa carta dirigida ao ministro
da Educação, com cópia para Salazar. Dias depois,
Salazar responde a Caetano. Aceita a demissão, mas
deixa-lhe um pedido, que anos mais tarde viria a
revelar-se premonitório: “Pelo amor de Deus, não tome
decisões para o futuro, porque ninguém sabe o que a
Nação pode exigir-lhe em determinado momento.”

A batalha da informação

O retorno à luta dos estudantes fez-se com redobrada


determinação. A greve às aulas foi de imediato retomada
e os protestos multiplicaram-se ao longo de todo o mês
de abril. Uma manifestação frente ao Ministério da
Educação, no Campo Santana, terminou novamente com
uma violenta carga policial. A repressão endurecia, mas
a luta não desmobilizava. “Sucediam-se as reuniões e os
plenários, os protestos e as manifestações. Era um
frenesim permanente. Não havia um único dia em que
não acontecesse alguma coisa”, lembra Artur Pinto,
então aluno da Faculdade de Direito de Lisboa.

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Apesar da vertigem dos acontecimentos, pouco ou nada
era transmitido na comunicação social. Implacável, a
censura cortava e adulterava as notícias para impor a
imagem de um país pacificado, sem tensões sociais, nem
contestação política ou sombra de resistência. Os cortes,
no entanto, eram invisíveis. A publicação de colunas em
branco ou espaços vazios, correspondentes às peças
cortadas, era proibida para que fossem ocultados todos
os indícios da censura, de forma a que a população não
se apercebesse dela. “A malta vivia diariamente aquela
agitação toda, mas depois ia ler os jornais, ouvir a rádio
e ver televisão e não se falava de nada. Era como se não
tivesse acontecido. Foi aí que muitos estudantes
perceberam, pela primeira vez, o que era
verdadeiramente o país. Foi aí que ganharam
consciência da censura e de que era um regime
ditatorial. Nesse sentido, a crise académica abriu os
olhos a uma geração inteira. Criou uma consciência
política na massa estudantil que antes não existia”,
explica Artur Pinto.

Os muitos plenários realizados na Cidade Universitária


contavam com milhares de jovens, mas as poucas notas
oficiosas do Governo publicadas na imprensa sobre o
assunto referiam-se sempre a uma pequena “minoria
subversiva e antipatriótica”, sem eco nem apoio entre a
generalidade dos estudantes. Para combater a
campanha de desinformação e passar a mensagem
sobre o que estava realmente a acontecer, mobilizando
a adesão aos protestos, foi montada uma rede
clandestina de escrita, cópia e distribuição de

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comunicados, que envolveu largas dezenas de alunos,
coordenados pela Secção de Propaganda da RIA. Nuno
Brederode Santos e Vasco Pulido Valente, que viriam a
tornar-se dois dos mais destacados cronistas do pós-25
de Abril, integravam a equipa de redatores, assim como
Mário Sottomayor Cardia, que viria a ser ministro da
Educação dos Governos de Mário Soares. O conteúdo
dos comunicados tinha de ser aprovado pelos
representantes de todos os setores estudantis antes de
ser impresso em velhos copiógrafos manuais existentes
nas faculdades e alguns levados para “casas seguras”.

Os líderes estudantis foram presos em Caxias. Muitos


eram de famílias próximas do Estado Novo. Eram “os
filhos do regime” que, então e para sempre, rompiam
com ele

Entre 26 de março e 14 de junho foram redigidos 47


comunicados. Quase um por dia, excluindo os fins de
semana e as férias da Páscoa. Nenhum foi publicado na
imprensa. Todos os dias, por segurança, eram impressos
em locais diferentes. Cada um era referido em código,
através de um número. Maria João Gerardo, então
estudante de Letras e membro da secção de Propaganda
da RIA, era uma peça-chave na distribuição.
Diariamente, pelas 6h30, saía do quarto que alugava em
Campo de Ourique, ainda de camisa de noite e roupão,
para se dirigir à cabina telefónica pública que existia no
bairro, onde ficava a aguardar um telefonema. “Nessa
chamada, diziam-me o número de código que
correspondia ao sítio onde nessa noite tinha sido
impresso o comunicado. Se fosse o 6 era a Faculdade de
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Ciências, se fosse o 7 era o Técnico e por aí fora”, conta.
Depois, voltava para casa, arranjava-se e apanhava um
táxi rumo ao local indicado, onde lhe entregavam as
milhares de cópias impressas, no papel mais leve
possível para facilitar o processo. Uma centena de
comunicados pesava pouco mais de um quilo. “Pegava
neles, já divididos em diferentes pacotes para entregar
em cada escola, e fazia o circuito de táxi, passando por
todas elas, desde o Instituto Industrial, na Estrela, à
Agronomia, no Alto da Ajuda, passando por Veterinária,
nas Picoas, pelo Técnico e pelas diferentes faculdades da
Cidade Universitária. Em cada uma, havia um delegado
à minha espera, encarregado de os receber e distribuir
aos colegas”, relata.

Apesar da apertada vigilância, a PIDE nunca conseguiu


desmontar o esquema. “Conseguimos sempre fazer
passar a nossa mensagem e relatar o que estava
verdadeiramente a acontecer. A batalha da informação
foi decisiva e essa foi ganha por nós. A malta conseguiu
sempre deitar cá para fora comunicados até ao último
dia do ano letivo, sem que a PIDE conseguisse alguma
vez apanhar-nos”, conta Artur Pinto, que viria a casar-
se com Maria João, com quem vive até hoje.

A batalha da propaganda também se fazia além-


fronteiras. Os jornais nacionais pouco relatavam o que
se passava, mas a informação, nomeadamente através
dos comunicados, era transmitida à imprensa
estrangeira, sobretudo britânica e francesa, que não
deixava de a noticiar, para satisfação dos jovens
portugueses. “Foi tudo para o estrangeiro: notícias e
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fotos. Os jornais franceses publicam tudo. Já sabemos
que não os deixam cá entrar, mas não importa: leem lá
fora. O que é preciso é a união académica para termos
força e controlarmos os acontecimentos”, congratulava-
se então um estudante, em conversa com um colega,
numa barbearia de Lisboa. Mal sabiam que ao lado
estava um informador da PIDE que depois a transcreveu
integralmente e a publicou num relatório enviado ao
Ministério do Interior, que está hoje guardado nos
arquivos da Torre do Tombo.

“O poder não pode ser vencido”

A repressão não tardou a aumentar. Perante o


crescimento dos protestos, o Governo decretou, a 13 de
abril, a suspensão das direções de todas as associações
de estudantes e a proibição das atividades das
comissões pró-associação nas faculdades, como Letras
ou Medicina, onde antes as AE já tinham sido
ilegalizadas. Todas as tentativas de diálogo com o
regime tinham saído goradas. Três dias antes, o Ministro
da Presidência aceitara conceder uma audiência aos
representantes dos estudantes, mas apenas para lhes
ler uma declaração escrita com um recado bem claro: “O
poder não deve ser desafiado porque não pode ser
vencido”, disse-lhes. A frase, perentória, acabou de vez
com a ilusão de que era possível chegar a um acordo. E
a crise agudizou-se.

Apesar das tentativas do regime para a silenciar, a luta


estudantil mobiliza, por essa altura, o apoio de vários
sectores da sociedade. Em abril de 1962, um grupo de

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mais de 100 intelectuais, onde se destacam nomes como
Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro, Cardoso Pires, Mário
Cesariny, Orlando da Costa ou Alves Redol, assina um
“manifesto de solidariedade para os universitários
portugueses”, denunciando a “violência empregada para
tentar abafar” os protestos e reclamando a “imediata
suspensão de todas as medidas repressivas”. Mas o
Governo não recua. Pelo contrário. Exige às
universidades que entreguem o nome de todos os alunos
que participavam no luto académico e ameaça com
chumbos generalizados e até com a retirada de bolsas
de estudo e isenção de propinas a todos os que delas
beneficiavam.

No final do mês, findas as férias da Páscoa, que


obrigaram à suspensão forçada do luto académico, os
estudantes voltaram aos protestos, ainda mais
determinados. Num plenário realizado a 9 de maio no
Estádio Universitário, onde a PIDE estimou estarem
concentrados cerca de 1500 estudantes, é aprovado o
mais radical dos protestos: luto académico total, com a
greve às aulas estendida às frequências e aos exames
finais, e uma greve de fome, para extremar a pressão.
Nunca se vira nada assim.

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PRISÃO A fotografia dos 71 estudantes mandados para
Caxias foi anexada ao Álbum de Cadastrados. Eram,
sobretudo, os ‘cabecilhas’ do movimento, como Jorge
Sampaio (nº 3) ARQUIVO NACIONAL TORRE DO TOMBO

Cada Associação de Estudantes deveria designar dois


dirigentes para aderir à greve de fome, mas muitos
outros jovens ofereceram-se voluntariamente. No total,
foram 81 os que prometeram “lutar até ao esgotamento
físico pela sobrevivência das AE e pela autonomia da
Universidade”. António Correia de Campos, Eurico
Figueiredo, Sottomayor Cardia e Brederode Santos, por
exemplo, integravam o grupo.

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A cantina da Cidade Universitária tornou-se, então, o
epicentro da luta. Nessa mesma tarde, os grevistas da
fome ocuparam o espaço, acompanhados por algumas
centenas de colegas, em solidariedade. “Entrámos por
volta das 17h e a partir dessa altura deixámos de comer
quaisquer alimentos sólidos. Bebíamos apenas um soro,
feito com água com limão e sal. Para não perder as
forças, passámos esse dia inteiro e o seguinte a dormitar
nos sofás que existiam na sala de convívio da cantina.
Como diz o povo, o sono é meio sustento. Não sentíamos
tonturas nem fraqueza, mas uma espécie de nirvana, de
leveza de espírito”, recorda Correia de Campos. Com o
passar das horas, cada vez mais colegas se juntavam.
Discutiam política, cantavam canções proibidas e um
grupo de letristas fazia letras para adaptar a músicas
populares a propósito dos acontecimentos do dia. “O
ambiente era de festa. Nunca nos passou pela cabeça
que pudesse ir toda a gente dentro. O facto de sermos
muitos tranquilizava-nos”, lembra Artur Pinto.

Mas o que parecia impensável aconteceu. No dia


seguinte, 10 de maio, o Senado da Universidade de
Lisboa dá aos estudantes uma hora para abandonarem
voluntariamente a cantina. O prazo esgotou-se às
19h45, sem que ninguém tivesse arredado pé.
Declarando-se impotente para resolver o impasse, a
Universidade entrega o caso ao Ministério do Interior,
que ordena o cerco das instalações pela polícia de
choque e a detenção de todos os que lá se
encontrassem. Eram 800, segundo a PSP. Pelo menos
1200, de acordo com o comunicado dos estudantes.

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Hoje, o número mais consensual aponta para 1000. A
gigantesca operação policial foi noticiada nos principais
jornais internacionais, do “The New York Times” ao “The
Observer”, do “The Sunday Times” ao “Le Figaro” e ao
“Le Monde”.

Doutrinar polícias

Dos cerca de 1000 presos, apenas 87 eram raparigas. À


época, eram poucas as que chegavam à universidade. A
maioria nem sequer entrava no liceu. As detidas foram
mandadas para os calabouços do Governo Civil, onde se
encontravam sobretudo prostitutas. “Ficaram
espantadas quando viram entrar todas aquelas meninas
de boas famílias, bem vestidas, muitas de lenço na
cabeça”, conta Maria João Gerardo. Depois de revistadas
ao ponto de ficarem até sem as caixas de pó de arroz,
foram distribuídas por três celas com chão de cimento e
sem qualquer janela ou ventilação. A um canto, um
buraco a fazer de sanita e no lugar de catres ou bancos
apenas um estrado de madeira com um metro de altura,
onde se deitavam, por turnos, “muito encostadinhas por
causa do frio”. Às outras restava permanecer de pé. “O
ambiente era muito pesado pela falta de tiragem do ar
e pelas emanações da cabina sanitária. No todo, as
condições de higiene eram deficientíssimas, desde
parasitas, sujidade geral e ausência total de desinfeção”,
relataram, mais tarde, num comunicado clandestino,
assinado pelas “estudantes presas”, hoje guardado na
Torre do Tombo.

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“O ar era irrespirável”, resume Helena Pato, que recorda
sobretudo os gritos aflitivos e o choro ininterrupto de
uma mulher detida numa cela contígua por, na véspera,
ter tentado pôr fim à vida no viaduto Duarte Pacheco.
No Estado Novo, uma tentativa de suicídio podia ser
punida com prisão. Durante mais de 12 horas, as 87
jovens permaneceram sem comer, em protesto pela
injusta detenção. Já era noite quando começaram a ser
levadas, em grupos de seis, para a sede da PIDE, de
onde acabariam por ser libertadas de madrugada, depois
de identificadas e interrogadas.

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Cartaz do Dia do Estudante que nunca chegou a realizar-
se D.R.

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Os cerca de 900 colegas rapazes igualmente presos na
cantina tiveram um destino diferente. Não havia cadeias
onde deter tanta gente de uma só vez. Por isso, foram
mandados para o quartel da polícia de choque, em
Oeiras, onde passaram todo o dia amontoados no
imenso pátio das instalações, sempre à torreira do sol.
“Éramos tantos que ficámos ali amalgamados. Quando
chegámos, estava o dia a nascer, fomos recebidos pelos
polícias com a espingarda apontada para nós, em
posição de ataque. Eram sobretudo recrutas da PSP,
muito jovens, como nós, e notava-se que estavam um
pouco assustados, porque nós éramos em muito maior
número”, recorda Correia de Campos.

A notícia das prisões correu rápido. Pouco depois de


chegarem, vários familiares dos detidos dirigiram-se ao
quartel para levar tabaco e comida aos presos. “Os
automóveis ficavam mal parados à porta do quartel e os
polícias, embaraçados, lá aceitaram levar para dentro as
quantidades astronómicas de comida que as famílias
deixavam ao portão. Não paravam de chegar pães e
bolos, croquetes, sacos de laranjas e tangerinas”,
lembra. Entre as centenas de detidos, estavam todos os
81 grevistas da fome, sem nada no estômago há mais
de 40 horas. “Ainda pensámos manter a greve, mas era
completamente impossível ver os outros a comerem
aquilo tudo e nós mortos de fome. Decidimos parar o
protesto e desatámos a comer”, recorda o então
dirigente da Associação Académica da Faculdade de
Direito de Lisboa, que nunca até hoje esqueceu o sabor

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de um pequeno fruto exótico caído no chão que não
resistiu a comer. “Parecia um maná vindo do céu.”

Com o passar das horas, os homens da PSP


abandonaram a postura agressiva com que receberam
os estudantes. Guardaram as armas e a maioria acabou
por entrar para dentro do quartel, deixando os detidos
no pátio sob a vigilância de apenas uma dúzia de
agentes. “Nessa altura, aproveitámos para tentar
doutrinar os polícias. Um grupo rodeava dois ou três e
começava a explicar as nossas reivindicações e a
injustiça daquela situação. Ficavam muito embaraçados
a ouvir, atentamente mas sem dizer nada”, conta.

A revolta dos “filhos do regime”

Passava das 22h quando uma brigada da PIDE chegou


ao quartel, munida com uma lista de nomes. Foi nessa
altura que se fez a triagem. A esmagadora maioria teve
ordem de soltura, mas 71 foram mandados para Caxias,
onde eram detidos os presos políticos a aguardar
julgamento. A seleção não foi casual. Da lista constavam
todos os que, por alguma razão, já tinham ficha na PIDE,
como o mais tarde histórico dirigente do PCP Ruben de
Carvalho, que fizera parte das comissões juvenis de
apoio à candidatura de Humberto Delgado e que aos 17
anos já contava com uma detenção no cadastro, Rui
D’Espiney, que se destacara como dirigente da pró-
associação dos liceus e que dias antes, como militante
comunista, participara na organização da manifestação
do 1º de Maio, ou o famoso cartoonista José Vilhena,
então estudante de Arquitetura, já com várias

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matrículas, um dos autores mais visados pela censura
devido à desfaçatez provocatória com que atacava a
moral conservadora e muitas das figuras do regime.

Mas a lista era também composta pelos dirigentes


associativos das diferentes faculdades que a polícia
política identificara como os “cabecilhas” do movimento
estudantil. Era o caso de Jorge Sampaio, secretário-
geral da RIA, ou Eurico Figueiredo, da pró-associação de
Medicina e autor da ideia da greve de fome. “Quando
entrámos em Caxias, tínhamos a noção de que aquilo
podia dar para o torto, que se podia arrastar. Mas entre
os 71 havia tanta gente importante que eu pensei que
não podiam manter-nos presos por muito tempo, porque
era demasiado desconfortável para o regime”, recorda
Correia de Campos. Entre os presos, contava-se, por
exemplo, Afonso de Barros, sobrinho de Marcello
Caetano, ou José Felismino, filho do diretor-geral da
Contabilidade Pública, entre muitos outros oriundos de
famílias com responsabilidades no Governo ou ligações
próximas ao Estado Novo. Era a elite da juventude, os
“filhos do regime” que, a partir dali e em definitivo,
rompiam com ele. Alguns deles tornar-se iam, anos mais
tarde, protagonistas políticos da era da democracia:
deputados, ministros (Sottomayor Cardia e Correia de
Campos) e até um Presidente da República.

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Manifesto assinado pelos grevistas da fome D.R.

“Fomos escolhidos a dedo porque era preciso escolher


os líderes [da crise académica]. Ao fim de três dias, o
movimento em Lisboa era de tal modo significativo que
tiveram de nos ir libertando. Mas claro que ficámos com
o nomezinho lá”, recordou Jorge Sampaio, num

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testemunho gravado em 2007 para a Fundação Mário
Soares. O nome e também a fotografia de cada um,
tirada no pátio de Caxias, e então anexada ao gigantesco
“Álbum Nacional de Cadastrados”, hoje guardado no
Arquivo da PIDE depositado na Torre do Tombo e onde
constavam todos os que entravam numa prisão política.

A passagem por Caxias durou menos de uma semana,


mas o castigo não se esgotaria na prisão. Quase 200
estudantes foram suspensos das escolas que então
frequentavam ou mesmo expulsos de todas as
universidades nacionais, em alguns casos por um
período até oito anos. De nada valeram os apelos de
vários familiares endereçados a Salazar, nem sequer
uma carta enviada ao Papa João XXIII ou as pressões
internacionais em manifestações realizadas à porta da
embaixada de Portugal em Londres. “O regime não
esteve com meias tintas. Era preciso acabar com o
movimento estudantil. Cortar o mal pela raiz”, explica o
historiador Fernando Rosas.

A Reunião Inter-Associações é ilegalizada e todas as


atividades associativas proibidas. A braços com
duríssimos processos disciplinares e pressionados pelas
consequências académicas da greve aos exames finais,
em junho os estudantes acabam por votar, por maioria,
a suspensão do luto académico. A crise acabava, mas
nas universidades nada voltaria a ser igual. “Em 1962, a
ditadura perdeu a juventude. A partir daí, o movimento
estudantil passa a constituir-se como uma das principais
forças da oposição antifascista. Com altos e baixos, a
agitação social não mais parou”, frisa Rosas, lembrando
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as violentas crises que se repetiriam no ensino superior
em 1965 e 1969.

“Nunca mais se voltou à paz podre anterior”, resumia


Jorge Sampaio, em 2007. “Foi o batismo político de uma
geração inteira.”

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