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os quatro jovens de volta à Cidade Universitária, no seu
Citroën ‘boca de sapo’, convencido de que o problema
está sanado. Mas a polícia continuava lá.
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REPRESSÃO A 24 de março de 1962, a polícia de choque
ocupou a Cidade Universitária para impedir a celebração
do Dia do Estudante. Milhares de jovens manifestaram-
se em protesto FOTOGRAFIAS D.R.
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do Estádio Universitário e começámos a andar para o
Lumiar, mas quando chegámos ao Campo Grande houve
uma carga policial fortíssima. Bateram a sério, foi uma
coisa nunca vista. Foi a primeira vez que apanhei uma
coronhada. Um polícia, que me parecia ter uns dois
metros de altura, bateu-me com a coronha da
espingarda e eu fui a rebolar uma data de metros. Na
relva e nos cafés em torno do Campo Grande só se via
gente de cabeça partida e sangue a escorrer”, conta
Fernando Rosas.
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sentados.’ Salazar percebeu que era aquela elite de
jovens que ia mandar no país. E só se enganou em dois
anos…”, conta o historiador Fernando Rosas.
A batalha da informação
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Apesar da vertigem dos acontecimentos, pouco ou nada
era transmitido na comunicação social. Implacável, a
censura cortava e adulterava as notícias para impor a
imagem de um país pacificado, sem tensões sociais, nem
contestação política ou sombra de resistência. Os cortes,
no entanto, eram invisíveis. A publicação de colunas em
branco ou espaços vazios, correspondentes às peças
cortadas, era proibida para que fossem ocultados todos
os indícios da censura, de forma a que a população não
se apercebesse dela. “A malta vivia diariamente aquela
agitação toda, mas depois ia ler os jornais, ouvir a rádio
e ver televisão e não se falava de nada. Era como se não
tivesse acontecido. Foi aí que muitos estudantes
perceberam, pela primeira vez, o que era
verdadeiramente o país. Foi aí que ganharam
consciência da censura e de que era um regime
ditatorial. Nesse sentido, a crise académica abriu os
olhos a uma geração inteira. Criou uma consciência
política na massa estudantil que antes não existia”,
explica Artur Pinto.
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comunicados, que envolveu largas dezenas de alunos,
coordenados pela Secção de Propaganda da RIA. Nuno
Brederode Santos e Vasco Pulido Valente, que viriam a
tornar-se dois dos mais destacados cronistas do pós-25
de Abril, integravam a equipa de redatores, assim como
Mário Sottomayor Cardia, que viria a ser ministro da
Educação dos Governos de Mário Soares. O conteúdo
dos comunicados tinha de ser aprovado pelos
representantes de todos os setores estudantis antes de
ser impresso em velhos copiógrafos manuais existentes
nas faculdades e alguns levados para “casas seguras”.
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mais de 100 intelectuais, onde se destacam nomes como
Ferreira de Castro, Aquilino Ribeiro, Cardoso Pires, Mário
Cesariny, Orlando da Costa ou Alves Redol, assina um
“manifesto de solidariedade para os universitários
portugueses”, denunciando a “violência empregada para
tentar abafar” os protestos e reclamando a “imediata
suspensão de todas as medidas repressivas”. Mas o
Governo não recua. Pelo contrário. Exige às
universidades que entreguem o nome de todos os alunos
que participavam no luto académico e ameaça com
chumbos generalizados e até com a retirada de bolsas
de estudo e isenção de propinas a todos os que delas
beneficiavam.
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PRISÃO A fotografia dos 71 estudantes mandados para
Caxias foi anexada ao Álbum de Cadastrados. Eram,
sobretudo, os ‘cabecilhas’ do movimento, como Jorge
Sampaio (nº 3) ARQUIVO NACIONAL TORRE DO TOMBO
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A cantina da Cidade Universitária tornou-se, então, o
epicentro da luta. Nessa mesma tarde, os grevistas da
fome ocuparam o espaço, acompanhados por algumas
centenas de colegas, em solidariedade. “Entrámos por
volta das 17h e a partir dessa altura deixámos de comer
quaisquer alimentos sólidos. Bebíamos apenas um soro,
feito com água com limão e sal. Para não perder as
forças, passámos esse dia inteiro e o seguinte a dormitar
nos sofás que existiam na sala de convívio da cantina.
Como diz o povo, o sono é meio sustento. Não sentíamos
tonturas nem fraqueza, mas uma espécie de nirvana, de
leveza de espírito”, recorda Correia de Campos. Com o
passar das horas, cada vez mais colegas se juntavam.
Discutiam política, cantavam canções proibidas e um
grupo de letristas fazia letras para adaptar a músicas
populares a propósito dos acontecimentos do dia. “O
ambiente era de festa. Nunca nos passou pela cabeça
que pudesse ir toda a gente dentro. O facto de sermos
muitos tranquilizava-nos”, lembra Artur Pinto.
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Hoje, o número mais consensual aponta para 1000. A
gigantesca operação policial foi noticiada nos principais
jornais internacionais, do “The New York Times” ao “The
Observer”, do “The Sunday Times” ao “Le Figaro” e ao
“Le Monde”.
Doutrinar polícias
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“O ar era irrespirável”, resume Helena Pato, que recorda
sobretudo os gritos aflitivos e o choro ininterrupto de
uma mulher detida numa cela contígua por, na véspera,
ter tentado pôr fim à vida no viaduto Duarte Pacheco.
No Estado Novo, uma tentativa de suicídio podia ser
punida com prisão. Durante mais de 12 horas, as 87
jovens permaneceram sem comer, em protesto pela
injusta detenção. Já era noite quando começaram a ser
levadas, em grupos de seis, para a sede da PIDE, de
onde acabariam por ser libertadas de madrugada, depois
de identificadas e interrogadas.
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Cartaz do Dia do Estudante que nunca chegou a realizar-
se D.R.
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Os cerca de 900 colegas rapazes igualmente presos na
cantina tiveram um destino diferente. Não havia cadeias
onde deter tanta gente de uma só vez. Por isso, foram
mandados para o quartel da polícia de choque, em
Oeiras, onde passaram todo o dia amontoados no
imenso pátio das instalações, sempre à torreira do sol.
“Éramos tantos que ficámos ali amalgamados. Quando
chegámos, estava o dia a nascer, fomos recebidos pelos
polícias com a espingarda apontada para nós, em
posição de ataque. Eram sobretudo recrutas da PSP,
muito jovens, como nós, e notava-se que estavam um
pouco assustados, porque nós éramos em muito maior
número”, recorda Correia de Campos.
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de um pequeno fruto exótico caído no chão que não
resistiu a comer. “Parecia um maná vindo do céu.”
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matrículas, um dos autores mais visados pela censura
devido à desfaçatez provocatória com que atacava a
moral conservadora e muitas das figuras do regime.
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Manifesto assinado pelos grevistas da fome D.R.
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testemunho gravado em 2007 para a Fundação Mário
Soares. O nome e também a fotografia de cada um,
tirada no pátio de Caxias, e então anexada ao gigantesco
“Álbum Nacional de Cadastrados”, hoje guardado no
Arquivo da PIDE depositado na Torre do Tombo e onde
constavam todos os que entravam numa prisão política.
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