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UMA REVISÃO DO TRATADO DE 1810: SOBERANIA, MERCADO E PROJETOS

POLÍTICOS NO BRASIL (1808-1825)

Pedro Henrique de Mello Rabelo (História – UFOP)

Cláudia Maria das Graças Chaves (Orientadora)

Palavras-chave: tratado de 1810; soberania; mercado.

As representações jurídicas dos tratados de amizade, comércio e navegação

Já não é propriamente uma novidade para os estudos da História Política


Renovada, o fato de que alguns acordos bilaterais firmados pelo governo de D. Pedro I
tivessem como um de seus objetivos principais garantir, por uma mão, a soberania do
Brasil como Estado independente, e por outra, a legitimidade do próprio D. Pedro I
como imperador. Em relação a isso, os estudos de Gladys Sabina Ribeiro 1 e de
Valentim Alexandre2 sobre o tratado luso-brasileiro de amizade e aliança de 1825 são
exemplares. Mas poucos estudos se dedicaram a compreender o papel similar presente
nos tratados de amizade, comércio e navegação.

O eixo jurídico central dos tratados de amizade, comércio e navegação não se


fundamenta, como no caso do tratado de amizade e aliança, apenas em aspectos
políticos, exatamente, sendo composto também por regulamentações específicas
relativas ao comércio e à navegação, o que, inclusive, os intitula de maneira diversa.
Talvez por essa razão os tratados de amizade, comércio e navegação acabaram
mantendo-se afastados da observação da História Política Renovada e, em especial, dos
estudos que buscaram relacionar esses acordos bilaterais à busca por soberania e
legitimidade na conjuntura do processo de independência do Brasil.

Para Gladys Ribeiro, o tratado luso-brasileiro de amizade e aliança de 1825 deve


ser interpretado como um documento importante para se compreender a formação

1
RIBEIRO, Gladys Sabina. Legalidade, legitimidade e soberania: o reconhecimento da independência
através do tratado de paz e amizade entre Brasil e Portugal (29 de agosto de 1825). IN: Anais do 2º
Seminário Regional do CEO/PRONEX – 2004.
2
ALEXANDRE, Valentim. A desagregação do império: Portugal e o reconhecimento do Estado brasileiro
(1824-1826). Análise Social, v. 121, pp. 309-341, 1993.
2

jurídica do Estado imperial brasileiro, uma vez que ele é constituído em uma conjuntura
política internacional na qual tornava-se necessária a legitimação do poder instaurado
no Brasil frente aos demais Estados da Europa. Ela explica:

“Temos, então, aí uma primeira grande necessidade do reconhecimento:


ver-se em pé de igualdade com outras Nações, abrindo espaço para relações
políticas e comerciais. Este quesito incluía não somente a importância de um
tratado para o reconhecimento pelo Direito Internacional Público, em época na
qual se creditava às leis o poder de estabelecerem a ‘ordem’ nas sociedades e o
seu futuro grandioso, mas também dava ao Brasil a credibilidade tão necessária
diante da Europa do pós Santa Aliança, onde a questão da legitimidade do poder
era fundamental.”3
Apesar da autora ter se dedicado ao tratado de 1825, especificamente, sua feliz
interpretação pode ser também aplicada, acredito, aos tratados de amizade, comércio e
navegação. E não só em detrimento da crescente influência política da Santa Aliança,
que forçava as demais dinastias – e, em especial as católicas – a regularem seus
relacionamentos externos pela via jurídica. Mas também em função da crescente força
política que a esfera comercial passou a exercer sobre os Estados. Do Direito das
Gentes de Vattel (1758)4 ao Riqueza das Nações de Smith (1776)5 e ao Princípios de
Economia Política de Cairú (1804)6, o comércio e a navegação passaram a ocupar um
lugar central na pauta da formação institucional dos Estados, tanto na Europa, quanto na
América. Eram crescentes as demandas pela regulamentação jurídica do comércio, seja
no âmbito interno, durante o processo de elaboração de constituições e/ou de códigos
específicos, seja no que se referia aos relacionamentos externos, por meio da negociação
de tratados bilaterais e/ou de Congressos internacionais, como o de Viena em 1815.

Assim, os tratados de amizade, comércio e navegação também devem ser


considerados ao se pensar sobre a relação existente entre os princípios de
soberania/legitimidade e a construção de um Estado durante seu processo de

3
RIBEIRO, Gladys Sabina; 2004. Sem página.
4
VATTEL, Emer de. O Direito das Gentes. Prefácio e Tradução: Vicente Marotta Rangel. Brasília: Editora
Universidade de Brasília: Instituto de Pesquisas de Relações Internacionais, 2004.
5
SMITH, Adam. A riqueza das nações. São Paulo: Nova Cultural, 1996. (Os economistas); 2v.
6
LISBOA, José da Silva. Princípios de Economia Política. Edição comentada e anotada pelo Prof. Alceu
Amoroso Lima. Pongetti, 1956.
3

independência7. A soberania, como sugerido por Gladys Ribeiro, é o princípio central


para a compreensão da legitimação do poder de um Estado recém-independente.

Uma revisão do tratado de 1810: soberania, mercado e projetos políticos no Brasil

Muitas críticas se fizeram aos acordos do tratado anglo-luso de 1810,


principalmente os artigos relativos ao comércio. Contemporâneos do tratado, como o
cardeal português Francisco de São Luís Saraiva (1776-1845), duvidavam da efetivação
do princípio de reciprocidade comercial estipulado no tratado. Para o cardeal, não havia
reciprocidade nas relações comerciais de Portugal com o Império britânico, visto que os
britânicos exportavam muito mais produtos aos portugueses do que os portugueses aos
britânicos.

“(...) não era válido dizer-se ‘reciproca’ a liberdade que se dava aos navios
portugueses de levarem mercadorias nossas para a Inglaterra e aos navios
britânicos de trazerem as suas directamente para Portugal, quando, refere, ‘todo
o mundo sabe que enquanto dous ou tres navios portuguezes navegão para
Inglaterra, vem de lá duzentos ou trezentos’ para os portos nacionais.”8
Críticas similares, muito provavelmente fundamentadas nos testemunhos desses
contemporâneos, podem ser observadas em muitas obras que abordaram o tema ao
longo dos séculos XIX e XX. O português Eduardo Brazão, por exemplo, em sua
História Diplomática de Portugal (vol. 1) de 1932, dizia que o tratado de 1810 era
lesivo aos interesses econômicos portugueses, uma vez que “Portugal obrigava-se a não
fazer qualquer regulamento que pudesse vir a prejudicar o comércio inglês, e a
Inglaterra, por seu lado, obrigava-se unicamente a tratar-nos como a nação mais
favorecida”9. Doze anos depois, em Uma História Diplomática do Brasil (1531-1945),
José Honório Rodrigues partia das diferenças existentes entre os valores das taxas de
importação estipulados no tratado para fundamentar suas críticas.

7
RABELO, Pedro Henrique de Mello. Os tratados de amizade, navegação e comércio na constituição do
Estado imperial brasileiro (1808-1829). Anais Eletrônicos do XXVIII Simpósio Nacional de História –
Lugares dos historiadores: velhos e novos desafios –, Florianópolis (SC), 27 a 31 de julho de 2015.
8
LUÍS, Francisco de São. Que effeitos produzio o tratado de 1810? IN: Arquivo da Família Caldeira,
“Gavetão”.
9
BRAZÃO, Eduardo. História Diplomática de Portugal. Vol. I. Lisboa: 1932.
4

“O resultado principal foi a tarifa de importação, fixada em 15%, quando a


carta régia de 1808 estabelecia para todas as nações 24%. Era um privilégio
inconcebível, de que Portugal só gozou a partir de 1816.”10
Nas décadas de 1970 e 1980, as críticas ao tratado de 1810 afastaram-se um pouco
do campo da história diplomática e tornou-se parte de uma importante discussão
historiográfica proporcionada por historiadores da história econômica, tanto no Brasil
quanto em Portugal. Em suma, a discussão relativa ao tratado e as relações comerciais
de Portugal com o Império britânico, girava em torno dos efeitos que tais relações, em
geral, e o tratado, em específico, causaram nas relações existentes entre Portugal e o
Brasil e, em especial, sobre o sistema colonial que os unia. Alguns historiadores, como
José Luís Cardoso 11 e Jorge Borges de Macedo 12 tenderam a relativizar os impactos
negativos do tratado de 1810 sobre o desmantelamento da indústria portuguesa,
destacando a força de outros setores da economia de Portugal, como o comércio de
vinhos, por exemplo.

Por outro lado, Fernando Novais13, e mais intensamente José Jobson de Arruda14 –
autor de admiráveis contribuições aos estudos do comércio colonial do Brasil –,
interpretaram o tratado de 1810 como sendo parte de um processo de decadência do
sistema colonial português em suas possessões americanas, por meio do qual Portugal
perdia, gradativamente, sua importância nas relações comerciais do Brasil. Jobson de
Arruda, especificamente, no livro que publicou em comemoração ao bicentenário da
abertura dos portos, referiu-se à liberalização comercial do Brasil da seguinte maneira:

“A abertura dos portos brasileiros, decretada pela Carta Régia de 28 de


janeiro de 1808, bem como os eventos anteriores e posteriores que a envolvem; a
dramática transferência da Corte portuguesa, em 1807, e os Tratados
Comerciais, de 1810, são partes inarredáveis de um mesmo processo em que a
Metrópole portuguesa e a Colônia brasileira são figurantes rendidos, em que o
locus de poder decisório, das determinações históricas essenciais situa-se fora da

10
RODRIGUES, José Honório. Uma História Diplomática do Brasil (1531-1945). Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1995.p. 107.
11
CARDOSO, José Luís. O pensamento económico em Portugal nos finais do século XVIII, 1780-1808.
Lisboa: Editorial Estampa, 1989.
12
MACEDO, Jorge Borges de. Problemas da História da Indústria portuguesa. Lisboa: 1963.
13
NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1808). São Paulo:
Hucitec, 1983.
14
ARRUDA, José Jobson de A. O Brasil no comercio colonial. São Paulo: Ática, 1980.
5

Colônia e para além dos limites do próprio Império português, pois se aloja no
Foreign Office, no coração político do Império Britânico”.15
Qualquer estudo mais aprofundado do texto do tratado, no entanto, é suficiente
para se perceber que a interpretação de muitos de seus acordos requer uma reavaliação.
Isso é o que propunha, já em 1984, o professor português Luís António de Oliveira
Ramos, então reitor da Universidade do Porto. Para ele:

“As divergências entre os historiadores do nosso tempo, dominadas pelos


especialistas de história econômica, a clara reacção dos coevos e bem assim as
possibilidades de análise que a nova história das relações internacionais oferece,
pedem que este e outros capítulos dos negócios de Portugal com a Inglaterra
sejam reexaminados à luz de outra metodologia, de outras ópticas.”16
Para Ramos, era necessária uma nova avaliação dos significados do tratado de
1810, pautada e consoante com as novas metodologias propostas por Pierre Renouvin e
Jean-Baptiste Duroselle no que se referia aos estudos da História das Relações
Internacionais 17 , em que a interdisciplinaridade ocupasse o centro de toda a análise
empreendida. Em realidade, e muito felizmente, o que Oliveira Ramos defendia em
1985 era uma reunião dos estudos desenvolvidos pela História Econômica, pelos
Annales e pela História Diplomática – essa última, desde que atualizada com as
metodologias de Renouvin e Duroselle18.

Tal proposta, infelizmente, não tem tido muito sucesso de 1985 para cá. Ainda há
pouca comunicação, principalmente no Brasil, entre a História Política Renovada e a
História Econômica e um dos sinais disso é a persistência de conhecimentos
desatualizados acerca do tratado de 1810. Em relação a isso, um ou dois exemplos serão
suficientes para se compreender o problema.

O que se refere às críticas às taxas de importação é ilustrativo da pouca


comunicação entre esses dois ricos campos da História no Brasil. Autores da História
Econômica, entre eles o próprio Jobson de Arruda, vêem no estabelecimento das taxas

15
ARRUDA, José Jobson de Andrade. Uma colônia entre dois impérios: a abertura dos portos brasileiros
(1800-1808). Bauru: Edusc, 2008. p. 13.
16
RAMOS, Luís A. de Oliveira. Em torno do tratado de 1810. Comunicação proferida na Universidade do
Porto, 1985. p. 337.
17
RENOUVIN, Pierre; DUROSELLE, Jean-Baptiste. Introdução à História das Relações Internacionais. São
Paulo: Difusão europeia do livro, 1967.
18
RAMOS, Luís A. de Oliveira; 1985. p. 332.
6

de 15% sobre a importação de produtos britânicos, um rompimento do sistema colonial


português, uma vez que as taxas referentes aos produtos vindos da metrópole eram de
16%. Em outras palavras, por essa interpretação, as vantagens tarifárias concedidas aos
britânicos representavam, em última instância, o fim da dominação portuguesa sobre o
comércio da colônia americana.

Já historiadores que tem desenvolvido suas pesquisas no âmbito da História


Política Renovada tem mostrado que o desenvolvimento do processo de independência
do Brasil pouco teve relação com uma ruptura abrupta entre os interesses político-
econômicos dos súditos portugueses dos dois lados do Atlântico. Significativos são, por
exemplo, a leitura de Ilmar Mattos19 sobre a trama dos interesses existentes no período
e, em especial, a de Lúcia Neves sobre a conjuntura política construída com a expansão
do constitucionalismo em Portugal. A autora mostra que as Cortes de Lisboa não tinham
como agenda a recolonização do Brasil por meio de uma submissão de mercados.
Contrariamente, Neves explica que as discussões das Cortes promoviam mais uma
reintegração dos mercados do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, por meio da
qual deveriam se tornar melhor protegidos em relação às flutuações do comércio
externo 20 . Portanto, diferentemente da ideia da perda de posição portuguesa sobre o
mercado do Brasil, esses autores sugerem uma tendência à busca por uma
reaproximação comercial.

Para se analisar o tratado de 1810, no entanto, não é possível se exagerar nenhuma


das duas leituras. As vantagens tarifárias concedidas ao Império britânico nem foram,
por si só, responsáveis pelos desentendimentos políticos posteriores que culmiraram na
independência do Brasil, nem contribuíram, por outro lado, para uma reaproximação
entre os súditos americanos e europeus nas Cortes de Lisboa. Para se analisar mais
especificamente os efeitos dos acordos, é necessário se considerar ambas as
interpretações à luz do próprio texto do tratado de 1810 e, principalmente, compreender
a conjuntura político-econômica que se constituía em torno da ratificação dos acordos.

19
MATTOS, Ilmar Rohlloff. Construtores e herdeiros: a trama dos interesses na construção da unidade
política. Forum Almanack Braziliense, n. 1, pp. 8-26, maio de 2005.
20
NEVES, Lúcia M. Bastos. Estado e política na independência. In: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo. O O
Brasil imperial. 3 vols. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 124.
7

Como já explicara José Honório Rodrigues, os negociantes portugueses passaram


a pagar com a ratificação desse acordo, taxas de importação de produtos no Brasil mais
altas que as britânicas, situação que se estendeu, no entanto, até o ano de 1818, e não de
1816 como apontara aquele autor 21 . Isso, por si só, no entanto, não é argumento
suficiente para se afirmar que os negociantes portugueses perderam espaço no comércio
do Brasil diante dos britânicos. Primeiro por que os setores centrais do mercado do
Brasil, entre eles a navegação de cabotagem – e, portanto o comércio de gêneros
alimentícios –, o tráfico atlântico de escravos, além dos negócios relativos aos seguros,
continuaram controlados na década de 1810, majoritariamente, por negociantes luso-
brasileiros 22 . Segundo por que o tratado de 1810 manteve, em seu artigo 8º, o
monopólio do comércio de alguns gêneros à Coroa de Portugal; entre eles, o marfim, o
pau-brasil, a urzela, o diamante, o ouro em pó, a pólvora e o tabaco manufaturado23. É
necessário se destacar com relação a esse último gênero, a existência de uma importante
produção manufatureira de cigarros em Portugal, a qual tinha, em todo o Império, desde
o interior de Minas até as costas litorâneas da África, um bom mercado consumidor24.
Isso significa que, à exceção dos novos produtos que os britânicos passaram a exportar
ao Brasil depois de 1808, sobretudo os têxteis, os negociantes portugueses mantiveram
uma posição privilegiada no mercado do Brasil e, em alguns casos, continuaram até
atuando no comércio de reexportação de produtos coloniais brasílicos.25.

Além disso, para se compreender os efeitos dessa vantagem tarifária é preciso se


compreender antes quais eram as principais produções comercializadas no Brasil, afinal,
há uma diferença grande entre um taxa de 15% cobrada sobre produções com pouca
participação no mercado e uma taxa de 16% cobrada sobre produções com muita
participação no mercado.

21
Alvará de 25 de abril de 1818.
22
GUIMARÃES, Carlos Gabriel. O comitê de 1808 e a defesa na corte dos interesses ingleses no Brasil.
Anais do II Encontro Internacional de História Colonial. Mneme – Revista de Humanidades, UFRN, Caicó
(RN), v. 9, n. 24, set./out. 2008. p. 7. Ver também: SILVA, Camila Borges. Uma perspectiva atlântica: a
circulação de mercadorias no Rio de Janeiro após a transferência da Corte portuguesa para o Brasil
(1808-1821). Navigator, v. 8, n. 16, pp. 21-34, 2012. p. 30.
23
Artigo 8º do Tratado de Comércio e Navegação. Disponível no ANTT.
24
CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Perfeitos negociantes: mercadores das Minas setecentistas. São
Paulo: Annablume, 1999.
25
RIBEIRO, Jorge Manuel Martins. Comércio e diplomacia nas relações luso-americanas (1776-1822).
1997. 1000f. Tese (Doutorado em História Moderna e Contemporânea) – Faculdade de Letras,
Universidade do Porto, Porto, 1997. p. 84.
8

Segundo relato de Henri Hill – cônsul dos Estados Unidos enviado a Salvador em
1808 –, as manufaturas têxteis britânicas tinham aceitação limitada no Brasil, sobretudo
as de lã. Para ele, o comércio da Grã-Bretanha no Brasil não galgaria muito sucesso nos
anos seguintes, pois os negociantes britânicos não participavam do comércio de gêneros
de “primeira necessidade”, o qual movimentava boa parte do mercado.

“(...) as desvantagens do comércio inglês com este reino [o do Brasil], para


o qual não fornece artigos de primeira necessidade e de cujas exportações
habituais não participa, irá, sem dúvida, diminuir o consumo inglês nos próximos
anos.”26 (Tradução minha).

Isso não torna possível afirmar, contudo, que as produções têxteis britânicas não
tivessem boa participação no comércio do Brasil ou que não encontraram aqui um bom
destino frente à impossibilidade de serem importadas na Europa ou nos Estados Unidos.
Por outro lado, o trecho da carta do cônsul estadunidense ao seu governo evidencia
alguns limites à ideia da existência de um domínio comercial britânico no Brasil pós-
1808. Certamente os “artigos de primeira necessidade” a que Hill se referia eram os
gêneros ligados ao consumo interno, tais como a carne seca, as farinhas – de trigo e
mandioca –, o arroz, a aguardente27, e mesmo alguns artigos importados, como o vinho,
o bacalhau e o azeite 28, a cujo comércio os britânicos tinham pouca participação. E
mesmo o comércio dos artigos têxteis, que era o mais movimentado pelos negociantes
britânicos no Brasil, deve ser analisado com cuidado. Boa parte das produções têxteis
britânicas enviadas ao Brasil eram tecidos grosseiros de algodão, e sabe-se que em
muitas regiões do interior de algumas capitanias, como Minas Gerais 29 e Santa
Catarina30, por exemplo, existiam produções similares, cujos tecidos fabricados eram
utilizados para vestir uma considerável parcela da sociedade, especialmente as camadas
populares e os escravos. Essa produção interna tinha tanta expressividade que Henri Hill
chegou a mencioná-la em sua carta ao governo dos Estados Unidos. Hill escreveu:

26
HILL, Henri. A view of the commerce of Brazil. Edição bilíngue do Banco da Bahia S.A, 1964. p. 36.
27
FRAGOSO, João Luís. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio
de Janeiro, 1790-1830. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1992.
28
RIBEIRO, Jorge Manuel Martins; 1997.
29
LIBBY, Douglas Cole. Protoindustrialização em uma sociedade escravista: o caso de Minas Gerais. IN:
SZMRECSÁNYI, Tamás; LAPA, José Roberto do Amaral. História Econômica da Independência e do
Império 2002. 2ª ed. – São Paulo: Hucitec; ABPHE; EDUSP; Imprensa Oficial, 2002.
30
SILVA, Augusto da. A economia da ilha de Santa Catarina no império português (1738-1807). II
Encontro de Economia Catarinense – Artigos Científicos – Área temática: Desenvolvimento regional. 24,
25 e 26 de abril de 2008 – Chapecó – SC.
9

"Deve ser considerado que a população deste país [o Brasil] é de cerca de


três milhões e que mais de dois terços são da classe que subsiste das ‘produções
próprias do país, para a qual luxos estrangeiros são totalmente desconhecidos.
Além disso, nas províncias do interior, a maior parte dos habitantes se vestem
com as suas próprias manufaturas de algodão grosso, algumas de lã e chapéus de
couro. A distância e a má condição das estradas para os portos marítimos,
juntamente com imposto sobre a passagem de mercadorias, tornam improvável
que eles [os habitantes] possam absorver grandes suprimentos dos portos.” 31
(Tradução minha)

Isso quer dizer que o aumento da presença de produtos britânicos no Brasil,


incentivado pela abertura dos portos e pelo tratado de 1810, não foi, por si só,
determinante ao bom desempenho desses produtos nas diversas regiões que compunham
tal mercado. Cada região, setor e praça mercantil reagiu de maneira distinta à
liberalização comercial. E as características desse mercado são o que auxiliam a
explicação disso. Tratava-se, como bem apontou Cláudia Chaves 32 , de um mercado
identificado por funcionar em: um espaço territorial pouco integrado, que dificultava a
comunicação mercantil entre as regiões; em uma economia com formas de produção
variadas e, portanto, composta por bases escravistas e camponesas; e em meio a uma
fraca circulação de moedas, que, no mínimo, dificultava o bom desempenho dos
produtos britânicos nas capitanias do interior.
Percebe-se, portanto, a grande complexidade da conjuntura político-econômica
existente no período da abertura dos portos, o que destaca a fragilidade argumentativa
de qualquer afirmação sobre os efeitos do tratado de 1810 que não considere tal
complexidade. Mas disso surge uma pergunta: o que toda essa complexidade representa
para a compreensão da relação existente entre os tratados de amizade, comércio e
navegação e a busca por soberania em inícios dos Oitocentos?
Parte da resposta está na força político-jurídica das críticas aos acordos comerciais
desses tratados. Ainda que o tratado fosse defendido por alguns dos membros da
administração joanina, como D. Rodrigo e José da Silva Lisboa, e que, muito tempo
depois, autores como José Luís Cardoso ou o próprio professor Luís Oliveira Ramos
tentassem relativizar os impactos negativos do tratado sobre a economia portuguesa,

31
HILL, Henri; 1964. p. 36.
32
CHAVES, Cláudia Maria das Graças. Melhoramentos no Brazil: integração e mercado na América
portuguesa (1780-1822). 2001. 359f. Tese (Doutorado em História) – PPH/UFF, Niteroi, 2001. p. 39.
10

mais de duzentos anos se passaram e o estigma do “leonino tratado com a Inglaterra”33


persiste. Imagine o leitor, a força política que essas críticas tomaram em períodos como
a transferência da corte portuguesa para o Brasil e a abdicação de D. Pedro I. Criticar o
tratado de 1810 tinha relação com o projeto político a que se pertencia34 – ou que, ao
menos, se simpatizava –, e aqui se encontra a outra parte da resposta à pergunta
anterior: criticar o tratado de 1810 era posicionar-se frente ao governo central
responsável pelos seus acordos e, portanto, mais do que representar a busca pela
soberania do Estado, propriamente, os tratados de amizade, comércio e navegação
incorporavam-se aos discursos políticos dos diversos projetos políticos existentes, que
delegavam soberania, cada um a sua maneira, ao centro de poder decisório que
julgavam como sendo o mais adequado.
Muitos partícipes da revolução pernambucana de 1817 e da Confederação do
Equador de 1824 pensaram sobre os princípios de soberania e de legitimidade, o que
muitas vezes representava os ideais políticos desses movimentos frente aos “projetos
centrais”35 no Rio de Janeiro. Assim, em 1824, em um discurso na Câmara de Recife,
frei Caneca dizia que a soberania era “aquele poder sobre o qual não há outro (...) logo é
sem questão que a mesma nação é quem deve esboçar a sua constituição (...) S. M. I.
[Sua Majestade Imperial] não é a nação, não tem soberania”36.
Diferentemente do grupo representado, por exemplo, por José Bonifácio e pelo
Visconde de Cairú, que relacionavam a soberania do Estado imperial ao reconhecimento
da independência pela Europa – e em menor medida, pelos Estados Unidos –, os

33
A expressão foi cunhada por Oliveira Lima em sua obra sobre D. João VI. Ver: LIMA, Manuel de
Oliveira. Dom Joao VI no Brazil, 1808-1821. Rio de Janeiro: Typographia do Jornal do Commercio, 1908.
34
JANCSÓ, István; PIMENTA, João Paulo G. Peças de um mosaico ou apontamentos para o estudo da
emergência da identidade nacional brasileira. Revista de História das Ideias, v. 21, pp. 389-440, 2000.
35
“Projetos centrais” devem ser aqui entendidos de maneira similar à interpretação proposta por Théo
Lobarinhas acerca da relação entre o liberalismo e a independência do Brasil. De acordo com o autor, na
independência ocorreu uma aliança entre liberais aristocráticos e democráticos, cuja parceria, em um
primeiro momento, enfraquecera as ideias favoráveis à união com Portugal, mas, que no período
posterior à emancipação, abriu espaço a constituição de um governo mais centralizado e autoritário no
Rio de Janeiro, simbolizado pela dissolução da Constituinte de 1823 e pela outorga da Carta de 1824.
Ver: PIÑERO, Théo Lobarinhas. Os projetos liberais no Brasil império. Passagens: Revista Internacional
de História Política e Cultura Jurídica, Rio de Janeiro, v. 2, n. 4, pp. 130-152, maio-agosto, 2010. p. 136.
36
OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. Repercussões da revolução: delineamento do Império do Brasil,
1808-1831. IN: GRINBERG, Keila; SALLES, Ricardo; 2010. p. 40.
11

revolucionários de 1817 defendiam a soberania popular emanada do “povo”, o que deve


ser entendido como uma referência direta ao poder legislativo37.
Esses projetos políticos, formados em contraposição à influência política do Rio,
tendiam a aceitar “o princípio revolucionário em última instância, embora pondo a nova
ordem política numa linha de continuidade, e não de ruptura com as instituições
políticas”38. Por isso os revolucionários pernambucanos não viam com bons olhos as
ratificações por tratados de amizade, comércio e navegação pelo governo central.
Certamente não apenas por discordarem dos valores das taxas de importação
estabelecidas ou por tentarem proteger as “produções nacionais” frente às estrangeiras.
Mas por não aceitarem que as negociações fossem feitas à maneira do governo
centralizado no Rio de Janeiro. Considerando a relação feita por Gladys Ribeiro entre os
tratados e o princípio de soberania 39 , é possível que os pernambucanos não
simpatizassem com os acordos por que eles legitimavam o poder decisório da
monarquia centralizada no Rio. Isso quer dizer que os revolucionários pernambucanos
não eram contrários aos princípios do tratado, essencialmente, tampouco ao da liberdade
de comércio e de navegação. Eles eram contrários à condução dessas pautas pelo Rio de
Janeiro, pois não viam nesse centro de poder a soberania necessária para a negociação
desses acordos.
Outro exemplo pode-se encontrar na análise de folhetos políticos do período da
independência do Brasil. Neles Lúcia Neves também identificou hostilidades aos
acordos comerciais de 1810. Segundo Neves, o autor de um número da gazeta
Português Constitucional de 1820, por exemplo, sugeria a necessidade de se colocar
“tudo no antigo estado como estava até 1807, abolindo-se até mesmo o tratado de
comércio com a Inglaterra” 40 . A autora explica que a publicação foi duramente
rebatida no Brasil, pois sugeria a revogação da abertura dos portos e da elevação do
Brasil a Reino – ocorrida em 1815. Assim, o Português Constitucional foi acusado de
“fazer parte do número daqueles a quem o abutre da inveja e do ciúme mercantil roi as

37
ANDRADE, Breno Gontijo. A guerra das palavras: cultura oral e escrita na Revolução de 1817. 2012.
297f. Dissertação (Mestrado em História), Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2012. p. 226.
38
NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das. Os panfletos políticos e a cultura política da independência do
Brasil. IN: JANCSÓ, István. Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2005. p.
653.
39
RIBEIRO, Gladys Sabina; 2004.
40
NEVES; 2005. p. 659.
12

entranhas”41. Nesse caso, especificamente, o padre Luís Gonçalves dos Santos – quem
respondera o artigo português – também não se opunha ao tratado comercial,
propriamente. Seu objetivo, ao contrário, parecia ser sublinhar a função do tratado
como legitimador da emancipação mercantil do Brasil, que ao lado da elevação à
categoria de reino, impediria qualquer possível submissão a Portugal, já que contavam
então com o mesmo estatuto jurídico dentro do Império como um todo, o que, por sua
vez, reforçava a soberania do Brasil como corpo político-econômico autônomo42.
Por isso é extremamente necessária a consideração da complexidade da
conjuntura político-econômica do período. Quando se analisa o tratado de 1810 em si
mesmo, ou por meio de uma análise estritamente política ou estritamente econômica,
se perde a visão da conjuntura e da grande diversidade de projetos políticos – que
também contemplavam questões de cunho econômico – existentes. Compreender o
princípio de soberania, nesse caso, também é de extrema importância. Não apenas do
ponto de vista do projeto político central, que buscava a soberania do Estado e da
monarquia bragantina, somente. Mas, sobretudo, dos pontos de vista desses diversos
outros projetos políticos, cujas análises amplificam a compreensão dos tratados de
amizade, comércio e navegação, em específico, e da independência do Brasil, em
geral.
Isso não torna menos importante, contudo, a compreensão dos efeitos dos
acordos comerciais do tratado de 1810, ou de qualquer outro tratado de amizade,
comércio e navegação, sobre o desempenho da indústria ou do comércio de Portugal,
nem o entendimento dos impactos sobre as relações entre a metrópole portuguesa e a
colônia brasílica. Apenas torna também importante a compreensão da diversidade de
reações políticas aos tratados, sobretudo para as análises que de alguma maneira
relacionarem as dinâmicas do comércio, os relacionamentos externos de Portugal e o
processo de independência do Brasil. Não se trata de uma tarefa descomplicada. Mas,
certamente, a proposta interdisciplinar do professor Luís de Oliveira Ramos é um
ótimo começo.

41
NEVES; 2005. p. 659.
42
WEHLING, Arno; WEHLING, Maria José. Soberania sem independência: aspectos do discurso político e
jurídico na proclamação do Reino Unido. Tempo, n. 31, pp. 89-116, fevereiro de 2011.

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