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BATMAN, HISTÓRIA E IMAGINÁRIO: MITANÁLISE E MITOCRÍTICA NAS

NARRATIVAS DE ORIGEM DO CAVALEIRO DAS TREVAS1

Bruno Leonardo Ramos Andreotti

Doutorando, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, Brasil

RESUMO

O presente trabalho pretende realizar uma análise comparativa de duas histórias em quadrinhos que
narram a origem do personagem Batman, criado por Bob Kane e Bill Finger em 1939, A lenda de
Batman: Quem ele é e como ele surgiu (1940), de autoria dos próprios criadores com arte final de
Sheldon Moldoff, sendo a primeira versão da origem do personagem (que permanecerá como referência
durante toda sua trajetória) e Batman: Ano Um (1987), de Frank Miller e David Mazzucchelli,
estabelecida após o grande reboot do Universo DC de 1986, Crise nas Infinitas Terras, momento em que
o personagem foi reformulado, e que permaneceu canônica, isto é, válida para a cronologia oficial do
personagem, até 2014. O referencial teórico para tal análise será os estudos do imaginário realizados por
Gilbert Durand, em especial aqueles voltados à mitologia, tendo como referencial metodológico a
mitanálise e a mitocrítica. Uma vez que diversos estudiosos sustentam que super-heróis são uma espécie
de mitologia moderna, seria possível, por meio da análise dos temas e imagens que compõem ambas as
narrativas, remetida aos respectivos contextos de suas produções, encontrar as correlações na cultura e
as mudanças sociais subjacentes às duas obras (mitanálise), identificando configurações próprias não só
dos criadores individuais, mas também de agentes sociais e categorias sociais, evidenciando ciclos de
transformação do imaginário que compõe o personagem (mitocrítica) em sua historicidade.

PALAVRAS-CHAVE: Batman; Imaginário; História

Batman é um dos personagens mais longevos da cultura pop, tendo completado 80


anos de publicações e adaptações ininterruptas nas mais diversas mídias em 2019. No entanto,
seria um equívoco afirmar que o personagem permaneceu o mesmo nessas oito décadas de
existência, não obstante há alguns elementos que permanecem cristalizados, sobretudo em
sua origem. Esse artigo busca examinar essas permanências e mudanças por meio de uma
análise comparativa de duas histórias de origem do personagem, a saber, a primeira versão
de sua origem na história A lenda de Batman: Quem ele é e como ele surgiu, publicada em
1940 em Batman #12, com roteiro de Bill Finger, desenhos de Bob Kane e arte final de

1
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
- Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
2
Essencialmente as duas primeiras páginas da história Batman Luta Contra o Dirigível da Morte, publicada em
Detective Comics #33(1939), porém o crédito dos roteiros é de Gardner Fox, com exceção do primeiro requadro
em que o referido dirigível da morte, a imagem do herói, os dizeres “Este é Batman, estranha criatura da noite, o
vingador do crime” e o título da história são substituídos pela imagem do Batman em fundo amarelo com o novo
título da história. A versão de 1940 será a referenciada por ser mais conhecida e em respeito a Bill Finger que
Sheldon Moldof, e Batman: Ano Um, publicada em quatro partes em Batman #404 a #407,
em 1987.
Embora existam outras versões de sua origem, essas duas histórias marcam pontos
privilegiados para entender as mudanças e permanências do personagem. A de 1940 destaca-
se por ter sido a primeira vez que mostrou-se a origem do Homem-Morcego pelas mãos de
seus criadores e a de 1987 por marcar uma guinada editorial no universo ficcional do qual o
personagem faz parte, sendo uma nova origem para novos leitores após o grande reboot
batizado de Crise nas Inifinitas Terras3, de 1986, momento em que a origem do personagem
foi recontada para apresentá-lo a uma nova geração de leitores, permanecendo canônica4 até
2014.
A metodologia utilizada para a análise comparativa das duas histórias terá como
principal referencial a obra de Gilbert Durand e seus estudos sobre imaginário. Desse modo,
pretende-se realizar a mitocrítica e mitanálise dessas narrativas.

IMAGINÁRIO, MITOCRÍTICA E MITANÁLISE

Antes de abordar as duas narrativas propriamente ditas é necessário deter-se


brevemente na metodologia a ser utilizada.
O imaginário é uma importante dimensão da História, aquilo que o historiador traz
para primeiro plano (BARROS, 2017), abarcando a dimensão simbólica de uma sociedade,
suas representações, discursos e práticas percebidas como produtoras de sentido e
identidades, conjunto de representações (VAHL;VASCONCELOS, 2014) histórica e
socialmente construídas para conferir sentido ao real, e que também produz esse real. Ainda
pode ser entendido como o estudo das produções imagéticas, suas propriedades e efeitos, o
conjunto de produções, mentais ou materializadas em obras, com base em imagens visuais e
linguísticas, formando conjuntos coerentes e dinâmicos (WUNENBURGER, 2007, p.8-11).

apenas em 2015 teve sua contribuição ao personagem devidamente reconhecida.


3
Reboot é um termo emprestado da informática que na indústria de entretenimento significa descartar toda ou
grande parte da continuidade anterior para recriá-la, preservando certos elementos essenciais e criando outros. Isso
é feito periodicamente para resolver o problema das amarras criativas de uma cronologia muito extensa e para
resolver questões mais simples como, por exemplo, o envelhecimento dos personagens. A DC Comics resolveu
esse problema nos anos 60 estabelecendo que as aventuras do Batman da Era de Ouro passavam-se numa Terra
paralela, chamada de Terra-2. Ao longo dos anos as Terras foram se multiplicando e era comum que personagens
de uma Terra visitassem outras. Esses eventos eram conhecidos como “Crises”. Na década de 80 uma decisão
editorial resolveu acabar com todas essas Terras para atrair novos leitores, rebotando toda a cronologia da DC
Comics. Esse evento ficou conhecido como Crise nas Infinitas Terras.
4
O cânone é aquilo que é considerado válido na cronologia oficial de um personagem. Com tantas Terras e reboots
(ver nota 3), criadores e consumidores precisam saber o que é considerado como válido ou não, isto é, tento
acontecido ou não a um personagem, uma Terra etc. O fato da história de Miller e Mazzucchelli ter permanecido
canônica por quase 30 anos atesta sua importância para o personagem.
Portanto, os quadrinhos serão abordados nesse artigo como elemento constitutivo do
imaginário como dimensão da História e, como tal, produtores de sentidos historicamente e
socialmente construídos, que conferem sentido ao real ao mesmo tempo que o produz. Esses
sentidos encontram-se materializados em imagens visuais e linguísticas nas obras a serem
analisadas, que formam conjuntos coerentes e dinâmicos em torno do personagem central a
ser estudado, no caso, Batman.
Esses sentidos serão remetidos à concepção durandiana de imaginário, ou seja,
entendido como conjunto de imagens que constitui o capital pensado do homo sapiens
(DURAND, 2012, p.18) e à metodologia específica por ele criada para seu estudo, a
mitocrítica e mitanálise.
O principal ponto da mitocrítica de Durand é interpretar uma narrativa pela
redundância de um mitema, entendido como a menor parte que compõe um determinado mito
ou narrativa (ALMEIDA; ARAÚJO, 2018). Ao identificar esses mitemas (revelados pela sua
redundância) é possível assinalar os mitos aos quais remetem e suas transformações
históricas.
Como um complemento ou contraparte da mitocrítica, a mitanálise

tenta perceber, por um lado, como é que determinada ideologia ou


movimento sociocultural moldados por um determinado contexto histórico é
tributário, nas suas diversas expressões, de determinadas figuras míticas, de
certos mitos diretores, ainda que degradados, e, por outro, procura
igualmente perceber como é que esses mitos ou figuras míticas permanecem,
derivam ou se desgastam (DURAND, Apud ALMEIDA; ARAÚJO, 2018,
p.29).

Por outras palavras, a mitanálise tem como uma das suas missões identificar “os
núcleos míticos ou simplesmente simbólicos que são significativos de uma sociedade em um
dado momento da sua formação” (DURAND, Apud IDEM, p.30).

TEMAS, MOTIVOS E ARQUÉTIPOS RECORRENTES

Anaz (2016) identificou alguns temas, motivos e arquétipos recorrentes na trilogia de


filmes do Batman dirigida por Christopher Nolan, estabelecendo uma tabela, classificando-os
de acordo com os regimes de imagens Diurno e Noturno5. Na análise das histórias em

5
Na perspectiva de Durand o regime Diurno de imagens está ligado ao reflexo postural, ao arquétipo do herói e
ao trinfo sobre a morte. Já o regime Noturno está ligado aos reflexos digestivos e sexuais, à eufemização da morte
(DURAND, 2012).
quadrinhos de origem do Homem-Morcego de 1940 e 1987 também é possível identificar que
alguns desses temas, motivos e arquétipos, indicando certa permanência no imaginário do
personagem. Tomando como base a tabela apresentada e adaptando-a para os quadrinhos
analisados temos:

Regime Diurno Regime Noturno 1940 1987

Morcego X X

Herói Vigilante X X

Herói Científico X X

Vilão (crime) X X

Pais assassinados X X

Vingança X X

Riqueza material X X

Tabela 1: Temas, motivos e arquétipos recorrentes nas narrativas de origem do Batman em 1940 e
1987. Adaptado de ANAZ, 2016, p.101-103.

Serão analisados os sete temas acima elencados, enfatizando os temas do Morcego,


Herói Científico e Herói Vigilante.

BATMAN E OS SÍMBOLOS DO MAL

O imaginário, segundo o pensamento de Durand, é mobilizado pelo grande mal, que é


o medo da passagem do tempo e, consequentemente, da morte, qualquer que ela seja (física,
psíquica etc.). Há certas imagens que simbolizam esse mal, que Durand classificou em
símbolos teriomórficos, nictormórficos e catamórficos. A imagem do morcego no Batman
conjuga esses três tipos de símbolos e está fortemente presente nos quadrinhos analisados.
Os símbolos teriomórficos são os símbolos animais e, escreve Durand, “a crença
universal nas potencias maléficas está ligada à valorização negativa do simbolismo animal”
(DURAND, 2012, p. 83). Diz também que o simbolismo animal está ligado à agressividade
(IDEM, p.84). A teriomorfia da figura do Batman é a mais evidente, afinal, é o morcego, fonte
de medo de Bruce Wayne, que foi adotado como sua máscara e seu símbolo. O momento em
que Bruce Wayne tem a epifania de tornar-se um morcego é essencial nas duas narrativas
analisadas.
Observa-se que na narrativa de 1940 o jovem Bruce Wayne faz o juramento vingar a
morte de seus pais e passar o resto de sua vida lutando contra o crime ainda criança e a epifania
do morcego só ocorre quando já adulto e Durand desta que “no sonho ou na fantasia infantil o
animal devorador transforma-se em justiceiro” (IBIDEM, p. 84).

Figura 1: o jovem Bruce Wayne faz seu juramento


Fonte: FINGER, B.; KANE, B. The Legend of Batman – who he is and how he came to be.
In: Batman – The Golgen Age v.1 Burbank: DC Comics, 2016.

Na narrativa de 1987, ainda que não esteja explicitado quando a decisão de vingar a
morte dos pais e passar a vida lutando contra o crime ocorre, o morcego está ligado à infância
de Bruce Wayne, e o medo que sentia do animal parece estar ligado também ao medo do pai,
a própria transformação em Batman ligada à uma imposição paterna. É o que parece sugerir a
imagem do morcego que paira sobre o busto de Thomas Wayne, pai de Bruce Wayne, e no
recordatório “Já vi essa figura antes… em algum lugar. Ela me aterrorizou quando criança…
me aterrorizou… Sim, pai. Eu me tornarei um morcego”.
Figura 2: O encontro com o Morcego na narrativa de 1987.
Fonte: MILLER, F.; MAZZUCCHELLI, D. Batman: Year One – the Deluxe Edition.
Burbank: DC Comics, 2017.

Os símbolos nictomórficos são os símbolos da noite, das trevas e o Batman – assim


como o morcego – é uma figura essencialmente noturna. “As trevas noturnas constituem o
primeiro símbolo do tempo” (IBIDEM, p.91), e talvez o epíteto que melhor resuma o
personagem seja, de fato, Cavaleiro das Trevas. Ainda que nas duas histórias haja a
predominância do regime diurno de imagens (a própria figura do Herói sendo pertencente a
esse regime) elas estão profundamente mergulhadas em imagens noturnas, sobretudo a
narrativa de 1987. Essa mesma característica também é apontada no já citado estudo de ANAZ
(2016).
Os símbolos catamórficos são os símbolos ligados à queda, “solidária aos símbolos das
trevas” (IBIDEM, p. 112), e a queda é moralizada sob a forma da punição (IBIDEM, p.114).
Talvez o exemplo mais claro na cultura judaico-cristã seja a queda do Homem, sua expulsão
do Paraíso, que o joga inexoravelmente na ordem do tempo.
A trajetória do Batman começa na morte de seus pais, tema constituinte do personagem
e, por consequência, presente em todas as suas narrativas de origem, que lança Bruce Wayne
numa cruzada implacável e sem fim, instaurando um desequilíbrio que não pode ser
restaurado. Ou, talvez, restaurado somente da única maneira que Bruce Wayne encontrou para
não enlouquecer: vestir-se de morcego e dar ao mundo a justiça que não teve. De qualquer
maneira, o Batman carrega a queda em sua imagem, é o herói caído por excelência. A morte
dos pais de Bruce Wayne é, no nível simbólico, sua queda, sua entrada no mundo, sua expulsão
do Paraíso.
Sendo a imagem que reúne os três tipos de símbolos do mal, não obstante, o Batman
luta pelo bem e é essencialmente uma figura ambígua (cf. MORRISON, 2011 e ANAZ, 2016).
Isso poderia ser explicado pelo processo de eufemização que existe acerca da morte,
característica do imaginário, e Durand assinala que “uma representação é enfraquecida
disfarçando-se do nome ou o atributo do contrário” (DURAND, 2012, p.116). Assim, o
Batman, cuja imagem é animalesca, noturna e decaída transforma-se numa figura heroica.

CULTO MÍTICO DO DINHEIRO

Um dos grandes temas6 que compõe uma mitanálise do imaginário americano é o culto
mítico do dinheiro, veja no seu aspecto positivo (a virtude e o trabalho) quanto negativo (vício
e torpezas) (WUNENBURGER, 2007, p.85). É possível notar esse tema na importância dada
à riqueza material nas duas histórias analisadas.
Na história de 1940 essa importância quando Bruce Wayne ressalta que os bens de seu
pai o enriqueceram, indicando que foram esses bens que proporcionaram os meios para que
possa executar sua missão, sendo o culto mítico do dinheiro apenas em seu aspecto positivo.
No final dos anos 30 e início dos anos 40, os Estados Unidos estavam se recuperando da
famosa Crise de 29 por meio das políticas do New Deal, levadas a cabo por Franklin Delano
Roosevelt, que governou os Estados Unidos entre 1933 e 1945, e “o homem comum americano
sentia que nem tudo estava perdido. Parecia que o sonho americano se recuperava” (TOTA,
2009, p. 155). Essa recuperação da economia e das condições de vida do americano parece
indicar o motivo da ênfase do culto mítico do dinheiro positivado na narrativa.
Na narrativa de 1987 o motivo da riqueza material dos Wayne como um meio para que
o Batman execute sua missão também é retomado em seu aspecto positivo, porém há um
momento em que o protagonista invade uma reunião de pessoas ricas e influentes em Gotham
para intimidá-las e proclama: “Senhoras e senhores... vocês comeram bem. Comeram a riqueza
de Gotham... seu espírito. O banquete acabou. De hoje em diante... nenhum de vocês estará a
salvo”, conforme a imagem abaixo.

6
Poder-se-ia dizer “mitemas” no caso específico do imaginário referente ao Batman, pois é possível identificar
uma recorrência desse tema em suas histórias. O mesmo pode ser dito a respeito do tema que será abordado a
seguir, o maniqueísmo ontológico e moral.
Figura 3: O culto mítico do dinheiro em seu aspecto negativo na história de 1987
Fonte: MILLER, F.; MAZZUCCHELLI, D. Batman: Year One – the Deluxe Edition. Burbank:
DC Comics, 2017.

A página parece indicar que o aspecto negativo da riqueza, as classes abastadas


(composta por autoridades públicas, políticos e grandes empresários) aparecendo como
parasitas que se alimentam de Gotham, ainda que Bruce Wayne faça parte da mesma elite que
Batman parece culpar por parasitar as riquezas de sua cidade. O culto mítico do dinheiro em
seu aspecto negativo parece estar ligado às políticas econômicas implantadas por Ronald
Reagan, presidente dos Estados Unidos na época, que promoveu um corte de impostos que
favoreceu aos mais ricos (MELLO FILHO, 2011).

MANIQUEÍSMO ONTOLÓGICO E MORAL E O ARQUÉTIPO DO VIGILANTE

Outro dos grandes temas que compõem uma mitanálise americana é um maniqueísmo
ontológico e moral, cuja origem é a fé missionária e messiânica vinda do calvinismo
(WUNENBURGER, 2007, p.62). A partir disso, resultam duas representações do mal: exterior
ao grupo (IDEM), representado nas narrativas analisadas pelo crime e pelos criminosos, seja
de maneira localizada (os assassinos dos pais de Bruce Wayne na história de 1940) ou difusa
(diversos criminosos e diversos tipos de crime na história de 1987), e o mal interior ao grupo,
que

é cultivado dialeticamente como um aguilhão do bem; é preciso alimentar


sem cessar a sociedade americana com figuras violentas e transgressoras, de
gangsters, de cowboys, mas cujo destino é sempre compatível com uma
redenção. Nos dois casos, pois, a sociedade americana repousa num
antagonismo categórico entre bem e mal, o bem sempre vencedor, no exterior
pela negação, no interior pelo resgate e pela salvação (WUNENBURGER,
2007, p. 63).

Nessa perspectiva o super-herói seria expressão desse mal com um aguilhão de bem,
violento e transgressor, mas passível de redenção, isto é, de ter suas ações justificadas. A
violência é constitutiva do gênero super-herói (GAVALER, 2017, p.24-28) e a transgressão,
especialmente do ponto de vista jurídico, parece estar paradoxalmente no cerne das ações
super-heroicas. Afinal, o que é o super-herói se não um tipo de personagem que age fora da
lei, ou à sua margem, para garantir que seja cumprida?
Ainda que na narrativa de 1940 não seja abordado especificamente o tema da relação
do Batman com as forças da lei e da ordem, outras histórias do período mostram o Batman
como um personagem com uma relação no mínimo conflituosa com a polícia. Um exemplo
pode ser visto em Batman #35, onde é dito que suas ações ridicularizam o departamento de
polícia e o comissário Gordon expressa claramente seu desejo de capturá-lo. Já na narrativa
de 1987 o Batman é mostrado explicitamente em conflito com as forças que representam o
status quo de Gotham: sua elite, como já mencionado, e as forças policiais.

Figura 4: Batman em conflito com as forças policiais de Gotham na narrativa de 1987


Fonte: MILLER, F.; MAZZUCCHELLI, D. Batman: Year One – the Deluxe Edition. Burbank:
DC Comics, 2017.

O problema da transgressão jurídica do herói desdobra-se na questão do arquétipo do


herói vigilante, definido por Hoppestand em seus aspectos positivos e negativos:
Existem duas definições do vigilante, uma positiva, outra negativa. A
primeira definição é a do vigilante como um indivíduo heroico que renuncia
aos mecanismos burocráticos do sistema legal para alcançar a "Justiça". Ele
(ou ela) é frequentemente desiludido com a ineficácia dos métodos
socialmente aceitos de assegurar que a lei seja cumprida, ou com a eficácia
do criminoso, e assim ele toma a lei em suas próprias mãos, tornando-se juiz
e executor ao mesmo tempo. O vigilante desafia a lei para que possa defender
os ideais básicos dessa lei. Este paradoxo não é pensado como sendo
contraditório pelo vigilante, e na verdade o paradoxo apresenta-se ao herói
vigilante como sendo o meio viável para proteger os interesses da sociedade
civilizada. A segunda definição do vigilante é a mais popular: a de um
membro de um grupo que abusa da lei a fim de promover a vingança sem o
questionamento moral sobre o fato dessa vingança ser ou não justa. Este tipo
de vigilante faz parte da vil mentalidade de massa e frequentemente
representa os piores casos de violência destrutiva e caótica tanto na realidade
quanto na ficção (HOPPESTAND, 1992, p. 51).

O Batman é expressão do vigilante em seu aspecto positivo nas duas narrativas


analisadas, porém com mais ênfase na de 1987. Essa ênfase no vigilantismo presente na obra
está em consonância com o chamado Reaganismo, como convencionou-se chamar a atuação
política, econômica e social de Ronald Reagan, que governou os Estados Unidos entre 1981 e
1989. Podemos notar, na narrativa de 1987, como as figuras da lei e da ordem (políticos,
policiais, a elite econômica de Gotham) parecem opor-se a uma justiça levada à cabo pelo
Batman, uma justiça moralmente justificável, porém fora do sistema jurídico-político vigente.
O Reaganismo enfatizou essa diferença (DUBOSE, 2007, p.917), que poderia ser estendida a
quase todo os super-heróis (GAVALER, 2017, p. 79).

O HERÓI CIENTÍFICO

Também é possível identificar o arquétipo do herói científico nas duas narrativas


analisadas, com as mesmas funções narrativas encontradas na análise de ANAZ:

Batman como um herói que faz intensivo uso de alta tecnologia e dos
conhecimentos e métodos científicos, que recorrer aos métodos racionais
indutivo-dedutivo detetivescos para investigar os casos e que se dedicou anos
de treinamento e preparação física e mental (ANAZ, 2016, p. 104).
Figura 5: O arquétipo do herói científico sob o aspecto mental e físico na narrativa de 1940
Fonte: FINGER, B.; KANE, B. The Legend of Batman – who he is and how he came to be. In:
Batman – The Golgen Age v.1 Burbank: DC Comics, 2016.

Como pode-se observar na figura 5 o treinamento de Bruce Wayne é colocado em


destaque, afirmando que tornou-se um “mestre das ciências” e que treinou seu corpo para
alcançar a “perfeição física”. Os mesmos elementos encontram-se na narrativa de 1987.

Figura 6: O arquétipo do herói científico sob o aspecto mental na narrativa de 1987


Fonte: MILLER, F.; MAZZUCCHELLI, D. Batman: Year One – the Deluxe Edition. Burbank:
DC Comics, 2017.
Figura 7: O arquétipo do herói científico sob o aspecto físico na narrativa de 1987
Fonte: MILLER, F.; MAZZUCCHELLI, D. Batman: Year One – the Deluxe Edition. Burbank:
DC Comics, 2017.

Na figura 6 o herói científico expressa-se por meio do invento das empresas Wayne,
que de acordo com o herói, poderia ser patenteado e, com isso, ele ganharia uma fortuna,
porém, como é ressaltado, ele já tem uma fortuna. Isso também pode ser associado ao tema do
culto mítico do dinheiro, abordado anteriormente. Não fica claro se foi Bruce Wayne que
desenvolveu o aparato. A narrativa de 1987 enfatiza o aspecto físico do personagem e do
arquétipo do herói científico, como mostrado na Figura 7.
Anaz associa o herói científico ao mito de Prometeu, na perspectiva mitocrítica, o que
também pode ser observado nas histórias em quadrinhos analisadas. Da perspectiva
mitoanalítica, nas histórias analisadas, o herói científico pode ser associado a um elemento
específico da cultura americana chamado de americanismo. Conceito de complexa definição
e apreensão (TOTA, 2017, p. 149), pode ser entendido como um construto identitário
nacional composto pelo nacionalismo, tradição, progressivismo e democracia (IDEM,
p.148). Pode-se identificar no herói científico uma expressão do progressivismo:

O progressivismo, conceito que não tem tradução precisa para o português,


é baseado na crença da racionalidade, da abundância, no aperfeiçoamento
constante do caráter moderno da sociedade americana. Essa dimensão
enfatiza a habilidade do homem livre e energético na transformação da
natureza – com ajuda de máquinas e técnicas maravilhosas – para fornecer
ao mercado uma quantidade de produtos atraentes para o consumo (TOTA,
2017, p. 148)

Assim o Batman, como herói científico, é expressão desse progressivismo, como


mostra a ênfase em sua racionalidade, com seus inventos (lembre-se do famoso cinto de
utiliadades), que, como vimos, além de auxiliar no combate ao crime sempre podem colaborar
com as empresas Wayne. Além disso, também expressa um componente do americanismo e
do progressivismo, a american ingenuity, ou a engenhosidade americana, a crença na
capacidade criativa do homem americano (TOTA, 2000, p. 20).

O IMAGINÁRIO DO MORCEGO

Na análise das narrativas de origem do Batman exposta, por meio da mitocrítica (a


mobilização de temas míticos) e mitanálise (identificação de elementos que expressam
elementos culturais, históricos e políticos da sociedade americana), procurou-se mostrar como
o símbolo do morcego expressa os três tipos de símbolos do mal analisados por Durand
(teriomórfico, nictormórfico e catamórficos), mobilizando os temas do vilão (expresso pelo
assassinato de seus pais) e da vingança. Também foram abordados os mitemas do culto mítico
do dinheiro e do maniqueísmo ontológico e moral expressos nas duas narrativas, bem como a
figura do Batman como herói transgressor, tanto como herói científico como herói vigilante.
Todos esses elementos indicam que o personagem é uma importante expressão do imaginário
americano.

REFERÊNCIAS

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In: Téssera: Uberlandia p. 18-42, 2018.

ANAZ, S. A. L. O sucesso do arquétipo do herói vigilante: ciência, tecnologia e ética na trilogia


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BARROS, J. D. Teoria da história v1 princípios e conceitos fundamentais. Petrópolis: Vozes, 2017.

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DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

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