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RESUMO
O presente trabalho pretende realizar uma análise comparativa de duas histórias em quadrinhos que
narram a origem do personagem Batman, criado por Bob Kane e Bill Finger em 1939, A lenda de
Batman: Quem ele é e como ele surgiu (1940), de autoria dos próprios criadores com arte final de
Sheldon Moldoff, sendo a primeira versão da origem do personagem (que permanecerá como referência
durante toda sua trajetória) e Batman: Ano Um (1987), de Frank Miller e David Mazzucchelli,
estabelecida após o grande reboot do Universo DC de 1986, Crise nas Infinitas Terras, momento em que
o personagem foi reformulado, e que permaneceu canônica, isto é, válida para a cronologia oficial do
personagem, até 2014. O referencial teórico para tal análise será os estudos do imaginário realizados por
Gilbert Durand, em especial aqueles voltados à mitologia, tendo como referencial metodológico a
mitanálise e a mitocrítica. Uma vez que diversos estudiosos sustentam que super-heróis são uma espécie
de mitologia moderna, seria possível, por meio da análise dos temas e imagens que compõem ambas as
narrativas, remetida aos respectivos contextos de suas produções, encontrar as correlações na cultura e
as mudanças sociais subjacentes às duas obras (mitanálise), identificando configurações próprias não só
dos criadores individuais, mas também de agentes sociais e categorias sociais, evidenciando ciclos de
transformação do imaginário que compõe o personagem (mitocrítica) em sua historicidade.
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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
- Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
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Essencialmente as duas primeiras páginas da história Batman Luta Contra o Dirigível da Morte, publicada em
Detective Comics #33(1939), porém o crédito dos roteiros é de Gardner Fox, com exceção do primeiro requadro
em que o referido dirigível da morte, a imagem do herói, os dizeres “Este é Batman, estranha criatura da noite, o
vingador do crime” e o título da história são substituídos pela imagem do Batman em fundo amarelo com o novo
título da história. A versão de 1940 será a referenciada por ser mais conhecida e em respeito a Bill Finger que
Sheldon Moldof, e Batman: Ano Um, publicada em quatro partes em Batman #404 a #407,
em 1987.
Embora existam outras versões de sua origem, essas duas histórias marcam pontos
privilegiados para entender as mudanças e permanências do personagem. A de 1940 destaca-
se por ter sido a primeira vez que mostrou-se a origem do Homem-Morcego pelas mãos de
seus criadores e a de 1987 por marcar uma guinada editorial no universo ficcional do qual o
personagem faz parte, sendo uma nova origem para novos leitores após o grande reboot
batizado de Crise nas Inifinitas Terras3, de 1986, momento em que a origem do personagem
foi recontada para apresentá-lo a uma nova geração de leitores, permanecendo canônica4 até
2014.
A metodologia utilizada para a análise comparativa das duas histórias terá como
principal referencial a obra de Gilbert Durand e seus estudos sobre imaginário. Desse modo,
pretende-se realizar a mitocrítica e mitanálise dessas narrativas.
Por outras palavras, a mitanálise tem como uma das suas missões identificar “os
núcleos míticos ou simplesmente simbólicos que são significativos de uma sociedade em um
dado momento da sua formação” (DURAND, Apud IDEM, p.30).
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Na perspectiva de Durand o regime Diurno de imagens está ligado ao reflexo postural, ao arquétipo do herói e
ao trinfo sobre a morte. Já o regime Noturno está ligado aos reflexos digestivos e sexuais, à eufemização da morte
(DURAND, 2012).
quadrinhos de origem do Homem-Morcego de 1940 e 1987 também é possível identificar que
alguns desses temas, motivos e arquétipos, indicando certa permanência no imaginário do
personagem. Tomando como base a tabela apresentada e adaptando-a para os quadrinhos
analisados temos:
Morcego X X
Herói Vigilante X X
Herói Científico X X
Vilão (crime) X X
Pais assassinados X X
Vingança X X
Riqueza material X X
Tabela 1: Temas, motivos e arquétipos recorrentes nas narrativas de origem do Batman em 1940 e
1987. Adaptado de ANAZ, 2016, p.101-103.
Na narrativa de 1987, ainda que não esteja explicitado quando a decisão de vingar a
morte dos pais e passar a vida lutando contra o crime ocorre, o morcego está ligado à infância
de Bruce Wayne, e o medo que sentia do animal parece estar ligado também ao medo do pai,
a própria transformação em Batman ligada à uma imposição paterna. É o que parece sugerir a
imagem do morcego que paira sobre o busto de Thomas Wayne, pai de Bruce Wayne, e no
recordatório “Já vi essa figura antes… em algum lugar. Ela me aterrorizou quando criança…
me aterrorizou… Sim, pai. Eu me tornarei um morcego”.
Figura 2: O encontro com o Morcego na narrativa de 1987.
Fonte: MILLER, F.; MAZZUCCHELLI, D. Batman: Year One – the Deluxe Edition.
Burbank: DC Comics, 2017.
Um dos grandes temas6 que compõe uma mitanálise do imaginário americano é o culto
mítico do dinheiro, veja no seu aspecto positivo (a virtude e o trabalho) quanto negativo (vício
e torpezas) (WUNENBURGER, 2007, p.85). É possível notar esse tema na importância dada
à riqueza material nas duas histórias analisadas.
Na história de 1940 essa importância quando Bruce Wayne ressalta que os bens de seu
pai o enriqueceram, indicando que foram esses bens que proporcionaram os meios para que
possa executar sua missão, sendo o culto mítico do dinheiro apenas em seu aspecto positivo.
No final dos anos 30 e início dos anos 40, os Estados Unidos estavam se recuperando da
famosa Crise de 29 por meio das políticas do New Deal, levadas a cabo por Franklin Delano
Roosevelt, que governou os Estados Unidos entre 1933 e 1945, e “o homem comum americano
sentia que nem tudo estava perdido. Parecia que o sonho americano se recuperava” (TOTA,
2009, p. 155). Essa recuperação da economia e das condições de vida do americano parece
indicar o motivo da ênfase do culto mítico do dinheiro positivado na narrativa.
Na narrativa de 1987 o motivo da riqueza material dos Wayne como um meio para que
o Batman execute sua missão também é retomado em seu aspecto positivo, porém há um
momento em que o protagonista invade uma reunião de pessoas ricas e influentes em Gotham
para intimidá-las e proclama: “Senhoras e senhores... vocês comeram bem. Comeram a riqueza
de Gotham... seu espírito. O banquete acabou. De hoje em diante... nenhum de vocês estará a
salvo”, conforme a imagem abaixo.
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Poder-se-ia dizer “mitemas” no caso específico do imaginário referente ao Batman, pois é possível identificar
uma recorrência desse tema em suas histórias. O mesmo pode ser dito a respeito do tema que será abordado a
seguir, o maniqueísmo ontológico e moral.
Figura 3: O culto mítico do dinheiro em seu aspecto negativo na história de 1987
Fonte: MILLER, F.; MAZZUCCHELLI, D. Batman: Year One – the Deluxe Edition. Burbank:
DC Comics, 2017.
Outro dos grandes temas que compõem uma mitanálise americana é um maniqueísmo
ontológico e moral, cuja origem é a fé missionária e messiânica vinda do calvinismo
(WUNENBURGER, 2007, p.62). A partir disso, resultam duas representações do mal: exterior
ao grupo (IDEM), representado nas narrativas analisadas pelo crime e pelos criminosos, seja
de maneira localizada (os assassinos dos pais de Bruce Wayne na história de 1940) ou difusa
(diversos criminosos e diversos tipos de crime na história de 1987), e o mal interior ao grupo,
que
Nessa perspectiva o super-herói seria expressão desse mal com um aguilhão de bem,
violento e transgressor, mas passível de redenção, isto é, de ter suas ações justificadas. A
violência é constitutiva do gênero super-herói (GAVALER, 2017, p.24-28) e a transgressão,
especialmente do ponto de vista jurídico, parece estar paradoxalmente no cerne das ações
super-heroicas. Afinal, o que é o super-herói se não um tipo de personagem que age fora da
lei, ou à sua margem, para garantir que seja cumprida?
Ainda que na narrativa de 1940 não seja abordado especificamente o tema da relação
do Batman com as forças da lei e da ordem, outras histórias do período mostram o Batman
como um personagem com uma relação no mínimo conflituosa com a polícia. Um exemplo
pode ser visto em Batman #35, onde é dito que suas ações ridicularizam o departamento de
polícia e o comissário Gordon expressa claramente seu desejo de capturá-lo. Já na narrativa
de 1987 o Batman é mostrado explicitamente em conflito com as forças que representam o
status quo de Gotham: sua elite, como já mencionado, e as forças policiais.
O HERÓI CIENTÍFICO
Batman como um herói que faz intensivo uso de alta tecnologia e dos
conhecimentos e métodos científicos, que recorrer aos métodos racionais
indutivo-dedutivo detetivescos para investigar os casos e que se dedicou anos
de treinamento e preparação física e mental (ANAZ, 2016, p. 104).
Figura 5: O arquétipo do herói científico sob o aspecto mental e físico na narrativa de 1940
Fonte: FINGER, B.; KANE, B. The Legend of Batman – who he is and how he came to be. In:
Batman – The Golgen Age v.1 Burbank: DC Comics, 2016.
Na figura 6 o herói científico expressa-se por meio do invento das empresas Wayne,
que de acordo com o herói, poderia ser patenteado e, com isso, ele ganharia uma fortuna,
porém, como é ressaltado, ele já tem uma fortuna. Isso também pode ser associado ao tema do
culto mítico do dinheiro, abordado anteriormente. Não fica claro se foi Bruce Wayne que
desenvolveu o aparato. A narrativa de 1987 enfatiza o aspecto físico do personagem e do
arquétipo do herói científico, como mostrado na Figura 7.
Anaz associa o herói científico ao mito de Prometeu, na perspectiva mitocrítica, o que
também pode ser observado nas histórias em quadrinhos analisadas. Da perspectiva
mitoanalítica, nas histórias analisadas, o herói científico pode ser associado a um elemento
específico da cultura americana chamado de americanismo. Conceito de complexa definição
e apreensão (TOTA, 2017, p. 149), pode ser entendido como um construto identitário
nacional composto pelo nacionalismo, tradição, progressivismo e democracia (IDEM,
p.148). Pode-se identificar no herói científico uma expressão do progressivismo:
O IMAGINÁRIO DO MORCEGO
REFERÊNCIAS
DUBOSE, M. S. Holding Out for a Hero: Reaganism, Comic Book Vigilantes, and Captain America.
In: The Journal of Popular Culture, Vol. 40, No. 6, 2007.
DURAND, G. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
FINGER, B.; KANE, B. The Legend of Batman – who he is and how he came to be. In: Batman – The
Golgen Age v.1 Burbank: DC Comics, 2016.
HOPPENSTAND, G. Justified Bloodshed: Robert Montgomery Bird’s Nick of the Woods and the
Origins of the Vigilante Hero. American Literature and Culture in Journal of American Culture, v.
15, n. 2, p. 51-61, jun. 1992.
MILLER, F.; MAZZUCCHELLI, D. Batman: Year One – the Deluxe Edition. Burbank: DC Comics,
2017.