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DIREITO,

SEGURANÇA E
DEMOCRACIA

Nº 30

MAIO
2016

RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTES DE


TRABALHO

JOSÉ MANUEL MARTINS CASACA


Mestrando em direito e Segurança

RESUMO
A aplicação das normas tradicionais relativas à responsabilidade civil impunham ao
trabalhador lesado que fizesse a prova de o acidente ter ocorrido por facto imputável à
entidade empregadora.
Com base na teoria das condições equivalentes relativa à prova da causalidade dos
fenómenos de Stuart Mill estabeleceu-se que os acidentes ocorridos em tempo e local de
trabalho na generalidade estabeleciam um direito a indemnização pela perda da
capacidade de trabalho. Surgiu então no Direito a formulação da «responsabilidade pelo
risco».
A perda de capacidade de trabalho causada por acidentes ocorridos na deslocação
do trabalhador entre sua casa e o local do trabalho produzem hoje os mesmos efeitos que
os acidentes ocorridos em tempo e local de trabalho. Com estas disposições a lei prevê
não só a indemnização decorrente do acidente de trabalho mas um seguro social devido
ao prestador de trabalho.

CEDIS Working Papers | Direito, Segurança e Democracia | ISSN 2184-0776 | Nº 30 | maio de 2016 1
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PALAVRAS-CHAVE
Acidente de trabalho, responsabilidade pelo risco.

ABSTRACT
The traditional rules on liability established that in case of work accident the injured
employee had to prove that the accident occurred for reasons attributable to the employer.
Based on the theory of equivalent conditions on the proof of causality of phenomena Stuart
Mill it was later established that the accidents occurred in worktime and workplace in general
would generate a right to compensation for loss of earning capacity by the employee based
on strict liability.
The loss of earning capacity caused by accidents occurred in the way between
workers home and workplace today produce the same effects as the accidents of time and
place of work. In this case law provides not only the due compensation for work accidents
but a social insurance due to work provider.

KEYWORDS
Work accident, strict liability.

CAPÍTULO I: RISCO
Começaria por referir a relevância para as considerações sobre risco e proteção em
geral um artigo colocado no site da Ordem dos Engenheiro acerca o terramoto de 1755 1.
Lê-se nele:
«Portugal era um importante protagonista na Europa do tempo; os ecos e as
circunstanciadas notícias do desastre deram não só testemunho da magnitude da tragédia
e do horror vividos, como realçaram a importância e o prestígio da cidade de Lisboa no
contexto europeu: metrópole de um império colonial, centro difusor do catolicismo e grande

1 Em 2015.06.13 em http://www.ordemengenheiros.pt/pt/centro-de-informacao/dossiers/historias-da-
engenharia/dimensoes-e-replicas-intemporais-do-terramoto-de-1755/

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entreposto comercial. O que por aqui se passava, fosse de raiz natural, divina ou humana,
tinha inevitavelmente repercussões em todo o Continente. O apoio das cortes europeias e
o socorro internacional mostraram a existência de uma unidade inesperada, em torno de
um acontecimento trágico e irrepetível.»
«Antes de mais, porque o Terramoto de Lisboa de 1755 marcou, no contexto do
espírito das luzes, o surgimento da primeira catástrofe com sinal de modernidade. Entre
outras razões, porque a notícia da sua ocorrência atravessou toda a Europa com uma
profundidade e rapidez inusitadas e desencadeou um enorme debate sobre a natureza dos
cataclismos naturais retirando-lhe contornos morais e, sobretudo, o carácter
essencialmente divino, remetendo-os para a esfera laica: no quadro de um novo
pensamento filosófico, então em gestação, a ira de Deus vai ser substituída por um esforço
de compreensão racional e científica do fenómeno.»
«Depois, porque deu início a uma nova forma de gestão das catástrofes, permitindo
que o despotismo iluminado exercesse, em esplendor, todo o seu poder quer no que
respeita aos procedimentos de auxílio prestado às populações logo após a ocorrência,
designadamente pela pronta intervenção das autoridades reprimindo impiedosamente os
saques, pelo apoio prestado às populações desamparadas, pelo tratamento dado aos
milhares de mortos, pela tomada de medidas de saneamento mais urgentes, quer,
sobretudo, no que se refere à conceção e reconstrução da nova cidade de Lisboa, fazendo
emergir rapidamente uma visão criadora a partir do caos instalado e da extensão
apocalíptica da calamidade.»
Este texto permite apontar alguns caminhos de interpretação ao tema que me
proponho abordar, a proteção ao trabalhador prevista na lei dos acidentes de trabalho.
A assunção da ideia de catástrofe, de grande acontecimento causador de danos, ou de
acidente decorrente de uma atividade social, uma multiplicidade de acidente ocorridos da
mesma forma e pelos mesmos motivos, como um acontecimento com repercussões para
além da individual, com repercussões sociais.
A ideia de que os acidentes decorrentes da forma de organização social,
nomeadamente os acidentes de trabalho, tem repercussões para a humanidade inteira e
não apenas locais.

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A criação de uma ação de socorro internacional (a primeira da história) como


resposta a uma catástrofe com repercussões internacionais que ocorreu por causa dessa
catástrofe que foi o terramoto de Lisboa de 1755 impôs um grau de consideração dos riscos
sociais que viria a tomar forma com a necessidade de criação de mecanismos de resposta
aos acidentes de trabalho que se tornaram mais frequentes e coim consequências mais
graves na era da revolução industrial.
A assunção da necessidade da criação de modelos de prevenção do risco e da
minimização dos danos causados pela efetivação da ameaça.

CAPÍTULO II: O TEXTO DA LEI


Em primeiro lugar para definir contrato de trabalho, porque a primeira condição para
que um acidente seja considerado um contrato de trabalho indemnizável é que se trate de
um acidente ocorrido no âmbito de uma prestação laboral.
O artigo 1152º do Código Civil define contrato de trabalho como aquele pelo qual
uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade intelectual ou manual
a outra pessoa, sob a autoridade e direção desta.
Quando a lei dos acidentes de trabalho refere trabalhador como o titular de um direito
a reparação refere precisamente esta pessoa ligada por aquele vínculo contratual como
definido na lei.
O artigoº 2º da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro, que regulamenta o regime de
reparação de acidentes de trabalho e de doenças profissionais, dispõe que esta lei prevê o
direito à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho dos trabalhadores e
seus familiares e o artigo 8º fornece o conceito de acidente de trabalho indemnizável.
1 - É acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e
produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que
resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
2 - Para efeitos do presente capítulo, entende-se por:
a) «Local de trabalho» todo o lugar em que o trabalhador se encontra ou deva dirigir-se em
virtude do seu trabalho e em que esteja, direta ou indiretamente, sujeito ao controlo do
empregador;

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b) «Tempo de trabalho além do período normal de trabalho» o que precede o seu início,
em atos de preparação ou com ele relacionados, e o que se lhe segue, em atos também
com ele relacionados, e ainda as interrupções normais ou forçosas de trabalho.
O artigo 15º vem excluir da obrigação de reparação o acidente que provier de força
maior e vem definir os termos em que o faz:
1 - O empregador não tem de reparar o acidente que provier de motivo de força
maior.
2 - Só se considera motivo de força maior o que, sendo devido a forças inevitáveis
da natureza, independentes de intervenção humana, não constitua risco criado pelas
condições de trabalho nem se produza ao executar serviço expressamente ordenado pelo
empregador em condições de perigo evidente.
Podemos assim caraterizar acidente de trabalho indemnizável como o acidente (o
evento de que resultam danos para o trabalhador) ocorrido em tempo e local de trabalho 2
desde que não ocorra uma causa de descaraterização prevista na lei.
A lei define o acidente de trabalho indemnizável, conceito que pode ser entendido
de maneira diferente de acidente de trabalho pois o que se refere na lei é a possibilidade
de os danos resultantes do acidente gerarem um direito a reparação 3 e não a doutrinação
sobre o caráter laboral ou não de um acidente.
O objeto da reparação também por sua vez é primacialmente a capacidade do
exercício de trabalho, não qualquer incapacidade ou a dor física, estas estarão
subordinadas à norma geral do n.º 1 do artigo 483º do Código Civil, como resulta do
disposto no n.º 3 do artigo 283º do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12
de Fevereiro.
Com as limitações previstas nos artigos 14º e 15º da Lei, relativamente a acidentes
para os quais se verificou a concorrência de condutas tipificadas do trabalhador
(dolosamente provocado, com violação das condições de segurança estabelecidas na lei

2O acidente equiparado a acidente de trabalho previsto no artigo 9º da lei que se refere a acidentes na deslocação de e
para o trabalho não será considerado neste momento.
3 Reparação como noção mais lata que a de indemnização, pois inclui a obrigação de tratamento e não só a
indemnização conforme o artigo 23º da Lei.

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ou pela entidade empregadora, que resulte de negligência grosseira do sinistrado, que


resulte da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, salvo se esta
apresentar um nexo causal adequado com a prestação do trabalho) e os casos em que o
acidente provem de motivo de força maior, força inevitável da natureza, exceto se na
produção do acidente se verificar um nexo causal adequado com a prestação do trabalho.

CAPÍTULO III: A RESPONSABILIDADE PELO RISCO


O Professor Antunes Varela 4 refere duas formas de responsabilidade civil
extracontratual não baseada na culpa, excecionais em relação ao regime geral do n.º 1 do
artigo 483º do Código Civil, a que tem origem em factos lícitos danosos e a fundada no
risco.
Não se cuidará da primeira neste texto, posto que a responsabilidade pelo acidente
de trabalho, o nosso tema, é carateristicamente uma situação de responsabilidade pelo
risco.
Refere o Professor Antunes Varela que «Há largos e importantes sectores da vida em que
as necessidades sociais de segurança se têm mesmo de sobrepor às considerações de
justiça alicerçadas sobre o plano das situações individuais.
Torna-se necessário, quando assim seja, temperar o pensamento clássico da culpa
com certos ingredientes sociais de carácter objectivo.
Foi no domínio dos acidentes de trabalho que primeiro se chegou a tal conclusão. 5»
Continuando a seguir Antunes Varela foi o aumento de riscos de acidente e a gravidade
das suas consequências que resultaram da revolução industrial e a diferença de poder entre
a entidade empregadora e o trabalhador que tornaram necessário o estabelecimento de
uma forma de indemnização por acidente em que a demonstração da culpa na sua
produção não tivesse o mesmo peso que na responsabilidade extracontratual tal como
prevista no n.º 1 do artigo 483º do Código Civil.

4 Varela, João de Matos Antunes, Das Obrigações em Geral, vol. I, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 1982.
5 Op. Cit. Página 557.

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Se os critérios da responsabilidade aquiliana previstos naquele n.º 1 fossem


aplicados aos acidentes de trabalho o trabalhador ficaria a maior parte das vezes indefeso
tendo de demonstrar que o acidente ocorreu por motivo imputável à entidade empregadora,
o que o colocaria numa situação de inferioridade, desde logo por causa da dificuldade da
prova6.
A este propósito escreve João Leal Amado «(…) a relação de trabalho é uma relação
profundamente assimétrica, isto é, manifestamente inigualitária, pois o trabalhador, a mais
de em regra, carecer dos rendimentos do trabalho para satisfazer as suas necessidades
essências (dependência económica), fica sujeito à autoridade e direcção do empregador
em tudo o que diz respeito à execução do trabalho (subordinação jurídica).»
O estabelecimento de regras próprias relativas à responsabilidade civil pelo acidente
de trabalho visou responder assim numa primeira etapa de socialização do risco:
A etapa em que a posição de risco tem uma origem contratual.
A que se responde impondo regras de direito público nas relações contratuais. A
imposição da obrigação de segurar é uma regra imposta pelo Estado num quadro contratual
de direito privado.
A esta etapa, a da consideração do risco como decorrente de uma posição contratual
seguir-se-á outra, a do entendimento do risco como decorrente de uma posição social.
Já fora do âmbito dos acidentes de trabalho foram consideradas atividades causadoras de
risco a condução de veículos automóveis, as atividades relacionadas com instalações
elétricas ou de gás, normalmente associadas à imposição de obrigações de segurar os
possíveis danos causados pelas instalações ou pelos veículos.
Neste caso não foi já o risco resultante de uma posição contratual, a relação
empregador/trabalhador, mas o risco social da atividade que levou à definição de uma
forma de responsabilidade especial, a «responsabilidade pelo risco» a que alude o
Professor Antunes Varela.
Esta responsabilidade social baseia-se na ideia de risco social em que a humanidade
vive em que as tecnologias contêm um lado de perigo particularmente grave.

6 Abordar-se-á a importância da prova como categoria lógica determinante da instituição da responsabilidade pelo risco.

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O que historicamente veio a tomar proporções que impuseram uma revisão


qualitativa. «As anteriormente celebradas fontes de riqueza (energia atómica, indústria
química, tecnologia genética, etc.) transformam-se em imprevisíveis fonte de perigo.» diria
Ulrich Beck7.
Chernobyl é o exemplo presente na obra do autor. Mas depois houve Fukuxima a
dar mais um exemplo mais atual.
A esta terceira etapa a rede de asseguramento não poderá dar resposta.
Esta tem uma fonte mais larga que da posição contratual, não é preciso existir um contrato
de trabalho para existir o perigo e tem uma fonte mais larga que a afetada pelo risco
tecnológico simples do acidente de automóvel ou da explosão da instalação de gás.
Globalizou-se.
Da consideração de uma vítima individual no acidente de trabalho ou de um número
finito de vítimas num acidente com tecnologias que na sua geração mais simples remontam
ao século XIX, partiu-se para a globalização do risco.
O risco provocado por um acidente com a dimensão de catástrofe como o acidente
causado pelo tsunami na Central de Fukuxima é global. Não é confinado a uma pessoa,
uma área, um conjunto de ruas, uma cidade ou mesmo um país.
Pode mesmo pôr em causa a sobrevivência da humanidade.
Nem é possível ser segurado. Qualquer seguradora ficaria naturalmente insolvente
e incapaz de pagar indemnizações em caso de catástrofe global mesmo que esta não
tivesse as proporções do Dilúvio.

CAPÍTULO IV: A FORMULAÇÃO DA RESPONSABILIDADE PELO


RISCO OU RESPONSABILIDADE OBJECTIVA
Como diz o Professor Antunes Varela (página 559) «Ao lado da doutrina clássica da
culpa, um outro princípio aflorou assim neste sector: o da teoria do risco. (…) quem cria ou
mantém um risco em proveito próprio, deve suportar as consequências prejudiciais do seu
emprego, já que delas colhe o principal benefício».

7 Beck, Ulrich, Sociedade de Risco, Rumo a uma outra modernidade, Editora 34, S. Paulo, 2010, página 62.

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Assim ao princípio de que a responsabilidade se funda na culpa do n.º1 do artigo


483.º do Código Civil segue-se a exceção que refere que nos casos especificados na lei –
sendo certo que as disposições relativas aos acidentes de trabalho são casos especificados
na lei – existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa.
A questão coloca-se em se deve ser a culpa o citério definidor da responsabilidade
pelo risco.
Ao termo «responsabilidade pelo risco» faz o Professor Antunes Varela equivaler a
expressão «responsabilidade objetiva». Objetiva por ser independente da culpa do agente
na produção do evento de que resulta o dever de indemnizar.
No entanto ao tratar da questão da relevância negativa da causa virtual do dano8 o
Professor Antunes Varela coloca a questão de esta ser relevante se se demonstrar que não
pode ser imputada culpa na produção do dano.
Esta articulação entre culpa e causa é uma questão principal para a definição de
acidente de trabalho indemnizável.
É que os dois pressupostos não são mutuamente exclusivos.
Tentando estabelecer uma caraterização de culpa e de nexo causal:
«Agir com culpa significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação
ou censura do direito: o lesante, pela sua capacidade em face das circunstâncias concretas
da situação podia e devia ter agido de outro modo.9»
Eduardo Correia10 define culpa como «censura ético-jurídica dirigida a um sujeito por
não ter agido de modo diverso…» fazendo pressupor a liberdade do agente.
Esta é uma definição de Direito Penal, um ramo público do direito, no entanto por
um lado é semelhante à referida acima, facilitando a sua interpretação, e por outro há um
caráter vinculado um lado de contrato típico no contrato de trabalho em que o poder do
Estado se manifesta, nomeadamente, e no que nos importa, a imposição da obrigação da
celebração de contrato de seguro de prevenção de acidentes laborais pela entidade
empregadora (artigo 79º da Lei).

8 Op. Cit. Página 544.


9 ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, Código Civil Anotado, Volume I (Artigos 1º a 761º), 4º Edição Revista e
Atualizada (com colaboração de M. Henrique Mesquita), Coimbra Editora, 1987, página 474.
10 Direito Criminal, Almedina, Coimbra, 1971, Vol. I, página 316.

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Quanto ao nexo causal:


Eduardo Correia11 aponta duas doutrinas relevantes, a da «conditio sine qua non» ou das
«condições equivalentes» e da «causalidade adequada».
Trata-se acerca da causalidade de «determinar se o resultado se pode
verdadeiramente imputar ao movimento corpóreo do agente»12.
Segundo a doutrina da conditio sine qua non «cada uma das condições sem a qual
não se verificaria o resultado (sine qua non) seria também causa e assim todas as
condições seriam equivalentes para o efeito de a cada uma se poder imputar o resultado.13»
Já a doutrina da causalidade adequada, que é a defendida pela generalidade os
autores, é definida pelo Professor Eduardo Correia deste modo:
«para que se possa estabelecer um nexo de causalidade entre um resultado e uma acção
não basta que a realização concreta daquele se não possa conceber sem esta. É
necessário que em abstracto a acção seja idónea para causar o resultado.»
Segundo Galvão Telles 14 a causalidade adequada é: «Determinada acção ou
omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias
conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderá conhecer, essa acção ou
omissão se mostrava, à face da experiência normal comum, como adequada à produção
do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar.»
«Adequada à produção» ou «idónea para causar» parecem ser expressões
equivalentes.
Mas na realidade este confronto entre culpa e causalidade parece pouco delimitado.
A definição de causalidade adequada de Eduardo Correia parece ser uma definição que
apela a circunstâncias externas ao agente, a idoneidade da ação, enquanto Galvão Telles
parece apelar ao conhecimento da adequação causal, que é um elemento interno ao
agente.
O apelo à doutrina da «conditio sine qua non» tem aqui uma importância maior que
a importância histórica.

11 Op. cit. página 252 e seguintes.


12 Idem.
13 Idem.
14 Citado por ANTUNES VARELA e PIRES DE LIMA, op. cit., página 578.

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É que se na responsabilidade civil em geral o nexo causal exigido é hoje sem


discussão a causalidade adequada, e a evocação da doutrina das condições equivalentes
é uma referência histórica, pode não ser exatamente assim em casos excecionais,
perfeitamente delimitados pela lei.

CAPÍTULO V: STUART MILL E A QUESTÃO DA PROVA DO


NEXO CAUSAL
John Stuart Mill procurou em “Sistema de Lógica Dedutiva e Indutiva15”um sistema
de lógica que permitisse trabalhar dados de experiência empírica, uma formulação de
regras lógicas que permitissem induzir conclusões que permitissem demonstrar evidências
através de um sistema de confronto com a experiência e não apenas através de um sistema
de lógica formal.
Estas regras tratam de um sistema probatório e a sua aplicação ao mundo do direito,
ao mundo da prova, foi primeiro teorizada por Maximiliam von Buri, juiz do Supremo
Tribunal alemão, que lhe chamou “teoria da equivalência”16.
No caso do acidente de trabalho as regras probatórias relativas à sua ocorrência e
extensão não são as regras da responsabilidade contratual 17 . Embora a relação que
proporcionou a ocorrência, a relação laboral, seja um contrato não está em causa o seu
incumprimento. O que está em causa é que no seu cumprimento o trabalhador sofreu uma
lesão.
A regra da demonstração da obrigação de reparar se fosse a regra geral aplicável à
responsabilidade extracontratual imporia ao trabalhador a demonstração da culpa da
entidade patronal na ocorrência do acidente.

15 Disponível em 2015.06.18 em https://www.gutenberg.org/files/27942/27942-h/27942-h.html


16 Äquivalenztheorie.
17 João Nuno Calvão da Silva, em artigo na Revista da Ordem dos Advogados
(http://www.oa.pt/Conteudos/Artigos/detalhe_artigo.aspx?idsc=71981&ida=72375) defende que a responsabilidade da
entidade empregadora em caso de acidente de trabalho é uma responsabilidade contratual, posto que o acidente é uma
violação do direito do trabalhador a ver a sua integridade física respeitada no trabalho, no entanto essa formulação apela
ao elemento culpa da entidade empregadora, tratar-se-ia de uma culpa presumida, quando o que a lei parece colocar é
uma condição equivalente, como se defenderá.

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E traria uma desigualdade entre a situação do trabalhador e da entidade


empregadora dada a diferença de poder entre a entidade empregadora e o trabalhador.
Seria tratar como iguais duas entidades com situações diferentes, com graus de
poder diferentes. Seria uma situação de larga desvantagem do trabalhador acidentado.
A questão da prova da culpa da entidade patronal, que seria muito difícil para o
trabalhador, veio a ser torneada por um sistema em que não é a demonstração da culpa
que determina o direito à reparação.
A consideração de que o exercício de uma atividade provoca o perigo de ocorrência
de acidentes com contração de lesões e que o mero exercício da atividade através do fator
imprevisibilidade proporciona que esses acidentes aconteçam e que com o uso de
maquinaria a gravidade das consequências dos acidentes tenha a probabilidade de
aumentar levou a construir um sistema baseado no risco.
Tendo aumentado as probabilidades de ocorrência de acidentes e tendo em conta a
posição mais débil do trabalhador no sistema legal fundou-se uma doutrina válida para os
acidentes de trabalho em que o nexo causal do acidente com a atividade laboral fosse
presumido pelo sistema das condições equivalentes.
Mas o sistema das condições equivalentes não pode ser aplicado diretamente. As
condições têm de ser limitadas. De outro modo qualquer antecedente de um fenómeno, no
caso um acidente de trabalho, poderia ser considerado sua causa. Mas tal não é o que se
pretende.
O que se pretende é que o risco associado a uma atividade laboral seja reconhecido
como causador do direito a ser reparado.
E a solução foi criar um numerus clausus de condições.
Tipificar as condições em que se produz o acidente que dá origem ao direito a ser
reparado.
O que se verifique no local e no tempo de trabalho.
A Lei tipifica uma situação, o local e tempo de trabalho, e estabelece como causa do
acidente essa condição.

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CAPÍTULO VI: AS CAUSAS DE DESCARATERIZAÇÃO


O artigo 14.º da Lei prevê a descaraterização do acidente de trabalho que impõe a
obrigação de reparação.
- Os dolosamente provocados pelo sinistrado ou que provenham de seu ato ou omissão
que importe violação sem causa justificativa das condições de segurança estabelecidas
pelo empregador ou previstas na lei.
Para densificação deste conceito veja-se o Acórdão de 2010.01.11 da Relação do
Porto «O trabalhador que desprende o cabo ligado a uma “linha de vida”, por ter receado
18

apanhar um choque eléctrico pelo contacto entre o cabo a que estava preso e a extensão
eléctrica que se encontrava em cima do telhado, não configura uma voluntária e consciente
violação das condições de segurança impostas pelo empregador.»
Ou o Acórdão do TR Guimarães de 2015.02.12 19 «Não se tendo provado a
existência de uma regra de conduta aplicável à operação desenvolvida ou qualquer ordem
transmitida ao trabalhador, e, bem assim, a violação consciente de alguma regra, antes
emergindo dos factos que o trabalhador não usou dos cuidados devidos, falha o
preenchimento dos pressupostos de descaracterização do acidente.»
O n.º 2 do preceito clarifica que a instrução de segurança deve ser dirigida à
capacidade efetiva de entendimento do trabalhador face ao seu grau de instrução ou de
acesso à informação, remetendo assim para a entidade empregadora a responsabilidade
por verificar que as instruções são realmente apreendidas.
Deste modo a prova de que a violação das regras se deveu ao trabalhador é ónus
da entidade empregadora (ou da seguradora que assuma a responsabilidade por
transferência).
Pode dar-se como exemplo de regras de segurança o Decreto n.º 41821/58, de 11
de Agosto, que estabelece o REGULAMENTO DE SEGURANÇA NO TRABALHO DA

18

http://www.dgsi.pt/JTRP.NSF/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/f92fa9afbaa83d44802576b200589396?OpenDocu
ment
19

http://www.dgsi.pt/JTRG.NSF/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/c908696dfecd8c9980257dff005ba03c?OpenDocu
ment

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CONSTRUÇÃO CIVIL, posto que é na construção civil que tradicionalmente ocorrem os


acidentes com consequências mais graves para os trabalhadores.
Este impõe deveres à entidade empregadora (por exemplo o do artigo 1º: «É
obrigatório o emprego de andaimes nas obras de construção civil em que os operários
tenham de trabalhar a mais de 4 m do solo ou de qualquer superfície contínua que ofereça
as necessárias condições de segurança.») e que se impõem também aos trabalhadores
(por exemplo o do artigo 55º: «Todo o pessoal empregado em trabalhos de demolição usará
calçado adequado.»)
- Os que provierem exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado.
O Acórdão de 2012.06.18 do TR Porto20 permite delimitar o conceito de negligência
grosseira.
«I - Para descaracterizar o acidente, com base na negligência grosseira do
sinistrado, é preciso provar que a sua conduta se apresente como altamente reprovável,
indesculpável e injustificada, à luz do mais elementar senso comum.
II - A negligência grosseira corresponde a uma negligência particularmente grave,
qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo
de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo.
III – O facto da conduta do sinistrado integrar uma infracção estradal classificada por
lei como contra-ordenação grave ou muito grave não basta só por si para se dar por
preenchido o requisito da culpa grosseira, para efeitos de descaracterização do acidente
de trabalho. É que os fins visados na legislação rodoviária são diferentes dos visados na
lei dos acidentes de trabalho.»
Para além da delimitação contante do n.º 3 do artigo 14º da Lei como comportamento
temerário em alto e relevante grau.
Como se diz no Acórdão de 2015.03.25 do TR Lisboa: «IV. Ao qualificar deste modo
a negligência de grosseira, o legislador quis afastar a simples imprudência, inconsideração,
irreflexão, impulso leviano que não considerou os prós e os contras.»

20 http://www.trp.pt/seleccionada/social/244-social212-10-9ttvng-p1.html

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Ou seja a negligência grosseira é a que consubstancia um comportamento temerário


em alto e relevante grau, não bastando ser um comportamento negligente, o que apenas
consubstancia a simples imprudência, inconsideração, irreflexão, impulso leviano que não
considerou os prós e os contras.
- A lei afasta ainda os casos de acidentes ocorridos em estado de intoxicação ou outro
motivo de privação permanente ou acidental do uso da razão pelo trabalhador.
Conforme o Acórdão de 2007.05.03 do TR Coimbra 21 no domínio da anterior
legislação (Lei Nº 100/97, de 13/09) que continha uma disposição semelhante, «II – Não
basta, para descaracterizar o acidente de trabalho, que o sinistrado apresente um grau de
alcoolémia elevado aquando do acidente; é necessário, para o referido efeito, que se prove
que a concentração alcoólica verificada influenciou a verificação do acidente (nexo de
causalidade entre a referida situação e a verificação do acidente).
III – Este ónus compete à entidade patronal ou à seguradora do trabalhador.
IV – Ao contrário do que sucedia na anterior lei (artº 54º do D.L. nº 360/71, de 21/08),
não vigora actualmente qualquer presunção de culpa do empregador em acaso de acidente
de trabalho; quem invocar os fundamentos previstos no artº 18º, nº 1, da NLAT - falta de
observação de norma ou regra de segurança por parte da entidade patronal -, como facto
constitutivo de direitos ou como facto impeditivo, terá o ónus da prova dos factos
respectivos.»
Para a descaraterização do acidente como acidente de trabalho indemnizável a Lei
socorre-se do elemento culpa.
Por detrás da descaraterização encontra-se o elemento culpa. Quando existe culpa
do trabalhador, grave nos termos do artigo 14º, então a responsabilidade da entidade
empregadora é afastada.
Mas a regra do ónus da prova volta a ser a normal da responsabilidade
extracontratual, será à entidade patronal que incumbe a prova da culpa grave e exclusiva
do trabalhador.

21

http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/cd0af6ec10e03504802572d6004b9a02?OpenDocume
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Ou seja, o fundamento do estabelecimento de uma norma especial para os acidentes


de trabalho de fixação de uma condição equivalente típica, que é a assimetria de posições
na relação laboral, mantém-se e mantém-se em vigor a consequência de haver um
favorecimento da posição do trabalhador para equilibrar aquela assimetria, posto que o
ónus da demonstração das circunstâncias que descaraterizam o acidente se mantém.

CAPÍTULO VII: OS CASOS DE FORÇA MAIOR


O artigo 15º da Lei exclui da categoria de acidente de trabalho indemnizável o que
seja devido à ação de forças inevitáveis da natureza, independentes de intervenção
humana, a não ser que não constitua risco criado pelas condições de trabalho nem se
produza ao executar serviço expressamente ordenado pelo empregador em condições de
perigo evidente.
O conceito de acidente de trabalho indemnizável refere-se ao acidente que tem um
conexão com o tempo e local de trabalho. Porque esta conexão permite estabelecer uma
conexão com a prestação do trabalho que só será excluída em caso de descaraterização.
E esta norma justifica-se pelo facto de as circunstâncias do trabalho, nomeadamente o
industrial, constituírem riscos da ocorrência de lesões para o trabalhador.
Ou seja, o pressuposto é o de que o trabalhador pelo facto de exercer a atividade de
trabalho está mais sujeito a perigos que a maior parte das pessoas, que o risco de
ocorrência de acidentes e a gravidade das consequências destes são superiores àquelas
a que estão sujeitas todas as pessoas.
No entanto se se demonstrar que o acidente se deveu à ação de forças inevitáveis
da natureza, independentes de intervenção humana, o trabalhador estará sujeito às
mesmas condições que qualquer pessoa em qualquer circunstância.
Por isso a razão de que a prestação do trabalho constituiria uma fonte de perigos, e
portanto um risco para o trabalhador, neste caso não pode ser fundamento para a definição
de acidente de trabalho indemnizável.

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O Acórdão de 1996.02.07 do STJ22 não considera que um incêndio florestal de que


o trabalhador se vira obrigado a fugir constitua uma ocorrência devida a forças inevitáveis
da natureza independentemente da intervenção humana.

CAPÍTULO VIII: O ACIDENTE OCORRIDO NO PERCURSO PARA


O TRABALHO
O artigo 8º da Lei prevê na alínea a) do n.º 1 que se considera também acidente de
trabalho o ocorrido no trajeto de ida para o local de trabalho ou de regresso deste desde
que nas condições definidas no n.º 2. Estas são as referidas na alínea b): entre a sua
residência habitual ou ocasional e as instalações que constituem o seu local de trabalho e
outras especificações que têm um caráter semelhante.
As diversas alíneas do n.º 1 do artigo 8º da Lei referem situações diferentes entre si.
Por um lado situações em que na sua atividade o trabalhador se encontra sujeito às
obrigações decorrentes da execução do contrato de trabalho, ou seja, desempenhadas sob
autoridade e direção da entidade empregadora ou em seu proveito direto. Por outro lado as
que em grau diferente não o estão.
São desempenhadas sob autoridade e direção ou em proveito direto da entidade
empregadora as previstas nas alíneas b) (Na execução de serviços espontaneamente
prestados e de que possa resultar proveito económico para o empregador), d) (No local de
trabalho, quando em frequência de curso de formação profissional ou, fora do local de
trabalho, quando exista autorização expressa do empregador para tal frequência), e) (No
local de pagamento da retribuição, enquanto o trabalhador aí permanecer para tal efeito) f)
(No local onde o trabalhador deva receber qualquer forma de assistência ou tratamento em
virtude de anterior acidente e enquanto aí permanecer para esse efeito) e h) (Fora do local
ou tempo de trabalho, quando verificado na execução de serviços determinados pelo
empregador ou por ele consentidos).

22

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/da27fe8bae08ec6e802568fc003afe62?OpenDocument

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Nestas situações o trabalhador está a agir sob a autoridade e direção ou em proveito


direto da entidade empregadora.
Nos casos das alíneas a), c) (No local de trabalho e fora deste, quando no exercício
do direito de reunião ou de atividade de representante dos trabalhadores, nos termos
previstos no Código do Trabalho) e g) (Em atividade de procura de emprego durante o
crédito de horas para tal concedido por lei aos trabalhadores com processo de cessação
do contrato de trabalho em curso) a conexão com o trabalho existe mas não existe o
elemento de subordinação, o elemento de agir sob autoridade e direção.
Nos primeiros casos trata-se apenas de definir o conceito de local de trabalho de
forma lata, de estabelecer que qualquer lugar em que o trabalho seja prestado é local de
trabalho.
Nos casos das alíneas a), c) e g) a razão que levou a criar um regime especial para
os acidentes de trabalho, a «responsabilidade pelo risco» não está presente.
Não se trata de estabelecer que a prestação de trabalho comporta um risco acrescido de
produção de acidentes, trata-se de alargar a proteção relativa aos acidentes de trabalho a
situações em que não há qualquer risco acrescido em comparação com a atividade normal
de qualquer pessoa no seu quotidiano.
Ou seja, a situações em que a prestação de trabalho sob autoridade e direção de
outra pessoa não constitui um elemento que faça aumentar a probabilidade de o trabalhador
ser vítima de um acidente ou de as consequências de um acidente serem particularmente
gravosas.
A noção que justifica esta equiparação dos acidentes ocorridos nestas
circunstâncias aos acidentes de trabalho indemnizáveis é a de «risco de autoridade» 23
Esta proteção suplementar evoluiu a partir do conceito de acidente «in itinere», o
acidente ocorrido, conforme a definição da alínea b) do n.º 1 da Base V da Lei n.º 2127, de
3 de Agosto de 1965: o acidente ocorrido «Na ida para o local de trabalho ou no regresso
deste, quando for utilizado meio de transporte fornecido pela entidade patronal, ou quando

23 Confronte-se o Acórdão de 2013.05.02 do TR Évora in


http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/4bb2279a7556d40880257de10056fc40

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o acidente seja consequência de particular perigo do percurso normal ou de outras


circunstâncias que tenham agravado o risco do mesmo percurso.»
Esta disposição destinava-se a englobar os acidentes ocorridos em situação de
particular risco de ocorrência para o trabalhador em virtude de existir um particular risco
para o trabalhador causado pela natureza do percurso ou por circunstâncias ligadas à
atividade exercida por ele.24
Na Lei 2127 o nexo causal entre o acidente in itinere em que se considerasse o
particular perigo do percurso normal ou as circunstâncias que tenham agravado o risco do
percurso e a atividade laboral não era o das «condições equivalentes» tipificadas mas a
causalidade adequada25.
O acidente seria de trabalho se ocorrido em transporte fornecido pela entidade
patronal, e nesse caso os pressupostos seriam os mesmos que os exigidos para o acidente
em tempo e local de trabalho, ou em circunstâncias relacionadas com o trabalho.
A disposição terminava a discussão sobre se os acessos ao local de extração nas
minas, acessos por túneis em que a probabilidade de acidente grave é muito elevada,
seriam ou não «local de trabalho» ou se os acidentes causados por dificuldade de
coordenação motora após a saída do local de trabalho sob os efeitos de intoxicação em
ambientes de trabalho com químicos seriam ou não causados (no sentido de condição
equivalente) pelo exercício da atividade profissional.
Com a atual Lei, Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro, como já na vigência da Lei n.º
100/97, de 13 de Setembro, que a antecedeu, a definição de acidente ocorrido no trajeto
foi alargada a todos os acidentes ocorridos no trajeto entre o domicílio do trabalhador e o
local de trabalho.
A razão de ser deste alargamento será não já o entendimento do acidente de
trabalho como o resultado de um risco especial para o trabalhador emergente do exercício
da atividade laboral, o aumento de riscos de acidente e a gravidade das suas
consequências que resultaram da revolução industrial e a diferença de poder entre a

24 Cfr. O parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º P000191974 de 28 de junho de 1974 in


http://www.gde.mj.pt/pgrp.nsf/6be0039071f61a61802568c000407128/b3a3416ab10c66f8802566170041aa46
25 Cfr. parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º P002131980 de 6 de janeiro de 1982 in
http://www.gde.mj.pt/pgrp.nsf/6be0039071f61a61802568c000407128/7fe4392d0da77ee2802566170041cf1d

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entidade empregadora e o trabalhador, como se referiu acima, mas uma ideia de


responsabilidade social.
A assunção de que a função social do trabalho é superior à simples consideração
do proveito na relação laboral, o lucro da atividade, mas que o trabalho em si tem um valor
social com custos que devem ser assegurados pelo conjunto da sociedade.
Assim a reparação do acidente deverá ser feita não só tendo em conta a específica
prestação de trabalho, o exercício da atividade, mas das circunstâncias relacionadas com
aquela prestação.
É uma noção de acidente indemnizável que não assenta já num pressuposto
relacionado com o cumprimento de contrato, não assenta já na ideia de que o que há a
indemnizar é a perda de capacidade de trabalho em virtude da ocorrência de um acidente
que se tornou mais provável de acontecer e com consequências mais graves pelo
manuseamento de máquinas, ideia ligada à produção industrial.
A razão de ser desta nova orientação que leva a considerar como acidente de
trabalho atividade de facto relacionados com o trabalho mas não com o seu exercício, ou
seja, já não com o cumprimento do contrato mas com circunstâncias que socialmente são
relevantes mas que extravasam o cumprimento por uma parte da obrigação de prestar
trabalho sob autoridade e direção de outra parte contratual, é a noção de função social do
trabalho.
Tendo o trabalho uma função social a ideia que informa a lei é a de socializar os
riscos a que os trabalhadores são submetidos, a de fazer equiparar qualquer risco
decorrente de uma atividade necessária para o exercício da atividade laboral, como a
deslocação de casa para o trabalho, ao acidente ocorrido em tempo e local de trabalho.
Como ilustração de atividades de risco ligadas a uma indústria ainda em certa
medida não muito diferente das condições industriais do século XIX cita-se um cartaz da
FESETE (Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores Têxteis, Lanifícios, Vestuário,
Calçado e Peles de Portugal) sobre as atividades perigosas para os trabalhadores nas
indústrias têxtil, de vestuário e de calçado26:

26 Disponível em fesete.pt/portal/docs/pdf/cartazacidentes.pdf

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ONDE PODERÃO OCORRER MAIS ACIDENTES?

Têxtil Vestuário Calçado


Abertura e transporte Corte Corte:
de fardos Máquina de ponto - Golpes provocados
Cardas corrido pelo uso de facas e
Contacto com órgãos Máquina de corte e balancés que prensam
das maquinas em cose moldes/cortantes.
movimento Máquina de pregar Montagem e
Estamparia botões acabamento:
Tinturaria Máquina de casear - entalamento ou
Acabamentos/secagem Passagem a esmagamento devido à
ferro/vapor existência de diversos
Prensas não equipamentos com
giratórias partes móveis,
mandíbulas ou que
prensam materiais.

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CONCLUSÃO
A resposta a catástrofes com projeção internacional como o terramoto de Lisboa de
1755 abriu o caminho à consideração da resposta social a acidentes que se apresentavam
com um caráter menos localizado e mais difuso.
Essa resposta impôs-se com a multiplicação dos acidentes de trabalho decorrente
da industrialização e com a gravidade aumentada das consequências destes, que levou à
consciência de que este risco e esta perigosidade aumentadas impunham uma resposta
social.
A aplicação das normas de direito tradicionais relativas à responsabilidade civil
aquiliana imporiam ao trabalhador a demonstração de que o acidente ocorrera por facto
imputável a título de culpa e de causalidade à entidade patronal, pelo que se desenhou
uma forma de acautelar a reparação dos acidentes de trabalho que fosse baseada em
princípios diferentes.
Surgiu assim a «responsabilidade pelo risco» forma doutrinária que iria ser aplicada
não só a acidentes de trabalho mas também a outro tipo de acidentes decorrentes de
atividades que a modernidade impôs e que na esteira da legislação laboral vieram a impor-
se como geradoras de reparação social, nomeadamente a condução de automóveis.
A ideia informadora da inovação da «responsabilidade pelo risco» é a estipulação
de uma «condição equivalente» na esteira do pensamento de Stuart Mill em relação à prova
da causalidade dos fenómenos.
O acidente de trabalho indemnizável, em que o objeto de reparação é a capacidade
de trabalho, será o ocorrido em tempo e lugar de trabalho desde que não ocorrido por
motivo de força maior ou com culpa grave do trabalhador, o que inclui o dolo e a violação
das regras de segurança.
A atual previsão legal da figura do acidente de trabalho indemnizável inclui os
acidentes ocorridos na deslocação de e para o trabalho, ou outras situações como a procura
de novo emprego, em condições normais de risco para qualquer pessoa. Esta previsão não
é a clássica do acidente de trabalho, associada ao risco profissional, mas uma previsão
relacionada com a função social do trabalho, com o papel dos trabalhadores na sociedade,
não visa reparar a perda de capacidade de trabalho mas uma função de seguro social.

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