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22168/2237-6321-2422
Argumentação
emocionada em CORTEZ, Suzana Leite; CATELÃO,
Evandro de Melo. Argumentação
uma carta e em emocionada em uma carta e em uma
postagem do Instagram. Entrepalavras,
uma postagem do Fortaleza, v. 12, n. esp., e2422, p. 116-
134, out./2022. DOI: 10.22168/2237-
Instagram* 6321-2422.
Introdução
influenciar o outro.
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Grupo coordenado pelas professoras Mônica Magalhães Cavalcante (UFC) e Mariza Angélica
Paiva Brito (UNILAB).
Argumentação emocionada...
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A questão problema que norteia a discussão liga-se ao modo
2022 como se argumenta nesta negociação persuasiva em que se evidencia a
mobilização empática de emoções para a construção de pontos de vista.
Na análise textual dos discursos de Adam (2011, 2019), identifica-se
o ponto de vista (PdV) como o que é dito no interior da proposição-
enunciado (unidade de base na análise textual/discursiva), relacionado
à responsabilidade enunciativa. Esta se soma à representação discursiva
(Rd), no nível semântico, e à orientação argumentativa (OR-arg)
(potencialidades argumentativas sobre o que é dito). Pela teoria, não
existe um enunciado isolado, pois ele sempre se liga/evoca a outros
enunciados em resposta no interior dos processos de significação.
Nesse sentido, optamos por uma breve comparação do que
entende Adam por ponto de vista e o que apresenta Rabatel (2008; 2017)
sobre o assunto. Para o primeiro autor, o ponto de vista (PdV) é visto de
maneira mais ampla, não específica, do que adotaremos, tendo em vista
a perspectiva de Rabatel. Adam (2011, p.113) apresenta que
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Para Amossy (2006, p.33), a linguagem “comporta sempre uma dimensão argumentativa”,
mesmo quando não há um projeto declarado ou estratégias explícitas.
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Grize (1982) trata da lógica da argumentação por uma abordagem situacional, preparando
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o terreno para o estudo da argumentação numa dimensão interacional ante a uma dimensão
estritamente objetiva, cognitiva e lógica: “Meu propósito é ‘formal’, mas tentarei não excluir
uma abordagem situacional: espero na verdade preparar seu espaço” (p.184).
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Rabatel (1997; 1998).
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exprimem uma opinião explícita, mas que de qualquer modo exprimem
2022 uma, implicitamente, por conta das escolhas (explícitas) de referência.”
(RABATEL, 2015, p. 156).
Essa preocupação com o que é implicitamente argumentativo
é concretizada na obra de Rabatel devido ao deslocamento teórico-
metodológico que ele opera na compreensão do PDV - tradicionalmente
associado à noção genettiana de foco narrativo. Por meio desse deslocamento,
passa a ser imprescindível considerar as escolhas lexicais operadas
pelos locutores/enunciadores na análise do PDV. Em outras palavras, a
referenciação dos objetos de discurso é uma espécie de espinha dorsal que
sustenta a noção rabateliana de PDV. Conforme Cortez (2011, p.37), a teoria
do PDV na ótica rabateliana reinterpreta a noção de foco narrativo, “tão cara
ao estudo da focalização, deslocando o problema para a relação [...] sujeito
enunciador e objeto de conhecimento”. Por isso, o modo de apresentação
do objeto de discurso é revelador desse enquadre operado pelo produtor do
texto, o qual confere atributos ao objeto de discurso:
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“je définis rapidement comme une prédication, qui fait entendre le PDV de l’énonciateur sur
l’objet du discours dénoté, par le choix des mots, de leur ordre, indépendamment de la présence
explicite d’un jugement (Rabatel 2008a): autrement dit, il y a PDV lorsque la référenciation
dénote le ou les objets du discours tout en renseignant sur le point de vue de l’énonciateur sur
ce(s) même(s) objet(s).”
Suzana Leite CORTEZ; Evandro de Melo CATELÃO
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“L’empathie humaine est une aptitude à se mettre à la place des autres, sans fusion ni
identification”.
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“L’empathie linguistique, sous son versant énonciatif, revient à se mettre à la place d’un autre
(interlocuteur ou tiers), un locuteur prêtant sa voix à un autre pour envisager un événement,
une situation du point de vue de l’autre.”
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“L’empathie s’appuie sur des émotions”.
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Nesse sentido, Para Rabatel (2013a, p.170), as emoções
2022 (“emoções dramatizadas”) são representadas em modo empático; mas,
para que isso ocorra, elas são inferidas por meio das falas, percepções ou
ações imputadas ao outro, ao invés de serem ditas pelo próprio locutor.
Assim, “Em modo empático, o locutor/enunciador primeiro (L1/E1)
não exprime diretamente suas emoções, mas evoca mediaticamente
emoções que ele imputa a um outro” (RABATEL, 2013b, p. 65, tradução
nossa9).
Argumentação emocionada
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“En mode empathique, le locuteur-énonciateur premier (L1/E1) n’exprime pas directement
ses émotions, il évoque médiatement des émotions qu’il impute à un autre.”
Suzana Leite CORTEZ; Evandro de Melo CATELÃO
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argumentativas” (PLANTIN, 2011, p. 26) à medida que questionar valores
2022 e interesses de outro grupo seria também trazer emoção ao discurso, uma
vez que se exprime uma forma de axiologização dos discursos. O autor
estipula, assim, um limite taxonômico à definição de argumentação
afetiva, traçado sob certa impossibilidade de se demarcar um ponto de
vista sem que ele esteja ligado de alguma maneira à emoção/valoração,
o que se alinha ao que discutimos na seção anterior.
Essa característica apresentada por Plantin (2011) guiaria, de
certo modo, o que a retórica e nós estamos entendendo como categoria
de pessoas segundo seus valores e a ação visada (interesses do orador
e do auditório), pois nada adianta um discurso baseado em fatos se o
auditório não se interessa por eles. Ou, como cita Gilbert (1730 apud
AMOSSY, 2018, p. 198): “o que não toca é contrário à persuasão”; ou,
citando Perelman e Olbrechts-Tyteca (apud AMOSSY, 2018): não se
convence se não se sabe persuadir.
10
Dias, Antônio Gonçalves. A Noite. In: Segundos Cantos: poesia completa e prosa escolhida. Rio
de Janeiro: Aguilar, 1959, p.249.
11
Disponível em: https://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2021/08/celebridades-lamentam-
morte-de-tarcisio-meira-nosso-maior-gala.shtml. Acesso em: 28/08/2021.
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Desse ponto, ampliamos as formas de persuasão em duas
2022 direções: a primeira, pelo apoio em premissas sobre o que o interlocutor
admite ou não, ou ao que Perelman (1997) chama de situação
argumentativa sob a qual a modificação do ponto de vista ocorre pela
utilização de argumentos opostos ou argumentos que foram ignorados
em uma dada argumentação; a segunda, na possibilidade de contestação
do discurso que se baseia no real (razão) pela utilização da emoção (figura
1). A força da emoção estaria na reivindicação e no posicionamento de
que certa verdade é ilusória e, por isso, deve ser substituída por uma
verdade elevada, incomensurável, intuitiva (PERELMAN, 1997).
Fonte: os autores.
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Análise 1: texto pré-digital e a empatia
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Para o primeiro momento da análise, selecionamos uma
composição de 1909, em referência a uma situação sociodiscursiva que
envolveria a escrita de cartas com a ação visada de realizar algum tipo de
despedida e trazer os motivos da intenção pela morte voluntária. O documento
caracteriza-se por uma das três cartas escritas por J. N., pensionista, descrita
no inquérito em que as cartas foram anexadas como uma mulher de
“avançada idade”, viúva e sem filhos. O inquérito expõe ainda que alguns
papéis por ela escritos e encontrados sobre um dos móveis de seu quarto de
pensão “denunciam a desordem de seu espírito incitado pelos arroubos de
uma paixão amorosa mal correspondida” (s.p.). Na sequência, trazemos a
transcrição do documento com uma delimitação do plano retórico prototípico
da carta (exórdio, narração, confirmação, peroração, fechamento):
128 <EXÓRDIO> [2]Digo-lhe adeus para sempre! [3]Sou a mulher mais desgraçada que
piza o sollo criado por Deus; e devo morrer! <NARRAÇÃO/CORPO ARGUMENTATIVO>
[4]quando receber esta carta! Eu já não existo! [5]Mato-me porque devo morrer! é
este o seu único descanço neste mundo! Não é verdade? <CONFIRMAÇÃO> [6]Ousa-
me Imoo João! Sofri um golpe tão atrás em minha vida!... que em menos de 24 horas
emvelheci! [7]Que pareço-me já um cadáver! [8]Pensei logo em matar-me!.. quando
estive escrevendo, já tenho em meu poder o veneno que devo tomar, e vou tomallo
sem fazer um queixume! [9]Meu Deus me perdoe! [10]Porem tenho sofrido tanto tanto
que já não tenho coragem para rezistir! [11]Imoº peço-lhe que não me odeia, me fez
a mulher mais desgraçada que vive neste mundo! para que me queria emganar! [12]
nada mais lhe digo! [13]o que eziste no meu quarto é seu! em sua malla seja [ilegível
bem]! [14]Junto a esta carta vai um papel que servirá para prova se opores do que está
no quarto, e vai a carta dos trastes! ,<PERORAÇÃO> [15]Imo João o golpe que sofri é
mortal! [16]Adeus para sempre! [17]Creia-me a 2 meses que vivo na emcerteza meu
bom amigo! [18]Queria illudir-me amim própria! [19]porem cheguei ao conhecimento
da verdade! e mato-me sou uma desgraçada! <FECHAMENTO>[20]Adeus meu bom
amigo![21] Adeus para sempre
Adeus
Sempre a mesma J. N.
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solidão, apresentadas pela locutora/enunciadora (“que em menos de 24
2022 horas emvelheci! Que pareço-me já um cadáver!”) e também presentes
no contexto da produção e para o tipo de motivação sugerida no inquérito.
Quanto às categorias axiológicas, essas valorações sinalizam
um tipo de evocação da emoção pelo uso de valores concretos, do lugar
da qualidade, do que é irreparável e insubstituível. A valoração ocorre
pela descrição minuciosa do sentimento causado pelo enunciador
segundo, ao qual é imputada a razão do sofrimento (“me fez a mulher
mais desgraçada que vive neste mundo!”). Nesses limites axiológicos,
os valores e os sentimentos são o foco da discussão e são apresentados
segundo o que o L1/E1 imagina que seu interlocutor admita: a crença
em Deus; a posse e doação de bens; a devoção ao outro e o sacrifício próprio
pelo outro. Valores concretos são acionados em um par enunciativo
característico da figura do “eu” apaixonado e do “tu” indiferente.
No que se refere à OR-arg, esse tipo de discurso patêmico
monogerido é guiado por um tipo de estratégia do “em nome de...”, no
contexto específico, em nome do amor ou pela falta dele. Há o que Plantin
(2011) apresenta como um questionamento dos valores e dos interesses
130 acompanhados de emoção no sentido de persuadir. Todo o discurso se
orienta ao acordo movido pelas emoções de L1/E1 e pela forma como ela
valora a relação amorosa com o interlocutor e2. Somos guiados a ter tanto
empatia quanto a nos compadecer pelo sentimento e devoção de L1/E1.
Fonte: Instagram.
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tipo de rogativa pela recuperação do amigo e um apelo ao público para que
2022 orem. Ao defender seu PDV, L1/E1 atribui qualidades ao amigo (objeto de
referência) - “aquele que não permite que seu dia seja ruim”, “que se dedica
a te fazer gargalhar”, que é “VIDA PURA” e “GENEROSIDADE” - ao mesmo
tempo em que representa o PDV de Paulo Gustavo (e2 nesta postagem) por
imputação: e2 gargalha, dedica-se a fazer L1/E1 e qualquer pessoa gargalhar
e está encarando a doença de forma positiva. Outros dois enunciadores são
identificados nesta postagem: Deus (e3) e a família de Paulo (e4) (filhos, mãe,
irmã e marido), cujos PDVs são: Deus faz milagre e resolve tudo (PDV de e3) e
a família de Paulo não vê a hora de Paulo voltar para casa (PDV de e4).
Ao final do texto, a atriz se solidariza com todas as pessoas
doentes que, assim como Paulo, sofrem com a Covid-19. Esta ação ancora
mais um PDV, que é imputado aos doentes (e5). Por essa mobilidade
empática, emoções de outros enunciadores são representadas no campo
da dor, ao mesmo tempo em que dois objetos de discurso principais são
perspectivados: o sofrimento (da atriz, da família e de outros doentes)
e o ator Paulo Gustavo.
Assim como na análise anterior, no contexto de produção do
132 documento, os índices patêmicos (OR-arg) ligam amor e morte, agora
não como uma forma de libertação da dor, mas de separação entre os
entes queridos. Tudo isso aparece em sintonia com outras valorações
que se relacionam em três limites: exaltação do homenageado; descrição
da dor sentida no que poderíamos caracterizar como uma autoexaltação
despretensiosa da locutora/enunciadora e uma súplica emocionada
(empatia) de oração e conforto à família (aos interlocutores possíveis).
O texto sinaliza uma estratégia de persuadir que, no ambiente digital,
aproxima-se de uma mão dupla, em função, principalmente, do aumento
enunciativo gerado pela plataforma digital. L1/E1 não fala somente
aos seus, mas também a um público tão diversificado quanto variado,
como se pode observar no comentário da atriz Lília Cabral (L2/E2 no
bloco de textos13), cujo PDV deriva do PDV de Tatá Werneck, estando em
consonância com ele. Se por um lado temos a homenagem e o pedido
de orações, por outro há o autoenaltecimento no destaque das emoções
sentidas e da benevolência ao sofrimento do outro, mesmo que essa não
seja uma ação visada.
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Neste trabalho não nos dedicamos a analisar a representação dos PDVs no bloco de textos
constituído pela postagem e seus comentários. Essa discussão ainda está para ser feita.
Suzana Leite CORTEZ; Evandro de Melo CATELÃO
Considerações finais
Referências
v. 12 (esp)
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CORTEZ, S. L. Referenciação e Construção do Ponto de Vista. Dissertação.
out.
(Mestrado em Linguística) - Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade
2022
Estadual de Campinas. Campinas, 2003.