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http://dx.doi.org/10.

22168/2237-6321-2422

Argumentação
emocionada em CORTEZ, Suzana Leite; CATELÃO,
Evandro de Melo. Argumentação
uma carta e em emocionada em uma carta e em uma
postagem do Instagram. Entrepalavras,
uma postagem do Fortaleza, v. 12, n. esp., e2422, p. 116-
134, out./2022. DOI: 10.22168/2237-
Instagram* 6321-2422.

Emotional argumentation Resumo: Problematizamos, neste estudo,


o fazer argumentativo de textos pré-
in a letter and in a post on digitais e digitais nativos, marcadamente
116 Instagram passionais, que visam a agir sobre o
interlocutor através da mobilização de
Suzana Leite CORTEZ (UFPE) emoções. Teoricamente, este estudo
articula conceitos provenientes das teorias
suzana.cortez@ufpe.br
de texto, do discurso e da enunciação.
Evandro de Melo CATELÃO (UTFPR) Sustentamos a hipótese de que, no campo
evandrocatelao@utfpr.edu.br da argumentação, a busca pelo acordo (ou
desacordo) pode ser um ponto de geração
Recebido em: 20 de jan. de 2022. de emoção, principalmente ancorada no
Aceito em: 02 de mar. de 2022. preferível, ou seja, no campo dos valores
e das crenças, que são empaticamente
* Trabalho apresentado no IV mobilizados. Objetivamos, assim,
Workshop de Linguística Textual, em discutir, pela comparação entre carta
maio de 2020, organizado pelo grupo de suicídio e postagem no Instagram,
Protexto, na Universidade Federal do que tipo de orientação argumentativa
Ceará. é explorada pelos enunciadores. Os
resultados da análise indicam que os
textos são construídos de forma muito
similar, no sentido de articulação dos
pontos de vista e escolha dos tipos de
argumentos (real/preferível) com a ação
de linguagem visada pelos sujeitos. Nos
gêneros discursivos que apelam para o
sensível, parece haver uma problemática
muito maior quanto ao uso de valores,
dos fatos e das provas no interior das
orientações argumentativas. Trazer ou
questionar valores e interesses seria
Suzana Leite CORTEZ; Evandro de Melo CATELÃO

também uma forma de trazer emoção ao discurso e de defender pontos de vista


empaticamente.

Palavras-chave: Argumentação. Emoção. Ponto de vista.

Abstract: In this study, we problematize the argumentative work of pre-digital and


digital texts, markedly passionate, which aim to act on the interlocutor through the
mobilization of emotions. This investigation articulates concepts from text, discursive
and enunciation theories. We support the hypothesis that, in the argumentation field,
the search for agreement (or disagreement) can be a point of generation of emotion,
mainly anchored in the preferable, that is, in the field of values ​​and beliefs, which are
empathically mobilized. By comparing suicide letters and Instagram posts, we aim,
therefore, to discuss what kind of argumentative orientation is explored by enunciators
in their productions. The analysis results indicate that the discourses are built in a
very similar way in regard to the articulation of points of view and choice of the
types of arguments (real/preferable) with a language action targeted by the subjects.
In the discursive genres that appeal to the sensitive, there seems to have a much
more significant issue regarding the use of values, facts, and evidence within the
argumentative orientations. Bringing or questioning values ​​and interests would also
be a way to bring emotion to the discourse and to empathically defend points of view.

Keywords: Argumentation. Emotion. Point of view.

Introdução

Neste trabalho, objetivamos descrever e problematizar 117


o fazer argumentativo de textos pré-digitais e digitais nativos de
temática marcadamente passional, em que a ação visada esteja ligada
à mobilização de emoções em contextos de morte. Ao comparar carta
de suicídio e postagem no Instagram, analisamos que tipo de orientação
argumentativa (OR-arg) é explorada pelos locutores/enunciadores em
suas produções.
Os postulados teóricos que ancoram esse trabalho se filiam a
teorias de texto, do discurso e da enunciação, nos limites do que vem
se discutindo em grupos de estudo e pesquisa na área de Linguística
Textual no Brasil, especialmente no grupo Protexto1 e afiliados. Nesta
proposta, vemos o ato de argumentar como a tentativa de os sujeitos
agirem, posicionando-se no sentido de gerar acordo e/ou modificar
visões de mundo (AMOSSY, 2018). Concordamos com Cavalcante et al.
(2019, p.19), para quem:

Argumentar seria, assim, uma negociação persuasiva na


tentativa de influenciar, de pôr em ação uma série de estratégias,
dentre elas as textuais, para negociar, em uma determinada
interação, certos pontos de vista, a partir dos quais se tenta
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influenciar o outro.

1
Grupo coordenado pelas professoras Mônica Magalhães Cavalcante (UFC) e Mariza Angélica
Paiva Brito (UNILAB).
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A questão problema que norteia a discussão liga-se ao modo
2022 como se argumenta nesta negociação persuasiva em que se evidencia a
mobilização empática de emoções para a construção de pontos de vista.
Na análise textual dos discursos de Adam (2011, 2019), identifica-se
o ponto de vista (PdV) como o que é dito no interior da proposição-
enunciado (unidade de base na análise textual/discursiva), relacionado
à responsabilidade enunciativa. Esta se soma à representação discursiva
(Rd), no nível semântico, e à orientação argumentativa (OR-arg)
(potencialidades argumentativas sobre o que é dito). Pela teoria, não
existe um enunciado isolado, pois ele sempre se liga/evoca a outros
enunciados em resposta no interior dos processos de significação.
Nesse sentido, optamos por uma breve comparação do que
entende Adam por ponto de vista e o que apresenta Rabatel (2008; 2017)
sobre o assunto. Para o primeiro autor, o ponto de vista (PdV) é visto de
maneira mais ampla, não específica, do que adotaremos, tendo em vista
a perspectiva de Rabatel. Adam (2011, p.113) apresenta que

toda representação discursiva [Rd] é a expressão de um ponto


de vista [PdV] [...] e que o valor ilocucionário derivado da
orientação argumentativa é inseparável do vínculo entre
118 o sentido de um enunciado e uma atividade enunciativa
significante.

É por essa razão que delimitamos a noção de ponto de vista (PDV)


aliando-na à emoção através da abordagem enunciativo-interacional
de Rabatel (2013a; 2013b). Tal enfoque é produtivo, pois nos textos em
análise, nos quais o apelo ao sensível é um traço marcante, argumenta-
se sem parecer que o texto seja argumentativo, isto é, argumenta-se de
forma indireta, ainda que não se defenda uma tese.
O interesse por este objeto de análise se pauta, ainda, pela
necessidade de ampliar as discussões sobre as interações pré-digitais
e digitais nativas sob o escopo argumentativo. Nessas interações (pré-
digital e digital nativa), sustentamos a hipótese de que, no campo da
argumentação, a tentativa de influenciar o modo de pensar, agir e sentir
dos interlocutores, por meio do acordo (ou não), pode se estabelecer por
OR-args no sentido de produzir emoções empaticamente representadas,
principalmente ancoradas em valores que marcam também os pontos
de vista desses sujeitos.
Neste trabalho, iniciamos a discussão sobre a noção de ponto
de vista e mobilidade empática a partir dos trabalhos de Alain Rabatel e,
em seguida, nos detemos ao campo da argumentação, dialogando com
Suzana Leite CORTEZ; Evandro de Melo CATELÃO

Amossy (2018) e Plantin (2011), a fim de mostrar o que este trabalho


toma por argumentação emocionada. Na continuidade, discutimos a
noção de valor/valoração, com base em Perelman (1997), e, por último,
nos dedicamos ao corpus, analisando as cartas e as postagens.

Ponto de vista e mobilidade empática

Na Linguística Textual brasileira, o termo ponto de vista


é utilizado com frequência, sem que haja, em grande parte, uma
preocupação teórico-nocional. É muito comum a asserção de que o
texto/produtor do texto defende determinado ponto de vista ou que
se argumenta para defender pontos de vista, sem que a noção teórica
seja alvo de atenção. Observa-se, ainda, que o termo oscila junto a
outros, como posição, posicionamento e opinião. Na França, contudo,
os trabalhos de Alain Rabatel destacam-se pelo estudo desta noção, que
foi inaugurado no Brasil, à luz dessa perspectiva, por Cortez (2003).
Dessa forma, seguimos neste trabalho a orientação rabateliana para o
entendimento desta noção, tomando por base os trabalhos de Rabatel
(2008; 2015; 2016; 2017; 2018), Cortez (2011) e Pinto e Cortez (2017).
119
Ao retomar a distinção esboçada por Amossy2 (2006), Rabatel
(2016) advoga por uma visão de argumentação mais próxima da
dimensão argumentativa do que da visada argumentativa, privilegiando
a lógica inferencial de J.-B. Grize3 em detrimento da lógica silogística.
Esse entendimento do que é explícita ou implicitamente argumentativo
é tratado por Rabatel (2017), respectivamente, como argumentação
direta e argumentação indireta. Para o autor, a direta realiza-se por
meio de argumentos, conectores, enquanto a indireta dá-se por meio de
“inferências a partir da construção dos objetos de discurso” (RABATEL,
2017, p. 27), em que se argumenta sem parecer que é argumentativo.
Desde os primeiros trabalhos do autor4, vê-se a preocupação
em teorizar a noção como forma indireta de argumentação e analisá-la
em esferas (inicialmente a literária) cujos textos não se caracterizam
como de visada argumentativa. Esse interesse pela análise do PDV em
seu aspecto indireto permite considerar os pontos de vista “que não

2
Para Amossy (2006, p.33), a linguagem “comporta sempre uma dimensão argumentativa”,
mesmo quando não há um projeto declarado ou estratégias explícitas.
3
Grize (1982) trata da lógica da argumentação por uma abordagem situacional, preparando
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o terreno para o estudo da argumentação numa dimensão interacional ante a uma dimensão
estritamente objetiva, cognitiva e lógica: “Meu propósito é ‘formal’, mas tentarei não excluir
uma abordagem situacional: espero na verdade preparar seu espaço” (p.184).
4
Rabatel (1997; 1998).
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exprimem uma opinião explícita, mas que de qualquer modo exprimem
2022 uma, implicitamente, por conta das escolhas (explícitas) de referência.”
(RABATEL, 2015, p. 156).
Essa preocupação com o que é implicitamente argumentativo
é concretizada na obra de Rabatel devido ao deslocamento teórico-
metodológico que ele opera na compreensão do PDV - tradicionalmente
associado à noção genettiana de foco narrativo. Por meio desse deslocamento,
passa a ser imprescindível considerar as escolhas lexicais operadas
pelos locutores/enunciadores na análise do PDV. Em outras palavras, a
referenciação dos objetos de discurso é uma espécie de espinha dorsal que
sustenta a noção rabateliana de PDV. Conforme Cortez (2011, p.37), a teoria
do PDV na ótica rabateliana reinterpreta a noção de foco narrativo, “tão cara
ao estudo da focalização, deslocando o problema para a relação [...] sujeito
enunciador e objeto de conhecimento”. Por isso, o modo de apresentação
do objeto de discurso é revelador desse enquadre operado pelo produtor do
texto, o qual confere atributos ao objeto de discurso:

Eu defino [o PDV] brevemente como uma predicação, que


faz compreender o PDV do enunciador sobre o objeto de
discurso referido, pela escolha das palavras, sua ordenação,
120 independentemente da presença explícita de um julgamento
(Rabatel 2008a): em outras palavras, há PDV quando a
referenciação revela os objetos do discurso indicando o ponto
de vista do enunciador sobre estes mesmos objetos (RABATEL,
2018, p.128 - tradução nossa5).

No entanto, é preciso considerar que essa agentividade do


produtor do texto não se dá de forma solitária, mas necessariamente
dialógica, o que faz com que a relação entre locutor e enunciador, ou a
relação entre os enunciadores, esteja no centro da concepção do PDV,
como postula Rabatel (2008). Assim, ainda que o PDV seja assumido ou
defendido pelo locutor/enunciador primeiro (L1/E1, autor do texto), ele
não é jamais isolado, nem manifestado de forma individual, porque está
sempre em relação com outro(s) PDV(s), que pode(m) ser identificado(s)
em uma análise textual e com o qual/os quais L1/E1 dialoga e marca posição,
seja em consonância, seja em dissonância (RABATEL, 2008; CORTEZ,
2011). É neste sentido que os textos monogeridos são guiados por um PDV
principal, o PDV do autor, que vai orientar a construção da coerência.

5
“je définis rapidement comme une prédication, qui fait entendre le PDV de l’énonciateur sur
l’objet du discours dénoté, par le choix des mots, de leur ordre, indépendamment de la présence
explicite d’un jugement (Rabatel 2008a): autrement dit, il y a PDV lorsque la référenciation
dénote le ou les objets du discours tout en renseignant sur le point de vue de l’énonciateur sur
ce(s) même(s) objet(s).”
Suzana Leite CORTEZ; Evandro de Melo CATELÃO

Tal dinâmica estabelece o jogo de pontos de vista através


dos quais os PDVs são representados: “Essa representação pode ser
assumida pelo locutor/enunciador primeiro, encarregado de gerenciar as
informações no discurso, ou ser atribuída por ele a outros enunciadores,
que nem sempre são autorizados a falar” (CORTEZ, 2011, p. 38). Por
essa ótica, mesmo quando não há falas reportadas, um PDV pode ser
expresso por meio de pensamentos, percepções ou ações imputados a
um enunciador por L1/E1.
Essa dinâmica na representação dos pontos de vista possibilita
tratar da empatia em textos que argumentam de forma indireta.
Consoante Rabatel (2013a), podemos dizer que a representação de
PDVs é inescapável a um movimento de “mobilidade empática”.
Quer dizer, não se argumenta sem ser empático, isto é, sem que seja
possível “se colocar no lugar dos outros, sem fusão nem identificação6”
(RABATEL, 2013a, p. 159). No dizer do autor, “A empatia linguística,
sob sua versão enunciativa, consiste em colocar-se no lugar de um
outro (interlocutor ou terceiro), um locutor que empresta sua voz a
um outro para considerar um acontecimento, uma situação do ponto
de vista do outro” (p. 160, tradução nossa7). Dessa forma, a empatia 121
está implicada na problemática do PDV, tomando por base, conforme
Rabatel (2013a), a distinção locutor e enunciador, e ainda, as emoções:
“A empatia baseia-se nas emoções8” (p. 172).
É por esse entendimento que Micheli, Hekmat e Rabatel (2013)
pleiteiam “o lugar do sensível na argumentação”, sendo a emoção vista
não simplesmente como recurso, mas como constitutiva da própria
argumentação. Por esse viés, Pinto e Cortez (2017) mostram que não
se pode defender um ponto de vista sem que o afeto/a emoção esteja
presente, ao que as autoras tratam como “argumentação emocionada”.
Por isso, juntamente com este estudo anterior, assumimos que a discussão
sobre o sensível é inescapável ao jogo dos PDVs que vai direcionar a
orientação argumentativa do texto, não apenas pelo emprego dos
recursos (semio)linguísticos, raciocínios esquemáticos, argumentos,
mas o modo sensível e empático pelo qual os locutores mobilizam
emoções, assumem PDV e imputam PDV a outros enunciadores.

6
“L’empathie humaine est une aptitude à se mettre à la place des autres, sans fusion ni
identification”.
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7
“L’empathie linguistique, sous son versant énonciatif, revient à se mettre à la place d’un autre
(interlocuteur ou tiers), un locuteur prêtant sa voix à un autre pour envisager un événement,
une situation du point de vue de l’autre.”
8
“L’empathie s’appuie sur des émotions”.
Argumentação emocionada...

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Nesse sentido, Para Rabatel (2013a, p.170), as emoções
2022 (“emoções dramatizadas”) são representadas em modo empático; mas,
para que isso ocorra, elas são inferidas por meio das falas, percepções ou
ações imputadas ao outro, ao invés de serem ditas pelo próprio locutor.
Assim, “Em modo empático, o locutor/enunciador primeiro (L1/E1)
não exprime diretamente suas emoções, mas evoca mediaticamente
emoções que ele imputa a um outro” (RABATEL, 2013b, p. 65, tradução
nossa9).

Argumentação emocionada

A noção de argumentação emocionada, ou a própria definição


de emoção, aparece em diferentes teorias e com múltiplos usos. Para
a análise que pretendemos, traremos uma revisão do termo conforme
ele é apresentado nas teorias argumentativas e sua implementação nos
estudos do texto. Para Amossy (2018, p. 196), a noção de emoção já
aparece na Retórica de Aristóteles junto ao que se entende por pathos,
ou seja, em uma relação direta com o auditório na tríade (Ethos -
orador, Logos - discurso, Pathos - auditório). Para a autora, o exame
122
dessa característica cumpre ao uso do que pode, no auditório, tocar sua
afetividade, em que para se “conhecer a natureza das emoções e o que
as suscita, pergunta-se quais sentimentos o alocutário é suscetível em
virtude de seu status”. Assim, reconhecer e estipular quais emoções
se deseja promover em um determinado auditório seria uma atitude
básica ao orador/locutor, visto que há correspondência direta entre seu
espírito e as emoções que o auditório desenvolve. Nesse âmbito, é certo
que, do ódio à amizade, determinadas formas e construções poderiam
ser organizadas, mobilizadas e utilizadas pelo orador/locutor para esse
fim. A própria retórica traz um exame das pathé sob três designações,
as quais complementamos com nossas próprias percepções em filtros
mais finos e que poderiam ser admitidos em análises do texto: seu
estado de espírito (momento de vida - elemento temporal); tipos de
pessoas (categorias axiológicas ou que valores defendem/ideologias que
se filiam) e os objetivos do orador (ação visada).
Essas designações não seriam, segundo Amossy (2018),
categorias facilmente delimitáveis dentro de um quadro retórico, mas
elementos que remetem à observação de algo que iria além de uma

9
“En mode empathique, le locuteur-énonciateur premier (L1/E1) n’exprime pas directement
ses émotions, il évoque médiatement des émotions qu’il impute à un autre.”
Suzana Leite CORTEZ; Evandro de Melo CATELÃO

taxionomia por abarcar dados psicológicos ou até mesmo pragmáticos


da situação sociodiscursiva. Pelas observações da autora, em detrimento
à própria necessidade de, na construção do discurso, se seguir também
pela racionalidade, a opção de conquistar a adesão pela emoção não
seria apenas uma característica do discurso epidíctico (no qual o apelo
às emoções é creditado como válido), mas também dos outros gêneros
retóricos. Gerar emoção pode ser vista, então, como uma ferramenta
a mais para a persuasão, o que não isentaria a retórica das possíveis
problemáticas provenientes do uso da relação razão-paixão.
Essa visão é complementada pela autora com o que cita Plantin
(1996 apud AMOSSY, 2018, p. 196) a respeito do duelo razão vs. paixão.
O autor frisa, para a criação da teia argumentativa, a velha máxima de
que todo discurso deve “ensinar, agradar, tocar”, uma alusão ao par
convencer/persuadir, em que no primeiro se usa a razão e, no segundo,
os dados/instrumentos do coração. Essa empreitada descrita pela autora
nos leva a uma visão bipartida que nos direcionaria a possíveis usos de
uma espécie de busca de entremeios, ora na razão, ora na paixão, de
forma a articular um discurso que poderia pender a um ou ao outro.
Sobre as paixões e a razão, Breton (2003) salienta existir uma 123
vasta série de sentimentos humanos que rumam em uma direção ou
outra e vão se intercruzando com o produto da sabedoria popular e
da própria racionalidade, ou seja, seria algo próprio da forma como
interagimos. Para o autor, o que move a humanidade seria, muitas
vezes, uma espécie de racionalização da emoção, ou seja, a tentativa
de traduzir representações de amor, afeto e sentimento para o domínio
argumentativo e discursivo. Nisso, estende a ideia no sentido de que só
há razão na ciência, no que se baseia única e exclusivamente em fatos
ou verdades. Assim, tudo que está fora da ciência é apenas afeto ou
emoção (BRETON, 2003, p. 56).
Nesse tipo de delimitação, Plantin (2011) aproxima ainda a
emoção do preferível. Ele afirma que a argumentação por emoção pode
ser reconhecida quando um determinado argumento utilizado pertence
ao campo dos valores particulares, seja na intenção do enunciador, seja
na organização/escolha dos argumentos que vão compor o discurso.
É nesse sentido que o autor reconhece a argumentação afetiva (ou
argumentação guiada pela emoção) como uma estratégia facilmente
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contestável, por serem argumentações que partem de valores e interesses


(do orador e do auditório). “A problemática moderna dos valores (‘em
nome de…’) remete às problemáticas da afetividade e das orientações
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argumentativas” (PLANTIN, 2011, p. 26) à medida que questionar valores
2022 e interesses de outro grupo seria também trazer emoção ao discurso, uma
vez que se exprime uma forma de axiologização dos discursos. O autor
estipula, assim, um limite taxonômico à definição de argumentação
afetiva, traçado sob certa impossibilidade de se demarcar um ponto de
vista sem que ele esteja ligado de alguma maneira à emoção/valoração,
o que se alinha ao que discutimos na seção anterior.
Essa característica apresentada por Plantin (2011) guiaria, de
certo modo, o que a retórica e nós estamos entendendo como categoria
de pessoas segundo seus valores e a ação visada (interesses do orador
e do auditório), pois nada adianta um discurso baseado em fatos se o
auditório não se interessa por eles. Ou, como cita Gilbert (1730 apud
AMOSSY, 2018, p. 198): “o que não toca é contrário à persuasão”; ou,
citando Perelman e Olbrechts-Tyteca (apud AMOSSY, 2018): não se
convence se não se sabe persuadir.

Valoração e orientação argumentativa

A problemática da argumentação emocionada que comporta


124
a discussão sobre as emoções e a mobilidade empática apresentada
anteriormente remete, no nível textual, às potencialidades
argumentativas quanto a assumir ou imputar pontos de vista.
Aproximamos essa delimitação à máxima argumentativa do aumento
da adesão à tese na nova retórica. Perelman (1997), sobre essa adesão,
discute que nem sempre podemos ter como ponto de partida o acordo
com o real, ou seja, o uso de fatos ou verdades. Os valores, hierarquias
e lugares são também pontos suscetíveis de adesão a uma tese que
poderiam ser evocados junto às provas reais.
Destacamos ainda, nessa discussão provocada pelo autor, a
possibilidade de caracterização da argumentação emocionada pelo que
ele descreve como ideal clássico e ideal romântico. Essas duas classes
compreendem representações de duas realidades distintas, e delas
podemos recolher noções que nos ajudam particularmente a entender
as projeções do ponto de vista e o uso de valor/valoração e emoção. A
distinção entre as duas classes é realizada pela descrição dos lugares de
qualidade e quantidade. O lugar de qualidade, segundo Perelman (1997),
representa certa superioridade demarcada como algo único ou raro. Em
termos de valoração, o sujeito pode optar por valorar não algo durável,
coletivamente empregável, mas o que é efêmero, transitório, particular,
Suzana Leite CORTEZ; Evandro de Melo CATELÃO

orientando argumentativamente o texto para o que seria um ideal


romântico, emocionado. Como exemplo, o ideal de “beleza”, aplicado a
um ser ou coisa por um enunciador, eleva seu valor e pode se projetar nas
categorias amar algo, preferir algo (lugar de qualidade), como no verso A
Noite, de Antônio Gonçalves Dias: “Eu amo a noite taciturna e queda! Amo
a doce mudez que ela derrama”10. O mesmo tipo de mecanismo ocorre
com o chamado lugar do irreparável, do insubstituível e do incomparável,
que pode gerar uma forma de comoção, como no tipo de valoração quando
se perde alguém querido: “E hoje, o Tarcísio. Meu eterno Euclides da
Cunha, o João Coragem que ninguém esquece” (comentário da escritora
Glória Perez, em sua rede social, na ocasião da morte do ator Tarcísio
Meira, trazendo relação temporal com o falecimento do ator Paulo José11).
Na prática, podemos orientar o texto no sentido de valorar um bem, um
ser, ou uma coisa como algo insubstituível.
Para Perelman (1997), graças aos lugares de qualidade,
rejeitamos o consentimento comum em função de uma verdade que
é puramente pessoal, ou seja, o sentimento passa a ser o foco da
discussão, não a razão. É nesse sentido que o autor caracteriza o
sujeito romântico como aquele que se apega “aos valores concretos, 125
aos indivíduos insubstituíveis e às relações de amor que nos ligam a
eles” (PERELMAN, 1997, p. 190), personificando, por exemplo, a pátria
ou a raça e a eles atribuindo paixões, sacrifícios e fidelidade, traçando
o PDV ligado a esses valores. Dessa maneira, no discurso, entrelaçamos
nosso ponto de vista junto à forma/maneira como valoramos um
objeto/ser em relação a outros e acabamos por orientar nossos dizeres e
negociar esse mesmo PDV. Desse ponto, na argumentação emocionada
se fundem representações de cunho romântico e místico ligadas aos
valores. Como ilustração disso, a argumentação dominada pela emoção
inverte a superioridade das coisas e, por amor, se sacrifica o dono e
não o animal, apesar da existência da máxima clássica que rege essa
hierarquia homem-animal. Nas representações criadas, tudo passa a
depender não do que é coletivo, mas da individualidade e do poder de
valoração criado no pensamento romântico. Em resumo, a marca da
afetividade está na beleza do que é transitório, da obsessão pela morte,
da nostalgia da infância e/ou dos diferentes tipos de exaltação de seres
ou coisas (PERELMAN, 1997).
ISSN 2237-6321

10
Dias, Antônio Gonçalves. A Noite. In: Segundos Cantos: poesia completa e prosa escolhida. Rio
de Janeiro: Aguilar, 1959, p.249.
11
Disponível em: https://f5.folha.uol.com.br/celebridades/2021/08/celebridades-lamentam-
morte-de-tarcisio-meira-nosso-maior-gala.shtml. Acesso em: 28/08/2021.
Argumentação emocionada...

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Desse ponto, ampliamos as formas de persuasão em duas
2022 direções: a primeira, pelo apoio em premissas sobre o que o interlocutor
admite ou não, ou ao que Perelman (1997) chama de situação
argumentativa sob a qual a modificação do ponto de vista ocorre pela
utilização de argumentos opostos ou argumentos que foram ignorados
em uma dada argumentação; a segunda, na possibilidade de contestação
do discurso que se baseia no real (razão) pela utilização da emoção (figura
1). A força da emoção estaria na reivindicação e no posicionamento de
que certa verdade é ilusória e, por isso, deve ser substituída por uma
verdade elevada, incomensurável, intuitiva (PERELMAN, 1997).

Figura 1 - Tipos de valoração

Fonte: os autores.
126

De uma perspectiva analítica, e também guiados pelo que


apresenta Plantin (2011), entendemos que a figura do locutor/enunciador
age de forma significativa no interior de uma situação argumentativa, pois
ele pode articular qual emoção, quem a experiencia (outro enunciador e ele
mesmo na relação com outro enunciador) e que tipo de efeito ela pode gerar
no interlocutor (OR-arg). Lembrando que a argumentação emocionada que
aqui analisamos se marca por diferentes pontos de vista geridos por L1/
E1, negociando de forma persuasiva seu PDV, na tentativa de influenciar o
interlocutor ou um terceiro. Nessa engrenagem, o L1/E1 (orador) pode ser o
próprio experienciador da emoção, um eu que sente e sempre na relação com
o outro. De modo empático, pode transferir a emoção a outro enunciador
sob a ótica de seu PDV ou indicando a emoção que ele próprio afirma sentir.
Dessa maneira, o ponto de vista na argumentação emocionada
pode ser guiado, e é o que pretendemos visualizar nas análises, pelos
chamados pares filosóficos que vislumbram (figura 1), grosso modo,
tipos de pares opositores provenientes do par principal abstrato/
concreto, em que concreto se refere à OR-arg emocionada e o abstrato,
ao discurso embasado em fatos ou que deles são gerados, OR-arg não
emocionada (PERELMAN, 1997).
Suzana Leite CORTEZ; Evandro de Melo CATELÃO

Descrição da geração de dados e dos procedimentos de análise

Os formatos, as ações visadas e os próprios ambientes em que


se encenam dizem muito sobre os efeitos discursivos possíveis para um
texto. É nesse sentido que tomamos como corpus dois textos (um pré-
digital e outro digital nativo) para a análise da argumentação emocionada.
Para tanto, delimitamos entre os procedimentos de análise dos textos as
seguintes etapas: (i) identificação dos PDVs, que, por meio da assunção
de responsabilidade e imputação, ancoram os discursos passionais em
ambas as dimensões (pré-digital e nativo digital); (ii) discussão do tipo
de valoração utilizado; e (iii) discussão do tipo de OR-arg mobilizada
nos textos e sua relação com a argumentação emocionada.
Os textos, na seção análise de dados, estão reproduzidos pela
sua transcrição (carta) e pelo print de tela direto do Instagram, com as
devidas coberturas dos nomes dos sujeitos anônimos, permanecendo
apenas os nomes das personalidades públicas. A carta selecionada para
a análise foi escrita no ano de 1909 e coletada em 2010, no Arquivo
Nacional do Rio de Janeiro em inquéritos policiais de suicídio (inquérito
da 9ª pretoria, notação T7 1138 - Arquivo Nacional do Rio de Janeiro).
127
As postagens foram coletadas no Instagram, no ano de 2021, na página
da atriz e apresentadora Tatá Werneck, na ocasião do falecimento de
seu amigo e colega de trabalho, o ator Paulo Gustavo. Apesar da distinta
situação sociodiscursiva de produção e do distanciamento temporal,
os dois exemplos são representativos de duas realidades (pré-digital
e digital nativa) e estão ancorados em um tipo de argumentação
emocionada ligada à morte.
Para o segundo momento de análise (texto digital nativo),
acreditamos que pessoas públicas que postam seus comentários/textos
nas redes sociais virtuais devem estar cientes do caráter público desses
ambientes, podendo o material ser coletado, examinado ou analisado
em estudos científicos. Além disso, essa identificação contribui para
a contextualização e para o enquadre discursivo dos aspectos a serem
analisados nas postagens. Para a carta, no momento de sua coleta,
foi concedido o direito de utilização dos documentos pesquisados e
coletados na íntegra, para fins científicos, pelo arquivo público. Apesar
disso, o traço temporal desses textos não permite a identificação total
dos interlocutores dos documentos ou de parentes próximos vivos que
ISSN 2237-6321

possam contestar seu uso em pesquisas científicas.


Argumentação emocionada...

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out.
Análise 1: texto pré-digital e a empatia
2022
Para o primeiro momento da análise, selecionamos uma
composição de 1909, em referência a uma situação sociodiscursiva que
envolveria a escrita de cartas com a ação visada de realizar algum tipo de
despedida e trazer os motivos da intenção pela morte voluntária. O documento
caracteriza-se por uma das três cartas escritas por J. N., pensionista, descrita
no inquérito em que as cartas foram anexadas como uma mulher de
“avançada idade”, viúva e sem filhos. O inquérito expõe ainda que alguns
papéis por ela escritos e encontrados sobre um dos móveis de seu quarto de
pensão “denunciam a desordem de seu espírito incitado pelos arroubos de
uma paixão amorosa mal correspondida” (s.p.). Na sequência, trazemos a
transcrição do documento com uma delimitação do plano retórico prototípico
da carta (exórdio, narração, confirmação, peroração, fechamento):

Texto 1 - Carta de suicídio

<1 ABERTURA> [1]Imoº João

128 <EXÓRDIO> [2]Digo-lhe adeus para sempre! [3]Sou a mulher mais desgraçada que
piza o sollo criado por Deus; e devo morrer! <NARRAÇÃO/CORPO ARGUMENTATIVO>
[4]quando receber esta carta! Eu já não existo! [5]Mato-me porque devo morrer! é
este o seu único descanço neste mundo! Não é verdade? <CONFIRMAÇÃO> [6]Ousa-
me Imoo João! Sofri um golpe tão atrás em minha vida!... que em menos de 24 horas
emvelheci! [7]Que pareço-me já um cadáver! [8]Pensei logo em matar-me!.. quando
estive escrevendo, já tenho em meu poder o veneno que devo tomar, e vou tomallo
sem fazer um queixume! [9]Meu Deus me perdoe! [10]Porem tenho sofrido tanto tanto
que já não tenho coragem para rezistir! [11]Imoº peço-lhe que não me odeia, me fez
a mulher mais desgraçada que vive neste mundo! para que me queria emganar! [12]
nada mais lhe digo! [13]o que eziste no meu quarto é seu! em sua malla seja [ilegível
bem]! [14]Junto a esta carta vai um papel que servirá para prova se opores do que está
no quarto, e vai a carta dos trastes! ,<PERORAÇÃO> [15]Imo João o golpe que sofri é
mortal! [16]Adeus para sempre! [17]Creia-me a 2 meses que vivo na emcerteza meu
bom amigo! [18]Queria illudir-me amim própria! [19]porem cheguei ao conhecimento
da verdade! e mato-me sou uma desgraçada! <FECHAMENTO>[20]Adeus meu bom
amigo![21] Adeus para sempre

Adeus

Sempre a mesma J. N.

Nesse documento, diferente de muitos outros em que o traço


temporal dificultaria a reconstrução do contexto de produção de forma
tão precisa, algumas informações presentes no documento maior
(inquérito) no qual a carta foi coletada trazem informações que por
Suzana Leite CORTEZ; Evandro de Melo CATELÃO

si só possibilitam evocar um conjunto de imagens que são também


sinalizadas pela própria locutora/enunciadora.
Situando os enunciadores deste texto, vamos encontrar J. N.,
como L1/E1, e Imoº João como enunciador segundo (e2). O PDV de L1/E1,
como sendo o PDV principal que conduz a OR-arg da carta, constrói-se
pela abundância de asserções explícitas no modo de referir-se a si/ao
seu sofrimento12: “Sou a mulher mais desgraçada que piza o sollo criado
por Deus”; “Sofri um golpe tão atrás em minha vida!... que em menos
de 24 horas emvelheci! Que pareço-me já um cadáver!”; “tenho sofrido
tanto tanto que já não tenho coragem para rezistir!”; “mato-me sou uma
desgraçada!”. Estas asserções, contudo, não estão isoladas na carta, o
que faz com que o PDV de L1/E1 também seja construído pelo movimento
interativo em que J. N. dialoga com Imoº João, representando o seu PDV
(PDV de e2) por imputação: i) “é este o seu único descanço neste mundo!
Não é verdade?” [e2 não aguenta mais L1/E1, mas e2 vai descansar]; ii)
“me fez a mulher mais desgraçada que vive neste mundo! para que
me queria emganar!” [e2 enganou e fez sofrer L1/E1]; iii) “Imo João
o golpe que sofri é mortal!” [e2 golpeou L1/E1]. Conforme podemos
notar, o PDV de e2 é representado por meio de ações e percepções a ele 129
atribuídos, sem que este precise falar.
Notamos ainda que, no contexto do documento, o primeiro
destaque aparece em relação ao tema do amor e da morte em sintonia
com outras valorações que também se relacionam ao contexto de
recepção particular (de L1/E1), ao social (interlocutores possíveis) e
à ação visada (esclarecer/persuadir). O texto sinaliza a estratégia de
persuadir pelo destaque das emoções sentidas, no modo empático, e do
sofrimento causado pela desilusão amorosa em que a morte é valorada
como uma solução.
Esse contexto estabelece um regime enunciativo em que o
locutor/enunciador primeiro assume a responsabilidade por seu ato em
razão de um bem maior, na valoração da morte como porta de saída
do sofrimento (sofrimento, portanto suicídio como forma de libertação).
Este é um ponto de vista assumido com certa recorrência em relação
ao mesmo tipo de situação sociodiscursiva em que a vida perde sentido
quando o amor não é correspondido. O discurso passional, nesse caso,
encontra-se imerso em um conjunto de valorações em aproximação:
ISSN 2237-6321

sentido da vida, amor e a vida, ausência de amor e a morte. No contexto


de recepção, outras Rds coocorrem, como amor na velhice, velhice e a
12
Adicionamos destaques em itálico nos trechos citados.
Argumentação emocionada...

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solidão, apresentadas pela locutora/enunciadora (“que em menos de 24
2022 horas emvelheci! Que pareço-me já um cadáver!”) e também presentes
no contexto da produção e para o tipo de motivação sugerida no inquérito.
Quanto às categorias axiológicas, essas valorações sinalizam
um tipo de evocação da emoção pelo uso de valores concretos, do lugar
da qualidade, do que é irreparável e insubstituível. A valoração ocorre
pela descrição minuciosa do sentimento causado pelo enunciador
segundo, ao qual é imputada a razão do sofrimento (“me fez a mulher
mais desgraçada que vive neste mundo!”). Nesses limites axiológicos,
os valores e os sentimentos são o foco da discussão e são apresentados
segundo o que o L1/E1 imagina que seu interlocutor admita: a crença
em Deus; a posse e doação de bens; a devoção ao outro e o sacrifício próprio
pelo outro. Valores concretos são acionados em um par enunciativo
característico da figura do “eu” apaixonado e do “tu” indiferente.
No que se refere à OR-arg, esse tipo de discurso patêmico
monogerido é guiado por um tipo de estratégia do “em nome de...”, no
contexto específico, em nome do amor ou pela falta dele. Há o que Plantin
(2011) apresenta como um questionamento dos valores e dos interesses
130 acompanhados de emoção no sentido de persuadir. Todo o discurso se
orienta ao acordo movido pelas emoções de L1/E1 e pela forma como ela
valora a relação amorosa com o interlocutor e2. Somos guiados a ter tanto
empatia quanto a nos compadecer pelo sentimento e devoção de L1/E1.

Análise 2: texto digital nativo e a emoção compartilhada

Como dito anteriormente, na análise dos textos digitais


nativos, contamos com a análise de um exemplar coletado no início
de 2021, no contexto pleno da pandemia da Covid-19. A postagem
aconteceu antes do falecimento do ator e apresentador Paulo Gustavo,
o que gerou grande comoção nacional e entre os colegas de trabalho do
ator, e foi feita pela também atriz e apresentadora Tatá Werneck.
Nesse segundo momento de análise, apesar das diferenças
quanto à situação sociodiscursiva em relação à primeira, a ação visada
também se liga a um tipo de despedida; contudo, no contexto de
produção dos entes queridos que ficam e são confortados pelas pessoas
mais próximas. L1/E1 visa, nesses limites, a realizar uma homenagem ou
trazer seus sentimentos em relação à perda do ente querido. Ao contrário
do primeiro documento que se expressa em um contexto privado, a
postagem traz como recepção um contexto público que, nas interações
Suzana Leite CORTEZ; Evandro de Melo CATELÃO

digitais, sofre ampliação quanto ao alcance do PDV assumido. Além


disso, a locutora/enunciadora é também uma pessoa de vida pública,
fato que, de certa forma, repercute nos dizeres assumidos.
No texto, as orientações são construídas por meio de noções que
se filiam tanto a uma atitude de valorar o outro (sujeito homenageado)
quanto a apresentar um conjunto de sentimentos ou ações que resvalam
em uma autovaloração, ambas encaminhadas a uma espécie de auditório
universal. Novamente, quanto aos índices patêmicos, temos um tipo de
valoração que também segue pelo concreto, pelo lugar da qualidade,
destacando a morte como algo irreparável e o homenageado como
insubstituível e incomparável. No texto, o campo das representações
segue pelas valorações: parceiro, alegre, dedicado, expressivo, generoso,
sofredor. Todos esses valores guiam o PDV principal de “virtudes,
portanto, segunda chance”, com um forte apelo emocional. O PDV
de L1/E1 também é guiado pela representação empática das emoções
presentes nos valores direcionados a si próprio, como: temente e crédulo
a Deus e seus milagres, sincero, humilde, despretensioso, benevolente,
nostálgico.
131
Texto 2 - Postagem em rede social

Fonte: Instagram.

Nesta postagem, assim como ocorre na carta, L1/E1, Tatá Werneck,


não constrói seu PDV, o PDV principal, de forma isolada. O PDV da atriz
ISSN 2237-6321

baseia-se na visão de que o amigo é sinônimo de alguém cheio de vida,


mesmo estando doente e tendo tido “uma noite difícil”. A postagem é um
Argumentação emocionada...

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tipo de rogativa pela recuperação do amigo e um apelo ao público para que
2022 orem. Ao defender seu PDV, L1/E1 atribui qualidades ao amigo (objeto de
referência) - “aquele que não permite que seu dia seja ruim”, “que se dedica
a te fazer gargalhar”, que é “VIDA PURA” e “GENEROSIDADE” - ao mesmo
tempo em que representa o PDV de Paulo Gustavo (e2 nesta postagem) por
imputação: e2 gargalha, dedica-se a fazer L1/E1 e qualquer pessoa gargalhar
e está encarando a doença de forma positiva. Outros dois enunciadores são
identificados nesta postagem: Deus (e3) e a família de Paulo (e4) (filhos, mãe,
irmã e marido), cujos PDVs são: Deus faz milagre e resolve tudo (PDV de e3) e
a família de Paulo não vê a hora de Paulo voltar para casa (PDV de e4).
Ao final do texto, a atriz se solidariza com todas as pessoas
doentes que, assim como Paulo, sofrem com a Covid-19. Esta ação ancora
mais um PDV, que é imputado aos doentes (e5). Por essa mobilidade
empática, emoções de outros enunciadores são representadas no campo
da dor, ao mesmo tempo em que dois objetos de discurso principais são
perspectivados: o sofrimento (da atriz, da família e de outros doentes)
e o ator Paulo Gustavo.
Assim como na análise anterior, no contexto de produção do
132 documento, os índices patêmicos (OR-arg) ligam amor e morte, agora
não como uma forma de libertação da dor, mas de separação entre os
entes queridos. Tudo isso aparece em sintonia com outras valorações
que se relacionam em três limites: exaltação do homenageado; descrição
da dor sentida no que poderíamos caracterizar como uma autoexaltação
despretensiosa da locutora/enunciadora e uma súplica emocionada
(empatia) de oração e conforto à família (aos interlocutores possíveis).
O texto sinaliza uma estratégia de persuadir que, no ambiente digital,
aproxima-se de uma mão dupla, em função, principalmente, do aumento
enunciativo gerado pela plataforma digital. L1/E1 não fala somente
aos seus, mas também a um público tão diversificado quanto variado,
como se pode observar no comentário da atriz Lília Cabral (L2/E2 no
bloco de textos13), cujo PDV deriva do PDV de Tatá Werneck, estando em
consonância com ele. Se por um lado temos a homenagem e o pedido
de orações, por outro há o autoenaltecimento no destaque das emoções
sentidas e da benevolência ao sofrimento do outro, mesmo que essa não
seja uma ação visada.

13
Neste trabalho não nos dedicamos a analisar a representação dos PDVs no bloco de textos
constituído pela postagem e seus comentários. Essa discussão ainda está para ser feita.
Suzana Leite CORTEZ; Evandro de Melo CATELÃO

Considerações finais

Nas análises, a maneira como os PDVs são ancorados, por


assunção de responsabilidade ou por imputação, nos discursos passionais,
foi emblemática em ambas as dimensões (pré-digital e digital nativo),
no que se refere a manifestações de emoções e valores sobre a morte
ou quanto aos sentimentos em relação a ela. As OR-args mobilizadas
nos textos foram apresentadas como forma de despedida, entrega ou
no sentido de os locutores/enunciadores incorporarem uma atitude de
benevolência frente ao/aos interlocutor/es. O suporte das OR-args para
a argumentação emocionada fixou-se no lugar da qualidade (valores
concretos), pelo irreparável, insubstituível em ambos os gêneros. Esse
dado sugere que, apesar dos distanciamentos temporal e de dimensão,
o tipo de relação empenhada pelos produtores pouco se alterou.
De uma maneira geral, nos gêneros discursivos que apelam
para o sensível, parece haver uma problemática maior quanto ao uso de
valores, dos fatos e das provas no interior das OR-args, o que também
recai sobre a relação razão-emoção. Trazer ou questionar valores e
interesses foi também uma forma de investir o discurso de emoção e de
133
argumentar empaticamente por meio de emoções. Em ambos os textos,
a origem das emoções descritas partiu da busca por certa empatia do
outro pela dor sentida por L1/E1.
No que diz respeito ao modo como se argumenta, na
negociação persuasiva, evidenciou-se uma forte mobilização empática
de emoções, carregada de valores, para a construção de pontos de vista
nos textos pré-digital e digital nativo. Esse dado coaduna com nossa
hipótese de que, no campo da argumentação, o modo de pensar, agir e
sentir segue nesses textos pelo acordo no sentido de produzir emoções
empaticamente representadas como dimensão argumentativa.

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Argumentação emocionada...

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