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Gnosiologia
Por gnosiologia se deve entender, basicamente, o ramo da teoria do conhecimento
preocupado com a iteração do sujeito cognoscente, de um lado, com um objeto cognoscível,
de outro. O arranjo a priori dando a cada desses “polos” é bastante variável: cada “escola”
filosófica propõe uma distribuição diferente desses pesos.
Pode-se afirmar que IMMANUEL KANT foi o filósofo que mais extremou essa
dialética entre sujeito e objeto. Daí se dizer que ele foi o “filósofo das três críticas”, tendo
buscado os pressupostos da razão (Crítica da Razão Pura, primeiramente editada em 1781),
da vontade (Crítica da Razão Prática, de 1788) e do sentimento (Crítica do Juízo, de 1791)1.
É a KANT que se imputa a operação de uma revolução copernicana na teoria do conhecimento:
1
REALE, Miguel. Introdução à Filosofia. 3.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 26.
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Objeto Sujeito
Obj.
S
Noções iniciais
O Pequeno Curso de Filosofia do Direito iniciará, mesmo, na próxima aula. A ideia
deste 1.º encontro é trazer algumas palavras iniciais, mostrar os objetivos, fixar avisos e
explicar o desenvolvimento do programa a ser seguido.
Em primeiro lugar, vamos estudar os temas capitais da Filosofia do Direito. Os
temas capitais são três:
Primeiro tema capital: vamos tentar responder à pergunta: o que é o Direito?
Esse esforço é fundamental, pois corresponde ao problema do conceito do Direito. Eis o
problema lógico do Direito, objeto de uma parte especial da Filosofia do Direito, mais ligada
à ciência do direito, chamada, justamente, de EPISTEMOLOGIA JURÍDICA ou GNOSIOLOGIA
JURÍDICA. Gnosiologia, como explicado anteriormente, abrange a teoria do
conhecimento. Epistemologia é, por assim dizer, a doutrina da ciência (“episteme”
vem do grego: ἐπιστήμη, i. e., ciência).
Alguns filósofos entendem que epistemologia e gnosiologia são expressões
sinônimas. Há muita divergência sobre isso, mas a linha que vamos seguir, doravante, se
apega àquela corrente que tenta traçar uma diferença. Penso que gnosiologia é sempre geral,
2
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 77.
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LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 3.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 313.
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uma afirmação que não implica na indagação do “porque”. O calor dilata corpos “para que” os
dilata. Os problemas das finalidades escapam da indagação do físico.
Poderia o jurista conservar-se impassível diante das relações sociais? Pode o jurista
deixar de indagar os fins do Direito? Pode apreciar o direito positivo sem procurar saber
para que essa lei foi declarada pelo legislador? A sã consciência dirá que não. O Direito não
é uma ciência descritiva, não é uma ciência que trata apenas de relações quantitativas, mas
também de relações qualitativas, de fins, de valores (axiologia).
Segundo tema capital: o segundo dos três temas capitais da Filosofia do Direito
é o problema do fundamento do Direito, dos fins, das finalidades do Direito. Depois de
estudarmos o conceito do Direito (= objeto da epistemologia jurídica), teremos de estudar
os fundamentos do Direito. É a AXIOLOGIA JURÍDICA (= teoria dos valores jurídicos).
Muitos autores estão essencialmente preocupados com este segundo tema capital
da Filosofia do Direito. Mas não se pode ignorar que há o direito positivo, a legislação de
uma nação, a legislação de outra nação, a legislação internacional e assim por diante. Há o
direito positivo vigente e existente e há o direito positivo que já foi revogado (exemplo: o
Código de Processo Civil de 2015 revogou o Código de Processo Civil de 1973). Há, ainda,
o que se costuma chamar de ordenamento jurídico-positivo, que se desenvolveu com o passar
do tempo, dividindo-se em leis e consagrou uma diversidade de ciências jurídicas.
Por isso, há o terceiro tema capital de nosso Pequeno Curso de Filosofia do Direito.
O que representa o ordenamento? O que é ele para a historiografia? O que é ele diante da
ciência do Direito? Esse tipo de preocupação, lançando exigências universais de justiça
diante do direito positivo, é o cerne dessa terceira frente. É uma parte complementar,
podendo ser designada como FENOMENOLOGIA JURÍDICA.
Até o final do curso, portanto, terão uma visão ampla, em grandes traços, de três
grandes troncos da Filosofia do Direito:
• conceito de Direito → EPISTEMOLOGIA ou GNOSIOLOGIA JURÍDICA;
• fundamento do Direito → AXIOLOGIA JURÍDICA; e
• sentido ideal do Direito → FENOMENOLOGIA JURÍDICA.
Eis, pois, o “sumário” de nosso curso.
Leiam os grandes
Em Filosofia do Direito, não se pode perder tempo com pequenezas. Aliás, se
perdem tempo comigo, entendam que estão aqui apenas numa jornada “mais tranquila”,
prenhe de algo mais didático. Só. Não tenho 30 anos enquanto escrevo este material, de
maneira que não posso equipará-lo ao que foi escrito por grandes autores.
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4
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Existência. 20.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014,
p .37.
5
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 32.
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6
REALE, Miguel. O Direito como Experiência. 2.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 40.
7
ROTHBARD, Murray N. Por que o princípio da não-agressão é o único condizente com a moralidade e com
a ética. Mises Brasil, fev. 2015. Disponível em https://goo.gl/U8yntV. Acesso em 27 mar. 2019.
8
Para uma exposição extremamente didática sobre o PNA, cf. ANCAP.SU. O que é o PNA? Disponível em:
https://goo.gl/teMWkq. Acesso em 27 mar. 2019.
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1944, MIGUEL REALE teceu as seguintes palavras – taquigrafadas por FERNANDO GENTILE9
–, já advertindo seus alunos eventualmente menos entusiasmados com a matéria:
9
Neste material, constam, em algumas páginas, uma observação final: “Taq. Fernando Gentile”. Segundo o
website da Associação dos Antigos Alunos da Universidade de São Paulo, este sujeito é, provavelmente, o Sr.
FERNANDO HERNÂNI GENTILE, justamente da turma n.º 113, daquele ano de 1944. Aparentemente, esta foi
a 4.ª turma de MIGUEL REALE.
10
Aqui, cito o mais raro material de minha biblioteca pessoal: folhetins reunidos em 1944 de todas as aulas
de MIGUEL REALE para a turma de direito da USP que se formaria naquele ano. Os folhetins são, todos eles,
taquigrafados pelo homem mencionado no rodapé anterior: suas falas na sala de aula (REALE, Miguel.
Filosofia do Direito – folhetins do 5.º ano de direito. Taquigrafado por Fernando Gentile. São Paulo: 1944, 1.º
folhetim).
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11
VILLEY, Michel. Filosofia do Direito. Trad. Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes,
2008, p. 7.
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Filosofia fagocita o Direito. Outro ponto de vista, mais entusiasmado, sustenta que a
Filosofia do Direito seria um momento de atividade filosófica geral. A Filosofia é
interseccionada ao Direito.
Parece sustentar essa segunda ótica BENEDETTO CROCE: preocupado com questões
artísticas , postulou a máxima autonomia não só da Filosofia, mas também da História e de
12
outras formas de conhecimento – “la visione crociana vorrebbe riconoscere all’arte la massima
autonomia dalla filosofia, dalla storia e dalle altre forme di conoscenza”, como escreve MARIANNA
ADILARDI13. Com estirpe idealista-hegeliana, BENEDETTO CROCE realmente pareceu
vislumbrar a Filosofia do Direito como “capítulo da Filosofia geral”. Com redução ainda mais
acentuada, porém, tratou o Direito como mero problema da interpretação econômica
(obra: Riduzione delia filosofia dei diritto alia filosofia deli' economia)14.
O que prevalece?
É difícil dar uma resposta segura, mas aqui seguiremos o entendimento de que a
Filosofia do Direito é uma parte autônoma da Filosofia geral (= autonomia da Filosofia do
Direito). É matéria, pois, da Filosofia; não é “só” das enciclopédias jurídicas. Isso porque
seria contraditório alocar a Filosofia do Direito como algo especulativo sem aceitar a
universalidade da Filosofia mesma. E a universalidade da Filosofia do Direito é da Filosofia,
não da dogmática jurídica. Como admitir a especulação e a universalidade da Filosofia do
Direito sem colocá-la como parte da própria Filosofia?!
Ora, o Direito é uma necessidade essencial da humanidade. Trata-se de una
exigência inexorável da vida do homem como ente, como ser social que é. Vivendo em
sociedade, renovam-se os problemas do Direito e surgem indagações filosóficas do justo.
Exemplo magistral dessa constante divagação reside na obra O Caso dos Exploradores de
Cavernas, de LON L. FULLER15, que, se ainda não leram, devem imediatamente se inteirar de
seu conteúdo.
Neste sentido, não se pode afirmar que a ciência jurídica é “precária”, bastando
entender a “vontade do legislador” para fazer dogmática jurídica. Se assim fosse, alguém
alfabetizado seria, automaticamente, um jurista. O legislador pode, muito bem, classificar
mal um instituto jurídico. Legislador não é jurista, “mas o demiurgo do ordenamento
12
Vide CROCE, Benedetto. Estética como Ciência da Expressão e Linguística Geral. Trad. Omayr José de
Moraes Júnior. São Paulo: É Realizações, 2016.
13
ADILARDI, Marianna. Benedetto Croce e la filosofia hegeliana. Tesi di Laurea Specialistica in Teoria della
Letteratura, 2009/2010, p. 74.
14
Cf. KUNZ, Josef L. Sôbre a problemática da filosofia do direito nos meados do século XX. Revista da
Faculdade de Direito de São Paulo, v. 46, 1951, p. 14.
15
Vide nossa resenha: SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. O Caso dos Exploradores de Cavernas, de LON L.
FULLER. Empório do Direito, Florianópolis, dez. 2017. Disponível em: http://encurtador.com.br/dFKU0.
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jurídico, pela feitura das normas legais”. Assim, “as funções definitória e classificatória dos
institutos cabem ao jurista, ao estudioso do Direito, inobstante caiba ao legislador a função
classificatória do fáctico, vale dizer, o transformar determinado fato em relevante para o
Direito, prevendo-o no suporte fáctico das normas jurídicas. Se o estudioso do Direito
tivesse que admitir como correta qualquer classificação jurídica posta pelo legislador, como
produto pronto e acabado, o próprio Direito não seria uma ciência, sendo despicienda a
contribuição kelseniana em separar o direito-norma (linguagem prescritiva) do direito-
ciência (linguagem descritiva), sendo aquele objeto de estudo deste”16.
Foi por isso que teci forte crítica ao mundo de unicórnios rosas sonhado legislador
pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência: ao pressupor que todo e qualquer ser humano é
civilmente capaz, se assumiu como alguém infantilmente amedrontado com a realidade
ôntica das coisas, que simplesmente deveriam sofrer mutações com suas distorções
cognitivas de um anseio de construção “ideal”: “o legislador brinca de ser Deus. Quer Ser
desconhecendo e ignorando os limites do ser. Quer mudar o imutável. Quer se propor a
legislar que, doravante, a gravidade não mais terá aceleração de valor aproximado de
9,80665 m/s; quer legislar que maçãs podem ser laranjas; quer impor, na lei, que uma pessoa
ontológica e absolutamente incapaz deve ser, em regra, capaz”17.
Assim, é seguro dizer que o Direito é objeto da ciência e será o objeto de
especialíssima indagação do cientista do Direito, ainda que grandes sejam as transformações
verificadas nos ordenamentos jurídicos positivos. Sendo ele uma necessidade universal, é ele um
objeto autônomo da cogitação filosófica e, portanto, especulativa.
O cientista do direito é um dogmata. Ainda que não ignore aspectos da realidade,
buscará construir a ciência do direito conforme as leis postas, admitindo-se, aqui e ali,
variações teóricas sobre as fontes jurídicas. O que, para a dogmática, é “certeza”; transmuta-
se, diante da Filosofia do Direito, como “problema”.
16
COSTA, Adriano Soares da. Instituições de Direito Eleitoral – teoria da inelegibilidade & direito processual eleitoral.
10.ª ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2016, p. 355.
17
SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. O Direito Vivo da Interdição. Empório do Direito, Florianópolis, dez. 2018.
Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-62-o-direito-vivo-da-interdicao.
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ganha roupagem quase que utilitária: todos se lembram de sua importância. O que
legitimaria questionar e afrontar uma legislação nazista? Poderíamos defender um “devido
processo legal” que levasse uma família judia para a câmera de gás? Se simplesmente
revogássemos o art. 121 do Código Penal (crime de homicídio) e, também, fosse extirpada
a Constituição da República, qual seria o argumento coercitivo que impediria alguém de
retirar, injustamente, a vida de seu semelhante?
18
MUNDIM, Roberto Patrus. A Lógica Formal – princípios elementares. Revista Economia & Gestão, v. 2, n.
3, jan./jun. 2002, p. 136.
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tendo em vista a conduta humana. O jurista não estuda apenas a lei no seu significado lógico,
mas também no seu valor de imperativo, na sua expressão de comando, de dever. O Direito
é, pois, ciência prática. A Filosofia do Direito, naturalmente, acaba sendo uma parte da
Filosofia prática que tem por objeto o estudo crítico do Direito.
Um culturalista como MIGUEL REALE propõe um criticismo
ontognoseológico: “pode-se dizer que, em íntima relação dialética com sujeito
cognoscente (que exerce um papel ativo nesse processo), existem diferentes tipos de objetos
cognoscíveis, quais sejam: objetos naturais (físico-químicos e psíquicos), objetos ideais,
valores e objetos culturais. Originam-se da dicotomia entre ser (objetos naturais e ideais) e
dever ser (valores), e do ser enquanto deve ser (objetos culturais)”19.
Conservadores, geralmente, são mais apegados à Filosofia especulativa. OLAVO DE
CARVALHO, só para exemplificar, propõe uma filosofia desapegada de qualquer prescrição
deôntica. Numa série de aulas intitulada “Ser e Conhecer”, ele afirmou que a ideia por trás
daquelas lições “é a da total redução da gnoseologia à ontologia”, eliminando-se o
“preliminar crítico, a crença de que primeiro é necessário criar uma teoria do conhecimento
para depois, com base nela, chegar, se possível, a uma ontologia”20. Os escolásticos, a partir
de ARISTÓTELES, defenderam que o objeto tem, em si, multiplicidade de formas
simultâneas.
Uma galinha, por exemplo, tem forma espacial de galinha e, num outro plano, tem
a forma visível de galinha. A forma visível não é a mesma coisa que a forma espacial, embora
estejam aproximadas. A galinha também emite sons de galinha. E, quando ingerida, tem o
gosto de frango. Aí temos várias formas, cuja síntese inseparável constitui o objeto. Logo, a
percepção consiste, apenas, na correta leitura dessas formas variadas.
Eu sei que o exemplo da galinha é pitoresco, mas o que quero mostrar aqui é que,
ao final de tudo, a soma harmônica dos sentidos conduz à ideia de que tal animal é a galinha:
ela tem a forma inteligível de galinha. No meio de todo este processo, há a inteligência.
Depois dela há várias outras capacidades “intelectivas” (apreender as várias formas,
articuladamente, num mesmo objeto). Eis o desdobramento das faculdades nos vários
sentidos: visão, tato, olfato etc. O primeiro nível da síntese de uma Filosofia especulativa é,
simplesmente, a reunião de todos esses sentidos num objeto único – sensus communis (fonte unitária
dos vários sinais recebidos). Assim, ARISTÓTELES e os escolásticos viam o processo de
19
DELFINO, Lúcio; SILVEIRA, Marcelo Pichioli da; CASTRO E SILVA, Jhonatan de. Proibição a livro de Adolf
Hitler ignora solenemente dispositivos constitucionais. Consultor Jurídico, São Paulo, fev. 2016. Disponível
em: http://twixar.me/73D1.
20
CARVALHO, Olavo de. Ser e Conhecer. Notas de aula – transcrição de Alexandre Bastos. UniverCidade, Rio
de Janeiro, set. 2000.
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21
Cf. CARVALHO, Olavo de. Teorias da Percepção na Escolástica e na Filosofia Moderna. Disponível em:
http://encurtador.com.br/uwDIS.
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22
REALE, Miguel. Pedro Lessa e a Filosofia positiva em São Paulo. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo,
v. 54, n. 2, 1959, p. 53.
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23
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo Storniolo.
São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 3.
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24
Para aprofundamento, cf. SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Miguel Reale e o direito processual. Revista
Brasileira de Direito Processual, Belo Horizonte, n. 97, jan./mar 2017; e SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Ensaio
filosófico-penal: uma aproximação da Teoria Tridimensional do Direito, de Miguel Reale, com o Finalismo
Penal de Hans Welzel. Revista Jus Navigandi, Teresina, 2011. Disponível em: https://goo.gl/ssrGz2.
25
COSTA, Adriano Soares da. A descritividade da ciência do direito: diálogo com Humberto Bergmann Ávila.
Disponível em: <https://goo.gl/OaW0Rq>. Acesso em 21 dez. 2015.
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o significado que lhes atribuem os léxicos, mas são lidos e entendidos segundo a
compreensão comum que se lhes atribui em determinado tempo e lugar, que podem ser
outros quando da aplicação da lei; à outra, porquanto o mesmo vocábulo encerra mais de
uma acepção, não se podendo, demais disso, elaborar noções gerais comuns a vários sistemas
(a hipoteca, por exemplo, nos Direitos inglês, americano e mexicano)” 26.
Neste sentido, quando estudarem qualquer capítulo do Código Civil, por exemplo
o relativo ao contrato de compra e venda, examinem os textos do Código Civil; a sucessão
de dispositivos; busquem, nisso, um nexo lógico, i. e., a razão de ser dos preceitos.
Busquem o nexo lógico e uma explicação unitária desses imperativos. Quando assim
operarem, conseguirão subir do texto da lei para o instituto jurídico.
Para esmiuçar o exemplo da compra e venda segundo o panorama da teoria do fato
jurídico: trata-se de fato jurídico lato sensu; mais especificamente, é um ato jurídico lato
sensu; e, mais precisamente ainda, um negócio jurídico. Situar-se bem na matéria é
fundamental para apreender as questões dogmáticas.
O trabalho do dogmata é, assim, um trabalho que implica a ida do texto legal até
o instituto jurídico, visando compreender unitária e logicamente os preceitos. Quem aplica
o texto sem subir ao instituto é um rábula. O estudioso do Direito é quem, ao interpretar
um texto legal, o faz tendo diante de si a visão intelectual do instituto. O estudo dogmático
realiza: a) a interpretação; b) a construção; e c) a sistematização (= unidades mais altas que
abrangem vários institutos em um sistema).
Pode-se afirmar, então, que o trabalho da jurisprudência é um labor, acima de
tudo, dogmático. Sim: porque o jurista aceita a norma como dado o direito positivo. Ele
não impugna a lei positiva. Juristas não podem investir quixotescamente contra o texto da
lei, sob pena de criarem teses contra legem. Um jurista deve, apenas, interpretar a força lógica
do preceito, comparando-o com os demais preceitos da legislação vigente. Daí em diante,
deverá ordenar, construir e sistematizar a ciência jurídica. O Direito, nesta visão, é uma espécie
de “arquitetura das ciências sociais”, porque ordena as formas de conduta (ação e omissão),
sempre tendo em função um fim (justiça).
A lei obedece, sempre, a um determinado processo de elaboração e, ao mesmo
tempo, obedece a determinada forma. A maneira de produzir o Direito e a forma pela qual
o Direito se produz, tudo isto envolve problema do Direito. O político, no momento em
que legisla, tem de tomar alguns cuidados: a obra de legislar não é uma obra puramente jurídica,
mas em hipótese alguma pode deixar de ser também jurídica. Legislar é um ato político e complexo,
abrangendo aspectos jurídicos.
26
GOMES, Luiz Roldão de Freitas. Aspectos atuais da aplicação da norma jurídica. Revista da EMERJ, v. 4, n.
13, 2001, p. 29.
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Neste complexo ato de formatação dos preceitos legais, corporificando o ser nos
comandos das formas imperativas, o legislador já tem diante de si uma visão integral do
instituto jurídico. O legislador, de alguma forma, parte da doutrina para o preceito; o
jurista, depois, vai do preceito para a doutrina. Não são trabalhos separados; são trabalhos
que se completam (pesquisas complementares).
No âmbito penal, p. ex., EUGENIO RAÚL ZAFFARONI e JOSÉ HENRIQUE PIERANGELI
demonstraram muito bem este raciocínio. O caminho metodológico do juiz é diferente do
caminho percorrido pelo legislador: “quando o legislador encontra-se diante de um ente e
tem interesse em tutelá-lo, é porque o valora. Sua valoração do ente traduz-se em uma norma,
que eleva o ente à categoria de bem jurídico. Quando quer dar uma tutela penal a esse bem
jurídico, com base na norma elabora um tipo penal e o bem jurídico passa a ser penalmente
tutelado”, de maneira que “o legislador vai do ente à norma e desta ao tipo. Nós, ao interpretarmos
a lei penal a fim de determinar o seu alcance, devemos seguir o caminho inverso: da lei (tipo
legal: “Matar alguém ... pena”) à norma (“não matarás”) e através da norma conhecemos o
ente que afinal será bem jurídico (a vida humana)”27.
A ideia supra é demonstrada na seguinte projeção:
27
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – parte geral. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 455.
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28
KANT, Immanuel. A Metafísica dos Costumes. São Paulo: Edições Profissionais, 2003, p. 76.
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quid pro quo, incapaz de diferenciar o jurídico do ético; a coerção estatal e jurídica da coerção
religiosa e moral; o jurídico do econômico etc. etc.
29
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 313-314.
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Alguns exemplos:
• o tributarista brasileiro, ao analisar as taxas, os impostos, as contribuições de
melhoria, os empréstimos compulsórios e as contribuições especiais, assim o
faz dentro do contexto da Ciência do Direito Positivo. O nível acima – Dogmática
Jurídica – vislumbra a categoria do tributo, sendo correto pensar numa teoria
geral do tributo;
• o civilista brasileiro, ao analisar uma obrigação propter rem e uma obrigação de
dar, assim o faz dentro do contexto da Ciência do Direito Positivo. O nível acima
– Dogmática Jurídica – seria a teoria geral dos contratos;
• o penalista brasileiro, ao analisar os crimes contra a vida (homicídio e
infanticídio, p. ex.), assim o faz dentro do contexto da Ciência do Direito Positivo.
O nível acima – Dogmática Jurídica – é a categoria do delito, daí derivando uma
verdadeira teoria geral do delito (geralmente analítica, decompondo o todo
criminoso em tipicidade, ilicitude e culpabilidade).
Assim, quando a dogmática penal, e. g., se propõe a estudar o delito, ela traz uma
teoria geral do delito sob o prisma da ciência jurídica. Quando o administrativista se propõe
a estudar o ato administrativo, ele traz uma teoria geral do fato jurídico-administrativo sob
o prisma da ciência jurídica. Entre nós, portanto, uma teoria geral não passa de
uma busca por um nível de maior abstração do que se costuma chamar de
“ciência do direito”. Enfim: como diz GUILHERME RECENA COSTA, “a elaboração de uma
‘teoria geral’ é o resultado de um exercício intelectual de abstração”, sendo que “por meio
desse esforço metodológico são identificadas categorias gerais, comuns a uma série de
elementos concretos, no intuito de oferecer uma visão panorâmica e uma explicação
coerente de determinado objeto de estudo”30. Logo, a teoria geral será, sempre, um nível
maior de abstração da Ciência do Direito: a lição transcrita envolvia a teoria geral do
processo; mas cabe lembrar, só para ilustrar, a teoria geral do delito (que tem como conceito
teórico-geral a conduta); a teoria geral da pena (que tem como conceito teórico-geral a
sanção); a teoria geral do direito privado (que tem como conceito teórico-geral, e. g., o
contrato) etc.
O que ADOLF MERKEL, BINDING e NIKOLAY MIKHAILOVICH KORKUNOV (sem
prejuízo de outros nomes) pretenderam foi alcançar os princípios gerais do Direito sem sair
do campo da Ciência do Direito Positivo, sem ingresso nas indagações de ordem filosófica.
Pensava-se que a conclusão dos estudos particulares possibilitaria o alcance dos princípios
30
COSTA, Guilherme Recena. Livre convencimento e standards de prova. In: ZUFELATO, Camilo;
YARSHELL, Flávio Luiz (Org.). 40 anos da teoria geral do processo no Brasil. São Paulo: Malheiros, 2013. p.
356.
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gerais, sem uso de uma Filosofia propriamente dita, num recorte estritamente científico-
jurídico-positivo.
A objeção que pode ser lançada contra a tentativa relatada acima pode ser buscada
nas primeiras aulas de nosso Pequeno Curso de Filosofia do Direito: o que tentamos, aqui, é
justamente buscar um conceito universal de Direito, válido para todos os tempos e para
todos os lugares.
O que quero, aqui, é um conceito universal de Direito. Poderíamos retirar de fatos
empíricos este conceito universal? Ora, o conceito de Direito transcende os limites da
realização do Direito como fato histórico. A Ciência do Direito Positivo fornece soluções
particulares, enquanto o conceito do Direito deverá ser sempre um conceito universal. O jurista,
assim, jamais poderá de se preocupar com um conceito universal de Direito, partindo de
manifestações contingentes que a vida jurídica apresenta através dos tempos.
Por isso frisei, mais de duas vezes, a diferença de atitude do jurista propriamente
dito e do filósofo do Direito. Há uma inegável diferença de espírito. O jurista pode, sim, buscar
um nível maior de abstração da teoria do Direito (teoria geral do Direito). Mas nível ainda
maior de abstração, mesmo, só com a Filosofia. A teoria geral do Direito tem o limite
imanente do direito positivo, residindo dentro do âmbito da positividade. A Filosofia do
Direito é eminentemente crítica e busca uma relação universal.
31
REALE, Miguel. Direito e Teoria do Estado. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 48, 1953.
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entidade autônoma, como pessoa jurídica de direito público. Mas, apenas, governantes, ou
seja, homens que exercem o poder e impõem sua vontade aos governados, pela força. O
Estado são os homens que governam” 34. Enfim: “o Estado não é, pensa DUGUIT, um ente
soberano; é apenas um conjunto de serviços públicos” 35. Há, também, aqueles que
vislumbram o Estado como pura sociedade civil em geral. E é possível registrar notas como
a de ANTÔNIO DE SAMPAIO DÓRIA, segundo o qual o Estado é “a organização da soberania”,
sendo grave o problema de definir “até onde vae [sic] o poder do estado sobre os indivíduos,
ou onde cessa a liberdade dos indivíduos em face do estado” 36.
Ainda que a última definição dada seja criticada por alguns autores, dela podemos
avançar para pontos de vista distintos:
• o substractum social – o embasamento social do Estado;
• a forma jurídica da organização estatal; e
• os meios ou processos técnicos de alcançar organização.
Cada uma dessas frentes tem objetos peculiares. Daí se falar em Teoria do Estado
stricto sensu para o estudo da finalidade do Estado, bem como de seu meio de realização; em
Teoria Social ou Sociológica do Estado para lidar com o embasamento social da atividade
estatal; e, finalmente, em Teoria Jurídica do Estado (muito próxima do Direito
Administrativo) para estudar o Estado segundo o prisma do ordenamento jurídico em si
considerado (fatos jurídicos administrativos, fatos jurídicos políticos, processo legislativo,
organização jurídico-orgânica etc.).
Agora é mais fácil notar que a Teoria Geral do Estado não é um mero amontoado
de regras e de princípios particulares. Trata-se, isto sim, de uma ciência própria, autônoma,
claramente definida. A Teoria Sociológica do Estado se preocupará com a origem do Estado,
com as formas típicas que o Estado tem assumido através do tempo etc. Evidentemente, isso
abre margem para colocá-lo em xeque. ATALIBA NOGUEIRA, p. ex., escreveu: “se várias
vezes em sua história pareceu não despótico, deve-se a circunstâncias fortuitas, como o
estarem exercendo o poder pessoas tolerantes, de índole bondosa, de formação
verdadeiramente cristã. Na constância da sua história, não lhe valeu para amainar o
totalitarismo nem o cristianismo nem a fórmula tão maneirosa da igreja unida ao estado.
Quantas lágrimas ela acarretou à igreja e quanto falseamento da religião”37.
34
COSTA, Moacir Lobo de. O Direito Público Subjetivo e a doutrina de Duguit. Revista da Faculdade de Direito
de São Paulo, v. 47, 1952, p. 496.
35
WALD, Arnoldo. Os serviços públicos no Estado moderno. Revista de Informação Legislativa. Brasília, ano
23, n. 89, jan./mar. 1986, p. 199.
36
DORIA, Antônio de Sampaio. Fins do Estado. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 32, n. 2, 1936,
p. 243.
37
NOGUEIRA, Ataliba. Perecimento do Estado. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 66, 1971, p.
26.
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38
Cf. LUZ, Nelson Ferreira da. Soberania e Direito Internacional. Tese de Concurso à Docência Livre da Cadeira
de Direito Internacional Público da Faculdade de Direito da Universidade do Paraná, 1952.
39
JELLINEK, Georg. Teoría General del Estado. Trad. Fernando de los Rios. México: FCE, 2004, p. 55.
40
CARVALHO, Olavo de. O poder anônimo. Diário do Comércio, jun. 2012.
41
CASTRO E SILVA, Jhonatan. Direito: linguagem, poder simbólico e interpretação. Revista Jus Navigandi,
Teresina, mai. 2012. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/21809.
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42
REALE, Miguel. Direito e Teoria do Estado. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 48, 1953, p. 93-
94.
43
CARNIO, Henrique Garbellini. O método científico na sociologia de Pontes de Miranda. Revista dos
Tribunais, São Paulo, v. 944, jun. 2014, p. 233.
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44
CICERO, Marcus Tullius. The Speech for Aulus Licinius Archias, the Poet. Disponível em:
http://twixar.me/s601.
45
VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. A sociologia do direito: o contraste entre a obra de Émile Durkheim e a de
Niklas Luhmann. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, 2010, v. 105, p. 575.
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deficiente e aplicando a norma concreta e justa” 46. EUSEBIO DE QUEIROZ LIMA, numa
primorosa obra, escreveu o seguinte:
46
PEDROSO, Antonio Carlos de Campos. Aplicação prudencial dos esquemas normativos. Revista da Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo, v. 93, 1998, p. 303.
47
LIMA, Eusebio de Queiroz. Principios de Sociologia Juridica. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos,
1933, p. 452-453.
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Ainda que sofra críticas, é razoável admitir que a corrente sociológica enriqueceu
a tarefa hermenêutica, ficando clara a insuficiência da interpretação exegética do Direito.
Por outro lado, é bom avisar que ir muito além com esse discurso pode legitimar perigoso
flerte com arbitrariedades. Há um de romance nessa linha pensamento. Tanto é assim que o
romance já passou. O Direito pressupõe balizas de forma. A forma é um elemento de
segurança e de garantia.
Na esteira da preocupação do que é o Direito, a Sociologia acaba incorrendo no
mesmo problema do Direito Comparado (falamos disso no 7.º encontro).
Objetos de estudo
Na linha jusfilosófica aqui trilhada, é necessário traçar uma distinção entre ser, dever
ser, mundo do ser, mundo do dever ser e valor. Essa diferenciação decorre do vislumbrar de
objetos segundo o criticismo ontognosiológico de MIGUEL REALE: os objetos de estudo do
sujeito cognoscente podem ser:
• objetos naturais (físico-químicos e psíquicos);
• objetos ideais;
• valores; e
• objetos culturais.
Tais objetos originam-se, justamente, do ser (objetos naturais e ideais), do dever
ser (valores) e do ser enquanto dever ser (objetos culturais).
A grande nota culturalista de MIGUEL REALE está, justamente, na sua intenção de
demonstrar que os valores não são expressões próprias do mundo do ser, mas, isto sim, do
dever ser. Essa sua concepção esteve já em sua 1ª edição de sua Filosofia do Direito (1953),
onde já se nota a defesa da tese segundo a qual os valores não se confundem com os objetos
ideias em virtude de várias “notas distintivas”. Essa seria, segundo o próprio filósofo
brasileiro, a sua maior divergência com a filosofia de MAX SCHELER e NICOLAI HARTMANN,
para os quais os valores eram “objetos ideais”, numa compreensão evidentemente idealista,
“quase platônica, da cultura, sem captá-la na plenitude de sua manifestação vital e
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existencial, o que viria a ser revelado, sob ângulos distintos, por pensadores como Ortega y
Gasset e Martin Heidegger”48.
Mais didaticamente, REALE desenhou o seguinte esquema49:
Na verdade, aí temos mera tábua taxonômica dos objetos da realidade. Como tais,
podem ser estudados, pois são dados da experiência.
Objetos naturais e físicos são aqueles que existem no espaço e no tempo. Estão
sujeitos, portanto, à espacialidade e à temporalidade. Eles têm concretude. É tão simples
quanto parece.
Objetos naturais e psíquicos existem como objeto suscetível de análise pelo sujeito
cognoscente. Não se sujeitam à ordem espacial, embora estejam presos à ordem temporal.
Os penalistas lidam, bastante, com esse tipo de objeto: estudam, p. ex., a paixão e o motivo
torpe, além do dolo.
Os objetos ideias são as ideias. Estão sujeitos à demonstração e à consequência. Não
existem no espaço, nem no tempo. Um quadrado tem, sempre, ângulos de 90.º. As formas
geométricas são objetos ideais. Estão no mundo do ser (vide quadro acima), ocupando, mais
precisamente, a divisória do ser ideal.
A realidade, porém, não se esgota no plano do ser. Além dos objetos naturais e dos
objetos ideais, há ainda o campo do dever ser, claramente axiológico. E o Direito é objeto
que é enquanto valor (é, portanto, produto da cultura).
48
REALE, Miguel. Cinco temas do culturalismo. 1.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 16-17.
49
REALE, Miguel. Paradigmas da cultura contemporânea. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 15.
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“Os indivíduos (sujeitos cognoscentes) podem ter diferentes aproximações valorativas sobre os
objetos, sejam eles naturais — como uma pedra (rubi ou calcário), considerada bela ou feia
(valores estéticos), bem como útil ou inútil (valores econômicos) — ou mesmo culturais”50.
Uma árvore enquanto árvore é objeto próprio da biologia, por exemplo (reparem
o verbo: é vem de ser). Nada impede que ela, enquanto objeto natural físico, seja apreciada
valorativamente: ser enquanto dever ser. A partir dessa apreciação, temos um dado de cultura.
Neste aspecto, o ser da árvore qualificada como bela tem um objeto específico, guiado pelo
valer.
Com tais prolegômenos, podemos avançar para o estudo do ser e do dever ser.
Teoria do valor
O que seria o valor? Fora da esfera da Filosofia, pode-se afirmar que o valor, em
si, é objeto epistêmico da Economia. Aqui, nossa divagação sobre os valores é bastante
diferente. Há várias correntes filosóficas divulgando teorias do valor.
A orientação de PLATÃO aduz o valor como existência em si. O valor seria, assim,
puramente ideal, tendo matiz transcendente. Mas há quem divirja, oferecendo ao valor
projeção meramente sentimental do homem. Vejam, aí, distribuição de cargas a priori, tantas
vezes mencionadas neste Pequeno Curso. Dentro desse arranjo, costuma-se afirmar que há
duas teorias contrapostas sobre o valor: 1.ª) a teoria objetivista, que atribui ao valor uma
experiência em si independente dos homens e das coisas (a beleza existe objetivamente) –
vide, p. ex., a posição de ROGER SCRUTON sobre a arte51; e 2.ª) a teoria subjetivista,
segundo a qual os valores não existem, nem em si, nem nas coisas, decorrendo
exclusivamente do homem (a beleza é projeção dos sentimentos humanos). Mais
recentemente, houve grande esforço filosófico no sentido de defender outra vertente: 3.ª)
a teoria da objetividade especial – os valores não são objetivos em si, nem subjetivos,
mas são objetivos no sentido especial de que existem nas coisas (valores, p. ex., da verdade,
do que é melhor, do belo, do bem – tudo isso existe nas coisas valiosas).
No Direito, essa perspectiva repercute em temas caríssimos: dignidade da pessoa
humana, e. g. Se adotássemos, pura e simplesmente, a teoria subjetivista do valor (dando
todo o a priori para o sujeito cognoscente), como explicaríamos o valor em si do ser humano?
Em IMMANUEL KANT, encontramos uma das mais célebres fundamentações de um
50
DELFINO, Lúcio; SILVEIRA, Marcelo Pichioli da; CASTRO E SILVA, Jhonatan de. Proibição a livro de Adolf
Hitler ignora solenemente dispositivos constitucionais. Consultor Jurídico, São Paulo, fev. 2016. Disponível
em: http://twixar.me/73D1.
51
SCRUTON, Roger. Beleza. Trad. Carlos Marques. Lisboa: Guerra & Paz, 2009, principalmente p. 16, 26,
33, 45, 46, 48, 49, 50, 51, 52, 57, 58, 59, 65, 124, 140, 141, 142 e 155.
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comportamento ético: “o homem não é uma coisa; não é portanto um objecto que possa ser
utilizado simplesmente como um meio, mas pelo contrário deve ser considerado sempre em
todas as suas acções como fim em si mesmo. Portanto não posso dispor do homem na minha
pessoa para o mutilar, o degradar ou o matar”52. N’outra passagem (em outra edição e outra
tradução), lê-se o seguinte: “o homem, e duma maneira geral, todo o ser racional, existe
como fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade”.
De maneira que “ele tem de ser considerado simultaneamente como fim”. KANT pede ao leitor,
então, para agir de tal maneira que use a humanidade, tanto na pessoa do leitor como na
pessoa de qualquer outro, “sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”53.
Num documento reservado a mim, de autoria de JHONATAN DE CASTRO E SILVA, sustenta-
se, segundo tais bases kantianas, que “dignidade é a característica de sermos respeitados
como um fim em si mesmo, algo que está acima de todo preço e que, portanto ‘não permite
equivalente’; algo que não tem valor relativo, mas um valor íntimo” (citando a mesma versão
da Metafísica dos Costumes [1960], p. 77).
Ora, coisas têm preços. O ser humano não poderia ter preço. Ele tem valor
inestimável, e este valor é, justamente, a dignidade da pessoa humana. Isso não está na senda
egoística do sujeito cognoscente: está na pessoa em si, impondo-se contra todos. As coisas são
meios; as pessoas são fins. A escravidão, por coisificar o homem, viola sua dignidade (ao
aniquilar suas finalidades). A nulificação da finalidade humana é, precisamente, a violação da
dignidade da pessoa humana. Por isso, trata-se de cláusula constitucional a ser invocada
muito raramente (art. 1.º, inciso III, da Constituição da República), sob pena de banalização.
É claro o valor em si da pessoa humana não decorre só da modernidade kantiana.
A revelação judaico-cristã concebe o homem à imagem e semelhança de Deus (cf. GÊNESIS,
26). Uma definição clássica – frequentemente citada54 – vem do tratado Contra Euthychen et
Nestorium, de BOÉCIO, para o qual a palavra pessoa pode ser definida: “naturae rationabilis
indiuidua substantia”55 (tradução usual: “substância individual de natureza racional”). Trata-
se de definição claramente oxigenada de aristotelismo56. Mais tarde, SANTO TOMÁS DE
AQUINO reservou o seguinte verbete para a Suma Teológica: “persona significat id quod est
perfectissimum in tota natura, scilicet subsistens in rationali natura”, ou seja, “pessoa significa o
52
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70,
2007, p. 70.
53
KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003, p. 25.
54
Para aprofundamento, ver FABRIS, Adriano. Die Person als kommunkationsfähiges Wesen zwischen Natur und
Konsens. In: PHAINOMENA. Humanism and Culture, nov. 2006, p. 42-49.
55
BOÉCIO. Escritos (OPUSCULA SACRA). Trad. Juvenal Savian Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p.
282.
56
Cf. PETAGINE, Antonio. Ripensare Boezio. Il ruolo della nozione di natura all’interno della definizione di persona.
Supplement to Acta Philosophica, v. 3, 2017, p 27.
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que há de mais perfeito de toda a natureza, i. é, o que subsiste em a natureza racional” 57.
Escreve TOMÁS MELENDO o seguinte:
Moral x Direito
Moral e Direito não se confundem. A conclusão pode parecer óbvia. Mas o que,
de fato, antecede esse raciocínio? Qual é a efetiva diferença entre a Moral e o Direito? Só a
coerção estatal legitima o Direito? A moral pode exercer coerção? Esse tipo de problema é
prova incontestável de que a Filosofia do Direito acaba sendo uma Filosofia prática (vide
classificações exibidas anteriormente). Nos países islâmicos, o Alcorão é fonte de
jurisprudência – é o direito islâmico (shariah)59-60. As “ciências da legislação”, neste contexto
muçulmano, “compreendem: 1) Ciência das fontes: a) Ciências do Corão (Ciência da leitura
do Corão e Ciências dos comentários do Corão); b) Ciência da conduta do Profeta; II)
Ciências deduzidas das fontes: a) Ciência das crenças e das convicções religiosas-Ciência da
unidade de Deus e Ciência dos atributos de Deus; b) Ciências das legislações (fiqh): aa)
teoria do direito; bb) aplicações do direito” 61 . Ao longo dos séculos, a religião teve papel
coercitivo mais ou menos acentuado conforme inúmeras circunstâncias. Isso abrange o
direito talmúdico do judaísmo, a ponto de “as implicações da Constituição interna do Estado
57
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, v.1 (Ia pars) – q. 29, a. 3. Trad. Alexandre Correia. Campinas:
Ecclesiae, 2016, p. 228.
58
MELENDO, Tomás. Metafisica del concreto. Roma: Editora Leonardo da Vinci, 2005, p. 189.
59
Para aprofundar, ver OLIVIERO, Maurizio. I Paesi Del Mondo Islamico. In: CARROZZA, Paolo; DI GIOVINE,
Alfonso; FERRARI, Giuseppe F. (orgs.). Diritto Costituzionale Comparato, v. 1. Roma: Editori Laterza, 2014,
p. 597-627.
60
Para início de compreensão da complexidade do tema, cf. CAMPOS NETO, Antonio Augusto Machado de.
A Châr'ia muçulmana. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 101, 2006.
61
LEME, Lino de Morais. O Direito muçulmano. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 55, 1960, p.
81.
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[de Israel] e de suas Relações Exteriores até hoje não [...] [serem] claramente definidas por
serem demasiadamente complexas”62. Enfim: “Direito e Moral não são confundidos, andam
em harmonia, tocam-se. O segundo, inevitavelmente influencia o primeiro, suas diferenças
foram demonstradas por meio das grandes teorias de eméritos juristas e filósofos. A
Religião, por sua vez, pode da mesma forma que prepondera sobre a moral de um povo,
exercer grande influência sobre o Direito, ditando condutas essenciais para estruturação de
um ordenamento jurídico válido em determinado território”63.
Só isso já mostra o quão infantil pode ser o anarcocapitalismo: invoca um
“jusnaturalismo” despregado de qualquer transcendência. Não passa, neste ponto, de uma
imanência modernosa.
A arte, a religião e as condições sociopolíticas de um povo são elementos centrais da
definição da filosofia de um povo. Podemos ilustrar isso com um exemplo do século XX: o
nazismo. O nazismo soube construir uma semiótica (uma arte peculiar64) – basta pensar na
suástica e no peso de sua significação65 e em como os nazistas dominaram o território da
linguagem66 muito antes de A. HITLER. Quanto à religião, ERIC VOEGELIN explora bem o
desejo religioso hitleriano (por ele chamado de “um monismo relativamente primitivo”), já
que “Hitler planejou um grande observatório e planetário como o centro do desenho
arquitetônico na reconstrução de Linz, que ele considerava seu lar” 67 (peso do romantismo
e do darwinismo – nova “religião” guiada pelo iluminismo, com seu pensamento
“progressista” e com a visão racista de “desenvolvido” e “selvagem”). Finalmente, no aspecto
das condições sociopolíticas do povo, não custa lembrar qual era a situação dos alemães
depois da 1.ª Guerra Mundial: derrotados, colocados de joelhos diante do mundo e,
principalmente, economicamente instáveis (com tributação e inflação galopante68).
62
CAMPOS NETO, Antonio Augusto Machado de. O judaísmo. O direito talmúdico. Revista da Faculdade de
Direito de São Paulo, v. 103, 2008, p. 62
63
TAKAYANAGI, Fabiano Yuji. O direito, a moral e a religião. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v.
103, 2008, p. 989.
64
Sobre o interesse de A. HITLER nas artes, ver o documentário Archietektur des Untergangs [“Arquitetura da
Destruição”], de PETER COHEN.
65
A respeito, ouvir podcast “Senso Incomum”, de FLÁVIO MORGENSTERN, intitulado “O nazismo era ‘de
direita’?” (https://goo.gl/dmXZ8T), notadamente sua análise da Kabbalah hermética (comparada com a
Kabbalah judaica). O S das SS (tropas de assalto do Terceiro Reich, as Schutzstaffel) é reto [ϟ ϟ], imitando uma
runa nórdica. Como se nota, os três elementos identificadores acabam se interseccionando.
66
Cf. VOEGELIN, Eric. Reflexões autobiográficas. Tradução Maria Inês de Carvalho. São Paulo: É Realizações,
2008. Capítulo 5.
67
VOEGELIN, Eric. Hitler e os Alemães. Tradução Elpídio Mário Dantas Fonseca. São Paulo: É Realizações,
2007, p. 167-168.
68
“Da bei Kriegsbeginn unmittelbar große Geldsummen benötigt wurden – allein die erste Mobilmachungswoche kostete
ca. 750 Millionen Reichsmark – stand dem Staat anfangs nur die Notenpresse zur Verfügung. Um die aus dem vermehrten
Geldumlauf resultierende Inflationsgefahr in den Griff zu bekommen, gab es theoretisch zwei Möglichkeiten: die Erhebung
von Steuern und die Aufnahme von Krediten. Anders als England, das erhebliche Teile der Kriegskosten über Steuern auf
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Em síntese: a arte (1), a religião (2) e as condições sociopolíticas (3) definem a filosofia
de um povo e, com os gregos, isto não seria diferente:
Feitas as breves considerações acima, é possível concluir que o Direito tem de ser
filosoficamente apreciado no eixo dos valores. O aspecto jurídico de nossas vidas encontra
gênese no instante em que o homem estabelece relações. Daí emana o importante conceito
de bilateridade atributiva. A bilateridade é reconhecida por MIGUEL REALE “como uma
qualidade da ação humana distinguindo dois prismas no problema da alteridade, a instância
valorativa que reside na pessoa do agente e a reciprocidade decorrente do envolvimento do
alter e do ego num nexo comum; mas, entende que é só no Direito que o espírito se realiza
em sua plenitude como intersubjetividade. Todavia a nota peculiar ao mundo do Direito é
a atributividade. E é o conceito de bilateridade atributiva que põe em realce os dois
Kriegsgewinne aufbrachte, setzte das Deutsche Reich fast ausschließlich auf Kredite und Anleihen. Eine Kriegssteuer auf
Unternehmensgewinne wurde erst im Frühjahr 1917 eingeführt, und sie wurde von den Unternehmern überwiegend in die
weitgehend unkontrollierte Preisgestaltung integriert, so dass die Öffentliche Hand selbst dafür aufkommen musste” –
“Desde o início da guerra, imediatamente grandes somas de dinheiro foram necessárias – só a primeira
semana de mobilização custou aproximadamente 750 milhões de Reichmarks [moeda oficial da Alemanha
entre 1924 e 1948] –, tanto que as máquinas de impressão [Notenpresse], inicialmente, estiveram à disposição
apenas do Estado. Para o controle da inflação que decorreu da grande circulação de dinheiro, o governo teria
duas opções: cobrar mais impostos e/ou retirar os empréstimos [die Erhebung von Steuern und die Aufnahme von
Krediten]. Diferentemente da Inglaterra, que optou por quitar os custos de guerra com impostos, o Estado
alemão acabou dependendo quase que exclusivamente de empréstimos e títulos. Foi apenas na primavera de
1917 que um imposto de guerra (que recaía sobre os lucros das empresas) foi introduzido no sistema
tributário alemão”, mas no fim das contas o pagamento desses custos foi feito pela iniciativa pública
[Öffentliche Hand] (KRUSE, Von Wolfgang. Ökonomie des Krieges. In: BUNDESZENTRALE FÜR
POLITISCHE BILDUNG [org.]. Dossier – Der Erste Weltkrieg. Bundeszentrale für politische Bildung, Bonn,
abr. 2018).
69
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo Storniolo.
São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 6.
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70
STRENGER, Irineu. Fenomenologia e Criticismo Ontognoseológico. Revista da Faculdade de Direito de São
Paulo, v. 61, n. 1, 1966, p. 215.
71
SICHES, Luis Recaséns. La Filosofia del Derecho de Miguel Reale. Revista da Faculdade de Direito de São
Paulo, v. 61, n. 1, 1966, p. 49.
72
MANTILLA PINEDA, Benigno. Teoria tridimensional del derecho. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo,
v. 51, 1956, p. 161.
73
TAVEIROS, Alaide. A última expressão do pensamento de Hans Kelsen. Revista da Faculdade de Direito de São
Paulo, v. 48, 1953, p. 169.
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Vale lembrar que o próprio KELSEN foi além disso. Ele “não negava a possibilidade
de estudo da justiça; é certo que não só estudava a justiça (A ilusão da justiça; O que é justiça;
O problema da justiça), como também a julgava um valor relativo. Estudou, porém, a justiça
com um valor em separado do Direito, como objeto de uma ciência própria, autônoma e
desvinculada do Direito (estuda normas jurídicas), a Ética (estuda normas morais)”74. Essa
falta de aviso tem feito KELSEN sofrer críticas injustas.
Vejam o caso do Direito das Obrigações. De acordo com ORLANDO GOMES, “ao se
decompor uma relação obrigacional, verifica-se que o direito de crédito tem como fim
imediato uma prestação, e remoto, a sujeição do patrimônio do devedor. Encarada essa dupla
finalidade sucessiva pelo lado passivo, pode-se distinguir, correspondentemente, o dever de
prestação, a ser cumprido espontaneamente, da sujeição do devedor, na ordem patrimonial,
ao poder coativo do credor. Analisada a obrigação perfeita sob essa dupla perspectiva,
descortinam-se os dois elementos que compõem seu conceito. Ao dever de prestação
corresponde o debitum, à sujeição a obligatio, isto é, a responsabilidade. A esta responsabilidade
patrimonial empresta-se grande importância no direito moderno, a ponto de se infirmar que
a obrigação é uma relação entre dois patrimônios” 75.
Os alemães chamaram debitum de Schuld e obligatio de Haftung. E foi ALOIS BRINZ
“que no fim do Século XIX, fazendo uma releitura das fontes romanas, desenvolveu a
chamada teoria dualista do vínculo pela qual este se decompõe em dois elementos”, i. e.,
dívida (Schuld ou debitum) e responsabilidade (Haftung ou obligatio)76.
É o Direito que tem um elemento que um teórico geral do fato jurídico chama de
“eficácia”. O fato jurídico – só ele – tem feixes eficaciais. Assim, o Direito é a esfera hábil para
repercutir no campo situacional da esfera jurídica de alguém, com obrigações, deveres,
sujeições, faculdades, ônus etc. A moral seria despida disso. A possibilidade de manejar
coerção estatal ou jurisdicional contra um patrimônio, p. ex., significa um espectro bem
peculiar desse campo situacional: aí há a categoria da exigibilidade (responsabilidade, Haftung
ou obligatio).
Discute-se, discute-se, e tudo parece descambar na velha sugestão de CRISTIANO
TOMÁSIO: “em sua obra Fundamenta Juris Naturae et Gentium, em 1705, [...] formulou o
primeiro critério diferenciador entre o Direito e a Moral. O jurista e filósofo alemão, com
74
BITTAR, Eduardo C. B.; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 11.ª ed. São Paulo:
Atlas, 2015, p. 618.
75
GOMES, Orlando. Obrigações. 17.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 18-19.
76
SIMÃO, José Fernando. A teoria dualista do vínculo obrigacional e sua aplicação ao direito civil brasileiro.
In: CHUAHY DE PAULA, Fernanda Pessoa; MENEZES, Iure Pedroza; CAMPELLO, Nalva Cristina Barbosa
(orgs.). Direito das obrigações: reflexões no direito material e processual. São Paulo: Método, 2011, v. 1, p. 241.
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a sua teoria, pretendeu limitar a área do Direito ao foro externo das pessoas, negando ao poder
social legitimidade para interferir nos assuntos ligados ao foro interno, reservado à Moral. O
Direito se ocuparia apenas dos aspectos exteriores do comportamento social, sem se
preocupar com os elementos subjetivos da conduta, ficando, assim, alheio aos problemas da
consciência”77. Ele “considera três princípios: o justum, o decorum e o honestum. No primeiro
se funda o direito natural, cujo fim é garantir a paz da ordem externa; no segundo, a política
cujo fim é realizar mediante a benevolência as exigências dessa paz; no terceiro, a ética, que
visa alcançar a paz interna da alma”78. Essa separação radical apresenta alguns problemas. A
escravidão, p. ex., não é admitida pela concepção jusnaturalista de SANTO TOMÁS DE
AQUINO: ela seria “um instituto do direito das gentes; tomada aqui a expressão antes no
sentido que lhe deu Isidoro de Sevilha, e que se aproxima do moderno direito internacional
público”79. A divisão endurecida de Moral e Direito segundo essa pauta “foro externo” x
“foro interno” pode ser contestada.
A assim chamada teoria da coação, bastante invocada para diferenciar a norma ética
da norma jurídica, costuma sofrer contraponto interessante: há normas jurídicas cumpridas
de forma espontânea, de maneira que o Direito se cumpre e se realiza por iniciativa espontânea
dos obrigados. Há, ainda, muito a se produzir a respeito dos debates que envolvem esse tema.
Cite-se, p. ex., as objeções de partidários da filosofia de KRAUSE, como AHRENS e
TIBERGHIEN80.
Evidentemente, o assunto é bastante complexo. Nosso Pequeno Curso tem o
objetivo, apenas, de mostrar quão fundo certas questões podem chegar.
Historiografia
Em contexto diferente, adverti que os processualistas brasileiros ainda não contam
com uma legítima historiografia processual: “pouco se escreveu a respeito da História do
77
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. 36.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. Livro eletrônico.
78
CORREIA, Alexandre. Concepção Tomista do Direito Natural III. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo,
v. 36, n. 3, 1941, p. 360.
79
CORREIA, Alexandre. Concepção Tomista do Direito Natural III. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo,
v. 36, n. 3, 1941, p. 370.
80
Recomendações: MAIA, Paulo Carneiro. Da dogmática jurídica. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo,
v. 49, 1954; FRANÇA, R. Limongi. Delle Forme di Espressione del Diritto. Revista da Faculdade de Direito de
São Paulo, v. 70, 1975; MONCADA, L. Cabral de. Subsídios para uma História da Filosofia do Direito em Portugal.
2.ª ed. Coimbra, 1938.
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Processo”, pois “ainda se acredita que fazer historiografia é narrar, em lógica perfeita, uma
sucessão de diplomas normativo-processuais que existiram no tempo” 81. O alerta pode ser
alargado para a categoria do jurista: por alguma razão, o círculo de colegas do Direito parece
supor que a História seria uma sucessão fática, um desencantamento de ocorrências, um
deslocar dos tempos para um momento atual.
Segundo RICARDO MARCELO FONSECA, há um senso comum dos juristas, um
imaginário de que o direito atual, “o moderno”, é o ápice de elaborações jurídicas de todo
um antecedente: é a única ungida com a água benta da “racionalidade”. O direito,
frequentemente, é visto como o resultado final de uma evolução história onde tudo aquilo
que era bom no passado vai sendo sabiamente assimilado e decantado 82.
Por isso, decidi abrir um tópico específico dentro de nosso Pequeno Curso de Filosofia
do Direito para alertá-los desse grave problema. Pare de acreditar que a historiografia se confunde
com um amontoado de fatos datados!
Uma legítima História do Direito é, necessariamente, uma abordagem teórica que
se localiza dentro dos limites da disciplina da História. Não se pode fazer história do direito
sem prestar atenção nas suas contribuições. Se o direito é histórico, não pode ele se
desprender de uma análise do passado, da própria sociedade onde ele se insere e de onde ele
dialoga com a política, com a cultura, com a economia, com a sociedade e assim por diante83.
Nosso senso comum teórico costuma definir rapidamente o que significa história
do direito: o “passado jurídico” como objeto deste saber. A História do Direito, nesse senso
comum, seria o conjunto de eventos e fatos que compõem o passado jurídico da
humanidade, reconstituídos através de procedimentos controlados (se não mesmo
objetivos), hauridos do ramo das ciências humanas (em verdade teoricamente muito
tumultuoso) que é a “ciência da história”. Ela seria, a história, “o conjunto dos eventos que
compõe este passado”84.
Reflexão mais detida mostraria que as coisas não se passam bem assim.
Um filosofo “idealista” diria que os fatos e os eventos não têm uma materialidade exterior a
esse pensamento, mas que existem somente ideias destes fatos. Tudo o que temos, para esta
forma de analisar o mundo, não passaria de um conjunto de concepções mentais. Nessa
perspectiva, o passado do direito não existe: não enquanto um conjunto de eventos
concretos e materiais... Só haveria, assim, ideias ou representações dos fatos do passado do
81
SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Miguel Reale e o direito processual. Revista Brasileira de Direito Processual.
Belo Horizonte, ano 25, n. 98, abr./jun. 2017.
82
FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 23.
83
FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 21 e seguintes.
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FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 21 e seguintes.
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direito. A história do direito não existiria. Existira apenas elaborações subjetivas sobre o
passado do direito, tornadas possíveis através da consciência85.
Por outro lado, se pensarmos no conceito de história do direito como saber (e não
como objeto deste saber), e se o saber histórico fosse o “conjunto de fatos” do passado
humano, haveria outra possibilidade teórica que consistiria simplesmente em duvidar dos
critérios tradicionais de escolha de “fatos” que compõem o saber histórico-jurídico. Seria
questionar: quais os meios de julgar que alguns fatos são “históricos” (= dignos de registro
histórico) e outros não86?
A questão, vejam bem, é mais difícil. Poderíamos, até, falar da possibilidade de
simplesmente substituir os fatos da ciência da história (que seriam, segundo FERNAND
BRAUDEL mera “agitação de superfície [...] de oscilações breves, rápidas e nervosas”) por
análises estruturais de longa duração (como fizeram LUCIEN FEBVRE e MARC BLOCH (e boa
parte daqueles da Escola dos Annales. Aí, os eventos perderiam importância, pois, para os
Annales, o nível dos fatos é o mais pobre dentro da análise história: deveriam ser
privilegiadas as visões problematizantes em termos de conjuntura e estrutura 87.
A visão da história do direito como a “reconstituição dos fatos jurídicos do passado”
pode ser severamente questionada e posta em xeque. Não há só um caminho para o saber;
não há só um caminho para o conhecimento histórico)88.
O positivismo histórico
As sementes do positivismo e suas premissas epistemológicas, plantadas por
AUGUSTO COMTE, estavam destinadas a tornarem-se um dos pilares da ciência moderna. De
fato. O positivismo está presente nas análises de diversas áreas das “ciências humanas” 89.
Podemos assinalar a existência de um positivismo filosófico; de um positivismo
sociológico; de um positivismo jurídico; de um positivismo histórico e assim por diante.
Existe o positivismo de AUGUSTO COMTE, que seria uma espécie do positivismo filosófico...
Existe o positivismo de ÉMILE DURKHEIM, de condão sociológico (o qual, paradoxalmente,
influenciou historiadores “antipositivistas”, como MARC BLOCH). No setor jurídico, pensa-
se primeiro na Escola da Exegese francesa, integrante do movimento do positivismo jurídico
(como em NORBERTO BOBBIO). Uma pesquisa mais cuidadosa nota, porém, que esse
“positivismo jurídico”, em certa medida, é mesmo anterior ao positivismo de COMTE90.
85
FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 21 e seguintes.
86
FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 21 e seguintes.
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FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 21 e seguintes.
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FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 39 e seguintes.
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FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 39 e seguintes.
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FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 39 e seguintes.
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FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 39 e seguintes.
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posição do positivismo, que poderia ser uma das correntes “realistas”. O “realismo” – e aqui
está o positivismo – coloca forte acento no objeto da relação cognitiva. O idealismo, porém,
enxerga a existência do objeto condicionada pelo sujeito. O mundo real só se tornava
possível em vista da existência de uma consciência (na “razão subjetiva”, para a
modernidade): o mundo seria constituído de atos mentais. O idealismo acentua, na operação
do saber, a figura do sujeito94.
Para o positivismo, o objeto existe em si (realismo), independentemente de quem
observa. Ele é dessa maneira, tendo um estatuto que lhe é próprio. No positivismo, sujeito
e objeto são entidades radicalmente diversas e independentes, já que é o objeto que deve
ocupar uma posição central no processo cognitivo. O sujeito (dotado de outro estatuto
ontológico) está na posição de “observante”, exterior ao objeto, devendo permanecer do
lado “de fora” e em posição de não interferir no objeto, sob pena de transformar a operação
cognitiva em algo não “objetivo” e “subjetivar” a análise (o que seria um “supremo
pecado!”)95.
Se existem leis invariáveis na natureza e na sociedade, a sociedade pode ser
estudada da mesma maneira que são estudadas as ciências naturais, ou seja: a partir dos
mesmos métodos e dos mesmos processos ali utilizados. O “objeto” deve ser buscado pelo
cientista. Como o químico se coloca de fora de uma reação química, o cientista social deve
se colocar “de fora” do objeto que ele analisa, ainda que tal objeto seja o próprio homem. O
modo como o cientista natural aborda o seu “objeto” não deve ser substancialmente diversa
do modo como o cientista social aborda o seu (homem na sociedade, presente ou passada).
Num e n’outro modo, o objeto deve ser tratado como “coisa” 96.
Eis, aí, o princípio da neutralidade axiológica das ciências humanas: seria
possível fazer ciência do homem (como também ciência natural) deixando os valores de
lado. A função do sujeito/pesquisador seria a de captar os fatos por um método controlado
(positivista), de modo objetivo, deixando-se os valores de lado97.
LEOPOLD VON RANKE, sem dúvida, é o mais representativo autor da “história
positivista”. Ele formulou de modo mais ou menos explícito alguns postulados teóricos
daquela que deveria ser a “história científica” por excelência e exatamente sobre os quais vai
se constituir o terreno onde vai brotar boa parte da produção historiográfica das décadas
seguintes (e do século seguinte). Tais postulados podem ser considerados com uma aplicação
dos pressupostos do positivismo na epistemologia e nas ciências humanas, com vistas a
formar um saber historiográfico e a formar a “ciência da história”. Há separação radical entre
94
FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 39 e seguintes.
95
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sujeito e objeto. O objeto é constituído de fatos históricos. Por hipótese o historiador deve
aplicar o princípio da neutralidade axiológica para atingir a “imparcialidade” requerida a todo
o historiador e deve aceitar a separação entre fatos e valores, devendo-se ater apenas aos
fatos (deixando seus valores de lado)98.
É perceptível, nessa afirmação rankeana, a estrita separação (dualidade) entre fatos
(fatos históricos, aquilo que deve ser “conhecido”) de um lado, e dos valores (aquela
instância axiologicamente carregada – o historiador), de outro. Essas duas entidades são
concebidas como ontologicamente separadas. Para o positivismo, a história existe em si: ela
não depende da percepção que o sujeito (historiador) dá a este objeto. Leva-se o pressuposto
da exterioridade do real até as últimas consequências. O conhecimento é a representação
do real. Já que existe esta configuração histórica em si mesma, é consequente a conclusão
no sentido de que toda essa estrutura histórica (real, identificável) pode ser, toda ela,
captada pelo saber. Assim, se o saber “objetivo” (livre de resquícios axiológicos do sujeito)
tem a vocação de ser um espelho fiel do próprio objeto, o conhecimento histórico teria a
capacidade de espelhar o “passado histórico” de modo fiel99.
Eis aí a teoria do reflexo, de LEOPOLD VON RANKE. A ideia é essa: o passado
histórico tem apenas que ser refletido, cabendo ao historiador desempenhar nesse processo
apenas uma função mecânica. O historiador não deve pretender “recriar” a paisagem que lhe
está adiante (o passado), mas, pelos passos metodológicos aconselhados, fazê-lo refletir
fielmente, sem a interferência dos valores deste historiador100.
Essa glorificação da positividade jurídica vigente pode ser bem representada em
duas grandes “linhas temáticas”: a “história das fontes” e a “história da dogmática” – a
primeira descrevendo a pura e simples evolução das normas jurídicas editadas pelo Estado e
a segunda descrevendo a evolução das doutrinas (ANTÓNIO MANUEL HESPANHA)101.
O problema: o passado jurídico é formado exclusivamente por aquilo que o
legislador faz (no primeiro caso) ou por aquilo que os doutrinadores pensaram e escreveram
(no segundo caso), sendo que os demais aspectos da vida social são solenemente ignorados
(ANTÓNIO MANUEL HESPANHA), ficando o direito como uma instância hipostasiada (LUIZ
FERNANDO COELHO)102.
Um bom exemplo desses problemas: LUCIANO OLIVEIRA propõe o
exorcismo de um dos mais famosos anacronismos reinantes no ensino jurídico: a incansável
citação indisciplinada do Código de Hamurábi (de aproximadamente 1.772 a.C.) , posto na
mesma contextualização de uma “pauta evolutiva” que inclui um Código Civil de 2002, um
98
FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 39 e seguintes.
99
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100
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101
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102
FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 39 e seguintes.
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Código Comercial de 1850 ou uma prática punitiva num único pacote cognitivo, até infantil
e insensível a uma série de fatores negligenciado. Veja-se:
103
OLIVEIRA, Luciano. Não fale do Código de Hamurábi! A pesquisa sócio-jurídica na pós-graduação em Direito.
Disponível em https://goo.gl/dDa19X.
104
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PETER BURKE divide o movimento dos Annales em três períodos distintos: 1.º)
1929-1945. Quando a “escola” era pequena, radical e subversiva contra a história tradicional
(que eles, de certo modo homogeneízam, para melhor combatê-la). Neste período,
destacaram-se as figuras fundadoras do movimento: LUCIEN FEBVRE e MARC BLOCH. 2.º)
1945-1968. 1945 porque é o ano seguinte da morte de BLOCH. Aqui, o movimento
efetivamente se transforma em “escola”, com conceitos próprios e métodos inovadores. Foi
nessa fase que os Annales estabeleceram um grupo “hegemônico” no cenário intelectual
francês. O representante mais significativo daqui foi FERNAND BRAUDEL; 3.º) 1968-até
hoje. Em 1968, BRAUDEL deixa a direção da revista publicada pelos Annales. Ocorre uma
profunda fragmentação e diversidade temática e metodológica. Surge outro movimento
dentro do próprio Annales, intitulado “Nova História”. Principais figuras: JACQUES LE
GOFF, GEORGES DUBY e EMMANUEL LE ROY LADURIE, dentre outros105.
Como surgiu o movimento dos Annales? Alguns historiadores, desde as
primeiras décadas do século XX, manifestaram uma reação às premissas metodológicas da
“Escola Metódica” (a representante da história positivista na França). Alguns professores
intentaram revolucionar a historiografia (e BURKE chega a falar em “revolução francesa da
historiografia”). Propõem um aproveitamento das fontes não escritas, dos testemunhos
involuntários (estatísticas, vestígios arqueológicos...). Contra a entronização do
acontecimento (fato e tempo curto), propõem uma ênfase na repetição, nas permanências
e nas tendências. Contra a priorização dos fatos políticos, militares e diplomáticos, opõem
um acento na análise da economia, da sociedade e da cultura. Um historiador dos Annales
é, por excelência, partidário de uma história que pretende “compreender” e
“problematizar”, ao passo que os integrantes da “história tradicional” raramente arriscam
alguma interpretação (GUY BOURDÉ e HERVÉ MARTIN)106.
Nesse ambiente, destacam-se LUCIEN FEBVRE e MARC BLOCH. Eles, juntamente
com A. COLIN, fundam a revista que simboliza o movimento: Les Annales d’Histoire
Économique et Sociale. O primeiro número começou a circular em janeiro de 1979 (PETER
BURKE)107.
Antes da fundação da revista, BLOCH já havia publicado o seu clássico Os reis
taumaturgos, que tem como temática algo bem diverso dos historiadores “tradicionais”. Era
a “história de um milagre”, em obra dedicada a estudar a dimensão mágica da autoridade
monárquica, especialmente em face da crença no poder de cura do rei, pelo simples toque.
Essa obra pode ser considerada como inspiradora da “psico-história” ou da “história das
mentalidades”, que surgiram mais tarde). BLOCH fez uso daquilo que BRAUDEL chamaria de
105
FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 67 e seguintes.
106
FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 67 e seguintes.
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FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 67 e seguintes.
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“longa duração”, já que seu estudo pretendeu abarcar um período que vai do século XII até
o século XVIII. BLOCH, mais tarde, desenvolveria suas premissas teóricas e se tornaria o
maior medievalista de seu tempo, ao publicar, nos anos 1930, sua obra mais conhecida: La
sociéte féodale108.
Outro exemplo de quebra com a historiografia anterior foi dado por FEBVRE, que
escreveu o Le problème de l’incroiyance au XVIe siécle: la réligion de Rabelais (tradução: O problema
da incredulidade no séc. XVI: a religião de Rabelais). Esse livro foi o principal inspirador da
história mental. Tema central era a impossibilidade de se colocar o problema da descrença
no século XVI (pois alguns autores, como LEFRANC, desejaram mostrar que RABELAIS seria
um livre pensador ateu da época). Segundo FEBVRE, o ateísmo do século XVI implicava
apenas um desvio com relação à religião oficial, que ocupava todas as esferas da vida
quotidiana das pessoas. Nesse sistema, o ateísmo é inconcebível. Os gracejos que ornam os
romances de RABELAIS (especialmente “Gargântua” e “Pantagruel”) não passariam de
familiaridades anódicas frequentes nos discursos dos franciscanos da época, que não podem
ser tomadas de maneira alguma como ateias. FEBVRE critica os historiadores que o
procederam neste aspecto por um anacronismo: ler um texto do século XVI com os olhos
de um homem do século XX (GUY BOURDÉ e HERVÉ MARTIN)109.
Com o desaparecimento de BLOCH nos campos de concentração nazistas em 1944,
FEBVRE enxerga em muitos de seus discípulos (como ROBERT MANDROU e CHARLES
MOZARÉ) o “espírito” dos Annales. O legitimo sucessor de FEBVRE na condução dessa nova
historiografia era FERNAND BRAUDEL. Ele estudou história na Sorbonne e lecionou de 1923
a 1932 na Argélia. O Mediterrâneo seria o objeto de seu grande livro. Conheceu FEBVRE
neste período, tornando-se dele um grande amigo. FEBVRE o convence a transformar o tema
de sua tese, ainda em gestação (A política mediterrânica de Felipe II) para O mediterrâneo na época
de Felipe II (GUY BOURDÉ e HERVÉ MARTIN). Essa mudança demonstra bem a tônica dos
trabalhos posteriores de BRAUDEL110.
BRAUDEL ficou preso por quase todo o período da 2.ª Guerra Mundial, mas
conseguiu rascunhar sua tese de doutorado (PETER BURKE). Surge sua obra máxima: O
mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Felipe II. Defende a tese em 1947 e publica em
1949. Esse livro é considerado obra prima, até mesmo pelos críticos. Transformou de modo
decisivo a visão do historiador sobre o tempo e o espaço (PETER BURKE). A obra de BRAUDEL
teve envergadura ainda maior com a publicação de sua monumental Civilização material,
economia e capitalismo, sécs. XV – XVIII, em 1980. Para FRANCISCO TOMÁS Y VALIENTE, esse
livro merece sofrer a crítica de que omite, solenemente, o direito da cena histórica moderna
108
FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 67 e seguintes.
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(fato contraditório com o da pretensão programática de uma “história total”. Para RICARDO
MARCELO FONSECA, a crítica é “corretíssima”)111.
BRAUDEL não foi somente o mais importante historiador francês de sua época
(desde a morte de FEBVRE, em 1956, até a sua própria em 1985). Foi também o mais
poderoso. Ocupou alguns dos mais importantes postos acadêmicos no período. Tornou-se
professor no Collège de France (1949) e acumulou, ao lado de FEBVRE, a função de diretor do
Centre de Recherches Historiques na École Pratique des Hautes Études. Em 1956, vira diretor efetivo
da revista dos Annales, a qual, desde 1946, ganhou outro nome: Analles. Économies. Societés.
Civilisations. Na sua direção, a revista e o movimento lograram hegemonia na academia
francesa, passando incólumes sobre o “frisson” estruturalista dos anos 1950 (disse FRANÇOIS
DOSSE: “ao desafio de Claude Lévi-Strauss, nos anos 50, os ‘Annales’, com Fernand Braudel,
conceituaram a longa duração como linguagem capaz de unificar as ciências sociais”)112.
A despeito das rupturas do discurso da Escola entre anos 30 e 80, o próprio
FRANÇOIS DOSSE reconhece que é possível tratar algumas características comuns dessa
corrente. São elas: 1.ª) as marcas principais dos Annales, desde o seu princípio, foi o
abandono das formas tradicionais de “contar” a história (no lugar da “história narração”,
ocupa espaço a “história problema”). “O historiador, para Marc Bloch e Lucien Febvre, não
pode se contentar em escrever sob o ditado de documentos, deve questioná-los, inseri-los
em uma problemática [...]. O recorte histórico não se articula mais segundo os períodos
clássicos, mas perante os problemas postos em evidência e dos quais se busca a solução”
(FRANÇOIS DOSSE). A história deve estar com um olho no presente, pois o ontem e o hoje
estão indissoluvelmente ligados. Como questiona DOSSE: não é o passado a chave
indispensável para qualquer compreensão séria do tempo presente?; 2.ª) novo
aproveitamento das fontes de pesquisa. PETER BURKE reconhece a importância de RANKE
em negar as crônicas, com uso de registros oficiais... Entretanto, BURKE entende que isso
também negligenciou outros tipos e evidência: “o período anterior à invenção da escrita foi
posto de lado como ‘pré-história’ [...]. Os registros oficiais em geral expressam o ponto
de vista oficial”. Como disse BLOCH, “por detrás dos traços sensíveis da paisagem, dos
utensílios e das máquinas [...] são exatamente os homens que a história pretende apreender”.
A Escola dos Annales passa a fazer uso de variadas fontes: dos vestígios arqueológicos até os
diários de adolescentes (como fez ALAN MACFARLANE para reconstituir o que ele chama de
história do casamento e do amor entre 1300 e 1840). Um dos instrumentos mais utilizados,
aplicado com entusiasmo nos anos 50 e 60, foi a história quantitativa ou história serial.
Inicialmente, preocupava-se com o campo econômico (história dos preços, com ERNEST
LABROUSSE). A utilização da estatística pretendia dar mais objetividade às conclusões.
ERNEST LABROUSSE demonstrou, em obra de 1933, como a crise das colheitas e da economia
111
FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 67 e seguintes.
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em geral no final dos anos 80 do século XVIII foi uma pré-condição importante para a
eclosão da revolução francesa. Essa história quantitativa descamba, depois, na história
demográfica, atingindo os domínios da história social e da história mental. Isso explica a
abordagem da morte (PHILIPPE ARIÈS), do medo (JEAN DELUMEAU), da linguagem (PETER
BURKE), da impotência (PIERRE DARMON), das lágrimas (ANNE VINCENT-BUFFAULT)... Esse
novo vetor teórico abre uma via para a “história vista de baixo” e para a “história dos
vencidos”, que não teriam lugar numa perspectiva eminentemente política; 3.ª) a cisão de
planos apreciáveis no estudo histórico. FERNAND BRAUDEL dá mais rigor a essa nova
abordagem. Na obra Mediterrâneo, BRAUDEL decompõe a história em três planos
desdobrados: um tempo geográfico, um tempo social e um tempo individual (história
estrutural, conjuntural e factual): existiria “[...] à superfície, uma história dos
acontecimentos, que se inscreve no tempo curto...; a meia encosta, uma história
conjuntural, que segue em ritmo mais lento...; em profundidade, uma história estrutural,
de longa duração, que põe em causa séculos” (FERNAND BRAUDEL). A história dos
acontecimentos seria o nível mais pobre do discurso histórico. A conjuntura seria o tempo
médio, o tempo da história social, o espaço de décadas. A “longa duração”, ou o nível
estrutural, seria o das correntes marítimas, invisíveis da superfície mas decisivas na
explicação da história. BRAUDEL insiste com a ideia de uma “geo-história”. Lenta e decisiva
como recurso explicativo. Essa influência se mostrou importante nas obras de FEBVRE e de
BLOCH, assumindo posição central nas obras de BRAUDEL. “Em sua tripartição temporal,
Fernand Braudel pode assim ter acesso à história quase imóvel, para ele primordial, em uma
arquitetura na qual a geo-história se identifica, portanto, com uma duração muito longa”
(FRANÇOIS DOSSE). Essa ligação da geografia se explica pelo esforço multidisciplinar dos
Annales; e 4.ª) os historiadores dos Annales buscaram uma “história total”, ou “história
síntese”, que penetrasse em todos os domínios das ciências humanas. Condenava-se a
compartimentalização estreita do saber. Como disse LUCIEN FEBVRE: “historiadores, sejam
geógrafos. Sejam juristas também, e sociólogos, e psicólogos”113.
113
FONSECA, Ricardo Marcelo. Introdução teórica à história do direito. Curitiba: Juruá, 2012, p. 67 e seguintes.
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Assim, em HANS KELSEN, “a validade das normas jurídicas que fazem parte de um
determinado sistema jurídico, não dependerá, portanto, do seu conteúdo, mas, tão
somente, do modo pelo qual tiverem sido estabelecidas. A sua validade decorre da própria
estrutura lógica do sistema de normas no qual se integram”115. Neste sentido, é correto
concluir que os fundamentos da teoria da validade de KELSEN são diferentes das doutrinas
“realistas”, já que elas “tendem à identificação da validade com a realidade da norma, isto é,
sua eficácia na sociedade histórica e concreta”. Ora, “estando a validade em Kelsen vinculada
a um postulado antimetafísico, a fundamentação de uma normatividade não pode estar fora
do direito: são válidos aqueles comandos de dever-ser que tem um sentido tornado objetivo
por outro comando superior na ordem hierárquica. [...]. Nesse ponto, Kelsen assume um
idealismo transcendental numa não pouco problemática filiação à filosofia de Immanuel
Kant”116. Em verdade, embora a teoria de KELSEN “tenha sido alvo de uma série de críticas,
a fundamentação normativa da validade do direito, núcleo da sua perspectiva dinâmica, ainda
figura no horizonte da teoria geral do direito, da dogmática jurídica e da prática cotidiana
do direito. Uma crítica à teoria pura do direito implica, portanto, uma crítica
ao modo preponderante pelo qual o direito é enfocado diariamente pelo
jurista brasileiro em seu ofício”117.
No âmbito da teoria geral do fato jurídico, validade significa a adjetivação do
pressuposto existencial do ato jurídico lato sensu. Assim, para que um negócio jurídico de
compra e venda exista, pressuporá, p. ex., um objeto. Mas sua existência será inválida se o
objeto for ilícito. Logo, a compra e venda de drogas existe, mas deve ser nulificada, por
invalidade em seu objeto. Um MARCOS BERNARDES DE MELLO dirá que é aqui que reside a
razão de ser do próprio direito, pois “o problema da validade dos atos jurídicos”, diz o grande
jurista alagoano, “transcende a pura Dogmática Jurídica, situando-se, mesmo, no plano da
114
BITTAR, Eduardo C. B. A justiça kelseniana. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 96, 2001, p.
; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 11.ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 618.
115
TAVEIROS, Alaide. A última expressão do pensamento de Hans Kelsen. Revista da Faculdade de Direito de
São Paulo, v. 48, 1953, p. 169.
116
SIQUEIRA PONTES, José Antonio. Fundamentos para uma leitura crítica de Hans Kelsen no século XXI:
em busca de um modelo kelseniano clássico. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 110, 2015, p. 594.
117
SCHAEFER ANDRADE, Luiz Fernando. A universalização do primado da norma: o obstáculo epistemológico
etnocêntrico da teoria pura do direito. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 112, 2017, p. 738.
Destaquei.
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Axiologia Jurídica, além de constituir uma exigência lógica do próprio caráter sistemático
do direito”118.
Na teoria do fato jurídico, o fato “bruto”, do mundo “natural”, passa ser “fato
jurídico” quando a norma abstrata se “impregna” ao fato regulado. Como diria FRANCISCO
CAVALCANTI PONTES DE MIRANDA, “se todos [os elementos fáticos] estão juntos, ou se
aparece o único que se exigia, o todo fáctico é como que carimbado pela regra jurídica”119.
O pressuposto de validade observa, no fato jurídico existente, a sua validez diante da ordem
jurídica em vigor. É dizer: “em caso de transgressão será imposta a sanção da nulidade. Assim,
quando o ato ou negócio, em sua parte de suporte fático, não está conforme ao
ordenamento, existe uma sanção de ordenamento civil, imposta pela lei, que é a de declarar
parcialmente nulo o ato ou negócio”120.
A validade é a perfeição do suporte fático. Um ato existente pode ser deficiente
(inválido) ou perfeito (válido). Com maior precisão, MARCOS BERNARDES DE MELLO aduz
o seguinte:
Diz-se válido o ato jurídico cujo suporte fáctico é perfeito, isto é, os seus
elementos nucleares não têm qualquer deficiência invalidante, não há
falta de qualquer elemento complementar. Validade, no que concerne a
ato jurídico, é sinônima de perfeição, pois significa a sua plena
consonância com o ordenamento jurídico121.
Mas é possível que uma regra formalmente válida não tenha a aquiescência de uma
determinada convivência humana. O Brasil, aliás, é exemplo campeoníssimo disso. Há,
aqui, “leis que pegam” e “leis que não pegam”. E é possível, aliás, que uma lei conflite com
aquilo que caracteriza mais profundamente a experiência jurídica. Aí se afirma que a regra
não é eficaz. Aí temos um problema de matiz sociológico e, também, da cultura.
No âmbito da teoria geral do fato jurídico, eficácia significa o campo prático e
situacional de um fato jurídico lato sensu. A morte, p. ex., é o fato jurídico que abre a
sucessão: eis sua eficácia – abertura da sucessão. A eficácia, neste caso, tem sentido mais
dogmático, abrangendo o campo jurídico situacional: ônus, deveres, sujeições, faculdades
etc.
118
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Validade. 14.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015,
p. 43.
119
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado das Ações – tomo 1. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1970, p. 4.
120
GOGLIANO, Daisy. A Nulidade Parcial. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 81, 1986, p. 231.
121
MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico – Plano da Validade. 14.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015,
p. 41.
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E, claro, pode ser que uma regra do Direito se mostre formalmente válida e tenha
eficácia social... Mas, com o tempo, ela se apresenta injusta. E o problema da justiça ou da
injustiça constitui, justamente, o cerne dos problemas do fundamento do Direito.
O ideal seria que toda regra jurídica fosse válida, tivesse fundamentos éticos, sem
perder sua eficácia. Um positivista jurídico dirá que as regras jurídicas são “perfeitas” quando
dotadas de coação; e “imperfeitas” quando esvaziadas de coação.
É aqui que surge o problema mais duro para a magistratura. Como o juiz deve se
comportar diante da lei injusta? A dogmática responderá que ele não pode se furtar da
aplicação da regra, pois o Direito vale formalmente. Logo, vale e deve ser aplicado. Parte da
Filosofia do Direito discordará: o juiz não deveria aplicar a lei injusta. Encontrarão posição
neste sentido, e. g., na obra de VICTOR CATHREIN S. J.122, partidário que foi “de um Direito
Natural abstrato, válido com anterioridade a todo processo histórico”123. Com essa proposta
metodológica e tomista124, influenciou juristas como SPENCER VAMPRÉ125. E sobre o
problema da lei injusta, cabe ainda lembrar os nomes de GEORGES RENNARD126, de PAUL
ROUBIER127 e FRANÇOIS GENY128.
Não só. Há quem afirme que o costume poderia revogar a lei formal. Está cravado
na grandiosa Suma Teológica de SANTO TOMÁS DE AQUINO, sobre a tradição e o hábito (e como
isso se imiscui nas leis), o seguinte:
[...] a lei humana pode ser retamente mudada, na medida em que essa
mudança responda a uma utilidade pública. Mas a mudança, em si
mesma, da lei, acarreta um certo detrimento para o bem da comunidade.
Porque para a observância da lei contribui muito o costume; a ponto de
que o que se faz contra o costume geral, embora em si mesmo deve, ser,
na verdade, grave. Por onde, mudada a lei perde da sua força obrigatória,
na medida em que se destrói o costume. Portanto, nunca deve ser
mudada a lei humana, a menos que, por outro lado, haja compensação,
para o bem comum correlativa à parte de rogada lei. E isto se dá: ou
122
Cf. CATHREIN S. J., Victor. Philosophia Moralis. Freiburg: Herder & Co, 1935; CATHREIN S. J., Victor.
Recht, Naturrecht und positives Recht. Freiburg: Herder & Co, 1909; CATHREIN S. J., Victor. Moralphilosophie.
Eine wissenschaftliche Darlegung der sittlichen, einschließlich der rechtlichen Ordnung. Freiburg: Herder & Co,
1899.
123
REALE, Miguel. Concreção de fato, valor e norma no direito romano clássico. Revista da Faculdade de Direito
de São Paulo, v. 49, 1954, p. 214.
124
Para um bom levantamento bibliográfico dos autores escolásticos mais destacados no Direito, ver
CORREIA, Alexandre. Estudos de filosofia do direito latino-americana nos Estados Unidos. Revista da
Faculdade de Direito de São Paulo, v. 48, 1953.
125
TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva. Concepção sintética do direito. (Notas á margem da obra de Spencer
Vampré). Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 37, 1942.
126
Cf. RENARD, Georges. Introducción filosófica al estudio del Derecho, t. I. Buenos Aires: Dedebec, 1947.
127
Cf. ROUBIER, Paul. Théorie générale du droit. Histoire des doctrines juridiques et philosophie des valeurs sociales.
França: Dalloz, 2005.
128
Cf. GÉNY, François. Science et Téchnique en Orait Privé Positif, v. II. Paris: Societe du Recueil Sirey, 1913.
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129
SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, v.2 (Ia IIae). Trad. ALEXANDRE CORREIA. Campinas:
Ecclesiae, 2016, p. 583-584.
130
OLIVEIRA, Plinio Corrêa de. São Tomás de Aquino: a importância da tradição - costumes, leis e o bem comum.
Conferência realizada no Auditório Nossa Senhora Auxiliadora a 23 de novembro de 1992. Disponível em:
https://goo.gl/rEyne5. Acesso em 04 fev. 2019.
131
Para detalhes, cf. SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. O papel da Igreja Católica na processualística do império
bizantino — um diálogo com Ovídio A. Baptista da Silva. Revista Brasileira de Direito Processual, Belo
Horizonte. No prelo.
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Enfim: o conjunto de problemas que aqui apresento tem tudo a ver com o que
exibi no começo deste Pequeno Curso de Filosofia do Direito: o FUNDAMENTO, a EFICÁCIA e a
VALIDADE, de alguma maneira, estão relacionadas com aquelas três partes da Filosofia do
Direito. O campo da validade está diretamente relacionado com a EPISTEMOLOGIA JURÍDICA
(= estudo crítico dos conceitos e dos princípios lógicos essenciais que condicionam a vida
jurídica). O problema da eficácia descamba para a FENOMENOLOGIA JURÍDICA. E o
fundamento se dirige à AXIOLOGIA JURÍDICA.
O verdadeiro filósofo do Direito perguntará: há hierarquia nesses problemas? O
que deve prevalecer: fundamento, eficácia ou validade? E se se escolher um em detrimento
de outro, qual é o motivo? Aparentemente, o fundamento do Direito é o campo fértil para
responder perguntas tão difíceis. No fundo, eficácia e validade derivam, justamente, das
linhas que se adotarem no fundamento.
Doravante, o curso mostrará algumas propostas teóricas para o fundamento do
Direito:
a) ceticismo;
b) contratualismo;
c) a Escola do Direito Natural;
d) a Escola do Direito Racional;
e) a Escola Histórica;
f) o tomismo etc.
ENCONTRO 14 – O CETICISMO
Assista:
(Pérsia) teria reunido seu exército, repleto que era de pessoas de culturas variadas.
Primeiro, o rei perguntou: o que acham do costume de queimar os mortos? Os gregos afirmaram
que era a única solução para resolver o problema de um corpo já sem vida. O rei, então,
perguntou: e o que acham do costume de comer os mortos? Os gregos ficaram aterrorizados diante
da segunda pergunta. As respostas para as duas perguntas foram completamente diferentes
para guerreiros de tribos antropófagas da Índia: queimar os corpos seria uma aberração
porque, segundo eles, o justo era que os parentes devorassem seus mortos (!).
Essa diferença fez HERÓDOTO concluir que cada povo tem, a respeito de problemas
práticos, uma apreciação diversa. Seria impossível afirmar qual é a verdadeira.
Trata-se de um tipo de reflexão que se repete com o helenismo. Os sofistas
contestaram a existência de um justo em si. Um TRASÍMACO (Θρασύμαχος) dirá que o direito
positivo seria o resultado da vontade dos mais fortes: “in ethics, Thrasymachus' ideas have often
been seen as the first fundamental critique of moral values. Thrasymachus' insistence that justice is
nothing but the advantage of the stronger seems to support the view that moral values are socially
constructed and are nothing but the reflection of the interests of particular political communities”132.
Como consta no diálogo platônico d’A República, o justo seria “o vantajoso para o mais
forte”, de maneira que justo será sempre “a vantagem do mais forte” (338 c e 339 a,
respetivamente). Já um CALICLES (Καλλικλῆς) dirá que o Direito é o resultado da defesa dos
mais fracos: eles, unidos, estabelecerão os preceitos que impedem o abuso da força. O mais
forte está, portanto, obrigado à obediência legal133.
A contradição das teorias tem o pecado de reduzir o problema do Direito a um
problema de forças. Trata-se de uma colocação implicitamente cética. E o ceticismo ganha
força real quando passa a contestar a própria possibilidade de determinar, nos casos
concretos, o que se deve entender por “lícito” ou “legal”. PIRRO DE ÉLIS defendeu tal
posição: tanto faz a lei A ou a lei B. Jamais saberíamos qual delas é verdadeiramente justa.
Daí a atitude da ataraxia, i. e., despreocupação ou “freedom from worry”134. O pirronismo é o
ceticismo máximo. Daí sucede a palavra “eféctico”, do grego ephektikôs (que suspende o juízo):
“termo empregado pelos pirrônicos (cépticos) para chamar a sua posição, que aconselhava
suspender o juízo (o julgamento) pela incapacidade humana de alcançar a verdade”135.
132
RAUHUT, Nils. Thrasymachus (fl. 427 B.C.E.). Encyclopedia of Philosophy and its Authors. Disponível em:
https://www.iep.utm.edu/thrasymachus/.
133
BARNEY, Rachel, Callicles and Thrasymachus. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Disponível em:
https://plato.stanford.edu/entries/callicles-thrasymachus/#5.
134
BETT, Richard, “Pyrrho”. The Stanford Encyclopedia of Philosophy. Disponível em:
https://plato.stanford.edu/entries/pyrrho/.
135
SANTOS, Mário Ferreira dos. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais, p. 598. Em passagem anterior,
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS lembra que as doutrinas de PIRRO DE ÉLIS foram expostas em poesias satíricas
de TIMON DE FLIONTE (p. 285).
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Pode-se afirmar que o ceticismo tem três espécies de argumentos. Eles foram
resumidos pela figura de CARNÉADES (Καρνεάδης), importante por ter viajado para defender
suas ideias em Roma (junto de CRITOLAU e de DIÓGENES, numa espécie de “missão
diplomática” dos atenienses em terras romanas 136). Lá, realizou duas conferências, tratando
do justo e da justiça em si. Na primeira conferência, CARNÉADES sustentou que existe uma
justiça em si, exibindo todos os argumentos que favorecem essa tese. Depois, na segunda
conferência, sustentou justamente a tese oposta: o justo não há em si, o justo varia no tempo.
Nesta segunda conferência, ele resumiu os três pontos centrais dos céticos:
• não é possível falar-se em justo em si, pois podemos verificar leis contraditórias
entre nações e mesmo dentro das nações. Se o justo fosse o justo por natureza,
não haveria mutação contínua da legislação positiva;
• ainda que fosse possível uma justiça em si, ficaríamos na mesma situação já que
cada um sente a justiça a seu modo. O sentimento de justiça varia de homem
para homem;
• ainda que exista um só critério de justiça e ainda que o sentimento de justiça
seja um só, enfrentaríamos na realidade o conflito do justo com outros valores,
do dever de justiça com outros deveres.
CARNÉADES teria lembrado a diferença entre sabedoria e justiça: quem tem um
escravo que foge com frequência (servus fugitivos), se pretender ser justo, não poderia ocultar
tal qualidade no momento de uma venda. Mas a sabedoria não aconselha revelar o defeito:
no conflito entre o ditame da justiça e o imperativo da sabedoria, é mais conveniente ser
sábio. Ele também teria cravado distinção entre o justo e o útil com o exemplo da tábua de
salvação: um homem mais forte, se fosse justo, teria de respeitar o homem mais fraco que a
alcançou muito antes dele. Mais forte que é, poderá apoderar-se da tábua para salvação.
Neste caso, o imperativo da defesa da própria vida é mais forte que o imperativo do justo.
De acordo com MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS, CARNÉADES foi “um verdadeiro gênio da
controvérsia. Empreendeu um ataque encarniçado ao estoicismo. Procurou provar que,
entre uma apercepção verdadeira e uma apercepção falsa, não há um limite que se possa
segurar, estando o intervalo cheio de uma infinidade de apercepções, cuja diferença entre si
é infinitamente mínima. Ante a certeza absoluta impossível e a extravagância da dúvida
absoluta, resta somente a verossimilhança no bom sentido, e a probabilidade. Fundando-se nos
postulados de Arcesilau, Carnéades (ao defender as lições do seu mestre) organizou um
sistema de análise da probabilidade, de suas escalas, dos sinais que a revelam. Com
136
Com grande detalhamento e didática, ver INTXAURRANDIETA ORMAZABAL, Adur. Catón y Carnéades. La
influencia del helenismo en la Roma del siglo II a. C. Disponível em: http://twixar.me/VrZ1.
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137
SANTOS, Mário Ferreira dos. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais, p. 286.
138
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo Storniolo.
São Paulo: Editora Paulus, 2003, p. 73-74.
139
PASCAL, Blaise. Pensées. Tradutor A. J. Krailsheimer. Londres: Penguin Books, 1966, p. 46.
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relativismo ocidental140. Como todo sofista, ensinou a arte da retórica: a arte de discorrer
sobre assuntos com o intuito de captar a confiança ou a convicção do interlocutor ou de uma
plateia.
Mais modernamente, MICHEL EYQUEM DE MONTAIGNE também se mostrou cético
quando se baseou na multiplicidade de fatos para questionar um postulado universal de
justiça. Se algo, no passado, foi tido por ilícito e, atualmente, passa para a esfera da licitude,
o que poderia explicar a justiça?
O problema desse argumento do ceticismo (o da multiplicidade de instituições
jurídicas) é que ele é de ordem de fato. No momento de construção de suas teorias, os céticos
não tinham acesso a tanta documentação. No século XIX, a Escola Histórica, de FRIEDRICH
CARL VON SAVIGNY, provocou grande curiosidade ao lograr conhecimento das instituições
jurídicas: não só de Roma ou de povos europeus, mas de povos estranhos à nossa cultura
(povo chinês, hindu, assírio-babilônico etc.). Daí emanou uma Etnologia Jurídica, sobre a
qual merece menção a obra pioneira de JOHANN JAKOB BACHOFEN (Das Mutterrecht), de 1861
e, no mesmo ano, de HENRY JAMES SUMNER MAINE (Ancient Law): “l’année 1861 est une date
clef dans l’histoire de notre discipline. A Stuttgart et à Londres paraissent simultanément deux ouvrages
capitaux: Das Mutterrecht, de J. J. Bachofen, inaugure l’ethnologie de la parenté [...]; mais c’est
l’oeuvre de H. J. Sumner-Maine, Ancient Law (1861), suivie de Early History of Institutions
(1875) et On Early Law and Custom (1883) qui a véritablement créé l’anthropologie juridique”141.
Com o passar do tempo, surgiram correntes de pensamento demonstrando que, na verdade,
cada grupo cultural lograria um desenvolvimento, uma evolução: gradativamente, sugiram
instituições jurídicas. Há, assim, uma unidade substancial e constante na História do Direito.
O fundamento do Direito não está propriamente no ser, mas no dever ser. Logo, a razão
última do dever ser – seu a priori – não é afetado por variações culturais de aqui e ali. A
sanção de um crime qualquer ser diferente numa e n’outra nação não muda o fato de haver
um conceito anterior de sanção; um conceito anterior de crime; um conceito anterior de
regra; um conceito anterior de norma; um conceito anterior de juridicidade. A casca da
imanência normativa – que evidentemente varia no espaço e no tempo – não
atinge a transcendência do Direito. Assim, o ceticismo jamais afetará a legitimidade
filosófica do fundamento do Direito. A regra ultrapassada de uma tribo que legitima a morte
de um semelhante é casca imanente e temporal irrelevante para nosso objeto: o Direito,
transcendente que é. A crítica cética até parece atingir a escola jusnaturalista, mas não desfaz
a legitimidade filosófica do fundamento do Direito.
Por outro lado, até faticamente podemos pensar num sentimento do justo – até num
âmbito de Psicologia Jurídica. JOHN STUART MILL, e. g., reduziu o justo ao útil: para ele,
140
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: filosofia pagã antiga, v. 1. Tradução Ivo Storniolo.
São Paulo: Editora Paulus, 2003, p.77.
141
ROULAND, Norbert. Anthropologie juridique. Paris: Presses Universitaires de France, 1988, p. 49.
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“justiça seria um nome apropriado para certas utilidades sociais que são muito importantes. Utilidade
e felicidade seriam os objetivos da justiça, pura e simplesmente. No entanto, queixava-se
Mill, critérios de certo e de errado, em tempos de especulação, poderiam obstaculizar uma
boa compreensão de um sentido adequado de justiça. A palavra justiça, para Mill, era
poderosa. Parecia ser clara, desprovida de ambiguidades, alcançando miríade de instintos,
inerente à qualidade das coisas. Existiria na natureza de modo absoluto”142. Da mesma época,
poderíamos citar ainda o evolucionismo de HEBERT SPENCER, o qual influenciou, no Brasil,
juristas como JOÃO MENDES JÚNIOR e JOÃO MONTEIRO143. Sobre o assunto, escreveu
MÁRIO FERREIRA DOS SANTOS o seguinte:
142
MORAES GODOY, Arnaldo Sampaio de. O conceito de justiça em John Stuart Mill, Consultor Jurídico, São
Paulo, ago. 2012. Disponível em: http://twixar.me/8rZ1.
143
Com riqueza de detalhes, ver REALE, Miguel. Escolástica e praxismo na teoria do direito de João Mendes
Júnior. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 51, 1956.
144
SANTOS, Mário Ferreira dos. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais, p. 370.
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enfrentada. Ora, o fato de o homem não poder evitar um conflito de valores não é,
propriamente, a negação do justo em si. Se, em detrimento do justo, o homem prefere o
caminho do útil, isto não afronta a ideia segundo a qual existe um justo em si. Isso pela
singela diferença entre o conhecimento do justo, de um lado, e a realização do justo, de outro.
O ceticismo consegue, no máximo, demonstrar que o homem pode viver num conflito
permanente de valores. Mas não afronta a possibilidade do justo em si. Estão no plano dos
fatos; ignoram o plano do dever ser.
Meus alunos sabem que me afasto do relativismo. Trata-se de uma proposta
gnosiológica capaz de falsear a realidade. Se o homem é a medida de todas as coisas, como
queria PROTÁGORAS, então tudo se baseará num sentido egoístico de seu intelecto. Isso cria
um mecanismo doentio e dual de realidade ôntica, de um lado; e outra pseudorealidade
(distopia mental do sujeito cognoscente egoísta, dono de si).
ENCONTRO 15 – O CONTRATUALISMO
Assista:
145
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 3.
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tem sofrido desgastes da história (como todos os grandes princípios), de forma que fique
fora de qualquer paralelismo com os atuais paradigmas sociais. Para REALE, são vários os
autores e escritores que tomam ao pé da letra os ensinamentos de ARISTÓTELES, de forma a
esbanjar um naturalismo exagerado, postura esta que acaba deformando as linhas da doutrina
original. “Não se compreenderia, porém, o real significado desses exageros se uma
referência, embora ligeira, àquelas teorias que se apartaram da doutrina em apreço, ou
foram elaboradas em uma direção diametralmente oposta. É claro que estamos nos referindo
às múltiplas expressões do contratualismo que fizeram da sociedade e do Direito meras
criações do espírito humano”146.
Formas de contratualismo
MIGUEL REALE adverte que não é nesta obra (Fundamentos do Direito) que fará
apreciações das primeiríssimas formas de contratualismo, o que remontaria a análise de
correntes do pensamento do mundo helênico, dirigindo o autor, para tanto, às suas
Atualidades de um mundo antigo; Horizontes do Direito e da História e Filosofia do Direito.
Basicamente, o contratualismo se caracteriza pelo intuito “de explicar a sociedade
e o Direito, partindo de um homem concebido como anterior à organização da convivência
social, do homem em ‘estado de natureza’”. O que cria o homem natural é a razão, o qual
tem qualidades e tendências com variáveis facetas, “ora como um lobo de outros homens,
em geral desligado de laços de interdependência, um ser essencialmente autárquico”. A
sociedade humana, constituída de homens naturais, se forma por um contrato, criação
humana que pode, ao depois, ser desfeita ou alterada por um ato incondicionado. Pelo
contratualismo, pode-se chegar a um leque de conclusões, e isto justamente porque a
sociedade se assenta sobre um arbítrio humano. Desse modo, a teoria foi útil aos mais
variados fins, “ora a serviço dos governantes, ora em prol da monárquica e ora a favor da
causa republicana, ora como explicação histórica da gênese da sociedade e do Direito, ora
como simples método de estudo de uma ordem social formada por homens livres”. Mas o
mais certo, a esta altura, diz REALE, é compreender o contratualismo “sem o calor polêmico
dos que visam mais destruir do que compreender”147.
É o contratualismo uma grande manifestação ideológico-sentimental, característica
esta que não pode ser deixada de lado para a compreensão mais exata das afirmações dos
contratualistas. Foi com vistas ao sistema geral da cultura que foram se desenvolvendo as
teses de LOCKE e de ROUSSEAU, as quais lograram repercussão, “representando conjuntos
admiráveis de idéias-força de grande sucesso no plano da ação política”. O contratualismo
deve ser compreendido ao seu tempo; e não lançado “à luz de situações peculiares ao nosso
146
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 4-5.
147
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 5-7.
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tempo”. Então, uma coisa é o estudo do valor histórico das doutrinas contratualistas, sendo
outra a postura de se analisar a “procedência de maneira absoluta, como sistemas universais
de explicação da realidade social, ou seja, a consideração de ser valor lógico para a
interpretação dos acontecimentos sociais e da natureza humana”. Nesta altura do texto,
REALE avisa que fará o estudo das doutrinas contratualistas segundo três pontos de vista:
a) o da extensão e força dos contratos;
b) o da sua historicidade; e
c) o da índole natural dos indivíduos contratantes148.
Primeiramente, é preciso diferenciar o contratualismo “segundo a força do
contrato” em:
a.1) contratualismo de governo ou contratualismo moderado; e
a.2) contratualismo de sociedade ou contratualismo institucional.
No contratualismo de governo ou contratualismo moderado (a.1), tem-
se que ele exerceu notável influência já no início da idade moderna, diferenciando-se por
ser uma fonte de explicação do poder do Estado, “cuja primária formação natural não era
posta em dúvida”. REALE dá o exemplo dos monarcômanos, os quais não intentariam
explicar contratualmente a própria formação primária, “mas sim a origem dos governos”,
objetivando “fixar as prerrogativas e os direitos recíprocos do povo e do rei”.
Já o contratualismo de sociedade ou contratualismo institucional (a.2)
foi esboçado por ALTHUSIUS e por GROCIO, mas quem tratou pela primeira vez, de maneira
sistematizada, foi HOBBES, que teve o mérito de dar a esta tese um alcance poderoso (“não
só no plano histórico-político, como nos domínios do pensamento jurídico puro”). Foi assim
que se operou o abandono total do princípio posto por ARISTÓTELES (chamado por REALE
de “gênio aristotélico”), dando ao Estado e ao Direito a marca de serem estudos como
entidades racionais, com o consequente compreender, pelo estudioso, com deduções da
“natureza humana pré-social”, e não à luz da história. Tratou-se de um progresso na “fuga
do real”, axioma da época149.
Passando ao item b, MIGUEL REALE avisa que o contratualismo histórico é um
contratualismo indicado como um fato histórico e realmente verificado. Há ainda o
contratualismo hipotético ou ficcionalista, que se traduz num processo lógico de fundamentação
do Direito e numa apreciação axiológica da ordem jurídica vigente “como se tivesse havido
um contrato”. Este contratualismo hipotético ou ficcionalista pode ser de base
psicológica (HOBBES e ROUSSEAU) ou de cunho lógico (KANT). A primeira forma deste
148
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 7.
149
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 7-8.
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contratualismo histórico é a que pode ser vista nos escritos de LOCKE e em alguns
fragmentos de SAMUEL PUFENDORF, sendo mais profundas as apreciações de HOBBES e de
ROUSSEAU150.
REALE menciona que, se há quaisquer dúvidas sobre o caráter histórico da doutrina
contratualista de HOBBES, não há o mesmo em ROUSSEAU151.
Para REALE, os estudos de RENOUVIER, STAMMLER, DEL VECCHIO e JELLINEK
foram decisivos para atribuir este caráter ficcionalista para os escritos de ROUSSEAU. “O
contrato social é para Rousseau uma aplicação valorativa da ordem política, um processo
prático para resolver a questão da legitimidade dos governos em uma comunidade de
homens livres”. REALE aduz que a grande preocupação de ROUSSEAU não é buscar tempos
remotos para apreender a origem da sociedade (“longe de pretender mostrar como a
sociedade se origina na noite dos tempos, o que Rousseau visa a revelar são as condições
segundo as quais os homens devem se organizar no presente, sem sacrifício da liberdade”).
A argumentação dele é que, para REALE, se mostra incontestável. Todavia, mesmo erro
incorre quem afirma ter ROUSSEAU acreditado num “estado de natureza” como fato
histórico. ROUSSEAU intentou, em verdade, uma construção teórica a priori acerca do
fundamento contratual da sociedade e do Direito, imaginando o pacto social da maneira que
lhe parece mais útil ao seu intuito de findar um regime austero para iniciação doutro sobre
melhores bases152.
Independentemente de quaisquer paradoxos, o que queriam os contratualistas era
demonstrar que o Direito significa uma construção do homem, sendo a sua vigência paralela
à vontade dos obrigados. Mesmo aqueles que admitiam a soberania nas mãos do monarca
não abandonaram o fundamento contratualista 153.
o afirmar “de que o Direito e o Estado não são formações naturais da mesma ordem daquelas
que se processam em obediência às leis que governam o mundo físico”. E menciona que
instituições políticas e jurídicas não são “pedaços da natureza, explicáveis segundo pesos e
medidas das ciências físico-matemáticas”154.
Certos pensadores, pois, afirmavam haver uma natureza mecânica e causal dos fatos
histórico-sociais, sofrendo, ao mesmo tempo, a necessidade de reconhecerem a sociedade
contratual. No próprio âmbito do naturalismo sociológico se desdobrou, assim, uma
corrente intelectual que se apresenta como “um verdadeiro contratualismo de segundo grau,
um contratualismo dinâmico, de processo”155.
SUMMER MAINE, com teorias bem-vindas por HERBERT SPENCER, GREEF e
FOUILLÉE, pensava que “a sociedade humana é natural e se desenvolve no sentido de
assegurar cada vez mais a autonomia dos indivíduos, o que se opera mediante uma passagem
lenta do regime de status ao regime de contrato”156.
REALE critica MAINE, chamando a teoria deste autor de “inaceitável” para propor
uma explicação do desenvolvimento da sociedade. Mas reconhece uma parte como verdade:
“a capacidade de interferência do homem na histórica aumenta à medida em que se alargam
os cálculos de nossa cultura” 157-158.
REALE passa a analisar SPENCER. Aduz o princípio deste: o da “contratualização da
sociedade”, que se justapõe com um outro princípio de ordem geral, com a seguinte regra:
“são as condições dadas e não as intenções conscientes que determinam a forma política”.
REALE cita HARALD HÖFFDING, o qual entendia ser esta regra válida apenas para os tempos
primitivos. Este mesmo pensador ainda observou, diz REALE, que essa principiologia de
SPENCER significou um apogeu da reação contra “a confiança entusiasta mas ingênua que teve
o século XVIII na razão e no governo do mundo pelas idéias”159-160.
O neocontratualismo de BIERLING
154
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 11.
155
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 12.
156
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 12.
157
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 13.
158
Nota de rodapé n.º 7 da obra agora estudada (p. 13-14): “Já antes Durkheim refutara a doutrina
de Spencer e Maine, declarando que não seria possível pensar um sistema garantido de contratos sem base
de estabilidade institucional e que, além do mais, o próprio contrato pode ser fonte de Direito estatutário
para novos grupos irredutíveis à soma de seus membros”.
159
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 14-15.
160
HÖFFDIGN, Morale, trad. De Poitevin, Paris, 1906, p. 531 apud REALE, Miguel. Fundamentos do Direito.
3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 15.
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161
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 16.
162
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 17.
163
TRENDELENBURG, Il Diritto Natuale sulla base dell’Etica, trad. De Niccola Mogudno, Nápoles, 1873, §§ 46
e 49 apud REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 18.
164
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 17-18.
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165
RADBRUCH, Filosofia do Direito, trad. De Cabral de Moncada, São Paulo, 1937, p. 207 apud REALE,
Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 18-19.
166
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 19.
167
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 20.
168
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 20-21.
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169
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 23.
170
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 24.
171
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 25.
172
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 26.
173
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 27-28.
174
DEL VECCHIO, Filosofia Del Derecho, cit., p. 75, I presuposti filosofici della noziomo Del Diritto, cit., p. 150
apud REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 27.
175
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 28.
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pois na base de tudo, na ordem gnoseológica, há a experiência, muito embora não deva ser
sempre a experiência empírica das ciências positivas”176. Em REALE há um meio termo. Não
devemos pretender “arrancar tudo de nós mesmos”, mas, também, não devemos “ficar
jungidos à descrição empírica do real, julgando que tudo se esgota na própria experiência
causalmente entendida”. A experiência significa, para REALE, não o tudo, mas a “condição
de todo conhecimento”. “Sem adiantarmos as conclusões desta monografia [...] vamos nos
ater à consideração de duas conseqüências do subjetivismo lógico-formal tão bem defendido
por Del Vecchio e que, como dissemos, conta com imponente séqüito na Filosofia jurídica
contemporânea” 177.
176
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 31.
177
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 32.
178
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 32.
179
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 33-34.
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ilícitos”, “os quais podem ser considerados ilícitos pelo Estado e condenados pela razão ética,
mas nem por isto deixam de ser jurídicos: a ordem jurídica só se caracteriza por seus
requisitos formais”. Tratou-se de uma conclusão apegada ao princípio da coerência lógica, dita
por KANT como o primeiro dos deveres no estudioso de Filosofia do Direito 180.
Esta teoria lógico-formal do Direito ainda encontrou outros entraves. Se há um
dever do eu, qual o dever da sociedade? O que explica tal heteronomia do
Direito?
Foi um discípulo de GIORGIO DEL VECCHIO, ALFREDO POGGI, que pretendeu
resolver a questão. Para tal pensador, “o elemento ético é essencial ao vínculo jurídico que
não pode prescindir de seu conteúdo deontológico, devendo a idéia do Direito ser
reconduzida ao único ideal próprio do ser racional: ao respeito da dignidade humana”. Eis o
erro em se buscar o Direito ou pelo viés puramente gnosiológico, ou pelo viés puramente
empírico181.
Para ALFREDO POGGI, o eu põe, além do não-eu, além do outro-eu, a sociedade. É a
sociedade exterior uma mera projeção da sociedade já preformada no espírito. “Isto quer
dizer que o contrato social de Rousseau apanha um segundo momento, ilusório, da vida do
espírito: o espírito, quando se põe, já põe a sociedade, e a razão de obedecer e comandar”.
Para REALE, trata-se de uma explicação engenhosa, mas que não convence182.
REALE aduz que o contratualismo jusnaturalista e o idealismo subjetivo falham na
tentativa de resolver antinomias do Direito partindo do homem natural ou do eu puro, sem se
referir à idéia do Direito, ao ideal que a ordem jurídica integra183.
180
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 34-35.
181
ALFREDO POGGI, Il concetto del Diritto e dello Stato, cit., p. 44, 49, 50 e passim apud REALE, Miguel.
Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 36.
182
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 37.
183
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 38.
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Age não como meio ou veículo das forças da Natureza, mas como ser
autônomo, com qualidades de princípio e de fim; não como impelido ou
arrastado pelas ordens dos motivos, mas como dominador deles; não
como pertencente ao mundo sensível, mas como partícipe do inteligível;
184
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 39-40.
185
JHERING, El Fin em el Derecho (Der Zweck im Recht, trad. de Leoanrdo Rodriguez, Madri, p. 270 apud REALE,
Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 40.
186
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 41.
187
DEL VECCHIO, Filosofia del Derecho, cit. Vol. I, p. 435 apud REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 41-42.
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Taxonomia contratualista
De todo o visto, podemos vislumbrar o contratualismo com a seguinte classificação
didática (baseada na minha leitura de REALE):
188
DEL VECCHIO, Filosofia del Derecho, cit. Vol. I, p. 435 apud REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 43.
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razão (imperativo de ordem lógica). Dentro de seu espírito gnosiológico (noticiado já no 1.º
encontro de nosso Pequeno Curso de Filosofia do Direito), KANT busca um direito válido por si,
mas num plano normativo. Simples dever ser. É o efeito do corte epistemológico e kantiano
entre ser e dever ser.
Com efeito, KANT enxerga o universo de forma dualista:
a) a ordem cósmica, sujeita às leis causais (estrutura lógico-objetiva da realidade); e
b) a ordem noumental (ordem da liberdade).
O homem se situa nas duas ordens: não deixa de ser um “componente bioquímico”
(ser vivo que é, estrutura físico-química complexa capaz de absorver e gerar energia por
contra própria), mas assume também espaço enquanto ser espiritual. Neste sentido, o homem
é livre: tem ele liberdade de deliberações.
A doutrina kantiana é o encontro da intersecção entre o determinismo e o livre
arbítrio. A tentativa de conciliar as duas ordens é, por assim dizer, o resumo dos esforços de
KANT para a Filosofia do Direito.
191
REALE, Miguel. O contratualismo – posição de Rousseau e Kant. Revista da Faculdade de Direito de São
Paulo, v. 37, 1942, p. 142.
192
REALE, Miguel. Liberdade e valor. Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, v. 53, 1958, p. 94.
193
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70,
2007, p. 70.
194
KANT, Immanuel. Metafísica dos Costumes. Trad. Edson Bini. Bauru: Edipro, 2003, p. 25.
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Quando KANT propõe isso, deixa claro o ponto essencial de sua doutrina filosófica:
no centro de toda a vida jurídica está o problema da liberdade. Em sua concepção, “a
humanidade e toda criatura humana tem um fim em si mesma, que é a sua própria
felicidade”196. Se todo homem é livre, jamais poderá ser um meio; deve ser sempre um fim.
De maneira que a única possibilidade de todos serem livres é a pactuação de um acordo de
liberdades (contrato). O “contrato kantiano”, digamos assim, se desenrola num puro plano
normativo.
195
SANTOS, Mário Ferreira dos. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais, p. 554.
196
SANTOS, Mário Ferreira dos. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais, p. 733.
197
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 45-46.
198
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 46.
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sendo criação da razão pura. Nesse contexto viveram os homens à época da Revolução
Francesa. Não se pode negar, diz REALE, por isso, o caráter revolucionário do Direito
Natural dos séculos XVII e XVIII199.
MIGUEL REALE faz a observação, para o leitor, de que se atentará à base do
historicismo de FRIEDRICH CARL VON SAVIGNY, com especial atenção ao que o pensador
atribuiu ao que ele entendia por formação da sociedade, do Direito e do Estado 200.
Sob o ponto de vista do fundamento do Direito, a Escola da FRIEDRICH CARL VON
SAVIGNY e de GEORG FRIEDRICH PUCHTA significou uma contraposição, “ponto por ponto”,
do contratualismo. Uma reação, diz REALE, contra a abstração do homem natural e, também,
contra as edificações artificiais (ficcionalista) da sociedade e do Direito (= Escola
Histórica)201.
A Escola Histórica não surgiu de inopino. Ela é resultado de longo
desenvolvimento anterior, encontrando gênese no início do século XIX. Com uma pujante
vertente jusnaturalista, a Revolução Francesa foi quase inteiramente pautada pelo Direito
Natural. Havia certo fanatismo do revolucionário pela lei (reflexo da teoria de ROUSSEAU:
a lei seria ferramenta de transformação do homem; confiança exagerada na razão humana).
Pois bem: o movimento historicista surge para aparar as arestas do excesso de
abstração dos jusnaturalistas pró-revolucionários. Como indica o próprio nome, a
Escola Histórica procurou indagar as razões históricas do Direito. Sobre o assunto, MÁRIO
FERREIRA DOS SANTOS frisou que “com Savigny afirma-se o sentido panteísta socialista
alemão, que é a tese fundamental da escola histórica. Para esta há uma força latente e fatal
que governa o mundo e o impele pelo caminho do progresso universal. Ela se opõe à
contratualista francesa, que afirma a presença e a atuação da vontade humana na direção da
história, para afirmar contrário, pois aquela é apenas o produto de uma evolução natural”202.
Três nomes bem representam a Escola Histórica (com repercussão no Direito):
• GIAMBATTISTA VICO, fundador da “Filosofia da História”, cujo magnum opus foi
intitulado Scienza Nuova (“Nova Ciência”) – “per dar forma adunque alle materie
qui innanzi apparecchiate sulla Tavola cronologica, proponiamo ora qui i seguenti
assiomi o degnità così filosofiche come filologiche, alcune poche, ragionevoli e discrete
domande, con alquante schiarite diffinizioni; le quali, come per lo corpo animato il
sangue, così deono per entro scorrervi ed animarla in tutto ciò che questa Scienza ragiona
della comune natura delle nazioni”203;
199
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 46.
200
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 47.
201
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 48.
202
SANTOS, Mário Ferreira dos. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais, p. 1272-1273.
203
VICO, Giambattista. Princìpi di scienza nuova d’intorno alla comune natura delle nazioni. Estratti dall’edizione
del 1744 con parafrasi a cura di G. VOLPE, p. 2.
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204
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 48.
205
SANTOS, Mário Ferreira dos. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais, p. 1373-1374.
206
JACQUES LECLERCQ, Leçons de droit naturel – Le fondement Du droit et de La societé, 2ª ed., 1993, p. 375 apud
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 49.
207
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 49-50.
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De fato, se KANT nos domínios da filosofia jurídica não foi tão grande
inovador como o foi na Lógica e na Ética, não é menos certo que a sua
mudança de atitude em face do problema do conhecimento implicou uma
orientação de fecundos resultados, não só no plano da especulação
filosófica, como na tela da Ciência Positiva do Direito, como se pode
ver, por exemplo, nas obras de um HUGO e de um THIBAUT.
[...].
A opinião corrente que vê em THIBAUT apenas um discípulo de SAMUEL
PUFENDORF, como faz, por exemplo, ALEXANDRE CORREIA (A
Concepção Histórica do Direito, São Paulo, 1934) não dá ao grande
adversário de SAVIGNY o exato lugar que lhe compete210.
general para Alemania’, donde defendería la elaboración e implantación a corto plazo de un código
para toda la nación alemana”211.
Seu opositor, FRIEDRICH CARL VON SAVIGNY, saiu em defesa de caminho bem
diferente. Escreveu, em 1814, a obra Vom Beruf unserer Zeit für Gesetzgebung und
Rechtswissenschaft (“Da Vocação de Nossa Época para a Legislação e a Jurisprudência”),
defendendo que não era o caso de fazer codificação, pois o Código, de certa forma, paralisa
a evolução jurídica, estancando as forças vivas que constituem a gênese do Direito. A
codificação seria fenômeno típico de nações cansadas e de povos incapazes de produzir coisas
novas. Os romanos foram capazes de estender sua cultura para outras gentes sem essa
preocupação com a codificação: criaram, assim, um início de uma ciência jurídica de matiz
empírica, aperfeiçoada com a experiência e com princípios doutrinários.
ANTON FRIEDRICH JUSTUS THIBAUT contra-atacou respondendo que um código
não implica, necessariamente, a morte do Direito. Um código só estabelece as grandes
estruturas lógicas. Ele é o histórico consagrado em categorias jurídicas.
Note-se que esta peculiar divergência entre ambos não retira um e outro da Escola
Histórica. SAVIGNY, em verdade, não era contrário à codificação em si. Ele se opunha, na
realidade, à codificação inoportuna, sem processo jurídico espontâneo e natural. THIBAUT,
a seu turno, defendia a codificação naquele preciso contexto. Um e outro são da Escola
História, com uma diferença pontual: o historicismo de SAVIGNY é integral; o de THIBAUT é
puramente metodológico.
A explicação da posição de FRIEDRICH CARL VON SAVIGNY está na sua concepção
romântica do Direito: o fundamento deste descamba no espírito de cada povo. Um Código
Civil de uma nação, assim, é o resultado de uma lenta elaboração histórica. Essa noção de
“espírito do povo” não é simples metáfora na obra do grande jurista alemão. Seria uma
entidade real, algo que existe concretamente na história, suscetível de estudo pelo jurista. O
“espírito do povo” não é um ponto metafísico; é um produto cultural e histórico. Ele revela
os usos e os costumes da nação. Divergindo do ideal revolucionário francês – e aí se percebe,
precisamente, a oposição da Escola Histórica aos eventos de 1789 –, SAVIGNY não enxergava
a lei como máxima expressão do Direito. O costume é a principal fonte do Direito. O papel do
legislador, no máximo, está em verificar aquilo enraizado como hábito na sociedade,
transformando o evento numa declaração legislativa. A lei seria produto redundante: repete
o que já se verifica no costume.
211
PÉREZ VÉLIZ, Alie. Vigencia de la escuela histórica en la enseñanza del derecho. Misión Jurídica – Revista
de Derecho y Ciencias Sociales. Bogotá, Colombia, n. 8, jan./jun. 2015, p. 9..
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212
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 50.
213
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 50-51.
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214
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 51-52.
215
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 52-53.
216
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 53.
217
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 54-55.
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218
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 55.
219
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 57.
220
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 58.
221
REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3.ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 58.
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• a segunda trata do ato humano e moral. Ela se divide em duas seções: i) do homem
em geral; e ii) do homem em específico; e
• a terceira versa sobre JESUS CRISTO e sobre os Sacramentos da Igreja Católica.
Cada parte da Suma é subdividida em questões. As questões são enfrentadas em
artigos.
Graficamente, a Suma Teológica é assim dividida:
222
Ver, inicialmente, CORREIA, Alexandre. Concepção Tomista do Direito Natural. Revista da Faculdade de
Direito de São Paulo, v. 35, n. 3, 1940.
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223
Notas de aula ministrada pelo Prof. CLAUDIO PEDROSA NUNES.
224
Notas de aula ministrada pelo Prof. CLAUDIO PEDROSA NUNES.
225
Notas de aula ministrada pelo Prof. CLAUDIO PEDROSA NUNES.
226
Notas de aula ministrada pelo Prof. CLAUDIO PEDROSA NUNES.
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segunda parte da Suma, mais precisamente a partir da questão 57, para compreensão do
Direito na obra tomista.
Para compreender outros aspectos da riquíssima obra de SANTO TOMÁS DE
AQUINO, arrolo – como sugestões – os seguintes cursos/materiais:
• o Curso de Introdução a Santo Tomás de Aquino, de Pe. PAULO RICARDO;
• os cursos de SIDNEY SILVEIRA, grande conhecedor da obra tomista;
• os cursos do Prof. CARLOS NOUGUÉ, outra figura brilhante; e
• o Canal Aquinate, de BERNARDO VEIGA.
Pretendo retornar ao material aqui concebido depois de algumas décadas, para
aprofundá-lo sem os vícios de alguém ainda imaturo.
Espero que este material tenha alguma utilidade para iniciantes. E friso: nada
substitui a leitura dos grandes.
Bons estudos,
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
______; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 11.ª ed. São
Paulo: Atlas, 2015.
CATHREIN S. J., Victor. Philosophia Moralis. Alemanha: Herder & Co, 1935.
______. Recht, Naturrecht und positives Recht. Freiburg: Herder & Co, 1909.
CICERO, Marcus Tullius. The Speech for Aulus Licinius Archias, the Poet.
Disponível em: http://twixar.me/s601.
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