Você está na página 1de 27

55

4. AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA COMO PROTEÇÃO PARA AS


MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA

A Lei Maria da Penha em seus Art. 18 a 24 dispõem das medidas protetivas de


urgência que tem por objetivo proteger a mulher em situação de violência doméstica e
familiar nos casos de risco iminente à sua integridade física e psicológica. Tais medidas
podem ser concedidas pelo Juiz a requerimento da ofendida ou do Ministério Público e,
geralmente, têm início com o recebimento de ofício de encaminhamento do pedido pela
autoridade policial ou do requerimento feito pelo Ministério Público, Defensoria
Pública ou de advogados particulares.
Recebido o pedido, caberá ao juiz, no prazo de 48 horas, conhecer do expediente
e decidir sobre as medidas de urgência; determinar o encaminhamento da ofendida ao
órgão de assistência judiciária, quando for o caso; comunicar ao Ministério Público para
que adote as providencias cabíveis (art. 18). As medidas protetivas de urgência poderão
ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de
manifestação do Ministério Público, assim como serão aplicadas isolada ou
cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior
eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados. O
Juiz também poderá conceder novas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já
concedidas, se entender necessário (art. 19).
Dias (2015, p.138) esclarece que

Para agir, o juiz necessita ser provocado. A adoção de providência


está condicionada à vontade da vítima. Ainda que a mulher proceda ao
registro da ocorrência, é dela a iniciativa de pedir proteção por meio
de medidas protetivas. Só assim é formado expediente para deflagrar a
concessão de tutela provisional de urgência. Mas, a partir do momento
em que a vítima requer medidas protetivas, pode o juiz agir de oficio,
adotando medidas outras que entender necessárias, para tornar efetiva
a proteção que a Lei promete à mulher.

De acordo com o Capítulo II da Lei n. 11.340 (arts. 22 e 23), existem dois tipos
de medidas protetivas: I – as medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor; e
II – as medidas protetivas de urgência à ofendida. Das medidas que obrigam o agressor
tem-se: suspensão da posse ou restrição do porte de armas; afastamento do lar,
domicílio ou local de convivência com a ofendida; proibição de aproximação da
56

ofendida, familiares e testemunhas (fixação de distância mínima); proibição de contato


com a ofendida, familiares ou ofendida por qualquer meio de comunicação; proibição
de frequentar determinados lugares; restrição ou suspensão de visitas aos dependentes
menores; prestação de alimentos provisionais ou provisórios. Além disso, pode o
magistrado a qualquer momento requisitar o auxílio da força policial ou até mesmo
decretar prisão preventiva do agressor (art. 22).
Das medidas protetivas à ofendida tem-se: encaminhar a ofendida e seus
dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;
determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio,
após afastamento do agressor; determinar o afastamento da ofendida do lar, sem
prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos; determinar a
separação de corpos; restituição de bens subtraídos pelo agressor; proibição temporária
para a celebração de atos e contratos referentes à propriedade em comum; suspensão das
procurações conferidas da ofendida ao agressor; prestação de caução provisória,
mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de
violência doméstica e familiar contra a ofendida (art. 23 e 24).
A competência para apreciar e decidir as demandas é dos Juizados de Violência
Doméstica e Familiar contra a Mulher (JVDFMs), espaço especializado para o processo,
o julgamento e a execução das causas de natureza cível e criminal. De acordo como o
“Manual de Rotinas e Estruturação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher”, o pedido de medidas protetivas de urgência deve conter todos os
elementos probatórios que a vítima conseguir reunir, tais como: documentos pessoais,
certidão de casamento e de nascimento dos filhos, declarações de testemunhas, boletim
de atendimento médico, auto de exame de corpo de delito, fotografias e, se possível,
contar com relatório elaborado pela equipe de atendimento multidisciplinar do Juizado.
As equipes multidisciplinares, conforme art. 29 da Lei n. 11.340, são compostas
por profissionais especializados nas áreas de psicologia, serviço social, jurídica e de
saúde e têm o objetivo de prestar atendimento integral e humanizado às mulheres em
situação de violência doméstica, assim como às demais pessoas inseridas na relação
afetiva ou familiar.
Após a concessão da medida protetiva, há a expedição dos mandados de citação
para que, em até 5 dias, o requerido – o agressor – ofereça resposta; de intimação do
requerido acerca do deferimento das medidas protetivas e mandado de notificação da
mulher agredida. O juiz poderá optar, ainda, pela realização de audiência de justificação
57

quando os elementos probatórios não forem suficientes para formar seu convencimento,
isto é, nos casos em que não vier acompanhado de elementos suficientes ao acolhimento
do pedido de medida protetiva.
A Lei Maria da Penha não estipulou prazo específico de duração das medidas
protetivas de urgência, contudo, deve-se considerar que as medidas protetivas
permaneçam enquanto forem necessárias para garantir a integridade física, psicológica,
moral, sexual e patrimonial da mulher vítima da violência. Dessa forma, o juiz deverá
analisar as particularidades de cada caso, de modo a considerar o interesse da vítima em
manifestar que se encontra em situação de risco.
A Portaria Conjunta nº 30, de 09 de outubro de 2017 da Corregedoria e
Presidência do Tribunal do Rio Grande do Norte, havia estabelecido que a eficácia das
medidas protetivas concedidas surtiria seus efeitos pelo prazo de 90 (noventa) dias, a
contar da intimação das partes. Decorrido o lapso temporal dos noventa dias, arquiva-se
definitivamente, com baixa na distribuição. No entanto, o Ministério Público interpôs
reclamação contra essa decisão que estabeleceu o referido prazo. Assim, a aplicação
desse instrumento legal caberá aos juristas, fundamentado na análise das
particularidades de cada caso, afim de que se possa garantir proteção integral às
mulheres em situação de risco no âmbito doméstico e familiar.
Considerando que as medidas protetivas deverão permanecer enquanto forem
necessárias para garantir a integridade da mulher vítima da violência, cabe mencionar
que a sua concessão nem sempre estará vinculada a inquérito policial ou eventuais
processos cíveis ou criminais, exatamente porque deve-se ponderar que os tipos de
violência doméstica definidos no Art. 7º da Lei Maria da Penha, nem sempre se
configuram infração penal, prevista no Código de Processo Penal. Ou seja, a medida
protetiva concede a proibição de contato, aproximação ou comunicação com a ofendida
e outras, o tempo que for necessário, mas não implica que o agressor seja submetido a
um procedimento criminal.
O juiz poderá decretar a prisão preventiva, mas também pode revoga-la no curso
do processo, caso verifique a causa falta de motivo que o subsista, conforme Art. 20.
Além disso, a busca da proteção, por meio das medidas protetivas, nada impede que a
vítima busque a solução do litígio envolvendo o divórcio, a guarda de filhos, alimentos
ou do patrimônio (partilha de bens).
Neste ano de 2018, a legislação avança a partir da Lei 13.641 que altera a Lei
Maria da Penha em seu Art. 24, quando passa considerar crime o ato de descumprir
58

medidas protetivas de urgência. Neste caso, a pena de detenção, varia de 3 meses a 2


anos. A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que
deferiu as medidas; na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial
poderá conceder fiança, assim como não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.
Antes, havia somente a possibilidade da decretação da prisão preventiva do agressor
para garantir a execução das medidas, como prever o Código de Processo Civil.
De acordo com o Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Norte, a
justiça estadual contabiliza, em 08 de março de 2018, o total de 12.486 processos em
tramitação sobre violência doméstica e familiar contra a mulher. Em Natal, capital do
estado, são três Juizados de Violência Doméstica e Familiar. Natal é a comarca com
maior número de processos desta natureza, com 3.099 processos. Seguida por
Parnamirim (2.373) e Mossoró (845). Completam a lista das dez comarcas com maior
concentração de casos Goianinha (437), Macaíba (401), Ceará-Mirim (399), Santa Cruz
(326), Assú (305), Caicó (304) e São José de Mipibu (277). O levantamento23 foi
realizado pela Secretaria de Gestão Estratégica do Tribunal de Justiça do RN.

4.1 AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA NO CONTEXTO DA VIDA DAS


MULHERES ATENDIDAS NA DEFENSORIA PÚBLICA DO ESTADO

PERFIL SOCIODEMOGRÁFICO DAS ENTREVISTADAS

FÁTIMA24 LOURDES VITÓRIA ANA MARIA DAS


GRAÇAS
Idade 42 anos 41 anos 32 anos 30 anos 51 anos
Natal - RN Natal – RN São Gonçalo Paulista - PB Marcelino
Naturalidade do Amarante - Vieira - RN
RN
Raça Parda Negra Negra Parda Branca
Estado Civil Solteira Solteira Solteira Solteira Casada
Filhos Três Um Três Dois Dois

Ensino médio Ensino médio Ensino Ensino médio Ensino

23
Disponível em: <http://www.tjrn.jus.br/index.php/comunicacao/noticias/13479-feminicidio-
rn-tem-mais-de-100-processos-em-fase-de-execucao-penal>.
24
Todos os nomes são fictícios a fim de garantir o anonimato das entrevistadas.
59

Escolaridade completo completo fundamental completo superior


incompleto incompleto
Revendedora Revendedora
Profissão autônoma Desempregada Desempregada autônoma Desempregada
(revenda de (revenda de
cosméticos) chips de
celular)
Local de Em sua ----------------- ----------------- Ponto -----------------
Trabalho residência Comercial
Um salário Inferior a um Inferior a um Um salário Inferior a um
Renda mínimo salário mínimo salário mínimo mínimo e salário mínimo
meio
Inserção em Bolsa família e
Programas Bolsa Família Bolsa Família Minha Casa ---------------- -----------------
Sociais Minha Vida

Entrevistar mulheres em situação de violência doméstica e familiar foi bastante


desafiador, pois o contato com a subjetividade do outro nos leva a um universo de
significados e provoca inúmeras reflexões em torno da problemática que pretende-se
analisar. As mulheres com quem dialoguei não apenas contribuíram com a pesquisa,
como também – e principalmente – se dispuseram a reviver episódios dolorosos que
marcaram suas vidas, expondo um pouco do que vivenciaram ao lado de quem um dia
jurou amá-las.
Para algumas mulheres, a entrevista foi encarada com tranquilidade e segurança
naquilo que se falava. Para outras, no entanto, ficava nítido que conversar sobre o
assunto causava dor, pois a fala, em vários momentos, veio acompanhada por lágrimas.
Algumas mulheres se recusaram a participar da pesquisa, por variados motivos, como
foi o caso de Patrícia, quando disse: “já repeti essa história tantas vezes, que não sei se
quero falar de novo”. É certo que todas elas tiveram um papel fundamental na
construção desse trabalho e, por isso, todas as falas foram acolhidas e respeitadas sem
juízos de valor.
As entrevistas foram realizadas no Primeiro Núcleo de Atendimento Cível da
Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Norte, com mulheres que buscavam o
serviço de assistência jurídica gratuita oferecido pela instituição. Cabe assinalar que a
Defensoria Pública tem um papel fundamental no enfrentamento a violência doméstica
e familiar contra a mulher, uma vez que em demandas dessa natureza é assegurado pela
lei Maria da Penha a presença de advogado/a e/ou defensor/a público/a. Trata-se de uma
instituição encarregada de prestar assistência jurídica, integral e gratuita às pessoas que
60

não disponham de recursos financeiros para custear as despesas com honorários de


advogado, sem prejuízo ao seu próprio sustento e da sua família.
Na Defensoria Pública funciona o Núcleo Especializado de Defesa da Mulher
Vítima de Violência Doméstica e Familiar – NUDEM, que tem por função primordial
assegurar à mulher vítima de violência doméstica e familiar o acolhimento por uma
equipe multidisciplinar, composta por assistente social, psicólogo, estagiários de direito
e Defensores Públicos, especializados no atendimento de demandas desta natureza 25.
Resgatemos que quando a violência contra mulher caracterizava-se um crime de
menor potencial ofensivo e o JECRIM atuava na resolução desse conflito, as mulheres
agredidas podiam comparecer em Juízo desacompanhadas desse profissional, o que
muitas vezes levava a aceitar uma conciliação indesejada, ou até mesmo, um acordo
com o agressor, para salvaguardar a harmonia do lar e da família.
A Lei Maria da Penha garante a toda mulher em situação de violência doméstica
e familiar o acesso aos serviços da Defensoria Pública, onde a mulher deverá receber
um tratamento humanizado, por uma equipe multidisciplinar e tenha seus direitos
defendidos pelos Defensores Públicos, que buscam resolver questões jurídicas e sociais,
tanto judicialmente quanto extrajudicialmente, conforme Art. 28. Dessa forma, a
Defensoria Pública atua quando a vítima manifesta interesse em requerer as medidas
protetivas de urgência e quando deseja ingressar em ações cíveis, como de separação,
divórcio, guarda de filhos, medidas patrimoniais, dentre outras.
Cada mulher entrevistada, na sua singularidade, trouxe um pouco da sua história
ao revelar o que vivenciou em uma relação afetivo-conjugal marcada pela violência
doméstica. E embora tenha sido identificado elementos particulares a realidade de cada
mulher, pôde-se constatar que muitas falas eram compartilhadas entre elas, isto é, havia
elementos em comum.
Nesse sentido, o esforço consistiu em trazer a dimensão coletiva, aquilo que foi
apontado individualmente, problematizando as falas a partir da discussão teórica
proposta nos tópicos anteriores. No decorrer desse tópico sistematizou-se os
depoimentos das entrevistadas buscando comtemplar os seguintes eixos analíticos: as
relações patriarcais de gênero; a violência doméstica; as medidas protetivas de urgência;
e a Lei Maria da Penha.

25
https://www.defensoria.rn.def.br/nucleo/defesa-da-mulher-vitima-de-violencia-domestica-e-
familiar
61

As mulheres em situação de violência doméstica não são vítimas somente dos


seus parceiros ou ex, a meu ver, seu maior agressor é o sistema patriarcado que produz e
legitima as desigualdades entre os gêneros, tendo na violência contra a mulher a
máxima de sua expressão. Numa sociedade alicerçada em uma cultura machista e
patriarcal, os homens usam da violência para controlar as mulheres e submetê-las a sua
dominação. Sendo assim, é oportuno trazer o que Teixeira (2016, p.34) aponta: “Não se
mata por amor! Não se violenta por amor. O que mata é a perda de controle sobre
aquela que, de uma forma ou de outra, procurou liberta-se das amarras que a
acorrentavam.”
Refletir sobre as questões de gênero é extremamente relevante para
compreender, a partir da percepção das entrevistadas, o papel da mulher e do homem na
sociedade. Considerando que as desigualdades de gênero permanecem profundamente
arraigadas no contexto atual, dada a historicidade da subordinação feminina as
necessidades pessoais e políticas dos homens, identificou-se elementos que apontam
que tal desigualdade se faz presente nos espaços da vida pública e privada das relações,
estruturando relações de poder entre homens e mulheres. As seguintes falas evidenciam
essa realidade:

Eu não considero que eles são iguais porque o homem quer sempre ser
melhor que a mulher em tudo. Por exemplo, em relacionamentos quer
mandar na mulher, não quer que ela saia de casa, nem pra ir pra casa
da mãe. Eu tiro pelo pai dos meus filhos, se eu tivesse andando na rua
e passasse um homem, eu tinha que olhar pra baixo, ele queria que eu
só vivesse dentro de casa, tipo uma prisioneira. Mas quando chegava
final de semana, ele ia pras festas e me deixava trancada dentro de
casa, botava a chave no bolso e se mandava. (Fátima)

Dentro de casa eles não são iguais. Eu acho que o homem era pra
ajudar a mulher dentro de casa. Tem homem que ajuda, mas não é
todos. Eu acho assim, o homem quando chega em casa só se dedica a
assistir jogo e beber. Quer a casa arrumada, a comida feita, não ajuda
nem a botar as crianças pra dormir. É tudo a mulher. (Ana)

A execução de tarefas relacionadas às necessidades do cuidado, da manutenção


da casa, da alimentação e com os filhos, aparece reservada ao universo feminino. De
acordo com Ávila (2015), as desigualdades de classe e de raça entre as mulheres, ao
longo da história, determinaram a sua inserção na relação trabalho doméstico/trabalho
assalariado. No caso do trabalho doméstico, este se tornou responsabilidade exclusiva
para as mulheres, de todas as classes sociais e apesar da mulher está se inserindo cada
62

vez mais no mercado de trabalho, isso não significou uma transformação na sua relação
com o trabalho doméstico e familiar.

Embora a autora argumente que tal responsabilidade repousa para todas as


mulheres, cabe uma ressalva, pois as mulheres ricas podem pagar empregadas
domésticas e assim delegar esses trabalhos, estes executados, na maioria das vezes, por
mulheres negras. Assim, o que se mantem, nesses casos, é a reponsabilidade de orientar
as mesmas de como desenvolver as tarefas domésticas. Vejamos a seguinte fala:

Eu acho assim que depois que as mulheres começaram a trabalhar,


quando ela deixou de ser a mãe, a mulher de casa, a ocupar outros
espaços, por exemplo, trabalhar fora, sustentar a própria família, então
eu acho que hoje em dia existe essa igualdade. Hoje em dia você vai
em um restaurante, a mulher já pode pagar a conta. Agora, a partir do
momento que os dois trabalhavam, ele chegava em casa, assistia
televisão e eu trabalhava na cozinha. E ainda pedia água. [...] dentro
de casa o negócio é diferente. (Neuma)
Existe uma contradição entre autonomia financeira e sobrecarga de trabalho, em
decorrência da jornada extensiva de trabalho – compreende o trabalho assalariado e o
trabalho doméstico não assalariado. Apesar da participação feminina no mercado de
trabalho ter aumentado consideravelmente nas últimas décadas, a dinâmica da divisão
sexual do trabalho na esfera familiar sofreu poucas alterações.

Dados da PNAD (2016) apontam que 82% dos afazeres domésticos são
realizadas por mulheres, mesmo num cenário em que 40% dos lares brasileiros são
chefiados por elas, evidenciando uma jornada extensiva de trabalho. Ainda segundo a
pesquisa, os homens dedicam cerca de 10 horas semanais às atividades não
remuneradas, enquanto as mulheres dedicam pelo menos o dobro desse tempo. E mais:
40 milhões de mulheres têm como atividade única o trabalho não remunerado.
As mulheres acabam tendo que conciliar as tarefas domésticas, com o trabalho
assalariado, todavia, considerando por outro lado as mulheres que estão exclusivamente
no trabalho doméstico não remunerado, a contradição se coloca em outros termos, uma
vez que a ausência de uma renda própria se configura como um impedimento à
autonomia das mulheres (ÁVILA, 2015).
A gente que não tem escolaridade, que não tem um emprego fixo ou
uma renda boa, sofre demais. É humilhada o tempo todo pelo o
homem, porque você não tem o seu dinheiro. (Vitória)
63

Segundo Ávila (2015) a divisão sexual do trabalho, instituída na sociedade


capitalista, dá significado às práticas de trabalho nas esferas produtiva e reprodutiva das
relações. No campo reprodutivo, onde a presença feminina é majoritária, há uma
distribuição desigual de trabalho entre homens e mulheres, bem como uma
diferenciação de tarefas no interior do espaço doméstico. Quando homens executam
atividades referentes ao cuidado com o lar, por exemplo, eles estão, na verdade,
exercendo um trabalho que é de mulheres. Na esfera produtiva, por sua vez, há uma
concepção sobre o que é trabalho de homens e de mulheres. Em razão disso, o valor
atribuído ao trabalho de ambos se mostra diferenciado, expressando uma desigualdade
salarial, de modo que as mulheres recebem baixos salários, em relação aos homens,
além de ocuparem cargos cada vez mais precarizados, menores remunerações.
Queiroz (2008) esclarece que as transformações político-econômicas da
sociedade pré-industrial foram responsáveis por desencadear a separação entre as
funções domésticas e sociais. Ao mesmo tempo, seus conteúdos específicos começaram
a sofrer alterações, denominando o que na atualidade chama-se de âmbito privado (no
sentido de doméstico) e âmbito público. Cada um passou a desenvolver sua própria
lógica: o âmbito doméstico relacionado a afetividade, a atenção e o cuidado das
crianças, a socialização primária; o âmbito público relativo a racionalidade, a
inteligência, a eficácia no exercício do poder, no mundo público.
Essa divisão, segundo a autora, acarretou em graves consequências a família
que, apoiada na figura feminina, se afirma como o lugar dos sentimentos e da
intimidade. Dessa forma, aos homens passou a caber o espaço público da produção, isto
é, das grandes decisões e do poder. Às mulheres foi atribuída a responsabilidade da
reprodução, em todas as suas formas, no seio familiar. Seu trabalho enquanto
“reprodutora” foi naturalizado, cabendo à mulher a execução e supervisão de todas
aquelas tarefas conhecidas por trabalho doméstico (QUEIROZ, 2008).
A construção dos papeis patriarcais de gênero reservou às mulheres a condição
de subordinação e inferioridade expressa de diferentes formas, a exemplo do mercado
de trabalho. Ao naturalizar as papeis sociais, legitima-se as atividades próprias do
universo feminino e masculino. Podemos observar nas seguintes falas:

Na sociedade existe ainda aquele preconceito de que o homem tem


prioridade, o homem pode fazer isso e aquilo e a mulher não. Até em
termos de trabalho, de salários. (Vitória)
64

Pra mim as mulheres tem menos vantagens que o homem. O homem é


pra tudo, pra emprego, pra entrar em um ambiente público é melhor
do que a mulher, ele é mais bem recebido, tem a voz mais alta. A
mulher pra tudo é diminuída demais [...]. Pode ter as mesmas funções
de trabalho, como hoje, tem até mulher que é pedreira, mas ainda é
discriminada. Tem mulher que é taxista e quando você entra no carro
o homem já olha e diz, uma mulher? Pode ser em qualquer carro, já
quer olhar se é uma mulher no volante. (Lourdes)

Em linhas gerais, observa-se que no cotidiano das relações entre homens e


mulheres, tanto na esfera doméstica, quanto no mundo do trabalho, a desigualdade é
perceptível ao olhar das mulheres entrevistadas. Cada uma, a sua maneira, trouxe algum
elemento que tornou explícita essa questão. Cabe mencionar que em nenhum momento
foi dito por elas que o lugar do homem seria no espaço público, como provedor
financeiro da família, ao passo que o lugar da mulher é em casa, cuidando do lar. Ao
contrário, elas apontaram para a necessidade de mudança nas relações.
A multiplicidade de tarefas no âmbito doméstico é presente no dia a dia das
mulher e resulta, dentre várias coisas, na escassez de tempo para si. Chamou-me a
atenção o que a entrevistada Fátima expunha minutos antes da entrevista, a respeito
dessa relação entre trabalho e cuidados consigo. Dizia que, antes de se relacionar com o
pai do seu filho – que por sinal foi quem a agrediu meses depois – trabalhava como
recepcionista e sempre andou bem arrumada, no salto, pois fazia parte da sua rotina o
cuidado com a beleza.
Essa realidade mudou totalmente quando passou a residir com o companheiro.
Parou de trabalhar, pois segundo ela, era necessário cuidar do filho recém-nascido, e
passou a se dedicar exclusivamente ao trabalho doméstico. Seu parceiro, além de não
dividir as tarefas do lar e o cuidado com a criança, sempre a subjugava, alegando que
“cuidar da casa nem dava esse trabalho todo”.
Sobrecarregada com o trabalho doméstico, conta que o seu parceiro aproveitava
da situação para dizer que ela estava muito desleixada, que não tinha como sair
publicamente com ela daquele jeito “toda maltrapilha”. Segundo Fátima, foi horrível
ouvir aquilo, já que ela sempre gostou de andar bem arrumada. Algumas amigas quando
a viram, chegaram a dizer: “nossa, Fátima, quem era você”. A diminuição da autoestima
da mulher, fator constante no relacionamento de Fátima, também foi citada por outra
entrevistada.
65

O meu (marido) uma vez chegou pra mim e disse: você não tem mais
feminilidade, você já está feia e gorda, e você vai ficar pior. Na mesa
do café da manhã ele disse isso. Nossa, isso acabou comigo, eu que já
estava acabada, aquilo me destruiu. A menopausa batendo na porta.
(Maria das Graças)

Nas relações marcadas pela violência doméstica, há uma combinação de fatores


que integram um ciclo difícil de ser rompido pela mulher em situação de violência. A
diminuição da autoestima é apenas um deles. Talvez, para alguns, em especial os
homens, tal atitude seja encarada como um exagero desnecessário, todavia, isso provoca
uma ferida enorme na mulher que, muitas vezes, fala que é difícil dimensionar.
Constatou-se mediante as entrevistas que a violência psicológica predomina nas
relações, visto que foi apontada por todas as entrevistadas como a mais praticada pelo
agressor, juntamente com a violência moral. Em seguida, foi citada a física, a
patrimonial e a sexual. Somente duas entrevistadas afirmaram ter sofrido a violência
sexual. Cabe destacar que nenhum desses tipos de agressão ocorrem isoladamente, ao
contrário, agem combinados.
De modo unanime, as mulheres relatam que a violência psicológica era
comumente utilizada para fazer com que aceitassem tudo aquilo que o parceiro queria.
Queiroz (2008) explica que a violência psicológica é bastante incidente e também é
“invisível” aos olhos, uma vez que não se enxerga o corpo violentado. Todavia, deixa
profundas marcas na mulher. Essa modalidade da violência ocorre na esfera das
relações interpessoais, por intermédio da comunicação e da linguagem, assumindo
várias formas, tais como: o xingamento, a humilhações em público, acusação de ter
amantes, cárcere privado, proibição de fazer amizades, privação econômica, dentre
outras. É certo que esse tipo de violência tem por objetivo destruir o respeito e a
autoestima das mulheres.
Cabe reiterar que conforme disposto no Art. 7º da Lei Maria da Penha, configura
violência psicológica qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da
autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise
degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante
ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante,
perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do
direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à
autodeterminação.
66

Queiroz (2008) também aponta que a violência psicológica acaba sendo relegada
a segundo plano pelas autoridades policiais, havendo uma dificuldade em reconhecer
essa modalidade da violência. Várias mulheres temem denunciar o agressor pelo
descrédito que muitas vezes é dado ao relato delas, assim como vários serviços públicos
não registram a denúncia da mulher corretamente. Estima-se que essa forma de
violência se faz presente em cerca de 15 milhões de lares brasileiros, o que é bastante
preocupante.
As falas que se seguem demonstram a dimensão que a violência psicológica
provoca na vida das mulheres entrevistadas.

Ele sempre dizia assim, que mulher pra viver comigo tem que ser do
jeito que eu quero. Tipo, não mexa nisso, não faça aquilo, tinha
sempre que obedecer e se não obedecesse apanhava. (Vitória)

Quando ele começou a me trair, foi muito cedo, eu vivi 25 anos com
ele, no terceiro mês de casamento eu fui na casa da menina com um
revolver cheio de bala matar a menina. Foram 9 amantes. Ele ia
embora, ficava com as amantes, elas o traiam e ele voltava pra casa. E
assim, eu tinha medo da solidão, de não conseguir sobreviver, tinha
medo de um monte de coisa, mas no fundo eu que sempre mantinha a
casa, porque ele só vivia no bar bebendo e com as mulheres no
mundo. Você está vendo, como ele conseguia manipular a minha
mente pra eu não conseguir enxergar tudo isso, e não ter forças pra
sair da relação? É aí onde está o problema, as pessoas falam que não
deixam porque é sem-vergonha. Não é não. São vários fatores, além
da psicológica, porque eles têm uma capacidade incrível de acabar
com o seu psicológico. (Maria das Graças)

Pra mim a violência é até na parte do falar. Sobre isso, pra mim, é um
problema muito grave porque envolve com o seu psicológico. Quando
o homem ameaça a mulher, acaba a estrutura dela todinha, só no falar
já destruiu tudo nela. (Lourdes)

Eu passei dois anos com essa pessoa e ainda passei muito. Era um
inferno. Dizia as coisas comigo, era aquela pressão psicológica, sabe,
queria o tempo todo mandar em mim. Mas eu não ficava calada, se ele
dissesse um, eu dizia dois. (Ana)

Com toda certeza, absoluta, a violência psicológica foi a pior de todas.


Foi a principal. Teve agressão física, também teve patrimonial, a
verbal, agora a sexual não. (Fátima)

A violência psicológica é mais uma modalidade a compor a trama da violência


doméstica que, segundo Saffioti (2004), apresenta características específicas. Uma das
mais relevantes é a sua rotinização, o que contribui para a codependência e o
67

estabelecimento da relação violenta, constituindo-se em uma verdadeira prisão. Desse


modo, “o gênero acaba por se revelar uma camisa de força: o homem deve agredir,
porque o macho deve dominar a qualquer custo; e a mulher deve suportar agressões de
toda ordem porque seu “destino” assim o determina” (p. 85).
A teoria do ciclo da violência doméstica, já explicitada anteriormente, remete a
uma forma bastante recorrente nas histórias de violência contra a mulher. A fase de
acumulação da tensão, na qual o agressor utiliza de situações do cotidiano, muitas vezes
sob pretextos banais, tais como: a mulher ter chegado em casa atrasada por motivos
impossíveis dele controlar; foi visitar algum familiar sem que ele soubesse; a comida
não estava pronta no horário que ele queria; insinuar que a mulher teria um amante;
controlar o comportamento da mulher no espaço público, etc. Dessa forma, o agressor
culpa a vítima por quaisquer acontecimento que lhe cause frustação e irritação, levando-
a a se sentir culpada. Nessa fase percebe-se como a violência psicológica predomina.
O ciclo avança para a fase do ataque violento, onde se concretiza a agressão
física – lembrando que a violência psicológica permanece agindo – Os ataques violentos
põem em risco a integridade da mulher, em especial a física, podendo causar danos
irreparáveis como a sua morte. A última fase, denominada de lua-de-mel, o agressor,
depois da tensão ter sido direcionada sobre a vítima sob a forma da agressão, minimiza
todo o seu comportamento durante a crise, pede perdão a mulher e faz promessas de
melhoria, insistindo que não será mais violento. Comumente ele assume que o seu
comportamento foi errado, mas ao mesmo justifica com argumentos externos a ele,
alegando que tudo isso aconteceu por uma tensão momentânea ou até mesmo porque
estava sob efeito do álcool.
Muitas vezes a mulher tende a acreditar que, de fato, seu parceiro a espancou
porque estava bêbado, já que quando está sóbrio ele é uma pessoa calma, não arranja
confusão com ninguém. O agressor então isenta-se da culpa, pois o causar da agressão
foi um fator externo. Acontece que o álcool, ou qualquer outra substância psicoativa
pode ser um fator potencializador, porém não o causador da violência. Assim, constata-
se a repetição cíclica das etapas citadas, e as agressões cada vez mais se mostram graves
e habituais.
Saffioti (2004) esclarece que a violência doméstica ocorre numa relação afetiva
e raramente a mulher consegue desvincula-se de um parceiro violento sem auxílio
externo. Até que isso aconteça, a mulher vivencia uma trajetória oscilante, com
movimentos de saída da relação e retorno a ela. Assim é o ciclo da violência e rompe-lo,
68

via de regra, requer uma intervenção externa. A autora, com base em Mathieu (1985),
argumenta que isto não significa que as mulheres sejam cúmplices de seus agressores,
pois, se assim fosse, elas precisariam desfrutar de igual poder. As mulheres detêm
parcelas ínfimas de poder comparado aos homens, de modo que elas só podem ceder,
mas não consentir. A exemplo, na relação patrão-empregado, este pode não consentir
com as condições do contrato do seu vínculo empregatício, todavia, ele cede as
condições pois considerando esse momento histórico é abundante a oferta de força de
trabalho, ao mesmo tempo em que é escasso os postos de trabalho.
Na perspectiva de análise proposta por Saffioti (2004), não se pode concordar
que a mulher ocupa uma posição passiva e/ou de cumplicidade com a violência, bem
como não se deve patologizar o comportamento do homem. O fenômeno quando visto
pelo prisma da patologização do agressor, obscurece a compreensão, uma vez que
ignora as hierarquias e as contradições sociais, sobretudo no que se refere a organização
desigual entre os gêneros. Esse mecanismo se assemelha à culpabilização dos pobres
pelo espantoso nível de violência de diversos tipos. A violência doméstica e familiar,
ultrapassa as classes sociais, o grau de industrialização, de renda per capita, de distintas
culturas (ocidental x oriental) etc. A pobreza pode ser um dos elementos que
desencadeia a violência de gênero, igualmente como o álcool, todavia, não é sua causa.
Em face disso, pode-se afirmar que todas as mulheres estão vulneráveis a
violência patriarcal, contudo, esta não as atinge da mesma maneira. As condições de
pobreza, de dependência financeira, de privação de direitos sociais, potencializam a
situação de violência e, não à toa, as formas de enfrentamento não são iguais para todas
as mulheres. As de classe média ou alta vivenciam, assim como podem vivenciar atos
violentos praticados por seus parceiros ou ex. Mas é certo que quando as mulheres são
pobres e negras, tudo se torna ainda mais difícil.
Basta recorrer ao Mapa da Violência: Homicídios de Mulheres e ver que as
negras aparecem como maioria das vítimas da violência doméstica e familiar, revelando
o racismo como um fator de risco a vida dessas mulheres. Das cinco entrevistadas,
somente uma se autodeclara branca. As demais se consideram parda ou negra. Um fato
curioso é que uma das entrevistadas, apesar de traços evidentemente negros, se
autodeclarou parda.
Das cinco entrevistadas, somente duas possuem vínculo empregatício, os quais
são vínculos autônomos – revenda de cosméticos e chips de celular - evidenciando a
inserção feminina no mercado informal. Na informalidade essas mulheres buscam
69

garantir sua subsistência e a de seus filhos/as, obtendo uma fonte de renda mensal nem
sempre suficiente para suprir as despesas.

Com um mercado de trabalho cada vez mais acirrado e competitivo, a ausência


de qualificação profissional dificulta a inserção dessas mulheres que, diante das
necessidades objetivas, tendem a aceitar vínculos precarizados e a buscarem variadas
formas de obterem uma renda, mesmo que não lhe seja garantido nenhum direito
trabalhista. As outras, encontram-se desempregadas e contam com a ajuda financeira de
familiares. Três delas são beneficiarias do programa de transferência de renda, o Bolsa
Família, apontado como fundamental na complementação da renda familiar.
Quanto a escolaridade, três possuem o ensino médio completo, uma o
fundamental incompleto e a outra o ensino superior incompleto. Esta foi a única ter
acesso a universidade mediante programa do governo federal e curiosamente também é
a única entrevistada branca. Cabe assinalar que a inserção da população negra nos
bancos da universidade ainda se dá a passos lentos, embora a política de cotas venha a
compensar uma dívida histórica que o Brasil tem como os negros.
Avançando na análise, outro aspecto apontado por Saffioti (2004) se refere ao
poder patriarcal que se apresenta mediante duas faces: a da potência e a da impotência.
As mulheres são socializadas a conviverem com a impotência, ao passo que os homens
– sempre vinculados à força – são preparados a viver para o exercício do poder e a para
a esfera da vida pública. Aliás, eles convivem mal com a impotência. Segunda a autora,
estudiosas como Almeida (1995) levantam a hipótese de que os atos violentos
praticados por homens, no contexto das relações afetivo-conjugais, ocorrem exatamente
no período de impotência.
Há evidências nesse sentido, a exemplo, o fato da violência doméstica aumentar
em decorrência do desemprego, considerando que o papel de provedor das necessidades
materiais da família é o mais definidor da masculinidade. Assim Saffioti (2004) conclui
que “perdido este status, o homem se sente atingido em sua própria virilidade,
assistindo à subversão da hierarquia doméstica. Talvez seja esta sua mais importante
experiência de impotência” (p.85).
Foi indagado as entrevistadas ao que elas atribuem as violências sofridas pelas
mulheres e foram dadas as seguintes respostas.

É o machismo do homem. O homem ele tem a mulher como


propriedade dele. (Fátima)
70

Ele é aquele tipo de homem muito machista, mulher minha é pra ficar
em casa, mulher minha não trabalha, não quero mulher minha usando
roupa curta. Mulher minha não faz isso, não faz aquilo. Ele foi
ensinado desse jeito, que podia fazer tudo, mas a mulher não. Tinha
que ser do jeito que ele quisesse. (Vitória)

O machismo. Nós vivemos, principalmente no Brasil, uma sociedade


patriarcal, ela é macho. E o macho que vem lá da família criado como
macho, traz pra dentro de casa tudo o que ele via lá, que é uma
sequência. Na sua árvore genealógica, quanto mais pra trás você for,
mais é pior. (Maria das Graças)

Nos relatos acima, as entrevistadas apontam o machismo como causador da


violência exercida contra as mulheres, o que foi um dado bastante interessante, uma vez
que em pesquisas como essa, as entrevistadas tendem a responder de maneira vaga, sem
apontar para os aspectos sociais e culturais. De fato, a cultura machista e patriarcal
estrutura a desigualdade entre os gêneros, transformando as diferenças entre homens e
mulheres em desigualdades expressa no poder que os homens exercem sobre as
mulheres. Assim, o sistema patriarcal naturaliza as relações de gênero, de modo que tal
naturalização contribui para tornar invisíveis os fenômenos que giram em torno da
violência contra a mulher. Numa relação afetivo-conjugal essa ordem patriarcal de
gênero ganha muito mais força com o confinamento da mulher dentro do espaço
doméstico. Vejamos o que disse outra entrevistada:

A mulher não tem a mesma força que ele. O homem ele só é poderoso
pra nós mulheres, pra outro homem ele não é de jeito nenhum. O
homem que bate em uma mulher, não vai nunca bater em outro
homem. A mulher não consegue, jamais, competir a força dela com a
de um homem. (Ana)

No entendimento de Ana, a desigualdade de gênero que resulta na prática da


violência contra a mulher, está relacionada a força física do homem que, quando
comparada com a da mulher, faz com ele tenha maior poder sobre ela. Saffioti (1987),
ao problematizar em torno da questão da inferioridade da mulher, explica que
originariamente, o homem tenha dominado a mulher pela força física. Ocorre que, a
menor força física da mulher em relação ao homem não pode ser usada como argumento
a fim de justificar as discriminações exercidas contra as mulheres. Pela força dessa
ideologia, a autora exemplifica que até mesmo as mulheres que trabalham na enxada,
admitem sua “fraqueza”, pois elas internalizaram essa ideia tão fortemente que se
assumem como seres inferiores em relação aos homens. É preciso, portanto, não
71

repousar a análise nas explicações naturais, utilizando da perspectiva biológica para


explicar o fenômeno.
Outro elemento também chama a atenção na sua fala, quando diz que “o homem
ele só é poderoso pra nós mulheres, pra outro homem ele não é de jeito nenhum”.
Resgatemos o conceito de patriarcado com base em Hartmann (1994, p. 256), ao afirmar
que é “um conjunto de relações sociais que tem uma base material na qual há relações
hierárquicas entre os homens e uma solidariedade entre eles, que permitem aos mesmos
controlarem as mulheres”. Há, portanto, na fala da entrevistada, a percepção de uma
relação recíproca entre os homens, conferindo a eles um poder capaz de oprimir as
mulheres, mas outros homens não. Assim, os homens asseguram a dominação da
mulher.
Avançando na análise, cabe agora entender como se deu enfrentamento da
violência até o passo de requerer a medida protetiva de urgência.
Fátima conheceu o homem que posteriormente a violentou, através das redes
sociais. Ele residia no estado de Pernambuco, mas sempre vinha a Natal vê-la. Quando
completaram seis de namoro, ele sugeriu que fossem morar juntos e ela conta que
prontamente aceitou. Sua família, que já o conhecia, aprovou a decisão pois todos
gostavam dele, segundo relatou, “parecia ser uma pessoa boa”. Na ocasião, Fátima
largou o emprego como recepcionista e se mudou pra Pernambuco. Pouco tempo
depois, já morando juntos, descobriu que estava grávida dele. Foi exatamente no
período da gravidez que começaram os atos violentos. Xingamentos, humilhações,
tapas, surras, assim foi durante toda a gestação. Quando a criança nasceu, tudo piorou.
Seu parceiro questionava o porquê da mesma só priorizar o recém-nascido, “tudo era
aquele filho” segundo ele. Apesar de sofrer com tudo aquilo, suportou um pouco mais,
pois a criança ainda era muito pequena. Meses depois, em meio a uma forte discussão,
o casal se desentendeu de um jeito que ele ameaçou tirar a vida de Fátima. Foi então que
ela disse a si mesmo que a partir de hoje eu não vivia mais com ele. Ela contou que
naquele momento lembrava da sua mãe.

A minha mãe apanhou durante 30 anos e eu sempre guardei isso na


memória, ela falava assim, minha filha eu apanhei muito porque
antigamente não tinha para onde ir. Mas hoje, mesmo que não tivesse,
não importava para onde eu fosse, mas que eu saísse de dentro de
casa, aí eu tive essa atitude. Porque se a gente for esperar ele mudar,
se já bateu uma vez, já bateu a segunda, vai bater sempre. Eu fui
corajosa porque em momento algum eu pensei em voltar atrás, tomei a
72

decisão de prestar queixa e assegurar a minha vida. Ah! Se muitas


mulheres tivesse a mesma coragem que eu.

Fátima conta que esperou o companheiro sair para trabalhar, arrumou todas as
suas coisas e a da criança, pegou um taxi e foi direto para delegacia. Registrou o
Boletim de Ocorrência e logo em seguida pegou um ônibus para Natal, a delegada
esclareceu que ela poderia dar entrada na medida protetiva de urgência por aqui. E foi
exatamente o que ela fez. Fátima falou que todos da família ficaram boquiabertos
quando ela contou o que passou ao lado do seu ex companheiro, pareciam não acreditar
que tudo aquilo era verdade.
Muitas vezes, a mulher em situação de violência acaba tendo que lidar com a
descrença acerca daquilo que ela relata. Parentes, amigos, vizinhos, pessoas de sua
convivência diária, que deveriam ser apoio diante de uma situação como essa, nem
sempre se mostram dispostos a ajudar. “Em briga de marido e mulher não se mete a
colher”, ainda é uma ideia recorrente nos dias atuais, de modo que “ninguém quer se
envolver”. Somado a isso, a mulher fica sujeita a culpabilização não apenas de pessoas
próximas, mas também por profissionais dos serviços públicos.
Fátima conta que se sentiu privilegiada pois aonde ela procurou ajuda, encontrou
todo o apoio.

É a primeira vez que eu entro com a medida, e eu perdi totalmente o


contato com ele, tirei do telefone, do whatsapp. Eu me sinto protegida,
eu só vim embora de Pernambuco porque lá eu não tinha onde ficar,
porque senão eu estaria lá até agora, com meu B.O. e com a minha
medida. Lá na delegacia eu fui muito bem atendida, me senti muito
segura com o que eles me falaram, tive toda a assistência. Cheguei
com muito receio, isso eu cheguei, porque a gente vê na mídia que
muitas mulheres quando chegam lá por conta da agressão física e
sexual elas são muito maltratadas.

Ao utilizar a palavra “privilegiada” pode-se abrir a discussão quanto a


importância de reforçar a perspectiva dos direitos sociais. A todas as mulheres deve ser
assegurado um atendimento humanizado que acolha as particularidades do seu caso,
sem juízos de valor ou quaisquer critérios discriminatórios.
Em suma, a entrevistada afirmou se sentir segura com a medida protetiva que foi
concedida há três meses, (considerando o dia da entrevista). Todavia, levanta-se a
hipótese de que essa segurança, a priori, se deve ao fato do agressor residir em outro
estado e, portanto, haveria mais uma barreira impedindo ele de se aproximar.
73

Quando questionada sobre o que ela conhece da Lei Maria da Penha, a


entrevistada não soube falar muito a respeito.

Eu já ouvi falar muito, mas de olhar assim tudo o que está no papel,
não. Eu sei que a Lei Maria da Penha diz que na agressão contra a
mulher, o homem pode ser preso, pode ser punido. Eu sei que falam
muito da lei, da história dela, mas no momento eu não sei dizer muito
bem. Sei que é importante que exista uma lei em benefício da mulher.

Trazemos agora a história da entrevistada Lourdes. O relacionamento com o


companheiro agressor durou cerca de quatro anos. Da união adveio um filho que hoje
tem dez anos de idade. Nesse período de convivência, a entrevistada relata que “sofreu
demais nas mãos dele”. Mas ela não quis entrar em detalhes sobre como era o cotidiano
marcado pela violência, apenas afirmou que foi vítima de todas as modalidades
características da violência doméstica, menos da violência sexual. Em 2012 separou-se
do companheiro e deu entrada na medida protetiva. Depois disso, cada um seguiu sua
vida e o filho do casal ficou sob responsabilidade de Lourdes. Seis anos depois, já em
2017, ele tentou uma aproximação, pois queria reatar o relacionamento. Com a resposta
negativa de Lourdes, começou “o horror na sua vida”, como ela mesma afirmou.

A partir dali foi que eu percebi que eu não o conhecia mesmo. Porque
no início era um homem calmo, trabalhador, não fumava, não bebia.
Mas quando eu me vi naquela situação dele ter arrombado a minha
casa, levado os meus pertences, da minha criança, aí o meu chão
abriu. Ele ainda veio no Whatsapp falar: olha o que eu fiz, eu ainda
posso fazer muito mais, veja o que eu sou capaz de fazer. Isso
aconteceu seis anos depois da gente ter se separado. Ele não tinha
mais nada comigo, era só ex. Foi quando ele se aproximou, tentou
voltar e eu não quis, que ele fez tudo isso.

Lourdes se refere ao episódio que a motivou a requerer, pela segunda vez, a


medida protetiva de urgência. O pai do seu filho arrombou a casa onde morava, levou
vários pertences seus, incluindo o documento do imóvel, causando um tremendo terror.
No caso de Lourdes, além da medida protetiva de urgência, o agressor também responde
a um processo criminal por conta desse episódio. Ela conta que até o momento não
houve julgamento, assim como ele não foi preso, apesar dele ter assumido a autoria em
uma gravação telefônica que foi entregue a polícia.
Durante toda a entrevista Lourdes sempre reiterava seu sentimento de
indignação com a Justiça e o fato de que, apesar de estar na medida protetiva, ela não se
sente segura e que não é fácil retomar suas atividades e viver como antes.
74

[...] eu não durmo em paz, eu quando estou em um restaurante às


vezes ou em algum canto público, eu estou olhando para os lados, eu
fico alerta até dentro de casa. Ao invés de você usar seu psicológico
para progredir, procurar suas melhoras, não, você fica presa,
aperreada, sem dormir e ele solto, come, dorme, vai para todos os
cantos, vive uma vida normal e você não. Precisaria de algo mais
severo, não só o papel, não só a escrita. Ainda não tem uma punição
sobre isso, é tanto que várias morreram. Tudo bem, existe essa Maria
da Penha, existe, mas existe o que é? Um nome, então deveria ter uma
punição maior. Não é só um papel. Um papel não alega nada para uns.
Quantas mulheres não já morreram com um papel na mão? Que eu
conheça, uma aqui de Felipe Camarão morreu dentro do ônibus com o
papel da medida protetiva na bolsa!26

Quando questionada sobre o que sabe sobre a Lei Maria da Penha, a entrevistada
Lourdes é bem enfática
Essa lei pra mim demostra ser muito severa, mas quando a gente
chega lá é outra coisa. É uma conversa pra escutar a outra. Hoje em
dia você apanha e fica apanhada, não tem como retirar aquela dor,
cada vez mais piora. Eu queria que tivesse algo a mais pra poder
complementar essa lei aí. Essa lei está muito esquecida. Esquecida pra
o Estado, para os grandes. Se lembrasse não morriam tantas. Tem que
ter algo mais efetivo que um papel. Ela é importante, mas deveria
oferecer um apoio maior de qualificação, de escolaridade, de emprego
pra gente. Isso que deveria fazer, e não apenas a medida protetiva, pra
gente não ficar como se tivesse numa prisão.

A partir da sua fala é possível identificar que para ela, a medida protetiva que
deveria ser vista como uma forma da mulher se libertar de um relacionamento marcado
pelo uso do poder, aparece numa inversão, isto é, ela sente-se prisioneira, inclusive
dentro da sua própria casa. O temor de sofrer algum ataque violento do seu ex
companheiro é constante, pois mesmo com a medida protetiva ela não se sente segura.
Essa ausência de segurança é justificada pelo fato de que, no final das contas, para a
mesma, a medida protetiva se resume apenas a um papel.
Vale destacar que a entrevistada, já requereu medida protetiva duas vezes, e que
tem um processo criminal contra o agressor, pois também precisou entrar com ação de
alimentos para o filho do casal, como ele não pagava, foi necessário propor uma outra

26
A entrevistada faz menção a morte de Alexandra Moreira da Silva, assassinada em 2014 pelo
ex-marido, com vários golpes de faca, dentro de um transporte coletivo, em plena luz do dia. Ela
tinha a medida protetiva de urgência, inclusive, na ocasião do seu assassinato, a medida
protetiva encontrava-se dentro de sua bolsa. Lourdes a conhecia, pois as duas moravam no
mesmo bairro. Cabe frisar que a chamada Lei do Feminicídio só veio entrar em vigor no ano
seguinte.
75

ação de execução de alimentos. Contudo, a falta de celeridade da justiça fez com que
nenhum dos processos tenha sido ainda julgado. Em termos das MPU, a mesma
acrescenta:

Pra mim essa medida protetiva é um processo que está lá em baixo.


Por exemplo, eu cheguei agora, mas já tem várias mulheres que
apanharam, então meu processo fica lá embaixo. Eu assino um papel,
só depois o meu processo vai subindo, aí enquanto isso eu fico
esperando a audiência pra que então seja resolvido. É a minha segunda
medida protetiva, quantas eu vou precisar ter? Olha o tempo que já
faz. Já estamos em 2018, será que vai precisar chegar 2019 pra vir
outra medida protetiva, até resolver?

A história da Vitória é marcada por bastante violência. As marcas, ela carrega


consigo até hoje, como a cicatriz no rosto e no braço, causadas pelo uso de uma faca
quando o pai de seus dois filhos tentou matá-la. Durante três anos a mesma suportou as
agressões que no início só aconteciam dentro de casa, mas que, posteriormente,
passaram a ser praticadas em lugares públicos. Como pode ser observado na narrativa
da entrevistada.

A primeira surra que eu levei eu estava com quatro meses de gestação,


eu não perdi o meu menino eu não sei como. Acho que foi Deus. Ele
bateu mais no rosto, fiquei toda inchada, roxa, aí ele disse que se eu
falasse pra minha mãe ele fazia pior. Aí minha mãe: o que foi isso
Vitória? Uma queda. Eu escorreguei, eu caí, sempre isso. Quando eu
dizia que ia pra casa da minha mãe, ele não permitia, dizia: vai fazer o
que lá? Mas ele saia e só voltava no dia seguinte, jogando o telefone
na minha cara, papel de motel. Que descobrir onde eu tava? Ligue pra
esse número pra saber.

Desempregada, com dois filhos pequenos, Vitória passava a maior parte do


tempo confinada dentro de casa. Seu parceiro restringia qualquer saída sua, assim como
não permitia que parentes e /ou amigos fossem visita-la. Quando ele saía pra festas,
como era de costume, levava a chave da residência, deixando-a trancada junto com as
crianças. De tão frequente que isso acontecia, a entrevistada relata que chegou
determinado momento que já não tinha mais forças para lutar contra tudo aquilo.
Contudo, afirma, em nenhum momento continuou o relacionamento por amor e sim por
medo. Bastante agressivo, seu parceiro quando estava sob o efeito do álcool e da droga
tornava-se ainda mais violento. Qualquer circunstância era motivo para uma agressão.
Abaixo a fala da mesma retrata as formas de violência por ela vivenciada.
76

A última vez que eu apanhei foi em público, a gente foi pra Extremoz-
Rn comemorar a virada de ano, aí pouco antes ele tentou manter
relação sexual comigo, só que eu não quis, aí já saiu com raiva.
Quando passou um tempo, estava todo mundo bebendo, quando do
nada ele cismou que tinha um homem olhando pra mim e meteu a mão
na minha cara. Na hora, o pessoal que estava em volta avançou em
cima dele porque viu que eu não estava fazendo nada, aí foram e
chamaram a polícia. A viatura chegou lá, ia pegar ele em flagrante,
mas a mãe dele estava na hora e me pediu por tudo que fosse mais
sagrado pra que eu dissesse que ali tinha sido uma brincadeira, e ela
até disse que se eu não falasse que era uma brincadeira, quando fosse
mais tarde não ia ter polícia e nem ninguém pra me ajudar. [...]. Eu
fiquei com muita vergonha, no ambiente público você para o lado e
está todo mundo olhando. Eu baixei a cabeça. Eu tinha coragem, mas
o meu medo era maior do que eu.

Medo e vergonha foram citados pela entrevistada que narrou o depoimento em


meio a bastante choro. Sua família morava longe e mesmo que ela quisesse recorrer a
ajuda deles, era difícil, pois sem emprego não tinha sequer o dinheiro da passagem.
Além disso, se quisesse sair, teria que ser escondido, já que em hipótese alguma, seu
parceiro permitia, a mesa acrescenta: “ Então isso era humilhação, a pessoa se submetia a
viver debaixo de ordem, a fazer só o que ele quer”.
Segundo ela, a família do agressor apoiava tudo, de modo que estava fora de
cogitação contar com alguma ajuda deles. Ela frisa, nesse episódio em que apanhou em
público e sua sogra presenciou tudo, ela poderia ter ficado do seu lado. Mas não, a
ameaçou, então se viu obrigada a confirmar que aquilo não passava de uma brincadeira.
O medo cada vez mais tomava conta de Vitória, minando suas forças para romper o
ciclo da violência.

O meu menino chegou pra mim e disse mãe não deixe pai bater na
senhora. Então pra mim aquilo foi a gota d’agua, a minha ficha parece
que caiu naquele momento. Meu próprio filho abriu a boca pra dizer
isso, então eu fui e chamei a polícia pra prestar queixa dele. Quando
eles chegaram, um falou pra mim assim: dona Vitória, a senhora é
uma mulher nova, a senhora tem tudo pela frente, ele não sabendo dá
valor a senhora, mas eu tenho certeza que tem alguém lá fora que
queira, então a senhora está perdendo sua vida com um homem desse.
Quem ama cuida, não machuca.

As palavras do filho, junto as do agente policial fizeram com que ela tivesse
forças para denunciar. Assim o fez.

Quando eu cheguei na porta da delegacia, foi até engraçado, porque eu


cheguei aí dei um passo pra trás, pensei assim: não, eu não vou não.
77

Eu subi os batentes e depois desci. Mas aquele negócio dentro de mim


dizia que era pra eu ir. Só que eu também pensava, se esse negócio
não der certo e ele me matar, meus filhos vão ficar sem mãe. Eu fiquei
lá na frente um bom tempo só pensando, quando de repente apareceu
uma senhora e perguntou o que eu estava fazendo, aí eu fui e disse que
estava tentando criar coragem de denunciar o meu marido. Ela
respondeu, minha filha, tenha medo não, se você não denunciar ele se
engrandece mais ainda.

Dali em diante, a história de Vitória começa a ganhar um novo rumo. O agressor


foi obrigado a sair de casa e a evitar qualquer tipo de contato. Aos poucos ela foi
retomando sua vida. Aliás, hoje ela constitui nova família e está gravida do seu atual
companheiro que, segundo ela, é bem diferente do anterior, pois oferece todo tipo de
apoio. Apesar do enfrentamento, o medo que Lourdes disse sentir durante a união com
agressor, permanece até hoje, mesmo completando dez meses que a medida protetiva foi
concedida. Ela compartilha do mesmo sentimento que Lourdes, quando diz enxergar a
medida como um mero papel, uma vez que o agressor pode sim cumprir no início,
temendo uma sansão da Justiça, todavia, a medida protetiva não é garantia de que ele
não possa agredi-la novamente.
Mesmo apontando esses limites, ela reconhece a importância da Lei Maria da
Penha, como pode ser observado na fala a seguir.

[...] essa lei foi criada pra dar coragem as mulheres que não tinham,
assim como eu, né. A proteger a gente, porque a mulher que sofre
violência, a gente vira como se fosse uma criança assustada, tem medo
de tudo, toma aquele pânico, mesmo sendo adulto. A gente tem medo
e o medo é triste, paralisa. Eu digo a você que o medo é pior do que a
fome. A gente anda o tempo todo com medo de morrer, porque você
fica com aquele negócio na cabeça, você vai morrer, eu vou lhe matar,
fica no psicológico da gente, fico atordoada.

Como dito no relato acima, a Lei Maria da Penha para Vitória foi importante no
encorajamento das mulheres que temiam denunciar seu agressor. Por mais que os
limites das MPU sejam apontados, há entre as entrevistadas, uma importante referência
na referida lei uma vez que ela é a base sobre a qual os limites e possibilidade se
estruturam. Lembrando que a mesa não se restringe aos aspectos jurídicos/policiais, ela
preconiza uma gama de serviços, em especial, os serviços assistenciais.
Considerando as falas das entrevistadas, em linhas gerais, fica evidente a
necessidade de reforçar o atendimento em Rede. Uma ação judicial pode sim ser um
78

primeiro passo dado pela vítima, contudo, é um ato que não deveria permanecer em si
mesma. A fim de garantir à mulher o acesso aos direitos assegurados mediante políticas
públicas de prevenção e combate às violências, é preciso o atendimento articulado, para
que a mulher seja devidamente acompanhada por equipe profissional especializada, que
seja inserida em espaços onde ela possa falar e ser ouvida, sem revitimizá-la; espaços,
inclusive, de auto-organização de mulheres.
Ana, nossa a quarta entrevistada, conta que conviveu durante dois anos com o
seu agressor. E fruto desse relacionamento tem um filho que hoje completa um ano de
idade. No começo da relação haviam desentendimentos, o casal costumava brigar muito,
mas nada que fizesse a entrevistada acreditar que ele seria capaz de agredi-la. Foi então
que, quando ela engravidou, exatamente com cinco meses de gestação, houve a primeira
agressão física.

Na primeira vez que ele me bateu a minha reação foi ir lá na casa da


mãe dele, pra ver se ela tomava uma atitude. Ela ainda disse, eu vou
conversar com ele porque aqui em casa ele não foi criado vendo
ninguém apanhando. Mas ela disse que eu não desse parte. O que eu
via, na verdade, era que a mãe dele não punia, ela apoiava, era
conivente com isso. Isso eu estava com cinco meses de gravidez. O
que acontecia, ele saía para as festas, aí só chegava dois dias depois.
Eu acho que ele usava até drogas. E eu ficava era trancada dentro de
casa, trancada mesmo, ele passava a chave e ia embora.

Ana foi vítima do seu primeiro ataque violento no período da gravidez, assim
como Fátima e Vitória, citadas anteriormente. Imediatamente ela procurou a família do
agressor, buscando alguma ajuda ou apoio, mas não encontrou. Aliás, assim como
Fátima, ela apontou a existência de uma cumplicidade da família, em especial da mãe,
diante da agressividade do seu parceiro. Dois meses depois, mais outra agressão física.
Ali ela entendeu que precisaria por um basta na situação e foi o que fez. Foi a delegacia,
registrou o Boletim de Ocorrência e requereu a medida protetiva de urgência.

Eu me sinto protegida, assim, entre aspas, porque eu já sabia quem era


ele. Porque assim, ele conversa muito, mas quando fala em outro
homem ou em polícia, aí ele fica calado. Eu já sei que ele é fraco. E
outra, ninguém tinha feito isso com ele, talvez ele já tivesse
maltratado outra mulher, mas nenhuma delas tivesse coragem. Eu não,
eu tive e denunciei. Isso é pra ficar de exemplo pras próximas, que
antes dele fazer alguma coisa ele vai pensar dez vezes, porque já tem
um processo nas costas, então fique com medo de fazer com outra que
ele conviver. Então isso é bom. Eu não bem me sinto protegida porque
era pra ele está preso. Por isso que eu digo, medida protetiva era pra o
cara está preso. [...]. Eu sei lá, vai que depois, eu sei que ele já estava
79

usando drogas, vai que ele não tenha parado e depois venha atrás de
mim quando me ver em algum canto. Não tem como saber. Quando
ele quer matar ele chega e faz. No mesmo dia que eu dei entrada, foi o
dia que mataram aquela mulher lá perto, no igapó27.

Para Ana, a medida protetiva não garante proteção, dada a realidade que mostra
que mesmo com a medida protetiva mulheres são assassinadas. Segundo ela, não passa
de um papel, se o agressor em momento de fúria quiser matar sua ex companheira, ele
faz. Até a polícia chegar, a mulher já vai está morta. Ela também menciona o fato do
uso de drogas que pode leva-lo a cometer algo contra sua vida. Como já exposto neste
trabalho, o uso de substancias psicoativas, podem potencializar um ataque violento,
todavia, não deve ser visto como causa, pois analisar dessa forma é isentar o agressor da
responsabilidade dos seus atos.
A respeito da Lei Maria da Penha a mesma demonstra pouco conhecimento.

Já tinha ouvido falar, mas não conheço não. Na verdade, essa lei é só
pra dizer que é uma lei porque muitas mulheres morreram também.
Tem esse negócio da pessoa dá parte, mas isso não impede nada não,
se ele quiser fazer, ele faz. No tempo da medida era pra o cara está
preso. Não era pra está solto. Se ele tivesse preso ele não tinha matado
a mulher.

Na história de Maria das Graças, a última entrevistada, encontramos o ciclo da


violência mais longo. Foram vinte e cinco anos de convivência com o agressor, seis
registros de Boletim de Ocorrência e um medida protetiva, concedida em maio de 2018.
Nos conta que o medo da solidão, de não encontrar um novo parceiro, de não ter a
presença de uma figura masculina em casa, faziam com ela aceitasse as idas e vindas de
um casamento marcado não só por agressões, mas também por traições do marido.

Eu ia muitas vezes trabalhar com olho roxo, ai o pessoal perguntava,


eu dizia que tinha caído. Nossa, quantas vezes eu falei isso. Foi a
partir daí que eu comecei a denunciar ele, eu tenho aqui todos os
boletim. Até que a minha filha processou ele. Entrou com a medida
protetiva e processou ele, ai ele foi preso. Na primeira vez foi eu que
coloquei ele na cadeia, na sua segunda foi minha filha. Hoje minha
filha fala, mainha, a senhora deixou ele tão tarde.

Na primeira denúncia foi instaurado um inquérito policial, levando-o a prisão.


Anos depois, a filha do casal também o denunciou, pois ela havia sido vítima da

27
A entrevistada se refere a morte de Isolda Claudino, em março de 2018, assassinada pelo seu
ex-marido com 14 facadas, quando retornava para casa, no bairro de Igapó, zona norte de Natal.
Ela tinha a medida protetiva de urgência.
80

violência do pai. Instaurou-se mais um inquérito policial e ele foi preso novamente. A
filha entrou com a medida protetiva de urgência e foi a partir da iniciativa dela que
Maria das Graças então requereu a medida protetiva. Disse que a atitude da filha foi
crucial para o seu encorajamento. Na fala seguinte, o depoimento do episódio que
antecedeu o pedido da MPU.
Na última vez que ele me agrediu eu liguei pra polícia e nada. Minha
filha teve que ligar pra o namorado dela que ligou pra o pai que é
policial aposentado, que ligou pra um amigo do quartel, ai de repente
chegou um monte de polícia tudo armado lá em casa. Quer dizer, tem
a lei, agora eu tou com medida protetiva, tou com esse processo, ta
tudo lindo. Mas se o cabra chegar lá em casa, quebrar meu portão,
minha porta, entrar e matar eu e minhas filhas, vai embora, ai a polícia
vai chegar quando?
A fala de Maria das Graças reflete o que também foi dito por outras
entrevistadas acerca dessa ausência de proteção, apesar da mulher agredida ter ido
buscar o apoio da Justiça.

Eu me sinto protegida mas até certo ponto. Porque a gente nunca sabe
do ser humano, do que ele é capaz de fazer. Se encher a cara de álcool
ele vai lá, bagunça, e depois foge. A medida protetiva é papel. Eu
tenho medo que ele descumpra a medida. Eu tenho muito medo dele.
Outro dia eu ia pra faculdade de manhã e ele vinha de moto, eu fiquei
morrendo de medo. Eu mudei o número de telefone e tudo.
Vítima de todas as modalidades da violência, foi a única entrevistada que relatou
sobre a violência sexual pratica pelo esposo. Disse que por várias vezes foi forçada e até
mesmo coagida a ceder aos desejos sexuais do esposo, mesmo contra a sua vontade.
Segundo ela, aquilo era horrível. O estupro conjugal ainda é uma questão pouco
discutida, considerando que o contrato matrimonial parece dar direitos aos homens de
controlar a sexualidade feminina.
A mesma compartilha do argumento da entrevistada Lourdes, ao atribuir a falta
de proteção aos dispositivos da Justiça: “[...] não é a lei Maria da Penha, é a justiça em
si. O cara lhe bate, arrebenta com seu rosto e fica por isso mesmo. A falha é a justiça.”
Cabe reiterar que a medida protetiva de urgência concede a proibição de contato,
aproximação ou comunicação com a ofendida e outras, o tempo que for necessário,
contudo, não necessariamente o agressor será submetido a um procedimento criminal,
que poderá resultar na sua prisão. O juiz poderá decretar, conforme disposto na Lei, a
prisão preventiva, mas também pode revoga-la no curso do processo, caso verifique a
falta de motivo que o subsista.
81

Em abril de 2018 foi publicada a Lei 13.641, que introduziu o artigo 24-A na Lei
Maria da Penha, e criou o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência
(MPU). Com a criminalização se tornou possível assegurar a possibilidade de a
autoridade policial prender em flagrante quando houver o descumprimento à ordem
judicial da MPU: a exemplo de quando o agressor rondar a casa ou local de trabalho da
vítima, tenta entrar na casa sem sua autorização, encaminha insistentemente mensagens
via WhatsApp, celular, redes sociais, ou até mesmo quando busca os filhos na escola
tendo a suspensão do direito de visitas etc.
Todavia, todas essas ações ainda não parecem ser suficientes para assegurar
maior segurança entre as entrevistadas que recorreram a esse tipo de medida, a sensação
mais comum por elas exposta é de que não há uma materialidade em tais ações, visto
que veem a justiça como morosa, pois deveria prender logo o agressor.
Fato é que, mesmo preconizado pela Lei Maria da Penha em seu Art. 11, a
autoridade policial deve garantir a proteção imediata quando a vítima acionar, contudo,
na maioria dos casos isso não acontece por vários limites institucionais, dentre eles
pouco contingente policial, muitos processos para despachos nas Varas da Violência,
interpretações dos/as juízes/as sobre a necessidade ou não da medida, dentre outros.
Portanto, compreendemos que a Lei 13.641, é uma Lei para outra Lei,
exatamente porque políticas de cunho punitivo isoladas não solucionam graves
problemas sociais que tem raízes profundas na cultura machista e patriarcal.

Você também pode gostar