Você está na página 1de 7

REVISTA JURÍDICA

REVISTA JURÍDICA

A IMPORTÂNCIA HISTÓRICA E AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS


DOS CÓDIGOS DE HAMURABI E DE MANU
THE HISTORICAL IMPORTANCE AND THE MAIN FEATURES OF
THE HAMMURABI AND MANU CODES

Claudio Herbert Nina-e-Silva 1


Lenny Francis Campos de Alvarenga2

RESUMO
PALAVRAS-CHAVE: História do Direito, Hamu-
O objetivo do presente trabalho foi descrever rabi, Manu.
as principais características e a importância
histórica dos códigos de Hamurabi e de Manu. ABSTRACT
A importância histórica do Código de Hamurabi
pode ser avaliada pelo fato de ele ter se tor- The purpose of this study was to describe the
nado a fonte jurídica na qual se basearam as main features and the historical significance of
leis de praticamente todos os povos semitas da the law codes of Hammurabi and Manu. The
Antiguidade, incluindo os assírios, os caldeus historical importance of the Code of Hammura-
e os próprios hebreus. Os principais temas do bi can be gauged by the fact that it has beco-
Código de Hamurabi são o direito penal, o direi- me a legal source on which the laws of virtually
to da família e a regulamentação profissional, all Semite people of antiquity were based, in-
comercial, agrícola e administrativa. O Código cluding the Assyrians, the Chaldeans and the
de Manu é um dos textos jurídicos mais antigos Hebrews themselves. The main themes of the
de que se tem notícia. As leis do Código de Code of Hammurabi are criminal law, family law
Manu regulam a conduta em termos sociais e and professional, commercial, agricultural and
religiosos, versando sobre leis criminais e civis, administrative regulation. The Code of Manu is
regulando as relações familiares, tipificando os one of the oldest legal texts ever heard. The
crimes e cominando as respectivas penas. Ve- laws of the Manu Code regulate the conduct in
rificou-se que tanto o Código de Manu quanto social and religious terms, dealing with criminal
o Código de Hamurabi se constituíram em mar- and civil laws, regulating family relations, typi-
cos fundamentais na História do Direito porque fying crimes and their respective criminal sanc-
foram pioneiros na regulamentação de normas tions. We have verified that both codes consti-
penais, civis e comerciais, representando a tuted milestones in the History of Law because
tendência histórica de se atribuir ao Estado a they were pioneers in the regulation of penal,
tutela da sociedade. civil and commercial laws, representing the his-

1
Acadêmico do curso de Direito, Universidade de Rio Verde (UniRV).
2
Mestre em Ciências da Religião (Universidade Católica de Goiás), Professor Adjunto de Antropologia Jurídica, Faculdade de Direito, UniRV.

REVISTA JURÍDICA ELETRÔNICA/Ano 6, Número 8, Fevereiro/2017 Universidade de Rio Verde ISSN2177 – 1472 89
REVISTA JURÍDICA

torical tendency to assign to the State the pro- de se estudar a História do Direito?”, o juriscon-
tection of society. sulto estadunidense Jim Phillips, da Faculdade
de Direito da Universidade de Toronto, respon-
KEYWORDS: History of Law, Hammurabi, deu da seguinte forma:
Manu.
(...) porque a história jurídica nos ensina so-
bre a contingência da lei, sobre sua formação
1 INTRODUÇÃO fundamental, sobre outras forças históricas;
porque a história do Direito nos mostra que,
O estudo da História do Direito é um funda- enquanto a lei é moldada por outras forças,
mento indispensável para a educação jurídica pode ser, ao mesmo tempo, relativamente au-
tônoma, não sendo nem sempre a serva dos
(TAU ANZOÁTEGUI; MARTIRÉ, 1975; SHE- interesses dominantes; porque a história do
PARD, 1997; PHILIPS, 2010). Como disciplina Direito, talvez paradoxalmente, liberta-nos do
informativa, a História do Direito objetiva mos- passado, permite-nos tomar as nossas pró-
prias decisões ao nos mostrar que não há nada
trar o dinamismo do Direito por meio da descri- de inevitável naquilo que temos atualmente; e
ção da evolução histórica e social das institui- porque a história do Direito expõe a presença
ções jurídicas (TAU ANZOÁTEGUI; MARTIRÉ, de muitas variantes de pluralismo jurídico, tan-
to no passado quanto no presente (PHILLIPS,
1975). 2010, p. 295, tradução nossa).
O exercício da profissão jurídica exige o
conhecimento das leis, as quais, por sua vez, Além disso, o acadêmico de Direito será ape-
são um produto histórico (ALSCHULER, 1997). nas um técnico que memorizou os códigos de
Com relação à questão do caráter eminente- leis se não for capaz de compreender a lei, de
mente histórico da norma jurídica, o jurista e apreender a intenção e a motivação sociocul-
filósofo austríaco Hans Kelsen apresenta o tural do legislador (TAU ANZOÁTEGUI; MAR-
exemplo da validade temporal de uma norma TIRÉ, 1975; ALSCHULER, 1997; SHEPARD,
positiva: 1997). E essa capacidade de compreensão do
sentido da lei e da intenção do legislador so-
Uma norma jurídica pode retirar, com força
retroativa, validade a uma outra norma jurídi- mente se torna possível por meio do desenvol-
ca que fora editada antes de sua entrada em vimento de um senso histórico e do reconheci-
vigor, por forma a que os atos de coerção, mento do processo histórico de evolução dos
executados, como sanções, sob o domínio da
norma anterior, percam o seu caráter de penas princípios e/ou institutos jurídicos (SHEPARD,
ou execuções, e os fatos de conduta humana 1997).
que os condicionaram sejam despidos poste- De acordo com Reale (1998), os fatores his-
riormente do seu caráter de delitos. Assim, por tóricos são preponderantes no estabelecimen-
exemplo, pode a lei de um governo que con-
quistou o poder pela via revolucionária retirar to do sistema jurídico em uma dada sociedade.
a validade, retroativamente, a uma lei editada Isso ocorre porque um sistema jurídico é uma
pelo governo anterior e segundo a qual certas forma de expressão cultural historicamente
ações praticadas pelos sequazes do partido
revolucionário foram punidas como crimes po- condicionada. Com efeito,
líticos. É verdade que aquilo que já aconteceu
não pode ser transformado em não aconteci- Temos, pois, dois grandes sistemas de Direito
do; porém, o significado normativo daquilo que [common law e civil law] no mundo ocidental,
há um longo tempo aconteceu pode ser modi- correspondente a duas experiências culturais
ficado através de normas que são postas em distintas, resultantes de múltiplos fatores, so-
vigor após o evento que se trata de interpretar bretudo de ordem histórica. O confronto entre
(KELSEN, 1960, 2000, p. 15). um e outro sistema tem sido extremamente
Desse modo, o acadêmico de Direito preci- fecundo, inclusive por demonstrar que, nessa
matéria, o que prevalece para explicar o prima-
sa adquirir não apenas habilidades analíticas do desta ou daquela fonte de direito não são
e conhecimento jurídico formal, mas também razões abstratas de ordem lógica, mas apenas
uma profunda compreensão do caráter social motivos de natureza social e histórica (REALE,
e, sobretudo, histórico da lei (TAU ANZOÁTE- 1998, p. 142).
GUI; MARTIRÉ, 1975; ALSCHULER, 1997;
SHEPARD, 1997). A contextualização histórica é indispensável
Ao responder à pergunta “qual é o interesse ao entendimento genuíno do fato histórico em

90 REVISTA JURÍDICA ELETRÔNICA/Ano 6, Número 8, Fevereiro/2017 Universidade de Rio Verde ISSN n. 2177 – 1472
REVISTA JURÍDICA

geral (FUSTEL DE COULANGES, 2009; BUR- te essencial da religião primitiva e manifestado


NS, 1979) e da norma jurídica em particular na forma de reverência ao “fogo sagrado” e ao
(LEVAGGI, 1996; RABINOVICH-BERKMAN, altar doméstico, exigia a realização de rituais
2002). Isso decorre do fato de que a apreen- específicos e a obediência estrita a normas
são e a compreensão do significado das ideias, religiosas, tais como tabus e prescrições de
crenças e condutas habituais, incluindo aí os conduta (FUSTEL DE COULANGES, 2009).
costumes e as normas jurídicas, de povos do Com o passar do tempo, essa normatização da
passado somente se tornam possíveis se as conduta inspirada pela religião levou à repeti-
estudarmos a partir da própria perspectiva des- ção de certas práticas e condutas que, eventu-
ses povos (FUSTEL DE COULANGES, 2009). almente, tornaram-se costumes, os quais, por
No caso específico da História do Direito, a sua vez, passaram a constituir o conjunto de
contextualização histórica se torna obviamen- normas que regulavam as relações individuais
te imperativa, ainda que dificultosa, em virtude e coletivas em uma dada coletividade (FUSTEL
sobretudo da assimilação da filosofia jurídica DE COULANGES, 2009; BURNS, 1979).
e, até mesmo, de institutos jurídicos greco-ro- Em virtude desse processo histórico e como
manos, pelo Direito do mundo ocidental con- cada comunidade primitiva tinha a sua própria
temporâneo (TAU ANZOÁTEGUI; MARTIRÉ, religião, o Direito Primitivo se caracterizava
1975; LEVAGGI, 1996; SHEPARD, 1997; RA- pela unicidade, pela diversidade e pelo fato
BINOVICH-BERKMAN, 2002; REALE, 2002). de não ser manifestamente legislado e escrito/
Além disso, a singularidade ou especifici- codificado (FUSTEL DE COULANGES, 2009;
dade de um determinado fato histórico apenas TAU ANZOÁTEGUI; MARTIRÉ, 1975; BUR-
poderá ser devidamente descrita e, eventual- NS, 1979; LEVAGGI, 1996; RABINOVICH-
mente, explicada se esse fato histórico for ana- -BERKMAN, 2002; REALE, 2002).
lisado em termos do contexto social e cultural Por isso, os códigos de Hamurabi e de Manu
no qual ele ocorreu, especialmente no que con- são considerados inovações de significativa
cerne aos aspectos axiológicos (FUSTEL DE relevância na História do Direito por serem os
COULANGES, 2009; BURNS, 1979). primeiros textos legislados e escritos que com-
Com relação à relevância do conhecimento pilaram os costumes tradicionais e as normas
da filosofia de valores de um determinado povo jurídicas inspiradas pelas suas respectivas
em um dado momento histórico para a História matrizes religiosas (GARCIA-GALLO, 1972;
do Direito, Reale (2002) afirma que: BURNS, 1979; OLIVELLE, 2004; VAN DE MIE-
ROOP, 2006; NAEGELE, 2008; NAGARAJAN,
No nosso modo de ver, os valores não pos- 2011).
suem uma existência em si, ontológica, mas
se manifestam nas coisas valiosas. Trata-se Considerando que tanto o Código de Hamu-
de algo que se revela na experiência humana rabi quanto o Código de Manu foram marcos
através da História. Os valores não são uma importantes na História do Direito, torna-se ne-
realidade ideal que o homem contempla como cessário ao acadêmico de Direito conhecer as
se fosse um modelo definitivo, ou que só pos-
sa realizar de maneira indireta, como quem faz características essenciais e a relevância histó-
uma cópia. Os valores são, ao contrário, algo rica desses documentos. Desse modo, o obje-
que o homem realiza em sua própria experiên- tivo do presente trabalho foi descrever as prin-
cia e que vai assumindo expressões diversas
e exemplares através do tempo (REALE, 2002, cipais características e a importância histórica
p.204). dos códigos de Hamurabi e de Manu por meio
de uma revisão narrativa da literatura pertinente.
Desse modo, não seria exequível descrever
e explicar o Direito Antigo sem levar em con- 2 O CÓDIGO DE HAMURABI
sideração a principal fonte de valores para os
povos da Antiguidade, isto é, a religião (FUS- O Código de Hamurabi é considerado o sím-
TEL DE COULANGES, 2009; BURNS, 1979; bolo da civilização mesopotâmica e um dos do-
RABINOVICH-BERKMAN, 2002). O culto aos cumentos mais importantes da História do Di-
mortos e aos antepassados, considerado par- reito (PFEIFFER, 1920; FINKELSTEIN, 1961;
BURNS, 1979). Admirado pelos historiadores

REVISTA JURÍDICA ELETRÔNICA/Ano 6, Número 8, Fevereiro/2017 Universidade de Rio Verde ISSN2177 – 1472 91
REVISTA JURÍDICA

devido ao seu conteúdo jurídico, o Código de numa taberna” tornaram-se puníveis de mor-
Hamurabi é também uma fonte de informações te, sem dúvida pela crença de que poderiam
sobre sociedade, religião e economia da Babi- alimentar atividades desleais ao rei. Enquanto
lônia nesse período histórico (VAN DE MIERO- sob a lei suméria o açoitamento de escravos
OP, 2006; NAGARAJAN, 2011). fugitivos era punível somente com uma multa,
A importância histórica do Código de Hamu- a lei babilônia transformou-o em crime capi-
rabi pode ser avaliada pelo fato de ele ter se tal. De acordo com o código sumério, o escra-
tornado a fonte jurídica na qual se basearam as vo que contestasse os direitos do amo sobre
leis de praticamente todos os povos semitas da sua pessoa deveria ser vendido; o Código de
Antiguidade, incluindo os assírios, os caldeus e Hamurabi prescrevia que lhe fosse cortada a
os próprios hebreus (BURNS, 1979; FARKAS, orelha (BURNS, 1979, p. 84).
2011; NAGARAJAN, 2011). De acordo com Burns (1979), a severidade
O Código de Hamurabi foi esculpido em uma do Código de Hamurabi poderia ser explicada
escultura de basalto erguida pelo rei Hamurabi pela necessidade de os conquistadores amori-
da Babilônia (1792-1750 a.C.), provavelmente tas, chamados de antigos babilônios, estabe-
em Sippar, cidade do deus-sol babilônico Sha- lecerem um Estado centralizado e autoritário
mash, também considerado o deus da justiça para manter sob submissão a população dos
pelos antigos babilônios, por volta de 1780 a.C. povos conquistados por eles.
(PFEIFFER, 1920; FINKELSTEIN, 1961; BUR- O Código de Hamurabi é dividido em três
NS, 1979; VAN DE MIEROOP, 2006). partes: 1) um prólogo histórico relativo à in-
Atualmente em exposição no Museu do Lou- vestidura do rei Hamurabi em seu papel como
vre, a escultura com o Código de Hamurabi foi "protetor dos fracos e oprimidos", e a formação
encontrada por arqueólogos franceses na cida- de seu império e realizações; 2) um epílogo líri-
de iraniana de Susa em 1902 (NAGARAJAN, co resumindo o trabalho legal do rei Hamurabi
2011). Acredita-se que a escultura tenha sido e os preparativos que ele fez para a perpetua-
transportada para a acrópole de Susa por um ção da justiça no futuro; 3) o texto jurídico pro-
príncipe do país vizinho da Babilônia, chama- priamente dito, com a tipificação dos crimes e a
do Elam, no século XII a.C. (PFEIFFER, 1920; cominação das respectivas penas (PFEIFFER,
FINKELSTEIN, 1961; VAN DE MIEROOP, 1920; FINKELSTEIN, 1961; VAN DE MIERO-
2006). OP, 2006).
A escultura do Código de Hamurabi mostra Segundo Pfeiffer (1920, p. 315, tradução
o rei Hamurabi recebendo a sua investidura nossa), “assim como o Jus civile romano, [a
do deus Shamash, sendo que, abaixo dessa terceira parte do] Código de Hamurabi é divi-
cena, o texto do código foi esculpido em es- dida em três partes: Jus actionum, Jus rerum e
crita cuneiforme acadiana (PFEIFFER, 1920; Jus personarum, embora na ordem inversa da
FINKELSTEIN, 1961;VAN DE MIEROOP, prescrita pela lei romana”.
2006). De acordo com Van De Mieroop (2006), A parte legal do Código de Hamurabi contém
os historiadores acreditam que o Código de 282 leis escritas em uma linguagem cotidiana e
Hamurabi tenha tido suas fontes jurídicas em simplificada, pois o rei Hamurabi queria que as
dois documentos legais sumérios elaborados leis fossem compreendidas por todos (PFEIF-
por Ur-Namma, rei de Ur (2100 a.C.) e Lipit- FER, 1920; VAN DE MIEROOP, 2006). A forma
-Ishtar de Isin (1930 a.C.). No entanto, Burns de descrição das leis é sempre a mesma: uma
(1979) afirma que essas leis sumérias prece- frase escrita no tempo condicional que des-
dentes eram mais brandas do que o Código de creve um problema legal ou de ordem social é
Hamurabi dos conquistadores babilônios: seguida por uma resposta no tempo futuro co-
O Código de Hamurabi aumentou considera- minando uma pena ou apresentando uma so-
velmente a severidade das penas, em especial lução. Por exemplo, “se alguém roubar o filho
contra os crimes que envolvessem sinais de menor de um outro, ele deverá ser condenado
traição ao rei ou sedição. Infrações aparente- à morte” (Lei 14 do Código de Hamurabi, citado
mente triviais como “vadiagem” ou “desordem por VAN DE MIEROOP, 2006, p. 163).

92 REVISTA JURÍDICA ELETRÔNICA/Ano 6, Número 8, Fevereiro/2017 Universidade de Rio Verde ISSN n. 2177 – 1472
REVISTA JURÍDICA

Os principais temas do Código de Hamurabi belecer o princípio da precedência do interesse


são o direito penal (caracterizado pela severi- coletivo sobre o interesse privado tutelado pelo
dade do princípio da Lei de Talião, “olho por Estado (VAN DE MIEROOP, 2006).
olho, dente por dente”, na cominação das pe-
nas para os crimes), o direito da família e a re- 2.1 O Código de Manu
gulamentação profissional, comercial, agrícola
e administrativa (FINKELSTEIN, 1961; VAN O Código de Manu (Manusmriti, Leis de
DE MIEROOP, 2006). O Código também esta- Manu ou Manava-dharma-shastra, o Texto
belece preços e salários, como no exemplo a Dharma de Manu, em sânscrito), o mais impor-
seguir: “se um homem contratar um marinhei- tante dos livros do Código Hindu, é conside-
ro, ele deverá pagar seis gur de cereais por rado um dos textos jurídicos mais antigos de
ano” (Lei 239 do Código de Hamurabi, citado que se tem notícia, tendo sido elaborado na Ín-
por VAN DE MIEROOP, 2006, p. 163). dia há cerca de 2100 anos (GARCIA-GALLO,
De acordo com Van De Mieroop (2006), em- 1972; OLIVELLE, 2004; NAEGELE, 2008).
bora o princípio da Lei de Talião seja o principal Ao contrário dos Vedas, obra religiosa cuja
aspecto pelo qual o Código de Hamurabi cos- origem é considerada divina, a tradição hin-
tuma ser lembrado, a maior parte desse código du considera que o código de Manu teria sido
é dedicada à regulamentação das relações fa- compilado pelo primeiro ser humano, Manu,
miliares, legislando sobre noivado, casamento, criado pelo deus Brahma (GARCIA-GALLO,
divórcio, adultério, incesto, adoção e até mes- 1972; OLIVELLE, 2004; NAEGELE, 2008).
mo sucessão e herança. Por exemplo, de acor- O Código de Manu prescreve o ideal de so-
do com Lei 179 do Código de Hamurabi (citado ciedade na concepção indiana, contendo leis
por VAN DE MIEROOP, 2006, p. 163): e regras de conduta aplicáveis aos indivíduos,
às comunidades e às nações. Algumas das leis
Se uma mulher consagrada ou uma meretriz, do Código de Manu regulam o sistema de cas-
às quais seu pai fez um donativo e lavrou um
ato e acrescentou que elas poderiam alienar a tas hindu (GARCIA-GALLO, 1972; OLIVELLE,
quem lhes aprouvesse o seu patrimônio e lhes 2004; NAEGELE, 2008).
deixou livre disposição; se depois o pai morre, De modo geral, as leis do Código de Manu
então elas podem legar sua sucessão a quem regulam a conduta em termos sociais e religio-
lhe aprouver. Os seus irmãos não podem le-
vantar nenhuma ação. sos, tendo como referência o princípio ético
universal do dharma, isto é, conjunto de obriga-
De acordo com Burns (1979), as leis do ções que cada indivíduo membro de uma das
Código de Hamurabi referentes às atividades castas deve necessariamente obedecer (NAE-
produtivas refletiam o interesse do Estado GELE, 2008).
babilônio no progresso da economia. No en- O Código de Manu foi escrito em sânscrito e
tendimento de Nagarjan (2011), a concepção contém 2.650 slokas (texto poético de dois ver-
de justiça expressa no Código de Hamurabi sos), dividido em 12 livros (GARCIA-GALLO,
estaria intrinsecamente vinculada à noção de 1972; OLIVELLE, 2004; NAEGELE, 2008). O
prosperidade, visto que o prólogo do código primeiro livro contém as concepções hindus
faz referência aos esforços do rei Hamurabi no sobre a origem do universo, a sociedade hu-
sentido de propiciar as condições de paz e or- mana, e as castas sociais. O segundo livro for-
dem necessárias (“eu [o rei Hamurabi] o que nece regras de conduta para os “homens virtu-
estabeleceu a segurança na Babilônia”) para osos”, os alunos e os sacerdotes brâmanes, os
que as atividades econômicas pudessem se quais constituem a mais alta casta da socieda-
desenvolver. de hindu (GARCIA-GALLO, 1972; OLIVELLE,
Embora o Código de Hamurabi esteja reple- 2004; NAEGELE, 2008).
to de contradições e arbitrariedades ilógicas, O terceiro e o quarto livros contêm regras de
sua importância histórica é inegável e reside conduta para o dono da casa, regulamentando
no fato de ele ter sido um modelo para o direito o pátrio poder, os costumes de casamento e ri-
de vários povos ao longo da História, ao esta- tos religiosos domésticos. Por sua vez, o quinto

REVISTA JURÍDICA ELETRÔNICA/Ano 6, Número 8, Fevereiro/2017 Universidade de Rio Verde ISSN2177 – 1472 93
REVISTA JURÍDICA

prescreve regras de conduta específicas para res hindus consideram que o Código de Manu
as mulheres com base na concepção de sub- é mal interpretado pelos ocidentais e alegam
missão ao marido. Além disso, esse livro tam- que ele não prescreve a exploração de uma
bém descreve a função simbólica e religiosa casta pela outra. Pelo contrário, o código deter-
do trabalho e prescreve regras dietéticas e de mina que o sistema de castas deve ser basea-
purificação do corpo (GARCIA-GALLO, 1972; do em cooperação, serviço mútuo à divindade
OLIVELLE, 2004; NAEGELE, 2008). e os direitos e responsabilidades proporcionais
O sexto livro é dirigido às normas de condu- aos atributos e ao caráter de cada casta. Por
ta para os ascetas (indivíduos que se entregam exemplo, embora os guerreiros venham a pos-
às práticas religiosas por meio de uma vida suir grande riqueza e poder, espera-se que eles
contemplativa e a mortificação dos sentidos) e sejam os primeiros a combater e a morrer em
anacoretas (pessoas que vivem contemplativa- uma guerra. Por outro lado, a casta dos brâma-
mente a prática religiosa por meio do isolamen- nes desfruta do mais alto prestígio social, mas
to social), prescrevendo as regras para a vida exige-se que os membros dessa casta tenham
ascética das etapas finais da vida de um mem- o controle total sobre a mente e os sentidos.
bro da casta dos brâmanes (GARCIA-GALLO, Da mesma forma que o Código de Hamurabi
1972; OLIVELLE, 2004; NAEGELE, 2008). influenciou o direito dos povos da Antiguidade
Por sua vez, o sétimo livro é uma espécie do Oriente Médio e da Europa Mediterrânea, o
de código de direito administrativo rudimentar, Código de Manu serviu de modelo para o direito
pois regula os deveres dos reis e dos funcio- de vários povos no Oriente (GARCIA-GALLO,
nários do Estado. Esse livro também aborda 1972; OLIVELLE, 2004; NAEGELE, 2008).
questões militares e prescreve regras diplomá-
ticas. O oitavo livro se assemelha a um códi- 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
go de processo moderno, descrevendo como
deve ser o procedimento legal e a prática da O presente trabalho descreveu as principais
lei (GARCIA-GALLO, 1972; OLIVELLE, 2004; características e a importância histórica dos
NAEGELE, 2008). códigos de Hamurabi e de Manu. Verificou-se
Já os livros nono e décimo são uma mistura que ambos os códigos se constituíram em mar-
de leis criminais e civis, regulando as relações cos fundamentais na História do Direito porque
familiares, tipificando os crimes e cominando foram pioneiros na regulamentação de normas
as respectivas penas de acordo com as regras penais, civis e comerciais. Além disso, ambos
prescritas para cada uma das quatro castas so- os códigos representaram a tendência histórica
ciais hereditárias (GARCIA-GALLO, 1972; OLI- de se atribuir ao Estado, e não aos indivíduos,
VELLE, 2004; NAEGELE, 2008). o encargo de exercer a justiça.
Os dois últimos livros do Código de Manu são
essencialmente teológicos (GARCIA-GALLO,
1972; OLIVELLE, 2004; NAEGELE, 2008). No
décimo primeiro livro, encontra-se a descrição
dos pecados e das respectivas penitências ne-
cessárias para expiá-los. Finalmente, o décimo
segundo livro descreve o princípio da retribui-
ção, na vida após a morte, para as más ações
praticadas na vida presente. Além disso, esse
último livro descreve minuciosamente o concei-
to de transmigração das almas e o processo de
purificação progressiva da alma necessária ao
retorno ao deus Brahma, a força primordial e
criadora do Cosmos (GARCIA-GALLO, 1972;
OLIVELLE, 2004; NAEGELE, 2008).
De acordo com Naegele (2008), vários auto-

94 REVISTA JURÍDICA ELETRÔNICA/Ano 6, Número 8, Fevereiro/2017 Universidade de Rio Verde ISSN n. 2177 – 1472
REVISTA JURÍDICA

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALSCHULER, A.W. The descending trail: Holmes' path of the law one hundred years later.
Florida Law Review, v.49, n.3, 1997, p. 353-420.

BURNS, E.M. História da Civilização Ocidental. Porto Alegre: Editora Globo, 1979.

FARKAS, D. S. In search of the biblical Hammurabi. Jewish Bible Quarterly, v.39, n.3, 2011,
p.159-167.

FINKELSTEIN, J. J., Ammi-Saduqa’s Edict and the Babylonian “Law Codes”. Journal of
Cuneiform Studies, v.15, n.3, 1961, p. 91-104.

FUSTEL DE COULANGES, N.D. A Cidade Antiga. São Paulo: Martin Claret, 2009.

GARCIA-GALLO, A. Estudio de Historia Del Derecho Indiano. Madrid: Instituto Nacional de


Estudios Jurídicos, 1972.

KELSEN, H. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

LEVAGGI, A: Manual de Historia del Derecho Argentino. Buenos Aires. Depalma, 1996.

NAEGELE, C. J. History and Influence of Law Code of Manu. 2008. 261 f.. Tese (Doutorado
em Ciências Jurídicas) – Golden Gate University School of Law, San Francisco, 2008.

NAGARAJAN, K.V. The Code of Hammurabi: an economic interpretation. International Jour-


nal of Business and Social Science, v.8, n.2, 2011, p.108-117.

OLIVELLE, P. The law code of Manu. Oxford: Oxford University Press, 2004.

PFEIFFER, R.H. An analysis of the Hammurabi Code. The American Journal of Semitic Lan-
guages and Literatures, v.36, n.4, 1920, p.310-315.

PHILLIPS, J. Why Legal History Matters. Victoria University of Wellington Law Review, v.41,
2010, p. 293-316.

RABINOVICH-BERKMAN, R.D. Un viaje por la historia del derecho. Buenos Aires: Editorial
Quórum, 2002.

REALE, M. Lições preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1998.

REALE, M. Filosofia do Direito. São Paulo: Saraiva, 2002.

SHEPARD, R.T. The importance of legal history for modern lawyering. Indiana Law Review,
v.30, n.1, 1997, p. 1-6.

TAU ANZOÁTEGUI, V.; MARTIRÉ, E. Manual de historia de las instituciones argentinas.


Buenos Aires: Macchi Librería Histórica, 1975.

VAN DE MIEROOP, M. A History of Ancient Near East. Londres: Blackwell, 2006.

REVISTA JURÍDICA ELETRÔNICA/Ano 6, Número 8, Fevereiro/2017 Universidade de Rio Verde ISSN2177 – 1472 95

Você também pode gostar