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Regime de Educação Inclusiva, três anos

depois
As mesmas ideias com novas roupagens, para que tudo fique na mesma. A efetiva
melhoria das práticas e da organização escolar deixa muito a desejar. Artigo de Jorge
Humberto Nogueira.
17 de Julho, 2021 - 14:35h

Educação Inclusiva - imagem do Agrupamento de Escolas de Mafra

O estado da Educação Inclusiva, três anos após a nova legislação que a regulamenta,
nomeadamente do Decreto Lei n.º 54/2018, com posterior alteração pela Lei 116/2019,
tem o seu caminho, mas a efetiva melhoria das práticas e da organização escolar deixa
muito a desejar.

Este autointitulado “Regime de Educação Inclusiva” não aborda o assunto de forma


integrada, criando, em vez disso, um quadro legal setorial agregado às “Necessidades
Específicas”, o que na prática alimenta a exclusão.

Este autointitulado “Regime de Educação Inclusiva” não aborda o assunto de forma


integrada, criando, em vez disso, um quadro legal setorial agregado às
“Necessidades Específicas” o que, na prática, alimenta a exclusão

A inclusão constrói-se com decisões articuladas e abrangentes, não só na sala de aula,


mas também na escola e em todo o sistema e estruturas. A Inclusão é um princípio que
deve estar presente em todas as leis e nas diferentes dimensões do sistema educativo,
motivando mudanças e melhorias qualitativas.

Não existem mecanismos que abordem os problemas estruturais de fundo que causam
exclusão, como as desigualdades sociais e a pobreza, apenas maquilha a situação,
enquanto se continuam a perpetuar as situações de exclusão social dos alunos. Nem tão
pouco representa uma melhoria ou alteração substancial da anterior legislação, pois
também nessa altura as ideias base eram as mesmas, só que agora encontram uma
continuidade, sob outra roupagem.

Esta legislação não teve por base a avaliação da anterior, resultando que muitas das
situações positivas verificadas não fossem tidas em conta, nem todo o passado de décadas
de construção da inclusão de muitos docentes, como por exemplo os de educação especial.
Surge como se fosse só agora que a inclusão nasceu, e nada houvesse no percurso passado
de décadas.

Neste momento não existe uma coerência legislativa, nomeadamente em termos de


flexibilidade e inclusão

Neste momento não existe uma coerência legislativa, nomeadamente em termos de


flexibilidade e inclusão. Dizer que a escola inclusiva existe, já inibe o processo de
implementação de linhas em todo o sistema, onde são necessárias reformas mais
profundas neste âmbito. Para além disso existe uma formatação de políticas centralizadas
e homogéneas, embora a inclusão deva ser heterogeneidade de soluções e formas de estar,
envolvendo todos os diferentes serviços.

A Inclusão é transversal a todo o sistema, a todos os professores e a todos os alunos, não


apenas para alguns, quando apresentam dificuldades de aprendizagem.

Não se olha a educação Inclusiva como uma forma da escola acolher, promover e ensinar
em igualdade, alunos tradicionalmente desfavorecidos ou vítimas de exclusão, como os
alunos migrantes de diferentes gerações, refugiados, alunos LGBTQI+, alunos
emocionalmente fragilizados, doentes, alunos abusados, vítimas de violência familiar, de
bulliyng, em risco social, de etnias, minorias religiosas, culturais … ou até, aqueles a
quem a escola não consegue responder.

Tantas áreas importantes ficam também sem resposta, como a transição e


acompanhamento pós-escolaridade, inclusão no ensino superior, escolas e cursos
profissionais, emprego protegido, apoio às famílias, respostas após escolaridade
obrigatória, ensino noturno, estágios de preparação para uma vida ativa, acesso a direitos,
educação sexual/sexualidade, entre muitos outros aspetos articulados entre a Escola e os
diferentes serviços, pois só uma resposta global e integrada pode ter efeitos duradouros.

Continua a não existir uma verdadeira autonomia das escolas, dado que o Ministério da
Educação não confia nelas, mantendo um controlo com bases de dados e processos
normalizados, contrários à autonomia dos diversos contextos.

Necessidades especializadas diluídas a pretexto de mais inclusão

Não nos podemos esquecer que há alunos que continuam a precisar de educação especial
e de ser apoiados diretamente por estes professores. No entanto, divulga-se a ideia de uma
diluição de todos, num só “saco” de suposta inclusão, dado que são todos “alunos”. Sem
equidade, sem ter em conta as especificidades de muitos alunos, não há igualdade, logo,
não há inclusão.
Incluir não é diluir os alunos com deficiência em respostas genéricas

Não é pelo facto de se decretar a educação Inclusiva que deixam de haver alunos a
necessitar de especialistas que saibam criar e trabalhar em contextos inclusivos e não de
uma visão assistencialista e terapêutica dos agora chamados “alunos das Adicionais” ou
“alunos da Inclusão”, quando esta situação origina situações de exclusão. Há saberes
específicos que não se podem perder e a educação especial, sempre que necessária, deve
estar presente.

Também na formação destes docentes devem manter-se as duas vertentes de


conhecimento, a educação inclusiva e os saberes específicos da profissão.

Querer transformá-los em docentes de inclusão, não vai capacitar de repente toda a escola,
pois todos os professores são de inclusão. O que se fez foi mudar algo, enquanto toda a
escola continua na mesma, deixando algo para trás, que é essencial.

Semântica criativa de modelos e nomenclaturas promove desnorte

No processo de categorização, não se compreendem opções tomadas, pois é importante


ter informação rigorosa para promover a pessoa e alocar recursos, garantindo
necessidades especializadas. Há levantamentos que deixaram de ser feitos pela
inexistência de nomenclaturas comparáveis, dificultando a organização de respostas e a
avaliação e monitorização do sistema.

Portugal não tem critérios de elegibilidade rigorosos, como noutros países, o que
transforma o sistema multinível num conjunto de lugares e numa caracterização que acaba
por ser um sistema de classificação e uma forma de elegibilidade para determinadas
respostas para a educação especial . Nada disto foi preparado quando a nova legislação
saiu, logo, a monitorização encontra-se comprometida.

"Mais do que anúncios, são necessárias medidas concretas" para recuperar aprendizagens

Há uma política de renomeação de termos e de conceitos, sem que a linguagem tenha um


valor concretizável nalguma mudança real na ação ou melhoria de funcionamento.
Abandonam-se termos e nomenclaturas internacionalmente estabelecidas e basta agora
ler como as nomenclaturas se constroem nas escolas: são os alunos do 54, os alunos das
Seletivas, alunos com adaptações curriculares, necessidades especiais de saúde, alunos
com graves barreiras ao desenvolvimento e aprendizagem, Necessidades Específicas,
podendo também ser alunos com RTP. Isto coloca num grande saco todos os alunos, sem
a correção científica e até pedagógica de caracterização de condições intrínsecas e
esconde alunos que necessitam de uma especial atenção e de políticas de promoção. Para
além disso mantém uma classificação estigmatizante, por medidas, sob a capa de que o
não faz.

Em relação às medidas de apoio que a lei contempla, a situação mais criticada prende-se
com a apresentação da “Diferenciação Pedagógica”, como uma medida apenas para
implementar em caso de necessidade e não como um modelo pedagógico que se quer
generalizado e que é a base de uma educação inclusiva. Desta forma promove-se uma
“medida” setorial, permitindo que o sistema continue igual e não se altere, de forma a que
todos os docentes pudessem ser, afinal, docentes de inclusão.

O Desenho Universal para a Aprendizagem deveria ser uma forma preventiva e de


planificação global, ou seja, como olhar a escola e o ensino em geral e não só como o
professor planifica a aula, mas nem sequer é usado nas próprias planificações das
aprendizagens essenciais de âmbito nacional.

Preocupa ainda a forma assimétrica como a legislação é aplicada no país, sem um período
de acompanhamento, bem como a necessidade de “enxugar” os modelos paradigmáticos
contidos. Não está a haver consistência na aplicação, nem a implementação de
mecanismos de regulação e de melhoria, promovendo situações díspares, algumas delas
contrárias ao que se entende como inclusão.

Sem investimento na educação inclusiva, aumenta a exclusão

Os recursos humanos estão a revelar-se manifestamente insuficientes em todas as


dimensões, com falta de acompanhamento de assistentes operacionais, apoios e tutorias
lotados de alunos e carência de professores nas diversas respostas diferenciadas ou
mesmo parcerias e tutorias.

Ao mesmo tempo existe uma preocupação com a crescente contratação externa de


serviços, descentrando as equipas de intervenção do contexto escolar, não se entendendo
porque não são as próprias escolas a ter as suas equipas técnicas inseridas em meio
escolar, num trabalho efetivo de promoção da inclusão.

No âmbito do Decreto Lei n.º 3/2008, estava previsto que as instituições de educação
especial se reformulassem, tivessem um tempo de adaptação para se constituírem em CRI
e caminhassem conjuntamente com as escolas numa via mais inclusiva, onde os seus
recursos revertessem para a escola pública. Esta mudança está por fazer e há uma reversão
neste caminho. Também há muito a fazer na articulação entre serviços, dado que a
inclusão também pressupõe o envolvimento das estruturas mais macro.

O financiamento às escolas mantém-se altamente deficitário, insistindo-se na ideia que se


pode implementar a inclusão a custo zero, ao mesmo tempo que se promove o
financiamento de recursos e serviços externos, promotores de exclusão, com condições
para uma terciarização na obtenção de respostas, em detrimento do necessário
financiamento da inclusão, ou seja, das próprias escolas.

Fazer algo setorial, sem um olhar integrado de diversas áreas

A Equipa Multidisciplinar de Apoio à Educação Inclusiva, EMAEI, está claramente


deslocada e isolada, sendo difícil perceber onde se insere na hierarquia da escola e que
funções terá, a não ser as que já existem noutras estruturas, nomeadamente o Conselho
Pedagógico e Coordenações. Esta equipa, para além de não ser multidisciplinar, não deve
substituir as restantes estruturas e, muito menos sobrepor ou “captar” competências, dos
lugares onde elas naturalmente devem pertencer, pois é isso que é inclusivo. Esta equipa
deveria integrar o Conselho Pedagógico, de forma a que toda a articulação seja mais
facilmente operacionalizada, dotando este órgão de competências na ação e nos processos
pedagógicos e não se quedando por meras competências administrativas. Para tal, a sua
criação deve verificar-se noutros patamares legislativos. As suas competências devem ser
pensadas e geridas de forma integrada, como os apoios, a intervenção em sala de aula, os
projetos e os mais variados processos, para promover a qualidade dos trajetos educativos.
O contrário leva ao risco da desintegração. Aqui também cabem as mudanças de uma
escola unipessoal, para uma gestão pedagógica mais participada.

A redução de alunos por turma é fundamental para qualificar a escola, gerir os espaços e
a aprendizagem, mas é um ponto em que se recua, procurando fazer crer que, estando os
alunos a ser canalizados para respostas mais globais e gerais, a redução de turma, deixa
de ser imperiosa para melhorar as condições de ensino e aprendizagem.

A formação inicial deveria formar professores para a inclusão, dotando-os de ferramentas


e formas de saber fazer, de trabalho em equipa e de colaboração. Os efeitos desta
formação deveriam ser alvo de monitorização e a escola deveria fazer parte desse
processo no elencar das suas necessidades e contribuir para a melhoria da formação.
Ainda nos cursos de formação inicial, é importante uma maior ligação entre as escolas de
formação e os Agrupamentos. Quer na formação inicial, como contínua, deve ser
desenvolvido o sentido crítico dos docentes, para que possam ser mais do que meros
executores.

Por fim, falta também uma monitorização, com caráter pedagógico e não punitivo, junto
das escolas, bem como se torna necessário avaliar este processo em termos mais macro,
não apenas centrado no que fazem os professores, mas que integre também a análise de
projetos e boas práticas nas escolas, para poderem ser replicados. Os resultados e os
produtos de todo este processo devem ser avaliados, para se conhecer o que resulta
concretamente desta nova legislação.

Artigo de Jorge Humberto Nogueira. Professor de Educação Especial

Texto baseado na segunda sessão das Jornadas de Educação do Bloco de Esquerda,


“Desafios da Escola Pública”, a 10 de abril, com o tema “Escola inclusiva: o que é e o
que poderia ser”, com a participação dos especialistas José Morgado e Joaquim Colôa.

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