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Aventura do

aprendizado
ão é difícil perceber que a quarta

Roleplaying Game já é
usado em algumas escolas
como ferramenta
pedagógica
série B da Escola Cada partida de RPG é chamada
Municipal de Ensino de "aventura". Os jogadores
Fundamental D. representam os personagens de uma
Pedro I, em São história, sentados em círculo ou
Paulo, é uma classe em volta de uma mesa. Quem cria o
diferente. As início do enredo é o mestre, uma
chamadas orais espécie de roteirista e diretor do
valem pontos de sabedoria, honra, grupo. A partir da trama proposta
força de vontade ou inteligência que por ele, os personagens vão
são marcados na ficha de cada um dos contando o resto da história por
alunos (ou seriam personagens?). A meio de suas ações.
sala é decorada com cortinas e Para dar um ar mais verossímil e
murais de papel feitos pelas crianças deixar a brincadeira mais
(ou jogadores?). As carteiras, unidas, emocionante, existem os testes. Eles
formam duas grandes mesas podem ser feitos toda vez que
compridas (um cenário?). Mas, houver a possibilidade de uma ação
durante boa parte do tempo, todos falhar. Por exemplo, se um jogador
ficam sentados no chão, em uma diz "meu personagem vai escalar a
grande roda (um círculo mágico?). torre onde está a princesa", deve
Tudo isso porque a professora fazer um teste para saber se foi bem
Rosângela Valente resolveu apostar sucedido. Na maior parte dos
em um novo formato de aula (ou é só sistemas de regras, os testes são
uma brincadeira?). Ela aposta na feitos com dados.
eficácia pedagógica do RPG, sigla para Foi assim, brincando, que os
Roleplaying Game (em tradução alunos de Rosângela aprenderam a
literal, "Jogo de Representação"). combater a dengue. Eles eram
Isso funciona? personagens do Reino Dourado, que se

Rosângela (abaixo,
segurando o dado) e seus
alunos, que aprenderam a
combater a dengue brincando
de RPG durante as aulas

RPG
transformou em Reino Dengoso após
a chegada da Pernilonga. A
professora interpretava a vilã, que
pretendia picar os personagens e
espalhar seus ovos por toda parte. A
cada investida sua, os jogadores
contra-atacavam com uma ação
preventiva. Um dado decidia o
resultado. Com 1 ou 2, ela era bem
sucedida. A partir de 3, a vitória era
dos alunos.
A Pernilonga tentou colocar seus
ovos na vasilha de água do cachorro,
nos vasos de plantas, nas garrafas
jogadas no quintal do castelo e nas
poças d'água. Os jogadores sabiam
exatamente o que fazer: trocavam a
água e lavavam as vasilhas, colocavam
areia nos vasos, viravam as garrafas de Andréa (com o filho Guido) é contra os jogos durante as aulas: "A escola não precisa ser um parque de diversões"
boca para baixo e esvaziavam as meninas têm personagens fadas. introduzido nas aulas para trabalhar
poças. A cada vitória no dado, eles Outro tipo popular são as princesas. temas transversais. No primeiro
vibravam como se a Seleção tivesse Há também as múmias, conselheiras semestre, Rosângela escolheu ética
feito um gol. A vilã acabou morrendo do rei por causa de sua sabedoria e meio ambiente. Neste semestre,
sem deixar descendentes e o reino milenar. Dois ou três meninos são será a vez da diversidade étnico-
foi salvo. highlanders, personagens tirados da cultural. Os elementos da
Rosângela descobriu o RPG há série de filmes da década de 80. O brincadeira, no entanto, estão
quatro anos. "Quando vi aquilo, fato de se tratar de guerreiros poderia presentes na aula o tempo todo.
pensei: 'Preciso dar um jeito de assustar alguns pais e levar a Quando é hora de sentar e fazer
fazer com os meus alunos"'. Pouco professora a proibir os lutadores silêncio, a professora grita: "Está
a pouco, ela foi incorporando imortais. Mas ela é contra a valendo ponto de honra e
elementos do jogo às aulas. repressão. Preferiu ressaltar as educação." Diego Oliveira da Cruz,
"Quando minha filha parou de características positivas da escolha: de 12 anos, prevê, irônico: "Agora
brincar de boneca, levei seus "Os highlanders têm um código de todo mundo vira santinho."
brinquedos para os alunos ética. Eles não podem sair matando Uma sessão de RPG exige
montarem personagens e histórias." qualquer um." preparação. Antes de começar a
Como Adilson, vários meninos e O jogo de representação foi aventura,

Encontro de mestres
Professores se reúnem para estudar RPG
A Associação Ludus e a livraria e editora Devir organizaram o primeiro
Simpósio RPG & Educação. 0 evento ocorreu entre os dias 24 e 26 de maio, em
São Paulo, paralelamente ao X Encontro Internacional de RPG. Douglas Quinta
Reis, sócio da Devir, lembra de quando os professores começaram a aparecer nos
encontros com seus alunos. Desde o IV Encontro, em 1996, há um dia dedicado às
escolas.
Há oito anos, a editora tem uma equipe de voluntários que realiza pequenos
projetos em escolas. "Primeiro, nós vamos até lá e apresentamos o jogo. Depois,
desenvolvemos atividades com os conteúdos curriculares durante alguns meses",
conta Carlos Eduardo "Caco" Lourenço.
Isso foi em 2000, com uma classe de terceira série. No ano seguinte, com os
mesmos alunos, ela começou a criar histórias interativas.
Este ano, elaborou fichas simplificadas. Cada aluno montou seu personagem,
que é usado em quase todas as atividades (não apenas nas aventuras). Eles vivem
no Reino Dourado, inspirado no jogo Castelo Falkenstein. Adilson Aparecido Santos,
de 12 anos, interpreta Líria, a rainha das fadas, com
Durante o simpósio, professores puderam trocar experiências e entrar em contato
com a ferramenta. Alguns já aplicavam o jogo nas aulas. Muitos nunca tinham ouvido
falar em RPG.
Os organizadores tiveram uma grata surpresa quando anunciaram o evento.
"Começou a aparecer professor de tudo quanto é canto dizendo que também usava
o jogo na aula", conta Lourenço. Um deles é Antônio Carlos Licio da Silva, de São
Paulo. "Eu achava que era o único. Quando vi que ia ter esse simpósio, fiquei bobo."
Ele dá aulas de história e geografia para o segundo ciclo do ensino fundamental na
rede pública. "O RPG tem muita interdisciplinaridade. Tem dia que eu acabo
ensinando ciências", conta. (APo)
A maior naturalidade. "Os únicos que me zoaram no começo foram uns meninos
da quinta série", conta.
é necessário montar os personagens.
Normalmente, eles são criados pelos
próprios jogadores. A ficha mostra sua
história de vida, as características e os
Os sistemas de RPG
objetos que ele carrega. Muitas vezes, 0 RPG foi criado na década de 70 nos Estados Unidos. A inspiração veio dos jogos
essa etapa requer pesquisa sobre de estratégia e da obra de J.R.R. Tolkien autor de romances como 0 Senhor dos
costumes de épocas ou lugares Anéis e O Hobbit, ambientados em um mundo fantástico chamado Terra Média.
diferentes. Por exemplo, se a aventura Existem três modalidades do jogo. A mais comum, conhecida como "de mesa", utiliza
dados ou cartas. Nos "live action", os jogadores vestem-se como seus personagens e
ocorre na França medieval ou no Egito
movimentam-se pelo cenário. Normalmente, há poucos testes, que são resolvidos no
antigo, é necessário ter informações par-ou-ímpar ou JoKenPo. Alguns grupos usam espadas de espuma para representar
sobre esses cenários. os combates. Há também as "aventuras-solo". São livros (conhecidos como "livros-
A interpretação também é jogos") em que a história é dividida em diversos fragmentos. Ao fim de cada um, o leitor
enriquecida com a pesquisa. Durante ou os dados decidem qual será a sequência. O sistema de regras define como serão a
a aventura, muitos jogadores utilizam ficha do personagem e os testes. Os mais populares são:
um vocabulário semelhante ao da
época escolhida. É comum eles
escreverem um diário do personagem,
atualizado ao final de toda sessão. "O Dungeons & Dragons (D&D)/ Advanced
RPG estimula a leitura e a escrita", Dungeons & Dragons (AD&D)
O primeiro sistema. Seus criadores são
afirma a pedagoga Jane Maria Braga
considerados os pais do RPG. Utiliza dados de
Silva, de Juiz de Fora (MG). Em sua até 20 lados. Foi concebido para cenários
dissertação de mestrado, pela medievais e tornou-se o sistema mais jogado no
Universidade Federal de Juiz de mundo.
Fora, ela estudou os hábitos de leitura
e escrita de jogadores e mestres. Elfa do sistema D&D
Como Jane, diversos pesquisadores
têm dedicado atenção ao RPG. Alguns
investigam a relação entre o jogo e a
Storyteller
leitura ou escrita. Outros buscam
formas de aplicá-lo à educação formal.
Alessandra Vieira dos Reis, graduando
em psicologia pela Universidade Federal
de Santa Catarina, criou a Fler
(Ferramenta Lúdica de Ensino por
Representação). Além das categorias
"jogador" e "mestre", ele inventou o
"consultor" (representado sempre pelo Cena de Lobisomem
professor) e os "jogadores auxiliares".
Cada personagem é interpretado por um
jogador e um auxiliar.
Reis defende que o RPG é uma
ferramenta poderosa, mas que deve ser
usada com moderação. "Sou contra Gurps (Generic Universal
aplicá-lo em todas as aulas porque vira Roleplaying System)
festa." Ele vem trabalhando
voluntariamente em escolas da rede Sistema genérico, pode ser usado em
pública de Florianópolis desde o qualquer cenário. Possui regras para
começo do ano. "O professor me os mais diferentes tipos de ação.
encomenda uma aula sobre
determinado assunto e eu crio a Personagens de O Império Romano
aventura". Para cada aula, ele
Dá mais ênfase à interpretação dos personagens do que aos combates. Aplicado nos
confecciona um tabuleiro com o mapa cenários Lobisomem e Vampiro, este último o jogo mais famoso no Brasil.
do cenário. "É um trabalho artesanal e
personalizado. Por isso, o professor
precisa de alguém que desenvolva isso
para ele." ►
RPG
Os professores que conhecem o
RPG mostram uma lista de
benefícios. "Ele melhora o
Sem sotaque
raciocínio, diminui a inibição, Começam a ser criados jogos ambientados no Brasil
estimula a leitura e a escrita e
ensina a trabalhar em equipe", Tradicionalmente, os cenários dos jogos vendidos em livrarias são totalmente
defende Rui Grilo, que trabalha na
fictícios ou inspirados na Europa. Recentemente, porém, têm sido lançados
Secretaria Municipal de Educação títulos
de São Paulo.
Carlos Klimick, que desenvolve que mostram a história do Brasil. A série Mini Gurps, da editora Devir, tem os
aventuras para duas escolas títulos Entradas e Bandeiras, Descobrimento do Brasil e Quilombo dos Palmares. Luiz
particulares no Rio de Janeiro, conta Eduardo Ricon é autor dos três livros, além de O Desafio dos Bandeirantes e No
como o jogo pode ensinar sobre Coração dos Deuses, adaptação do filme de Geraldo Moraes. "Eu ficava incomodado
nosso mundo. "Tínhamos uma com a falta de aventuras ambientadas no Brasil", conta.
aventura ambientada no Brasil de Carlos Klimicke Flávio Andrade ajudaram a escrever O Desafio dos Bandeirantes
hoje. Os personagens foram viajar e hoje são sócios na editora Akritó. Uma de suas criações é A Era do Caos, que
de ônibus. Na rodoviária, uma das mostra um quadro atual do Brasil: desigualdade social, violência urbana, degradação
meninas foi ameaçada por um ambiental. A intenção é fazer os jogadores refletirem sobre o mundo de hoje e as
perspectivas futuras. Os livros foram concebidos para serem jogos como os outros.
homem armado. A jogadora, que
"Não é material didático, mas pode ser usado também na escola", diz Ricon.
nunca tinha andado de ônibus,
Seguindo a trilha dos Mini Gurps brasileiros, a Devir está para lançar O Resgate de
disse: 'Que rodoviária é essa que 'Os Retirantes', de Carlos Eduardo "Caco" Lourenço. 0 jogo é baseado na vida e obra de
não tem detector de metais? Como é Portinari, pintor modernista brasileiro. Também estão previstos livros para professores,
que eles deixam qualquer um
regras e histórias de mundos Livros da série Mini Gurps, que traz
entrar aqui?'".
fantásticos." temas brasileiros: noções de geografia e
A aplicação mais óbvia do jogo
Para Laís, um grande problema é história
na educação é para aulas de história.
a falta de compreensão e aceitação
Mas Maria do Carmo Zanini, da
por parte dos pais e da escola. "Todo
Associação Ludus, garante: "Dá pra
adolescente se interessa por alguma
usar o RPG em qualquer aula". Ela
coisa. Nem todos se encaixam no
criou uma aventura para aulas de
modelo tradicional de escola". Ela
inglês na escola UniverCity, em São
diz que, quando se admite o RPG
Paulo. Os alunos revezam-se na
como uma fonte de cultura e
interpretação de um personagem,
formação de crianças e jovens, os era
agente do FBI. "Eles ficam
efeitos são muito benéficos. Por
superenvolvidos. É a melhor aula violento como a mídia estava
isso, dá todo apoio aos alunos-
da semana", garante. dizendo." A pedido de um pai, o
jogadores do Colégio Satélite, em
A professora Andréa Pavão é professor
Juiz de Fora, onde é diretora.
contra a incorporação do jogo de colocou uma tarja preta sobre um
Nem todas as escolas têm
representação à aula formal: "A desenho que mostrava um monstro
professores, diretores e pais tão
escola não precisa se transformar em segurando a cabeça de um
abertos. No interior de São Paulo, o
um parque de diversões". Ela acredita homem.
professor Gilsmy Boscolo teve que
que os problemas vividos hoje pela Quando viram aquilo, estudantes
se explicar para os pais de seus
escola devem ser resolvidos pelos de quinta e sexta séries foram
alunos, por causa de um crime
próprios pedagogos. "O RPG perguntar o que havia atrás da tarja.
ocorrido em Ouro Preto (onde, em
estimula o gosto pela leitura e a "Eu contei o que tinha acontecido e
14 de outubro de 2001, a estudante
escrita sem precisar da tutela dos eles disseram: 'Ah, professor! Até
Aline Soares foi encontrada morta em
professores." parece que só por que a gente viu
um cemitério após ter participado de
Na verdade, o que se faz em aula isso vai sair cortando a cabeça de
uma aventura de RPG).
é algo derivado do RPG e adaptado todo mundo. É claro que a gente sabe
Boscolo usa o RPG nas aulas de
para as circunstâncias pedagógicas. que é fantasia.'"■
educação física na Escola Estadual
Mas a atividade pode melhorar o (Colaborou César Nunes)
Dr.Elias Massud, em Monte-Mor
desempenho de estudantes mesmo
(SP). Para a feira cultural do ano
que não seja usada na escola. A
passado,tinha convidado mestres de
psicopedagoga Laís Gouveia Pires
São Paulo e montado uma sala
começou a estudar o assunto
temática, com espaço para os alunos
quando foi procurada por pais de
brincarem. "O crime foi uma semana
um "rpgista": "Eles diziam que o
antes da feira. Aí, vários pais
filho não gostava de ler, não
chegaram lá me perguntando se
gostava de estudar e só ia mal na
aquilo não era perigoso, se tinha
escola. Quando comecei a conversar
mesmo relação com o RPG. Eu
com o garoto, descobri que ele
disse que ainda era cedo pra saber
passava horas em cima de livros de
sobre o caso, mas que o jogo não

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