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    Acordo com o barulho de pessoas se levantando, é o fim da aula. Olho ao redor e
todos estão arrumando suas coisas, alguns já estão de pé e outros já foram.
— Droga, por quanto tempo dormi? — me pergunto sem esperar nenhuma resposta.
— Não muito tempo. Uns vinte minutos, talvez. — e então me viro para trás e ela ainda
está ali. — Um dia você ainda vai se ferrar muito por dormir no meio da aula Marli.
— O que posso fazer? Não consigo evitar, eu tento manter meus olhos abertos, mas é
difícil. — digo começando arrumar minhas coisas, meu caderno tem marcas da minha
saliva recém feita e marcas de outras mais antigas, de outros longos cochilos.
— Devia pegar mais leve no trabalho. Sua mãe já disse que você não precisa fazer isso.
— Velly diz já com a mochila mas costas e de pé na minha frente.
— Sim, ela disse. Mas ela também já disse que o governo quer nos matar e que estão
atrás de nós. Você também se lembra disso?
—  Sim, me lembro. É um saco essa situação toda sabe? Foi meio que do nada.
— Não foi meio do nada, ela pirou depois da morte do meu pai. Mas se eu não trabalhar
quem é que vai Velly? Minha mãe não é mais a mesma, ela é incapaz de falar alguma
coisa que faça sentindo. Quem contrataria alguém assim? Ela era uma pessoa tão normal
e aí meu pai morreu e de repente eu que virei responsável por tudo, porque ela surtou.
Depois daquilo tudo, ela ainda insiste que foi o governo que matou o papai e não uma
carreta. — Velly se apoia sobre a mesa e solta um suspiro irritante.
— E ela nunca conseguiria um emprego na Zona 13, quem dirá em outra Zona.
Ninguém aceitaria. — Digo terminando de guardar minhas coisas e olhar a hora no
celular, já passava do meio dia.
— Seria muito legal sair desse pedaço pequeno de terra. Eu adoraria morar em uma
Zona melhor. Nem precisa ser a melhor Zona, mas imagina poder viver na Zona 6 pelo
menos. Eles tem as melhores praias e foi eleita a Zona mais limpa pelo quarto ano
consecutivo. — Ela articula com os braços enquanto fala imaginando uma vida melhor
numa Zona melhor. — Mas falando nisso, você bem que poderia arrumar um emprego
em outra Zona, onde pagam muito mais que aqui. — me levanto, coloco a mochila nas
costas e caminhamos em direção ao corredor.
— Bem que eu queria, mas não posso trabalhar em outra Zona, não posso me dar esse
luxo. Minha mãe precisa de mim por perto e ainda tem as crianças, eu preciso ajudar ela
com o Marvin e a Marya. Além do mais a Zona mais próxima fica a mais de quinze
quilômetros daqui. Sem chances — Ao sairmos da sala nos deparamos com um
amontoado de jovens saindo de suas salas prontos para irem para suas casas e seus
trabalhos.
— Eu juro que te entendo, mas Marli sua mãe surtou, ela precisa de um médico ou coisa
do tipo. — Velly esbarra num calouro qualquer, mas não percebe. O calouro reclama
alguma coisa, mas continuamos andando normalmente sem dar atenção.
— Você pode dizer “ser internada” não tem problema, mas acontece que não temos
dinheiro para isso. Já usamos e abusamos da nossa cota de vezes que podíamos ir ao
médico. Mas agora não temos dinheiro para isso, tenho que focar em terminar a
faculdade para poder conseguir um emprego melhor e dar uma boa educação aos meus
irmãos. — Estamos a poucos metros da saída que dá acesso ao estacionamento, e ao sair
pelo portão, a luz forte do sol toma conta de tudo ali. Meus olhos demoram não muito
para se acostumar com a luz solar, mas rapidamente Velly pega seu óculos de sol e o
coloca.
— Você já é quase uma formanda Marli, você sabe que consegue um emprego melhor e
que vão te pagar bem mais do que te pagam. Poderia receber até vinte e cinco Rubis por
hora se trabalhasse em uma empresa maior. E eu te garanto que a auto mecânica do
Robi não deveria nem ser considerado uma empresa.
— E não é. Ele já tentou várias vezes, mas a base 12 não reconhece a mecânica dele
como de fato uma empresa de automóveis.
— Acho ridículo nossa Zona não ter uma base, somos tão inferiores assim comparado
com eles? — Ela diz se virando para olhar um grupo de garotos idiotas mexendo com
algumas meninas. E vejo sua expressão mudar mesmo com os óculos escuros tampando
quase metade do seu rosto. — Tão ridículos. — Ela comenta para ninguém além de si
mesma.
— Se você quer dizer com conhecimento e os privilégios que eles tem. Sim, somos
bastante inferiores. — Também olho para o grupo de garotos, e percebo rapidamente
que eles não são da nossa Zona. — Pelo menos temos um hospital e uma universidade.
— Você não devia ficar feliz por ter o mínimo e olha que o mínimo exigido por Zona é
ter uma base e nem isso a nossa base tem. E se você acha que aquele pedaço de nada é
um hospital, eu sinto em lhe informar, mas não é. Eles dizem que é, mas é só pra
enganar os ingênuos. Além do mais, como uma Zona pode ser considerada uma Zona
sem uma base? — Velly pega o protetor solar na mochila e passa sobre o rosto para de
proteger do sol escaldante de Japryon.
— Por que você acha que chamam a Zona 13 de Zona Morta? Com certeza não é um
apelido carinhoso. — desvio o olhar da Velly e me viro em direção ao carro de Igor que
já está a nossa espera. Igor irmão mais velho de Velly e também o menos inteligente
entre eles. Mas nos pegava depois da aula e isso era o que importava.
— Isso me deixa emputecida. — diz Velly abrindo a porta do carona e entrando no
carro. Abro a porta de trás e também entro. Olho para Igor e ele me dá um sorriso gentil
através do retrovisor.
— O que houve dessa vez? — ele pergunta apontando para Velly para colocar o cinto.
— É o assunto de nossa Zona não ter uma base de novo. — digo colocando a mochila
ao meu lado e logo em seguida o cinto.
— Vocês não tem outro assunto não é meninas? Todo dia isso. Se pá eu vou morrer sem
ver a Zona 13 ganhar uma base. — Ele engata ré no carro para sair da vaga e então se
dirigir a saída do estacionamento.
— Se pá, eu vou me formar primeiro na faculdade do que você no ensino médio. —
Igor faz uma careta pra Velly parando o carro logo atrás de outro para sair. Igor era
quatro anos mais velho que Velly, mas ainda não havia se formado no ensino médio. O
fato de ele nunca ter ligado muito para os estudos ou até mesmo se esforçar incomodava
muito a família dele, que lhe deram esse carro com muito custo. O carro em si está no
nome da Velly, mas é ele que mais usa por ter carteira de motorista e ela ainda não.
Grande parte do dinheiro investido no carro veio da parte da Velly, só por isso os pais
deles entraram com o resto. Ele ainda está tentando se formar e entrar em uma
universidade, mas nunca conseguiu. Depois de ter reprovado ao todo 6 vezes dificultou
bastante e o atrasou muito em questão a irmã. Apesar de que esse ano ele realmente
começou a se esforçar e disse que iria entrar na universidade da Zona onze. É claro que
Velly riu muito quando ele disse isso, mas eu realmente acho que se ele se esforçar o
suficiente, ele consegue.
— E como tá sua mãe Li? Alguma melhora? — Ele volta a andar com o carro e
finalmente sai do estacionamento pelo portão B na lateral oeste do estacionamento.
— Ontem a noite ela conseguiu fazer o jantar, eu insisti para fazer, mas ela disse que
queria fazer a velha receita do papai. E ela conseguiu, não teve nenhum surto durante o
jantar e nem depois. Mas antes de dormi ela chorou, disse que sua cabeça estava doendo
muito e que eram eles. O governo, eles estavam espionando ela.
— É sempre a mesma coisa né?
— Às vezes ela diz que viajou no tempo ou que foi para um universo paralelo. Mas não
temos mais dinheiro para o tratamento dela na clínica da Zona 12.
— Por que você ainda trabalha naquela velharia de oficina? — ele diz entrando com o
carro na avenida principal da Zona e aumentando a velocidade — Digo, você pode
encontrar um lugar melhor e que paguem melhor. Tem balinjas no porta luvas Velly. —
Ele termina direcionando a mão para o porta luvas onde ele sempre guardava os doces
que comprava pra Velly
— Não, não aqui, ninguém aceitaria uma estudante para trabalhar meio período, só se
eu tentasse algo mais perto da capital, talvez até conseguiria algum estágio remunerado
ao invés de um emprego de meio período que paga incrivelmente mal. Mas não posso,
não com a minha mãe desse jeito.
— É eu sei, desculpa, não queria dizer isso.
— Eu sei que não e além do mais, ninguém que cursa contabilidade aceitaria trabalhar
na oficina pelo valor que eles pagam. Eles não teriam ninguém para cuidar das finanças
e eles pagam dez rubis por hora, mesmo eu dizendo que um salário mínimo seria o
suficiente, mas eles insistiram em pagar dez rubis por hora. Aliás, quando vai pegar pelo
concerto? Já vai fazer um mês, não aguento mais ouvir o Robi dizendo “aquele seu
amigo lá me passou a perna Vi”
— Vi? — Ele me olhando através do retrovisor c uma expressão estranha e logo depois
pega uma balinha da mão da Velly.
— É, ele nunca consegue pronunciar o L, é sempre Marvi ao invés de Marli ou Vi ao
invés de Li. Mas a questão não é essa, a questão é que você está devendo quase
trezentos rubis pra ele e se você não pagar daqui a pouco ele vai começar a descontar do
meu salário.
— Foi mal, prometo que ainda esse final de semana eu vou lá pagar. Mas temos que
concordar que uma pessoa que está cursando o penúltimo ano da faculdade de
contabilidade merecia receber no mínimo vinte rubis por hora. — ele diz enquanto eu
me estico para também pegar uma balinha da mão de Velly. Era uma vala de morango e
macia, a bala grudou um pouco na embalagem fazendo com que eu tivesse que tirar com
o dente.
— Já conversamos sobre isso, não tem chance disso acontecer. Vinte ruibis é muito
dinheiro. Com Vinte rubis por hora eles estariam saindo prejudicados, já que alguns
clientes não pagam pelo serviço. — Digo olhando pra ele e colocando mais ênfase nas
últimas palavras ditas.
— Eu já disse que vou pagar, eu juro. — Ele entra na rua da minha casa e ao estacionar
em frente ao meu portão ele pergunta. — Dez minutos é o suficiente? — Velly se olha
no espelho para poder passar um gloss nos lábios e então se vira pra mim dando um
sorriso. Igor revira os olhos e me encara para responder sua pergunta.
— Sim, sim, não vou demorar.
          A casa está em silêncio, entro no meu quarto onde Marya e Marvin estão deitados
na beliche. Marvin parece está estudando, seus olhos estão profundamente concentrados
nos livros, ainda está com o uniforme da escola, o sol entra pela janela bate em sua pele
e deixa com um brilho avermelhado do sol e posso ver que esta suando. Ele me olha de
soslaio, seus olhos azuis penetram os meus que são o completo oposto dos dele escuros
quase tão escuro quanto o tom da nossa pele. Um marrom quente e brilhante herdado do
nosso pai. Ele então volta a olhar para os livros. Marya parece está apenas existindo,
deitada na cama de cima olhando para o teto, diferente de Marvin ela nem se dá ao
trabalho de olhar pra mim quando entro no quarto. Seus cabelos ruivos caem para fora
da cama, alguns cachos são iguais aos meus, a única diferença é que seu cabelo é ruivo,
iguais ao da mamãe, já os meus negros como os do papai, assim como os de Marvin. Eu
e ele nos parecemos muito mais com o papai do que Maria, com exceção dos olhos dele
que herdou de nossa mãe. Um azul claro e vibrante que se destaca entre o tom escuro de
sua pele. Marya é a mamãe quando criança, os cabelos ruivos com exceção dos cachos,
a pele clara e algumas sardas pelo corpo. Seus olhos negros intensos iguais aos meus e o
do papai encaravam o teto branco sem parar apenas brincando com um cacho que caia
sobre seu peito que subia e descia enquanto respirava. A única coisa que tenho de
diferente entre os membros da família é que algumas manchas brancas percorrem por
todo o meu corpo devido ao vitiligo, uma doença que é causada pela falta de células
produtoras de pigmento. As marchas brancas que preenchem todo o meu corpo, do rosto
até a ponta dos meu pés, mas a maior parte da minha pele veio do meu pai, o marrom
escuro e suave que existe em minha pele e do Marvin.
Abro a gaveta da única cômoda que habita ali, além das camas beliches e pego o
uniforme do trabalho.
— Seu almoço está na geladeira, mamãe fez o almoço hoje. — ele diz ainda com os
olhos fixados nos livros.
— Ela fez? — pergunto me virando em sua direção e com os olhos arregalados sem
esperar por uma resposta, mas ele me surpreende com uma.
— Ela insistiu. Acho que está melhorando, ontem ela também fez o jantar e agora o
almoço. O que você acha? — Eu finalmente entro em foco para Marvin. Seus olhos
claros idênticos ao da mamãe me encaram esperando por uma resposta.
— É, talvez ela esteja melhorando, mas ainda não sabemos o que ela tem. Não acho
muito bom criarmos muitas expectativas não é. — Ele volta a olhar para os livros e
anota alguma coisa em seu caderno e resmunga alguma coisa inaudível . Pego meu
uniforme e a bolsa que uso para ir ao trabalho, e corro para o banheiro. Mas ao chegar
no banheiro, mamãe estava saindo dele. Ela me encara por alguns segundos e pergunta.
— Já está indo para o trabalho? — eu balanço a cabeça em positivo. — Já disse que
você não precisa trabalhar tanto.
— Mas eu preciso trabalhar, já estou grandinha mãe, logo estarei me formando na
faculdade e terei que trabalhar em tempo integral. Sua filha está crescendo sabia? Estou
com quase vinte dois anos. — digo com um sorriso gentil estampado no rosto, ela me
olha com preocupação.
— Que mentira, você fez vinte um não tem nem dois meses.
— Na verdade já tem uns dez meses mãe.
— Acho que você não me entendeu Marli. Eu já estou melhor, vou procurar alguma
coisa essa semana e quando eu consegui você vai poder focar apenas nos seus estudos.
Aliás seu pai...
— Papai morreu mãe, ele não pode achar nada porque ele morreu. — a interrompo sem
rodeios me sentindo culpada por ter que ficar relembrando ela disso o tempo todo. — E
se você não se cuidar, vai ser apenas eu e as crianças e eu não vou conseguir, você sabe
disso.
— Já disse que não precisa mais trabalhar. Podemos ir embora daqui, podemos ir para
onde seu pai está.
— E onde meu pai está mãe? Onde exatamente? — ela me segura pelos ombros e olha
no fundo dos meus olhos. Sua boca abre para falar alguma coisa mas nada sai. Ela olha
para as roupas que eu seguro contra o peito e volta a olhar para mim.
— Eu vi Marli, com os meus próprios olhos e se eles descobrirem vão nos matar, como
fizeram com o seu pai. Vão lhe matar quando descobrirem o que você é. Não sei como
sai de lá, mas eu saí e espero nunca mais poder voltar. — meus olhos estão
concentrados nos dela.
— Mas você disse que podíamos ir pra lá. Disse que o papai est...
— NÃO! Não podemos voltar para Japryon, não agora pelo menos.
— Mas mãe nos estamos em Japry...
— Não nessa Japryon. — E então ela me larga ali na frente do banheiro sozinha e se
desloca para o seu quarto.
          Ao sair do banho, pego minha comida e coloco na bolsa para poder comer no
trabalho. Arrumo minhas coisas e vejo que o colar antigo do papai está no fundo da
bolsa. Pego ele e sua pedra de um vermelho rubi reflete a luz do sol que entra pela
janela. Coloco o colar novamente dentro da bolsa, pensei que minha mãe deve ter
colocado ali dentro. Era o colar da sorte do papai ele nunca tirava o colar do pescoço
quando estava vivo. Quando encontraram seu corpo preso na lataria do carro, ele ainda
usava o colar. Ao sair do quarto lembro meu irmão de dar os remédios da mamãe, ele
acena com a cabeça sinalizando que me ouviu. Mas algo me chama a atenção, ao passar
pela porta do quarto da mamãe, ela não está lá. Eu saio em disparada ao quintal e lá está
ela sentada na cadeira de balanço velha da vovó, sussurrando algo que meus ouvidos
não conseguem distinguir.
— O que significa? — digo me aproximando dela e então me ajoelho em sua frente e a
encaro, ela olha nos meus olhos e então diz:
— Eles estão vindo Li, estão atrás de nós, não posso deixar que cheguem perto de
vocês, não permitiria isso. Eles querem nos matar Li, eles disseram isso, eles vão vir
atrás de nós, eu não devia ter ido lá, nunca devia ter saído daqui.
— Pra onde você foi? Me diga — seus olhos de um azul escuro, tão profundo como o
oceano, estavam assustados, eu podia ver o medo em seus olhos, quase podia sentir o
seu medo, seu olhar penetrante se encontrando com os meus, as pupilas dilatadas, ela
estava assustada, talvez estivesse no meio de uma crise ou acabou de voltar de uma.
Então ela segurou meu braço com força, me puxou para mais perto, parecia com medo
de me perder, parecia com medo de que eu a deixasse.
— Por favor me prometa, que nunca irá lá, por favor, não posso imaginar o que eles vão
fazer se souberem de você, se souberem que você existe. Eles irão te torturar, igual
fizeram com seu pai. — algo ali me chama a atenção, eu tento puxar meu braço de volta
mas ela é mais forte.
— O papai? O que fizeram com ele?
— Coisas horríveis Li, me prometa que nunca irá, me prometa que ficará aqui.
— Mas onde fica isso? Preciso saber para eu poder não ir. — ela se aproxima, chega
perto do meu ouvido ouço ela sussurrar mais coisas em uma língua que não entendo e
então ela diz:
— Na sua cabeça, na parte mais obscura da sua mente. Não deixa que eles entrem na
sua cabeça, porque se você deixar qualquer um deles entrar na sua cabeça eles vão saber
no momento exato, o que você é.

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