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5 DIREITO COMPARADO.

Entre as décadas de 1960 e 1990, a maior parte dos e dois países que compõem a
América Latina1 tiveram algum período de governo ditatorial militar. Além do Brasil, as Forças
Armadas mantiveram um regime de governo pela força na Argentina, Bolívia, Chile, Costa Rica,
El Salvador, Equador, Guatemala, Honduras, Panamá, Paraguai, República Dominicana, Uruguai
e Venezuela.
A instalação desses regimes nesses países foi resultado de uma sucessão de eventos que
podem ser resumidos em dois contextos básicos. O primeiro tem como base a eleição de líderes
simpatizantes da ideologia comunista que, ao sinalizarem a adoção de medidas para modificar as
estruturas do país, foram derrubados pelas Forças Armadas, alinhadas com a política externa
americana. É o caso do Brasil e do Chile.
O segundo contexto relaciona-se com uma grave crise econômica, aliada com uma forte
atividade de grupos guerrilheiros socialistas que tinham a intenção de derrubar o governo, que
poderia ser democrático ou uma outra ditadura, de feição oligárquica. Nessa conjuntura, os
presidentes civis acabaram sendo levados a dar um maior espaço de atuação para os militares,
que, igualmente influenciados pela visão ideológica disseminada pelos Estados Unidos,
assumiram o controle definitivo do Estado quando consideraram que o governante não tinha mais
condições de lidar adequadamente com a instabilidade político-econômica. Foi o que ocorreu em
El Salvador e na Argentina.
Tais golpes militares resultaram na instalação de governos ditatoriais que tinham como
prática a repressão violenta de quem representasse perigo ao país, sendo comum a decisão pela
formação de grupos de oposição armada, que tentavam desestabilizar o Estado. Na medida em
que o aumento das reivindicações sociais por mais liberdade iam tornando a sustentação do
regime cada vez mais delicada, passaram a efetivar uma série de providências com a finalidade
de controlar o ritmo da transição para um governo democrático, tendo em vista, especialmente, a

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O termo América Latina está sendo utilizado no seu aspecto lingüístico, no sentido de países do continente
americano que possuem idiomas oficiais originários primordialmente do latim (português e espanhol) e não no
sentido vulgar puramente geográfico, mais utilizado usualmente, que engloba todos os países que estão ao sul dos
Estados Unidos. Na acepção utilizada aqui, portanto, estão excluídos a Guiana e o Suriname (que têm como idioma
oficial o holandês), Belize (que utiliza o inglês) e todos os países do Caribe (que falam francês e/ou inglês), com
exceção da República Dominicana e de Cuba (que usam o espanhol). Também está excluído Porto Rico, pois, apesar
de falar o espanhol, não pode ser considerando um país independente, já que está em regime de associação com os
Estados Unidos.
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necessidade de evitar que fossem responsabilizados a partir do momento em que deixassem o


poder.
Nesse contexto de transição, a edição de leis de anistia assumiu um papel importante, já
que, além da sua usual função de trazer estabilidade social, acabaram também servindo ao
interesse de impedir que os antigos governantes sofressem punições criminais pelas práticas que
cometeram. Foram editados atos com teor anistiante em todos os países já citados, com exceção
da Bolívia, Equador, Panamá e Paraguai.
Neste ponto, também é preciso ressaltar a situação particular da Nicarágua, onde também
houve a instalação de uma ditadura, mas de cunho socialista – e não militar – fruto de uma guerra
civil vencida pela organização guerrilheira Frente Sandinista de Libertação Nacional. Esse
regime perdurou de 1978 até 1990 e, próximo ao seu fim, foi editada uma anistia penal.
Dentre o grupo dos países que passaram por ditaduras militares e promulgaram anistias,
dois são bastante úteis para esta monografia: a Argentina e o Uruguai. A utilidade da análise
desses dois casos reside em um evento que atingiu as leis anistiantes depois da redemocratização:
a declaração de inconstitucionalidade, efetivada pelos respectivos tribunais constitucionais. Como
o nosso objetivo é tratar justamente da validade da Lei nº 6.368/79, os fundamentos que foram
utilizados nessas decisões podem ser valiosos para a análise que aqui se pretende.

5.1 ARGENTINA.

5.1.1 A Ditadura Argentina.

O histórico da Argentina demonstra um longo período de fragilidade institucional e


instabilidade política, marcado não por apenas um único golpe militar, mas sim por uma série de
golpes que iam se alternando com curtos momentos de governos democráticos.
O primeiro evento que se pode atribuir como delineador da ditadura militar que iria se
instalar foi o ingresso de Juan Domingo Perón (1895-1974), militar dotado de grande
popularidade, na vida política. A popularidade de Perón foi fruto de medidas favoráveis aos
trabalhadores que adotou quando foi integrante do Executivo argentino, no cargo de Secretário do
Trabalho e Bem-estar Social, e também de seu carisma pessoal e de sua segunda esposa, Maria
Eva Duarte Perón (1919-1952), conhecida como Evita. Perón chegou ao cargo graças a um golpe
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militar promovido em 4 de julho de 1943. O motivo principal para esse golpe foram fraudes nas
eleições que levaram Rámon Castilho (1873-1944) ao governo presidencial, além de corrupção.
Em 9 de outubro de 1945, conflitos internos entre os militares levaram a um levante e o
grupo que então governava, formado por integrantes de uma ala conhecida como Grupo de
Oficiais Unidos, cuja maior característica era a adoção da ideologia fascista, foi destituído do
poder. Perón foi levado à prisão, mas a pressão popular por sua libertação, capitaneada por
sindicatos, foi tão grande que ele foi libertado em oito dias. Meses depois, a pressão popular
também conseguiu que fossem realizadas eleições livres. Perón fundou o Movimento Nacional
Justicialista, mas tarde denominado de Partido Justicialista, e se candidatou ao cargo de
presidente. Foi eleito em 1946 e reeleito em 1951. Os seus apoiadores ficaram conhecidos como
peronistas.
O seu primeiro mandato foi marcado por uma rápida industrialização do país, aumento
dos direitos trabalhistas e estatização de empresas privadas, aliada a uma política de repressão aos
grupos de oposição e proteção a militares nazistas foragidos. O período também foi de início de
uma crise econômica, iniciada por uma política agrícola protecionista dos Estados Unidos - maior
comprador dos produtos agrícolas do país, a base da economia - que aos poucos levou a
desestabilização das finanças do governo, crescimento da inflação e estagnação do crescimento.
Um elemento que contribuiu para a política americana foi, além da pressão da sua
agroindústria interna, a postura de neutralidade de Perón diante do cenário da Guerra Fria, que
mantinha relações comerciais com a União Soviética, não criticava ou apoiava nenhuma das
ideologias em conflito e se recusava a participar de organizações internacionais controladas pelos
Estados Unidos, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Acordo Geral de Tarifas e
Comércio (GATT). Publicamente, sustentava agir dessa forma para garantir a independência
econômica da Argentina.
Nessa época, já estava sendo disseminada a doutrina da segurança nacional e os militares
do país, por força das medidas estatizantes e trabalhistas que Perón efetivou, passaram a
desconfiar que a dita busca de independência era um meio disfarçado para que se conseguisse a
implantação do comunismo. Perón e seu grupo estavam se tornando os inimigos internos a serem
combatidos.
No segundo mandato, a crise econômica se agravou, a inquietação dos militares aumentou
e se somou a uma crise política: no ano de 1954, o presidente legalizou o divórcio e a
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prostituição, o que o levou a ser excomungado pelo Papa Pio XII (1876-1958) em 15 de junho de
1955. No dia seguinte, Perón convocou uma manifestação de apoio na Praça de Maio, Buenos
Aires. Os militares, estreitamente ligados a Igreja Católica, esgotaram a sua tolerância para com o
presidente: aviões da Marinha bombardearam o local e mataram mais de trezentas pessoas.
Isso deu início a conflitos armados entre os peronistas e os militares, que, em 16 de
setembro, derrubaram definitivamente o governo. Assim, foi implantada mais uma ditadura.
Perón fugiu do país sob proteção do governo paraguaio e foi proibido de retornar. Circulou por
alguns países e se exilou definitivamente na Espanha.
A intenção dos militares, ao derrubar Perón, foi de apenas expurgar a sua figura da
política argentina, o que foi feito através da perseguição a peronistas e a comunistas, inclusive
colocando os respectivos partidos na ilegalidade. Em 1957, foram realizadas novas eleições.
O eleito foi Arturo Frondini (1908-1995), o qual trouxe o peronismo de volta à legalidade,
mas ainda manteve a proibição relativa a Perón.
Em 18 de março de 1962, o peronismo foi vitorioso nas eleições de onze das catorze
províncias, que foram colocadas sob intervenção federal. O aumento do poder dos peronistas e o
receio quanto ao efetivo controle do presidente sobre a situação fizeram com que os militares
promovessem um novo golpe, em 29 de março.
Horas depois que Frondini foi encurralado e enquanto a sua rendição estava sendo
negociada, o civil José Maria Guido (1910-1975), presidente da Câmara de Senadores e próximo
na linha sucessória, aproveitou que o Exército ainda não haviam tomado a residência oficial e se
empossou como presidente. Os militares souberam do fato no dia seguinte, pela imprensa.
Mesmo contrariados, o aceitaram no cargo, desde que se subordinasse as determinações que
impusessem, como anular as eleições vencidas pelos peronistas e tornar ilegal o Partido
Justicialista.
Estabilizada a situação, foram convocadas novas eleições em 1963. O vencedor, Arturo
Illia (1900-1983), se tornou o presidente em 12 de outubro.
O seu governo careceu de suporte popular, em função de que os peronistas, como forma
de protestar contra a sua exclusão do processo eleitoral, votaram maciçamente em branco.
Também surgiu uma forte oposição empresarial, centralizada na associação Ação Coordenada
dos Institutos Empresariais Livres (ACIEL), que iniciou uma campanha de crítica sistemática,
utilizando a imprensa para repreender as políticas econômicas.
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Como forma de amenizar a situação e conquistar maior apoio, Illia permitiu que os
peronistas voltassem a participar nas eleições legislativas de 1965. O resultado foi uma larga
vitória do Partido Justicialista, que causou nova agitação nos quartéis e levou a mais outro golpe
militar, em 28 de junho de 1966. Os líderes do movimento autodenominaram o golpe de
Revolução Argentina.
O primeiro presidente deste novo período de ditadura foi o general Juan Carlos Onganía
(1914-1995), que governava subordinado a Junta de Comandantes-em-Chefe das Forças
Armadas, composta pelos comandantes das três Forças Armadas. Editou o Estatuto da Revolução
Argentina, lei com patamar acima da Constituição Federal, promoveu reformas constitucionais e
iniciou um regime de censura à liberdade de expressão e repressão ao movimento estudantil e
sindical.
Nesse mesmo governo, surgiram os primeiros grupos de oposição armada: os Montoneros
e o Exército Revolucionário do Povo (ERP). A primeira ação pública dos Montoneros foi o
sequestro e assassinato do general Pedro Eugênio Aramburu (1903-1970), em 29 de maio de
1970. A sua morte levou a desmoralização de Onganía e a Junta Militar determinou a sua
substituição. O escolhido foi Roberto Marcelo Levingston (1920).
Levingston era um militar sem muito reconhecimento e poder de influência entre os
militares em geral, o que o fez ter um mandato curto, sendo substituído apenas nove meses depois
de ter assumido. O sucessor foi o general Alejandro Agustín Lanusse (1918-1996).
Diante de um quadro de crescente aumento da pressão social pela volta da democracia,
somada a atuação razoavelmente bem sucedida dos guerrilheiros, que levava ao aumento da
violência estatal, e consequentemente, ao aumento do repúdio da população, os militares
iniciaram negociações com os partidos políticos para que se chegasse a uma saída eleitoral para o
fim da ditadura. As negociações resultaram em um arranjo conhecido como Grande Acordo
Nacional, que convocou eleições, a serem realizadas em 1973. Também foi permitida a volta de
Perón. Quando retornou ao país, mais de dois milhões de pessoas lhe aguardavam no aeroporto
de Buenos Aires. Com a finalidade de impedir que concorresse, foi aumentado o tempo de
residência exigido para ser candidato a presidente na próxima eleição. Como estava a dezoito
anos no exílio, Perón não cumpria tal requisito.
No dia 25 de maio de 1973, Héctor José Cámpora (1909-1980), peronista escolhido
pessoalmente por seu mentor para representá-lo, foi eleito. A escolha desse político foi parte de
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um estratagema planejado ainda no exílio: depois de eleito, ele e o vice-presidente deveriam


renunciar, o que levaria a convocação de novas eleições, nas quais Perón poderia participar. E foi
isso mesmo que ocorreu: a renúncia foi feita em 13 de julho do mesmo ano.
Com o caminho livre, Perón foi eleito e assumiu o cargo em outubro de 1973. A sua
terceira esposa, Maria Estela Martinez Perón (1931), conhecida como Isabelita (seu nome
artístico, oriundo da época em que trabalhava como atriz) era a vice-presidente.
Nesse seu terceiro mandato, a Argentina era palco constante de conflitos armados entre os
grupos de esquerda – que não cessaram as suas atividades com o fim da última ditadura, em razão
de que o governo não cedeu aos seus desejos de implantar o socialismo – e a Aliança
Anticomunista Argentina, grupo paramilitar que combatia as organizações comunistas,
usualmente chamado de Triplo A ou Três A.
O Triplo A foi desenvolvido no interior do Executivo argentino e agia com o
consentimento velado do governo civil e dos militares. O grupo se expandiu de tal forma que,
anos depois, passaria até mesmo a patrulhar abertamente as ruas de Buenos Aires.
As ações dos Montoneros e do ERP, que conseguiram angariar milhares de integrantes e
agiam em escalas cada vez maiores, fizeram com que os militares, com aval de decretos secretos
do Executivo, conseguissem mais espaço de atuação, chegando a controlar os órgãos civis de
segurança pública e tendo liberdade para empreender todas as ações que julgassem necessárias.
Em 1974, foi decretado estado de sítio, que só iria ser suspenso em 1983.
O falecimento de Perón, em 1º de julho de 1974, fez com que Isabelita se tornasse
presidente. Nos dois anos seguintes, a sua falta de habilidade política, a persistência dos conflitos
e a deterioração da economia, agravada pelo aumento do preço do petróleo, pela queda do preço
dos produtos agrícolas e pelo insucesso das medidas governamentais de recuperação, fizeram
com que perdesse cada vez mais apoio, inclusive dos sindicatos, sempre aliados do peronismo.
Os empresários também passaram a se opor a ela, através de propaganda negativa centralizada
pela Assembléia Permanente de Entidades Sindicais Empresariais.
A situação de crise total fez com que as Forças Armadas perdessem a confiança na
capacidade da governante civil de impedir o avanço do socialismo. Esse consenso estabelecido
nos quartéis fez com que, em 24 de março de 1976, invadissem prédios públicos (inclusive a sede
do Legislativo), as instalações de rádio e televisão, sedes de sindicatos e prendessem Isabelita e
seus ministros. Mais uma nova ditadura se instalava na Argentina, finalmente a última. Se
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autodenominou Processo de Reorganização Nacional e foi a mais longa e violenta de todas.


Quando se fala em ditadura militar argentina, é esse período que usualmente se faz referência e
também é a que mais nos interessa, visto que a lei anistiante futuramente declarada
inconstitucional abrangeu os crimes praticados durante esse regime.
O controle do aparelho estatal coube a uma Junta Militar, inicialmente composta pelo
general Jorge Rafael Videla (1925), pelo almirante Emílio Eduardo Massera (1925) e pelo
brigadeiro Orlando Ramón Agostín (1924-1997). A Junta escolhia o presidente, responsável pelas
atividades executivas e legislativas. O primeiro presidente foi Videla.
Uma das primeiras atitudes do novo governo foi a detenção em massa de integrantes de
organizações sindicais e peronistas e a realização de operações de guerra que conseguiram o
desmonte quase completo do ERP. Pouco antes do golpe, o ERP havia iniciado uma guerrilha
rural em Tucumán, noroeste da Argentina. Em 1979, os Montoneros foram derrotados.
O governo de Videla foi o responsável pela maior parte da repressão da ditadura e tinha
como instrumento marcante a criação de centros de detenção clandestinos, destinados ao
encarceramento de presos políticos.
Na segunda metade de 1978, conflitos internos na Junta Militar, envolvendo Videla e
Massera quanto a uma maior abertura da ditadura, causaram um desgaste na alta cúpula e fizeram
com que chegassem a um acordo: no fim do mandato presidencial, em junho de 1981, os três
comandantes passariam à reforma. Nos seus lugares, assumiram o general Roberto Eduardo Viola
(1924-1994), o almirante Armando Lambruschini (1924-2004) e o brigadeiro Omar Domingo
Rubens Graffigna (1926). O presidente escolhido foi Viola.
O novo presidente, inclinado a suavizar o regime, por força da estabilidade alcançada com
o desmonte do ERP, não era bem visto por uma parte significativa das Forças Armadas,
principalmente os setores menos propensos ao retorno da democracia. Por pressão desses grupos,
o seu mandato foi reduzido para um ano e meio.
Em dezembro de 1982, a Junta Militar foi ocupada pelo general Leopoldo Fortunato
Galtieri (1926-2003), pelo almirante Jorge Isaac Anaya (1926-2008) e pelo brigadeiro Basílio
Arturo Ignácio Lami Dozo (1929). O presidente foi Galtieri.
No governo de Galtieri, a crise econômica – que, na Argentina, foi algo praticamente
permanente – se agravou, causando redução severa na produtividade industrial e no nível de
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emprego. A conjuntura de rebaixamento do nível de vida gerou protestos que fragilizaram o


regime, já corroído por disputas internas.
Cientes de que estavam próximos de perder o controle do país, optaram por uma tática
diversionista: entraram em guerra com o Reino Unido, pelo controle das Ilhas Malvinas.
As Ilhas Malvinas foram tomadas a força da Argentina em 1833, que sempre considerou o
arquipélago parte de seu território e a ocupação britânica ilegal. Como esse evento é um ponto
sensível no sentimento de patriotismo da população, a guerra surgiu como meio para desviar o
foco dos problemas econômicos e despertar simpatia à Junta Militar, que seria vista como
defensora do país. A reação inicial foi muito positiva: os mesmos grupos que, uma semana antes
do início da guerra, os criticavam, passaram a apoiá-los.
A invasão ocorreu em 2 de abril de 1982 e foi comandada por Anaya. O Reino Unido,
com autorização do Conselho de Segurança da ONU, reagiu em grande escala e retomou as ilhas.
Em 14 de junho do mesmo ano, a Argentina se rendeu.
A derrota desmoralizou os integrantes da Junta. Em 1º de julho, foram substituídos pelo
general Cristino Nicolaides (1925), pelo almirante Rubens Oscar Franco (?) e pelo brigadeiro
Augusto Jorge Hughes (?). O cargo de presidente coube ao general Reynaldo Benito Antônio
Bignone (1928), único caso de presidente que não era componente da Junta. Diante do fracasso
nas Malvinas, assumiram com a finalidade específica de encerrar a ditadura e restaurar a
democracia. Convocaram eleições para 30 de outubro de 1983, sendo vencedor Raúl Alfonsín
(1927-2009). A sua posse, em 11 de dezembro, marca o fim da última ditadura.
O número de vítimas da perseguição política promovida pela ditadura militar de 1976-
1983 é incerto até hoje. O reconhecimento oficial do Estado argentino, feito no relatório Nunca
Más, elaborado pela Comissão Nacional sobre Desaparecimento de Pessoas, instituída por
decreto de Alfonsín, é de 8.960 pessoas “em situação de desaparecimento forçado”2. Esse
número supera em mais de trinta vezes o seu equivalente brasileiro e, somado ao fato de que
advêm de um país bem menos populoso e de um regime que perdurou por período três vezes
menor que o nosso, mostra que os conflitos políticos na Argentina chegaram a um patamar de
violência poucas vezes visto.

5.1.2 A Anistia Argentina e sua Análise Constitucional.


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ARGENTINA. Nunca Más, 1984. Disponível no endereço eletrônico <www.desaparecidos.org/arg/
conadep/nuncamas>. Acesso em 02 jul. 2010.
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Parte da plataforma política de Alfonsín envolvia a responsabilização dos agentes


responsáveis pelas violações de direitos humanos praticadas na recém terminada ditadura. Tendo
em vista a necessidade de evitar novos levantes, o presidente decidiu se ater inicialmente a
processar apenas os integrantes da Junta Militar. Como resultado, em maio de 1985, Jorge Videla
e Rafael Massera foram condenados à prisão perpétua; outros três militares foram condenados a
penas de quatro a dezesseis anos de prisão; e outros quatros foram absolvidos.
A medida em que militares de patentes menores passaram a ser processados, teve início
uma onda de protestos se opondo aos julgamentos, acompanhados por explosões de bombas.
Diante da pressão, foi aprovada a Lei do Ponto Final (Lei nº 23.492, de 24 de dezembro de
1986), a qual estabeleceu o prazo máximo de sessenta dias para o ajuizamento de ações penais de
crimes cometidos por motivação política até 10 de dezembro de 1983 – último dia da ditadura3.
Apesar dessa medida, os militares continuaram protestando, em razão de que a Lei do
Ponto Final não alcançava os processos em curso. Em abril de 1987, uma insurreição militar
tentou um novo golpe, mas foi contida. Para dar fim a essa crise, foi promulgada a Lei da
Obediência Devida (Lei nº 23.521, de 4 de junho de 1987).
A Lei da Obediência Devida estabelecia no seu art. 1º, o seguinte:

Art. 1º. Presume-se, sem admitir prova em contrário, que aqueles que, ao
término do período de fato, atuavam como oficiais-chefes, oficiais subalternos,
suboficiais e pessoal de tropa das Forças Armadas, de segurança, polícias e
penitenciárias, não são puníveis pelos delitos a que se refere o art. 10, §1º, da
Lei 23.049, por terem agido em virtude de obediência devida.
§1º. A mesma presunção será aplicada aos oficiais superiores que não atuaram
como comandante-em-chefe, chefe de zona, chefe de subzona ou chefe de força
de segurança, policial ou penitenciária, se não ficar deliberado judicialmente,
antes de trinta dias depois da promulgação desta lei, que possuíam capacidade
decisória e participaram na elaboração das ordens.
§2º. Em tais casos, se considerará, de pleno direito, que as pessoas mencionadas
trabalharam em estado de coação sob subordinação da autoridade superior e em
cumprimento de ordens, sem que lhes tenha sido facultado ou possibilitado se
oporem ou resistirem à elas em termos de oportunidade e legitimidade 4.

A locução período de fato é usada pelos países de língua espanhola para se referir
juridicamente a governos ditatoriais, em alusão a sua falta de amparo legal. Com essa lei, a

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O texto da integral da lei consta no Anexo B.
4
Tradução livre do autor. O texto integral da lei consta no Anexo C.
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possibilidade de responsabilização se restringiu apenas a alta cúpula e a alguns poucos crimes,


que foram excluídos de sua abrangência, listados no seu art. 2º.
Como se pode constatar, a Argentina não promulgou uma anistia propriamente dita, mas
estabeleceu uma causa absoluta de exclusão de culpabilidade – que entre nós, está prevista no art.
22 do Código Penal, sob a rubrica obediência hierárquica, e não é absoluta Seja como for, teve o
mesmo efeito prático de uma anistia.
No governo de Carlos Menem, os militares condenados receberam indultos, através do
Decreto de 6 de outubro de 1989 e do Decreto de 29 de dezembro de 1990, e ganharam a
liberdade.
Em 2003, no governo de Nestor Kchinner, foi promulgada a Lei de Justiça (Lei nº
25.7795), que revogou a Lei do Ponto Final e a Lei da Obediência Devida, abrindo caminho para
a retomada dos julgamentos.
As leis foram objeto de análise na Suprema Corte de Justiça da Nação em 14 de junho de
2005, nos autos do Processo nº 17.768, cujos réus eram Julio Héctor Simon e Outros, acusados
do crime de privação ilegal da liberdade (equivalente ao nosso sequestro), agravada pelo uso de
violência e pela duração superior a um mês, contra um casal; e pela subtração da filha deles.
Nas instâncias inferiores, os réus alegaram a inconstitucionalidade da Lei de Justiça e
conseqüente vigência da Lei de Obediência Devida e da Lei do Ponto Final, que impediriam o
ajuizamento da ação. Os argumentos foram rejeitados, até que um recurso levou a causa ao
tribunal constitucional.
Ao decidir, os magistrados se apoiaram em quatro argumentos principais. O primeiro foi
relativo a estatura constitucional que os tratados internacionais de direitos humanos adquiriram
com uma reforma promovida na Constituição em 1994. Nesse ponto, entenderam que o sistema
de proteção dos direitos humanos estabelecido com a reforma possui normas que vinculam os
países independentemente de seu consentimento (normas ius cogens). Dentre essas normas, está o
dever de processar os crimes contra a humanidade - sendo que a privação arbitrária da liberdade é
um deles. Dever esse que tem o efeito de invalidar qualquer lei que obstaculize o
desenvolvimento da persecução penal.

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O texto integral da lei consta no Anexo D.
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O segundo argumento diz respeito ao entendimento de que a Lei de Obediência Devida


implicou em violação a separação dos poderes, já que através dela o Legislativo certificou fatos
de maneira definitiva, algo que cabe exclusivamente ao Judiciário.
O terceiro argumento foi concernente a constitucionalidade da Lei de Justiça. Foi tomada
como válida porque se considerou que o legislador possui o dever de revogar leis que
obstaculizem o cumprimento de obrigações constantes em normas internacionais de direitos
humanos.
O quarto argumento está relacionado com a Convenção Americana de Direitos Humanos
e com o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ratificados pela Argentina. Foi
sustentado que as duas leis violam as disposições desses dois tratados e, por isso, são
inconstitucionais.

5.2 URUGUAI.

5.2.1 A Ditadura Uruguaia.

Com uma democracia centenária e um dos panoramas políticos mais estáveis da América
do Sul, até o início dos anos 1950, o Uruguai apresentava níveis de qualidade de vida acima da
média em relação aos outros países da região. Fruto de uma política de bem-estar social
duradoura, tal característica fez com que o país fosse conhecido como a Suíça da América.
Com uma economia baseada na agricultura, o avanço tecnológico que o setor sofreu nos
outros países fez com que o Uruguai perdesse, gradativamente, a sua competitividade no mercado
mundial. Os altos custos da mecanização comprometeram a rentabilidade da agroindústria e
tiveram impactos severos na economia.
No decorrer da década de 1960, a deterioração da agricultura desencadeou um movimento
de trabalhadores de plantações de cana-de-açúcar, que se deslocaram até Montevidéu para
reivindicar reforma agrária, encarada como a solução para a situação. A ação dos trabalhadores
rurais fez com que outras categorias profissionais também se organizassem e, a partir de 1964,
iniciassem uma série de greves e de ocupações de fábricas. Pleiteavam a implantação de reformas
profundas para a recuperação do país.
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Em 1965, uma falência generalizada no sistema bancário fez com que o país decretasse
moratória. Nesse mesmo ano, sob influência da Revolução Cubana e do descontentamento que se
abatia, surgiu um grupo socialista de ação armada: o Movimento de Libertação Nacional (MLN),
conhecido como Tupamaros, em alusão a Tupac Amaru I, último líder inca. Inicialmente, não se
apresentaram publicamente, se restringindo a realizar pequenos roubos de armas e dinheiro. O
grupo passou a ser conhecido no ano seguinte, quando passou a distribuir dinheiro e comida em
algumas áreas do país, no intuito de conseguir apoio, e a promover assaltos à instituições
financeiras.
Em 1966, um plebiscito aprovou a ampliação dos poderes do Executivo, medida
entendida como necessária para a superação da crise, e foram realizadas eleições presidenciais. O
vencedor foi o general Oscar Diego Gestido (1901-1967).
Em 1967, a ausência de mudanças na conjuntura levou a realização de mais greves e da
disseminação de críticas dirigidas ao governo. Isto levou Gestido a fazer uso das Medidas
Prontas de Segurança (MPS): atos excepcionais e transitórios, com base constitucional, que
restringiam as liberdades individuais, como a inviolabilidade do domicílio e o habeas corpus.
Com elas, pôde deter dirigentes sindicais e censurar a imprensa.
A decretação das MPS fez com que algumas figuras abandonassem o governo e fossem
substituídas por pessoas ligadas a Confederação Sindical do Uruguai - entidade patronal, de
ideologia anticomunista, que recebia suporte do governo americano.
O falecimento de Gestido, em 6 de dezembro do mesmo ano, fez com que o vice-
presidente, Jorge Pacheco Areco (1920-1998) assumisse o cargo. Dias depois, dissolveu os
partidos de esquerda e várias associações e jornais, vistos como fomentadores dos movimentos
grevistas.
A partir de 1968, os Tupamaros passaram a agir com mais violência, realizando
seqüestros e assassinatos de autoridades e chegaram até mesmo a dominar temporariamente uma
cidade. Em 1970, sequestraram e mataram Daniel Mitrione (1920-1970), funcionário da
embaixada americana que, na verdade, era um agente secreto encarregado de ensinar técnicas de
tortura para a polícia uruguaia (esse mesmo agente circulou pelo Brasil anos antes, com o mesmo
objetivo). Um ano depois, mais de cem integrantes conseguiram fugir em massa de uma
penitenciária.
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Em resposta a tais ações, Pacheco convocou as Forças Armadas, colocando-as como


encarregadas de enfrentar a guerrilha. Foram criadas a Junta de Comandantes-em-Chefe e o
Estado-Maior Conjunto, estruturas que iriam acabar funcionando como base de decisões e
coordenação da futura ditadura.
Em 1971, Juan Maria Bordaberry Arocena (1928) foi eleito presidente. Componente do
mesmo partido de Pacheco – que não se reelegeu porque a emenda constitucional que iria
implantar a reeleição não foi aprovada em plebiscito – Bordaberry priorizou o combate aos
Tupamaros.
Em 1972, os Tupamaros iniciaram uma série de ações que envolveram a tomada de uma
cidade e o homicídio de policiais e militares. Reagindo, o Legislativo declarou Estado de Guerra
Interno, que suspendeu praticamente todos os direitos civis. A guerra interna pregada pela
doutrina da segurança nacional, adotada no Uruguai desde meados da década de 1960, conseguia
a sua institucionalização oficial.
No dia 18 de maio do mesmo ano, Dia do Exército no país, a guerrilha matou cinco
soldados responsáveis pela segurança do Comandante do Exército. A ação ensejou a aprovação
de uma lei que ampliou os poderes das Forças Armadas, intensificando os confrontos. Em
setembro, os Tupamaros foram derrotados.
A paulatina expansão da importância dos militares no cenário nacional e de sua liberdade
de atuação, fez com que as Forças Armadas passassem a sustentar uma visão de autonomia e
superioridade em relação ao Judiciário e ao Legislativo, vistos como fracos e incapazes de lidar
com a conjuntura de avanço da guerrilha. O Executivo também era visto desta forma, mas em
menor medida. Um evento exemplifica essa mentalidade: em outubro de 1972, um juiz militar
determinou a soltura de quatro presos que haviam sido torturados. Os soldados encarregados pela
prisão se recusaram a cumprir a ordem e conseguiram apoio de parte da cadeia de comando.
Com a vitória sobre o MLN, as Forças Armadas começaram a se insurgir sobre certas
medidas adotadas pelo Executivo que as afetavam, como a nomeação de um Ministro da Defesa
que pretendia reduzir a autonomia que adquiriram. Pouco depois, divulgaram comunicados onde
diagnosticavam os problemas do país e expunham as providências que julgavam necessárias para
resolvê-los. Não estavam mais se interessando somente em assuntos militares, mas também
políticos.
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Pressionado pela crescente insubordinação militar e com a autoridade enfraquecida por


não conseguir contê-la, Bordaberry fez um acordo com as Forças Armadas, conhecido como
Pacto de Boiso Lanza. Por esse acordo, os militares conseguiram ampliar a sua participação no
Executivo, através da criação do Conselho de Segurança Nacional e da nomeação para
administrarem ministérios e entes da administração indireta.
Em 1973, o Executivo solicitou que o Legislativo cassasse o mandato do senador Enrique
Erro (1912-1984), oposicionista que criticava abertamente o presidente e as Forças Armadas,
acusado de possuir relações com os Tupamaros. O pedido foi rejeitado.
Em apoio, a Convenção Nacional dos Trabalhadores (CNT), a maior entidade sindical,
convocou uma greve geral. Com isso, o governo dissolveu a CNT e prendeu seus dirigentes e os
líderes dos partidos de oposição. As detenções foram tantas que o estádio de Montevidéu teve
que ser utilizado como carceragem. Em 27 de junho de 1973, a capital foi ocupada e, a partir daí,
foi instalada a ditadura militar no Uruguai, com Bordaberry, incentivador do golpe, ainda como
presidente. Era uma ditadura civil-militar.
No novo governo ditatorial, Bordaberry desarticulou grupos dos quais poderiam surgir
novos focos de oposição, colocou as universidades sob intervenção, censurou os meios de
comunicação e deu continuidade a detenções. O Executivo também passou a se organizar de uma
forma militar, onde a Junta de Comandantes-em-Chefe era o centro das decisões. A maior
característica da repressão uruguaia era o seqüestro e desaparecimento de opositores, que depois
era legalizada, isto é, uma vez presos ilegalmente e sem nenhuma divulgação quanto a isso, os
encarcerados eram processados na Justiça Militar e permaneciam detidos com base na existência
de ação penal em curso.
Em 1976, o acúmulo de divergências entre as Forças Armadas e o presidente fez com que
fosse destituído e substituído pelo também civil Pedro Alberto Demicheli Lizaso (1896-1980).
Pouco tempo após o início de seu governo lhe foi exigido que suspendesse os direitos de
todos os políticos com atuação relevante nos últimos anos, como candidatos, titulares e suplentes
de mandatos e membros de diretórios de partidos. Ao se recusar, foi substituído, em setembro de
1976, por Aparício Mendez Manfredinni (1904-1988). Manfredinni cumpriu a determinação.
Em 1979, os militares elaboraram uma nova Constituição, que seria submetida a
plebiscito. Como forma de conseguir apoio, permitiram maior liberdade para discutir a questão, o
15

que abriu espaço para que a sociedade se mobilizasse contra a ditadura. A nova Constituição foi
rejeitada.
O resultado surpreendeu o governo, que não havia considerado a possibilidade de derrota,
dado o grande controle que exercia sobre os meios de comunicação. Diante dessa situação de
desmoralização, perceberam que o regime era frágil e que não haviam conseguido o apoio da
sociedade, mesmo com a repressão aos opositores e a propaganda oficial. O evento fez com que
passassem a negociar um processo de abertura com os partidos políticos ainda autorizados a
funcionar.
Em julho de 1981, os militares definiram as regras para uma lenta transição rumo a
restauração da democracia. Para executá-las, o general Gregório Conrado Alvarez Armelino
(1925) foi escolhido presidente.
Em agosto de 1984, o regime e os partidos políticos chegaram a um acordo final,
denominado de Pacto do Clube Naval, pelo qual alguns presos políticos foram soltos, regras
eleitorais foram estabelecidas e os militares se comprometeram a deixar o poder. No dia 25 de
novembro foram realizadas eleições, sendo vencedor Julio Maria Sanguinetti (1936).
No dia 12 de fevereiro de 1985, Álvares renunciou ao seu mandato. O comando do país
foi assumido interinamente por Rafael Addiego Bruno (1923), presidente da Corte Suprema de
Justiça. Em 1º de março, Sanguinetti foi empossado e a ditadura se encerrava.
O número de mortos em razão da ditadura militar uruguaia não é preciso e não há
contagem oficial. Uma estimativa feita pela Universidad de la República, em Montevidéu, no
projeto Investigación Histórica sobre la Dictadura y el Terrorismo de Estado em el Uruguay,
lista 101 pessoas como “assassinadas, falecidas ou que se suicidaram no cárcere”6.

5.2.2 A Anistia Uruguaia e sua Análise Constitucional.

O governo democrático instituído, dando continuidade ao cumprimento do Pacto do Clube


Naval, promulgou a Lei nº 15.737, de 22 de março de 1985, que concedeu anistia aos agentes
que, a partir de 1º de janeiro de 1962, cometeram crimes políticos e crimes comuns e militares
conexos a estes.

6
RICO, Álvaro (org). Investigación Histórica sobre la Dictadura y el Terrorismo de Estado em el Uruguay,
2008. Disponível em <http://www.universidadur.edu.uy> Acesso em 02 jul. 2010.
16

A finalidade desta lei foi beneficiar unicamente os guerrilheiros, já que, pelo seu art. 5º,
estavam expressamente excluídos os agentes estatais que praticaram crimes.
Como os militares e policiais apoiados pelo regime podiam ser responsabilizados, a
Câmara dos Deputados formou comissões para investigar seqüestros, homicídios e
desaparecimentos de opositores.
Ainda em 1985, no mês de outubro, Sanguinetti e o comando do Exército chegaram a um
acordo pelo qual os militares se comprometeram a permitir que a Justiça Militar julgasse aqueles
que haviam cometido violações contra os direitos humanos.
Apesar de ter conseguido construir esse consenso, Sanguinetti, em uma postura
contraditória, encaminhou um projeto de lei de anistia ao Legislativo que beneficiava os
militares. A reação da população foi grande e imediata: protestos foram realizados e o projeto foi
rejeitado em setembro de 1986.
Um mês depois, dezenove generais fizeram um pronunciamento conjunto colocando que a
ausência de anistia para as Forças Armadas iria colocar em risco a nova democracia. Receoso
quanto a um novo golpe, o Legislativo aprovou uma outra lei anistiante: a Lei da Caducidade da
Pretensão Punitiva do Estado, ou somente Lei da Caducidade (Lei nº 15.848, de 28 de dezembro
de 1986).
A Lei da Caducidade, nos seus arts. 1º a 3º, diz o seguinte:

Art. 1º. Reconhece-se que, como conseqüência da lógica dos acontecimentos


decorrentes do acordo firmado entre os partidos políticos e as Forças Armadas
em agosto de 1984 e, a fim de completar a transição para a plena ordem
constitucional, caducou o exercício da pretensão punitiva do Estado por crimes
cometidos antes de 01 de março 1985 por militares e policiais, funcionários
equiparados e assimilados, por motivo político ou em ocasião de cumprimento
dos seus deveres funcionais e em ocasião de ações ordenadas por seus
comandantes durante o período de fato.
Art. 2º. O disposto no artigo anterior não compreende:
a) As causas nas quais, até a promulgação desta lei, haja uma acusação sendo
processada.
b) Os delitos que foram cometidos com o propósito de lograr, para seu autor ou
terceiro, um proveito econômico.
Art. 3º. Para os fins previstos nos artigos anteriores, o juiz do caso requererá ao
Poder Executivo que informe, dentro do prazo peremptório de trinta dias, a
contar do recebimento do comunicado, se considera que o crime sob
investigação está compreendido ou não no art. 1º da presente lei.
§1º. Se o Poder Executivo comunicar positivamente, o juiz determinará o
encerramento e arquivamento do inquérito. Se, no entanto, não responder ou
informar que não considera compreendido, poderá continuar a apuração.
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§2º. Desde a promulgação desta lei e até que o juiz receba a comunicação do
Poder Executivo, estão suspensas todas as diligências pré-julgamento dos
procedimentos mencionados no parágrafo primeiro deste artigo. 7

A Lei da Caducidade declara extinta a punibilidade relativa aos crimes cometidos por
agentes governamentais, surtindo exatamente o mesmo efeito indireto de uma lei de anistia
propriamente dita, mas estabelece uma forma muito singular para a formalização da extinção, ao
colocar o seu reconhecimento sob a discricionariedade exclusiva do Executivo.
A Constituição uruguaia (art. 79) previa que, se houvesse requerimento de vinte e cinco
por cento dos eleitores, uma lei poderia ser submetida a referendo para que surtisse seus efeitos.
Os grupos contrários se organizaram e conseguiram a realização do referendo. No dia 16 de abril
de 1989, a anistia foi aprovada com 56,65% dos votos.
A Lei da Caducidade foi analisada pela Suprema Corte de Justiça em maio de 2009, por
provocação de Blanca Stela Maris Sabalsagaray Curutchet, irmã de Níbia Glória Sabalsagaray
Curutchet, professora assassinada dentro de um quartel em 1974.
Na 1ª instância, o magistrado expediu o requerimento ao Poder Executivo, que respondeu
que, em relação aos militares e policiais, havia operado o fim da pretensão punitiva do Estado.
Em conseqüência, a instrução da causa continuou apenas para verificar se funcionários civis
estavam envolvidos. Esgotada a instrução e na ausência do envolvimento de civis, o caso foi
arquivado.
Foram interpostos sucessivos recursos, até que o processo chegou ao tribunal
constitucional.
A decisão pela inconstitucionalidade se apoiou em três argumentos. O primeiro diz
respeito a violação a soberania da nação. Foi considerada violada porque o exercício da pretensão
punitiva é algo inerente a ideia de soberania que o Estado possui sobre o seu território e o
Legislativo não está autorizado a impedi-la ou limitá-la, como o fez.
O segundo argumento é de violação ao princípio da separação dos poderes, visto que a Lei
da Caducidade conferiu ao Executivo a competência absoluta para decidir sobre o exercício da
pretensão punitiva no bojo de processos judiciais em trâmite, competência essa que cabe apenas
ao juiz da causa, enquanto membro do Judiciário, exercer.

7
Tradução livre do autor. O texto integral consta no Anexo E
18

O terceiro fundamento se baseia no direito internacional dos direitos humanos. Após


firmar que os tratados internacionais de direitos humanos possuem estatura constitucional, os
magistrados reconheceram que o teor da Lei da Caducidade é incompatível com disposições da
Convenção Americana de Direitos Humanos, além de outros tratados internacionais menos
conhecidos.

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