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João Cutileiro

O D. Sebastião de Lagos
D. Sebastião, 1973-1993 ― maquetas de esculturas para espaços públicos,
Centro Cultural de Lagos. Expresso/Revista 28 Agosto 1993, pp. 26-27

Vinte anos depois


Para comemorar os 20 anos do monumento a D. Sebastião, que
derrubou as regras da estatuária do Estado Novo poucos meses
antes do 25 de Abril, o Centro Cultural de Lagos reuniu em
exposição as maquetas feitas por João Cutileiro para esculturas
a instalar em espaços públicos. O escândalo já foi esquecido,
mas a idade não lhe pesa

LAGOS celebra o aniversário do D. Sebastião de João Cutileiro que se


ergue na Praça Gil Eanes com uma exposição de «maquetas de esculturas
para espaços públicos», em companhia de fotografias das obras executadas,
quando o foram. Apresenta-se no Centro Cultural da cidade, que, por
coincidência, acolhe também uma segunda mostra comemorativa de outros
20 anos, os do Expresso. Para Cutileiro, a simultaneidade das exposições
faz algum sentido. «Não é por acaso que nelas se celebram os 20 anos do
D. Sebastião e do Expresso - nós somos ambos precursores do 25 de Abril.
Eu costumo dizer por graça que o MFA, em 73, veio ter comigo e pediu-
me: 'fazes uma estátua controversa, pões na praça de Lagos e se ao fim de
seis meses ainda lá estiver é porque isto já está podre e nós podemos
entrar'. Embora seja uma graça, também é a realidade: tenho a impressão
de que, cinco anos antes, aparecia uma grua e aquilo vinha abaixo.»

Vinte anos depois, o D. Sebastião não é só uma estátua duplamente


histórica, é também um exemplo de como a «Situação» e a «Oposição» se
enfrentavam em todos os domínios da sociedade. E era sob o primado da
política que se opunham, em torno desse preciso monumento, o modelo
institucional da estatuária e a possibilidade da inovação na escultura
portuguesa.
Estava-se em 1973, em Setembro de 1973, e era a presença de Américo

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Thomaz que devia assinalar, entre a multidão saída à rua, o centenário de
Lagos. Instalada por iniciativa da Câmara, graças à relativa autonomia de
decisões que o marcelismo permitia, a obra de Cutileiro era «um dos
melhores monumentos portugueses, por razões plásticas e intelectuais
também» e uma «ruptura escandalosa» com as regras vigentes, como
escrevia José-Augusto França, aparecido em sua defesa no «Diário de
Lisboa» e na «Colóquio-Artes», antes de que se avolumassem as pressões
apostadas no derrube da estátua irreverente.

Tratava-se, de facto, de uma peça realizada à margem dos cânones com que
a estatuária do Estado Novo trocara as pobres tradições naturalistas vindas
de Oitocentos pela procura de uma pretensa austeridade neoclássica, bem
representados por um Infante D. Henrique hieraticamente sentado em
bronze logo a cerca de 500 metros, com a assinatura de Leopoldo de
Almeida e data de 1960.
A inovação (e não estilização decorativa de volumes, essa tolerada) era
imediatamente visível na construção articulada com mármores de cores
diferentes, em vez do talhe de um bloco único, no corte mecânico deixando
à vista as marcas dos instrumentos, em lugar do «bom acabamento»
obrigatório, e na ausência do pedestal que respeitosamente elevasse a figura
acima dos comuns mortais. Mais grave ainda era a figura ambígua de
menino com que o rei se retratava miticamente, imberbe e inseguro, entre o
sonho e o susto, anti-herói desengonçado, com as mão perdidas nos guantes
e o elmo desmesurado caído aos pés.
Era a representação de um rei, mesmo se de um rei vencido, e a sua
presença devia ser autoritária e institucional. Não é. E tocava-se então em
coisas sérias ao revisitar o seu mito.
«O D. Sebastião era o símbolo da derrota de África. Essa era uma das
razões por que eu mais gostei da ideia de fazer o D. Sebastião. Se fosse
outro rei qualquer, tinha de me informar historicamente, de fazer
pesquisas... O D. Sebastião era já um mito, era um misto de derrota e de
esperança.»

JOÃO Cutileiro vivia então em Lagos, desde 1970 em permanência (e


estivera desde 1959 «em 'navette'» entre Londres e Portugal, onde
descobrira «um pequeno paraíso na terra»). Já vinha de longe a ideia de
fazer uma escultura para aquele local, e três maquetas para um Pescador, de
1969, estão na exposição a prová-lo: «Pensei que seria uma bonita maneira
de ocupar aquele espaço, que estava mesmo a pedir estátua, sem ser um
Leopoldo de Almeida, ou um monumento ao Tenreiro, ou qualquer coisa do
género. Aquela praçazinha tinha-a debaixo de olho, e ofendia-me que
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fossem lá meter o trabalho de outro escultor.»
Foi então que surgiu a oportunidade da comemoração dos 400 anos da
cidade e o convite do presidente da Câmara, José Figueiredo Luís,
marcelista e amigo pessoal, para fazer uma medalha. Desta se passou à
estátua, por insistência de Cutileiro, que praticamente a ofereceu, pagando-
se apenas do material e horas de trabalho.

Os anos que se seguiram não envolvem ainda o D. Sebastião na


imobilidade de algo já visto, integrado pela aceitação reverente do peso da
história. A surpresa pública mantém-se perante aquele corpo insólito em
figura de boneca articulada, talvez «parecido», talvez impróprio de um rei
ou de uma estátua, que ao mesmo tempo marca fisicamente um espaço e
cumpre-desafia a antiga função segurizante e sacralizadora associada à
ideia de monumento - no qual a grandeza da escala faz parte de um mesmo
sistema simbólico, ligando a imagem e o discurso numa ostensiva relação
conceptual com o sítio (Rosalind Krauss).
Adivinha-se, por outro lado, que para a crítica do tempo, que assistia com
uma distância incomodada à consagração pelos coleccionadores de uma
carreira realizada à margem das «correntes», o enfrentamento político terá
permitido ultrapassar os conflitos teóricos que se situavam no seu próprio
terreno, a respeito da invenção em escultura ou na arte em geral.

Embora J.-A. França tivesse admitido a possibilidade de «uma nova


monumentalidade figurativa», a impressão que hoje se tem é de que, em
geral, se despejava a criança com a água do banho. Ou seja, com aquele
monumento único, tratar-se-ia apenas de pôr termo ao academismo da
estatuária do Estado Novo, sem que se entendesse o renovar da tradição
moderna da escultura ou a singularidade de toda uma obra. Cutileiro viria a
declarar, por provocação, o seu abandono da criação artística, passando a
identificar-se como «produtor de objectos decorativos para a burguesia
intelectual».
Pesava sobre o entendimento crítico de então, quando se não falava ainda
de pós-modernismos, uma longa sequência de interditos que constituíam a
suposta evolução modernista na escultura: a figuração, o corpo, a
semelhança, a verticalidade, a marca do fabrico, a prática artesanal, a
expressão, o objecto construído, ou simplesmente «o escultural», cujo
apagamento pode passar por ser o destino decisivo da escultura, numa
história de impossibilidades crescentes.

«Eram interditos para uma crítica talvez muito intelectual a que eu nunca
liguei. Nunca achei que fossem interditos, não os sentia na pele. Para mim,
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havia coisas interditas, por exemplo, em relação à estatuária do Estado
Novo, pelo lado ideológico e formal, aquelas formas que se usavam na
estatuária. Havia umas pessoas mais benévolas que diziam que o
[Francisco] Franco era bom e os outros é que eram maus, e que faziam
umas hierarquias dentro daquela porcaria toda; mas, para mim, eram
todos muito maus, não havia nada de aproveitar. Nem o Martins Correia,
nem o António Duarte... Quando jovens, certamente que uns eram mais
talentosos do que outros, mas como tinham todos optado por fazer aquele
frete...»

Se a obra de Cutileiro retomava a tradição da estatuária, centrada na


representação do corpo, a seu modo prolongando investigações de Brancusi
e de Moore, mas já sem nostalgias de um qualquer passado arcaico de
formas ideais ou aspirações a um classicismo intemporal de «serena
espiritualidade» (Margit Rowell), uma observação mais ideológica que
atenta aos objectos não permitiria reconhecer o que de inovador surgira
com os meios mecânicos de corte da pedra. De facto, ao inventar um outro
processo de talhe directo, com recurso às serras eléctricas, e de construção
por montagem de fragmentos, Cutileiro reencontrava-se com toda a
problemática da colagem e da «assemblage», transferindo-a para a pedra e
para a figuração, ao mesmo tempo que inaugurava um modo de produzir
escultura que substituía técnicas condenadas pelos seus excessivos custos
(a passagem do gesso a bronze, o talhe do bloco único). Assim se
viabilizava uma nova prática da escultura e, desde logo, a sua própria
sobrevivência como escultor - facto inédito, na sua independência do
ensino e da encomenda oficial. E também um escândalo perante certas
fatalidades portuguesas.

«A própria encomenda estava vedada aos artistas. A palavra encomenda já


trazia uma conotação chata: era o emprego. As pessoas em Portugal não
podem gostar do trabalho de que se ganha dinheiro, faz muito parte da
cultura e da mentalidade portuguesa. Ganhar dinheiro era uma chatice,
nós devíamos ser todos artistas e livres... Mas nunca me fez confusão
ganhar dinheiro e gostar dos trabalhos que fazia.»

ENTRETANTO, a celebração do aniversário, promovida por outro escultor,


Xana, de novo com o apoio da Câmara, é também a oportunidade para
observar que o D. Sebastião teve escassíssima descendência. Foram muito
poucos os monumentos erguidos entretanto por João Cutileiro, como se, em
questões de gosto oficial e de encomenda de escultura pública, decorativa
e/ou comemorativa, rapidamente se tivesse voltado à mesma vontade de
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celebrar o passado com a reverência do conservadorismo estético, se
impusesse a mesma marcação autoritária de espaços (e o formalismo
abstraccionista pode fazê-lo diligentemente), ou, pura e simplesmente,
como se nada mudasse no que era mais simplesmente a incultura artística.
Como se comprova em Lagos, mesmo que a exposição não seja exaustiva,
as encomendas foram raras entre 73 e 93, embora Cutileiro multiplicasse as
suas peças monumentais em espaços privados e públicos.

«Ofereci aquela, mas não poderia oferecer muitas mais. Eu não me mexo
para as encomendas, mas o certo é que as estátuas, os monumentos
públicos, aparecem feitos. Se calhar, em todas as sociedades é assim; se
lermos a autobiografia do Cellini, vemos que na Renascença aqueles
meninos se envenenavam uns aos outros para sacar a encomenda. A mim,
talvez por uma herança de passado antifascista, como se diz, repugna-me
andar a esfregar os ombros com o poder para sacar as estátuas. Há
pessoas responsáveis com quem tenho o maior dos prazeres em lidar, há
outras que não, e eu transmito, um pouco como os cães, um cheiro que diz
às pessoas que não gosto delas, e eles não me encomendam. De facto, as
grandes coisas nunca vêm para mim.»

Em Lagos, são em número de 19 as maquetas apresentadas, ou 14 se se


descontarem as variantes de um mesmo projecto, mas em apenas oito casos
se verifica a passagem à execução, documentada em fotografias. E isto
apesar da cronologia da exposição começar muito antes do D. Sebastião,
logo em 1962, apontando com as peças iniciais duas direcções constantes
da obra de Cutileiro.
A primeira maqueta, ainda em bronze, é de uma estátua equestre pensada
para o alto do Parque Eduardo VII. Trata-se do exemplo inicial de uma
longa série de cavaleiros, que, como se viu na retrospectiva de 1990,
continuaram em cimento fundido e em «polyester», primeiro, em mármore,
depois, a partir de 67, e mais insistentemente em 89-90, como foi a seguir
mostrado em Almancil, sob o título «Homenagem a Paolo Uccello». Na
presente antologia, o tema só regressa num Monumento a D. Afonso
Henriques, já de 92, mas o certo é que a designação «maqueta para estátua
equestre» foi insistentemente usada em pequenas obras com destinos
privados, expressando assim a vontade de enfrentrar um dos desafios
superiores da estatuária clássica.
Com a segunda das obras expostas, uma mulher reclinada, em maqueta de
68 para o Hotel do Alvor, onde o modelo clássico é violentamente sujeito
às fragmentações da «assemblage», abre-se a via para uma outra longa
série de esculturas desenvolvidas sem necessidade de projecto prévio. O
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mesmo, aliás, sucederá com os «Guerreiros», peças monumentais também
insistentemente exercitadas, de que não se mostram maquetas em Lagos.

DE FACTO, esta exposição confirma que a maqueta, imposta pela


encomenda, não faz parte dos processos de trabalho preferidos pelo
escultor. As suas peças, na generalidade dos casos, surgem directamente em
dimensão monumental sem estudos feitos em miniatura.
«A manufactura da maqueta é uma limitação horrenda. Quando um tipo
tem a maqueta aprovada dá muito gozo, mas depois sinto-me um mero
lacaio de mim próprio.» É possível sempre alterar o projecto em
andamento, mas Cutileiro entende a solução como «uma quebra de
compromisso»: «Se aqueles senhores exigiram uma maqueta, eu tenho a
obrigação moral - não digo artística, mas moral - de apresentar uma coisa
minimamente conforme a maqueta. Já me aconteceu, durante a execução,
pensar que talvez outra solução seja melhor, e então páro a execução, faço
uma nova maqueta e vou apresentá-la. Mas repete-se o problema. Uma vez
aprovada, estou tão limitado como antes.»

Outra constatação: a figura histórica só existe na obra de Cutileiro


associada à encomenda, e por isso é rara. Descontando um ou outro retrato,
contam-se apenas o D. Sebastião e um Camões de 1980, encomendado para
Cascais no tempo de Vasco Pulido Valente, mais um Monumento a D.
Sancho, já de 1990, em Torres Novas, e o Monumento a José Fontana, do
mesmo ano, no jardim do mesmo nome, em Lisboa, onde um retrato
gravado marca um feixe de colunas de sugestão vegetal. Em maqueta ficou
o referido D. Afonso Henriques, de 92, e a exposição termina com uma
Inês de Castro já de 93, que é outra magnífica interpretação de um mito
nacional. E também um curiosíssimo exemplo da transformação que ocorre
entre a maqueta e a obra terminada, quando nenhum compromisso prende o
escultor: o volume inteiro do corpo ou manto real, onde, na falta de rosto, a
coroa vem a assentar directamente na larga gola, acaba por dar lugar a uma
«assemblage» de volumes articulados na peça construída.
Pelo caminho estão os projectos para duas fontes monumentais, de 87 e 88,
a segunda instalada na sede da Bonança, em Lisboa, obras decorativas e
«abstractas», tal como o são três pórticos para Macau, de 89, não
executados (título: Macau), e também o Monumento a Mértola, de 91,
instalado. Peça original e única é um Dragão, de 90, previsto para o Jardim
do Canal dos Patos, em Macau, uma divertida figura de animal construída
em grosseiros blocos encaixados, sobre duas bases desiguais que surgem
integradas no movimento da peça.
Por mostrar, por agora, ficou uma obra pensada para a nova sede da CGD
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sob a forma de um friso decorativo, que viria a ser cancelada em fase de
corte orçamental no edifício; em alternativa surgiu a hipótese de uma peça
monumental para o exterior do edifício, mas o desenho prévio não foi
aprovado. Cutileiro insistiu em executar o projecto, por sua conta e risco;
com os seus 5,5 metros, ficou a ser a sua maior peça de sempre.
«Um escultor gosta de fazer coisas grandes. Como eu ganho muito
dinheiro e tenho boas condições de trabalho, posso-me permitir fazer
coisas grandes sem ter de estar à espera da encomenda. Faço-as e depois
vendo-as. Estão prontas, são grandes, são aptas para um lugar público,
são monumentais, e quando me vêm encomendar uma peça eu digo:
'Encomendar para quê? Está aqui esta, que serve perfeitamente'.»
Vinte anos depois, o novo regime não tornou Cutileiro um escultor
institucional.

Jogos de guerra
"Recordações de Guerra", Centro de Arte Moderna, Expresso/Cartaz,
20 Abril 1991, pág. 12 e capa (As outras guerras de João Cutileiro)

«Os Guerreiros» são 11, um colocado no exterior do CAM e dez no


respectivo átrio, desprendidamente expostos
num cenário de acaso, em trânsito entre quem
passa para o jardim ou o museu - mais que
uma exposição é uma comitiva que veio
acompanhar aquele que ficará nos jardins da
Fundação. Na primeira linha, o rei e a rainha,
e a seguir talvez um bispo e os peões, como se
de peças de tabuleiro de xadrez se tratasse.
Erectos, de armas em riste, têm também o ar
façanhudo de valetes das cartas de jogar e a
sua construção em blocos sobrepostos e
articulados aproxima-os, por outro lado ainda,
dos jogos de armar infantis.
São figuras medievais de lança e escudo,

Foto António Pedro Ferreira

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armadura, capacete e viseira, e são imagens de guerra e caricatura de
guerreiros, desengonçados robots de pedra. Não se sabe se mais
ameaçadores ou paródicos, são monumentos que representam todos os
heróis e aventuras da História e também o seu reverso pícaro, são anónimas
estátuas de guerreiros talvez troçando de outros ídolos com nome e rosto,
tal como a estatuária oficial os celebrou.
Na retrospectiva que a Fundação apresentou há um ano eram as últimas
peças saídas do atelier de Cutileiro, à mistura com pequenos cavaleiros que
prometiam estátuas equestres. Chamavam-se eles, então, Securitas e
retomavam, em pedra e com os processos industriais de a modelar (cortar e
colar, aliás), um tema antigo que esboçara em poliester e pó de bronze nos
anos 60 - e note-se que são de guerreiros quase todos os raros corpos
masculinos saídos da oficina. Multiplicaram-se entretanto, a par com a
actualidade de modernas guerras. Cresceram repetidos e sempre diversos,
na sua forma longilínea que é homenagem a Giacometti, desdobrando uma
pesquisa de «assemblages» inéditas em pedra, tótemes imponentes nos seus
equilíbrios aparentemente instáveis mas sempre, afinal, monumentais.
A pedra é apenas branca, ora exibindo a rugosidade das fracturas, ora
expondo-se como polidas engrenagens de série; às formas maciças soma-se
a ligeireza geométrica dos fragmentos imbricados, erguidos por
empilhamento e articulados como «kits» de armar. Numa constante
variação de processos, a simetria que consolida algumas figuras dá lugar,
noutras, a um insólito equilíbrio feito de diferenças entre cada metade
lateral, e outras ainda transportam a lição das formas bífidas estabelecida
em tantos corpos femininos. Observe-se a correcção com que assentam
algumas nas suas bases e o modo como outras irrompem directas do chão.
Juntos, os guerreiros voltam a lembrar que a escultura em Portugal tem
hoje um nome; depois, há discípulos, há promessas. Tal como voltam a
mostrar, aos catecismos vários, que a escultura, a estatuária até, sem
capotes oficiais e sem rotinas de escola, é ainda possível (mas raríssima!),
em objectos feitos com invenção e com gozo partilhável. Curioso seria,
entretanto, avaliar a diversidade das criações recentes que directamente se
vêm enfrentando criticamente com a representação da História e dos seus
mitos portugueses, desde Os Reis de Costa Pinheiro, que com estes
guerreiros têm visível parentesco, passando pelo Dom Sebastião também
de Cutileiro, por certas imagens de José de Guimarães, por algumas
pinturas de Júlio Pomar, e pouco mais.

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«Memórias», Galeria Valentim de Carvalho (Mês da Fotografia, Lisboa,
1993), No catálogo geral do Mês publicaram-se dois notáveis retratos, um de
Álvaro Lapa, outro de Maria Cabral e Vasco Pulido Valente.
João Cutileiro tinha mostrado fotografias na sua 1ª exposição, em Novembro de 1961 (que foi
a 2ª, contando uma em Monsaraz e Évora aos 15 anos, em 1951), na Sociedade Nacional de
Belas Artes: "25 Esculturas / Fotografias / Desenhos de João Cutileiro". O folheto que a
acompanhou não trazia reproduções (o autor informa que eram praticante todas retratos). Dos
"modernos" ou novos desse tempo, tinham mostrado fotografias em exposições individuais de
galeria só Fernando Lemos (em 1952-53) e a dupla Victor Palla/Costa Martins (1958). Um
segundo passo público (publicado, neste caso) foi dado só dez anos depois (1971) com a
impressão tardia de algumas imagens de Monsaraz (as mais antigas de 1959 e outras de 63,
estas expressamente feitas) no livro do irmão José Cutileiro A Portuguese Rural Society
(Oxford, Clarendon Press), onde se publicaram também outras fotografias do então
desconhecido Gérard Castello-Lopes

"Álvaro Lapa em casa de António Caldeira", 1958 (cat. Mês da Fotografia)

EXPRESSO/Cartaz, 29 Maio 1993. «Memórias», retratos (inéditos) de


amigos e familiares, 1958-70. As fotos foram-se perdendo pelas gavetas e
pelas paredes (serviram até de alvo para setas), amareleceram e comeu-as o
bicho. Juntas agora, traçam uma galáxia de relações, amizades e amores
que veremos ao sabor das identificações disponíveis a cada um: Fernando
Mascarenhas (em 65), Jorge Sampaio e Karin Dias, João Cid dos Santos,
Francisco Keil do Amaral, Ana Viegas, Maria Cabral e Vasco Pulido
Valente, Mário Cesariny (uma parede com seis fotos de 64), Menez
(Londres, 63), Reg Butler, José Cardoso Pires (60), Ruy Cinatti, Gerard
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Castello Lopes, etc, e um auto-retrato legendado como «Paul Newman».
Por vezes, as cabeças deixam adivinhar um olhar escultórico, a caminho de
outros retratos (Helder Macedo, Azevedo Gomes, Keil do Amaral). Com os
retratos de Lemos, tão diferentes, estas fotos privadas levantam um véu
sobre um passado oculto, aqui apercebido como um tempo feliz. São
pequenos grandes nadas.

5 Junho: 100 fotografias que traçam um percurso de cumplicidades


pessoais, transportando a memória do seu uso (as paredes, os álbuns, ou até
o alvo para setas) e um seguro valor de documento sobre os meios
intelectuais do seu tempo. Mas é também a procura do sentido do retrato
que nelas se encontra, na diversidade dos enquadramentos e das poses
«colhidas do natural», ao mesmo tempo que o olhar do escultor se
adivinha. Cutileiro mostrara fotografias numa exposição em 1961 e fez
parte da geração dos «olhares inquietos» (A. Sena) — este é mais um passo
na recuperação de uma indispensável memória fotográfica.

“Paisagens”, Galeria Valentim de Carvalho, 05 Junho 1993


Um escultor experimenta a paisagem como tema da escultura, o que é um
desafio talvez inédito no quadro da arte não abstracta. É o Alentejo e são as
pedras, material de que se acolhe e revela o seu directo fascínio: a pedra
como paisagem. É ainda a pulsão de J.C. pela multiplicação dos objectos,
que o leva a produzir múltiplos acessíveis para lá do círculo dos
«coleccionadores» (falar em intuitos decorativos é aqui abrir a porta a
reduções de pobre alcance).

«A Apresentação da Rainha», Capela do Gandarinha, Cascais, 16


Julho 1994
A estátua de Camões, realizada por J.C. em 1982, passou do interior da
Câmara de Cascais para o átrio envidraçado da Capela da Gandarinha,
ganhando uma permanente visibilidade a partir da via pública. Essa
transferência de lugar é ocasião para a apresentação de mais um
monumento (destinado ao hall do Hotel das Lágrimas, em Coimbra), a Inês
de Castro, que em 1993 se pudera conhecer em maquete, quando em
Lagos se comemoraram os 20 anos da estátua de D. Sebastião ― é curioso
que João Cutileiro só uma vez em cada década tenha podido desafiar os
interditos que pesam sobre a ideia de monumento e sobre o retrato histórico
(Rosalind Krauss situa em 1941, com o monumento a Apollinaire, de
11
Picasso, a prova da impossibilidade moderna do monumento e do
monumental, mas está manifestamente equivocada). «A Apresentação da
Raínha» é o título da exposição, encenada com pompa e circunstância no
interior da capela, parcialmente restaurada como local de actividades
culturais da autarquia: sobre os degraus centrais do antigo altar está Inês
de Castro, num retrato heráldico feito de blocos de pedra recortados e
aparafusados, representada como rainha depois de morta, presença mítica
em desfiguração já algo paródica, personagem de fábula, próxima e
terrível. A precedê-la um cortejo de outras figuras de pedra, Guerreiros,
Sentinelas e Cruzados, reis de jogo de xadrez e até um Professor à Saída
do Palácio, estátuas dessacralizadas.
23 Julho (...) Aqui se volta a demonstrar a possibilidade da estatuária e da
representação (no caso, de figuras históricas), em resposta aos interditos de
algumas interpretações da modernidade. O uso do fragmento e da
«assemblage», evidenciado o processo construtivo (numa desconstrução da
antiga autoridade do monumental) e a presença de um olhar irónico sobre o
mito, reinventando-o criticamente, permitem retomar uma tradição com as
armas do presente.
30 Julho (...) É mais uma peça essencial numa galeria de figuras históricas
que inclui D. Sebastião (Lagos), Camões (Cascais, agora no átrio exterior
da Capela da Gandarinha), D. Sancho (Torres Novas) e D. Afonso
Henriques (Versailles).

Metro-arte
Expresso/Revista, 25 Agosto 1995, pp. 66-71

AS inaugurações das novas estações da Rotunda e de Sete Rios tiveram o


conveniente aparato político e deram conta do crescimento e modernização
da rede do Metro. Convém, no entanto, situar também essas inaugurações
entre os acontecimentos artísticos do Verão lisboeta, prevenindo que as
referidas estações se devem visitar por si mesmas, independentemente dos
acasos da circulação, para descobrir três notáveis criações de artistas
plásticos — um escultor, João Cutileiro, e dois pintores, Menez e Júlio
Resende.
São exemplares intervenções decorativas em espaços colectivos, obras
raras num tempo em que a «arte pública», sem os constrangimentos de
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outros tempos, tem descido a níveis
de indigência insuspeitável.
Trabalhos de artistas com longas
carreiras, elas traduzem, de modos
naturalmente diferenciados,
situações de enorme investimento
criativo, estabelecem eficazes
relações com os lugares ocupados e
impõem um muito directo poder
comunicativo, condição necessária
em lugares de intensa visibilidade.
Nenhum deles se limitou à
autocitação de um «estilo», à
transferência e ampliação de motivos
tomados em obras anteriores; pelo
contrário, todos reagiram às
condições da encomenda como um
inédito desafio, fazendo das
condições do lugar, da escala e dos
materiais de trabalho a rampa de
largada para obras de fôlego.
(...)
Como já sucedera em outras recentes estações do Metro, abandonou-se
também a ideia redutora de que as obras instaladas se destinam apenas a
utentes apressados, a quem perturbariam as intervenções artistísticas que
não se reduzissem à função de «animar» lugares de passagem. Quando tal
argumento se usou em relação às estações iniciais de Maria Keil, ele
escondia prevenções censórias a respeito das possíveis figurações da
artista; por outro lado, foram também as pesadas restrições financeiras de
então que impuseram os revestimentos padronizados sobre efeitos gráficos
e ópticos, que a artista trabalhou com excepcional talento. Novas liberdades
e outros meios financeiros permitem hoje diferentes atitudes, aceitando os
pintores a responsabilidade da decoração sem a entenderem como
constrangimento à liberdade criativa. É de grande decoração que se trata.

JOÃO CUTILEIRO instalou na antiga estação da Rotunda três figuras


escultóricas do Marquês do Pombal que são uma só imagem emblemática,
repetida com ligeiras variações de acaso, divertidíssima trindade a
descobrir sucessivamente no interior dos quatro vãos existentes entre as
plataformas, diante de quem espera o metro ou nele circula.
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O Marquês é um vulto recortado, que se vê de ambos os lados da gare
igualmente de costas, destacando-se da figura quase plana o volume da
larga cabeleira feita de fiadas de cilindros de pedra. Com a aparência de um
corpo articulado ou boneco de montar, que é acentuada por duas peças de
encaixe nas costas da casaca, ergue-se sobre pernas-colunas e agarra com
firmeza numa das mãos um rolo de papel.
Nos subterrâneos da praça consagrada ao Marquês, é o exacto oposto do
excesso retórico do monumento que a República lhe quis erguer, e que já
seria inaugurado ao tempo de Salazar, quando outro gosto estatuário se
começava a impor, mais modernizado e com outros programas ideológicos
(o concurso para a obra data de 1914 e a conclusão tardou até 1934). Sem o
leão da estátua de Francisco Santos, «símbolo do poderio e da força», o
Marquês de Cutileiro não conserva a pose majestática nem outros atributos
de poder da iconografia tradicional — basta-lhe a cabeleira imponente e o
decreto na mão fechada. Descido do pedestal, numa imobilidade suspensa,
mas enérgica, parece disposto a aceitar o novo transporte para visitar as
obras da sua reconstrução de Lisboa.
Peça de humor e inteligência que se entenderá na sequência de outras
figurações históricas de Cutileiro, é um antimonumento contemporâneo,
desconstrutor de mitos e de formulários escultóricos, que cumpre a
evocação do passado com o conveniente distanciamento irónico perante as
representações do poder, como o D. Sebastião de Lagos, o Camões de
Cascais, o Afonso Henriques colocado em Versailles, o Sancho I de Torres
Novas, a Inês de Castro do Hotel das Lágrimas em Coimbra, e outras
figuras anónimas de guerreiros, cruzados ou sentinelas. Sem a ambição, ou
o compromisso, do retrato histórico, que seriam absurdos naquele local,
num contexto que é a da intervenção decorativa num espaço subterrâneo, o
Marquês de Cutileiro parece ter-se apeado do comboio da história,
fantasma despojado de literatura, indiferente às projecções contraditórias
que a sua memória tem revestido.
Numa das paredes da estação, redesenhada pelos arquitectos João e José
Santa Rita, descobrir-se-á ainda a figura recortada, de relevo liso e
construída por fragmentos, de mais um Marquês, aí de passo apressado,
visto também de costas com a farta cabeleira, e esta repete-se mais seis
vezes, como motivo isolado, a pontuar zonas de passagem e de saída da
estação. A intervenção do escultor prolonga-se ainda no revestimento das
zonas de acesso, em paredes limitadas por duas faixas de pedra não
aparelhada, sempre o lioz, a pedra de Estremoz usada na reconstrução de
Lisboa após o terramoto.
(...)
14
Florbela Espanca, Vários locais, Évora, 10 Dezembro 1995
O 1º centenário do nascimento é comemorado, por iniciativa do Grupo Pro-
Évora, numa exposição que reuniu obras de 19 artistas e se percorre por
nove espaços da cidade, associando autores de percurso local a outros de
mais larga notoriedade num conjunto por vezes muito desiqulibrado, mas
sem que tal contrarie a oportunidade da homenagem. O retrato de Florbela
por João Cutileiro (que também mostra relevos de parede e desenhos à
pena) é a peça central do percurso, recolocando as questões da necessidade
da figuração e da semelhança e afirmando a sua possibilidade actual: aqui o
retrato procura instalar-se num difícil intervalo entre a referência física a
um modelo já ausente mas próximo e a representação simbólica das figuras
históricas (que deram a J.C. alguns dos seus mais importantes trabalhos).

«O quarto de Fernando Pessoa», Casa Fernando Pessoa, 25 Maio


1996
Em mais uma instalação da série «o quarto de Fernando Pessoa», J.C.
dispõe a mobília pobre e pinta-a de um branco virgem, com a pequena
almofada de criança na solidão da cama larga. Sobre a cómoda, a garrafa
passada a pedra e, ao lado, a esfera irregular da bola de berlim, usada para
«ensopar» o bagaço — natureza morta emblemática de um prosaico dia a
dia. É quanto basta para construir um cenário habitado pela releitura,
sincopada e mecânica, de poemas.

Um lugar na cidade
Expresso/Cartaz, 3 Maio 1997, pp. 18-19

João Cutileiro construiu uma fonte no cimo do Parque


Eduardo VII. A evocação e homenagem ao 25 de Abril só podia
ser um antimonumento

15
JOÃO CUTILEIRO prepara-se há perto de 40 anos para fazer uma estátua
equestre. Uma pequena maquete em bronze, de 1962, pensada
precisamente para aquele lugar, foi mostrada em Lagos, quando, a
propósito dos 20 anos do D. Sebastião (1973-1993), se puderam rever os
seus projectos de esculturas para espaços públicos. Agora, porém, optou
por destruir o plinto que existia no cimo do Parque Eduardo VII, para onde
se chegaram a prever, no regime anterior, as figuras de Nuno Álvares
Pereira ou D. João I. O cavaleiro que alguém terá ainda de encomendar ao
escultor irá para outro lado.
Ali, no exacto enfiamento do Marquês de Pombal e do obelisco do Rossio,
sobre o panorama da cidade e do Tejo, que é também um lugar fisicamente
marcado pela monumentalidade do regime anterior (nas colunas de directa
referência nazi e, através desta, de invocação de uma mitificada ordem
clássica — recorde-se, por exemplo, o projecto de Albert Speer para as
portas de Salzburgo, de 1937, incluindo um plinto-altar vazio), Cutileiro
instalou uma fonte que é, ao mesmo tempo, monumento evocativo e anti-
monumento. Não se tratava de substituir os emblemas de um regime pelos
de outro, mudando apenas de sinal um acto de celebração do poder
(questão ideológica e ético-artística essencial), mas de evocar o 25 de Abril
no seu sentido mais decisivo de deposição de uma ditadura e de início de
16
um projecto de democracia que será «o que nós quisermos», como diz o
escultor.
Para Cutileiro, «o 25 de Abril é anti-monumental por definição», no acto
do derrubar um regime imóvel e autoritário (como um monumento) e de
recolocar um destino colectivo nas mãos de um povo. E a sua intervenção
de escultor também não quis ser um monumento no sentido tradicional de
consagração formal de um momento congelado no tempo, de sacralização
da distância entre os símbolos de um poder, divino ou heróico, e o espaço
comum da cidade. A sua «Evocação do 25 de Abril», título presente na
necessária lápide inaugural, é bem uma fonte, tipologia construtiva que põe
em evidência quer o significado da permanente agitação da água em
movimento quer a ideia de que «a fonte é a origem» (J.C.).
A abordagem dos emblemas formais e dos seus sentidos seria inesgotável:
a fonte e o cravo, o derrubar de uma forma prévia autoritária, a ideia de
inacabamento de um processo em construção, a recusa de uma
«mensagem» escrita (mas estão lá sinais de trabalho trazidos da pedreira), a
instalibilidade da água, a forma fálica presente em qualquer obelisco ou
coluna, e que aqui remete para a configuração dos megalitos alentejanos. E
teria ainda de prolongar-se com absoluta coerência no equacionar da
problemática da escala.
A opção do escultor foi a de contrapor uma dimensão humana ao
gigantismo autoritário das colunas pré-existentes, transformando um lugar
votado à representação do poder (com maiúscula, tal como em algumas
concepções da arte) num espaço de uso público, de lazer e de prazer. Os
degraus que limitam um dos lados do lago são um convite directo a
mergulhar os pés na frescura da água corrente; o arranjo do espaço
envolvente é propício à permanência, inventando uma praça num lugar
previlegiado da cidade mais ainda inóspito. Às memória romanas que as
colunas transportam, com sentido imperial, contrapõe-se a lembrança das
fontes de Roma, mas despidas das suas mitologias de Neptunos e sereias,
que também não podereiam ter lugar na evocação do 25 de Abril.
A intervenção de João Cutileiro, com o sentido político da sua reflexão
sobre a data e sobre ideia de monumento, com a ironia própria de uma
modernidade que já não quer ser construtora de mitos (ao contrário dos
modernismos vanguardistas), exercida na inteligência das formas e também
dos seus sentidos, está, como sempre, à beira do escândalo. Tal como
sucedeu com o seu D. Sebastião de Lagos, estátua de menino e equívoco
herói nacional, a fonte-evocação do 25 de Abril é um monumento
controverso. O que também significa, se for necessário dizê-lo, que o
escultor não se limita a gerir a sua própria consagração e que a escultura

17
continua a ser inventiva e problemática, desafiando convenções e
expectativas.
Vale a pena, como exemplo, considerar uma primeira expressão pública das
resistências com que a obra de Cutileiro se enfrenta, contida numa crónica
de Rúben de Carvalho («Capital», 29 de Abril) — mas sem de modo algum
pôr em dúvida o seu «direito a dar opinião» por falta de uma qualquer
alegada especialização. O que importa é ver como é decisiva a questão da
escala na vontade expressa de uma monumentalidade formal que, sob a
aparência de uma questão de dimensões, tem a ver com significados,
concepções de poder e ideologias.
Diz R.C.: «O problema do monumento ao 25 de Abril é que não tem o
tamanho, a envergadura, a proporção, o significado do sítio onde está».
Antes, porém, considerara que as duas colunas pré-existentes (talvez por
efeito de uma contradição entre a encomenda fascista e a autoria
democrática de Keil do Amaral — a qual seria essencialmente decisiva,
embora sem tradução formal) «têm equilíbrio, proporção, dignidade,
coerência, ao nosso lado acompanham na sua altura os quilómetros de
vista...». Mas esses atributos traduzem ali a imposição de uma ordem que é
a da autoridade, são as marcas de um poder que se afirma na arrogância da
perfeição e da altura. Noutro passo, atribui ao D. Sebastião, apesar da sua
pequena escala, «o fascínio e a grandeza de um monumento». São sinais da
mesma recusa de entender a condição de anti-monumento com que
Cutileiro soube expressar o sentido mais radical da sua última obra.

«Esterlícias», Galeria Restauração, Porto, Expresso/Cartaz 31 Dezembro


1998
A exposição já terá encerrado, mas há que não deixar em silêncio as
«Esterlícias» de Cutileiro, até porque esta e outras séries de flores-
esculturas exigem uma apresentação mais vasta que lhes assegure ampla
visibilidade. Mostram-se, ou mostraram-se, três flores em bronze e
mármores (uma apenas em bronze), ao lado de três flores naturais e secas
sobre iguais bases de pedra, das quais, num primeiro momento, não se
distinguem. E também desenhos sobre papel e gravados em mármore, com
o mesmo tema. Levando ao extremo a ambiguidade entre artifício e
natureza, construção e imitação (mas não cópia), J.C. põe em questão,
sobre a vitalidade e a beleza das formas naturais, toda a problemática da
escultura num exercício de soberana liberdade e de admirável tensão
experimental.
18
«Flores — Homenagem a Mapplethorpe», Museu de Évora, 11
Dezembro 1999

As flores existem há muito na obra de J.C., mas em 1996 o escultor deixou-


se impressionar por um pequeno livro de fotografias a cor de
Mapplethorpe. O encontro esteve na origem de uma vasta série de obras
que Cutileiro assumiu como homenagem ao fotógrafo e que está agora
instalada na sala do Renascimento do Museu, junto ao cenotáfio de Afonso
de Portugal e em relação ou confronto com as outras peças em exibição
permanente. Feitas em mármore e bronze (os caules), sobre blocos
torneados de pedra (vasos, jarras), são quase quatro dezenas de peças - por
vezes também placas de parede, de mármores colados -, de pequeno
formato e de extrema delicadeza, mesmo quando a pedra é rudemente
talhada. A celebração da beleza, presente em geral na sua obra e afirmada
com humor como uma competição com «o Criador», é aqui exponenciada
ao tomar por objecto a condição frágil e discreta de pequenas flores. E não
é indiferente que o escultor também as tenha fotografada para o catálogo.

Expresso/Cartaz de 18 Dezembro 1999

De Mapplethorpe a Cutileiro
Diz Cutileiro que a fotografia é a mãe das artes visuais e são as
fotografias de Mapplethorpe que estão na origem das suas novas
esculturas de flores

 SÃO 38 pequenas flores, apenas flores, refeitas em pedra e bronze pelo


escultor. Frágeis, elegantes, discretas, por vezes, se vistas à distância ou
fotografadas, quase indiscerníveis de flores reais. Como se se tratasse de
recomeçar a escultura a partir de um limiar inicial, à distância da tradição
comemorativa que moldou a escultura clássica e também a moderna e
abstracta («Sim, não tem nada a ver com a escultura comemorativa»,
concorda João Cutileiro). Retorno à natureza, à experiência sensível da
beleza, ao belo natural, sem metafísica, em objectos de mão humana que
exibem no modo de fazer, usando o bronze e o mármore, o saber fazer e o
gosto do artista-artífice.
Para esse recomeço ou redescoberta foi essencial ao escultor o fascínio
sentido pelas flores fotografadas a cores por Mapplethorpe – Cutileiro diz
19
que a fotografia foi a mãe das artes visuais. E
ele próprio voltou à fotografia, fechando o
círculo. Mostradas na Sala do Renascimento
do Museu de Évora, entre outras antigas
flores de capitéis e brasões, as esculturas de
Cutileiro colocam questões centrais com a
discreta e perturbante energia que pode ter
uma flor. Elas são belas.

As flores estão presentes há muito tempo na


sua obra, mas estas aparecem como um
trabalho diferente, exterior a essa
continuidade. — Eu senti-as como tal. Recebi
o livrinho do Mapplethorpe no Natal de 95,
mandado dos Estados Unidos por uns
amigos, e logo que o folheei começou-me a
apetecer fazer estas flores. Quase que consigo
dizer quais foram, entre as flores desse
período, as que foram por uma via
Mapplethorpeana e as outras que tinham uma via bastante diferente, mais
directamente da natureza.

O que foi que o interessou nas fotografias de Mapplethorpe? — Já


conhecia a sua obra, mas nunca tive a oportunidade de o conhecer ao vivo.
Tinha ido alguns meses antes aos Estados Unidos e fiquei encantado com a
quantidade de livros dele que encontrei. Estava em casa desses amigos e,
quando chegava todos os dias com mais um livro, eles aperceberam-se do
meu interesse pelo Mapplethorpe. Depois, se calhar quase por graça,
mandaram-me este livrinho minúsculo, de 12 por 10 centímetros, que é
fácil de mandar pelo correio. E fascinou-me.

Não é o Mapplethorpe habitual. — Não é, não... e é. Se quisermos olhar


com frieza, também é.

A obra melhor conhecida é mais clássica, pela elegância formal, e também


mais sensual, com uma carga erótica mais forte, que nestas flores não está
presente. — Não é tão presente..., embora certamente lá esteja. Senti que a
cor era uma concessão (até posso estar errado, mas pareceu-me...) e não é
por acaso que decidi ser eu a fotografar as esculturas para o catálogo, a
preto e branco. Achei que seria assim que o Mapplethorpe faria, se lhe

20
tivesse pedido para fotografar estas flores. É quase inconcebível que ele
chegasse aqui e dissesse: ah não, a cor é que é!

Mas as esculturas são a cores. — São. As esculturas são a cor, mas a maior
parte dos grandes fotógrafos trabalham a preto e branco, e a cor é uma
concessão. Os grandes autores disseram que o trabalho que fizeram a cores
foi uma gracinha, uma experiência ou uma concessão ao gosto do mercado.

O que é que o fascina na obra do Mapplethorpe? — A imagem. A imagem


da luz. São imagens fabulosas, em que me interessa relativamente pouco
saber o que são, se um braço hercúleo de um negro, um falo, um nu... São
as formas que são lindas, a definição e a maneira como ele olhou através da
objectiva. Fascinaram-me, quase todas.

Os artistas actuais confrontam-se com interditos e rejeições: parece haver


coisas que já não se fazem ou não se devem fazer. O encontro com as flores
fotografadas pelo Mapplethorpe autorizou-o a afirmar mais
arrogantemente as suas flores? — Não, não. Isso não me passou pela
cabeça. Eu já as fazia há décadas. Não me veio dizer: afinal, pode-se fazer
flores. São as que ele fez daquela maneira que me impressionaram e, além
disso, acho que a fotografia é a mãe das artes visuais, embora tivesse sido
inventada só há 150 anos. A intenção da criação artística visual é sempre
uma forma de fotografia: gravar uma imagem que recebe luz e com ela
ficarmos na posse de uma prova. Essa é a origem de todas as artes visuais.
Depois, a maneira técnica de o fazer só foi descoberta em meados do
século passado.

Esta exposição é também uma homenagem à fotografia. — Sim, de certa


maneira, mas neste caso muito específico é uma homenagem ao
Mapplethorpe.

Quem procurar nestas flores a imagem habitual do Mapplethorpe, a sua


afirmação mais sensual, terá uma surpresa. — Sim, e a surpresa deve ser
dupla. As pessoas que vêm a Évora ver uma exposição minha que se chama
«Flores - Homenagem a Mapplethorpe», vêm certamente disparados à
espera de encontrar o carnal dele e o carnal meu... e encontram salada.

Porquê a extrema elegância ou leveza destas flores, com uma sensualidade


tão discreta? — Talvez as primeiras que eu tenha feito fossem mais carnais
e sexuais, mas depois, com os anos, uma pessoa deixa de ter essa
necessidade de ser tão óbvio. A maior parte das flores, sejam elas mais
exóticas (as que não são de cá) ou as que se encontram na Primavera em
21
qualquer canteiro, não deixam de ser imagens fascinantes. Uma jarra com
flores pode ser uma coisa que nos vem enriquecer; quando se entra numa
sala, às vezes elas não se notam, mas estão lá e emprestam-nos várias
sensações.

Tornou-se difícil, ao escrever sobre arte, falar de beleza, e estas flores


confrontam-nos com essa dificuldade, que em geral é recalcada. — Acho
que se recalca de uma maneira estúpida. O crítico ou o escritor sobre arte
que recalca a palavra beleza está, afinal, a realçá-la num outro gosto. Há
quem diga que salmão fumado sabe a peixe cru, que presunto é carne de
porco a saber a fumo... se a gente não gostar. Se gostar, é a mesma coisa,
mas encontram-se palavras mais agradáveis para o dizer. Tenho a
impressão que o belo ficou de tal maneira associado à lata de bolachas que
é preciso repensá-lo, mas reutilizar a palavra. Negá-la é que não pode ser,
porque se não passamos a dizer que eu gosto é do feio, e portanto o feio é
belo... e não saímos daí.

Estas flores, pela sua escala, pela fragilidade aparente do mármore e do


bronze, levam a um ponto limite uma situação de quase indistinção entre as
esculturas e as flores reais. E as desfocagens das suas fotografias mantêm
essa indeterminação sobre se é flor ou escultura. — Faz parte de meu
gozo. É o gozo do artista. Toda a história do «trompe l'oeil» é o gozo do
artista, o gozo de nos podermos dar ao luxo de fazer as coisas assim. Se
calhar não vai ser muito importante, no futuro, mas foi-o na altura em que
as fiz. Como dizia o Pessoa, «era então feliz, não sei, fui-o outrora agora».
Foi importante para mim fazer as coisas suficientemente dúbias para que a
certa distância não se tenha a certeza se o que eu estou a desenhar ou a ver
é uma flor ou uma escultura. Aliás, na exposição com as estrelícias que fiz
no Porto, há um ano, tinha um vaso com duas flores secas que tinham
exactamente a mesma cor das estrelícias em bronze e a alguma distância
não se sabia exactamente qual era qual.

É uma forma de recolocar de uma forma muito crua e forte as questões da


imitação e da cópia da natureza, de algum modo tornando claro que a
cópia não é uma reprodução do que já existe. — Os ingleses têm uma
palavra (e nunca encontrei nada que a pudesse substituir), que também faz
parte de uma das teorias da história da arte do Hellmut Wohl [autor de um
dos textos do catálogo]: todos os grandes artistas começaram por ser
conhecidos pela sua maneira de «to render nature» – «to render»,
transmitir... dar, mas não é copiar a natureza, nem é criar uma nova coisa, é
interpretá-la. Se for jantar a casa duns amigos e lhes levar uma flor em
22
pedra e bronze ela está a cumprir exactamente o mesmo efeito que uma
rosa mesmo, com a vantagem de durar, e isso para mim é importante, as
flores acabam por secar ou apodrecem e as de pedra não. Têm essa
vantagem.

São mais perfeitas? — São mais duradouras.

Têm a perfeição da durabilidade. — O que não é necessariamente uma


grande perfeição.

No caso destas flores partia de uma natureza já reinterpretada. — Quando


comecei, tirei algumas fotocópias do livro do Mapplethorpe para ter no
atelier para copiar, para partir daquelas flores, mas depois começou a
suceder outra coisa: a Margarida ia pondo numa jarra aqui na sala, frente ao
meu sítio de desenho, as flores do nosso jardim e algumas compradas, que
vieram enriquecer enormemente o património da exposição. Confesso que
muitas vezes não sei dizer agora qual é a origem, se é o nosso jardim ou o
livro do Mapplethorpe.

Há também flores imaginárias, que podem recolocar de outro modo o


problema da cópia ou interpretação. —Talvez. Há algumas imaginárias,
mas são menos do que parece. E já me aconteceu «n» vezes eu fazer uma
flor que não é real e depois encontrá-la, igualzinha, já feita, num qualquer
canteiro de jardim. De forma que é melhor sairmos desse campo. O facto
de em geral não terem nome também é um pouco secundário. Houve uma
certa pressa e eu não podia garantir que não havia erros; o «sem título» é a
solução que os artistas de hoje adoptam e eu estou-lhes muito grato.

Ainda continuava a fotografar, ou sentiu agora a necessidade de voltar à


fotografia? — Senti, pela primeira vez desde há muitos anos. Eu fotografo
as minhas coisas para arquivo e não tenho qualquer outra preocupação
senão a de, daqui a uns anos, olhar para o slide e identificar a escultura. Há
uns tempos para cá recomecei a fotografar o mesmo que sempre gostei de
fotografar, que são as pessoas, voltei a fazer retratos, e quando se
aproximou esta exposição das flores em homenagem ao Mapplethorpe,
apeteceu-me muito ser eu a fazer as fotografias. É a pescadinha toda, com o
rabo todo na boca.

Sei que encarou esta exposição de um modo diferente, que a quis fazer num
museu e não está à venda. — O facto de querer conservar estas obras – que
cabem todas em cima de uma grande mesa de jantar que tenho em casa, de
forma que é muito fácil ficar com elas – levou-me a escolher uma
23
instituição, que não precisa de vender para justificar o acto de expor. Não
me apetece vendê-las, ...por enquanto, pelo menos. Apetece-me ter um
canto da casa onde elas estejam juntas. Esta é a exposição mais completa
que eu fiz, completa desde a coerência das peças, à iluminação, ao
catálogo, às fotografias, tudo isso é uma unidade, é uma bola, e daí talvez
uma das razões porque não me apeteça vender. E, no entanto, se alguém de
fortes poderes económicos, que não um galerista, me viesse propor a
compra da totalidade, para a manter como tal, era já. Não é tanto a questão
de ficar a viver com elas, é mais a garantia de que elas não se separam.

Partir da obra de outro artista é uma coisa que muitas vezes não se
confessa. — Com a educação museológica que tive, lembro-me do Picasso
as fazer as Meninas, do Bacon a fazer o Velásquez. Quando se chega a um
determinado estatuto, deixa-se de se ter inibições de ir roubar aos outros
descaradamente, e um tipo faz o que o outro fez à nossa maneira. E dá
muito gosto assim.

Mundos paralelos
«Macho—Fêmea», Centro Cultural e de Congressos de Aveiro, Expresso/
Cartaz 29 Abril 2000, pág. 18

O corpo na escultura de João Cutileiro. “Macho — Fêmea”

NA SEGUNDA exposição de um ciclo denominado «Arte do Século»,


inaugurado com Júlio Resende, a Câmara de Aveiro apresenta a escultura
de João Cutileiro sob uma inédita abordagem temática. Mostram-se os seus
«Guerreiros» mais recentes, uma série homogénea de 27 peças de 1998/99,
outros tantos corpos femininos, muito diversificados nos formatos e no
tratamento formal, distribuídos por vários anos de trabalho (1993 a 1997,
com uma ou duas excepções pontuais), e ainda, isolada, uma escultura de
maior vulto, Leda e o Cisne, 1996, de placas de mármore recortadas, como
sucede noutras obras monumentais dos últimos anos (o Lago das Tágides,
por exemplo).

24
Sob o título «Macho — Fêmea», a exposição não é exactamente um
sumário antológico que sistematize a relação da escultura de Cutileiro com
a forma humana, até porque se trata apenas da exibição de obras recentes.
No entanto, a configuração temática do projecto, montado em dois espaços
autónomos e comparativos, é indicativa de algumas das linhas que
atravessam a sua obra e, desde logo, de uma diferenciação radical na
abordagem dos dois sexos.

É rara a presença do corpo masculino na escultura de Cutileiro, para além


dos retratos simbólicos, como D. Sebastião e Camões, da sua metamorfose
na figura compósita do cavaleiro, de alguns torsos escassos e de genitália
avulsa, embora o corpo do homem também tenha comparecido como
parceiro em algumas situações mais directamente sexualizadas, figurações
de cenas de amor. Explicitamente associada a criação escultórica à energia
sexual e esta ao prazer, resta constatar a preferência do alvo feminino.

Por outro lado, o homem surge desde muito cedo na sua escultura
subordinado ao tema do guerreiro, logo em 1963, em blocos únicos de
cimento fundido ou poliester, e também muito mais tarde em peças de
grande porte, construídas por empilhamento e «assemblage» de blocos de
pedra. Não são nunca figuras complementares ou simétricas dos corpos
femininos, nem são mesmo reconhecíveis como formas orgânicas, que são
sempre imediatamente sensuais na sua escultura. Emblemas do poder e da
autoridade nas suas poses hieráticas, também nunca são figuras heróicas e
talvez se devam entender apenas como fantoches, espantalhos, bonecos
articulados mais patéticos que ameaçadores, efígies absurdas de uma ordem
absurda do mundo. Na sua configuração mecanizada de «robots»,
artificializando-se o corpo e a sua energia no invólucro da armadura, esses
Guerreiros é de desumanização e violência que falam.

Ao contrário das peças monumentais mostradas no CAM, em 91


(«Recordações de Guerra»), e em Cascais, em 94, na «Apresentação da
Rainha» (D. Leonor, entre Sentinelas, Cruzados e Guerreiros), a nova série
é sempre de um aparente pequeno formato, embora essa ilusória aparência
resulte da construção quase filiforme e das pequenas dimensões dos
fragmentos associados, uma vez que em diversos casos as esculturas se
elevem até perto dos dois metros. São agora guerreiros domésticos, uma
infantaria arcaizante e patética de um tempo em que guerras maiores se
travam com bombardeamentos aéreos seguidos pela televisão e outros
jogos de guerra se consomem como diversão em ecrãs virtuais.

25
Torso branco, 1993

26
Estas figuras guerreiras parecem saídas de «kits» de montar, com os seus
módulos aparentemente idênticos (talvez encontrados, talvez feitos em
série), com os parafusos que lhes articulam o tronco e os membros e os
adereços bélicos. Os mesmos pequenos cubos de pedra sobrepostos
constroem as pernas desmesuradas ou o torso breve, que noutros casos se
sustenta em réguas também de pedra ou em tubos de latão. Pequenos
blocos perfurados (as cabeças ocas e cegas), discos e volumes cilíndricos,
fragmentos irregulares, possíveis desperdícios recortados que terão sobrado
de peças ornamentais, articulam-se em formas infinitamente variáveis, num
jogo de colagem ou «assemblage» que é aparentemente ocasional mas, de
facto, rigorosamente controlado, como se comprovará sujeitando cada peça
a uma observação que a circunde e que atente às suas sombras projectadas.
Aliás, esse mesmo jogo de sombras, que amplia a escala dos fragmentos,
propiciará um diferente olhar sobre as peças articuladas, isolando volumes
e destacando neles a sua qualidade formal «abstracta».

Construções lúdicas e experimentais quanto aos processos construtivos,


objectos únicos e múltiplos, na aparente variação de um vocabulário
predefinido, estes novos Guerreiros são fabricados com uma pedra
cinzenta, porosa nas superfícies cortadas ou brilhante e quase negra nas
faces polidas, que tem por nome próprio Diorito anfibulógico de Sever do
Vouga. Figuras esquemáticas de frágil verticalidade, de virilidade retórica,
desumanizados e vulneráveis na sua arrogância patética, eles não são
personagens de qualquer guerra de sexos. São vestígios risíveis de uma
desordem absurda do mundo e dos homens.

Se destes machos e fêmeas reunidos em Aveiro só as mulheres têm corpo,


deve ver-se que têm também rosto, quase sempre, e por vezes nome próprio
(Filipa, Isabel), desarmadilhando a vigilância sobre qualquer incorrecta
coisificação voyeurista como meros (?) objectos do desejo. Não são corpos
abstractos nem idealizados, e multiplicam-se individualizando diferenças,
identidades e situações, mesmo quando assumem sentidos alegóricos, como
a fonte, ou retomam configurações já experimentadas por Cutileiro, como
as figuras bífidas. Sem serem retratos, povoam um mundo humano,
inteiramente terreno e próximo, onde a ambição da arte não é a procura das
essências ou dos paradigmas.

À homogeneidade dos Guerreiros sucede a diversidade de um vocabulário


construtivo que intencionalmente se distancia de uma síntese conclusiva,
como que para manter vivo um leque largo de possibilidades ou direcções:
meninas e mulheres, figuras articuladas ou esculpidas de um bloco único,
27
deitadas ou erguidas, torsos e, em muitos casos, íntimas situações
quotidianas, surpreendidas com a agilidade de desenho. Em vez da procura
de uma solução ideal e finalista, eventualmente através da redução de
meios ou de formas, ou perseguindo qualquer arquétipo da feminilidade,
trata-se sempre de adicionar processos de representação, de multiplicar a
criação, e de procurar a frescura de um primeiro achado em cada objecto
fabricado, reinventado.

A produção quase serial, retomando modelos já experimentados e


introduzindo variações circunstanciais, a dimensão artesanal viabilizada
pela adopção de meios tecnológicos avançados e pela invenção de
processos construtivos mais rápidos e económicos, assumem no trabalho de
Cutileiro uma dimensão maior de resistência à extinção de um campo que,
abandonada a vocação comemorativa e consumida a especulação formalista
até ao nada, se interroga sobre as suas condições de continuidade.

Mostrada no novo Centro Cultural e de Congressos instalado na antiga


fábrica de cerâmica que ainda ostenta o nome de Jeronymo Pereira Campos
e Filhos (1896/1916), a exposição foi comissariada por Fernando Pernes e é
acompanhada por um álbum (talvez excessivamente luxuoso e, numa
primeira tiragem, com deficientes reproduções), que inclui textos de
Fernando Pernes, João L. Pinharanda e José-Augusto França.

A prisão e o voo
 «Pássaros», Museu do Traje, Expresso/Cartaz, 3 Agosto 2002

Uma escultura instalada no parque e «Pássaros» no museu


 
O acontecimento é duplo e independente, com inauguração simultânea e
um discreto traço de ligação, talvez ocasional. No Parque do Monteiro-
Mor, a grade de ferro da Janela de Soror Mariana, monumento instalado
em permanência, doado pelo autor para o projectado jardim de esculturas.
No museu, o voo dos pássaros, metáfora da liberdade que o amor da freira
de Beja não podia ter.

Réplica exacta da janela gradeada que no Convento de Nossa Senhora da


Conceição se aponta como a da cela de Mariana (embora a ala original já

28
não exista), recriada com a moldura de pedra, esta prisão não se vê de fora
ou de dentro, não exclui. Aprisiona o observador que livremente a circunda,
olhando através das grades, porque a liberdade que se limita nos torna a
todos menos livres. A evocação da figura histórica torna-se partilhada
experiência física e prolonga-se num sentido actual.

No museu, centenas de aves brancas povoam uma parede de placas de


mármore rectangulares ou quadradas, de diferentes dimensões e
irregularmente dispostas, numa instalação inicialmente concebida para o
hall de entrada da empresa Navegação Aérea de Portugal. Sobre o suporte
liso brilhante do mármore (preto, cinzento, terra, verde, raiado de branco),
em relevos colados em cada uma das 82 placas, voam os pássaros,
solitários, em pequenos grupos ou em bandos. Construídos com fragmentos
toscos de pedra ou minuciosamente recortados, de dimensões muito
variáveis, por vezes apenas dois ou três centímetros, deixam adivinhar o
gozo de uma paciente laboração manual, quase bordada, numa escala
íntima e alternativa à dimensão monumental, que se reencontra,
paradoxalmente, no efeito de conjunto da parede. De asas abertas, com a
elegância alongada dos corpos em voo, elevam-se nos céus de pedra de
cada uma das placas, todos diferentes.

O destino decorativo, claramente assumido como uma das razões


necessárias da escultura (e mais ainda quando o propósito da evocação ou
da homenagem é judiciosamente ponderado pelo artista), não limita aqui a
invenção de uma solução escultórica inédita nem a intensidade poética das
formas, na figura do pássaro e na imagem do voo, em que sempre residem
sugestões de liberdade, de evasão, de paz, de elegância e de graça. É com
necessidades vitais que lida o trabalho do escultor e também com a
afirmação da humildade sábia do seu labor artesanal, alcançada pela
maturidade da criação. E ainda com o humor, se lembrarmos que este voo
de pássaros deveria dialogar, na sua projectada instalação, com as máquinas
da navegação aérea.

Na mesma sala do andar térreo do museu, outros pássaros, certamente mais


pombas, esperam o visitante, só aparentemente imobilizados no seu
esvoaçar de pedra, o corpo torneado que se eleva em voo, as asas já abertas,
sobre blocos brutos e irregulares, também ascendentes, ou que neles pousa,
vigilante, suspendendo por um instante o movimento. Outros pássaros de
Cutileiro já tinham assim pousado sobre folhas de piteira, fontes e flores;
outros corpos alados, por vezes de pássaros, já tinham explorado a tensão
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entre a forma recortada e polida e o bloco tosco de que parece sair e a
sustenta; outros ainda, de mulheres miniaturais, monumentalizavam-se
sobre pedras rudemente talhadas e erguidas. Mas são sempre novos cada
um destes oito pássaros, reunidos num conjunto único, construídos por
«assemblage» de blocos de mármore (branco, rosa ou preto), com os seus
corpos esbeltos e as longas caudas, erguendo-se sobre as pedras
empilhadas, multiplicados por um escultor que povoa o mundo com as suas
criaturas.

Um centro periférico
“Lagos, Anos 60-80”, Centro Cultural de Lagos, Expresso/Actual 23
Julho 2005, pág. 40

Memórias de Cutileiro, Bravo, Lapa e Palolo em Lagos

Se os anos 60 foram por toda a parte um tempo de transformações e


rupturas artísticas, cortando com algumas tradições modernas e com
memórias das guerras da primeira metade do século, Lagos foi um dos seus
pólos portugueses. Parte decisiva da arte nacional fazia-se na emigração e
outra, em paralelo, com os efeitos duma circulação exterior muito mais
intensa, em grande parte permitida pelas bolsas da Gulbenkian. Entretanto,
alguns artistas fixavam-se no isolamento do Algarve, sem deixarem de
disputar a presença pública nas exposições de Lisboa e sem interromperem
uma intensa busca de informação internacional.

A estada de João Cutileiro, Joaquim Bravo, Álvaro Lapa e Palolo em Lagos


é o tema duma exposição que João Pinharanda organizou para o respectivo
Centro Cultural, evocando um período que, segundo o comissário,
«podemos considerar ‘heróico’ na vida cultural-artística» da cidade. Mais
do que uma celebração, oportunamente integrada no programa
descentralizado da Capital Cultural de Faro, trata-se de um projecto que
visa «enquadrar crítica e historicamente um período de intensa e
significativa produção na obra de cada um», avaliando também o sentido
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colectivo dessa presença em Lagos. Ao propor-se «pensar a cidade como
centro receptor e difusor de ideias», no período específico das décadas de
60 e 70, João Pinharanda não deixa de ter presente que outros artistas
foram atraídos a Lagos ao longo dos anos 80, em grande medida pela
personalidade expansiva de Bravo, e que algumas linhas de continuidade se
observam através das bienais aí organizadas nessa mesma década e depois
na actividade expositiva do próprio Centro Cultural, que foi inaugurado em
1993 e é agora novamente orientado por Xana, fixado em Lagos desde
1984.

Não é exactamente de um grupo que se trata, embora entre os traços


comuns avulte a origem de todos em Évora. Ou então poderá dizer-se que o
grupo é bicéfalo, considerando-se o itinerário específico de Cutileiro e a
evidente associação entre Bravo, Lapa e Palolo. O escultor alugou casa em
Lagos em 1959, ano em que termina o curso na Slade School de Londres,
começando a viver em «navette» entre os dois lugares, por períodos de seis
meses - em antigas entrevistas, falava do «pequeno paraíso na terra» que aí
tinha descoberto, mas dizia precisar do meio ano londrino para «carregar
baterias». Em 1970 instalou-se em permanência, e mudou-se para Évora
em 1985, mais próximo das pedreiras onde procurava os mármores, já
quando o crescimento turístico degradara o «paraíso».
 
Joaquim Bravo fixou-se em Lagos em 1966, dividindo a ambição artística
com outros trabalhos, e foi professor de Inglês no liceu, até à morte em
1990. Com uma primeira exposição em 1964, fizera entretanto uma
frustrada emigração alemã como intérprete numa base norte-americana. Foi
ele que atraiu a Lagos Álvaro Lapa, que aí viveu entre 1966 e 71 e, entre
viagens, em 72-73, e também Palolo, que fez longas permanências de
Verão, entre 1966 e 74, em casa de Bravo. É importante que todos eles
tivessem percursos autodidactas (os dois primeiros com aprendizagens com
António Charrua, em Évora), o que, para além de caracterizar as suas
obras, desde logo os afastava do acesso às bolsas da Gulbenkian, e todos
foram igualmente expostos pela Galeria 111 em início da sua actividade,
por iniciativa do escultor Fernando Conduto. Só o mais novo, Palolo, teve
imediato êxito comercial e crítico, identificado com as referências neo-
figurativas e pop então afirmadas.

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Num contexto de intensas circulações e actualizações europeias, que então
alargam a Londres e à energia dos «sixtie’s» a mais tradicional formação
parisiense, o grupo dos pintores de Lagos diferencia-se por fazer, do
interior, uma viragem para a informação norte-americana, num caminho já
entretanto aberto por Charrua e António Areal. É um acesso quase sempre
indirecto e muito acelerado, que concentra o efeito súbito de Pollock, a
prolongar automatismos psíquicos vindos do surrealismo, com imaginários
«beatniks» e a admiração por Motherwell, e por via dele com um universo
intelectual que inclui John Cage e o budismo Zen, a que se seguiam já as
rupturas de Jasper Johns e Rauschenberg, obviamente visíveis nas obras
expostas de Palolo.

Ao associar os trabalhos dos quatro artistas, ao mesmo tempo que se


demarcam núcleos próprios de cada um, a exposição opta no caso de
Cutileiro por focar em especial a sua produção mais antiga, antes da
viragem para o trabalho do mármore, com a descoberta decisiva das
máquinas eléctricas de corte e polimento que tornaram a escultura em pedra
profissionalmente viável e permitiram inventar novos caminhos de criação.
A primeira dessas peças foi A Menina da Máquina, de 1966, e o D.
Sebastião de Lagos é de 1973. Antes, o escultor trabalha com o ferro
soldado e materiais moldados, cimento fundido e poliéster com pó de
bronze, numa figuração que conserva uma dramaticidade de sentidos
(corpos sujeitos à erosão e à ruína) até à explosão de vida e erotismo dos
mármores.

Quanto a Bravo e Lapa, a escolha das obras dirigiu-se para o apontar de


algumas relações figurativas com o real envolvente, em raras peças mais
íntimas do primeiro (barcos presentes em colagens) ou na tensão entre a
forma identificável e a abstracção construtiva, apresentando depois um todo
coerente de trabalhos de pesquisa formal geometrizante, enquanto do
segundo se propõe expressamente a identificação do lugar e da
representação (a praia, a falésia, a casa, o mar, os pássaros) como
elementos determinantes no desencadear e na interpretação das obras,
embora sem que em qualquer caso esta oportuna linha de observação

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apareça a sobrepor-se ao universo das questões literárias e formais
presentes nos seus trabalhos.

«Pedras na Praça. Arte Pública de João Cutileiro», Castelo de


São Jorge, Sala das Colunas, Expresso/Actual 18 Novembro 2006
MAQUETAS (estudos em pedra de pequeno formato para obras
construídas; singulares ou diversos, por exemplo, cinco para o
Guerreiro, de 2002, para Almourol, e três para o Afonso Henriques,
2001, de Guimarães; um desenho para o São João, 2000, da Ribeira do
Porto) e, ao lado, fotografias das peças instaladas, de Nuno Fevereiro.
Mais um catálogo com um estudo atento e informativo de Joaquim
Oliveira Caetano. A mostra, que inclui o D. Sebastião de Lagos, o D.
Sancho I de Torres Novas, a Inês de Castro da Quinta das Lágrimas,
Coimbra, o São Sebastião que está também em Torres Novas, o
Monumento ao 25 de Abril, no Parque Eduardo VII, a Batalha Naval
de Macau, etc. (1972-2004), estreou-se no Museu de Silves em 2005 e
tem andado em itinerância. É um desmentido eficaz das doutrinas que
por aí se ensinam sobre a «história do falhanço» que seria a relação da
escultura moderna com o monumento e o monumental, e, também
segundo Rosalind Krauss, sobre a inevitável história da «dissolução do
escultural». São as estátuas de Cutileiro que vão ficar, como magníficas
raridades, não o academismo que impera nos salões de hoje e afecta as
escolas.  

JOÃO CUTILEIRO (1937 - ) – Nasceu em Lisboa e iniciou-se muito cedo como


escultor. Das Belas-Artes da capital passou à Slade de Londres, só regressando
definitivamente em 1970, para se instalar em Lagos (em 85 mudou-se para
Évora). Depois de experimentar materiais diversos, do ferro à fibra de vidro,
revolucionou a escultura em pedra com o emprego de máquinas eléctricas de
corte e polimento. O corpo feminino (torsos e figuras bífidas) e a afirmação do
erotismo têm um lugar central no seu trabalho, mas os guerreiros, as maquetes
de estátuas equestres, as árvores e flores constituem outros capítulos de uma
vasta obra consagrada desde os anos 60. O D. Sebastião, de 73, acabou com a
estatuária tradicional e o Monumento ao 25 de Abril, de 97, voltou a gerar
polémica. (de um dicionário)
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