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CAPÍTUL0 3

O CENÁRIO CULTURAL
PARA AS ORIGENS DA FILOSOFIA

s origens da filosofia e da ciência ocidentais remontam


A à cidade jônica grega de Mileto, na costa do Egeu, na
Ásia Menor, nos primeiros anos do século VI a.C. Acredita-se
que Tales de Mileto, a quem Aristóteles chama ·~o fundador des-
se tipo de filosofia", 1 previu um eclipse do sol que ocorreu em
28 de maio de 585, e Anaximandro e Anaxímenes, seus concida-
dãos, mantiveram uma aparentemente ininterrupta tradição até
o final do século VI ou início do V. A abordagem distintivamente
milesiana foi igualmente buscada nos séculos VI e V por filósofos
que, embora não sendo provenientes de Mileto, inclinavam-se a
ter ligações jônicas, notadamente Anaxágoras e Demócrito. (A
Jônia é a região que compreende a parte central da costa ociden-
tal da Ásia Menor.) As questões postas por esses homens, assim
como suas respostas, são mais propriamente tema da ciência que
da filosofia, tal como concebemos esses campos, mas suas es-
peculações estimularam outros a suscitar o que reconhecemos
como questões filosóficas, e suas atitudes e métodos intelectuais
foram adotados por pensadores que perseguiram tais questões
sob uma perspectiva filosófica.
Mileto e outras numerosas cidades gregas nas ilhas do Egeu
e na costa ocidental da Ásia Menor foram estabelecidas por volta
d0 ano 1000 a.e., após o colapso da cultura da Idade do Bronze

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! Veja 4.8.
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fundaram coI0111as, raoto rsar o excesso popu aciona . ais co-
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inancntes quan pa to dores da costa do Mar Negro,
l cidas nos arre . "
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lónias foram e a e e . , .· lh ures no litora
,1· d S1c1lta e a
,. . Mileto converteu -se em uma
ª s co1omas
no sul da Ita 1ª.e , mera
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Fundadora e mu , era ativa na navegação, no co-
'd d inente e prosp '
comum a e proem . d fr do de relações com erciais com
, · · dústna es
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merc10 e na ' Ne ro à Sicília, e com civilizações
outras cidades gregas do Mar g " . l'
1a e os povo s 1-
não gregas, nota dan1en e t O Egito a Mesopotam
'
dios continentais da Ásia Menor. .
. (plural·· poleis) ' uma e1dade-estado,
Mileto era uma PollS
nem pais , nem naça-0 , em qualquer acepção moderna . A Gréci. a
não existiria nem como entidade política nem como conceito
ainda por um longo período de tempo. Os milesianos comparti-
lhavam com outros gregos a língua, a estrutura social e a heran-
ça cultural que, frouxamente, pode ser chamada homérica, visto
que aceitavam os épicos orais que conhecemos como Ilíada e
Odisseia como sua própria tradição e reconheciam os deuses do
Olimpo. Muito da vida cultural e política de uma polis estava sob
seu próprio controle.
A sociedade de Mileto era aristocrática e secular. Diferen-
temente das civilizações mais remotas e culturalmente mais
prestigiosas do Egito e da Mesopotâmia, os gregos inclinavam-
-se a manter suas instituições religiosas separadas das questões
administrativas e militares. Havia cultos e práticas religiosas
estatais, porém boa parte da atividade religiosa dava-se no ní-
vel familiar ou de outros grupos sociais no interior da polis.
ou mesmo transcendendo-a. Ademais, ao contrário de outras
civilizações, os gregos não dispunham de textos sagrados ou
de uma classe oficial de sacerdotes hereditários e profissionais,
muito menos de um monarca divino, ao estilo egípcio. As prá·
ticas religiosas variavam de local para local e de indivíduo para
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.....1111
A P11.,osoFIA ANTES DE Sóc RATE'5 ... ._
. 'duo. Ainda que os épicos homérico s fossem .
jJldivt . , . propnedad e
de todos os gregos, as historias ali contadas a d
comUrn . _ cerca . os
m a condiçao de dogma nos quais • todos
deus es não alcançara
·arn ou eram compelid os a acreditar. Nessa medida . , a afir-
dev1
rnação de que Homero era a bíblia dos gregos é equivocada.
Em verdade, possivelm ente no próprio Homero, e certament e
.-t'\Hesíodo, aproxima damente contempo râneo de Homero ,
C11i

encontramos uma atitude especulat iva com relação aos deuses


que vai em direção oposta à do dogma.
A extensão da autoridad e política a uma classe aristocrática
demandava cooperaçã o e discussão. Códigos de leis escritas, tam-
bém, introduzid os nesse período, requeriam argumento s funda-
mentados. Casos perante a lei seriam, em princípio, vencidos ou
perdidos dependen do de se estabelece r e de se demonstra r que
os fatos do caso quadrava m com as leis ou delas divergiam. Em
prinápio, as decisões não seriam tomadas em bases arbitrárias e
pessoais, antes em consonân cia com critérios racionais. Em que
medida tais princípios eram levados a cabo na prática é outra
questão. Ainda assim, a existência de princípios enquanto prin-
cípios teria exercido alguma pressão nos casos de fato e dispo-
nibilizado um ideal ou um padrão que poderia ser aplicado em
outros casos.
O contato com o Egito e a Mesopotâ mia teve poderosos
efeitos, clarament e visíveis na arte "orientaliz ada" dos séculos
VIII e VII, bem como em algumas das ideias e descobert as atri-
buídas aos filósofos de Mileto. Diz-se que alguns dos primeiros
filósofos gregos aprender am com os sábios do Oriente - evidên-
ci~ de que os gregos do período eram abertos a ideias de eStt~n-
geiros, embora nunca as tenham simplesm ente copiado, mas sim
adaptado elemento s estrangei ros e os tornado seus. Esse em-
, . h d0 . pel
pre~tuno adaptativ o pode mesmo ter desempen ª um pa ·
decisivo no surgimen to da ciência e da filosofia gregas. . ,
. a filo-
Por que razão o tipo de mvesugaç . -ao que· conduziu
sofia e à ciência teve início no século VI em Mileto é al~o que
r 1
Prova·..ve . definitiva · Diversos
mente continuar á sem uma respo5ta
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-··
fatores foram indub itavel mente releva ntes: a relativa liberdade
de pensa mento (incluindo o pensa mento especulativo) e de ex-
pressão possíveis na ausên cia de uma religi ão e de uma adminis-
tração mono líticas e centra lizada s; uma acum ulaçã o de riqueza
suficiente para prove r a algun s o ócio neces sário para o pensa-
mento especu lativo ; o fato de que a alfabe tizaçã o não estava con-
finada a certa casta da popul ação e a propó sitos burocráticos; as
origens da prática de alcanç ar decisões por meio de discussão
(seja em debates públicos ou em discussões entre grupo s fecha-
dos de aristocratas ) condu zida em confo rmida de com princípios
racionais; o conta to com diversas outra s cultur as e a abertura
para ideias estrangeiras. Recen temen te, o adven to da cunhagem
tem sido propo sto como uma influência impor tante. 2
Uma vez que tais circunstâncias sociais, econô micas e políti-
cas foram encon tradas igualm ente em outra s cidades gregas , re-
sulta que são insuficientes em si mesm as para explicar a origem
da filosofia e da ciência em Mileto. Nem a opiniã o de Aristóteles
- segundo a qual as pessoas encon tram~se em posiçã o para es-
tudar filosofia apenas quand o suas necessidades práticas estão
resolv idas e, ainda, dispõe m de tempo livre para a especulação3
- apont a exclusivamente para Mileto, entre as cidades gregas,
como o ponto de partida do pensa mento teórico. No presente
caso, a razão decisiva para a orige m da filosofia e da ciência é
que indivíduos com os interesses e vigor intele ctuais de Tales,
Anaximandro e Anaxímenes nasce ram e cresce rem em Mileto
sob condições que permi tiram que seus gênio s expressassem-se
de certos modo s.

2
Seaford (2004, Capítulos 9-13).
3
Aristóte les, M(tajisica 1.1 98Jbl 3-25 (não em DK).
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