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Minorias, lugar de fala e direito à comunicação na mídia: entre o ativismo pela cidadania e a mercadorização de pautas sociais

Minorias, lugar de fala e direito


à comunicação na mídia: entre
o ativismo pela cidadania e a
mercadorização de pautas
sociais
Chalini Torquato
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Comunicação, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-2021-7795

Resumo
A diversidade tem se tornado pauta cada vez mais recorrente
nos conteúdos apresentados pelas mídias massivas. Na tentativa
de avançar numa observação crítica deste debate, busca-se
indagar: estariam finalmente as pautas sociais de grupos
minoritários encontrando eco na produção televisiva brasileira,
ou seria este fenômeno nada mais do que mais uma apropriação
desses temas como parte do processo de ‘mercadorização’ já
tão conhecido pela literatura da Economia Política da
Comunicação e da Cultura? Para responder a essa questão, o
artigo parte de uma revisão bibliográfica sobre mídia,
diversidade, valores democráticos e as lutas identitárias
contemporâneas. Explana-se, em seguida, as lógicas estratégicas
do mercado de TV privada para, então, se discutir exemplos
práticos contemporâneos de representatividade não-normativa
na TV, trazidos por outras pesquisas, que apontam a
necessidade de se refletir sobre quem constrói essas narrativas.
Constata-se a propensão que a lógica de mercado tem em se
apropriar dos movimentos que deveriam ser contra-
hegemônicos.

Palavras-chave
Diversidade. Minorias. Televisão. Mercado de TV. Lugar de fala.

1 Introdução
Há muito se fala da necessidade de rever a regulamentação da televisão brasileira na
busca de um modelo midiático mais democrático e inclusivo. Décadas de pesquisas na área e
de militância dos movimentos em prol democratização da mídia trouxeram grandes

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Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 52, e-104996, 2021.
DOI: preenchido posteriormente pela equipe da revista
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contribuições para a percepção sobre a defasagem da estrutura midiática brasileira,


especialmente no que se refere ao setor de TV aberta, majoritariamente controlado pela
iniciativa privada, num modelo concentrado e incapaz de promover o crescimento
sustentável de conteúdos públicos e alternativos. Pelo contrário, historicamente temos visto
a perseguição e o esvaziamento desses modelos diante do público enquanto, paralelamente,
a regulação ineficiente do setor se torna uma condição problemática crônica, refletindo
complexas relações clientelistas, e sendo a reprodutora fundamental de uma mídia que
tradicionalmente privilegia determinados pontos de vista em detrimento de outros
(TORQUATO, 2014).
Grupos sociais excluídos da produção de conteúdo na mídia tradicional, no entanto,
têm fortalecido sua luta por reconhecimento, especialmente apropriando-se de ferramentas
de comunicação online. Os movimentos ativistas, como os feministas, LGBT e negro, por
exemplo, tem construído formas de questionar privilégios hegemônicos sobre
representações normativas de mundo e disputá-las. Embora não se tratem de movimentos
novos, eles se reorganizam, especialmente no ambiente digital, encontrando adeptos e
fortalecendo-se na crítica aos conteúdos midiáticos diante da opinião pública (CARROL;
HACKETT, 2006). Se essa lógica já encontrava adesão em públicos segmentados, atualmente
é relevante notar a incorporação do conteúdo de diversidade também na TV aberta para um
público muito mais amplo e generalista, nos termos de Herreros (2004).
O fortalecimento desses sujeitos autônomos tem trazido para ampla discussão
conceitos como lugar de fala (RIBEIRO, 2017), também podendo dialogar com a noção de
autoridade da experiência trazido por bell hooks (2017), que aqui propomos debate com o
conceito de direito à comunicação (FISCHER, 1984; UNESCO, 1980).
Na tentativa, portanto, de realizar uma aproximação critica desse fenômeno que tem
ganhado notoriedade atualmente, busca-se indagar: estariam finalmente as pautas sociais
de grupos minoritários encontrando eco na produção televisiva brasileira, ou seria este
fenômeno nada mais do que mais uma apropriação desses temas como parte do processo de
“mercadorização” (MOSCO, 2009) já tão conhecido pela literatura da Economia Política da
Comunicação e da Cultura?
Para responder a essa questão, este artigo parte de uma revisão bibliográfica que
contempla mídia, diversidade e valores democráticos e as lutas identitárias
contemporâneas. Em princípio se discute as noções conceituais basilares de minorias, lugar
de fala e direito à comunicação. Mais adiante, discorre-se sobre a lógica e as orientações

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principais do mercado de TV privada, no que tange formação de audiência para, em seguida,


se discutir exemplos contemporâneos de representatividade na TV. Para isso, são trazidas
pesquisas baseadas em exemplos conhecidos na TV aberta brasileira, no sentido de refletir
se eles estão de fato contribuindo para um avanço social na relação com respeito à
diversidade de outras formas de vivência não-normativas.

2 Minorias, Lugar de fala e Direito à comunicação


O termo minorias tem sido comumente empregado pelo ativismo de grupos
excluídos, sendo frequentemente questionado pelo seu caráter quantitativo que, em tese,
não se comprovaria numericamente na realidade brasileira em se tratando, por exemplo, de
mulheres ou negros e pardos. De acordo com Debra Merskin (2011), este termo não se
refere a uma designação numérica, mas sim a indivíduos que possuem a minoria do poder
em uma sociedade.
Em última análise, um questionamento mais literal sobre o termo poderia
argumentar que um aspecto quantitativo pode ser sustentado na medida em que se
considere espaços de inclusão e privilégios. Ou seja, estruturalmente, a sociedade entende
com naturalidade que existam espaços como sendo de domínio predominante de
determinados grupos sociais, como esferas institucionais de representação, altos cargos
administrativos de empresas, espaços privilegiados seja no acesso ao consumo, seja no
acesso à conhecimento, como universidades, instituições de pesquisa, galerias, produção de
informações como empresas de mídia, jornalismo e cinema.
De tal maneira, é possível perceber minoria como um termo que se refere a grupos
sociais que estão pouco ou nada presentes em espaços de poder e privilégios, sendo assim
privados não somente de aprimorar seu desenvolvimento individual, como também
excluídos da participação na produção coletiva de recursos e conhecimento, ou até mesmo
do acesso à direitos básicos. Por Muniz Sodré (2005), a minoria é entendida como uma
recusa ao consentimento normativo, “uma voz de dissenso em busca de uma abertura
contra-hegemônica no círculo fechado das determinações societárias” (SODRÉ, 2005, p. 14).
No que diz respeito à Comunicação, isso se reflete também na dificuldade de acesso à
recursos, como educação para a mídia e tecnologias para produção de conteúdo, do mesmo
modo que define quem são os proprietários das empresas midiáticas, os editores-chefe, os
diretores, os autores de novela, os jornalistas, os especialistas em economia, política,

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cultura, os formadores de opinião, etc., ou seja, quem de fato determina o conteúdo e a quem
fica relegado apenas tarefas técnicas operacionais (MERSKIN, 2011; MOSCO, 2009), isso
quando não ficam relegados ao papel passivo de audiência, configurando um silenciamento
estrutural.
No sentido de romper a lógica essa exclusão em lugares de privilégio, reforça-se a
noção conceitual, muito trazida pelo feminismo negro, de lugar de fala:

As experiências desses grupos localizados socialmente de forma


hierarquizada e não humanizada faz com que as produções intelectuais,
saberes e vozes, sejam tratadas de modo igualmente subalternizado, além
das condições sociais os manterem num lugar silenciado estruturalmente.
Isso, de forma alguma, significa que esses grupos não criam ferramentas
para enfrentar esses silêncios institucionais, ao contrário, existem várias
formas de organização políticas, culturais e intelectuais. A questão é que
essas condições sociais dificultam a visibilidade e a legitimidade dessas
produções [...] não poder acessar certos espaços, acarreta em não se ter
produções e epistemologias desses grupos nesses espaços; não poder estar
de forma justa nas universidades, meios de comunicação, política
institucional, por exemplo, impossibilita que as vozes dos indivíduos
desses grupos sejam catalogadas, ouvidas, inclusive até de quem tem mais
acesso à internet. O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de
poder existir. Pensamos lugar de fala como refutar a historiografia
tradicional e a hierarquização de saberes consequentemente da hierarquia
social. (RIBEIRO, 2017, p. 64).

De tal modo, ser capaz de produzir conteúdo, reivindicando o protagonismo de suas


narrativas é também uma forma de existir socialmente, rompendo o silenciamento
naturalizado pela normatividade hegemônica.

Quando falamos da questão do protagonismo, sempre vem alguém dizer:


‘Qualquer um pode falar de pressões, não precisa ser negro para apoiar a
luta’. Não precisa mesmo, e é dever dos não negros se conscientizar e lutar
contra opressões. Mas o que muitos não entendem é que são eles que têm
falado sobre nós ao longo do tempo [...] Se pessoas brancas continuarem
falando sobre pessoas negras, não vamos mudar a estrutura de opressão
que já confere esses privilégios aos brancos. Nós negras e negros,
seguiremos apartados dos espaços de poder. E nossa luta existe
justamente por causa dessa separação (RIBEIRO, 2017, p. 82-83).

Reivindicar esse protagonismo faz parte, portanto, do rompimento com a lógica de


silenciamento do subalterno a quem tem sido negado fala, nos termos de Spivak (2010), ou

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seja, uma potencialização da escuta de outras vozes, colocadas historicamente em


subalternidade.
bell hooks (2017) contribui com esse debate a partir do que chama de “autoridade
da experiência”:

Há anos, fiquei grata ao descobrir a expressão ‘autoridade da experiência’


nos escritos feministas, pois ela me permitiu dar nome a algo que eu
introduzia nas aulas feministas, algo que eu sentia falta mas considerava
importante. Como aluna de graduação em salas de aula feministas onde a
experiência de mulher era universalizada, eu sabia, por causa da minha
experiência de mulher negra, que a realidade de mulheres negras estava
sendo excluída. Falava a partir desse conhecimento. Não havia corpo
teórico que eu pudesse invocar para comprovar essa alegação. Naquela
época, ninguém queria ouvir falar de desconstrução da mulher como
categoria de análise. A insistência no valor da minha experiência foi crucial
para que eu ganhasse ouvintes [...] (HOOKS, 2017, p. 121).

Há, portanto, uma relevância considerável para a experiência na problematização e


percepção de fenômenos sociais, oferecendo uma complexidade a ser equacionada com uma
crítica ao essencialismo, segundo a autora. As vivências sociais podem agregar
conhecimento, mas não devem ser usadas para reforçar o silenciamento de grupos
subalternos que não as experimentaram. Para hooks (2017) a experiência deve ser
entendida como uma informação que deve coexistir de maneira não hierárquica com outros
modos de conhecer, incrementando o aprendizado.
Por esta visão, torna-se relevante perceber o potencial agregador destas
perspectivas conceituais complementares, especialmente no que toca a subversão da lógica
colonialista de produção de informação e de conhecimento. Chimamanda Ngozi Adichie
(2009) nos alerta sobre o perigo da história única, contada pelo mesmo grupo social,
distorcendo as perspectivas coletivas sobre alteridades. Quando o subalterno fala, por
conseguinte, rompe com a voz única tida como universal, calcada numa neutralidade
tecnicista, que se autoriza como especialista de todos os temas. “É necessário escutar por
parte de quem sempre foi autorizado a falar ”. (RIBEIRO, 2017, p. 78).
A fala e a escuta são as necessárias faces da moeda trazidas também pela defesa da
comunicação como um direito humano. O direito à comunicação, assim como as noções
conceituais apresentadas, pressupõe o espaço de escuta para o que é comunicado pela
subalternidade, como parte de seus valores fundamentais do diálogo na troca de
informação.

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Hoje em dia se considera que a comunicação é um aspecto dos direitos


humanos. Mas esse direito é cada vez mais concebido como o direito de
comunicar, passando-se por cima do direito de receber comunicação ou de
ser informado. Acredita-se que a comunicação seja um processo
bidirecional, cujos participantes – individuais ou coletivos – mantém um
diálogo democrático e equilibrado. Essa ideia de diálogo, contraposta à de
monólogo, é a própria base de muitas das ideias atuais que levam ao
reconhecimento de novos direitos humanos. (UNESCO, 1980, p. 300).

A noção de direito à comunicação é mencionada em 1969, quando Jean D´Arcy


criticava a insuficiência do artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, relativo
a liberdade de expressão, observando que um novo direito, mais amplo, como o de
comunicar, deveria ser reconhecido como fundamental (FISCHER, 1984). O desdobramento
dessas discussões, entre os anos 60 e 70, repercutiu na publicação pela Organização das
Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO, 1980), do documento Um
mundo e muitas vozes: comunicação e informação na nossa época, resultado de uma comissão
que problematizou o papel da comunicação para o fortalecimento da democracia.
O relatório MacBride, como passaria a ser chamado, consiste numa crítica ao fluxo
unidirecional da informação, resultado da transnacionalização e da concentração da
indústria de comunicação. Trata-se do primeiro documento da ONU a entender a
necessidade de conferir à comunicação o status de direito humano, incorporando-a a
discussão da Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação (NOMIC) e em suas
metas: mais justiça, mais igualdade, mais reciprocidade na troca de informação, menos
dependência das redes de comunicação, mais autoconfiança e identidade cultural (UNESCO,
1980).
Entendendo a sociedade como uma estrutura complexa configurada por relações de
poder, o direito à comunicação oferece um deslocamento analítico fundamental para as
pesquisas da área, passando a entender que a democratização da comunicação só poderia
ser garantida pela presença de políticas regulatórias.

O direito à comunicação se distingue dos tradicionais direitos e liberdades


individuais a ele associados – e.g. direito à informação, liberdade de
expressão – por possuir uma forte dimensão coletiva e por se caracterizar
também como um verdadeiro direito social, cujo reconhecimento implica
no dever do Estado de criar os pressupostos materiais para seu efetivo
exercício e na faculdade do cidadão de exigir as prestações constitutivas
desse direito. (WIMMER, 2008, p. 147, grifo da autora).

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Assim, criticando a liberdade de expressão em seu aspecto individualista, o discurso


do direito à comunicação traria uma proposta percebida como coletiva, propondo-se não a
suprimir esta liberdade, mas a ampliá-la. Ao contrário, então, do que é sustentado pelo
discurso liberal, que entende qualquer tipo de intervenção do Estado como ameaçadora, a
regulação aqui é vista como fundamental, sendo defendida justamente para orientar
medidas capazes de promover uma maior pluralidade de discursos (TORQUATO, 2014).
Essa radicalização da liberdade de expressão para todos, pensando-se numa abertura de
oportunidade mais equitativa para os diversos grupos, trazida pela proposta do direito à
comunicação, é algo que a lógica do mercado por si só, ao menos na experiência latino-
americana, não foi capaz de garantir.
O empoderamento e a inclusão do cidadão são também elementos primordiais do
direito à comunicação. De acordo com Philip Lee (1995):

O direito à comunicação é um ideal que visa capacitar as pessoas a


participar ativamente na busca de soluções para os problemas de
desenvolvimento, como percebido e definido por eles. Significa tornar
disponíveis para as pessoas os meios necessários que lhes permitam
estabelecer um diálogo em pé de igualdade. (LEE, 1995, p. 6, tradução
nossa).1

Assim, a defesa do direito humano à comunicação pressupõe o acesso à mídia


expandido a todos os grupos sociais, a participação social na produção de conhecimento e
informação, e o desenvolvimento do indivíduo e da humanidade.
Neste sentido, entende-se que as noções de direito à comunicação, autoridade da
experiência e lugar de fala tem muito a acrescentar um ao outro no avanço da pesquisa
sobre mídia e sobre os processos estruturais de silenciamento de minorias. Dando
seguimento a esse debate, é necessário entender a televisão em sua perspectiva
mercadológica, especialmente quando é fortemente concentrada na iniciativa privada, como
é o caso do Brasil.

1 No original: The right to communicate is an ideal that seeks to empower people to participate actively in the search for
solutions to problems of development as perceived and defined by them. It means making available to the people the
necessary facilities that will enable them to engage in dialogue on an equal footing.

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3 Mercado de TV
Para entender a lógica orientadora do mercado de TV, é importante resgatar o
quanto a valorização comercial no setor televisivo consolidou-se ao redor do mundo
impulsionada por uma correlação de interesses: a necessidade de financiamento dos
veículos, o crescimento do setor industrial e do mercado publicitário, buscando alcançar
consumidores em audiências massivas. De tal modo, esses índices tornam-se cada vez mais
determinantes de estratégias de rentabilidade das indústrias de televisão.

A renda dessas redes depende da venda de espaço publicitário. [...] As


empresas de televisão utilizam estatísticas colhidas regularmente (índices
de audiência) que indicam quantas pessoas assistem a programas
específicos para determinar o valor das taxas publicitarias. Esses índices, é
claro, também exercem forte influência nas decisões que envolvem a
escolha dos programas que devem continuar a ser exibidos. (GIDDENS,
2004, p. 368).

São oriundas da intensidade desses movimentos de capitais em direção à televisão,


transformações como a descentralização e internacionalização da produção, a multiplicação
de canais, a privatização ou desregulação da exploração de redes, a rentabilização das
emissões multimídia etc. (ZALLO, 1988). A fábrica televisiva orientada para o lucro se impõe
à produção criativa colocando-a submissa a resultados práticos (BOLAÑO, 2004).
Prevalecem critérios de planejamento e gestão sobre a criação artística, com a fragmentação
lógica das fases produtivas (pré-produção, produção e pós-produção), de modo a exercer
controle sobre o aparato de cada uma delas, mediante cálculos de investimento ou de
audiência almejados. Tais cálculos de custo tornam-se cada vez mais precisos, evitando-se
riscos e, com isso, tende-se a resultados de criatividade medíocre, que em sua maioria
repercutem em padrões técnicos já conhecidos de outros programas (BOLAÑO, 2004;
ZALLO, 1988). Características dessa indústria são:

O planejamento empresarial da produção contínua (a programação) e de


cada produto, mediante escritórios especializados para a formulação de
padrões técnicos e de custos, cobrindo o dobro do objetivo de planejar
condições para a produção e de assegurar uma audiência, o assalariamento
global tanto do trabalho de base como de especializações funcionais e de
tarefas; a desapropriação crescente do fazer criativo, particularmente de

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diretores e/ou realizadores e informadores. (ZALLO, 1988, p. 141,


tradução nossa).2

Koop (1990), por sua vez, explica que no setor televisivo os produtos carregam uma
característica incomum para mercadorias em geral: sua produção é cara, mas ao mesmo
tempo deve ser rentável o suficiente para tornar-se disponível gratuitamente aos
consumidores. Esse é o caso da TV aberta, na qual o serviço audiovisual não é financiado
pelos espectadores em proporção ao seu nível de consumo, ou seja, trata-se de uma
anomalia se comparado às regras tradicionais de mercado. Tais firmas de TV comerciais
constituem, assim, um caso raro de empresas privadas, impulsionadas pelo lucro, que
distribuem seus produtos gratuitamente.
Os aspectos colocados descrevem um meio cuja apropriação pela lógica de mercado
tenta a todo custo domar suas especificidades e suas volatilidades na tentativa de conformar
seus produtos em mercadorias rentáveis. Dado o elevado nível de seus investimentos, os
operadores do setor estão constantemente buscando novas possibilidades, redução de
riscos e garantias de retorno financeiro numa estabilidade suficientemente capaz de
preencher as horas contínuas de programação de custo oneroso e caráter perecível.
Essa característica sequencial é percebida na indústria de difusão contínua:

A difusão em fluxo contínuo supõe uma produção complexa e variada, com


processos de trabalho plenamente industriais – simultâneos por produção
e sequenciais por emissão, ordenador por uma programação que assegura
a continuidade e cotidianidade das emissões – e integra o trabalho criativo
e técnico em um mesmo processo. A programação se dirige
tradicionalmente a uma audiência heterogênea, massiva e arquetípica. Mas
também se dirige crescentemente a audiências segmentadas por rações de
idade, etnia, cultura, gostos ou renda, aproximando-se, em parte, do
autosserviço editorial. (ZALLO, 1988, p. 129, tradução nossa)3.

Destaca-se também a característica da TV ser uma múltipla indústria em si. A sua


cadeia de valor aglutina, sinteticamente, produção, programação e distribuição e por isso é

2 No original: La planificación empresarial de la producción en continuum (la programación) y de cada producto, mediante
gabinetes especializados para la formulación de estándares técnicos y de costes, cubriendo el doble objetivo de plantear
condiciones a la producción y de asegurar una audiencia; la asalarización global tanto del trabajo en base a especializaciones
funcionales y de tareas; la deposesión creciente del saber hacer creativo, particularmente de directores y/o realizadores e
informadores.
3 No original: La difusión en flujo continuo supone una producción compleja y variada, con procesos de trabajo plenamente
industriales – simultáneos por producción y secuenciales por emisión, ordenados por una programación que asegura la
continuidad y cotidianeidad de las emisiones – e integra el trabajo creativo y técnico en un mismo proceso. La programación
se ha dirigido tradicionalmente a una audiencia heterogénea, masiva y arquetípica. Pero también se dirige crecientemente a
audiencias segmentadas por razones de edad, etnia, cultura, gustos o renta, aproximándose en parte al autoservicio editorial.

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geradora também de concorrências internas, quando os operadores dos ramos que a


abastecem competem por espaço (BRITTOS; SIMÕES, 2011). Agregando desde produção
televisiva, filmes até produção videográfica, videoclipes, spots publicitários, informações
com imagens etc., é possível constatar o caráter centrípeto da televisão como meio
audiovisual, uma posição vantajosa na distribuição de excedentes e benefícios.
A televisão classificada como “generalista” enquadra-se no modelo tradicional de
televisão aberta voltada para o público massivo (HERREROS, 2004). Este modelo mais
tradicional de TV, mesmo perdendo audiência gradativamente, em virtude da diversificação
de opções de informação e entretenimento, e pulverização da audiência, fenômeno
identificado por Valério Brittos (2004) como fase da “multiplicidade da oferta”, ainda possui
relevância social significativa.
Mariano Herreros (2004) afirma que, por contar com uma audiência de milhões de
espectadores, é o modelo generalista que atua como mantenedor dos referenciais que os
elementos do público possuem em comum, reforçando cotidianamente sentimentos de
identidade, ao mesmo tempo que alimenta os elementos simbólicos compartilhados
coletivamente, os gostos gerais e a sustentação da agenda das conversas cotidianas.
Existe aí, também, uma centralização em determinados gêneros e fórmulas
populares e de entretenimento amplamente aceitos pelo grande público (concursos,
programas musicais e de auditório, ficções de grande apelo emocional, notícias impactantes
etc.). O modelo generalista, segundo Herreros (2004) alcança sua plenitude em dias de
notícias de grande impacto ou apelo visual, como por coberturas de competições esportivas,
cataclismos naturais ou acidentes, atentados, falecimentos notórios, datas comemorativas
ou celebrações eleitorais. Nesses momentos se mantém como meio informativo de
referência, de consagração de grandes acontecimentos, ainda que divida cada vez mais a
atenção com outros instrumentos informacionais.
É dentro desta lógica competitiva econômica que podemos observar o que Vincent
Mosco (2009) chama de mercadorização4, ou seja, o processo de transformação do valor de
uso pelo valor de troca como produtos de mercado. No caso da TV aberta, como dito, o
produto da troca por rentabilidade será essencialmente a audiência, o que afeta a
mercadorização dos processos produtivos de conteúdos midiáticos enquanto,
paralelamente, eles acabam por reforçar também valores simbólicos de consumo,
contribuindo para a reprodução do sistema. Voltadas para a busca de um maior número de

4 Tradução livre para “Commodification” (MOSCO, 2009).

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audiência, portanto, as mensagens midiáticas buscam se tornar sedutoras ao olhar do


público, dialogando com valores e desejos que os atraem para seus anunciantes ou para o
consumo de mais conteúdo.
Para uma melhor aproximação do objeto a partir da contribuição de Mosco (2009), é
fundamental recorrer também ao processo de estruturação, trazido por ele. Tal noção se
dedica a compreender processos de criação de relações de valor referentes à classe, gênero
e raça (como exclusão e desigualdade), referindo-se especialmente as ações sociais oriundas
das dinâmicas anteriores que criam as circunstâncias em jogo. Assim, a estruturação parte
da noção marxista de que as pessoas fazem a história, mas não sobre condições de sua
própria criação, ou seja, busca assimilar a complexidade processual não se limitando ao
estudo estático das estruturas. Essas dinâmicas ocorrem através dos conflitos e resistências
especialmente, pela análise de Mosco (2009), entre classe social, gênero e raça,
considerando a constituição de classes de forma processual, dando ênfase aos impactos das
ações de movimentos sociais.
Assim, a inclusão dos elementos de minorias, como gênero e raça, dentro de áreas
amplamente dominadas por análises de classe, segundo Mosco (2009), seria um esforço
poderoso e multifacetado de complexificação e ampliação da pesquisa em Comunicação e
resulta em um prospecto de renovação da Economia Política da Comunicação (EPC),
englobando dimensões mais amplas e profundas de experiências sociais do que
tradicionalmente é feito nesta área. De tal modo, apesar de a EPC utilizar-se
primordialmente da categoria classe, é fundamental reconhecer o valor de outras
construções de categorias para ampliar a percepção da pesquisa em Comunicação (MOSCO,
2009).
No caso da discussão que aqui é proposta, é essencial entendermos os impactos
sociais dos efeitos da orientação mercadológica da comunicação, uma vez que a mídia
televisiva ainda interfere na visão de mundo compartilhada pelo público. Debra Merskin
(2011) contribui para este debate, discorrendo sobre como a mídia massiva acaba
delineando o inconsciente coletivo quando se coloca como uma contadora de histórias da
contemporaneidade. Como intermediadora de percepções de mundo, a mídia massiva,
muitas vezes, lança mão de estereótipos, super-generalizações construídas socialmente e
que são colocadas como arquétipos de determinados grupos sociais, limitando seu
significado e a interpretação social sobre o Outro.

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Essas representações podem ser usadas, segundo Merskin (2011), para oprimir, na
medida em que reforçam visões limitadas sobre gênero, raça, classe, sexualidade e religião,
transformando estereótipos (signos unidimensionais e concretizados sobre a Alteridade)
em arquétipos (visões multidimensionais, símbolos fluidos de personalidade). Isso serve,
por exemplo, para justificar o ódio coletivo a determinados grupos, sua perseguição e
atrocidades políticas contra eles.
Esses valores distorcidos podem permanecer ao longo do tempo, sendo sustentados,
refinados e distribuídos por discursos religiosos e da cultura popular (MERSKIN, 2011). No
entanto, podem também ser questionados e reconfigurados por movimentos sociais,
reprogramando a sociedade para a não-aceitação de injustiças trazidas por eles.

4 Uma mídia mais inclusiva?


Fazendo frente ao conteúdo normativo da mídia tradicional, é possível notar
também como fenômeno comunicacional o fortalecimento do ativismo identitário a partir
da apropriação de tecnologias da informação, como as redes sociais. Se na produção cultural
alternativa isso já acontece há algum tempo, e de maneira geograficamente espalhada, nos
meios massivos de comunicação brasileiros esse impacto vem sendo sentido
gradativamente apenas nos últimos anos.
Para avançar nessa discussão com exemplos práticos, foram selecionadas três
pesquisas relativas à representatividade de minorias na produção televisiva brasileira: uma
primeira referente a mulheres negras empoderadas, trazidas por campanhas publicitárias
veiculadas na TV; uma segunda dedicada ao estudo da visibilidade da mulher gorda numa
telenovela de 2017; e uma terceira, sobre a representação da comunidade LGBT em
telenovelas da Rede Globo entre 1970 e 2013.
Em sua pesquisa sobre mulheres negras empoderadas nas publicidades É o poder! e
O que te define da Avon, estreladas pelas artistas e rappers negras LAY, Karol Conka e Mc
Carol, em 2016, Jéssica Carneiro e Aluísio de Lima (2018) falam de uma nova narrativa
representativa da mulher negra na publicidade. Haveria ali:

[...] uma figura empoderada, autoconfiante e completamente dona de seu


destino. Nas campanhas, o conteúdo trazido pelas artistas discursa sobre
uma autopercepção enquanto sujeito possibilitador de mudança atrelada a
uma autoestima e autoconfiança inabaláveis, elementos os quais se

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mostram imprescindíveis para a efetivação do ‘empoderar-se.’


(CARNEIRO; LIMA, 2018, p. 182).

No entanto, os autores preocupam-se com a apropriação desse discurso pelo


mercado, quando de maneira distorcida, tiram o foco do sofrimento causado pelos
processos racistas cotidianos em nome de uma superficial autoimagem positiva.

O ativismo da mulher negra, ao se dar pela via do consumo, legitima uma


forma de combate à opressão que se dá pela lógica da mercadoria, em que
até para se posicionar politicamente, o consumo se faz presente. [...] A
questão aqui problematizada é de que forma o reconhecimento
atravessado pelo consumo (visto como ’representatividade’) se constitui
como uma tentativa de inclusão no e pelo próprio consumo, condição esta
que foi negada historicamente à população negra. A disputa identitária
[...]da mulher negra nos marcos do consumo ensaia antes uma tentativa de
reposição tardia de um grupo excluído por duas condições que lhe são
intrínsecas: ser mulher e ser negra. Busca-se, assim, um ‘igualitarismo’
pelo consumo. [...] O que muitas vezes não se percebe é que o consumo dos
produtos não produz necessariamente o empoderamento que levaria a
uma guinada emancipatória; pela via do consumo desses produtos, elas
podem justamente reduzir o empoderamento à possibilidade de compra
de mercadorias. (CARNEIRO; LIMA, 2018, p. 184-185).

De tal maneira, ainda que se reconheça a importância de pensar sobre um poder de


consumo até então dificultado para esse segmento populacional, alijado da padronização
tradicional da indústria de beleza embranquecedora, Carneiro e Lima (2018) demonstram
preocupação num movimento de reconhecimento que não passe pelo político, pelo coletivo,
mas pelo individual, privado, valorizado pelo processo de consumo. Isso traria uma
distorção da crítica social pelo viés estrutural político-econômico, de processos mais
complexos centrados pela identidade feminina negra, que indica o esvaziamento do
processo de transformação social e diminuição da opressão coletiva deste segmento.
Relativamente ao conteúdo de ficção, as telenovelas também têm apresentado
recentemente maior abertura para as pautas da diversidade. No que se refere à imagem, a
distorção sobre a visibilidade da mulher gorda tem sido colocada como notável nas
produções de mídia pelo ativismo feminista, especialmente em redes digitais. À mulher
gorda, as tramas dedicam um viés cômico, periférico à linha narrativa central, algumas vezes
problematizando gordofobia ou padrões estéticos femininos, mas de forma fragmentada,
superficial, reduzindo a proposta da diversidade a um debate secundário, e quase nunca
essas personagens alcançam a situação de protagonismo. São algumas das ponderações de

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Ethiene Fonseca e Mayara Silva (2018), que estudaram a construção da personagem Abgail
na novela global Força do Querer, exibida em 2017.
Dentre as constatações dos autores está o reforço do fato de ela ser uma
representante “plus size bem resolvida”, vinculando o corpo gordo a um fator negativo, com
o qual é necessário resolver-se. Além disso, a personagem não possui uma trama própria ou
uma busca pessoal, tendo sua história atrelada ao enredo de outras figuras, o que
enfraquece sua importância, bem como a da temática acerca da valorização do corpo gordo
que representa. Ela está inserida no enredo de personagens secundários, o que a torna ainda
mais periférica para o contexto da narrativa, de modo que:

A supressão da personagem na obra não faria diferença alguma para o


desenvolvimento da história. Dado ao seu interesse por cosméticos, Abigail
decide se tornar revendedora de produtos da marca Natura, figurando em
cenas de merchandising em que ela fala sobre as vantagens de trabalhar
para a marca. Em uma iniciativa transmídia, a personagem passa a veicular
dicas de moda e beleza em um perfil no Instagram e em um blog criados
para a personagem, iniciativas atreladas à parceria estabelecida entre a
Natura e a Rede Globo. (FONSECA; SILVA, 2018, p. 404, grifo dos autores).

De tal maneira, a personagem parece ter sido deslocada mais uma vez para seu apelo
mercadológico de ponte com as consumidoras que se identifiquem com o seu perfil e que,
por sentirem-se desconfortáveis com a fuga do padrão estético, são induzidas a embelezar-
se cada vez mais, ou seja, se tornarem consumidoras potenciais das indústrias da beleza,
moda e estética. A personagem dedica-se, portanto, a construção de sua identidade como
mulher considerando que, do ponto de vista corporal, ela não atende às expectativas de
gênero e desse modo, ela se mostra bastante vaidosa. Fonseca e Silva (2018) concluem que:

[...] ao afastar o tema da trama principal faz com que Abigail, considerada
pela própria emissora como representante da mulher gorda empoderada,
esteja à margem do enredo, o que alude à posição da mulher gorda na
sociedade, sempre à margem nas esferas sociais, descolada do status quo.
[...] Considerando haver a necessidade de simplificar determinados
assuntos para que eles sejam aplicáveis à narrativa, pode-se concluir que a
obra em análise reuniu elementos temáticos que contribuíram para a
produção de representações que além de não entrarem em atrito com as
normativas sociais, serviram como uma espécie de reforço àquilo que
supostamente se pretendia questionar. Assim, vê-se que a utilização da
noção de diversidade ocorre de forma rasa e mercadológica para atrair a
atenção do público-alvo. (FONSECA; SILVA, 2018, p. 408-409, grifo dos
autores).

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De tal maneira, embora tenha sido uma trama dedicada a tratar das temáticas da
diversidade e de gênero, a tentativa de não ir de encontro ao que é usualmente aceito pela
audiência condicionou a simplificação e a superficialização excessiva de algumas pautas o
que, para os autores, dificultou a abordagem aprofundada de temas sociais múltiplos e
distintos e acabou contribuindo para reforço de preconceitos (FONSECA; SILVA, 2018).
Assim, a abordagem da emissora sobre o tema do corpo gordo e dos padrões estéticos
femininos acabou resultando numa perspectiva conservadora, até porque atrela no enredo a
ideia de felicidade da mulher à valorização do corpo, à estética e aos relacionamentos
amorosos, algo que, claro, acabou sendo o final feliz da personagem.
Ainda sobre o debate de gênero nas telenovelas, a pesquisa apresentada por
Fernanda Nascimento (2018) se debruça sobre um levantamento panorâmico de
representação LGBT entre os anos de 1970 e 2013 que identificou 126 personagens em 62
novelas.
Entre as décadas de 1970 e 1980, a maioria desses personagens integrava núcleos
cômicos e posições subalternas e, por algumas vezes, traziam tematizações de preconceito
ou discriminação. As lésbicas começam a aparecer mais na década de 1980, mas ainda com
sua sexualidade regulada ou enquadradas num padrão heteronormativo, e as vivências
trans começam a ser vistas, só que em tom cômico em Um Sonho a Mais (1985) e com uma
discussão sobre discriminação em Tieta (1989).
A partir da década de 1990, a tendência de maior visibilidade de LGBT se mantém
com o primeiro casal inter-racial de homossexuais, discutindo opressões de sexualidade e
raça. Mas o destaque é a exclusão de um casal lésbico em Torre de Babel (1998) por conta da
rejeição do público. É possível ver também uma personagem que não definiu seu gênero e
sexualidade em Explode Coração (1995) e a tematização da bissexualidade em Por Amor
(1998) (NASCIMENTO, 2018).
Na década de 2000 podem ser vistas 22 narrativas com participação LGBTs e
Fernanda Nascimento (2018) vê uma mudança do comportamento majoritariamente bicha
para os padrões heteronormativos, como os casais brancos, em relações monogâmicas e de
classe média, como em Páginas da Vida (2006) e Paraíso Tropical (2006). Essa tendência é
também vista na representatividade lésbica como em Mulheres Apaixonadas (2003) e
Senhora do Destino (2004).
Entre 2010 e 2013 são 12 as narrativas com LGBTs, sendo duas com núcleos
especificamente pautados com essa temática, Ti-Ti-Ti (2010) e Insensato Coração (2011). A

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autora destaca as tramas que fogem da norma, como em Viver a Vida (2010), que apresenta
uma relação entre homens bissexuais não monogâmicos e em grupo, e Fina Estampa (2011),
com um relacionamento intergeracional. A transexualidade também é um destaque em Salve
Jorge (2012).
Assim, em sua pesquisa, Fernanda Nascimento (2018) percebe um crescimento
acentuado de personagens LGBT com faixas etárias entre 21 e 30 anos nas décadas
analisadas, e, no que se refere à raça, das 126 personagens analisadas apenas quatro são
negras, sendo que três eram oriundas de classes populares, apontando forte invisibilidade
deste grupo social. A autora finaliza:

No leque das identidades LGBTs, a presença majoritária das narrativas é de


gays. Os dados explicitam ainda a menor visibilidade da sexualidade das
mulheres em relação aos homens, fator apontado como uma das formas de
demarcação de gênero utilizada pela heteronormatividade: o apagamento das
identidades. Menos visíveis, as lésbicas têm também suas sexualidades mais
reguladas, enquadrando-se dentro de um padrão de gênero com características
atribuídas ao feminino, na qual a única diferença é a sexualidade. As análises
apontam para o fato de que, ainda que os LGBTs tenham tido suas vivências
tematizadas de forma mais acentuada nos últimos anos, outras formas de
opressão continuam sendo reproduzidas nestas representações. O silenciamento
de identidades se estende à presença pequena de personagens bissexuais e se
acentua ainda mais com a pouca participação de transexuais. [...]O panorama
aponta a necessidade de ampliação da diversidade destas representações
(NASCIMENTO, 2018, p. 354).

De tal modo, Nascimento (2018) conclui que é notório o crescimento da


representatividade LGBTs em tramas de telenovela, mas aponta para a preocupação de que,
com a tematização muito normatizada, outras formas de opressão sejam reforçadas, como é
o caso das questões raciais, de classe e da regulação da sexualidade feminina. Ainda é
possível ver também o silenciamento de outras identidades de gênero como da
bissexualidade e de transgêneros, sendo, portanto, crucial a problematização de uma
“visibilidade regulada” nos termos de Stuart Hall (2003).

5 Considerações finais
É também Stuart Hall (2003) que chama a atenção para a limitação dos ganhos
conquistados pelas subalternidades marginalizadas quando alcançam o centro,
especialmente tendo em vista o histórico e a tendência a segregação. É possível notar, a

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partir dos exemplos analisados, a propensão que a lógica de mercado hegemônica tem em
assimilar e se apropriar dos movimentos que deveriam ser contra-hegemônicos. Faz parte
de seu processo de negociação simbólica, de readequação de consensos.
Claro que isso não desvaloriza o fato de as pautas da diversidade e da luta por seus
direitos terem ganhado o conhecimento do público, e hoje se fazerem presentes nos
conteúdos mais massivos da mídia, não se restringindo a ambientes privilegiados ou
restritos de acesso a conhecimento e informação. Para enxergar essa popularização como
um avanço, no entanto, é fundamental ter em mente que essa abertura é também parte das
contradições do capitalismo, que apresenta notável capacidade de adaptação às novas
possibilidades de mercadorização, com a assimilação de elementos identificados como
valorizados diante do público. Maior prova disso é o desenvolvimento da nova área
chamada Marketing de causa. Trata-se de uma adaptação estratégica deste mercado e que,
por isso, deve seguir sob o olhar atento da crítica sobre a apropriação de pautas sociais pela
lógica da produtividade, da busca por audiências, anunciantes e lucro.
Nesse contexto, em que a orientação mercadológica do setor televisivo prevalece
fortemente tensionada pela concorrência com novas mídias e com os discursos ativistas
fortalecidos por elas, é possível ainda identificar o quanto valores estereotipados sobre os
diversos grupos sociais ainda permanecem. Como observado nas pesquisas apresentadas, o
aparecimento da representação de grupos não normativos, pode ser identificado como um
avanço ainda muito incipiente, filtrado por um viés conservador, e notoriamente construído
pelas mãos de representantes dos mesmos grupos normativos privilegiados no exercício de
seu direito de fala.
Uma pesquisa que observasse a representação social dos autores e diretores de
novelas, gestores de contas publicitárias, e demais cargos hierarquicamente definidores
deste conteúdo poderia indicar material fundamental para discussão sobre lugar de fala e
sobre direito à comunicação. Se a própria composição das equipes definidoras desses
conteúdos continuarem sendo as mesmas pessoas que historicamente alimentam a mídia,
notoriamente homens, brancos, heterossexuais e de classe média, muito dificilmente outras
visões de mundo serão efetivamente incorporadas ao conteúdo midiático massivo.

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Minorities, speech standpoint and the right


to communication in media: activism and
commodification of social struggles

Abstract
Diversity has become an increasingly recurrent theme in the
content presented by the mass media. In an attempt to advance
a critical observation of this debate, we seek to ask: are the
social agendas of minority groups finally finding place in
Brazilian television production, or is this an appropriation of
these themes as part of the process of ‘commodification’
already so well known by the literature of the Political Economy
of Communication and Culture? To answer this question, we
propose a literature review on media, diversity, democratic
values and contemporary identity struggles. Then, the strategic
logics of the Private TV Market are explained, and than
contemporary practical examples of non-normative

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representativeness on TV are discussed, brought by other


studies that point to the need to reflect on who builds these
narratives. we find that the market logic has appropriated the
movements that should be counter-hegemonic.

Keywords
Diversity. Minorities. Television. TV market. Speech standpoint.

Autor correspondente
Chalini Torquato
chalini.torquato@eco.ufrj.br

Recebido em 30/06/2020
Aceito em 08/09/2020

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