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SEGURANÇA INDUSTRIAL

Abordagem diferenciada Parte 1

Fatores humanos e organizacionais também devem ser considerados pelos profissionais do SESMT
Gustavo Murta F. Duca
DIVULGAÇÃO DOIS DEZ

Próximo de completar meio século de décadas encontraram um platô, ou seja, para a garantia do tripé: Segurança, Qua-
existência, desde sua criação no início da as reduções na quantidade de acidentes lidade e Produtividade. Sua conceituação
década de 1970, o Serviço Especializado observadas no passado se estabilizaram, busca dar peso organizacional à experti-
em Segurança e Medicina do Trabalho, não apresentando evoluções significati- se vinda do “chão de fábrica”, que é con-
nosso SESMT, tem em seu horizonte um vas. Ao mesmo tempo vemos um aumen- dição primordial para o desenvolvimento
grande desafio, talvez um dos maiores já to crescente de adoecimentos psíquicos, da Cultura de Segurança. Seu uso lança
enfrentados, cuja superação é concomi- sociais ou até mesmo físicos, causados por luz ao fato de que o condicionamento de
tante para o prosseguimento da sua his- riscos psicossociais, aqueles relacionados uma atividade humana efetivamente se-
tória de sucesso na garantia da segurança ao desenho, organização e gerenciamen- gura é obtido pela conformidade com as
do trabalhador. Contudo, visto sua natu- to do trabalho, bem como a ocorrência de normas, a Segurança Normatizada, para-
reza paradoxal, tal desafio ainda não foi acidentes ampliados, como nos recentes lelamente à realização de iniciativas indi-
reconhecido de forma clara e adequada, acidentes de grande magnitude na mine- viduais e coletivas, a Segurança em Ação.
tornando o despontar do debate uma real ração em Minas Gerais.
necessidade. Para a compreensão do cenário atual, EXPERTISE OPERACIONAL
Antes de adentrar no paradoxo que dá a abordagem por meio dos FHOS (Fato- Assim, a Cultura de Segurança passaria
origem ao texto são necessárias algumas res Humanos e Organizacionais de Se- pela adoção de regras e procedimentos,
reflexões de forma a melhor compreender gurança), conceito há muito cristalizado mas também por atitudes que não estão
a realidade atual da Segurança do Traba- em pesquisas de SST, torna-se de grande contempladas pelas regras, às quais têm
lho, no Brasil e no mundo. É amplamen- utilidade. Dele fazem parte as definições sua gênese no desempenho habitual das
te reconhecido, nos meios acadêmicos “Segurança Normatizada” e “Segurança atividades, nos saberes incorporados da-
e profissionais, que os ganhos em Saú- em Ação”. queles que efetivamente executam o tra-
de e Segurança do Trabalho das últimas Os FHOS, ligados à organização e ao balho. Atitudes estas que são a base para
gerenciamento, coletivos de trabalho, si- a ação competente e o desempenho se-
Gustavo Murta F. Duca - Engenheiro de Produção -UFMG, Es- tuação de trabalho e indivíduo, tem como guro da atividade, podendo, inclusive, ir
pecialista em Engenharia de Segurança do Trabalho - FUMEC
e Mestrando em Engenharia de Produção - UFMG na área de elemento-chave a valorização dos saberes contra as prescrições existentes. Da união
Estudos Sociais do Trabalho, da Tecnologia e da Expertise.
duca.gustavo@gmail.com dos operadores, tidos como fundamentais da Segurança Normatizada e da Seguran-

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ça em Ação é gerada a segurança efetiva à adoção de mais e mais regras ad eter- rupções e atrasos.
do sistema, também chamada de Segu- num. Este quantitativo de regras é viável
rança Sistêmica. e lidável em situação de trabalho? Que CONTRASTE
Cabe ressaltar que normatização e pro- dificuldades as regras podem gerar? As É necessário um acoplamento dinâmi-
cedimentação são um dos pilares do sis- regras das empresas contrariam alguma co entre a Segurança Normatizada e a Se-
tema de controle de riscos e da gestão da regra inerente ao exercício da tarefa? gurança em Ação. A abordagem a partir
segurança atuais, cuja adoção é necessá- Contrariam alguma regra da profissão? dos FHOS permite, então, não apenas
ria, seja pela complexidade das ativida- Quais contradições seu uso leva? Onde compreender melhor o que condiciona
des atuais, seja para prover dados sobre suas contradições são discutidas? O se- a atividade humana, mas também como
os processos em questão e sua transpa- gundo grupo diz respeito à possibilidade agir sobre a concepção das situações la-
rência. Estes são praticamente consenso de emprego de regras absolutas, aquelas borais e da organização do trabalho. Ora,
dentro das empresas, em que os ganhos “esculpidas em pedra”. E a situação con- o trabalho dos operadores jamais se li-
obtidos com o seu uso são amplamente cretamente enfrentada? E as situações mita a uma simples execução dos pro-
reconhecidos. Contudo, se a adoção de não contempladas? E quando uma situa- cedimentos. Se eles o fazem, em uma
regras tem obtido ganhos no controle de ção impede seu uso? greve do zelo, o sistema para de funcio-
riscos de longo prazo, como aqueles ge- Fica claro que as regras deixam de fora nar, como por exemplo, as “operações-
rados pelos agentes ambientais (ruído, a segurança que se constrói durante a -padrão” ou “operações-tartaruga” nas
vibração, etc.) os mesmos mostram eficá- ação, em situação real. Ação está cons- quais os procedimentos são cumpridos
cia limitada no controle de riscos de cur- truída por meio de elocubrações e refle- rigorosamente, à revelia das dinâmicas
to prazo, como a adoção de uma postura xões, possibilidades elencadas, refletidas e contextos em que estão inseridos, com
de precaução frente às pressões produ- e cristalizadas em escolhas, bem como da os trabalhadores se eximindo de fazer o
tivas. Os ganhos iniciais com reforço de imersão no trabalho e desenvolvimento do que não está normas. O reconhecimento
formalismos atingiram um patamar e não controle tácito do risco. A Segurança Nor- de que a realidade é muito maior e mais
continuam levando a uma diminuição dos matizada só dá conta do que é previsível, diversa do que as regras podem prever,
danos, o que torna necessário o debate daquilo que já foi vivenciado no passado. o que ocasiona regularmente desvios na
franco sobre suas formas e limites. Não se Já a Segurança em Ação antecipa e per- sua adoção, leva à compreensão de que
pode ter um olhar maniqueísta para com o cebe algum disfuncionamento, atuando violações são inevitáveis. Ou seja, a deci-
tema: não se trata de negar os benefícios inclusive em interações e situações ain- são sobre a viabilidade ou não de aplicar
da procedimentação, mas sim de dar um da inéditas. Ademais, fatores causais não uma norma no curso da ação é imprete-
passo além e integrar a expertise opera- são bem controlados pelo uso de regras e rível, e por vezes, necessária e desejá-
cional à gestão da segurança. sua imposição. Assim, os estados de aler- vel. Assim, o desvio da norma, analisado
ta dos operadores, ou ainda o aumento da a partir da reconstituição da ação toma-
MUNDO REAL atenção durante o controle de sistemas da de forma a contextualizar a repre-
Atualmente vivemos uma hipernormati- complexos, parecem ser pouco influen- sentação mental do trabalhador, revela
zação do trabalho com empresas com al- ciados por regras prévias ao contexto vi- que mesmo um “desvio” visava a garan-
gumas centenas ou milhares de normas, vido. A ação no mundo real não é pautada, tia do tripé Segurança, Qualidade e Pro-
regras e procedimentos. Tal situação traz e não pode ser meramente desenvolvida dutividade, sendo então fonte potencial
algumas questões das quais dois grupos de acordo com os livros de regras - line- de segurança, e não de risco. Contudo,
saltam aos olhos. O primeiro se relaciona ares, previsíveis, controlados e sequen- a necessidade positiva de se desviar das
ciais. A vida real é normas, desvio este feito de forma pon-
repleta de ocorrên- derada e com base na expertise e vivên-
cias que dividem o cia, contrasta com as abordagens com-
tempo, que são in- portamentais e modelos de segurança em
tercaladas ou com- voga - atualmente formas mais habituais
primidas por inter- de atuação do SESMT.

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SEGURANÇA INDUSTRIAL
HISTÓRICO As políticas de proteção do trabalhador se não houvesse segurança ou saúde do
Torna-se proeminente o questionamen- têm então sua consagração em 1978, com trabalhador além das normas.
to: se já há concordância que os elementos a criação das NRs (Normas Regulamen-
constituintes da FHOS são determinantes tadoras) pelo Ministério do Trabalho por EVOLUÇÃO
para a segurança do sistema, porque ainda meio das quais ocorreu o reconhecimen- Desta forma, a segurança normativa
temos práticas de SST pouco aderentes e to das profissões ligadas à SST. A batalha acaba sendo a parte mais objetivada e
que negam este fato? Essa é uma reflexão contra os acidentes e doenças do traba- valorizada, visto que estas várias dinâmi-
que técnicos, engenheiros, gestores e pes- lho, e pelo cumprimento das normas pe- cas é que determinam historicamente e
quisadores de segurança devem se fazer. las empresas, teve como resultado a re- socialmente o que é o SESMT.
Na busca por respostas é necessário dução da taxa de acidentes para menos Pautando sua prática como um mero
olhar, dentre outros fatores não discuti- de 4% em 1984. aplicador de regras, como um vigia - quan-
dos neste artigo, o desenvolvimento his- do não uma polícia das normas - , o SES-
tórico da área no mundo, bem como a já LÓGICA LEGALISTA MT acaba por enviesar e limitar o alcance
consagrada atuação do SESMT no Brasil. A hipótese que decorre deste proces- que sua atuação poderia ter com a adoção
A Segurança Industrial tem sua origem so é que a obediência às leis e normas é de uma abordagem de caráter cooperativo
em lógicas positivistas sobre as quais foi suficiente para serem mantidas as condi- com o sistema produtivo, a partir do reco-
edificado o atual modelo de produção, ções de segurança, de confiabilidade e de nhecimento e importância da Segurança
amplamente ligado à administração cien- eficiência produtiva. Percebe-se, assim, a em Ação (um bom exemplo são os pro-
tífica de Taylor, sabidamente mecanicis- ligação íntima entre segurança e norma- cessos de monitoramento de segurança e
ta e reducionista. Outro fato de grande lização, estando sua própria existência e mensuração de risco pautados na contabi-
relevância é que a alavancagem das me- a atual formatação relacionadas às leis. É lização de comportamentos “não confor-
lhorias nas condições de trabalho passou daí que advém grande parte da força da mes”, os quais não exploram os contextos
pela promulgação de novas leis. Mesmo SST na sociedade e organizações. Força e os motivos da sua adoção).
contando com alguns estudos desde o essa operacionalizada por meio de normas Qual profissional de segurança nunca
Século 17, é a partir do Século 19 que te- e prescrições, às quais são reforçadas por teve que entoar uma lei ou NR para ser
mos as primeiras leis sobre o tema SST, e imposições derivadas das lógicas destes respeitado, seja em reuniões gerenciais ou
uma efetiva evolução da área, bem como modelos econômico e jurídico. em interações com níveis operacionais?
a redução dos acidentes. A criação da OIT A necessidade, diga-se fundamental, E qual profissional já se questionou se as
(Organização Internacional do Trabalho) do cumprimento da legislação de segu- procedimentalizações adotadas, lastrea-
e da OMS (Organização Mundial da Saú- rança, transporta tal lógica de funciona- das nas normas, eram suficientes para se
de), ainda na primeira metade de Século mento para a própria área de SST, com a promover a segurança, ou, por vezes, se
20, fomentando um ambiente jurídico de multiplicação dos procedimentos inter- eram aplicáveis às situações?
proteção ao trabalho, bem com as Direti- nos, cada vez mais detalhados e restriti- Desta forma, o não reconhecimento da
vas de Seveso ao final deste mesmo sécu- vos. Essa visão legalista e burocrática da insuficiência das normas para garantia da
lo, definindo a necessidade de políticas e prevenção, associada ao entendimento da SST e o desperdício em não reconhecer o
sistemas de gestão da segurança, são al- segurança como um entrave para a produ- valor da competência que se manifesta por
guns dos marcos fundadores desta abor- ção, gera desvalorização técnica da área e meio da Segurança em Ação, alicerçam e
dagem legalista normativa. dos profissionais, uma vez que a atuação contribuem para o paradoxo atualmente
No Brasil nossa primeira lei relaciona- com ênfase em conformidade acaba por enfrentado pelo SESMT. De raízes presas
da a acidentes de trabalho data de 1919, ser vista como preponderante frente às à história normativa impositiva, o SESMT
sendo criada em 1930 a Justiça do Traba- atuações mais próximas das atividades e necessita, para continuar gerando valor,
lho, seguidas pela CLT (Consolidação das suas demandas, afastando-os da realida- evoluir para além desta, propiciando então
Leis Trabalhistas) e pela CIPA (Comissão de do trabalho. abordagens sistêmicas e cooperativas, que
Interna para Prevenção de Acidentes), Como efeito, se vê nas empresas, a ado- deem espaço à Segurança em Ação. Seu
na década de 1940. Contudo, é com o re- ção de práticas muitas vezes a contragos- desempenho deve ser acoplado à Segu-
conhecimento da grande quantidade aci- to, pautadas corriqueiramente pelo míni- rança Normatizada, pois ambas, individu-
dentes nas décadas de 1960 e 1970 que mo necessário para o atendimento legal. almente, são insuficientes para a garantia
temos uma forte expansão da legislação Ou seja, os recursos de SST, vistos como da Segurança Sistêmica. É preciso reco-
trabalhista. custos, acabam por buscar a conformida- nhecer que aquilo que deu vida e forma à
É importante ressaltar que neste perí- de como garantia de segurança, o que difi- área, logrando tantas vitórias no passado,
odo éramos o país com os maiores índi- culta uma atuação mais ampla. Tal lógica é exatamente o que atravanca o seu en-
ces de acidentes de trabalho no mundo, legalista, pela qual se vê majoritariamen- riquecimento, valorização e desenvolvi-
com estudos apontando que anualmente te a inserção do SESMT na sociedade, é mento. Superação esta necessária para o
um em cada seis trabalhadores sofria um vista, inclusive, na formação educacional prosseguimento da sua história de suces-
acidente. Foi neste momento, com o país das diversas especialidades que o com- so na garantia da segurança da força de
sofrendo pressões da OIT e buscando a põe. Nos cursos técnicos e também nas trabalho brasileira. Contudo, romper este
adoção de medidas de impacto, que se especializações há intenso foco dedicado paradigma não será tarefa fácil!
criou em 27 de julho de 1972, uma lei de- a esmiuçar as normas, mas com pouca
terminando a obrigatoriedade do SESMT. avaliação crítica para além delas, como *Continua na próxima edição.

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